UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ Programa de Pós-Graduação em Letras
III Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários
Anais 2014 ISSN –2177-6350
Linguística
CONSTITUIÇÃO DE ARQUIVO PARA ANÁLISE DO CUIDADO DE SI NO DISCURSO DE SUJEITOS IDOSOS EM CONTEXTO DE ESTUDOS NA UNATI- UEM Adélli Bortolon Bazza (PG-UEM) Introdução Um rápido olhar pelos meios de comunicação permitirá ao observador encontrar a figura do idoso retratada em inúmeras peças midiáticas como novelas, propagandas, campanhas educativas etc. Ora como personagem que fala, ora como aquele de quem se fala, o idoso se tornou objeto sobre o qual se constroem saberes. Personagens idosos ganham espaço nas novelas; reportagens são produzidas sobre suas vidas atualmente; muitos produtos são desenvolvidos especificamente para esse grupo e, consequentemente, as campanhas publicitárias desses produtos visam ao idoso e o utilizam em suas imagens. Em contextos mais institucionalizados, foi tornado lei o Estatuto do Idoso, em 2003 e, desde então, têm sido desenvolvidas várias políticas de inclusão e valorização da pessoa idosa, como o programa Viaja mais melhor idade e a implantação das Academias da Terceira Idade (ATI) na cidade de Maringá. Toda essa circulação de textos e informações e essa mobilização social em torno de questões sobre o idoso são relativamente recentes e costumam ser justificadas pelo aumento da população idosa em diversos países no mundo. Entre as possíveis explicações para esse fenômeno, estariam a redução da taxa de natalidade e os avanços da medicina e da farmacologia, que possibilitaram uma maior longevidade à população. Essa confluência de enunciados a respeito do idoso atual culminou em um trabalho discursivo de (re)construção da identidade desses sujeitos, a qual é descrita como nova, se forem consideradas as formas de designação emergentes na sociedade contemporânea e fez circular o discurso do/sobre um chamado “novo idoso”. A afirmação da existência de um “novo idoso” possibilita questionamentos sobre a coincidência ou não dessa identidade com a vida dos indivíduos e, a partir dos pressupostos foucaultianos, descrever o que é feito do idoso hoje e o que está em jogo
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para que ele seja/esteja assim. Dessa forma, propôs-se como objeto de pesquisa a forma de subjetivação de idosos em contexto de estudos na UNATI-UEM. Especificamente, objetivou-se, na pesquisa, descrever o discurso assumido pelo idoso sobre si mesmo e as técnicas utilizadas por esses sujeitos para se subjetivarem como idosos no contexto atual. Para tanto, propôs-se entrevistar idosos que frequentam a UNATI – UEM. Por se desenvolver pautada em uma perspectiva discursiva, amparada no pensamento de Michel Foucault, a realização desta pesquisa implica assumir sua proposta descontínua de compreender a história. Foucault (2005a) propõe uma história serial, pautada na mudança e no acontecimento. Entre as características desse método, pela qual são recortados documentos e se estabelecem, a partir deles, relações, o que faz os estratos de acontecimento se multiplicarem. O trabalho do pesquisador consiste, portanto, em compor séries de enunciados captados em diversas cronologias e, em meio a essa dispersão de acontecimentos, buscar regularidades, ao mesmo tempo em que trabalha as rupturas da história. Inscreve-se, assim, o gesto de interpretação ao se entender que a emergência de enunciados sobre o idoso configura a ruptura de uma prática que, por muito tempo, não o teve como seu foco de interesse. Para realizar essa escavação, buscou-se recortar o sujeito idoso atual no contexto educacional de aluno da UNATI por meio de produções de relatos orais (via entrevista) sobre a sua experiência. Esses depoimentos compõem a série analisada na pesquisa, que tem como fio condutor os elementos do cuidado de si empregados por esses idosos para se constituírem como sujeitos idosos.
Fundamentação teórica Ao apresentar seu método de análise, Foucault (2004a, p. 29) afirma que “não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem; é preciso tratá-lo no jogo de sua instância”. Nesse sentido, o olhar sobre o idoso assenta-se sobre a perspectiva da mudança e do acontecimento, na tentativa de “fazer aparecer diferentes estratos de acontecimentos, dos quais uns são visíveis, imediatamente conhecidos até pelos
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contemporâneos e, em seguida, debaixo desses acontecimentos que são de qualquer forma a espuma da história” (FOUCAULT, 2005b, p. 291). Opera-se uma inversão do pensamento causualístico adotado por muitos pesquisadores. No método arqueológico, renunciam-se às noções de cronologia, continuidade, sujeito fundante, documento como verdade e unidade em prol de noções como: diferentes temporalidades, descontinuidade, descentramento do sujeito e documento como algo sujeito a interpretação. Relacionados no interior de uma série, a descrição dos modos de relação entre enunciados indica, entre outras coisas, os princípios das práticas discursivas que caracterizam um determinado discurso. Sobre a coexistência dos enunciados, Foucault (2007) afirma que o enunciado só existe dentro de um campo associativo com outros enunciados, composto de elementos como: a) outras formulações onde o enunciado se inscreve; b) conjunto das formulações a que o enunciado se refere; c) conjunto das formulações que podem vir como consequência do enunciado; d) conjunto das formulações cujo status é compartilhado. Essa série de formulações com as quais o enunciado coexiste atesta sua historicidade, o que permite descrever o trabalho realizado pela memória na sua constituição. Dessa forma, “a análise de discurso tem como tarefa a descrição dos jogos de relações que os enunciados estabelecem no interior do arquivo” (GREGOLIN, 2006, p. 27). O arquivo é o lugar a partir do qual se podem analisar as práticas discursivas de uma sociedade. No entanto, é possível uma análise exaustiva, pois ele mesmo jamais será descrito em sua totalidade, visto que ele é também um recorte de todo o conjunto de enunciados produzidos e das teias de relações que eles estabelecem. Por sua natureza também parcial, o arquivo se caracteriza como um gesto de interpretação e desprende o discurso das continuidades. Para a composição do arquivo da pesquisa, os sujeitos idosos participantes produziram relatos de experiência e respostas em uma entrevista a cerca de sua vida na terceira idade. Esses enunciados se relacionam com outros relatos de experiência e com outras entrevistas na medida em que compartilham características que delimitam o
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gênero; assim como retomam e projetam outros enunciados (notícias, reportagens, artigos científicos, comerciais etc.) que discutem a questão do idoso. Além disso, por serem produzidos na coleta de dados, estão em rede com o que for produzido em decorrência deles, como a escrita de trabalhos e a produção de apresentações em eventos, por exemplo. Isso é a remanência do enunciado. Para Foucault (2004a, p. 58), sujeito é um lugar vazio, na medida em que é uma posição, fruto, portanto, das relações que estabelecem pelo discurso. As posições do sujeito se definem igualmente pela situação que lhe é possível ocupar em relação aos diversos domínios ou grupos de objetos: ele é sujeito que questiona, segundo uma certa grade de interrogações explícitas ou não, e que ouve, segundo um certo programa de informação; é sujeito que observa, segundo um quadro de traços característicos, e que anota, segundo um tipo descritivo.
A relação de poder para Foucault não é dual, mas sim uma teia de micro-poderes que são exercidos. Além dos poderes mais visíveis (dos quais muitos pesquisadores já tinham tratado), como o governo, a polícia, a lei, Foucault procura descrever as relações de poder que se estabelecem nos contatos cotidianos, inclusive no mais privado da vida, como é o lar e a relação do sujeito consigo mesmo. Essa investigação se dá em obras foucaultianas como a História da Sexualidade I, II e III, a Hermenêutica do Sujeito e outras notadamente sobre a ética e a estética da existência. Esse percurso de estudo vai ao encontro de uma constante tentativa de se saber e se gerir a privacidade dos sujeitos, o que acarreta uma intensa produção de conhecimento sobre eles. Foucault constata isso ao ponderar que o sexo e a sexualidade, apesar de parecerem temas interditados, são objeto de discussão e saber de diversos campos, desde a medicina até a religião. Os modos de objetivação constroem saberes e subjetividades e transformam os seres humanos em sujeitos de um discurso. Contudo, não se trata apenas de uma força que impõe sobre o sujeito, pois há que se considerar o trabalho dele sobre esses discursos. Ao longo de sua obra, Foucault busca responder a pergunta: “Quem somos nós hoje?”. Para tanto, o autor passa pela discussão sobre a constituição das verdades a respeito do sujeito nos discursos, da verdade sobre o sujeito pelas relações que
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estabelece com outros sujeitos e instituições até chegar à reflexão da verdade que se estabelece sobre o sujeito na sua relação consigo mesmo. Neste enfoque, ganham destaque as reflexões sobre ética e estética de existência como uma via para pensar de que maneira os indivíduos se constituem como sujeitos de seu discurso em uma relação com os discursos que circulam sobre eles, com as práticas que organizam esses discursos e com os dispositivos que organizam tais práticas. Dentre os conceitos desenvolvidos por Foucault nessa fase, denominada por alguns estudiosos como a sua terceira, são destacados interessam A hermenêutica do sujeito (2011), O governo de si e dos outros (2010) e o cuidado de si (2005c) por tratarem especificamente sobre formas de subjetivação presentes em sociedades antigas como a clássica, mas que, por guardarem uma atualidade, ajudam a explicar muitos processos sobre como se constituem os sujeitos hoje. Entre as obras que compõem a chamada terceira fase, destaca-se a História da Sexualidade pelo seu desdobramento em três extensos e produtivos volumes. O primeiro, subintitulado “A vontade de saber” (2004b) está mais voltado às reflexões sobre a sexualidade e os elementos a ela relacionados – por exemplo, sobre a aliançacomo um dispositivo para constituição de subjetividades. No segundo, que tem o subtítulo “O uso dos prazeres” (1998), estuda-se o cruzamento de relações sociais, amorosas, sexuais, entre outras, como forma de produzir subjetividades. No terceiro, com o subtítulo “O cuidado de si” (2005c), descrevem-se as regras estabelecidas socialmente, a partir dos elementos propostos no volume anterior, que não se apresentam como identidades prontas para que o indivíduo as absorva, mas antes, forçam-no a refletir sobre tudo que se lhe apresenta a fim de constituir-se. Esse trabalho do sujeito sobre a relação entre o que lhe é exterior e si mesmo é denominado como “Cuidado de Si”. No conjunto das suas obras de terceira fase, mas principalmente neste terceiro volume da História da Sexualidade (2005c), Foucault descreve elementos que compõem “o dispositivo da cultura do cuidado de si”, os quais serviram de base para a elaboração das questões da entrevista de coleta.
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A construção teórico-metodológica da coleta de dados Segundo as observações do autor sobre as práticas clássicas, o processo de subjetivação materializa-se em algumas práticas da vida cotidiana. Um exemplo disso é seu apontamento (2005c, p. 56) sobre o tempo que se gasta com a prática do cuidado de si: “esse tempo não é vazio: ele é povoado por exercícios, por tarefas práticas, atividades diversas. Ocupar-se de si não é uma sinecura”. A seguir, a partir das reflexões apresentadas em “A História da Sexualidade: O cuidado de si” (2005c), foram sintetizadas algumas práticas que materializam esse cuidado: 1- Cuidados com o corpo – regimes de saúde – exercícios físicos; 2- Meditações – leituras – anotações; 3- Conversa com confidente; 4- Intensificação das relações sociais; 5- Procedimentos de provação; 6- Exame de consciência – trabalho do pensamento sobre ele mesmo; 7- Conversão a si mesmo; 8- Dispositivo do Casamento; 9- Dispositivo da Sexualidade. A partir dessas práticas discutidas por Foucault, foram elaboradas perguntas discursivas a serem respondidas ao longo da pesquisa, com a finalidade de descrever como o indivíduo matriculado na UNATI- UEM cuida de si e, portanto, se subjetiva como idoso. 1- As práticas que se tem com o corpo demonstram-no um corpo idoso? 2- As atividades de estudos e meditativas caracterizam o cuidado do idoso com sua alma? 3- O aconselhamento é uma prática do sujeito idoso? 4- A intensificação das relações sociais caracteriza a prática do idoso da UNATI?
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5- Em seu discurso, o idoso se subjetiva como alguém que passou por provações? 6- O idoso reflete sobre suas práticas para constituir-se como sujeito de seu discurso? 7- O sujeito idoso converteu-se a si, afastando-se das preocupações exteriores? 8- Em que medida estar casado subjetiva a identidade de idoso? 9- Em que medida a sexualidade constitui a subjetividade do idoso? Por se tratarem de questões de cunho teórico, fez-se necessário transformar esses questionamentos em perguntas assimiláveis aos idosos entrevistados. As questões feitas na entrevista baseiam-se, portanto, nos elementos apontados por Foucault como caracterizadores da prática do cuidado de si, mas apresentam-se adaptadas à linguagem de uma pessoa não iniciada na teoria. As perguntas assim ficaram: 1- Quais cuidados você tem com o seu corpo atualmente? São os mesmos de antes? 2- Você participa de atividades de estudos e meditações? Como é sua atuação? 3- Você tem alguma pessoa com quem se abre, a quem pede conselhos? Como isso se dá? 4- Que atividades dentro e fora de casa você desempenha, atualmente? São as mesmas de antes? Mais? Menos? 5- Você tem passado por situações de dificuldade? Abriu mão de coisas que antes lhe eram importante? 6- Algumas pessoas costumam pensar sobre a vida. Há algum momento em que você faça isso também? Que coisas procura avaliar? 7- Quais são as coisas mais importantes para você hoje? 8- Você é casado? Se sim: como o fato de estar casado influencia a sua vida na terceira idade? Se não: pensa em se casar (novamente)? Por quê? 9- Por algum tempo falou-se sobre um idoso assexuado, depois, com o Viagra, falou-se de uma sexualidade aflorada no idoso. Você poderia comentar algo sobre isso? 10- Alguns textos, principalmente da mídia, descrevem um “novo idoso” e suas características. Quais características desse “novo idoso” você considera que tem? A tabela a seguir sintetiza as perguntas teóricas levantadas para cada elemento do cuidado de si, a pergunta que foi feita na entrevista em relação a essa prática, os
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saberes que se esperava que o entrevistado mobilizasse em sua resposta e os saberes que eles efetivamente mobilizaram.
Temas
Questão teórica
Questão da entrevista
1- Cuidados com o corpo – regimes de saúde – exercícios físicos
As práticas que se tem com o corpo demonstram-no um corpo idoso?
Quais cuidados você tem com o seu corpo atualmente? São os mesmos de antes?
2- Meditações – leituras – anotações
As atividades de estudos e meditativas caracterizam o cuidado do idoso com sua alma?
Você participa de atividades de estudos e meditações? Como é sua atuação?
3- Conversa com confidente
O aconselhamento é uma prática do sujeito idoso?
Você tem alguma pessoa com quem se abre, a quem pede conselhos? Como isso se dá?
4- Intensificação das relações sociais
A intensificação das relações sociais caracteriza a prática do idoso da UNATI?
Que atividades dentro e fora de casa você desempenha, atualmente? São as mesmas de antes? Mais? Menos?
5- Procedimentos de provação
Em seu discurso, o idoso se subjetiva como alguém que passou por provações?
Você tem passado por situações de dificuldade? Abriu mão de coisas que antes lhe eram importantes?
6 Exame de consciência – trabalho do pensamento sobre ele mesmo
O idoso reflete sobre suas práticas para constituir-se como sujeito de seu discurso?
Algumas pessoas costumam pensar sobre a vida. Há algum momento em que você faça isso também? Que coisas procura avaliar?
7- Conversão a si mesmo
O sujeito idoso converteu-se Quais são as coisas mais importantes para você hoje? a si, afastando-se das preocupações exteriores?
8- Dispositivo do Casamento
Em medida, estar casado subjetiva sua identidade como idoso?
Você é casado? Se sim: como o fato de estar casado influencia a sua vida na terceira idade? Se não: pensa em se casar
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(novamente)? Por quê? 9- Dispositivo da Sexualidade
Em que medida a sexualidade constitui a subjetividade do idoso?
Por algum tempo falou-se sobre um idoso assexuado, depois, com o Viagra, falou-se de uma sexualidade aflorada no idoso. Você poderia comentar algo sobre isso?
As formas de subjetivação desse idoso coincidem com as formas de sua objetivação?
Alguns textos, principalmente da mídia, descrevem um “novo idoso” e suas características. Quais características desse “novo idoso” você considera que tem?
Por serem baseadas nos pressupostos teóricos foucaultianos, tais perguntas desde sua formulação favorecem que seja confirmada a permanência ou não dos elementos descritos por Foucault como práticas do cuidado de si para a sociedade grega clássica no modo de se fazer sujeito dos idosos que, atualmente, estudam na UNATI – UEM. O fato de se tratar de uma entrevista semiestruturada também permite que novas informações surjam e que delas derivem novas perguntas, e apareçam no discurso dos sujeitos entrevistados outras informações além dos elementos norteadores das questões. Isso, contudo, depende de cada sujeito entrevistado, do quanto e sobre o que ele vai falar. Caso os sujeitos se limitassem apenas a responder às questões elaboradas, sem acrescentar novos fatos, as discussões da pesquisa ficariam restritas apenas a uma confirmação das discussões feitas por Foucault no discurso desses sujeitos. Contudo, na pesquisa, além de confirmar as práticas já descritas, objetiva-se verificar se os idosos de hoje têm outras práticas que os orientam no cuidado de si. Como uma forma de garantir que os sujeitos da pesquisa não se ateriam apenas aos elementos que lhe foram propostos na entrevista, optou-se por acrescentar uma etapa de coleta de dados em que o sujeito fizesse uma produção menos direcionada.
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Diferentemente da entrevista, que foi feita oralmente, propôs-se que esta etapa fosse feita por escrito. Foi selecionado para a produção o gênero relato pessoal, para que os idosos participantes pudessem contar sobre sua forma de viver atualmente. Buscou-se participar das aulas da disciplina “Ler com prazer”, ofertada pela UNATI, foram ministradas aulas sobre o gênero relato pessoal e, em seguida, solicitou-se que os idosos escrevessem sobre a sua experiência na terceira idade. Desse modo, compõem o arquivo desta pesquisa: (1) um corpus de dez entrevistas gravadas em arquivo apenas de áudio e sua transcrição, que resultou em um arquivo com vinte e cinco páginas digitadas, e (2) os textos entregues pelos alunos. O arquivamento desse material de análise compreende o papel no qual os sujeitos escreveram seus relatos, a digitação e a digitalização deles.
Considerações Finais A originalidade de Foucault está na maneira pela qual determina o corpus: Foucault não escolhe as palavras, as frases ou as proposições de base segundo a estrutura, nem segundo um sujeito-autor de quem elas emanariam, mas segundo a simples função que exercem num conjunto. Considerar como parte da constituição do corpus, em Análise do Discurso, essa rede de formulações, ou domínio associado, exige trabalhar com um conceito de arquivo no qual seja possível flagrar o sistema de formação e da transformação dos enunciados obtidos a partir de uma grande diversidade de textos, de um trajeto temático, de um acontecimento discursivo. Desse modo, para analisar o discurso que o idoso estudante da UNATI-UEM assume sobre si e as técnicas de cuidado de si das quais se apropria para constituir esse discurso, foi preciso compor um arquivo constituído por séries de enunciados em que o idoso falasse sobre si e sobre sua experiência nesse momento. A partir dessas séries foi possível investigar as relações que se estabelecem entre esses enunciados.
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A construção do arquivo se deu a partir da coleta dos enunciados produzidos em entrevista e em produções textuais dos sujeitos idosos matriculados na UNATI-UEM. A elaboração e condução dessa coleta deram-se a partir dos pressupostos apresentados por Foucault como constitutivos de uma prática do cuidado de si.
Referências FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7. Ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004a. ________ . Ditos e Escritos II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005b. ________ .História da Sexualidade I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004b. ________ .História da Sexualidade II. Rio de Janeiro: Graal, 1998. ________ .História da Sexualidade III. Rio de Janeiro, Graal, 2005c. __________. Retornar à História. In: FOUCAULT, M. Ditos & Escritos II. Rio De Janeiro: Forense Universitária, 2005a, p. 282-295 GREGOLIN, M. R. V. AD: Descrever-interpretar acontecimentos cuja materialidade funde linguagem e história p. 19-34. In: NAVARRO, P. (org.) Estudos do Texto e do Discurso: mapeando conceitos e métodos. São Carlos, Claraluz, 2006.
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REVISÃO E REESCRITA NA FORMAÇÃO DOCENTE INICIAL NO PROGRAMA PIBID UNESPAR
Adriana Beloti (UNESPAR/Campo Mourão-PG/UEM) Renilson José Menegassi (UEM)
Introdução Este trabalho discute sobre os processos de revisão e de reescrita de textos na formação docente inicial com alunos participantes do PIBID – Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência, com o objetivo de compreender como a formação teórico-metodológica sobre tais processos se estabelece na formação docente desses estudantes, contribuindo para o desenvolvimento dos estudos sobre o ensino de revisão e de reescrita na formação docente e, ainda, com as pesquisas a respeito de produção textual escrita em situação de ensino1. Dessa forma, pautamo-nos na teoria enunciativo-discursiva e na concepção dialógica de linguagem, proposta pelo Círculo de Bakhtin, na concepção de escrita como trabalho (FIAD e MAYRINK-SABINSON, 1991) e nos processos de revisão e de reescrita (SERAFINI, 1987; MENEGASSI, 1998). A metodologia da pesquisa sustentase nos pressupostos da Linguística Aplicada – LA, com viés qualitativo-interpretativo, cunho etnográfico e aplicado, centrando-se no levantamento, descrição e análise de dados, que correspondem à compreensão dos elementos internalizados pelos alunos do PIBID em práticas efetivas de produção escrita. Além das reflexões teóricas, são feitos encaminhamentos metodológicos e práticos em relação à revisão e reescrita de textos com os participantes, desenvolvendo uma pesquisa-ação. Para a coleta de dados, utilizamos, ao longo do desenvolvimento de toda a pesquisa, os encontros de formação teórico-metodológica, a atuação dos participantes em salas de aula e entrevista inicial e final.
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Este trabalho é parte da pesquisa de Doutorado Revisão e reescrita de textos na formação docente inicial: um estudo teórico-metodológico com professores em formação no PIBID, em desenvolvimento junto ao PLE/UEM, desde 2013, sob a orientação do Prof. Dr. Renilson José Menegassi.
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Integram a pesquisa, atualmente, treze professores em formação inicial, acadêmicos do Curso de Letras participantes do PIBID/Língua Portuguesa 2014/2015, da Unespar – Universidade Estadual do Paraná – Campus de Campo Mourão, e a professora coordenadora do subprojeto. Neste momento, após a entrevista inicial, estão sendo realizados os encontros de formação e o delineamento teórico-metodológico das concepções de escrita, de revisão e de reescrita dos participantes, as quais discutimos. Para as reflexões aqui empreendidas, apresentamos, primeiramente, a descrição da coleta de dados, feita de março a agosto de 2014, ancorados na perspectiva da LA; após, refletimos sobre os conceitos teóricos essenciais para os objetivos propostos: teoria enunciativo-discursiva e concepção dialógica de linguagem, escrita como trabalho e processos de revisão e de reescrita; por fim, analisamos os dados, sustentados nas noções apresentadas.
O objeto de estudo da pesquisa Os procedimentos metodológicos deste trabalho sustentam-se nos pressupostos da LA: uma “[...] área de investigação aplicada, mediadora, interdisciplinar [...]”, que investiga a linguagem em situação social determinada (MOITA LOPES, 1996, p. 23). Tal embasamento justifica-se pelo caráter mediador da pesquisa, centrada no levantamento e na análise de dados, que correspondem à compreensão dos elementos internalizados pelos alunos do PIBID em práticas efetivas de produção escrita. Assim, nossa pesquisa acontece de forma qualitativa e interpretativista, com coleta, descrição e análise dos dados, que corresponde ao cunho etnográfico. Além de reflexões teóricas, fazemos encaminhamentos metodológicos e práticos em relação à prática de revisão e de reescrita de textos com os participantes, que equivale ao cunho prático e aplicado. Dessa forma, desenvolvemos uma pesquisa-ação:
[...] tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou problema estão envolvidos de modo participativo e cooperativo. (THIOLLENT, 2005, p. 16).
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O período de coleta de dados de toda a pesquisa corresponde os meses de março de 2014 a julho de 2015. Para este trabalho, analisamos a entrevista inicial, realizada em abril de 2014, antes de qualquer reflexão teórico-metodológica quanto aos conceitos a serem estudados no subprojeto de Língua Portuguesa do PIBID, especificamente os que permeiam as concepções de escrita, revisão e reescrita, e consideramos os encontros de formação teórico-metodológica, no período de março a agosto de 2014. A primeira atividade foi a entrevista inicial, pois objetivávamos delinear um panorama dessas concepções para esses sujeitos, de todos os períodos do Curso de Letras, a partir dos conhecimentos possibilitados ao longo de sua formação, sem qualquer reflexão específica. Após, iniciamos os encontros semanais de formação teórico-metodológica. Sequencialmente, foram trabalhados: conceitos gerais quanto à educação (SAVIANI, 2003); documentos oficiais relacionados à educação – Lei de Diretrizes e Bases da Educação n. 9394/1996 (BRASIL, 1996) e Diretrizes Curriculares Estaduais da Educação Básica (PARANÁ, 2008); textos teórico-metodológicos sobre as concepções de linguagem (ZANINI, 1999; PERFEITO, 2010) e o processo de produção textual, incluindo as concepções de escrita (GERALDI, 2004; KOCH; ELIAS, 2011; SERCUNDES, 2004; FIAD; MAYRINK-SABINSON, 1991). Paralelamente, os professores em formação inicial estudaram documentos oficiais da escola parceira do PIBID, estabelecendo relações entre as reflexões e as propostas dos documentos, acompanharam as aulas de Língua Portuguesa de um período das professoras supervisoras participantes e analisaram uma unidade do Livro Didático usado nas escolas, quanto às concepções de linguagem. Nesse sentido, a relação entre a pesquisadora e os participantes foi constante, coletando, descrevendo e analisando os dados relativos ao objetivo deste trabalho. Assim, não apenas envolvemos o grupo social na busca de resolução de um problema, mas, essencialmente, relacionamos teoria e prática em diálogo constante com o contexto no qual a pesquisa é desenvolvida, isto é, o espaço de formação inicial docente dos acadêmicos participantes do PIBID. De acordo com Tripp (2005), na pesquisa-ação, o objetivo é melhorar a prática e, portanto, temos desenvolvido experiências numa relação constante entre pesquisador e os professores em formação inicial.
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A perspectiva enunciativo-discursiva de estudo sobre a escrita Refletir sobre a linguagem escrita, destacadamente a respeito das etapas de revisão e de reescrita, implica assumirmos a concepção dialógica de linguagem e a de escrita como trabalho. Além disso, há uma atual necessidade de relacionar tais considerações à formação de professores, porque reflete diretamente em como os futuros professores desenvolverão suas práticas em sala de aula. Essa justificativa é encontrada, por exemplo, na pesquisa de Parisotto (2009), ao afirmar que a formação teórico-metodológica dos professores tem caráter essencial no processo de ensino da leitura e da escrita, pois possibilita a percepção de atuação sobre o interlocutor por meio da leitura e da escrita. Partimos do princípio de que a linguagem é o grande instrumento que possibilita a interação verbal social e a consideramos como presente, de maneira geral, em toda nossa vida, isto é, que constituímo-nos como sujeitos na e pela linguagem e, assim, a entendemos como um fenômeno que se realiza por meio da enunciação, sendo parte e mediadora das atividades humanas. Pautamo-nos, então, na concepção dialógica, proposta pela teoria enunciativo-discursiva de linguagem. “Essa concepção é chamada dialógica porque propõe que a linguagem (e os discursos) têm seus sentidos produzidos pela presença constitutiva da intersubjetividade (a interação entre subjetividades) no intercâmbio verbal, ou seja, as situações concretas de exercício da linguagem.” (SOBRAL, 2009, p. 32). Ancorados nas propostas do Círculo de Bakhtin, partilhamos dessa concepção e, portanto, negamos que a enunciação seja monológica, desconsiderando as relações históricas, sociais e ideológicas e, também, que seja apenas transmissão autômata de mensagens de um emissor a um receptor, ambos isolados social e historicamente. Nesse sentido, tal concepção é fundante para pensarmos no trabalho com a escrita em sala de aula, especialmente, quanto às etapas de revisão e de reescrita, tomadas como processuais e recursivas, pois consideramos os estudantes como sujeitos do processo de ensino e aprendizagem, que tomam a linguagem como sócio-histórica e privilegiam a interação verbal social.
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Entender a escrita como um processo de interação verbal entre sujeitos que têm reais necessidades para escrever e, por isso, que deve ser assumida como um processo contínuo de ensino e aprendizagem, leva-nos à reflexão sobre a prática de escrita, realizada pelos usos da linguagem e materializada em gêneros discursivos. Dessa forma, com foco nas práticas sociais, entendemos que os textos são produzidos a partir de reais necessidades, com finalidade, interlocutores e gênero discursivo definidos. O processo de produção textual é influenciado tanto por fatores internos da ordem da língua quanto externos, ou seja, pela historicidade, pelo contexto sócio, histórico e ideológico de produção, tendo em vista, ainda, o suporte e a circulação social do texto em produção. Assim, a escrita é compreendida como um processo contínuo de ensino e aprendizagem e, então, concebida como trabalho, como um processo de interação verbal entre sujeitos. Fiad e Mayrink-Sabinson assumem “[...] que a linguagem é construída pela interação entre os sujeitos [...]” e, então, entendem que “[...] na modalidade escrita da linguagem, essa construção envolve momentos diferentes, como o de planejamento de um texto, o da própria escrita do texto, o da leitura do texto pelo próprio autor, o das modificações feitas no texto a partir dessa leitura.” (1991, p. 55), ou seja, escrever é um trabalho, no qual o escritor e o texto são constituídos. Nesse sentido, entendemos a escrita como um processo dialógico, de interação verbal e, segundo Menegassi, como “[...] um trabalho consciente, deliberado, planejado, repensado [...]” (2010, p. 78). Por essa concepção, o produtor e o texto são constituídos nas diversas etapas que compõem o processo de escrita. A primeira corresponde ao planejamento feito pelo escritor, tomando como norte: a finalidade, os interlocutores, o gênero discursivo, o suporte, o meio de circulação, seu posicionamento. Dessa forma, delimita o tema e o que dará unidade ao seu texto, elementos propostos a partir das pesquisas do Círculo de Bakhtin (MENEGASSI, 2012). No período da execução, o escritor define, desenvolve e exemplifica as ideias e informações levantadas no planejamento, buscando manter a unidade do texto. Conforme Serafini, “Num texto bem-feito, as partes devem estar relacionadas entre si de forma a auxiliar o leitor a seguir o fio do discurso.” (1987, p. 65). Nessa fase, coloca no papel o que foi planejado na etapa anterior e decide sobre as escolhas lexicais, sintáticas e semânticas.
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Após escrever, é preciso que o produtor releia seu texto, isto é, que passe pela etapa da revisão. Garcez argumenta que essa etapa faz parte de todo o processo de escrita, pois a todo instante o produtor está voltando para seu texto, o que marca o caráter recursivo, envolvendo “[...] planejamento e produção, ou seja, reformulação.” (GARCEZ, 1998, p. 30). Tanto a forma quanto o conteúdo do texto devem ser revisados. A revisão do texto pode ser feita pelo próprio produtor, no momento da produção e, ainda, após os apontamentos feitos pelo professor; por um par, como o colega de sala, em um trabalho orientado pelo professor; pelo professor, em seu turno de correção. Esses diversos olhares para o texto, em momentos diferentes, são fundamentais, pois contribuem com o processo de escrita, a fim de atender ao comando estabelecido e desenvolver as habilidades de escrita do estudante. O objetivo dessa etapa é dar ao texto uma melhor legibilidade, de acordo com suas finalidades, seus interlocutores, seu gênero discursivo, etc. A revisão, então, pode levar à reescrita. Com esse trabalho de revisão, o produtor do texto tem condições de avaliar se atendeu a todos os elementos das condições de produção. Analisa, ainda, se o texto contém todas as informações, se as ideias estão claras, se há unidade, enfim, reflete sobre sua produção e, se necessário, reescreve-a. Apoiado em Gehrke (1993), Menegassi afirma que “[...] a reescrita é vista como um processo presente na revisão, como um produto que dá continuação a esse processo. Na verdade, é um produto que dá origem a um novo tipo de processo, permitindo uma nova fase na construção do texto.” (MENEGASSI, 1998, p. 46). Dessa forma, revisão e reescrita estão inter-relacionadas, pois ambas as etapas proporcionam condições de melhorar o texto, segundo suas condições de produção. Assim, ao concebermos a escrita como trabalho, o conceito de interação verbal proposto pelo Círculo de Bakhitn é possível de ser estabelecido, proporcionando o mecanismo do dialogismo. É por essa perspectiva que são dadas aos alunos as condições para escrever e que o professor assume-se como interlocutor real do processo, que participa da produção do texto do aluno. O texto é o lugar onde o discurso é marcado, por meio da interação verbal social, constitutiva da linguagem.
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As concepções de escrita, de revisão e de reescrita dos participantes do PIBID Após uma primeira reunião, sobre conceitos gerais relativos à Educação, em abril de 2014, no segundo encontro de formação teórico-metodológica com os professores em formação inicial participantes do PIBID, foi realizada uma entrevista, que contou, também, com a correção de um texto produzido por estudante do Ensino Médio em situação de Vestibular, como diagnóstico inicial das habilidades já desenvolvidas pelos participantes, além de ter a função de traçar o perfil socioeconômico e institucional dos acadêmicos do PIBID, cujos dados são considerados no decorrer da pesquisa. Para refletirmos sobre a concepção de escrita dos professores em formação inicial, questionamos, por exemplo, o que é a escrita. A partir das respostas, observamos que, em geral, escrever para esses sujeitos é expressar ideias, pensamentos, sentimentos, o que correspondente à materialização linguística do pensamento. A seguir, transcrevemos2 algumas das respostas, que representam essa compreensão de o que seja escrever textos:
“A escrita é o processo de materialização linguística do pensamento.” (Professor A). “Escrita é a forma gráfica pela qual expressamos o que conhecemos: os sentimentos, os pensamentos. É a expressão gráfica da nossa oralidade.” (Professor E). “Em minha concepção, a escrita constitui a materialidade da língua, é o processo a partir do qual a língua é materializada.” (Professor F). “É o ato pelo qual podemos expressar nosso pensamento, ideias, sentimentos, etc.” (Professor K).
Por essas respostas, compreendemos que tais professores ancoram-se, ainda, em uma concepção tradicional e estrutural de linguagem, cuja perspectiva entende que escrever textos é materializar o pensamento. Destacamos, ainda, uma das respostas que marca a relação com a oralidade, revelando a linguagem escrita como transcrição da linguagem oral. Assim, toda a proposta da teoria enunciativo-discursiva de linguagem do Círculo de Bakhtin, ancorada na concepção dialógica de linguagem, entendida como a interação verbal social entre sujeitos, mostra-se distante da compreensão que esses 2
Todas as respostas foram transcritas exatamente como constam no original e os dados foram coletados com consentimento dos participantes da pesquisa.
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professores em formação inicial têm, sobre essa modalidade de uso da linguagem: o discurso escrito, apesar de vivenciar essa dialogicidade no seu cotidiano. Ainda sobre a concepção de escrita, dos trezes professores, um marca em sua resposta a concepção de escrita como trabalho, evidenciando o caráter processual e a relação com determinada finalidade. Outros dois, de certa forma, indiciam uma aproximação a essa concepção, porque revelam a preocupação com a finalidade, entretanto de uma forma, ainda, insuficiente.
“A escrita é trabalho e não é apenas um dom. É um processo no qual se escreve com uma finalidade, ou seja, para atingir determinado objetivo.” (Professor C). “Escrita é o ato de organizar ideias/informações por meio da escrita, excluindo então a oralidade, por exemplo. A sua execução ocorre sempre com uma finalidade.” (Professor D). “Escrita é o processo pelo qual transcrevemos as nossas ideias e concepções sobre determinado assunto, bem como nos expressamos em diversas situações cotidianas.” (Professor J).
Entendemos que as concepções materializadas pelas respostas dos professores D e J não são completas o bastante para serem relacionadas à escrita como trabalho. O fato de mencionarem a finalidade e a situação acaba sendo menor em relação à definição que apresentam e, assim, oscilam entre uma vertente mais interacionista e outra mais estruturalista. Logo, a partir de tal concepção de escrita dos professores em formação inicial, julgamos que há, ainda, uma grande necessidade de estudos sobre esse conceito, que é, também, um dos eixos do processo de ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa nas escolas. Não há uma habilidade de escrita como trabalho efetivamente desenvolvida entre os participantes do PIBID. Essa situação mostra-nos, então, a necessidade de reflexão quanto à formação que tem sido desenvolvida e, especialmente, a proporcionada pelo subprojeto de Língua Portuguesa do PIBID, para que esses professores em formação inicial tenham condições de, na prática futura, desenvolverem atividades pedagógicas fundamentadas em tal concepção, contribuindo com a formação dos estudantes da educação básica. Nessa mesma linha de análise, questionamos o que esses sujeitos entendem por revisão, perguntando o que é revisar textos. De maneira coerente à concepção de escrita
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e, por isso, não surpreendentemente, a maioria dos professores em formação inicial revela uma concepção tradicional e estrutural de revisão, evidenciando a necessidade de corrigir erros, aspectos linguísticos e gramaticais.
“Revisar é tanto a correção ortográfica quanto a reelaboração das idéias apresentadas.” (Professor E). “Revisar um texto é observar quais são os erros e quais são as adequações necessárias para tornar uma produção melhor estruturada, com coesão, coerência e correta produção de sentido.” (Professor J). “É se atentar a todos os níveis de sentido, toda estrutura que produz significado, apontando possíveis melhoramentos para a produção textual.” (Professor M).
Observamos, por exemplo, na resposta do Professor J, que, embora seja mencionada a necessidade de “correta produção de sentido”, o que predomina é, ainda, a perspectiva estrutural, pois é evidenciada a importância de uma “produção melhor estruturada”. Ao dizer do sentido, parece que a resposta caminharia para a adequação à situação de interação verbal, mas não é o que acontece. A revisão de estrutura, ideias, gramática é, predominantemente, entendida como a revisão de textos por esses professores. Novamente, os professores C e D mostram uma aproximação à concepção de escrita como trabalho e, portanto, de revisão como etapa processual e recursiva, cuja finalidade é revisar tanto aspectos linguísticos quanto discursivos, em relação à situação de interação verbal social. Essa linha de compreensão também está presente na resposta do professor F.
“Revisar um texto é ver se ele está ou não adequado as finalidades discursivas pretendidas.” (Professor C). “Revisar é o ato de rever o texto produzido, ou seja, analisar o que foi escrito tendo como base a proposta do texto.” (Professor D). “Em minha opinião, a revisão de um texto implica em analisá-lo do ponto de vista linguístico, funcional e suas relações coesivas e coerentes, tudo isso de acordo com o gênero, tema/assunto a partir do qual o texto é escrito.” (Professor F).
Para compreendermos a concepção de reescrita, questionamos o que é reescrever um texto. Como revisar textos é, em geral, reler o texto, olhar novamente para o texto produzido, reescrever é, para a maioria dos acadêmicos, reelaborar o texto, fazer correções, escrever novamente, após a revisão.
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“Reescrever um texto é mudar, acrescentar, retirar termos sugeridos pelo corretor do texto.” (Professor I). “Reescrever um texto é adequar a primeira produção às observações obtidas com a revisão, visando torná-lo bem estruturado.” (Professor J). “É escrever um determinado texto novamente, após terem sido realizados apontamentos sobre mudanças necessárias.” (Professor K). “É notar as falhas depois de uma primeira produção e, a partir daí, escrever de uma forma mais clara.” (Professor L).
Fica evidente, por tais respostas, que a reescrita acontece no processo de produção textual após um olhar anterior ao texto já produzido, o qual, então, é reescrito. Entretanto, o objetivo desse processo, assim como o da escrita em si, é estruturar pensamentos, ideias, organizar a materialidade linguística. O professor I chama-nos a atenção, porque, de certa forma, sua resposta vai ao encontro das discussões de Fabre (1987) quanto às operações linguísticas que acontecem na reescrita: acréscimo, supressão, deslocamento e substituição. Contudo, também não é suficiente para estabelecermos relação com as operações desenvolvidas no processo de reescrita. O professor C, mantendo sua vertente de sustentação, afirma que reescrever textos é “[...] quando ele já foi revisado e precisa ser adequado para atender a determinada finalidade discursiva.” (Professor C), ou seja, marca a relação direta entre revisão e reescrita e a necessidade de adequar o texto a sua finalidade.
Considerações Finais Diante de tais dados, compreendemos que, independente do período atual do Curso de Letras, esses professores em formação inicial indiciam para certa lacuna na formação teórico-metodológica quanto ao processo de escrita. As respostas dos participantes do PIBID mostram-nos a predominância de concepções de escrita, revisão e reescrita ligadas às vertentes tradicional e estrutural, indo de encontro à concepção dialógica de linguagem, do Círculo de Bakhtin. Além disso, a concepção de escrita como trabalho, que entende as etapas de revisão e de reescrita como processuais e recursivas, também não é, ainda, efetivamente desenvolvida entre esses professores em formação inicial.
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Assim, concluímos que os encontros de formação teórico-metodológica são essenciais para o desenvolvimento e constituição do conhecimento e das habilidades de escrita desses sujeitos, que, futuramente, atuarão como professores e, então, ensinarão tal prática discursiva em sala de aula. Portanto, é imprescindível relacionar estudos sobre o processo de escrita e a formação inicial de professores.
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O CREPÚSCULO DO MACHO: UM RELATO DE UM EX-EXILADO NOS ANOS DE 1970.
Adriane A. Souza Mahl (PG-UFGD)1 Resumo: Entre 1964 a 1985 o Brasil passava por várias mudanças políticas e sociais, entre elas: a Ditadura Militar brasileira que se caracterizava pela tomada do poder pelos militares e todo aquele que contestasse essa forma de governo poderia ser preso, torturado, ou exilado do país. Fernando Nagle Gabeira jornalista, escritor e político, participou diretamente na guerrilha armada contra a ditadura, é preso e exilado do país onde em 1979 escreve O que é isso, companheiro? A Obra Crepúsculo do Macho que faz parte da continuidade de O que é isso Companheiro?, Gabeira descreve sua experiência como um exilado político na obra Crepúsculo do Macho que, exilado por quase dez anos, viveu na Argélia, Chile, França, Itália e Suécia. Em 1973, no Chile, testemunhou o golpe militar que derrubou Salvador Allende e que, depois, se tornaria tema de roteiro seu para a TV sueca. Sabemos que a Ditadura Militar é um período desconhecido por algumas gerações mais novas, a partir do momento em que Fernando Gabeira expõe sua vivência em forma de relato, está trazendo a tona à memória do período da Ditadura, ou seja, a memória do nosso passado. PALAVRAS- CHAVE: O Crepúsculo do Macho; Ditadura Militar; Memórias; Autobiografia; Fernando Gabeira.
Introdução: O Crepúsculo do Macho narra o exílio de Gabeira no Chile e na Suécia e, juntamente com
Entradas e Bandeiras (1981), completa a trilogia em que o autor aborda seu retorno ao Brasil, o abandono da ideologia marxista e uma nova visão de vida. Antes de iniciarmos a análise da obra, comentaremos brevemente sobre a vida do autor, pois seu contato com o jornalismo, com as ideologias de esquerda e com a resistência à ditadura militar provocaram sérias mudanças em sua vida, culminando com o exílio que o forçou a percorrer vários países, tais como Chile, Cuba, Argélia e Suécia, dentre outros. 1
Mestranda em Literatura e Práticas Culturais na Universidade Federal da Grande Dourados
(UFGD), Bolsista CAPES. [email protected]
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Fernando Paulo Nagle Gabeira nasceu em Juiz de Fora (MG), em 17 de fevereiro de 1941. É jornalista, escritor e político. Começou na atividade jornalística aos 17 anos. Passou por vários jornais. Personagem e narrador da luta contra a ditadura no Brasil, escreveu livros sobre a sua experiência e o exílio, além de outros temas. Conquistou um Prêmio Jabuti por seu primeiro livro, O que é isso companheiro?. Participou do sequestro do embaixador Charles Elbrick, quando a Embaixada dos Estados Unidos ainda era no Rio de Janeiro, junto com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro, em setembro de 1969. Pouco depois da soltura dos presos políticos, exigência feita para a liberação do embaixador americano, foi preso, torturado e, em 1970, trocado, com mais 44 pessoas, pelo embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, também sequestrado no Rio. Exilado por quase dez anos, viveu na Argélia, Chile, França, Itália e Suécia. Em 1973, no Chile, testemunhou o golpe militar que derrubou Salvador Allende e que, depois, se tornaria tema de roteiro seu para a TV sueca. Trabalhou como jardineiro de cemitério, porteiro de hotel e condutor de metrô. Na Suécia, ainda trabalhou como repórter da rádio Suécia e estudou Antropologia na Universidade de Estocolmo. Seu retorno ao Brasil começou a ser articulado através de uma entrevista ao Pasquim no final de 1978, que teve grande repercussão. Com a anistia aos exilados em 1979, voltou ao País e começou a trabalhar como jornalista nos jornais Zero Hora (RS) e Folha de São Paulo (SP). Lançou, então, o livro O Que É Isso, Companheiro? (Codecri, 1979). A vida de Fernando Gabeira nunca esteve dissociada da política, mas foi em seu exílio na Europa que ele teve os primeiros contatos com o Movimento Verde, que começava a se organizar em países como a Alemanha. Após 1985, ele se aproximou da política partidária, adotando como bandeira a defesa dos direitos das minorias e do meio ambiente. Embora tenha sido um dos fundadores do Partido Verde, foi pelo PT que se candidatou ao governo do Rio de Janeiro em 1986, tendo sido derrotado. Em 1988, escreveu para o Caderno D de O Dia (RJ). Em 1989, acompanhou como jornalista a queda do muro de Berlim. Como político, candidatou-se à Presidência da República, pelo PV, sem lograr êxito. Em 1994, foi eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro e era o único representante do PV no Congresso Nacional. Concorreu à reeleição por três
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vezes, 1998, 2002, e 2006, ano em que se reelegeu deputado federal com o maior número de votos na história das eleições cariocas. Filiou-se ao PT, novamente, em 2001, depois de se desentender com a direção do PV fluminense. Ao discordar da política do PT em relação ao meio ambiente, desfiliou-se em 2003. Voltou ao PV em 2005. Em 2008 foi candidato à Prefeitura do Rio, perdendo por menos de 2% de votos para Eduardo Paes. Reassumiu sua vaga de deputado federal e passou a escrever a coluna Rio de Janeiro, na página 2, de Opinião, da Folha de São Paulo, às sextas-feiras. Em 2010 disputou a eleição para o Governo do Estado do Rio e ficou em segundo lugar com pouco mais de 20% dos votos válidos.
Memória e testemunho em O que é isso, companheiro? ( obra inicial que compõe a trilogia juntamente com O crepúsculo do macho). Segundo Pligia “ Para un escritor la memoria es la tradicion.una memoria impersonal, hecha de citas, donde se hablan todas las lenguas. Los fragmentos y lós tomos de otras escrituras vuelven como recuerdos personales”. Ou seja, para um escritor a memória é uma tradição.uma memória impessoal, cheia de encontros, onde se falam todas as línguas. Fragmentos e volumes de outras escrituras voltam como memórias pessoais. Pelos faróis e meio envoltas na fumaça dos canos de descarga, avançavam contra o trânsito. De repente, não sei como, cinquenta pessoas se reúnem no meio da rua, tiram suas faixas e cartazes e gritam: abaixo a ditadura. Como? Os carros não podem se mexer: é uma passeata. Mil coisas estavam acontecendo nos telegramas empilhados na minha mesa: guerras, terremotos, golpes de Estado. Ali, diante dos meus olhos, cinquenta pessoas com faixas e cartazes, iluminadas ais verba, menos tanques, abaixo a ditadura, gritavam. Lembrei-me da minha terra.(GABEIRA, 1982, p.2)
No trecho acima, percebemos a descrição de Gabeira a respeito dos protestos da Ditadura Militar no Chile (pois o Chile, foi um dos países que Gabeira ficou exilado, lá
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testemunhou o golpe contra Salvador Allende). Descreve a quantidade de pessoas que protestavam e nesse momento e recorda-se da Ditadura Militar do Brasil. A memória reside em várias instancias; ela é a memória oficial, memória popular, memória coletiva e, como tal, a memória de diversos sujeitos sociais em circunstancias distintas. Assim, não pode ater-se ao legado de um único relato de história, tornando-se, portanto, múltipla e diversa. É nessa diversidade que reside à construção de uma história democrática, narrada por diferentes sujeitos sociais e num espaço de negociação. (COUTINHO, 2010, p.33).
Sabemos que para a reconstrução dos fatos da ditadura e para a Comissão de Ética, quanto mais depoimentos de pessoas que vivenciaram a Ditadura, os mais diversos pontos de vistas possíveis são de suma importância para a reconstituição desse período obscuro da nossa história de nosso país. O espectro testemunhal da literatura da guerra colonial é, portanto, muito amplo: vai das testemunhas que foram diretamente para o campo de batalha e assistiram e participaram do massacre em nome de uma ideologia que abertamente contestavam ou sentiam obsoleta ou insuficiente, até às testemunhas indiretas, as mulheres e os homens que vivenciaram das retaguardas, das cidades, da metrópole um conflito que, de qualquer modo, habitava o seu cotidiano. ( VECCHI, 2001, p.89).
Em O que é isso, companheiro? Gabeira participa diretamente da guerrilha urbana, especificamente no sequestro do embaixador americano Charles Elbrick. Gabeira tornase testemunha, mas reconhece que a sua é, apenas uma versão dos fatos: Posso contar como vi aquela luta interna. Posso tentar simplificar para que todos entendam o que era exatamente. Mil vozes mais autorizadas que a minha vão surgir. Sou apenas um guia que vai apontar para que lado foi a caravana.os atalhos que tomou vão aparecendo nos outros casos que forem contados em público ( GABEIRA.1982,p.25)
Podemos afirmar que acima da memória de cada um, está a Memória da comunidade, viva e ativa. O relato autobiográfico, tal qual o de Fernando Gabeira, enquanto relato memorialístico, registra acontecimentos que ocorreram e que até então não haviam sido registrados ou o haviam sido de modo diverso; tornam-se elemento referencial para a
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compreensão, pelo sujeito-leitor, de uma determinada realidade ou reavaliação, além de tornar-se ponte, através do presente, entre o passado e o futuro. Enquanto texto literário, a narrativa é sempre memória, mas nesse caso especifico (de que O que é isso, companheiro? é paradigma) torna-se memorialismo de geração: Aqui o indivíduo não dá, recebe sentido na sua inserção na vida política, quer se trate do militante voluntário e extremado, cuja a perda da individualidade é ratificada na opção(?) pela clandestinidade, pelo codinome, quer se trate do intelectual ou artista que busca o exílio, que abjura da nacionalidade convencional ou reencontra valores coletivos e regionais antes menosprezados; quer se trate de alguém que, desamparado, se vê sugado da periferia histórica para o centro do drama político. Há portanto, uma expansão do individual para o coletivo. Mas a prerrogativa de fragmentar o ponto de vista da narrativa, de mergulhar mais abrangentemente na dimensão do interior dos envolvidos, de descompromissar-se com a estreita veracidade dos fatos narrados, faz se memorialismo de geração a superação do depoimento, entendido no sentido dialético de incorporação e avanço além do elemento incorporado. (BASTOS, 1991, p.444)
A longa citação faz-se necessária, porque a análise de Alecmeno Bastos é extremamente pertinente, bastando lembrar-se, que o livro de Gabeira, se foi o primeiro, foi o primeiro de uma extremamente extensa lista de obras semelhantes que seguiriam a seu lançamento, caracterizando uma verdadeira tendência de geração. Assim como afirma Silviano Santiago que O que é isso, companheiro? foi uma das obras inaugurais com o tema ditadura no Brasil. Coletivamente, a sociedade brasileira tem esquecido os acontecimentos ligados a ditadura de 1964 e os livros como o de Fernando Gabeira prestam o bom serviço de relembrá-los. Mas há outro dado que é importante. Não se pode esquecer o que desconhece: e a verdade é que novas gerações desconhecem praticamente os acontecimentos do passado. Assim é ainda mais importante que depoimentos como o de Gabeira persistam na circulação literária de nossa sociedade, até porque, no processo de memorização é extremamente importante como algo coletivo e coletivizador. A luta social determina, como neste caso, a prescrição da experiência coletiva. E da mesma forma que a memória pode (esquecendo ou misturando) acomodar o passado em função do presente, ela também pode (e deve) revigorar o passado,
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relendo-o sobre novas perspectivas, permitindo que se evitem erros anteriores e projetando através do presente, as relações entre aquele passado e futuro.
A autobiografia em O Crepúsculo do Macho. Lejeune define autobiografia como “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz da sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”. Não era exatamente o meu caso, cuja chegada fora noticiada pelo jornal oficial, que dera entrevistas à Prensa Latina e participava de debates sobre a situação política do Continente. Em Cuba, não havia esse gêneros de lugares onde se vai para encontrar pessoas conhecidas: um bar de literatos, um bar de esquerda ortodoxa, um bar do pessoal de artes plásticas. Os pontos de referência eram difusos. Nosso hotel era, momentaneamente, um deles. Foi ali que conheci aviadores do Brasil que souberam de minha presença em Havana e vieram rapidamente ao meu encontro. (GABEIRA, 1981, p.61)
Na passagem acima, Gabeira descreve o momento em que estava exilado em Cuba e que tem contato com aviadores brasileiros os quais também estavam exilados, ele descreve algumas diferenças entre os costumes dos cubanos em relação à cultura brasileira. A autobiografia elucida fenômenos que a ficção deixa numa zona de indecisão: em particular o fato de que muito bem pode haver identidade do narrador e do personagem no caso da narrativa “em terceira pessoa”. Essa identidade embora não seja a mais estabelecida no texto pelo emprego do “eu”, é estabelecida indiretamente, mas sem nenhuma ambiguidade, através da dupla equação: autor = narrador e autor = personagem, donde se deduz que narrador = personagem, mesmo se o narrador permanecer implícito. Este procedimento corresponde ao pé da letra, ao sentido primeiro da palavra autobiografia: é uma biografia, escrita pelo interessado, mas escrita como uma simples biografia (LEJEUNE, 2008, p.15).
Fernando Gabeira é declaradamente seu autor, e como tal é narrador do que se lê no interior do volume. Mais que isso, o subtítulo da obra é explicito: trata-se de um depoimento. E enfim, o narrador é também a personagem central do relato. Um relato que se inicia, enfaticamente, como primeira pessoa do singular em plena movimentação
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dinâmica, como diz a regra básica da chamada dramatização que as técnicas do novo jornalismo norte americano buscaram tais como: Como características gerais do novo jornalismo, pode-se indicar citando ainda Hollowell: 1. Formas documentais e variedades de testemunho público nos quais o escritor se coloca no papel de testemunha dos dilemas morais do seu tempo: 2. Substituição de personagens inventadas e tramas fictícias para que o próprio jornalista se converta em próprio protagonista do relato; 3. Combinação de aspectos do romance, da confissão, da autobiografia e da reportagem jornalística como nova narrativa; 4. Sentido de finalidade ou interesse nas últimas coisas, espécie de ânimo de apocalipse prevalecente nas obras então produzidas; 5. Adequação da forma narrativa à realidade radicalmente alterada na América do Norte numa era de intensa mudança social..(HOHLFELDT, 1997, p.30)
Assim, além de ser uma obra autobiográfica, servindo também como uma obra memorialística sobre o período da Ditadura Militar no Brasil e sua vivencia como um exilado O Crepúsculo do Macho, assim como O que é isso, companheiro? contém algumas das características do novo jornalismo. Outra questão que nos chama a atenção se referindo a Fernando Gabeira é em relação ao espaço autobiográfico que segundo Lejenue, (2008) espaço autobiográfico seria uma tradição literária do escritor, anteriormente a escrita de um livro autobiográfico, ou seja, os autores antes de escreverem uma autobiografia, teriam que escrever romances, contos, somente após algum tempo, poderiam escrever sua autobiografia, Fernando Gabeira de certo modo, “rompe” com esse paradigma, pois, a primeira obra que escreve, é uma autobiografia.
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Considerações Finais Ao analisar a obra O crepúsculo do macho, percebemos a autobiografia de Fernando Gabeira, pois ao se referir a aquele contexto de Ditadura Militar no Brasil, descreve sua vivência em relação ao período que ficou exilado em alguns países contribuindo para que não esqueçamos esse episódio de Ditadura e a vida dos exilados em meio a países estrangeiros, nos perguntamos: a que ponto chega o preço da liberdade? da democracia? Para respondermos essas perguntas basta nos recordarmos do nosso passado em que muitos pagaram com suas próprias vidas, foram presos, torturados e como no caso de Gabeira, exilado. O exercício da memória é, lembrarmos-nos desses erros do nosso passado sobretudo, do nosso passado histórico para futuramente não repetir os mesmos erros. Temos nessa obra a vivência de um exilado que se depara com outras culturas distintas da sua de origem e que percebe a guerrilha armada com outro angula após ser exilado, se depara com culturas com costumes totalmente diferente como por exemplo quando está na Argélia, que não é de costume do país casais saírem de mãos-dadas pelas ruas, o preconceito que sofre em alguns países europeus por ser um latino, e logo, um “ terrorista” exilado de seu país de origem. Para Silviano Santiago, as obras de Gabeira, são uma das iniciais no Brasil, pois, por haver a lei da Anistia, Gabeira relata sobre seu ponto de vista, desde a participação direta na luta armada ( mais nítido em O que é isso, companheiro?) até sua vivência como exilado em países estrangeiros ( O crepúsculo do macho) perceberemos que suas obras são sequências motivo esse de muitas vezes ao analisarmos neste artigo, partimos de muitos trechos de O que é isso, companheiro? obra inicial de Gabeira. As obras de Fernando Gabeira quebram muitos paradigmas tradicionais, como por exemplo, o do espaço autobiográfico proposto por Lejeune (2008), em sua primeira obra Pois, , O que é isso,companheiro? acaba por constituir ele mesmo um novo paradigma, na medida em que torna exemplar o relato que apresenta pois até mesmo para que os autores escrevessem suas autobiografias, era necessário que primeiramente os autores escrevessem romances ou outros gêneros, para depois, com o tempo escrevessem suas autobiografias, Fernando Gabeira não havia escrito nenhum outro gênero anteriormente a O que é isso, companheiro? ou seja, há uma quebra de
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paradigma. E esse narrador pós-trauma, especificamente em O que é isso, companheiro? contribui para que várias gerações tenha mesmo que seja um “ mínimo” conhecimento sobre o período ditatorial no Brasil. Apesar de ser autobiografia, como citamos anteriormente, as obras de Gabeira são muito importantes e contribuem para um conhecimento memorialístico sobre o nosso passado.
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Referências ARNS, Dom Paulo Evaristo (Org.). Brasil: nunca mais. 16 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1985. BASTOS, Alcmeno. Memorialismo de geração: a superação do depoimento. In: Anais do 2º Congresso da ABRALIC- Literatura e memória cultural. Belo Horizonte. Associação Brasileira de Literatura Comparada, 1991. Vol. 3, p.444. COUTINHO, Eduardo F. Mutações do comparativismo no universo latino-americano. In:SCHIMIDT, Rita T.(org.) Sob o signo do presente: intervenções comparatistas. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2010, p.31-42. GABEIRA, Fernando. O crepúsculo do macho: depoimento. 20 ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. GABEIRA. Fernando. O que é isso, companheiro? 29 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. HOHLFELDT, Antonio. Seria o texto um auto-retrato da (re)leitura da autobiografia de Fernando Gabeira?. In: REMÉDIOS, Maria Luiza (Org.). Literatura confessional: autobiografia e ficcionalidade. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997, p. 17-49. PLIGIA, Ricardo.Memorias y tradición. In: Anais do 2 Congresso Abralic. V.1, 1981, p.60-66 LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: De Rousseau à Internet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. Trad. Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. VECCHI, Roberto. Barbárie e representação: o silêncio da testemunha. Organizado por Sandra Jatahy Pesavento. Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS, 2001.
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DO GIZ AO SOFTWARE: UM TRABALHO COM A LÍNGUA PORTUGUESA Afife Maria dos Santos Mendes Fontanini - UNOPAR¹ Eliana Cristina Scheuer - UNOPAR² RESUMO O artigo apresenta reflexões acerca do trabalho com a Língua Portuguesa, tomando como referência a utilização do Software Educacional JClic, que se encontra instalado nos laboratórios de informática do Paraná Digital (PRD) nas Escolas Estaduais. O conteúdo estruturante trabalhado com o aplicativo é o discurso como prática social, os conteúdos básicos são os gêneros discursivos biografia e haicai e o conteúdo básico é o Centenário da Poetisa Paranaense Helena Kolody, que transcorreu em 2012. As atividades interativas foram construídas para que os alunos do Ensino Fundamental – Anos Finais pudessem conhecer mais sobre a escritora e para que o professor exercitasse o domínio técnico do uso das novas tecnologias. Em específico apresenta-se, também, como a cultura das mídias aparece no ciberespaço interferindo no pensar do falante da língua materna, que é quem recebe e absorve os gêneros discursivos, levando em consideração as condições de produção, as estruturas textuais, os suportes e os interlocutores, bem como a busca por informações em hipertextos. O ciberespaço abre um leque para exploração de inúmeras linguagens, produzindo e impulsionando para que uma aprendizagem coletiva e compartilhada possa ser explorada no espaço escolar. Neste sentido, o professor precisa participar de formações continuadas que o auxiliem no uso das tecnologias, para que consiga propor atividades a partir delas. A pesquisa tem como referenciais teóricos os estudos de Bakhtin (1992), Coscarelli (2006), Geraldi (1990), Lévy (1993, 1998 e 2010) e Libâneo (2011) entre outros. Palavras-chave: Cultura. Mídias. Ciberespaço. Software. Língua Portuguesa. Introdução Diante da relevância dos recursos tecnológicos no processo de ensino e aprendizagem tanto de professores como de alunos, torna-se necessário uma imersão sobre a temática, buscando discutir e preparar-se para aprender a conhecer, a fazer, a ¹ Mestranda em Metodologias para o Ensino das Linguagens e suas Tecnologias/UNOPAR; Bolsista CAPES; Pós-graduação em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa/FAFIJAN; Pós-Graduação em Administração, Supervisão e Orientação Escolar/UNOPAR; Graduação em Letras AngloPortuguesas/FAFICLA; Professora PDE 2009/SEED-PR; Docente de Língua Portuguesa na E.E. Prof. Francisco Antonio de Sousa. Ensino Fundamental; E-mail: [email protected] ² Mestranda em Metodologias para o Ensino das Linguagens e suas Tecnologias/UNOPAR; Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
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conviver e a aprender na era das conexões, conforme postula o Relatório para UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, coordenado por Jacques Delors. De acordo com Oliveira (2010, p. 5), “até o ano 2000, vivíamos a Era do Conhecimento, onde o principal valor era a informação. A partir daí, passamos a viver a Era das Conexões, onde o principal valor está focado nos relacionamentos. Não importa quem tem a informação, mas quem sabe quem tem a informação”. Atualmente, ser um professor mediador de conhecimentos e informações não é tarefa fácil, pois durante a construção da identidade docente (desde a graduação ao desenvolvimento profissional) várias formações discursivas o “assujeitam”. O “assujeitamento” tem uma forma histórica que depende da conjuntura da época, sendo diferente, por exemplo, quando do uso do giz ao modo de uso do software. É por isso que, as épocas, as concepções e as vozes que inspiram a prática pedagógica exigem que o professor tome um posicionamento, inclusive quanto ao uso das tecnologias, fazendo-o encarar novas aprendizagens pelo fato de não ser um nativo digital. Para que o professor se situe e se revele na era das conexões, além do domínio dos conteúdos, ele deverá ser criativo, estabelecer boa relação interpessoal, fazer uso das tecnologias, problematizar e dialogar com os estudantes. Essas “qualidades”, por assim dizer, somente reforçam a busca incansável do mestre em formar alunos independentes, determinados e participativos como consta nos Projetos Políticos Pedagógicos dos estabelecimentos de ensino. Tomando por base o PPP e o currículo escolar, optou-se por abordar no artigo como o ensino da disciplina de Língua Portuguesa sofre influências das novas tecnologias, levando em consideração a hibridização de culturas e gêneros discursivos, que fazem com que o professor tenha de considerar o uso dos softwares, hipertextos e internet quando da preparação de seu plano de trabalho docente, incitando assim um novo fazer educativo. Como se trata de um artigo pautado em referências bibliográficas, não será utilizado uma metodologia de campo, mas sim, um relato sobre a construção de uma
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prática pedagógica desenvolvida em oficina tecnológica ofertada pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná. O ciberespaço abre um leque para exploração de inúmeras linguagens, produzindo e impulsionando para que uma aprendizagem coletiva e compartilhada possa ser explorada no espaço escolar. Sendo assim, o professor precisa participar de formações continuadas que o auxiliem no uso das tecnologias, para que consiga propor atividades a partir delas. Por este motivo, apresentaremos a atividade de multimídia, criada em oficina tecnológica, a partir do Programa JClic, que é um aplicativo educacional disponível nos laboratórios do Programa Paraná Digital (PRD) em todas as escolas da Rede Estadual de Educação do Paraná. O conteúdo estruturante de Língua Portuguesa trabalhado no aplicativo é o discurso como prática social, os conteúdos básicos são os gêneros discursivos biografia e haicai e o conteúdo específico é o Centenário da Poetisa Paranaense Helena Kolody. As atividades interativas foram construídas para que os alunos do Ensino Fundamental – Anos Finais pudessem conhecer mais sobre a escritora e para que o professor exercitasse o domínio técnico do uso das novas tecnologias. Desta forma, o artigo encontra-se assim dividido: em um primeiro momento será observado o ensino de Língua Portuguesa a partir das novas tecnologias, em seguida abordaremos como desenvolver um novo fazer educativo para, finalmente, apresentar a produção das atividades no Programa JClic e as considerações finais sobre a revisão bibliográfica efetuada. O Ensino de Língua Portuguesa e as Novas Tecnologias O ensino de Língua Portuguesa já passou por inúmeras concepções de ensino e aprendizagem desde seu início com a educação jesuítica até a promulgação da Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional nº 9394/96. No livro “O texto na sala de aula”, organizado por João Wanderley Geraldi (1990), as formas históricas de se trabalhar com a linguagem são claramente explicitadas: “a linguagem como forma de expressão do pensamento; a linguagem como forma de comunicação e a linguagem como forma de interação”. Apesar de
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compreender que o “processo interativo” seja o mais recomendado, é preciso esclarecer que as concepções tradicionais e estruturais também se situam no espaço escolar, interpelando professores e alunos com formações discursivas que representam uma prática social e histórica de uso da língua. No entanto, com o advento da internet, dos hardwares e softwares um novo desafio tem tirado os professores que atuam na disciplina de Língua Portuguesa da “zona de conforto”: Como utilizar as tecnologias de informação e comunicação (TICs) na melhoria do processo de ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa? Partindo da constatação de que na Era Digital o giz vai perdendo espaço para o computador, para atender às exigências de um modelo globalizado, conectado às inovações tecnológicas, e de que, sendo assim, o desenvolvimento do professor requer investimentos contínuos na construção e reconstrução de seu saber pedagógico e tecnológico, procuramos refletir sobre o impacto que as inovações – como o uso da Informática – têm causado nas escolas da rede pública estadual de ensino, levando-se em consideração a formação e preparo dos professores para tal tarefa, assim como as condições de trabalho que lhe são oferecidas. (SANTOS, 2003, p. 7).
Atualmente, além de efetuar intervenções quanto ao desenvolvimento das práticas discursivas da leitura, oralidade e escrita por meio de uma gama de textos com diferentes funções sociais, faz-se necessário, promover o multiletramento do alunado através do acesso a “cultura das mídias” e uso dos recursos tecnológicos. Com o surgimento de novas formas de consumo cultural propiciadas pelas tecnologias, gêneros da esfera digital passam a fazer parte mais e mais das práticas sociais dos indivíduos, levando-os à interlocução via softwares e internet. Ao serem adaptados, os gêneros passam a atender a necessidade que o homem tem de se comunicar com o outro, tendo em vista que “todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem” (BAKHTIN, 1992, p. 261). Um exemplo dessa adaptação são os gêneros multimodais, ou seja, aqueles que reúnem em sua estrutura tanto palavras como imagens, sons e gráficos. Segundo Faraco (2002): [...] (as artes visuais, a música, o cinema, a fotografia, a semiologia gráfica, o vídeo, a televisão, o rádio, a publicidade, os quadrinhos, as charges, a multimídia e todas as formas infográficas ou qualquer outro meio linguageiro criado pelo homem), percebendo seu chão comum (são todas práticas sociais, discursivas) e suas especificidades (seus diferentes suportes tecnológicos,
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seus diferentes modos de composição e de geração de significados). (FARACO, 2002, p. 10).
Entende-se assim que esses gêneros fazem parte da “cultura das mídias”. Para Santaella (2003, p.13), a cultura das mídias não se confunde nem com a cultura de massas, nem com a cultura digital ou cibercultura, ela é uma cultura intermediária que foi sendo semeada por processos de produção, distribuição e consumo comunicacionais. Para explicar a afirmação, a autora divide essa passagem em seis tempos: a cultura oral, a cultura escrita, a cultura impressa, a cultura de massas, a cultura das mídias e a cultura digital, o que torna possível um estudo por parte dos professores de língua materna, pois em cada uma dessas eras é forte a presença do discurso e de seus elementos significativos. Ao se trabalhar com a leitura das múltiplas culturas e linguagens deve-se garantir que os sujeitos se envolvam nessas formações, alterando assim “seu estado ou aspectos sociais, psíquicos, culturais, políticos, cognitivos, linguísticos e até mesmos econômicos” (SOARES, 1998, p. 18). Pensar como o falante da língua materna recebe e absorve os gêneros textuais da cultura midiática é uma tarefa que abrange as condições de produção e elaboração, as estruturas textuais, os suportes e os interlocutores. De acordo com Santaella (2003): [...] desde o aparelho fonador até as redes digitais atuais, embora, efetivamente não passem de meros canais para a transmissão de informação, os tipos de signos que por eles circulam, os tipos de mensagens que engendram e os tipos de comunicação que possibilitam são capazes não só de moldar o pensamento e a sensibilidade dos seres humanos, mas também de propiciar o surgimento de novos ambientes socioculturais. (SANTAELLA, 2003, p. 13).
O ciberespaço é um dos ambientes socioculturais que se encontra em evidência no século XXI, a era da sociedade das conexões, da hibridização de culturas e de gêneros discursivos. Lévy (1998) postula que: No silêncio do pensamento, já percorremos hoje as avenidas informacionais do ciberespaço, habitamos as imponderáveis casas digitais, difundidas por toda parte, que já constituem as subjetividades dos indivíduos e dos grupos. [...] O ciberespaço: nômade urbanístico, pontes e calçadas líquidas do Espaço do saber. Ele traz consigo maneiras de perceber, sentir, lembrar-se, trabalhar, jogar e estar junto. É uma arquitetura do interior, um sistema inacabado de equipamentos coletivos da inteligência, uma estonteante cidade de tetos de
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signos. A administração do ciberespaço, o meio de comunicação e de pensamento dos grupos humanos, será uma das principais áreas de atuação estética e política do século XXI. [...] O ciberespaço designa menos os novos suportes de informação do que os modos originais de criação, de navegação no conhecimento e de relação social por eles propiciado. [...] Constitui um campo vasto, aberto, ainda parcialmente indeterminado, que não deve reduzir a um só de seus componentes. Ele tem vocação para interconectar-se e combinar-se com todos os dispositivos de criação, gravação, comunicação e simulação. (LÉVY, 1998, p. 104-105).
Cabe então, ao professor de Língua Portuguesa instigar seus alunos a refletirem sobre: Onde e quando essa hibridização de culturas e gêneros discursivos foi produzida? Por quem ela foi produzida? Como ela foi produzida? Para quem ela se destina? Como ela influencia a nossa constituição enquanto sujeitos: autores e leitores da história? “Em razão disso, conceitos básicos como interdependência, interação, contextualização, questionamentos, prática investigativa, espírito crítico, colaboração, visão sistêmica, reciprocidade entre outros, precisam ser integrados ao novo fazer educativo” (THORNBURG, 1998). Neste momento, a cultura das mídias ou cibercultura (conforme Lévy, 2000) é o grande incitamento que exige dos professores novas posturas frente à mediação da construção de conhecimentos, principalmente, na Língua Portuguesa. Um novo fazer educativo A internet, os hardwares e os softwares são recursos tecnológicos que dinamizaram ainda mais a interação do homem com o mundo, abrindo novas janelas para a construção e reconstrução de conhecimentos. O giz importante tecnologia que surgiu no século XIX, tem sua origem no Grego gpysos cujo significado é gesso, abre espaço para que outras ferramentas possam ser utilizadas na escola. Portanto, é importante reconhecer o impacto das novas tecnologias da comunicação e informação na sala de aula (televisão, vídeo, softwares, computador, internet, CD-ROM etc). Para Libâneo (2001): A escola continuará durante muito tempo dependendo da sala de aula, do quadro-negro, dos cadernos. Mas as mudanças tecnológicas terão um impacto cada vez maior na educação escolar e na vida cotidiana. Os professores não podem mais ignorar a televisão, o vídeo, o cinema, o computador, o telefone, o fax, que são veículos de informação, de comunicação, de aprendizagem, de
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lazer, porque há tempos o professor e o livro didático deixou de serem as únicas fontes do conhecimento. Ou seja, professores, alunos, pais, todos precisamos aprender a ler sons, imagens, movimentos e a lidar com eles. (LIBÂNEO, 2001, p. 40).
Por esse motivo, apresentaremos o resultado de um trabalho efetuado na oficina tecnológica sobre o software educacional intitulado JClic, na qual como produto final o professor devia construir uma atividade envolvendo o aplicativo multimídia e o ensino da Língua Portuguesa, a partir da escolha de um conteúdo estruturante, básico e específico para o trabalho com os Anos Finais do Ensino Fundamental. Mas afinal, o que é um software? De acordo com Galdeman (2007, p. 141-142), “de forma genérica e restritiva, poderíamos dizer que um software é tudo aquilo que não é um hardware. Isto é: seria a parte imaterial, literalmente intelectual do processamento de dados: a inteligência da informática”. Por fazerem parte de um dos principais grupos de aplicativos utilizados no ambiente doméstico, os jogos educacionais são softwares que têm boa aceitação junto aos alunos, principalmente em função de suas características lúdicas. Esses aplicativos, normalmente, são utilizados para desenvolver habilidades de aplicação dos conhecimentos dos alunos, por meio do seu envolvimento com o ambiente do jogo. Contudo, alguns pais e pedagogos não enxergam a validade pedagógica dessa modalidade de software, pois acham que o aluno está “somente brincando”. Entretanto, isso não caracteriza um problema, haja visto que se pode aprender brincando. (NETO, 2006, p. 57)
A oficina tecnológica foi ofertada pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná, por meio da Diretoria de Tecnologia Educacional (DITEC), responsável pela formação continuada dos professores no que se refere à utilização dos recursos tecnológicos
disponíveis
no
espaço
escolar.
Esse
Departamento,
além
de
operacionalizar o acesso aos laboratórios de informática, também, fomenta a pesquisa, a produção e a veiculação de conteúdos educacionais que estejam compatíveis com o crescimento da cibercultura nas escolas. A equipe de assessores da Coordenação Regional de Tecnologia na Educação (CRTE) presente nos Núcleos Regionais de Educação é que ministram os cursos e orientam os professores, buscando uma conexão com o plano de trabalho do docente, a partir de um conteúdo estruturante da disciplina que poderá ser explorado no laboratório de informática da escola. O Programa JClic é um software educativo que se encontra
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instalado nos computadores dos laboratórios do Paraná Digital (PRD), disponível para o uso didático de professores e alunos nas escolas. As Escolas da Rede Estadual do Paraná possuem laboratórios de informática desde 1998, quando houve a implantação do Programa de Extensão e Melhoria do Ensino Médio (PROEM), por meio do repasse de recursos do Programa Nacional de Informática na Educação (PROINFO), o qual permanece ativo pelo Governo Federal através da Secretaria de Educação a Distância do Ministério da Educação (MEC). Para tanto, são dois laboratórios de informática disponíveis para o trabalho nas escolas, o do PROINFO e o do PRD. O Programa Paraná Digital (PRD) tem como objetivo promover o uso pedagógico das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), disponibilizando a professores e alunos da rede estadual o acesso a essas ciências e ao Portal Dia a Dia Educação. O programa repassa computadores com acesso à internet para as instituições de ensino, oferece um espaço virtual de criação, interação e publicação de dados das escolas estaduais, e também investe na atualização e expansão da infraestrutura dos laboratórios de informática educativa. Ele é realizado pela Secretaria de Estado da Educação, com apoio do Governo do Estado e da Companhia de Informática do Paraná (Celepar). A Diretoria de Tecnologia Educacional, por meio da Coordenação de Multimeios, é responsável por elaborar tutoriais para o uso dos softwares educacionais livres disponíveis no PRD. De acordo com o tutorial do JClic, versão 0.1.22: O JClic é um software de autoria, criado por Francesc Busquest em espanhol e catalão, que pode ser usado nas diversas disciplinas do currículo escolar. Trata-se de uma ferramenta desenvolvida na plataforma Java, para criação, realização e avaliação de atividades educativas multimídia como quebracabeças, associações, enigmas, estudo de texto, palavras cruzadas, entre outros. Essas atividades geralmente não estão sozinhas, sendo “empacotadas” em projetos específicos para cada conjunto de atividades, com uma ou mais sequências, que indicam a ordem em que serão apresentadas. O JClic é uma aplicação de software livre baseada em modelos abertos que funcionam em diversos ambientes operativos: Linux, Mac OS-X, Windows e Solaris. Tratase de uma nova versão do Clic, com mais de 10 anos de história, sendo que nesse tempo foram muitos os educadores que se utilizaram desse ambiente para criar atividades interativas que trabalham aspectos procedimentais de diversas áreas do currículo, desde a Educação Infantil até o Ensino Superior. Essa versão aproveita as vantagens derivadas da evolução da internet, das
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configurações técnicas dos computadores e dos contornos gráficos do computador do usuário. (PARANÁ, SEED, 2010, p. 09)
Para produzir o jogo, o professor teve que participar de 5 encontros presencias e 1 à distância, no intuito de explorar o software a partir do tutorial disponível no Portal Dia a Dia Educação, além de conhecer trabalhos publicados na ZonaClic (repositório online do Programa) para, posteriormente, criar os projetos fazendo uso do JClic Author I e II. As ferramentas do JClic Author I e II permitem que o professor construa, modifique e experimente atividades em um contorno visual intuitivo e imediato, por meio de exercícios de: Associações: pretendem que o usuário descubra as relações existentes entre dois conjuntos de informação; Jogos de memória: onde se tem que descobrir pares de elementos iguais ou relacionados entre si que estão escondidos; Explorador, identificando células e tela de informação: que partem de um único conjunto de informação; Quebra-cabeças (puzzle): planeja a reconstrução de uma informação que está inicialmente desordenada. Essa informação pode ser gráfica, textual, sonora ou combinar aspectos gráficos e auditivos ao mesmo tempo; Atividades de resposta escrita: são resolvidas escrevendo-se um texto (uma só palavra ou frases relativamente complexas); Texto: atividades de texto: são planejados exercícios baseados sempre nas palavras, frases, letras e parágrafos de um texto. Será necessário completar, entender, corrigir ou ordenar. Os textos podem conter também janelas de imagens com conteúdos ativos; Cata-palavras e Palavras cruzadas: são variantes interativas dos conhecidos passatempos com palavras escondidas. (PARANÁ, SEED, 2010, p. 13)
Para que o aluno interagir com as atividades criadas, o professor deve compartilhá-las em uma pasta (ficheiro arquivo) no laboratório do PRD e, por meio do Programa JClic Player, que também está instalado nos computadores, escolher entre os diversos contornos gráficos e opções de funcionamento o que fazer/jogar. A Produção do Projeto de Trabalho Para a autoria do projeto foi proposto um trabalho com a disciplina de Língua Portuguesa com alunos dos Anos Finais do Ensino Fundamental.
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De acordo com as Diretrizes Curriculares da Educação Básica de Língua Portuguesa da Secretaria de Estado da Educação do Paraná (2008, p.63): A língua deve ser trabalhada, na sala de aula, a partir da linguagem em uso, que é a dimensão dada ao conteúdo estruturante: discurso como prática social. Assim, o trabalho com a disciplina considerará os gêneros discursivos que circulam socialmente, com especial atenção àqueles de maior exigência na sua elaboração formal.
Como no ano de 2012, data em que ocorreu a oficina tecnológica sobre o software JClic, se comemorou o Centenário da Poetisa Paranaense Helena Kolody optou-se por construir atividades educativas que abordassem os gêneros discursivos biografia e haicai, bem como as obras da escritora. O projeto de autoria foi intitulado como “Um Clic sobre Helena Kolody” e teve como finalidade a criação de jogos didáticos e interativos, que ajudassem os alunos a conhecer mais sobre a vida e a obra da haicaísta, primeira mulher a publicar haicais no Brasil em 1941, bem como interpretar e analisar a estrutura do gênero discursivo por ela escrito. Ao todo foram produzidas 4 atividades: um jogo da memória (biografia), uma associação simples (títulos e haicais), um quebra-cabeças duplo (foto da escritora) e um caça-palavras (obras literárias e suas respectivas capas de publicação). Quanto às expectativas de aprendizagem, esperava-se que o aluno realizasse pesquisas sobre os dados biográficos da poetisa em hipertextos (já que no mesmo local tinha acesso à internet), reconhecesse nas obras o estilo da escritora, identificasse elementos constitutivos dos gêneros discursivos biografia e haicai (tema, estilo e forma composicional), bem como distinguisse o efeito de sentido decorrente do tratamento estético do texto literário, pois ao interagir com as atividades além de se divertir fazendo uso das tecnologias, o estudante também teve que ler, interpretar e interagir com a Literatura. Para construção das atividades, o professor buscou imagens no Google (retrato da escritora e capas dos livros publicados) e pesquisou hipertextos sobre o conteúdo para mediar à construção do conhecimento junto ao aluno. De acordo com Lévy (2010, p.27), “hipertexto é um texto em formato digital reconfigurável e fluido. Ele é composto por blocos elementares ligados por links que
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podem ser explorados em tempo real na tela. A noção de hiperdocumento generaliza, para todas as categorias de signos (imagens, animações, sons etc), o princípio da mensagem em rede móvel que caracteriza o hipertexto”. É, hoje, tarefa do professor “ensinar” os alunos a buscar a informação e a fazer a triagem dela. De acordo com Ribeiro (2006, p. 90), “ler textos em vários suportes e percorrer hipertextos eletrônicos ou impressos pode estimular a crítica, a procura ativa e reflexão dos aprendizes, que não são mais vistos como máquinas decodificadoras”. O hipertexto ou a multimídia interativa adéquam-se particularmente aos usos educativos. É bem conhecido o papel fundamental do envolvimento do aluno no processo de aprendizagem. Quanto mais ativamente uma pessoa participar da aquisição de um conhecimento, mais ela irá integrar e reter aquilo que aprender. Ora, a multimídia interativa, graças à sua dimensão reticular ou não linear, favorece uma atitude exploratória, ou mesmo lúdica, face ao material a ser assimilado. É, portanto, um instrumento bem adaptado a uma pedagogia ativa. (LÉVY, 1993)
O resultado do projeto de trabalho foi admirável, pois quando é oportunizado que o professor aprenda, explore e a crie aplicativos para os alunos interagirem, se está utilizando de uma pedagogia ativa, na qual os conteúdos podem ser trabalhados de maneira prazerosa. Quando o professor recebe esse tipo de formação continuada, consegue superar a dificuldade do uso das tecnologias e, consequentemente, sente-se estimulado a criar outras atividades. Considerações Finais As influências dos recursos tecnológicos na história da educação, da escrita e da leitura são muito visíveis. Desde as tabuletas de argila, papiros, pergaminhos, papéis, códices, fólios, prensas, quadros de giz, giz, computadores e softwares tudo indica que as transformações fazem parte de nossa vida. Para Ribeiro (2006, p. 86), “somos herdeiros de uma época em que a escrita e a impressão são invenções humanas tão assimiladas, que por vezes esquecemos que não tenham existido um dia”. Por isso, para o professor de Língua Portuguesa, um dos alvos dessa revisão bibliográfica, é muito importante saber articular o trabalho com os
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conhecimentos historicamente construídos e as novas tecnologias de informação e comunicação. Lévy (1993) afirma que, “é certo que a escola é uma instituição que há cinco mil anos se baseia no falar/ditar do mestre, na escrita manuscrita do aluno e, há quatro séculos, em um uso moderado da impressão. Uma verdadeira integração da informática (como do audiovisual) supõe, portanto, o abandono de um hábito antropológico mais que milenar, o que não pode ser feito em alguns anos”. Para tanto, a participação do professor em eventos de formação continuada é fundamental para que aprenda a trabalhar com os softwares educativos e com a internet, no intuito de mediar a aprendizagem sobre as práticas de leitura, escrita e oralidade por diferentes suportes e mídias, de maneira intertextual e associativa, fazendo uso de hipertextos. A compreensão de que as inovações tecnológicas estão num processo gradativo de assimilação por parte do professor deve ser considerada, pois assim as mudanças educacionais desejadas ocorrerão. No entanto, Almeida (2000a, p. 16) enfatiza, “as mudanças para serem efetivas precisam de gente corajosa, disposta a defender suas ideias, criativas para estudar soluções, para buscar parcerias. Gente que pretende ter mais prazer no trabalho, mais envolvimento com o seu fazer e que certamente obterá mais qualidade nos resultados”. Constataram-se vários resultados positivos que, com certeza, deflagrarão um novo olhar e caminhar no ambiente escolar. Parafraseando Helena Kolody, “estamos sempre em viagem/ o mundo é uma paisagem/ que nos atinge/ de passagem”, por isso aprender a conhecer, a fazer, a conviver e a aprender na era das conexões é o nosso grande desafio. Referências ALMEIDA, M. E. Informática e Formação de Professores. São Paulo, vol. 1, 2000a. BAKHTIN, M. (Volochinov). Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
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FOTOJORNALISMO: UMA ANÁLISE DO MST NA CAPA DA VEJA
Airton Donizete de Oliveira mestrando em Comunicação Visual (UEL)
Resumo: Este artigo analisa uma capa da revista Veja publicada em 19 de junho de 1985, com o título: “Reforma agrária: Os fazendeiros se armam”, seguido da chamada: “invasor que pisar aqui leva chumbo. Vem que tem - Trajano Bicalho, guardião da fazenda Camarões no Norte de Goiás”. A capa é o espaço nobre de uma revista. Por meio dela, o leitor pode ou não avançar na leitura interna. Portanto, ela é fundamental no sucesso de uma publicação. Na capa em questão, os efeitos de sentido determinam sua significação. Para analisá-la é utilizada a metodologia Análise de Discurso da linha francesa. Nesta capa, há uma relação de poder entre os fazendeiros, que se defendem com jagunços armados, e os Sem-Terra, que promovem ocupações e forçam a realização da reforma agrária.
Palavras-chave: Imagem; MST; Veja.
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Introdução O presente artigo analisa uma capa da revista Veja publicada em 19 de junho de 1985 com o título: “Reforma agrária: Os fazendeiros se armam”, e a chamada: “Invasor que pisar aqui leva chumbo. Vem que tem - Trajano Bicalho, guardião da fazenda Camarões no Norte de Goiás”. Nas bancas de rua ou na internet revistas exibem suas capas, que funcionam como vitrines. Por meio delas, o leitor pode avançar ou não na leitura interna. Por isso, esta análise se aterá apenas a esta capa de Veja sobre o MST, não avançando ao conteúdo interno da revista. Com tamanha exposição, a postura de Veja sobre o movimento pode confundir o leitor que não o conhece. Daí a importância desta análise, que também pode auxiliar professores em sala de aula. Por meio de um programa “Veja na Sala de aula”, criado pela Editora Abril, que edita Veja, muitos se utilizam da revista em suas aulas no ensino médio. Alvo da censura militar, Veja, que é publicada pela Editora Abril, chegou ao mercado editorial em 1968 para substituir a revista Realidade. Também editada pela Abril, saiu de circulação em 1976. Desde então, Veja mantém uma linha editorial voltada ao pensamento neoliberal, com destaque para assuntos do cotidiano. É uma publicação que apoia a livre iniciativa e o sistema neoliberal de governo. Em seu primeiro número que foi às bancas, em setembro de 1968, Veja estampou uma capa sobre o comunismo na então União Soviética, com o título: “O grande duelo no mundo comunista”. Um fundo vermelho ressalta a sombra da foice e do martelo em preto. Assim, a revista começava a demarcar sua linha editorial. Os ataques de Veja ao MST revelam o propósito da revista em destruir a identidade do movimento, que está relacionada às lutas sociais que outrora existiram no Brasil. Uma das principais organizações surgidas no Brasil pós-ditadura militar, os Sem-Terra talvez sejam a única entidade civil que consegue pressionar o Governo Federal e mostrar à sociedade que o Brasil precisa realizar a reforma agrária. Esta é uma reivindicação antiga. A concentração de terra no Brasil vem desde os tempos da Colônia e está ligada à falta de cidadania, que também perdura desde aquela época. (CARVALHO, 2001) lembra que um traço marcou durante séculos a economia e a sociedade brasileiras: o latifúndio monocultor e exportador de base escravista.
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A concentração de terra no Brasil começou com as capitanias hereditárias e não mudou. Indivíduos determinados pela Coroa se apossavam da propriedade, que era repassada de pai para filho. A reforma agrária sempre ficou em segundo plano. A mudança nunca interessou ao Estado e à classe dominante. Uma de suas armas é a grande mídia, um dos aparelhos ideológicos de Estado. Se outrora era assim, não interessa ao Estado e à classe dominante que haja mudanças. Podemos constatar que enquanto o aparelho (repressivo) de Estado, unificado, pertence inteiramente ao domínio público, a maioria dos Aparelhos Ideológicos de Estado (na sua dispersão aparente) releva pelo contrário do domínio privado. Privadas são as igrejas, as famílias, os sindicatos, algumas escolas, a maioria dos jornais, as empresas culturais, etc. etc. – (ALTHUSSER, 1974, p. 45).
Para analisar a presente capa de Veja sobre o MST, é utilizada a metodologia Análise de Discurso (doravante AD). A revista Veja A imprensa se alastrou pelo Brasil, mas não mudou seu perfil editorial. Ou seja, não deixou de ser comandada pela classe dominante. Passou pela ditadura do Estado Novo (1937/1945), período em que muitos jornais e revistas foram fechados por determinação do Governo Federal. A ditadura civil/militar (1964/1985) deu outro golpe na imprensa. Jornais, revistas, rádios e canais de televisão passaram a conviver com a censura. Mas o golpe fatal veio em 1968 com o decreto que impôs o Ato Institucional Cinco, o AI 5. A censura endureceu. Neste cenário nasceu a revista Veja, criada em 1968, pelos jornalistas Victor Civita e Mino Carta. No começo, Veja teve dificuldades. Lutou contra a censura do Governo Militar, até acertar sua fórmula. As vendas começaram a se expandir quando a revista passou a ser vendida por assinatura, em 1971. Hoje, as assinaturas correspondem a 80% da venda dos seus 1,2 milhões de exemplares semanais. Segundo (SCALZO, 2009), para formar a primeira equipe de Veja, a Editora Abril selecionou em todo o país, e treinou durante três meses, 100 jovens com formação superior, dos quais 50 foram aproveitados na Redação. Era o primeiro curso de jornalismo da empresa, e também o primeiro a falar de jornalismo em revista. Tal prática é mantida até hoje. Os jornalistas que atuam nas
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revistas do grupo são selecionados por meio de treinamento comandado pela Editora Abril. Veja é hoje a quarta revista de informação mais vendida no mundo, atrás das norte-americanas Time e Newsweek e da inglesa The Economist. Veja trata de temas do cotidiano da sociedade brasileira e do mundo, como política, economia, cultura e comportamento; tecnologia, ecologia e religião por vezes também são abordadas. Possui seções fixas de cinema, literatura, música, entre outras variedades. A maioria dos seus textos é elaborada por jornalistas, porém nem todas as seções são assinadas. No Brasil, de acordo com (SCALZO, 2009), a primeira concorrente de Veja foi Visão, que já existia quando a revista da Editora Abril foi lançada. Depois vieram Isto é, Senhor, Afinal, Época, Carta Capital, Caros Amigos, Piauí, entre outras. O leitor de Veja se assemelha ao da revista Visão que, lançada em 1952, tinha linha editorial voltada para um público formado por empresários, executivos e integrantes da classe média. Visão aproveitou a consolidação de uma sociedade urbana e industrial no país, na década de 1950, e criou um modelo de jornalismo que privilegiava a análise, a clareza das informações e a capacidade de síntese. MST: herdeiro de lutas históricas Se a chamada grande imprensa está em poder da classe dominante, com a terra não é diferente. Um rápido olhar pela historiografia brasileira revela os levantes e revoltas de movimentos sociais que apregoavam mudanças na condução política do país. Canudos (revolta no sertão baiano entre 1893 e 1897, que culminou com a morte de 25 mil pessoas), Guerra do Contestado (conflito que se deu na divisa entre Paraná e Santa Catarina, em 1913, que teria provocado a morte de 20 mil pessoas), Revolta de Palmares (ataque das forças governistas contra o Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, hoje interior de Alagoas, no qual morreu Zumbi dos Palmares) entre outros, demonstram insatisfação com um Estado que sempre deixou o povo em segundo plano. A luta desses movimentos não cessou. Ela continua viva e, hoje, tem no MST seu legítimo representante.
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Portanto, a reforma agrária é uma reivindicação antiga. A concentração de terra no Brasil vem do período colonial e está ligada à falta de cidadania, que também perdura desde aquela época. O modelo de colonização português não privilegiava a formação de uma nação. Em 1500, eles chegaram ao Brasil e depararam com um imenso território. Não titubearam em usar a força para dominar os donos das terras, que aqui viviam. Eram cerca de 5 milhões de índios, que foram submetidos ao modo de produção, às leis e à cultura portuguesa. Toda a terra brasileira passou a ser propriedade da Coroa Portuguesa. Os que aqui chegaram receberam concessão de uso. Um direito hereditário, ou seja, os herdeiros dos grandes fazendeiros podiam continuar com a posse das terras e sua exploração. Em 1850, a Coroa, sofrendo pressões inglesas para substituir a mão de obra escrava pelo trabalho assalariado, com a consequente e inevitável abolição da escravidão, e para impedir que, com a futura abolição, os então trabalhadores ex-escravos se apossassem das terras, promulga, naquele ano, a primeira lei (Lei 601) de terras do país – (STÉDILE, 2005, p. 24).
Tal ato jurídico consolidou a propriedade privada no Brasil e, a partir daí, formaram-se os grandes latifúndios que persistem até hoje. Com o fim da escravidão, em 1888, e chegada dos imigrantes europeus, surgiu o campesinato brasileiro. Até então, havia apenas trabalhadores escravizados, vindos da África ou retirados das comunidades nativas, indígenas. Em 1930, uma revolução burguesa leva ao poder Getúlio Dornelles Vargas, que fica no comando do país até 1945. A oligarquia rural se enfraquece e faz uma aliança com a burguesia urbana. Uma das causas do êxodo rural. Os camponeses deixam a roça e se iludem com novos empregos e salários na indústria. A crise pela falta da terra se agrava. O Brasil vê o nascimento, entre 1950 e 1964, das ligas camponesas (movimento ocorrido no sertão pernambucano liderado por Francisco Julião Arruda de Paula, cujo objetivo era fazer a reforma agrária) e outros movimentos que exigiam a realização da reforma agrária no Brasil. Esses movimentos foram esmagados pela ditadura militar, que se instalou no país em 1964. O latifúndio derrotou a reforma agrária. Pessoas que lutavam por esta causa foram mortas, presas ou exiladas. Mas o governo militar até que ensaiou realizála, mas as iniciativas não foram avante. A grande concentração de terra prevaleceu.
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Entre 1978 e 1980, no auge da luta pela redemocratização, surge uma nova forma de pressão dos camponeses: as ocupações organizadas por centenas de famílias. No início de 1984, os participantes dessas ocupações realizam o primeiro encontro, dando nome e articulação própria ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A primeira reunião oficial, que sacramenta a criação do MST, ocorreu em 1984 no Primeiro Encontro Nacional dos Sem-Terra, em Cascavel, no Paraná. Mas não se pode dizer que o MST nasceu em 1984. Ele é fruto de uma história de luta. Não é uma luta contra este ou aquele governo. É contra o sistema que impera no Brasil desde que os portugueses aqui chegaram. Até hoje não se fez uma verdadeira reforma agrária no Brasil. Capas funcionam como isca Com isso, a questão da terra passou a ser fundamental para os grandes proprietários. A chamada grande imprensa, que na sua maioria serve ao capital, é usada para combater os Sem-Terra. A revista Veja é um desses meios, que transformou suas capas numa espécie de artilharia contra o MST. Capas de revista funcionam como síntese da edição. Nela é destacado o assunto principal com chamadas para assuntos de menor importância, conforme definido por cada editor. Mas a capa tem um objetivo especial: fisgar o leitor. A partir dela, ele pode ou não folhear a revista. Pela exibição quer seja nas bancas ou mesmo na internet, a capa é quase uma revista dentro da revista. Muitas vezes, o leitor se atém a ela, sem avançar no assunto interior. Para (SCALZO, 2009), uma boa revista precisa de uma capa que ajude a conquistar leitores e os convença a levá-la para casa. “Capa, como diz o jornalista Thomaz Souto Corrêa, é feita para vender revista. A capa precisa ser o resumo irresistível de cada edição, uma espécie de vitrine para o deleite e a sedução do leitor” – (2009, p. 62). Portanto, uma boa capa é feita de notícias quentes e exclusivas. “Como se costuma dizer nas redações, com certo tom de humor: Papa morto vende, Papa vivo, não”- (SCALZO, 2009, p.63). Quando Veja, acrescenta (SCALZO, 2009), publicou a histórica entrevista exclusiva com Pedro Collor de Mello denunciando o irmão – o então presidente
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Fernando Collor -, não foi preciso mais nada além de estampar a foto do personagem ao lado da chamada: “Pedro Collor conta tudo”. É o caso típico de uma capa que já nasceu pronta. Em qualquer situação, uma boa imagem será sempre importante – e é ela o primeiro elemento que prenderá a atenção do leitor. O logotipo da revista também é fundamental, principalmente quando ela é conhecida, e já detém uma imagem de credibilidade junto ao público. Afinal, quando você vê na banca duas revistas com a mesma notícia na capa, você compra aquela na qual confia mais – (SCALZO, 2009, p. 63).
São estratégias assim que fazem da capa um espaço especial da revista. Nela está o sucesso ou fracasso de uma edição. Em seu conselho final aos editores, (SCALZO, 2009, p. 64) recomenda: “Olhe para a capa não como um belo quadro, uma obra de arte, mas como um elemento editorial, que tem a função estratégica de definir a compra de seu produto pelos leitores”. Assim Veja edita suas capas, levando em conta o olhar do leitor. Uma verdadeira vitrine, onde está exposto seu principal produto. A capa aqui analisada não é diferente. É o que este trabalho pretende mostrar. Capa analisada
Capa publicada em 19/06/1985
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Em 19 de junho de 1985, Veja publicou a primeira capa sobre o MST, com o título: “Reforma agrária: Os fazendeiros se armam”, seguido da chamada: “Invasor que pisar aqui leva chumbo. Vem que tem - Trajano Bicalho, guardião da fazenda Camarões no Norte de Goiás”. Para (SAMAIN, 1998), é a fotografia como campo de estudo, lugar de investigação possível, de um reconhecimento das informações, dos signos e das mensagens que ela denota e conota, o terreno de um saber e de uma cultura que posso compreender, desvendar e enunciar nos moldes da ciência. A fotografia de Trajano exposta na capa da Veja lembra a colonização de várias regiões do planeta. Um desses lugares foram o norte e noroeste do Paraná nas décadas de 30, 40 e 50 (TOMAZI, 1999). Jagunços contratados pela companhia colonizadora vigiavam as terras contra possíveis grilagens. Armados, eles obedeciam à ordem do patrão e, se preciso fosse, matavam para defender as propriedades ou promover a desocupação de novas terras. Nesta capa, Veja resgatou a imagem do jagunço, símbolo do Brasil rural de épocas passadas ou mesmo de hoje nos rincões do Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil. Utilizou-se do eufemismo “guardião” para não dizer jagunço, já que todas as características da fotografia levam a isso. Com a utilização desse eufemismo na capa, a revista oculta o poderio do fazendeiro em questão. Mas a imagem do homem armado não deixa dúvidas porque se remete à memória. Se um sujeito de arma em punho vigia uma fazenda fica claro que se trata de um jagunço. Cena comum no Brasil rural, ainda mais na década de 80. Segundo (ORLANDI 1999), a memória está relacionada ao interdiscurso, ou seja, o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-constituído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra. “O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada” – (ORLANDI, 1999, p. 31). A AD trabalha com a exterioridade que age sobre o sujeito, transformando-o em receptor social histórico: “O dizer não é propriedade particular. As palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela língua” – (ORLANDI, 1999, p. 31). Assim se apresenta esta capa. Sentidos do passado, já ditos, ali estão para cumprir uma função: dizer que o MST nascia e começava a invadir propriedades, portanto, os fazendeiros
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estavam se armando para combatê-lo. E mais. Trata-se de uma imagem produzida. O revólver na cintura, a carabina na mão esquerda e a cerca (símbolo de poder) atrás revelam um cenário artificial. Nesta capa, há uma relação de poder entre os fazendeiros, que se defendem com jagunços armados - e os Sem-Terra, que promovem ocupações de terra e forçam a realização da reforma agrária. Em 1984, um ano antes de a Veja publicar a presente capa, nascia o MST, que começava a ocupar terras e a desafiar o poder constituído. O enunciado “Os fazendeiros se armam” traz em sua estrutura um vazio semântico: se armam contra quem? Embora não esteja dito, pode-se recuperar a ideia de que eles se armam contra os Sem-Terra. No trecho, “invasor que pisar aqui leva chumbo”, há uma referência aos Sem-Terra designada a partir de uma formação discursiva capitalista. Tal designação só é possível como marca de uma filiação à ideologia da propriedade privada. No ano em que esta capa foi publicada nascia a UDR (União Democrática Ruralista), cujo objetivo era combater os Sem-Terra. Trajano Bicalho, guardião da Fazenda Camarões, está a serviço dos ruralistas. Com uma chamada, a fotografia realça o poder visual da capa em questão. Um senhor de chapéu com uma carabina na mão esquerda e um revólver do lado direito da cintura. O cenário ganha destaque com a cerca, simbolizando divisão e poder. É bom lembrar: na AD, não menosprezamos a força que a imagem tem na constituição do dizer. O imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem. Ele é eficaz. Ele não “brota” do nada: assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem na história e são regidas, em uma sociedade como a nossa, por relação de poder. A imagem que temos de um professor, por exemplo, não cai do céu. Ela se constitui nesse confronto do simbólico com o político, em processos que ligam discursos e instituições. Desse modo é que acreditamos que um sujeito na posição de professor de esquerda fale “X” enquanto um de direita fale “Y” (ORLANDI, 1999, p. 42).
Portanto, a posição sujeito mostrada pela Veja deixa claro que os fazendeiros estão preparados para a guerra. Um pistoleiro de arma na mão reforça a imagem projetada pela classe dominante. De vez em quando, a mídia revela que no Norte do Brasil, especialmente no sul do Pará, pistoleiros executam pessoas para que determinados grupos ou fazendeiros se apossem de terras para extração de madeira. Em 1985, um sujeito de arma em punho surge na capa da Veja dizendo se pronto para atirar
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em quem adentrar naquela fazenda. A classe dominante reagia ao surgimento do MST. O trecho “Invasor que pisar aqui leva chumbo. Vem que tem” também pode ser analisado pela via do conflito e polêmica. Para os latifundiários é importante que isso aconteça, pois assim eles mostram seu poder e força. Mesmo disfarçadamente, os grandes proprietários de terra estão na capa. “Não adianta os protagonistas jurarem que dispensariam completamente o conflito, que eles só entram na disputa obrigados; de fato, eles estão desde sempre envolvidos nela” (MAINGUENEAU, 2008, p. 113). Mas para gerar polêmica, neste caso, era preciso fragmentar. E assim fez Veja. A reforma agrária, uma luta antiga, entrava na pauta política. Era o fim do regime militar (1964/1985) e o início do período democrático. Os movimentos populares reiniciavam suas lutas. Esta capa da Veja não faz referência ao momento em que o Brasil vivia (meados da década de 80). Ao mostrar a força da classe dominante, fragmentou a questão da reforma agrária. Revelou apenas que os grandes fazendeiros estavam preparados para defender suas terras. Deixou de dizer que a terra no Brasil está nas mãos de poucos e que a reforma agrária é uma reivindicação antiga. A fragmentação, segundo (ABRAMO, 2003), pode ser feita por meio das seguintes estratégias: a seleção de aspectos, ou particularidades, do fato e da descontextualização. A seleção de aspectos do fato que é objeto da atenção jornalística obedece a princípios semelhantes aos que ocorrem no padrão de ocultação. Embora tenha sido escolhido como um fato jornalístico e, portanto, digno de merecer estar na produção jornalística, o fato é decomposto, atomizado, dividido em particularidades ou aspectos, e a imprensa seleciona os que ela apresentará ou não ao público. Novamente, os critérios para essa seleção não residem necessariamente na natureza ou nas características do fato decomposto, mas sim nas decisões, na linha, no projeto do órgão de imprensa, que são transmitidos, impostos ou adotados pelos jornalistas desse órgão (ABRAMO, 2003, p. 28).
Sob o ponto de vista da AD, no entanto, a fragmentação não implicaria no silenciar do outro. O dito da capa só faz sentido pelo não dito, ou seja, só existe o fazendeiro e seu capanga armado porque existe ameaça do “invasor”, os Sem-Terra. Nessa representação de Veja da luta de classes, entretanto, o que fica evidenciado é o registro de quem tem a maior força: o fazendeiro e seu poderio de defesa da propriedade. Este é o efeito de sentido que a capa mostra. A revista poderia ter mostrado
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o outro lado, mas por coerções de sua posição-sujeito ideológica naquele contexto sócio histórico, não o fez. Portanto, sob o viés da AD, implica em se perguntar por que o outro (os Sem-Terra) sofreu esse processo de fragmentação, de tradução semântica de ocupante para invasor? Nesta capa, Veja mostra apenas a versão dos grandes proprietários de terra. “De onde se conclui que o visível é aquilo que se pode ver, o que a sociedade deixa ver e institui que há de ser visto” (DOMENECH, 2011, p. 22). Considerações finais Segundo (ROSSI, 1985), o mais correto é dizer que existe atualmente liberdade de empresa, mas não exatamente liberdade de imprensa. Em outras palavras: há razoável grau de liberdade para um determinado jornal veicular aquilo que lhe parece mais conveniente – respeitadas, é óbvio, as leis vigentes. Mas há sérias restrições ao direito social à informação, ou seja, ao direito que toda sociedade tem de informar e, ao mesmo tempo, veicular informações que lhe interessam – (ROSSI, 1985, p. 60).
Tal afirmação possibilita compreender a posição de Veja sobre o MST. Uma revista que defende o capital. Sendo os Sem-Terra uma espécie de pedra no sapato. Um movimento que mantém uma história de luta pela mudança social. Veja, então, tenta desqualificá-lo. Não basta dizer que o MST é do mal. É preciso mostrar, conforme o manipula nesta capa. Utilizando-se de uma foto montada e métodos tendenciosos de edição, Veja macula os Sem-Terra e os apresenta à sociedade como um bando de desocupados que ameaça invadir propriedades e instalar o caos no país. De acordo com a análise apresentada pelo presente trabalho, a capa de Veja sobre os Sem-Terra tenta ofuscar a ideia de que o Brasil precisa de uma reforma agrária. Reivindicação antiga, a reforma agrária não foi prioridade de nenhum governo brasileiro. A luta pela terra no país vem do Brasil Colônia, passou pela Independência, pela República e chega quase intocável aos dias atuais. Realizá-la fere interesse de latifundiários em cujas mãos estão concentradas as terras brasileiras.
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O PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DE LEITURA DO TEXTO LITERÁRIO: PERCURSOS PARA FORMAR LEITORES1
Alice Atsuko Matsuda (UTFPR-Curitiba/ Brasil)2 Maria de Lourdes Rossi Remenche (UTFPR-Curitiba/ Brasil)3 Para início de conversa... Todo e qualquer conhecimento é perpassado pela linguagem e, só e por meio desta, poderá ser organizado e acessado. A leitura faz parte da linguagem em que o indivíduo constrói os significados do texto por meio da interpretação de seus significantes. É nessa perspectiva que Freire (1990) afirma que a importância da palavra é sempre precedida da leitura do mundo. Aprender a ler, a escrever, alfabetizar-se e letrar-se é aprender a ler o mundo, compreender os seus contextos em um movimento dinâmico que vincula linguagem e realidade. A leitura tem papel fundamental na formação da criança como um ser dialógico, portanto a prática de leitura na escola deve receber uma atenção primordial, recorrente e sistematizada. No entanto, pesquisas como as de Rojo (2009) e Kleiman (1995) relevam que muitos estudantes brasileiros terminam o Ensino Fundamental e/ou médio sem o domínio da leitura. Avaliações realizadas pelo Ministério da Educação no Brasil para verificar o desempenho dos alunos quanto à leitura, em exames nacionais como SAEB, ENEM e internacionais como PISA demonstram resultados insuficientes que 1
O presente artigo é parte dos estudos realizados do Grupo de Pesquisa de Linguística Aplicada. As primeiras reflexões desses estudos foram publicadas na Revista Transdisciplinar de Letras, Educação e Cultura da UNIGRAN -InterLetras 2 Professor Adjunto da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Câmpus Curitiba (UTFPR-Curitiba). Doutor em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Membro de GP CRELIT-UENP-CP e Discursos sobre Trabalho, Tecnologia e Identidades da UTFPR-CT. Curitiba-PR, Fundação Araucária, Pesquisador do projeto “A Leitura e os jovens leitores: Práticas de letramento no Norte Pioneiro-PR”, Brasil, [email protected] 3 Professor Adjunto da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Câmpus Curitiba (UTFPR-Curitiba). Doutora em Línguística e Semiótica pela Universidade de São Paulo (USP). Líder do Grupo de Pesquisa em Linguística Aplicada e Membro do Grupo de Pesquisa em Estudos da Linguagem da UTFPR-CT. Curitiba-PR, Brasil, [email protected]
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evidenciam o insucesso do letramento escolar, principalmente no que diz respeito aos letramentos e às capacidades de leitura. Dessa forma, questiona-se: Como está constituído o currículo no que diz respeito ao ensino de leitura no Brasil? O que a escola tem feito para formar leitores competentes? Qual a importância dada à prática de leitura em sala de aula? Quais concepções e metodologias sustentam essa prática? Estudos como os de Kleiman (2007), Signorini (2006), Rojo (2001) e Antunes (2006) evidenciam que o letramento escolar ainda está baseado em uma prática etnocentrada de assimilação de palavras vazias, devido ao seu caráter monocultural. As consequências dessa prática envolvem a formação de leitores que não constroem sentido para o texto, apenas reproduzem os sentidos dados, sem autonomia para interpretar o que leu, nem para produzir textos que expressem posicionamento crítico frente às questões contemporâneas. No presente artigo, pretende-se discutir o processo de ensino-aprendizagem de leitura na aula de Língua Portuguesa e Literatura. Para tanto, discutiremos as concepções que estruturam os documentos orientadores no Brasil e possibilidades para transpor para a prática essas ideias. Questões teóricas que norteiam o caminho... De acordo com Geraldi (1999), toda escolha metodológica da prática cotidiana de sala de aula demonstra uma opção ideológica, política. Portanto, é necessário perguntar: O que ensinar? Para quem ensinar? A partir desses questionamentos, é preciso delimitar a concepção de linguagem que norteará a sua prática pedagógica em sala de aula. A linguagem, como prática social, permeia todas as relações intersubjetivas, servindo de trama para as relações sociais em todos os domínios. Nessa dinâmica, as palavras são tecidas socialmente em um constante movimento de produção e negociação de sentido, pois as possibilidades de significação são tantos quantos os contextos possíveis (BAKHTIN, 2004).
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Bakhtin (2004) defende que os significados são co-construídos nas interações e a linguagem vai além da concepção representacionista de apenas refletir a realidade, assumindo a função de construir, semanticamente, a realidade nas tramas das relações intersubjetivas, ou seja, co-produzimos sentidos e co-construímos também nossas subjetividades nas práticas discursivas em que não apenas produzimos linguagem, mas também somos produzidos nela. Os sujeitos se constroem, assim como constroem seus interlocutores nas várias práticas sociais em que circulam. Pesquisadores da área, como Geraldi (1999), Matêncio (1994), Suassuna (1995), Kleiman (1995), Rojo (2009) dentre outros, em consonância com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e as Diretrizes Curriculares da Educação Básica do Estado do Paraná (DCEP) em Língua Portuguesa exploram a concepção interativa da linguagem ao discutir o processo de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa, pois tal concepção apresenta pressupostos teóricos de ensino em que o leitor tem papel ativo, ou seja, é visto como sujeito ativo que constrói e é construído no texto em uma dinâmica dialógica, considerando o lugar de interação e de constituição dos sujeitos. Nessa concepção, para Kock e Elias (2006), há lugar no texto para diferentes implícitos que só são percebidos ao levarmos em conta o contexto sociocognitivo dos participantes da situação interativa. Ao aprofundarmos essa reflexão, faz-se necessário discutir questões como: O que é ler? Para que ler? Como ler? As respostas a essas perguntas explicitarão a concepção de leitura, de sujeito e também de texto. Na concepção interacionista, o sentido não está dado a priori, ao contrário, ele é fluido e se constrói na interação texto-sujeitos. A leitura, por sua vez, é uma atividade interativa complexa de produção de sentidos e o texto é visto como uma unidade de sentido incompleta em que o leitor, como coautor, completará o significado. Assim, ele (leitor) e autor (produtor do texto) estarão em diálogo contínuo. A prática de ensino de leitura, apresentando apenas uma resposta, não responde à perspectiva metodológica interacionista. Para que ela ocorra, há necessidade de o professor propiciar o diálogo, a interação, o debate, discutindo e ampliando a leitura.
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Nesse sentido, a prática de leitura por meio de gêneros discursivos, de acordo com os pressupostos teóricos de Bakhtin, apresenta-se como estratégia para potencializar o processo de ensino-aprendizagem da leitura. Ao realizar a leitura, é necessário verificar o que se diz? (tema); quem diz? (autor/ produtor do texto quem é? Qual a sua ideologia? De onde/ de que lugar ele fala? Enfim, analisar o ser social e histórico); para quem se diz? (quem é o provável leitor/ público/ receptor a que está destinado o texto); a que gênero pertence? Qual a sua estrutura composicional? Quais os recursos linguístico-expressivos empregados? Quais elementos gramaticais foram utilizados? Há recursos não verbais empregados? Em que suporte se encontra? Em qual local e em qual data foram publicados os textos? O professor, como mediador da leitura, precisa possibilitar toda essa discussão em sala de aula. Além disso, trazer conhecimentos prévios necessários que o texto solicita, além de fazer emergir a “biblioteca vivida” de cada leitor, realizando a intertextualidade, a comparação, o diálogo, a interação com outros textos. Portanto, afirma-se que o ato de ler promove a socialização não só com as pessoas, mas também do leitor com o texto e com o autor. Sendo assim, além de desenvolver prática de leitura de textos de diversas esferas sociais (jornalística, política, econômica, científica, comercial, acadêmica, etc.), deve-se também trabalhar os textos literários. É preciso propiciar às crianças e jovens o contato com os mais diversos gêneros discursivos para que eles possam desenvolver a competência leitora. Quanto mais contato o aluno tiver com a diversidade textual, se tornará mais competente para ler os diferentes textos que circulam socialmente. Para Aguiar e Bordini, Numa sociedade desigual, os problemas de leitura se diversificam conforme as características de classe. As soluções possíveis se orientam para o pluralismo cultural, ou seja, a oferta de textos vários, que dêem (sic.) contam das diferentes representações sociais. Se as classes trabalhadoras também tiverem acesso à alfabetização, serão elas não apenas consumidoras passivas, mas produtoras de novos textos, que se acrescentarão aos que circulam na sociedade e atenderão a seus interesses. (1993, p.13).
Portanto, além de ler textos informativos, instrucionais, científicos, acadêmicos, os literários devem fazer parte da antologia de textos, pois não se lê apenas para se
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informar, adquirir conhecimento, mas também para se deleitar, analisar a beleza estética do texto. Ademais, Aguiar e Bordini afirmam que o texto literário é mais completo, pois, além de possibilitar o conhecimento do mundo e de si mesmo, propicia o prazer, a humanização, de acordo com as funções da literatura reiterada por Antonio Candido. Todos os livros favorecem a descoberta de sentidos, mas são os literários que o fazem de modo mais abrangente. Enquanto os textos informativos atêm-se aos fatos particulares, a literatura dá conta da totalidade do real, pois, representando o particular, logra atingir uma significação mais ampla. (AGUIAR; BORDINI, 1993, p.13).
Assim, pode-se afirmar que, ao desenvolver um projeto de leitura na escola de forma sistematizada, seguindo uma metodologia e tendo um pressuposto teórico que norteie o seu trabalho, provavelmente, há possibilidade de formar leitores competentes. A questão é se os professores que estão atuando em sala de aula possuem esse arcabouço teórico e metodológico para desenvolver um projeto sistematizado de leitura e possibilitar a formação do leitor competente? Procedimento de ensino-aprendizagem da leitura Compreender um texto, para Geraldi (1999), é indicar o que se tem a dizer em relação a ele e para ele. É produzir um outro texto em resposta ao texto lido, entrecruzando fios seus com os que traz o texto, tramando um outro texto (JURADO; ROJO, 2007). Nessa concepção, a leitura é uma atividade cognitiva que possui caráter multifacetado e multidimensional. É um ato social entre dois sujeitos – leitor e autor – que interagem entre si em um processo complexo que envolve percepção, processamento, memória, inferência, dedução, indução, ou seja, é um processo em que o leitor atua participativamente, buscando recuperar, interpretar e compreender os sentidos e as intenções pretendidas pelo autor. Para tanto, o leitor utiliza diversas estratégias baseadas no seu conhecimento.
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Ao considerarmos o sujeito inserido em formações discursivas que são determinadas sócio-historicamente, entendemos que sujeito e sentido se constituem reciprocamente. Assim, para compreender, acionamos outros discursos, buscamos outras vozes, contamos com outros textos, mobilizamos diferentes posições ideológicas, conhecemos diferentes gêneros textuais. O texto é ponto de partida e ponto de chegada ao processo de aprendizagem da leitura. Ao lermos, ativamos todo o nosso repertório cultural, nosso sistema de valores, crenças e atitudes. Essa dinâmica interacional implica conhecimentos prévios que são fundamentais à constituição dos sentidos do texto. Dentre esses conhecimentos, o conhecimento linguístico desempenha papel central no processamento do texto (KOCH; ELIAS, 2006), pois as habilidades linguísticas envolvem os conhecimentos gramaticais para estabelecer relações entre as palavras, frases, parágrafos, os efeitos de sentido provocados pela escolha lexical. Na prática leitora, quanto mais o leitor for exposto a gêneros textuais diversificados, quanto mais conhecer as estruturas textuais e os tipos de discursos, mais fácil será a compreensão do texto. Quanto mais diversificada a experiência de leitura e familiaridade os alunos tiverem com os diversos gêneros que circulam socialmente, mais conhecida será a função social e a estrutura desse texto, mais fácil a percepção das relações entre a informação veiculada no texto e a sua estrutura. A leitura, nessa dinâmica, envolve o contexto linguístico e extralinguístico de sua produção e circulação. Nela, vários processos estão ativos, os sentidos relacionamse aos objetivos do leitor. À medida que lê o texto, o leitor ativo vai elaborando e testando hipóteses sobre o sentido do texto. Vai também ativando seu conhecimento de mundo e esquemas que determinam, durante a leitura, as inferências que o leitor fará com base em marcas formais do texto. O estabelecimento de objetivos e a formulação de hipóteses são de natureza metacognitiva e pressupõem o controle consciente sobre o próprio conhecimento. A continuidade temática contribui para o estabelecimento de relações do texto e se constitui em uma característica importante para o leitor proficiente. Por meio desse processo inconsciente/automático, o leitor interpreta as marcas formais do texto, explorando a macro e a microestrutura textuais. Quando, no processo de ensino-
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aprendizagem, as ligações de nível temático ou as articulações não são explicitadas, o texto torna-se mais exigente para o leitor que precisará desautomatizar suas estratégias cognitivas e trazê-las para o nível consciente, reformulando objetivos ou monitorando o processo de compreensão (KLEIMAN, 1989). A compreensão, inicialmente, ocorre durante a realização da tarefa, na interação com o professor ou com os pares, por meio de atividades que criam condições para o leitor em formação retomar o texto e, na retomada, compreendê-lo. Essas práticas interativas são de suma relevância para fazer das partes do texto um todo significativo, ou seja, são fundamentais à formação de leitores. Por meio de atividades cada vez mais complexas e independentes que cumulativamente contribuem para um objetivo pedagógico significativo para professor e aluno, as crianças e jovens vão se tornando leitores, ou seja, vão, gradativamente, construindo seu próprio saber sobre texto e leitura. É importante enfatizar, ainda, a importância de se explorar a postura crítica do leitor frente ao texto, pois a leitura de qualquer texto, por mais neutro que pareça, está inserido num contexto social que determina as maneiras de escrever e ler. O processo ensino-aprendizagem da leitura, nessa dinâmica, é contínuo e percorre o estudo dos gêneros textuais, das práticas linguístico-discursivas, das variantes linguísticas e das formas de pensar e agir no e sobre o mundo. Cabe ao professor favorecer, fomentar e desenvolver a compreensão, análise e criticidade dos diversos textos que circulam na sociedade. Explorar nas práticas leitoras de sala de aula ou fora dela os diversos gêneros tem como correlato a própria organização da sociedade, o que nos faz pensar no ensino socioistórico dos gêneros como uma das maneiras de entender o próprio funcionamento social da língua que possibilita, além da ampliação do conhecimento de mundo, o diálogo entre as experiências, explorando as infinitas formas de conhecer e interpretar o mundo. Mediar esse diálogo é uma questão crucial para o desenvolvimento da leitura, pois o aprimoramento da capacidade de ler redunda em todo processo e interfere em todas as áreas do conhecimento. A dosagem e as exigências, no entanto, deverão ser
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planejadas, considerando que a formação do leitor é um processo de amadurecimento. Quanto antes começar, mais sentido fará na vida do leitor-produtor de textos. No ensino da leitura dos anos iniciais da Educação Básica, o professor exerce o papel de mediador entre o aluno e o autor que pode fornecer modelos para a atividade global, assim como estratégias de leitura como problematizações, a comparação (o fato e a opinião), o estabelecimento de relações, a identificação da ideia central etc. Para Kleiman (1989), o papel do professor é criar oportunidades que permitam o desenvolvimento de habilidades leitoras que preparem as crianças para lidar com as diversas situações que a cultura letrada apresenta. Isso exige organização do trabalho pedagógico, de modo a planejar, sequenciar e desenvolver práticas leitoras significativas para os estudantes. Para que isso ocorra, no entanto, o professor precisa considerar a complexidade do processo de leitura e das interações proporcionadas. Kleiman (2008) argumenta que o desenvolvimento de estratégias cognitivas e metacognitivas de leitura e de habilidades linguísticas contribuem para a flexibilidade do leitor e para sua proficiência. A proposta da autora baseia-se em atividades fundamentadas na convergência na leitura, até que o aluno possa desenvolver habilidades que sustentem as estratégias necessárias a uma leitura pessoal, individual, singular. Para tanto, a orientação para a análise do contexto de produção do texto, os possíveis interlocutores, as intencionalidades que subjazem ao texto, tornando o processo de leitura uma conscientização sobre os efeitos de sentido produzidos sobre os usos da linguagem são fundamentais ao processo de ensino-aprendizagem da leitura. É preciso que o professor conheça as dificuldades reais, naturais, e quais são as dificuldades artificiais provocadas, por exemplo, pela baixa qualidade dos livros didáticos. As implicações pedagógicas das práticas leitoras precisam se constituir em espaços interativos, com textos autênticos que possuam função comunicativa, com foco no todo significativo do texto, em um movimento de desconstrução e reconstrução de sentidos. Ao se fazer a opção por apresentar a leitura na escola sem simplificações, tal como acontece nas práticas sociais e com a diversidade de propósitos, de textos e de combinações, deve-se pensar em uma rotina de trabalho que exige conhecimentos para prever, sequenciar e pôr em prática ações necessárias em determinado tempo.
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Nesse trabalho pedagógico, várias modalidades de leitura podem ser utilizadas, em diferentes situações, diante de um mesmo gênero, por exemplo, é possível ler um material informativo-científico para obter uma informação global, para buscar um dado específico ou para aprofundar determinado aspecto do tema; a leitura de uma notícia de jornal pode ser feita em um momento simplesmente por prazer e em outro como objeto de reflexão; um poema ou um conto podem ser lidos primeiro por prazer e depois como forma de comunicar algo a alguém; enfim há muitas possibilidades de abordagem dos textos. Quando o objetivo é permitir a convivência sistemática e intensa com determinado gênero de texto, proporcionando aos alunos oportunidades de experimentar diferentes modos de ler e desenvolver estratégias diversificadas de leitura, é necessário planejar atividades que se repitam de modo regular. A prática de uma leitura autônoma requer o planejamento de situações didáticas em que os alunos possam ler diversos gêneros, com diferentes intenções e funções, e exercitar as habilidades específicas para a leitura compreensiva de textos reais. Quando o objetivo é uma leitura mais detalhada e cuidadosa, em que a releitura é condição necessária, pois o que se pretende é recuperar as marcas de construção do texto, procede-se à leitura vertical. Esse tipo de leitura requer a mediação do professor, em atividades organizadas na forma de sequências didáticas ou projetos, dependendo do aprofundamento que ele queira dar ao estudo do tema, por meio do conjunto de textos de um mesmo autor ou de textos de um mesmo gênero. Tais atividades têm de ser planejadas de modo intencional e distribuídas no tempo, constituindo-se em rotinas de trabalho. As aulas de Língua Portuguesa devem criar condições para que os alunos realizem o percurso que consiste em explorar os gêneros textuais em toda sua energética e construir sentidos, como fazem os leitores hábeis. A leitura é uma forma de interlocução entre o leitor e o autor mediada pela materialidade textual. Ao ler um texto de Machado de Assis, podemos manter uma relação dialógica com esse autor, compartilhando suas ideias e visão de mundo. Assim, o processo de ensino-aprendizagem da leitura torna-se um exercício político por natureza, que se constitui em um conjunto de práticas e métodos utilizados
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com o intuito de mobilizar os estudantes para a construção do conhecimento, para a promoção da autonomia, da identidade e do senso crítico. É um percurso orientado, alicerçado em intencionalidades e critérios definidos; um processo por meio do qual se produzem dinâmicas que auxiliam o aluno a conferir significados aos acontecimentos e às experiências com que, cotidianamente, se depara, assim como a assumir-se como sujeito na (re)construção dos próprios saberes (PACHECO; MORGADO, 2003). Metodologias de ensino de textos literários Uma indagação que surge ao pensar na educação literária, em sua prática pedagógica, relacionando leitura e escola: é possível a escola ensinar a ler, ensinar a ler literatura? (LEAL, 1999). Compartilhando com a pesquisadora Leal, pode-se afirmar que “é possível ensinar a ler na escola, quando ambos, professor e aluno, se movimentam no debruçar sobre os textos a partir de um processo de interação” (1999, p. 267). Primeiramente, é preciso levar em consideração o sujeito leitor, o aluno-sujeito cognitivo, que detém um saber, um conhecimento, uma experiência que devem ser respeitados. Além disso, esse sujeito possui valores construídos no contexto sociocultural e ele é capaz de refletir, relacionando o conhecimento adquirido e os valores que possui. Ao ter clareza da natureza cognitiva do aluno, outra questão importante é ter noção de que esse sujeito leitor necessita ser orientado de alguma forma em sua leitura. O professor precisa assumir uma postura metodológica no processo de se ensinar a ler o texto literário, sendo mediador da leitura, buscando estratégias que possibilitem o aluno a ler – atribuindo sentido ao texto, preenchendo os vazios, relacionando a leitura do texto com outras leituras e suas experiências de vida, enfim, favorecendo as aprendizagens. Um método que tem alcançado resultado significativos para o Ensino de Literatura é o Método Recepcional, organizado por Bordini e Aguiar, a partir dos pressupostos teóricos da Teoria da Recepção, de Hans Robert Jauss. Esse método, ao ter foco no leitor, parte das preferências desses sujeitos, e o trabalho com o texto literário
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deve orientar-se, de maneira dinâmica, do simples para o complexo, do próximo para o distante no tempo e no espaço para ampliar o horizonte de expectativa do leitor. Isto significa optar, primeiramente, por textos conhecidos de autores atuais, familiares pela temática apresentada, pelos personagens delineados, pelos problemas levantados, pelas soluções propostas, pela forma como se estruturam, pela linguagem de que se valem. A seguir, gradativamente, vão-se propondo novas obras, menos conhecidas, de autores contemporâneos e/ ou do passado, que introduzam inovações em alguns dos aspectos citados. Estes procedimentos, inusitados para o leitor, rompem sua acomodação e exigem uma postura de aceitação ou descrédito, fundada na reflexão crítica, o que promove a expansão de suas vivências culturais e existenciais. (AGUIAR; BORDINI, 1993, p. 25).
O Método Recepcional segue cinco etapas. A primeira, “Determinação do horizonte de expectativas”, é o momento em que o professor irá verificar quais sãos os interesses de seus alunos a fim de prever estratégias de ruptura e transformação do mesmo. Assim, primeiramente, verifica-se o horizonte de expectativa do leitor, determina-o para trabalhar com textos próximos de sua realidade em termos de temas e complexidade textual. Em seguida, a segunda etapa, “Atendimento do horizonte de expectativas”, é o momento em que se atende o horizonte do aluno, propiciando textos do gosto da clientela para depois romper, trazendo textos mais complexos e distantes de sua realidade, ou seja, é proporcionada à classe experiências com textos literários que satisfaçam suas necessidades quanto ao objeto escolhido e às estratégias de ensino. A etapa seguinte é o da “Ruptura do horizonte de expectativas”. Nesse momento são introduzidos textos e atividades de leitura que abalem as certezas e costumes dos alunos, seja em termos de literatura ou de vivência cultural. A quarta etapa é o momento do “Questionamento do horizonte de expectativas”, em que irá comparar os textos trabalhados anteriormente quanto ao tema, construção composicional, estilo, enfim, o arranjo linguístico-expressivo. Além disso, verifica-se que conhecimentos escolares ou vivências pessoais, em qualquer nível, proporcionaram a eles facilidade de entendimento do texto e/ou abriram-lhes caminhos para atacar os problemas encontrados. Possibilita o professor comparar os gêneros textuais trabalhados anteriormente e verificar as características de cada gênero e como o autor construiu o
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tema em cada texto, enfim, quais foram os recursos literários empregados para levar o leitor à reflexão das questões humanas tratadas no texto, por exemplo. Por fim, a quinta etapa, é o momento da “Ampliação do horizonte de expectativas”, em que proporcionará ao aluno textos que irá ampliar a sua visão de mundo quanto ao tema tratado e quanto à complexidade textual. Na etapa da ampliação, pode-se elencar uma obra literária para ser trabalhada. Nesse momento, espera-se que os alunos tomem consciência das alterações e aquisições obtidas através da experiência com a literatura e que busquem novos textos que atendam as suas expectativas ampliadas no tocante a temas e composição mais complexos. Ao finalizar as cinco etapas, reinicia-se todo processo do método, contando já com alunos motivados a participar. Portanto, “o final desta etapa é o início de uma nova aplicação do método, que evolui em espiral, sempre permitindo aos alunos uma postura mais consciente com relação à literatura e à vida” (AGUIAR; BORDINI, 1993, p. 91). Outro aspecto interessante do Método Recepcional é que possibilita não só trabalhar com textos literários, mas também com outros gêneros discursivos mais próximos do aluno. É possível no atendimento do horizonte de expectativa propiciar a leitura de textos jornalísticos, ou da esfera publicitária, ou do gênero canção, mais próximos dos alunos, para depois ampliar com o trabalho com textos literários mais complexos. Além disso, no processo de leitura, a discussão, o debate estará presente, questionando os temas tratados no texto, concordando, discordando, ampliando ou atualizando-os. Assim, como registro de suas opiniões, pode-se solicitar produções de diversos gêneros textuais. Desta forma, verifica-se que o Método Recepcional alia o trabalho com literatura e língua portuguesa. Além do Método Recepcional, há outras metodologias que atendem ao desenvolvimento da prática de leitura de forma mais sistematizada. Cosson (2006), por exemplo, sugere o ensino de literatura por meio do letramento literário, sistematizando o ensino por meio da sequência básica e da sequência expandida. Cereja (2005) indica o trabalho de leitura do texto literário pelo viés historiográfico, partindo do que está mais próximo do aluno, dialogando com textos mais distantes sobre o mesmo tema. Em sua Proposta dialógica, a base da metodologia concebe as relações dialógicas entre os textos
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literários, seja considerando temas, gêneros diferenciados ou projetos estéticos. O autor defende a ideia de que o uso da historiografia não é o único recurso responsável pelo fracasso do ensino da literatura no Ensino Médio. Propõe o enriquecimento dessa prática com uma metodologia que une a sincronia e a diacronia na análise do texto. Além dessas propostas metodológicas de Ensino de Literatura, há também a Perspectiva Rizomática idealizada por Gallo (2003), a partir da ideia de Rizoma, de Deleuze e Guattari, que sugere o trabalho do texto literário por meio da interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. A Perspectiva Rizomática explora o diálogo que estabelece concomitantemente com outras áreas do conhecimento e configura a perspectiva de uma leitura transdisciplinar, não apenas do texto em si, mas em conjunto com os textos apresentados anteriormente, com os assuntos enfocados em outras disciplinas, enfim, em consonância com o cotidiano do aluno e sua visão de mundo. Portanto, estudos e pesquisas têm demonstrado que há várias metodologias para se formar leitores competentes. Os PCNs e as DCEP de Língua Portuguesa sugerem a concepção interacionista e o trabalho com os gêneros discursivos para formar leitores competentes. Além de algumas das metodologias apresentadas neste artigo, essa é uma proposta de prática metodológica, fundamentada nos pressupostos teóricos sugeridos, que visam reverter os baixos resultados em relação à leitura. Finalizando a conversa... Ao considerarmos o sujeito inserido em formações discursivas que são determinadas sócio-historicamente, entendemos que sujeito e sentido se constituem reciprocamente. Assim, para compreender, acionamos outros discursos, buscamos outras vozes, contamos com outros textos, mobilizamos diferentes posições ideológicas, conhecemos diferentes gêneros textuais. O texto é ponto de partida e ponto de chegada ao processo de aprendizagem da leitura. Ao lermos, ativamos todo o nosso repertório cultural, nosso sistema de valores, crenças e atitudes. Essa dinâmica interacional implica conhecimentos prévios que são fundamentais à constituição dos sentidos do texto. Para a leitura do texto literário, enfatiza-se o Método Recepcional, organizado por Bordini e Aguiar, a partir dos
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pressupostos teóricos da Teoria da Recepção, de Jauss. O trabalho com o texto literário deve orientar-se, de maneira dinâmica, do simples para o complexo, do próximo para o distante no tempo e no espaço para ampliar o horizonte de expectativa do leitor. Percebe-se, portanto, que o ensino da leitura é fundamental para potencializar o processo ensino-aprendizagem, visto que, ao fracasso na formação de leitores, podemos atribuir o fracasso geral do aluno na educação básica. Para reverter as lacunas identificadas nos exames externos a que os alunos são submetidos, faz-se necessário investir em práticas de ensino-aprendizagem de leitura que priorizem a produção de sentido e o funcionamento do texto e do discurso. Faz-se necessário também investimento na formação contínua dos professores para que eles também se tornem leitores competentes, pois o desenvolvimento cognitivo do mediador interfere no desenvolvimento do mediado. O processo de formação continuada de professores fundamenta-se na autonomia docente como alicerce para uma prática de ensino crítica e ética, construída por meio da interação entre professores com seu contexto real e com responsabilidade política para promoção da emancipação dos sujeitos na construção de um projeto concreto de sociedade (GIROUX, 1997). Referências AGUIAR, Vera Teixeira; BORDINI, Maria da Glória. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. ANTUNES, Irandé. Aula de Português: encontro e interação. 4. ed. São Paulo: Parábola, 2006. BAKHTIN, Mikhail (Volochinov) Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa (1º e 2º ciclos do ensino fundamental). v. 1. Brasília: MEC, 1997. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. (3º e 4º ciclos do ensino fundamental). Brasília: MEC, 1998.
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A VARIAÇÃO SOCIAL EM LIVROS DIDÁTICOS
Aline Alvares (G-UEL) Orientadora: Drª Joyce Elaine de Almeida Baronas
Resumo: Os estudos voltados à variação linguística valorizam as diferenças que uma mesma língua apresenta quando utilizada, de acordo com determinadas condições sociais, culturais, regionais e históricas, contribuindo para a manutenção de uma pluralidade linguística. Dessa forma, é indiscutível a importância de que o professor de língua portuguesa aborde as variantes linguísticas para que os alunos consigam perceber que a variação que ele utiliza também faz parte da língua. Baseando-nos pressupostos da Sociolinguística, buscamos desenvolver uma pesquisa que tem como enfoque a variação social, em livros didáticos dos anos iniciais do ensino fundamental, utilizados pela rede pública priorizando 6 e 7° ano do ensino fundamental. Nesse intuito foram analisados dois livros do 6° ano e dois do 7° ano das coleções Diálogo: Edição Renovada e Trajetórias da Palavra. Pretendemos verificar se há abordagem sociolinguística nesses livros e, em caso positivo, como é apresentada nos manuais analisados. Tal pesquisa busca contribuir para a divulgação das pesquisas sociolinguísticas desenvolvidas no ambiente acadêmico no meio escolar. Palavras- chave: Variação social, Variação e ensino. Livros didáticos. Introdução O ensino da língua portuguesa vem se alterando, isso significa que com essas novas mudanças se abrem novas formas de ensino para as escolas. Entre essas novas práticas de ensino está a sociolinguística, que ainda é pouco abordada em livros didáticos. Segundo Camacho (1988) “A variação social é o resultado da tendência para
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maior semelhança entre os atos verbais dos membros de um mesmo setor sociocultural da comunidade”. (CAMACHO, 1988, p.32) Ao tratar do meio social, podemos identificar vários fatores que podemos identificar e distinguir entre duas pessoas de uma mesma língua. Além do nível sócio econômico, outros fatores de diversidade linguística social segundo Camacho (1988) que são o grau de educação, a idade e o sexo do indivíduo, isolados ou conjugados. (CAMACHO, 1988, p.32). O termo variação linguística nos remete à adequação da forma às diferentes situações que os falantes fazem uso. No entanto, muitas vezes a variação linguística não é um assunto discutido nas escolas, pois o material utilizado por alguns professores não a abordam ou os professores muitas vezes não possuem formação suficiente para saber lidar com o assunto. O presente trabalho procura observar se os livros didáticos possuem suporte para que os professores possam se amparar nesse material, para isso foram selecionados livros dos anos iniciais do ensino fundamental, utilizados pela rede pública priorizando 6 e 7° ano do ensino fundamental. Os livros selecionados são de duas coleções dois sendo da mesma série, no caso sexto ano, os outros dois são do sétimo ano, e as suas respectivas coleções são “Diálogo: Edição Renovada e Trajetórias da Palavra”. Análises Os livros didáticos são aprovados pelo Plano Nacional do Livro Didático PNLD e foram utilizados no ano letivo de 2012 por uma escola pública do ensino fundamental da cidade de Londrina/PR. As coleções foram selecionadas a partir do projeto “Variação Linguística na escola: Propostas didáticas”. A abordagem principal acontece através das análises do que constatamos nos livros didáticos, tendo como enfoque à variação social. Trajetórias da Palavra - 6° ANO : O livro aborda em sua primeira unidade o tema Autobiografia, em uma das atividades tendo como título “O uso da Língua” a seguir a linguagem formal X linguagem informal aparece na página 20, através de um trecho de um texto “O Chuveiro”, depois de alguns exercícios a abordagem ocorre em outro texto que foi extraído de uma entrevista, após esse texto as questões possibilitam além de trabalhar com a variação estilística a variação social, já que sugere a produção
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de um pequeno dicionário de gírias. No decorrer do livro, a abordagem de variação linguística vai aparecer através da variação regional a partir da página 52, segue com a produção de texto escrito - I. Dicionário e verbetes pg. 55, Tais como: Acabá de acabá, garrolê, jogá conféti, nem que a vaca tussa, vacuncarma. A sugestão da atividade é fazer em um grupo um “dicionário do dialeto” de sua cidade ou região. Buscando enfatizar as diferenças entre norma culta e as variações linguísticas. A última abordagem desenvolvida no ocorre na página 57 e 58 e tendo como destaque a variação estilística. Trajetórias da Palavra - 7° ANO: No livro “Trajetórias das palavras 7° ano”, a variação linguística não aparece tanto como na série anterior, “Uso da língua” Hipérbole/metáfora página 203, Letra de Adoniran Barbosa – “O tiro do Álvaro” exercício referente à letra da música, como você escreveria essa fala em linguagem coloquial é a única coisa que aparece em relação à variação linguística, no entanto o professor de língua portuguesa, fundamentado em seus conhecimentos prévios, pode introduzir a variação social ou a variação estilística, já que a letra da música oferece subsídios para o professor desenvolver um bom trabalho. A partir da letra de Adoniran Barbosa - “As Mariposas” página 205, segue uma atividade a respeito de variação regional. Diálogo – Edição Renovada: Língua Portuguesa - 6°ANO: No “livro Diálogo – Edição Renovada: Língua Portuguesa”, a variação linguística aparece no primeiro capítulo página 27 através de uma introdução a respeito de linguagem em que aparece um pouco de
cada variação, logo após o livro segue com situações de
comunicações um bilhete, um apresentador de TV jovem e um apresentador do jornal. O destaque dessa atividade acontece entre a variação social e a variação estilística. A partir do capítulo 3 na página 122 o foco se direciona a variação social, pois direciona ao grau de escolaridade e o grau socioeconômico, inclusive evidenciado em um Box ao lado das atividades de gramática, no caso cabe ao professor inserir o conteúdo da variação linguística já que o livro apresenta suporte. Diálogo – Edição Renovada: Língua Portuguesa - 7° ANO: No primeiro capítulo a partir da página 14 o quadro traz uma explicação a respeito de estilo formal e estilo coloquial, priorizando a variação estilística. No mesmo capítulo a produção de texto sugere que se faça uma carta pessoal, nessa atividade é sugerido ao professor uma retomada a respeito da linguagem. No capítulo 5 uma atividade solta se refere a variação estilística e regional, pois traz um
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trecho do dicionário baianês e uma conversa entre o filho adolescente e o pai. Ainda nesse mesmo capítulo a produção do texto sugere que se faça um seminário “Adolescente de ontem X adolescente de hoje, o professor pode auxiliar os alunos a desenvolverem uma pesquisa focando na variação social e histórica. Considerações finais Como podemos constatar em cada coleção a abordagem sociolinguística não é a mesma, isso significa que os professores devem tomar o devido cuidado ao escolher os livros que serão utilizados em suas aulas. Além disso, muito pouco se encontra a respeito da temática, portanto cabe ao professor aproveitar as brechas que alguns livros trazem. A variação social não aparece com tanta frequência, e o que se percebe é que muitas vezes na construção dos livros o enfoque se da principalmente através da variação estilística com enfoque no informal e formal. Referências BELTRÃO, ELIANA SANTOS/ GORDILHO, TEREZA. Diálogo: Edição Renovada Língua Portuguesa - 1ª edição: 6º ano. São Paulo, Editora FTD, 2009. BELTRÃO, ELIANA SANTOS/ GORDILHO, TEREZA. Diálogo: Edição Renovada Língua Portuguesa - 1ª edição: 7º ano. São Paulo, Editora FTD, 2009. CAMACHO, R. G. Variação lingüística. In: SÃO PAULO (Estado) Secretaria da Educação, Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Subsídios à proposta curricular de língua portuguesa para o 1º e 2º graus; coletânea de textos. São Paulo: SE/CENP, 1988. v.I. DIAFÉRIA,CELINA/ PINTO, MAYRA. Trajetórias da Palavra: 6º ano – 1ª edição. São Paulo, Editora Scipione, 2010. DIAFÉRIA,CELINA/ PINTO, MAYRA. Trajetórias da Palavra: 7º ano – 1ª edição edição. São Paulo, Editora Scipione, 2010.
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O E-MAIL PARA ENSINAR LÍNGUA PORTUGUESA: UMA PROPOSTA Aline de Abreu Curunzi Chanan (UEL) Ednéia Aparecida Bernardineli Bernini (UEL) Chamada de “Era da Cibercultura” por Lévy (1999) a sociedade que vivemos atualmente estrutura boa parte da sua comunicação mediada por tecnologia o que traz à tona diversas questões sobre o emprego da linguagem neste suporte. Para Castells (2000) os conceitos de tempo e o espaço transformaram-se em sinônimo de simultaneidade e universo de informações navegáveis de forma instantânea e reversível pelas engrenagens midiáticas. Pensando em ensino e aprendizagem de língua portuguesa, podemos começar pelos aparatos como celulares, tablets, telas de computadores e televisores que fazem da leitura e da escrita, muito mais eficazes, no que diz respeito à necessidade de expressão em tempo muito reduzido em ambientes síncronos ou assíncronos e com a possibilidade de mais de um interlocutor; a presença da fala em textos compulsoriamente escritos (HILGERT, 2000); as multisemioses dos sinais gráficos, “emoticons”, que criam e mantêm a interação entre os participantes. Este espaço digital de escrita traz consigo transformações nas relações entre escritor, texto, leitor, na vida em sociedade, na aquisição do conhecimento: A hipótese é de que essas mudanças tenham consequências sociais, cognitivas e discursivas, e estejam, assim, configurando um letramento digital, isto é, certo estado ou condição que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital e exercem práticas de leitura e de escrita na tela, diferente do estado ou condição –do letramento – dos que exercem práticas de leitura e de escrita no papel. (SOARES, 2002, p. 146)
Pela crescente presença dessa tecnologia no dia a dia dos adolescentes e da sociedade em geral, é preciso, como adverte Freire (1996), que estabeleçamos uma postura criticamente curiosa sobre essas, até porque, como alerta Ramal (2002), “os suportes digitais, as redes, os hipertextos são, a partir de agora, as tecnologias intelectuais que a humanidade passará a utilizar para aprender, gerar informação, ler, interpretar a realidade e transformá-la”. (p. 14).
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Com isso, a escola e os professores têm desafios enormes pela frente, de se adequarem a este processo e incluírem práticas de leitura e escrita digitais e impressas a fim de proporcionarem o domínio das competências nestes suportes: Faz-se necessário, então, que eles, além do necessário conhecimento dessas tecnologias, utilizem tais ferramentas não só como apoio metodológico, mas também como uma forma de desenvolver no educando uma postura crítica diante do ato de ler e escrever. Dessa forma, no que concerne ao ensino da língua materna, mais especificamente no ensino da leitura e da escrita, a internet pode ser uma grande aliada para resgatar nos alunos motivações e estímulos perdidos, pois, além de oferecer muitas possibilidades para um enriquecimento informacional, possibilita o resgate de um destinatário real para as produções escolares, o que pode repercutir em um interesse maior no ensino da língua materna. (MAGNOBOSCO, 2009)
O professor é o profissional responsável por integrar ferramentas que estimulem a interação e troca de conhecimento entre os alunos e desenvolvedor de estratégias metodológicas que façam do aluno-utilizador um crítico dos meios tecnológicos a favor do seu processo de aprender. Para Ramal (2002), a modificação na postura do professor contribuirá para a reformulação do próprio conceito de educar. Para ela, o educar, na cibercultura, envolverá critérios como: consistência, motivação, capacidade de articular conhecimentos, de se comunicar e de estabelecer relações, contribuindo, então, à preparação do cidadão desta era: um ser consciente e crítico, apto a aprender sempre, que dialogue com as diferentes culturas e os diversos saberes, sabendo, ainda, trabalhar de forma cooperativa, sendo flexível, empreendedor e criativo. Ele será responsável em desenvolver, primeiramente em si próprio, não só de conhecimentos técnicos sobre informática, como também e, principalmente, de conhecimentos que o auxiliem na pesquisa e no julgamento do material online, na aquisição de uma postura crítica que favoreça sua inserção na nova realidade virtual para que possa auxiliar seus alunos essas mesmas competências ao utilizar as ferramentas. Também estará imerso nesse ambiente, podendo mostrar alternativas e ensinar condutas que favoreçam um uso consciente e crítico dessas tecnologias. Soares (2002), sobre o termo letramento nas práticas sociais de leitura e de escrita, menciona que esse pode ser definido “como estado ou condição de indivíduos
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ou de grupos sociais de sociedades letradas que desempenham, efetivamente, as práticas de leitura e de escrita, e participam de forma competente dos eventos de letramento”. (p. 144). Pensando, ainda, na inserção das novas tecnologias na vida humana e nas práticas de leitura e de escrita, a autora defende que o letramento na cibercultura conduza um estado, ou condição, diferente daquele conduzido pelas práticas de leitura e de escrita quirográficas e tipográficas, o letramento na cultura. Parece-nos então que, os gêneros digitais fazem-se instrumentos de grande valia no processo de ensino e aprendizagem de línguas, isso porque é local de livre circulação de comunicação da língua escrita, efetivamente empregada em situações reais de necessidade de uso. Além disso, Bakhtin (1997) postula que, através do estudo desses enunciados, um contato com as condições específicas e as finalidades de cada campo não só pelo seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem (seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua), mas, por sua construção composicional, mostrando-se importante aliado para o desenvolvimento da competência discursiva dos alunos, para dinamizar as aulas de produção textual. Escrita digital: gênero e-mail para carta de solicitação O processo de ensinar e aprender Língua Portuguesa na década de 70 foi alterado pela concepção de linguagem que a via como instrumento de comunicação envolvendo os interlocutores e a mensagem que precisava ser compreendida. Para tanto, todos os gêneros passaram a ser vistos como importantes instrumentos de transmissão de mensagens e a escola responsável por desenvolver no aluno habilidades no uso destes gêneros. Nesta discussão, faz-se necessário definir algumas nomenclaturas: Gênero: Os gêneros textuais são as estruturas com que se compõem os textos, sejam eles orais ou escritos. Essas estruturas são socialmente reconhecidas, pois se mantêm sempre muito parecidas, com características mais comuns, procuram atingir intenções comunicativas semelhantes e ocorrem em situações específicas. Subgênero: são ramificações de um gênero maior que seguem basicamente as mesmas estruturas do tipo textual em questão, porém se diferem em algumas características. Por exemplo: o gênero que trabalhamos neste projeto foi a carta.
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Entendemos que, a carta de solicitação é um exemplo de carta, porém com características próprias, como o motivo, o pedido. Portanto a consideramos um subgênero do gênero carta. Gênero digital: é o gênero surgido na cibercultura, na comunicação na era digital. Para Marcuschi: Muitos desses gêneros digitais são evoluções de outros já existentes nos suportes impressos (papel), ou em vídeos (ex.: vídeos, fotografias). Porém essa tecnologia comunicativa verdadeiramente gerou novos gêneros, como por exemplo: os chats e os fóruns. (2002, p.13)
Suporte para gênero: De acordo com Marcuschi (2003, p.8), o suporte é um “lócus físico ou virtual com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação do gênero materializado como texto”. O correio eletrônico, conhecido como e-mail (eletronic mail) é hoje uns dos gêneros eletrônicos mais praticados na escrita, tanto na vida pessoal quanto profissional das pessoas. Apesar de ser assíncrono, o gênero tem a característica de ser instantâneo e proporciona rapidez de comunicação ao usuário. A comunicação feita pela escrita tende ser menos formal (no caso de e-mails familiares e amigos, obviamente que, ao se tratar de assuntos profissionais, o vocabulário tende a apresentar certo formalismo) e também tem um caráter interindividual, pois quando se trata de email: podemos mandar o mesmo texto para várias pessoas, receber um e-mail enviado a um grupo e ainda responder a todos, simultaneamente. A carta de solicitação é utilizada quando se necessita reclamar às autoridades de algum problema, ou solicitar providências para a solução de um problema, ou, ainda, ao mesmo tempo reclamar de algo e solicitar soluções. De acordo com o teor da carta, ela será carta argumentativa de solicitação, ou de reclamação, ou de reclamação e solicitação. Também, há cartas de solicitação entre as cartas comerciais, que neste caso deverá possuir: timbre da empresa, iniciais do departamento, número da carta, local e data, destinatário, referência, assunto, saudação, corpo do texto, despedida e assinatura. O objetivo desse tipo de carta, como o próprio nome já diz, é fazer um pedido (solicitar algo) ao destinatário.
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Por serem cartas, elas apresentam características próprias do gênero: local, data, vocativo, corpo do texto, expressão cordial de despedida e assinatura. No corpo do texto, é apresentado o problema e, em seguida, são expostos os argumentos e /ou sugestões. Os argumentos podem apresentar explicações, comparações, exemplificações, citações, desde que fundamentem a reclamação ou solicitação. A linguagem do texto deve ser clara e objetiva e estar de acordo com o padrão culto formal, em virtude da formalidade da situação – normalmente o interlocutor é uma autoridade. O remetente geralmente se coloca de modo direto no texto, fazendo uso da 1ª pessoa. As formas verbais comumente ficam no presente do indicativo. Pensando em classificação, as cartas de solicitação podem ser consideradas um subgênero de cartas, porque tendo em comum com a carta a estrutura básica, como por exemplo o seu núcleo, a intenção de cada carta é variada de acordo com os seus objetivos propostos. (MACHADO;BEZERRA, 2005) Reconhecendo a importância de trabalharmos os mais diversos tipos de gêneros no âmbito escolar, inclusive o digital, lançamos uma proposta de ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa para o ensino fundamental. A produção do gênero carta de solicitação adaptado para o e-mail A sequência didática (SD) que se segue tem como público-alvo as séries finais do ensino fundamental. Para este artigo aplicamos as fases de apresentação e a primeira produção em uma escola pública de Marialva no Paraná. Os alunos do nono ano que produziram os textos que serviram de dados para este estudo são turmas as quais lecionamos. O material foi produzido durante as aulas de Português e enviado pelo laboratório de informática da escola. Apresentando a situação A sequência foi planejada para ser desenvolvida entre 5 e 10 horas aula. O trabalho foi iniciado com o diagnóstico dos conhecimentos prévios que os alunos tinham acerca do gênero e-mail e o subgênero carta e solicitação, bem como as situações sociais em que estes textos são produzidos, com que finalidade, quem são os
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leitores e em que suporte este gênero é encontrado. A etapa seguinte foi apresentar ao aluno gêneros textuais diversos para que reconhecesse entre os textos o gênero resenha crítica. O próximo passo foi apresentar a situação de produção, o plano de estudo do gênero e o objetivo da proposta de cada um dos módulos. I. Estrutura curricular A modalidade privilegiada é o ensino fundamental final e como componente curricular a Língua Portuguesa. Temos como tema: Linguagem oral e escrita, processos de interlocução. II. Objetivos Possibilitar que os alunos compreendam a estrutura composicional do gênero carta, bem como, permitir a descoberta de outras diferentes formas de solicitações ocorrentes nas diversas situações sociais, fazendo as distinções entre local de circulação, emissor e destinatário de acordo com a forma de solicitação. Reconhecer o e-mail com meio de comunicação, através do computador, ligado à Internet. III. Duração das atividades A duração está entre 5 a 6 horas/aulas IV. Conhecimentos prévios trabalhados pelo professor com o aluno A produção inicial teve por objetivo revelar o que o aluno já sabe acerca do gênero e permitiu ao professor avaliar e planejar as intervenções que deveriam ser feitas para que o aluno chegue ao final da sequência didática com o maior domínio possível do gênero estudado. A produção inicial e o monitoramento constante permitem ações do professor no sentido de desenvolver estudos de recuperação paralela quando necessário. O texto inicial dos alunos foi analisado e serviu de parâmetro para organizar as atividades dos módulos. Este texto foi arquivado para posteriormente passar pelo processo de refacção. a. Módulos de aprendizagem
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Primeira etapa: Faz-se necessário levar os alunos a um computador e orientá-los no seu uso quanto à: acesso à Internet, criar e-mail individual gratuito e exemplificar escrevendo um e-mail. Ainda se for preciso, esclarecer aos alunos que o e-mail possui uma estrutura parecida com a da carta: saudação e destinatário, assunto, despedida e assinatura (podendo variar dependendo do grau de formalidade e/ou de quem seja o destinatário). A linguagem é simplificada e varia, igualmente, conforme a situação estabelecida entre os interlocutores. Seus parágrafos costumam ser curtos para uma maior clareza na leitura. Após esgotarem-se todas as dúvidas, entregar aos alunos uma folha contendo dois ou três modelos de e-mails, como o comercial, uma carta de solicitação de leitor, um pedido para o prefeito. Ler os e-mails e esclarecer as demais dúvidas que surgirem. Comparar com os e-mails escritos na fase 1, apresentação do tema. É necessário que os alunos observem as diferenças básicas de cada e-mail-texto produzido, comparando a linguagem usada e as diferenças quanto ao conteúdo e à finalidade Só depois de que forem discutidas, compreendidas e apreendidas as questões referentes à funcionalidade desse gênero, os alunos farão a revisão (ões) e reescrita(s). A sugestão de atividades escritas não deve descartar o manuseio do computador, bem como o envio e recebimento de e-mails para que o aluno durante diversas aulas, tenha contato e se familiarize com esse gênero. Segunda etapa: Iniciar a aula conversando com seus alunos sobre suas experiências com cartas (em situação de produção ou de recepção). Em seguida, propor a leitura das cartas de solicitação. (Exemplos de cartas de solicitação em Barbosa, 2005, p.15) A partir da leitura da carta, perguntar-lhes: 1) O que são cartas e para que servem? 2) Vocês já escreveram/leram alguma carta e em que situação? 3) De que forma as cartas são usadas por nossa sociedade? 4) O que o autor pretende com a carta que acabamos de ler ?
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5) Existem outros tipos de carta ou apenas carta de amizade como a que acabamos de ler ? Quais são os outros tipos de cartas que vocês conhecem? A partir da breve análise da carta, pedir que os alunos observem a estrutura da carta (local e data, vocativo, assunto, despedida e assinatura). Destacar com os alunos que o gênero carta trata-se de uma das formas de interação por escrito presentes em nossa sociedade, como um tipo de comunicação que, na maioria das vezes, requer uma resposta do interlocutor leitor/destinatário. Explicar, então, aos alunos que existe um gênero de carta, cuja intenção comunicativa é a de pedir a alguém algo de que se necessita; perguntar se eles conhecem alguma carta com esse objetivo. Através dos depoimentos obtidos, conduzir a discussão de forma que eles percebam que o destinatário dessas cartas geralmente tem poder para atender à solicitação e se situa em posição hierarquicamente superior à daquele que faz a solicitação. Esclarecer, então, que esse tipo de carta se chama “carta de solicitação”. Em seguida, apresentar aos alunos o objetivo da aula: produção de cartas de solicitação destinadas ao Diretor (a) da escola. Trabalhar com as cartas escritas na fase de apresentação do gênero. Explicar aos alunos que as cartas inicialmente produzidas ainda não foram entregues à Direção da escola, porque precisam de ajustes que façam delas instrumentos mais adequados para atingirem seus objetivos. Informar-lhes que nas aulas seguintes serão trabalhadas atividades que os ajudarão a reeditar posteriormente suas cartas. Conversar com alunos sobre as solicitações apresentadas nas cartas, pedir para que eles as apontem oralmente a fim de que possam perceber a relevância da solicitação. Registrar as solicitações dos alunos no quadro e discuta sobre o benefício proporcionado caso as solicitações sejam atendidas. Propor uma pesquisa, como tarefa de casa, sobre as formas de solicitação por escrito que mais circulam em nossa sociedade, em diferentes instâncias comunicativas: na escola, em casa, no emprego, no comércio. Terceira etapa:
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Iniciar a aula buscando os resultados da pesquisa realizada pelos alunos. Em seguida, construir coletivamente um quadro expositivo de organização dos gêneros com o resultado das pesquisas dos alunos. O quadro abaixo deve servir apenas de referência para o professor, uma vez que é importante considerar as conclusões dos alunos. Formas de solicitação por escrito na sociedade Gênero
Quem escreve
Quem lê
Carta de solicitação
Aquele que deseja solicitar algo de maneira formal (aluno, cidadão, etc.).
Autoridade que possa atender Ambientes à solicitação (diretor, prefeito, públicos etc.)
Bilhete de solicitação
Aquele que deseja solicitar algo de maneira informal (parente, colega, etc.)
Pessoa que apresenta condições para atender à solicitação (parente, colega, etc.)
Carta de reclamação
Aquele que deseja reclamar Autoridade que possa receber Ambientes (morador de um prédio, a reclamação e atender ao públicos diversos estudante, etc.) pedido (síndico, diretor, etc.)
Carta de pedido Candidato à vaga na de emprego empresa/instituição
Autoridade competente na empresa/instituição
Onde circula
Ambientes familiares ou pouco formais
Empresas e instituições em geral
Abaixo assinado
Comunidade com um Autoridade competente para objetivo comum (moradores atender a solicitação (prefeito, de um bairro, alunos de uma diretor, etc.) escola, etc.)
Ambientes públicos diversos (bairro, escola, etc.)
Panfleto ou cartaz de solicitação
Pessoa ou instituição que tenha algo a pedir (instituição de caridade, pessoa carente, escola)
Ambientes públicos diversos (nas ruas, em escolas, etc.).
Mensagem: ePessoa ou instituição que mail, sms (short tenha algo a pedir (empresa, message cliente, colega, etc.) service)
Comunidade envolvida (pessoas nas ruas ou frequentadores de um determinado local)
Pessoa ou instituição que apresenta condições para Meios digitais atender à solicitação (celular, internet) (empresa, cliente, colega, etc.)
Após a construção do quadro, promover uma breve análise comparativa dos itens que o compuseram, com o objetivo de provocar nos alunos curiosidade e suscitar conclusões a respeito das características particulares de cada gênero, inclusive da carta de solicitação. Destacar as diferenças existentes entre as características de utilização do gênero chamando a atenção para a adequação à situação na qual é utilizado. a. Produção final
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Como produção final, propor a refacção dos textos elaborados na primeira fase da SD. Os alunos poderão utilizar-se da Internet, dicionários, livros para esta atividade. O objetivo é que o aluno, com a mediação do professor, perceba as características relativamente estáveis do gênero e de seu suporte e sua função social. Ainda, o professor pode abordar, além de outros elementos, o uso de adjetivos ou expressões de valor positivo ou negativo e de elementos coesivos que são elementos linguísticos comuns a este gênero. Em tempos de internet e novas tecnologias, a máxima Camoniana, “Navegar é preciso” alcança outros patamares. No meio digital, o meio de comunicação comumente utilizado é a linguagem escrita. Por este motivo vê-se a grande necessidade de a escola intervir, ou seja, de não se fechar ao mundo tecnológico no qual estamos inseridos. Corroboramos com Araújo; Costa (2007), da mesma maneira que a escola tem investido no reconhecimento de certas estruturas textuais de gêneros impressos 1 (como, por exemplo, a carta, o bilhete e o telegrama), “é importante que a escola também se abra à reflexão não só da composição textual dos gêneros digitais, mas também de seu funcionamento, fato que lhe permitirá avançar no estudo da língua como um lugar de interação humana”. (p. 32-33). Desta maneira, a renovação nos conteúdos, nas práticas didáticas e abordagens da sala de aula obrigatoriamente devam acontecer e perpassar pela mudança no papel e na atuação do professor “coordenador de roteiros seguros e eficientes para a construção do conhecimento do aluno-navegante”. (PINHEIRO, 2005, p. 146). Ao esquematizarmos uma SD com o e-mail e a carta de solicitação, nosso objetivo foi aplicar esta proposta de trabalho na tentativa de instrumentalizar os alunos para utilizar a linguagem de maneira significativa, para além do domínio desta prática discursiva, também proporcionar-lhes o desenvolvimento de capacidades de linguagem que podem ser transferidas para o ensino de outros gêneros textuais. Sabemos que, neste momento, faz-se necessário, no âmbito da escola, refletirmos e buscar alternativas para a transposição didática dos gêneros textuais, pois através destes, segundo Dolz, Schneuwly e Naverraz (2005, p.110), a escola deve 1
Acreditamos que estes gêneros tenham a sua importância, porém cairão em desuso em um futuro próximo e que se investisse em gêneros mais utilizados ultimamente.
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oferecer aos aprendizes instrumentos eficazes com o objetivo de preparar-lhes para dominar sua língua e utilizá-la em seu favor para nas situações reais da vida, apropriarem-se de novas capacidades de leitura e de escrita ou de melhorarem as já existentes. Os professores devem utilizar e aproveitar o fato de que, em muitas realidades deste país, seus alunos estão conectados várias horas por dia para conscientizá-los sobre o uso eficaz da linguagem, também em ambientes digitais. Enfim, ressaltamos que a internet e seus gêneros podem contribuir para uma aprendizagem efetiva, uma vez que, além de oferecer informações variadas, permite um trabalho real com a língua, trabalho esse realizado pelos gêneros digitais – grandes responsáveis pela comunicação discursiva – e local, podendo-se observar o caráter não só dialógico, mas também sociológico da linguagem. Referências ARAÚJO, J.C.R.; COSTA, N.. Momentos interativos de um chat aberto: a composição do gênero. In: ARAÚJO, J.C.R (Org.). Internet & ensino: novos gêneros, outros desafios. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BARBOSA, J. P.. Carta de solicitação e carta de reclamação. São Paulo, FTD, 2005. BEZERRA, M.A. Por que cartas do leitor na sala de aula? In: DIONÍSIO, A. P.; CASTELLS, M.. A sociedade em rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura. 3. ed. Trad. de Roneide Venâncio Majer. São Paulo: Paz e Terra, 2000. DOLZ, J.; SCHNEUWL Y, B.. O oral como texto: como construir um objeto de ensino. In: SCHNEUWL Y, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução de Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2004, p. 149185.
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FREIRE, P.. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 34. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. HILGERT, J. G.. A construção do texto “falado” por escrito: a conversação na internet. In: PRETI, Dino (Org.). Fala e escrita em questão. São Paulo: Humanitas: FFLCH/USP, 2000. MARCUSCHI, L. A.. Gêneros textuais, definição e funcionalidade. In: Gêneros textuais & ensino. DIONISIO A.P; MACHADO A.R. e BEZERRA M. A. (orgs.) 2 ed. Rio de Janeiro, Lucerna,2002. LÉVY, P.. Cibercultura. Trad. de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Editora 34, 1999. MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. Gêneros textuais e ensino. 3. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. MAGNOBOSCO, G.G. Hipertexto e gêneros digitais: modificações ao ler e escrever? Conjectura, Caxias do Sul, v. 14, n. 2, maio/ago. 2009 PINHEIRO, R. C.. Estratégias de leitura para a compreensão de hipertextos. In: ARAÚJO, Júlio César; BIASI-RODRIGUES, Bernadete (Org.). Interação na internet: novas formas de usar a linguagem. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. RAMAL, A. C.. Educação na cibercultura: hipertextualidade, leitura, escrita e aprendizagem. Porto Alegre: Artmed, 2002. SOARES, M.. Novas práticas de leitura e escrita: letramento digital. Educação e Sociedade, Campinas, v. 23, n. 81, p. 143-160, dez.2002. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em: 12 fev. 2014.
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UMA DISCUSSÃO TEÓRICA QUANTO AO CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO IDENTITÁRIA DO APRENDIZ DE LÍNGUA INGLESA EM INSTITUTOS DE IDIOMAS. Aline Yuri Kiminami (UEM) UMA DISCUSSÃO TEÓRICA QUANTO AO CONCEITO DE CONSTITUIÇÃO IDENTITÁRIA DO APRENDIZ DE LÍNGUA INGLESA. Aline Yuri Kiminami (PG-UEM) Introdução Para entendermos como se dá a construção da identidade do sujeito na análise do discurso (AD), é preciso saber primeiramente quem é esse sujeito nessa linha teórica. O sujeito é entendido como uma função; e como tal, pode exercer vários papéis sempre determinado pela formação ideológica que rege a formação discursiva onde ele (o sujeito) se encontra. É por isso que o que interessa para a Análise do Discurso não é apenas o que se fala ou quem fala, mas de onde (lugar ideológico) se fala: “Sendo histórico, o sujeito se constitui a partir das condições sócio-ideológicas que o transpassam por meio do discurso. Este funciona como canal e produtor do poder que por sua vez determina que saberes devem ser tomados como verdade” (GOMES, p. 27) Foucault acredita que o sujeito constrói-se a partir de uma historicidade e da memória: [...] trata-se dos enunciados que não são mais nem admitidos nem discutidos, que não definem mais, consequentemente, nem um corpo de verdades nem um domínio de validade, mas em relação aos quais se estabelecem laços de filiação, gênese, transformação, continuidade e descontinuidade histórica (FOUCAULT, 2008 p. 69)
Nesse sentido, Fischer (2002) diz que é possível afirmar que os sujeitos sociais não são a origem do discurso, mas são efeitos dos discursos, ou seja, são significados e construídos a partir do discurso. Quanto à identidade desse sujeito, ela não está pronta e tampouco é una, já que o sujeito é:
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fruto de múltiplas identificações – imaginárias e/ou simbólicas – com traços do outro que, como fios que se tecem e se entrecruzam para formar outros fios, vão se entrelaçando e construindo a rede complexa e híbrida do inconsciente e, portanto, da subjetividade. (CORACINI, 2003, p. 203).
Para Foucault (1999), uma das forças mais significantes que moldam nossas experiências é a linguagem, uma vez que discursos podem ser entendidos como a linguagem em ação. Danaher (2000) propõe uma analogia entre a linguagem e as janelas, pois assim como as janelas nos permitem “ver” as coisas, a linguagem nos permite abstrair sentidos dos discursos. Quando falamos, portanto, de aprender não apenas uma língua materna, mas também uma estrangeira, todos esses fios que compõem a rede da subjetividade entram em movimento e são afetados, modificados e desestabilizados. Santos (2000, p. 135) diz que “as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. (...) Identidades são, pois, identificações em curso”. A identificação denota que aquilo externo ao sujeito é incorporado ao que é interno do sujeito: “uma continuidade entre o eu e o outro e entre o individual e o coletivo” (DIAS, 2009, p. 25). Sob a perspectiva lacaniana, podemos perceber as relações de identificação, que embora se concentrem em termos de oposição– o que remete ao dualismo do imaginário – também envolvem componentes simbólicos, pois, “para identificar quem é igual ou diferente de nós (do “eu” de cada um), utilizamos os componentes dessa ordem (cultura, língua, religião, enfim, que Lacan nomeia como Outro) para construir nossas representações.” (ANDRADE, 2008, p.180) Bertoldo (2003, p. 85-86) ressalta que “(...) a aprendizagem requer do aprendiz uma demanda psíquica considerável no sentido de que esse aprendiz sofre deslocamentos identitários ao defrontar-se com uma segunda língua”. O ensino de uma língua estrangeira, dessa forma, corrobora com a parcialidade de „verdades‟, pois, a partir da língua estrangeira, podemos trabalhar diferentes visões, muitas vezes contrárias às da língua materna, já que o espaço dedicado a este tipo de aprendizagem é, por excelência, um espaço de contato com o „outro‟, com a alteridade que nos é constitutiva. (JORDÃO & AMATO, 2008)
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A identidade designa algo semelhante à percepção que as pessoas têm de si mesmas e dos aspectos fundamentais que as definem como seres humanos, e dessa forma, nossa identidade é parcialmente formada pelo reconhecimento ou pela ausência dele, ou ainda pela má percepção que os outros têm de nós: O não-reconhecimento ou o reconhecimento inadequado de nossa identidade pode prejudicar-nos e constituir uma forma de opressão, aprisionando certas pessoas em um modo de ser falso, deformado ou reduzido (TAYLOR, 1994, p. 41-42).
Contexto histórico e condições de produção do ensino de LI em institutos de idiomas no Brasil É sabido que a LI figura hoje como a língua franca em vários contextos e, em especial, nos negócios, substituindo outras línguas que já tiveram seus ápices no passado, como é o caso do latim e do francês. Com a emergência da LI como principal língua estrangeira, veio também a globalização e a conquista do cyber espaço. “Em nenhum outro tempo da história da humanidade, os homens precisaram tanto de uma língua comum como agora, ao serem reunidos pelo/no ciberespaço” (COX e ASSISPETERSON, 2007, p. 5) Aqui tratamos do contexto de ensino de inglês em instituto de idiomas, e não de ensino regular, seja público ou privado. A diferença entre os dois contextos é grande e proeminente, se considerarmos suas condições de produção. Quando falamos em ensino de LI em institutos de idiomas é preciso que se leve em consideração o fato de que a LI, no caso, é visto como um serviço e um produto a ser adquirido. Daí a importância da mídia e do marketing, que são responsáveis por divulgar as escolas e criarem uma imagem dela. Com isso criam, muitas vezes, representação do seu público-alvo e do que é ser aluno de LI nesse determinado contexto. Hall (2003) afirma que as mídias “produzem, reproduzem e transformam o próprio campo da representação ideológica” (p. 170), da forma como podemos visualizar na figura abaixo, onde é possível observar que a representação, o consumo e a identidade mostram-se relacionados de forma intrínseca, em uma relação de interdependência:
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Figura 1: Circuito da cultura
Fonte: du Gay et al.(1997)
Denegri (1998) diz que as representações construídas pelo sujeito compõem-se a partir de imagens e conceitos referentes às pessoas, as relações entre elas e às suas expectativas, bem como os papéis sociais, os valores e normas que regulam a cultura e a sociedade. Indo além da definição de representação como sendo algo social, Hall (apud Woodward, 2012) ressalta o aspecto simbólico dela ao dizer que “a representação atua simbolicamente para classificar o mundo e nossas relações no seu interior” (p.8). Woodward (2012) ainda sugere que esses sistemas simbólicos nos quais a representação se baseia possibilitam darmos sentido àquilo que somos/podemos ser. Tratando da mídia, campo sob o qual se inscrevem vários comercias que retratam o aprendiz de LI, temos que: A mídia nos diz como devemos ocupar uma posição-de-sujeito particular – o adolescente „esperto‟, o trabalhador em ascensão ou a mãe sensível. Os anúncios só serão „eficazes‟ no seu objetivo de nos vender coisas se tiverem apelo para os consumidores e se fornecerem imagens com as quais eles possam se identificar. É claro, pois, que a produção de significados e a produção das identidades que são posicionadas nos (e pelos) sistemas de representação estão estreitamente vinculadas. (WOODWARD, 2012, p. 18)
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A partir dessa citação, é possível entender melhor como a identificação, a representação e também o consumo se conectam. Assim, é possível entender que a mídia exerce seu papel na construção de identidades, ao construir certas estabilidades quanto a quem são os sujeitos alunos de LI. Devemos considerar o fato de que quem fala inglês na atualidade e já há algum tempo, é tido como superior no mercado de trabalho em geral, no sentido de apresentar mais vantagens frente a concorrentes que não dominam a LI. Essa é uma concepção naturalizada. Uma vez que, sob a perspectiva foucaultiana, a linguagem também é constitutiva de práticas, o papel da educação vai além de transmissão dos conhecimentos historicamente acumulados. Ela precisa modificar os processos de apropriação e legitimação dos discursos, não se limitando à substituição de um discurso hegemônico por outro, mas promovendo a institucionalização da abertura do conhecimento escolar a novas propostas e perspectivas, trabalhando com as „verdades‟ sociais como sendo sempre parciais, subjetivas e contingentes. (JORDÃO & AMATO, 2008). Dentro dessa concepção, a escola, reflexo cultural, é compreendida como um aparelho ideológico constitutivo de identidades. (GOMES, 2009) Considerações Finais A partir da pesquisa realizada, foi possível notar que a língua inglesa se apresenta como requisito essencial para a ascensão no trabalho, como Sousa (2007) reitera: “Atender a essa convocação do Mercado [aprender inglês] é pré-requisito para ter acesso ao mercado de trabalho, ao sucesso que está proposto nesse espaço de circulação dos sujeitos que podem alcançá-los.” (SOUSA, 2007, p.18) Fischer (2002) aborda a questão de que, para que seja possível um trabalho pedagógico coerente com as exigências do contexto sócio-histórico atual, é necessário nos voltarmos para o estudo da mídia, de forma geral, e da publicidade, de modo particular, como lugar por excelência da produção de sentidos na sociedade. Isso porque, para a autora, é “impossível fechar os olhos e negar-se a ver que os espaços da mídia constituem-se também como lugares de, como Costa (1998) define, “meios tradicionais de doação de identidade” os quais ele cita como sendo “família, religião,
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pertencimento político, pertencimento nacional, segurança de trabalho, [...] etc.” (COSTA, 1998, p. 20). Nas palavras da autora, temos que: Tal prática investigativa tem sugerido também a necessidade de, no campo educacional, operar sobre esses produtos, trazendo professores, crianças, adolescentes e jovens para uma tarefa de leitura criteriosa da esfera cultural – tarefa que certamente inclui o debate a respeito das formas de controle da sociedade civil sobre aquilo que é produzido e veiculado pela televisão. (Fischer, 2002)
A partir dessa afirmação, podemos afirmar que, uma vez que um comercial pode servir como instrumento na construção da identidade a um aluno de LI, é importante que voltemos nosso olhar para a forma como são e somos representados pela mídia, uma vez que a representação é diretamente ligada à identificação, e ela age sobre todos nós, de forma direta ou indireta. A identificação se mostra, desse modo, sujeita a todas os impactos provenientes de se aprender outra língua, o que denota a relevância de termos nossa atenção voltada para esses aprendizes, que passam por esses processos de descentramento durante todo o processo de aprendizagem da LI, para que isso se reflita na prática pedagógica realizada em sal de aula. Referências ASSIS-PETERSON de, Ana Antônia; COX, Maria Inês Pagliarini. Inglês em tempos de globalização: para além de bem e mal. Calidoscópio, v. 5, n. 1, p. 5-14, 2007. CORACINI, M. J. A celebração do outro na constituição da identidade. In: Revista Organon. V. 17, n. 35. Porto Alegre: Instituto de Letras da UFRGS, 2003, p. 201 - 220. DANAHER, Geoff; SCHIRATO, Tony; WEBB, Jen. Understanding Foucault.Sage, 2000.
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DIAS, Maria das Graças Leite Vilela. Identificação e enlaçamento social. São Paulo: Escuta, 2009 DU GAY, P. et al (Eds) Production of culture/Cultures of production. London: Sage/The Open University, 1997. FISCHER, Rosa Maria Bueno. O dispositivo pedagógico da mídia: modos de educar na (e pela) TV. Educação e pesquisa 28.1., 2002, p.151-162. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. Edições Loyola. 5ed. 1999. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Editora UFMG, 2006. JORDÃO & AMATO. O Poder de Foucault na Sala de Aula: alunos algozes e professores vitimados? Revista X, vol.1, 2003. SOUSA, Greice de Nóbrega e. Entre línguas de negócios e de cultura. Sentidos que permeiam a relação do brasileiro com a língua inglesa e a espanhola.2007. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas. TAYLOR, Charles. Multiculturalisme. Différence et démocratie. Paris: Flammarion, 1994. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, p. 7-72, 2012.
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DISCURSO JORNALÍSTICO: FUNCIONAMENTO DO IDEOLÓGICO Amanda Beatriz Gomes de Souza (UNICENTRO)
Introdução O presente trabalho foi desenvolvido com vistas a problematizar a pretensa objetividade do discurso científico, perguntando como na/pela língua na história se constituem evidências de homogeneidade da língua, centrando-se no fato de o sujeito não se ater ao que pode/deve dizer. O corpus constitui-se de dois textos da Revista Veja em torno da Copa do Mundo, intitulados: “Dilma é só empolgação à espera de sua 'Copa das Copas'” e “Brasil, 100 dias para a Copa do Mundo. Sem dias a perder”, ambos
divulgados
em
04
de
março
de
2014
e
veiculados
no
site
http://veja.abril.com.br/noticia/esporte.
O nosso objetivo, com este trabalho, é analisar discursivamente a linguagem científica de textos jornalísticos, recortando o título dessas materialidades e os textosimagem que funcionam nelas. Por meio do primeiro recorte – título das matérias – priorizamos o funcionamento da língua como o lugar da falha e da falta, que encaminha para a heterogeneidade. De modo mais específico, recortamos materialidades discursivas que circularam na mídia a partir do funcionamento da ideologia, da memória e das formações discursivas (doravante FD), vinculadas às condições de produções das imagens em tela e aos sujeitos divididos e constituídos pelos dois esquecimentos (chamados de n°, 01 e de n° 02) destacados por Pêcheux (2009) e por Orlandi (2003). O suporte para a concretização deste estudo é a pesquisa bibliográfica centrada nos fundamentos teóricos da Análise de Discurso (doravante AD), tal como é trabalhada por Pêcheux, fundador da teoria e por Orlandi que o relê e propõe avanços e deslocamentos. A partir dessa perspectiva teórica mobilizamos noções que sustentam as análises. Nesse trabalho, aliamos teoria e prática, focando, dessa forma, nos artigos da Revista Veja, destacando as divergências entre a noção de escrita objetiva dos textos jornalísticos e a noção de subjetividade não subjetiva da AD. O discurso jornalístico e a Análise de discurso: fundamentação teórica
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O sujeito do dizer, no texto jornalístico, teria, tendo em vista o suporte e a sua função na formação social, por objetivo passar apenas a mensagem necessária para o entendimento do documento, com objetividade e clareza, sem expor sua opinião, o que sinalizaria para a inexistência de subjetividade e, portanto para um sujeito responsável pelo que é dito. A comunicação jornalística, de acordo com Lage (1999, p.39), é, […] por definição referencial, isto é, fala de algo no mundo, exterior ao emissor, ao receptor e ao processo de comunicação em si. Isto impõe o uso quase obrigatório da terceira pessoa. As exceções são poucas: reportagens- testemunho, algumas crônicas textos intimistas para grupos restritos.
Isso significa que na perspectiva do discurso jornalístico, há a exigência do uso da terceira pessoa que instaura a impessoalidade, apagando o sujeito do dizer
e
encaminhando para efeitos de homogeneidade no que tange à língua, a qual se pautaria na clareza e na objetividade, especialmente, no texto online, em que os sujeitos procuram informações rápidas, conforme explicado por The Online Journalist apud Ward ( 2006, p. 115) Todas as reportagens devem ser escritas de forma clara e acessível - nós escrevemos para um público generalizado e globalizado. Não devemos assumir muito conhecimento. A importância da reportagem- por que devemos nos importar - precisa ser hasteada o quanto antes, assim como o impacto sobre pessoas comuns. Diga isso a todo momento!
A referência ao discurso imparcial e à clareza da língua encaminha para um discurso sem sujeito, no qual não haveria interpelação ideológica. Este é um pressuposto a ser questionado neste trabalho, tendo em vista que nos ancoramos teoricamente na AD, de orientação francesa, na qual o sujeito é uma categoria sempre presente. Segundo Pêcheux (2009), as ideologias constituem os indivíduos em sujeito, não havendo discurso sem sujeito e nem sujeito sem ideologia. Nesse sentido, Orlandi (2003) reitera que não há sentido que não seja determinado ideologicamente. Destacamos, a partir desses dois autores, que o sujeito se constitui pela ilusão adâmica de ser a fonte do sentido e de que a linguagem é heterogênea, isso porque o sujeito é interpelado pela ideologia e atravessado pelo inconsciente, enquanto autor. Há,
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também, além daquele que escreve um leitor, que nessa perspectiva é também sujeito, portanto,
assujeitado
ideologicamente
e
afetado
pelo
inconsciente.
Nesse
funcionamento, conforme afirma Orlandi (2003, p. 48), "[...] nem a linguagem, nem os sentidos, nem os sujeitos são transparentes: eles têm sua materialidade e se constituem num processo em que a língua, a história e a ideologia concorrem conjuntamente." Assim, torna-se possível compreender Pêcheux (2009, p. 146), quando afirma que, [...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição etc., não existe "em si mesmo" (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas ( isto é, reproduzidas).
Isso significa dizer que as palavras não têm sentidos "próprios", elas adquirem sentido no seu funcionamento, ou seja, de acordo com as posições ocupadas pelos sujeitos que as empregam (formação ideológica) e nas relações que estas palavras mantém com outras palavras dentro de uma determinada formação discursiva. A formação discursiva determina o que o sujeito pode ou não dizer a partir de uma determinada formação ideológica, que se constitui como o lugar material da língua nos discursos. Pêcheux (2009, p. 147), define a formação discursiva como "aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito [...]". O sujeito-autor “pensa” que escolhe conscientemente as palavras empregadas para atingir determinados fins, e isso ocorre devido à sua ilusão de ser a origem do dizer, à medida que é afetado pelos dois esquecimentos, que Pêcheux (2009) e Orlandi (2003) aludem, ou seja, esquecimentos da ordem da enunciação, o dizer só pode ser um e da ordem do inconsciente, os dizeres significam antes em outro lugar. Orlandi (2003) trata as ilusões decorrentes dos dois esquecimentos, não como defeitos, mas sim como necessárias para o funcionamento da linguagem nos sujeitos e para a produção de efeitos de sentidos. O esquecimento, para a autora, não é voluntário e as retomadas são essenciais para que os sentidos derivem, instaurando o equívoco e a falha, do que Orlandi destaque que as palavras "são sempre as mesmas, mas ao mesmo
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tempo, sempre outras." (ORLANDI, 2003, p. 36). Ressoa, por meio dessa afirmação, o fato de que as palavras não são indiferentes aos sentidos, ainda segundo a mesma autora,
quando
salienta
que
as
palavras
existem
independentemente
dos
sujeitos,existindo antes e funcionando fora deles. Além disso, os silêncios também significam através dos não- dito e pelo que fica a dizer. Orlandi (2003, p. 82) define o silêncio como “o não-dito, mas presente”, possibilitando com que o dizer possa ser outro, ecoando no sujeito (1997, p. 162). De acordo com a mesma autora (1997, p. 70), há, de um lado, o silêncio fundador, no qual os sentidos sempre podem ser outros, sendo essa a própria condição da produção de sentido. O silêncio não é vazio, mas sim, indício de uma totalidade significativa, sendo o “vazio” da linguagem um horizonte e não uma falta. O silêncio fundador não é a ausência de palavras, mas relaciona-se ao que ressoa e significa, apesar da ausência. Ele é contínuo, possibilitando outros sentidos a serem ditos. O silenciamento ou a política do sentido, segundo a mesma autora, define-se “pelo fato de ao dizermos algo, apagamos outros sentidos possíveis, mais indesejáveis, em uma situação discursiva dada”.(ORLANDI, 1997, p. 75). A política do sentido, divide-se em silêncio constitutivo e silêncio local. No primeiro funcionamento, “uma palavra apaga outras palavras” (Orlandi, 2003, p. 83) e instaura a possibilidade de o sentido sempre poder ser outro, especialmente, quando se usa uma palavra no lugar de outra. Trata-se de um exercício parafrástico, que desenvolvemos a seguir. O segundo funcionamento, o silêncio local, diz respeito à censura, em que determinadas palavras não podem/não devem ser ditas, tendo em vista a filiação do sujeito a determinadas Formações Discursivas. A paráfrase (estabilização) e a polissemia (deslocamentos) são processos fundamentais para a AD, uma vez que segundo Orlandi (2003, p. 36) “o discurso se faz nessa tensão: entre o mesmo e o diferente, o já dito e o a se dizer”, e a autora completa dizendo que “ é nesse jogo entre paráfrase e polissemia que os sujeitos e os sentidos se movimentam, fazem seus percursos, (se) significam”, em outras palavras o discurso caminha sempre entre o esquecimento e o novo, permitindo com que os enunciados tenham seus vários sentidos e que o sujeito, a partir de suas ideologias, também signifique no discurso.
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Esses funcionamentos, segundo Indurski (2011), encaminham para a memória, como pré-construído (interdiscurso- complexo de formações discursivas) e como memória discursiva (sentidos autorizados pela forma-sujeito em uma dada formação discursiva), pela qual um discurso sempre tem a ver com discursos que já circularam antes em outros lugares. Nos discursos jornalísticos propostos, analisamos o não- dito a partir dos próprios títulos dos discursos, partindo para textos-imagens nos discursos e o discurso por si mesmo, relacionando-os a redes de memória que se constituem no e pelo interdiscurso, que para Orlandi (2003, p. 82), sustenta o dizer do presente, como um lugar que comporta todos os sentidos, os quais retornam a partir da filiação e inscrição dos sujeitos a FD. O que não é linearizado e que designamos de não-dito, é importante para a interpretação, pois é a partir dele que ressoa no intradiscurso, o que ficou por ser dito, mas foi esquecido ou apagado pelo funcionamento da ideologia, que constitui evidências de objetividade e homogeneidade, Trata-se, de um “efeito sobre o dizer que se atualiza em uma formulação” (ORLANDI, 2003, p. 82). Dessa forma, afirmamos, ancorados nos pressupostos teóricos da Análise de Discurso de vertente francesa, que há um sujeito marcado nos discursos científicos. Não podemos questionar o fato de que a linguagem ser constitutiva do ser humano e o seu funcionamento
em
contextos
sócio-históricos marcados,
dos
quais
resultam
determinados efeitos de sentidos e não outros. No que tange ao funcionamento da língua em textos jornalísticos, como afirmamos anteriormente, o sujeito “pensa” que o dizer só pode ser um, o que instaura um equívoco, a falta e a falha, gerando a contradição. Análise de Discurso dos textos jornalísticos Em tempo de Copa do Mundo no Brasil, dentre o ano de 2013 e 2014, as principais notícias giram em torno deste tema. Com a decisão do Brasil sediar a Copa, instaurou-se, no país, dúvidas acerca da realização do evento, dando início às manifestações e à busca por mudanças motivadas pelo que ficou conhecido como
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“Padrão Fifa”, e pela esperança dos torcedores da seleção brasileira conquistar o Hexa Campeonato. Apesar da pretensa imparcialidade, os sujeitos que se constituem como locutores e que se responsabilizam pelo dizer, são, assim como os demais brasileiros, tomados pelo desejo do Hexa Campeonato, pois se inscrevem como cidadãos-brasileiros e circulam em um mesmo contexto sócio-histórico que o restante da população. Além disso, se coloca no lugar do sujeito-leitor, buscando o que o sujeito-leitor gostaria de ler, instaurando equívocos e rompimentos com o que poderia/deveria ser dito por aqueles que têm, na formação social, uma função bem determinada: informar e destacar a imparcialidade, conforme analisamos, a seguir em duas reportagens da Revista Veja online. Recorte 1 – Títulos das materialidades em análise Título 1
Título 2
O sujeito para Análise de Discurso ocupa um lugar social de onde produz seu discurso, ou seja, conforme Orlandi (2003, p. 32) “[...] o dizer não é propriedade particular. As palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela língua”. O sujeito dos discursos em questão ocupa o lugar social de cidadão brasileiro e deste lugar enuncia, interpelado em sujeito pela ideologia que se materializa em seus discursos.
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Na materialidade em tela, pelos títulos ressoam pré-construídos em torno de temas
polêmicos que funcionam na atualização do discurso em torno da Copa do
Mundo de 2014 e que fazem sentido pelo contexto sócio-histórico em que estamos inseridos, ressoando memórias em torno das manifestações no Brasil no período de 2013 e 2014. No campo da linguagem, o trabalho do sujeito que assume a responsabilidade pelo que é dito instaura efeitos de incertezas em relação ao sucesso do evento mundial sediado pelo Brasil em 2014. Esse efeito constitui-se pelos jogos entre as palavras 100 (cem) referente aos dias restantes para a Copa do Mundo e a palavra “sem”, que encaminha para o efeito de sentido de evidência de fracasso, já que as obras estavam atrasadas – incompletas nesse período – e não havia mais tempo hábil para que todas fossem concretizadas. Nessa textualidade, o sujeito-locutor, apesar de simular objetividade e isenção, assume a posição-sujeito de quem critica os responsáveis pelas obras. Por meio desse jogo de palavras o subtítulo
“Contagem regressiva”, pode
encaminhar o sentido pelo duplo funcionamento da palavra “regressiva” na frase, relacionada ao regresso (remetendo-nos ao Brasil) e, ao mesmo tempo, à contagem dos 100 (cem) dias para a realização do evento. Contagem regressiva instaura, ainda, o efeito de que falta pouco tempo ou de que não há mais tempo, ou de que o tempo se esvai e, no que diz respeito às obras que esse tempo foi mal usado. No segundo título, o slogan da presidente do Brasil em torno da Copa de 2014, "Copa das Copas" encaminha para o contraditório, pois a presidente repete que essa será a copa das copas e não dá visibilidade aos atrasos e problemas. Um possível efeito de sentido é de que a Copa é de inteira responsabilidade da propriedade da presidente. Esse efeito se sustenta pelo pronome possessivo "sua", ressoando como ironia e crítica, que se sustenta no contraditório, pois ao mesmo tempo que os brasileiros correm para comprar ingressos, assumindo o lado bom do evento, os “problemas” em torno da Copa, principalmente a incompletude das obras. São de responsabilidade de Dilma, que representa o Estado brasileiro. No recorte dois, os problemas são enumerados, constituindo efeitos de que estes “problemas” são tantos que a empolgação da presidente se transforma em mais um problema.
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Recorte 2 – Lead da primeira materialidade
O recorte dois pela relação estabelecida entre o Brasil de 2007 e o Brasil de 2014 sinaliza para efeitos de inércia ou de que nada foi feito, sinalizando para a decepção com o progresso do país. Essa possibilidade de interpretação ancora-se na palavra “regressão”. Além disso, a posição- sujeito cidadão do jornalista ganha destaque quando revela a preocupação com os vexames, afirmando que será preciso “ trabalhar duro” para evitá-lo. A expressão “ oportunidade de ouro” instaura o desejo pela vitória, rompendo com a rede parafrástica de inércia, relacionada à palavra “regressão”, isto significa que na mesma FD o sujeito autor pode se posicionar de maneiras diferentes, porém suas posições- sujeitos determinam o que pode ou não ser dito na determinada FD. Recorte 3 – Sobre os protestos
Os protestos decorrentes da indignação da população brasileira e os efeitos de sentidos em torno de gastos demasiados para a realização da Copa constituem-se, assim como nos recortes anteriores pelo jogo entre „cem‟ e „sem‟, em que a primeira refere à contagem regressiva e a segunda sinalizando para ausência. O enunciado "sem copa" , recortada por aquele que se responsabiliza pelo que é dito constitui redes em torno dos
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gastos excessivos com a copa, a falta de organiza, a miséria que assola o Brasil. Essas redes instauram efeitos de saturação, como se o sentido fosse sempre um. Com isso a heterogeneidade é apagada. A questão “os protestos serão esvaziados pela euforia na Copa?” Sinaliza para a contradição, pois instaura a separação entre aqueles que se manifestam contra esse evento e ressoa como crítica à população brasileira, quando coloca em dúvida a continuação das manifestações em torno dos direitos da sociedade. Esse efeito de sentido sustenta-se na palavra “euforia” que mobiliza não a alegria ou o orgulho, mas sentimentos passagens e alheios à resistência, à transformação, fazendo funcionar outros discursos pelos quais o povo é desqualificado. As redes parafrásticas que constituem efeitos de sentidos de inércia e de falta de politização funcionam juntamente com “oportunidade de ouro”, "amor pelo futebol" da população brasileira,além de pré-construído em torno de “o povo tem memória curta” e “futebol é o ópio do povo”. Enfim, em uma mesma FD funcionam domínios de dois lugares: o da resistência e o da sobreterminação entre a forma-sujeito e o sujeito. Recorte 4- As obras da Copa destacadas nas materialidades de análise As obras 1
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As Obras 2
O texto sobre os estádios seguido da palavra “ainda”, do texto-imagem com estádios incompletos e do discurso em torno dos atrasos no financiamento, explicita a preocupação do jornalista com a demora em relação à concretização das obras, sobretudo, dos estádios, na contagem de 100 dias para o evento, mais uma vez explicitando a posição-sujeito. Posteriormente, são apresentadas as "promessas" da presidente para a Copa do Mundo com o título "o que ficou só na promessa para o Mundial", em que o sujeito demonstra seu descontentamento,em torno dos gastos, que afirma terem sido pagos com verba pública, para a concretização da Copa do Mundo no Brasil. Essas questões dos atrasados e de promessas não cumpridas são repetidas nessas materialidades, por isso ocorre um efeito de saturação que é efetuado pelo trabalho da língua na história, constituindo-se pela relação do que está concretizado, como o casa das obras da Copa, com o que não está concretizado, como as obras incompletas. As questões supracitadas (atrasos e promessas não cumpridas), direcionam o sentido encaminhando a interpretação para o mesmo, como se não houvesse efeito de polissemia (o diferente).
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Recorte 5- O futebol retradado nas materialidades
Para finalizar a reportagem, o sujeito utiliza-se da palavra "enfim" remetendo-se ao futebol, com a foto do artilheiro da seleção brasileira denominado de “jovem craque”, o que sinaliza para, apesar das dúvidas em relação ao possível vexame na realização do evento, ao país do futebol resta a esperança do mérito com a conquista do Hexa Campeonato, afirmando as análises feitas anteriormente. Finalizando a análise dos discursos selecionados, ressaltamos a importância dos meios de comunicação para a formação do cidadão que está inserido em contextos sócio-históricos específicos e, por isso, assujeitado ideologicamente. Dessa forma, o tratamento dado à ideologia pela Análise de Discurso, tendo em vista o funcionamento do sujeito, não como indivíduo, mas como posição-sujeito e a filiação em formações discursivas, do que se pode dizer que o sujeito não interpreta discursos e nem se manifesta de forma neutra. As possibilidades interpretativas se dão, a partir de três vias, pelo menos, a de quem assume a responsabilidade pelo dizer (o sujeito-autor, interpelado por essa posição), a de um possível-leitor quem lê as materialidades em tela a partir do que o constitui e a posição assumida pelo veículo em que essas materialidades circulam. As três posições e, aquelas que não destacamos a partir do
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nosso gesto interpretativo, sinalizam para a inscrição dos sujeitos em formações discursivas, o assujeitamento à ideologia e o atravessamento pela ideologia. CONSIDERAÇÕES FINAIS Após análise das reportagens propostas no início deste estudo e, por meio dos fundamentos teóricos defendidos pela Análise de Discurso de vertente francesa em torno do sujeito, das formações discursivas, da ideologia e das memórias, compreendemos a língua enquanto heterogênea e o assujeitamento do sujeito, enquanto formador e receptor do discurso, partindo também do não-dito, mas presente nos discursos. A língua fala e o sentido não se encontra apenas no texto, mas sim se utiliza do texto enquanto unidade de análise e depende do contexto sócio-histórico, das condições de produção e de circulação do discurso, podendo sempre ser outro, mas não qualquer um. Uma constatação interessante é que apesar desse discurso encaminhar para a homogeneidade e para a imparcialidade, inerentes ao texto jornalístico, há um sujeitoautor que ocupa, na formação discursiva, um papel de cidadão brasileiro e, que se filia ideologicamente, encaminhando para o consenso, apagando a natureza heterogênea e falha da língua. Discursivamente, os efeitos de sentidos encaminham para possibilidades e não para o fechamento, pois o sujeito, assim como o discurso, é heterogêneo e aberto, mas significa por filiações e de acordo com contextos sócio-históricos, que de certa forma direcionam o que se pode ler/interpretar/compreender. Referências Bibliográficas INDURSKI, Freda. A memória na cena do discurso. In: INDURSKY, Freda; MITIMANN, Solange; FERREIRA, Maria Cristine Leandro. Memória e história na/da análise de discurso. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2011. LAGE, Nilson. Linguagem jornalistica. 2. ed. Sao Paulo: Atica, 1986
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ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003. 5. Ed. ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silencio: no movimento dos sentidos. 4ed. Campinas: UNICAMP, 1997. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: UNICAMP, 2009. WARD, Mike. Jornalismo online. São Paulo: Roca, 2006.
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A REGIÃO SUDESTE E A VARIAÇÃO LEXICAL: SINALEIRO, SEMÁFORO OU SINAL? Amanda Chofard (UEL) Introdução De acordo com Biderman (1989) o léxico transmite a herança cultural de um povo que carrega aspectos da vida, das crenças e valores de uma sociedade. Assim, neste trabalho, vinculado ao Projeto Atlas Linguístico do Brasil (ALiB) serão analisadas as variantes encontradas para o instrumento de trânsito cuja denominação técnica é semáforo. Com as mudanças constantes que ocorrem na via social à língua, como instrumento de interação, propicia o surgimento de novas lexias para suprir as necessidades da vida atual. O instrumento de trânsito, semáforo, com o crescimento das cidades foi se tornando cada vez mais comum na sociedade urbana brasileira, onde além do nome técnico são utilizadas distintas variantes para designar tal objeto. Este estudo compreende uma análise das respostas obtidas para a questão 194 do QSL do ALiB (COMITÊ NACIONAL, 2001): “Na cidade,o que costuma ter em cruzamentos movimentados, com luz vermelha, verde e amarela?”, junto ao interior dos quatro estados da região Sudeste do Brasil – São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais. Os informantes, todos com nível fundamental de escolaridade, sendo quatro por localidade, são estratificados segundo as variáveis: diassexual (masculino e feminino) e diageracional (faixa etária I 18-30 e faixa etária II 50-65 anos). Pressupostos teóricos Segundo Bassi e Margotti (2012), a Geolinguística consiste em um método utilizado pela Dialetologia. Neste estudo, utilizam-se os princípios da Geolinguística Pluridimensional que compreende informantes com perfis pré-estabelecidos e baseia-se nas visões diastráticas e diatópicas. Com a ampliação do campo de estudo proporcionado pela pluridimensionalidade, nesta pesquisa são consideradas as variações diatópicas (localidade), diassexuais (sexo) e diageracionais (idade), pois estas se mostram relevantes para a escolha lexical.
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Oliveira e Isquerdo (2001) afirmam, também, que o léxico “constitui-se no acervo do saber vocabular de um grupo sociolinguístico-cultural”, o que faz com que este trabalho tenha como cerne um estudo lexical que leva em consideração fatores sociais e geográficos, pois assim se torna possível conhecer as demarcações lexicais dos diferentes grupos. O lexema semáforo, de acordo com a Revista, online, Mundo Estranho (2014), originou-se na Grécia Antiga com a junção dos termos sema (sinal) e phoros (que leva) para designar a espécie de um sistema que transmitia mensagens por tabuletas. Passado mais de um milênio o equipamento semáforo surge em Londres, com a função que conhecemos. No Brasil são diversas as denominações encontradas para designar o instrumento em questão. Especificamente na região Sudeste são encontradas as variantes: semáforo, sinal, farol e sinaleiro. Descrição e análise dos dados Distintas variantes foram levantadas para designar o objeto de trânsito. Para tanto, visto que alguns dados do Rio de Janeiro e de Minas Gerais fora tidos como indisponíveis, contou-se com um total de 243 informantes perfazendo um montante de 405 respostas. Para ilustrar a distribuição das variantes encontradas nos estados foram elaboradas quatro cartas linguísticas experimentais que contemplam tanto a diatopia quanto dados extralinguísticos. Seguem as cartas experimentais:
Carta linguística experimental I – Designações para semáforo no estado de São Paulo
Das 37 localidades do interior de São Paulo, verifica-se a predominância da variante semáforo (39%), seguida de farol e sinaleiro que contam com o mesmo percentual de produtividade (24%) e como a menos utilizada foi encontrada sinal (13%). Identificou-se que semáforo aparece como resposta de pelo menos um informante de cada localidade, exceto em Itapetininga – ponto 177 – que apresenta sinaleiro como a variante predominante. A respeito da variante sinal, constatou-se que esta se faz mais produtiva na fala das mulheres, uma vez que do total desta variante
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como resposta 80% se deu na fala de informantes do sexo feminino de ambas as faixas etárias, enquanto que somente em 20% das do sexo masculino.
Carta linguística experimental II – Designações para semáforo no estado do Rio de Janeiro
Nas localidades do interior do Rio de Janeiro a variante que se mostra mais produtiva é sinal (59%), seguida das outras duas com baixo índice, se comparado percentualmente, sendo elas: semáforo (4%) e farol (2%). Analisou-se que a variante predominante se faz presente na fala tanto de homens quanto se mulheres das duas faixas etárias, enquanto que semáforo se mostra como resposta de 75% de informantes do sexo masculino contrapondo-se a 25% das do sexo feminino. Farol, sendo a menos produtiva, aparece na fala de um homem da faixa etária II como segunda resposta.
Carta linguística experimental III – Designações para semáforo no estado do Espírito Santo
No interior do Espírito Santo, é possível verificar que sinal (59%) é a variante predominante, seguida de semáforo (35%) que aparece em todos os pontos, exceto em São Mateus – ponto 189 –, como resposta de informantes do sexo masculino da faixa etária I e de informantes do sexo feminino da faixa etária II. O percentual restante de respostas aparece como outros (6%) que corresponde a informantes que não lembraram ou não souberam responder.
Carta linguística experimental IV – Designações para semáforo no estado de Minas Gerais
Nos dados do interior de Minas Gerais, concorrem as variantes sinal (41%) e semáforo (39%), seguidas de farol (13%), sinaleiro (6%) e outros (1%) que representa
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respostas de informantes que não souberam ou não lembraram. Em relação a variante farol, pode-se considerá-la como uma variante predominantemente da faixa etária II (86%), uma vez que esta só aparece como resposta de dois informantes da outra faixa etária (14%). Já em relação a semáforo é possível analisar maior produtividade na fala dos homens (64%) de ambas as faixas etárias, enquanto que na fala das mulheres (36%) se faz predominante no falar jovem (67%). Considerações Finais A análise do corpus demonstrou que na região Sudeste são encontradas quatro variantes para o instrumento de trânsito, sendo elas: semáforo, sinal, farol e sinaleiro, seguindo respectivamente a ordem de produtividade. Foi possível constatar que sinal é a variante majoritária nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo, contrapondo-se a São Paulo que possui como variante predominante semáforo. Já sinaleiro se mostra bastante produtiva na fala dos paulistas se comparada a dos mineiros que tem baixo percentual e a dos fluminenses e capixabas que não reproduzem tal variante. Com esta pesquisa evidencia-se a importância dos estudos a cerca da diversidade linguística brasileira, bem como o mapeamento de suas inúmeras variantes lexicais. Referências BASSI, A.; MARGOTTI, F. W. Um estudo Geolinguístico nas capitais brasileiras das variantes lexicais para a brincadeira infantil amarelinha. In: Múltiplos olhares sobre a diversidade linguística: uma homenagem à Vanderci de Andrade Aguilera. p. 49-78 – Londrina: Midiograf, 2012. BIDERMAN, M. T. C. O léxico, testemunha de uma cultura. Actas do XIX Congresso Internacional de Linguística e Filoloxía Românicas. Universidade de Santiago de Compostela, 1989. COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALiB. Questionários 2001. Londrina: Ed. UEL, 2001. OLIVEIRA, A. M. P. P. DE; ISQUERDO, A. N. (Orgs.). As ciências do léxico. Lexicologia, lexicografia, terminologia. 2. ed. Campo Grande: EditoraUFMS, 2001. SEMÁFORO. In: Mundo Estranho. Disponível em: . Acesso em: 24 abr. 2014.
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TRÁGICAS IMPRESSÕES: FACETAS DO SUICÍDIO NO JORNALISMO Ana Carla Barbosa* (Unopar) Introdução O suicídio no Brasil pode ser considerado problema de saúde pública. Dados recente do Mapa da Violência: os jovens do Brasil, realizado pelo Instituto Sangari e pelo Ministério da Justiça do Brasil revelam que o aumento de suicídios registrados entre 1998 e 2008 foi proporcionalmente maior do que o aumento da população nacional no período. Ao analisar o suicídio quantitativamente é possível detectar uma realidade pouco conhecida da sociedade em geral. De acordo com o Mapa, em dez anos os números saltaram de 6.985 para 9.328 mortes, o que representa um aumento de 33,5% da taxa, enquanto o crescimento da população foi calculado em 17,8%. O debate acerca do tema na pauta jornalística encontra dificuldades para ser fundamentado. A ausência de legislação, publicações e estudos específicos dentro da categoria implica em muitos questionamentos e poucas respostas exatas. Entre as lacunas, estão as convenções, entendidas aqui como princípios ou acordos não regulamentados. O não noticiar suicídios está enquadrado nestas convenções. Sob o pretexto de não induzir os consumidores de notícias, jornalistas e veículos de comunicação optam pela não divulgação deste tipo de fato em uma espécie de “acordo de cavalheiros”. Conforme pontua Dapieve (2007), em 1774, a publicação do romance “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, de Goethe alcançou proporções significativas no âmbito social e literário: marcou o Romantismo como uma das obras-primas do autor e desencadeou uma onda de suicídios na juventude européia. Embora não se tenha registros quantitativos sobre o período da publicação, sabese de uma influência ainda atual. Mesmo depois de 237 anos, o “efeito Werther” talvez *Jornalista. Mestranda do Programa de Ensino de Linguagens e suas Tecnologias da UnoparLondrina-PR.
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seja um dos principais exemplos e receios de um discurso confuso e omisso por parte da imprensa quanto ao assunto. O tratamento de notícias relacionadas ao suicídio está intimamente ligado à discussão entre interesse público e vida privada. Dilemas da imprensa nacional reúnem subjetividades que, ao mesmo passo em que refletem uma preocupação bem intencionada, também explicitam a carência de aporte teórico e legal na prática jornalística. Dois aspectos sobre a divulgação de suicídios necessitam ser frisados: o ato individual e a relevância pública do fato. De acordo com Dapieve (2007) Há razões práticas e compreensíveis para isso, como amenizar o inevitável sentimento de culpa dos familiares e amigos próximos do morto, respeitar a privacidade de sua dor, implicações securitárias, etc. Em torno da notícia de uma morte voluntária nas sociedades ocidentais, entretanto, costuma haver um silêncio que expressa algo mais difuso, mas não menos eloqüente derivado das crenças conjugadas de que o suicídio pode ser, de certa forma, contagioso, transmissível a suicidas em potencial, tratados de forma análoga à dos “portadores sadios” de uma doença; e de que os meios de comunicação de massa podem ser, pela própria natureza de sua função social, os vetores deste tão temido contágio, verbalizado ou não nas redações de jornais. (Dapieve, 2007, p. 14)
Em contrapartida, mesmo de maneira não recorrente, existem ocasiões em que não é possível simplificar o debate e dilemas éticos são instaurados. Bucci (2000) utiliza o termo “privacidade construída em público” para separar pessoas que possuem vida pública das que não possuem, a exemplo de celebridades. No caso das celebridades que utilizam a mídia para expor a vida pessoal, o público que as acompanha tem o direito de saber de suas intimidades. Considerar e ponderar estas questões em meio à rotina jornalística exige preparo e disposição dos profissionais da imprensa. Sob esta preocupação, este estudo pretende elucidar discussões que colaborem com a construção de um exercício claro e coeso do jornalismo em relação ao suicídio. *Jornalista. Mestranda do Programa de Ensino de Linguagens e suas Tecnologias da UnoparLondrina-PR.
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Do suicídio: um resgate durkheimiano Inicialmente faz-se necessário esclarecer a acepção de suicídio adotada neste estudo. Sabe-se que existem referenciais bastante específicos no campo da psicologia. Contudo, a abordagem sobre suicídio encontrada aqui é direcionada ao seu aspecto social e não íntimo. Portanto, julgou-se apropriada a utilização dos conceitos durkheimianos numa primeira explanação. Quando Durkheim afirma que cabe ao sociólogo procurar as causas por meio das quais é possível atuar sobre o grupo e não sobre os indivíduos isoladamente, o exercício jornalístico é lembrado. Partindo da premissa de que o jornalismo é praticado em função da sociedade, nada mais natural do que optar por uma matização social da matéria proposta. Retomando a conceituação de suicídio utilizada pelo autor, afirma-se primeiramente que há entre as diversas espécies de mortes, aquelas cuja característica particular é o serem causadas pela própria vítima, resultando de um ato cujo autor é o paciente; e, por outro lado, é certo que essa mesma característica se encontra na própria base da idéia em geral que se tem do suicídio (DURKHEIM, 1930, p. 15). Deste modo, o cientista não diferencia a natureza do ato suicida, mas a natureza do fenômeno em si: De resto, pouco importa a natureza intrínseca dos atos que produzem esse resultado. Conquanto, em geral, as pessoas se representem o suicídio como uma ação positiva e violenta que implica emprego de força muscular, pode acontecer que uma atitude meramente negativa ou simples abstenção obtenham o mesmo resultado. As pessoas tanto se matam por recusar alimentação como se destruindo por ferro e fogo. (DURKHEIM, 1930, p. 14) Ainda de acordo com Durkheim (1930), chegamos, portanto a esta primeira fórmula: chama-se suicídio toda morte que resulte mediata ou imediatamente de um ato positivo ou negativo, levado a cabo pela própria vítima. Entretanto, o cientista salienta a deficiência da idéia e aponta a diferenciação de duas espécies de mortes. A morte intencional, como a de alguém que decide atirar-se de um edifício, por exemplo, e a morte impensada, como a de alguém que por deficiências intelectuais atira-se do mesmo sem mensurar o quão longe está do chão. Por este ângulo, presume-se que o suicídio está afinal ligado à consciência do resultado de morte. Todavia, a conceituação como um “homicídio intencional da própria pessoa”, conforme *Jornalista. Mestranda do Programa de Ensino de Linguagens e suas Tecnologias da UnoparLondrina-PR.
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o cientista, ainda é falha. Como saber que motivo determinou o agente e se, quando tomou a decisão, era a morte mesmo o que ele queria, ou se tinha outro objetivo? (DURKHEIM, 1930, p. 15). Sob este viés, o autor ainda enuncia que um mesmo sistema de movimentos, sem mudar de natureza, pode ser ajustado a numerosos fins diferentes, o que exclui a motivação intencional como fator terminante na caracterização do suicídio. O soldado que corre para a morte para salvar o seu regimento não quer morrer, e, no entanto, não será o autor de sua própria morte pelo mesmo motivo que o industrial ou o comerciante que se matam para fugir à desonra da falência? [...] Num caso como no outro, a pessoa renuncia a existência, seja a morte aceita simplesmente como condição lamentável, mas inevitável, do objetivo em vista, seja ela expressamente desejada e procurada por si mesma. As diferentes maneiras de renunciar à vida só podem ser variedades de uma mesma classe. (DURKHEIM, 1930, p. 15)
As formas para se renunciar à vida possuem semelhanças que podem ser agrupadas genericamente, mas precisam ser distintas no gênero constituído. Sem dúvida, no sentido vulgar, o suicídio é, antes de tudo, o ato desesperado de alguém que não faz mais questão de viver. (DURKHEIM, 1930, p. 15). O que há em comum entre todas as possibilidades da resolução em abster-se da vida é o conhecimento de causa, do resultado produzido pelo agente independentemente da motivação que o levou a assim agir. Este parecer é o determinante para se distinguir de todos os casos em que o paciente ou não é o agente de sua própria morte ou é apenas o autor inconsciente dela. Declaramos, pois, de modo definitivo, que se chama suicídio todo caso de morte que resulte direta ou indiretamente de um ato positivo ou negativo adotado pela própria vítima sabedora de que devia produzir esse resultado. (DURKHEIM, 1930, p. 16)
Após a definição do conceito adotado para o estudo, uma segunda explanação direciona-se às ocorrências do suicídio como integrante da vida moral. De acordo com Durkheim (1930), a certeza do ato suicida pode variar de grau, constituindo uma espécie de ‘’parente próximo do suicídio’’. Alguém que se exponha conscientemente por outro, mas sem a certeza de um desfecho mortal, sem dúvida não é um suicida, mesmo que venha a morrer; também não é suicida o imprudente *Jornalista. Mestranda do Programa de Ensino de Linguagens e suas Tecnologias da UnoparLondrina-PR.
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que brinque deliberadamente com a morte, embora evitando-a, ou o apático, desinteressado de tudo, que não se dá ao trabalho de cuidar da saúde, pondo-a em risco com sua negligência. E, no entanto, estas diferentes maneiras de agir não se distinguem radicalmente dos suicídios propriamente ditos. Elas decorrem de estados de ânimo análogos, visto acarretarem também riscos mortais não ignorados pelo agente, e cuja perspectiva não o demove de agir. (DURKHEIM, 1930, p. 17). Estas diferenciações estão centradas na diminuição da probabilidade de morte, classificadas pelo autor como ‘’suicídios embrionários’’. Todas estas exposições sugerem uma abordagem intimista. Considerando que o suicídio é um ato da pessoa e que só a ela atinge, tudo indica que deva depender exclusivamente de fatores individuais e que sua explicação, por conseguinte, caiba somente à psicologia (DURKHEIM, 1930, p. 18). Em contrapartida, ao abandonar a perspectiva estritamente particular, é possível detectar um fenômeno de ordem social desencadeado por meio de manifestações coletivas. Nesta lógica, o baixo índice de alterações na taxa de suicídios em uma determinada sociedade num curto espaço de tempo é natural, pois as mudanças na vida dos povos são quase imperceptíveis. Variações excepcionais podem ser registradas, na maioria das vezes, contemporaneamente, como resultado de uma crise que alcance o estado social. Intervalos mais longos de tempo tendem a registrar mudanças mais graves inclinadas a se tornarem crônicas. Portanto, provam apenas que as características constitucionais da sociedade sofreram, no mesmo momento, profundas modificações (DURKHEIM, 1930, p. 18). Este fenômeno é apontado pela ruptura do equilíbrio social, que quando acontece subitamente necessita de tempo para produzir todas as suas conseqüências. Cada sociedade tem, portanto, em cada momento de sua história, uma predisposição definida para o suicídio. Mede-se a intensidade relativa dessa tendência tomando-se a relação entre o número global de mortes voluntárias e a população de todas as idades e de ambos os sexos. (DURKHEIM, 1930, p. 19). Confirmando este caráter coletivo do tema, Durkheim (1930) afirma que seja qual for o juízo sobre o assunto, o fato é que essa tendência existe, sempre, por uma razão ou pela outra. Cada sociedade está predisposta a fornecer um contingente determinado de mortes voluntárias. Notícias históricas
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Em meio às convenções, práticas e fundamentações que, de modo geral, encaminham à linhas editorias omissas quanto à divulgação de suicídios, ao longo da história, existem relatos sobre este tipo de fato. Médico e memorialista brasileiro, Pedro Nava se suicidou em vésperas de completar 80 anos, em 13 de maio de 1984, no Rio de Janeiro. O episódio é relatado com algumas minúcias em ‘Minhas Histórias dos Outros’, obra que reúne episódios da carreira do jornalista Zuenir Ventura. Sob o título ‘Um Suicídio Mal Contado’, o jornalista discorre sobre o que considera ‘’uma das questões éticas mais complexas do jornalismo’’, os limites entre o que é público e o privado. O escritor estava prestes a ser condecorado com o título de ‘’Cidadão Fluminense’’, da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro e encerrar o sétimo volume da série de memórias iniciada com ‘’Baú de Ossos’’, de 1972 com o lançamento de ‘’Cera das Almas’’. Como se pode observar, havia muitas tarefas para Nava executar à época de seu suicídio. Todavia, o desfecho inesperado começa após o recebimento de uma ligação em seu apartamento. Ele pegou o aparelho, ouviu em silêncio o que lhe disseram do outro lado da linha, desligou e, transtornado, comentou que ‘’nunca tinha ouvido nada tão obsceno’’ (Ventura, 2005). Aproveitando uma breve ausência da esposa, o escritor tomou um revólver calibre 32 e foi caminhar pelo bairro da Glória, centro do Rio de Janeiro, onde residia. Pedro Nava foi visto sentado em uma calçada próximo a garotos de programa e transexuais que circulavam na região. Por volta das 23h30, disparou um tiro na própria cabeça. Então chefe de redação da sucursal da Revista IstoÉ no Rio de Janeiro, Zuenir Ventura conta que havia lido a notícia sobre a morte de Pedro Nava ao fazer a reunião de pauta habitual da revista às segundas-feiras. O subchefe Artur Xexéo foi o encarregado de orientar a apuração dos fatos que seria realizada pelo repórter José Castello. A idéia era começar a apuração do ponto mais inicial o possível. Na imprensa diária não surgira nenhuma indicação ou pista sobre as causas do suicídio. Nava não deixara explicação, bilhete, nada. (Ventura, 2005). Conforme o jornalista, a repercussão do ato foi rápida: Não sei se ainda na segunda-feira surgiu a versão que se espalharia pelas redações do Rio como rastilho de uma bomba: Pedro Nava se suicidara porque estava sendo chantageado por um garoto de programa. A fonte seria um repórter gay, assíduo freqüentador da Avenida Prado Júnior, reduto da prostituição feminina e masculina (Ventura, 2005, p. 164). O contato com o suposto chantagista foi feito por meio de um número de telefone obtido em um anúncio de jornal. O repórter José Castello contatou a fonte se apresentando *Jornalista. Mestranda do Programa de Ensino de Linguagens e suas Tecnologias da UnoparLondrina-PR.
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como jornalista da Revista IstoÉ e teve resposta afirmativa quanto a uma entrevista ao veículo para esclarecimentos acerca do suicídio do escritor. José Castello solicitou que o chefe Artur Xexéo o acompanhasse durante a apuração. Ambos os profissionais conversaram com o rapaz que se apresentava como Beto e também já havia recebido profissionais da revista Manchete. Um ponto importante sobre o questionamento da veracidade dos relatos frisados pelos jornalistas é uma possível prática de voyuerismo desempenhada pelo escritor, o rapaz em questão e uma terceira pessoa. As discussões sobre a publicação ou não dos depoimentos apurados gerou opiniões arbitrárias dentro do veículo. O impasse divide pontos de vista até hoje. É o que se pode verificar no artigo de autoria de Ricardo Setti, redator chefe de IstoÉ em São Paulo na época do episódio, escrito 21 anos depois da resolução e publicado no Observatório da Imprensa. Ricardo Setti participou do consenso de não divulgação adotado por seus colegas. O jornalista atribui a falta de uma reflexão, que em seu ver deveria ter sido mais profunda, à uma omissão pessoal e ao fechamento desgastante da revista. O livro de Zuenir deixou bem claro para mim que um pedaço desse papelão me coube. A sobrecarga de trabalho não impedia que dedicasse um mínimo de atenção a um assunto tão relevante. Disso me arrependo ainda hoje. (Setti, 2005). Analisando a questão, Ventura (2005) expõe que O ‘’caso Pedro Nava’’ encerra uma das questões éticas mais complexas do jornalismo: os limites entre aquilo que é público, cujo conhecimento é direito de todos – e um dever do jornalista divulgar- e o que, por pertencer à esfera privada, deve ser mantido como tal. Nava era um homem público que escolheu uma via pública para praticar um gesto que, ele sabia, teria repercussão, chegaria à imprensa e seria investigado em suas causas e motivações. O ator final de sua tragédia foi exposto como um espetáculo de rua (VENTURA, 2005, p. 173) Referência mais nítida das ‘’exceções’’ de notícias envolvendo suicídio reproduzidas em larga escala está o caso Getúlio Vargas. A edição nº 979, do extinto jornal “Última Hora”, em 24 de agosto de 1954, teve sua capa integralmente dedicada à cobertura da morte do expresidente. Sob o título “Matou-se Vargas”, a publicação detalhou parte do bilhete suicida deixado por Vargas e a forma como o mesmo foi encontrado em seus últimos instantes de vida: Neste nefasto dia de São Bartolomeu, precisamente às 8.35 horas, praticou o suicídio o Presidente Getúlio Vargas, com um *Jornalista. Mestranda do Programa de Ensino de Linguagens e suas Tecnologias da UnoparLondrina-PR.
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tiro de revólver no coração,quando se encontrava em seu quarto particular, no 3º andar do Palácio do Catete. O General Caiado de Castro, chefe do Gabinete Militar da Presidência da República, correu para os aposentos ao ouvir o disparo e ainda encontrou o Presidente Vargas agonizante. Chamou às pressas a assistência pública, que dentro de cinco minutos já se encontrava no Palácio do Catete. Mas o grande Presidente Getúlio Vargas já estava morto. Não pode ser descrito o ambiente no Palácio Presidencial. Tudo é consternação. Membros da família do Presidente, serviçais, militares que guarnecem o Palácio choram a morte do insigne brasileiro. (ÚLTIMA HORA, 1954. Arquivo do Estado de São Paulo) Ao pensar a morte de Getúlio Vargas, é fundamental relembrar o contexto históricopolítico da época. O presidente possuía 71 anos e passava por uma difícil acuação no poder do Catete quando praticou suicídio.
Samuel Wainer discorre a respeito de como recebeu a
informação sobre a morte de Vargas em sua autobiografia ‘’Minha Razão de Viver’’. Segundo o autor, um telefonema do Palácio do Catete realizado pelo repórter Luiz Costa foi o primeiro contato quanto ao episódio. Enquanto Wainer desligava o telefone e se dirigia à oficina do jornal, rádios já transmitiam a notícia. A épica manchete ‘’Vargas Não Cederá Nem À Violência, Nem Às Provocações, Nem Ao Golpe: "Só Morto Sairei Do Catete", dada no dia anterior à morte do presidente, serviu como a legitimação do que se noticiava no dia seguinte no Última Hora. De acordo com Dapieve (2007), cerca de 800 mil exemplares do jornal foram esgotados, um recorde brasileiro na ocasião. A grande procura pelo Última Hora ocasionou o ‘’empastelamento’’- jargão jornalístico usado para descrever situações de censura ou minimização de fatos- dos jornais antigetulistas, como A Tribuna da Imprensa, diário comandado por Carlos Lacerda, deputado federal pela UDN, intrinsecamente ligado à crise que resultou no desfecho da presidência de Getúlio Vargas. Dapieve (2007) elenca acontecimentos relevantes no período que precedeu a morte do então presidente. Para o autor, o fator crucial que levou Vargas à morte começou no ‘’Atentado de Toneleros’’. Carlos Lacerda, ao aproximar-se de apartamento na Rua Toneleros, em Copacabana, no Rio de Janeiro, foi alvo de um tiro no pé, sem maiores complicações. Mas o major da Aeronáutica, Rubens Vaz, que acompanhava Lacerda como seu segurança foi baleado no peito e faleceu no caminho do atendimento médico. A par do atentado, Vargas teria dito: ‘’Este tiro é uma punhalada em minhas costas’’. O caráter altruísta dos escritos revela o que *Jornalista. Mestranda do Programa de Ensino de Linguagens e suas Tecnologias da UnoparLondrina-PR.
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Dapieve (2007) descreve como uma justificativa não pelo desespero pessoal ou pela dificílima situação política e sim por uma causa maior- os humildes, o povo, o futuro do Brasil. De suas próprias palavras, o suicídio emerge não mais como pecado ou uma fraqueza, mas um sacrifício ao qual ele, destemidamente, está disposto a fazer (Dapieve, 2007, p. 103). Por esta profunda e direta repercussão das conseqüências do suicídio de Vargas, nenhum jornal hesitou expor sua carta e os motivos da morte. Era preciso noticiá-la com todas as letras, por conta da importância pública do suicida e das conseqüências de seu gesto para a sociedade, critérios que valeriam ainda hoje em qualquer redação (DAPIEVE, 2007). Luz para a imprensa: padrões e propostas de publicação Ramos e Paiva (2007) estão corretas ao afirmar que poucos assuntos na imprensa são tratados com tanto cuidado quanto o suicídio. O tema divide opiniões e reúne mitos e tabus que perduram na imprensa há mais de séculos. Salvo exceções, a palavra suicídio é pouco lida ou ouvida na grande imprensa RAMOS, PAIVA, (2007). Todavia, até mesmo as exceções necessitam de aporte e clareza para serem procedidas. Em entrevista ao portal da Universidade de Brasília (UnB), o psiquiatra Marcelo Tavares, coordenador do grupo de pesquisa e prevenção ao suicídio da UnB alerta para o papel da imprensa: É preciso mostrar que havia sofrimento e sempre passar uma mensagem de esperança no sentido de onde buscar ajuda. O exemplo de Marylin Monroe foi ruim. Sua morte teve uma comunicação sensacionalista e acabou sendo seguida de uma série de suicídios por imitação. Pessoas vulneráveis foram influenciadas pela mídia. Já na morte de Kurt Cobain, a mídia fez uma comunicação responsável e não foi observada uma seqüência de atos de suicídio por imitação (TAVARES in RAMOS, PAIVA, 2007). O fator indução, assunto deslindado neste estudo e raiz do tabu encarado pela imprensa em relação ao suicídio, é descrito por Durkheim de maneira muito didática: “[...] o que pode contribuir para o desenvolvimento do suicídio ou do assassínio não é o fato de se falar nisso, é a maneira pela qual se fala”. *Jornalista. Mestranda do Programa de Ensino de Linguagens e suas Tecnologias da UnoparLondrina-PR.
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Partindo deste ponto, manuais de redação e consensos gerais nas redações orientam as coberturas jornalísticas. A maioria dos jornais considera que o suicídio diz respeito à esfera privada e só deve ser divulgado guardar relação com assuntos de interesse público Ramos; Paiva, (2007). Ombudsman do diário O Povo do Ceará, Plínio Bortolotti apud Ramos; Paiva (2007) explica que o suicídio isolado diz respeito apenas à família, cuja privacidade deve ser respeitada. Mas se os casos começam a se repetir, principalmente se acontecem em local específico, ou começam a atingir com mais intensidade determinados segmentos (jovens, moradores de uma cidade, ou de um bairro, por exemplo), o assunto passa a ser de interesse público e, portanto, a imprensa deve cobri-lo contribuindo para ajudar a buscar soluções para o problema. Nos manuais de redação dos jornais O Globo e Folha de Londrina (Londrina-PR), encontram-se as seguintes especificações: Noticiar suicídio quando o autor tem vida pública. Casos que mereçam investigação policial ou caracterizam comportamento de tribos, seitas e grupos sociais também podem ser divulgados (FOLHA DE LONDRINA, Manual de Redação, 1996). Evitar noticiar suicídios de desconhecidos, exceto quando o fato tem aspectos fora do comum (O GLOBO. Manual de Redação e Estilo, 1992). Também se constata uma opinião similar em Grando, 2005: Ao abordar o suicídio em suas páginas diárias, a imprensa também poderia contribuir oferecendo informações e incentivando um debate sobre como auxiliar pessoas com tendências suicidas, como superar a perda de uma pessoa querida por suicídio, como relações familiares e escolares podem influenciar crianças e adolescentes a pensarem em suicídio em decorrência de uma pressão social vinda dessas instituições que eles não conseguem suportar. (GRANDO, 2005) Em contrapartida, o manual de redação da Organização Mundial da Saúde (OMS) diz que a notícia sobre o suicídio não deve servir de exemplo para que as pessoas consigam resolver seus problemas pessoais. A OMS também utiliza outras recomendações em seu Manual para Profissionais da Mídia. Um exemplo são os casos que envolvem celebridades. A imprensa deve minimizar relatos de como aconteceu o ato. Outra recomendação é não publicar o fato, em nenhuma circunstância, como capa de jornal, isto é, não enunciá-lo como manchete, em grande *Jornalista. Mestranda do Programa de Ensino de Linguagens e suas Tecnologias da UnoparLondrina-PR.
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destaque. Embora maior parte dos jornalistas conheça e adote regras que encaminham para a discrição ao tratar do suicídio nos jornais, esta preocupação ainda não é o suficiente para lidar com a complexidade da questão. Kathie Nijaine, pesquisadora da Fundação Osvaldo Cruz afirma em entrevista concedida à Ramos; Paiva, (2007) que excluir o tema da pauta jornalística não é a solução e questiona: “o que está por trás das tentativas de suicídio entre jovens, por exemplo? Às vezes me parece que o jornalismo não se preocupa em fazer algumas perguntas”. Entre recomendações de pesquisadores e entidades é possível encontrar manuais próprios. Geralmente são políticas bastante atuais e em andamento. É o caso do Plano Nacional de Prevenção ao Suicídio. Com objetivo de reduzir taxas de suicídios e tentativas e os danos associados com comportamentos suicidas, como o impacto traumático do suicídio na família, nas comunidades, nos locais de trabalho, nas escolas, outras instituições e na sociedade brasileira, a Coordenação de Saúde Mental apresenta a Estratégia Nacional Para Prevenção ao Suicídio (Sistema Único de Saúde – SUS. Portal da Saúde, 2011). Dentre as estratégias adotadas no Plano Nacional está a elaboração de manuais de conduta de profissionais da rede do Sistema Único de Saúde (SUS) e profissionais da imprensa. Referências Bibliográficas ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA. Comportamento Suicida: conhecer para prevenir, 2009. Disponível em: www.abpcomunidade.org.br ANGRIMANI, Danilo Sobrinho. Espreme que sai sangue. São Paulo: Sumus, 1995 ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Útima Hora – Matou-se Vargas. São Paulo. Disponível em Acesso em 08 jul. 2010 CAZENEUVE,Jean. Les Rires et la Condition Humaine.Paris,PressesUniversitairesde France, 1958. DAPIEVE, Arthur. Morreu na contra-mão: o suicídio nos jornais. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2007. DURKHEIM, Émile. O Suicídio: estudo sociológico. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1982. GOETHE, W.V Johann. Os sofrimentos do Jovem Werther. São Paulo: Lp&m Pocket,2005. GRANDO, Carolina. O Suicídio na Pauta Jornalística. Disponível em: Acesso em 07 jul. 2010. *Jornalista. Mestranda do Programa de Ensino de Linguagens e suas Tecnologias da UnoparLondrina-PR.
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LAGE, Nilson. Ideologia e Técnicas da Notícia. Florianópolis: UFSC – Insular 2001. MARCONDES FILHO, Ciro. O capital da notícia. São Paulo: Ática: 1986. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Prevenção do Suicídio: Manual para profissionais da mídia. Genebra, 2000. Disponível em: < http://www.who.int/mental_health/prevention/suicide/en/suicideprev_media_port.pdf > Acesso em: 07 julho 2010 RAMOS, Silvia; PAIVA, Anabela. Mídia e Violência. Rio de Janeiro, Iuperj, 2007. SETTI, Ricardo. O livro de Zuenir e um papelão que eu fiz. Disponível em www.observatoriodaimprensa.com.br Acesso em 10 julho de 2010. VENTURA, Zuenir. Minhas Histórias dos Outros. São Paulo. Editora Planeta do Brasil, 2005. Vargas: para além da vida: A Carta-testamento e o legado de Vargas. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC). Fundação Getúlio Vargas. Disponível em . Acesso em novembro de 2011. WAINER, Samuel. Minha razão de viver: memórias de um repórter.19 ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.
*Jornalista. Mestranda do Programa de Ensino de Linguagens e suas Tecnologias da UnoparLondrina-PR.
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CRENÇAS DE ALUNOS-PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA: REFLEXÕES SOBRE TEORIA E PRÁTICA NA EDUCAÇÃO DOCENTE INICIAL Ana Claudia da Silva Roseira (UNESPAR) 1 Josimayre Novelli Coradim (UEM) 2 Introdução Estudos sobre crenças são importantes para a compreensão das ações pedagógicas de alunos-professores (AP) durante o processo de educação docente inicial. Segundo Freeman & Johnson (1998), as crenças são relevantes na formação de professores, pois, no período de formação inicial, devemos levar em conta o conhecimento e concepções que os futuros professores possuem sobre o processo de ensino e aprendizagem de uma língua estrangeira (LE). Sendo assim, consideramos relevante investigar as implicações dessas crenças nas práticas pedagógicas de AP. Nesse sentido, o presente artigo visa apresentar as crenças de AP de Língua Inglesa (LI) de uma universidade pública do noroeste do Estado do Paraná quanto às abordagens teórico-metodológicas para o ensino desse idioma no contexto do estágio supervisionado. Para a geração de dados desse estudo de caso, aplicamos aos AP questionários de cunho dissertativo antes e após o período do estágio supervisionado de inglês. A escolha pelo estudo das crenças desses AP ocorreu devida à necessidade de conhecer o que eles pensam e sabem sobre o processo de ensino e aprendizagem de LI nas escolas públicas norteado pela proposta teórico-metodológica das Diretrizes Curriculares de Língua Estrangeira Moderna do Paraná (DCE), visto que, durante os quatro anos do curso de formação docente inicial desses AP o ensino de LI foi pautado naquela proposta. 1
Graduada em Letras Português/Inglês pela Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) – Campus de Campo Mourão. E-mail: [email protected] 2 Professora assistente de Língua Inglesa na Universidade Estadual de Maringá (UEM). Doutoranda de um programa de pós-graduação em Estudos da Linguagem na Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: [email protected]
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Esperamos que os resultados dessa pesquisa contribuam com estudos voltados à área de crenças e ensino e aprendizagem de LI, bem como com cursos de formação docente inicial com o intuito de que os professores formadores percebam a importância de se conhecer as crenças de seus alunos e que propiciem momentos em suas aulas para que os futuros professores possam refletir e discutir sobre suas crenças no que tange o processo de ensino e aprendizagem de uma LE. Crenças e a educação docente inicial Diversos estudos no cenário brasileiro têm focado crenças de professores e AP sobre o processo de ensino e aprendizagem de línguas (BARCELOS, 1995, 2000, 2001, 2004; FÉLIX, 1998; REYNALDI, 1998; SILVA, 2005, 2011; SILVA, M. Z. V., 2011; SANTOS, 2011; entre outros). Segundo Barcelos (2004, p.127) o interesse pelo estudo sobre crenças surgiu a partir dos anos 70, com Hosenfeld (1978) com o termo “mini-teorias de aprendizagem de línguas dos alunos” para se referir ao “conhecimento tácito dos alunos, mesmo sem denominá-los de crenças”. No entanto, foi somente em 1985, que o termo crenças sobre aprendizagem de línguas surgiu na Linguística Aplicada (LA). Desse modo, o conceito de crenças não é considerado um termo específico da LA (cf. BARCELOS, 2004; SILVA, 2011), mas sim, um termo antigo que pode ser encontrado em outras áreas de conhecimento, como a Sociologia, Antropologia, Psicologia, Educação e, sobretudo na Filosofia. Barcelos (2004, p.130-131) elenca diferentes termos cunhados por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento ao se referirem às crenças sobre aprendizagem de línguas, dentre eles: “representações dos aprendizes” (HOLEC, 1987), “filosofia de aprendizagem
de
línguas”
(ABRAHAM
&
VANN,
1987),
“conhecimento
metacognitivo” (WENDEN, 1986), “crenças” (WENDEN, 1986), “crenças culturais” (GARDNER, 1988), “representações” (RILEY, 1989, 1994), “teorias folclóricaslinguísticas de aprendizagem” (MILLER & GINSBERG, 1995), “cultura de aprender línguas” (BARCELOS, 1995), “cultura de aprender” (CORTAZZI & JIN, 1996), “cultura de aprender” (RILEY, 1997; BENSOR & LOR, 1999). Diante desses diversos termos empregados para se referir às crenças, percebemos que elas se referem à
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aprendizagem de línguas e também aos aspectos culturais e sociais. Portanto, o termo crenças não possui uma definição específica. De acordo com Sadalla (1998, p. 32): As crenças representam sentido ao mundo, não realidade, mas sim vão percurso da interação realidade.
uma matriz de pressupostos que dão sendo, apenas, um mero reflexo da sendo construídas na experiência, no com os demais integrantes desta
Para Wenden (1986, p.5), crenças são “[...] opiniões baseadas em experiências e opiniões de outras (pessoas) respeitadas que influenciam a maneira como agem”3. Com relação à natureza das crenças, Barcelos (2006) aponta sete características, sendo elas: (1) dinâmicas (podem mudar de um período para o outro); (2) emergentes socialmente construídas e situadas contextualmente; (3) experienciais (resultado entre a interação do indivíduo com o ambiente); (4) mediadas; (5) paradoxais e contraditórias; (6) não tão facilmente distintas do conhecimento; (7) e relacionadas à ação de maneira indireta ou complexa (não necessariamente influenciam ações). Com base nessas reflexões, definimos crenças como opiniões e entendimentos formados a partir de nossas experiências, interação com o outro e o contexto em que estamos inseridos, sobre um determinado assunto que não dispomos de um conhecimento certo, isto é, são por meio dessas crenças que nos sentimos seguros para se posicionar criticamente ou não sobre um determinado assunto. Isto posto, salientamos que o interesse por estudos sobre crenças na educação docente inicial deve-se ao fato, de que elas resultam ou fazem parte de nossas experiências como aprendizes e, podem influenciar a maneira como agimos, neste caso, as práticas pedagógicas de futuros professores de LI. Gimenez et al. (2000, p. 125-126) afirmam que: A importância das crenças no processo de formação de professores vem sendo salientada em virtude da relação entre estas e as práticas pedagógicas experienciadas pelos futuros
3
Texto original: “Give them the ‘technical’ term for what they have been discussing: these opinions which are based on experience and the opinions of respected others, which influence the way they act, can be called beliefs” (WENDEN, 1986, p.5).
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profissionais e pela sua contribuição na elaboração do conhecimento prático pessoal.
Barcelos (2010) também argumenta que esse interesse por estudos sobre crenças de professores no ensino e aprendizagem de línguas ocorre devido a “sua relação com as decisões na prática docente, bem como a sua influência no processo de ensino e aprendizagem de alunos e na aprendizagem do ensino de professores” (p.63). Diante do exposto, corroboramos com Gimenez et al. (2000), ressaltando que, nos cursos de formação, os educadores de professores, não podem ignorar as crenças que os AP trazem para as salas de aula, mas sim, encontrar maneiras de identificá-las e discuti-las, pois “as experiências que futuros professores vivenciam enquanto alunos podem influenciar sua posição como docente [...]” (PERINE, 2012, p.380).
Análise dos dados Nesta seção, analisamos parte dos dados gerados por meio dos questionários aplicados aos AP, tendo como foco suas crenças sobre as abordagens teóricometodológicas para o ensino de LI. O primeiro questionário foi aplicado antes do período de estágio supervisionado com o intuito de investigar as percepções dos AP quanto à abordagem teórico-metodológica proposta pelas DCE para o ensino desse idioma no contexto público. A aplicação do segundo questionário ocorreu após a conclusão do estágio visando analisar se as crenças dos AP permaneceram as mesmas ou se modificaram. A análise dos dados foi realizada de forma indutiva-dedutiva, com identificação de categorias e/ou temas oriundos das respostas dos AP. Com o intuito de preservar a ética nessa pesquisa, identificamos seus sujeitos como AP1, AP2, AP3 e, assim, sucessivamente. Para este artigo, analisaremos as seguintes perguntas:
1. Em sua opinião, que embasamento teórico-metodológico deve(ria) pautar o ensino de LI nas escolas públicas? Justifique.4
4
Esta pergunta estava presente tanto no 1º quanto no 2º questionário.
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2. Após esse período de estágio, comente sobre as (in)viabilidades práticas da proposta teórico-metodológica apresentada pelas Diretrizes Curriculares do Paraná.
Inicialmente apresentaremos a análise da primeira pergunta nos dois momentos, antes e após o estágio. Com relação às crenças dos AP sobre qual embasamento teórico-metodológico deve(ria) pautar o ensino de LI no contexto público antes do período de estágio, identificamos as seguintes categorias: outras possibilidades de ensino, ausência de conhecimento, prescrição e avaliação coletiva de trabalho (professores e educadores de professores). Na categoria outras possibilidades de ensino, os AP teceram opiniões sobre possíveis metodologias que devem(riam) pautar o ensino de LI nas escolas públicas. Questionário I: “Ensinar a língua (Gramática; tradicional)” (AP1; AP8; AP9; AP11; AP12; AP14). Questionário I: “Qualquer metodologia que não envolva gêneros” (AP6; AP7; AP9; AP12; AP17). Questionário I: “Vocabulário” (AP9; AP12). Questionário I: “Método dos cursos particulares” (AP2). Questionário I: “Tradução” (AP14).
A segunda categoria identificada foi denominada ausência de conhecimento, pois alguns AP afirmaram não possuírem conhecimentos necessários para nomear as metodologias de ensino desse idioma. Questionário I: “Não soube responder” (AP5; AP10; AP15). Questionário I: “Não soube responder por falta de leituras e práticas suficientes” (AP3).
Diante dessas dificuldades que os AP demonstraram ao nomear as abordagens teórico-metodológicas de ensino de LI nas duas categorias anteriores, percebemos a existência de lacunas na educação inicial desses AP, pois eles afirmaram não conhecerem outras abordagens de ensino. Na categoria prescrição, AP1 e AP9 mencionam que o ensino de inglês nas escolas públicas deve ser pautado em uma metodologia que privilegie o aprendizado da língua. Essa prescrição pode ser evidenciada pela escolha do verbo “dever”.
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Questionário I: “O aluno deve aprender a LI do início” (AP1). Questionário I: “Deve ensinar o que ajuda o aluno compreender a língua” (AP9).
Na avaliação coletiva de trabalho (professores e educadores de professores), um AP avalia o trabalho dos educadores de professores, considerando que cabe a eles a percepção do que “funciona ou não” na prática. Questionário I: “Precisam entender que seguir fielmente a teoria não funciona na prática” (AP6).
No que diz respeito às crenças desses AP sobre as abordagens para o ensino de inglês após o período de estágio supervisionado, foi possível identificar as seguintes categorias: conteúdo, avaliação crítica, avaliação do ensino de LI e avaliação da prática discente. Na categoria conteúdo, os AP apontaram métodos de ensino que o professor deveria usar para ensinar a LI nas escolas públicas. Questionário II: “Abordagem comunicativa” (AP1; AP8; AP14). Questionário II: “Aulas temáticas” (AP2). Questionário II: “Não existe, cada turma tem necessidades diferentes” (AP3). Questionário II: “Deve ser livre para o professor escolher” (AP6). Questionário II: “Estrutura gramática, fonética e vocabulário são elementos imprescindíveis p/ aquisição e domínio da LI” (AP18). Questionário II: “Não somente baseada em gêneros” (AP15). Questionário II: “Ensino de gramática” (AP16).
Ao dizer qual embasamento teórico-metodológico deveria pautar o ensino de LI, os AP também avaliaram as abordagens de ensino, sendo possível a identificação da categoria, avaliação crítica. Questionário II: “Mais eficiente que o embasamento teóricometodológico das DCE (inviabilidade do trabalho com gêneros)” (AP1). Questionário II: “Metodologia pré-determinada dificulta o trabalho do professor e desanima-o” (AP6). Questionário II: “O ensino tradicional não deve ser abolido” (AP4).
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No que tange a categoria avaliação do ensino de LI, AP2 avalia o ensino desse idioma pautado na proposta das DCE de forma negativa. Questionário II: “O ensino hoje está pautado em encher os alunos de texto, uma verdadeira ‘enrolação’” (AP2).
Nos excertos abaixo, identificamos a categoria avaliação da prática discente, onde os AP avaliaram o interesse dos alunos com relação ao ensino de LI. Questionário II: “Os alunos se interessam” (AP4). Questionário II: “O aluno realmente compreende o conteúdo” (AP11).
Ao analisarmos as crenças desses AP sobre o embasamento teóricometodológico que deve(ria) nortear o ensino de LI nas escolas públicas, percebemos que as categorias identificadas no questionário I são divergentes das categorias do questionário II. O Quadro abaixo apresenta as categorias identificadas em ambos os questionários. Pergunta: Em sua opinião, que embasamento teórico-metodológico deve(ria) pautar o ensino de LI nas escolas públicas? Justifique. Questionário I - antes do estágio Questionário II – após o estágio supervisionado supervisionado Outras possibilidades de ensino Conteúdo Ausência de conhecimento Avaliação crítica Prescrição Avaliação do ensino de LI Avaliação coletiva de trabalho Avaliação da prática discente (professores e educadores de professores) Quadro 1: Comparação de categorias
No que tange a análise da segunda pergunta, a qual remetia sobre as (in)viabilidades práticas da proposta teórico-metodológica apresentada pelas DCE após o período de estágio, identificamos duas categorias analíticas: 1. avaliação crítica e 2. (im)possibilidades. Nos excertos abaixo, apresentamos a categoria avaliação crítica, onde os AP apresentam seus pontos de vista quanto à proposta teórico-metodológica das DCE.
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Questionário II: “O ensino de língua fica à margem/discussões em língua materna” (AP1). Questionário II: “O que presenciamos são aulas em Língua Portuguesa com o nome de LI” (AP2). Questionário II: “Não abre espaço para outras teorias que fogem ao gênero” (AP4). Questionário II: “Só aprendemos com gêneros e somos obrigados a ensinar a partir do gênero” (AP6). Questionário II: “Não conhecemos outra metodologia na faculdade” (AP6). Questionário II: “Os alunos precisam saber língua e não se aterem apenas a estruturas” (AP8). Questionário II: “O que as DCE esperam é adequar o conteúdo de LI numa ‘fórmula’ feita para o ensino de língua materna” (AP18).
Com base nos excertos, fica evidente a avaliação negativa dos AP quanto à aquela abordagem, pois criticam o uso exagerado da língua materna nas discussões nas aulas de LI, além de apontarem o trabalho com gêneros como exclusivo em sua formação docente inicial. Quanto às (im)possibilidades, os AP consideraram o trabalho com a abordagem de gêneros textuais na LI como inviável na prática. Essa crença já foi identificada no questionário I na pergunta três5, o que evidencia que essa concepção dos AP quanto à teoria de gêneros textuais permanece imutável, ou seja, os AP não veem aplicabilidade na prática. Questionário II: “É inviável - os alunos ficam cansados de ver tanto tempo o mesmo gênero” (AP6). Questionário II: “São totalmente inviáveis ao tentar trabalhar com gêneros (os alunos não aprendem nada, nem língua, gramática e também não se apropriam do gênero)” (AP7). Questionário II: “Inviáveis - Estão totalmente fora da realidade da escola pública, é método totalmente utópico” (AP8). Questionário II: “É muito deficiente para o ensino de LI” (AP14). Questionário II: “É na perspectiva do gênero e nem sempre condiz com a realidade da sala de aula” (AP16). Questionário II: “Não considera a realidade da maioria das escolas públicas e as condições de trabalho dos professores de LI” (AP18).
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Questionário I: Quais seus entendimentos/percepções sobre o ensino de LI pautado nas diretrizes curriculares do Paraná? Qual sua (in)viabilidade na prática?
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Dessa forma, a análise desses dados evidenciou as crenças dos AP no que diz respeito às abordagens teórico-metodológicas que deveriam nortear o ensino de LI no contexto público, bem como seus conhecimentos sobre outras abordagens para o ensino desse idioma.
Considerações finais
Com base nos resultados obtidos nessa pesquisa, salientamos a necessidade dos professores formadores oportunizarem momentos de reflexão aos seus alunos para que possam pensar sobre as suas próprias crenças e sobre outras crenças a respeito do processo de ensino e aprendizagem de LI, bem como suas relações com a educação docente inicial, pois consideramos que poucos AP têm a oportunidade de refletir sobre as suas crenças nesse período. Dessa forma, corroboramos com Silva et al. (2005), ressaltando que os AP, com o status de futuros professores, trazem para os cursos de educação inicial crenças que foram formadas após suas experiências como aprendizes de línguas e/ou como professores. Sendo assim, no que se refere às crenças dos AP sujeitos dessa pesquisa, constatamos que eles acreditam que a concepção teórico-metodológica de gêneros textuais proposta nas DCE para o ensino de LI no contexto público são falhas, visto que não condizem com a realidade dos alunos e com o processo de ensino de LI no referido contexto, tornando-se inviável sua aplicabilidade. No que tange à metodologia de ensino que deveria pautar o ensino de LI nas escolas públicas, a maioria dos AP considera outras abordagens mais eficazes do que a proposta teórico-metodológica prescrita nas DCE. Com relação ao conhecimento dos AP sobre outras abordagens teóricometodológicas para o ensino de LI trabalhadas nas aulas de prática de ensino, podemos afirmar que não há clareza e/ou conhecimento sobre outras metodologias de ensino de LI. Essa afirmação nos remete a concluir que há falhas na educação docente inicial desses alunos, pois não podemos conceber a ideia de que um futuro professor de LI não tenha conhecimento do histórico de ensino de línguas no Brasil e as abordagens que perpassaram toda essa história. Tal conclusão coaduna-se quando os AP afirmam que
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não possuem conhecimentos necessários para nomear as metodologias de ensino desse idioma. Sendo assim, percebemos a importância e necessidade de pesquisas na área de crenças que trazem as cognições e/ou entendimentos de futuros professores sobre as abordagens teórico-metodológicas para o ensino e aprendizagem de LI, com o intuito de contribuir com os cursos de formação de professores, isto é, para que os educadores de professores possam conhecer as crenças de seus alunos e, dessa forma, tentar amenizar as lacunas existentes entre teoria e prática, bem como formar professores mais críticos, reflexivos e questionadores de sua prática e não apenas meros executores de currículos ideológicos.
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WENDEN, A. Helping language learners think about learning. ELT Journal, v. 40, n. 1, p. 3-12, 1986.
Apêndices Apêndice A – Questionário I 01. Quais suas percepções quanto ao ensino de LI na escola pública? 02. Quais metodologias de ensino de LI você conhece? Comente sobre elas. 03. Quais seus entendimentos/percepções sobre o ensino de LI pautado nas diretrizes curriculares do Paraná? Qual sua (in) viabilidade na prática? 04. Nas aulas de prática de ensino de LI, quais metodologias de ensino são discutidas? Comente. 05. Em sua opinião, que embasamento teórico-metodológico deve(ria) pautar o ensino de LI nas escolas públicas? Justifique.
Apêndice B – Questionário II 01. Avalie o processo de ensino e aprendizagem de LI no seu estágio supervisionado. 02. Qual(is) metodologia(s) de ensino de LI você utilizou? Quais foram os resultados? 03. Após esse período de estágio, comente sobre as (in)viabilidades prática da proposta teórico-metodológica apresentada pelas Diretrizes Curriculares do Paraná. 04. Em sua opinião, que embasamento teórico-metodológico deve(ria) pautar o ensino de LI nas escolas públicas? Justifique. 05. Como as aulas teóricas de prática de ensino contribuíram para o desenvolvimento do estágio supervisionado de LI? E para a sua formação inicial enquanto futuro professor?
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AÇÕES DE FORMAÇÃO CONTINUADA E SEUS REFLEXOS NA SALA DE AULA: O TRABALHO COM OS GÊNEROS DISCURSIVOS/TEXTUAIS Ana Claudia Wittholter (UNIOESTE) O tema dessa pesquisa se volta para as ações de formação continuada e seus reflexos no trabalho com os gêneros discursivos/textuais por professores dos anos iniciais que participaram 100% de um processo de formação continuada direcionado ao ensino da LP por meio de gêneros. Para isso, problematizamos a pesquisa a partir do seguinte questionamento: Como está a prática de trabalho com os gêneros discursivos, em sala de aula, desenvolvida por professores do 5º ano do ensino fundamental, de um determinado município, que já passaram 100% de um processo de formação continuada específica? Diante dessas observações, o objetivo geral da pesquisa foi esquematizado no sentido de estabelecer relações entre o encaminhamento didático-pedagógico de professores do 5º ano no trabalho com gêneros discursivos/textuais na sala de aula e as reflexões teórico-práticas sobre esse tema, propiciadas em momentos de formação continuada. Para isso, estamos embasados teoricamente em autores como Bakhtin (2003), Bakhtin/Volochinov (2004), Costa-Hübes (2008), Kleiman (2001, 2006) dentre outros. Esse estudo se inscreve no âmbito da Linguística Aplicada sustentado pela pesquisa qualitativa de base etnográfica. Todavia, nesse momento de análise, o foco das discussões está, especificamente, no resultado da observação de 16 horas/aula de dois professores. Esta pesquisa se inscreve no Programa Observatório da Educação – CAPES/INEP – uma vez que atuamos como pesquisadora voluntária dentro do Projeto Institucional intitulado Formação Continuada para professores da educação básica nos anos iniciais: ações voltadas para a alfabetização em municípios com baixo IDEB da região Oeste do Paraná. Palavras-chave: gêneros discursivos/textuais; formação continuada; anos iniciais. INTRODUÇÃO Pensar a formação continuada estendida a professores dos anos iniciais do ensino fundamental, no que concerne ao ensino língua portuguesa, é objetivo dessa pesquisa que está ligada ao Programa Observatório da Educação – CAPES/INEP – e inserida no Projeto Institucional intitulado: Formação Continuada para professores da educação básica nos anos iniciais: ações voltadas para a alfabetização em municípios com baixo IDEB da região Oeste do Paraná, que tem como meta promover cursos de formação a professores atuantes na rede pública de municípios do oeste do Paraná com as notas mais baixas no IDEB. Por isso, enfocamos, neste estudo, o processo de formação continuada em língua portuguesa ofertado a professores de um município do oeste do Paraná. Esse município
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foi o que mais ofertou cursos de formação para seus professores. Foram 120 horas entre os anos de 2007 e 2012, com estudos viabilizados por meio de cursos, com discussões voltadas para o ensino da leitura e da escrita a partir do trabalho com os gêneros discursivos/textuais na sala de aula. Deste modo, é nosso objetivo estabelecer relações sobre as reflexões teórico-práticas a respeito dos gêneros discursivos/textuais propiciadas durante ações de formação continuada em Língua Portuguesa e o encaminhamento didático-pedagógico de professores do 5º ano no trabalho com gêneros discursivos/textuais na sala de aula. Para atingirmos nosso objetivo a contento, durante a pesquisa, foram observados 5 professores que participaram 100% desse processo. Além das observações das aulas, que totalizaram 40 horas, trabalhamos com entrevistas e estudo dos documentos ofertados a esses professores durante esses 6 anos de formação. Esse artigo é um recorte dessa pesquisa e, por isso, apresentaremos nossas reflexões sobre o trabalho de dois professores com gêneros discursivos/textuais em sala de aula. Para isso, inicialmente, apresentaremos nossa compreensão sobre formação continuada, em seguida, abordaremos o trabalho com gêneros discursivos/textuais dentro desse processo e, finalmente, nossas observações e reflexões sobre o trabalho com os gêneros discursivos/textuais desenvolvido em sala de aula. 2 FORMAÇÃO CONTINUADA: NOSSA COMPREENSÃO Como o foco dessa pesquisa é a formação continuada, fez-se necessário definir nosso pensamento e entendimento sobre esse processo. Para tanto, recorremos às palavras de Fávero (1981), para iniciar essa reflexão: A formação do professor não se concretiza de uma só vez, é um processo. Não se produz apenas no interior de um grupo, nem se faz através de um curso, é o resultado de condições históricas. Faz parte necessária e intrínseca de uma realidade concreta determinada. Realidade essa que não pode ser tomada como uma coisa pronta, acabada, ou que se repete indefinidamente. É uma 5 realidade que se faz no cotidiano. É um processo e como tal precisa ser pensado (FÁVERO, 1981, p. 17).
Concomitante a definição de Fávero, Almeida (2007) assevera que a formação continuada deve ser “reconhecida como necessidade profissional, não apenas para sanar
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insuficiência da formação inicial, mas porque a formação de professores constitui um processo contínuo” (ALMEIDA, 2007, p.15). Recorremos também a Esteves & Rodrigues (1993) que definem a formação continuada como Aquela que tem lugar ao longo da carreira profissional após a aquisição da certificação profissional inicial (a qual só tem lugar após a conclusão da formação em serviço), privilegiando a idéia de que a sua inserção na carreira docente é qualitativamente diferenciada em relação à formação inicial, independentemente do momento e do tempo de serviço docente que o professor já possui quando faz a sua profissionalização, a qual consideramos ainda como uma etapa de formação inicial (ESTEVES & RODRIGUES, 1993, p. 44).
Logo, entendemos que a formação contínua é sequencial à formação inicial e claramente distinta desta, não pelos conteúdos ou metodologias de ensino, mas sim pelos destinatários dessa formação: indivíduos adultos, já familiarizados com o processo de ensino. Reiteramos esse pensamento, quando Alarcão (1998) concebe formação continuada “como o processo dinâmico por meio do qual, ao longo do tempo, um profissional vai adequando sua formação às exigências de sua atividade profissional” (ALARCÃO, 1998, p. 100), pois a formação contínua deve, além da parte profissional, desenvolver o professor como pessoa, cidadão. Segundo a autora, essa formação seria baseada em projetos desenvolvidos com professores, para professores e pelos professores, complementadas por toda comunidade escolar. À vista disso, Costa-Hübes (2008), ao esclarecer que a formação continuada é um processo educativo permanente, afirma que A formação continuada se insere, não como substituição, negação ou mesmo complementação da formação inicial, mas como um espaço de desenvolvimento ao longo da vida profissional, comportando objetivos, conteúdos, formas organizativas diferentes daquela, e que tem seu campo de atuação em outro contexto (COSTA-HÜBES, 2008, p. 23).
É por isso que, nesse contexto de pesquisa, a formação continuada é vista como um momento de estudo coletivo entre professores e pesquisadores, buscando não apenas o aprofundamento das teorias que competem o ensino de LP, já apresentadas na formação inicial, mas também propiciar a esse professor momentos de reflexão sobre sua práxis.
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3 O TRATAMENTO DOS GÊNEROS EM UM PROCESSO DE FORMAÇÃO CONTINUADA Partimos do pressuposto de que é impossível comunicar-se verbalmente sem valer-se de um gênero - posição defendida por Bakhtin (2003) e adotada por muitos autores que abordam a língua em aspectos discursivos e enunciativos. Esta visão segue uma noção de língua como atividade social, histórica e cognitiva. O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais ou escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana [...]. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. (Bakhtin, 2003, p. 262)
Para garantir uma maior compreensão da concepção interacionista da linguagem, a análise documental nos permitiu recuperar que as reflexões tecidas nesse encontro se voltaram à base teórica do CBEPM (AMOP, 2010), reportando-se aos gêneros discursivos/textuais
e
às
orientações
cunhadas
por
Bakhtin
(2003)
e
Bakhtin/Volochinov (2006). O ponto de partida para as reflexões foi o de recuperar alguns conceitos que subjazem a concepção interacionista de linguagem, tais como: linguagem, língua, enunciado e gênero discursivo/textual. Tais conceitos reorientam a compreensão que se tem de ensino de LP que, numa dimensão interacionista, compreende a formação do sujeito com competência para atuar nos mais diferentes meios de interação. Assim, conforme sintetiza o slide seguinte, explorado junto com os professores, cabe a nós, como professores de LP, formar alunos com capacidade para interagir, compreender e produzir os mais diferentes gêneros na sociedade. Figura 1 - Competências do ensino de LP
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Fonte: Análise documental
Essa compreensão parte do princípio de que “pensar o ensino da Língua Portuguesa implica pensar na realidade da linguagem como algo que permeia todo o nosso cotidiano, articulando nossas relações com o mundo e com o outro, e com os modos como entendemos e produzimos essas relações” (AMOP, 2010, p. 139). Nesse sentido, é preciso garantir ao aluno uma formação que lhe possibilite dominar habilidades necessárias à interação, nas mais diversas situações sociais. Para que isso realmente se efetive, um dos princípios básico é o domínio da língua. Essa compreensão sustenta-se em Bakhtin/Volochinov (2006) para quem não há interação sem língua e, sem interação, não há nenhum tipo de relação social, pois todos os campos de atividade humana estão interligados pelo uso da língua que, segundo Bakhtin (2003), se constitui na forma de enunciados concretos, sejam eles orais ou escritos. Os enunciados são, para Bakhtin (2003), a realização concreta da língua, pois quando queremos falar ou escrever, o fazemos por meio da produção de enunciados (orais e escritos, verbais e não verbais). O enunciado, ao ser constituído, se molda em algum gênero. E, nesse sentido, Bakhtin explica: “qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2003, p.15). Os gêneros discursivos/textuais são portanto, enunciados “relativamente estáveis” que circulam nas distintas esferas de atividade humana, constituídos por conteúdo
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temático, estilo e construção composicional, elementos que foram aprofundados no 7º encontro. À vista disso, é por meio dos gêneros que a sociedade valida sua prática discursiva e atua nos diversos domínios da atividade humana. O conhecimento do gênero, portanto, é muito importante para a comunicação cotidiana, nas mais diversas esferas da comunicação, mais precisamente para um ensino significativo da língua. Essa compreensão de gêneros no ensino da LP é muito importante aos professores, pois permite-lhes entender, conforme o Currículo da Amop, que “não é o texto, por ele, próprio, o foco de atenção nesta concepção, mas a realização concreta da interação locutor/interlocutor(es) mediada pela língua e concretizada nos gêneros do discurso num dado contexto sócio-histórico” (AMOP, 2010, p. 139). Pensar o ensino da LP a partir dos gêneros, significa “pensar na realidade da linguagem como algo que permeia todo o nosso cotidiano, articulando nossas relações com o mundo e com o outro, e com os modos como entendemos e produzidos essas relações” (AMOP, 2010, p. 139). Com base nesse parâmetro teórico, reconhecer a língua como interacional, pode proporcionar ao aluno um ensino reflexivo sobre a língua em circunstâncias reais do uso, fazendo com que reconheçam, produzam e utilizem de forma significativa, diferentes gêneros discursivos/textuais. Essas considerações serão abordadas na sequência. 4 DA FORMAÇÃO CONTINUADA PARA A PRÁTICA: (IN)COMPREENSÕES NA SALA DE AULA A fim de analisar os reflexos da formação continuada nas aulas de língua portuguesa, foram necessárias algumas horas de observação que tiveram como objetivo perceber se no trabalho com LP, o professor seleciona um gênero para estudo e, mais precisamente, o que ele faz como esse gênero em termos de encaminhamentos de atividades de leitura, análise linguística e produção e reescrita de textos. Nesse momento da pesquisa, dois professores foram observados, ambos ao iniciarem o trabalho com LP partiram do gênero. O professor1, em 8 horas, trabalhou com gêneros
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digitais e fábulas, enquanto o professor 2, com o gênero lenda. Por motivos de tempo e espaço, analisaremos aqui, o apenas trabalho do segundo professor. O professor, ao adentrar a sala, deixa claro para os alunos que naquele dia iniciase uma nova sequência didática (SD), sobre o gênero textual/discursivo lenda. No Currículo (AMOP, 2010), as SD são definidas “como o encaminhamento didáticometodológico que dá conta desse trabalho com os gêneros textuais” (AMOP, 2010, p. 144-145), por tratarem-se de um conjunto de atividades organizadas em torno de um gênero (oral ou escrito) com o propósito de garantir ao aluno um estudo mais sistemático do gênero selecionado. Esta proposta de trabalho é sugerida por Dolz, Noverraz e Scnheuwly (2004). Desse modo, uma SD, segundo os autores pode organizar-se a partir dos seguintes módulos: apresentação da situação interação quando ocorre a seleção de um gênero discursivo, uma primeira produção (oral ou escrita), elaboração de módulos de atividades a partir das dificuldades apresentadas pelos alunos na primeira produção, e, finalmente, a produção final, quando se espera que o aluno retome sua produção inicial, incorporando nela os conteúdos apropriados por meio dos módulos trabalhados. Tendo em vista a realidade diferenciada que circunscreve a disciplina de LP no Brasil, Costa-Hübes (2005) propõe uma adaptação à proposta, que consiste na inclusão de um módulo de reconhecimento do gênero, com atividades que considerem a leitura, a investigação e a análise linguística de textos do gênero, antes da etapa de produção inicial e, ainda, um módulo final que contemple a circulação do gênero. Essa adaptação foi apresentada tanto nos encontros de FC, quanto no currículo de LP da AMOP. Vejamos o slide apresentado na FC: Figura 02 – Adaptação da proposta de SD
Fonte: Informação recuperada pela pesquisa documental
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Essa necessidade de adaptação é explicada por Costa-Hübes (2008) conforme recorte apresentado no slide seguinte: Figura 03 – Justificativa da adaptação da SD
Fonte: Informação recuperada pela pesquisa documental A partir das considerações sobre sequência didática, podemos observar que a professora faz toda uma contextualização sobre o gênero em questão, iniciando sua fala com o folclore brasileiro, suas características e elenca, com a ajuda dos alunos, a gama de textos que fazem parte do folclore brasileiro, (entre eles, ditos populares, as cantigas de roda, as quadrinhas populares) que é tratado pelo professor como uma esfera de comunicação, pois os gêneros sempre estarão agrupados em diferentes esferas, conforme sua função específica (informar, fazer rir, criticar, explicar, orientar, planejar etc.). De acordo com Faraco (2008) a noção de gênero serve “como uma unidade de classificação: [para] reunir entes diferentes com base em traços comuns” (FARACO, 2008, p. 109). Dessa forma, ao elencar os gêneros com os alunos o professor distribui um recorte com vários gêneros discursivos/textuais, dentro os quais os alunos deveriam identificar os que faziam parte do folclore Figura 04 – Encontrar os gêneros que fazem parte do folclore LENDAS PARLENDAS DITOS POPULARES CHARGES
ROMANCES
FABULAS
POEMAS PROVÉRBIOS
FRASES DE PARA-CHOQUE DE CAMINHÃO
RÓTULO CANTIGAS DE NINAR
RECEITAS
CONTOS ADIVINHAS SLOGAN QUADRINHAS
Fonte: Informação recuperada pela pesquisa documental
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Assim, as esferas de atividade humanas são tão diversas como os gêneros que as formam. Podemos falar em esfera familiar, religiosa, política, acadêmica, escolar, literária, jornalística, jurídica etc. Os enunciados produzidos nas mais diversas esferas sociais trazem “como unidades da comunicação discursiva certas peculiaridades estruturais comuns, e antes de tudo limites absolutamente precisos” (BAKHTIN, 2003, p. 275) que permitem-nos definir os gêneros. Em seguida, a professora foca no gênero lenda e inicia lendo “Gralha Azul”, uma lenda paranaense. Além disso, mostrando um livro que compila lendas de todas as regiões brasileiras, explica de onde vieram e por que vieram, passando pelo contexto de produção de uma lenda, quem a produz, para quem ela é produzida. Cumprindo até aqui, a parte inicial da sequência didática proposta por COSTA-HÜBES (2008), como também atingindo um dos aspectos caracterizadores dos gêneros, o conteúdo temático, definido por BAKHTIN (2006), como “as formas e os tipos de interação verbal em relação com as condições concretas que se realiza” (Bakhtin, 2006, pág. 124). Ou seja, conhecer todo o contexto de produção que circunda o gênero em questão é fundamental para seu entendimento. O trabalho com o texto “Gralha Azul” é encerrado e a professora distribui cópias da lenda “Vila Velha”; as discussões sobre o conteúdo temático são retomadas e, logo em seguida, há uma discussão sobre os elementos que constituem a lenda, a professora foca, principalmente, nos elementos essencialmente narrativos: personagens, tempo, espaço, ela traz uma atividade em que os alunos deveriam pintar no texto: os personagens em azul, o local em que a história acontecia de amarelo, o tempo da história em verde, em vermelho a situação problema e em marrom a resolução do problema. Aqui, podemos encontrar aspectos da construção composicional do gênero que diz respeito aos aspectos que fazem com que os gêneros sejam distinguidos um do outro, como aponta Bakhtin (2004) são “as formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos” (BAKHTIN, 2004, p. 124). Além disso, ela também apresenta algumas questões interpretativas cujas respostas eram encontradas em sequência no texto. Questões de inferência foram feitas oralmente pela professora. Ao final das correções, a professora inicia um breve trabalho com análise linguística, fala dos adjetivos e de como eles “ajudaram” construção de sentido do
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gênero em questão. A atividade de pintura é retomada, agora com os adjetivos. Levando em consideração que trabalhar com a análise linguística é analisar a língua em uso, Geraldi (1984) coloca que ela “inclui tanto o trabalho sobre as questões tradicionais da gramática quanto questões amplas a propósito do texto, entre as quais vale a pena citar: coesão e coerência internas do texto; adequação do texto aos objetivos pretendidos; análise dos recursos expressivos utilizados [...]; organização e inclusão de informações, etc. (GERALDI, 1984, p. 74)”
Assim, a análise linguística constitui uma tarefa reflexiva que reúne tanto a organização textual do gênero escolhido, sua situação social de produção, a seleção do léxico, os mecanismos de textualização empregados como também as regras gramaticais cogentes para a situação de uso da língua, todavia a professora pouco aprofunda em relação aos adjetivos. Durante a FC, os professores puderam entrar em contato com os objetivos da análise linguística. Vejamos o slide Figura 05 – Análise linguística
Fonte: Informação recuperada pela pesquisa documental No caso da aula observada, a professora não tratou os adjetivos na visão da gramática, no entanto, pouco aprofundou sua importância na construção da lenda, bem como não abordou outros mecanismos de textualização e seleção lexical. Depois disso, os alunos foram instruídos a produzir sua primeira lenda. A produção foi uma releitura de alguma lenda lida em sala de aula. A correção dos textos foi feita na aula seguinte, individualmente. Observamos que a professora corrige pontuação, ortografia, acentuação, mas também leva em consideração o que lhe foi
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repassado durante a FC. Ela observa se o gênero produzido atendeu à necessidade de interação estabelecida, seu contexto de produção, se o gênero estava de acordo com a esfera de circulação a qual ele pertence, se ele abrangia o tema proposto, ao formato do gênero e, principalmente, o domínio da capacidade de linguagem que o gênero requeria, nesse caso: narrar. Apenas os textos que não atenderam algum dos critérios acima elencados, tiveram que ser reescritos pelos alunos. Na aula seguinte, outra produção lhes foi dada: agora eles deveriam fazer com que a lenda escolhida se transformasse em uma nova lenda, ou seja, ela teria novos personagens e nova situação problema. A correção desta foi feita exatamente como a da outra, no entanto, todos reescreveram suas lendas, agora no laboratório de informática. As lendas foram impressas e, compiladas, transformaram-se em um livro, ilustrado por eles e distribuído para a leitura dos demais alunos da escola. Aqui, a professora atinge mais um objetivo proposto pela sequência didática: faz com que os gêneros discursivos/textuais produzidos pelos alunos circulem. CONSIDERAÇÕS FINAIS Foi nosso objetivo nesse artigo estabelecer uma relação entre FC e seus reflexos na sala de aula. Por tratar-se de um recorte de nossa pesquisa de mestrado, nos propusemos a analisar, a partir de observações em sala de aula, como estava o trabalho com os gêneros discursivos/textuais desenvolvido por professores do 5º ano. Para isso, nosso foco foi em um professor que, partiu do gênero discursivo/textual lenda, para ensinar LP. A partir dessas observações podemos findar que, ainda com algumas dificuldades, o professor coloca em prática o que lhe foi repassado durante os encontros de FC, pois ele parte do gênero para ensinar e, sobretudo, perpassa as etapas da sequência didática. Ainda que notamos alguma problema em relação ao trabalho com análise linguística, vale destacar que ao trabalhar com a lenda a professora conseguiu abordar os três aspectos caracterizadores dos gêneros discursivos/textuais: construção composicional, conteúdo temático e estilo.
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E CHICO BENTO CHEGA À FACULDADE: ASPECTOS SOCIOLINGUÍSTICOS, SEMIÓTICOS E DISCURSIVOS DA REVISTA “CHICO BENTO MOÇO” Ana Lúcia M. R. Poltronieri Martins (IFF-RJ/ SELEPROT-UERJ) Ana Maria Gini Madeira (NAD- UFMG) Há anos, as histórias e tirinhas do personagem Chico Bento são usadas nas aulas de língua portuguesa, a fim de exemplificar a diversidade linguística que existe em nosso país. Alguns professores, infelizmente, utilizam-nas como pretexto para o ensino da norma-padrão ou da norma culta, perdendo, assim, a oportunidade de ensinar e valorizar as variedades linguísticas no ambiente escolar. Em 2013, Maurício de Sousa lançou a versão jovem do Chico Bento, denominada “Chico Bento Moço”1, na qual o protagonista vai para a cidade estudar em uma universidade e, consequentemente, buscar novas oportunidades. O objetivo do nosso artigo é estudar, primeiramente, como se dá a passagem roça-cidade, segundo os contínuos como a urbanização, a oralidade/ letramento e a monitoração de estilo (BORTONI-RICARDO, 2004). A nosso ver, a mudança de espaços não só trouxe uma adequação, tal como formulada por Dell Hymes (1966), realizada pelo personagem por meio da linguagem verbal, mas também uma mudança significativa na linguagem não verbal, por meio da nova imagem que caracteriza o Chico Bento jovem, a partir de sua potencialidade imagética, ou iconicidade imagética (PEIRCE, 2005; SIMÕES, REI, 2012), como, por exemplo, o traço mangá, de origem oriental. Por fim, analisar-se-á o discurso desse novo Chico Bento, tendo em vista as condições sociodiscursivas (crenças, valores culturais, autocensura, adequação da linguagem) em que ele se insere neste “novo começo”, como bem frisa Maurício de Sousa, o autor da revista.
Neste artigo, não se usará nenhuma imagem, em consonância com as normas para publicação nos anais do III CIELLI, nos quais as imagens só poderão ser utilizadas com a expressa autorização dos detentores dos respectivos direitos autorais. 1
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O personagem Chico Bento: da roça para a cidade Chico Bento surgiu em 1961 e faz parte do time de personagens criado pelo desenhista e cartunista brasileiro Maurício de Sousa, tais como Mônica, Cascão, Cebolinha, Magali, entre outros que compõem a “A Turma da Mônica”, uma série de revista em quadrinhos que faz muito sucesso, no Brasil, com os leitores infanto-juvenis. Assim como muitos outros personagens da série, Chico Bento mereceu uma revista própria, cuja edição é mensal. Este primeiro Chico Bento, criado em Vila Abobrinha, na zona rural, representa o menino caipira alegre e esperto. Segundo a sociolinguista Bortoni-Ricardo (2004, p. 45-46), Chico Bento é um exemplo típico do falar rural, principalmente do interior de São Paulo e de Minas Gerais. Para a pesquisadora, Chico Bento pode ser considerado como um símbolo da diversidade linguística e do multiculturalismo no Brasil. É importante ressaltar essas características, a fim de compreender o papel do personagem em nossas aulas de língua portuguesa. Para muitos professores, a fala do Chico Bento, que manifesta um segmento linguístico ainda marginalizado, contextualiza a teoria e o papel da variação linguística, propiciando aos alunos uma reflexão sobre os vários fatores que interferem em uma comunidade de fala, como idade, sexo, status socioeconômico, nível de escolaridade, mercado de trabalho e rede social, conforme aponta Bortoni-Ricardo (2004). A compreensão desses fatores é muito importante, porque é através da linguagem que se observam as identidades e as diferenças de uma comunidade ou de um indivíduo. E o primeiro Chico Bento, ou o Chico Bento criança, não foge à regra, visto que o seu repertório sociolinguístico representa a sua comunidade rural, como se pode ver nas expressões regionais usadas, na escolha do léxico, no rotacismo (troca do /l/ pelo /r/),
entre outros. Em um exercício para
demonstrar a importância de se estudar o contínuo de urbanização nas aulas de variação linguística, Bortoni-Ricardo (idem) chama a atenção para os traços graduais, ou seja, presentes nos polos rurais, rurbanos2 e urbanos, e descontínuos, pouco frequentes ou 2
Segundo Bortoni-Ricardo (2004, p. 52), as comunidades rurbanas são “migrantes de origem rural que preservam muito de seus antecedentes culturais, principalmente no seu repertório linguístico, e as comunidades interioranas residentes em distritos ou núcleos semirrurais, que estão submetidas à influência urbana, seja pela mídia, seja pela absorção de tecnologia agropecuária”.
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ausentes dos polos urbanos e, por isso, são vistos como “erros” e, consequentemente, alvos de preconceito linguístico (BAGNO, 1999).
Logo, na fala do Chico Bento
criança, há traços tanto graduais como descontínuos, como se nota na lista elaborada por Bortoni-Ricardo (idem, p.54) a partir de uma história do Chico Bento: 1-inté (descontínuo), 2- limoero (gradual), 3- prantei (descontínuo), 4- artura (descontínuo), 5ocê (gradual), 6- ponhei (descontínuo), 7- dos vento (gradual), 8- sor (descontínuo), 9dexei (gradual), 10- tivé (gradual), 11- dibaxo (gradual), 12- uma foia (descontínuo), 13- percisá (descontínuo), 14- muié (descontínuo) e 15- dispois (descontínuo). Salientase que a análise do contínuo de urbanização permite ao aluno compreender que ele próprio faz uso, em sua fala, de traços graduais e descontínuos, permitindo, assim, um melhor entendimento da importância do estudo da variação linguística em sala de aula. De acordo com Bortoni-Ricardo (2004), outros tipos de contínuos também devem ser considerados na análise da variação linguística. Assim, tem-se o contínuo de oralidade-letramento, no qual se dispõem os eventos de letramento e de oralidade. É evidente que, quanto mais próximo do polo urbano, mais frequentes serão os eventos de letramento. Por outro lado, os eventos de oralidade estão mais presentes no polo rural, onde o nível de escolaridade é menor. Porém, Bortoni-Ricardo (idem) lembra que, em algumas ocasiões, podem não existir limites preestabelecidos entre os dois eventos, visto que pode haver uma sobreposição, como, por exemplo, numa aula ou numa missa. O outro tipo é o contínuo de monitoração estilística, no qual, temos, de um lado, as interações espontâneas, que se situam no polo menos monitorado, e, de outro lado, as situações planejadas, localizadas no polo mais monitorado. Segundo a pesquisadora, alguns fatores influenciam o contínuo de monitoração estilística, como o ambiente, o interlocutor e o tópico da conversa.
Nesse sentido, numa entrevista de emprego,
empregar-se-á um estilo mais monitorado; já, numa conversa entre amigos, o estilo será menos monitorado. Se se pensar no personagem Chico Bento criança, um falante rural, escolarizado em uma pequena escola de sua comunidade, localizá-lo-emos nos contínuos rural, de oralidade e de menor monitoração linguística, de acordo com os fatores que o influenciam e que já foram citados neste artigo. Entretanto, em agosto de 2013, chegou às bancas também a primeira edição da revista “Chico Bento Moço”, seguindo a linha da “Turma da Mônica Jovem”, na qual os
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protagonistas são adolescentes. Em “Chico Bento Moço”, Chico Bento é um jovem que migra sozinho do polo rural para o urbano a fim de cursar a universidade. Em uma entrevista3 realizada com Marcelo Cassaro, roteirista do “Chico Bento Moço”, ele caracteriza este novo Chico Bento como “estudou e hoje fala o português corretamente, mas ainda recorre a expressões caipiras em momentos de espanto ou indignação”. Ressalta-se o advérbio “corretamente”, que infere que o outro Chico Bento, o da versão infantil, não fala corretamente, o que caracteriza, segundo a Sociolinguística, um preconceito linguístico. A nosso ver, a criação de um Chico Bento jovem, urbano, e que fala corretamente, conforme disse o seu roteirista, pode causar algumas indagações, caso a revista “Chico Bento Moço” seja trabalhada nas aulas de português, tais como: 1Por que se escolheu apagar quase totalmente o falar rural do Chico Bento jovem, visto que ele poderia ter se situado na faixa rurbana do contínuo de urbanização? 2- Por que o Chico Bento jovem abraça o estilo mais monitorado, ou seja, menos espontâneo e mais planejado, mesmo nas situações em que o ambiente, o interlocutor e o tópico da conversa exigiriam, naturalmente, menos monitoração, como se observa na primeira edição da revista? 3- Por que nos eventos de interação mais íntimos e familiares, a fala do Chico Bento jovem é, muitas vezes, mais ligada ao letramento do que à oralidade? A nossa crítica advém do fato que este novo Chico Bento, um jovem universitário, não sabe jogar o jogo socioenunciativo que permeia os diversos tipos de interação que nos rodeiam cotidianamente. Nesse sentido, faltou ao roteirista uma maior sensibilidade para compreender as noções de adequação e de viabilidade
que fazem parte da
competência comunicativa (DELL HYMES, 1966, apud BORTONI-RICARDO, 2004). Segundo Bortoni-Ricardo (2004), em um capítulo dedicado à competência comunicativa, a noção de adequação é importante para o falante de toda e qualquer língua, porque “quando faz uso da língua, o falante não só aplica as regras para obter sentenças bem formadas, mas também faz uso de normas de adequação definidas em sua cultura. São essas normas que lhe dizem quando e como monitorar seu estilo” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 73). Outra noção importante é a de viabilidade, a qual a pesquisadora brasileira, diferentemente de Dell Hymes (1966), 3
Ver a reportagem intitulada “Chico Bento Moço com www.agriculturasustentavel.org.br. Acesso em 22/08/2014, às 22h30.
sotaque
associa aos
piracicabano”
em
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recursos comunicativos, como o saber gramatical, o lexical e as estratégias retóricodiscursivas. Para muitos sociolinguistas, a escola tem um papel primordial não só na aquisição dos recursos comunicativos como na sua ampliação, disponibilizando para o aluno gêneros textuais com diferentes competências comunicativas. No caso da revista “Chico Bento Moço”, acreditamos que cabe ao professor mostrar as passagens que, sob a luz da Sociolinguística, são consideradas problemáticas para a reflexão das variedades linguísticas na aula de língua portuguesa. Os aspectos semióticos: a iconicidade imagética O novo Chico Bento traz uma novidade no estilo do desenho: o traço mangá, de origem nipônica. Segundo Vergueiro e Ramos (2013, p. 105), a palavra “mangá” vem da língua japonesa e significa “involuntário” (man) e “desenho/imagem” (gá). Em uma entrevista4, Maurício de Sousa revela que a escolha se deveu ao fato de o mangá ser um estilo, hoje, universal, presente até mesmo nos Estados Unidos, onde os leitores preferem os traços realista e estilizado. No Brasil, o mangá tem como público-alvo o leitor jovem, na faixa dos 13 aos 18 anos, que vai ao encontro de assuntos que lhe são pertinentes, como amor, gravidez, ecologia, e outros temas ligados à realidade social do jovem brasileiro. Desse modo, encontramos, na primeira edição, um Chico Bento jovem, cujos olhos são arredondados e brilhantes, os cabelos são negros e lisos, desenhado em preto e branco e preocupado com os problemas sociais e existenciais de sua faixa etária. Sabe-se que Peirce (2005) estabeleceu dois tipos de iconicidade: a diagramática, presente, por exemplo, no arranjo dos signos em um texto, e a imagética, na qual há uma relação entre a imagem e o seu referente. No caso das histórias em quadrinhos, há uma sobreposição da imagem sobre o referente, ou objeto imediato para Peirce, visto que a imagem, para o leitor, é o próprio referente. Ou seja, em Chico Bento jovem, não há fora da imagem um referente. Assim, referente e imagem sobrepõem-se. Segundo 4 4
Ver a reportagem intitulada “Maurício de Sousa conta por que investiu no público jovem e nos mangás”, de 13/09/2013, em www.portalimprensa.com.br. Acesso em 20/08/2014, às 20h45.
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Simões e Rei (2012), a iconicidade imagética é, em grande parte, dependente de um traço indicial, isto é, de uma ideia subjacente contida no signo icônico. Assim, pode-se fazer a seguinte leitura da caracterização da imagem deste novo Chico Bento, tendo como referência as imagens da primeira edição: a camisa xadrez e botas: índices do ambiente rural; a bolsa tiracolo: índice do jovem universitário urbano; a camiseta, jeans e tênis: índices do jovem urbano, e, na história, da mudança de espaço do Chico Bento, ou seja, da roça para a cidade. Logo, a composição da imagem está intimamente relacionada com a mudança espacial campo-cidade, assim como outras mudanças, da escola para a universidade, da criança para o jovem. No campo da fala, a mudança firma-se entre os polos “errado” e “certo”, ou “variedade estigmatizada” e “norma culta”. Os aspectos discursivos No dizer de Koch (1998), o processo de produção textual, no quadro das teorias sociointeracionais da linguagem, é concebido como atividade interacional de sujeitos sociais, tendo em vista a realização de determinados fins. Assim, há um sujeito planejador-organizador em interrelação com outros sujeitos, sob influência de uma complexa rede de fatores, entre os quais a especificidade da situação, o jogo de imagens recíprocas, as crenças, convicções, atitudes dos interactantes, os conhecimentos (supostamente) partilhados, as expectativas mútuas, as normas e convenções socioculturais. No caso da primeira edição do “Chico Bento Moço”, chamam a atenção no texto alguns momentos significativos da narrativa em que se comprovam os aspectos da atividade interacional de sujeitos no que se refere à dicotomia norma culta e falar rural. Chico Bento, ao longo da sua vida no campo, até o momento de ir para a faculdade, recebeu uma forte influência sociocultural, em especial, quanto ao falar rural, característico da região, ainda que, na escola, fosse exposto à norma culta. Já tendo terminado o ensino médio e tendo sido aprovado no vestibular, ele agora passa se policiar quanto a sua forma de expressão, buscando sempre fazer uso da norma culta.
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Com relação à adequação da linguagem que se faz necessária em razão das especificidades da situação de interlocução, vale citar a passagem em que, estando na sua casa, no campo, o personagem Chico Bento vai tirar leite da vaca “Maiada”, mas só é bem sucedido, ou seja, ela só o reconhece e atende o seu comando quando ele usa o falar rural ao qual ela está habituada. Tal passagem nos remete ao fato de que, para cada situação de interlocução, é preciso fazer uso da linguagem que se percebe adequada naquele contexto. Isso só é possível quando se tem o domínio das diversas variantes e se está consciente de que uma não se sobrepõe à outra, mas sim é mais, ou menos adequada àquela situação de interlocução. Interessante notar que ocorre de, em determinados ambientes, o falante empregar intencionalmente de forma “incorreta” um termo que seria considerado “errado” se fosse empregado corretamente. Isso se dá, por exemplo, com uso do futuro do subjuntivo do verbo ver, na primeira e na terceira pessoa do singular – vir – que soa como um erro quando usada, em razão do desconhecimento dessa forma por uma parte significativa dos falantes de língua portuguesa no Brasil. Em outra passagem da primeira edição, intitulada “Um novo começo”, manifesta-se a questão da autocensura, que pode ser percebida em casos como o de Chico Bento que agora, tendo o conhecimento da norma culta, busca fazer uso dela em qualquer situação de interlocução e, ao se perceber transgredindo tal regra, se sente desconfortável. É isso o que ocorre quando ele, conversando descontraidamente com o pai, faz uso do falar rural, que seu pai chama de “caipirês”. No momento em que se percebe fazendo uso da linguagem que, no seu entendimento, agora não deveria mais ser usada por ele, reage constrangido e pede desculpas ao pai. Mais uma vez se pode perceber o conceito internalizado ao longo do seu tempo de estudos de que só a norma culta é válida e tida como correta. Assim, aquele que era considerado um falar menos prestigiado deve ser substituído. É o pai de Chico Bento que sabiamente diz ao filho que ele está em família e que ali pode continuar usando o “caipirês”, ou seja, que não será, por isso, considerado alguém menos competente linguisticamente. Nesse sentido, infere-se que o pai possui mais competência comunicativa (Dell Hymes, 1966) do que o Chico Bento jovem, já na universidade. As situações acima descritas e comentadas nos alertam para o quanto é importante não apenas instrumentalizar o aluno para uso da norma culta, mas, ao fazê-
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lo, ter o cuidado de deixar claro que essa não é a única forma de expressão a ser empregada, em detrimento da outra, ou outras, que fazem parte da construção da identidade do sujeito. Referências BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Editora Loyola, 1999. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna- a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. HYMES, Dell H. Language in Culture and Society. New York & London: Harper & Row, 1966. KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto, 1998. PEIRCE, Charles S. Semiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2005. SIMÕES, Darcilia M.P.; REI, Claudio Artur O. Variação linguística e gêneros textuais: questão de estilo. Revista de Letras, Fortaleza, v. (1/2), n. 31, jan./dez. 2012. SOUSA, Maurício de. Chico Bento Moço- um novo começo. São Paulo: Editora Panini Brasil LTDA, agosto de 2013, número 1. VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS, Paulo. Quadrinhos na Educação: da rejeição à prática. São Paulo: Editora Contexto, 2013.
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A VIOLÊNCIA SEXUAL EM IMAGENS E(M) DISCURSO Ana Maria de Fátima Leme Tarini (UNIOESTE) Lendo o artigo “Violência contra a mulher: da legitimação à condenação social”, no livro “Nova história das mulheres no Brasil”, nos damos conta de que as mulheres, ao longo da história, têm sido consideradas as culpadas pelos abusos sexuais e estupros que sofreram, e isto ocorre ainda neste século. As autoras deste artigo apresentam um caso de grande repercussão no Brasil em cada década do século XX, para ilustrar e dar peso a esta afirmação. Este percurso termina com o caso de Eliza Samúdio, julgado no ano de 2012 (no qual o corpo desapareceu). O que mais chama a atenção, nesse artigo, é que em todos os casos policiais relatados (em mídia impressa), os agressores ou tiveram penas abrandadas ou não tiveram pena alguma e os julgamentos se arrastaram por anos. Em alguns, as vítimas foram estupradas, em seguida, assassinadas, em outros, foram espancadas e assassinadas. É na tessitura discursiva que as autoras vão mostrando que, para a sociedade patriarcal, as mulheres motivam o crime, incitam os homens pelo comportamento imoral. Inclusive, o comportamento de mulher não “honesta" justificava legalmente maus tratos, cárcere privado, estupros e homicídios. E esta é uma história muito recente para as mulheres, tanto que o termo “mulheres honestas” esteve presente de 1940 a 2003, nos artigos 213 e 214 do Código Penal brasileiro. Visando compreender os enunciados e imagens que trazem à tona o assunto estupro, selecionamos dois objetos para análise: um folheto de uma campanha de segurança que circulou na Inglaterra, em 2012, e duas fotos de um caso de estupro de uma criança, ocorrido no Brasil, na cidade de Maringá, em 2011. O problema da pesquisa é compreender como se constituem esses discursos a respeito da culpabilidade das vítimas de estupro e não outros discursos; que práticas discursivas se apresentam nesses regimes do dizer e de olhar as imagens sob a perspectiva dos estudos Foucaultianos (2004; 2005) a respeito de enunciados e, principalmente, da biopolítica e do biopoder. Além de buscarmos apoio nos textos de Dubois (1993) sobre a imagem fotográfica, em Manguel (2001) sobre a leitura de imagens, Bucci; Kehl (2004) a respeito das questões ideológicas e de consumo presente nas imagens.
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Compreendendo imagem e discurso Para compreender a materialidade discursiva das imagens selecionadas, esta seção busca formalizar um quadro teórico que constitua um conjunto de pressupostos para ser o suporte das análises que pretendemos desenvolver. Assim, o arcabouço teórico do qual usufruímos, inicialmente, são estudos de Foucault, apresentados em “A arqueologia do saber”, a fim de estabelecermos o que entendemos por enunciado, e, nesta perspectiva o trabalho de Foucault é essencial como base para uma análise (ou análises). Para o autor, um enunciado é sempre um acontecimento. “Trata-se de um acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque está ligado, de um lado, a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra, mas por outro lado, abre para si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória [...]” (FOUCAULT, 2005, p. 31). Essa materialidade pode aparecer em diferentes formas de registro, porém é sempre única “como todo acontecimento, mas está aberto à repetição, a transformação, à reativação [...] a enunciados que o precedem e o seguem” (FOUCAULT, 2005, p. 32). Além disso, faz-se necessário observarmos que os estudos de Foucault também foram muito relevantes no que tange ao uso do corpo e à compreensão da sexualidade. Neste sentido, quando trazemos a expressão “mulher honesta”, retomamos a ideia de que há comportamentos considerados morais (seguem os costumes estabelecidos numa sociedade) e outros imorais (os que fogem às regras) na vida sexual da sociedade. Mas desde quando a sociedade se ocupa em estabelecer e policiar o que é imoral? Desde quando a sexualidade passou a tomar lugar nas preocupações da sociedade? Para Foucault (2004, p. 244) “o cristianismo antigo trouxe para o ascetismo antigo várias modificações importantes: intensificou a forma da lei, mas também desviou as práticas de si na direção da hermenêutica de si e do deciframento de si mesmo como sujeito de desejo.” Inclusive com seus estudos, afirma que “o próprio ato sexual, sua morfologia, a maneira com que se busca e se obtém prazer, o ‘objeto’ do desejo quase não parecem ter sido um problema teórico muito importante na Antiguidade” (FOUCAULT, 2004, p. 245). Talvez porque mais importante que se preocupar com a sexualidade da população, naquele momento, era necessário se preocupar com a escassez de alimentos, com as guerras por manutenção ou aquisição de territórios, com as inúmeras doenças, enfim com a sobrevivência de sua espécie.
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Todavia, com as mudanças sociais, a industrialização e a produção em larga escala de alimentos e bens de consumo, esta se tornou uma preocupação menor. Assim, em tempos modernos, segundo os estudos de Michel Foucault “[...] o sexo e, portanto, a própria vida, se tornaram alvos privilegiados da atuação de um poder disciplinar que já não tratava simplesmente de regrar comportamentos individuais e individualizados, mas que pretendia normalizar a própria conduta da espécie”, (DUARTE, 2008, p.49) incidindo sobre vida e o uso do corpo desse ser social. A transformação da sociedade regida por um soberano que tinha o “direito de fazer morrer ou de deixar viver”, conforme Duarte (2008, p.50), passa a dar “lugar ao biopoder como nova modalidade de exercício do poder soberano, que agora será um ‘poder fazer’ viver e ‘deixar’ morrer”. Mas para o Estado moderno isto só é um problema quando o sujeito se torna um problema, pois este sujeito somente é importante para esta sociedade se esta precisar dele, seja para dele tirar proveito ou para com ele exemplificar o que outros devem ser e fazer, pois não existe corpo que seja constituído naturalmente, que seja livre “[...] anterior a qualquer trabalho da cultura – ele é sempre resultado de investimentos de poder e de enunciações por saberes: sua própria ‘natureza’ é construída” (PRADO FILHO; TRISOTTO, 2008, p. 116, 2008) Para além do controle do corpo, a vida, “passou a se constituir no elemento político por excelência, que tem de ser administrado, calculado, gerido, regrado e normalizado, o que se observa não é um decréscimo da violência. Muito pelo contrário [...]” (DUARTE, 2008, p. 50) a violência se torna necessária, aumentando o número de mortes que são “controladas” pelo Estado e suas estatísticas. Os discursos a respeito da sexualidade humana, enfim, da vida, aparecem conforme as condições de produção histórico-cultural de cada país. Na História da sexualidade I, Foucault percebe a importância estatal do racismo, por exemplo. No qual as nações fazem uso de separações biológicas para indicar superiores e inferiores, raças ruins e raças boas, degenerados, anormais, em suma, quem deve viver e quem deve morrer. Eis o que Foucault classificou como biopolítica. No que tange à imagem, em seus estudos, Dubois (1993, p. 53) assinala três possibilidades de posicionamento epistemológico ao analisarmos a imagem fotográfica
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em seu realismo ou como documento. As três posições nos proporcionam um panorama no que tange às teorias sobre fotos. Primeiramente, a foto pode ser considerada pela sua reprodução da realidade, pela verossimilhança, similaridade mostrada como num espelho do que foi visto pelo outro; em segundo, na análise, há que se compreender que a foto (a imagem) não pode representar um real empírico, mas uma forma de realidade expressa em seu conjunto de códigos (símbolos que os representam) e, por fim, o autor considera que a imagem foto é inseparável de seu referente, de seu índice, do ato inicial de que resulta. Para nós, analistas de discursos, é interessante notarmos que os significados das imagens não estão neles mesmos, por si só a imagem pouco, ou nada, nos revela. Quando ouvimos alguém dizer que “a imagem fala mais que mil palavras”, podemos nos questionar: então o que ela fala, de que ângulo eu devo olhá-la para que ela me fale algo, de quando é essa imagem, por quem e onde foi vista? Muitas indagações que, talvez, apenas com palavras referenciando podemos compreender. É desta maneira que falamos da imagem, pela imagem, sobre a imagem, conforme nossas experiências sociais, culturais, antropológicas, moral, etc. Imagem toma parte de nossa mente, nossos dias, consumimos imagens. Para Bucci; Kehl (2004), nessa sociedade tudo se consome, sejam inspirados no marketing da novela (que vem recheada de propaganda), ou em qualquer outro meio utilizado para a mercantilização, a ordem é o “gozo”. Gozar tudo, consumir tudo o que desejamos. Todavia, para Bucci; Kehl (2004, p. 61) “o desejo é social. Desejamos o que os outros desejam, ou o que nos convidam a desejar”, pois “O inconsciente, como se sabe, não é ético – nem antitético. O inconsciente é amoral”. Discursos nas imagens x imagens nos discursos Para a realização desta análise houve a necessidade de selecionar imagens, o que foi um trabalho de longa duração, um trabalho árduo, não por ter poucas opções, ao contrário, por ter muitas. Neste caso, o processo seletivo, mesmo que para uma análise linguística-discursiva que pretende compreender imagens e discursos, pode mexer com a subjetividade de quem analisa, visto que as imagens que encontramos são detalhadas:, mostram mulheres cortadas, estranguladas e queimadas após os estupros. Por fim,
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selecionamos imagens que se referem a duas situações distintas, mas que apresentam discursos semelhantes, que se divergem ao olharmos precipitadamente, entretanto o que vemos é uma recuperação da memória acerca do tema. Os enunciados que circulam retomam o arquivo do que já fora dito sobre as mulheres em outros momentos. A primeira imagem em análise é de um cartaz usado em uma campanha lançada na Inglaterra em julho de 2012, e circulou por “pubs” da cidade de Londres.
Figura 1 - Campanha Uma noite segura Fonte: G1 - Globo
A campanha intitulada “Uma noite segura” visava prevenir casos de estupro. O que vemos no cartaz é uma mulher jovem divertindo-se a noite numa festa, ou “nightclub”. Num primeiro momento, aparece sobre a imagem, a frase: “Don’t let a night full of promisse...”, e na segunda parte do mesmo cartaz, rasgado em dois pedaços, a imagem mostra a mesma moça deitada no chão, em posição que sugere dor, sofrimento. Esta parte traz a continuação do texto: “Turn into a morning full of regret.” Ou seja, “Não deixe que uma noite cheia de promessas... se transforme em uma manhã cheia de arrependimento”. O enunciado dirige-se à mulher, a questão é imperativa a ela: “Não deixe”, ou seja, a mulher deixa que o estupro aconteça. E ela deve não deixar. Outro ponto interessante a se analisar nesse enunciado é que se sabe que promessas são feitas, e pelo visto rotineiramente não são cumpridas. Talvez por isso ocorra manhãs de arrependimentos. Mas que promessas, que arrependimentos? São promessas que levam
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a arrependimentos quando se acreditam nelas? Então, há uma causa e uma consequência ambas indicadas numa locução prepositiva que conduz de um extremo ao outro. Acreditar nas promessas traz consequências, e estas são o resultado de um erro, acreditar. As situações antíteses são iniciadas pelo mesmo adjetivo: cheia, porém o resultado é diferente. O cartaz alerta para o fato de que o erro está na crença naquilo que lhe é prometido, talvez por inocência ou por “excesso” de exposição das mulheres. Quanto à imagem dada a ver no folheto da campanha, percebe-se que é de jovens se divertindo, dançando em um clube noturno. No plano superior está uma moça asiática, que parece ser a mesma que aparece no plano inferior, debruçada sobre o chão. Ela está usando um vestido com o comprimento acima do joelho e no segundo momento da imagem, separada por um rasgo, tornando a mesma história com dois lados, a moça aparece sem sapatos. Se olharmos com atenção percebemos o detalhe das cores, minuciosamente escolhido. No primeiro momento da história, as letras são cor rosa, no segundo, são azuis. Nos espaços em que as cenas acontecem há uma mistura de azul e rosa, como num balé de cores que dançam no mesmo baile. A cor azul (em algumas culturas) designam coisas para homens, enquanto o rosa é usado para mulheres. Sabe-se que roupas de bebês são cuidadosamente escolhidas por pais e mães seguindo este critério, que no princípio desta nova vida contribui para demonstração de qual bebê é o homem e qual é a mulher. O rosa do primeiro quadro parece sugerir que o momento pertence a ela, a mulher. Já no segundo quadro, quando ela parece ter sido violentada, o que se sobressai é a imponência do azul dele (o homem). Parte na qual as letras estão sobre ela. Ela está prostrada no chão com o peso das letras azuis sobre ela, como o peso de uma sentença. O folheto está rasgado, por quê? Isto pode sugerir as roupas rasgadas durante a violência da noite na qual o estupro ocorre. Como sonhos rasgados, estraçalhados. O rasgo do papel é irregular, ele separa de maneira abrupta dois momentos, um bom e outro ruim. O rasgar é um ato de violência, rasgamos papéis para serem jogados fora. No que se refere ao enunciado - conforme o entendimento de Foucault - embora seja um discurso único, um acontecimento em uma materialidade específica, o que se vê é uma repetição do discurso: as mulheres e seu comportamento inadequado que as tornam vítimas. E um discurso repete, retoma outro, reativa o que fora dito em outro
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momento, realinhado com a materialidade mais urgente, com as condições emergentes. Nesses discursos a responsabilidade pelo que pode acontecer à vítima é dela mesma, pois deve agir conforme as orientações da sociedade, neste caso específico, as orientações da polícia, representante legal da sociedade. Ou seja, este enunciado retoma enunciados que o precedem e se fixam na memória para se reativar em enunciados que se seguem. Retomando, assim, discursos sobre o comportamento feminino, de sexualidade reprimida, somente praticada no lar, em uma relação conjugal. Após grande repercussão, “A polícia inglesa pediu desculpas por uma campanha anti-estupro que ativistas classificaram como 'inapropriada'. Segundo a ONG Centro de Apoio às Vítimas de Estupro e Abuso Sexual de Worcestershire, a campanha 'Uma Noite Segura', da polícia da região de West Mercia, culpava vítimas que haviam bebido por casos de agressão sexual.” Houve um reconhecimento do“erro”ao falar do comportamento feminino, um pedido de desculpas para acalmar os ânimos. Todavia, em outro momento, esse discurso será retomado, com o mesmo posicionamento exógeno. À luz dessas questões morais, Foucault (2004, p. 246) esclarece que na moral antiga ao se pensar em ética, pensava-se somente nos homens, senhores de si e dos outros. As mulheres e os rapazes, ou a própria relação com o corpo não constituíam preocupação relevante. Com as grandes transformações trazidas pelo cristianismo, o controle do corpo e da sexualidade dos homens e mulheres torna-se necessário. Por este motivo se estabeleceram regras de convivência, porém em uma sociedade patriarcal e religiosa na qual a mulher deve obediência ao homem (pai, irmão, esposo), o significado do que se entende por comportamento moral é estabelecido por homens. Estes acreditam ter o poder sobre a vida das “suas” mulheres (por relação parental, ou legal), porém conforme os estudos Foucaultianos a respeito do biopoder e biopolítica, a vida passou a ser administrada, gerida, regrada, normalizada pelo poder estatal, mas isso não diminuiu a violência, pelo contrário, ela aumenta diariamente, sejam mortes em massa (que chamam à atenção), ou casos silenciosos (em pequenos números), mas numa frequência ininterrupta. Diante destas afirmações, pode nos parecer que não, mas há um controle dos Estados sobre a vida dos sujeitos, e os enunciados a respeito do comportamento humano são retomados, conforme o interesse biopolítico de cada época, decidindo assim quem deve viver e quem deve morrer naquele momento.
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As imagens a seguir são duas fotos de uma menina de 10 anos, assassinada após estupro ocorrido em 2011. O agressor – que induziu a menina a sair da igreja com ele – era ex-pastor da igreja Assembléia de Deus, a qual a família frequentava, em Maringá, no Paraná.
Figura 2 A– Menina estuprada
Figura 2 B– Menina estuprada
Fonte: http://blogdadeti.blogspot.com.br/2008/09/fotos-da-menina-de-10-anos-que-foi.html
Além dessas fotos1 há outras do mesmo crime que podem ser encontradas em alguns sites, os quais lucram com a divulgação de fotos desse gênero. Num deles se lê o seguinte relatório: “[...] O mesmo conhecia a família e até tinha um convívio com os pais. O acontecido não foi planejado. Deu vontade, ele falou com a garota que lhe daria um pedaço de bolo, ela entrou no seu carro e foi levada por ele até a sua casa onde lá ele abusou e a matou com uma sacola na cabeça asfixiada. Não satisfeito levou para um matagal com ela já morta, abusou mais um pouco sobre o capô do carro e depois jogou álcool sobre seu corpo e colocou fogo. O ex-pastor evangélico ainda foi ao velório da menina para consolar os pais. Só foi identificado pelos exames colhidos nos órgãos genitais da criança. Natanael Búfalo é o nome do ex-pastor evangélico.”2
As fotos selecionadas, no caso da menina, a mostram em duas posições diferentes, sob dois ângulos também diferentes captados pelo fotógrafo, além disso, se observarmos com atenção, percebemos que houve alteração do posicionamento da menina no local do crime. Ela foi removida para que as fotos fossem tiradas em diferentes ângulos, não apenas por ser um documento, mas também para a exposição em 1
As fotos podem ser encontradas em várias páginas da internet, não se sabe a autoria, aqui foram copiadas de um blog http://blogdadeti.blogspot.com.br/2008/09/fotos-da-menina-de-10-anos-que-foi.html 2 Informações do site: http://www.issoebizarro.com/blog/acidentes-tragedias-assassinatossuicidios/garota-de-10-anos-e-estuprada-morta/.
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detalhes. Na primeira foto há uma parte de uma blusa rosa e parte de uma saia branca, ambas queimadas, bem como o corpo, o que demonstra que fora ateado fogo em todo o corpo. Na segunda foto, não aparece a saia, mas há calçados nos dois pés. Há ferimentos nas costas e nas nádegas, inúmeras marcas, possivelmente causadas pelo fogo. Podemos ver, ainda, que foi brutalmente estuprada, ao percerbermos que há sangue saindo da vagina e do ânus, talvez também por esse motivo a tenham posicionado em outro ângulo, para que ficasse visível tais ferimentos resultantes da violência sexual sofrida. Embora a sociedade moderna e contemporânea veja o estupro como violência sexual, devemos nos lembrar que o corpo feminino em muitos momentos da história humana não pertencia a mulher, ela não dominava seu corpo, seus desejos, etc. Ele pertencia a reis (nobres em geral), a senhores feudais, aos pais, aos maridos. Pensando na sexualidade humana, Foucault (2004, p. 246) avalia que as sociedades estabelecem regras de conduta para que haja um domínio de si, e de outros, pois “A atividade sexual é representada, percebida como violência e, portanto, problematizada do ponto de vista da dificuldade que se tem para controlá-la.” Sendo assim, reprime-se o comportamento sexual considerado anormal, ou antinatural, como é considerado ter relações sexuais com crianças, atualmente. Tenta-se, assim, de controlar a atividade sexual dos sujeitos, a sanidade do corpo. Mas há casos que sempre escapam, estes o Estado usa como exemplo na arte de governar o arbitrário. Neste sentido, as imagens podem expressar a realidade, elas são o real mimético, que visam a verossimilhança com a realidade, segundo uma das posições epistemológicas citadas nos estudos de Dubois (1993). A fotografia seria um espelho que reflete a realidade do mundo, entretanto, com esta posição se desconsidera o sujeito fotógrafo, o puncto, o recorte, o espaço de circulação desta imagem; bem como se desconsidera a excessiva exploração dessa cruel realidade em todos os ângulos para vender mais jornais, revistas, ou ampliar acessos em sites. Há uma dimensão pragmática nas fotografias, afirma Dubois (1993, p. 52), ao “considerar que as fotografias propriamente ditas quase não têm significação nelas mesmas: seu sentido lhe é exterior, é essencialmente determinada por sua relação efetiva com seu objeto e com sua situação de enunciação”, o que nos confere o papel de
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participantes do significado de uma foto (uma imagem). Participamos da dor, do sofrimento que a foto nos revela. Manguel (2001), ao analisar “a imagem como violência”, afirma que tanto as pinturas antigas, como as mais atuais camuflam a imagem do sofrimento do homem aparece camuflada, ou em faces escondidas, como é o caso de Guernica, de Pablo Picasso. Todavia mostram o sofrimento das mulheres. Há um gosto pela visão da dor, do choro; de ver algo sangrento, bizarro, que traga o extremo dos sentimentos humanos. É o inconsciente desejo do consumo das imagens, sempre de mulheres em situação de dor. As fotos do estupro da menina de dez anos estiveram presentes em jornais de toda a região na época, atualmente se encontram em sítios da internet (ao lado de várias outras situações semelhantes) disponíveis a todos que desejam ver imagens fortes, as quais nos conduzem a imaginar essa dor, a visualizar o choro. São milhares de pessoas entrando em contato com essa reprodução, um comercialização lucrativa; é a mercantilização do sofrimento no mercado capitalista. Podem ser vistas mídia, mas milhares de pessoas convivem com este tipo de violência nas cidades, bairros, famílias. Nota-se que, entre 2001 e 2010, segundo levantamento do Instituto Avante Brasil, publicado no site da "Carta Maior", “40 mil mulheres foram assassinadas no Brasil. De acordo com o estudo do Banco Mundial citado pela publicação, mulheres de 15 a 44 anos correm mais risco de sofrer estupro e violência doméstica do que câncer, acidentes de trabalho, guerra e malária”.3 Em todo o Brasil, as denúncias aumentam como numa epidemia. Por isso, em São Paulo, o governo tem tentado mapear os casos, além disso, criou uma cartilha para orientar mulheres como se comportar em casos de agressão como o estupro. Ação que gerou anedotas, pois não se pode imaginar a cena de uma mulher consultando um guia a respeito do que fazer enquanto está enfrentando uma situação de violência como esta. Obviamente, essas medidas não tem coibido, talvez auxiliem no momento pós agressão, mas o que as mulheres certamente desejam é evitar chegar a esta situação. Considerações finais 3
http://noticias.r7.com/blogs/ricardo-kotscho/2013/05/28/onda-de-violencia-contra-mulheres-viraepidemia/
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Nas imagens que trouxemos para análise, a primeira reproduz o discurso das historinhas infantis. Na primeira imagem, a combinação verbo-visual traz um alerta sobre o papel da mulher em sua auto preservação física, a necessidade de não confiar em ninguém, caso contrário estará vulnerável a agressões, a arrependimentos. Nos contos de fadas, a mocinha é sempre a princesa cortejada por um príncipe encantado e na noite do “baile” encontra seu príncipe, para ter um ”felizes para sempre”, porém escolhas erradas têm consequências. Na segunda, não há claramente esse alerta, mas o depoimento do suspeito, confirma que a menina o acompanhou até em casa, confiou nele, isso mostra que o erro foi da menina, ou de quem não a orientou já que tinha dez anos e é considerada uma criança inocente. Além disso, as próprias fotos mostradas das maneiras mais horripilantes possíveis, servem de alerta das consequências para as moças, meninas (e mães), que não se cuidam e ficam expostas aos “lobos maus”. Ao mesmo tempo que estas imagens possam trazer tais mensagens – visto que as interpretações são exteriores a elas mesmas - outros sujeitos podem se encontrar em uma situação de extremo fetiche, identificando-se no papel do agressor. Sádicos podem sentir prazer em vê-las, bem como o que o agressor pode ter sentido no momento em que mantinha relações sexuais com a menina, mesmo depois de morta. Muitos sentem prazer pela conquista, outros em ver o choro do abandono, pela provocação da dor e a visualização do choro da mulher, como era o caso de Picasso, segundo Manguel (2001), mas há quem sinta prazer sexual, prazer pelo domínio, pelo poder da inércia do corpo, objeto, que ali está sendo consumido. Freud, Lacan e o próprio Foucault dedicaram seu tempo para entender melhor a questão do prazer, ou dos prazeres. O que está em questão, nesta análise, não é o prazer ou os tipos de prazer, mas sim o discurso promovido pela exploração das imagens que posicionam a mulher como a culpada por ser vítima. As considerações feitas a respeito desse discurso das/nas imagens são relevantes quando se visa entender o que, por que e como acontecem essas situações, para que se possa pensar em como podem deixar de existir, deixar de ser uma cultura entre muitos homens. Neste âmbito, as imagens podem trazer muitas contribuições, principalmente, se houver uma compreensão da referência, conforme afirmou Dubois (1993), e se mudarem os discursos sobre papéis femininos e masculinos na sociedade.
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Referências BUCCI, E,; KEHL, M. R. Videologias: ensaios sobre televisão, S.P.:Boitempo, 2004. DUBOIS, P. O ato fotográfico e outros ensaios. Trad. Marina Appenzeller, Campinas, SP: Papirus, 1993. DUARTE, A. Biopolítica e resistência: O legado de Michel Foucault. In: RAGO, M; VEIGA-NETO, A. Figuras de Foucault, 2.ed., Belo Horizonte, MG: Autêntica, 2008. FOUCAULT, M. Ética, estética, política. Ditos e escritos V. RJ: Forense Universitária, 2004. ______. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves, 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. GLOBO. Polícia Britânica pede desculpas por cartaz sobre estupro. Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/08/policia-britanica-pede-desculpas-porcartaz-sobre-estupro.html. Acesso em: 11 de dez 2013. LAGE, L.; NADER, M.B. Violência contra a mulher: da legitimação à condenação social. In: PINSKY, C.B.; PEDRO, J. M. (orgs) Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2012. MANGUEL, A. Lendo Imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. PRADO FILHO, K; TRISOTTO, S. O corpo problematizado de uma perspectiva histórico-política. Psicologia em Estudo, Maringá, v.13, n.1, p115-121, jan./ mar., 2008. ISSO É BIZARRO. Garota de 10 anos estuprada e morta. Disponível em: http://www.issoebizarro.com/blog/acidentes-tragedias-assassinatos-suicidios/garota-de10-anos-e-estuprada-morta/ Acesso em: 10 de dez. 2013.
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A FUNÇÃO ENUNCIATIVA DA PONTUAÇÃO E SUA RELAÇÃO COM O RITMO DA ESCRITA NO GÊNERO DISCURSIVO NOTÍCIA DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA Ana Paula de Moura Delezuk (UEPG)
Introdução Entendemos a pontuação como um dos aspectos da linguagem que é fundamental para a escrita, já que envolve elementos linguísticos, textuais e discursivos que são essenciais para a construção do texto escrito. Entretanto, sua abordagem em sala de aula tem privilegiado a nomenclatura e o viés sintático, que não tem dado conta de todos os seus usos. Além disso, o ensino da pontuação aparece comumente relacionado à oralidade, como se os sinais de pontuação reproduzissem na escrita aspectos prosódicos, o que, como veremos, acaba por desconsiderar a especificidade da escrita. Sendo assim, com o objetivo de indicar uma maneira mais pertinente de olhar para os usos desses sinais e superar uma visão tradicional acerca deste tema, nos propomos nesta pesquisa a refletir sobre alguns aspectos relacionados à pontuação. Ao tratar a pontuação a partir desta perspectiva diferenciada, em um primeiro momento passamos a considerar a relação entre os modos de pontuar e um ritmo próprio da escrita, que nos revelam que a inserção da pontuação vai além de uma simples reprodução da fala na escrita. Além disso, nos atentamos para as suas funções enunciativas, o que significa ir além do domínio da frase e vincular os seus usos às condições de produção dos discursos. Assim sendo, partimos da reflexão sobre a língua a partir de uma prática real de linguagem, isto é, tomamos como ponto de partida a análise da pontuação em um gênero discursivo – notícia de divulgação científica – levando em conta, portanto, aspectos textuais e discursivos que podem ser inferidos a partir do uso dos sinais de pontuação nos textos. Dessa maneira, à luz de nossas reflexões, isto é, considerando a pontuação em uma prática real de linguagem, em relação com as funções enunciativas que exercem nos textos e com um ritmo próprio da linguagem escrita, nos propomos a analisar duas notícias de divulgação científica da revista Superinteressante e uma notícia de
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divulgação científica da revista Galileu. Ao realizar a análise dos modos de pontuar das notícias, faremos o levantamento de alguns sinais de pontuação que aparecem nos textos selecionados, com o intuito de detectar indícios que nos permitam inferir qual a relação se pode estabelecer entre a pontuação e um ritmo próprio da escrita, o que significa observar se o modo de pontuar dos autores contribui para a constituição e organização do texto escrito em seus diversos aspetos, atribuindo-lhe uma especificidade. Além disso, buscamos depreender de que forma esses usos da pontuação marcam algo próprio das notícias de divulgação científica neste tipo de veículo, isto é, se os modos de pontuar revelam uma relação com as condições de produção do texto, deixando transparecer as funções enunciativas que esse elemento linguístico exerce nos textos. Pontuação em sua relação com o ritmo da escrita e com o caráter enunciativo da linguagem Conforme salienta Chacon (1998), em uma perspectiva tradicional o ritmo está comumente relacionado à fala e quando pensado para a linguagem escrita limita-se a métrica aplicada aos versos. Para o estudioso, esta concepção tradicional de ritmo apresenta três incompatibilidades: A primeira é entre ritmo e história, uma vez que ao se tomar o metro como uma norma acaba excluindo-se o fato histórico. A segunda é entre ritmo e sentido, pois considera-se, nesta visão tradicional, que o ritmo são normas que organizam unidades não-significantes, já que afetariam somente a substância sonora e não o ritmo. Por fim, aponta para a incompatibilidade entre ritmo e prosa, visto que, segundo Chacon, definir a poesia pelo verso e o ritmo pelo metro leva a crer que a prosa não tem ritmo. Na busca por uma outra concepção de ritmo que permita observá-lo no contexto geral da linguagem e, portanto, intrínseco à ela, Chacon traz à tona o significado que a palavra “ritmo” conforme formulação de Benveniste (1976): “a forma no instante em que é assumida por aquilo que é movediço, móvel, fluido, a forma daquilo que não tem consistência orgânica.” (Benveniste, 1976, p. 367 apud Chacon, 1998, p. 11). Um dos autores que se apropria deste conceito de ritmo proposto por Benveniste e o utiliza para pensar em um ritmo próprio da linguagem é Meschonnic (2006). Chacon resgata algumas das concepções elaboradas por Meschonnic (1982) e afirma
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que além de elaborar uma nova teoria do ritmo, Meschonnic promove um deslocamento epistemológico no que se refere às questões envolvendo ritmo e linguagem. Segundo Chacon, Meschonnic caracteriza o ritmo linguístico como “a organização de um fenômeno específico (a linguagem) que se desenvolve em um fluxo contínuo (o discurso).” (CHACON, 1998, p. 12). Para Meschonnic, se o ritmo é um fluxo, “é também a estruturação em sistema do que ainda não é sistema” (MESCHONNIC, 1982, p. 225 apud Chacon, 1998, p. 12). Fazendo um recorte de todo o alcance que poderia se dar a esta consideração do autor, Chacon seleciona a ideia de que “o ritmo se caracteriza por uma propriedade antitética, a continuidade/descontinuidade, e essa propriedade estaria subjacente à organização de qualquer atividade linguística.” (MESCHONNIC, 1998, p. 12). Por esta perspectiva, considera-se que o ritmo está em toda a linguagem. Tomase o ritmo como um organizador do descontínuo da linguagem, que torna possível a sua integralização. Em suma, Chacon conclui que “o ritmo é a organização singular dos elementos de qualquer atividade linguística, oral ou escrita. Essa organização mostra-se como a disposição de elementos descontínuos, fragmentários, num contínuo, num fluxo.” (CHACON, 1998, p. 17). Para Chacon os sinais de pontuação são marcas privilegiadas para observar o ritmo na linguagem escrita, por um lado por serem marcas gráficas, e que, portanto, só ocorrem na escrita, e por outro lado, por serem marcas linguísticas, já que cumprem papel delimitativo de unidades estruturais da modalidade escrita da linguagem. Além disso, o autor destaca o caráter polissêmico desses sinais que, segundo ele, permite trazer à cena fatos estreitamente ligados ao uso da linguagem em sua forma escrita, uma vez que somente os usos da linguagem determinam o valor semântico dos usos desse elemento linguístico. As discussões de Chacon em torno do ritmo da linguagem permitem concluir que os sinais de pontuação contribuem para a constituição de um ritmo próprio da linguagem escrita, e, portanto, para a organização discursiva desta modalidade da linguagem. É importante destacar que, como aponta o estudioso, somente o uso da língua é “o lugar da sistematização da descontinuidade, processo que se dá não pelo significado que uma unidade linguística adquiriria num nível superior, mas por uma
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interferência simultânea entre diferentes dimensões da linguagem.” (CHACON, 1998, p. 14). Portanto, somente no uso podemos considerar a linguagem em sua “completude”, visto que o processo de sistematização só se constitui a partir da relação entre os diferentes aspectos envolvidos na linguagem, tais como: fônicos, gramaticais, semânticos e enunciativos. Entretanto uma concepção normativa, que não leva em conta a linguagem em uso e a relação entre as dimensões da língua, ainda cerca o tema da pontuação. Conforme assinala Bernardes (2002), a pontuação é tradicionalmente associada à gramática normativa, que busca ditar as regras de um “bom” uso da língua. Segundo a autora essas regras são marcadas pela “ênfase nas instruções sobre como e onde inserir os sinais no texto”. (BERNARDES, 2002, p. 18). Neste ponto do trabalho, é interessante apresentar a distinção que faz Bernardes entre pontuação e pontuabilidade: Existe uma diferença entre o que chamaremos de pontuabilidade, a saber, o fato de podermos identificar, na cadeia sintagmática, lugares em que a escansão se faz possível, e a pontuação, sistema que assinala por meio de sinais gráficos uma escansão. A pontuabilidade contém a virtualidade das escansões possíveis, que podem vir a se atualizar graficamente no corpo da pontuação. (BERNARDES, 2002, p. 10).
Entendemos então a pontuabilidade como os lugares possíveis de serem pontuados na cadeia sintagmática e a pontuação como a efetiva inserção dos sinais de pontuação no texto. Conforme afirma Bernardes, essa distinção mostra que a pontuação introduz uma diferença no texto, pois a presença da pontuação restringe a interpretação. Assim, a autora conclui que “a pontuação produz efeitos que ultrapassam a pontuabilidade: ao dar corpo a uma certa configuração textual, ela orienta a leitura por um certo caminho, ou ainda, ela aponta qual o caminho a ser seguido e quais devem ser abandonados.” (BERNARDES, 2002, p. 10) As considerações de Bernardes confirmam que o uso da pontuação vai além das regras da gramática normativa, pois dão sentido ao texto conforme a intenção de quem o escreve, ou seja, conforme as possíveis interpretações que o locutor quer possibilitar ao seu interlocutor. Assim, a partir de Chacon e de Bernardes, pudemos perceber que os usos dos sinais de pontuação vão além de prescrições já estabelecidas e da mera reprodução da fala no escrito. Há questões enunciativas envolvidas no uso desses sinais, a partir da
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qual podemos pensar questões linguísticas, textuais e discursivas que envolvem o uso da pontuação. Para discutir este caráter enunciativo que perpassa as questões da língua e da linguagem nos valemos dos estudos de Brait e Melo (2010), que “tem por objetivo apresentar a maneira como os conceitos enunciado/enunciado concreto/ enunciação aparecem no conjunto das obras de M. Bakhtin e seu círculo”. Em Bakhtin, conforme asseveram Brait e Melo, considerando a dimensão comunicativa, interativa e avaliativa, a palavra é enunciada dentro de condições que a tornam um enunciado, o que implica muito mais do que aquilo que se restringe aos fatores lingüísticos e solicita um olhar para outros elementos que o constituem. Assim, o enunciado e as particularidades de sua enunciação configuram o processo interativo, o que, para Bakhtin, significa que “a situação se integra como uma parte constitutiva essencial da estrutura de sua significação. Conseqüentemente, um enunciado concreto como um todo significativo compreende duas partes: (1) a parte percebida ou realizada em palavras e (2) a parte presumida.” (BAKHTIN, 1992, p.208 apud BRAIT; MELO, 2010, p. 67)
Dessa forma, pelas considerações de Brait e Melo, concluímos que, em uma perspectiva bakhtiniana, devemos considerar o enunciado em sua realização concreta, que envolve seu contexto de produção e, portanto, a sua historicidade, o que significa ir além de uma abordagem exclusivamente lingüística, fragmentada, como é o caso da frase. Para Brait e Melo outro índice substancial do enunciado é o fato de dirigir-se a alguém, estar voltado para o destinatário. Nesse sentido, as autoras apontam que perguntas como: “a quem se dirige o enunciado?, “como o locutor percebe e imagina seu destinatário?”, “qual é a força da influência do destinatário sobre o enunciado?”, ajudam, do ponto de vista bakhtiniano, a compreender a composição e o estilo dos enunciados, apontando, tanto quanto os traços de autoria, como para o que há de extraverbal na constituição do verbal. As autoras relacionam essa questão como diretamente ligadas aos gêneros do discurso, uma vez que cada esfera, atividade, campo de atuação tem concepções de destinatários, o que, segundo elas, de certa forma, faz aparecer e circular os gêneros discursivos. Segundo as estudiosas, é por esses aspectos que podemos conceber as
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“marcas de enunciação de um sujeito, de um lugar histórico e social, de uma posição discursiva, que circula e faz circular discursos.” (BRAIT; MELO, 2010, p. 72) Temos em vista que esse caráter enunciativo da linguagem é fundamental para se pensar os usos dos sinais de pontuação, uma vez que determinam os usos linguísticos, textuais e discursivos que os (inter)locutores farão da linguagem, com vistas a criar determinados efeitos de sentido e não outros. Por este viés compreende-se que a pontuação sempre exercerá nos textos funções enunciativas, uma vez que é fruto das escolhas de sujeitos que agem na e pela linguagem. Seguindo esta linha de pensamento, no próximo tópico, ao analisar o modo de pontuar das notícias, nos propomos a refletir: De que forma o modo de pontuar revela as funções enunciativas da pontuação? E ainda, de que maneira a pontuação atribui aos textos um ritmo próprio da linguagem escrita? Análise do modo de pontuar das notícias de divulgação científica das revistas Superinteressante1 e Galileu2 Sobre as revistas Superinteressante e Galileu, objetos de nossa investigação, consideramos que, de maneira geral, fazem parte da esfera jornalística e apresentam textos informativos com um conteúdo variado, relacionado, na grande maioria das vezes, à cultura, história, tecnologia, saúde ou ciência. Para nossa pesquisa, optamos por eleger textos que divulgam temas da esfera científica. Em se tratando, mais especificamente, da notícia de divulgação científica, levamos em consideração para nossa análise, em relação á sua especificidade dentre as características do gênero notícia como um todo, que os temas, por pertencerem à esfera científica, são embasados por pesquisas que buscam comprovar os fatos a serem explorados nos textos. Além disso, em relação ao veículo de comunicação, as notícias de divulgação científica se diferem por serem publicadas em revistas que apresentam conteúdos variados, e mais especificamente, em seções que apresentam conteúdos da 1
Anexo A – Textos revista Superinteressante
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Anexo B – Textos revista Galileu
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esfera científica. O que indica um público–alvo que, em geral, é de “não especialistas” nos assuntos oferecidos, visto que buscam informações científicas em um veículo de comunicação que aborda os temas relacionados à ciência de uma maneira mais informal. Nos textos de ambas as revistas, o que mais nos chamou atenção é o uso recorrente dos dois pontos (:), parênteses (()) e travessão (-). Por isso, neste momento chamamos a atenção para as reflexões de Dahlet (2007) que procurando se afastar de uma visão tradicional que, segundo ela, opta por apresentar os sinais e suas funções mediante uma mera nomenclatura, relaciona os sinais às suas respectivas funções predominantes e os divide em duas classes, buscando oferecer uma visão estruturante e arrazoada da pontuação. (DAHLET, 2007, p. 293) A primeira a autora classifica como sinais de sequencialização, por terem a função de segmentar o continuum escritural. A segunda classe chama-se sinais de enunciação, por manifestarem um tipo de interação com o co-enunciador. Dessa forma a autora considera como corpus dos sinais de sequencialização a alínea, o ponto e seus derivados (pontos de interrogação, de exclamação e reticências), o ponto e vírgula e a vírgula. No corpus dos sinais de enunciação temos, entre outros, o itálico, a maiúscula contínua, o negrito, o travessão, as aspas e os colchetes. Interessa-nos esta proposta da autora, por ampliar a visão, antes restrita, em torno dos sinais de pontuação. Acreditamos, assim como a estudiosa, que existem sinais eminentemente enunciativos. Porém, partimos do princípio de que todos os sinais de pontuação exercem funções enunciativas nos textos. Pelo caráter polissêmico que a pontuação apresenta, esses sinais (dois pontos, parênteses e travessão) apresentam diferentes funções no texto. Os dois pontos, ora se apresenta como forma de abrir caminho para uma explicação mais detalhada da frase que o antecede, ora para introduzir algo que complementa a informação anterior. Vejamos alguns exemplos: 1. “Mas essa droga, que é produzida pela bactéria Streptomyces hygroscopicus, encontrada no solo da ilha de Páscoa, tem um efeito colateral: enfraquece o sistema imunológico.” (SUPERINTERESSANTE, set. 2009, 33, grifos meus)
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2. “É neles que os pacientes têm acesso aos três grandes tipos de drogas já descobertos pela ciência: nucleosídeos, não-nucleosídeos e inibidores da protease.” (GALILEU, p. 23, mar. 2010 , grifos meus) Em relação aos parênteses, evidencia-se que se utiliza como forma de recordar alguma informação anterior, ou explicitar algo, que se supõe desconhecido do interlocutor. Além disso, utiliza-se, de maneira mais peculiar, como forma de dar destaque a certas informações, como no caso do exemplo abaixo, em que a palavra entre parênteses está em contraste com o título da notícia que é “Descoberta a fonte da juventude: uma bactéria”: 1. “Isso acontece porque a rapamicina inibe um mecanismo chamado mTOR, responsável pela divisão, multiplicação (e envelhecimento) das células.” (SUPERINTERESSANTE, set. 2009, 33, grifos meus) No caso do travessão, observamos um uso bastante peculiar nos textos das duas revistas. Em todos os casos os sinais de (-) apontam para uma nova informação e substituem outros conectores que são usados com mais freqüência em textos da esfera jornalística. Em muitos casos eles apontam para uma informação sobre a qual se quer dar destaque. Vejamos: 1. “Micro-organismo produz um remédio capaz de frear os mecanismos de envelhecimento das células - e prolongar artificialmente a vida de animais saudáveis” (SUPERINTERESSANTE, set. 2009, 33, grifos meus) 2. “Quem tinha sido exposto aos sons enquanto dormia se deu melhor – se lembrou de mais figuras e foi mais preciso quanto à posição de cada uma na tela.” (SUPERINTERESSANTE, maio de 2010, p. 22, grifos meus) 3. A má notícia é que a Aids continua por aí, vitimando cerca de 2 milhões de pessoas por ano – héteros e homossexuais, viu? (GALILEU, março de 2010, p.18, grifos meus)
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4. é hora de procurar um especialista – muitos casos são irreversíveis, mas é possível remediar o problema com próteses auditivas. (GALILEU, junho de 2010, p. 23, grifos meus) Vale destacar que apesar das diferenças nas funções exercidas pelos sinais de pontuação, evidenciamos também, por esses exemplos, que a maneira de empregar esses elementos linguísticos nas duas revistas é semelhante no sentido de que além de contribuírem para a construção textual e semântica dos textos, estabelecem um diálogo direto com o interlocutor, buscando explicitar ou explicar informações que possivelmente são desconhecidas de seu público-alvo, visto que, como já havíamos comentado, é um público, em geral, leigo em questões científicas. Além disso, acreditamos que a maneira como esses sinais foram utilizados atribuem aos textos das revistas um ritmo peculiar, singular. A recorrente, e em alguns casos, peculiar, utilização destes sinais, atribui aos textos um ritmo que torna o texto mais rápido, objetivo e menos formal. O que acreditamos ser a finalidade da revista ao publicar suas matérias, pois outros elementos além da pontuação indicam certa informalidade na escrita dos autores. Ou seja, a pontuação é utilizada de forma a favorecer os efeitos de sentido que os locutores pretendem exercer sobre seus locutores, estabelecendo um diálogo e atribuindo aos textos um ritmo informal – próprio destas notícias neste tipo de veículo, um ritmo próprio da escrita. Conclusão Nas duas revistas os sinais eminentemente enunciativos nos chamam a atenção. Esses sinais revelam muito mais do que aspectos estritamente linguísticos e organizacionais. Eles apontam para aspectos discursivos e revelam o caráter enunciativo da pontuação e a relação da pontuação com um ritmo próprio da linguagem escrita. Acreditamos que o estudo possibilitou uma forma mais pertinente de se tratar os usos dos sinais de pontuação, visto que não nos limitamos ao nível sintático, mas consideramos uma prática real da linguagem e dessa forma exploramos os usos efetivos dos sinais de pontuação, já que relacionamos esses usos com o gênero discursivo a que
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se filiam os textos e, também, com as revistas nas quais os textos foram publicados, considerando, sobretudo, as funções enunciativas desses sinais, ou seja, as intenções que perpassam seus usos e, ainda, destacamos a relação da pontuação com um ritmo próprio da escrita. Referências BERNARDES, A. C. A. Pontuando alguns intervalos da pontuação. 2002. 153 f. Tese (Doutorado em Lingüística), IEL, Unicamp, Campinas. BRAIT, B. Estilo. In: BRAIT, B. (Org). Bakhtin: conceitos-chave. 4.ed. São Paulo: Contexto: 2010. BRAIT, B. MELO, R. Enunciado/ enunciado concreto/ enunciação. In: BRAIT, B. (Org). Bakhtin: conceitos-chave. 4.ed. São Paulo: Contexto, 2010. CHACON, L. Ritmo da escrita: Uma organização do heterogêneo da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1998. DAHLET, V. A pontuação e a sua metalinguagem gramatical. Rev. Est. Ling. Belo Horizonte, v. 10, n. 1, p. 29-41, jan./jun. 2002 HILA, C. V. D. Ressignificando a aula de leitura a partir dos gêneros textuais. In: NASCIMENTO, E. L. (Org). Gêneros textuais: da didática das línguas aos objetos de ensino. São Paulo: Claraluz, 2009. p. 151-194 MESCHONNIC, H. Linguagem, ritmo e vida. Extratos traduzidos por Cristiano Florentino. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2006. PARANÁ. SEED. Diretrizes Curriculares da rede Pública de Educação Básica do Estado do Paraná, Língua Portuguesa. Curitiba: SEED, 2008.
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Anexos Anexo A: Textos da revista Superinteressante Texto 1: Descoberta a fonte da juventude: uma bactéria Micro-organismo produz um remédio capaz de frear os mecanismos de envelhecimento das células - e prolongar artificialmente a vida de animais saudáveis por Bruno Garattoni Experiências feitas nas universidades do Texas e de Michigan apontaram que a rapamicina (Rapamune), droga atualmente utilizada em transplantes de órgãos, tem o poder de estender milagrosamente a vida - ratos que tomaram o remédio viveram até 14% a mais. Isso acontece porque a rapamicina inibe um mecanismo chamado mTOR, responsável pela divisão, multiplicação (e envelhecimento) das células. Mas essa droga, que é produzida pela bactéria Streptomyces hygroscopicus, encontrada no solo da ilha de Páscoa, tem um efeito colateral: enfraquece o sistema imunológico. Por isso, os cientistas enfatizam que ninguém deve tomar o remédio por conta própria. "A descoberta é importante porque abre caminho para o desenvolvimento de drogas que ajam mais especificamente, sem efeitos colaterais", explica a bióloga Lynne Cox, da Universidade de Oxford. SUPERINTERESSANTE, set. 2009, disponível em http://super.abril.com.br/saude/descoberta-fonte-juventude-bacteria-497260.shtml. Acesso em: maio/2014 (grifos meus) Texto 2: Sim, é possível aprender dormindo Experiência mostra que sons ouvidos durante a fase mais profunda do sono podem ajudar no aprendizado por Bruno Garattoni O aprendizado durante o sono sempre foi uma promessa vazia, sem comprovação científica. Mas um estudo realizado pela Northwestern University acaba de provar que, sim, é possível aprender dormindo. Voluntários foram expostos a 50 imagens, mostradas em sequência numa tela. Cada imagem tinha um som associado: a foto de um gato era acompanhada por um miado, uma dinamite por uma explosão, e por aí vai. Em seguida, os voluntários foram dormir. Quando eles entraram na fase de ondas cerebrais lentas, em que o sono é mais profundo, os cientistas tocaram os sons (o miado, a explosão etc.). Metade dos voluntários ouviu esses sons enquanto dormia. A outra metade não. Todos foram acordados e passaram por um teste de memória. Quem tinha sido exposto aos sons enquanto dormia se deu melhor - se lembrou de mais figuras e foi mais preciso quanto à posição de cada uma na tela. "Nossos resultados mostram que informações recebidas durante o sono podem influenciar a memorização", conclui o estudo, que confirmou uma descoberta similar feita por neurologistas alemães.
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Isso não significa que seja possível aprender qualquer coisa durante o sono. Além disso, o aprendizado noturno exige que a pessoa tenha contato prévio, acordada, com o que deseja aprender. Ainda não chegou a hora de trocar os livros pelo travesseiro. (SUPERINTERESSANTE, p. 22, mai. 2010, grifos meus) Anexo B – Textos da revista Galileu Texto 1 : O novo e intratável HIV. Folga dos pacientes nos tratamentos dão origem a um vírus super-resistent que coquetel nenhum consegue abater Por Mariana Lucena Cometeu excessos no Carnaval e acabou se esquecendo da camisinha? A má notícia é que a Aids continua por aí, vitimando cerca de 2 milhões de pessoas por ano – héteros e homossexuais, viu? A péssima notícia é que anda passando de uma pessoa pra outra uma variante do HIV que é resistente a todas as drogas conhecidas até hoje. Os cientistas deram a esse monstro microscópico o nome super HIV ou XDR – do inglês, extreme drug resistant, ou extremamente resistente a drogas. Essa variante do vírus tem aparecido sobretudo nos países desenvolvidos. É neles que os pacientes têm acesso aos três grandes tipos de drogas já descobertos pela ciência: nucleosídeos, não-nucleosídeos e inibidores de protease. Como o HIV é extremamente mutante, na maioria dos casos os remédios são tomados de uma só vez. E esses novos vírus são resistentes aos três. Segundo o pesquisador Robert Smith? – sim, o nome dele tem um ponto de interrogação -, da Universidade de Ottawa, no Canadá, se o tratamento é feito adequadamente, é muito difícil que o super HIV apareça. Mas os portadores esquecemse de tomar as drogas, os níveis de remédios no organismo diminuem, e os “filhos” mutantes do HIV têm mais chance de prosperar gerando novas variantes. Voltando a falar com os foliões desprevenidos, quando um portador do vírus resistente infecta alguém, ele não transmite o HIV normal, mas o super, contra o qual ainda não existe tratamento. Os cientistas trabalham nisso, mas resultados definitivos devem demorar muito tempo. (GALILEU, p. 18, mar. 2010, grifos meus) Texto 2: Alguns detalhes indicam que você passou do ponto: se a pessoa ao lado também ouve a música do seu fone, você não consegue escutar barulhos do ambiente e está perguntando muitos “ahns?”, é hora de procurar um especialista – muitos casos são irreversíveis, mas é possível remediar o problema com próteses auditivas. O tipo de fone –earplug, headset ou de isolamento acústico – não faz tanta diferença. (GALILEU, p. 23, jun. 2010, grifos meus)
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PROCESSO DE ESCRITA E ESTRATÉGIAS DE REVISÃO E REESCRITA EM LÍNGUA FRANCESA
Ana Paula Guedes (UEM)
O processo de escrita em língua estrangeira é circundado por questões de linguagem dependentes das variantes linguísticas e culturais que envolvem a relação entre língua materna e língua estrangeira. As pesquisas aplicadas demonstram como as estruturas linguísticas e discursivas da língua materna podem interferir negativamente na aprendizagem da língua estrangeira. Ao longo de nossos estudos, procuramos estudar caminhos didático-pedagógicos que possam amenizar as transferências que produzem os erros e favorecer o desenvolvimento de estratégias compensatórias. Nesse artigo, pretendemos destacar os elementos complicadores do processo de escrita advindos da relação língua materna versus língua estrangeira e apresentar o resultado da tentativa de nova abordagem para o ensino da escrita em língua francesa por meio dos estudos dos gêneros sinopse de filmes e anúncios publicitários. Para tanto, refletimos sobre o processo da escrita e destacamos suas especificidades no âmbito da língua estrangeira, discutimos sobre a importância da abordagem sócio discursiva no desenvolvimento da habilidade escrita e apresentamos a análise da aplicação de sequências didáticas em grupos de ensino de língua francesa dando destaque para as estratégias de revisão e reescrita empenhadas pelos aprendizes. O processo da escrita O aprendiz reavalia, reformula sua linguagem quando inicia sua escolarização porque a escrita, habilidade ensinada predominantemente no circuito escolar, redefine o conceito e o processo da oralidade da língua em uso já que “no processo de aquisição da escrita, as unidades de análise da língua e da escrita redefinem-se continuamente, até corresponder àquelas que o sistema de representação define (e que seria ingênuo considerar como naturais, em qualquer dos sentidos do termo)” (FERREIRO, 2003, p.154).
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A linguística textual detalha os processos de constituição de um texto (verbal ou não verbal). Nesse sentido, Bernárdez (1982) estabelece a relação entre os elementos linguísticos e não linguísticos da escrita e indica três características fundamentais do texto: comunicativa (atividade), pragmática (intenção) e estrutural (regras do nível textual). Essas três características são providas de regras próprias e estão em constante dependência do caráter social da linguagem. Portanto, um texto possui regras pertencentes a uma atividade comunicativa subsequente a uma intenção que, por sua vez, almeja a interação social. Para que haja a interação, faz-se necessário seguir algumas convenções predispostas socialmente; essas convenções não estão restritas às normas gramaticais. Segundo o autor, o texto, antes de sua realização mediante unidades linguísticas de nível inferior, que seriam as frases, se organiza pela sua estrutura profunda, baseada em fatores de intenção verbal: o sistema linguístico da língua, o domínio da mesma, o estilo que determina quais os meios linguísticos mais adequados, o fator expressivo, as diferenças individuais entre falante e ouvinte, o contexto linguístico, a situação verbal. Todos esses fatores contribuem para o alcance do objetivo comunicativo do indivíduo que é a interação social. A interação social é a meta da atividade comunicativa estabelecida pelas regras estruturais e pelos fatores pragmáticos, sociais, culturais. Destaca-se a relação interdependente entre o escritor e o leitor, o falante e o ouvinte; a escrita é considerada como interacional, o escritor revê suas estratégias para aproximar-se o máximo possível do leitor, para atingir sua finalidade de interação. Dessa forma, [...] no caso do texto escrito, ao contrário do que acontece com o texto falado, contexto de produção e contexto de recepção, de maneira geral, não coincidem nem em termos de tempo, nem em termos de espaço, já que o escritor e leitor normalmente não se encontram copresentes. Por isso, o produtor do texto tem mais tempo para o planejamento, a execução mais cuidadosa do texto e a revisão, a ‘copidescagem’, sempre que for o caso (KOCH, 2012, p.13).
Em língua estrangeira o processo da escrita aciona os mecanismos comparativos dos conhecimentos anteriores com os novos dados, então, o processo cognitivo dessa aprendizagem desenvolve outras estratégias, tais como as de transferência, fazendo
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surgir um sistema nomeado de sistema intermediário da língua no qual ocorre o levantamento de hipóteses dos aprendizes que, por sua vez, possui um caráter instável, intermitente. O processo da escrita em língua estrangeira Os estudos da Análise Contrastiva (NEMSER, 1971), da Análise de Erros (CORDER, 1967) e da Interlíngua (SELINKER, 1994) contribuem para a compreensão do sistema intermediário da linguagem que é formado pelo entrecruzamento entre os conhecimentos da língua materna com os das línguas em aprendizagem. As primeiras pesquisas permitiram o levantamento contrastivo entre as construções linguísticas de determinadas línguas e, a partir de suas diferenças, apontar os possíveis pontos de dificuldades ou de falhas da aprendizagem. Os estudos dos erros mostraram que nem sempre os elementos diferentes da linguagem causavam a produção equivocada de determinadas estruturas linguísticas e confirmaram que os erros são demonstrações do processo cognitivo do aprendiz que produz um sistema intermediário de linguagem formatado pelos conhecimentos advindos da língua materna e da língua estrangeira em estudo. O sistema intermediário é o local de ocorrência das hipóteses levantadas pelos indivíduos que podem ser confirmadas ou não, são oscilantes, instáveis e idiossincráticas. As hipóteses são levantadas no nível linguístico e não linguístico, envolvem a atividade responsiva, portanto, caracterizam-se também pelos dados culturais, interacionais da linguagem. Bialystok (1992) ressalta que a escrita permite com maior facilidade o emprego das estratégias de monitoramento e inferências diante do maior tempo que o aprendiz dispõe para operar as estratégias e apresentar as respostas linguísticas mais adequadas ao seu contexto. Diante da compreensão da completude do texto e de seus processos no nível interlinguístico, parece necessário para a aprendizagem da escrita em língua estrangeira uma abordagem sócio-discursiva do texto.
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Escrita e a abordagem sócio-discursiva Os estudos de Bakhtin (2000) acerca do enunciado evidenciam que a produção textual escrita não pode ser limitada à análise linguística gramatical e, ainda, que os componentes linguísticos exercem uma importante função indissociável na relação dialógica, nas trocas culturais entre os falantes, isso porque Os enunciados e o tipo a que pertencem, ou seja, os gêneros do discurso, são as correias de transmissão que levam da história da sociedade à história da língua. Nenhum fenômeno novo (fonético, lexical, gramatical) pode entrar no sistema da língua sem ter sido longamente testado e passado pelo acabamento de estilo-gênero (BAKHTIN, 2000, p. 285).
Os gêneros discursivos revelam, por meio dos enunciados, as ideologias e visões de mundo concretizadas pela linguagem e por sua composição. Essa é uma das maiores contribuições dos gêneros discursivos para a produção textual escrita em língua estrangeira. A análise dos gêneros do discurso induz a uma necessária compreensão das diferentes organizações linguísticas nas diferentes esferas sociais. A linguagem e sua composição não podem ser desvinculadas de seu contexto sócio-histórico. O significado não pode ser observado, em sua completude, que senão em sua convergência social. Essas características dos gêneros do discurso expressam a complexidade do enunciado e, ao mesmo tempo, estabelecem sua indissolubilidade. A transposição do estudo do enunciado, mediante a abordagem dos gêneros, é indicada por Dolz e Schneuwly (2010) por meio da organização das chamadas sequências didáticas. Para os autores tanto para a comunicação oral quanto para a escrita há necessidade do ensino sistemático que desenvolva as capacidades de ação, discursivas e linguístico-discursivas do indivíduo. As etapas da sequência didática, segundo os autores, seguem um esquema de apresentação da situação, produção inicial, módulos e produção final. A apresentação da situação delimita um problema de comunicação a ser definido, ele envolve a definição do gênero, o(s) perfil(s) dos destinatários, as funções que serão assumidas pelos alunos (essas podem ser diferenciadas para grupos ou indivíduos), o conteúdo do gênero. A
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produção inicial é primordial para a identificação das potencialidades dos alunos, por isso, ela não precisa ser complexa, completa, nessa fase, a produção pode ser destinada a um destinatário fictício, o resultado da produção inicial fornece dados para a preparação de atividades relativas ao gênero durante os módulos sequenciais. Os módulos vão desenvolver as capacidades de linguagem dos alunos no tocante às especificidades do gênero. De fato, somente na produção final espera-se a apropriação dos instrumentos de linguagem necessários. Durante as fases de produção e aprimoramento da mesma, empregamos as estratégias de correção indicadas por Serafini (1998): indicativa (indicação do erro por meio de destaque), resolutiva (inserção da estrutura correta ao lado da incorreta) e classificatória (pontuação da classificação linguística do erro); e por Ruiz (2010); a revisão textual-interativa (em forma de bilhetes). Experimentando os gêneros para a aprendizagem da língua francesa
Em língua estrangeira consideramos necessário para a fase de apresentação da situação, a apresentação do gênero em estudo para o grupo de estudantes para que pudessem observar sua constituição linguístico-discursiva. Após os primeiros contatos com os gêneros, os módulos desenvolvem-se com o aprofundamento de atividades relacionadas às capacidades linguístico-discursivas exigidas pelo gênero. Todas as sequências didáticas do projeto foram aplicadas em 2013 nas aulas de língua francesa das Escolas Estaduais de Maringá vinculadas ao Centro de Ensino de Língua Estrangeiras Modernas – CELEM, projeto da Secretaria do Estado do Paraná que oferta o ensino de línguas estrangeiras para estudantes da rede pública de ensino e para a comunidade externa. O gênero sinopse de filmes foi estudado com alunos do segundo ano de estudos da língua francesa sob o intuito de desenvolver as competências de resumir uma ideia, apontar um objetivo e delinear suas etapas. Destacamos que apesar de nosso objetivo principal ser o desenvolvimento da habilidade escrita em língua francesa, buscamos o apoio de outras habilidades para a contextualização e desenvolvimento das atividades previstas. Por exemplo, no caso das sequências didáticas com o gênero sinopse de
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filmes, os primeiros módulos tiveram o apoio da apresentação, discussão e reflexão dos trailers dos filmes (habilidades da oralidade) como preparação para a elaboração da sinopse (habilidade escrita). A primeira produção dos alunos recebeu correções predominantemente de ordem indicativa e resolutiva; a segunda versão exigiu do professor a correção textual-interativa que, naquele momento, foi suficiente para a escrita da versão final. O gênero anúncio publicitário foi estudado com os alunos do primeiro ano de estudos da língua francesa, com o objetivo de desenvolver as competências de descrição e persuasão. Para os trabalhos apresentamos também a abordagem nos primeiros módulos do “subgênero” slogan. Acreditamos que além dos recursos imagéticos e da intertextualidade presentes no gênero anúncio publicitário, o slogan merecia destaque porque é a expressão chave do produto em foco. Com relação ao slogan, as correções foram de ordem resolutiva. Já com relação ao gênero anúncio publicitário, foram predominantemente textual-interativa e com alguns apontamentos resolutivos. Percebemos também a diferença de texto apresentado de acordo com o interlocutor: pedimos que os aprendizes escrevessem um anúncio direcionado aos alunos da escola e outro aos pais; o resultado foi intrigante: na versão destinada aos pais havia maior concentração no preço e nas funções básicas do produto, já para na versão aos alunos observamos maior detalhamento nos aplicativos dos produtos. Considerações finais A aprendizagem da escrita em língua estrangeira depende das relações entre os elementos textuais e não textuais; o estudo dos gêneros do discurso favorece a integração entre os elementos da linguagem (pragmáticos, linguístico-discursivos e culturais) tratando o texto como um componente dialógico composto por unidades da língua e de comunicação verbal. As atividades didático-pedagógicas podem tender a segmentar, analisar e estudar um elemento linguístico isolado, porém “quando consideramos um enunciado com o intuito de análise linguística, abstraímos a sua natureza dialógica, consideramo-lo dentro do sistema da língua (a título de realização da língua) e não no grande diálogo da comunicação verbal” (BAKHTIN, 2000, p. 346).
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Em língua estrangeira intensifica-se essa relação do linguístico com o social, com o cultural e as atividades de correção dos textos parecem surtir melhores resultados nas versões quando apoiadas na forma resolutiva (SERAFINI, 1998) e na textualinterativa (RUIZ, 2010). A correção resolutiva, apesar de ser criticada por Serafini como não estimuladora do cognitivismo, parece atender mais rapidamente às necessidades dos aprendizes com relação às dúvidas pontuais acerca de vocabulários, regências verbal e nominal, empregos de expressões idiomáticas. A correção textualinterativa aciona os mecanismos de memória dos aprendizes e sua reflexão sobre os aspectos culturais, sociais e interacionais de um gênero; permite a interação, o diálogo com o professor no tocante a aspectos não verbais do texto correlacionados, interligados com sua estruturação verbal, como o emprego de expressões de persuasão empregadas no gênero anúncio publicitário. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução feita a partir do francês por Maria Ermantina Galvão. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BERNÁRDEZ, E. Introducción a la Lingüística del Texto. Madrid: Espasa-Calpe S. A., 1982. BIALYSTOK, E. Un modelo teórico del aprendizaje de lenguas segundas. In: LICERAS, J. M. La adquisición de las lenguas extranjeras. Traducción de Marcelino Marcos. Madrid: Visor, 1992, p.177-191. CORDER, S. Pit. The significance of learners errors. IRAL, v(4), 1967, p.161-170. DOLZ,J.; SHCNEUWLY,B. Gêneros e progressão em expressão oral e escrita – elementos para reflexões sobre uma experiência na Suíça (francófona). In: ROJO, R.; CORDEIRO, G. S. (tradução e organização). Gêneros orais e escritos na escola. 2.ed. Campinas: Mercado de Letras, 2010.
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FERREIRO, E. Escrita e Oralidade: Unidades, Níveis de Análise e Consciência Metalinguística. In: FERREIRO, E. et al. Relações de (in)dependência entre oralidade e escrita. São Paulo, Artmed, 2003. KOCH, I.; ELIAS, V. M. Ler e escrever: estratégias de produção textual. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2012. NEMSER, W. Approximative systems of foreign language learners. IRAL, IX/2, p.115123, may 1971. RUIZ, E. D. Como corrigir redações na escola. São Paulo: Contexto, 2010. SELINKER, L. Rediscovering interlanguage. 2.ed. New York: Longman, 1994. SERAFINI, M. T. Como escrever textos. São Paulo: Globo, 1998.
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O PERCURSO DE (TRANS)FORMAÇÃO DE UM OBJETO EM ANÁLISE DO DISCURSO André William Alves de Assis (UFMG) Raquel Tiemi Masuda Mareco (UEM) O imediatismo contemporâneo promovido, em grande parte, pelas novas tecnologias e pela internet impõe e afeta o ritmo de vida das pessoas, dos profissionais de comunicação, das instituições, e etc. No campo jornalístico, por exemplo, a necessidade, cada vez maior, de colocar rapidamente em circulação fatos sociais, polêmicos ou que se julgue merecedor de ser veiculado, promove a fragmentação do conteúdo. Aquilo que é produzido para o leitor não passa de um recorte enunciativo. Consequentemente, essa fragmentação promove a circulação de textos curtos, enunciados breves, pequenos vídeos e pequenos áudios que compõem gêneros diversos na internet, fontes de leitura de muitas pessoas. Como se trata de uma situação que interfere na forma como os gêneros são veiculados, observamos o aumento de trabalhos de análise que selecionam como objeto enunciados breves, curtos e singulares sob o olhar de teorias discursivas. Diante disso, a fim discutir como esses enunciados são coletados e passam a ser objeto de análise, utilizamos como corpus dois de nossos trabalhos, publicados em periódicos ou que se encontram no prelo, o que nos permitiu apresentar algumas possibilidades metodológicas de coleta de corpora, em torno de objetos que circulam no campo midiático e são divulgados, em sua grande maioria, na internet: as fórmulas discursivas e as pequenas frases. Embasamos nossas análises em trabalhos recentes de estudiosos contemporâneos da análise do discurso, como Maingueneau (2008, 2012, 2014) e Krieg-Planque (2009, 2011). Dentre esses trabalhos, priorizamos os que abordam os conceitos de sobreasseveração, pequenas frases, fórmula discursiva, aforizações, pré-discursos, etc.
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O corpus em AD A noção de corpus, assim como a compreendemos hoje em linguística, permitenos abordar diferentes metodologias para coleta e tratamento de material linguageiro. Essas diferentes formas foram afetas ao longo do tempo pelas diferentes vertentes e áreas que se debruçam em pesquisas relacionadas ao campo da linguagem. Em análise do discurso, por exemplo, essa noção corresponde, quase sempre, a uma opção do analista que apresenta em sua pesquisa uma metodologia de trabalho específica em torno de um agrupamento de textos particular. Pêcheux (2011, p. 165) explica que “analisar uma materialidade discursiva supõe estruturar o campo dos arquivos submetidos à análise, o que chamamos, por vezes, a construção do corpus”. O autor define corpus como “um sistema diversificado, estratificado, disjunto, laminado, internamente contraditório” (PÊCHEUX, 2011, p. 165). Dessa forma, muitos problemas parecem advir dessas escolhas e desses agrupamentos que compreendem o que se denomina de corpus. Um desses problemas nos parece estar relacionado com a circulação de enunciados curtos e singulares na internet. Aparentemente livres das coerções impostas aso gêneros, permitem-nos questionar como podemos pensar a coleta de corpus em relação a novas problemáticas discursivas que emergem de novos suportes, novas plataformas, novos gêneros e agrupamentos de gêneros como os que se propagam pelo uso da internet, afetando assim práticas de atores políticos e sociais diversos. Nesse sentido, acreditamos ser [...] necessário pensar em outros objetos, inventar outras ferramentas, conceber outras Análises do Discurso [...] que continue tão atenta ao peso da história quanto às metamorfoses dos materiais discursivos significantes (COURTINE, 2008, p.13).
Dessa forma, compor um corpus discursivo perece ser uma operação em que se organiza um material significativo para um campo que permita ao analista levantar hipóteses e traçar objetivos para sua pesquisa. Esse processo inicia-se, sobretudo, pela delimitação do campo de referência, podendo abranger de forma mais específica um espaço discursivo das ocorrências ou de forma mais ampla o universo discursivo de sua
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emergência. Essas três delimitações compõem um conjunto de discurso que mantêm certe relação discursiva entre si, definição dada por Maingueneau (2008) ao interdiscurso. Interessados na materialidade histórica dos discursos em na propagação em diferentes posicionamentos, o que permite observar diferentes efeitos de sentidos ocasionados pelas diferentes leituras de diferentes posicionamentos, julgamos necessário que as pesquisas debruçadas às novas problemáticas discursivas considerem, sobretudo, o percurso a que elas são submetidas no interdiscurso. Para esse tipo de análise, algumas fronteiras bastante estabelecidas no campo da Análise do discurso devem ser derrubadas, como veremos no próximo tópico.
Unidades não-tópicas: uma análise do percurso no interdiscurso As pesquisas em análise do discurso são, normalmente, construídas em torno de unidades tópicas. Compreendidas como “unidades territoriais, que correspondem a espações já ‘pré-delimitados’ pelas práticas verbais” (MAINGUENEAU, 2008, p. 16). As unidades tópicas inscrevem-se em territórios já estabelecidos, apreendidos como tipos de discurso (administrativo, político, midiático, religioso, etc.), que abrangem, por sua vez, produções genéricas como dispositivos sócio-históricos produzidos por instituições diversas. As unidades transversais também são consideradas como unidades tópicas, uma vez que atravessam diferentes gêneros e compreendem três tipos de registros: linguísticos, funcionais e comunicacionais (MAINGUENEAU, 2008). Na contramão desse tipo de análise, que considera as unidades tópicas, estão as unidades não-tópicas. Para Maingueneau (2008, p. 18), [...] as unidades não-tópicas são construídas pelos pesquisadores independentemente de fronteiras preestabelecidas (o que as distingue das unidades ‘territoriais’). Por outro lado, elas agrupam enunciados profundamente inscritos na história (o que as distingue das unidades ‘transversais’.
Para esse autor, algumas unidades como o discurso racista e o discurso organizacional não possuem fronteiras definidas a não ser por aquelas escolhas do pesquisador. Os corpora correspondem a um agrupamento composto por diferentes
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tipos de gêneros, produzidos em diferentes posicionamentos, diferentes aparelhos e diferentes registros. Nesse aspecto, Maingueneau (2008) considera a pertinência de trabalhos como o que aqui apresentamos, que se justificam por apresentar um percurso, em que “praticamos o estabelecimento em rede de unidades de diversas ordens (lexicais, proposicionais, fragmentos de textos) extraídas do interdiscurso 1, sem procurar construir espaços de coerências, produzir totalidades” (MAINGUENEAU, 2008, p. 23). Uma análise de unidades não-tópicas que pretenda estabelecer percursos no interdiscurso, nessa linha de raciocínio, não se detém em unidades instituídas. Pelo contrário, constrói percursos não esperados, apoiando-se em relações insuspeitas emergentes no interdiscurso. Dessa forma, uma análise que se utilize da noção de fórmula discursivas pode observar a circulação e a retomada de um mesmo sintagma em diferentes gêneros, diferentes contextos e diferentes posicionamentos, assim como a análise de uma pequena frase em circulação faz emergir a polêmica e diferentes/contrastantes interpretações. O trabalho com unidades não-tópicas explora uma dispersão, uma circulação de corpora agrupados a partir de um princípio de coerência, observando o percurso no interdiscurso de enunciados profundamente inscritos na história, que circulam em diferentes campos produzindo diferentes sentidos. Ao retomarmos a fórmula “Classe C” em circulação na mídia, e uma pequena frase pronunciada por Dilma Rousseff, que ganhou espaço na mídia em um momento específico, nossa proposta está relacionada a esse tipo de agrupamento de corpus de unidades não-tópica. Nosso foco neste trabalho é apresentar a metodologia empregada para empreendermos o percurso no interdiscurso das unidades não-tópicas que compõem nosso objeto de análise: a fórmula discursiva e a pequena frase.
Compreendido de como um conjunto de discursos inter-relacionados e tripartido em universo, campo e espaço discursivos. 1
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Novas abordagens discursivas
A fórmula discursiva Fórmula é um conceito proposto pela pesquisadora Alice Krieg-Planque, que a considera como “um conjunto de enunciados ou fragmentos de enunciados que circulam em bloco em um momento determinado e que são percebidos como constituindo um todo, cuja origem pode ou não ser identificada” (KRIEG-PLANQUE, 2009, p. 66). Ainda, segundo a autora, as fórmulas compreendem quatro propriedades: i) a forma relativamente cristalizada; ii) a inscrição discursiva; iii) a referência social; iv) a polemicidade. Considerando essas quatro propriedades das fórmulas discursivas, é possível analisar uma unidade lexical complexa, como “Classe C”, e constatar se ela possui as características necessárias para adquirir estatuto formulaico. Foi o que fizemos no artigo intitulado Classe C: a (des)estabilização de sentidos do novo pobre brasileiro (MARECO; ASSIS, 2012). A partir da constatação de que “Classe C” circula com certa recorrência em nossa sociedade, o que poderia lhe atribuir o estatuto de fórmula, apresentamos nossa metodologia de trabalho que correspondeu à seguinte sequência: Definimos o objeto e a delimitação do espaço de tempo da coleta (2001 até 2011); Coletamos as ocorrências (em buscadores como os do google, o do jornal Folha de S. Paulo, o do Facebook, entre outros); Observamos as quatro características da fórmula: um caráter discursivo;
1) um caráter cristalizado; 2)
3) um caráter de referente social; 4) um caráter
polêmico (KRIEG-PLANQUE, 2009); Analisamos o percurso da fórmula, perpassando diferentes campos discursivos, e suas implicações.
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No artigo supracitado, foi possível atestar a recorrência de uso e a circulação de “Classe C” como fórmula em diferentes gêneros discursivos veiculados na internet desde o ano de 2001 até o ano de 2011. Essa constatação não se limita ao plano do conteúdo. Conforme consideram Motta e Salgado (2011, p. 5), toda fórmula discursiva comporta uma densidade histórica que se torna visível na sua circulação, apoiada em pré-construídos e voltada a novas construções. Neste mesmo sentido, Benites (2011, p. 256) complementa que um trabalho que envolva fórmulas, envolve, também, uma história e uma sociologia, uma vez que apreende os discursos como produções situadas. Muitos questionamentos podem surgir a partir da constatação de que o corpus agrupado corresponde à dispersão da fórmula “Classe C”, abrangendo gêneros e campos diversos. Contudo, não há, nesse tipo de análise que aqui propomos, fronteiras prédelimitadas, o princípio que nos orienta está relacionado às unidades não-tópicas (Maingueneau, 2008), que são unidades não estabilizadas por propriedades que definam fronteiras pré-formatadas. O princípio que as agrupa é uma decisão tomada exclusivamente pelos analistas, explorando uma dispersão, uma circulação desse objeto que é a fórmula. Pode-se, dessa forma, atravessar múltiplas fronteiras, circular no interdiscurso para fazer aparecer relações invisíveis particularmente propícias às interpretações fortes (MAINGUENEAU, ANO). É no interdiscurso que se apreende as diferenças de significação das fórmulas em diferentes e contrastantes campos discursivos, já que a fórmula não é limitada a um único sentido, muitas vezes ela está no centro de uma rede.
A pequena frase O termo “pequena frase” não implica, necessariamente, pequenos textos, embora normalmente elas sejam assim. Segundo Krieg-Planque (2011), [...] a expressão ‘pequena frase pode ser definida da seguinte maneira: ‘pequena frase’ é um sintagma denominativo metalinguístico nãoerudito (e, mais precisamente, pertencente ao discurso-outro apropriado) que designa um enunciado que alguns atores sociais
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tornam notável e que é apresentado como destinado à retomada e à circulação (KRIEG-PLANQUE, 2011, p. 26, tradução nossa)2.
Essa estrutura, destinada à circulação, evidencia-se por meio do processo de citação. Trata-se da apropriação do discurso-outro, um processo de retomada de enunciados que normalmente representam a fala de algum ator político/social apresentada como destinada à circulação. A enunciação da pequena frase de atores políticos, por exemplo, está relacionada à sua posição discursiva. São frases destinadas à circulação, proferidas em momentos enunciativos diversos. Em Das sobreasseverações às aforizações: veiculação e interpretação de falas na mídia online (MARECO; ASSIS, 2014), analisamos uma pequena frase oriunda da fala da presidente Dilma Rousseff, proferida no encontro do BRICS. Partindo da observação de que a frase “Eu não concordo com políticas de combate à inflação que olhem a questão da redução do crescimento econômico” tomou grande proporção no espaço público, produzindo diferentes interpretações ao perpassar diferentes posicionamentos, nosso percurso metodológico em torno desse objeto se deu da seguinte forma: Selecionamos o enunciado como objeto e delimitamos o espaço de tempo para coleta (uma semana após a divulgação da entrevista de Dilma); Buscamos as ocorrências (em buscadores como os do google, o do Facebook, e o de jornais online); Elaboramos o percurso que compreende a destextualização desse enunciado (da sobreasseveração à aforização), o que nos permitiu confrontar, em tabelas, o enunciado sobreasseverado com as suas respectivas retomadas. Analisamos as diferentes implicações na retomada das aforizações em diferentes campos. Na mídia, normalmente, as pequenas frases são oriundas de enunciados polêmicos como esse de Dilma. Pela posição que ocupa, de presidente do Brasil, enunciados como esse que condensam uma tomada de posição frente a um tema “[...] l'expression "petite phrase" peut être définie de la façon suivante: "petite phrase" est un syntagme dénominatif métalinguistique non-savant (et plus précisément: relevant du discours autre approprié), qui désigne un énoncé que certains acteurs sociaux rendent remarquable et qui est présenté comme destiné à lá reprise et à la circulation.”. 2
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polêmico tomam grandes proporções. Retomada em notícias, essa pequena frase passa a ser produto de um destacamento, advindo de um processo de seleção para ser repetido/retomado inúmeras vezes. Destacadas de um texto, evidentemente as pequenas frases se submetem aos processos de aforização e sobreasseveração 3 e respondem a seu regime enunciativo específico. Como o sentido não é estático, essas frases, em circulação, ganham novas proporções sendo, por vezes, alteradas para satisfazer as necessidades de cada posicionamento, conforme observaram Mareco (2013) e Assis (2013). Por esse motivo, pequenas frases como a proferida por Dilma Rousseff podem ser objeto de análise, uma vez que são “[...] um suporte privilegiado para os percursos, na medida em que, precisamente, os enunciados só existem em virtude de sua própria circulação” (MAINGUENEAU, 2014, p. 100)4. Se observados os diferentes percursos dessas pequenas frases no interdiscurso, observaremos que a retomada e suas alterações estão relacionadas ao posicionamento do veículo ou do jornalistas que as retoma. Para Maingueneau, [...] estudar o percurso de uma pequena frase de um homem político contemporâneo não é observar em que medida são "verdadeiros" seus sentidos, se aquilo que era suposto na cabeça de quem a proferiu teria sido modificado, deformado: é observar um incessante trabalho de recontextualizações, em função de interesses daqueles que os convocam em seus discursos (MAINGUENEAU, 2014, p. 111, tradução nossa)5
A mudança no estatuto pragmático dessas pequenas frases é orientada por interesses específicos de cada posicionamento, cada veículo de informação, apreendidos no produto do destacamento, a aforização. Em Assis (2013), esses interesses expuseram diferentes manobras na retomada de fala dos atores políticos, manobras que sintetizam a enunciação e manobras que produzem diferente sentidos ao circular por diferentes posicionamentos. O percurso no interdiscurso permitiu ao autor atestar sua hipótese de Os regimes aforizante e textualizante se inscrevem além do horizonte dos gêneros discursivos. Para uma explanação maior, ver Assis e Mareco (2012). 4 “[...] un support privilégié pour les parcours, dans la mesure où, précisément, ces énoncés n’existent qu’à travers leur circulation.”. 5 “[...] étudier le « parcours » d’une petite phrase d’un homme politique contemporain [...] ce n’est pas regarder dans quelle mesure son « vrai » sens, celui qu’elle était censée avoir dans la tête de celui qui l’a proférée, aurait été « altéré », « déformé »: c’est observer un incessant travail de recontextualisation, en fonction des intérêts de ceux qui les convoquent dans leurs discours.”. 3
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que as retomadas de falas de atores políticos em notícias online recenografam o debate. (ASSIS, 2013). Em Mareco (2013), temos uma descrição e ampliação das formas de construção utilizadas nesse processo de retomada de aforizações, a autora compara os processos que fundamentam a construção das aforizações em jornais, observando no interdiscurso os efeitos por eles produzidos, resultando em notícias que direcionaram maior/menor visibilidade para os candidatos (MARECO, 2013). O percurso no interdiscurso que aqui propomos, ancorados nesses autores, permitiu-nos observar que a mídia altera e descontextualiza as pequenas frases ao transportá-las para as notícias, obrigando o atores "reais", como o caso de Dilma Rousseff, a participarem de um debate entre enunciados (o dito por ela e o retomado pela mídia) que não tenham sido produzidos como sobreasseverações.
Considerações finais Sem a pretensão de limitar ou impor um método para coleta de corpora em AD, oferecemos alguns caminhos que podem auxiliar, metodologicamente, o momento de planejamento ou de elaboração de projetos de pesquisa que escolham como corpus unidades não-tópicas. Escolhemos como objeto desse percurso uma fórmula discursiva e uma pequena frase, objetos que retomamos de trabalhos por nós produzidos anteriormente, para que pudéssemos observar além de suas características formais, também seu trajeto em diferentes campos discursivos. Em síntese, observamos que o trabalho com fórmulas discursivas e com pequenas frases devem compreender um percurso de análise que se debruce sobre o percurso desses enunciados no interior do interdiscurso em que circulam e se dispersam.
Referências ASSIS, A. W. A. Citações e sobreasseverações: o funcionamento da retomada de falas em notícias online. 2013. 99 f. Dissertação (Mestrado em Letras), Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2013.
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ASSIS, A. W. A.; MARECO, R. T. M. Enunciados em destaque: caminhos para uma abordagem em análise do discurso. Linguasagem, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 1-8, 2012. BENITES, S. A. L. Plebiscitos em revista: a sátira da fórmula. In: BARONAS, Roberto Leiser; MIOTELLO, Valdemir (Orgs.). Análise de discurso: teorizações e métodos. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011, p.251-264. COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos: EduFSCar, 2009. KRIEG-PLANQUE, A. A noção de fórmula em análise do discurso. Tradução de Luciana Salazar Salgado e Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editoria, 2010. KRIEG-PLANQUE, A.; OLLIVER-YANIV, C. Les “Petites Phrases”: un objet pour l’analyse des discours politiques et médiatiques. Communication & Langages, Paris, nº 168, juin 2011, p. 23-42. MAINGUENEAU, D. Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola, 2008. _______. Les phrases sans texte. Paris: Armand Colin, 2012, version numérique. _______. Discours et analyse du discours: une introduction. Paris: Armand Colin, 2014. MARECO, R. T. M.; ASSIS, A. W. A. Classe C: a (des)estabilização de sentidos do novo pobre brasileiro. Encontros de Vista, v. 10, n. 1, p. 20-32, 2012. MARECO, R. T. M.; ASSIS, A. W. A. Das sobreasseverações às aforizações: veiculação e interpretação de falas na mídia online. (mimeo). 2014. p. 01-18. MOTTA, A. R.; SALGADO, L. Fórmulas discursivas. São Paulo: Contexto, 2011. PÊCHEUX, M. Análise de discurso: Michel Pêcheux. Campinas, SP: Pontes, 2011.
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“GUERRA” DOS SEXOS: DO DISPOSITIVO DE ALIANÇA AO DISPOSITIVO DE SEXUALIDADE, QUEM TERIA VENCIDO NA PRODUÇÃO MIDIÁTICA DE SUBJETIVIDADES? Andréa Zíngara Miranda (UEM) A guerra entre os sexos é investigada pela autora deste texto em sua pesquisa de doutorado (em andamento). O corpus de análise da pesquisa é composto por um quadro constituído de sequências enunciativas acerca do tema publicadas nos anos de 2012 e 2013 a partir do qual a subjetividade do homem e da mulher, imersa nessa guerra que tem lugar na mídia, está sendo explorada com intuito de se compreender como esses sujeitos se constituem ética e moralmente. Desse corpus, cujos enunciados são oriundos das revistas Época, Veja, Cláudia e do romance erótico 50 tons de cinza, seleciona-se para este trabalho um recorte que permite problematizar os discursos que objetivam e subjetivam os sujeitos ora valorizando-os ora marginalizando-os a ponto de travar, entre seus sexos, uma guerra. A discussão aqui empreendida foi suscitada a partir do enunciado “A mulher venceu a guerra dos sexos”, veiculado pela revista Época de 08/12/2012. Para que se entendesse o que possibilitou sua emergência, construiu-se um quadro com séries enunciativas a partir do qual fosse possível a abordagem do conjunto de enunciados, em sua dispersão de acontecimento, que constroem, pela linguagem, sujeitos homem ou mulher, cujas subjetividades vêm sendo delineadas como produtos de classificações naturalizadas ao não se considerar, para tanto, o ser como parte de um processo histórico e, como tal, passível de descontinuidades. A discussão percorrerá um caminho teórico-analítico que passa, principalmente, pelas reflexões de Michel Foucault (1982, 1984, 1988), cujos contributos da análise arqueogenealógica acerca do saber, do poder e, sobretudo, do sujeito com suas artes de existência e cuidados de si, abrem possibilidades para a compreensão de acontecimentos discursivos que não só estabelecem, mas naturalizam sentidos na cultura a propósito do sexo e da sexualidade dos sujeitos. Isso significa dizer que as sequências enunciativas
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serão consideradas fatos de discurso e, por essa razão, serão historicizadas ao modo de Foucault ao pautar-se no método serialista1. Com isso em vista, parte-se da hipótese de que a produção discursiva de subjetividades tal como foi e vem sendo veiculada pelas referidas mídias, permite observar que não há uma verdade a ser buscada nas diversas etapas constitutivas do saber sobre o objeto em pauta, mas sim discursos historicamente detectáveis que constroem verdades e possibilitam o exercício da governamentalidade sobre o corpo social. O fio condutor dessa discussão traça o seguinte percurso: expõe-se, em um primeiro momento, um panorama dos conceitos foucaultianos aqui mobilizados, dando destaque às características da descrição arqueogenealógica para uma análise históricodiscursiva; em seguida, abordam-se algumas considerações sobre a mídia, entendida neste trabalho como um instrumento de governamentalidade; com base nisso, apresentase o gesto de leitura dos recortes enunciativos, a partir dos quais se intenta compreender a constituição ética e moral do homem e da mulher. Espera-se, com isso, demonstrar os funcionamentos discursivos e os efeitos de sentido daí resultantes quando da busca por uma verdade acerca das diferenças entre os sexos. Contribuições da arqueogenealogia para uma análise histórico-discursiva A incondicional dedicação de Michel Foucault ao fazer uma “história do presente”, lega uma história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano na cultura ocidental e mostra como, a partir dos três modos de objetivação, os seres humanos transformaram-se em sujeitos. Quando, na atualidade, se depara com um enunciado como “A mulher venceu a guerra dos sexos” (Época, 2012), por exemplo, não se tem à disposição outro caminho de acesso a esse dizer senão a partir de sua historicização. Isso sinaliza a possibilidade de entendimento da transformação histórica de indivíduos em sujeitos. Conforme explica Navarro-Barbosa (2004), esse método refere-se ao modo escolhido por Michel Foucault para estudar, em sua obra História da Loucura (2003), as condições de validade e de possibilidade do saber psiquiátrico em relação à loucura. Tal método consiste em fazer de documentos históricos um monumento, por meio do qual se pode constituir séries, definir seus elementos e limites para se descobrir o tipo de relação que lhes são específicas e a lei que as rege, fazendo aparecer as rupturas, as descontinuidades bem como as regularidades nas práticas discursivas com relação ao objeto estudado.
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A subjetividade da mulher ou do homem representada pelas mídias, impressas ou televisivas, comporta em seu bojo o atravessamento da historicidade em torno do que significa o sexo e a sexualidade. A representação é algo da ordem de uma interpretação na qual os saberes, historicamente constituídos, têm um papel importante. Na relação triádica do saber, do poder e da ética, o sujeito estabelece relações sobre as coisas, sobre a ação dos outros e também sobre si e, por tratar-se de um produto histórico de práticas discursivas, ao sujeito são disponibilizadas posições possíveis de subjetividade. Sobre a relação do sujeito com o saber, vale pensar em como os saberes sobre o sexo e a sexualidade atravessam a produção discursiva midiática; sobre sua relação com o poder, buscar apreender que efeitos de poder circulam sobre aquilo que se diz sobre o sexo ou a sexualidade e como esses efeitos incidem sobre esses sujeitos e seu modo de gerir a vida como mulher ou como homem; na relação de si para consigo, buscar entender como se dá o processo de subjetivação. Michel Foucault enfatizou em vários momentos que não criou um método, se se tomar essa palavra no sentido estrito do termo; como também não teve como principal objetivo construir uma teoria do discurso, pois, “apesar de sua linguagem e abordagem se apresentarem fortemente influenciadas pela moda francesa do estruturalismo, Foucault nunca produziu uma teoria universal do discurso;” (DREIFUS & RABINOW, 1995, p. IX). Não obstante, como explica Veiga-Neto (2004), pode-se contemplar, principalmente em sua arqueologia e genealogia, um conjunto de estratégias totalmente cabível a análises que se querem articuladas com o Discurso, com a História e com a linguagem, visto que o filósofo indicou direções para tais procedimentos ao elaborar conceitos como os de enunciado, de formação discursiva, de arquivo entre outros. Trilhar o caminho de acesso ao pensamento de Michel Foucault não significa apresentar conceitos e análises definitivos quando ele próprio não teve essa pretensão. Percorrer esse caminho é, antes, adotar uma perspectiva analítica foucaultiana no sentido de estar movido por uma inquietante suspeita de que essa suposta evidência acerca dos grandes temas constituintes do homem ocidental possa ser criticada e destruída. Sob esse mirante, pretende-se descrever práticas sociais em sua descontinuidade histórica. Tais práticas estão mergulhadas em relações de poder, são produzidas discursivamente e, ao mesmo tempo, são produtoras de discursos. O poder, aqui,
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compreendido como “o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (FOUCAULT, 1988, p. 103). Os enunciados que ensejam construir subjetividades para o homem e para a mulher, constroem uma verdade que se define por “identidades” que ora perpetuam o corpo da mulher como superfície para o exercício do poder e do homem como o “sexo” da humanidade, como no romance 50 tons de cinza (2012), ora permitem apreender uma mulher protagonista de uma história da liberacão sexual com suas conquistas, da pílula à internet, tendo como pano de fundo um homem que precisa (re) inventar sua identidade, como se vê no enunciado: “Elas chegaram ao comando da família, das empresas, do país. Aos homens, cabe inventar para si mesmos uma nova identidade, que permita acompanhá-las”, ou, neste outro: “Eles acompanharam as mudanças femininas e estão mais presentes na vida familiar”, ambos veiculados por Época em março de 2013. O recorte, embora ínfimo frente aos muitos outros produzidos alhures, seriam suficientes para vislumbrar essa forma de fazer história. Uma leitura menos distraída do enunciado “A mulher venceu a guerra dos sexos” permite operar com a questão da emergência dos discursos, isto é, indagar-se sobre o porquê do surgimento de determinados enunciados e não de outros em dada sociedade e época? Foucault (1984) explica que cada sociedade tem seu regime de verdade e que tal regime consiste em acolher determinados discursos e fazê-los funcionar como verdadeiros. A sociedade, assim, movida por uma vontade de verdade, produz discursos que decorrem tanto do feixe de relações que permite dizer as coisas de uma forma e não de outra quanto dos efeitos de poder que permeiam os discursos. Saber e poder são, portanto, as duas instâncias que dão suporte para a constituição e para a formulação dos enunciados pelos quais os enunciadores das materialidades em questão se manifestaram para a construção de “verdades” sobre as subjetividades. Quando se fala em construção de verdades, é importante entender que a verdade, como explicou Foucault, é deste mundo e nele é produzida, devendo, portanto, ser compreendida como um regime, isto é, como o “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro, efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 1984, p. 14).
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Quanto ao atravessamento da historicidade em torno do que significa o sexo e a sexualidade, mencionado anteriormente, é preciso lembrar que ao fazer a abordagem da sexualidade, Michel Foucault (1988) desloca a discussão do campo da repressão para o campo discursivo e considera o sexo como parte da formalização de um discurso que entrelaça saber, poder e prazer e não como algo preexistente. O autor indaga sobre o que aconteceu no ocidente para que a verdade fosse relacionada ao prazer sexual e, para isso, recua à história para entender os processos pelos quais os indivíduos se tornam sujeitos. A temática da sexualidade, do sexo, do prazer e do desejo não é nova. Talvez a novidade esteja, entretanto, no fato de que tais temas não são mais privilégios de médicos psicanalistas, de psicólogos, de sexólogos ou mesmo da Igreja, como nos moldes da pastoral cristã descrita por Foucault (1988), por exemplo. Teorias feministas, há décadas, vêm discutindo a noção de categorias com as de “mulher”, de gênero ou, ainda, do clássico binômio masculino/feminino. Nunes (2000) explica que Freud já havia apresentado, ao elaborar sua teoria sobre a sexualidade, a possibilidade de pensar o processo de subjetivação como uma experiência singular e a experiência erótica não mais submissa à lógica fálica. É possível observar em tudo o que já se disse e o que ainda se diz sobre sexo e sexualidade as descontinuidades históricas, as fragmentações, as rupturas e os deslocamentos, quando se trata de produção de subjetividades. Mas sempre houve e haverá, como explica Foucault (1982, p.13), “um combate pela verdade, ou pelo menos em torno da verdade”, pois para ele há uma fixação em se saber a verdade do sujeito e construí-lo como lugar de verdade. Tomando como ponto de partida o conceito de dispositivo da sexualidade2, percebe-se a possibilidade de se compreender não o que foi dito sobre o sexo e a sexualidade no romance erótico ou nos enunciados das referidas revistas, pois isso não Dreyfus e Rabinow (1995) explicam que Foucault estabelece uma diferença entre sexo e sexualidade. A forma histórica do discurso e da prática denominada por Foucault de sexualidade nasceu da separação do sexo, que é uma questão familiar, e do dispositivo da aliança, ligado à troca e à transmissão de riqueza. A sexualidade, por sua vez é uma questão individual e, por isso, diz respeito aos prazeres individuais ocultos, às fantasias secretas. 2
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seria fazer uma análise com perspectiva histórico-discursiva, mas de se compreender o “como” isso foi dito. Essa abordagem permite, também, entender as novas formas de subjetivação na cultura contemporânea, haja vista que os discursos que se materializam nesse espaço sustentam um saber histórico, muitas vezes cristalizado, que perpassa as práticas sociais. Como se viu, a sexualidade é uma construção histórica e não um referente biológico. Para que se visualize o modo como as subjetividades de homens e de mulheres estão sendo descritas pela mídia, que ora compactua com o já “naturalizado” binômio masculino/feminino e seu correspondente “sexo forte/sexo frágil”, ora desestabiliza e rompe com tal ideia defendendo até que a mulher teria vencido a guerra dos sexos, expõe-se a seguir alguns deles a título de exemplo. “A chegada do contraceptivo feminino pôs fim a 5 000 anos de patriarcado. Até então eram os homens que decidiam quantos filhos a mulher teria. Com a pílula ela passou a ter controle sobre o próprio corpo, o sexo se dissociou da procriação e aliou-se ao prazer. À mulher foi dado o direito ao orgasmo e a queimar seus sutiãs”. Veja, setembro 2012. 1)
2) “A mulher venceu a guerra dos sexos. Elas estudam mais, são mais valorizadas no trabalho e já não querem saber de namorar para não atrapalhar a carreira, os homens que se cuidem”. Época, outubro 2012. 3) “Bem sucedido, sensível, prendado, equilibrado, bom pai, bom de cama...Será que ele existe?” Época, março 2013. 4) “A mulher que trabalha, cuida dos filhos, do marido, da comida, da casa...50 anos de feminismo, e ela ainda existe”. Época, março 2013.
Uma primeira leitura permite inferir de tais enunciados não só as fragmentações, as rupturas, mas também as regularidades que os caracterizam. Cada um a seu modo constrói uma verdade a respeito da identidade da mulher e do homem. O enunciado número 1 afirma que a chegada do contraceptivo pôs fim ao patriarcado e que, a partir de então, a mulher teria controle sobre seu corpo. Se isso se confirma, indaga-se, então, sobre o porquê da necessidade de uma “marcha” mundial das mulheres pela legalização do aborto. A mãe, considerada a “mulher nervosa”, saturada de sexualidade, tem a fecundidade regulada pelo corpo social e, segundo Michel Foucault (1988), ela constitui a forma mais visível da histerização de seu corpo, processo pelo qual a mulher teve o corpo analisado. Nesse âmbito, não se pode fechar os olhos para o funcionamento
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discursivo midiático e os efeitos de sentido daí resultantes quando da busca por uma verdade acerca do homem e da mulher. Isso motiva a traçar algumas considerações a respeito da relação entre a mídia e a sua arte de governar, lembrando que o intuito define-se pelo desejo de compreender a produção midiática de subjetividades. Práticas discursivas midiáticas Sugere-se, neste trabalho, pensar a mídia como um instrumento de governamentalidade, isto é, ultrapassar a concepção de mídia como veículo de informação ou como instituição que possuiria dispositivos para a construção de uma realidade. Entendendo-a como um instrumento de governamentalidade, consegue-se entender seu processo de produção de efeitos de identidade. O poder não é algo unitário e global que se pudesse localizar no tempo e espaço, mas uma prática social constituída historicamente. Para Foucault (1982) ele é microfísico e se exerce no corpo social não estando reservado a uma única instituição, o Estado, por exemplo, como se pensa muitas vezes. A mídia torna-se uma superfície para representação das relações de poder e também de saberes que perpassam os domínios de objetos diversos. Dentre as técnicas de governamentalidade, compreende-se a mídia como um de seus instrumentos quando ela constitui um dispositivo que visa, dentre outros, a conduzir a população. As sequências enunciativas já apresentadas e as que virão constituem fatos de discursos e, por conseguinte, acontecimentos discursivos que visam a objetivar e a subjetivar homens e mulheres na contemporaneidade. Os efeitos de sentido resultantes desse (s) funcionamento (s) discursivo (s) produzem verdades e intentam conduzir a vida dos sujeitos. É possível, na próxima seção, vislumbrar tal funcionamento. A “guerra” dos sexos pela lente da mídia (1) A mulher venceu a guerra dos sexos: elas (2) As mulheres já garantiram seu espaço e estudam mais, são mais valorizadas no estão por cima [...] o homem é que passou a trabalho e já nem querem saber de namorar reivindicar o seu lugar. para não atrapalhar a carreira. Os homens que (Sílvio de Abreu à Época, outubro 2012) se cuidem... (Época, outubro 2012)
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(3) Caras: - Diz o ditado que por trás de um (4) A Patricinha que dá conta do serviço – grande homem há uma grande mulher. Yasmin Brunet: “Ele me ensinou a ser mais Concorda? mulherzinha”. Conca: – Com certeza. Paula é dedicada. Se Veja, abril 2013 preocupa com tudo em casa [...] Ela poderia muito bem ficar sem fazer nada... Caras, abril 2014 (5) Para as mulheres o avanço é notável. Mas os próximos passos serão difíceis. Para os homens, uma sociedade equilibrada será mais feliz. Combater o machismo é bom para ambos os sexos.
Época, outubro 2012
(6) Há uma barreira natural à evolução profissional das mulheres: a maternidade. [...] As mulheres avançam no mercado de trabalho, mas nem por isso conseguem apoio para cuidar das crianças”. (Época, outubro 2012)
7) No senado brasileiro, as mulheres não passam de 16%. Entre os deputados eleitos em 2010, eram apenas 9%. Numa apresentação sobre a baixa participação das mulheres em cargos de comando, na série de palestras internacionais TED, a diretora de operações do Facebook, Sheryl Sandeberg, afirmou: “se juntarmos todos os parlamentares do mundo, as mulheres constituem apenas 13% deles”. Época, outubro 2012
8) Elas chegaram ao comando da família, das empresas, do país. Aos homens, cabe inventar para si mesmos uma nova identidade, que permita acompanhá-las. Época, março 2013
9) Caro Sr. Grey, O senhor quis saber por que fiquei tao confusa depois que me – que eufemismo devemos usar: - espancou, puniu, bateu, atacou. Bem, durante todo o processo assustador, senti-me diminuída, degradada e abusada. E, para minha aflição, o senhor estava certo, fiquei excitada, e isso foi inesperado. [...] Fiquei chocada por ter ficado excitada. 50 tons de cinza, 2012, p. 236
10) Com a web, a timidez foi deixada de lado. Por trás da tela do computador as mulheres começaram a viver fantasias reprimidas, ainda que por meio de personagens criadas na rede. Houve um aumento do leque de opções: há mais parceiros na rede que na vida real. Veja, setembro 2012
11) Em vez de deixar que as fantasias nos govervem, é necessário entender o que elas escondem e permitir que Deus cuide desse assunto. A ilusão dos 50 tons, 2012
12) Existe um valor embutido na ideia de que casar com quem está um degrau acima é o bom, o desejável, e que “olhar para baixo” significaria abrir exceção para não ficar sozinha. Cláudia, março 2012 13) A guerra dos sexos apenas caminharia, a 14) Os homens nunca ajudaram tanto nos partir de agora, para um fim inesperado: não a afazeres domésticos e no cuidado com os igualdade, mas sim a supremacia feminina. filhos. Por que as mulheres continuam tão sobrecarregadas em casa? Época, outubro 2012 Época, março 2013
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Ao olhar para esse quadro, tal como está constituído, tem-se a possibilidade de estudar as condições de validade e de possibilidade do saber midiático com relação à diferença entre os sexos, tidos como um objeto tabu ainda nos dias de hoje. Fazer a arqueologia desse objeto possibilita a compreensão de que essas subjetividades nem sempre tiveram o mesmo estatuto. O sexo reprimido e objeto de discurso apenas daqueles que tinham o “direito” de dele falar, como o médico, o psicólogo ou a Igreja, por exemplo, agora aparece estampado em materialidades tão próximas de cidadãos comuns, como é o caso das revistas Veja, Época, Cláudia, ou do discurso científico da psicóloga vulgarizado a ponto de tornar-se um manual de cura para os “doentes” que buscam prazer em fantasias sexuais, exemplificado pelo enunciado número 11 do quadro; além do romance erótico 50 tons de cinza que, segundo a revista Veja de setembro de 2012, hipnotiza as mulheres e incomoda os homens. A cultura popular de massa, possibilitada pelo surgimento de uma imprensa de massa no início do século XIX, como explica Mira (2003), se basearia no sucesso de um produto ligado ao público feminino. Segundo a autora, o que as pessoas, principalmente as mulheres, querem consumir é a experiência romântica que leram nos livros ou assistiram nas telas de televisão ou de cinema, já os homens seriam capturados pelos temas de aventura, de violência e de erotismo. Isso teria mudado? Lins (2007) explica que o “amor romântico” que povoava as mentalidades do Ocidente desde o século XII, começa a sair de cena. A linguagem amorosa, própria do amor romântico, acabou se transformando em uma linguagem que não serve mais. Talvez isso ocorra, de fato, se se ler distraidamente enunciados como os apresentados em 9: “[...]durante todo o processo assustador, senti-me diminuída, degradada e abusada. E, para minha aflição, o senhor estava certo, fiquei excitada, e isso foi inesperado.” e 10: “[...] Por trás da tela do computador as mulheres começaram a viver fantasias reprimidas [...]”, respectivamente. Entretanto, o primeiro contraria a opinião da própria escritora do best-seller, E. L. James, ao dizer, em 26/09/2012 que “[…] o livro é uma história de cura pelo amor, contém os mesmos elementos míticos que eternizaram o conto de fadas A Bela e a Fera, em 1740. […] as cenas eróticas contribuíram, mas o romance, a história de amor, é a razão do sucesso da trilogia”. Ainda assim parece que a autora não considerou o fato de que a personagem desse romance conforma-se ao dispositivo de aliança, daío seu
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conflito íntimo. Esse exemplo, embora ínfimo, sinaliza que não há uma verdade a esse respeito, uma vez que o estatuto de tal objeto se altera no curso da história. Nessas práticas discursivas midiáticas vemos estratégias, mecanismos próprios para a narrativa da identidade dos sujeitos homem ou mulher. De que se trata nessas estratégias senão de uma produção da sexualidade? Sexualidade que não deve ser pensada como um referente biológico ou um dado da natureza. Foucault explica que “a sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico” (FOUCAULT, 1988, p. 116). O dispositivo de sexualidade, criado pelas sociedades ocidentais modernas, principalmente a partir do século XVIII, articula-se aos parceiros sexuais de um modo diferente do dispositivo da alianca, este entendido como sistema de matrimônio no interior do qual se fixa e se desenvolve a transmissão dos nomes e dos bens. É no interior desse paradoxo, isto é, da relação dual entre os dispositivos de sexualidade e de aliança, que os sujeitos homem e mulher, são discursivizados. Os saberes sobre o sexo e a sexualidade atravessam a produção discursiva midiática na e pela linguagem produzindo este ou aquele efeito; tais efeitos incidem sobre o corpo social e seu modo de gerir a vida, subjetivando-os. Quem teria vencido, então, a guerra dos sexos? Ao congregar, em um único bloco, os dizeres dos enunciados 1, 2, 8, 13 e 14, chegar-se-á, sem dúvida, à vitória da mulher. Primeiro porque os homens precisam se cuidar porque estão perdendo suas parceiras que, por sua vez, estão em busca de qualificação pessoal e profissional (E1); além disso, eles precisam recuperar seu espaço perdido para elas (E2); se não bastasse, estão obrigados a (re) inventar sua identidade caso queiram acompanhar seus avanços, pois agora não são os únicos incumbidos à chefia do lar, da empresa ou da nação (E8). Pode-se vislumbrar no recorte enunciativo 13 o ápice da vitória feminina, uma vez que o final da guerra caminha para outra escala que não é mais a busca pela “igualdade” tão sonhada, pois isso já se conquistou, o que pode ser comprovado em 14, onde confirmase que o homem nunca ajudou tanto nos afazeres domésticos e nos cuidados com os filhos, mas a busca pela sua supremacia (E13). Vale observar que os cinco enunciados em destaque estão dispersos no tempo e nos espaço, mas que ainda assim, uma regularidade lhes perpassa delineando, pelo modo como foram produzidos, a identidade do feminino e do masculino. Essa leitura
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permite dizer que os enunciados colaboram para a perpetuação de sentidos na cultura ou, entendo como Bourdieu (2009), apontam para estratégias e práticas que fazem do corpo uma realidade sexuada e depositário dos princípios de visão e de divisão sexualizantes. Se por um lado, o sexo da mulher não é mais frágil, já que teria vencido a “guerra”, por outro, prefere-se romper com a ideia da supremacia feminina para recuar a uma história, há muito, edificada pelos ideiais iluministas ao modo de Rousseau, por exemplo, e que permanece ainda muito firme sobre bases indissolúveis. O filósofo, conforme explica Nunes (2000), conclamou as mulheres a assumirem as funções ligadas aos cuidados com as crianças e a se teornarem verdadeiras mães, papel antes exercido também por amas-de-leite, por instituições pedagógicas ou religiosas. Igualmente dispersas no tempo e no espaço, as sequências enunciativas 3, 4, 5, 6, 7, 12 e 14, parecem indicar uma “derrota” ou, pelo menos, uma caminhada ainda distante rumo à vitória feminina. O jogador Conca (E3), ao responder sobre o sucesso do homem ser atribuído à mulher, como diz o ditado popular, diz que é muito importante para ele ter uma muher que cuida de tudo em casa. Entretanto, como um sujeito nunca é origem do seu dizer, mas sua “posição” sujeito o convoca a dizer de um modo e não de outro, vê-se um enunciado povoado de outros dizeres. Por exemplo, quando o jogador afirma que sua mulher poderia muito bem ficar sem fazer nada, produzem-se pelo menos dois efeitos de sentido: que sua situação econômica é muito satisfatória e que, sozinho, poderia dar conta da organização familiar, dispensando os cuidados da esposa ou que, ainda acionado por uma memória patriarcal no interior da qual a mulher não deve trabalhar fora, é preferível que ela fique em casa. A modelo Yasmin Brunet (E4), também imbuída de ideais patriarcais, diz que aprendeu a ser mais “mulherzinha” quando, aconselhada pelo marido, passou a fazer os trabalhos domésticos, diante da nova lei que encarece a mão de obra dessses profissionais. Infere-se, disso, que a feminilidade está intrinsicamente ligada a tarefas que, segundo regras patriarcais, caberiam tão somente à mulher. O homem, para o enunciado 5, não parece tão incomodado com a supremacia feminina. Há até quem diga que estão gostando da mulher no “comando”, pois que seu fardo se tornaria mais leve. Assim, combater o machismo seria bom para ambos os sexos.
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O enunciado afirmando que a mulher, após a chegada do contraceptivo, seria responável pelo controle de seu corpo, parece não estar em consonância com os dizeres do enunciado segundo o qual a maternindade é uma barreira para a ascenção profissional, uma vez que a mulher não term apoio do homem para o cuidado com as crianças (E6); o que vai ao encontro do recorte enunciativo 14 que indaga sobre o porquê das mulheres ainda estarem tão sobrecarregadas em casa (E14). Se o avanço é inquestionável, inquestionável é também a diferença ainda existente entre os sexos no que concerne à vida profissional. Se no senado as mulheres não chegam a 16%, juntando todos os parlamentares do mundo, elas são apenas 13%. Já na vida pessoal, o avanço profissional acaba sendo uma barreira (E12), pois à mulher restam duas opções: lutar muito para encontrar alguém à sua altura ou abrir exceções para não ficar sozinha, o que seria outro problema. Este, criado pelo controle social dos corpos, não admite que não se case, que não se tenha filhos, isto é, que não se constitua como sujeito no paradoxo da relação dual entre os dispositivos de sexualidade e de aliança. Algumas considerações Certo incômodo acerca dos discursos sobre a diferença entre os sexos veiculados pelas mídias em 2012 e 2013 motivou a realização deste trabalho. Partindo da ideia de que a pretensa evidência acerca dos temas pode ser criticada, objetivou-se entender como as práticas discursivas constituem os sujeitos ética e moralmente. Optando por uma análise histórico-discursiva, congregaram-se sequências enunciativas ou séries de enunciados dispersos no tempo e no espaço, com os quais se constituiu um quadro, a partir do qual foi possível perceber as descontinuidades históricas com relação ao estatuto do objeto tratado, isto é, a guerra dos sexos. Foi possível perceber, também, que não há verdades a serem buscadas nas diversas etapas constituivas do saber, mas sim discursos historicamente detectáveis que constroem verdades e possibilitam o exercício do poder; essa forma de fazer história garante ao discurso o estatuto de acontecimento. Já a questão levantada no início do trabalho, a saber, quem teria vencido a guerra dos sexos na produção de subjetividades pela mídia, permanece sem resposta, pois os
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enunciados que ensejam construir subjetividades para o homem e para a mulher, constroem uma verdade que se define por “identidades” que ora perpetuam o corpo da mulher como superfície para o exercício do poder e do homem como o “sexo” da humanidade, ora permitem apreender uma mulher protagonista de uma história da liberacão sexual com suas conquistas, da pílula à internet, tendo como pano de fundo um homem que precisa (re) inventar sua identidade. A sociedade, assim, movida por uma vontade de verdade, produz discursos que decorrem tanto do feixe de relações que permite dizer as coisas de uma forma e não de outra quanto dos efeitos de poder que permeiam os discursos. Referências BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kuhner. 6ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. CARAS. Ed. 1068, ano 21, n. 17, 25 abril 2014. CLAUDIA. São Paulo: Ed. Abril, ano 51, n. 3, marco 2012. DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Trad. Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. EPOCA. Ed. Globo, n. 751, 8 out. 2012. _______. Ed. Globo, n. 774, 25 mar. 2013. ETHRIDGE, Shannon. A ilusão dos cinquenta tons: por que fantasias sexuais e fetiches fascinam tanto? Trad. Marcus Aurélio de Castro Braga. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2012. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. 3ª. ed. Rio de janeiro: Graal, 1982. __________. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
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__________. História da sexualidade I: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988. JAMES, Erika Leonard. Cinquenta tons de cinza. Trad. Juliana Romeiro. Rio de Janeiro Intrinseca, 2012. LINS, Regina Navarro. A cama na varanda: arejando nossas idéias a respeito de amor e sexo. Rio de Janeiro: Best Seller, 2007. MIRA, Maria Celeste. O masculino e o feminino nas narrativas da cultura de massas ou o deslocamento do olhar. In: Cadernos Pagu. Olhares alternativos. Revista semestral do Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu. Universidade Estadual de Campinas, 2003 921). ISSN 0104-8333. p. 13-38. NAVARRO-BARBOSA, Pedro Luis. O acontecimento discursivo e a construção da identidade na história. In: SARGENTINI, Vanice; NAVARRO-BARBOSA, Pedro (org.). Foucaul e os domínios da linguagem: Discurso, poder, subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004. p. 97-130. NUNES, Sílvia Alexim. O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha: um estudo sobre a mulher, o masoquismo e a feminilidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault & a Educação. 2ª. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. VEJA. São Paulo: Ed. Abril, ano 45, n. 39, 26 set. 2012. ______. São Paulo Ed. Abril, ano 46, n. 14, 3 abril 2013
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CRENÇAS E ATITUDES LINGUÍSTICAS: a língua alemã, a língua portuguesa e o Brasildeutsch Andréia Cristina de Souza (PG/UNIOESTE – CAPES/ARAUCÁRIA) INTRODUÇÃO O uso de uma língua ou variedade linguística relaciona-se intimamente com as crenças e atitudes linguísticas. A partir dessa afirmação, o objetivo do presente trabalho é verificar as crenças e atitudes em relação à língua alemã, à língua portuguesa e ao Brasildeutsch1, em duas comunidades do Oeste do Paraná. Além disso, a partir desta verificação, também procurar-se-á evidenciar que estas crenças e atitudes podem influenciar à utilização das línguas e variedade em questão. Para tanto, serão analisadas entrevistas coletadas por Souza (2011)2. As entrevistas foram realizadas com descendentes de imigrantes alemães em duas comunidades do Oeste do Paraná – Marechal Cândido Rondon e Santa Rita D´Oeste. Nestas comunidades, foram selecionados doze informantes – sendo seis em cada uma delas –, os quais foram considerados representantes da população descendente alemã das comunidades. Para o presente trabalho, foram selecionados relatos considerados importantes para a discussão do tema proposto. Estes dados serão analisados segundo os pressupostos da sociolinguística e conceitos dos estudiosos das crenças e atitudes linguísticas, como Lambert e Lambert (1972), Calvet (2002) e Aguilera (2008, 2010). Salienta-se que, no que se refere às questões éticas, o projeto de pesquisa de mestrado, foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da UNIOESTE, vinculado ao Conselho Nacional de Saúde, sendo aprovado pelo parecer sob o número 562/2009. Reitera-se aqui que os informantes foram avisados dos objetivos da pesquisa, inclusive de que seus resultados seriam publicados em trabalhos científicos, e concordaram em participar das entrevistas, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o qual
O Brasildeustch, de modo genérico, consiste na variedade linguística que apresenta traços da língua alemã na língua portuguesa e será abordado na parte referente ao bilinguismo. 2 Dissertação de mestrado vinculada ao Programa de Pós-graduação em Letras – Unioeste, câmpus de Cascavel, sob orientação do Prof. Dr. Ciro Damke. 1
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acarreta as garantias de ética e sigilo em relação às suas identidades e, por essa razão, os participantes da pesquisa serão identificados somente como “informantes”. CRENÇAS E ATITUDES: ALEMÃO CACHORRO? O estudo das crenças e atitudes, junto à relação língua e sociedade, é um dos objetivos da sociolinguística, como expõe Fishman (1974), ao abordar o enfoque da sociologia da linguagem. Segundo o autor, essa ciência não aborda apenas o uso da língua, mas também os comportamentos em relação à língua e, desse modo, a sociologia da linguagem focaliza toda a gama de tópicos relacionados com a organização social do comportamento linguístico, incluindo não só o uso da língua per si mas também atitudes linguísticas e comportamentos manifestos em relação à língua e aos seus usuários (FISHMAN, 1974, p. 25).
Fasold (1984, p. 158) afirma que “o estudo das atitudes linguísticas é instrutivo em seu próprio direito, mas é ainda mais valoroso como uma ferramenta para iluminar a importância social da língua(gem)”. O estudo das atitudes foi iniciado por Lambert e Lambert, na década de 60, do século XX, no campo da psicologia social. Nesse contexto, as atitudes são definidas além da noção de sentimentos positivos e negativos em relação a um objeto: Uma atitude é uma maneira organizada e coerente de pensar, sentir e reagir em relação a pessoas, grupos, questões sociais, ou mais genericamente, a qualquer acontecimento ocorrido em nosso meio circundante. Seus componentes essenciais são os pensamentos e as crenças, os sentimentos (ou emoções) e as tendências para reagir. (LAMBERT; LAMBERT, 1972, p. 77-78).
Segundo Lambert e Lambert (1972), as atitudes apresentam três componentes: o componente cognitivo, o componente afetivo e o componente conativo ou comportamental. O primeiro componente – o cognitivo – é representado pelos pensamentos e crenças que possuímos a respeito de determinado objeto, além das informações e estereótipos conhecidos acerca do objeto. Já o componente afetivo é caracterizado pelos sentimentos ou emoções relacionados a um objeto. E, finalmente, o
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componente comportamental ou conativo, diz respeito às tendências de reações do indivíduo em relação aos seus sentimentos. Nessa perspectiva, segundo Calvet (2002, p. 65), “existe todo um conjunto de atitudes, de sentimento dos falantes para com suas línguas, para com as variedades de línguas e para com aqueles que as utilizam” sendo que estas “atitudes linguísticas exercem influência sobre o comportamento linguístico”, definindo, assim, qual língua ou variedade o falante utilizará. Calvet (2002, p. 69) acrescenta ainda que há duas perspectivas em relação às atitudes linguísticas: a primeira refere-se à avaliação que os falantes fazem de sua própria fala e a segunda à avaliação que este faz da fala dos outros, sendo que, referente à primeira, a fala pode ser valorizada ou modificada para alcançar um modelo prestigiado e, na última, os indivíduos serão analisados a partir de sua fala. Para o presente estudo, mostra-se mais relevante a primeira perspectiva, visto que os informantes foram questionados sobre o uso de sua própria língua nas propagandas. Nesse sentido, o autor reitera que “existe na sociedade o que poderíamos chamar de olhares sobre a língua, de imagens da língua, em uma palavra, normas que podem ser partilhadas por todos ou diferenciadas segundo certas variáveis sociais [...] e que geram sentimentos, atitudes, comportamentos diferenciados” (Calvet, 2002, p. 72). Desse modo, os indivíduos desenvolvem sentimentos, crenças e atitudes em relação à língua, podendo avaliá-la positiva ou negativamente. Portanto, assim como as variáveis sociais influenciam no uso da língua, os comportamentos com relação a ela também são influenciados por essas variáveis, definindo quais formas do uso da língua são consideradas mais prestigiadas em relação a outras. No que se refere às atitudes linguísticas, o autor também alude ao preconceito, à segurança/insegurança, à aceitação/rejeição e à hipercorreção como maneiras de expressar as atitudes. A partir desta observação, serão apresentados os relatos dos informantes, salientando o que estes acreditam e sentem em relação à língua alemã, ou às variedades dessa língua, assim como os comportamentos em relação a esta língua, ou seja, se falam ou deixaram de falar e como avaliam o uso da língua alemã. Junto a esses aspectos, também será discutida a mudança de atitudes, visto que a atitude linguística, segundo
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Aguilera (2008, p. 105), “implica a noção de identidade” e, para Lambert e Lambert (1972), as atitudes podem ser modificadas como modo do indivíduo abandonar um grupo para integrar-se a outro. Os dados mostram que todos os informantes aprenderam a falar a língua alemã na infância, em um contexto familiar, no entanto, os informantes da primeira faixa etária (20-30 anos) deixaram de falar a língua ao ingressarem na escola, tendo acontecido o mesmo com o Informante 12 (M.C.R., 56 anos). Nesse sentido, o fato de deixar de falar a língua alemã e aderir somente à língua portuguesa mostrou-se como uma maneira de integrar-se a um novo grupo, que vai além do grupo familiar, visto que a escola exigia que se falasse a língua oficial do Brasil, caracterizando, então, uma mudança de atitude. No entanto, atualmente, esses informantes mostram-se arrependidos por não terem aprendido melhor a língua alemã. Além desses, os informantes das outras faixas etárias, que têm filhos, também demonstram arrependimento em não ter ensinado a língua aos filhos, apesar de que nem sempre estes demonstravam interesse em aprendêla: Na verdade, assim, duas coisas: houve um desleixo de parte nossa, que a gente não insistiu mais, mas eles também quando menores não tinha interesse, hoje eles já falam ‘porque a gente não aprendeu... porque vocês não insistiram pra gente aprender’ e tal, e eu acho também que a gente devia ter insistido mais, depois existia um outro problema como eu falo um alemão diferente do dele, sempre ficava assim, eu ia ensinar um negócio pra eles e depois ele vinha e... ou talvez uma pronúncia, muda bastante... Na verdade, a gente devia ter entrado num acordo (INFORMANTE 7, M.C.R., 48 ANOS).
Como pode ser observado, além do desinteresse dos filhos, também houve a dificuldade referente às diferentes variedades faladas entre a informante e seu esposo, o que pode ter colaborado para o desinteresse. O relato desta informante também comprova o que foi verificado entre os informantes da primeira faixa etária (20-30 anos): os mais jovens se arrependem por não ter aprendido a língua alemã. Entre os motivos para aprender a língua alemã, constatados a partir das entrevistas, está a possibilidade de ascensão social no caso dos mais jovens, e a necessidade de preservação da cultura alemã, entre as outras faixas etárias, fato que demonstra atitudes diferenciadas entre os falantes de diferentes idades, comprovando a
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exposição de Calvet (2002) no que se refere à diferenciação das atitudes de acordo com variáveis sociais que, nesse caso, vem a ser a faixa etária. A aquisição da língua alemã como possibilidade de ascensão social pode ser percebida no relato da Informante 1 (S.R., 26 anos), quando esta fala do arrependimento em não ter aprendido a língua: “aquela época não, mas hoje seria bom saber mais uma língua, é importante e quanto mais hoje você saber... pode até dar aulas”. O mesmo pode ser notado no relato da Informante 5 (S.R., 38 anos), quando afirma se arrepender por não ter ensinado o alemão às filhas, dada a importância de saber o alemão para o trabalho na região: “É bom a pessoa saber pelo menos duas línguas, pra um emprego é mais fácil. Às vezes pode até ganhar mais porque sabe falar alemão”. Nesse sentido, o Informante 8 (M.C.R., 35 anos), policial militar, salienta a importância de saber o alemão em seu trabalho e fala de situações em que ocorrem trocas fonéticas, as quais, provavelmente, um policial que não falasse o alemão não entenderia, demonstrando a importância e utilidade de se saber a língua alemã. A maioria dos informantes avalia positivamente a língua alemã, atualmente. No entanto, alguns deles admitiram sentir vergonha de se declarar descendentes de alemães ou de falar a língua. Outro fato que também pode ser notado nos relatos é a avaliação diferente em relação às variedades da língua alemã, sendo estas muitas vezes já consistindo numa hibridização de alemão dialetal e de português, ou seja, no Brasildeutsch. É o que pode ser comprovado pelo relato da Informante 1 (S.R., 26 anos): “a sogra conversa, entendo até bem mas é diferente o alemão que eles falam, tem vários tipos... Meus avós falavam o alemão cachoro, não o original”. Ao referir-se ao “alemão cachoro”, a informante remete à variedade alemã Hunsrückisch, com uma conotação negativa. Altenhofen (1996, p. 8) falando sobre a origem terminológica da palavra Hunsrück, baseando-se em Cochlaeus (1960), relaciona-a com o termo latino tergum canis (costas de cachorro). Damke (1997, p. 46-48) apresenta uma lista com diversos nomes dados ao Hunsrückisch, por entrevistados em sua pesquisa e por autores, sendo que grande parte apresenta essa conotação negativa (entre elas, Hundsdeutsch, alemão cachorro) em contraponto ao Hochdeutsch (alemão alto).
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Denominações Plataitsch Hunstaisch Fakheattaisch Fatórpnesprooch Apgefalnesprooch Heketaitsch Hunsrückisch
Tradução HD Plattdeutsch Hundsdeutsch Verkehrtes Deutsch Verdorbene Sprache Abgegallene Sprache Heckendeutsch Hunsrückisch
Hunsrück
Hunsrück
Hunsbuckel
Hundsbuckel
Hunsbucklich
Hundsbuckelich
Tradução P Alemão baixo Alemão cachorro Alemão errado Língua estragada Língua pervertida Alemão capoeira ____
Fonte/Autor Entrevistados Idem Ibidem Ibidem Ibidem Ibidem FAUSEL,KLOSS,STAUB, FALLER, BORN, ALTENHOFEN e entrevistados. ____ MÜLLER, STAUB, ALTENHOFEN, E entrevistados. Costas de Cachorro MÜLLER, STAUB, ALTENHOFEN. Com a forma de FAUSEL,KLOSS, costas de cachorro STAUB. Idem BORN e ALTENHOFEN Alemão tamanco ZIMMERMANN
Hunsbuckele Hundsbuckele HolsschlapeHolzschlappenTaitsch Deutsch QUADRO 1. Denominações do Hunsrückisch. FONTE: DAMKE (1997, p. 47, com tradução do autor).
Essa contraposição pode ser verificada, também, no relato da Informante 7 (M.C.R., 48 anos), o qual utiliza o Hunsrückisch e o Plattdeutsch (alemão baixo) como sinônimos e explica a diferença entre o Hunsrückisch ou Plattdeutsch e o Hochdeutsch: Eu entendo o alemão, tanto o Plattdeutsch, o Hochdeutsch, mas assim falá mesmo o que a gente falava em casa, que eu falo com a minha mãe é o Plattdeutsch, o Hunsrückisch [...] É mais ou menos como o português gramatical que nós usamos pra escrever numa correspondência e o português que a gente fala no dia a dia (INFORMANTE 7, M.C.R., 48 ANOS).
Os diferentes nomes dados ao Hunsrückisch e a diferença entre o Hochdeutsch, que é considerado o alemão padrão pelos informantes e o Hunsrückisch, que é considerado uma variedade inferior do alemão, podem ser relacionados às denominações high e low variety, de Ferguson (1966, p.1). Além disso, segundo Lambert e Lambert (1972), esse fator vai ao encontro de um dos componentes das atitudes linguísticas que se refere ao componente cognitivo, visto que remete às informações e às crenças a respeito da língua alemã e das variedades linguísticas.
A partir do que sabem sobre a língua e suas variedades, os informantes
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desenvolvem um sentimento, que corresponde ao componente afetivo. Nesse sentido, assim como as denominações do Hunsrückisch apresentam uma conotação negativa, o sentimento de muitos dos informantes também é negativo em relação ao uso de dialetos em contraposição ao alemão padrão. Outra questão que remete ao componente afetivo é a diferença exposta pelos informantes com relação aos dialetos alemães. Como na região são faladas mais de uma variedade da língua alemã, estes falantes notam a diferença entre estas variedades ao tentarem se comunicar entre si, sendo que, muitas vezes, essas diferenças causam o sentimento de vergonha. É o que explicitam a Informante 9 (S.R., 53 anos) e o Informante 6 (S.R., 46 anos), quando dizem que a variedade por eles utilizada é o pomerano, mas como em Alto Santa Fé, distrito vizinho pertencente ao município de Nova Santa Rosa, a maioria dos descendentes alemães utiliza o Hunsrückisch, têm vergonha de falar com eles, assim como os moradores de Alto Santa Fé também sentem essa vergonha, apesar de se entenderem. Esse sentimento de vergonha contribui para influenciar o comportamento em relação à língua alemã e suas variedades, ou seja, influencia o componente conativo das atitudes linguísticas (LAMBERT; LAMBERT, 1972). Um dos comportamentos que foram percebidos nas entrevistas consiste na desistência em falar ou aprender a língua alemã, como pode ser percebido no relato da Informante 1 (S.R., 26 anos) que não quis aprender o alemão porque não achava fácil e porque tinha vergonha. Além disso, a informante também diz que não vai ensinar ao filho porque não sabe falar o alemão “correto”, padrão: “Ele (filho) uma ou outra palavra fala mas ele é, que nem eu não sei, sei lá, acho que não... se for pra ensinar teria que ensinar o correto, porque às vezes muda o jeito de falar aí já não entende”. No relato da Informante 9 (S.R., 53 anos) também é explícito que o sentimento de vergonha influencia na utilização da língua: “até uns anos atrás, eu tinha vergonha de falar alemão, tinha vergonha de falar que era origem alemã e tudo, muitos até hoje não querem falar alemão, dos nossos parentes... ‘eu não vou falar alemão, eu tenho vergonha’, agora já tá mudando, mas uns anos atrás era assim”.
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A mesma informante ratifica o fato de que, por não falar o alemão correto, deixa de falar a língua: às vezes não fala... ‘ah tô com vergonha por não falar correto’, então desiste [...] você tem vergonha de falar porque fala errado... já vi aqui no salão que veio um alemão cortar cabelo e ele procurava não falar porque é diferente e pedia pra ela porque tinha medo (INFORMANTE 9, S.R., 53 ANOS).
No caso do Informante 12 (M.C.R., 56 anos), as razões que influenciaram para que deixasse de falar a língua alemã foram a necessidade de aprender a língua portuguesa, em primeiro lugar, e somando-se a isso, a carreira de magistério, em um segundo momento: a gente logo já com 24 anos, já comecei a ser professor, eu tinha que aperfeiçoar, melhorar o meu português, hoje ainda tento melhorar porque o sotaque ainda é, fica bastante, a pronúncia vê logo quem é de origem alemã e quem não é... e nunca me interessei por estudar a língua alemã, apesar de que eu acho isso uma... teria sido uma coisa muito importante, até pra eu conhecer mais a minha origem (INFORMANTE 12, M.C.R., 56 ANOS).
O fato de deixar de falar o alemão, se preocupar com o sotaque e com as transferências linguísticas, juntamente com o fato de ser professor, remete à questão do preconceito linguístico, abordado por Bagno (1999) e citada por Calvet (2002), visto que apenas a variedade de prestígio do português é aceita no círculo profissional do informante. Além disso, esta desistência em falar a língua alemã pode ser relacionada à proposta de Heye (2003, p. 36) para a análise de situações bilíngues. Para verificar o estágio de bilingualidade do falante, o autor propõe que seja analisado o histórico de vida dos falantes, de forma a identificar se: a) ambas as línguas se mantém com uso paralelo e constante, sugerindo uma situação linguística onde ambas as língua são marcadas [+dominantes]; b) uma das línguas é abandonada, ou tem uso reduzido, em decorrência de situações funcionais, sugerindo situações de domínio linguístico, onde uma língua é [dominante] e a outra [subordinada].
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No contexto desta pesquisa, pode-se perceber que a língua alemã aparece como subordinada em relação à língua portuguesa (que é a dominante), visto que o alemão teve seu uso reduzido por alguns dos informantes apenas para o contexto familiar ou social, como igreja ou amigos que também falem a língua alemã (Informantes 2, 6, 7, 8, 9, 10 e 11) e fora definitivamente abandonado pelos outros informantes, os quais não utilizam mais a língua alemã em nenhum contexto. A questão do preconceito linguístico também apareceu em outras entrevistas, como no relato do Informante 8 (M.C.R., 35 anos) que afirma já haver presenciado a discriminação por parte de pessoas de outras regiões que vieram para estudar na Unioeste, em Marechal Cândido Rondon, para com os moradores da região que trazem transferências fonéticas. A Informante 11 (M.C.R., 60 anos), professora do Ensino Fundamental e Médio, ao explicar que ainda hoje muitas crianças chegam à escola sem entender o português, lembra a necessidade que teve, durante o período escolar, em aprender o português “porque anos atrás existia isso de quem era alemão não era gente sabe... aqui... eu mesma falava em alemão, não queria sabe, tinha que saber falar o português coretamente... Então, é alemão porque ‘alemão não vale nada’”. Nesse sentido, o preconceito para com os descendentes de alemães se funde com o preconceito em relação à variedade linguística utilizada por esses descendentes, indo ao encontro do que expõe Calvet (2002), o qual afirma que as atitudes linguísticas referem-se aos sentimentos e comportamentos para com suas línguas, variedades de língua e, como relatado, para com os usuários das línguas. Esse preconceito pela língua e pelos descendentes de alemães foi evidenciado pela Informante 11 (M.C.R., 60 anos) durante grande parte da entrevista: agora que tão valorizando o alemão, uns cinco anos pra atrás, mas ante não, antes quem falava em alemão, como é que eles diziam, alemão é [...], mas eles tinha até um apelido pras pessoas que erem alemão, sabe, então por exemplo a pele do alemão, da alemã, ele é mais rosado, né, a gente fica vermelinho aqui, os olhos são claros, eles não gostavam, [palavra em alemão incompreensível] eles não gostavam, [...] que era branco que nem o queijo [...], então não tinha valor, ninguém queria ser alemão, isso era no meu tempo de criança já, a gente tinha vergonha quando a gente ficava vermelinho aqui né, a gente tinha vergonha, porque não pudia sabe, e os outros eram mais
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bonito que nós. E eles [descendentes de alemães do interior] não tem muito valor na cidade, acora ainda [...] e são tímidos sim [...] chega ali vê os outros morenos, vê os outros de olhos azuis... é... olhos pretos e eles tem olhos claros, e a gente vê, pra eles não falta nada, são forte, gordo, mas eles perde pra qualquer um da cidade. Eu não sei se é porque eles moram muito retirado da movimento das pessoas, ou se é por causa da origem alemã, eu acho que ainda é por causa da origem alemã, que foi muito pisada anos atrás, hoje em dia ninguém quer ser alemão, ainda não, eles não querem (INFORMANTE 11, M.C.R., 60 ANOS).
No relato desta informante pode ser verificada a questão da discriminação de que os descendentes de alemães foram vítimas, principalmente em decorrência do contexto da Segunda Guerra Mundial. Apesar de os entrevistados mostrarem-se ansiosos pela preservação da língua e cultura alemãs, esse sentimento de desvalorização por parte de muitos dos descendentes pode influenciar nessa preservação, visto que não gostam de ser identificados como “alemães”. Também pode ser notada a importância dada, no contexto escolar, ao aperfeiçoamento em relação à linguagem. Apesar de considerar importante a aquisição da língua portuguesa pelos descendentes de alemães a fim de que assim possam estabelecer uma melhor comunicação, de acordo com o contexto, é possível comprovar, através do relato da Informante 11, que a escola não está preparada para lidar com a heterogeneidade linguística e cultural brasileira, valorizando tão somente a língua portuguesa padrão. Isso contribui para a desvalorização e para o preconceito em relação às variedades linguísticas diferentes da institucionalizada e, por consequência, para com os falantes dessas variedades. Contudo, no mesmo relato, a informante chama a atenção para a necessidade de valorização das diversas culturas, ao criticar a questão do preconceito percebido entre os alunos: “pra não haver muita diferença entre os brasileiro e os alemães, entre a cultura deles, isso não pode porque eu acho que isso tá errado, o que tá certo é ter mais conhecimento”. Acrescentando ainda que “o que não pode é um desvalorizar a cultura do outro, né, isso também acontece, como é o caso do preconceito” (Informante 11 (M.C.R., 60 anos).
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Apesar dos sentimentos e comportamentos que levam os falantes a deixarem de falar a língua alemã – questão comprovada pela recorrência nas entrevistas –, há de se salientar também as atitudes positivas em relação à língua alemã, como pode ser percebido na fala da Informante 3 (M.C.R., 29 anos), que devido ao sentimento positivo, sente vontade de aprender, “ainda mais o alemão que é da nossa tradição, é gostoso aprender”. Esse sentimento também pode ser observado no relato da Informante 5 (S.R., 38 anos), que afirma: “eu acho importante, me sinto orgulhosa de saber pelo menos um pouquinho”. Já no relato do Informante 6 (S.R., 46 anos) aparecem sentimentos diferentes em relação à utilização da língua, visto que, ao mesmo tempo em que gosta de falar o alemão e considera importante ensiná-lo aos filhos, salienta a importância em respeitar a cultura brasileira e a língua oficial do Brasil: eu gosto de falá assim alemón, vamo dizê assim, eu falo em casa. Só em casa. Não vô falá... qui nem aqui...uma pessoa de idadi, muitas vez, daí não consegue falar em brasileiro e acabo falando com eles.. Mas porque que eu falo em casa. Eu falo alemão em casa pros meus filho falá [...] Só que eu falo assim, quando eu saio de casa, eu falo em brasileiro. Uma pra se manter o respeito, porque eu acho o seguinte, se você tiver aqui, você fala o alemón, mas se tivé um pessoa aqui, ou duas, vamo dizê assim, fala o alemão, se tem uma pessoa que fala em brasileiro, eu prefiro falá em brasileiro pra essa pessoa entendê que que eu tô falando. Por causa do respeito [...] Eu jamais vô falá o alemón se tivé uma pessoa no meio a dez. Mas eu... não que eu tô, vamo dizê assim, eu puxo alemão, não, eu acho que eu sou brasileiro... esse é o Brasil... esse é o meu país, no caso, só que a tradição vem acima... inclusive a minha mãe em casa, ela até pra ela falá em brasileiro, é difícil ela falá... o pai não, mas a mãe é mais complicado, minha sogra a mesmo coisa. Então a gente falá só se for nesse caso. (INFORMANTE 6, S.R., 46 ANOS).
CONSIDERAÇÕES FINAIS As análises apontam que os descendentes entrevistados, em sua maioria, avaliam positivamente a língua alemã, no entanto, alguns admitiram que sentem vergonha de se declararem descendentes, especificamente os que não dominam o alemão padrão, o que demonstra crenças e atitudes negativas em relação ao Brasildeutsch. A reflexão proporcionou a verificação da mudança destas atitudes, principalmente na primeira faixa etária (20-30 anos). Estes informantes aprenderam a falar a língua alemã ou o
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Brasildeutsch na infância, deixaram de utilizá-la ao ingressarem na escola, aderindo à língua portuguesa e, atualmente, demonstram arrependimento por não terem aprendido melhor o alemão. Essas mudanças de atitudes decorrem da necessidade de o indivíduo abandonar um grupo e integrar-se a outro grupo, como exposto por Lambert e Lambert (1972). REFERÊNCIAS AGUILERA, Vanderci de Andrade. Crenças e atitudes lingüísticas: o que dizem os falantes das capitais brasileiras. Estudos lingüísticos. São Paulo, v. 2, n. 37, p. 105-112, maio-ago. 2008. Disponível em . Acesso em: 15 jan. 2010. ______. Projeto crenças e atitudes lingüísticas: um estudo da relação do português com línguas em contato. Disponível em: < http://cacphp.unioeste.br/eventos/ seminariolhm/anais/ Arquivos/Artigos/Simposio/simposio_aspectos_11.pdf>. Acesso em: 12 jan. 2010. ALTENHOFEN, Cléo Vilson. Hunsrückisch in Rio Grande do Sul: ein Beitrag zur Beschreibung einer Deutschbrasilianischen Dialektvarietät im Kontakt mit dem Portugiesischen. Stuttgart: Steiner, 1996. BAGNO, Marcos. O preconceito lingüístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 1999. CALVET, Louis-Jean. Sociolingüística: uma introdução crítica. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2002. DAMKE, Ciro. Sprachgebrauch und Sprachkontakt in der deutschen Sprachinsel in Südbrasilien. Frankfurt am Main; Berlin; Bern; New York; Paris; Wien: Lang, 1997. FERGUSON, Charles A. On sociolinguistically arciented surveys. In: Lingüistic Reporter 8 (4). s.d., 1966. FASOLD, Ralph. Introduction to Sociolingüistics. Oxford: Blackwell Publishers limited, 1984. FISHMAN, Joshua A. A sociologia da linguagem. In: FONSECA, Maria Stella Vieira; NEVES, Moema Facure (orgs.). Sociolingüística. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974, p. 25-40. HEYE, Jürgen. Considerações sobre bilingüismo e bilingualidade: revisão de uma questão. In: SAVEDRA, Mônina; HEYE, Jürgen. Palavra. Rio de Janeiro: Editora Trarepa, 2003, p. 30-38. LAMBERT, William W.; LAMBERT, Wallace E. Psicologia Social. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972. SOUZA, Andréia Cristina de. Análise de aspectos sociolinguísticos em propagandas comerciais. Cascavel: Universidade Estadual do Oeste do Paraná, 2011. Dissertação de Mestrado.
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REVELAÇÕES DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE UM RESUMO ACADÊMICO SOBRE QUESTÕES DE ESTILO INDIVIDUAL E ESTILO DE GÊNERO
Anne Carolline Dias Rocha (UESB) Márcia Helena de Melo Pereira (UESB) Introdução O propósito deste trabalho é investigar o gênero resumo acadêmico do ponto de vista de sua criação, de sua gênese. Como nasce um resumo? Esta é uma de nossas questões. O grande diferencial de nossa pesquisa está no corpus que possuímos, que nos permite vislumbrar o resumo em seu status nascendi. Ao conceituar gêneros como “tipos relativamente estáveis de enunciados” do ponto de vista temático, composicional e estilístico, constituídos sócio-historicamente nas diversas esferas de comunicação verbal existentes, Bakhtin (1997) sugere a hipótese de que há “um vínculo indissolúvel, orgânico” entre estilo e gênero. Este estilo é coletivo e ao mesmo tempo individual, tendo um caráter singular por ser produzido por indivíduos. Portanto, há a possibilidade de um sujeito imprimir seu estilo individual no gênero, o que não significa a criação de gêneros novos. Bakhtin sugere que há gêneros que não permitem muitas inovações, mas há outros mais flexíveis a entradas subjetivas. A partir dessas considerações de Bakhtin, questionamos: será o resumo um gênero mais padronizado, ou ele dá margem para que o sujeito apareça? Discutiremos a relação entre
estilo individual e estilo de gênero, tendo como objeto de análise dados do processo de construção de um resumo acadêmico escrito por uma dupla de estudantes universitários. Materiais e Métodos A pergunta que se coloca em um trabalho como esse é: como apreender o processo de construção de textos? Para isso, adotamos alguns procedimentos metodológicos.
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Inicialmente, fizemos a opção pela escrita conjunta para que pudéssemos gravar, em áudio, a conversa que a dupla manteria entre si durante a elaboração do texto. Elegemos uma dupla do curso de Letras Modernas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, campus de Vitória da Conquista. Como tema para a elaboração do resumo, escolhemos o texto “Os pássaros, a canção e a pressa”1, escrito pelo jornalista Roberto Pompeu de Toledo, por ele tratar de um assunto que continua muito atual: a pressa da vida moderna, a indústria da urgência. A dupla, então, deveria ler esse texto e escrever seu resumo, mas a pesquisa requeria mais algumas particularidades, quais sejam: 1) o resumo deveria ter duas versões: na primeira, as operações de reescrita que fizessem nele deveriam permanecer. Em seguida, os escreventes passariam o texto a limpo, sem essas operações; 2) na etapa seguinte, ouviríamos as gravações em áudio e pontuaríamos todos os episódios de reescrita encontrados, com base nas duas versões do texto; 3) uma semana após a elaboração textual, faríamos uma entrevista com a dupla, questionando-a a respeito das operações de reescrita que realizaram. Sendo assim, os próprios estudantes nos diriam por que apagaram, por que substituíram e assim por diante; 4) por último, transcreveríamos as duas gravações para facilitar a análise. Análise dos dados Como nosso espaço de discussão é curto, traremos apenas alguns recortes das duas transcrições, nos quadros a seguir, a título de ilustração. À esquerda, apresentaremos trechos da conversa mantida pela dupla durante a elaboração textual; à direita, apresentaremos trechos da entrevista posterior que fizemos com L. e W., nossos sujeitos de pesquisa. De posse da proposta de produção textual, inicialmente a dupla procurou discutir o texto-base a fim de descobrir sobre o que ele tratava. Vejamos os excertos: Elaboração do texto
Entrevista
L.: O foco é Jobim ou o celular? Porque Pesquisador: Antes de fazer o resumo, ele começa falando do celular. Aí ele fala era necessário saber exatamente do que se assim: Essa observação, como já terá tratava o texto? 1
“Os pássaros, a canção e a pressa” foi escrito por ocasião da morte do músico Antônio Carlos Jobim e foi publicado na edição 1371 da Revista Veja, em dezembro de 1994.
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adivinhado o leitor, vem a propósito da morte desse grande brasileiro que foi Antônio Carlos Jobim. W.: É, mas você percebe que, ao longo do texto, ele fala da urgência, da pressa, da questão dos orelhões e, como, com o celular, a pessoa consegue, de algum modo, não ficar pra trás no tempo.
W: Na minha opinião, é interessante você saber do que se trata, de fato, o texto, pra você ter mais propriedade pra reproduzir aquilo num resumo. L: É... Sei lá, você precisa saber o assunto do texto pra você resumir aquilo, né? Porque, no resumo, é onde você vai colocar o foco do texto [...]
Conforme L. enfatizou, na entrevista, “você precisa saber o assunto do texto pra você resumir aquilo”. Esta é, portanto, uma exigência do gênero. Ao observamos os dados processuais encontramos, a todo instante, exemplos que mostram como o estilo do gênero foi marcante, como podemos conferir abaixo: Elaboração do texto
Entrevista
L: É um resumo, e esse tema abre espaço pra você, de certa forma, colocar sua opinião. W: É verdade. Temos que tomar cuidado, que não é uma resenha não. [...] W: A gente não precisa mencionar esses exemplos, que a gente tá fazendo resumo.
Pesquisador: Não poderiam colocar a opinião de vocês em um resumo? W: Não. Se fosse uma resenha, poderia até ser, mas no resumo não, porque a gente não tem essa liberdade para... não tem esse espaço pra que a gente imprima nossa opinião. [...] Pesquisador: Por que os exemplos deveriam ser cortados em um resumo? L: Porque é, justamente, um resumo do texto. Você só vai falar do que se trata.
W. enfatiza que em um resumo não cabem opiniões, somente em resenhas. Os exemplos também não são bem vindos, pois, de acordo com L., eles são desnecessários: “você só vai falar do que se trata”, enfatiza. No entanto, encontramos também marcas de um estilo da dupla. Abaixo, esse momento: Elaboração do texto
Entrevista
L: A gente pode começar de uma forma diferente. A gente usa um tópico frasal. Lendo esse tópico frasal ela vai saber do que vai falar o texto
Pesquisador: Porque a escolha em começar com um tópico frasal? L: Porque eu acho que... Éee... Eu tava cansada de começar “no presente texto”,
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[...] L.: É... A gente pode pegar uma frase, sabe? Colocar entre aspas, e colocar assim, tipo assim...
sabe? Isso é bem clichê e tal, e eu queria algo diferente. [...] Porque “no presente texto”, fica aquela coisa muito comum, aquela coisa que você aprende na escola e tal [...]
Podemos dizer que, no que diz respeito ao gênero resumo, a situação enunciativa na qual os alunos estavam inseridos não era propícia ao trabalho estilístico individual. Ao contrário, o que vimos emergir, com grande frequência, foi o estilo e a estrutura composicional, próprios do gênero. Porém, mesmo diante dessa estereotipia, W. e L. encontraram nela uma brecha para trabalhar traços estilísticos próprios, ou marcas de sua subjetividade, como vimos com a escolha de iniciar o texto com uma citação do texto-base. Conclusão Nossos dados processuais mostram que o estilo do gênero existe sempre, mas o estilo individual também emerge. No que diz respeito ao gênero resumo, vimos emergir um estilo fruto de um trabalho linguístico coletivo, por princípio, e não marcas de um processo de particularização. Não queremos dizer com isso que não houve trabalho nesse texto; ele ocorreu, mas neste gênero em específico, predominaram as escolhas linguísticas feitas sócio-historicamente. A situação enunciativa na qual os alunos estavam inseridos não era propícia ao trabalho estilístico individual, no entanto, W. e L. mostraram que o sujeito pode explorar os limites internos da estrutura composicional e o estilo do gênero, assim como a fronteira entre eles, até em gêneros mais padronizados. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes. [1952-3] (1997). MACHADO, A.R. Revisitando o conceito de resumos. In: DIONISIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. Gêneros textuais e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. Gêneros textuais e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.
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CONDUZIR CONDUTAS: UMA ANÁLISE DE DISCURSOS POLÍTICOS DE POSSE PRESIDENCIAL Annyelle de Santana Araújo1 (UFG) 1 Apresentação Este presente trabalho tem como objetivo analisar a construção de discursos políticos de posse presidencial, voltando-nos para os enunciados que fazem referência à população, observando se os mesmos são direcionados ou não para a condução da conduta da nação. A escolha pelos discursos de posse presidencial se deu devido ao fato de serem direcionados a toda população e partir do poder do Estado. Os mesmos foram retirados de um sítio mantido pelo próprio Governo Federal “Biblioteca da Presidência da República2”. Para entendermos esse funcionamento dos discursos políticos partiremos de três discursos de posse presidencial específicos: o da então presidenta Dilma Rousseff do ano de 2011, o do ex-presidente, do período da ditadura militar, Médici do ano de 1969 e de Getúlio Vargas do ano de 1930. Desenvolveremos essa análise3 a partir dos estudos do filósofo francês Michel Foucault, principalmente de suas noções de enunciado, poder, biopoder e governamentalidade. De maneira geral, tentaremos mostrar como estes discursos políticos de posse presidencial são construídos, quais os enunciados são utilizados, quais as regularidades encontradas e se os discursos são construídos numa tentativa de mostrar quais escolhas devem ser feitas pela população e como a mesma deve agir.
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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás, bolsista Capes, sob orientação da Profª. Dra. Maria de Lourdes Faria dos Santos Paniago. 2
O site pode ser acessado pelo link: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/pagina-inicial-3
3
É importante ressaltarmos, que todos os trechos utilizados nessa análise foram copiados exatamente como se encontram nos arquivos digitais, por isso, apresentarão uma ortografia diferente.
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2 Um breve levantamento sobre a noção de enunciado Este trabalho irá direcionar o olhar para os enunciados, que constituem a nossa materialidade linguística, os discursos políticos de posse presidencial, que tentam direcionar a conduta da população, tentando traçar as regularidades encontradas nos três momentos selecionados. Mas o que é enunciado? Michel Foucault (2013) não atribui a essa noção uma estrutura, não se trata de uma frase, uma proposição ou um ato de fala. O enunciado, segundo o filósofo, é tudo aquilo que foi efetivamente dito, um enunciado possui uma inscrição histórica, uma materialidade, um suporte, uma data e não existe de forma livre, ele sempre está relacionado com outros enunciados, um enunciado sempre retoma outro. Apesar disso, o enunciado sempre será novo, pois é da ordem do acontecimento e sempre ocupará um lugar que só lhe pertence e ao mesmo tempo exclui todas as outras possibilidades de emergência. “Todo enunciado compreende um campo de elementos antecedentes em relação aos quais se situa, mas que tem o poder de reorganizar e de redistribuir segundo relações novas”. (Foucault, 2013, p. 152) Além dessas características brevemente apresentadas, outro ponto fundamental no trato do enunciado é a questão da verdade. O enunciado é determinado pela época, pelo tempo, pelo espaço, isso significa que nem tudo pode ser dito, porque algumas coisas simplesmente não são aceitas na sociedade em uma determinada época. Sendo assim, o enunciado é resultado do verdadeiro de uma época, e é isso que irá caracterizar um enunciado como verdadeiro ou como falso, permitindo que ele seja aceito e entre em circulação ou não em uma dada época.
A verdade, para Foucault, não é a expressão discursiva da natureza das coisas, mas o conjunto de procedimentos regrados para a produção, a distribuição e a circulação de enunciados aos quais se atribuem efeitos específicos de poder. O poder de serem aceitos como verdadeiros. O regime de produção de verdade é institucionalizado basicamente pela ciência, que se apresenta como detentora dos enunciados verdadeiros. (BRUNI, 2006, p. 42)
O que irá determinar o que é verdadeiro ou não em uma dada época? Entramos então, em outra relação estabelecida por Foucault: a relação saber-poder, no qual quem detém o saber detém o poder e quem tem o poder está autorizado a produzir saberes. Conforme destaca Paniago (2005, p. 119) “As produções de verdade não se dissociam
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do poder, justamente porque são os mecanismos de poder que induzem a produção de verdade”.
Não há absolutamente instância suprema. Há regiões onde esses efeitos de verdade são perfeitamente codificados, onde o procedimento pelos quais se pode chegar a enunciar as verdades são conhecidos previamente, regulados. São, em geral, os domínios científicos. No caso das matemáticas é absoluto. No caso das ciências, digamos empíricas, já é muito mais flutuante. (FOUCAULT, 2006, p. 233)
São as relações de saber-poder que vão constituir o verdadeiro de uma época e consequentemente autorizar ou não a circulação de determinados enunciados. Observamos, a partir desse breve levantamento feito acerca da noção de enunciado que outra noção de Foucault é fundamental, a noção de poder.
3. As relações de poder Ao tratar da questão do poder, Michel Foucault não o trata como um objeto que se tenha ou deixa de ter e nem lhe atribui um ponto fixo, como por exemplo, o Estado. Segundo Machado (2007, p. XIV) “o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder”. O poder é uma relação e está em todas as relações sociais. Essa é uma relação de luta, de embate. O poder está em toda parte, em todas as relações sociais, na família, na escola, no trabalho, nas amizades. “O interessante da análise é justamente que os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa.” (Machado, 2007, p. XIV) Foucault irá tratar de alguns tipos de poderes, são eles: o poder soberano, o poder disciplinar, o poder pastoral e o biopoder. Nos séculos XVI e XVII, havia o que Foucault denomina sociedades de soberania. Nessas sociedades havia a figura do soberano que era a representação do poder. Nesse sistema, o objetivo principal do soberano era fazer com que os seus súditos respeitassem as normas, as leis impostas por ele, sempre na tentativa de se preservar as terras do soberano e ajudá-lo na conquista de outras.
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Já no século XVIII, com as mudanças econômicas e o advento do capitalismo, a soberania deixou de ser ‘eficaz’ (embora não tenha significado o seu fim), nas palavras de Foucault (2005, p. 298) talvez “a soberania tivesse ficado inoperante para reger o corpo econômico e político de uma sociedade em via, a um só tempo, de explosão demográfica e de industrialização. A partir deste período, temos outro sistema econômico vigente, o capitalismo, o mundo passava por um processo de modernização dos sistemas de produção (com a Revolução Industrial) e, consequentemente, houve um aumento demográfico em algumas regiões. A soberania deixava escapar alguns detalhes: “Foi para recuperar o detalhe que se deu uma primeira acomodação: acomodação dos mecanismos de poder sobre o corpo individual, com vigilância e treinamento – isso foi a disciplina.” (Idem) No século XVIII passamos a ter o poder disciplinar, cujo alvo era o corpo individual e o objetivo era torná-lo dócil (politicamente) e útil (economicamente) a fim de extrair o máximo de produtividade
4 Biopoder: a preocupação com a vida da população
No final do século XVIII, teremos outro tipo de poder, que não exclui a disciplina, mas se alia a mesma: o biopoder. “E, depois, vocês têm, em seguida, no final do século XVIII, uma segunda acomodação, sobre os fenômenos globais, sobre os fenômenos de população, com os processos biológicos ou bio-sociológicos das massas humanas” (Foucault, 2005, p. 298). Enquanto as disciplinas tinham como alvo o corpo de cada um dos indivíduos, uma anátomo-política, o biopoder irá se voltar para a população como um todo. A preocupação passa a ser com a massa, uma biopolítica, uma política voltada para a vida da população. Este biopoder é característico da sociedade de controle. A partir do final do século XVIII, o Estado tem a necessidade de controlar as ações da população, o fim continua sendo o mesmo: o econômico. Para controlar essa população, as sociedades de controle irão recorrer aos dados estatísticos, como natalidade, mortalidade, etc. e a partir destes dados, o Estado passa a desenvolver seus saberes, para poder entrar em ação com suas políticas.
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O objetivo deste biopoder é a vida da população, o que o Estado quer é justamente aumentar essa vida, garantindo maior produtividade, maiores lucros e menos despesas. Conforme falamos anteriormente, todas essas ações são guiadas pelas produções de saberes, que surgem, principalmente, a partir dos dados estatísticos. Foucault (2005) traz uma relação muito importante entre essa relação saber-poder e a produção de discurso:
Quero dizer que em uma sociedade como a nossa, mas no fundo em qualquer sociedade, existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social e que estas relações de poder não podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso. (FOUCAULT, 2005, p. 179)
Por isso, ao assumir o cargo de Presidente da República, o sujeito tem acesso a algumas informações, que vão servir de base para o seu projeto de ação e a partir daí surgem alguns discursos que irão regular as suas ações. O próprio biopoder faz surgir novos discursos de regulamentação da sociedade. Em seus discursos de posse presidencial, os presidentes eleitos fazem uso de enunciados que circulam dentro desta tecnologia de poder. No ano de 2011, tomou posse do cargo de presidente da república Dilma Rousseff, ela destaca que a prioridade de seu governo é o fim da miséria, a qualidade da educação, da saúde e da segurança. Elementos que são essenciais para o aumento da vida da sociedade:
Queridas brasileiras e queridos brasileiros. Junto com a erradicação da miséria, será prioridade do meu governo a luta pela qualidade da educação, da saúde e da segurança.
Dilma ainda ressalta em seu discurso que esta não é apenas uma vontade dela, mas é de toda a população. Isso nos mostra que a sociedade também precisa deste controle, destas ações que controlam a sua vida.
No plano social, a inclusão só será plenamente alcançada com a universalização e a qualificação dos serviços essenciais. Esse é um passo decisivo e irrevogável para consolidar e ampliar as grandes conquistas obtidas pela nossa população, no período do governo do
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presidente Lula. É, portanto, tarefa indispensável uma ação renovadora efetiva e integrada dos governos federal, estaduais e municipais, em particular nas áreas de saúde, da educação e da segurança, o que é vontade expressa das famílias e da população brasileira.
Podemos observar nestes trechos que Dilma Rousseff lista uma série de elementos que garantem esse aumento da vida população. Essa preocupação com a vida também irá aparecer no discurso de Médici, no ano de 1969, durante a ditadura militar (Emílio Garrastazu Médici foi o terceiro militar a assumir a presidência durante o período da ditadura militar). O ex-presidente cita uma série de itens que julga necessário para que a população se mantenha viva e produtiva, como a questão da alimentação, da educação e do comércio:
E sinto que isso não se faz sòmente dando terra a quem não tem, e quer, e pode ter. Mas se faz levando ao campo a escola ao campo adequada; ali plantando assistência médica e a previdência rural, a mecanização, o crédito e a semente, o fertilizante e o corretivo, a pesquisa genética e a perspectiva de comercialização.
Em seu discurso de posse durante o governo provisório, Getúlio Vargas no ano de 1930 também faz referências a este cuidado com a população. O ex-presidente faz uma lista com 17 ‘idéias centrais’ do seu programa de reconstrução do governo, a destacar os itens 2 e 3:
2) saneamento moral e físico, extirpando ou inutilizado os agentes de corrupção, por todos os meios adequados a uma campanha sistematica de defesa social e educação sanitária; 3) difusão intensiva do ensino público, principalmente técnico-profissional, estabelecendo, para isso, um sistema de estimulo e colaboração direta com os Estados. Para ambas as finalidades, justificar-se-ia a creação de um Ministério de Instrução e Saúde Publica, sem aumentos de despesas.
Além de abordar estes assuntos que são fundamentais para a manutenção e prolongação da vida da população, os discursos políticos de posse presidencial, também vão fazer referências às questões de produção da população e às questões econômicas, uma vez que o biopoder é uma tecnologia de poder utilizada por sociedades capitalistas, cujo objetivo é produzir e lucrar em altas escalas. Dilma Rousseff (2011) irá se referir à
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produção em todos os seus níveis, grandes empresas, pequenos negócios, agronegócio e agricultura familiar. O que ela pretende fazer é garantir a estabilidade nestes setores:
Para dar longevidade ao atual ciclo de crescimento é preciso garantir a estabilidade, especialmente a estabilidade de preços e seguir eliminando as travas que ainda inibem o dinamismo da nossa economia, facilitando a produção e estimulando a capacidade empreendedora de nosso povo, da grande empresa até os pequenos negócios locais, do agronegócio à agricultura familiar.
Em seu discurso de posse, Médici (1969) também faz referências de ordem econômica, entretanto ele faz de uma forma mais geral, se referindo à formação e aperfeiçoamento da mão de obra e a uma política salarial:
Homem do povo, olho e vejo o trabalhador de tôdas as categorias e sinto que, normalizada a convivência entre empregados e patrões, e consolidada a unificação da previdência social, nosso esfôrço deve ser feito da formação e no aperfeiçoamento de mão-de-obra especializada e no sentido da formulação de uma política salarial duradoura, que assegure o real aumento do salário e não o reajustamento enganador.
No discurso de Vargas (1930) essa referência aos fatores econômicos e produtivos também ocorre de maneira geral, ele trata do crédito público e do fortalecimento das fontes produtoras: No terreno financeiro e economico há toda uma ordem de providencias essenciais a executar, desde a restauração do credito público ao fortalecimento das fontes produtoras, abandonadas ás suas dificuldades e asfixiadas sob o peso de tributações de exclusiva finalidade fiscal.
Diante destes trechos retirados dos discursos políticos de posse presidencial de Dilma Rousseff (2011), Médici (1969) e de Vargas (1930), podemos observar que o biopoder faz circular determinados discursos, como o da saúde, o da educação e o da economia. Isso, porque, conforme destaca Foucault (2005), não podemos dissociar os saberes, dos poderes e dos discursos. Eles estão interligados. A relação saber-poder, faz com que se institua um verdadeiro de uma época que passa a autorizar determinados discursos e estes discursos verdadeiros “trazem consigo efeitos específicos de poder”. (Foucault, 2005b, p. 180).
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5 Governamentalidade: conduzir condutas
Vimos anteriormente, que o século XVIII é marcado por mudanças nas questões do poder, outro ponto fundamental, que também ocorre neste mesmo século, é a mudança na forma de se ver o que é governar. Segundo Foucault (1995, p.242), “O exercício do poder não é simplesmente uma relação entre “parceiros” individuais ou coletivos; é um modo de ação de alguns sobre outros”. A partir dessa nova forma de se ver o que é governo, e o que é governar, considerando que o mesmo corresponde a uma ação sobre outras ações, Michel Foucault desenvolve sua noção de governamentalidade:
é um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre as ações. (FOUCAULT, 1995, p. 243)
A governamentalidade é uma forma de exercício de poder que consiste em “conduzir condutas” (Foucault, 1995, p. 244). É isso que o Estado irá fazer dentro do biopoder, ele vai conduzir a conduta da sociedade, ele irá conduzir as ações dos indivíduos, visando os seus objetivos econômicos e sua produtividade, sempre tentando evitar maiores gastos para o Estado. Entretanto, este poder é sutil, ele não é exercido de forma violenta, os indivíduos não sentem que estão sendo governados. A partir de nossa materialidade linguística podemos observar como essa forma de se ver a arte de governar como conduzir as condutas dos indivíduos e consequentemente da população, de forma sutil, se manifesta nos discursos políticos de posse presidencial. Em seu discurso (2011), Dilma Rousseff tenta fazer essa condução da conduta, trata-se de uma ação sobre a ação dos indivíduos:
O congraçamento das famílias se dá no alimento, na paz e na alegria. É este o sonho que vou perseguir.
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Essa não é tarefa isolada de um governo, mas um compromisso a ser abraçado por toda a nossa sociedade. Para isso peço com humildade o apoio das instituições públicas e privadas, de todos os partidos, das entidades empresariais e dos trabalhadores, das universidades, da juventude, de toda a imprensa e das pessoas de bem.
Dilma nestes dois trechos ressalta que o sonho que irá perseguir em seu governo é o do alimento, da paz e da alegria, porém para alcançá-lo ela precisa do apoio da população, dentre ela: as instituições públicas e privadas, os partidos políticos, os trabalhadores, as universidades, os jovens, a imprensa e as pessoas de bem (é interessante observamos como ela faz questão de colocar esta locução adjetiva ‘de bem’, isso mostra que ela considera que existam pessoas que não são ‘de bem’ e isso acaba funcionando, de certa forma, como uma exclusão). Dessa forma, ela coloca que para que o objetivo do governo seja alcançado é necessário que as pessoas ajam em prol do mesmo e isso é uma forma bem sutil de mostrar em função de que as pessoas devem agir, em prol de qual objetivo, ela está agindo sobre a ação dos outros. Este fato também ocorrerá, quando a presidenta fala sobre educação, de acordo com ela esta deve ser resultado do compromisso dos professores e da sociedade: Mas só existirá ensino de qualidade se o professor e a professora forem tratados como as verdadeiras autoridades da educação, com formação continuada, remuneração adequada e sólido compromisso dos professores e da sociedade com a educação das crianças e dos jovens. Somente com o avanço na qualidade do ensino poderemos formar jovens preparados, de fato, para nos conduzir à sociedade da tecnologia e do conhecimento.
A partir deste trecho vemos que o governo Dilma encara a educação, como compromisso dos professores e da sociedade, isso é uma forma de mostrar que eles (professores e sociedade) precisam juntos trabalhar pela educação e agir em prol da mesma. É interesse observar como o termo conduzir é empregado, na tentativa de conduzir todos em direção a um avanço na qualidade do ensino, Dilma justifica que o resultado disso será a formação de jovens que conduzirão a população a uma sociedade da tecnologia e do conhecimento, ou seja, temos a condução de conduta o tempo todo. O mesmo ocorre quando ela trata da questão da segurança: Queridas brasileiras e queridos brasileiros, a ação integrada de todos os níveis do governo e a participação da sociedade são o caminho
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para a redução da violência que constrange a sociedade e as famílias brasileiras.
Novamente Dilma mostra que as ações da população devem ser a favor da redução da violência e que isso juntamente com a ação do governo irá resultar na redução da violência. Em seu discurso, a atual presidenta do Brasil mostra como a população deve agir para ajudar o governo a alcançar os objetivos propostos. O discurso de Getúlio Vargas (1930) é dedicado à Junta Governativa e nele o expresidente destaca a Revolução e a coloca como fruto da ação da população, é como se a associação da Revolução à população fosse uma justificativa para a primeira, como se justificasse a ação do Exército a partir da ação da população:
Era vossa, tambem, a convicção de que só pelas armas seria possível restituir a liberdade ao povo brasileiro, sanear o ambiente moral da Patria, livrando-a da camarilha que a explorava, arrancar a mascara de legalidade com que se rotulavam os maiores atentados á lei e á justiça – abater a hipocrisia, a farça e o embuste. E, finalmente, era vossa, tambem, a convicção de que urgia substituir o regime de ficção democratica, em que viviamos por outro de realidade e confiança.
Ao tratar da reconstrução proposta por seu governo, Vargas irá dizer que o trabalho de reajustamento social e econômico precisa ser feito por homens capazes e idôneos: Comecemos por desmontar a maquina do filhotismo parasitario, com toda a sua descendencia espuria.Para o exercicio das funções públicas, não deve mais prevalecer o critério puramente político. Confiemo-las aos homens capazes e de reconhecida idoneidade moral.
Este trecho nos mostra como Vargas age sobre a conduta daqueles que irão participar de seu governo, mostrando que os mesmos precisam ser capazes e idoneamente morais para fazer o trabalho de reconstrução do país e ganhar a confiança da opinião pública. No período da ditadura militar também podemos observar essa tentativa de conduzir a conduta da sociedade brasileira. Podemos destacar alguns momentos do discurso político de posse presidencial do ex-presidente Médici proferido no ano de 1969:
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Homem do campo, creio no homem e no campo. E creio em que o dever desta hora é a integração do homem do interior ao processo de desenvolvimento nacional.
Em seu discurso, Médici (1969) tenta conduzir a ação da população na tentativa de fazer com que todos participem do governo e do desenvolvimento da nação, ele tenta fazer com que os homens se unam em benefício do país e que todos ajam em conjunto dentro do planejamento proposto.
Considerações finais Vivemos em uma sociedade de controle, na qual a preocupação do Estado é com os indivíduos e com a população como um todo, trata-se um poder individualizante e totalizante. Conforme vimos, Foucault considera o poder não como algo que se tenha ou se deixa de ter, o poder é relação e está em todas as esferas sociais, é o poder de uns agindo sobre os outros. E foi justamente para isso que este trabalho olhou, vimos como os discursos de posse presidencial são construídos como forma de se mostrar o poder que o Estado tem sobre os indivíduos. A partir do século XVIII, após mudanças econômicas e sociais, temos o surgimento do biopoder que passa a se preocupar com a sociedade, sem abrir mão da disciplina e pudemos observar isso nos discursos analisados. Vimos como os mesmos são direcionados à população, sempre na tentativa de lhe garantir mais vida, por isso há a preocupação com questões como segurança, educação e saúde. Mas vale lembrar que essa manutenção da vida da sociedade tem por objetivo a produção, a economia, assuntos também tratados nos discursos. Essa mudança de tecnologia do poder está ligada à mudança na forma de entender o que é governar e de acordo com a noção de governamentalidade (exercício do poder) governar é conduzir a conduta da população e isso ocorre em todos os discursos políticos analisados. Os presidentes retratam como os indivíduos devem se comportar, seja no trabalho, na educação, as segurança e até mesmo na participação no governo. O governo age de forma tão sutil que os indivíduos não se sentem governados, os enunciados fazem com que se crie um ideal de nação com a qual todos devem colaborar.
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O EXCESSO DE TEORIA E O DESEJO DA PRÁTICA: CONSIDERAÇÕES SOBRE A IDENTIDADE DO PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA
Aparecida de Fatima Peres (UEM)
Este artigo pretende contribuir com as discussões concernentes às polêmicas sobre a identidade dos alunos dos cursos de Letras em relação ao magistério. Não raras vezes, tais polêmicas remetem ao fato de os cursos de formação de professores de Língua Portuguesa (LP) oferecerem pouca prática pedagógica em relação à carga horária teórica, o que promoveria o desenvolvimento de identidades conflituosas. Os dados discutidos neste texto procedem de registros obtidos por meio de duas sessões de entrevistas de grupo focal – uma com alunos de um curso de Letras oferecido por uma Instituição de Ensino Superior da região Noroeste do Paraná; outra com professores do mesmo curso. Para facilitar a referência aos enunciados, cada excerto (E) apresentado na análise foi numerado. Por questões éticas, os nomes dos sujeitos são fictícios. Em tais entrevistas, confirmou-se a existência de uma crise de identidade nos alunos do curso de Letras em relação à docência. Tendo em vista os fatores contextuais que envolvem a formação para o magistério, essa crise pode ser reflexo do currículo desse curso. Indício disso foi a ênfase dada pelos sujeitos envolvidos ao fato de o curso em tela oferecer pouca prática pedagógica em relação à carga horária destinada à teoria. Para a professora-formadora Marta, por exemplo, os alunos do curso não se identificam com a docência pelo fato de eles não saberem o que é ser professor e desconhecerem a realidade do trabalho desse profissional: E.1: Os alunos, eles chegam armados na Prática de Ensino [...] "Não, não queremos ser professores. Nós não." [...] Então a gente vai tentando tirar esse escudo. [...] O que a gente sente, na Prática de Ensino, é que, em muitas situações, eles desconhecem o que é ser professor, e o que é ser professor de Português. [...] Acho que eles desconhecem, durante o curso inteiro, essa realidade. Aí, no último ano, nós temos que mostrar como é essa realidade, né, uma realidade crivada de conflitos, crivada de problemas. [...] Eu acho que quando a gente dá condições pra eles refletirem, né, sobre o que é SER PROFESSOR, você percebe que eles tiveram INFORMAÇÃO [...] mas não houve espaço dentro do curso pra se trabalhar esse conhecimento PEDAGÓGICO. [...] Se depositam TEORIAS, TEORIAS, TEORIAS, e eles não percebem, na verdade, PRA QUE que aquilo vai servir. [...] A hora que eles realmente se deparam com o fato de que
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eles serão professores, aí eles ficam extremamente preocupados e, às vezes, até ANGUSTIADOS com a regência, porque daí eles percebem que a falta desse conhecimento agora vai ser CRUCIAL pra prática deles. [...] Aí vem o susto e a angústia de quem trabalha com eles, porque a gente fica angustiada de não tá podendo fazer algo que a gente poderia fazer melhor. (professora Marta) A fala de Marta remete a discursos que defendem a inclusão de outros saberes, além do teórico, à base de conhecimentos do professor (TARDIF, 2002; SCHÖN, 2000; SHULMAN, 1987). O contato com esses outros saberes – como os pedagógicos – daria ao futuro professor mais identidade com a docência e, consequentemente, mais segurança para ensinar os conteúdos adquiridos no seu processo formativo. Todavia a pouca ênfase nos saberes pedagógicos no decorrer do curso, como mostra o discurso de Marta, estaria causando um mal-estar (angústia e preocupação) entre alunos e professores do curso, porque, apesar de os alunos serem comparados a um "depósito" de teorias, como sugere Marta, suas reservas teóricas parecem ser insuficientes para dar suporte à sua atuação como professores, bem como para ajudar os professores de Prática de Ensino a realizarem seu trabalho nos estágios. Pelas afirmações de Marta, pode-se inferir que o currículo desse contexto seja responsável pela crise de identidade dos alunos-professores em relação à docência, já que prioriza os saberes teóricos em detrimento dos práticos. Uma possível justificativa para o fato de os saberes pedagógicos não serem ministrados pelos professores de outras disciplinas pode ser o despreparo destes quanto ao processo de formação docente. Isso pode ser confirmado pela ponderação de Raquel: E.2: E até nós também não fomos, e agora nós temos que aprender. Por exemplo, foi nos dedicando à leitura sobre essa questão da formação dos professores especificamente, fazendo disciplinas em programas de doutorado, é que a gente despertou pra questões que estão faltando aqui no curso de Letras, na formação do professor de LP. (professora Raquel) O advérbio "até", inscrito na fala de Raquel (E.2), traz para o seu discurso uma outra voz que afirma que os professores do curso deveriam ter os saberes pedagógicos em sua base de conhecimentos, a fim de promover uma boa formação aos futuros professores. Entretanto, como observa essa professora, tais saberes "agora" é que estão sendo construídos por algumas formadoras que os têm buscado em programas de doutorado. A observação de Raquel é corroborada pela perspectiva de Débora, porque, segundo essa professora-formadora, a falta de informação sobre o que é ser professor
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está no fato de o curso ser de licenciatura, mas não enfatizar questões sobre a prática de ensino, e isso seria o cerne dessa crise de identidade: E.3: O grande culpado, eu acho que somos nós, o curso. [...] Nós não exercitamos com nossos alunos, desde o primeiro ano, a prática do ensino. [...] Então, nós, professores, formamos um aluno dentro de um processo informativo historicista nos vários conhecimentos. Lá no final, a gente quer que, DE REPENTE, ele vire professor. Mas nós não formamos o aluno assim. Isso não está imbricado no curso. Então, o aluno, ele é meio vítima, sabe. (professora Débora) O discurso de Débora permite inferir que, para ela, cada docente do curso, independentemente da disciplina que ministra, deveria comprometer-se com a formação dos alunos-professores. Entretanto, como observa Raquel em E.2, se os professores do curso não foram preparados para uma formação que integre teoria e prática, do mesmo modo que não se pode querer que o aluno "de repente vire professor", como ponderou Débora, também é difícil conseguir que formadores que acreditam que apenas os saberes teóricos sejam necessários para formar os professores, de repente, passem a conceber isso de maneira diferente. O levantamento dessa questão sugere, portanto, políticas de formação pedagógica também para os formadores de professores. Isabel e Judite fortalecem o comentário de Débora (E.3), ao observarem que o curso oferece muitas teorias, mas não reserva tempo para o trabalho com o ensino: E.4: Sobre a questão do pedagógico, do método, nós percebemos que não dá tempo pra trabalhar isso, como trabalhar isso lá na sala de aula, como explorar um texto poético. [...] Dentro da disciplina, eu tenho chamado a atenção dos alunos que esse assunto é importante pra ser trabalhado em sala de aula, dessa e dessa maneira. (professora Isabel) E.5: Nós temos uma, um desfile de teorias com o aluno, mas nós não temos a questão metodológica. Então, por exemplo, se eu trabalho com Sintaxe, o programa é tão carregado que eu não consigo depois trabalhar a questão metodológica da Sintaxe, que seria um outro curso. Não dá tempo, o curso não prevê isso para a nossa grade curricular. Então é complicado, porque ele pode saber a teoria, mas ele pode não desempenhar muito bem a prática. (professora Judite) Em E.4, Isabel afirma tentar despertar os professores em formação para as possibilidades de se trabalhar o texto literário na escola. Seu discurso, ao mesmo tempo em que procura proteger sua imagem como formadora – porque, apesar das adversidades da falta de tempo, ela afirma procurar mostrar aos alunos como o texto literário poderia ser ensinado na escola – evidencia também que tratar da questão do ensino, no contexto em questão, fica a critério do professor-formador, porque o
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currículo não determina ser responsabilidade de todas as disciplinas e, por conseguinte, de todos os docentes do curso o trabalho de assuntos referentes à aplicação pedagógica, nem destina tempo suficiente para isso. Na fala de Judite (E.5), ecoa o discurso que defende a capacitação do professor com mais teorias para ele realizar a prática pedagógica. Contrariando tal formação discursiva, ela põe em evidência um hiato no processo de formação de professores em pauta, porque, apesar de este oferecer muitas teorias, não consegue fazer seus alunosprofessores efetivarem com êxito a prática pedagógica. Tal hiato parece se confirmar nos comentários de Raquel (E.6), ao observar como deveria ser a formação do professor de LP, conforme as prescrições dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN): E.6: Quando você chega lá nos PCN e fala USO-REFLEXÃO-USO, o aluno não consegue ainda detectar o que é isso em uma língua. Ele tem ainda aquele conceito: "Vou à gramática tradicional, tiro dali, é dali que eu vou estruturar todos os meus exercícios de língua, estruturais." [...] Você fala, você teoriza, você leva possibilidades, abordagem de ensino de leitura, abordagem tal, abordagem tal. [...] Na hora que ele vai fazer a prática "você vai ensinar esse gênero", né, ou "vamos fazer uma aula de leitura de um texto", o que é que ele faz?! [...] Ele vai pro texto literário como pretexto. O livro didático traz exemplo só de texto literário, daí ele copia. (professora Raquel) Na fala de Raquel, pelo emprego do discurso direto para reportar a voz de seu aluno, pode-se notar o desejo de manter-se distante de uma prática com que não se identifica: é o aluno quem vai à gramática estrutural e, a partir dela, monta sua aula com exercícios estruturais, pois "ele tem ainda aquele conceito", um conceito diferente dessa formadora, portanto. Dessa maneira, ela procura proteger seu ponto de vista sobre o que seria o paradigma adequado para o ensino de LP, aquele assegurado pelo discurso dos PCN: uso-reflexão-uso. Raquel procura proteger-se também como formadora: ela estaria fazendo sua parte, pois teoriza, leva possibilidades; entretanto sua metodologia não estaria surtindo efeito, porque, segundo ela, na prática, os alunos continuam com uma concepção tradicional de ensino de LP. Pelo enunciado de Raquel (E.6), é possível afirmar a existência de um conflito entre o que esperam os formadores e os alunos-professores, já que estes ingressam no curso de Letras com uma imagem preestabelecida do professor de LP – a do professor tradicional. A partir de tal imagem, eles parecem esperar aprender métodos e técnicas que integrem os saberes profissionais desse professor. Essa imagem parece ser reforçada
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ao longo do curso, mas os saberes profissionais que eles esperam desenvolver nas aulas de Prática de Ensino divergem do esperado, pois, nessa disciplina, a imagem do professor de LP não é a do professor tradicional de gramática normativa, mas a do professor de LP cujo papel é formar, em sentido amplo, indivíduos na e pela linguagem (daí a preocupação de Raquel, quanto ao paradigma de ensino de LP uso-reflexão-uso). Assim, em vez da prescrição de maneiras de como ensinar e aprender gramática, tal disciplina pretende desenvolver práticas de reflexão e discutir temas concernentes aos diversos aspectos que envolvem a LP nesse tipo de formação – donde a crise de identidade; donde uma possível explicação para a procura do que já está pronto nos livros didáticos ou na gramática normativa. Essa crise chama a atenção para o papel que a imagem tradicional do professor de LP tem na formação da identidade desses alunos-professores, pois é tal imagem que muitos deles carregam consigo e é a partir dela que eles atribuem valorações positivas e/ou negativas sobre os recursos disponíveis para o ensino de LP, como o livro didático e a gramática normativa. O discurso de Raquel (E.6) indica que não basta ao professor de Prática de Ensino ministrar teorias concernentes ao ensino, porque só isso não transforma o aluno de Letras em professor de LP de um momento para outro. Sua formação pedagógica, consequentemente, não poderia ficar apenas sob a responsabilidade dos professores dessa disciplina. Isto porque, sem o tempo devido para a reflexão e para a ação, tais teorias surtiriam o mesmo efeito do trabalho com os demais conteúdos: os alunos saberiam a teoria “sobre” ensinar, mas não saberiam “como” ensinar. Isso pode ainda ser pensado a partir da comparação do ensino de teorias a um desfile, conforme o discurso de Judite (E.5), porque, nesse tipo de evento, o público contempla – pode gostar ou não do que vê –, mas não tem participação efetiva na sua realização. Vê apenas o produto acabado, pronto. Todavia os acontecimentos dos bastidores, as tentativas frustradas, os erros, os acertos, tudo é desconhecido do público. Como mostram as falas de Judite (E.5) e de Raquel (E.6), o mesmo parece acontecer no curso em discussão: os alunos-professores são expectadores de um desfile de teorias, mas lhes falta participar do que efetivamente ocorre na prática docente com tais teorias. Enfim, embora pareça evidente aos formadores que apenas as teorias –
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linguísticas ou literárias – não formam um professor de LP, é uma realidade o fato de a prática pedagógica não se efetivar ao longo do processo de formação. Por conseguinte, se não há espaço no curso para os professores em formação experimentarem o ensino na prática e dialogarem sobre a efetivação desta com seus formadores, não há como esperar uma postura diferente daqueles apontados por Raquel (E.6), porque, na falta de conhecimentos metodológicos e de reflexão sobre como levar o ensino a efeito, tais alunos-professores recorrem ao pronto, ao acabado, como o livro didático e a gramática normativa. Assim, o paradigma uso-reflexão-uso, prescrito pelos PCN não passará de uma teoria como as outras, já que não há tempo suficiente para praticá-la. Também entre os alunos-professores houve manifestação sobre o excesso de teoria e a falta de prática pedagógica no processo de formação: E.7: A gente vê muita teoria. [...] E a gente precisa saber como passar isso pro aluno. [...] A gente tem que ter esse lado prático, porque você sai da faculdade, você não sabe, às vezes, você fica com esse receio mesmo. Mas o que eu vou passar? Será que isso tá certo? Então, desde o primeiro ano, tinha que ter esse contato. (Elisa – 2º ano) E.8: Eu concordo que falta mais prática. No caso da Linguística mesmo, a professora sempre falava que a gente tinha três concepções, que a gente tinha que escolher qual que nós queríamos adotar futuramente. Todo mundo prefere a gramática mais contextualizada. Mas é difícil pra gente fazer isso, porque a gente passa a vida inteira aprendendo a gramática normativa, aí todo mundo acha que vai chegar lá e vai ser fácil do outro jeito, que o aluno vai aprender do outro jeito, mas a gente não tem o suporte, então a gente volta e ensina só gramática normativa. (Celita – 2º ano) Pelos enunciados E.7 e E.8, é possível afirmar que, para os alunos-professores, uma necessidade básica na formação do professor de LP é saber como e por que ensinar e não somente o que ensinar (GERALDI, 1997, p. 42), porque é o como ensinar que diferencia um professor de alguém que só conhece a teoria, e isso, com base nos excertos em tela, o curso não estaria promovendo ao longo da formação, e isso estaria contribuindo para instalar o mal-estar da insegurança que acompanha os alunos no decorrer do curso, como se pode observar pelas expressões de dúvida explicitadas nas asserções de Elisa e de Celita. De certo modo, o fato de essas alunas-professoras demonstrarem insegurança para atuar em situações reais de ensino, mesmo afirmando que o curso oferece muita teoria, põem em xeque discursos que defendem que mais teoria na formação do professor resolveria a qualidade da atuação deste profissional, porque integrar teoria e
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prática pedagógica não é algo tão simples como se pensa (CORACINI, 2003). Do enunciado de Celita (E.8), vale destacar ainda suas lembranças sobre as aulas de Linguística, quanto às diferentes concepções de gramática. Segundo Celita, em relação ao conteúdo em pauta, os alunos apresentavam uma tendência em optar pelo novo. No entanto, como observa essa aluna-professora, a opção dos alunos não tem como se concretizar por falta de suporte que a sustente. Além disso, é possível verificar em suas afirmações que, por um lado, se o curso não oferece a base necessária para que o futuro professor consiga ensinar os conteúdos de LP, visando a atender às exigências da escola, por outro, de certa forma, ele também não se opõe ao ensino da gramática na sua concepção mais tradicional, porque, segundo o seu relato, a professora de Linguística falava que os alunos tinham de escolher a concepção de gramática que adotariam futuramente. Logo, se se trata de uma questão de escolha e não do que é necessário para os alunos da escola básica, os professores podem adotar a concepção que lhes der mais segurança, ou aquela que o curso enfatizou mais, ou aquela de que eles mais gostarem. Por essa razão, seria importante que, no processo de formação, os professores-aprendizes tivessem oportunidades de examinar e de entender as teorias em situações e em circunstâncias reais de trabalho, porque "quando o conhecimento teórico é situado dentro dos contextos sociais em que pode ser usado, a interconexão desse conhecimento se torna evidente" (JOHNSON; FREEMAN, 2001 p. 65). A aluna-professora Coralina também concebe que há muita teoria no curso: E.9: Tem muita teoria abordada, gramática tradicional e literatura. [...] a gramática é o grande problema ainda. Eles explicam sim, explicam muito a gramática tradicional; mas a funcional você vê pouco. [...] e é o que eles querem agora. Então, é difícil. A escola também pede gramática tradicional, só que a sua posição dentro da sala de aula é pra uma gramática mais funcional, e é o que a gente tem uma carência. [...] Sabe por que é difícil? Porque eles falam "Nós não vamos ensinar gramática tradicional pra vocês, aquela coisa, MORFOLOGIA, SINTAXE, SEMÂNTICA, tal." Mas é isso que você aprende!!! Não adianta você querer fugir!!! O professor tem que saber? Tem, tem que saber muito da gramática tradicional pra poder passar no colégio uma gramática funcional, só que eu acho que falta é um pouquinho mais de outros tipos de gramática pra você ter um conhecimento maior e poder passar pros seus alunos e sair do livro didático, sair daquele parâmetro que o livro didático IMPÕE pra você colocar na sala de aula. [...] Como eu vou dar aquele conteúdo pros alunos? (Coralina – 4º ano) Na fala de Coralina (E.9), vale observar um paradoxo: por um lado, ela reclama da falta de prática, por outro, ela reivindica mais teoria, ao destacar que o curso oferece
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pouco conteúdo de gramática funcional. Talvez o ponto de vista dessa aluna-professora se justifique pelo fato de a gramática funcional relacionar-se mais ao uso da língua propriamente dito, enquanto a gramática normativa se restrinja à prescrição da língua. Assim, parece que, para Coralina, a gramática normativa estaria para a teoria, enquanto a gramática funcional estaria para o uso efetivo que os falantes fazem da língua e, por conseguinte, para a prática. Porém oferecer tanto uma quanto a outra gramática não significa que o curso esteja trabalhando a prática pedagógica. Logo, ainda que a gramática funcional fosse mais oferecida no curso, isso não seria sinônimo de que os alunos conseguiriam ensiná-la na escola, pois a relação teoria/prática não é simplória e simplista (CORACINI, 2003). Apesar da contradição manifestada na fala de Coralina, vale frisar que sua preocupação diz respeito ao componente prático, como se pode verificar pela referência feita ao conteúdo requerido pela escola. Para Olívia, o problema citado por Coralina está relacionado à linha teórica adotada pelo professor, pois sua professora não se limitava à gramática tradicional: E.10: Acho que aí é questão de princípios e teorias do professor. [...] eu acho que vocês tiveram um professor diferente da que nós estamos tendo. A nossa é extremamente funcionalista. (Olívia – 3º ano) Sua observação mostra que há, portanto, falta de sintonia entre os professores que ministram uma mesma disciplina quanto aos saberes necessários ao futuro professor, porque, da manifestação de Olívia, pressupõe-se que cada professor ministra a disciplina conforme a linha teórica com que se identifica. Aliás, esse mesmo problema, que pode estar prejudicando a formação do professor de LP no curso em estudo, foi observado pela professora Judite, ao tentar explicar uma possível causa da crise de identidade dos alunos-professores frente ao magistério: E. 11: Esse escudo ((referência à fala de Marta, E.1)) poderia ser trabalhado desde o primeiro ano, porque há instâncias para isso que poderiam estar ajudando esse aluno. Não só ouvindo informação, mas para orientação pedagógica mesmo. Por exemplo, como é difícil pra nós, na área de Sintaxe, como é difícil a gente conseguir reunir os professores de Sintaxe para uma reunião, para discutir a mesma bibliografia, questões pedagógicas. Outro problema também: cada um tem um curso de Sintaxe, cada um tem um curso de Morfologia. Ah, gente, é impossível!!! [...] Precisa ter um CONSELHO PEDAGÓGICO! Por exemplo, o nosso conselho pedagógico, ele INEXISTE!!! Pra que serve o Colegiado? Não deveria ser uma parte burocrática da Universidade. [...] Ele é muito mais do que isso. Ele é realmente um, vamos dizer assim, um vetor, ou deveria ser alguém que desencadeasse esse tipo de discussão. [...] Se tem um conselho
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pedagógico que serve como uma AUDITORIA, ou OUVIDORIA: "Eu vou lá pra reclamar de determinado professor." Pra que um Colegiado pra isso? Não é pra isso o Colegiado!!! (professora Judite) Em E.11, a fala de Judite sugere que o fato de o curso não oferecer uma formação pedagógica sólida se deve também ao desempenho do Colegiado do Curso. Este, na concepção dessa professora-formadora, deveria promover discussões sobre os problemas que têm acarretado crise de identidade nos alunos do curso de Letras, já que eles frequentam um curso de licenciatura, mas não querem ser professores. Entretanto tal instância parece não promover envolvimento entre alunos, professores e Colegiado para discutir uma estrutura curricular que oferece um bacharelado disfarçado de licenciatura, por ficar restrita a questões burocráticas – donde a conclusão dessa formadora de que o conselho pedagógico do curso de Letras "inexiste", porque funcionaria apenas como uma instância burocrática da Instituição. Limitando-se a isso, o Colegiado talvez ignore a observação de Judite quanto ao fato de alguns professores do curso terem programas diferentes para uma mesma disciplina e, talvez por isso, não se dispõem a se reunir com os colegas para discutir bibliografias e questões pedagógicas, fato que, para Judite, também estaria prejudicando o processo de formação de professores e, consequentemente, a construção da identidade desses profissionais. Essa percepção de Judite quanto ao papel do Colegiado do curso também faz parte do imaginário dos alunos-professores, quando estes apontaram os problemas enfrentados com disciplinas de cunho pedagógico oferecidas por outro departamento da Instituição. A propósito, as queixas quanto a tais disciplinas é outro fator que pode estar contribuindo para que os alunos-professores não se identifiquem com o magistério: E.12: Por exemplo, Didática, são professoras da Pedagogia. Elas não têm o conhecimento que um professor de Letras tem. Então, é totalmente diferenciado. Pra mim não valeu muita coisa. São disciplinas MUITO VAGAS. Estrutura e Funcionamento é outra que é lei daqui, lei de lá. A professora entra sete e meia e não para de falar; sai nove e dez. Você não interrompe; ela não aceita a sua opinião a respeito de nada. [...] Psicologia é outra, ela aceita só a opinião dela. Então, pra nós não valeu muita coisa. (Coralina – 4º ano) E.13: No nosso caso, essas mesmas matérias que a Coralina falou, é a mesma dificuldade, porque, assim, Didática, sinceramente, eu esperava muito mais, porque é uma coisa que você tem que ter, e não tem. O que acontece é que os alunos, assim, a posição que o pessoal tem é "Isso não serve pra nada". [...] Mas realmente isso é muito importante. [...] É importante, mas a forma como estão sendo dadas, está deixando
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lacunas no nosso aprendizado. [...] Às vezes ela nem tem o conhecimento. Como é que ela vai me ensinar dar aula de LP pra alguém, se ela nem sabe o que vai ser falado, se ela não sabe sobre a língua? Elas não sabem nem o que é Linguística! (Olívia – 3º ano) Na fala de Coralina (E.12), é preocupante não só o fato de as disciplinas Didática L, Estrutura e Funcionamento do Ensino e Psicologia da Educação serem consideradas vagas, mas também, e sobretudo, a assimetria nos turnos de fala em sala de aula, justamente em disciplinas tão voltadas a questões políticas, que requerem amplos debates quanto a assuntos educacionais. Aliás, se houvesse diálogo entre professoras e alunos no exemplo descrito por Coralina, talvez os conteúdos das disciplinas arroladas não fossem considerados vagos, de modo que os alunos não julgariam irrelevantes os conhecimentos de tais disciplinas, e talvez o papel do professor de LP frente a fatores contextuais fosse mais bem compreendido pelos alunosprofessores – como, por exemplo, o caso das leis, citado por Coralina. Entretanto é preciso considerar que o desinteresse dos alunos em relação aos saberes necessários à base de conhecimentos do professor, advindos das disciplinas em questão, conforme apontaram Coralina e Olívia, pode ser fruto da falta de diálogo entre os conteúdos de LP e os conteúdos político-pedagógicos ensinados naquelas disciplinas, porque, segundo essas alunas-professoras, as docentes que ministram aqueles conteúdos não têm conhecimentos pertinentes ao curso de Letras. Isso sugere, portanto, a ausência de entrosamento entre os professores do curso, visando a favorecer mais integração entre os conteúdos ministrados. Tal integração poderia gerar efeitos positivos no processo de formação de professores de LP, pois levaria os alunos a verem sentido na relação entre as disciplinas. Talvez a coordenação do curso pudesse promover isso, como observou a professora Judite (E.11). Aliás, esse ponto de vista também apareceu entre os alunos-professores, como se pode observar pelo discurso de Lucas, ao sugerir que o Colegiado deveria tomar conhecimento dos problemas apontados por Coralina e por Olívia; entretanto, pela afirmação de Abigail (E.14), o Colegiado não tem proporcionado soluções, o que corrobora a observação da formadora Judite em E.11: E.14: Mas eu acho que tem que levar ao conhecimento da coordenação do curso, da coordenadora; e ela teria que começar a verificar isso. (Lucas – 3º ano) E.15: Não adianta pra nada a coordenação do Colegiado. [...] Não se resolvem os problemas. Você tenta falar, faz um abaixo-assinado, faz isso, faz aquilo, NÃO ADIANTA NADA!!! Continua a mesma coisa!!! (Abigail – 2º ano)
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Dessa forma, parece que alguns dos problemas encontrados no curso, além dos já discutidos, referem-se à falta de integração entre a coordenação do Colegiado com os corpos docente e discente. Isso permite inferir que, talvez, também o Colegiado não esteja identificando-se com a sua função – coordenar um curso de formação de professores, cujos saberes precisam estar integrados, a fim de proporcionar aos futuros professores sólida formação inicial e identificação com a profissão docente. Ante o exposto nesta discussão, é possível ratificar a influência não apenas do currículo, mas de todo o contexto formativo na constituição da identidade do futuro professor de LP, uma identidade marcada por conflitos e por desejos de mudanças que propiciem mais qualidade no processo formativo – como a oferta de mais prática pedagógica e mais entrosamento entre os sujeitos envolvidos nesse processo. Tais mudanças, conforme Peres (2007), poderiam se realizar com a efetivação do que preconizam as Diretrizes do MEC (BRASIL, 2002). Com a adequação do currículo do curso de Letras em tela a tais diretrizes, houve aumento da carga horária destinada a atividades de prática docente nesse curso. Contudo, segundo a autora, a experiência de oito anos como professora responsável pelo Estágio Supervisionado de Língua Portuguesa lhe tem mostrado que o aumento dessa carga horária não tem surtido o impacto almejado na formação do professor de LP. Isso indica, portanto, que outros fatores contextuais envolvem o assunto, o que requer ainda mais comprometimento das instituições de ensino superior no processo de formação docente. O que poderia produzir mudanças nesse contexto seria o engajamento dos próprios sujeitos que nele atuam, com a realização de reuniões pedagógicas entre coordenação e docentes, com a promoção de fóruns envolvendo também os alunos do curso. Nesses eventos, seria possível levantar problemas e apontar soluções, a fim de oferecer uma formação de melhor qualidade, satisfazendo não apenas os sujeitos nela envolvidos, mas também proporcionando ao futuro professor de LP a constituição de uma identidade menos conflituosa e mais confiante para agir no magistério. Tais fóruns seriam ainda uma oportunidade para inserir os professores de LP, já na formação inicial, nos debates sobre programas e sobre políticas de formação, de modo que eles seriam, consequentemente, acostumados a serem sujeitos do seu processo formativo.
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Referências
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CORACINI, M. J. R. O olhar da ciência e a construção da identidade do professor de língua. In: CORACINI, M. J. R.; BERTOLDO, E. S. (orgs.). O desejo da teoria e a contingência da prática: discursos sobre e na sala de aula: (língua materna e língua estrangeira). Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 193-210.
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TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.
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A TERMINOLOGIA INTERDOMÍNIOS DAS CERTIDÕES DE CASAMENTO FRANCESAS Beatriz Fernandes Curti1 (UNESP) Lidia Almeida Barros (UNESP) 1. Introdução Sabe-se que o homem desenvolve suas atividades em diversas áreas e que a terminologia se faz mister no intercâmbio de informações entre os diversos domínios existentes. Baseando-se em Barros (2007), consideramos terminologia como o conjunto de termos de uma área de especialidade. À luz dos pressupostos teóricos da Teoria Comunicativa da Terminologia (TCT), de Cabré (1999), para a qual o que irá atribuir ao termo sua conotação especializada será o domínio (ou contexto) no qual ele está inserido, propusemo-nos a realizar um estudo terminológico das certidões de casamento francesas e, assim, elaboramos um glossário monolíngue francês do documento em questão com o intuito de colaborar para uma melhor comunicação na área jurídica e auxiliar na tradução juramentada. No decorrer de nossa pesquisa, encontramos termos oriundos de diversas áreas em que o homem desenvolve suas atividades. Esses domínios dos quais os termos são oriundos são chamados, por nós, de “domínios de origem”. Vale ressaltar que a identificação da origem dos termos se deu por meio da nossa consulta a dicionários especializados2. Em outras palavras, a presença do termo em um dicionário de Administração, por exemplo, é indício de que se trata de um termo desse domínio. 2. Metodologia da pesquisa Primeiramente, submetemo-nos ao estudo das características fundamentais das certidões de casamento francesas e da legislação que as rege na França, uma vez que a compreensão das principais características dessas certidões, o conhecimento das leis que as regem e dos direitos e deveres dos cônjuges são fundamentais para o estudo da terminologia desse tipo de documento. Para tanto, buscamos uma bibliografia especializada no domínio, que foi obtida pela aquisição de livros e por documentos legais franceses disponíveis na rede mundial de computadores. A partir desse estudo, constituímos um corpus formado por documentos fotocopiados e digitalizados dessa Agradeço o apoio financeiro da FAPESP, que custeou nossa pesquisa por meio de uma bolsa de Iniciação Científica, possibilitando assim a realização do presente trabalho. 2 É importante ressaltar que recorremos tanto a dicionários especializados quanto a bases terminológicas, ambos em língua francesa, disponíveis em formato impresso e na rede mundial de computadores, cujo conteúdo e procedência são fidedignos. Valemo-nos de 16 obras no total, mas não as citaremos aqui; atentar-nos-emos às análises realizadas por nós ao longo de nossa pesquisa.
1
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natureza. Por corpus, entendemos um conjunto de textos selecionados para servir de base a uma análise terminológica (PAVEL & NOLET, 2013). Selecionamos cerca de 30 certidões expedidas entre os anos 1905 e 2005, extraídas da rede mundial de computadores (Internet), formando um corpus de aproximadamente mil palavras, a fim de realizarmos o levantamento dos termos. Baseando-se nos princípios da TCT, realizamos o levantamento do conjunto terminológico das certidões de casamento francesas. Para tanto, digitamos manualmente todo o seu conteúdo e o armazenamos na base de dados textuais do programa WordSmith Tools 6.0 para nos auxiliar em nossa pesquisa. Valemo-nos de uma ferramenta chamada WordList para criar uma lista de todas as palavras presentes nas certidões. Por meio dos dados fornecidos pela ferramenta, pudemos averiguar, sobretudo, a frequência de cada candidato a termo. Em seguida, submetemos o corpus à ferramenta Concordance para formar uma lista de palavras em ordem de frequência, facilitando muito a seleção dos candidatos a termos. Arquivamos várias listas em que cada palavra do corpus aparece como núcleo de um trecho, situada entre dez palavras à esquerda e cinco à direita, de forma que se pode observar o co-texto (texto ao redor, ou seja, concordância) dessa palavra-núcleo. Para identificar a terminologia das certidões de casamento francesas, adotamos os critérios apresentados por Barros (2007, p.42-50), utilizados com o intuito de se verificar o grau de lexicalização dos sintagmas terminológicos e de determinar os limites das unidades terminológicas sintagmáticas, a saber: a) b) c) d) e) f) g) h) i)
designação de um conceito de área de especialidade; não-separabilidade dos componentes; existência de uma definição; compatibilidade sistêmica; substituição sinonímica; maneabilidade; imprevisibilidade semântica; co-ocorrência e uso; e frequência de uso.
Além disso, seguimos com a verificação dessas unidades lexicais em dicionários terminológicos especializados a fim de confirmar o estatuto de termo dos candidatos presentes no corpus. Concluído o processo de identificação da terminologia das certidões de casamento francesas, demos continuidade às nossas análises a fim de levantar seus dados terminológicos para, com isso, elaborar o glossário monolíngue francês do documento em questão. A fim de estabelecer o perfil geral dessa terminologia, observamos os domínios de origem dos termos levantados (domínios de especialidade) e a existência de variantes lexicais nesse conjunto terminológico, bem como identificamos as estruturas morfossintáticas e léxico-semânticas predominantes no conjunto de termos extraídos do corpus, classificando-as em termos simples, compostos e complexos. No presente texto, interessa-nos expor nosso estudo acerca dos domínios de origem das certidões de casamento francesas. Portanto, apresentaremos a seguir os
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domínios de origem encontrados, bem como as análises realizadas com o intuito de explicar a ocorrência de determinado domínio no documento estudado. 3. Domínios de origem da terminologia das certidões de casamento francesas Analisando os 69 termos levantados em nossa pesquisa, observamos que estes são oriundos de 16 domínios diferentes. Dentre esses domínios, notamos que os termos, em sua maioria, são provenientes do domínio jurídico, em um total de 24 unidades. O domínio do Direto Civil foi o segundo maior em ocorrência de termos, totalizando 12, o que pode ser explicado pelo fato de a certidão de casamento francesa estar inserida, especificamente, nesse domínio. Encontramos termos oriundos dos domínios de Direito Administrativo, num total de 12 termos; de Direito Comercial, em número de 8 termos; de Direito Constitucional, totalizando 5 termos; e de Administração e de Ciências Sociais, com 3 termos. Nos domínios de Direito Penal e de Economia, totalizaram-se 2 termos. Já nos domínios de Arquitetura, de Arqueologia, de Astronomia, de Ciência Espacial, de Comércio, de Geografia e de Tipografia, foram encontrados apenas 1 termo de cada. Vale ressaltar que, em muitos casos, o termo foi registrado em mais de um domínio. Do ponto de vista percentual, os dados se apresentam da seguinte forma: Gráfico 1 – Percentual dos domínios de origem.
6% 10%
4% 3% 3% 1% 1% 4% 1% 1% 1% 1% 1%
15%
16%
32%
Direito Direito Civil Direito Administrativo Direito Comercial Direito Constitucional Administração Direito Penal Economia Arquitetura As tronomia Ciências Sociais Comércio Tipografia Ciência Espacial Geografia Arqueologia
4. Análise e discussões acerca dos domínios de origem encontrados Como vimos, o maior número de termos pertence ao domínio do Direito, independentemente de sua especificidade. Para nós, essa realidade não é surpreendente, visto que a certidão de casamento francesa é um documento de ordem jurídica, que tem o objetivo de registrar a união conjugal entre as partes, segundo o que permite a legislação. Assim, termos de outros domínios ocorrem nas certidões de casamento em função da comunicação necessária de algum fato concernente a esses domínios, como
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por exemplo, um dos termos do domínio de Economia que aparece nos documentos para informar o valor a ser pago, provavelmente, pela nova requisição da certidão. O termo do domínio de Arquitetura aparece para explicitar o local acompanhado do endereço onde os futuros cônjuges moravam quando da celebração do casamento civil. O domínio de Tipografia apenas ocorre para auxiliar o processo de numeração das páginas do livro no qual a certidão de casamento é registrada e guardada na prefeitura. Por outro lado, o domínio do Comércio se apresenta para também facilitar o processo de enumeração das certidões registradas em uma prefeitura. O domínio da Administração também aparece com o intuito de emprestar termos referentes à organização administrativa do registro do documento em questão. A ocorrência do domínio da Astronomia apresenta a função de auxiliar na contagem do tempo a fim de orientar o registro do documento em questão. Também o faz o domínio da Ciência Espacial, auxiliando na marcação do tempo utilizada para marcar a data em que ocorreu a cerimônia. O domínio das Ciências Sociais aparece para auxiliar o registro da certidão no que diz respeito à unidade política na qual ocorreu o matrimônio. Por outro lado, o domínio da Geografia empresta a nomenclatura que denomina o país França enquanto nação territorial. Por sua vez, o domínio da Arqueologia veio para emprestar um de seus termos para auxiliar no complemento dos dados relativo ao endereço do envolvidos na celebração do casamento. 5. Considerações finais Finda análise, verificamos que a maior parte dos termos encontrados nas certidões analisadas advém do domínio jurídico, o que, como vimos, não nos surpreendeu, uma vez que esse tipo de documento é de ordem jurídica e regido por leis. Notamos, ademais, a presença de alguns domínios que não possuem relação com o do Direito, como os domínios da Economia, da Arquitetura e da Tipografia, por exemplo. Com isso, provamos que o intercâmbio terminológico entre as diversas áreas em que atua o homem é de extrema importância, pois, por meio do empréstimo da terminologia de uma determinada área do saber, complementa-se e auxilia a organização terminológica e funcional de outro domínio. 6. Referências bibliográficas BARROS, L. A. Conhecimentos de terminologia geral para a prática tradutória. São José do Rio Preto: NovaGraf, 2007. CABRÉ, M. T. La terminología: representación y comunicación. Elementos para una teoría de base comunicativa y otros artículos. Barcelona: IULA, 1999. PAVEL, S.; NOLET, D. Manual de Terminologia. Gatineau, Quebec, 2003. Disponível em: www.translationbureau.gc.ca. Acesso em 01.12.2013.
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AS ESTRATÉGIAS COMUNICATIVAS RELACIONADAS À POSIÇÃO DAS ORAÇÕES CONCESSIVAS INTRODUZIDAS POR “AUNQUE” Beatriz Goaveia Garcia Parra1 (IBILCE/UNESP) Introdução Definir uma oração concessiva como sendo aquela que estabelece um obstáculo ao que é dito na oração principal, sem, contudo, impedir o acontecimento relatado nesta última é praticamente um consenso entre as gramáticas tradicionais da língua espanhola, como podemos verificar pela leitura da gramática da Real Academia Española (1931) e de demais autores como Alarcos Llorach (1999); Cerrolaza (2005); Sanches, Martín e Matilla (1980); Gili Gaya (2000) e Cascón Martín (2000). Nestas definições, é possível notar que a relação de oposição se dá entre fatos do mundo real ou imaginário, isto é, o obstáculo proposto pela oração concessiva aplica-se à realização de uma ação ou de um evento expresso na oração principal. Tendo em vista, porém, estudos funcionalistas como os realizados por Crevels (1998, 2000a, 2000b) é possível observar que este é apenas um dos tipos de relações concessivas presentes em situações reais de comunicação. No caso das concessivas em língua espanhola, a conjunção aunque é atualmente a mais utilizada para estabelecer este tipo de relação. No entanto, os manuais de gramática apontados raramente exploraram os aspectos semânticos e pragmáticos que subjazem tais construções, limitando-se apenas em descrever seu comportamento estrutural. Tomando, por exemplo, a posição que a concessiva iniciada por aunque pode ocorrer em relação à oração principal, algumas gramáticas - Real Academia Española (1931), Alarcos Llorach (1999) e Matte Bon (1995) - simplesmente informam que as orações introduzidas por essa conjunção podem aparecer antepostas ou pospostas à principal, afirmando, em alguns casos - Marcos Martín, Satorre Grau e Viejo Sánches 1
Bolsista Capes de mestrado pelo programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, UNESP – câmpus de São José do Rio Preto.
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(2002) – que a significação de uma concessiva posposta é a mesma de uma anteposta; enquanto outras nem ao menos discutem este parâmetro - Cerrolaza (2005); Sanches, Martín e Matilla (1980); e Gili Gaya (2000). Partindo do princípio funcionalista de que a forma assumida por uma expressão linguística está intimamente relacionada às funções que desempenham no contexto de interação verbal em que são utilizadas, espera-se, portanto, que a escolha da posição assumida pelas orações concessivas iniciadas por aunque não seja feita arbitrariamente; mas, como procuraremos mostrar ao longo desse trabalho, que a ordem de realização dos enunciados concessivos, conforme defendido por Neves (2000), seja motivada pelas estratégias argumentativas do falante. A fim de demonstrarmos tal hipótese, o presente artigo organiza-se da seguinte forma: No item 1 discutiremos alguns princípios básicos do funcionalismo de linha holandesa, mais especificamente da Gramática Funcional de Dik (1997) e a sua contribuição para o estudo dos tipos de relação concessiva realizado por Crevels (1998, 2000a, 2000b). No item 2 apresentaremos o ponto de vista de alguns autores a respeito das estratégias comunicativas veiculadas à posição de tais orações. Já no item 3, trataremos da metodologia utilizada na pesquisa aqui apresentada, para, no item 4, discutirmos os resultados referentes à análise das posições das orações concessivas a depender de sua camada de atuação. Por fim, no item 5, faremos nossas considerações finais a respeito dos conteúdos discutidos. 1. O funcionalismo de Dik (1997) e as possíveis relações concessivas Uma pesquisa de caráter funcionalista caracteriza-se por ir além de uma análise focada na estrutura gramatical ao investigar os fenômenos linguísticos como motivados pelas funções que desempenham em contextos reais de comunicação, ou seja, ao considerar que a forma dos enunciados linguísticos é determinada pela situação comunicativa em que é utilizada. Nessa perspectiva, Dik (1997) adota a oração como sendo a unidade básica de sua teoria funcionalista e propõe que esta unidade seja descrita em termos de uma estrutura de oração subjacente abstrata, que será representada na forma real de uma
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expressão linguística por meio de um sistema de regras de expressão, que determinam a forma, a ordem e o padrão de entonação dos constituintes da estrutura subjacente. Dessa forma, as unidades linguísticas podem ser descritas por meio das seguintes camadas: Unidade estrutural Tipo de entidade Ordem Oração Ato de fala 4 Proposição Conteúdo Proposicional 3 Predicação Estado-de-Coisas 2 Termo Entidades 1 Predicado Propriedade/relação -
Quadro 1: Organização das unidades linguísticas em camadas, segundo Dik (1997)
Com base no que foi proposto por Dik (1997), Crevels (1998), ao estudar as orações concessivas do espanhol, e Crevels (2000a, 2000b), ao analisar tipologicamente esse tipo oracional, observou que as orações concessivas podem ser de quatro tipos:
Concessivas predicativas: configuram entidades de segunda ordem, isto é, Estadosde-coisas, que podem ser localizados no tempo e no espaço e avaliados segundo a sua realidade. As concessivas deste tipo configuram um obstáculo à realização do evento ou Estado-de-coisas descrito na oração principal, mas que não consegue impedir a ocorrência desse último.
Concessivas proposicionais: correspondem a entidades de terceira ordem, isto é, a Conteúdos Proposicionais, que não podem ser localizados nem no espaço, nem no tempo, por serem constructos mentais, mas podem ser avaliados em termos de verdade. Nesses casos, a oração concessiva caracteriza-se por marcar o impedimento a uma crença ou a uma conclusão e por estar relacionada a um posicionamento do falante, envolvendo, portanto, juízos de valor.
Concessivas ilocucionárias: trata-se de uma relação entre dois Atos de fala, entidades de quarta ordem, avaliados em termos de sucesso em sua enunciação. Essas orações caracterizam-se não por formarem um obstáculo à realização do evento ou Estado-de-coisas descrito na oração principal, mas sim por oferecerem um obstáculo à realização do Ato de fala expresso nesta última.
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Concessivas textuais: referem-se às entidades de quinta ordem, acrescentadas pela autora ao modelo inicial de camadas proposto por Dik (1997). Configuram orações independentes que modificam uma unidade textual precedente, composta por uma ou mais orações, ao excluir certa interpretação que poderia ter sido elaborada pelo ouvinte no decorrer do discurso, atuando, muitas vezes, como um adendo. Observando os tipos de concessivas identificados pela autora é possível perceber
que a definição geral de concessão das gramáticas tradicionais, que apresentamos ao início deste trabalho, abrangem principalmente as concessivas de segunda ordem, sendo difícil encaixar tal conceito de concessão como obstáculo à oração principal para classificar uma concessiva textual, cuja relação de oposição se dá em um nível interacional-discursivo. 2. Estratégias argumentativas relacionadas à posição das concessivas introduzidas por aunque Para Neves, Braga e Dall’Aglio-Hattnher (2008), todas as orações concessivas apresentam a ideia de contrariedade a uma expectativa, sendo, juntamente com as coordenadas adversativas, classificadas como uma conexão contrastiva. Contudo, uma diferença formal entre concessivas e adversativas, apontada por Flamenco García (2000), é a propriedade de reversibilidade dos nexos, presente nas primeiras e ausente nas segundas. Isso significa que o conteúdo introduzido pela conjunção concessiva pode vir anteposto ou posposto à oração principal, o que não se aplica à oração adversativa, que aparece unicamente em posição posposta. Entretanto, a reversibilidade da oração concessiva não implica a construção de enunciados simétricos2, como podemos observar nos exemplos a seguir: (01) a. Aunque Jaime estudia mucho, no consigue aprobar.3 (FLAMENCO GARCÍA, 2000, p.3917) 2
A propriedade da simetria diz respeito à possibilidade de alterar a ordem dos membros de uma construção sem que ocorra perda de aceitabilidade ou mudança de interpretação. (FLAMENCO GARCÍA, 2000, p. 3817) 3 Tradução: Embora Jaime estude muito, não consegue passar de ano.
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b. Jaime no consigue aprobar, aunque estudia mucho.4 (FLAMENCO GARCÍA, 2000, p.3917) Segundo o autor, a anteposição da oração concessiva iniciada por aunque à oração principal, como observado na ocorrência (01a), deve-se à intenção comunicativa do falante de polemizar acerca de um discurso previamente emitido ou simplesmente pressuposto. Assim, a conjunção introduz uma informação já conhecida pelos interlocutores, isto é, temática. A sua posposição, por outro lado, revela o objetivo do falante de adiantar e rejeitar uma possível objeção do ouvinte, como se nota na ocorrência (01b). Nesse caso, a conjunção introduz um conteúdo novo ou remático. Também Neves (2000) defende que as orações concessivas antepostas carregam uma informação compartilhada pelos interlocutores, ocupando, por isso, uma posição mais tópica. Para a autora, as concessivas pospostas ora atuam como ressalva a um ponto particular do enunciado, ora como adendo “[...] por meio do qual o locutor acrescenta outros conteúdos ou argumentos a um seguimento linguístico aparentemente concluído.” (NEVES, BRAGA e DALL’AGLIO-HATTNHER, 2008, p. 982). É o que ilustra o exemplo (02), adaptado de Crevels (1998): (02) A: ¿A partir de qué momento ha sentido perdida su intimidad, su anonimato? B: Todavía no me considero un personaje popular, pero creo que he perdido mi intimidad desde el momento en que, de vez en cuando, yendo por la calle, oigo que dicen mi nombre, así por detrás, o una mirada más fija que otras… Aunque siempre ganas otras cosas...5 (CREVELS, 1998, p. 139). Nesse exemplo, a expressão em negrito pode ser interpretada como um adendo porque a informação de que a vida de uma pessoa popular também tem seus pontos positivos é acrescentada de forma inesperada, em contraste com o discurso anterior, aparentemente concluído, no qual se apresentava os aspectos negativos da vida de um famoso, como, por exemplo, a perda da intimidade. 4
Tradução: Jaime não consegue passar de ano, embora estude muito. Tradução: A: A partir de que momento você sentiu perdida sua intimidade, seu anonimato?/ B: Ainda não me considero um personagem popular, mas acho que perdi minha intimidade a partir do momento em que, de vez em quando, andando pela rua, ouço dizerem o meu nome, assim por trás, ou um olhar mais fixo que outros... Apesar de que sempre ganhamos outras coisas... 5
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Com base no que foi apresentado, é possível argumentar que a posição assumida pela oração concessiva será influenciada tanto pela carga informativa do conteúdo expresso quanto pela estratégia elaborada pelo falante no desenvolvimento de sua argumentação. Compreendendo, porém, que, como defendido no item anterior, não existe apenas um tipo de relação concessiva, observaremos à continuidade a relação entre a camada de atuação das concessivas e a posição por elas ocupada. 3. O universo da pesquisa Os resultados a serem discutidos no próximo item a respeito da posição ocupada pelas orações concessivas fazem parte de um estudo mais amplo que procurou investigar, à luz do funcionalismo de Dik (1997), as orações concessivas introduzidas por aunque no espanhol falado peninsular. Para tanto, utilizamos como córpus os inquéritos de fala das cidades de Alcalá de Henares e de Granada (níveis de escolaridade alto e médio) pertencentes ao PRESEEA (Proyecto para el estudio sociolingüístico del español de España y de América). Os dados analisados a seguir dizem respeito à análise de 176 ocorrências de orações concessivas iniciadas por essa conjunção, das quais 36 (20,45%) são predicativas; 100 (56,82%), proposicionais; 21 (11,93%), ilocucionárias; e 19 (10,80%) textuais. 4. Análise dos dados: a posição referente à camada de atuação Nos dados analisados, verificamos que a posposição, verificada em 58,86% das ocorrências, predomina sobre a anteposição (41,14%), embora ambas ocorram, como ilustram os exemplos a seguir: (03) elijo algo aunque es carísimo.6 (31M-GR06) (04) a mí aunque sea verano me gustan mucho las sopas […].7 (35M-AH2)
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Tradução: Escolho algo embora seja caríssimo. Tradução: Embora seja verão, eu gosto muito de tomar sopa.
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Em (03), observamos que a oração concessiva em destaque introduz uma informação nova no discurso e, por isso, além de apresentar o verbo no modo indicativo, ocupa a posição posposta à oração principal. Assim, a função argumentativa da oração concessiva posposta é, segundo Flamenco García (2000), adiantar um possível contra-argumento do ouvinte que poderia ser formulado a partir da informação anterior, expressa pela oração principal. Além disso, a concessiva posposta pode ser vista como um adendo ou uma ressalva, evitando, assim, que o ouvinte interprete de modo equivocado a informação dita anteriormente. Já no exemplo (04), vemos que a oração concessiva em destaque está anteposta à oração principal. Esta posição justifica-se pelo fato de que a informação por ela codificada já é conhecida pelos interlocutores. Assim, a intenção argumentativa do falante ao produzir o enunciado concessivo é de polemizar a respeito da informação dada pelo contexto comunicativo e compartilhada pela informação pragmática dos participantes, que no caso do exemplo em análise corresponde ao fato de que como estão no verão, não deveria ser comum alguém tomar sopa. Podemos observar com maiores detalhes na tabela 1 e nos exemplos a seguir as posições ocupadas pelas orações concessivas, de acordo com a camada em que se encontram: Camada de atuação Posposta Anteposta 2ª camada 34 (94,44%) 2 (5,56%) 3ª camada 41 (41%) 59 (59%) 4ª camada 10 (47,62%) 11 (52,38%) 5ª camada 19 (100%) 0 (0%) Tabela 1: A posição das orações concessivas de acordo com sua camada
(05) me gusta porque es lo suficientemente grande aunque esto es un pueblo.8 (H15AH3) (06) aunque me trate bastante con ciertas personas no las considero amigas 9 (M18AH6) (07) aunque no las traduzca digo no esto no se puede decir así. 10 (32H-GR09) 8
Tradução: Eu gosto porque é o suficientemente grande embora isto seja um povoado. Tradução: Embora eu me relacione bastante bem com certas pessoas, não as considero amigas. 10 Tradução: Apesar de não as traduzir digo não isso não se pode dizer assim. 9
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(08) yo pienso que es muchísimo más [violento] muchísimo más aunque se diga “es que antes no lo conocías”.11 (33M-GR17) (09) en un futuro pienso que uno se circunscribe más porque bueno las opciones de viaje son más limitadas y uno también las limita porque también la disponibilidad física no es la misma y y entonces pienso que fundamentalmente en un futuro yo disfrutaré más de mi ambiente más cercano aunque no quiero ni pensar que amigos fenomenales que tengo pues repartidos por el mundo entero no los voy a ver12 (H15-AH3) Primeiramente, podemos observar que, referente às posições ocupadas pelas orações concessivas predicativas, predomina a posposição com relação à principal, como demonstra o exemplo (05). Como as concessivas predicativas ocupam a camada de atuação mais baixa que pode ser preenchida por uma concessiva, elas estão mais dependentes sintaticamente de uma oração principal do que aquelas que ocupam camadas mais elevadas. Assim, o fato de predominar a posposição neste tipo de relação corrobora com a afirmação de Rosário (2012), para quem as concessivas pospostas tendem a veicular uma noção de contraste mais local, com escopo mais restrito à porção do texto imediatamente anterior. No entanto, a posposição também aconteceu em todas as ocorrências de orações concessivas textuais, que ocupam a última da classificação proposta por Crevels (1998, 2000a, 2000b), como demonstra o exemplo (09). A ocorrência absoluta de concessivas de quinta ordem ocupando a posição final do discurso era esperada, uma vez que este tipo de oração se caracteriza por modificar uma unidade textual precedente, não podendo, dessa forma, anteceder o conjunto de pronunciamentos com o qual se relaciona. Com base nas discussões apresentadas, podemos concluir que as concessivas predicativas e as textuais tendem a introduzir uma informação nova no discurso e a estratégia argumentativa da qual fazem parte é de evitar possíveis contra-argumentos do 11
Tradução: Eu penso que é muito mais [violento], muito mais, embora se diga “é que não o conhecia antes.” 12 Tradução: Em um futuro penso que as pessoas se circunscrevem porque, bom, as opções de viajem são mais limitadas e as pessoas também se limitam porque também a disponibilidade física não é a mesma e então penso que fundamentalmente em um futuro eu desfrutarei mais de um ambiente mais próximo, embora não quero nem pensar que não vou ver mais os amigos fenomenais que eu tenho espalhados pelo mundo inteiro.
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ouvinte ou interpretações equivocadas dos pronunciamentos anteriores. Sendo assim, o pronunciamento da oração aunque esto es un pueblo, em (05), impede que o ouvinte utilize este argumento para tentar invalidar o que é afirmado na oração principal; enquanto a aunque no quiero ni pensar que amigos fenomenales que tengo pues repartidos por el mundo entero no los voy a ver, em (09), atua como uma ressalva ao evitar que o ouvinte produza conclusões equivocadas a partir dos pronunciamentos anteriores, uma vez que estes poderiam levá-lo a concluir que o falante não sentirá o fato de que, em sua velhice, não poderá viajar mais. Já nas orações proposicionais introduzidas por aunque predominou a posição anteposta, cuja estratégia é de acompanhar uma informação compartilhada pelos interlocutores e demonstrar que, embora haja o conhecimento do que nelas se afirma, isso não impede que seja feita a conclusão que se estabelece na oração principal. Assim, em (06), o falante desde o início apresenta o argumento da oração concessiva como sendo um obstáculo falho, pois ao enunciar aunque me trate bastante con ciertas personas, essa informação já é sentida como insuficiente para impedir que se conclua que o falante é amigo de todas as pessoas com as quais se relaciona. No caso das orações concessivas ilocucionárias, por sua vez, embora tenha havido um número maior de ocorrências em anteposição, a diferença é mínima para que se possa afirmar que este tipo de relação concessiva se especializa em uma estratégia argumentativa. Assim, as concessivas de quarta ordem, ao virem antepostas, realizam um Ato de fala conhecido ou pressuposto pelos interlocutores para invalidá-lo como obstáculo possível à expressão do Ato de fala que configura a oração principal. Dessa forma, ao produzir o Ato de fala aunque no las traduzca, em (07), este já é visto como incapaz de impedir a enunciação do ato de fala principal digo no esto no se puede decir así. Por outro lado, quando pospostas, as concessivas ilocucionárias corrigem o Ato de fala expresso anteriormente, assim como propõe BARTH (2000 apud GARCIA, 2010). Nesses casos, o falante, ao perceber que a enunciação de um determinado Ato de fala poderia gerar uma interpretação equivocada da parte do ouvinte, produz um Ato de fala concessivo posterior na forma de uma ressalva a fim de evitar uma possível contraargumentação. Assim, no exemplo (08), ao pronunciar o Ato de fala yo pienso que es
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muchísimo más [violento] muchísimo más, o falante sente que a declaração de que a sociedade atual é mais violenta possa parecer uma avaliação injusta porque antigamente os crimes não recebiam tanta repercussão porque não havia uma mídia como há hoje. Dessa forma, o falante traz este argumento na oração concessiva aunque se diga “es que antes no lo conocías” a fim de invalidar uma objeção por parte de seu interlocutor. 5. Considerações Finais Buscamos, ao longo deste trabalho, demonstrar que, na maioria das gramáticas tradicionais de língua espanhola analisadas, a relação de concessão apresentada volta-se principalmente para os casos de oposição entre fatos e eventos do mundo, dando pouca ou nenhuma atenção àquelas orações que estabelecem oposições envolvendo a interação entre falante e ouvinte. No caso das orações concessivas introduzidas por aunque, é afirmado que estas podem tanto aparecer pospostas como antepostas à oração principal. Assim, partindo do ponto da Gramática Funcional de Dik (1997), procuramos verificar se há alguma posição que predomina nos tipos de concessivas propostos por Crevels (1998, 2000a, 2000b), a fim de demonstrar as estratégias argumentativas que motivam esta escolha, pois, como afirma Neves (1999): [...] pode parecer adequado a um determinado propósito comunicativo que primeiro se refute uma possível/previsível objeção do interlocutor e depois se fala uma asseveração, mas também é bastante plausível que seja mais natural primeiro asseverar-se algo, para depois se prover uma “defesa” do ponto de vista expresso. (NEVES, 1999, p. 566)
Assim, concluímos que a posposição predomina nas orações concessivas predicativas e nas textuais porque, naquelas, a oração concessiva possui um espoco mais local, representando uma quebra à expectativa de causalidade lógica esperada pelo ouvinte. Nestas, porém, a posposição ocorre porque atuam como um adendo ou uma ressalva a um conjunto de pronunciamentos anteriores. Já a anteposição é mais característica das concessivas proposicionais porque nelas o falante evoca um conhecimento, provavelmente já compartilhado, para, desde o
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início, invalidá-lo como argumento contrário ao que se conclui na oração principal. Por sua vez, as concessivas ilocucionárias ora são utilizadas antepostas, trazendo como insuficiente um Ato de fala já esperado pelo falante, a fim de evitar que o ouvinte o utilize como objeção à expressão do Ato de fala que configura a oração principal; ora pospostas, corrigindo o que foi anteriormente afirmado para evitar uma possível interpretação equivocada do ouvinte. Esperamos que, por meio deste trabalho, tenhamos contribuído para uma melhor compreensão dos fenômenos que envolvem a utilização das orações concessivas, e para o desenvolvimento das pesquisas de caráter funcionalista, ao demonstrarmos como a intenção comunicativa do falante e o contexto comunicativo atuam sobre a forma de expressão das construções aqui analisadas. Referências ALARCOS LLORACH, E. Gramática de la Lengua Española. Madrid: Espasa: 1999. BARTH, D. “That’s true, although not really, but still”: expressing concession in spoken English. In: COUPER-KUHLEN, E.; KORTMANN, B. (Ed.). Cause, condition, concession, contrast cognitive and discourse perspectives. Berlin: Mounton de Gruyter, 2000. p. 411-437. (Topics in English Linguistics, 33). CASCÓN MARTÍN, E. Sintaxis: Teoría y práctica del análisis oracional. 2 ed. Madrid: Edinumen, 2000, p.147-162. CERROLAZA, O. Diccionario práctico de gramática: uso correcto del español. Madrid: Edelsa, 2005. CREVELS, M. Concession in Spanish. In: HANNAY, Mike; BOLKESTEIN, A. Machtelt. Functional Grammar and verbal interaction. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, v. 44, 1998. p. 129-148. ______ . Concession: a typological study. 2000. 191 f. Tese (Doutorado) - University of Amsterdam, Amsterdam, 2000a. p. 15-40. ______. Concessives on different semantic levels: a typological perspective. In: COUPERKUHLEN, E.; KORTMANN, B. (Ed.). Cause, condition, concession, contrast cognitive and discourse perspectives. Berlin: Mouton de Gruyter, 2000b. p. 313-339.
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A CULTURA, A POLÍTICA E O COTIDIANO FLUMINENSE EM CRÔNICAS DE DANTAS JÚNIOR, NA REVISTA ILUSTRADA
Benedita de Cássia Lima Sant’Anna (UFPR/CAPES)
Lançada em 1º de janeiro de 1876, pelo desenhista, ilustrador e caricaturista ítalo-brasileiro Ângelo Agostini (1843-1910), a Revista Ilustrada, publicada semanalmente no Rio de Janeiro foi disseminadora de teses liberais como o fim da escravidão, a proclamação da República e o incentivo ao desenvolvimento do setor industrial. Para tanto, a Revista Ilustrada utilizava crônicas, charges e caricaturas da época como opção de lazer, entretenimento e, sobretudo, como um recurso dos mais significativos para formar opinião, para sugerir, por intermédio das imagens, modelos ideológicos das teses que defendia a seu público: fosse este leitor ou analfabeto. Tamanho foi o sucesso que obteve junto ao público do período que atingiu a tiragem de quatro mil exemplares para assinantes
número considerado imenso para a
época se pensarmos na enorme quantidade de analfabetos, cerca de 80% dos brasileiros, sendo que o índice de alfabetização do Rio de Janeiro em 1872, quatro anos antes da publicação da Revista Ilustrada, oscilava entre 1,56% da população 1. Assim, acreditamos que parte desse sucesso, ou seja, do êxito da Revista Ilustrada entre o público da época, particularmente entre o público analfabeto, se deve às charges e caricaturas nela impressas, haja vista que esse público lia mal ou não sabia ler, vivia num mundo em que a comunicação oral estava muito mais alargada que a comunicação escrita – um mundo no qual as charges e caricaturas cumpriam um papel bem mais que acessório: atingiam homens e mulheres nas ruas nos termos de sua
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Tais dados foram obtidos durante o meu Doutoramento em Letras, na Universidade de São Paulo, e, podem ser confirmados por intermédio da leitura de textos escritos por autores como Nelson Werneck Sodré, Marcus Tadeu Daniel Ribeiro, dentre outros.
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cultura falada, tornavam acessível a mensagem revolucionária e envolviam as pessoas comuns num processo de comunicação e formação de opinião. Por cumprir essas práticas, as charges e caricaturas divulgadas na Revista Ilustrada constituem importante material para as pesquisas historiográficas. Do mesmo modo, os textos escritos nela publicados, sejam estes literários, históricos ou informativos, constituem fonte significativa para o estudo da literatura, da imprensa periódica ilustrada e da história brasileira. Sobre essa importância da Revista para os estudos históricos referentes ao período em que foi publicada, bem como sobre a boa aceitação dela entre o público da época, escreveu Monteiro Lobato: Não havia casa em que não penetrasse a Revista e tanto deliciava as cidades como as fazendas. Quadro típico da cor local era o fazendeiro que chegava cansado da roça... e abria a Revista... E ali na rede ‘via’ o Império, como nós hoje vemos a história no cinema. Via D. Pedro II, de chambre a espiar o céu pelo telescópio; um ministro entreabre o reposteiro e mete a cara para falar de negócios públicos; o Imperador, sem desfilar as estrelas, resmunga enfadado: “Já sei! Já sei!” (...) toda a história da Corte se desenhava ali, rezando as alegorias e os subentendidos por forma muito entradiça olhos adentro. Disso resultou termos na coleção da Revista Ilustrada um documento histórico retrospectivo cujo valor sempre crescerá com o tempo – tal qual aconteceu com os desenhos de Debret e de Rugendas. (MONTEIRO LOBATO, 1946, p. 16-17)
Se as charges e caricaturas de Ângelo Agostini publicadas na Revista Ilustrada capturavam a atenção do público, referindo-se a personagens reais, com o relato gráfico de humor e uma narrativa eloquente, as crônicas nelas impressas constituíam caricaturas do Brasil da época, principalmente do cotidiano do Rio de Janeiro, da imprensa fluminense e das personalidades políticas daquele momento. Durante os primeiros anos de publicação (1876-1984), a Revista Ilustrada contou com a redação do "alegre e fecundo" redator José Ribeiro Dantas Júnior: (...) natural de do Rio Grande do Norte e filho de um negociante abastado, que, aspirando dar-lhe uma brilhante carreira, mandou-o, na idade propícia dos estudos preparatórios, para o Rio de Janeiro. [Onde] Os seus progressos foram rápidos, e, pouco depois, o nosso amigo matriculou-se na Escola Politécnica, cursando-a até ao segundo
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ano. Desejoso, porém, de conhecer a Europa, conseguiu de sua família ir continuar lá os seus estudos. Esteve sucessivamente, em Bruxelas, em Londres e em Paris, fixando-se, por fim, nesta última cidade, e matriculando-se no primeiro ano da escola de medicina. Ali, porém, uma grande luta se travou entre as tendências literárias de seu espírito, e a frieza horrível dos gabinetes anatômicos. Colocado entre forças tão desiguais e contrárias, o resultado era fácil de prever. O gabinete anatômico foi trocado, muitas vezes, pelas conferências célebres; as horas destinadas ao estudo dos ossos, pela leitura do último sucesso literário, e a lição pelos artigos do Fígaro ou do Evénénzal. De lá mesmo ele começou a colaborar em alguns dos nossos jornais, e dali por diante, vendo que a medicina lhe fazia negaças, entregou-se, de corpo e alma, à danada vida das letras. Regressando ao Rio, colaborou na Nação, criou o Mefistófeles e, tendo sido convidado para a Revista Ilustrada, aí permaneceu, durante nove anos (VERIM, 1886, p. 2).
Período em que, sob os pseudônimos de “Junio” e “A Gil”, escreveu uma infinidade de gazetilhas e crônicas publicadas semanalmente na Revista. Tais crônicas nutrem-se basicamente da mesma fonte que a caricatura, ou seja, utiliza a cidade e seus personagens como matéria-prima, o que por si só serve para aproximar o perfil jornalístico de Dantas Junior ao de seu patrão, Ângelo Agostini, e, consequentemente, ao da Revista Ilustrada. Sob o pseudônimo de ‘A Gil’, Dantas Júnior assinou várias crônicas, impressas em seção fixa, que tem como título o local e a data em que o número da Revista era impresso. Nestas, retrata os acontecimentos políticos da semana, traz notas sobre personalidades da época, informações sobre órgãos da imprensa fluminense e até sobre obras publicadas, bem como comentários sobre festejos realizados e/ou a realizar-se. Mistura em um único texto aspectos pertencentes a diferentes gêneros de textos, como a ênfase da comunicação verbal presente no texto literário, a síntese comum em avisos e em textos informativos, elaborando uma crônica de cotidiano, uma crônica de costumes que o aproxima do leitor e permite que estabeleça com este comunicação direta e espontânea. Uma comunicação impregnada ora de delicadeza, ora de humor, ora de atrevimento. Na crônica intitulada "Rio, 24 de agosto", publicada no número 126, ano 1878, por exemplo, "A Gil" informa que a eleição prévia acabará de designar os próximos pais da pátria, pela província do Rio de Janeiro. Em meio a críticas ao sistema de prévias,
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deixa transparecer com muito humor seu ponto de vista, prendendo a atenção do leitor e o envolvendo em um jogo sedutor e persuasivo. Este sistema de escrutínio prévio, tão endeusado pela Reforma, tem realmente o seu lado bom: adiantar a cabala e dar aos designados o prazer de prelibar com um mês de antecedência o sabor dos cinqüenta mil reis por dia (...) É preciso prevenirem-se contra o choque tremendo, e eu apesar de não ser prévio não descri ainda a minha eleição posterior. (...) eu fico, como o Sr. Cristiano Ottoni, morrendo por ser eleito, mas à espera que os eleitores me implorem essa graça. O que lamento é que o partido liberal não aplique o mesmo sistema privilegiado das eleições às loterias da corte: tentar um ensaio prévio para saber-se de antemão qual era o número garantido dos vinte contos. Então é que eu seria sempre candidato prévio, é haviam de ver quantas circulares jeitosas arranjava (sic). (...) O eleitorado de Minas não se mostra disposto a mandar o Sr. Ottoni à câmara, nem prévia nem posteriormente. (...) Os mineiros não refletiram de certo excluindo o chapéu monstro da chapa, e eu tenho todo interesse em que o chapéu do Sr. Cristiano Ottoni tenha uma esplendida votação. Imaginem que se o Sr. Chapéu Ottoni não for eleito, perde a Revista um excelente colaborador. Não pode ser assim, aquele chapéu há de vir à câmara (Revista Ilustrada, 1878, n.º 126, p. 2).
A referência ao salário dos deputados, em contraponto ao valor pago pelas loterias, a crítica ao sistema eleitoral e aos arranjos políticos fazem dessa crônica de "A. Gil" um texto atual. Trocando-se os nomes e a data e desconhecendo a origem, quem dirá que esse trecho da crônica não foi escrito hoje. Ainda comentando a crônica citada, ressaltamos nela a seguinte informação: É hoje moda na imprensa séria (...) a que faz rir de si, fazer revista dos jornais, uma pretensa resenha do que os outros trazem na véspera. A Reforma deu o exemplo, e os outros imitaram o órgão do sr. comendador Filadélfo. É uma seção humorística e que tem conseguido os seus fins: fazer rir os leitores. Somente, em quanto eles querem fazer rir dos outros, a gente ri-se deles, os revisteiros. Declaro que vou também abrir uma seção, como a da Reforma, Gazeta e Diário, e seguindo o mesmo sistema, isto é, dizendo que as outras não prestam e implicitamente que a Revista é a melhor folha nacional (...) A Reforma tem sua paixão pelo Cruzeiro e faz uma revista que pode reduzir-se a (...) – Há dois jornais bons no Rio de Janeiro, um é o Cruzeiro, o outro? (...) É o Cruzeiro cala a boca! A Gazeta, por seu lado, faz a sua revista de maneira a concluir-se: Há dois órgãos importantes nesta capital, um é o Jornal do Comércio (não lhe gabo o gosto), o outro?... É o Jornal do Comércio cala a boca! De maneira que só lucram os
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compadres. A minha revista, porém, há de ser mais positiva: Qual é o melhor jornal nacional? A Revista Ilustrada. Dá-se um prêmio a quem provar que é assim mesmo. (Revista Ilustrada, 1878, n.º 126, p. 2)
A seção "revista das revistas" nunca foi inaugurada nas páginas da Revista Ilustrada. Entretanto, as críticas a órgãos da imprensa periódica do Rio de Janeiro, principalmente aqueles oriundos da imprensa séria, da imprensa que não era ilustrada, cujas crônicas neles publicadas não tinham o mesmo apelo humorístico que o desta e não faziam rir do outro, mas de si mesmo, continuaram sendo estampadas nos textos de Dantas Júnior. O grande órgão, forma com que José Ribeiro Dantas Júnior referia-se ao Jornal do Comércio – publicação que por diversas vezes já havia se manifestado contrária à liberdade ilimitada concedida às folhas ilustradas, isto sem mencionar diretamente o nome da Revista –, é mencionado com frequência em crônicas e gazetilhas, assinadas por "A. Gil" e por "Junio": Na crônica intitulada "O asno sempre é asno", por exemplo, crítica o número abundante de anúncios e o desinteresse que provocam aos leitores alguns folhetins publicados nas páginas do Jornal. O asno sempre é asno (...) O Jornal do Comércio, (...) distribui dez páginas aos seus leitores, das quais nove são de anúncios, deu agora em transcrever os folhetins do Comércio Português (...) É o meio que emprega o nosso colega, para despertar seus assinantes da letargia em que ficam depois das cataplasmas dos seus ‘Caiporas’ (Revista Ilustrada, 1878, n.º 99, p. 3).
A falta de notícia sobre o aparecimento da Revista Ilustrada nas páginas do Jornal do Comércio, o qual, contrariando um costume comum entre os órgãos da impressa
que saudavam por intermédio de notas breves e artigos as novas publicações
, não havia publicado nenhuma nota sobre o aparecimento da Revista, fingindo ignorar a existência da publicação de Ângelo Agostini, também é tema recorrente nos textos de Dantas Júnior: O grande órgão da Rua do Ouvidor não dá notícias do aparecimento da Revista Ilustrada. O grande dano que isto nos causa, nem os Leonardos imaginam, é mesmo de fazer danar um santo, quanto mais
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a Revista que felizmente não é o Apóstolo (Revista Ilustrada, 1878, n.º 127, p. 3).
O Apóstolo, por sua vez, é sempre motivo de comentários espirituosos. Seguindo os passos de seu patrão, Ângelo Agostini, fervoroso defensor do liberalismo que exprimiu seu anticlericalismo em inúmeras charges e caricaturas publicadas nas páginas da Revista Ilustrada, inclusive representando monsenhor José Gonçalves Ferreira, redator da folha O Apóstolo, literalmente como um porco, José Ribeiro Dantas Júnior critica a folha e o dogma que ela representa: como a religião católica e a soberania papal. O jornal A Gazeta de Notícias também não sai imune às farpas de Dantas Júnior. Algumas matérias nele publicados, como as Cartas Egípcias assinadas por Amenofhis, são motivo de crítica em crônica e gazetilhas por ele escritas: Tocou-me hoje por sorte falar de fatos extraordinários, não posso portanto concluir estes Ricochetes sem dizer ao Amenophis que suas cartas têm leitores!!! Leitores não, leitoras é que ele tem; o que é ainda mais lisonjeiro para um escritor elegante (...) no físico. (...) Mas... Falava-se, em família, das ‘Cartas Egípcias’: Eu nunca li, disse uma das senhoras presentes. Eu comecei a primeira, e não pretendo concluir a última, disse outra. Conheço-as de nome apenas, e estou satisfeita com isso. Pois eu leio, disse a dona da casa em tom de ameaça, e daqui em diante hei de ler alto para vocês todas ouvirem!!! E desde então, sempre que vejo uma ‘Carta Egípcia’ na Gazeta, não posso conter esta sentida exclamação: Coitadas!!! [Das senhoras e das cartas]. (Revista Ilustrada, 1878, n.º 126, p. 7)
As críticas de Dantas Júnior às matérias publicadas na Gazeta de Notícia vão além da má qualidade de alguns textos. Segundo ele, o leitor do Globo ou o do Jornal tinha sempre dois fins: "Informar-se das notícias do dia e saber se são verdadeiras as da Gazeta. Daí a necessidade para quem a lê de consultar outro órgão" (Revista Ilustrada, 1876, n.º 44, p. 6). Importa mencionar que, enquanto José Ribeiro Dantas Júnior esteve à frente da redação da Revista Ilustrada e, sob seu pseudônimo “Junio”, assinava como secretário da redação, tais críticas foram mantidas. Com a saída desse redator, a Revista de Ângelo Agostini parece tornar-se menos ferrenha no que se refere aos ataques à publicação de Ferreira de Araújo.
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Por outro lado, a aversão entre a Revista e o Jornal do Comércio persistiu mesmo com a saída desse redator, e a informação de que o grande órgão continuava a não dar notícias da Revista e que essa passava bem, "muito obrigado", como forma de provocar o órgão fundado pelo emigrante francês Pierre Plancher (Jornal do Comércio), foi mantida. Mas se o Jornal do Comércio não publicava textos ou notas sobre a Revista Ilustrada, folhetinistas que com ele colaboravam teciam comentários maldosos sobre a Revista e sobre seu redator, Dantas Júnior, por ruas, praças e barbearias do Rio de Janeiro. Na nota intitulada "Para tapar este cantinho", publicada no número 128, "A. Gil" faz referência a um destes episódios: L. de C., o desdentado folhetinista do grande órgão, deu agora em dizer mal de mim pelos barbeiros da Rua da Valla. De mim e de outros, porque ele diz sempre mal, sempre que diz alguma coisa. Coitado de L. de C!, tem ainda menos espírito que dentes... Em todo caso eu agradeço-lhe a recordação desta bela quadrinha: "Causa tédio, causa nojo/ Até mesmo causa dó, / Ver morder o mundo inteiro/ Um velho com um dente só!". (Revista Ilustrada, 1878, n.º 128, p. 6)
A presença da quadrinha na nota de "A. Gil" rompe com a seriedade da informação, ao mesmo tempo que reforça para o seu leitor "espectador" o desprezo que o redator da Revista Ilustrada sente em relação ao comportamento do colega. E é com desprezo, com semelhante falta de apreço e humor, que José Ribeiro Dantas Júnior trata tudo que não lhe agrada. Mesmo um relacionamento amoroso, um amor correspondido parece-lhe tão provinciano2 que procura romper o equilíbrio do sentimento introduzindo ao tema situações cômicas, como a do poema "O Beijo", publicado no número 33 do primeiro volume da Revista (1876). No poema, sob o pseudônimo de "Junio" apresenta-nos um eu lírico enamorado por Maria, que tem seu sentimento correspondido por ela e, após algum tempo de cortejo, dá-se o beijo: Deu-me apenas um beijo, mas com ele3 Selou minha ventura! E para selo do beijo... oh maravilha! 2 3
O vocábulo foi empregado com a conotação de atraso "atrasado". O poema é composto por cinco estrofes de cinco versos cada. Aqui citamos apenas a última estrofe.
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Pespegou-me na boca uma estampilha: A sua dentadura
Quando o assunto tratado deixa o campo do sentimento e passa para o campo das ordens públicas, José Ribeiro Dantas Júnior também se utiliza de versos para armar suas farpas de modo gracioso, forjando uma simples constatação, que de nenhum modo se deixa afastar do que realmente importa: a crítica aos costumes da época, a política ou a ação governamental, como vemos no poema "A emigração russa", assinado por "Junio" e publicado no número 73, página 7 (1877) da Revista Ilustrada. Querendo apurar a raça Que definha no Brasil Encomendou o governo De russo duzentos mil. Que excelente inspiração Do homem da agricultura! Verão como há de ganhar A nossa raça futura. O brasileiro é moreno; Mas com os russos cruzados, Melhora por força a cor, Deve dar russo-queimado. . . .
Notar-se-á nessas três estrofes o modo como o redator Dantas Júnior envolve o leitor da Revista em uma postura crítica assumida por ele, contra o preconceito à mestiçagem existente no Brasil (dois primeiros versos), contra o projeto do ministro da agricultura (o quinto e o sexto verso) e favorável à cor morena já natural e inevitável entre os brasileiros (quatro últimos versos). O texto poético ou a alusão à sua forma, bem como a forma ficcional da narrativa, também serve de auxílio para suas crônicas quando deseja expressar observações relacionadas a órgãos da imprensa periódica da época e a colegas, como o Hudson – jornalista do Jornal do Comércio que, segundo "A. Gil", nasceu poeta e foi transformado em repórter pelo Jornal ávido de gazetilhas. O poeta-repórter foi há dias à secretaria de marinha buscar apontamentos para a gazetilha. Espere naquela sala, o Sr. ministro está ocupado agora. O Hudson sentou-se, esqueceu-se que era repórter
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e cochilou como poeta. (...) Às quatro horas da tarde, S. A. Cora Vange, daquela repartição, despertou o Homero do Jornal: Ai! Seu Hudson, eu quero fechar as portas da minha repartição. O Hudson tinha dormido cinco horas seguidas. Dormido não, sonhado. Viu por entre mil pares de sapatos raiar o sol republicano, viveu enfim durante cinco horas. Quando chegou ao Jornal, o jantar estava frio e o Castro também: O que há de novo? Ele esfregando os olhos: Oh! Um poema: A República em cinco cantos e dois mil pares de sapatos heróicos. Homero também cochilava (Revista Ilustrada, 1878, n.º 126, p. 3).
Nesta crônica sobre o jornalista e o Jornal do Comércio, José Ribeiro Dantas Júnior aproveita para sugerir um sistema de governo republicano "sonhado", em detrimento ao regime monárquico até então vigente, demonstrando, conforme já mencionamos anteriormente, estar em perfeita sintonia com as aspirações ideológicas da Revista. Sua postura com relação à abolição da escravatura também não é diferente da de seu patrão, Ângelo Agostini. Totalmente favorável à libertação dos negros, acredita que, para isso ocorrer, seria preciso substituir os políticos que estavam no poder e criar um novo partido formado por "pingas": "deputados sem eira nem beira" e ministros que não tivesse onde cair mortos, já que, enquanto "os pingas" não governassem, teríamos sempre ministros ricos, deputados genros de fazendeiros e, por conseguinte, a continuação do elemento servil (Revista Ilustrada, 1878, n.º 99, p. 2). Além disso, procurou destacar a necessidade de abolir, sempre quando o assunto referido estava relacionado a vida cotidiana ou mesmo quando criticava por intermédio do humor um ou outro folhetinista da época. Há tanta coisa ruim que eu não ouso votar por esta ou aquela abolição. Temos a conferência da Glória, os artigos de fundo do Diário Filho, as patotas da Câmara Municipal, os folhetins do C. de L. Que sei eu? Temos até não assinantes da Revista Ilustrada. (DANTAS JÚNIOR, 1878, p. 2.)
Nota-se que a sátira de José Ribeiro Dantas Júnior, ao utilizar o vocábulo 'abolir' para ressaltar a necessidade de acabar como o que considerava ruim, pode remeter o leitor, ainda que implicitamente, à abolição dos negros.
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Ressaltamos que o apoio aos escravizados e a um sistema republicano de governo constitui propostas da Revista muito bem representadas pelo seu redator Dantas Júnior, mas que permaneceu para ele como um sonho a ser alcançado. Acometido por uma doença da espinha, José Ribeiro Dantas Júnior falece em Pelotas no Rio Grande do Sul em fevereiro de 1886, coincidentemente quase na mesma semana em que Otaviano Hudson, o repórter poeta da Gazeta de Notícias. Nota-se que Dantas Júnior não foi apenas um cronista de seu tempo; foi um homem da imprensa que inovou ao redigir textos humorísticos e caricatos de modo gracioso e aparentemente ingênuo, além de, principalmente, um crítico atuante que auxiliou Ângelo Agostini a consolidar a Revista Ilustrada como tribuna de discussões de temas importantes. Se não alcançou maior projeção foi porque o meio em que produziu talvez não fosse o mais adequado ao seu talento. "Em ambiente mais literário, a sutileza, as tendências modernas do seu espírito e a graça irresistível dos seus conceitos lhe teriam criado a reputação de um cronista de fama" (VERIM, 1886, p. 2). Entretanto, deve ser sempre lembrado pelo modo audacioso e, ao mesmo tempo, delicado com que conduzia a defesa dos ideais liberais, bem como pelo humor presente em suas crônicas, já que ele, assim como Ângelo Agostini, acreditava que Ridendo castigat mores (com o riso se castiga os costumes).
Referências: GOMBRICH, Ernst Hans. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação pictórica. [Trad.] Raul de Sá Barbosa. São Paulo: Martins Fontes, 1986. _____________________. História da arte. Rio de Janeiro: Zahar. 1979. LIMA, Herman. História da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1963. LOBATO, Monteiro. Idéias de Jeca Tatu. São Paulo: Brasiliense, 1946.
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Revista Ilustrada, revista semanal, literária e ilustrada dirigida por Ângelo Agostini. Rio de Janeiro: Tipografia de Paulo Hildebrandt. jan. de 1876 – fev. de 1898. RIBEIRO, Marcus Tadeu Daniel. Revista Ilustrada (1876-1898): síntese de uma época. Dissertação de Mestrado em História, IFCS-UFRJ. Rio de Janeiro, 1988. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1983. VERIM, Júlio. "Dantas Junior". In.: Revista Ilustrada, publicação semanal, literária e ilustrada dirigida por Ângelo Agostini. Rio de Janeiro: Tipografia de Paulo Hildebrandt. 1886, n.º 428, p. 2b.
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UM PANORAMA SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE TEXTOS LITERÁRIOS E A AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM EM PROCESSO DE LÍNGUA PORTUGUESA DA SECRETARIA DA EDUCAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO Berta Lúcia Tagliari Feba (PG UEM / SEE-SP)
Ponto de partida Este trabalho tem o intuito de verificar quais gêneros literários estão contemplados na Avaliação da Aprendizagem em Processo (AAP) de questões objetivas de Língua Portuguesa proposta pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo realizadas desde o segundo semestre do ano de 2011 para alunos de 6º ao 9º do Ensino Fundamental e de 1ª a 3ª série do Ensino Médio, perfazendo um total de 38 provas. Consequentemente, busca refletir sobre a forma como são propostas a leitura e a compreensão dos textos na perspectiva do letramento literário. Para tanto, além da introdução e da conclusão, o trabalho tem quatro partes essenciais: a primeira, na qual apresentamos o que compreendemos como letramento literário; a segunda, cujo objetivo é explicar em que consiste a Avaliação da Aprendizagem em Processo; a terceira que expõe o conceito de avaliação no contexto escolar; e a quarta seção elenca os gêneros textuais presentes nas sete edições da AAP, refletindo sobre a presença de textos literários nas provas e sobre a forma como são propostos para leitura.
Uma concepção de letramento literário Diferentes contextos sociocomunicativos podem indicar práticas e competências leitora e escritora que envolvam letramentos de uma dada comunidade, como letramento digital, matemático, literário, logo a multiplicidade de letramentos prevê constante
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aprendizagem para lidar com formas variadas de construção de sentido. Paulino (2008, p. 56) explica que letramentos são “diferenças entre práticas de leitura, derivadas de seus múltiplos objetivos, formas, objetos, na diversidade também de contextos e suportes em que vivemos”. O conceito de letramento, portanto, aplica-se à esfera dos estudos literários, uma vez que é possível pensar em práticas que envolvam a leitura da escrita literária. Assim, entendemos letramento literário como a) "o conjunto de práticas sociais que usam a escrita literária, compreendida como aquela cuja especificidade maior seria seu traço de ficcionalidade." (ZAPPONE, 2008, p. 53) e como b) “o processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos” (PAULINO; COSSON, 2009, p. 67), ou seja, letramento literário configura-se como uma prática social que faz uso da criação literária e desta depreende sentidos.
A Avaliação da Aprendizagem em Processo (AAP) A Avaliação da Aprendizagem em Processo (AAP) foi implantada pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo em 2011. Ela possui caráter diagnóstico e tem como principais objetivos: acompanhar a aprendizagem dos alunos de forma individual, demonstrando de modo quanti-qualitativo índices de rendimento a partir de habilidades já desenvolvidas e, consequentemente, de habilidades a serem alcançadas, bem como fornecer subsídios aos docentes de Ensino Fundamental e Médio para que possam criar estratégias e planos de ação a fim de modificar ocorrências de baixo desempenho, inclusive elaborando iniciativas de recuperação contínua da aprendizagem. A Avaliação focaliza Matemática e Língua Portuguesa, esta última subdividida em duas, uma prova composta de perguntas de múltipla escolha e outra de produção textual, todas a serem colocadas em prática em dias diferentes e corrigidas pelos docentes responsáveis dos referidos componentes curriculares (SÃO PAULO, 2014). A primeira edição da AAP ocorreu no segundo semestre de 2011 (2011-2) e de lá para cá foi aplicada no início de cada um dos dois semestres letivos, nos meses de março e agosto, chegando à sua 7ª edição no segundo período de 2014 (2014-2).
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A AAP atingiu alunos da rede regular do ensino estadual de 6º ano do Ensino Fundamental e 1ª série do Ensino Médio em 2011-2, sendo paulatinamente ampliada para as demais séries, contemplando 6º e 7º anos do Ensino Fundamental (EF) e 1ª e 2ª séries do Ensino Médio (EM) em 2012-1 e 2012-2, e 6º, 7º, 8º e 9º anos do EF e 1ª, 2ª e 3ª séries do EM nos semestres seguintes 2013-1, 2013-2 e 2014-1. Agora, em 2014-2, pela primeira vez estão incluídos na avaliação 2º, 3º, 4º e 5º anos do EF. No dia da aplicação, cada aluno recebe caderno de questões e gabarito. O professor, por sua vez, além deste material, recebe antecipadamente o caderno de "Comentários e Recomendações Pedagógicas" com a finalidade de preparar-se para o processo de levar a avaliação para os alunos e prosseguir com correção e análise de acertos e erros. Este encarte tem como propósito subsidiar o trabalho docente, uma vez que é composto de uma matriz de referência, na qual são apresentadas habilidades de leitura previstas em cada questão, um quadro sinóptico dividido por eixos que resguardam: procedimentos básicos em leitura; características decorrentes do gênero textual, como suporte onde o texto foi publicado, o receptor previsto e sua finalidade; a relação entre textos do mesmo gênero ou de gêneros diferentes; implicações referentes a coesão e coerência textual; exploração de recursos expressivos e efeitos de sentido; e elementos de ordem da variação linguística. Além da matriz de referência, o caderno consta de sugestões de atividades com vistas à intervenção pedagógica do professor mediante as principais dificuldades averiguadas pelas respostas dos alunos, ou seja, há no material comentários para auxiliar o docente a compreender o que pode ter levado os alunos a errarem a questão por meio da análise dos distratores e, consequentemente, ajudá-lo a realizar ações em sala de aula que proporcionem aos alunos o desenvolvimento das habilidades ainda não alcançadas. Para tanto, são feitos esclarecimentos teórico-metodológicos nos "Comentários e Recomendações Pedagógicas" quanto ao gênero textual usado na questão, são propostos novos exercícios e são indicadas bibliografias para serem estudadas. Devemos salientar a importância deste caderno, pois serve também como elemento de formação docente ao expor didaticamente o objetivo de cada questão, ao propiciar reflexão quanto ao uso de textos em sala de aula, ao gerar estudo e reflexão das necessidades de aprendizagem dos alunos e ao guiar na seleção de livros e artigos acerca do assunto abordado.
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As primeiras avaliações de Língua Portuguesa (57,9% do total) continham 15 questões, com exceção de uma delas aplicada em 2011-2, com 10, e outra em 2012-1, com 14, já as últimas avaliações propostas no primeiro e no segundo semestre de 2014 compõem-se de 10 questões (39,5%). Tais perguntas objetivas de múltipla escolha têm quatro alternativas e correspondem a habilidades estabelecidas pelo Currículo Oficial do Estado de São Paulo, habilidades que, por sua vez, estão também previstas em avaliações externas como a Prova Brasil, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP). Desse modo, o aluno vai tomando contato com este instrumento de avaliação, habituando-se a ler questões com alternativas e, de certo modo, pode apresentar-se mais familiarizado para realizar outros testes semelhantes a este, como concursos públicos, por exemplo, que fazem parte da realidade em que vive.
Avaliar a leitura De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998), a avaliação deve ser compreendida de modo dialógico, uma vez que se considera a relação entre os participantes do processo, ou seja, avalia-se tanto o aluno diante das expectativas de aprendizagem quanto a metodologia desenvolvida pelo docente. Assim, "avaliar a aprendizagem implica avaliar também o ensino oferecido" (p. 94). Nesse sentido, a AAP revela quantitativamente acertos e erros dos alunos de modo geral e também de modo individual, além de permitir uma análise qualitativa de quais habilidades ainda não estão plenamente desenvolvidas pelos alunos, possibilitando ao professor,
consequentemente,
reorganizar
sua
ação
de
maneira
a
intervir
pedagogicamente. Ao abordar a avaliação da leitura, Colomer e Camps (2002) começam expressando a função da avaliação, subdividida em duas premissas: a primeira, mais tradicional, relacionada à tentativa de aferir por meio de números/notas o que o aluno sabe ao final de um processo; já a segunda, mais atual, diz respeito à avaliação formativa que
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tem a dupla função de, por um lado, informar aos alunos como avançaram e em que ponto se encontram no processo de aquisição de conhecimentos e, por outro lado, dar subsídios aos professores para que possam ajustar suas programações e seus métodos a partir do que revelam os resultados da avaliação, se os objetivos previstos estão sendo alcançados ou não. (COLOMER; CAMPS, 2002, p. 172)
Essa segunda ideia sustenta a AAP, primeiramente porque se concebe a avaliação como uma forma de o próprio aluno monitorar quais são suas maiores dificuldades e suas potencialidades, bem como uma forma de alterar o foco da avaliação como indicativa do fracasso para a compreensão de momentos de aprendizagem diferentes de cada aluno, portanto, com objetivo de "orientar a tomada de decisões educativas ao revelar o campo de intervenção adequado para cada aluno" (COLOMER; CAMPS, 2002, p. 173). Temos de salientar que conhecer o acerto ou o erro de cada questão na AAP realizada pelo aluno não é o único modo de diagnosticar o que ele já sabe e o que ainda precisa aprender. Dizemos isto porque um aluno pode ter errado uma questão da AAP do 2º semestre que exigia o conhecimento de dada habilidade, mas acertado no 1º semestre. Como explicar tal fato? Ele não desaprendeu. Acontece que deve ser levado em consideração tanto o saber construído quanto o processo realizado, além do progresso permanente dos procedimentos em leitura. Pode estar em jogo uma mesma habilidade em leitura, mas em situações comunicativas diferentes e a partir de gêneros diversos, que exijam talvez mais concentração e competência para compreensão. Ademais, alguns textos, os literários, por exemplo, podem demandar estratégias de leitura como a inferência, mas o item investigado pode simplesmente prever a identificação de um elemento que está na superfície textual, bastando voltar o olhar para buscar uma informação explícita, o que não permite analisar o processo de compreensão do texto. Esses problemas parecem estar relacionados ao modo como as questões estão elaboradas e não à capacidade leitora do aluno. Sendo assim, a AAP deve ser vista como mais um mecanismo para se avaliar habilidades em leitura na escola, mas não o único.
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Os gêneros textuais identificados Foram analisadas 38 avaliações realizadas ao longo de sete semestres, de 2011-2 até 2014-21. Neste trabalho não estamos examinando as avaliações elaboradas para alunos de 2º ao 5º ano do Ensino Fundamental, sobretudo porque apresentam estrutura peculiar devido ao público pretendido e à focalização nos processos de alfabetização e aquisição da linguagem. Também não fazem parte do corpus as provas de produção textual, que requerem reflexão própria e singular acerca de concepções de linguagem e escrita. Com maior frequência aparecem avaliações para 6º ano do EF e 1ª série do EM, presentes deste a primeira edição da AAP, turmas que se instalam no início de duas etapas da formação educacional do aluno, convergindo para o compromisso diagnóstico da prova. O estudo revelou a existência de 41 gêneros textuais distintos inseridos nas avaliações. Os gêneros são compreendidos como formas de organização da linguagem que circulam socialmente e podem ser orais ou escritos, formais ou informais. Parece um número alto, mas demasiadamente baixo se considerarmos o montante de 494 questões elaboradas para as 38 avaliações, bem como se levarmos em conta a ampla gama de gêneros que circulam socialmente e estão à disposição dos leitores em várias situações comunicativas. A esse respeito, detectamos que em apenas uma avaliação não ocorre repetição de gênero textual (9º ano, 2013-1). Não estamos falando de elaborar mais de uma questão para um texto, mas levantamos a problemática de se fazer uso reiterado de um mesmo gênero textual na prova, ainda que para ela existam apenas dez questões, não sendo uma tarefa muito difícil selecionar textos de gêneros e domínios discursivos diferentes para cada uma.
Consta nas Referências a indicação de apenas um dos cadernos de "Comentários e Recomendações Pedagógicas" da AAP porque todos os materiais, tanto aquele utilizado pelo aluno quanto o que orienta o professor, estão disponíveis em formato pdf e podem ser consultados na plataforma da Secretaria Escolar Digital https://sed.educacao.sp.gov.br/ 1
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Os gêneros que aparecem com maior frequência nas provas são: poema (81,6%), tirinha (73,7%), notícia (71,1%), artigo de divulgação científica (71,1%), conto (55,3%), artigo de opinião (52,6%), trecho de livro (39,5%), cartaz (39,5%), letra de música (34,2%), crônica (34,2%), gráfico (28,9%). Na sequência estão: anúncio publicitário (26,3%), regra gramatical (23,7%), história em quadrinhos (15,8%), receita (15,8%), carta de leitor (15,8%), fábula (15,8%), charge (15,8%), capa de revista (13,2%), resenha (13,2%), texto instrucional (10,5%), manual de instruções (10,5%), página de diário / blog (7,9%), diálogo (7,9%), reportagem (7,9%), relato de experiência vivida (5,3%), verbete de dicionário / enciclopédia (5,3%), cartum (5,3%), folheto (5,3%), depoimento pessoal (5,3%) e frase feita (5,3%). Por fim, com apenas uma ocorrência: biografia, carta ao leitor, regra de jogo, rótulo de embalagem, carta de apresentação de um livro, entrevista, tela/pintura, anedota e placa de trânsito (2,6%). Há ainda textos sem função específica (13,2%), recortado de algum manual e inserido na avaliação de modo bastante artificial, servindo apenas para responder alguma questão. Nesses itens não se pretende levar à compreensão do gênero textual e sua funcionalidade, uma vez que lhe faltam referências das condições de produção do discurso, como o autor, o local onde fora publicado, o público alvo pretendido, o suporte/portador. Um dos textos tem como título "Padrões de beleza e classe social" (8º ano, 2014-1), está inserido em um livro didático2 e a questão tem como objetivo levar o aluno a identificar os fatos principais do texto na sequência que aparecem. Não há indicação de autoria, tampouco da data de publicação, assemelhando-se a um artigo de divulgação científica por mostrar saberes acerca da concepção de beleza em épocas diferentes, mas também pode se tratar de um artigo de opinião, com recorte de trecho introdutório e mais expositivo. Enfim, o fato de a prova indicar o livro didático de onde o texto em análise fora extraído não minimiza a superficialidade pretendida na leitura. Do conjunto de gêneros textuais identificados na AAP, constatamos somente 6 gêneros de ordem literária, ou seja, apenas 14,28% dos textos que compõem a AAP são de natureza artística associada à composição literária, quais sejam: poema (81,6%), conto (55,3%), trecho de livro (39,5%), letra de música (34,2%), crônica (34,2%) e 2
CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: linguagens. 8º ano. 5. ed. reform. São Paulo: Atual, 2009. p. 184
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fábula (15,8%). Para identificarmos os gêneros mais recorrentes nas AAPs, partimos das noções de lirismo, narratividade e dramaticidade cunhadas por Soares (2007), as quais se mantêm ao longo do tempo por meio de características decorrentes de estruturas textuais, contextos, ideologias, projeto estético, e, sobretudo, pelo trabalho com a linguagem. Embora os gêneros literários apareçam em pequena quantidade e variedade na AAP como um todo, como podemos explicar a grande incidência de poemas, ocupando o primeiro lugar da lista com o maior número de ocorrências? Poderíamos pensar que se trata de uma escolha voltada para o interesse de permitir acesso à linguagem literária. É, porém, mais provável que seja uma seleção feita por se relacionar a um texto pouco extenso, possível de ser reproduzido no material, bem como pela facilidade de encontrar uma variedade de poemas em páginas da internet, em materiais didáticos e em domínio público para reprodução. Ademais, é um dos gêneros que mais se repete nas provas, embora, contraditoriamente, seja tão menosprezado nas aulas de língua por diversas justificativas docentes, dentre elas, pela dificuldade de depreender os sentidos sugeridos que estão além da superfície textual. A fim de revelar o que encontramos na AAP de modo ordenado, elaboramos um quadro que consta de semestre e ano de realização da avaliação, série, título do poema utilizado e seu autor: ano / semestre 2011-2
série
poema
autor
6º EF
O menino rico O bicho Pássaro em vertical
Maria Alice do Nascimento Manuel Bandeira Libério Neves
O menino rico O bicho Pássaro em vertical Conjugação José Drumundana
Maria Alice do Nascimento Manuel Bandeira Libério Neves Afonso Romano de Sant'Anna Carlos Drummond de Andrade Alice Ruiz
Infância No mundo da lua Falando de livros
Carlos Drummond de Andrade Martins D'Alvarez Roseana Murray
1ª EM 6º EF 7º EF
2012-1
1ª EM 2ª EM
2012-2
6º EF 7º EF
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1ª EM
O bicho A rosa de Hiroxima Poesia cinética Finá de ato
2ª EM
6º EF 7º EF 8º EF 9º EF 1ª EM 2013-1
Noite morta Quadrilha Quadrilha da sujeira No mundo da lua Infância Falando de livros Biblioteca verde O doce Via Láctea (Soneto XIII) O bicho Soneto da separação A rosa de Hiroxima Poesia cinética Finá de ato
2ª EM
3ª EM
6º EF 7º EF 8º EF 9º EF 1ª EM 2013-2
2ª EM
3ª EM
2014-1
6º EF 7º EF 8º EF
Noite morta Quadrilha Quadrilha da sujeira Canção do vento e da minha vida Noite morta Clichetes
Manuel Bandeira Vinícius de Moraes Millôr Fernandes Adaptação de Gertrudes da Silva Jimenez Vargas Manuel Bandeira Carlos Drummond de Andrade Ricardo Azevedo Martins D'Alvarez Carlos Drummond de Andrade Roseana Murray Carlos Drummond de Andrade Carlos Drummond de Andrade Olavo Bilac Manuel Bandeira Vinícius de Moraes Vinícius de Moraes Millôr Fernandes Adaptação de Gertrudes da Silva Jimenez Vargas Manuel Bandeira Carlos Drummond de Andrade Ricardo Azevedo Manuel Bandeira Manuel Bandeira Philadelpho Menezes
Convite Os sons do mundo Língua A estrada Roda pião Volição O poeta da roça Soneto Poema de sete faces Com licença poética Eu e o sertão Verbo ser Poema de sete faces Balõezinhos Se achante
José Paulo Paes Elias José Manuel de Barros Manuel Bandeira Flora Figueiredo Edgar Braga Patativa do Assaré Álvares de Azevedo Carlos Drummond de Andrade Adélia Prado Patativa do Assaré Carlos Drummond de Andrade Carlos Drummond de Andrade Manuel Bandeira Manuel de Barros
Paraíso Para guardar a infância
José Paulo Paes Roseana Murray
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9º EF 1ª EM 2ª EM 3ª EM
2014-2
6º EF 7º EF 8º EF 9º EF 1ª EM 2ª EM 3ª EM
O médico Canção Arte que te tura Se achante
Roseana Murray Alphonsus de Guimaraens Paulo Leminski Manuel de Barros
Pescaria O jacaré e a lagartixa Senhor feudal Marília de Dirceu É ela! É ela! É ela! É ela! Perplexidades O anel de vidro
José Paulo Paes Alexandre Azevedo Oswald Andrade Tomás Antônio Gonzaga Álvares de Azevedo Ferreira Gullar Manuel Bandeira
Há muito que observarmos. Um dos itens refere-se à inexistência de título do poema a ser lido, como ocorre com “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade (2ª EM, 2013-2), “Para guardar a infância”, de Roseana Murray (8º EF, 20141), e “Arte que te tura”, de Paulo Leminski (3ª EM, 2014-1), dificultando ao aluno a realização de inferências acerca da compreensão global do texto e ainda negando-lhe a possibilidade de criar conceitos de autoria e de identificação do poema com seu autor. Notamos que nas primeiras avaliações ocorreu reprodução de provas de um semestre para outro aplicadas na mesma série. O poema “O bicho”, de Manuel Bandeira, aparece nas quatro primeiras provas da 1ª série do EM (2011-2, 2012-1, 20122 e 2013-1), com questão idêntica. Esta reincidência também é vista com “O menino rico”, de Nascimento (6º ano EF, 2011-2 e 2012-1), “Pássaro em vertical”, de Neves (1ª EM, 2011-2 e 2012-1). Compreendemos que a repetição das mesmas provas para as turmas de 6º ano do EF e 1ª série do EM deva-se à fase inicial da AAP e de certa forma de experimentação, para que pudesse ir criando uma identidade e se reformulando ao longo dos semestres. Mas ainda há agravantes quanto à inserção do poema de Bandeira nessas quatro primeiras provas (2012-1, 2012-2, 2013-1): o texto fora retirado de um site da internet (webartigos) e não da obra do autor. É preciso considerar que há diversas páginas na rede mantidas por pesquisadores, institutos de credibilidade que constam de arquivos de autores e podem servir de fonte de pesquisa, mas nem tudo o que nela está publicado é
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confiável. Por fim, não se trata de um poema de difícil acesso, uma vez que a obra de Bandeira é amplamente divulgada e facilmente encontrada em qualquer biblioteca. É preciso mencionar ainda que em uma das provas (1ª EM, 2013-1) não se respeita a separação original das estrofes. A duplicação de provas, portanto, permanece por 4 semestres, diferenciando-se apenas aquelas provas para as quais as séries foram gradativamente incluídas, como 8º e 9º ano EF e 3ª série EM. Aquelas aplicadas para 6º ano EF são exatamente iguais de 2012-2 e 2013-1, o que também ocorre com 7º ano EF, 1ª e 2ª série EM. Para além desses aspectos, temos a seleção limitada de autores e obras, o que já fora percebido por Soares (2003) ao analisar materiais pedagógicos. Bandeira e Drummond são os mais utilizados, seguidos de Roseana Murray, Vinícius de Moraes, José Paulo Paes, isto é, autores consagrados, representativos do cânone, elidindo os alunos de tomarem conhecimento de tantos outros. Os poemas também são vastamente aproveitados em livros didáticos que circulam na escola, por isso conhecidos, mas as atividades propostas para leitura nem sempre levam o aluno a compreender o literário. Na leitura do gênero como um todo na AAP, podemos citar a recorrência maior de poemas no EM (41 textos), praticamente o dobro vislumbrado no EF (22 textos), o que se deve à inclusão da Literatura como um componente curricular específico no EM e praticamente seu apagamento nos materiais didáticos e nas aulas de Língua Portuguesa no EF. Notamos também a reprodução de apenas um trecho de diversos poemas, direcionando a leitura para responder ao que se pede na questão, retirando-lhe também o título, como vemos em "Poema de sete faces", de Drummond (3ª série EM, 2013-2). Cada um dos gêneros _ conto, trecho de livro, letra de música, crônica, fábula _ merece um quadro sinóptico detalhado, como fizemos com a leitura do gênero poema, mas esta especificação não cabe neste artigo. Está aqui um caminho para análise da AAP que pode ser trilhado com maior minúcia em trabalhos acadêmicos mais extensos. Adiantamos, no entanto, que os itens problematizados pela inserção da poesia na AAP, como a seleção de autores e obras, a fragmentação, também são vistos ao se fazer uso dos demais gêneros literários levantados nesta pesquisa. Ademais, ao analisarmos as questões propostas para leitura dos textos, podemos perceber a incidência de uma
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vertente utilitária, frequentemente para se resolver um exercício de gramática normativa. A título de ilustração, teceremos alguns comentários acerca de aspectos observados quanto ao uso dos demais gêneros da escrita literária na AAP. Quando voltamos nosso olhar para os textos em prosa, verificamos muitos fragmentos, levando-nos a criar a categoria "trecho de livro" como sendo um gênero. Os recortes têm predominância nas provas do Ensino Médio, perfazendo 10 das 15 aparições na AAP, resultado consoante à realidade verificada no cotidiano escolar, na qual se faz uso constante de materiais didáticos compostos por fragmentos de textos. Como exemplo podemos citar a proposta de leitura para o conto "Uns braços", de Machado de Assis (1ª série EM, 2014-2). São retirados dois parágrafos do meio do conto, sem anunciar exposição, tampouco sem se revelar o desfecho que poderiam levar o aluno a fazer inferências e compreender a história e a especificidade do literário. Além disso, propõe-se em uma das questões de análise a identificação no trecho de verbos no pretérito imperfeito, fazendo uso, portanto, da linguagem estética como um pretexto para, isoladamente, responder a uma propositura gramatical, sem se depreender o efeito de sentido gerado pelo uso de tal recurso linguístico no texto. A mesma reflexão pode ser feita com fragmento de O cortiço, de Aluísio Azevedo (3ª série EM, 2014-2), para o qual se solicita identificar verbo na voz passiva. Colomer e Camps (2002) explicam a necessidade de dar acesso a textos completos, evitando ao máximo a fragmentação e sua descontextualização da circunstância real de comunicação para que o leitor possa fazer uso de estratégias habituais de construção de sentidos durante a leitura. A dificuldade de compreensão pode ser proveniente da falta de orientação do leitor diante do texto inserido na avaliação que, por sua vez, não lhe fornece pistas, tampouco possibilita fazer uso de mecanismos de ordem contextual comumente utilizados em situações legítimas de leitura. Tais fragmentos são chamados por Soares (2003) de pseudotextos, ou seja, excertos desprovidos de textualidade, logo, incoerentes, ora adaptados do original, criados pelo próprio autor do material didático ou ainda feitos por meio de um recorte desarmônico do todo e sem lógica. A leitura desses pseudotextos pode levar o aluno a
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construir uma concepção equivocada do que seja um texto, à medida que esses têm lhe servido como exemplo. A fábula, por sua vez, caracteriza-se por ser uma narrativa curta, permeada por personagens não muito complexas que representam o homem em suas virtudes, mas também em seus defeitos. O gênero é lido com frequência nas primeiras séries do EF e tem presença predominante nas provas de 6º ano, com 5 das 6 ocorrências, justificando seu uso devido à familiaridade dos alunos com o texto nesta passagem de uma fase a outra do ensino. Por fim, uma consideração acerca da necessidade de se ofertar ao aluno a leitura de variados gêneros textuais. Embora seja importante possibilitar-lhe a o contato com diferentes gêneros que circulam socialmente em múltiplas situações comunicativas, a fim de garantir letramento, há predomínio na AAP de textos feitos com linguagem referencial em detrimento daqueles que lidam com a linguagem literária. A esse respeito, Rangel (2007) já adiantou que a relação entre literatura e livro didático não tem sido muito fácil devido ao imperativo de se ofertar aos alunos gêneros e tipos textuais diversificados, o que acarreta em uma despreocupação com o texto literário nas aulas de língua materna. Nesse sentido, se as avaliações externas são balizadas por habilidades em leitura que preveem sobremaneira processos cognitivos e estratégias utilizadas no ato empírico de ler e de compreender o processamento textual, não é de se estranhar que os materiais didáticos e as aulas de língua portuguesa atribuam pouca importância à literatura em benefício do acesso a diversos gêneros e tipos textuais. Reconhecemos o valor do conhecimento de muitos textos que estão na nossa realidade, mas não podemos nos negar ao debate da escolha ideológica dos textos, pois se trata de uma posição política permitir a experiência da leitura do literário. Cosson (2014) também salienta dois pontos importantes a esse respeito. Não se trata de negar essa variedade, mas de pensar que existem textos mais simples e outros mais complexos a serem lidos e que a leitura de um poema, embora seja um texto geralmente pouco extenso, como os presentes na AAP, pode demandar mais tempo para compreensão do que o tempo dedicado para ler uma receita. Outra ressalva faz-se para o trabalho metodológico desenvolvido com os textos, neste caso, relativas às questões propostas na avaliação, que nem sempre consideram a diversidade na exploração dos
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recursos intrínsecos a cada gênero. Tal estudo também não é restrito às aulas de língua materna, uma vez que todos os componentes curriculares fazem uso de textos para abordar seus conteúdos e desenvolver habilidades.
Avaliação da leitura: ponto de chegada? O levantamento circunstanciado dos 41 gêneros textuais presentes nas 38 provas aplicadas nas sete edições da Avaliação da Aprendizagem em Processo proposta pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo identificou seis gêneros da esfera literária. Ainda há muito que se explorar diante dos dados encontrados, mas temos aqui um panorama sobre as relações entre a AAP e os textos literários nela presentes. Por isso, conjecturar a avaliação da leitura não é ponto de chegada dos processos de ensinoaprendizagem como uma fórmula para medir e pontuar retamente o nível de compreensão leitora de uma pessoa, mas sim um modo de refletir sobre ações docentes de intervenção, necessárias para o desenvolvimento da aprendizagem. Como expomos, o resultado aferido na AAP, que diz respeito ao acerto ou ao erro dos alunos, ou seja, às habilidades em leitura já desenvolvidas e àquelas ainda por adquirir, não pode servir como forma de sancionar ou rotular, mas como um meio de o professor ajustar o plano de ensino e de pensar em ações que levem à construção de conhecimentos por parte dos alunos e efetiva aprendizagem. Por esse motivo, estudar letramento auxilia-nos a olhar para práticas de leitura, sobretudo para a leitura da escrita literária como uma opção teórica e política (HANSEN, 2005, p. 44). A leitura da literatura precisa estar intimamente relacionada com o cotidiano, enfim, com a vida, para tornar-se de fato letramento, a fim de levar o aluno a fazer uso desta leitura especializada não somente em avaliações propostas pela escola, mas fora desse contexto e em diferentes situações. Assim, apesar de a leitura ser o centro do debate dos objetivos pedagógicos da escola atual, constatamos que a leitura da literatura, como um modo particular de ler e de constituição de uma experiência subjetiva, está ficando para segundo plano até mesmo em avaliações.
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Referências BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quatro ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC / SEF, 1998. COLOMER, Teresa; CAMPS, Anna. Ensinar a ler, ensinar a compreender. Tradução Fátima Murad. Porto Alegre: ArtMed, 2002. COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014. HANSEN, João Adolfo. Reorientações no campo da leitura literária. In: ABREU, Márcia. (Org). Cultura letrada no Brasil: objetos e práticas. Campinas: Mercado de Letras, 2005. (p. 13-44) PAULINO, Graça. Algumas especificidades da leitura literária. In: PAIVA, Aparecida; MARTINS, Aracy; PAULINO, Graça; VERSIANI, Zélia. (Orgs.) Leituras literárias: discursos transitivos. Belo Horizonte: Ceale; Autêntica, 2008. (Literatura e Educação) PAULINO, Graça; COSSON, Rildo. Letramento literário: para viver a literatura dentro e fora da escola. In: ZILBERMAN, Regina; RÖSING, Tania M. K. Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009. (p. 61-79) RANGEL, Egon de Oliveira. Letramento literário e livro didático de Língua Portuguesa: “Os amores difíceis”. In: PAIVA, A.; MARTINS, A.; PAULINO, G. VERSIANI, Z. Literatura e letramento: espaços, suportes e interfaces. 2. reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p. 127-145 SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Coordenadoria de Gestão da Educação Básica. Avaliação da Aprendizagem em Processo. Comentários e recomendações pedagógicas. Subsídios para o Professor de Língua Portuguesa. 6º ano / 2º semestre. São Paulo: SE, 2014. 40 p. SOARES, Angélica. Gêneros literários. 7. ed. São Paulo: Ática, 2007. (Princípios, 166). SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA, A. A.; BRANDÃO, E. M. B.; MACHADO, M. Z. Escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantil e juvenil. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p. 17 - 48 ZAPPONE, Mirian Hisae Yaegashi. Modelos de letramento literário e ensino da literatura: problemas e perspectivas. Revista Teoria e Prática da Educação, Maringá, v.11, n.1, p. 49-60, jan./abr. 2008.
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PARA ALÉM DO ESPAÇO DE ENSINO/APRENDIZAGEM: AS SALAS DE AULA COMO LUGAR DE CONSTITUIÇÃO IDENTITÁRIA
Bianca Alves Lehmann (UFPel)1
Este artigo abordará uma síntese da pesquisa em andamento no Mestrado em Letras da UFPel cujo tema é a análise de discursos de acadêmicos do primeiro semestre do curso de Bacharelado em Letras – habilitação Redação e Revisão de Textos e habilitação Tradução (Inglês/Português e Espanhol/Português) com o objetivo de apresentar as posições de sujeito ocupadas e as identidades construídas pelos discentes a partir dos discursos proferidos em sala de aula. Tais discursos, que foram gravados em áudio, são referentes à atividade Aulas de Oratória e serão analisados de acordo com o campo dos Estudos Culturais (EC) e da Linguística Aplicada Transdisciplinar (LA Transdisciplinar). Vale ressaltar que neste artigo será apresentado apenas o discurso de um colaborador em virtude da limitação de páginas. Os dados da pesquisa foram coletados na disciplina em que cumpri o estágio de docência do Mestrado, Leitura e Produção Textual I – ministrada pela Prof.ª Dr.ª Letícia Freitas –, ofertada para os primeiros semestres dos cursos de Bacharelado em Letras da UFPel. Dentre as avaliações, conforme o Plano de Ensino, a atividade Aulas de Oratória objetivava que os alunos apresentassem um tema livre, de escolha pessoal, sem aporte de mídias, como apresentação via datashow, em um período de cinco a dez minutos2. A cada aula, ocorriam três apresentações, anteriormente agendadas, em que Aluna do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPel, nível Mestrado, na área de Estudos da Linguagem - linha de pesquisa Ensino e Aprendizagem de Línguas. Bacharel em Letras - Habilitação em Redação e Revisão de Textos pela Universidade Federal de Pelotas (2012). Licenciada em Letras Habilitação em Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Pelotas (2011). Aluna do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPel, nível Mestrado, na área de Estudos da Linguagem - linha de pesquisa Ensino e Aprendizagem de Línguas. 2 Além disso, as Aulas de Oratória propiciavam um trabalho específico voltado à modalidade oral e a seus contextos de fala – nessa atividade, era abordado o gênero oral formal. Pode-se considerar que em muitas aulas de Língua Portuguesa (LP), e também em cursos de graduação, a língua falada não é abordada com maior abrangência, pois acredita-se que todo falante já domina os usos da modalidade oral mesmo antes da alfabetização não necessitando, assim, de um estudo particular. É necessário que haja tal estudo, pois, conforme argumenta Marcuschi (1997, p.4), “(...) tanto quanto a escrita, a fala tem sua 1
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não era exigida a entrega de material escrito tanto para a professora quanto para os colegas. Ademais, a proposta era a de que os alunos não lessem nenhum material, embora muitos tenham utilizado uma espécie de esquema/roteiro apenas para guiar a oratória. Durante cada apresentação, foram considerados quatro aspectos para a avaliação: abordagem do tema, adequação vocabular, postura e tempo de apresentação. É importante ressaltar que houve, previamente às apresentações, orientação em relação à atividade, ou seja, os alunos foram informados sobre os itens considerados para a avaliação, bem como puderam esclarecer dúvidas e discutir a atividade em questão. Além disso, após cada apresentação, dez minutos eram dedicados para discussão de todo grupo sobre o tema apresentado. A metodologia de pesquisa dos EC não parte de algo pressuposto para, então, procurar/investigar uma validação, uma hipótese a ser confirmada. Do ponto de vista do método, não é o instrumento em si que determinará a pesquisa, pois não há generalizações. É possível averiguar, entretanto, as recorrências discursivas, as práticas discursivas e não discursivas que circulam na sociedade e que contribuem para a construção das identidades sociais e, ainda, para a ocupação de determinadas posições de sujeito. Além disso, este estudo tem um caráter qualitativo, uma vez que as pesquisas realizadas no campo dos EC e da LA Transdisciplinar não possuem uma metodologia pré-definida e, ademais, têm como foco os materiais culturais. De acordo com Escosteguy (2001, p.157), “os Estudos Culturais não configuram uma ‘disciplina’, mas uma área onde diferentes disciplinas interatuam, visando ao estudo de aspectos culturais da sociedade”. A metodologia abordada nos EC utiliza outras formas para questionar e, portanto, surge do diálogo entre pesquisas e estudos realizados e tem interesse nos sentidos e nos valores vivenciados pelos sujeitos sociais. As provocações da pósmodernidade e, consequentemente, dos EC e da LA Transdisciplinar não pretendem constituir uma nova teoria, e sim analisar o quanto as pessoas vivem as multiplicidades. A experiência e a narrativa de vida de cada sujeito são extremamente importantes na análise desta pesquisa, uma vez que “as informações e descrições (…) própria maneira de organizar, desenvolver e transmitir informações, o que permite que se a tome como fenômeno específico”. Ainda Segundo o autor, é primordial desenvolver atividades específicas voltadas à oralidade, pois existem diferentes circunstâncias de fala, nas quais o falante tem que se adequar à situação e às características do interlocutor. Outros exemplos de atividades focadas à oralidade, a serem desenvolvidas em sala de aula, podem ser consultadas em RAMOS, 1999.
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ajudam a compreender o funcionamento e as dinâmicas internas” do objeto social (BERTAUX, 2010, p.60). Por esse viés, conforme Marconi & Lakatos (2011, p. 19), os procedimentos utilizados para a coleta de dados desta pesquisa enquadram-se em coleta documental, entrevista e história de vida e, ainda conforme sinalizam os autores, esta pesquisa se enquadra na classificação descritiva, uma vez que se baseia na utilização de registros e na análise e interpretação de dados atuais. Um dos objetivos fulcrais deste estudo é entender a sala de aula, o espaço de formação e de “práticas educativas, como um lugar privilegiado onde se produzem, se interpretam e se mediam histórias” (LARROSA, 1996, p.461) – histórias que constituem identitariamente os indivíduos. Diversos são os lugares onde se produzem discursos e narrativas (em família ou entre amigos, por exemplo). Contudo, a sala de aula é um espaço privilegiado, pois além construir conhecimento para os sujeitos, em determinada formação (seja fundamental, secundária ou superior), possibilita que haja diálogo e trocas entre pessoas de diversas culturas, de diversas e diferentes esferas sociais e econômicas. Além disso, em sala de aula podem ser abordados tópicos que propiciam as narrativas dos sujeitos – como o caso das Aulas de Oratória. Por meio dos discursos, das narrativas e das trocas os sujeitos se constituem e ocupam posições de sujeito. Tendo como base teórica o campo dos EC é possível analisar as representações e as questões identitárias a partir dos discursos proferidos, tendo em vista que linguagem é entendida como constituidora de identidades. Sendo assim, é possível agregar a este estudo uma perspectiva teórica que entenda a linguagem do ponto de vista político da educação, “a favor de uma abordagem crítica (...) sensível às relações sociais” (PENNYCOOK, 2006, p.25). Dessa maneira, a partir da virada linguística, a LA Transdisciplinar, dentre outros diversos campos do conhecimento, parte da concepção de que é possível estabelecer rupturas nas bases teóricas para entender que a linguagem é capaz de construir significados. A LA Transgressiva vai ao encontro das questões identitárias, uma vez que considera o sujeito social como sendo construído pelos sentidos produzidos a partir dos usos e implicações sociais, políticas e econômicas. Isso significa dizer que os significados não são dados no mundo, isto é, não existe antes do uso da linguagem; os
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significados, inclusive sobre quem somos, são produzidos nas práticas discursivas em que os sujeitos atuam – a linguagem constrói o mundo e os sujeitos. Nas práticas discursivas, os significados sobre quem somos são gerados, são construídos e reconstruídos. Moita-Lopes (2001, p.59) ressalta que, a partir dessa visão da linguagem, “o discurso é caracterizado por ser constitutivo da vida social” e isso implica na compreensão de que “o discurso é a ação através da qual os participantes discursivos se constroem, constroem os outros e, portanto, constituem o mundo social”. Dessa maneira, percebe-se que a significação não é anterior às práticas discursivas, pois há um entrelaçamento entre tais práticas, culturas e conhecimentos. De acordo com o exposto, a LA Transgressiva entende a linguagem da mesma forma como o defendido pelos EC, conforme a virada linguística. A virada linguística, por sua vez, está intimamente ligada à virada cultural e, dessa maneira, é possível articular essa teoria à ótica dos EC. Os EC são constituídos de diferentes ideias, métodos e teorias que giram em torno de um eixo central: a preocupação com o uso da cultura pelo povo. De acordo com essa visão, o povo é visto como receptor, mas também como produtor da cultura, não sendo totalmente submisso à esfera econômica. Em síntese, os EC surgiram em virtude de um processo de mudança, advindo de certos grupos sociais, cujo escopo era apropriar-se “de instrumentais, de ferramentas conceituais, de saberes que emergissem de leituras do mundo, repudiando aqueles que se interpõem, ao longo dos séculos, aos anseios por uma cultura pautada por oportunidades democráticas, assentada na educação de livre acesso” (COSTA, SILVEIRA & SOMMER, 2003, p.37). Em virtude desses deslocamentos gerados na concepção de cultura, ocorreu a chamada virada cultural que, segundo Hall (1997, p.27), “refere-se a uma abordagem da análise social contemporânea que passou a ver a cultura como uma condição constitutiva da vida social, ao invés de uma variável dependente”. Atreladas aos EC e à virada cultural estão as noções de discurso e de texto, tendo em vista que a linguagem tem um papel importante nessa visão pelo caráter constitutivo, ativo e produtivo em relação ao mundo e às identidades. Dessa forma, Hall (1997) explana sobre o conceito3 Faço tal grifo para esclarecer que não se trata de um conceito único, fechado e correto. O intuito não é descartar, ou julgar como errônea, a forma como a linguagem era entendida anterior à virada linguística ou, ainda, afirmar que a concepção aqui abordada é a verdadeira. Entendo que a linguagem, a partir desse
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de linguagem de acordo com o preconizado pela virada cultural/virada linguística: percebe-se que a linguagem tem um caráter privilegiado em que estão presentes a construção de significado e a constituição dos fatos; caráter esse que não apenas relata os significados e/ou fatos. Por conseguinte, a linguagem tem sua compreensão ampliada, já que a maneira como vivemos e a razão daquilo que somos – nossas identidades – são compreendidas como práticas discursivas (HALL, 1997). Além disso, Popkewitz (1994) salienta que, quando usamos a linguagem, é possível que quem esteja falando, de fato, seja a linguagem que nos foi dada por meio de formações sociais, e não nós mesmos – isto é, utilizamos discursos produzidos anteriormente para constituir o mundo e a nós. As práticas de representação são criadas linguisticamente, por meio de atos linguísticos, em que os sistemas de representação (a linguagem) criam e constituem os significados e, além disso, atingem os sujeitos e constituem narrativas que se impõem como verdadeiras – o real só existe em função daquilo que se fala sobre ele. Hall (1997) enfatiza ainda que a formação das nossas identidades se dá culturalmente e por meio das representações. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas”. Deve-se considerar, desse modo, que, a partir dos discursos proferidos, estão sendo constituídas as identidades de cada sujeito. Para Hall (2011, pp.12-13), “a identidade torna-se uma celebração móvel: formada transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Diante do exposto, reforço que a sala de aula como espaço de formação educativa, onde histórias são produzidas, interpretadas e mediadas, possui um caráter privilegiado, já que a linguagem constitui identidades e produz significados para os sujeitos.
marco, tem sua noção ampliada sem que seja una, pois não há uma verdade absoluta. A contribuição de Foucault (1970/1980) para a virada cultural esclarece essa questão: os Estudos Culturais não pretendem “(...) substituir um tipo de reducionismo (idealismo) por outro (materialismo), mas forçar-nos a repensar radicalmente a centralidade do cultural e a articulação entre os fatores materiais e culturais ou simbólicos na análise social. Este é o ponto de referência intelectual a partir do qual os estudos culturais se lançaram” (HALL, 1997, p.32). Não se trata de substituir uma verdade por outra, e sim analisar todas as verdades e, sobretudo, a produção da verdade que é dissipada por meio dos discursos.
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Análise das Oratórias Apresento, neste primeiro momento, a contextualização do discurso do colaborador Joey4: no início de sua fala, Joey mencionou que abordaria o tema feminismo e que faria uma análise cronológica dos fatos mais importantes do feminismo. Entre a contextualização histórica sobre o tema e a apresentação de alguns fatos datados, Joey relatou sobre os protestos feministas, quais eram seus objetivos e de que maneira tais protestos eram articulados. Além disso, Joey teve a preocupação em apresentar a logística de como eram arquitetados os projetos feministas: JOEY: […] Antes de se fazer um protesto de... Dessas mulheres, homens também, tem homens feministas, isso é bom, antes de ir pra rua, ir pra uma passeata, antes de fazer uma reivindicação se faz a ata, e tem toda uma documentação pra oficializar aquilo que se está pedindo, né? […] De acordo com esse trecho, percebe-se o conhecimento de Joey acerca dos procedimentos/métodos previamente realizados ao movimento de passeata: segundo ele, antes de se fazer a reivindicação, é preciso redigir uma ata que, por sua vez, é o documento que afirma a legitimidade dos pedidos que serão pautados em uma manifestação. Além disso, esclarece que é necessário haver “toda uma documentação para oficializar” tanto o que se está pedindo quanto o próprio movimento em si. Dessa forma, ao trazer essas informações para a turma, Joey marca a sua identidade de sujeito engajado politicamente que, além de se fazer presente nas manifestações/protestos, participa das articulações e, sobretudo, da organização de tais movimentos. Chamo a atenção para os comentários de Joey na apresentação de oratória do colega Marky, que abordou o tema protestos e manifestações no Brasil. Em sua oratória, Marky criticou as ações de alguns protestantes, pois, na sua opinião, muitos jovens foram às ruas sem saber o real motivo dos protestos e, para ele, as manifestações sem causa não acrescentavam ideais ao protesto. Já Joey defende que as pessoas devem Os nomes Joey e Marky são fictícios para manter o sigilo acordado entre pesquisadora/colaboradores conforme expresso no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (autorização de participação como colaborador na pesquisa). 4
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comparecer às reuniões anteriores aos protestos para explicitar opiniões, pontos de vista e de interesse – retomando, assim, seu discurso sobre a importância das reivindicações e do planejamento de tais reivindicações. Mais uma vez, Joey marca a sua identidade de sujeito engajado politicamente, pois ratifica a importância de participação em reuniões cujo objetivo é articular e promover as manifestações. Joey mostra-se como um sujeito ativo, que se faz presente em assembleias e em movimentos de protesto. Diante das opiniões divergentes, naquele momento travou-se uma discussão produtiva em relação aos valores de cada um dos colaboradores (Joey e Marky). Durante toda sua oratória, ao narrar os fatos históricos do feminismo e o movimento feminista, Joey marca a posição de um sujeito que se interessa pelas lutas (no caso, de gênero). Já nos comentários feitos na oratória de Marky, Joey assume a posição de um sujeito que vai à luta e que apoia os movimentos de interesses coletivos e que, além disso, participa efetivamente da organização desses movimentos. Seguem abaixo os excertos: JOEY: É... Eu discordo totalmente que é sem causa. [...] Acho que tem que vir pro protesto, tem que vir pra rua, não acho que nós vamos ficar na rua até as coisas mudarem, sabe. [...] Então eu sou a favor de que as pessoas sim busquem saber o que é esquerda e direita, o que é política, conscientizar... Mas eu sou totalmente a favor que elas venham com as suas reivindicações e que vão principalmente nas assembleias dos atos iniciais, que é a reunião das pessoas pra montar uma pauta, onde todo mundo fala: “Ah, minha pauta é essa, eu sou contra isso...” E ali é votada qual pauta que vai para a reivindicação, o que que vai ter no protesto, então há essa orientação. [...] Ao referir-se “às assembleias dos atos iniciais”, Joey explicita a importância da participação da população em geral nas reuniões que definem as pautas dos protestos. Claramente, Joey marca a posição identitária de um sujeito engajado politicamente, já que demonstra conhecimento e, além disso, interesse pelas orientações dadas durante tais reuniões. Ainda, considera importante que cada indivíduo possa levantar sua pauta (sua reivindicação particular) nessas reuniões, pois, assim, conforme votação, determinado assunto até então de interesse particular pode tornar-se de interesse coletivo. A cada comentário feito por Joey é marcada a sua identidade – que, por sua
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vez, é criada linguisticamente – conforme argumenta Silva (2000, p.77): “é apenas por meio de atos de fala que instituímos a identidade e a diferença como tais”. Adiante, no debate que foi gerado pelos alunos, Joey salienta que é a favor dos chamados coxinhas do movimento. Para esclarecer: o termo coxinha começou a ser utilizado com intuito de nomear aqueles cidadãos de classe média que utilizam falas corporativistas ou discursos de revolta, em geral sem causa aparente, massificados em redes sociais. Ainda, refere-se àqueles sujeitos que, embora participem de atos e movimentos de reivindicação, aderem às manifestações sem um propósito específico, com reclamações sem sentido e sem embasamento político (são considerados, também, como despolitizados e antidemocráticos, influenciados pela mídia e pelos discursos unilaterais). Por outro lado, os coxinhas se intitulam como cidadãos que se sentem no direito de manifestar contra qualquer motivo reformista, mesmo em movimentos específicos; por exemplo, lutar contra a corrupção dentro do Movimento do Passe Livre (MPL). Feitas essas considerações, segue o excerto das falas de Joey e Marky: JOEY: E eu sou totalmente a favor do que eles estão chamando de coxinização, tipo de coxinha do movimento. Eu sou totalmente a favor disso. Eu só acho que tinha que criar outro movimento, ele não pode entrar no Passe Livre e reivindicar (?), corrupção, que não tem nada a ver. O Passe Livre tem a ver com transporte, então talvez seja isso que você tá tentando dizer. MARKY: Na verdade o que eu tô criticando é exatamente a coxinização, digamos, entre aspas do movimento. O fato é que tem gente indo pra lá lutar por coisas que eles não entendem, por coisas que eles nem sabem exatamente o que é [...] Joey articula sua fala de maneira a contrapor o exposto por Marky; há, nesse episódio, discordância de opiniões em relação ao que leva às manifestações (protestos pelo Brasil). Tanto em sua oratória quanto nos comentários feitos nas oratórias dos colegas, Joey defende certas posições e, dessa maneira, se constitui identitariamente ocupando a posição de um sujeito que assume determinada visão política, que deseja ver uma mudança no contexto político e social do país. Além disso, Joey entende que os coxinhas têm muito a agregar às manifestações, visto que considera relevante “as pessoas lutarem do que é delas o direito” – considera importante que todas as pessoas
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tenham o direito de se expressar de alguma maneira e de trazer à tona as suas reivindicações. Entretanto, Joey acredita que os coxinhas deveriam criar outro movimento para fazer tais protestos, e não se integrarem aos já denominados e de causas específicas. Quer dizer: Joey entende que, a partir do momento em que as pessoas vão às ruas e participam de reuniões, estão exercendo o direito de cidadão de lutar por uma causa justa. A posição de Joey frente à coxinização do movimento marca a sua posição de um sujeito político e engajado, uma vez que não concorda com a invasão dos coxinhas nos protestos específicos, mas defende o direito de participação e de protesto. Como visto anteriormente, a linguagem possui um caráter constitutivo, ativo e produtivo em relação ao mundo e às identidades; “(...) a identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas” (SILVA, 2000, p.97). Desse modo, o discurso de Joey constitui a sua identidade de sujeito engajado politicamente, que se posiciona frente às questões políticas e sociais. Em três episódios diferentes (a própria apresentação e duas apresentações de colegas), Joey ocupa determinadas posições de sujeito e marca as suas identidades, sempre reforçando seu ponto de vista e o seu discurso. De acordo com Silva (2000, p. 94), a eficácia produtiva dos enunciados performativos ligados à identidade depende de sua incessante repetição. Em termos da produção da identidade, a ocorrência de uma única sentença desse tipo não teria nenhum efeito importante. É de sua repetição e, sobretudo, da possibilidade de sua repetição, que vem a força que um ato linguístico desse tipo tem no processo de produção de identidade (Grifo do autor).
Desse modo, a repetição de certos valores e de certas verdades enfatiza o posicionamento identitário assumido por Joey em um mesmo contexto de comunicação, embora com temas variados. Em outras Aulas de Oratória, aqui não evidenciadas, Joey se mostrou participante nas discussões – são os casos das demais oratórias que serão analisadas posteriormente.
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Considerações finais Foi possível iniciar o trabalho de mapear os posicionamentos identitários assumidos pelo sujeito identificado como engajado politicamente – graças aos discursos realizados nas Aulas de Oratória e, sobremaneira, aos comentários após cada apresentação. Importante para a análise foi o recorte das falas dos acadêmicos, especificamente de Joey, presentes nas oratórias dos colegas: mais do que se constituir identitariamente no momento dedicado à apresentação individual, a construção e a ocupação das posições de sujeitos deu-se durante os comentários realizados nas Aulas de Oratória dos colegas. Esse fato corrobora a questão de entender a sala de aula como um espaço em que ocorrem, além da formação acadêmica e do aprendizado, a construção e a reconstrução das identidades. Do mesmo modo, nesse espaço social é possível contar e recontar as histórias e as narrativas que constituem os sujeitos. Mesmo que com participação recatada, todos os alunos, de certa maneira, ao comentarem os temas apresentados pelos colegas, posicionaram-se em algum sentido e ocuparam determinadas posições. Por ora, pode-se concluir que os discursos aqui mostrados evidenciam as posições de sujeito ocupadas pelos colaboradores, bem como as marcas identitárias construídas, conforme as teorias dos das teorias dos EC e da LA Transdisciplinar. Referências BERTAUX, Daniel. Narrativas de vida: a pesquisa e seus métodos. São Paulo/Natal: Editora da UFRN, 2010. pp.47-117. COSTA, Marisa Vorraber; SILVEIRA, Rosa Maria Hessel, & SOMMER, Luis Henrique Estudos Culturais, Educação e Pedagogia. Revista Brasileira de Educação. n.23, pp.36-61. maio/ago., 2003.
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O LUGAR DA LITERATURA NO LIVRO DIDÁTICO: REFLEXÕES E PROPOSTAS SOBRE A ABORDAGEM DO TEXTO LITERÁRIO PELO LIVRO DIDÁTICO DO 9º ANO Bougleux Bomjardim da Silva Carmo1 Eliana Costa Sausmickt2
Ao que parece não há uma linearidade e/ou continuidade em relação à abordagem da Literatura na Educação Básica. A impressão é que em dado momento se construiu um abismo entre os primeiros anos do Ensino Fundamental e o Ensino Médio. Contudo, Literatura já foi considerada a principal e a mais nobre expressão da linguagem. Regina Zilberman (2010) trata da importância da Literatura na Antiguidade, seu cunho e função moralizante, porém enquanto disciplina não tinha a intenção de formar leitores. Com o passar do tempo, perdeu-se o status de relevância para se tornar um apêndice no ensino da Língua Portuguesa. Segundo essa autora, tal fato deu-se com a substituição do estudo da língua e da literatura pela prática com textos. É claro que não deve soar como total prejuízo ao ensino, mas o fato é que a Literatura foi colocada em plano dispensável e marginalizada no contexto escolar. Zilberman (2010) afirma ainda que muitos profissionais e estudiosos da área de Letras têm considerado sem razão a permanência da Literatura, no século XXI, apenas por questão de tradição curricular. Em contrapartida, Cândido (2004) apresenta a Literatura como um direito, um bem fundamental que possui um papel social de humanizar, de promover a superação do caos interno humano por meio da coerência mental pressuposta e sugerida pelo texto literário em si. Essa função permite ao sujeito perceber o outro, refletir e adquirir saberes, afinar emoções, bem como a capacidade de penetrar nos problemas da vida e na complexidade do mundo e dos seres (CÂNDIDO, 2004). Em concordância com o referido autor, cremos que o aluno não deve ser privado desse bem cultural, tendo em vista tantos benefícios. É possível considerar que o ensino da 1
Mestrando bolsista pela CAPES / UAB no Mestrado Profissional em Letras, ProfLetras / UESC. E-mail: [email protected]. Mestranda bolsista pela CAPES / UAB no Mestrado Profissional em Letras, ProfLetras / UESC. E-mail: [email protected]. 2
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Literatura na Educação Básica pode interferir positivamente no desempenho linguístico dos sujeitos, tendo a escola o dever de promover o contato entre o texto e os discentes. No que concerne ao ensino, Cosson (2012, p.12) sugere que a sistematização didático-pedagógica estabeleça um processo de “escolarizar a literatura”, com fins a diminuir o fosso existente entre os textos literários e seus pretensos leitores. Tal articulação pressupõe a ampliação da concepção de letramento literário, no sentido de que se deva possibilitar a apropriação da linguagem estética pelos alunos para a construção de sentidos diversos a partir dela. Neste contexto, o livro didático (doravante LD) é o principal instrumento pedagógico utilizado para o cumprimento dessa escolarização, veiculando textos de naturezas diversas e que, portanto, pode democratizar o acesso a bens culturais. Vale ressaltar que a presença e influência do LD perpassam por todas as etapas da escolarização tradicional e formação do sujeito, como bem nos endossa Lajolo e Zilberman: O livro didático interessa igualmente a uma história da leitura porque ele, talvez mais ostensivamente que outras formas escritas, forma o leitor. Pode não ser tão sedutor quanto as publicações destinadas à infância (livros e histórias em quadrinhos), mas sua influência é inevitável, sendo encontrado em todas as etapas da escolarização do indivíduo: é a cartilha, quando da alfabetização; seleta, quando da aprendizagem da tradição literária; manual, quando do conhecimento das ciências ou da profissionalização adulta, na universidade (LAJOLO e ZILBERMAN, 2003, p. 130).
Na análise da obra Linguagem, Criação e Interação de Souza (2009) verificamos o espaço ocupado pelo texto literário, como se dirige o processo de interpretação e estudo do texto, além da análise de um capítulo que trata do gênero conto, a fim de constatarmos se esse LD oferece estratégias de letramento literário aos alunos do 9º ano do ensino fundamental. Concomitante a essas etapas, foram sugeridas algumas propostas de apropriação do texto de natureza literária que pudessem complementar a abordagem do LD em análise.
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Livro didático em foco: breve descrição e análise preliminar O LD Linguagem, Criação e Interação de Souza (2009) se organiza em nove capítulos e em cada capítulo uma sequência que prevê (i) “abertura”, cujo objetivo seria sensibilizar os alunos para as várias atividades que são propostas; (ii) “o momento do texto”, em que há a apresentação do texto principal, relacionando-o a outro estabelecendo um processo de intertextualidade; (iii) uma seção denominada “painel do texto” que se constitui de diversas informações sobre elementos textuais e de autoria; (v) o estudo do texto propriamente dito, com questões de interpretação, compreensão, ampliação de vocabulário e questões textuais, que fornecem conceitos, elementos estruturais do texto, gênero; produção escrita; produção oral; estudo da língua e (v) uma seção chamada “espaço de criação”, com sugestões de projetos. A partir dessa breve descrição e de uma quantificação de toda a obra, observamos a presença de vários gêneros textuais, como apresentados no gráfico abaixo:
Gêneros Textuais. Figura 1. Quantitativo dos gêneros textuais presentes no livro em análise. Fonte: elaborada pelos autores.
A distribuição dos gêneros textuais na obra contempla a pluralidade de discursos de forma a ampliar o cabedal cultural dos alunos, com primazia dos textos poéticos. Sobre isso, Fernandes (2001) alega que um LD deve apresentar esse discurso polifônico coerente com a diversidade lingüística, como também atesta que os textos literários podem estar entremeados com os demais. Dessa forma, o aluno teria acesso às diversas manifestações da língua, estabelecendo relações entre a linguagem literária e
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outras formas de expressão. Entretanto, a questão problemática, constante à presença de textos diversos no livro em análise, trata-se da forma como se conduz o estudo de cada gênero. Ressaltamos, pois, que não basta oferecer ao aluno uma quantidade considerável de textos de naturezas diversas, se a condução da leitura e apropriação desses textos não se efetivar de forma coerente e/ou aprofundada. Dada a sua influência no ensino, o LD pode engessar as possibilidades de exploração do texto literário. Zilberman (2010) aponta que a concepção de ensino da literatura sob o tripé leitura - texto - exercício ressalta apenas o viés pragmático da ação pedagógica, dessa forma dissociando-se o texto literário de sua qualidade estética. Como resultado, percebe-se que o texto literário passa a ser meramente informativo, fonte de respostas facilmente detectáveis pelos protocolos criados que fazem minimizar a carga semântica e estilística, ferindo, ademais, os princípios da estética da recepção que pressupõe interação entre o leitor e o texto. Dos nove capítulos da obra, seis são dedicados à literatura. Desse modo, poderíamos afirmar que a literatura encontrou o seu lugar nesse livro didático. No entanto, é possível detectar problemáticas, pois nos capítulos dedicados a gêneros que requerem um maior espaço, faz-se uso apenas de fragmentos. Isso ocorre na apresentação do texto dramático e do romance, por exemplo. Além do prejuízo do texto literário ser exibido em outro suporte, há uma clara evidência de que não houve um cuidado com a seleção dos textos e gêneros. Como tratar de um romance, utilizando apenas duas páginas da história? Ainda há questões propostas na seção de interpretação de texto que só a leitura integral da obra permitiria responder. Tal lacuna pode ser observada no trecho selecionado do capítulo “Mudança” de Vidas Secas, obra de Graciliano Ramos, a partir do qual o protocolo cobra do leitor o conhecimento de toda a obra para responder às questões. Nesse caso, mesmo em caráter hipotético seria necessária a leitura na íntegra, a saber, do motivo dos filhos de Fabiano, personagem protagonista do livro, não terem nome próprio: No trecho, o narrador refere-se às crianças por „o filho mais novo‟ e „o menino mais velho‟. Na obra toda não é mencionado o nome próprio dos meninos. Sabendo disso, levante hipóteses sobre qual seria o efeito pretendido com esse recurso (SOUZA, 2009, p.67, grifo meu).
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Além disso, corre-se o risco de o professor não ter lido a obra em questão e dificultar de sobremaneira a resposta à pergunta. Outro fator preocupante refere-se à historiografia da literatura, comum no Ensino Médio, é recorrente na obra em análise. A tentativa de didatizar a literatura ocorre em todos os capítulos, principalmente na seção intitulada “Painel do texto” de cada capítulo. Todavia, Oliveira (2010) chama à atenção para este estudo fragmentado da Língua Portuguesa, engessado pelos currículos que privilegiam o estudo tradicional da história da Literatura, biografismo e análise sintática a partir dos textos literários. Para o referido autor a literatura deve ser vista “como um meio para desenvolver a capacidade do estudante de usar a língua” (OLIVEIRA, 2010, p. 173). As Orientações Curriculares para o Ensino Médio mencionam os prejuízos causados ao ensino da Literatura a partir unicamente do estudo historiográfico, fator que pode tornar as aulas “chatas” e desmotivar alunos e professores (BRASIL, 2008, p.76). Posto ser considerado chato no Ensino Médio deveria ser evitado no Ensino Fundamental, uma vez que nem faz parte do currículo o estudo das escolas literárias. Na seção seguinte, a partir de uma análise mais aprofundada de um dos capítulos, constataremos alguns dos problemas que afetam o ensino da Literatura, quando este não é pautado nos eventos de letramento específicos e na formação do leitor para esse gênero. Abordagem do gênero conto no LD e didatismo Escolheu-se para análise mais acurada o capítulo 2 em que as autoras tratam do gênero conto, que se inicia com uma atividade de pré-leitura, apresentando fragmentos de vários contos de autores. Vale salientar que atividades de pré-leitura3 são, de certo modo, uma novidade importante nos LDs para estabelecer-se uma motivação ao processo de leitura, interpretação, análise e produção textual, sem contar que há uma valorização da oralidade. No entanto, os fragmentos selecionados de forma arbitrária, 1
Segundo Solé (1998, p. 114), “se ler é um processo de interação entre um leitor e um texto, antes da leitura (antes de saberem ler e antes de começarem a fazê-lo quando já sabem) podemos ensinar estratégias aos alunos para que essa interação seja o mais produtiva possível”. Nessa perspectiva, a leitura é um processo que envolve estratégias de preparação, outras que são importantes durante o processo e estratégias que envolvem o após a leitura.
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estão descontextualizados, sem relação com os contos de origem e apenas de autores canônicos tais como Machado de Assis, Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Não há nenhum protocolo que vise à interação entre os conhecimentos prévios e os textos selecionados. Tomemos o fragmento do conto de Clarice para ilustrar a forma de abordagem dos textos de pré-leitura: A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana. A nora de Olaria apareceu de azulmarinho, com enfeites de paetês e um drapejado disfarçando a barriga sem cinta. O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados – e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles, acompanhada dos três filhos (...) (LISPECTOR, 2000 apud SOUZA, 2009).
O fragmento não prepara o aluno para adentrar no texto-base do capítulo. Não há motivação para a próxima etapa. Cosson (2012) esclarece que esta fase é a que estabelece relação estreita com o que se vai ler na sequência. No caso específico do capítulo dois, as autoras privilegiaram o gênero em detrimento da temática. Por isso, nenhum fragmento faz menção ao tema que será tratado no texto 01 e no texto 02. Ocorre, então, uma quebra de expectativa do leitor, criando um bloqueio e não construindo unidade no processo de leitura. Para o autor supracitado, a mediação do professor é essencial para evitar esses equívocos que o LD acarreta, uma vez que “na escola, essa preparação requer que o professor a conduza de maneira a favorecer o processo de leitura como um todo” (COSSON, 2012, p.54). O texto base, objeto principal da leitura, traz como personagens dois jovens que foram separados pelas circunstâncias da vida e, num metrô, têm a chance do reencontro. É uma história de amor, permeada por uma sensação de estresse no personagem que grita pela moça, mas não é ouvido. Esta sensação é transferida para o leitor e pode desencadear uma série de sensações e sentimentos que não foram sequer mencionados no estudo do texto. Atentando-se apenas ao gênero, negligencia-se o estudo do texto de forma integral. Vale ressaltar que todos os nove protocolos estão voltados para identificação
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dos elementos da narrativa e a caracterização do texto como conto. São ignorados itens tais como a temática, os recursos estilísticos e as emoções despertadas a partir da leitura. Não se aborda acerca do estado psicológico dos personagens, a situação vivida por eles, bem como não se associou o texto às situações do cotidiano com fins a aproximá-lo ao universo dos alunos. É claro que é possível estabelecer um gancho entre a temática e a realidade dos alunos. Cabe ao professor de Língua Portuguesa estabelecer relações entre as duas. Guimarães e Batista (2012) enfatizam a proximidade e verossimilhança que existem entre a Literatura e a realidade, uma vez que a Literatura enxerga o ser humano em sua complexidade e muitas vezes tem mais propriedade em tratar da realidade do que outras formas discursivas. A fim de analisar melhor esses protocolos, utilizamos a tipologia das perguntas de compreensão, teorizadas por Marcuschi (2001). Vários enunciados contemplam o que o teórico denominou de cópias, ou seja, perguntas que solicitam do aluno a transcrição mecânica de trechos do texto, com verbos no imperativo: “Caracterize o narrador e o foco narrativo do conto lido e comprove sua resposta com trechos do texto”. Vejamos outro exemplo desse tipo de enunciado: Enredo ou trama são os acontecimentos organizados numa sequência. Geralmente, o enredo de um conto tradicional é constituído dos seguintes elementos: Situação inicial, complicação, clímax, desfecho. Agora, identifique esses elementos no conto (SOUZA, 2009, p.39).
Há outros considerados objetivos, por terem o conteúdo facilmente identificado no texto. O aluno só precisa decodificar. Exemplo: “O lugar onde ocorre a história é chamado espaço da narrativa. Qual é o espaço dessa narrativa?” (SOUZA, 2009, 39). Protocolo vale-tudo, perguntas que admitem qualquer resposta, também aparecem no estudo do texto: “Se você fosse o autor do conto, teria escolhido outro desfecho? Qual?” (SOUZA, 2009, p. 39). Não há nenhum protocolo inferencial, ou seja, “perguntas mais complexas, exigindo não somente conhecimentos textuais, mas também pessoais, contextuais, enciclopédicos, regras inferenciais e análise crítica” (MARCUSCHI, 2001, p.52).
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Pode-se depreender a partir desse contexto é que o LD em questão parece subestimar a capacidade interpretativa dos alunos, não apresentando questões complexas que exijam do aluno uma reflexão e conhecimentos enciclopédicos. O leitor, neste caso, não é instância da Literatura, uma vez que se nega a interação entre esses dois elementos, reduzindo o vínculo do leitor com outros textos e minimizando o campo de atuação na interpretação. O ensino da Literatura, neste caso, transforma-se apenas em resolução de tarefas e questões simples. Para Walty (2006) transformar o texto em “lição de literatura” significaria a “morte da literatura”, pois esse didatismo pode anular e esvaziar o potencial do texto literário, onde determinados procedimentos podem desmotivar e afastar o leitor em definitivo (WALTY, 2006, p.51). O didatismo afasta de fato o texto de seus pretensos leitores. Sem contar que os professores se veem engessados com o uso do livro didático que dita respostas levandoos a seguir a risca as respostas do manual, podendo desconsiderar a leitura pessoal do aluno. O texto deixa de ser aberto e o leitor passa a ser apenas um decodificador. Devido ao didatismo, “o que poderia ser um espaço de descoberta, pesquisa e reinvenção torna-se um lugar de desapropriação dos sentidos e de verificação da aprendizagem” (OLIVEIRA, 2010, p. 281). O segundo texto, A moça tecelã de Marina Colasanti, foi apresentado como a tentativa de estabelecer o processo intertextual com o texto anterior. No entanto o diálogo entre eles não passa de uma relação estrutural, conforme atesta o protocolo extraído do livro: “Que semelhanças e diferenças podem ser estabelecidas entre eles? Considere, entre outros aspectos, a estrutura, o enredo, a linguagem, a extensão, a situação narrada, etc” (SOUZA, 2009, p.45). Nesse caso prima-se por aspectos estruturais em detrimento da construção de sentidos. No entanto, acreditamos ser possível atender a esses dois aspectos. No estudo do segundo texto, observa-se uma ampliação do grau de dificuldade para responder às questões. Há protocolos que exploram os recursos estilísticos da linguagem literária e outros que fazem uso da inferência. Mas, não obstante, não alcança a condução interpretativa que os textos merecem. Se não houver a mediação adequada do professor, o letramento literário e a formação do leitor ficam de sobremaneira comprometidos:.
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Insuficientes para formar esses leitores ideais, sensíveis às especificidades da linguagem literária, as tarefas propostas anulam os efeitos estéticos da linguagem poética e ficcional, tornando a presença dos gêneros literários perfeitamente dispensável nos livros didáticos, uma vez que tais atividades de leitura poderiam ser realizadas com qualquer tipo de texto. (FERNANDES, 2001, p.173)
Se a literatura não é lida e não é tratada como tal pelo professor, não há espaço para a literatura no ambiente escolar, o que dificulta o processo de escolarização e letramento específico. Na etapa seguinte, debatemos e defendemos a ideia de uma nova recolocação da Literatura na escola e no ensino a partir do LD. Redimensionamento dos espaços da literatura a partir do livro didático A literatura precisa ocupar mais espaço na Educação Básica, no entanto, é preciso ampliar por vias de uma prática pedagógica que dê voz aos autores e obras. O redimensionamento proposto aqui não é da literatura propriamente dita. O que precisa ser debatido refere-se à atuação do professor, quanto ao uso livro didático e ao oferecimento de um ensino diferenciado. Entretanto, sem pretensão de estabelecer receituários, cremos que a formação inicial docente ainda não tem dado conta de preparar o profissional para atuar em sala de aula, libertando-o do engessamento do livro didático. Precisa-se avançar ainda mais no que tange a associação entre teoria e prática. Apesar disso, professores, alunos e teóricos precisam encontrar o equilíbrio e formas que lhes permitam trabalhar a Literatura de modo prazeroso, que deve ocupar lugar de destaque colocando o leitor no seu papel ativo na construção de sentidos plurais, sem obviedade e mecanicismos. Para tanto, entendemos que a sequência básica, construída por Cosson (2012) pode oportunizar esse equilíbrio sistematizando o ensino da literatura em quatro passos: motivação, introdução, leitura e interpretação. O primeiro pretende garantir êxito à proposta, requerendo um planejamento adequado para a motivação. O autor sugere o uso do lúdico como facilitador desse processo. “O limite da motivação dentro de nossa proposta costuma ser de uma aula. Se ela necessitar passar disso, certamente não cumprirá o seu papel dentro da sequência” (COSSON, 2012, p.57).
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Na introdução apresenta-se o autor e da obra, com relato acerca do livro, da exibição da obra, a retirada da biblioteca, em síntese, fazendo da aula um acontecimento. No caso do livro didático esta estratégia pode ser também utilizada. O que se aplica à leitura do livro cabe também à leitura do texto no LD. A terceira etapa é a leitura propriamente dita e esta pode se realizar, segundo sugestão do autor, na coletividade. Para ele, o que nos leva a ler um texto literário “é a experiência estética que ele proporciona e não simplesmente a história que conta” (COSSON, 2012, p.63). Finalmente, na última etapa da sequência, tem-se a interpretação, com a construção de sentido dentro de um diálogo que envolve autor, leitor e comunidade. Nesta fase final, espera-se que haja interação entre os sujeitos envolvidos, troca de ideias e experiências, pluralidade de sentidos construídos a partir da realidade do aluno. Solé (1998) ainda nos sugere a leitura compartilhada, oportunizando ao aluno o aprendizado de estratégias e procedimentos específicos de leitura, tais como o professor as realiza. Nesse sentido, a intenção é promover a autonomia do aluno no processo de leitura. Para caracterizar a atividade compartilhada, é importante que o professor faça a mediação do desempenho dos alunos na formulação de previsões sobre o texto a ser lido, na elaboração de perguntas, esclarecimentos de dúvidas e sejam, por fim, capazes de sintetizar o que leram (SOLÉ, 1998). E. K. Oliveira (2012) também concebe a leitura como interação entre texto e leitor. A ideia é priorizar em sala de aula o contato sensorial com o texto, nas palavras da autora “quando um texto literário em algum momento estremece o leitor, acontece algo mais do que conhecer o que se leu. Ocorre aí uma convocação de sentidos, um frêmito, uma relação da qual não se pode escapar” (E. K. OLIVEIRA, 2012, p. 21). Ela propõe a leitura literária como performance e acontecimento, por meio da vocalização do texto, levando em conta o corpo, a voz e os gestos. Nessa concepção, a palavra ganha corpo e voz nesta experiência. Assim, uma leitura bem feita pode tornar um texto maravilhoso mesmo que não o seja e vice-versa. Não há receitas prontas para o ensino da literatura. O que foi apresentado aqui são sugestões que podem ser adaptadas pelos docentes, com seleção cuidadosa de textos
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e planejamento para tornar o LD um instrumento útil, promovendo o letramento literário em sala de aula e aplicando o processo de escolarização da literatura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Por mais completo que pareça ser um LD, ele nunca está pronto, cabendo sempre ao docente planejar, selecionar outros textos e promover um contato lúdico e prazeroso com os variados gêneros. Urge cultivar o gosto e o hábito pela leitura de textos literários no Ensino Fundamental. Além disso, o letramento literário precisa ser construído, para que os alunos do Ensino Médio cheguem à escola leitores críticos e aprendam a analisar além do texto. Apesar de o LD Linguagem, criação e interação (SOUZA, 2009) ainda não corresponder ao que se espera dos estudos literários, ele é suporte de textos interessantes de autores brasileiros. Espera-se que com a abordagem do ensino de Literatura sob o viés das ações de letramento e escolarização, os alunos se debrucem sem a obrigatoriedade da leitura e fichamentos sobre textos canônicos ou não. Desta maneira é possível democratizar o uso da língua em uma de suas vertentes mais bela, todavia, de forma mais integral e profunda. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Secretaria de Educação Básica (SEB). Orientações curriculares para o ensino médio. Brasília: MEC, SEB, 2008. CÂNDIDO, Antônio. O direito à literatura. In_____ Vários escritos. Rio de Janeiro/São Paulo: Ouro sobre Aul / Duas Cidades, 2004. COSSON, Rildo. Letramento Literário – teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2012. FERNANDES, Maria Lúcia Outeiro. O texto literário no livro didático. Araraquara: Revista Itinerários, 17. 2001, p. 165 – 177. GUIMARÃES, Alexandre Huady Torres; BATISTA, Ronaldo de Oliveira. Língua e Literatura: Machado de Assis na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.
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UM ACONTECIMENTO DISCURSIVO DO SÉCULO XIX: A CRIAÇÃO DE UMA SECA Camila M. Burgardt (UFPB) O presente trabalho tem como objetivo pensar a construção do discurso da seca de 1877 em um gênero eminentemente retórico e literário durante o século XIX – as missivas, tomando como fonte a imprensa Oitocentista cearense com o periódico O retirante1, que começou a circular na capital da província no ano do evento, como um dos elementos que concorreram para essa construção a respeito desse fenômeno climático que atingiu grande parte da antiga região Norte2. Também buscamos, de acordo com os pressupostos da História Cultural e da noção de representação, pensar a escrita epistolar como uma ilusão compartilhada dos efeitos de sentido do suposto real, em que a união de forma e conteúdo podem revelar o contexto e os discursos de uma época. As novas perspectivas de abordagem da cultura ajudam a compreender, por exemplo, as recentes pesquisas acerca da imprensa e dos mais diversos gêneros que circulavam e que ainda circulam nesta fonte, que se apresenta como uma construção social, política e cultural, pois coloca em evidência uma série de discursos e representações de uma sociedade como suporte e fonte primária de escritos em que circulam “[...] várias vozes e vários discursos, em um pulsar heterogêneo e variado, que pode revelar múltiplas perspectivas de uma época e maneiras desiguais de se apropriar e de se aproximar da cultura escrita.” (BARBOSA, 2007, p. 40). Observamos, durante a pesquisa, que a construção discursiva dessa seca encontra-se dispersa entre os diferentes escritos daquele momento, mas que as cartas ou extratos de cartas, ou seja, trechos de missivas inseridas pelo texto do editor constituem, 1
Segundo Guilherme Studart em seu livro Para a história do jornalismo cearense (1924), o periódico Os retirantes era publicado aos domingos em Fortaleza, sob a redação de Luiz Miranda, na Typographia Imparcial. Combatente da administração provincial do conselheiro João José Ferreira de Aguiar, presidente da província de 24/11/1877 a 21/02/1878. A pesquisa conta com 35 números do jornal, publicados de 01/07/1877 a 24/03/1878, em que encontramos um total de 24 cartas que tratam da questão da seca. 2 Acerca deste assunto, conferir Albuquerque Júnior. (2007)
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segundo Barbosa (2007, p. 59), o “gênero pelo qual a escrita se mascarou, ao confundir o espaço público com o privado, o anônimo com o famoso”. Publicados na imprensa, esses extratos estabelecem um importante artefato, e se apresentam como uma unidade, numa série de textualidades, que nos permite ter acesso ao discurso (ORLANDI, 2001), conjunto mais amplo, sobre essa seca. A arte epistolar, um dos gêneros fundadores da escrita em jornais e periódicos, como objeto literário e retórico até fins do século XIX (BARBOSA, 2007, 2013; PINHEIRO, 1862; ROQUETTE, 1860), encontrou na linguagem do convencimento e do apelo às emoções a forma de poder e desempenho necessários à obtenção de determinados efeitos de sentidos que tornavam a escrita mais produtiva e eficiente no ato de concitar e persuadir o público leitor da “veracidade” de suas afirmações. Também era um fator primordial do poder da palavra impressa na época, operando no espaço conhecido tanto pelo seu escritor como pelo seu leitor, que formaram uma relação decisiva na construção e interpretação desse fenômeno climático de origem secular na antiga região Norte do país. Segundo Roquette (1860), autor de um conhecido tratado epistolar Oitocentista Novo Secretário Português ou Código Epistolar, as cartas, naquele momento, eram pensadas segundo três lugares comuns ou gêneros de causa tradicionais da retórica: o judicial, que tem por papel mais importante a acusação ou defesa de uma pessoa, causa ou ação; o demonstrativo, que se configura no elogio ou vitupério de uma pessoa, objeto ou lugar; e, por fim, o deliberativo, que compreende diferentes tipos de cartas, como as de conselhos, as persuasivas, exortatórias e não exortatórias entre outras. O três extratos presentes nesse estudo foram pensados a partir da estrutura modelar que seguiam à época de sua escrita. As missivas do século XIX: a produção de um discurso retórico O periódico cearense Os retirantes veio à luz dizendo-se órgão das vítimas da seca, mas, como todo o jornal do século XIX, não se mantinha apenas pela pequena quantidade de anunciantes ou pela modesta tiragem da folha, provavelmente era mantido por patrocinadores. No entanto, essa fachada dissimulada, uma vez que os retirantes, de modo geral, também não tinham como comprá-lo e, por vezes, nem lê-lo,
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caía-lhe como um epíteto de “combate”, principalmente contra a ordem política estabelecida. Normalmente, os periódicos estavam atrelados a agremiações políticas de modo explícito, anunciando-se enquanto órgãos do partido liberal ou conservador, os partidos mais representativos da época até a proclamação da república. Conquanto não procedesse do mesmo modo, Os retirantes contou com um sujeito ou um grupo que o financiava e que, atualmente, desconhecemos, mas que certamente influenciou diretamente na sua linha editorial. O próprio nome do jornal – Os retirantes, adjetivo qualificativo, é significativo e estabelece uma ligação direta com o fenômeno climático que se iniciava naquele ano de 1877, bem como a sua consequência mais direta, ou seja, a fuga dos flagelados em busca de necessidades básicas como água e comida. Ao mesmo tempo, afirma-se como um espaço de denúncia, uma arena, um campo político ainda que, no jogo das palavras, opere de modo velado ou explícito. É o que podemos observar em três extratos de cartas publicadas no jornal, no dia 16/09/1877, na coluna “Noticiário” em que a parcialidade e o subjetivismo estão a serviço do convencimento. No primeiro deles, o alvo é o chefe da comissão de socorros e também o presidente da província acusados de corrupção, o que pode ser conferido abaixo3: Seca e miséria. - De Mecejana escrevem-nos o seguinte:4 «A secca que atravessa a população de Mecejana é triste e consternadora; e mais dolorosa torna-se ainda pela inépcia e parcialidade da commissão chamada – de soccorros – que, jungida á vontade de um demônio familiar, parece deixar a pobresa morrer de fome! O dinheiro e generos, que para aqui tem vindo, suppomos que é sómente para remunerar-se os serviços eleitoraes! Triste situação é a nossa! Até com a desgraça do povo especula-se, em proveito dos salteadores! A única obra que a escrupulosa commissão emprehendeu foi levantar a parede do sangradouro da lagoa, em que tem empregado 30 de seus protegidos, com três administradores, sendo o chefe o bem conhecido – João Luiz. Note-se, que cada administrador, segundo consta, percebe 1$280 e 2$000 réis diários! 3
As cartas transcritas mantêm a grafia original, bem como os eventuais erros tipográficos e ortográficos. Embora este extrato seja o único que não esteja explicitamente marcado como carta, observa-se pela sua estrutura, de acordo com Roquette (1860), que trata-se de uma missiva. Ao mesmo tempo, pode-se observar a semelhança deste extrato com o terceiro extrato analisado, no qual o editor deixa claro tratar-se de uma carta, constata-se a proximidade entre as duas estruturas modelares.
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Chame para isto a attenção do Sr. Estellita.» (O RETIRANTE, 16/09/1877, n. 13, p. 02, sic, itálico do autor)
A primeira vista, observa-se claramente uma denúncia de corrupção, em que a ajuda governamental é tomada enquanto barganha política. Ao mesmo tempo, observamos um jogo de palavras significativas nesse contexto, uma vez que as cartas eram escritas sob o signo retórico, marcadamente de caráter persuasivo que, segundo Hansen (1986, p. 24), nasceu como “[...] um conjunto ordenado de preceitos e adequações que definem os bons usos persuasivos do discurso público como eficácia política”. Esse extrato, bem como os demais analisados, passaram por um duplo crivo, primeiro do próprio autor da carta, que escreveu um texto específico e enviou também para um jornal de características peculiares, como se viu acima, segundo pelo editor, que selecionou partes precisas do texto, convenientes a linha editorial do periódico, para ser publicado. Observa-se que desde o título o leitor-escritor (BARBOSA, 2007) tem uma ideia objetiva a desenvolver, a de uma “realidade” de adversidade extrema, não só por conta do fenômeno climático – a seca, mas também por sua outra face manipulável - a miséria - que foi explorada em todos os seus aspectos, especialmente os imagéticos. No início, o trecho “A secca que atravessa a população de Mecejana”, é especialmente figurativo, uma vez que a palavra “atravessa”, por exemplo, pode ser duplamente considerada tanto como momento histórico pelo qual passa a população do lugar, bem como no sentido da população estar atravessada por alguma coisa, como uma lança, um castigo divino, que segue com dois adjetivos que exprimem consequência: “triste” e “consternadora”, e que atuam intensificando o sentido não só da seca, mas também de “atravessados”. O sujeito autor será aqui entendido na perspectiva de Bakhtin (2002), como aquele que está continuamente envolvido no âmbito do uso da linguagem, em um processo ininterrupto de retomada do dizer e de preparação para o porvir. Além disso, um organizador de discursos (ORLANDI, 2001), que opera amplificando seu dizer - “e mais dolorosa torna-se ainda pela inépcia e parcialidade da comissão” -, nesse trecho, nota-se a escolha das palavras que reforçam a ideia, como “e mais” e “ainda” numa gradação ascendente de força negativa que se deposita sobre o trabalho da comissão de socorros da cidade, bem como o uso do adjetivo „doloroso‟, que denota aflição e
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angustia, que vem precedido por outro adjetivo – „mais‟ que vem reforçar uma ideia por si só já forte. Também não podemos perder de vista que tanto o leitor-escritor da missiva quanto o editor e a comunidade de leitores do periódico (CHARTIER, 1998) começam a observar diariamente5 esse modo de representação da seca na impressa e que essas “denúncias” começavam a compor um repertório conhecido sobre o tema da seca nessa comunidade. A referência a “um demônio familiar”, na missiva, pode estar se remetendo a uma famosa peça teatral da época, de José de Alencar (1829-1877), principalmente porque se encontra destacada em itálico. Escrita em 1857, a peça O demônio familiar6, foi uma comédia em quatro atos em que o escravo da família decide casar os patrões com parceiros mais abastados e acaba por representar a figura travessa e ardilosa da trama, pois ambicionava tornar-se cocheiro, o que representava uma promoção social. (MACHADO, 2010). Ao mesmo tempo, “demônio familiar” também estabelece uma relação clara e simples com o chefe da comissão de socorros, mais a frente mencionado na carta – João Luiz. A possível referência à peça teatral não só estabelece um diálogo marcadamente significativo com os leitores, mas também amplia a leitura da comunidade de leitores da época que se vê capaz de estabelecer novos sentidos ao texto. Essa relação interdiscursiva evidencia primeiramente o caráter dialógico do sujeito autor, enquanto um orquestrador de discursos e, em segundo lugar, estabelece uma comparação explícita entre o demônio familiar da peça ou simplesmente a figura temida da religião, que faz de tudo para alcançar o objetivo da promoção pessoal, como os administradores da comissão de socorros que, ao invés de pensar no bem estar do povo, também parecem sempre pensar em si mesmos e, politicamente, em promoção pessoal. A metáfora implícita dessa relação confere concretude a ideia abstrata de denúncia da corrupção por parte dos comissários, como também aumenta a intensidade questionadora, resultando em um valor argumentativo mais forte. É clara a relação estabelecida tanto pelo leitor-escritor quanto pelo editor do jornal, responsável pela seleção do extrato, entre a ajuda governamental e os serviços Nos 35 números do jornal pesquisado, de 01/07/1877 a 21/02/1878 (STUDART, 1924), encontra-se esse tipo de representação do fenômeno da seca, o que, com o passar do tempo compõe um repertório sobre o tema no jornal 6 A peça está disponível para download no site Domínio Público. 5
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eleitorais, ao afirmar que “até com a desgraça do povo especula-se, em proveito dos salteadores!”. O governo é, por meio de uma teia de relações estabelecidas com os comissários de socorros, também arrolado como bandido por extensão, uma vez que os comissários são escolhidos pelo presidente da província. Já o uso da figura do ponto de exclamação, nessa sentença, bem como nas outras duas vezes em que é usado, tem a função de marcar, na escrita, a representação de emoções, de proposições fortes e, mais uma vez, de intensificação de sentidos. O extrato termina com “Chame para isto a attenção do Sr. Estellita”, o que enfatiza a relação entre comissários e o responsável pelo trabalho deles – o presidente da província. Essas denúncias políticas que circulavam no periódico pode ter influenciado, alguns meses depois, na mudança do governo da província, quando o cargo passou do desembargador Caetano Estelita Cavalcante Pessoa (1824-1880), que atuou de 10/01 a 24/11/1877, para o também conservador conselheiro João José Ferreira de Aguiar (1810-1888) (GIRÃO, 1984). Outro extrato de carta publicado no periódico, naquele mesmo dia, 16/09/1877, novamente reverbera denúncias contra o governo: Telha.- Extractamos a seguinte noticia de uma carta de um nosso amigo, firmada em 5 do corrente: «É com o coração transido de afflicção que debruço-me sobre o papel para ligeiramente dar-lhe noticia d‟esta inditosa terra tão despresada n‟esta calamitosa crise pelo nosso corrupto governo. Aqui não há mais o que comer-se! O povo cahi inanido ás camadas! Já cinco pessoas foram arrebatadas pela voracidade da fome!!... Já não existem! Que horror! Seguiu para ahi enorme aluvião de povo em busca de pão e fugindo á uma morte cruciante e ignominiosa! Juntamos nossa voz ao ultimo suspiro das cinco victimas da fome e cobrimos de maldição este miserável governo!» (O RETIRANTE, 16/09/1877, n. 13, p. 02, sic)
O editor, ao começar afirmando que o extrato é da carta de um amigo confere tripla veracidade ao escrito: primeiro pela palavra „amigo‟, que a torna digna de confiança; segundo, pelo próprio jornal, o que nos permite observar a força e o poder legitimador do suporte no século XIX (BARBOSA, 2007); e, por fim, por ser a palavra
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de um amigo in locu, que funciona como uma espécie de correspondente, uma pessoa que pessoalmente tem acesso às afirmações, portanto é uma escrita de credibilidade. Este extrato apresenta-se, retoricamente, ao coração dos leitores, de modo a sensibilizá-lo emocionalmente, mais do que com argumentos racionais ou provas. Segundo Barthes (1985), o homem não pode se expressar sem ser concebido pela sua palavra e, para este parto, há uma técnica e usos que se dividem em duas grandes vias de convencer ou comover. Observa-se que o autor tenta convencer seu leitor, o que consiste “[...] em pensar a mensagem probatória não em si, mas segundo o seu destino, o humor de quem a deve receber, para mobilizar provas subjetivas e morais.” (BARTHES, 1985, p. 55) Nesse caso, a escrita da carta, bem como os seus usos, foram pensados numa comunidade de leitores em específico, já preparada para recebê-la, com razões inerentes a natureza do objeto, ou seja, do tema da seca. Essa leitura confere novos sentidos ao texto, pensado enquanto lugar de jogo de sentidos, de trabalho com a linguagem, de funcionamento da discursividade. O que caracteriza este texto como “verdadeiro” está ligado às paixões, aos sentimentos, aos afetos, mas também aos caracteres, ao tom emprestado a linguagem. Nesse sentido, encontramos o “[...] alardear de uma franqueza que não teme as consequências e se exprime com o auxílio de propósitos diretos, marcas de uma lealdade teatral.” (BARTHES, 1985, p. 74), mas uma marca que expressa determinada posição social e política naquele momento – contra o governo atual. Para concitar os corações, o autor também usa de recursos subjetivos, tais como vários pontos de exclamação, pois ao invés de afirmar uma ideia, exclama-se um ponto de vista, que é um “modo de aceleração do andamento do texto e de intensificação do sentido” (FIORIN, 2014, p. 185). Já nas reticências ou figura retórica também conhecida como aposiopese, há “uma diminuição da extensão do enunciado, com um consequente aumento de sua intensidade. Trata-se de uma difusão semântica, porque o espaço em branco ganha significado. É mais forte dizer sem dizer do que dizer dizendo.” (FIORIN, 2014, p. 88). Esses recursos são auxiliares eficientes da linguagem afetiva e poética, pois apresentam grande poder de sugestão, mas também causam grande impressão na leitura dos textos, e a leitura em voz alta dos periódicos em praça pública era um artifício comum até fins do século XIX (BARBOSA, 2010). Usando o
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ponto de exclamação seguido pelas reticências, o autor não só realça a expressão, mas também acaba por conferir o valor duplamente enfático a sentença. Esse extrato termina poeticamente relembrando as últimas cinco “vítimas” da fome em seu “último suspiro”, o que também pode ser entendido como uma metáfora emocional, relacionada ao desenho semântico apaixonado da linguagem, que evidencia a relação tensa entre a população necessitada e o governo em suas mais variadas instâncias, uma vez que se entende que ela só é vítima da seca em virtude da falta de atenção e da má distribuição dos gêneros alimentícios pelos representantes do governo, criando um novo arranjo do conjunto. No terceiro extrato de carta, completamos informações de três localidades diferentes da província, o que nos fornece um quadro mais amplo do contexto geral do Ceará, também publicado no dia 16/09/1877 no jornal O retirante: Quixeramobim.- A população desta cidade vae se extinguindo de pouco a pouco, já pela inanição, já pela espantosa emigração. A este respeito encontramos no Pedro II de 13 do corrente os seguintes trechos de uma carta escripta d‟ali: «Achando-se inteiramente caracterisada entre nós o terrível flagello da secca, já começaram a desenvolver-se os seus terríveis effeitos por cazos de morte de inanição entre os velhos e crianças, e por uma não interrompida emigração de miseraveis, que vão guiados pelo instincto de conservação procurar remir a vida. «Se não houverem algumas chuvas, que facão rebentar a nova rama, vae desapparecer inteiramente o resto do gado vaccum e cavallar, e então, ainda havendo inverno em 1878, supponho que achará deserto o nosso Quixeramobim.» (O RETIRANTE, 16/09/1877, n. 13, p. 02, sic)
Neste último extrato, encontramos referência a uma carta publicada em outro periódico – Pedro II-, jornal cearense, conhecido órgão conservador da cidade de Fortaleza7, que, no momento, apoiava o então presidente do partido conservador na província, o desembargador Estellita, o qual é chamado à atenção no primeiro extrato publicado pelo jornal e analisado anteriormente. Observamos que, ao pinçar uma carta publicada por um jornal autorizado pelo governo, o editor do jornal O retirante procura, 7
Apareceu em 12/09/1840, publicado duas vezes na semana: às quartas-feiras e sábados. Impresso por Galdino Marques de Carvalho, saiu na Typographia Constitucional, na rua dos Quartéis. Tinha por epígrafe o verso de Camões: “Os mais experimentados, levantai-os./ Se com a experiência tem bondade/ para vosso conselho, pois que sabem/ o como, e quando e onde as coisas cabem.”. (sic) (STUDART, 1924).
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do seu lugar já conhecido de oposição ao governo vigente, corroborar os escritos anteriores, bem como os outros textos que circulam no jornal sobre a seca, em forma de artigos ou poesia, que seguem a mesma linha editorial, o de supervalorizar os efeitos da seca. Ao assumir-se o pressuposto de que esse fenômeno climático está de fato ocorrendo e que os seus efeitos são terríveis, todas as consequências passam a ser admissíveis e, portanto, aceitas, nas descrições mais apoteóticas e imagéticas do “espetáculo” do “terrível flagello da secca” (sic). Notamos que a mensagem passada pela carta é de que a seca realmente ocorre, mas em nenhum momento há menção da inépcia, da falta ou da ajuda mal sucedida do governo. Assim, o editor do jornal a usa para legitimar sua primeira sentença: “A população desta cidade vae se extinguindo de pouco a pouco, já pela inanição, já pela espantosa emigração” (sic), em que está implícito a falta de ajuda da administração pública. Nessa sentença, também observamos o investimento semântico dado pelas repetições dos advérbios “pouco” e “já”; o primeiro numa expressão adverbial de modo, ou seja, a população vai se extinguindo gradualmente, como consequência da falta de ajuda, e o segundo, na conjunção alternativa que indica - ora..., ora... – e que funciona com a ideia de alternativa, ou seja, a população de Quixeramobim oscila entre dois modos de ser eliminada. Todas essas construções, na escrita, trabalham no sentido de convencer o leitor de sua “verdade”. Segundo Roquette (1860), os três extratos anteriores encaixam-se no gênero deliberativo, pois é próprio dele persuadir o leitor da utilidade de suas informações, bem como de convencer, com eficácia, de sua lisura. Ainda segundo o autor, essas missivas que fornecem informações sobre pessoas ou lugares podem ser chamadas de cartas de participação ou de notícias, uma vez que “[...] é onde mais se encontra a narração; [...] podem muitas vezes entrar as descrições de lugares, [...] exterior de uma pessoa, seu caráter moral, etc.” (ROQUETTE, 1860, p, 404), portanto, compreendemos que é nesse modelo epistolar e retórico que nossos extratos encaixam-se. A exemplo dos extratos acima, percebe-se que a construção discursiva do fenômeno climático 1877 encontrou no gênero epistolar o modelo eficiente e acurado – pois lingüístico e retórico, por meio do qual se formou o discurso predominante da seca, marcado definitivamente pela falta
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e pela carência, adjetivos que até hoje permeiam o imaginário coletivo a respeito da atual região nordeste. Considerações finais Compreendemos que a leitura desses três extratos de cartas, clivados tanto pelo olhar dos editores quanto dos leitores-escritores dos periódicos, nos apresenta, minimamente, como os sujeitos da época “[...] descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse” (CHARTIER, 2002, p. 19), ou seja, a leitura é uma prática social, cultural e histórica e, para a compreensão de um discurso historicamente datado, devemos estar cientes dos “[...] contrastes no campo da linguagem, dos estilos de pensar, dos modos de discurso, das práticas retóricas.” (CARVALHO, 2000, p. 127), inerentes a todos os textos, nas mais diversas épocas. Um só texto tem inúmeras possibilidades de interpretação, dependendo, entre outras coisas, do suporte, da época e da comunidade em que circula (CHARTIER, 1998). É nesse sentido que pensamos a construção discursiva do fenômeno climático da seca, uma vez que: O enunciado existente, surgido de maneira significativa em determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social. Ele também surge desse diálogo como seu prolongamento, como sua réplica, e não sabe de que lado ele se aproxima desse objeto. (BAKHTIN, 2002, p. 86)
A análise desses três extratos epistolares nos mostra a pluralidade de leituras possíveis de serem levantadas, mas, por serem objetos de outro tempo, ainda muitos sentidos nos escapam, mas que, certamente, não escapavam ao leitor ávido dos periódicos do século XIX. Como bem definiu Certeau (2014), o leitor é um furtivo caçador que escapa a leitura única e autorizada de um texto, uma vez que estava acostumado à escrita retórica regrada e secular que ainda vigorava naquele momento. Concluindo, também podemos observar, mesmo nesses três extratos, de um único dia, uma espécie de fórmula nessa escrita sobre a seca, em que se estabelece uma constante crítica ao governo vigente, bem como reclamações de falta de chuva e de
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alimentos, como um tema duplamente orquestrado e construído, segundo a noção de dialogia para Bakhtin (2002; 2011), estabelecido tanto pelo leitor-escritor quanto pelo editor do jornal. Modelo que, aparentemente, deu certo uma vez que percorre três textos diferentes em um único exemplar do periódico. Referências ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios da teoria de história. Bauru-SP: Edusc, 2007. BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 5ª ed. São Paulo: Editora Hucitec Annablume, 2002. ______. Estética da criação verbal. 6ª Ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa – Brasil 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010. BARBOSA, Socorro de Fátima P. Jornal e Literatura: a imprensa brasileira no século XIX. Porto Alegre: Nova Prova, 2007. ______. A escrita epistolar, a literatura e os jornais do século XIX: uma história. In: Revista da Anpoll, Vol 1, nº 30, 2011a, p. 261-291 [online]. Disponível em .
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“AMELY” E “DEPREZYNHA”: MULHERES DE VERDADE? IDENTIDADES MÓVEIS NA CONTEMPORANEIDADE Camila Rodrigues (UNICENTRO) Nincia Cecilia Teixeira Borges Ribas (UNICENTRO)
O entendimento sobre o que é feminismo tem a origem na ação política das mulheres; em que mulheres tornam-se sujeitos históricos da transformação de sua própria condição social. Os feminismos, na atualidade, designam ações coletivas, individuais e existenciais para manifestar interesses voltados à esfera da mulher. As feministas procuram construir uma proposta ideológica para modificar o paradigma de sua situação de exclusão de poder e subordinação perante a sociedade. Pryscila Vieira, cartunista paranaense, utiliza-se da linguagem verbo-visual para construir suas personagens, que estão ligadas a uma série de fatores culturais e sociais e, dessa forma, a cartunista (re)descobre o universo opressor na qual estão inseridas. As mulheres retratadas nos cartuns fogem aos estereótipos e entram em confronto, mesmo que de maneira velada, com a sociedade patriarcal. São mulheres que se sentem à margem, e o sentimento de não pertencimento ao mundo em que vivem é representado por um discurso irônico e bem humorado. A pesquisa analisa como se esquadrinham as identidades das personagens Amely e Deprezynha nos cartuns de Vieira. No entender de Susan Okin, (1979) as teorias sobre gêneros resultam de duas décadas de reflexões excessivas, análises e pesquisas. Joan Scott (1995) enfatiza que o termo “gênero” ultimamente é utilizado de “caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no “sexo”, ou seja, o termo elenca o aspecto relacional das definições normativas de feminilidade” (p.72). Simone de Beauvoir em 1949 em seu livro “O segundo sexo” lançou um debate radical acerca das teorias feministas ao enfatizar com a célebre frase que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, promovendo uma discussão no âmbito do componente social do sexo feminino diferente do seu aspecto biológico. Esta ideia lançada por Beauvoir (1949) permanece até os dias de hoje em evidência nas pesquisas sobre os estudos de gênero. As definições/conceitos de gênero presentes nas discussões de Scott (1999) e Butler (2010) corroboram com a perspectiva construtivista social, elas destacam que tanto o sexo quanto o gênero são, em primeiro lugar, formas de saber, isto é, conhecimentos a
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respeito dos corpos, das diferenças sexuais, etc. A concepção de gênero está fortemente presente nos símbolos, representações culturais, nas normas e doutrinas, organizações sociais, nas identidades subjetivas. Pelo viés sociológico, Identidade é o compartilhar de várias ideias e ideias de um determinado grupo. O olhar antropológico esboça a identidade como a soma não concluída de signos; qualquer identidade que não fosse clara, ou que não pudesse se situar claramente em uma forma ou outra – “ficando em cima do muro”, passava a ser considerada um problema. Num mundo onde tudo é transitório, uma identidade fixa e bem definida não parece ser muito atrativa. Tudo deve ser consumido, as identidades se tornam algo a ser consumido. E o consumo passa a ser o meio pelo qual são construídas as identidades. Hall (1987) e Bauman (2005) afirmam que a globalização tem um impacto considerável sobre a identidade. A incerteza vivida em um sentimento de movimento eterno, na interconexão virtual de informações geradas a toda hora, leva a uma necessidade constante de readaptação da identidade. Portanto, a compreensão de “ter uma identidade” não vai ocorrer às pessoas enquanto o “pertencimento” continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa” (Bauman, 2005, p. 18) A teoria feminista pressupõe que exista uma identidade definida. Algumas autoras dialogam com esta definição, porém primeiramente é preciso lançar um olhar sobre a dualidade entre gênero e sexo feminino, onde o sexo é tido como natural e gênero como cultural. Beauvoir (1949), oficialmente, afirma que o corpo feminino é marcado no interior do discurso masculinista (Butler,1990 p. 32). Atualmente as discussões acerca do essencialíssimo feminista evidencia a questão da universalidade da identidade feminista. Ainda no âmbito destas discussões encontramos o discurso filosófico de que a noção de pessoa como uma agência de vários papéis e funções tendo assim seu significado social. Ao analisar a representação feminina presente nas personagens Amely e Deprezinha é importante discorrer sobre a teoria de representações sociais, enfatizando a abordagem processual (Moscovici, 1961), que preocupa-se centralmente com a construção da representação, sua gênese, seus processos de elaboração, e seus aspectos constituintes da representação de informações, imagens, crenças, valores, opiniões, elementos culturais, ideológicos etc. Os autores da teoria afirmam que toda representação se origina em um sujeito, seja ele individual ou coletivo e se refere a um objeto. Portanto, a teoria da representação social não separa o sujeito social e o seu saber concreto do seu contexto. Percebemos que perante as representações femininas as mulheres fizeram de
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seus corpos um meio, assim por dizer uma arma de luta pela igualdade ou até mesmo diferenciação perante ao domínio do homem, notamos através de pesquisas que tudo isso ocorre desde o início do século XXI, portanto nas sessões a seguir discutiremos acerca das teorias feministas, gênero e representação como as mulheres são retratadas, no nosso caso especifico como as personagens Amely e Deprezynha são representadas em cartuns de circulação nacional.
1.
Breve Conceito das Teorias Feministas e Estudos de Gênero
Para cumprirmos com o objetivo proposto, precisamos, inicialmente, discorrer um pouco sobre qual seria a definição de gênero e, na sequência, considerar a possibilidade de compreender. Primeiramente é necessário nos envolver nas Teorias Feministas dos Estudos de Gênero, sendo que a princípio era nomeado como “estudo de mulheres” ou “estudos feministas” e atualmente como “estudos de gênero”. (MATOS, 2008). As teorias feministas inicialmente se basearam para defender perspectivas de que o conceito de gênero evidencia sua construção culturalmente, diferenciando-se do de sexo, como adquirido naturalmente. Judith Butler (1990) aborda suas discussões no embate principal da distinção sexo/gênero, onde sexo é natural e gênero é construído socialmente, Entretanto Butler (1990) em sua teoria também aponta uma dualidade entre a discussão entre sexo/gênero, afirmando que: “talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nenhuma” (p. 25). Sendo assim, Butler (1990) indicava, que o sexo não é natural, mas é ele também discursivo e cultural como o gênero, devido ao fato da imposição cultural do comportamento. Dialogando com diferentes autoras, destacamos Simone de Beauvoir (1949) nas teorias de Butler (1990), a partir da célebre frase “a gente não nasce mulher, torna-se mulher”, Butler instiga o fato de que não há nada na fala de Beauvoir que garanta que o ‘ser’ que se torna mulher seja necessariamente fêmea” (1990, p. 27). Seguindo uma nova perspectiva acerca das teorias de identidade de gênero de Butler, a autora apresenta a “performatividade” do gênero, que consiste em uma incidência de práticas regulatórias e de repetição de comportamento preestabelecido culturalmente no que diz respeito a sexo e gênero. Portanto ressaltamos que de acordo com as teorias de Butler em contra
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partida com Beauvoir, não há um “corpo natural”, e sim, todos os corpos são “generificados”. Ainda no âmbito desta discussão, Butler afirma:
“Se o “corpo é uma situação”, como afirma Simone de Beauvoir, não se pode aludir a um corpo que não haja sido desde sempre interpretado mediante significados culturais; por tanto, o sexo poderia não cumprir os requisitos de uma facticidade anatômica pré-discursiva. De fato, se demonstrará que o sexo, por definição, sempre foi gênero (BUTLER, 2008, p.57).
Sendo assim, podemos caracterizar a “performatividade”, como uma reprodução frequente de comportamento, induzindo assim a mulher a se comportar de modo feminino e o homem a se comportar de modo masculino, e consequentemente excluir aqueles que não se encaixam no padrão ideal imposto pelas relações sociais de poder.
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Percebemos no cartum acima que a personagem Amely comporta-se como uma mulher e a sua “performatividade” é do âmbito sexual, e ela utiliza de seus trejeitos para tornar-se sexy e desejada pelo homem. Ao retratar o aspecto fisiológico nas teorias feministas, Beauvoir (2009) despertou uma polêmica, ao declarar que a maternidade deveria ser discutida a partir da escolha da mulher e não como um “destino fisiológico”, uma “vocação natural” (BEAUVOIR, 2009, p.645). A teoria de performatividade de Butler lançou algumas incompreensões, segundo Sara Salih (2012, p.90), houve a equivocada compreensão como livre escolha de gênero a “performar”, embora a própria caracterização do conceito de performatividade deixe evidente o quadro regulatório pelo qual gênero está imbricado.
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Ao demonstrar o cartum onde a representação da mulher é como um objeto sexual, percebemos que a mesma tem interesse em ser mãe, mesmo sendo um objeto de desejo.
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Tal conceituação fundamenta o que Butler chama de performatividade de gênero. Para a autora, gênero é o que performamos - um devir - em contraposição ao “ser”, fixo, estável e oposicional. Sendo assim, gênero é ação que dá existência ao que nomeia, “(...) não há identidade de gênero por trás das expressões do gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas próprias ‘expressões’ tidas como seus resultados” (Butler, 2003, p.48), indicando que a identidade de gênero advém das expressões de gênero, como estratégias discursivas e socioculturais. Butler (2003) argumenta que gênero é algo não concreto, mas que está constantemente reproduzindo, modificando e se movendo, a autora conceitualiza o gênero como uma função social repetitiva que foi moldada e criada ao longo dos tempos. Á autora demonstra que o “estilo corporal”, é um “ato” do que o “eu” representa, em outras palavras a “performatividade”. Percebemos que o gênero feminino demosntrado na personagem Amely não é conreto ela está sempre em mudança de acordo com sua função social, como podemos analisar a seguir.
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Notamos que a personagem modifica sua “performatividade” no decorrer de sua interação social, onde primeiramente ela retrata a famosa dançarina e atriz brasileira “Carmem Miranda” e após ela já está vestida como uma executiva até munida de um crachá de identificação, Butler (2003) ainda discorre afirmando que gênero não é algo único, e sim que se trata de uma parte "essencial" da identidade de um corpo que é apresentado ao mundo. Ela também sugere que a performance do gênero não processa nenhuma ideia de um sexo essencial. Através da repetição com o tempo o corpo cria uma ilusão destas “verdades” sociais e de identidades concretas, e aqueles que não se assumem seus “papéis” são excluídos/punidos. Assim sendo, Butler (2003) apresenta que esta ilusão deu a ideia da famosa relação dicotômica do homem/mulher. Portanto podemos perceber que a teoria da performatividade de Butler criou uma ideia de que o gênero está em constante mudança e movimento, e que o nosso corpo também constantemente faz “atos”, tendo assim a constatação de um gênero em fluxo constante. Butler (2003) corrobora com as teorias de Stuart Hall (1980) “identidade desfragmentada” e Bauman (2004) “identidade líquida” ao afirmar que a mulher não deve ter uma identidade “fixa”. Á autora também propõe um repensar nas limitações que a teoria feminista encara ao tentar representar as mulheres. Ela argumenta que não deveria existir um conceito unificado de mulher e que esse pudesse absorver outros conceitos. Na sessão a seguir discorremos brevemente acerca das teorias de Identidade.
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2.
Identidade
Nesta sessão argumentaremos algumas ideias acerca da Identidade. Destacamos entre alguns, dois sociólogos contemporâneos, Anthony Giddens e Zygmunt Bauman. Primeiramente Giddens (1999, p.9) afirma que a Modernidade altera radicalmente a natureza da vida social cotidiana e afeta os aspectos mais pessoais de nossa existência, e que ela também possui uma crescente interconexão entre dois “extremos” da extensão e da intencionalidade: influências globalizantes de um lado e disposições pessoais de outro. Entretanto é importante também discorrer sobre algumas outras teorias no que diz respeito a identidade; entre eles Benedetto Vecchi (in Bauman, 2004, p.21) que nos diz que “a identidade é sempre algo muito evasivo e escorregadio, quase uma priori, ou seja, uma realidade preexistente”. Émile Durkheim (2002), alega que as identidades coletivas sempre permanecem como pano de fundo. No entanto Bauman (2004, p. 89) inseriu-se no universo das teorias feministas para definir a identidade, e ainda aproveitou a oportunidade para parafrasear Jean-Paul Sartre ao dizer a célebre frase “que nascer mulher não é suficiente para nos tornar mulher”, ele argumenta que a identidade não é vista como coisa imutável, mas como algo em constante progresso, podemos também retomar aqui o que já foi mencionado anteriormente a frase de Simone de Beauvoir esposa de Sartre “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Portanto percebe-se nessas célebres frases que a identidade é algo construído socialmente, e que ela irá mudar gradativamente conforme necessidade ou opção; e não como somente algo imposto pelos modelos culturais. Nota-se através destes argumentos que com o advento da globalização, os sujeitos foram influenciados por várias transformações políticas e culturais, fazendo com que houvesse uma inovação na estrutura da vida dos homens e das mulheres apesar de suas condições socioeconômicas. Percebe-se que estas transformações acarretaram modificações na definição da identidade, e em destaque o gênero feminino, pois a construção social da identidade feminina é resultado de suas vivências culturais e estas irão influenciar a maneira de agir e pensar perante a sociedade. A identidade é vista como um produto social resultante da interação entre as pessoas e o mundo social, e partindo desta constatação afirmamos de acordo com Bauman (2004) que está identidade não é fixa, pelo contrário, ela é passível a mutações, dependendo
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muito do contexto onde essa está inserida. Stuart Hall (2006) comenta que a identidade está sendo extensamente discutida perante as teorias sociais, Bauman (2004) afirma que este termo é pertinente para debate, visto que o mundo está cada dia enfrentando mudanças culturas, sociais, econômicas e tecnológicas, parte de tudo isso é do advento da globalização, acarretando assim, um deslocamento, desfragmento das identidades, tornando-as “liquidas”. Ao falar das crises de identidade não podemos deixar de mencionar Hall (2006) que alega:
“a assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social” (HALL, 2006, p.7)
É evidente que todo este processo de mudanças ocasionou inúmeras mudanças no âmbito social, e consequentemente na identidade dos indivíduos. Portanto, é necessário discorrer e discutir sobre as identidades “desfragmentadas” (HALL) e identidades “liquidas” (BAUMAN). Segundo Hall “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como sujeito unificado.” (HALL, 1998, p.7) Stuart Hall (1998) discorre sobre a “desfragmentação” das identidades, e como essa colapsa com a realidade em que estamos inseridos socialmente ao afirmar que: “O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e não resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais ‘lá fora’ e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as ‘necessidades’ objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.” (HALL, 1998, p.12) Percebemos através das teorias de Hall que nós possuímos múltiplas identidades e que muitas vezes elas entram em crise ou colapso como ele mesmo afirma. Tudo isso é
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decorrente da pressão social em que estamos vivenciando, que constantemente precisamos assumir múltiplas funções para nos sentirmos inseridos em nossa sociedade. Os autores corroboram nas afirmações das crises de identidades Bauman (2004), Hall (1998) devido ao fato da globalização, levando assim ao colapso das identidades tradicionais, surgindo daí novas e liquidas identidades. Stuart Hall ainda sobre o advento da globalização e seu reflexo nas identidades, afirma que:
“Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’.” (HALL, 1998, p.75)
Autores como Guiddens (2002) discorrem sobre a auto identidade e como ela é afetada pela globalização e como ele discorre sobre o “futuro”:
“O planejamento de vida pressupõe um modo específico de organizar o tempo porque a construção reflexiva da auto-identidade depende tanto da preparação para o futuro quanto da interpretação do passado, embora ‘retrabalhar’ os eventos passados seja sempre importante nesse processo.” (2002, p. 83)
É importante também falar das constatações de Guiddens (2002, p. 96) acerca da postura/aparência que irá refletir na escolha das identidades, ele afirma que “nem a postura e a aparência podem ser consideradas definitivas”, ou seja, elas modificam constantemente, pois, os padrões são modificados com os tempos. Nos parágrafos a seguir voltaremos o nosso olhar para o feminismo, ou seja, as identidades feministas. Portanto focaremos de forma breve no período antes da revolução feminista, pois, as mulheres desempenhavam certos papéis que eram ditados/regulados pela sociedade, e estes papéis eram desempenhados de formas restritas, tais como, donas de casa, mães entre outros. Entretanto, pós-revolução, estas mesmas donas de casa, mães,
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agregaram aos seus papéis anteriores, novos papéis, tais como, trabalhos fora de casa, entre outros. Os estudos sobre a identidade feminina vêm sendo bastante explorado nas pesquisas literárias, entre os quais podemos reconhecer a figura da mulher através dos preconceitos, da mulher idealizada sublime ou da mulher fatal, além de diversos outros que compõem sua imagem enquanto ser que tende a ser estereotipado. Propomo-nos, assim, verificar a identidade feminina a partir da representação social das personagens dos cartuns da Pryscila Vieira, a Amely e Deprezynha. Bauman (2005) discorre sobre a construção da identidade, e como estamos inseridos em uma sociedade nos oferece inúmeras alternativas de objetos, lugares e situações, concretizaremos portanto a tão almejada definição de nossa identidade, ou até mesmo uma ilusão de uma identidade provisória, já que esta irá se adaptar dependendo do contexto. O autor ainda alega que o indivíduo precisa: “Selecionar os meios necessários para conseguir uma identidade alternativa de sua escolha não é mais problema (isto é, se você tem dinheiro suficiente para adquirir a parafernália obrigatória). Está à sua espera nas lojas um traje que vai transformá-lo imediatamente no personagem que você quer ser, quer ser visto sendo e quer ser reconhecido como tal”. (BAUMAN, 2005, p.91) Finalmente concluímos que o indivíduo na modernidade pode escolher qual identidade poderá “performatizar” socialmente, de acordo com o contexto em que está inserido para ter um sentimento de pertencimento, mesmo que seja momentâneo. Na sessão a seguir discutiremos de forma breve acerca da representação feminina e como está ainda é vista de uma forma estereotipada.
3.
Representação
Nesta parte do artigo o foco limita-se na abordagem da representação da mulher perante a sociedade, ou seja, o universo feminino. A representação social ainda está indissociavelmente ligada ao sujeito que a produz: um grupo que, numa rede de relações de produção, ocupa um dado lugar. É importante discutir acerca da ideologia na representação da mulher como tendo uma imagem estereotipada no âmbito cultural,
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podemos afirmar de acordo com Lauretis (1978, p. 28) “que está imagem da mulher é baseada em critérios preestabelecidos socialmente e impõe uma imagem idealizada da mulher”. Portanto percebemos que esses estereótipos que a sociedade impõe das mulheres oprimem-nas e as transformam em objeto, muitas vezes anulando o seu papel social. Nas teorias de representação feminista percebemos uma discriminação nas funções das mulheres, e no século XX, esta discriminação intrigou muitos pesquisadores, estes passaram a discorrer pesquisas acerca da temática, possibilitando assim, uma conscientização mais abrangente sobre a opressão vivenciada pelas mulheres na sociedade. Autoras como Teixeira (2008, p.3) enfatizam que “esses intelectuais queriam construir múltiplas identidades femininas, não apenas nos discursos de senso comum, mas também nos discursos científicos e feministas”. Portanto, a representação feminista na literatura é marcada pela “busca por meio de seus personagens, estabelecerem representações que questionam e contestam as posições ocupadas por homens e mulheres na sociedade” (TEIXEIRA, 2008, p. 33).
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Percebemos no cartum que a representação feminina da personagem Amely, representa a sexualidade feminina e o ideal de mulher estereotipada pelo homem. Portanto podemos enfatizar que a representação feminina presente nos cartuns estabelecem relações que muitas vezes contestam as posições sociais entre os homens e
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mulheres. Percebemos também uma discriminação das funções da mulher representada aqui, tornando-a um “objeto sexual”. Também elencamos que a representação do indivíduo perante a sociedade é um fator discutido por vários autores, entre eles enfatizamos Guiddens que discorre sobre a auto realização do indivíduo, e seus riscos perante a ruptura de padrões, isto tudo perpetua as afirmações das escolhas de identidades de alguns outros autores. Guiddens discorre que: “A auto-realização depende do enfrentamento de determinados riscos, e do equilíbrio entre riscos e oportunidades. “O indivíduo deve enfrentar novos riscos decorrentes da ruptura com os padrões estabelecidos de comportamento – inclusive o risco de que as coisas possam ficar piores do que estavam”. (GIDDENS, 2002, p.77)
Um autor, muito referido, quando se trata de questão da Identidade, pensada na conjuntura da mundialização é Castells (1997). A mundialização seria, todos tem acesso a tudo, sem fronteiras. Ele considera que a mundialização e a identidade são duas forças contrárias que estão em luta para “remodelar nosso mundo e nossas vidas”. Finalmente, percebemos que a representação feminina atualmente é difundida como uma conquista de expressividade e processos de construção de inúmeras identidades. A representação das personagens femininas (re) constroem suas posições sociais de exclusão. É também evidente que a mulher é retrata sempre como o significante do outro masculino, e como ela está inserida em uma sociedade patriarcal, ela está à margem de uma ordem simbólica, em que o homem nas maiorias das vezes silencia as mulheres, pois está ainda é “portadora de significado e não de produtora de significado (MULVEY, 1977, s/p). Althusser (1985) contribuiu de forma significativa nos estudos de representação, nos permitindo pensar na “diferença” de tradições e representações. O autor discorreu sobre a ideologia acerca da criação de rupturas históricas nas mudanças das articulações perante grupos sociais, e nas práticas políticas e formações de ideologias. Portanto ao discorrer sobre “representação” é importante enfatizar os estudos culturais, pois cultura e sociedade, estão vinculadas no mesmo movimento, de tradição, formando assim, uma unidade. Ao citar cultura, devemos também elencar que, há várias questões nas mudanças históricas do indivíduo, portanto sua representação é afetada ou modificada socialmente. No nosso caso, a representação feminina é modificada.
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Portanto concluímos que são os homens os produtores das representações femininas que existem atualmente, e que estas representações estão ligadas de forma direta no ser, agir e se comportar das mulheres da atualidade. Existe também discussões acerca da imagem projetada da mulher contemporânea no requisito de elas serem o que os homens anseiam que elas sejam.
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CANÇÃO, PARA QUÊ? UMA ANÁLISE DA ABORDAGEM AO GÊNERO PELOS LIVROS DIDÁTICOS Carla Catarina Silva (UENP/PIBID) Ao considerar a importância dos gêneros como instrumento integrante do ensino e da aprendizagem escolar, interessamo-nos em investigar qual o tratamento conferido ao gênero textual canção pelos livros didáticos de língua portuguesa, tendo como direção, sobretudo, as orientações das Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná (DCE) (PARANÁ, 2009), e dos Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa (PCNs) (BRASIL, 1998). Nossa intenção foi somente investigar o tratamento disposto à canção no livro didático como um gênero textual, não nos preocupando em nenhum momento com as normatizações sobre o ensino de música nas escolas regidas pela Lei n: 11.769 de 18/08/2008, a qual estabelece a música como conteúdo do componente curricular nas séries iniciais da Educação Básica. Norteados pelos pressupostos do Interacionismo Sociodiscursivo, nossa premissa é a de que embora o gênero canção esteja constantemente presente nos livros didáticos, a canção não seria, propriamente, um gênero a ser concebido em uma dupla possibilidade de abordagem escolar, o que se justifica diante do fato de que o professor de língua portuguesa não dispõe de formação para o trabalho com um dos elementos que compõem a canção, o seguimento musical. Analisamos então, a coleção “Português – Linguagens” (CEREJA & MAGALHÃES, 2005) formada por 3 volumes destinados aos três anos do Ensino médio. Os resultados dessa investigação apresentamos na Tabela a seguir: Tabela 1: Denominações e tipo de abordagem aos gêneros pelo livro didático
Denominações dadas pelo livro – 1º ano EM ou Poema Letra de Sem Tipo de abordagem Canção música música denominação proposta – 1º ano EM (apresentados como sinônimos) Pretexto para o trabalho com X X X um tema
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Pretexto para o trabalho com os elementos do gênero lírico. Pretexto para o trabalho com intertextualidade. Pretexto para o trabalho com a escola literária Barroco. Pretexto para o trabalho com a conotação Pretexto para o trabalho com sonoridade( sonorização) Pretexto para o trabalho com os aspectos das cantigas medievais Trabalho com contexto Pretexto para o trabalho com figuras de linguagem (metáfora)
X X
X X
X X X X X X
Denominações dadas pelo livro – 2º ano EM ou Letra de Texto Tipo de abordagem Canção música música proposta – 1º ano EM (apresentados como sinônimos) Pretexto para o trabalho com X X um tema Pretexto para o trabalho com X jogo de palavras. Pretexto para trabalho com X semântica, interjeição, classe de palavras. Pretexto para trabalho com a X sintaxe. Pretexto para o trabalho com X fonemas Denominações dadas pelo livro – 3º ano EM ou Tipo de abordagem Canção música proposta – (apresentados 3º ano EM como sinônimos) Pretexto para o trabalho com X um tema
Percebemos que no livro destinado ao 1° ano do Ensino Médio, o termo canção ou música (apresentados como sinônimos) aparece 7 vezes; no livro do 2° ano, 3 vezes; no livro do 3° ano, 5 vezes. O termo letra de música/canção no volume do 1° ano aparece 3 vezes; no livro do 2° ano, 2 vezes. O termo poema (em referência a uma letra
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de música) aparece uma vez no livro destinado ao 1° ano. O termo texto é usado 2 vezes no livro do 2° ano, e o trecho de uma letra de canção é apresentado sem nomenclatura 2 vezes no volume do 1° ano. A Tabela põe em evidência que a coleção não toma todos os elementos que constituem o gênero como objeto de ensino. Destacamos ainda que devido, muitas vezes, os termos apresentados serem postos como sinônimos, o livro didático acaba por afastar completamente a concepção de gêneros construída por Bakhtin (2003). Contudo, em alguns momentos na obra, os diferentes gêneros são nomeados e trabalhados de forma muito conciliadora ao que Bakhtin teoriza como sendo um gênero, como, por exemplo, no livro do 1° ano do Ensino Médio, na unidade 3, capítulo 26, onde um dos elementos que compõe o gênero, o contexto de produção da letra de uma canção, é amplamente trabalhado, porém nenhum outro elemento é abordado. Os resultados demonstram que o gênero canção é frequentemente confundido com outros gêneros, tanto nas nomenclaturas utilizadas como nas propostas de abordagem. Percebemos ainda que o trabalho com o gênero letra de música/canção pode ser muito válido, já que, sendo esse um seguimento verbal, poderá ser trabalhado pelo professor de língua portuguesa. Diferentemente do gênero canção, onde a formação docente na língua portuguesa não possibilita ao profissional o domínio do seguimento musical desse gênero textual. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Língua Portuguesa. Brasília. Secretaria de Educação Fundamental, 1998. CARETTA, A. A. Por um Método de Análise Discursiva da Canção Popular. In: MARÇALO, M.J. et al. Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas. Universidade
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O TEXTO DE HUMOR E O LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA Claudia Moura da Rocha (UERJ)
Por algumas razões, escolhemos o texto de humor e o livro didático de Língua Portuguesa como tema de nossa pesquisa de doutoramento (ROCHA, 2013), que ora apresentamos. Entre as motivações que nos levaram a empreender esta pesquisa, podemos citar a presença expressiva de textos de humor, dos mais variados gêneros (das histórias em quadrinhos e charges, passando pelas piadas, até contos e crônicas humorísticas), nos livros didáticos de Língua Portuguesa. Há coleções de livros didáticos que também têm dedicado capítulos ao assunto. Ademais essa razão, podemos perceber que o humor linguisticamente provocado (o humor que surge de algo que é dito, que surge com o uso da própria língua) oferece farto e rico material que pode, e deve, ser explorado didaticamente em sala de aula. Costumamos ouvir muitas queixas a respeito do desinteresse dos alunos e o humor pode ser uma maneira de despertar-lhes o interesse pelo aprendizado do próprio idioma. É mister lembrar que o livro didático, não obstante todas as críticas que receba (por inadequações metodológicas ou conceituais), ainda é o material didático mais acessível ao professor e um dos mais empregados por ele também. Devido ao PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), a distribuição de livros didáticos de diversas disciplinas têm atingido cada vez mais salas de aula, o que garante a sua efetiva presença no processo de ensino atual. O objetivo de nossa pesquisa é descrever e explicar como o humor verbal é abordado pelos autores de obras didáticas. Para tanto, coletamos dez coleções de livros didáticos de Língua Portuguesa do segundo segmento do Ensino Fundamental, distribuídas pelo PNLD 2011, visando a uma análise documental. Realizamos uma pesquisa de cunho descritivo-explicativo, de caráter sincrônico na discussão do exemplário.
I. Levantamento dos gêneros textuais de humor encontrados em livros didáticos de Língua Portuguesa
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1.1. Definição de gênero textual Antes de passarmos ao levantamento dos principais gêneros de humor encontrados, é relevante salientar que adotamos a concepção de gênero do discurso proposta por Bakhtin (2003, p. 262), que os considera tipos relativamente estáveis de enunciado que cada campo de utilização da língua elabora. Alguns autores também empregam a expressão gênero textual. Em nossa pesquisa, adotamos o procedimento proposto por Marcuschi (2008, p. 154), que considera as expressões gênero textual, gênero do discurso e gênero discursivo como intercambiáveis. O que é possível perceber em várias definições propostas para gênero é seu caráter sócio-histórico, uma vez que são práticas de linguagem construídas historicamente, em seu uso diário, e empregadas pelos falantes em sociedade (cf. Marcuschi, 2007, p. 29). Ou ainda, segundo Dolz e Schneuwly (2004, p. 43), os gêneros são “práticas de linguagem historicamente construídas”. Em suma, o que se nota, no tocante aos gêneros, além de seu caráter sóciohistórico, é que esses textos são empregados com um objetivo comunicativo e seguem características estruturais (formais) próprias, sendo, portanto, enunciados relativamente estáveis.
1.2. A importância dos gêneros textuais para o ensino O ensino da língua portuguesa tomando como base o gênero é um consenso nos dias atuais. Essa postura se deve muito aos avanços ocorridos nos estudos linguísticos, que creditam ao texto posição de destaque no processo de ensino-aprendizagem de língua materna. Isso ocorre por, no mínimo, duas razões. A primeira delas é que uma língua somente se concretiza em textos, os quais, por suas características específicas (estilo, composição, conteúdo e função) se agrupam em famílias de textos (cf. MARCUSCHI, 2007, p. 29), os chamados gêneros textuais. A segunda das razões é que o domínio dos gêneros (ler textos de diferentes gêneros ou produzi-los) permitiria ao falante o emprego, com mais segurança e eficiência, da língua que lhe pertence, evitando situações de desigualdade e exclusão social.
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Como se vê, é necessário estudar os mais variados gêneros, bem como suas características e funções. Assegurar ao aluno o acesso a textos de gêneros variados é permitir-lhe maior domínio sobre seu idioma e o desempenho consciente de seu papel de falante e cidadão, garantindo-lhe maior autonomia como leitor e produtor de textos e o desenvolvimento de sua capacidade de empregar e reinventar os gêneros. Como os livros didáticos de Língua Portuguesa atuais passaram a incorporar variados gêneros do cotidiano, os textos de humor e, consequentemente, os gêneros relacionados ao assunto conquistaram uma posição de destaque, o que certamente justifica o seu estudo. É cada vez mais expressiva a presença, nas obras didáticas, de histórias em quadrinhos, charges, cartuns, piadas, contos e crônicas de humor, e, até mesmo, de capítulos inteiros dedicados ao tema. Ao trabalhar os mais diferentes gêneros textuais, o professor oferece ao aluno maior contato com a língua em uso e acesso à imensa variedade de textos que circulam na vida em sociedade. Por outro lado, os fenômenos linguísticos não se manifestam isoladamente, de forma estanque, mas em textos, servindo para gerar efeitos expressivos. Por essa razão, nos dedicamos a estudar os gêneros de humor, pois é neles que encontramos o humor verbal, que tem sido o objeto de nossas pesquisas anteriores.
1.3. Os gêneros textuais nos livros didáticos Os gêneros textuais assumem lugar de destaque no ensino de Língua Portuguesa e, por conseguinte, no livro didático, com a implementação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (os PCN), entre os anos de 1997 e 1998. Com isso, o texto, e não mais a palavra ou a frase descontextualizada, passa a ser o centro das atenções. Essa mudança de paradigma é decorrente dos avanços nos estudos linguísticos, com as contribuições da Linguística Textual, dos estudos do letramento e de pesquisas sobre texto e discurso. É muito oportuno lembrar que, a partir da década de 1960, também ocorreu uma modificação no perfil discente, em virtude da ampliação do acesso da população à educação. Como muitos estudantes (oriundos de classes populares) apresentavam níveis de letramento bastante heterogêneos, foi necessária uma mudança na seleção dos textos a serem trabalhados com esse alunado (BUNZEN e ROJO, 2005, p. 77-78): paralelamente à diminuição do beletrismo do ensino de Língua Portuguesa,
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ocorre a preocupação com a realidade prática, com ênfase em gêneros que circulavam na comunicação de massa e nas mídias. Clare (2002) esclarece que, a partir dos anos 1970, ganham destaque os textos jornalísticos e publicitários, textos não verbais, charges e histórias em quadrinhos, “praticamente ignorando-se os literários”. O trabalho com textos não pode ser considerado recente, uma vez que no final do Século XIX já encontramos antologias elaboradas pelos autores de gramáticas para uso escolar; selecionavam-se textos considerados modelos de linguagem e de construção, acrescidos de comentários sobre vocabulário e gramática (AZEREDO, 2007, p. 105). No entanto, podemos concluir que os PCN vieram a consolidar uma tendência que já se fazia sentir há algum tempo: o fim da hegemonia dos textos literários. Desde a década de 1970, ocorreu a progressiva inclusão de textos do cotidiano, sem, no entanto, excluir os de cunho literário. Além disso, o texto (alçado à categoria de unidade básica de ensino) passa a ser abordado a partir de sua condição de gênero textual. E, como os livros didáticos seguem as orientações dos PCN, o ensino de Língua Portuguesa baseado nos gêneros passa a ser uma condição a ser cumprida por essas obras didáticas. A inclusão, nos livros didáticos de Língua Portuguesa, de inúmeros gêneros textuais do cotidiano acabou por consolidar a presença dos textos de humor nessas obras.
1.4. Os gêneros textuais de humor nos livros didáticos: ontem e hoje Observando os Programas de Ensino do Colégio Pedro II/Ginásio Nacional (SOUZA, 1999), instituição fundada em 1837 e considerada modelo para outras escolas da época, encontramos as primeiras referências a textos de humor no ensino (são indicados como tópicos a serem abordados a comédia e o epigrama, uma pequena composição em verso sobre qualquer assunto ou uma composição poética, breve e satírica, que expressa, de forma incisiva, um pensamento ou um conceito malicioso; sátira). Em seguida, pesquisamos alguns livros de leitura a que tivemos acesso. Essas obras podem ser divididas em duas categorias: os livros dedicados aos leitores iniciantes, em que predominam textos dos próprios autores; e as obras em que
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predominam textos de autores consagrados ou em que se mesclam textos dos próprios autores com os de escritores consagrados da literatura portuguesa e brasileira. Nos livros de leitura dedicados às crianças não encontramos muitos indícios da presença de textos humorísticos; encontramos alguns textos bem-humorados (ou seja, textos mais leves, menos carrancudos, sérios, mas não textos humorísticos). A seleção de textos privilegiava os valores e os bons costumes; muitos textos também primavam pelo nacionalismo. Os livros de leitura para os leitores mais proficientes ofereciam textos de autores consagrados, como os portugueses Alexandre Herculano, Almeida Garret, Camões e os brasileiros José de Alencar, Castro Alves e Machado de Assis, dentre outros. Encontramos, por exemplo, no Quarto livro de leituras para uso das escolas primárias e secundárias (Série Rangel Pestana), da coleção João Köpke, publicado em 1909 pela Livraria Francisco Alves, o texto A ponta do nariz, trecho do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, que, se não pode ser considerado humorístico, é um exemplo representativo da ironia. Se os livros de leitura eram destinados aos alunos das séries iniciais, as antologias eram reservadas aos alunos das séries mais avançadas. Algumas dessas obras já apresentavam textos humorísticos (poucos, vale ressaltar), porém predominavam os literários. Nelas identificamos os primeiros casos de textos humorísticos nas obras didáticas, como ocorre em Antologia brasileira: coletânea em prosa e verso de escritores nacionais, de E. Werneck, publicado pela Livraria Francisco Alves, em 1945. Em seu índice, encontramos uma seção intitulada Humorismo, composta por textos sobre a vida e a obra de França Jr. e Urbano Duarte (dois comediógrafos), além de dois textos escritos pelos respectivos autores (Jantares e O matuto mineiro); uma seção intitulada Teatro, composta por comédias (A família e a festa na roça, de Martins Pena, e Como se fazia um deputado, de França Jr); e outra seção de sátiras e epigramas. Como é possível observar, os textos de humor foram paulatinamente sendo incorporados aos materiais didáticos. A princípio não ocupavam um lugar de destaque nas antologias, que privilegiavam os textos literários de temática não humorística. Com o advento do livro didático e a adoção de uma nova concepção de língua (considerada como um instrumento de comunicação), a partir da década de 70, as histórias em
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quadrinhos e as charges passam a figurar nessas obras. A linguagem não verbal ganha importância e passa a ser abordada pelos livros didáticos. Por outro lado, os textos literários perdem a hegemonia, mas continuam ocupando um lugar de destaque nessas obras. É o que identificamos em Comunicação, Interpretação, obra de Leite, Nunes e Erman, publicada pela Companhia Editora Nacional, em 1978. Esse livro apresenta cartuns, histórias em quadrinhos (tirinhas), anedotas, dentre outros gêneros textuais, ao lado dos tradicionais textos literários. Os livros da década de 1970 consolidam a inclusão e a aceitação dos gêneros de humor ao trazerem os textos do cotidiano para a sua seleção. É nesse momento que o texto humorístico ganha espaço nos livros didáticos e no ambiente escolar, ocorrendo a introdução de textos que aliam a linguagem não verbal (imagens) à verbal. Duas décadas depois, com a implementação dos PCN, a seleção de textos tornase mais variada ainda e o enfoque passa a ser sobre o gênero textual, incluindo o estudo de suas características. A essa altura, os textos humorísticos encontram-se perfeitamente integrados às obras, merecendo até, em alguns casos, capítulos dedicados ao tema. O que se pode concluir a partir dessa breve análise é que a presença de textos de humor em obras didáticas não é novidade nem exclusividade dos livros didáticos atuais, pois, como demonstrado anteriormente, eles já eram encontrados nos Programas de Ensino do Colégio Pedro II e nas antologias. Constatamos que houve uma mudança dos gêneros selecionados: antes figuravam comédias e epigramas; depois ocorre a predominância de gêneros narrativos, como crônicas e histórias em quadrinhos. Houve também um aumento considerável da quantidade de gêneros textuais de humor selecionados por tais obras.
1.5. Principais gêneros textuais de humor encontrados Ao analisarmos um livro didático publicado recentemente, notaremos como a seleção textual é bastante rica e diversificada. Entre os textos selecionados, encontraremos gêneros de humor e até capítulos inteiros dedicados ao tema (cf. DELMANTO; CASTRO, 2009, p. 8-33). No capítulo intitulado “Quem ri por último” (que remete intertextualmente ao provérbio “Quem ri por último, ri melhor”), são arrolados os mais diversos gêneros humorísticos, dentre os quais, peça policial, fábula,
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poema, narrativa de humor negro, propaganda, cartaz de filme, cartum, história em quadrinhos, anedotas. Em nossa pesquisa, procuramos verificar quais gêneros textuais de humor eram os mais recorrentes nas coleções. Identificamos, dentre outros gêneros, a presença de tira, piada, anedota, crônica, anúncio publicitário, conto popular, cartum, charge, peça teatral, trava-língua, letra de música, narrativa, histórias em quadrinhos, paródia, causo, poema, conto, fábula e caricatura. Notamos também o predomínio das tiras sobre os outros gêneros textuais de humor. Esse gênero textual é empregado em todos os anos do Ensino Fundamental; charges e cartuns são mais encontrados nos volumes dos anos finais, enquanto as histórias em quadrinhos predominam quantitativamente nos dos anos iniciais. Identificamos outro dado relevante: a piada, ao contrário do que se poderia esperar, não se constitui em uma preferência, sendo muito encontrada nos livros dos anos iniciais. Percebemos também o predomínio de gêneros que mesclam a linguagem verbal e a não verbal, que é o caso das histórias em quadrinhos, tiras, cartuns, charges. Se outrora predominava a crônica, atualmente os gêneros que utilizam uma linguagem mista são os que mais se destacam. Os textos mais extensos (como as crônicas) são mais empregados nas atividades de leitura e interpretação de texto. Em comparação às tiras, as crônicas e os contos são empregados em quantidade bastante reduzida.
1.6. Como os gêneros textuais de humor são abordados pelos livros didáticos Em nossa pesquisa, buscamos investigar que tratamento era dado pelos livros didáticos ao texto humorístico, ou seja, como os gêneros textuais de humor eram abordados por essas obras. Identificamos que, em algumas situações, o texto humorístico é empregado como um pretexto para o ensino de gramática, apesar de essa prática ser condenada pelos PCN, documento que orienta tais obras. Apesar do que é proposto no Manual do Professor sobre a coleção estar em consonância com os PCN no tocante a uma abordagem contextualizada dos conteúdos linguísticos, não é raro encontrarmos questões que se restringem a cobrar dos alunos um conhecimento de ordem
gramatical
ou
nomenclatural,
geralmente
explorando
frases
soltas,
descontextualizadas, como ocorre no exemplo a seguir:
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6. Reconte a anedotinha abaixo, transformando a personagem principal numa garota que só tem uma irmã. Um menino num programa de TV. Fala o animador: — Você tem irmãos? — Tenho um mais novo. — Ele está na escola? — Não. Ele está em casa, fingindo de enfermo, para me ver na TV. (Ziraldo. Anedotinhas do Bichinho da Maçã. São Paulo, Melhoramentos, 1993. p. 27) (DELMANTO; CASTRO, 2009, p. 124 – 6º ano)
Identificamos também, no decorrer da pesquisa, a exploração do humor verbal. Por meio de perguntas, busca-se averiguar se o aluno identifica que elemento de ordem linguística é responsável pelo humor do texto, como exemplificaremos a seguir. Dentre as questões apresentadas sobre o texto “Assalto”, de Carlos Drummond de Andrade, encontramos: 7) Em que consiste o caráter cômico do texto? Resposta do professor: O efeito cômico é resultante de um equívoco, decorrente da atribuição de um significado à palavra assalto diverso daquele que foi empregado pela senhora. Professor(a): Trata-se de um recurso cômico bastante utilizado nas comédias: o quiproquó, que consiste na confusão de uma coisa com outra (...). (TERRA; CAVALLETE, 2009, p. 38 – 6º ano)
Encontramos também a exploração das características do gênero textual, o que demonstra a preocupação em tratar o texto sob a ótica dos gêneros textuais: Tira ou tirinha (marcas do gênero) As tiras ou tirinhas narram episódios breves, curtos, que se desenrolam, geralmente, em três ou quatro quadrinhos. (...) A linguagem visual apresenta imagens das personagens e da situação, balões e outros recursos gráficos. (...) A fala ou o pensamento das personagens, geralmente, aparece nos balões. (...) O quadrinista desenha o contorno dos balões de acordo com o que quer indicar: fala, pensamento, monólogo, gritos, sussurros ou emoções de personagens. Além dos balões, o quadrinista usa outros recursos gráficos para mostrar movimento, como traços, gotas, riscos de várias formas, negrito, entre outros recursos. Também utiliza onomatopeias (palavras que imitam sons), que pode colocar dentro ou fora dos balões. (SETTE et alli, 2009, p. 62 – 6º ano)
Essa preocupação em observar as características dos gêneros textuais também se
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verifica nas atividades de produção textual. Em geral, as características do gênero textual de humor abordado são apresentadas ao aluno antes que lhe seja proposta a atividade de produzir seu próprio texto. O texto de humor também pode ser empregado para exemplificar um conteúdo gramatical ensinado, como encontrado no excerto a seguir: Substantivos são palavras que nomeiam seres — visíveis ou não, animados ou não —, ações, estados, sentimentos, desejos e ideias. Veja outros exemplos de substantivos nesta piadinha: Na feira, uma senhora vê um agricultor vendendo morangos e diz: (...). (CEREJA; MAGALHÃES, 2009, p. 79 – 6º ano)
II. Texto de humor: uma proposta de análise semiótica Como se pode perceber, a prática de empregar os textos (inclusive os de humor) como pretexto para ensinar gramática, ou para exemplificar um conteúdo a ser ensinado, ainda persiste em algumas obras. O que propomos é uma análise semiótica dos textos, em especial do humorístico, com o objetivo de levar o aluno a tornar-se um leitor proficiente e autônomo. Reconhecer a iconicidade presente nos textos é identificar neles marcas que guiam o leitor à maneira de pistas. Identificar a iconicidade nos textos, além de facilitar a leitura, oferece ao leitor mais ferramentas que o ajudarão na tarefa de estabelecer o(s) sentido(s) do texto. Dessa forma, o leitor será capaz de reconhecer a presença da iconicidade verbal (SIMÕES, 2004; 2009): a) diagramática (a forma como os elementos verbais e não verbais se distribuem e se organizam sobre a superfície textual): os gêneros de humor costumam apresentar desenhos ou imagens circunscritas a quadros, com ou sem bordas (no caso da charge, um único quadro; no caso das tirinhas, das histórias em quadrinhos e dos cartuns, costuma-se empregar mais de um quadro); as falas das personagens, por sua vez, aparecem dentro de balões (com diversos formatos, cada um com um significado diferente); há o emprego de muitas cores, letras de tamanhos e de formatos variados; b) lexical (se manifesta por meio da seleção dos itens lexicais ativados no texto): é possível perceber, nos textos humorísticos, uma predominância do registro informal. Piadas, por exemplo, abusam de termos coloquiais, de gírias e, por vezes, de palavras
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chulas. Histórias em quadrinhos e tirinhas, com o intuito de atingir seu público-alvo (infanto-juvenil, na maioria dos casos), também lançam mão do registro informal. A seleção vocabular também desempenha papel essencial na produção do riso. A escolha de uma palavra em lugar de outra, mesmo que as duas sejam sinônimas, pode não produzir o efeito esperado. Os textos de humor, assim como os textos literários, tiram bastante proveito da polissemia e da ambiguidade vocabular; c) linguístico-gramatical (se concretiza no emprego estratégico das classes, categorias, relações e mecanismos gramaticais em prol da legibilidade ou da opacidade textual e o aproveitamento das informações gramaticais na descoberta das intenções expressivocomunicativas inscritas no texto): caracteriza-se pela estratégia no emprego dos recursos linguísticos pelo produtor de um texto, com o objetivo de gerar efeitos de sentido. No caso dos gêneros de humor, a escolha dos recursos linguístico-gramaticais visa a gerar o riso; d) isotópica (se manifesta por meio de trilhas temáticas que colaboram para a produção do sentido): a iconicidade isotópica está relacionada ao conteúdo temático dos gêneros. No caso dos gêneros de humor, podemos perceber que esses se prestam a veicular críticas a determinados comportamentos da sociedade, de diferentes formas, de acordo com as características dos gêneros. Esperamos ter contribuído para os estudos do humor verbal e sua aplicação ao ensino de língua portuguesa. Acreditamos que a utilização de textos de humor enriquece o ensino de língua materna, funcionando como um atrativo para aquele aluno que se mostra desinteressado pelo estudo de sua própria língua.
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ANÁLISE DE UMA UNIDADE DIDÁTICA DE LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTO COM ARTIGO DE OPINIÃO PARA O ENSINO FUNDAMENTAL Cláudia Valéria Doná Hila (UEM) Lilian Cristina Buzato Ritter (UEM)
Introdução O Mestrado Profissional em Letras – PROFLETRAS, da Universidade Estadual de Maringá, teve início no ano de 2013, com 10 professores-mestrandos em serviço, com o tempo mínimo de 10 anos de trabalho. Essa clientela, com bastante experiência em sala de aula, carece, no entanto, de subsídios teórico-metodológicos para o processo de transposição didática das práticas de linguagem na educação básica, a saber: a leitura, a produção de textos e a análise linguística. Diante desse contexto, como proposta de trabalho final da disciplina “Texto e Ensino”, a qual teve como objetivo principal aprimorar o conhecimento do professor sobre o processo de leitura e escrita a partir de uma abordagem discursiva de texto, solicitamos aos nossos alunos que elaborassem uma unidade didática com as práticas linguísticas, a partir de um gênero discursivo qualquer. Nosso intuito foi o de perceber se as teorias oferecidas durante a disciplina, em especial, as de vertente discursiva, como a Análise Dialógica do Discurso (BAKHTIN, 2003; BAKHTIN/VOLOSHINOV, 1988), haviam sido internalizadas e transpostas por meio dos exercícios. O objetivo deste artigo é discutir os resultados da elaboração de uma unidade didática para o 9º ano, que teve o gênero artigo de opinião como eixo organizador. Para isso, iniciamos a primeira seção com o conceito de enunciado concreto, base fundante do trabalho, na sequência, discutimos algumas das atividades de leitura e de análise linguística, após a produção textual da unidade, seguida das conclusões.
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O enunciado concreto e o gênero discursivo como bases da elaboração didática A base norteadora para a elaboração das unidades didáticas na disciplina “Texto e Ensino” partiu da concepção de texto como enunciado concreto, à luz da Análise Dialógica do Discurso. A compreensão do termo “enunciado concreto” parte da premissa de que a linguagem é compreendida a partir de um ponto de vista histórico, cultural e social que envolve toda uma situação de interação. Para Bakhtin/Voloshinov (1988, p. 92), o locutor serve-se da língua para suprir suas necessidades enunciativas concretas “num dado contexto concreto”, o que reforça a natureza social do processo de enunciação. Toda enunciação, portanto, é um “elo da cadeia dos atos de fala” (p.98), pois carrega marcas de enunciados que a precederam e provoca novas reações em outros e o seu sentido é completamente determinado pelo contexto. Nas palavras dos autores “a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados” (p.112). Dessa forma, enunciação é determinada pelo contexto e também pelos interlocutores. Por esses elementos, o enunciado se opõe à simples oração, pois: a) é uma unidade real de comunicação materializado pelos gêneros do discurso; b) o enunciado apresenta um acabamento específico, determinado pelo querer-dizer do locutor, pelo seu tema e pelo próprio gênero no qual se materializa; c) pressupõe um estilo, uma posição valorativa da realidade, na medida em que é composto por signos ideológicos. No capítulo “Os gêneros do discurso”, Bakhtin (2003) aponta as características do enunciado concreto como unidade real de comunicação. A primeira delas é que o enunciado é efetivamente a unidade de comunicação verbal, já que não nos comunicamos por orações. Isso dá importância não apenas à materialidade linguística do texto, mas as suas condições de produção (quem diz, para quem diz, onde se diz, como se diz). A segunda particularidade é a alternância dos sujeitos falantes, ou seja, o locutor fala ou escreve em um momento e contexto determinado e espera uma resposta do seu interlocutor. Bakhtin (2003, p.291) chama esse processo de “postulado da réplica” ou reações-respostas do interlocutor. Isso acontece porque o enunciado ocupa uma
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determinada esfera ou campo da comunicação verbal, carregada de marcações ideológicas relativas a uma determinada questão. O interlocutor ao confrontar com o enunciado manifesta sua resposta, concorda, discorda, refuta, confirma, dentro de uma relação dialógica ininterrupta e permanente, o que determina outra particularidade do enunciado: seu acabamento específico. Esse acabamento é determinado por três fatores: a) o tratamento exaustivo do tema; b) o intuito ou querer-dizer do locutor; c) as formas típicas de estruturação do gênero. No que diz respeito ao tratamento exaustivo do tema, dentro das ciências humanas, o tema é sempre inesgotável e é determinado, nos gêneros discursivos, não apenas pela sua materialidade linguística como também pelos elementos não verbais que o cercam. No caso específico da produção textual, o tratamento exaustivo do tema requer que o professor dê chances do aluno ter o que dizer no momento de sua produção textual, por meio de leituras, discussões sobre aquilo que será seu objeto temático, orientado pela situação específica de interação. Menegassi (2010), estudando essa questão discute que a exauribilidade temática em Bakhtin pode ser plena e relativa. A plena se manifesta em gêneros facilmente identificados pelos sujeitos da interação, por causa da padronização do gênero discursivo em uma data situação de comunicação. Nesses casos, a criatividade do sujeito aluno é restrita. Podemos exemplificar com o gênero prova, na qual o aluno precisa corresponder aos padrões estabelecidos pelo enunciado formulado pelo professor. Por outro lado, a exauribilidade temática relativa é caracterizada justamente nos enunciados em que a criação é solicitada, não somente permitida, em função da situação comunicativa. Conforme Menegassi (2010, p.35) Essa relativa conclusibilidade é exigência do gênero discursivo, justamente por ter seus limites como enunciado concreto imposto pelo grupo social em que circula. Assim, a temática de um gênero é sempre ligada à sua circulação social e seus interlocutores, que já a esperam, inclusive, também, esperando uma parcialidade na apresentação desse tema. Com isso, em função da definição das ideias do produtor, o leitor sabe que o gênero trabalhado necessariamente apresenta uma relativa conclusibilidade do tema, ou seja, as condições criadas pela situação comunicativa estabelecem uma parcialidade na apresentação do tema, dando ao produtor uma posição de expor apenas uma parte da temática, no texto escolhido, em função da idéia definida pelo produtor.
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Trazendo para a prática da leitura e escrita, temos que nessas situações o tema se define pela situação de interação, sendo necessário, portanto, no âmbito da leitura, o trabalho com o contexto de produção do gênero, incluindo sua estrutura composicional e seu estilo e, no momento da produção, a orientação para esses elementos, incluindo-se outro fator de acabamento do enunciado: o interlocutor, que faz com que o produtor estabeleça suas escolhas linguístico-discursivas. É por meio dele que o locutor delimita o que pode ou não dizer, o que pode ou não selecionar, o gênero que irá escolher, isto é, as próprias fronteiras do tema. Em busca de uma prática de leitura mais consistente para o despertar da réplica ativa do aluno, a concretude dos textos-enunciados merecem nossa atenção, levando-se em conta as esferas de atividades em que são produzidos juntamente com as relações dialógicas – de sentido – que se travam entre eles. Logo, no processo de recepção de textos, em sala de aula, o trabalho de análise linguística é essencial, visto ser por meio da seleção do gênero discursivo e consequentemente da seleção da estrutura composicional, do léxico, das escolhas morfossintáticas, enfim, dos recursos linguísticoenunciativos veiculados que se produzem ou coproduzem efeitos de sentido. Pelas escolhas linguísticas do locutor-autor podemos visualizar tanto os aspectos da situação enunciativa quanto, também, aspectos da subjetividade desse locutor-autor, que se revela e se mostra como sujeito. Portanto, consideramos, de acordo com Geraldi (1993), Perfeito (2005), entre outros autores, a não dicotomia entre as práticas de leitura e análise linguística, na medida em que esta última só tem sentido de ser no interior das outras práticas – leitura e produção de textos – formando o tripé do trabalho docente com Língua Portuguesa. Por fim, o terceiro fator determinante do enunciado revela-se nas formas típicas de estruturação de gênero do enunciado. As formas composicionais de um gênero só existem em função da esfera na qual ele se insere e de seu contexto social e histórico, não podendo serem usadas de forma isolada. Por isso mesmo, o gênero possui uma relativa estabilidade, já que constantemente forças coercitivas da própria esfera ou de outra podem levar a sua ressignificação, mudança ou desaparecimento. Nas próximas seções, discutimos como as professoras elaboraram a proposta de unidade didática.
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A prática da leitura e da análise linguística A unidade proposta para trabalhar com os eixos leitura e análise linguística está dividida em seis seções: a. Pra Início de conversa: as autoras estabelecem uma atividade de pré-leitura. b. Textos para leitura: nesta seção, apresentam quatro gêneros diferentes, reportagem, infográfico, notícia e poema, com o objetivo de se explorar o conteúdo temático a ser tratado na unidade didática, a saber, o uso de animais em experimentos medicinais, principalmente, de cachorros da raça beagle. c. Conversa entre os textos: nesta seção, propõem exercícios de leitura de compreensão inferencial, explorando alguns elementos do contexto de produção e o reconhecimento das ideias principais dos textos. d. Analisando o texto: nesta seção, apresentam um artigo de opinião e propõem exercícios sobre o contexto de produção, o conteúdo temático, a estrutura composicional. e. Trabalhando com a língua: nesta seção, apresentam exercícios sobre alguns organizadores textuais presentes no artigo de opinião. f. Artigo de opinião: que gênero é esse? nesta seção, as autoras apresentam uma definição do gênero artigo de opinião e a proposta de produção textual. Neste momento, nos deteremos nas cinco primeiras seções, uma vez que enfatizam as práticas de leitura e de análise linguística. Assim, observamos que a primeira seção foi elaborada com o objetivo de oferecer aos alunos uma ampliação de seus conhecimentos de mundo a respeito do tema do artigo de opinião a ser analisado. Justifica-se, portanto, a seleção de textos exemplares de outros gêneros, mas que trazem o mesmo tema. Os primeiros exercícios de leitura exploraram noções referentes aos elementos do contexto de produção dos enunciados, como: os papeis sociais dos interlocutores; aspectos sobre a circulação e o suporte; a finalidade da interação. É o que demonstram as questões: 1.Os fragmentos de alguns textos acima foram retirados de reportagens. Em que veículos de comunicação os textos foram publicados? É bastante conhecido do público? 2.Qual a finalidade de se publicar reportagens nesses veículos de comunicação? 3.Qual pode ser o papel social assumido por quem escreveu os textos? Há, também, o nome desses autores?
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4.Assinale a alternativa que melhor identifique o perfil do público-alvo dos excertos das reportagens acima: a.( )Leitores adultos, com nível socioeconômico e cultural relativamente alto e que goste de assuntos relacionados a animais. b.( )Leitores infanto-juvenis que gostem de animais. 5.É comum as reportagens trazerem especialista em uma determinada área para dar veracidade ao assunto tratado. No texto 02, que explora os sentimentos dos animais, aparece a visão do especialista Gregory Berns. Quais informações do texto comprovam que ele é realmente um especialista na área? 6.O texto “UEM utilizou beagles em experimentos até 2011” defende uma opinião ou apenas 6. apresenta informações sobre a proibição do uso de beagles em experimentos científicos? Explique. 7.Há um texto, entre os excertos acima, que não pertence ao gênero reportagem. Qual é o gênero desse texto: a.( )Artigo de opinião b.( )Notícia c.( )Poema 8.Levando em consideração a linguagem utilizada pelo autor do texto “A cachorrinha” e também o suporte, responda: quais são os possíveis leitores deste texto? Consideramos que os exercícios apresentados abarcam a abordagem enunciativa para o ensino-aprendizagem da leitura, pois o processo de apropriação das professoras revela, nesse momento de elaboração didática, a desmistificação a respeito do status da hipervalorização da alimentação temática para a prática de leitura. Nesse sentido, os exercícios de interpretação é que garantiriam aos alunos a capacidade de engendrar uma resposta, seja de concordância ou discordância. Sem desmerecer esse tipo de exercício, sabemos que há um certo perigo que os rondam. Em situação de ensino-aprendizagem, proporcionar somente momentos interativos de conversa sobre o texto pode levar alunos e professor a um esvaziamento discursivo em relação ao processo de produção de sentidos do enunciado. É como se o texto-enunciado perdesse seu valor no processo. Ao contrário, as professoras revelaram que ultrapassaram a crença de que somente solicitar a opinião do aluno sobre o tema do texto a ser lido pode ser responsável pela compreensão ativa do enunciado primeiro. Em seguida, a seção apresenta exercícios de compreensão inferencial dos textos apresentados, a fim de favorecer a ampliação do conhecimento de mundo dos alunos a
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respeito do tema do artigo de opinião que será apresentado a seguir. Apresentamos algumas dessas questões: 9.O fragmento da reportagem “Crime em nome do amor” aborda um fato ocorrido na atualidade. Que fato é esse? 10.Neste mesmo texto aparece um dilema. Quais questionamentos levam a essa dúvida? 11.Com base na leitura dos quatro textos apresentados, responda: esse assunto, na sua opinião, é realmente um dilema como aponta a questão anterior? Justifique. 14.Segundo o texto 03, o que faz os animais serem indispensáveis no desenvolvimento de novos medicamentos? 16. Levante hipóteses: pelo conteúdo do poema “A cachorrinha”, na sua opinião, o poeta seria a favor ou contra o uso de animais em experimentos científicos? Justifique. Por meio desses exercícios, as professoras detiveram-se na temática geral da seção de leitura, com o intuito de promoverem a compreensão das ideias principais dos textos, para, posteriormente, levar os alunos a sistematizarem o conteúdo temático - no sentido bakhtiniano - do gênero artigo de opinião. Também mobilizaram noções textuais-discursivas sobre relato e apresentação de fatos, ao solicitarem a identificação das ideias principais dos textos 1 a 4 e o conhecimento de mundo dos alunos sobre a questão temática em foco, ao solicitaram a opinião dos alunos. Na seção Analisando o texto, apresenta-se ao aluno o artigo de opinião Se eu fosse um beagle, publicado em um jornal de uma cidade do interior do Paraná, logo, um jornal regional. Após o texto, propõe-se aos alunos um quadro para ser completado com as características dos elementos do contexto de produção e o reconhecimento de dois elementos da sua estrutura composicional e de seu conteúdo temático, a saber: a questão polêmica, a posição do autor-locutor e os argumentos que sustentam essa posição. As questões são as seguintes: 2.Por que a temática estava sendo discutida naquele momento? 3.A questão polêmica é a base do artigo. Uma questão polêmica pode mobilizar tanto as pessoas de uma comunidade como as do mundo inteiro, que a discutem apaixonadamente, assumindo posição favorável ou contrária. O autor do texto prevê opiniões contrárias às suas, argumentos que contestam os seus argumentos, ou seja, os contra-argumentos? 4.Enumere a sequência do conteúdo apresentado no texto: ( ) Apresentação dos contra-argumentos. ( ) Apresentação da tese. ( ) Conclusão. ( ) Apresentação dos argumentos.
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5. O autor faz referência a outros autores para contribuir com a defesa de sua tese, persuadindo o leitor a concordar com ele. Retire do texto um exemplo que comprove essa afirmação e explique a importância dela para a argumentação. Observamos que as categorias teórico-metodológicas bakhtinianas de enunciado e gênero discursivo são mobilizadas, à medida em que os exercícios objetivam despertar no aluno a percepção acerca de todo enunciado ser uma resposta ativa a enunciados anteriores e posteriores, dentro de uma dada esfera comunicativa. Apesar de reconhecermos certas limitações presentes nas atividades elaboradas, não podemos deixar de considerar os avanços alcançados na direção de apropriação conceitual e metodológica. Em primeiro lugar, verificamos que pensar o texto da perspectiva enunciativa da linguagem e dos gêneros discursivos forneceu às professoras mais clareza quanto à seleção de procedimentos metodológicos para a prática de leitura. Em termos pedagógicos, os exercícios figuraram ao aluno o gênero artigo de opinião como um articulador do ensino-aprendizagem das práticas de leitura e de análise linguística. Os parâmetros metodológicos vislumbraram a apreensão do conhecimento conceitual, o aluno desenvolver o saber fazer (conhecimento procedimental de leitura), promovendo-se, assim, a produção de sentidos dos textos também por meio do conhecimento conceitual sobre o gênero – atitude vista como atividade epilinguística (RODRIGUES, 2008; PERFEITO, 2005). O objetivo da seção Trabalhando com a língua era trabalhar com o eixo da análise linguística, em específico, com as características referentes às marcas linguístico-enunciativas do artigo lido (PERFEITO, 2005). Para tanto, solicita-se ao aluno que responda três questões sobre o uso de alguns organizadores textuais utilizados. Nesses exercícios as professoras priorizaram a análise do efeito de sentido produzido por dois operadores argumentativos e a função de um elemento de coesão, como podemos observar nas questões: 1.Observe o elemento destacado no fragmento: “Ora, não quero mitificar nem mistificar o comentário de um menino de apenas dez anos de idade face à grandeza do assunto, mas também não posso descartá-lo.” Que relação de sentido possui o termo em destaque? ( ) Comparação entre duas ideias. ( ) Oposição entre ideias.
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( ) Restrição de uma ideia em relação a outra. ( ) Inclusão de uma outra ideia. 02- “E pra descontrair um pouco, deixo a frase de um dos coleguinhas daquele garoto: “Que absurdo fazer essas experiências com um Beagle! Se fosse com um Pitbull ainda vai!”. A palavra “daquele” (último parágrafo) – (um pronome demonstrativo) – recupera que informação do texto escrita anteriormente? ( ) o cão beagle. ( ) um dos coleguinhas do garoto. ( ) o menino de dez anos. 03- “[...] mas tenho que admitir que, conforme a opinião do menino de dez anos, se eu fosse um Beagle do Instituto Royal também adoraria que alguém me tirasse de lá. Aliás, se eu fosse um Beagle não maltrataria os seres humanos nem invadiria ou depredaria a propriedade alheia.” A palavra destacada neste fragmento indica qual relação de sentido: ( ) apresenta uma consequência provocada por uma causa. ( ) exclui um termo anterior. ( ) introduz um argumento decisivo, para dar um golpe final no argumento contrário. ( ) explica uma ideia anterior. Os exercícios 1 e 3 procura levar o aluno a refletir sobre o tipo de relação existente entre partes do texto, focalizando aspectos relacionados à argumentação utilizada no artigo de opinião. Podemos perceber que as professoras conseguiram chegar no nível da reflexão sobre o motivo da escolha de uma forma linguística ou outra, por solicitarem do aluno a compreensão das relações de sentido estabelecidas mas, ainda, sem articularem explicitamente com o funcionamento sócio discursivo do gênero artigo de opinião. A questão 2 solicitou ao aluno o reconhecimento de um elemento linguístico como uma forma “congelada” em que se abstrai o seu caráter utilitário à eficiência comunicativa. O uso do elemento coesivo foi analisado somente no nível sequencial do texto, sem se preocupar com o estudo enunciativo do enunciado. As professoras deixaram de explorar elementos importantes para a leitura analítica do gênero em questão, ou seja, as que enfatizam o uso de recursos linguísticos em favor da adequação da interação comunicativa naquela situação enunciativa, como por exemplo, as marcas linguísticas de sua estrutura composicional, das vozes que circulam no artigo, do tipo de movimento argumentativo, entre outros.
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Portanto, no geral desta unidade didática, constatamos que as professoras tiveram maior facilidade na execução de exercícios relacionados ao contexto de produção e ao conteúdo temático, neste caso, prestando-se à identificação das ideias principais dos textos, por exemplo, a questão polêmica e a argumentação. A prática da produção de textos A proposta para a produção de textos é apresentada com uma sugestão a mais de um trabalho prévio de leitura acerca do tema, já discutido na seção de leitura – o uso de animais, especialmente cachorros, em experimento para medicamentos: A reportagem exibida no Programa Fantástico, da Rede Globo, mostra visões diferentes sobre o uso de animais, especialmente cachorros, como experimentos para pesquisa de medicamentos. Após assistir ao vídeo, discutindo com a reportagem, vamos elencar os argumentos favoráveis e contrários sobre essa questão polêmica.(Reportagem exibida no Fantástico, da Rede Globo, em 20 / 10 / 2013. www.youtube.com/fantástico/globo). Agora reúna em seu caderno os argumentos favoráveis e contrários ao uso de animais para produção de medicamentos. Observa-se que antes mesmo de apresentar o comando de produção, as professoras tiveram o cuidado de trazer mais informações sobre tema, por meio do vídeoreportagem, reforçando a exauribilidade temática para o aluno e já orientando o processo de produção, na medida em que oferece alguns argumentos para a produção escrita do gênero artigo de opinião. O tema já bem trabalhado na seção de leitura, é retomado de um ponto de vista mais opinativo, mas ao mesmo tempo, não exaure o que seja possível falar sobre ele. Na realidade, ao se tornar tema de um enunciado particular e concreto, na situação de produção apresentada pelas professoras, ele “ganha uma relativa conclusibilidade em determinadas condições, em certa situação do problema, em um dado material (...)” (BAKHTIN, 2003, p.281). Na sequência, as professoras apresentam a proposta para a produção: Agora é a sua vez... Após a leitura dos textos dessa unidade e de assistir ao vídeo da reportagem do
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Fantástico, os quais abordaram a temática da utilização de animais, em especial dos cachorros, em experimentos científicos, elabore um ARTIGO DE OPINIÃO, em que você se posicione favorável ou contrário a temática apresentada. Lembre-se que seu texto será publicado no jornal da escola, portanto, use argumentos que convençam os seus leitores. Orientação: ● Pense em uma tese para ser defendida ao longo do texto; ● Anote os argumentos que expressem sua opinião sobre o tema; ● Use contra-argumento para rebater opiniões alheias e reforçar o seu próprio posicionamento; ● Dê um título que desperte o interesse do leitor. ● Use até 20 linhas. A escrita de um comando para a produção textual é fundamental para orientar o aluno ao processo de sua escrita. Em um estudo realizado sobre a elaboração de comandos, Menegassi (2003), tomando como ponto de partida os próprios PCN (Brasil, 1998, p.58), especifica quatro elementos constitutivos dos comandos, em uma perspectiva enunciativa: a) a finalidade, pois conforme Bakhtin (2003) é o intuito discursivo que guia o produtor e que retoma Geraldi (1993), ao afirmar que para escrever precisamos ter uma razão para tal; b) a determinação do gênero que será produzido, pois sem isso o professor fica sem critérios para sua avaliação e o aluno não fugirá àquilo que foi proposto; c) o lugar de circulação do texto, que guiará o aluno tanto para as escolhas linguístico-discursivas, como também para o gênero e seu objetivo; d) e a delimitação do interlocutor, já que será ele também a orientar os elementos anteriores. A respeito do interlocutor, aliás, o currículo Básico para a Escola Pública do Paraná pontua: O ponto de partida para e repensar a escrita é ter presente, no ato de escrever, a noção de interlocutor, isto é, ter o perfil daquele que vai ler nossos escritos, mesmo que não o conheçamos. É esse interlocutor virtual, que vai condicionar parte da nossa linguagem; é a imagem que fazemos dele que nos levará a fazer uma determinada opção no que diz respeito o assunto e a maneira de expô-lo (PARANÁ, 1990, p.56).
A ausência do interlocutor em um comando leva o aluno a não refletir sobre as escolhas que faz e por que o faz, bem como a sua recorrente presença em todos os comandos de produção auxilia o aluno a perceber que em função de uma determinada
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situação de comunicação e de um gênero há necessidade de fazermos escolhas temáticas, discursivas e organizacionais. Na proposta em questão temos: GÊNERO: artigo de opinião INTERLOCUTOR: leitões de um jornal FINALIDADE: posicionar-se a favor ou contra a temática apresentada LOCAL DE CIRCULAÇÃO: Jornal da escola Vê-se, portanto, que as professoras contemplam os quatro elementos, bem como pelo trabalho da seção de leitura e a atividade prévia que antecede o comando e levam o aluno a ter o que dizer. Conclusão Podemos afirmar que, no geral, a proposta pedagógica elaborada não pressupõe os gêneros discursivos como abstrações desvinculadas das esferas das atividades humanas em que são postos a funcionar, porque a abordagem teórico-metodológica não se presta simplesmente a apresentar aos alunos uma descrição do gênero artigo de opinião. As atividades de leitura, análise linguística e escrita foram elaboradas na tentativa de colaborar para o desenvolvimento, em sala de aula, com o olhar dialógico sobre os textos. Referências BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Tradução de Paulo Bezerra São Paulo: Martins Fontes, 2003. BAKHTIN/VOLOSHINOV. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 4.ed. São Paulo: Hucitec, 1988. GERALDI, J.W. Portos de passagem.2.ed. São Paulo: Martins Fontes,1993. MENEGASSI, R.J.. Exauribilidade temática o gênero discursivo. In: SALEH, P.B.O.; OLIVEIRA, S. (Orgs.). Linguagem, texto e ensino: discussões do CELLIP. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2010. p. 77-90. _______________. Professor e escrita: a construção de comandos de produção de textos. In: Trabalhos em Linguistica Aplicada. Campinas, (42): 55-79, Jul/Dez, 2003. PARANÁ, Secretaria do Estado de Educação. Currículo básico para a escola pública do Estado do Paraná. Curitiba; SEED,1990.
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PERFEITO, A.M. Concepções de linguagem, teorias subjacentes e ensino de Língua Portuguesa. In: SANTOS, A. R.; RITTER, L. C. B. Concepções de linguagem e o ensino de Língua Portuguesa. Maringá: EDUEM, 2005. p. 27-79 (Formação dos professores EAD 18). RODRIGUES, R. H. Pesquisa com os gêneros do discurso na sala de aula: resultados iniciais. In: Revista Acta Scientarium – Language and Culture, Maringá, v. 30, n. 2, p. 169-175, 2008.
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O TRABALHO DOCENTE E O PROCESSO DE PRODUÇÃO ESCRITA DO GÊNERO TEXTUAL RESPOSTA EM SALA DE APOIO
Cristiane Malinoski Pianaro Angelo (PG – UEM/PLE/UNICENTRO) Renilson José Menegassi (UEM)
1.
Considerações iniciais A Resposta é um dos gêneros mais trabalhados no ambiente escolar. No entanto,
conforme apontam Silva (2010) e Prupest (2007), na maioria das vezes, o professor parte do princípio de que esse gênero já é dominado pelo aluno ou que não seja um texto em produção em sala de aula, dispensando-se, portanto, o seu processo de ensino de produção, como se já fosse conhecido e dominado por todos os alunos. Nesse sentido, este artigo versa sobre o trabalho docente no processo de produção da Resposta, que precisa ser ensinado em Sala de Apoio à Aprendizagem de Língua Portuguesa – SAALP, visto que o aluno, neste contexto específico, ainda está em processo de formação e desenvolvimento como leitor e produtor de textos (MENEGASSI, 2010d). Temos por objetivo analisar esse trabalho com o intuito de discutirmos os direcionamentos possíveis ao ensino desse gênero, de modo a propiciar o desenvolvimento das habilidades e competências leitoras e de escrita do aluno. Refletimos os encaminhamentos para a produção de respostas à luz das seguintes noções conceituais: a) o dialogismo do Círculo de Bakhtin (BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 1926/1976; BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1999; BAKHTIN, 2003); b) a concepção de leitura como ação de réplica (MENEGASSI, 2010d; ROJO, 2009); c) os aspectos interacionais da escrita (GERALDI, 1993; MENEGASSI, 2010e), d) as etapas do processo de produção textual – planejamento, execução, revisão e reescrita (MENEGASSI, 2010e); e) as etapas do processo de leitura – decodificação, compreensão, interpretação e retenção (MENEGASSI, 2010d); e f) perguntas de leitura (MENEGASSI, 2010b; 2010c).
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2. O gênero resposta O gênero textual Resposta é uma prática de linguagem que se concretiza na esfera escolar, normalmente em situação avaliativa. Ao produzi-lo, o autor do texto – o aluno – orientado pelo professor em sala de aula, busca responder a uma pergunta, explicitando a compreensão a respeito de um texto e/ou defendendo seu ponto de vista sobre o que lhe foi perguntado. Desse modo, o gênero Resposta resulta da relação que o produtor estabelece entre quatro elementos: 1) o texto lido; 2) a pergunta oferecida; 3) os seus conhecimentos e as experiências vivenciais sobre o texto e o tema trabalhado; 4) as discussões e direcionamentos propiciados pelo professor em sala de aula, em interação. Ao estudarmos as características constitutivas do gênero, referentes ao conteúdo temático, ao estilo e à construção composicional (BAKHTIN, 2003), apreendemos que o conteúdo temático da Resposta é determinado pelo objetivo da pergunta oferecida, o que desencadeia diferentes modalidades do gênero. Assim, se a pergunta solicita que o aluno apenas localize informações presentes na superfície do texto e as transfira como sendo a resposta (MENEGASSI, 2010c, 2011), sem qualquer manifestação de opiniões e julgamentos, tem-se a resposta de temática textual ou literal. Caso a pergunta exija que o aluno estabeleça relações entre o texto e as informações que possui em seu conhecimento prévio, produzindo inferência, tem-se a resposta de temática inferencial. Por outro lado, se a pergunta demanda a intervenção do conhecimento prévio e da opinião do aluno a respeito do lido, fazendo-o ir além do que leu e produzir palavras próprias, numa nítida produção de sentidos a partir dos significados do texto, a resposta é de temática interpretativa (MENEGASSI, 2010c, 2011). Para Menegassi (2010c, 2011), essas três modalidades de respostas necessitam ser trabalhadas em sala de aula, visto que englobam todas as etapas do processamento da leitura: a decodificação, a compreensão, a interpretação e a retenção (MENEGASSI, 2010d). Além disso, segundo o autor, é preciso também levar em consideração o modo como as perguntas são ordenadas: primeiramente, oferecer perguntas de resposta textual para que o aluno aprenda a trabalhar com o texto; após, apresentar as perguntas de resposta inferencial com a finalidade de que o aluno estabeleça relações entre o texto e as informações que possui em seu conhecimento prévio; por último, propiciar perguntas de resposta
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interpretativa com o intuito de que o aluno chegue à possibilidade de produzir sentidos próprios ao tema discutido. Portanto, conforme aponta Menegassi (2010c, 2011) e corroborado por pesquisa de Rodrigues (2013), as perguntas precisam atender uma ordem crescente de dificuldades, de modo a conduzir o leitor a uma progressiva reflexão sobre o texto com o qual está interagindo. Quanto à estrutura composicional, percebem-se duas formas de organização da Resposta, tendo em vista os modos de exposição do conteúdo temático. Na primeira, a Resposta é abreviada, apresentando apenas os dados solicitados na pergunta, pois a manifestação temática se dá apenas no comando como, por exemplo: Pergunta: Quais são os personagens do texto? Resposta: João e Maria. Nesse caso, pergunta e resposta formam um bloco único de significação, já que o tema “personagens do texto”, presente na pergunta, não é recuperado na resposta. No segundo modo de organização, a resposta é completa, inicialmente com repetição da estrutura temática da pergunta, em seguida, com fornecimento das informações solicitadas. Partindo-se da pergunta anterior, tem-se, nesse caso, uma resposta como “Os personagens do texto são João e Maria”, na qual “os personagens do texto” consiste na temática, absorvida da pergunta. Segundo Silva (2010), a recuperação temática é um elemento fundamental do processo responsivo; nesse sentido é desejável que a resposta apresente uma estrutura composicional completa, com explicitação do tema e do que se compreendeu e interpretou a respeito dele. Menegassi (2010c, 2011) e Rodrigues (2013) defendem que é a resposta completa que deve orientar o ensino do gênero em sala de aula, principalmente na fase que ocorre entre a formação e o desenvolvimento do leitor na escola, como é o caso da SAALP, visto que essa metodologia faz com que o aluno ative um dispositivo (MENEGASSI, 2010b) de concentração leitora que o leva a alimentar um diálogo mais próximo com o texto estudado. Outra estrutura composicional de resposta é apresentada por Menegassi (2010c). O autor sugere que, após o trabalho com as respostas textuais, inferenciais e interpretativas, o aluno seja orientado a produzir outra resposta, que agrupa as informações das respostas anteriores, em uma só pergunta: “Do que trata o texto?” (MENEGASSI, 2010c, p. 186), organizando seu pensamento a partir da reunião das respostas e ideias anteriores. Nessa estrutura, observam-se, de acordo com o autor,
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mencionando as noções de construção do parágrafo ditadas por Garcia (1992) e Serafini (1998), algumas características marcadas: afirmação inicial retirada do texto – que coincide com a resposta textual; explicação sobre essa afirmação – que surge da resposta inferencial; e exemplificação dessa explicação, a partir de elementos da vida pessoal do leitor – a partir da resposta interpretativa. Essa construção, segundo Menegassi (2010c, 2011) e Rodrigues (2013), orienta a produção textual escrita, que traz a percepção global do texto estudado, o resumo do tema e o julgamento feito pelo aluno, exigindo uma posição ativa crítica sobre o texto lido (ANGELO; MENEGASSI, 2011). Quanto ao estilo de linguagem que se usa nas respostas, podem-se constatar diferenças tendo em vista as modalidades do gênero. Por exemplo, as respostas textuais por constituírem repetição de informações textuais, sem mostra do elemento criativo, apresentam uma linguagem referencial, expondo os dados de modo objetivo, sem comentários ou avaliação. Já as respostas interpretativas podem vir acompanhadas de expressões como “eu acho”, “na minha opinião”, “a meu ver”, dependendo-se da intenção do respondente de marcar linguisticamente ou não sua opinião no texto. Conhecidas as características relacionadas ao contexto de produção, conteúdo temático, estrutura composicional e estilo da Resposta, passa-se a relatar e discutir o trabalho docente com o processo de produção do gênero no contexto da SAALP. 3. O processo de produção de respostas na SAALP O programa Sala de Apoio à Aprendizagem foi criado em 2004, pela Secretaria Estadual de Educação do Paraná – SEED, com o objetivo de atender às dificuldades de aprendizagem de alunos que cursam os anos finais do Ensino Fundamental, 6º e 9º anos. Esses alunos frequentam aulas de Língua Portuguesa e Matemática no contraturno, participando de atividades que visam à superação das dificuldades referentes a essas disciplinas, até mesmo de seus comportamentos leitores e escritores 1. Selecionamos a SAALP em virtude de que as ações educativas neste contexto precisam incidir prioritariamente na leitura e na escrita, sendo a orientação para as produções de 1
Fonte: http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=28. Acesso em 20/05/2013.
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respostas uma estratégia significativa para propiciar a formação e o desenvolvimento do aluno como leitor e produtor de textos. O professor, com quem trabalhamos durante as ações colaborativas, é graduado em Letras: Português e Inglês e Especialista em Ensino e Aprendizagem de Língua Portuguesa. Tem 17 anos de experiência docente. No decorrer da pesquisa, além de colaborar com a coleta de informações, de materiais e registros, permitir a gravação de suas aulas em SAALP, empenhou-se na realização de leituras e discussão de textos teórico-metodológicos, na reflexão sobre seus procedimentos em sala de aula, bem como na elaboração e aplicação de atividades para os alunos de Sala de Apoio. Para a análise e discussão da produção anterior às ações colaborativas, selecionamos uma aula em que o professor trabalhou atividades referentes à fábula “O rato do campo e o rato da cidade”, de Ângela Mattos, sem qualquer interferência teórico-metodológica da pesquisa. O rato do campo e o rato da cidade Certa vez, o rato do campo convidou seu amigo que morava na cidade para ir visitá-lo. No dia combinado, o rato da cidade partiu rumo ao campo, alegre e entusiasmado para experimentar as novidades. Porém, na hora do almoço, ele ficou decepcionado com os pratos servidos: grãos de lentilha sem sal e algumas raízes com gosto de terra fresquinha. Inconformado, exclamou: - Coitado de você, meu amigo! Não é à toa que é tão magricela! Venha morar comigo na cidade que, juntos, iremos comer as mais finas iguarias deste país! (...) MATTOS, Ângela. O rato do campo e o rato da cidade. Texto não publicado, Curitiba, 2006. Responda: a) Na fábula “O rato do campo e o rato da cidade”, o rato da cidade tem mais dificuldade para conseguir comida. Você concorda com essa ideia? b) Na história, o rato da cidade julga a alimentação do campo muito fraca (ruim, insuficiente). Você concorda? c) Você concorda que existe uma dependência entre o campo e a cidade? d) Faça uma lista de coisas que encontramos no campo (ex.: cavalo, casa) e na cidade (ex.: casa)
Para o desenvolvimento das ações colaborativas juntamente ao professor, foram utilizados diversos instrumentos, sendo os principais os textos teórico-metodológicos, os roteiros de discussão e as sessões reflexivas. Solicitamos ao professor a leitura dos textos: - MENEGASSI, R. O leitor e o processo de leitura. In: GRECO, E. A.; GUIMARÃES, T. B. (orgs.) Leitura: aspectos teóricos e práticos. Maringá: Eduem, 2010. p.35-59;
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- MENEGASSI, R. J. Perguntas de leitura. In: MENEGASSI, R. J. (org.) Leitura e ensino. 2.ed. Maringá: Eduem, 2010. p.167-189; - MENEGASSI, R. O processo de produção textual. In: SANTOS, A. R. dos; GRECO, E. A.; GUIMARÃES, T. B. (orgs.) A produção textual e o ensino. Maringá: Eduem, 2010. p.75-101. - Matriz de referência da Prova Brasil. In: BRASIL, MEC. PDE: Plano de Desenvolvimento da Educação: Prova Brasil: ensino fundamental: matrizes de referência, tópicos e descritores. Brasília: MEC, SEB; INEP, 2008 (texto adaptado para esta pesquisa). - BORTONI-RICARDO, S. M.; MACHADO, V. R.; CASTANHEIRA, S. F. Formação do professor como agente letrador. São Paulo: Contexto, 2010. Capítulos: A leitura tutorial como estratégia de mediação do professor; Aplicação da proposta de leitura tutorial como estratégia de mediação. - MENEGASSI, R. J. Uma nota sobre a leitura em voz alta (texto que faz parte do artigo Avaliação de leitura). In: MENEGASSI, R. J. (org.) Leitura e ensino. 2.ed. Maringá: Eduem, 2010. p.101-105.
Juntamente com uma cópia desses textos, entregamos um roteiro de discussão que continha questões orientadoras da leitura e atividades que instigavam o professor a refletir acerca de sua prática em SAALP. Os textos e os roteiros foram tomados como objetos de discussão nas sessões reflexivas que ocorreram na própria escola, no momento da hora-atividade do professor. Nessas sessões, em conjunto com o professor, pudemos: a) discutir as diferenças entre os processos de formação e desenvolvimento do leitor; b) estudar as concepções e as etapas do processo de leitura e de escrita; c) levantar as características que devem apresentar as perguntas de leitura; d) analisar criticamente algumas atividades de leitura e escrita aplicadas em SAALP; e) avaliar e classificar as perguntas de leitura sugeridas para o trabalho em SAALP; f) produzir perguntas pertinentes para a SAALP; g) pontuar as características do gênero Resposta. Para a análise e discussão da produção de respostas posterior às ações colaborativas, selecionamos duas aulas em que o professor desenvolveu atividades referentes ao texto “Carroça vazia”, depois do trabalho efetuado com a leitura e a discussão dos textos teórico-metodológicos. Carroça vazia Certa manhã, meu pai, muito sábio, convidou-me a dar um passeio no bosque e eu aceitei com prazer. Ele se deteve numa clareira e depois de um pequeno silêncio me perguntou: - Além do cantar dos pássaros, você está ouvindo mais alguma coisa? Apurei os ouvidos alguns segundos e respondi: - Estou ouvindo um barulho de carroça. - Isso mesmo, disse meu pai, é uma carroça vazia. Perguntei ao meu pai:
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- Como pode saber que a carroça está vazia, se ainda não a vimos? - Ora, respondeu meu pai, é muito fácil saber que uma carroça está vazia por causa do barulho. Quanto mais vazia a carroça, maior é o barulho que faz. Tornei-me adulto e, até hoje, quando vejo uma pessoa falando demais, gritando (no sentido de intimidar), tratando o próximo com grossura inoportuna, prepotente, interrompendo a conversa de todo mundo, querendo demonstrar que é a dona da razão e da verdade absoluta, tenho a impressão de ouvir a voz do meu pai dizendo: “Quanto mais vazia a carroça, mais barulho ela faz...”. RODRIGUES, Wallace Leal V. E, para o resto da vida... Matão, SP: Editora O Clarim, s/d. a) O pai e o filho estavam passeando no bosque e, de repente ouviram um barulho. O que era este barulho? b) O pai, depois de ouvir com atenção, disse que ela estava vazia. Como ele chegou a essa conclusão? c) No passeio, o filho teve uma lição que jamais esqueceu. O que ele aprendeu com a frase: “Quanto mais vazia a carroça mais barulho ela faz”? d) O filho comparou uma carroça com uma pessoa. Quais os defeitos que uma pessoa “vazia” pode ter? e) O que posso fazer para não ser comparado com uma “carroça vazia”? f) Com base nas informações dadas nas respostas anteriores, escreva o que você entendeu do texto.
3. Resultados comparativos Para que possamos estabelecer uma melhor comparação entre o trabalho docente com as respostas anteriores às ações colaborativas, sem qualquer interferência teórica e metodológica da pesquisa, e o trabalho desenvolvido após as ações colaborativas, com suporte teórico e metodológico a respeito dos processos de leitura e de produção textual, elaboramos um quadro comparativo, a partir do qual podemos visualizar os avanços alcançados e as lacunas ainda persistentes no trabalho com as respostas em SAALP. Anterior às ações colaborativas - As discussões encaminhadas pelo professor não se articulam com o conteúdo do texto; - solicita-se apenas a leitura em voz alta; não há leitura compartilhada; - não se exploram os sentidos construídos pelos alunos a partir da leitura; -os questionamentos orais buscam uma única resposta, que deve ser breve; - as perguntas oferecidas para a produção das respostas são repetições das Planejamento perguntas realizadas na discussão oral do texto; -oferecem-se apenas perguntas interpretativas; - as perguntas são direcionadas para a interpretação pretendida pelo professor; - desconsideram-se as etapas do processo da leitura; - não se desenvolve qualquer orientação específica acerca do gênero, nos aspectos de conteúdo temático, estilo e construção composicional;
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- ignora-se um pressuposto básico da leitura crítica: a interação com o texto. Posterior às ações colaborativas - Estimulam-se as previsões a respeito do texto; estabelecem-se relações entre a pré-leitura e a leitura; entretanto, as perguntas feitas pelo professor não se centralizam nas ideias centrais do texto; - solicita-se a leitura silenciosa; realiza-se a leitura dirigida, enfatizandose os significados de itens lexicais do texto; - não se realizaram questionamentos orais de modo a verificar os sentidos construídos pelos alunos; houve apenas uma explicação do professor; - o professor mostra dificuldades de trabalhar e estimular as contrapalavras do aluno; - propiciam-se perguntas de resposta textual, de resposta inferencial e de resposta interpretativas; - levam-se em conta as etapas do processo de leitura, na formulação das perguntas; - orienta-se o aluno quanto à modalidade das perguntas oferecidas; - orienta-se o aluno na construção composicional, solicitando-lhe a resposta completa.
Execução
Revisão
Anterior às ações colaborativas - Não são dadas orientações para que os alunos realizem a produção das respostas. Posterior às ações colaborativas - Orienta e intervém na execução de respostas textuais completas; - auxilia os alunos na compreensão do enunciado e a selecionar as informações nas respostas inferenciais e interpretativa; - há pouca ênfase às informações textuais, o que acarretou dificuldades na execução das respostas inferenciais e interpretativas; - o ordenamento necessário das perguntas é desconsiderado nos auxílios prestados aos alunos; - a preocupação com o tempo algumas vezes atropela a condução do trabalho com o processo de produção das respostas. Anterior às ações colaborativas Não ocorreu Posterior às ações colaborativas - Ocorre durante e logo após a execução das respostas; - é efetuada a partir da perspectiva do professor; - diferentes modalidades de respostas propiciam diferentes pontos de vista no processo de revisão: nas respostas textuais, a revisão evidencia a estrutura composicional do gênero; nas inferenciais e interpretativas, evidencia o conteúdo textual; - o professor chama a atenção para o problema na produção; - propõe ao aluno alterar a forma de seu texto; - orienta o aluno no uso das operações linguístico-discursivas próprias do
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processo de reescrita, priorizando o acréscimo e a substituição.
Reescrita
Anterior às ações colaborativas Não ocorreu Posterior às ações colaborativas - Surge a partir das modificações sugeridas na etapa da revisão; - a operação de acréscimo na reescrita implica nova revisão; - há um momento para a divulgação das respostas.
Constata-se que ocorreram avanços nas condutas do professor no trabalho com o processo de produção das respostas. Houve uma maior aproximação entre o texto e o aluno, propiciada pelas perguntas na fase de pré-leitura, na leitura dirigida e nas próprias perguntas oferecidas para a produção das respostas escritas. Assim, a leitura, após as ações colaborativas, apresentou-se como um processo de interação entre texto e leitor, diferentemente da prática anteriormente às ações colaborativas, em que leitura se mostrava, apenas, como decodificação de letras em sons e meio de ocupar o tempo do aprendiz. Verifica-se, entretanto, que a voz do professor ainda é predominante: ele conduz a leitura, realizando, inclusive, a leitura dirigida e não compartilhada; os questionamentos são elaborados por ele, apenas; o professor mostra dificuldades em deixar que o aluno explane sua forma de pensar, fato evidenciado quando não incita o aluno a concluir a compreensão do texto, interrompendo-o para realizar a leitura em voz alta. Os procedimentos no trabalho com a Resposta explanam, também, as etapas do processo de produção textual – planejamento, execução, revisão e reescrita (MENEGASSI, 2010d), diferentemente da prática anteriormente às ações colaborativas, quando algumas etapas, embora conceptualmente inerentes ao processo de produção, foram negligenciadas. 4.Considerações finais Alguns direcionamentos a serem dados para o trabalho com o processo de produção textual de respostas na SAALP puderam ser demarcados, partindo-se do pressuposto de que os processos de leitura e de escrita não podem ser dissociados na abordagem do gênero em sala de aula:
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a- provocar, na fase de pré-leitura, a participação do aluno desde o início do processo, enfatizando as ideias principais do texto e, assim, permitir a progressão de informações do leitor e a produção das respostas, após a leitura do texto; b- estabelecer relações entre as atividades de pré-leitura e a leitura; c- solicitar a leitura silenciosa dos alunos, anteriormente à leitura em voz alta d- estimular a participação reflexiva do aluno por meio da prática de leitura compartilhada; e- propiciar, após a leitura, discussões acerca do conteúdo do texto; f- conduzir, por meio das perguntas, os alunos à produção de respostas textuais, inferenciais e interpretativas, atrelando-as às etapas do processo da leitura; g- trabalhar as perguntas de respostas textuais ao longo de todo o processo de leitura, não sendo referentes ao início do texto apenas; h- levantar e discutir as informações textuais com os alunos, de modo a possibilitar-lhes um diálogo mais aprofundado com o texto e réplicas mais ativas; i- atentar, no trabalho com a resposta inferencial, às perguntas referentes à etapa anterior da leitura – a etapa de localização de informações, como também aos auxílios dados ao aluno durante o processo da leitura; j- solicitar a produção de respostas completas; k- auxiliar,no processo de produção das respostas, aos alunos, quanto ao modo de se estruturar as respostas; l- propiciar a revisão e a reescrita das respostas; m- proporcionar um momento para a divulgação das respostas entre os alunos.
Os resultados das análises apontam para a necessidade de se fornecer ao professor de SAALP subsídios teóricos e orientações metodológicas quanto ao trabalho com a leitura e a escrita nesse contexto. Algumas ações para a formação do professor puderam ser definidas, a partir da pesquisa: a- propiciar leituras de fontes teóricas e reflexões mais minuciosas a respeito das estratégias de leitura a serem desenvolvidas com os alunos antes da leitura, durante a leitura e após a leitura; b- aprofundar com o professor os significados da leitura compartilhada versus leitura dirigida; c- discutir as especificidades da leitura silenciosa e da leitura em voz alta; d- desenvolver reflexões mais aprofundadas a respeito da leitura réplica e das características do leitor crítico; e- trabalhar as modalidades e sequenciação de perguntas de leitura – de resposta textual; de resposta inferencial e de resposta interpretativa, vinculando-as à discussão acerca do processo de leitura; f- propiciar um estudo mais fecundo acerca do processo de inferenciação, demonstrando ao professor como as inferências são construídas na leitura; g- discutir as características do gênero resposta; h- discutir o controle do tempo cronológico nas atividades desenvolvidas em SAALP; i- nos roteiros de discussão, as atividades dadas ao professor devem instigar a reflexão e a transformação da prática em sala de aula, e não somente a identificação de elementos; j- evitar nos roteiros de discussão questões muito genéricas, que pouco contribuem para o aprofundamento acerca do processo de leitura e de escrita.
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Acredita-se que esses procedimentos, vinculados à compreensão da prática da sala de aula e do contexto específico da SAALP, oferecem ao professor uma base para repensar as escolhas e seu significado em relação aos objetivos e metas propostos e à aprendizagem dos alunos. Referências Bakhtin, M. M. Estética da criação verbal. Tradução do russo por Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. _____; Volochinov, V. N. Discurso na vida e discurso na arte (sobre poética sociológica). Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza [para fins didáticos]. Versão da língua inglesa de I. R. Titunik a partir do original russo, 1926. _____; Volochinov, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução do francês por Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1999. Geraldi, J. W. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993. Menegassi, R. J. Estratégias de leitura. In: Menegassi, R. J. (org.) Leitura e ensino. 2.ed. Maringá: Eduem, 2010a. p.41-63. ______. Avaliação de leitura. In: Menegassi, R. J. (org.) Leitura e ensino. 2.ed. Maringá: Eduem, 2010b. p.87-106. ______. Perguntas de leitura. In: Menegassi, R. J. (org.) Leitura e ensino. 2.ed. Maringá: Eduem, 2010c. p.167-189. ______. O leitor e o processo de leitura. In: Greco, E. A.; Guimarães, T. B. (orgs.) Leitura: aspectos teóricos e práticos. Maringá: Eduem, 2010d. p.35-59. ______. O processo de produção textual. In: Santos, A. R. dos; Greco, E. A.; Guimarães, T. B. (orgs.) A produção textual e o ensino. Maringá: Eduem, 2010e. p.75101. ______. R. J. Produção, ordenação e sequenciação de perguntas na avaliação de leitura. In: Centurion, R.; Cruz, M.; Batista, I. M.(org). Linguagem e(m) interação-Línguas, literaturas e educação. Cáceres-MT: Ed. Unemat, 2011, p. 17-35. Prupest, F. M. V. Questão discursiva: espaço de produção da leitura e da escrita do gênero. Educere et educare. Cascavel-PR, v. 2, n. 3, 2007. p. 165-181.
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Rodrigues, A. Perguntas de leitura e construção de sentidos: experiência com o 6º ano do Ensino Fundamental. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de PósGraduação em Letras, Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, 2013. Rojo, R. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. Silva, A. M. da. O tema como constitutivo do gênero resposta interpretativa: um estudo da responsividade. In: I CIELLI – Colóquio Internacional de Estudos Linguísticos e Literários; 4º CELLI – Colóquio de Estudos Linguísticos e Literários. Universidade Estadual de Maringá-UEM, 2010. Disponível em: http://www.cielli.com.br/downloads/382.pdf. Acesso em 01/08/2013.
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MEMÓRIAS E TRAJETÓRIAS: IMPLICAÇÕES NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO PROFISSIONAL DE LÍNGUAS Cristiane Schmidt (UNIOESTE) RESUMO: Os professores, enquanto profissionais, exercem um papel essencial no processo de mudança social. Para tanto, os processos de formação de professores vêm merecendo destaque no campo da pesquisa da Linguística Aplicada, com intuito de valorizar o trabalho do profissional de línguas. Nesse sentido, o presente trabalho procura investigar os saberes prévios de acadêmicos do Curso de Letras na UNIOESTE, sujeitos desse estudo, acerca da docência e da constituição identitária do professor. Ao mesmo tempo, discutem-se algumas implicações entre a trajetória escolar e a escolha profissional desses alunos, visto que se encontram na fase inicial do seu processo formativo. A metodologia adotada consiste numa abordagem qualitativa a partir de memoriais, procurando destacar as concepções e representações desses sujeitos acerca da constituição do professor. Dentre algumas características que se salientam nas narrativas em relação à identidade docente, estão a complexidade da docência, o gostar da profissão, assim como as práticas pedagógicas diversificadas e ‘transgressivas’. PALAVRAS-CHAVE: Construção da identidade do professor de línguas; Formação e prática pedagógica; Memórias e representações; Trajetória escolar. Introdução Cada sujeito vai construindo sua identidade e apoiando-se nos aspectos considerados fundamentais e definidores das suas escolhas, ao passo que tem uma forma singular de ver o mundo e de enfrentar situações inesperadas. A construção da identidade de professor tem vinculação com a forma, na qual esse profissional se percebe e se sente, como também mediante se situa em relação aos outros. Assim, nesse processo, muitas vezes, espera o reconhecimento dos demais, sejam seus pares ou alunos. Costuma-se atribuir ênfase, nas diversas esferas da sociedade atual, às profissões que concernem visibilidade e divulgação, justificando a necessidade do reconhecimento social como condição fundamental para o êxito e a excelência profissional. E professor, quem quer ser professor? Quais são as imagens e em que medida elas contribuem ou configuram-se como aspectos limitadores para a escolha da docência? Quais as
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implicações das vivências, das representações e dos discursos na construção da identidade do profissional de línguas? A partir do exposto, a escolha da presente temática procede da vivência enquanto professora e colaboradora do processo de formação de futuros professores de línguas, assim como da constante reformulação da representação da identidade profissional. Dessa forma, procura-se apresentar algumas reflexões acerca da construção identidade do profissional de línguas, considerando o percurso escolar e, por conseguinte suas concepções mediante interações com diferentes contextos e práticas pedagógicas. Linguagem e identidade: revendo conceitos A linguagem é parte constitutiva e constituinte do ser humano, sendo que decorre da necessidade de interação e da vida em sociedade do homem com o(s) outro(s); o ser humano não existe fora da linguagem, sendo que o acesso do sujeito à realidade é mediado pela linguagem (BAGNO, 2010). Moita Lopes (2012) concebe a língua(gem) como um espaço específico de construção da vida social. Nas palavras do linguista aplicado, o ser humano é um ser do discurso que se (re)constrói pela palavra, sendo que essa a matéria essencial das aulas de línguas. Ao entender a língua(gem) como uma prática social de construção de sentidos, no momento em que se ensina língua também se ensina formas de entender e de construir o mundo, implicando em desenvolver atitudes respeitosas em relação aos sentidos de outras pessoas (JORDÃO, 2013). Nisso centra-se a natureza da linguagem, como possibilidade de expressão e comunicação, assim como constituinte de significados, conhecimentos e valores. Em outras palavras: a linguagem é a principal ferramenta mediadora da constituição da identidade do sujeito, pois é nela e por ela que a relação entre o ‘eu’ e o(s) outro(s) se cria, assumindo uma postura ativa. Conforme Oliveira (2006, p. 107), em relação ao conceito de linguagem, destaca que “o processo formativo inicial de professores de língua materna ainda é regido por uma concepção de linguagem e língua entendidas ora como mera representação do pensamento, ora como um sistema estruturado em níveis”. A autora reitera que os
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currículos que orientam a formação de professores de língua materna, formam “identidades profissionais ‘fundamentalistas’ e ‘elitistas’, cujas relações com o conhecimento, provavelmente, exigem fidelidade a uma concepção lógico-gramatical da língua, aliada a uma concepção elitista de cultura” (OLIVEIRA, 2006, p. 109). Mas, o que se entende por construir a identidade? Vale ressaltar que a identidade vem sendo pauta nos debates educacionais, por se constituir numa parte integrante da formação e do exercício de professores. Ao mesmo tempo, ocupa relevância entre diversos pesquisadores no campo da Linguística Aplicada (LA) no Brasil, como em Moita Lopes (2011), Reis (2011), Bohn, (2005), Signorini, (2002) e Kleinman (1998), assim como nos Estudos Culturais (Hall, 2003 e Silva, 2004). Entretanto, tal noção implica, comumente, numa definição complexa, considerando seu caráter flexível e dinâmico. Para Hall (2003), a identidade se forma, ao longo do tempo, mediada por processos inconscientes, sendo que permanece sempre incompleta, estando sempre em construção. A identidade não se caracteriza com algo inato e fixo, mas está sujeito a mudanças e pode ser reposicionada. Sua definição, dessa forma, está em constante fluxo, prestando-se a reformulações e manipulações. Pimenta e Anastasiou (2011) orientam que a identidade não pode ser adquirida, visto que está associado ao processo de construção do sujeito inserido num determinado contexto social e histórico. As autoras destacam, ainda, que a identidade profissional vem se modificando para atender as novas necessidades da sociedade. Essa consideração vale para o caráter dinâmico da identidade docente, enquanto prática social. Identidade do professor de línguas Como são construídas as representações acerca da imagem do professor? Tratase de um trabalhador, de um profissional? Conforme Cardoso (2010) existem diferentes imagens que perpassam a construção da noção da identidade do professor, como a representação do professor abnegado, a serviço de uma nobre missão, com baixas ambições materiais.
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Segundo Simões e Trindade, (2001) ao mesclar elementos de dedicação, abnegação, vocação e também de inércia, de impossibilidade e mesmo de ‘incompetência’, terminam por fragmentar e distorcer a identidade do profissional da educação, posto que cambaleiam entre a idealização da profissão docente e a ausência de projetos de educação efetivamente objetivados. Ao mesmo tempo, o exercício da profissão requer o desenvolvimento de algumas características, a saber: a imprevisibilidade, a incerteza, o conflito, a instabilidade, disponibilidade para mudança, coragem (PIMENTA; ANASTASIOU, 2011). No entendimento de Bohn, em seu estudo acerca da identidade do profissional de línguas, a identidade é fruto de um sistema de relações entre diferentes vozes, ou seja, trata-se de ‘uma polifonia de vozes’ que se manifesta nos diferentes espaços e tempos em que se movimenta o sujeito, em seu meio social e ao longo da sua história (BOHN, 2005). São as diversas vozes que contribuem para a constituição dos traços identitários, tais como: a voz institucional (teóricos, os professores formadores e as instituições que se expressam nos discursos pedagógicos); a voz do governo (os documentos oficiais); a voz da sociedade; as vozes dos colegas da profissão e a voz da família; enfim, diversos olhares, crenças ou representações que os ‘outros’ possuem acerca da docência, assim como as vozes que mediante tal relação configuram-se como colaboradores desse processo (BOHN, 2005). No entendimento de Pimenta e Anastasiou (2011), em relação à construção da identidade do futuro professor, é essencial considerar-se os saberes prévios, visto que são decorrentes de inúmeras e diferentes experiências sobre o que é ser professor. Nesse sentido, conforme Reichmann a construção da identidade do professor: implica em uma negociação identitária, envolvendo processos biográficos e relacionais – enfim, uma negociação marcada por alinhamentos e cooperação, conflitos e resistências, continuidades e rupturas; podemos apreender que nossa identidade profissional é marcada pelos diversos processos de socialização que vivenciamos, nas várias instituições a que pertencemos ao longo de nossas vidas, a saber – família, escola e trabalho (...) (REICHMANN, 2010, p. 50).
Trata-se de experiências adquiridas enquanto alunos a partir do contato com os mais variados professores que perpassaram ao longo da sua vida escolar. Estes
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“formaram modelos ‘positivos’ e ‘negativos’, nos quais se espelham para reproduzir ou negar. Quais professores foram significativos em suas vidas, isto é, que contribuíram para sua formação pessoal e profissional” (PIMENTA; ANASTASIOU, 2011, p. 79). Nesse sentido, muitas das experiências e vivências tidas no percurso escolar, configuram-se como norteadoras das escolhas profissionais e das práticas pedagógicas. São referências e lembranças que habitam no imaginário, mas que vão moldando o tipo de professor que se deseja ser. Ou ainda: implicam na construção positiva e/ou negativa acerca de um professor, cuja postura procura-se ‘imitar’ ou ‘repudiar’. Considerando isso, reitera Oliveira (2006) acerca da relação dicotômica entre a teoria e a prática nos processos formativos de professores, (dessa forma, coparticipante do processo de construção identitária profissional) os quais deveriam conceber o conhecimento científico não como a única “fonte de saber necessário e constitutivo da formação do profissional docente”, mas procurar aproximar o conhecimento científico daquele do mundo da vida. Em relação à prática pedagógica e ao ensino/aprendizagem de forma generalizada, vale destacar o papel do livro didático, que, em sua maioria, é concebido como um dos elementos mais característicos e, “por isso, já se institucionalizou, ou seja, apresenta-se como algo natural, que ‘constitui’ o processo de educação” (PESSOA, 2009, p. 53). Acerca do uso do livro didático no ensino de língua estrangeira, a autora afirma que “é uma das práticas que merecem ser analisadas, pois pode não só limitar as possibilidades de ação do professor, como também comprometer as próprias perspectivas de análise e compreensão do ensino, de suas finalidades educativas e de sua função social” (PESSOA, 2009, p. 54). Nesse sentido, essas obras didáticas retratam a cultura do outro, que por sua vez, é diferente, estranha e se encontra distante geograficamente. Ao mesmo tempo, tais materiais são facilitadores do processo de ensino/aprendizagem e, na mediada em que abordam aspectos linguísticos e culturais, vão produzindo discursos. Assim, requer uma participação mais consciente da parte do professor, no sentido de não adotar o livro didático como um currículo ou como o único instrumento, mas que saiba fazer as devidas transposições e transformações necessárias (TILIO, 2012).
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Memórias acerca de ‘ser’ professor/a: aspectos metodológicos e reflexivos Enquanto profissional que atua na formação de professores e no ensino de uma língua materna e estrangeira, como também para o meio social dos sujeitos envolvidos, esta investigação está orientada na abordagem da pesquisa qualitativa. Nesse sentido, pauta-se na perspectiva da ‘Pesquisa Narrativa’, que busca apreender como os informantes se sentem, interpretam e dão sentido às situações vividas, às escolhas feitas. Como também procura entender a dinâmica interna do processo, que é perceptível apenas ao investigador que participa de forma direta, mais próxima. Nesta modalidade de pesquisa as histórias pessoais e profissionais dos professores (e outros envolvidos no processo educacional) funcionam como contextos de produção de significados para os acontecimentos ocorridos na escola e na vida. As histórias narradas pelos professores e/ou alunos e funcionários da escola são, ao mesmo tempo, método e objeto de pesquisa. A Pesquisa Narrativa rejeita o papel passivo do participante enquanto mero objeto de pesquisa a ser observado e estudado (TELLES, 2002, p. 97).
Trazendo o exposto para a situação a ser analisada, vale salientar que se usou o registro de memórias descritivas de acadêmicos inscritos na primeira etapa do seu percurso formativo. Para tanto, são dez participantes que, na condição de estudantes do Curso de Letras do Campus de Marechal Cândido Rondon da Universidade Estadual do Oeste do Paraná/UNIOESTE no período de 2013-2014, verbalizaram suas representações e concepções acerca do professor e das práticas pedagógicas, a partir das suas trajetórias escolares. Elegeu-se o memorial como um instrumento investigativo, visto ser um desencadear da reflexão sobre as práticas docentes, além de inferir desdobramentos e posicionamentos subjetivos. Tal gênero traz a marca da autoria, pois que não há ninguém mais adequado para ser autor de lembranças do que aquele que escreve. Em outras palavras: essa modalidade enunciativa possibilita observar a relação do escrevente com sua própria história como aluno e estudante. Acerca das questões norteadoras “O que é ser um bom professor e como é sua prática?; De qual professor você se lembra e por quê?”, os elementos emergentes nos memoriais dos estudantes assinalam para a relação do ofício do professor com o gostar, e da carreira com uma missão. Conforme os relatos dos estudantes “Ser professor é ato
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de amor”, “um bom professor é uma pessoa que gosta daquilo que faz” e “ser professor é aquele que incentiva, que desperta no aluno o desejo pelo conhecimento”. Ao mesmo tempo, os registros destacam que ser professor constitui-se numa tarefa difícil, que exige dedicação: “Ser professor não é apenas exercer uma profissão, é educar, ensinar, transmitir conhecimentos. É uma missão, exige dedicação, empenho, perseverança e, muitas vezes, renúncia de seu tempo e suas vontades”. Para outro estudante “ser professor não é uma tarefa fácil, para exercer essa profissão é necessário muita dedicação do profissional”. Pode-se inferir que, nesses relatos, o conceito de identidade profissional ainda hoje implica na presença da imagem como sacerdócio. A ‘metáfora do sacerdócio’ contrapõe-se ao profissionalismo, pois que essas “representações identitárias encontram-se ligadas a contextos sócio-históricos específicos, representações essas que se entrecruzam, se contradizem, em um processo incessante de reelaboração” (CARDOSO, 2010, p.36). A dicotomia em relação ao processo de construção da identidade expressa na imagem trabalhador/profissional versus sacerdócio/missão reitera, dessa forma, o caráter efetivo dos discursos midiáticos, assim como a articulação íntima entre as aspirações da sociedade e a educação que nela se faz. Pimenta reforça que “a identidade (...) é um processo de construção do sujeito historicamente situado. A profissão do professor (...) emerge em dado momento histórico, como resposta as necessidades apresentadas pelas sociedades” (PIMENTA, ANASTASIOU, 2011, p.76). Em relação aos professores que constam nas lembranças dos acadêmicos, em sua maioria, os relatos atestam que eram pessoas atenciosas, que incentivavam os alunos e, sobretudo, depositavam confiança nos mesmos. Conforme as narrativas “a professora que acho que jamais vou esquecer a professora Ana, foi ela quem me alfabetizou” e “uma professora de que me lembro muito foi a professora da 1ª série, minha professora alfabetizadora que com o seu jeito mais carinhoso e engraçado de ser, me ensinou muito” e ainda “a primeira professora que me lembro foi a da primeira série, foi ela que me ensinou a ler”. Da mesma forma, os registros que seguem reforçam isso: “Eu eternamente irei lembrar de uma professora de português (...) Nós não tínhamos uma aula qualquer de
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português, ela sempre nos dava uma visão de mundo, nos fazia ser críticos em relação a tudo que estava acontecendo, seja sobre política, sobre família, sobre esporte, sobre qualquer coisa; ela nos incentivava a estudar”.
E “lembro-me da professora de
português, muito querida, dava parte de suas aulas para leitura, comprávamos livros, e depois de lido. Era gostoso, como ela se empenhava em fazer seus alunos a participar da aula, a trocar ideias com seus colegas, essas são as lembranças que tenho dela”. Ou seja: conforme as narrativas dos acadêmicos pode-se depreender uma relação entre a trajetória escolar com a inserção dos alunos no ‘mundo das letras’, mediante a aprendizagem da leitura. Os memoriais evidenciam que, em sua maioria, tais vivências apresentam conotação positiva, tratando-se de recordações felizes, satisfatórias e prazerosas. Tentando estudar o processo de construção identitário do professor, os registros sugerem que tais ‘modelos positivos’, permeados pela conduta humanizadora e postura ética, assim como a busca e a descoberta do conhecimento, tenham influenciado nas escolhas dos estudantes pela formação e o exercício da docência. Em relação às proposições “De quais práticas pedagógicas você se recorda? E qual seu sentimento em relação às mesmas?”, os memoriais descritivos reavivam situações e experiências, nas quais o lúdico, o dinamismo, as atividades de pesquisa e as relacionadas com situações do cotidiano, ao lado da contação de histórias, ocupavam papel central nos encaminhamentos metodológicos. Isso se verifica nas comunicações que seguem: “Lembro-me dessa prática como algo muito positivo, pois havia um interesse muito grande por parte dos alunos. (...) Para estimular o aluno é preciso apresentar novidades, opções variadas”. “A prática pedagógica de que mais me recordo é uma experiência que uma professora realizou com minha turma ainda nas séries iniciais, quando ela abriu uma minhoca para nos mostrar que ela era um animal invertebrado. (...) São professores assim que fazem a diferença na vida dos alunos”. Igualmente os trechos retratam o exposto: “(...) envolveram atividades dinâmicas e de envolvimento com o grupo. Uma professora que se utilizava bastante desta tática foi minha professora de Inglês. Sempre que ensinava uma nova expressão, nos envolvia em ‘encenações’, situações imaginárias (...)”. “Lembro-me bem de duas práticas, uma
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de matemática, na qual a professora levou vários jogos; e outra de português, quando a professora trouxe diferentes formas de apresentação dos trabalhos, como panfletos, teatros, paródias e slides que transformaram a aula muito interessante”. Ao mesmo tempo, as narrativas sinalizam a importância das aulas de línguas, nas quais o texto, especificamente a produção textual, esteja na centralidade das práticas linguísticas: “Ela (referindo-se à professora) chegava no colégio com um carrinho de feira, todo decorado, e uma vez por semana ela aplicava a matéria de produção textual. (...) no final das aulas, lá se ia ela com aquele carrinho de feira, cheio de cadernos para corrigir. Na época era engraçado, hoje percebo a sua dedicação em levar para casa, em se esforçar para ensinar e exercer a profissão com tanta dedicação”. De acordo com os relatos, as práticas diversificadas, prazerosas e desafiadoras traduzem situações significativas e positivas, nas quais prevalecem a vivacidade, a abertura e a interação. Pode-se inferir que as experiências pedagógicas marcantes são as que transcendem a ‘rotina’ e, por sua vez, geram rupturas, desorganizações e desequilíbrios. Em outras palavras: são as aulas e propostas de atividades que, muitas vezes, são tidas como ‘transgressivas’, pois que sugerem uma concepção diferente de ensino e um tratamento diferenciado para com a linguagem. Novamente, percebe-se a relação dos acadêmicos com atividades de leitura e de produção de texto; enfim, com as práticas de letramento1. Os relatos reiteram a importância de uma concepção diferente de ensino e de um tratamento diferenciado para com a linguagem, privilegiando o uso social e interativo da língua. Qualificam-se, dessa forma, como práticas enriquecedoras, transformadoras e criativas, pois que possibilitam uma mediação com o outro, seja o aluno, seja seu par, seja a educação. Considerações finais
Conforme o pesquisador britânico Brian Street (1984, 2003) realizando seus estudos na interface das áreas da Linguística, da Educação e da Antropologia, o ‘letramento’ designa práticas sociais e concepções de leitura e escrita adquiridas por um indivíduo ou grupo social. No modelo ideológico, o letramento não se restringe a uma habilidade técnica e neutra, porém reconhece a variedade de práticas associadas à leitura e à escrita em diferentes contextos. 1
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A docência caracteriza-se como uma tarefa complexa e requer envolvimento e profissionalismo, sendo que nasce de um compromisso de vida, que em algum momento quem é professor assumiu para consigo mesmo. Ser professor implica num constante diálogo entre a teoria e a prática e na consciência do inacabamento desse processo, pois que o aprendizado é contínuo e permanente. Ao mesmo tempo, o professor que não está aberto para valorização da sua própria experiência de ser professor ou da constituição dessa identidade, negando a si mesmo, seja por não corresponder aos seus ideais de como deve ser um professor, será impotente para recriar-se. Necessita-se, dessa forma, de profissionais voltados para a perspectiva da vivência de práticas mais ricas, abertas e significativas e, sobretudo, que priorizem interlocuções pedagógicas inovadoras, autênticas e criativas. Entretanto, em que medida os saberes e fazeres somados com os anos vividos na trajetória escolar envolvem a reprodução e reelaboração das representações tecidas nessa etapa? Até que ponto constitui-se com suportes moldadores dos futuros professores de línguas? Aí reside a importância de investigações com foco na relação entre memórias e construção identitária do profissional de línguas, pois que o processo de ensino/aprendizagem de línguas é complexo, assim, entender como os futuros professores veem seus ‘mestres’, como os percebem e como vão constituindo suas identidades na interação som o(s) outro(s), instiga a construção de futuros trabalhos. Nesse sentido, evidencia-se uma ligação intrínseca entre a escolha profissional dos acadêmicos de Letras com seus ‘antigos’ professores, tida como modelar, bem como das interações produzidas nas salas de aula de línguas. E, conforme a passagem inscrita no memorial: “Enfim, um bom professor marcará positivamente a vida do seu aluno, mesmo que muitos anos se passem”. Finalmente, reforça-se a importância da função social do professor de línguas perante as diferenças linguísticas e culturais, no sentido de que se promova reflexividade, diálogo e sensibilização, visando à construção colaborativa da sociedade marcada pelo plurilinguismo, dinamismo e heterogeneidade. Referências
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LEITURA E ANÁLISE LINGUÍSTICA: O GÊNERO DISCURSIVO ARTIGO DE OPINIÃO NO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA VIA PLANO DE TRABALHO DOCENTE Daiane Eloisa dos Santos (UEL) Geovana Lourenço de Carvalho (UEL) Considerações Iniciais Apesar dos documentos oficiais que orientam o ensino de Língua Portuguesa, já há algum tempo, tomarem o texto como unidade básica de ensino e a noção bakhtiniana de gêneros do discursivo como articuladora do trabalho escolar e objeto de ensino, a pesquisa de Santos e Carvalho (2012), que investigou um dos livros didáticos de língua portuguesa, aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e presente nas escolas públicas brasileiras, que instituem o gênero como objeto de ensino, constatou que, em relação ao trabalho com o artigo de opinião, a abordagem não foi satisfatória na dimensão de conhecimentos linguísticos, ou seja, apesar de algumas características do gênero terem sido trabalhadas pelo material, as marcas linguísticas do texto foram precariamente abordadas. O estudo da língua, nesse material, ocorre de maneira descontextualizada, sem relação alguma com o estudo do texto. Como o livro didático constitui-se um dos principais materiais didáticos utilizados pelo professor, cabe a ele não segui-lo rigorosamente, mas questionar suas abordagens e propor mudanças e complementações nas propostas para a prática em sala de aula. Diante disso, este trabalho tem por objetivo apresentar uma proposta de leitura e análise linguística, via Plano de Trabalho Docente sobre o gênero discursivo artigo de opinião e, dessa forma, procurar contribuir para as discussões sobre práticas pedagógicas e ensino de língua portuguesa envolvendo gêneros discursivos. Utilizamos em nossa análise, o mesmo texto-enunciado presente no livro didático Português Linguagens, de Cereja e Magalhães (2005), destinado ao 1º ano do ensino médio. Defendemos aqui, tal como Mendonça (2006, p. 206) que a análise linguística não elimina a gramática da sala de aula. Compreendemos também, tal como Perfeito, Cecílio e Costa-Hübes (2007), por análise linguística
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(...) o processo reflexivo – epilinguístico – (Geraldi, 1997) dos sujeitos- aprendizes, em relação à movimentação de recursos lexicais e gramaticais e na construção/composição – concretizada em textos pertencentes a determinado (s) gêneros discursivos (s) considerando seu suporte, meio/época de circulação e de interlocução (contexto de produção) – veiculados ao processo de leitura, de construção e de reescrita textuais (mediado pelo professor) (PERFEITO, CECÍLIO E COSTA-HÜBES, 2007, p.139).
O trabalho se coaduna também, com os estudos de Perfeito (2012); e Porto (2013), que postulam, por meio do projeto “Análise Linguística e Plano de Trabalho Docente: gêneros das esferas literária, midiática e acadêmica” serem os gêneros discursivos, advindos de diversas esferas sociais, e selecionados em contextos escolares específicos, o eixo de progressão e articulação curricular na educação básica (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004). “E os textos-enunciado são entendidos como objeto de ensino, visto serem estudados, lidos, falados, analisados como enunciados concretos e não, como gêneros”. (PORTO, 2013, p.179). Ressalta, dessa forma, a possibilidade de tratar a análise linguística, na transposição didática de enunciados concretos de um dado gênero, mobilizando os recursos linguísticos, expressivos, com centralidade na coprodução de sentido. (PORTO, 2013, p.180)
1 O gênero discursivo: eixo de progressão e articulação curricular Barbosa (2000) destaca que, os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCN), ao assumirem uma concepção enunciativa/discursiva de linguagem e adotarem como unidade básica de ensino, o texto; bem como a noção bakhtinianana de gêneros do discurso como articuladora do trabalho no ensino, implicam (...) a não eleição de visões do objeto que se restrinjam a focar níveis lexicais, oracionais ou mesmo estritamente textuais. Nem mesmo teorias de base comunicativa mais ingênuas – que consideram, para além do texto, também o contexto, mas o fazem de forma mais empírica e imediata, servindo-se de noções do tipo falante/ouvinte – podem ser selecionadas, tendo em vista o desenvolvimento efetivo da
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competência discursiva dos alunos, um dos “passaporte” para a cidadania (BARBOSA, 2000, p.151).
Rojo e Cordeiro (2004, p. 09-10) postulam que, a partir de 1997/1998, culminou uma “virada discursiva ou enunciativa” no enfoque do trabalho com os textos em sala de aula, primeiramente, nos trabalhos de pesquisadores de diversos países, posteriormente, nos programas e propostas curriculares. De acordo com as autoras, o texto, por um longo período, foi abordado em sala como objeto de uso, mas não como objeto de ensino; e a abordagem textual baseava-se em textos escritos canônicos, e era potencialmente normalizadora e gramatical. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998), e as Diretrizes Curriculares Estaduais (PARANÁ, 2008) orientam que é papel da escola propiciar ao aluno o domínio da linguagem, adequando-a conforme a situação e a esfera social da qual participa, para tanto, deve ser levado em consideração que existem gêneros mais flexíveis, os quais os usuários da língua dominam completamente, e os empregam diariamente sem mesmo se dar conta disso, e outros que são mais padronizados, mais complexos, sobre os quais é necessário que o aluno faça um estudo mais aprofundado. Isto é, que a escola promova que o aluno possa dominá-los em todas as suas especificidades e utilizá-los conforme sua necessidade social. Na perspectiva sócio-histórica e dialógica de Bakhtin, o ponto de partida é o vínculo indissolúvel entre a utilização da linguagem e as esferas de atividade humanas. Nesse contexto, os enunciados devem ser vistos na sua função no processo de interação, estabelecendo uma interconexão da linguagem com a vida social. Sob tal enfoque, a linguagem penetra na vida por meio dos enunciados concretos e, ao mesmo tempo, pelos enunciados a vida se introduz na linguagem. Nesse sentido, são sempre vinculados ao domínio de atividade humana, refletindo suas condições específicas e suas finalidades. (Bakhtin, 2003). Para Bakhtin (2003), o gênero discursivo possui três elementos que o definem: conteúdo temático, estilo linguístico e organização composicional, sendo que os dois primeiros são definidos pela enunciação e, por isso, podem ser variáveis, e o terceiro elemento, a estrutura composicional, é relativamente invariável, sendo o que caracteriza determinado gênero enquanto tal. Vale ressaltar, ainda, que esses três componentes do
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gênero discursivo estão “indissoluvelmente ligados no todo do enunciado”, isto é, um precisa do outro para acontecer e um sempre recorre ao outro. Para Rodrigues (2005), os gêneros são enunciados típicos que apresentam certos traços (regularidades) que se construíram historicamente a partir/nas atividades humanas, em uma determinada situação de interação relativamente estável. A autora firma ainda ser necessário investigar os gêneros a partir de sua historicidade, pois não são unidades convencionais ou apenas estruturações textuais regulares, mas tipos históricos de enunciados (e, portanto, de natureza social, discursiva, histórica, cultural e dialógica). Assim sendo, seguindo os aportes teóricos bakhtinianos, ampliados por Rojo (2005, p. 198 – 199) e posteriormente por Perfeito (2005, 2010, p. 55,56), o gênero constitui-se de: Contexto de produção - autor/enunciador, destinatário/interlocutor, finalidade, época e local de publicação e de circulação; Conteúdo temático: o que é que pode ser dizível nos textos pertencentes a um gênero. (BRASIL, 1998, p. 21) Construção composicional e linguística: a estrutura (o arranjo interno) de textos, pertencentes a um gênero. Marcas linguístico-enunciativas: recursos linguístico-expressivos do gênero e suas marcas enunciativas do produtor do texto
2. O Plano de trabalho docente O modelo didático proposto por Gasparin (2009) tem sua base em Saviani, na Pedagogia Histórico-Crítica (PHC) e na perspectiva vigostkiana da Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) (LUNARDELLI, 2012, p.64; PORTO, 2013, p.180), e ao expor uma orientação metodológica, na busca de métodos eficazes para a PHC, propõe cinco etapas: i) prática social inicial, ii)problematização, iii) instrumentalização; iv) catarse e v) prática social final. Para Gasparin & Petenucci (2011) Nessa teoria, o conhecimento constrói-se, fundamentalmente, a partir da base material (prática social dos homens e processos de
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transformação da natureza por eles forjados); porém as organizações culturais, artísticas, políticas, econômicas religiosas, jurídicas etc. também são expressões sociais que inferem na construção do conhecimento. Portanto, é a existência social dos homens que gera o conhecimento, pois este resulta do trabalho humano, no processo histórico de transformação do mundo e da sociedade, através da reflexão sobre esse processo. (p. 08-09).
Porto (2013, p. 180) expõe que Gasparin (2009) define esta teoria dialética do conhecimento em três palavras chaves: prática-teoria-prática, o autor também ressalta a importância
de contextualizar primeiramente os saberes do educando, pois a
aprendizagem inicia-se bem antes do contato escolar. As cinco etapas serão descritas a seguir: 1) Prática Social Inicial: é o ponto de partida no conhecimento prévio do professor e dos educandos, é o que professor e aluno já sabem, em níveis diferenciados. Nesse momento o professor anuncia aos alunos o conteúdo a ser estudado e os objetivos a serem atingidos. Nesse estágio também, o professor deverá buscar, por meio do diálogo, a percepção da vivência próxima e remota cotidiana do conteúdo, antes de leva-lo à sala de aula, desafiando os alunos à exporem o que gostariam de aprender a mais sobre o conteúdo. 2)Problematização: explicação dos principais problemas postos pela prática social, relacionados ao conteúdo. É o elemento chave na transição entre teoria e prática (GASPARIN, 2009). Momento em que se discute com os educandos os motivos pelos quais ele devem aprender o tema proposto. Em seguida, o professor deve o professor transforma o conhecimento em questões problematizadoras considerando as dimensões científica, cultural, conceitual, histórica, social, política, ética, econômica, religiosa, etc. Tais dimensões são denominados pelo autor de interdisciplinaridade singela. 3) Instrumentalização: sistematização do conteúdo, por intermédio de ações didáticopedagógicas e pela mediação do professor (PERFEITO, 2012). Nessa fase, o desafio é instigar o aluno na busca do conhecimento teórico. 4)Catarse: momento da internalização do conteúdo, mas agora reorganizado, reelaborado pelo aluno (PERFEITO, 2012). Gasparin (2011) coloca essa etapa é uma síntese que pode se expressar por uma avaliação oral ou escrita, formal ou informal, na qual o launo tradz o que aprendeu até aquele momento. 5)Prática social final: novo nível de desenvolvimento atual do educando, é o ponto de chegada do processo pedagógico,
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corresponde ao desenvolvimento intelectual tanto do aluno quanto do professor (PORTO, 2013). Consiste em assumir uma nova proposta de ação a partir do que foi aprendido “pela nova postura prática, pelas novas atitudes, novas disposições que se expressam nas intenções de como o aluno levará à prática, fora da sala de aula, os novos conhecimentos científicos;...” (GASPARIN, 2011, p.10). 4 Plano de Trabalho Docente sobre o artigo de opinião O modelo, a seguir, pode ser trabalhado com o 1º ano do Ensino Médio, por oito a dez horas/aula. Este plano de trabalho docente é uma das etapas do trabalho com o gênero. É importante, antes desse estágio, que o professor se aproprie da caracterização das regularidades do gênero e realize uma revisão com os alunos sobre o gênero artigo de opinião, destacando suas especificidades em relação a outros gêneros da esfera jornalística. Partimos do pressuposto que o aluno já tenha realizado um estudo prévio sobre o artigo de opinião, este modelo, visa à continuação desse estudo. Prática Social Inicial. Conteúdo: o gênero artigo de opinião. Vivência do conteúdo Anúncio dos conteúdos: - Diferenciar o artigo de opinião de outros gêneros jornalísticos - Reconhecer o artigo de opinião (suas características), sua construção composicional e suas marcas linguísticas. - Debater sobre temas polêmicos. Vivência cotidiana dos conteúdos Para responder oralmente, no formato de debate oral: - Encadeamento com a aula anterior: o que vocês entendem por artigo de opinião, a partir do que foi estudado? Vocês já leram algum artigo de opinião? Que temas vocês gostariam de trabalhar através do artigo de opinião? Vocês sabem qual é a estrutura
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básica de um artigo de opinião? Vocês sabem quais temas são mais recorrentes nos artigos de opinião? O que gostariam de saber mais: - O que mais gostariam de saber sobre o artigo de opinião? Que temas vocês gostariam de trabalhar através do artigo de opinião? Onde encontramos mais informações sobre o artigo de opinião? Problematização Para tentar resolver os problemas levantados na Prática Social Inicial, as atividades – orais ou escritas, mediadas pelo professor – serão realizadas a partir da apresentação e discussão de notícias e vídeos jornalísticos, sobre o projeto de lei a carca da diminuição da maioridade penal. Na sequência, aborda-se o artigo de opinião, publicado no jornal Folha de São Paulo, escrito por Zilda Arns Neumann, é importante que o professor leve cópias da própria página do jornal escaneadas, para a realização da leitura. Dimensões do conteúdo: - Dimensão conceitual: O que um texto precisa ter para ser um artigo de opinião? Quais as principais características do gênero artigo de opinião? Com base na observação da página onde está publicado o artigo, diferencie esse gênero dos demais textos publicados no mesmo espaço. - Dimensão histórico-cultural: Em que situação se costuma escrever ou ler um artigo de opinião? Onde circula esse gênero? Quais seus potenciais leitores? - Dimensão social: Qual é a função do artigo de opinião? Qual conteúdo temático foi abordado no artigo de opinião? - Dimensão escolar: Qual a finalidade de se aprender a ler e escrever artigos de opinião?
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Qual a finalidade de se estudar os recursos linguísticos-enunciativos presentes no artigo de opinião? Instrumentalização Ações docentes e discentes: a) Sugestão de atividades de leitura e análise linguística. Neste momento, realiza-se uma leitura mais aprofundada do artigo de opinião escrito por Zilda Arns, seguida pelos questionamentos abaixo, respondidos por escrito e individualmente pelos alunos, com a mediação do professor. Nessa etapa, é importante que o professor observe o nível de conhecimento da língua dos alunos, realizando revisões ou atividades metalinguísticas, conforme a necessidade da turma. Questões referentes ao contexto de produção: - Onde foi publicado este artigo de opinião? Em que situação (momento) ele provavelmente foi escrito? Quem provavelmente lê artigos de opinião? Podemos encontrar artigos de opinião em quais tipos de mídias?Quem produz artigos de opinião e com que finalidade? Questões referentes ao conteúdo temático: - A respeito do tema abordado nesse artigo de opinião, o qual identificamos anteriormente, realize uma pesquisa na internet, sobre artigos de opinião que tratam do mesmo tema, procure por opiniões que sejam contra e a favor da redução da maioridade penal. - Discuta com seus colegas em classe sobre os diferentes pontos de vista, procurando posicionar-se. Questões referentes à construção composicional, marcas linguísticas: - No artigo em estudo, há a presença de verbos e pronomes na primeira pessoa do plural? Qual a possível intenção do (s) seu (s) emprego (s)? - Em diversos momentos, percebemos que a autora coloca seu ponto de vista, se posiciona em relação ao que diz no texto. Isso compreende ao ato de modalizar, que
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pode ser feito por meio de diversos recursos, como: advérbios, verbos, locuções adverbiais, uso de aspas, etc. Identifique, pelo menos, três trechos no texto, em que podemos verificar a opinião da autora, afirmação ou negação de determinado argumento ou tese, por meio de tais recursos. - No artigo de opinião, encontramos diversas palavras e expressões, responsáveis por ligar as orações e estabelecer tipos de relações entre elas, como: causa e consequência, conclusão, oposição ou ressalva, soma de duas ideias, objetivo e finalidade e assim por diante. Essas palavras, também mostram a força argumentativa dos enunciados, e são denominados operadores argumentativos, que, muitas vezes, correspondem à conjunções e preposições. Observe o texto, há presença de operadores argumentativos? Se houver, destaque os usos e procure explicitar sua função. Catarse Síntese mental do aluno: Para que o aluno demonstre o que internalizou após o estudo realizado, sugerimos que, em relação ao tema estudado, o discente se posicione e exponha seu ponto de vista, em três parágrafos argumentativos, utilizando os operadores argumentativos e modalizadores que foram recentemente abordados. Prática Social Final Intenções e ações do aluno a serem construídas: -Debater mais sobre o assunto em fóruns da internet, na comunidade, com outros especialistas, com outros professores. - Produzir um artigo de opinião e publicar na internet. - Participar de outros debates (escolares ou comunitários). 5 Considerações Finais O trabalho, como já afirmado, defende uma abordagem contextualizada de análise linguística, por meio da leitura/compreensão de textos-enunciados, no trabalho com gêneros discursivos, por acreditar numa maior compreensão dos recursos
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linguísticos do gênero abordado. Espera-se, assim, contribuir para a efetivação dessa perspectiva em sala de aula, para que a partir dessa proposta, outras possam ser pensadas. Ressaltamos, porém, a necessidade de que o professor se aproprie, primeiramente, das características do gênero artigo de opinião, inclusive de suas características composicionais e estilísticas, juntamente as condições de produção; para que consiga desenvolver, concomitante ao aluno, a criticidade na leitura; e a construção de maneira significativa da capacidade de argumentar. Com a presente sugestão, pretende-se também desenvolver uma maior autonomia, por parte dos alunos, no processo de leitura, e maior participação no contexto social, o qual está inserido, e o trabalho com o gênero discursivo artigo de opinião é muito importante para isso. 6 Referências BAKHTIN, M. Discourse in life and discourse in art – concerning sociological poetics. Publicada em Freudism, New York. Academic Press, 1976. ______. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1992. ______. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BALTAR, M. In. GUIMARÃES, A. M. M; MACHADO, A. R; COUTINHO, A. (orgs). O interacionismo sociodiscursivo: questões epistemológicas e metodológicas. Campinas: Mercado das Letras, 2007. BARBOSA, Jacqueline Peixoto. Do professor suposto pelos PCNs ao professor real de língua portuguesa: são os PCNs praticáveis? In: ROJO, Roxane (org.). A prática de linguagem em sala de aula. Campinas: Mercado de Letras, 2000.
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OBJETIVAÇÃO E TÉCNICAS DE SI DE SUJEITO IDOSO EM MATÉRIAS DO “ESPECIAL LONGEVIDADE” DO SITE IG Daniela POLLA (UEM)
Introdução Nos mais variados saberes contemporâneos, cada vez mais os idosos aparecem discursivizados, objetivados de uma maneira que pode ser considerada “nova”. 1Nessa medida, são objetivados como ativos, dominando as tecnologias, procurando manter a beleza. Ocorrendo que parece ficar silenciada a imagem de idosos acometidos pelas patologias características dessa faixa etária, que têm problemas com sua aparência, que aposentam-se e param de trabalhar, que não interagem com as novas tecnologias. Objeto de análise deste trabalho, a seção especial sobre longevidade do site IG apresenta variadas matérias, reportagens, entrevistas que objetivam não mais somente os idosos, mas o próprio processo de envelhecimento. Para este trabalho, optou-se por selecionar três materialidades, uma reportagem, uma matéria com dicas e uma entrevista. Nesta ordem, são elas: “A imagem do idoso ao longo das décadas: de incapaz a 'coroa conservado'”; “Seis passos para se tornar um idoso saudável”; “'Brasil vai envelhecer rápido e na pobreza'”. As próprias materialidades que compõe a série enunciativa selecionada parecem apontar para o ferramental teórico-metodológico a ser mobilizado. Uma vez que, quando as sequências enunciativas parecem objetivar o processo de envelhecimento, as técnicas de si e artes de existência tornam-se presentes. Dessa forma, opta-se por trabalhar com a Análise do Discurso de linha francesa, especialmente, aquela cunhada e desenvolvida sob a égide de Michel Foucault. Portanto, serão operacionalizados conceitos tais como: enunciado, dietética, temperança, objetivação, subjetivação, técnicas de si, dentre outros. 1
Vide dissertação da autora, disponível em: http://www.ple.uem.br/defesas/pdf/dpolla.PDF. Acesso em: 16 out. 2014.
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Assim, nas próximas seções apresenta-se o marco teórico-metodológico que será mobilizados nas análises, bem como a descrição-interpretação das três materialidades enunciativas selecionadas para este trabalho. Constituindo, desta forma a abordagem que permitirá a percepção de uma dada objetivação de idoso na atualidade e das artes de existências que vê-se funcionar nas matérias do site IG.
Pensando nas pegadas de Michel Foucault Este trabalho tem sua fundamentação teórica e metodológica na Análise de Discurso de linha francesa, especialmente aquela desenvolvida a partir da obra de Michel Foucault. Tido com historiador por uns, filósofo por outros, o arcabouço teóricometodológico cunhado por este autor francês é utilizado como uma “caixa de ferramentas” por estudantes e pesquisadores em Análise do Discurso. Importa destacar que quando se anda “nas pegadas de Foucault”, não há a busca pela origem, pelo ato fundador, o pesquisador debruça-se, ao contrário, em um problema do presente para aí sim, arqueologicamente, “escavar” camadas, fazer a História. Além disso, ao invés de voltar o olhar às unidades, às longas unidades “transhistóricas”, com Foucault, o olhar se volta às rupturas, às descontinuidades, à emergência singular de acontecimentos discursivos. Quando a pesquisa se baseia na obra deste autor, um conceito é fundamental: enunciado. Para Michel Foucault, o enunciado é uma função de existência. Assim, O enunciado não é, pois, uma estrutura (isto é, um conjunto de relações entre elementos variáveis, autorizando assim, um número talvez infinito de modelos concretos); é uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles “fazem sentido” ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõe, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação. (FOUCAULT, 2009, p. 98)
Nessa medida, há enunciado quando se puder descrever a função enunciativa, que compreende as características: referencial, posição sujeito, campo associado e existência material. Para Foucault (2009), o enunciado não possui correlatos, da mesma forma que uma proposição possui um referente; no entanto, liga-se a um referencial, que
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forma o lugar, a condição, o campo de emergência, a instância de diferenciação dos indivíduos ou dos objetos, dos estados de coisa e das relações que são postas em jogo pelo próprio enunciado; define as possibilidades de aparecimento e de delimitação do que dá à frase seu sentido, à proposição seu valor de verdade. (FOUCAULT, 2009, p. 103)
Sobre o segundo elemento da função enunciativa, o Foucault não fala em sujeito, mas em uma posição sujeito, não há um sujeito específico, mas uma posição vazia que pode ser ocupada por vários enunciadores, assim, busca-se “determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito.” (FOUCAULT, 2009, p. 108). A respeito do campo associado, “não há enunciado que não suponha outros: não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de coexistências, efeitos de série e de sucessão, uma distribuição de funções e de papéis.” (FOUCAULT, 2009, p. 112). Por fim, para que haja função enunciativa, o enunciado precisa ter uma existência material, uma superfície, um suporte, um lugar e uma data, quando altera-se a materialidade, o próprio enunciado também muda. (FOUCAULT, 2009). Nos enunciados se manifestam as práticas discursivas. Práticas que são relevantes na medida em que “formam sistematicamente os objetos de que falam” (FOUCAULT, 2009, p. 55). Dessa forma, “as coisas” somente passam a ter existência a partir do momento em que se tornam objeto de discurso. Portanto, a questão é determinar em que condições alguma coisa pôde se tornar objeto para um conhecimento possível como ela pôde ser problematizada como objeto a ser conhecido, a que procedimento de recorte ela pôde ser submetida, que parte dela própria foi considerada pertinente. Trata-se, portanto, de determinar seu modo de objetivação, que tampouco é o mesmo de acordo com o tipo de saber em pauta. (FOUCAULT, 2006, p. 235)
Além disso, as práticas discursivas também contribuem para a construção discursiva das formas de subjetivação. As quais voltam-se ao exame das tecnologias do eu, das relações consigo mesmo, sendo que a subjetivação é concebida como “todos aqueles procedimentos destinados a constituir subjetividades, verdades de e sobre o sujeito, nos mais diferentes espaços, práticas e discursos, e sempre articulados a relações de poder” (FISCHER, 2012, p. 46).
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Com Foucault, busca-se compreender os modos pelos quais os indivíduos elaboram um saber sobre si mesmos, por meio da verificação das técnicas mobilizadas para essa tarefa. Como por exemplo, “as técnicas de si, que permitem aos indivíduos efetuar, com a ajuda dos outros, um certo número de operações sobre seu corpo, seu prazer, seus pensamentos, suas condutas, seus modos de ser, de se transformar a fim de alcançar um certo estado de felicidade.” (PORTOCARRERO, 2008, P. 426-427). Dito de outro modo, as técnicas de si são procedimentos, formas de governo de si e dos outros de forma a atingir um determinado fim. Elas “propõem não só o „conhecer-se‟, mas também o governar-se: autodecifrar-se, confessar-se ao outro, examinar-se, sacrificar-se.” (GREGOLIN, 2007, p. 48-49). São processos múltiplos, artes de existência, com vistas a um determinado fim, com o objetivo de adotar para si determinada subjetivação. Do ponto de vista de uma perspectiva discursiva, o fio condutor que organiza as diferentes formas de subjetividade “é composto de uma série de procedimentos, denominados „técnicas de si‟, que, em todas as sociedades, fixam, mantêm ou transformam a identidade dos indivíduos em função de determinados fins.” (NAVARRO, 2006, p. 79). Assim, uma vez determinada a teoria/metodologia desenvolvida a partir das pegadas de Michel Foucault, passe-se, na seção seguinte, ao batimento descritivoanalítico das materialidades que compõem o recorte mobilizado para este trabalho. A saber: três matérias veiculadas pelo site IG, na seção referente à longevidade.
A objetivação de idoso e suas técnicas de si no IG Considerada a reflexão teórica e metodológica desenvolvida nas seções anteriores, passa-se agora ao batimento descritivo-interpretativo das materialidades que compões a série enunciativa mobilizada para este trabalho. As matérias do site IG serão analisadas na seguinte sequência: “A imagem do idoso ao longo das décadas: de incapaz
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a 'coroa conservado'”; “Seis passos para se tornar um idoso saudável”; “'Brasil vai envelhecer rápido e na pobreza'”. A primeira materialidade é a reportagem intitulada “A imagem do idoso ao longo das décadas: de incapaz a 'coroa conservado'”2, postada no site IG, no dia dois de maio de dois mil e catorze. Já no título da reportagem aparece a manifestação de um conceito tipicamente foucaultiano: a descontinuidade. Quando se pensa com Michel Foucault, sabe-se que não existem os objetos naturais e que os objetos de discurso não permanecem os mesmos ao longo do tempo, ocorrem rupturas e descontinuidades. Assim, o idoso, na medida em que aparece objetivado pelos variados discursos, não é o mesmo, sua objetivação sofre transformações históricas, conforme vê-se manifestado na diferenciação que o título da referida reportagem faz, ou seja, a sequência enunciativa: “de incapaz a „coroa conservado‟”, cria discursivamente a percepção de que entre a objetivação dos idosos como “incapazes” e a objetivação de “coroa conservado”, várias outras objetivações já tiveram condição de possibilidade. A linha de apoio da referida reportagem é a seguinte: “Artistas da década de 60 quebram estigmas porque burlam estereótipo de velho, são vistos como gente que não envelhece.”. Esta sequência enunciativa que objetiva os artistas da década de 60, atualmente idosos, como quebrando com os estigmas, pelo fato de não utilizarem artes de existência condizentes com o que a reportagem chama de “estereótipo de velho” e serem, por isso, vistos como pessoas que não envelhecem. Dessa forma, percebe-se que há determinadas artes de existência “esperadas” para as pessoas idosas, e que estes artistas poderiam ser vistos como a resistência a este, para usar as palavras da própria reportagem, “estereótipo”. Na sequência, a reportagem do IG cita o saber da Antropologia, na fala da antropóloga e autora do livro A Bela Velhice, Mirian Goldenberg, para realizar como que uma explicitação do porque do título da reportagem, mostrando qual era a objetivação de idoso que circulava anteriormente. Há uma citação direta da fala da referida antropóloga: “Os velhos estão se valorizando muito mais e impondo mais respeito. Não são mais invisíveis. Estão ocupando todos os espaços, inclusive espaços 2
Disponível em: http://saude.ig.com.br/minhasaude/2014-05-02/a-imagem-do-idoso-ao-longo-das-decadas-de-incapaz-acoroa-conservado.html?fb_action_ids=766604236707785&fb_action_types=og.recommends.. Acesso em: 16 out. 2014.
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em que não estavam presentes antes, como universidades, lazer e vida cultural. Os velhos não ficam mais parados, escondidos, isolados. Com saúde e dinheiro, eles podem e querem estar em todos os lugares. É isso que esses velhos, que viveram a juventude nos anos revolucionários das décadas de 1960 e 1970 estão mostrando.”. Com esta fala da pesquisadora, a publicação esclarece qual é a objetivação de idoso anterior e, portanto, a qual o site trata como estereótipo: é o idoso que não se valoriza, que não se impõe, que é invisível, que não vai para a universidade, tem poucas opções de lazer e acesso a cultura, que não tem saúde e nem dinheiro. Assim, os idosos de hoje, que foram adolescentes nos anos de 1960 e 1970, são justamente o contrário disto que seria o estereótipo. As artes de existência e técnicas de si adotadas por estes idosos, seriam justamente o contrário deste estereótipo, conforme a linha de apoio da reportagem já informava. Outro ponto a ser destacado logo de início é a forma de denominação dos sujeitos idosos. O emprego de “melhor idade”, “terceira idade”, “idosos” é uma regularidade nas condições de emergência e possibilidade da atualidade. Contudo, em todas as materialidades mobilizadas para este trabalho (e, geralmente, adotada nas publicações feitas na seção “Longevidade” do site IG), a referência aos sujeitos com 60 anos ou mais é realizada por meio da expressão “velho”. Assim, no discurso citado de profissionais do saber médico, na forma de enunciar do próprio site, nos profissionais dos saberes sociais, a menção aos idosos se dá por meio do uso natural da palavra “velho”, que até recentemente não era utilizada e, usualmente, substituída expressões características do politicamente correto mencionadas no início deste parágrafo. Parece haver, assim, uma naturalidade e uma ausência de qualquer preconceito ou discriminação nesta palavra, por ser empregada na fala de profissionais dos mais variados campos de saber. A referida reportagem segue abordando o papel do poder econômico na objetivação de idoso que tem condição de possibilidade na atualidade, citando pesquisas e o campo da publicidade. Porém, há um alerta para o fato de que essa objetivação “nova” de idoso, que burla o “estereótipo” e parece não envelhecer, não se estender a todos os idosos, nem a todos os lugares. Novamente, um saber legitimado a falar sobre os idosos aparece no texto da reportagem: a pesquisa de uma professora da
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Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a psicóloga Tatiana de Lucena Torres. O texto da reportagem afirma que “É preciso considerar a heterogeneidade dessa população: diferentes faixas etárias, classes sociais e regiões do País.”, e que, de acordo com a pesquisa, “os estereótipos negativos sobre a velhice ainda persistem.”. Permitindo verificar, portanto, a convivência de diferentes subjetivações e objetivações de idoso na atualidade: como as dos “que não envelhecem” e de outro lado as do “estereótipo”. Ainda citando a pesquisa de doutorado da psicóloga Tatiana de Lucena Torres, a reportagem mostra que muitas pessoas ainda mantêm o estereótipo e enxergam o idoso como “uma pessoa ranzinza, solitária e doente”. Ao passo que as menções positivas versam sobre idosos como representantes de sabedoria e experiência. Porém, nas palavras de Torres, essas objetivações de idoso como dono de sabedoria e experiência ainda não são tão valorizadas no Brasil quanto em outros países e faltam políticas para aplicar e valorizar essas características. Assim, segundo ela, mesmo com muitos avanços, ainda é muito difícil ser velho no país, porque “os conceitos negativos são muito fortes e os positivos aparecem de forma muito abstrata.”. Além disso, para a referida pesquisadora: “é difícil prever o quanto de avanços haverá no futuro. Os futuros velhos não fazem a menor ideia do que é ser velho.”. Cria-se, portanto, discursivamente, a objetivação de um momento em que as transformações históricas estão como que “em processo”. Uma vez que as objetivações de “novo” idoso e do idoso do “estereótipo” aparecem ao mesmo tempo nos discursos. Ao mesmo tempo, com a afirmação de que ainda é difícil prever o que acontecerá com os idosos do futuro e de que “os velhos não fazem ideia do que é ser velho”, percebe-se que as artes de existência dos idosos também variam de acordo com a subjetivação adotada e de acordo com o aquário da atualidade, não sendo possível estimar, então, quais as técnicas de si, as artes de existência, as objetivações e subjetivações de idoso que terão condição de possibilidade em um futuro, razoavelmente, próximo no tempo. Para encerrar a materialidade de “A imagem do idoso ao longo das décadas: de incapaz a 'coroa conservado'”, volta-se novamente o olhar para as condições de possibilidade da época atual. Assim, ainda com a voz da pesquisadora Torres, o texto da notícia mostra que os idosos citados como “coroas conservados” ou “revolucionários da
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década de 60” são valorizados, justamente, por se afastarem do estereótipo de velho citado pelo texto do IG. Ainda citando a referida psicóloga, a notícia é encerrada da seguinte forma: “As pessoas os enxergam como gente que não envelhece. O país terá realmente avançado quando olhar com essa mesma admiração aos „velhos convencionais‟, aqueles que adoecem, precisam de cuidado e que têm muita história rica para contar.” Verifica-se, dessa forma, nesta primeira materialidade da série enunciativa mobilizada, a objetivação de um idoso que é “novo”, na medida em que é “coroa conservado”, que “não envelhece”, que “burla estereótipo”, ao mesmo tempo, a objetivação deste idoso do estereótipo, que sofre com preconceitos, dificuldades, como aqueles que adoecem e precisam ser cuidados. Assim, as técnicas de si também variam, já que as artes de existência de um idoso que burla estereótipos e parece não envelhecer são, logicamente, diferentes daquelas dos idosos que fazem parte do estereótipo citado na referida materialidade. Assim, no aquário da realidade atual, parece não haver uma objetivação única e estabilizada de idoso, há variações, embora existam algumas regularidades. Uma destas regularidades nos discursos sobre os idosos manifesta-se na segunda materialidade mobilizada para esta análise, a saber, a notícia “Seis passos para se tornar um idoso saudável”3, publicada no IG em primeiro de maio de dois mil e catorze. A regularidade reside no uso de textos prescritivos de técnicas de si destinadas a fazer com que os idosos vivam mais, ou que pareçam não envelhecer, ou para que envelheçam com uma arte de existência saudável. Este último é o caso da notícia do IG aqui mobilizada. O texto de apresentação da notícia afirma que não há uma fórmula mágica para viver mais e viver bem, mas que “genética, alimentação saudável e atividade física são fatores que estão na linha de frente para conquistar uma vida mais longeva.”. Além disso, outra regularidade é a mobilização do saber médico como exercendo o poder de falar a verdade sobre os cuidados de si a serem adotados para ser “um idoso saudável”. 3
Disponível em: http://saude.ig.com.br/minhasaude/2014-05-01/seis-passos-para-se-tornar-um-idoso-saudavel.html. Acesso em: 16 out. 2014.
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Assim, na sequência, são elencados seis quesitos com os quais os idosos deveriam se preocupar e adotar artes de existência específicas para cada um deles, caso desejem uma velhice saudável. São eles: genética, atividade física, atividade mental, dieta saudável, vida emocional estável e controle rigoroso de doenças degenerativas. Em cada um dos quesitos são elencados profissionais de diversos saberes prescrevendo condutas esperadas de quem deseja viver mais e bem. Dessa forma, vemos sequências enunciativas manifestando noções de dietética, temperança, do dispositivo da aliança, das mais variadas técnicas de si, tais como: “a genética explica porque algumas pessoas consomem grodura e outros alimentos pouco saudáveis e continuam cheias de saúde por muitos anos”, “o ideal é fazer atividades aeróbicas - como caminhada - e também as que fortaleçam a musculatura”, “a frequência e a intensidade de atividade física variam de idade para idade”, “É preciso se manter ativo socialmente, se sentir útil, senão a vida perde a graça”, “especialistas indicam exercícios mentais, como leitura, jogos de palavra cruzada, música”, “Ao valorizar o consumo de peixe, frutas, verduras, legumes e cereais, e limitar o de carnes vermelhas e laticínios, a dieta evita os quilos extras que vêm com o envelhecimento e reduz os riscos de doenças cardiovasculares”, “moderação também é importante. ”Comer excessivamente também é ruim”, “ter um casamento estável, baseado em uma relação de muito amor e confiança é uma característica comum entre as pessoas longevas”, “hábitos como o álcool e o fumo também são fatores de risco.” Cria-se, discursivamente, na referida notícia a visão de que as técnicas de si adotadas pelos sujeitos idosos refletem a forma de ser idoso na atualidade. Citando saberes como da medicina, da educação física, da nutrição, prescrevem-se dadas técnicas de si e artes de existência que teriam como objetivo final idosos longevos e saudáveis. A última materialidade mobilizada é uma entrevista intitulada “'Brasil vai envelhecer rápido e na pobreza'”4. A entrevista é do site IG com o especialista em longevidade, Alexandre Kalanche. Ele é apresentado como presidente do Centro Internacional de Longevidade. A materialidade da entrevista, publicada no dia três de maio de dois mil e catorze, versa sobre o processo de envelhecimento da população e as 4
Disponível em: http://saude.ig.com.br/minhasaude/2014-05-03/brasil-vai-envelhecer-rapido-e-na-pobreza.html. Acesso em: 16 out. 2014.
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políticas públicas que precisam acompanhar a mudança demográfica causada por esse envelhecimento. A parte introdutória da entrevista aborda o fato de que, diferente dos países desenvolvidos, o envelhecimento da população brasileira vai acontecer na pobreza, uma vez que os valores ligados à juventude – em detrimento da velhice – ainda são mais valorizados no Brasil e há carências no desenvolvimento de programas sociais e políticas públicas para os sujeitos idosos. Citando o médico, Alexandre Kalanche, o texto do IG afirma que as pessoas que atualmente estão com quarente anos precisam pensar sobre o que farão com os anos que lhes foram “dados de presente”. A referência a “presente” possui um campo associado como de coisas boas, coisas que vem para fazer bem, que constituem uma alegria, dito de outro modo, envelhecer seria um prêmio, uma alegria, uma dádiva. Na sequência do parágrafo, lê-se: “Se vão viver 80 ou 90 anos, que seja com saúde.”. Esta afirmação, relacionada com a anterior que afirma que os anos “a mais” são um presente, cria a objetivação de que viver até os 80 ou 90 anos seria como se fosse “uma bênção”, mas, o que importa não é “ir o mais longe possível no tempo” e sim com saúde, com qualidade de vida. Logo, as técnicas de si adotadas por aqueles que querem viver mais e com qualidade nesta sobrevida são determinadas por diversas razões, dentre elas, aquelas elencadas em textos prescritivos tais como o “Seis passos para se tornar um idoso saudável”. Nesta questão de envelhecer de forma saudável e proveitosa é que se articula o restante da materialidade aqui analisada. Ela apresenta, em formato de ping-pong, uma entrevista com o representante do saber médico e do poder institucional (na medida em que é presidente de um órgão internacional), na posição sujeito de um especialista preocupado com o futuro e receoso do processo de envelhecimento sem políticas públicas adequadas. A entrevista é encerrada com uma afirmação do especialista: “meu conselho para as pessoas de 40 anos é que prevejam que vão viver muito, que vão chegar aos 80 ou 90 anos. A forma que elas vão viver vai depender das escolha que fizerem hoje.” Dito de outro modo, o conselho de Alexandre Kalanche diz respeito ao fato de que as técnicas de si e artes de existência adotadas ao longo da vida dos indivíduos determinam a forma de subjetivação, a objetivação e sua arte de existência como sujeito idoso.
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Considerações finais Com base no ferramental teórico-metodológico da Análise de Discurso de linha francesa, notadamente aquele desenvolvido sob a égide de Michel Foucault, bem como com o batimento descritivo analítico desenvolvido na análise, verifica-se que as condições de possibilidade da atualidade permitem que a objetivação “nova” de idoso (aqueles que burlam estereótipos, que parecem não envelhecer, que são coroas conservados) conviva com a objetivação de idoso “tradicional” ou convencional (aqueles que não frequentam universidades, que precisam de cuidados, que fazem parte do estereótipo). Da mesma forma, ao variarem as objetivações de idoso, variam as técnicas de si adotadas por eles. Merece destaque a descontinuidade na forma de menção aos indivíduos com sessenta anos ou mais. Quando do desenvolvimento da dissertação da autora, já mencionada na introdução deste trabalho, a forma de referir-se aos idosos se dava pelo que, convencionalmente, denomina-se “politicamente correto”, sendo realizada por meio de expressões tais como: “melhor idade”, “terceira idade”, “idosos”. O emprego de “velho” não fazia parte das condições de possibilidade do momento histórico. Contudo, o especial Longevidade, do site IG, emprega, tanto nos textos do site, quando no discurso citado de representantes dos mais diversos saberes, a forma de denominação “velho”. Por ser adotada usualmente por jornalistas, médicos, psicólogos, publicitários, parece adquirir um tom de naturalidade e ausência de preconceitos que não possuia condição de possibilidade há pouco tempo atrás. Manifesta-se, portanto, a descontinuidade ao fazer referência aos sujeitos idosos que, pensando com Foucault, parece não designar o mesmo objeto “idoso”. Há ainda a regularidade do texto prescritivo que, por meio dos saberes da Medicina, da Nutrição, da Educação Física, designa uma série de quesitos que devem ser levados em consideração pelos idosos no caso de desejarem uma velhice saudável. Assim, as técnicas de si adotadas parecem ser diretamente proporcionais à subjetivação de idoso adotada por cada um. Relacionando a materialidade da notícia prescritiva com a primeira elencada na análise, verifica-se que as técnicas de si de um idoso que “parece não envelhecer” são umas e as técnicas de si dos idosos que fazem parte do “estereótipo” são outras.
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Por fim, com relação à entrevista com o médico especialista em longevidade, vêse que a questão do envelhecimento parece estar de fato “em processo” na atualidade. Assim, é uma faixa etária que demanda estudos, pesquisas e atenção governamental com relação a políticas públicas e sociais. Mas, aponta, principalmente, para o fato de que o cuidado de si que deve ser adotado pelas pessoas adultas da época atual é determinante para que tenham dada subjetivação de idoso e não outra em seu lugar.
Referências FISCHER, R. M. B. Trabalhar com Foucault: arqueologia de uma paixão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. FOUCAULT, M. Arqueologia do Saber. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. ______. 1984 – O Cuidado com a Verdade. In: ______. Ética, sexualidade e política. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. (Ditos e Escritos; V). GREGOLIN, M. R.. Discurso, história e a produção de identidades na mídia. In: FONSECA-SILVA, M. C.; POSSENTI, S. Mídia e rede de memória. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2007, p. 39-60. NAVARRO, P. O pesquisador da mídia: entre a “aventura do discurso” e os desafios do dispositivo de interpretação das AD. In: ______ (org.) Estudos do Texto e do Discurso: mapeando conceitos e métodos. São Carlos: Claraluz, 2006. PORTOCARRERO, V. Os limites da vida: da biopolítica aos cuidados de si. In: JUNIOR, D. M. A.; VEIGA-NETO, A.; FILHO, A. S. (orgs.) Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. p. 419 – 430.
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A RELAÇÃO RETÓRICA DE CONCESSÃO NA LÍNGUA FALADA DE MARIANA (MG): UMA ANÁLISE INICIAL
Danúbia Aline Silva Sampaio (UFMG)
1. A Teoria da Estrutura Retórica do Texto (RST) A Teoria da Estrutura Retórica dos Textos (RST) é uma teoria linguística que tem como objeto de estudo a organização dos textos, identificando e caracterizando as relações que emergem entre as partes do texto (Mann e Thompson, 1988; Matthiessen e Thompson, 1988; Mann et al., 1992). Essa teoria aponta que, além do conteúdo proposicional explícito veiculado pelas orações de um texto, há proposições implícitas, denominadas proposições relacionais, as quais surgem das relações que se estabelecem a partir da combinação entre as porções do texto. Mann e Thompson (1988) apontam que as proposições relacionais ou relações retóricas atuam e permeiam o texto como um todo, desde as porções maiores (nível discursivo ou nível textual) até as relações estabelecidas entre duas orações (nível gramatical). De acordo com esses autores, cada unidade componente de um texto está ligada ao resto do texto por meio do entrelaçamento de relações retóricas, as quais são essenciais para o funcionamento do mesmo. Dessa forma, o discurso1 é coerente, ou seja, as “partes” de um determinado discurso “caminham juntas” para formar um todo. Além disso, através da atuação das proposições relacionais nos diversos discursos, os produtores de textos podem efetivar seus propósitos e garantir que suas intenções comunicativas sejam alcançadas. Mann e Thompson (1988), após a análise de diferentes textos a partir da teoria da RST, estabeleceram uma lista de vinte e cinco relações retóricas. Essa lista, no entanto, 1
Para esta pesquisa é adotada a mesma definição de Decat (1999b, p. 299) para “discurso”, segundo a qual se trata de “todo e qualquer produto da atividade de linguagem numa situação real de comunicação”.
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não representa um grupo fechado, mas um conjunto satisfatório de relações para descrever a maioria dos textos.2 Diante desses pressupostos teóricos, o presente trabalho tem o objetivo de apresentar uma análise inicial das relações retóricas – em especial a relação de concessão - que se manifestam em textos pertencentes à modalidade oral da língua portuguesa contemporânea da cidade de Mariana (MG). Pretende-se verificar, nos textos selecionados, a afirmação de Matthiessen e Thompson (1988) de que as proposições relacionais que se estabelecem no nível discursivo organizam desde a coerência dos textos (macroestrutura) até a combinação entre orações (microestrutura). Para a análise, no que diz respeito à combinação de orações, considera-se a possibilidade de a hipotaxe adverbial ser importante meio utilizado pelos escritores/falantes para a expressão linguística das relações retóricas. 2. A noção de unidades de informação Postulada por Chafe (1980), a “idea unit” – unidade de informação ou unidade informacional – é entendida como um “jato de linguagem”, que possui toda a informação que pode ser ‘manipulada’ pelo falante num único “estado de consciência”, segundo o termo de Kato (1985). Decat (1999a) diz “que há um limite quanto à quantidade de informação que a atenção do falante pode focalizar de uma única vez, ou seja, a unidade informacional expressa o que está na ‘memória de curto termo’”. Ainda de acordo com esta autora, (...) tais unidades ou - blocos de informação – possuem, segundo Chafe (1980), cerca de sete palavras e podem ser identificadas pela entonação (contorno entonacional de final de cláusula), pela pausa (ou hesitação), ainda que breve, que as separa de outra unidade. (DECAT, 1999a, p. 27)
A estrutura retórica de um texto pode ser representada por um diagrama arbóreo, e, através dessa representação, é definida pelas relações entre porções de texto sucessivamente maiores. Para a divisão das porções de texto, a noção de unidade de informação, de Chafe (1980), pode ser adotada. Dessa forma, os textos que constituem 2
É apresentada uma lista com as relações http://www.sfu.ca/rst/07portuguese/definitions.html.
e
suas
definições
no
site
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o presente corpus, para a realização de sua descrição e análise, serão divididos em unidades informacionais, conforme discutido acima. Decat (1999a) considera que a noção de “unidades de informação” pode ser um instrumento importante para o estudo e análise da (in) dependência das orações. De acordo com essa autora, poder ou não constituir, por si só, uma unidade de informação é uma distinção fundamental entre estruturas de encaixamento (aquelas que não podem constituir sozinhas uma unidade de informação) e estruturas de hipotaxe (aquelas que constituem, de forma independente, uma unidade de informação). Dentro do grupo das estruturas de hipotaxe, encontram-se, por exemplo, as construções de hipotaxe adverbial, que, como já dito anteriormente, podem se apresentar como marcas linguísticas das proposições relacionais. Apresentando ainda contribuições ganhas pela utilização do conceito de “unidades informacionais”, Decat (1999b) afirma: A abordagem através da utilização da noção de unidade informacional pode esclarecer melhor o que significa, para uma cláusula, ser, ou não, dependente. Além disso, ela será um elemento a mais para se entender o ‘encaixamento’ de uma cláusula em outra como uma relação PARTE-TODO, em oposição à hipotaxe, que se caracteriza como uma articulação NÚCLEO-SATÈLITE (como é o caso das cláusulas adverbiais). (DECAT, 1999b, p. 309).
Adotando, portanto, a noção de unidades de informação e dividindo o corpus segundo esse critério, o presente trabalho pretende analisar a manifestação das proposições relacionais na língua em uso na modalidade oral, partindo de uma situação de fala espontânea. 3. Constituição e caracterização do corpus Os textos utilizados no presente artigo foram selecionados de um corpus inicialmente organizado para o desenvolvimento de uma dissertação de mestrado que, baseando-se em uma abordagem funcionalista e em um modelo social de análise, tem como objetivo principal descrever, de forma exaustiva, a realização das cláusulas adverbiais entre os diferentes falantes. O instrumento utilizado na composição do corpus foi a entrevista sociolinguística (individual), de trinta minutos de duração cada, 3
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gravada com oito informantes nascidos na região de Mariana (MG). Para cada entrevistado foi preenchida uma ficha com os seguintes dados: nome, idade, sexo, área – especificando nesse último item se o informante reside na cidade de Mariana ou no Distrito de Cachoeira do Brumado, o qual pertence à mesma cidade – e, por último, o tipo de rede social à qual pertence o entrevistado – se forte ou fraca, conforme teoria proposta por Milroy (1987) e Milroy (1992). As entrevistas realizadas têm como temas centrais: a) vida acadêmica e profissional; b) gostos e preferências pessoais; c) política governamental marianense; d) patrimônio histórico das cidades de Mariana e Ouro Preto e do Distrito de Cachoeira do Brumado; e) religião e cultura dessas mesmas cidades; f) perigo de vida; g) ou ainda, fatos ocorridos na infância e na adolescência. Os temas centrais acima apontados não apresentam uma interferência direta no mapeamento das relações de concessão. No entanto, é importante contextualizar a maneira como os textos orais do presente corpus foram constituídos, uma vez que o conhecimento desses temas pode contribuir para a análise, aumentando a compreensão do analista acerca do contexto discursivo em que as falas se realizaram. A seguir, o presente trabalho, de acordo com a RST, tem o objetivo de apresentar uma análise inicial das relações retóricas – em especial a relação de concessão - que se manifestam nesses textos pertencentes à modalidade oral da língua portuguesa contemporânea da cidade de Mariana (MG). 4. A relação retórica de concessão Pardo (2005) apresenta a seguinte definição para a relação de concessão: Nome da relação: CONCESSÃO Restrições sobre N: o escritor julga N válido; Restrições sobre S: o escritor não afirma que S pode não ser válido; Restrições sobre N+S: o escritor mostra uma incompatibilidade aparente ou em potencial entre N e S; o reconhecimento da compatibilidade entre N e S melhora a
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aceitação de N pelo leitor; Efeito: o leitor aceita melhor N.
Lima (2002, p. 142) descreve a construção concessiva da seguinte forma: “em uma construção concessiva, o satélite e a oração nuclear guardam uma relação tal, que o que se afirma no enunciado é que o conteúdo expresso na nuclear se realiza, a despeito da realização do conteúdo expresso no satélite”. Além das definições apresentadas acima, há também outras que buscam, de forma bastante semelhante, descrever e caracterizar esse tipo de proposição relacional. Diante de cada uma dessas definições é interessante observar que todas elas apontam para o importante caráter contrastivo da relação de concessão, o que, inevitavelmente exerce função significativa no que diz respeito à construção da argumentação do escritor/falante. O corpus analisado apresentou um total de 821 unidades proposicionais, sendo que 25 ocorrências (3,1%) são de relações concessivas. O conectivo apesar de é o mais utilizado pelos informantes para estabelecer esse tipo de relação no corpus, uma vez que no total de relações concessivas, 08 ocorrências (32%) são iniciadas por apesar de. Entre o restante de ocorrências, 07 (28%) não apresentam conectivo, 06 (24%) ocorrências são iniciadas por a não ser que, 02 (8%) iniciadas por apesar que e também 02 (8%) iniciadas por mesmo que/se. Lima (2002) ao analisar em seu corpus de língua oral os conectores utilizados para explicitar a relação de concessão, apontou também como mais usado pelos falantes o conector “apesar de” e, em segundo lugar, o conector “embora”. Esse último, no entanto, não foi utilizado por nenhum dos informantes do presente corpus. Abaixo está uma tabela que mostra os resultados apresentados acima:
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Conectivo
Frequência
Apesar (de)
08 (32%)
Sem conectivo
07 (28%)
A não ser que
06 (24%)
Apesar (que)
02 (8%)
Mesmo que/se
02 (8%)
Total
25
A seguir serão apresentados trechos de entrevistas que compõem o corpus em análise e logo após algumas considerações acerca dos mesmos: Exemplo 01 Doc: ah... e com relação aos jornais... televisivos qual que você tem de mais... se identifica se você acha que tem uma visão mais critica 1. Eh seria aquele do Boris Casoy né? Doc: do Boris Casoy 2. Porque além dele ter a visão critica ele ainda faz ele pensa pras pes/ prus telespectadores né? ele mostra a noticia e dá a conclusão dele você aceita né? querendo ou não 3. Mas em relação a mesma audiência no caso seria o Jornal Nacional. 4. Apesar de ter o Jornal da Rede TV que é praticamente no mesmo horário que é: abrange os mesmo assuntos. Exemplo 02 Doc: ah... com relação aqui ao comportamento das pessoas... o cidadão marianense o cidadão de Ouro Preto... como que você vê? ah cé acha que tem diferenças1. Diferenças? 2. Uhm uai a gente poderia dizer que o de Ouro Preto se acha um pouco superior ao de Mariana... né? porque muitas pessoas cê fala “oh eu moro em Mariana” “nó Mariana onde que é isso?” cê fala “fica perto de Ouro Preto” “ah eu sei onde que é.” 3. Então Ouro Preto tem FAMA em relação a Mariana né?
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4. Apesar de que Mariana foi a primeira cidade projetada no Estado de Minas Gerais mas mesmo assim Ouro Preto ganha nesse sentido. 5. Então muitas pessoas que moram lá acham muito superiores aos de Mariana. Exemplo 3 1. Então fazia também é:: hora dançante e... eu sei que- e a gente aproveitava bem com isso. 2. Era assim um:: uma distração sabe? pra prus jovens. 3. Porque era uma coisa boa no mesmo tempo que é ganhava dinheiro pra escola ↓ era uma diversão... sabe? pras moças prus rapazes não é? 4. Que não tinha assim muita coisa assim... pra escolher né? variedade de coisa assim de diversão... não é mesmo? 5. A não ser assim FUTEBOL que sempre futebol sempre teve né? dos HOMENS... né? mais- ( ) Exemplo 4 Doc: ah tá e e casos de afogamento ↓ lá na cachoeira tem muito? 1. [tem também mas num ( ) demaisDoc: cê lembra assim] 2. Não na minha época não. 3. Era muito pouco. 4. Mais pessoas de fora ↓ gente daqui mesmo que afogou ↓ eu acho que nem tem. 5. A não ser o caso do menino que eles empurraram ele caiu na água e bateu a coluna. 6. Só isso.
Após observar cada um desses exemplos, constata-se a importância de se analisar a relação retórica de concessão uma vez que esta apresenta “forte função argumentativa dentro dos propósitos argumentativos do usuário da língua” (Decat, 2008, p.01). Constata-se também que a função primeira da oração concessiva é a de colocar em contraste argumentos do discurso e que tal função é ainda mais intensificada quando a mesma está em uma unidade de informação isolada, ou “desgarrada” 3, 3
Caracterizando-se como opções do discurso, servindo a objetivos comunicativo-interacionais, as estruturas de hipotaxe adverbial – como as orações concessivas, objeto de estudo deste trabalho “desgarram-se” porque constituem unidades de informação à parte, o que as reveste de um menor grau de dependência, tanto formal quanto semântica, chegando mesmo a se identificarem como orações tidas como independentes, à maneira de alguns tipos de coordenadas. A dependência que se estabelece, nesses casos, será pragmático-discursiva. (DECAT, 1999a, p. 35 e 36)
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conforme proposto por Decat (1999a). Diante disso, assim como também têm apontado outros autores, a força argumentativa das concessivas e a busca de focalizar seu aspecto contrastivo são alguns dos principais fatores que favorecem o fenômeno do isolamento ou “desgarramento” - entre essas construções. Neves (1999a, p. 566) afirma que a oração concessiva tem a função de “aportar conteúdos ou argumentos novos após aparentemente concluída uma primeira porção do enunciado, e após uma quebra marcada no andamento da fala”. Essa descrição da concessiva feita pela autora é perfeitamente reconhecida em cada um dos exemplos apresentados acima. Dos exemplos de 01 a 06, em cada unidade informacional que antecede a oração concessiva isolada, temos a impressão de que o informante finaliza, conclui determinado tema, assunto que estava sendo discutido. No entanto, através da construção concessiva “desgarrada”, “o falante volta ao que acaba de dizer, pesando a posteriori objeções á sua proposição” (NEVES, 1999a, p. 566), trazendo ao discurso uma nova informação. Outra característica interessante é que, muitas vezes, a oração concessiva isolada se estabelece nos discursos analisados como uma espécie de fronteira entre um tema e outro apresentado pelo falante. Assim, ao mesmo tempo em que a oração concessiva “desgarrada”, ao retomar a unidade anterior, finaliza determinado tema, ela também anuncia que a unidade que a sucede iniciará outra questão, outro ponto da conversa. Na unidade 1 do exemplo 1, a informante afirma que o jornal apresentado por Boris Casoy é aquele com que ela mais se identifica. Na unidade 2, a informante irá apresentar uma explicação para tal consideração: o jornal tem uma visão crítica que atua sobre a visão do telespectador. È interessante observar que a informante, após apresentar uma pausa de final de frase, prefere apresentar a explicação de sua escolha na unidade seguinte, isto é, em uma unidade informacional separada, isolada da anterior. Portanto, pode-se considerar que há, aqui, um exemplo de relação retórica de explicação que se estabelece entre unidades de informação separadas, estruturalmente independentes.
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Em 3, a informante produz uma unidade informacional que estabelece uma relação de contraste com as duas unidades anteriores, já que afirma que, em se tratando de audiência, reconhece a supremacia do Jornal Nacional da Rede Globo. Na unidade 4, identifica-se a manifestação de outra relação semântica: a relação de concessão, estabelecida com a informação da unidade anterior. Observa-se que aqui, mais uma vez, a informante opta por isolar uma oração adverbial, constituindo, portanto, nos termos de Decat, uma oração adverbial concessiva desgarrada. O interessante é que o falante, ao optar por produzir este tipo de construção adverbial isolada, além de apresentar uma nova informação, focaliza a mesma. Na unidade 4, por exemplo, a quebra de expectativa que se realiza através da oração concessiva é intensificada com o isolamento dessa estrutura, o que reforça o peso argumentativo da relação retórica de concessão dentro do discurso em que se inscreve. A unidade 2 do exemplo 2 apresenta uma explicação sobre em que consiste a diferença de comportamento entre as pessoas que moram em Ouro Preto e Mariana, estabelecendo-se, portanto, entre as unidades 1 e 2 uma relação de explicação. A unidade 3 estabelece uma relação de conclusão com as duas unidades anteriores, em que a informante conclui que a cidade de Ouro Preto é mais famosa em comparação à cidade de Mariana, uma vez que esta é menos conhecida. A oração adverbial concessiva isolada presente na unidade 4, assim como aconteceu no exemplo 1, quebra a expectativa, uma vez que o assunto anteriormente discutido e aparentemente finalizado é retomado, estabelecendo-se uma relação retórica de concessão com a unidade de informação anterior. A oração concessiva, visto seu peso argumentativo, contrasta argumentos, além de trazer uma nova informação ao discurso: a cidade de Mariana foi a primeira cidade projetada no Estado de Minas Gerais. A informante, mais uma vez com o desejo de concluir a questão que está sendo discutida – diferenças entre as pessoas de Ouro Preto e Mariana -, retoma, na unidade 5, o que estava dizendo na unidade 2 e apresenta uma conclusão em relação ao que foi dito
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anteriormente. Dessa forma, a unidade 5 estabelece uma relação de conclusão com todas as unidades anteriores. Após uma caracterização geral da forma como a relação semântica de concessão se realiza entre os textos analisados e algumas considerações específicas a partir dos exemplos 1 e 2, o presente trabalho pretende dar continuidade às análises dos textos orais em estudo, assim como pretende identificar outros pontos importantes acerca da manifestação da relação de concessão, discutindo as funções que a mesma exerce nos discursos construídos pelos entrevistados. 6. Considerações finais Diferentes trabalhos linguísticos apresentam os mais variados gêneros de texto como importante objeto de pesquisa, buscando, através de sua análise, descrever sua estrutura e sistematizar sua organização. A partir dessa perspectiva, a análise da coerência de um determinado texto tem apontado para a forma como este foi construído, organizado, observando-se, assim, a maneira como suas diferentes porções se relacionam umas com as outras. O presente artigo, partindo dos pressupostos teóricos da RST, apresentou uma análise inicial das relações retóricas – em especial a relação de concessão - que se manifestaram no corpus em estudo, o qual pertence à modalidade oral da língua portuguesa contemporânea da cidade de Mariana (MG). As porções de texto em que a relação de concessão se realizou apontaram para a complexidade dessa relação retórica, enfatizando a necessidade de uma análise contextualizada, que busca compreender os propósitos comunicativos dos informantes. Além disso, a relação de concessão manifestou-se de maneira significativa entre a fala dos entrevistados, apresentando-se como um recurso importante na apresentação de conceitos e na construção da argumentação dos falantes. As estruturas de hipotaxe adverbial concessivas são, no presente corpus, importantes marcas no que se refere à expressão linguística da proposição relacional de concessão. No entanto, é relevante apontar que a forma como as relações entre as 10
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orações são aqui estabelecidas evidencia a insuficiência de uma análise puramente formal. As relações são construídas através de um conjunto de orações interdependentes, em que, ainda que estas não sejam adjacentes, mantêm relações entre si, “tecendo” entre elas uma rede de sentidos que se desenvolve dentro do processo argumentativo do discurso. 7. Referências bibliográficas ANTONIO, J.D.; TAKAHASHI, C. (2010). Atuação da relação retórica de elaboração na macroestrutura e na microestrutura de elocuções formais. Calidoscópio, 8(3):174180. CHAFE, W. L. (1980). The deployment of consciousness in the production of a narrative. IN: CHAFE, W.L. (ed.) The pear stories: cognitive, cultural, and linguistic aspects of narrative production. Norwood: Ablex. CHAFE, W. L. (1988). Linking intonation units in spoken English. In: HAIMAN, J. & THOMPSON,
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combining
in
grammar
and
discourse.
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0440
UM OLHAR SOBRE O OUTRO: UM ESTUDO SOBRE CRENÇAS E ATITUDES LINGUÍSTICAS Dayse de Souza Lourenço (UEL) Introdução Os falantes, quando em contato com uma variedade distinta da sua, reconhecem que existem diferenças entre ambos os falares e são capazes de emitir apreciações sobre a fala do outro, mediante atitudes positivas ou negativas em relação à linguagem e ao falar do outro. Podem demonstrar preferências por uma em detrimento de outras, isto é, julgar essas formas como de prestígio ou de desprestígio, muitas vezes, manifestando preconceito e estigma. A fim de compreender essas atitudes apresentadas pelos falantes, um ramo da Sociolinguística, o das Crenças e Atitudes Linguísticas, tem buscado entender o fenômeno da variação a partir da consciência que o usuário da língua tem diante do seu idioma ou da sua variante. Os estudos foram baseados na técnica Matched-Guises, ou falsos pares, desenvolvida por Wallace Lambert. Este estudo enfoca as crenças de falantes da cidade de Curitiba em relação aos falares de Curitiba e Londrina, que, apesar de serem duas cidades do mesmo estado, apresentam um cenário linguístico bastante diverso. Londrina, cidade interiorana, é mais influenciada pelo sul do estado de São Paulo do que por sua própria capital, Curitiba. Com diferenças linguísticas tão perceptíveis a todos os tipos de ouvintes, como se dá a relação valorativa dos falares entre elas? Qual a percepção dos falantes de uma dessas cidades em relação à outra? Há estereótipos presentes nessa relação? Dessa forma, este trabalho busca responder essas questões e medir quão influente é a percepção linguística na atribuição de características.
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Pressupostos teóricos A partir da coexistência de falares há, indubitavelmente, uma ordenação valorativa das variedades linguísticas em uso, espelhadas na hierarquia dos grupos sociais. Assim, “em todas as comunidades existem variedades que são consideradas superiores e outras inferiores” (ALKMIN, 2005, p. 39), isto é, variedades de prestígio e variedades menos prestigiadas. Os julgamentos acerca da língua são estritamente sociais, fundamentados em critérios não linguísticos, de natureza política e social. A relação entre o falante e sua língua nunca é neutra, pois “existe todo um conjunto de atitudes, de sentimentos dos falantes para com suas línguas, para com as variedades de línguas e para com aqueles que as utilizam” (CALVET, 2002, p. 65). Verifica-se que é comum as pessoas serem julgadas pelo seu modo de falar e decorrem dessas atitudes e sentimentos uma série de preconceitos e estereótipos que atuam no processo de variação linguística. Um ramo da Sociolinguística, as Crenças e Atitudes Linguísticas, proveniente da Psicologia Social de Lambert (1975), é responsável por verificar a variação linguística a partir dessas relações de prestígio e desprestígio estabelecidas entre os falantes. As crenças Definir crenças é um trabalho muito complexo, uma vez que este termo é frequentemente utilizado em diversas áreas do estudo, possuindo, assim, diferentes definições. Os dicionários da Língua Portuguesa trazem acepções como: fé religiosa; opinião; crendice; superstição; situação mental de quem acredita em alguma pessoa ou coisa; entre outros (HOUAISS, 2001; FERREIRA, 2009). Bem (1973, p. 13) afirma que “crenças são o produto de experiência direta”, são construções a partir da vivência, da interação com o contexto e as reflexões provenientes. (...) uma forma de pensamento, como construções da realidade, maneiras de ver e perceber o mundo e seus fenômenos; co-construídas
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em nossas experiências e resultantes de um processo interativo de interpretação e (re) significação. Como tal, crenças são sociais (mas também individuais), dinâmicas, contextuais e paradoxais (BARCELOS, 2006, p.18).
As crenças não são estáticas, elas podem ser alteradas com o tempo, ou, até mesmo, dentro da mesma situação. São socialmente construídas, atuando na relação de interação entre pessoas e grupos. As atitudes A definição de atitude não é menos complexa que a de crenças. Os dicionários de Língua Portuguesa trazem conceitos como: porte; postura; modo de proceder ou agir; comportamento; procedimento; maneira de agir em relação à pessoa, objeto, situação; conduta, entre outros (HOUAISS, 2001; FERREIRA, 2009). Aguilera (2008, p. 106) afirma que “a atitude lingüística de um indivíduo é o resultado da soma de suas crenças, conhecimentos, afetos e tendências a comportar-se de uma forma determinada diante de uma língua ou de uma situação sociolingüística”. Para Lambert e Lambert (1975, p.100) atitude é: Uma maneira organizada e coerente de pensar, sentir e reagir em relação a pessoas, grupos, questões sociais ou, mais genericamente, a qualquer acontecimento ocorrido em nosso meio circundante. Seus componentes essenciais são os pensamentos e as crenças, os sentimentos (ou emoções) e as tendências para reagir.
As atitudes atuam nas relações sociais estabelecidas entre os indivíduos, pois, conforme Tarallo (1985, p.14), “atitudes linguísticas são armas usadas pelos residentes para demarcar seu espaço, sua identidade cultural, seu perfil de comunidade, de grupo social separado”. Além da importância social, as atitudes linguísticas, como afirma Moreno Fernández (1998, p.179), influenciam os processos de variação e mudança linguística. As atitudes atuam regularmente em nossos modos de reagir. Em estágios iniciais, elas podem ser modificadas segundo novas experiências, contudo, com o passar do tempo, tornam-se inflexíveis e estereotipadas, justamente porque os indivíduos
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podem ser, como afirmam Lambert e Lambert (1975, p.101) “estimulados, por longos períodos de tempo, a reagir de modo padronizado a determinados acontecimentos ou a determinados grupos”. Segundo López Morales (1993, p. 231), há dois grupos de definição de atitudes: a mentalista e a condutista. A mentalista vê a atitude como um estado de disposição, uma variável que atua entre um estímulo afetando a pessoa e sua resposta a este. A concepção condutista é baseada nas respostas de falantes diante de certas situações sociais. Para a concepção mentalista, a atitude é uma estrutura componencial múltipla, constituída por elementos afetivos (emoções e sentimentos), cognitivo (percepções, crenças e estereótipos) e comportamental (tendência a reagir de determinada maneira em respeito a algo ou alguém). Enquanto isso, os condutistas concebem a atitude como indivisível. Falsos pares Um estudo realizado por Lambert em Montreal, comunidade na qual há uma cisma franco-inglês, objetivou verificar como os montrealenses de língua francesa veem os de língua inglesa e vice-versa. Na primeira parte do estudo, universitários anglocanadenses ouviram gravações de leitores ingleses e franceses (o mesmo trecho) e indicavam características da personalidade que imaginavam que os locutores tivessem. Para os jurados, eram dez locutores diferentes, contudo, na realidade se tratava de cinco bilíngues. Verifica-se que os locutores em inglês foram avaliados de maneira mais favorável que os franceses. Na segunda parte do estudo, universitários franco-canadenses passaram pelo mesmo processo. Importante ressaltar que estes também avaliaram os locutores ingleses de maneira mais favorável. Assim, as reações dos franco-canadenses indicam que as atitudes dos membros de um grupo minoritário são influenciadas por meio do contato com grupos vistos como de status mais elevado.
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O lócus da pesquisa: as cidades investigadas Segundo o IBGE (2010), Curitiba conta com 1.751.907 habitantes e possui uma unidade territorial de 435,036 km² e IDHM – índice de desenvolvimento humano municipal – de 0,823. O município apresenta uma economia forte e diversificada, é o centro econômico do estado. Altamente tecnológica e industrializada, é considerada uma das melhores cidades do país para negócios. Nesse meio, não sobrou espaço para atividades agroindustriais. Apresenta ampla rede de pré-escolas, escolas de ensino fundamental e médio, além de importantes instituições de ensino superior, como Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Londrina, por sua vez, segundo o IBGE (2010), Londrina conta com 506.701 habitantes e possui uma unidade territorial de 1.653,075 km² e IDHM – índice de desenvolvimento humano municipal – de 0,778. A cidade tem uma economia diversificada, abarcando setores industriais, agroindustriais, comerciais e serviços. Apresenta ampla rede de pré-escolas, escolas de ensino fundamental e médio, além de importantes instituições de ensino superior, entre elas a Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC). Amostra e metodologia Para este trabalho, foram feitas algumas alterações na técnica dos falsos pares de Lambert & Lambert (1975) para adequar à proposta de observar as crenças e atitudes dos curitibanos. A fim de obter uma amostra dos falares das duas cidades, Londrina e Curitiba, foi feita a gravação da leitura realizada por dois informantes que apresentassem as marcas fonéticas que diferenciam os dois dialetos, como o /r/ em coda silábica e o /e/ átono em sílaba final. Para a seleção dos informantes, considerou-se indispensável
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ambos terem nascido e morado sempre na cidade em questão, a fim de que as amostras coletadas refletissem o subdialeto da forma mais confiável possível. Optou-se pela escolha de dois informantes com as mesmas características sociais: idade e escolaridade, para que as diferenças diastráticas, diassexuais e diassociais não interferissem no produto da leitura. Os indivíduos do sexo masculino foram escolhidos por policiarem menos a fala, como afere Silva Corvalán (1989, p.70) ao afirmar que “a maior sensibilidade das mulheres frente às normas de conduta correta é demonstrada também através da autocorreção que elas possuem muito mais do que os homens nos contextos formais” 1. Quanto à idade do locutor, foi selecionada a faixa dos 50 anos, porque nessa idade, o falante é conservador e apegado às tradições linguísticas locais. Dessa forma, é capaz de representar o subdialeto em sua modalidade mais tradicional. Em relação à escolaridade, optou-se pelo Ensino Médio, pois, aqueles que possuem maior grau de escolaridade, como Ensino Superior, têm a tendência a escolher as formas de maior prestígio. O corpo dos julgadores, por sua vez, é composto por 12 informantes de Curitiba divididos segundo a faixa etária, escolaridade e sexo. Quadro 1 – Perfil dos jurados
Informante 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
Fonte: a autora
Idade 18 a 30 18 a 30 18 a 30 18 a 30 18 a 30 18 a 30 51 a 70 51 a 70 51 a 70 51 a 70 51 a 70 51 a 70
Escolaridade Fundamental Fundamental Médio Médio Superior Superior Fundamental Fundamental Médio Médio Superior Superior
Sexo Masculino Feminino Masculino Feminino Masculino Feminino Masculino Feminino Masculino Feminino Masculino Feminino
1
“La mayor sensibilidad de las mujeres hacia normas de conducta correcta se de muestra además em elhecho de que se auto corrigen mucho más que los hombres en contextos formales”.
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O texto selecionado, além de cumprir as marcas fonéticas diferenciadoras dos dois dialetos, apresenta cunho neutro para que as atribuições de crenças e atitudes sejam essencialmente segundo a voz/fala e não ao conteúdo. Foco na firmeza O novíssimo creme politensor de soja contém um ativo com a proteína do grão que, segundo o fabricante, proporciona um efeito tensor imediato, mas, até aí, a promessa é idêntica à dos outros produtos do mercado. O grande fator diferencial seria o exclusivo dermo glicídio. Trata-se do açúcar vegetal que age nas fibras da pele para retardar a produção do colágeno, substância responsável pela firmeza dos tecidos. Além disso, o lançamento leva um composto que estimula a renovação celular. Está disponível em versões para diversas faixas etárias, na fórmula diurna e noturna e pode ser encontrado nas farmácias, mercearias e mercados.2
As entrevistas foram gravadas utilizando o gravador de voz de dois smartphones, escolha feita pela qualidade de som. Essas gravações foram apresentadas aos julgadores que, para ouvir com perfeita nitidez, utilizavam fones de ouvido. Foi apresentado primeiro o subdialeto curitibano e depois o londrinense. Após ouvirem as gravações, pediu-se que os julgadores preenchessem uma ficha avaliativa tendo como base as gravações ouvidas. Na ficha, os informantes deveriam expor suas opiniões a respeito da profissão, postura, aparência, caráter e inteligência. A ficha avaliativa utilizada foi elaborada baseada na de Botassini (2013). Questões
Concordo Discordo
1. A pessoa que você ouviu é inteligente. 2. A pessoa que você ouviu é estudada. 3. A pessoa que você ouviu é insegura. Após o preenchimento da ficha avaliativa, pediu-se aos julgadores que contassem o dia mais marcante de suas vidas, no intuito de que, sem policiamento, confirmassem os traços de sua fala. 2
Texto utilizado por Jacqueline Ortelan Botassini em ministração de disciplina do programa de Estudos da Linguagem na Universidade Estadual de Londrina.
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Realizadas as entrevistas, foi feita a transcrição da fala dos informantes segundo as técnicas fonética e grafemática do Atlas Linguístico do Brasil (ALiB) 3. As transcrições fonéticas foram realizadas somente nos ambientes em que havia o /r/ em coda silábica, tanto externa quanto interna, e /e/ e /o/ átonos finais. Ao término das transcrições, foi feita uma revisão para confirmar os traços fonéticos e possíveis erros de transcrição. Análise dos dados Os dados, organizados por meio de gráficos, estão expostos a seguir. Gráfico 1 - A pessoa que você ouviu é inteligente.
Fonte: corpus da pesquisa
O primeiro questionamento foi a respeito da inteligência dos locutores. No gráfico 1, é possível verificar que foram obtidas sete respostas que atribuem a característica inteligência tanto ao falante de Curitiba quanto ao de Londrina. É importante ressaltar as respostas que discordam dessa afirmação, pois em relação ao falar curitibano, foram obtidas apenas duas respostas, enquanto ao falar londrinense, cinco. Além dessas, houve três respostas que conceituam como médio em relação ao falar curitibano. O informante 3 (homem, ensino médio, 18 a 30 anos) faz uma comparação entre ambos os locutores e afirma que o curitibano é mais inteligente que o londrinense. 3
Projeto de âmbito interinstitucional que visa descrever a realidade do Português falado no Brasil. Maiores informações no site: www.alib.ufba.br
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Gráfico 2 - A pessoa que você ouviu é estudada
Fonte: corpus da pesquisa
O gráfico 2 ilustra as respostas sobre o locutor ser estudado. Nota-se que, em relação ao falar londrinense, as respostas se dividem igualmente, sendo seis para concordo e seis para discordo. No entanto, em relação ao falar curitibano, os julgadores apresentam cinco afirmativas e sete negativas. É válido observar a resposta do informante 3 (homem, ensino médio, 18 a 30 anos) que considerou o locutor curitibano mais inteligente que o londrinense, mas que considera o locutor londrinense mais estudado. Gráfico 3 - A pessoa que você ouviu é insegura
Fonte: corpus da pesquisa
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O gráfico 3 ilustra as respostas dadas ao questionamento acerca da insegurança do locutor. Vê-se que foram obtidas cinco respostas afirmativas em relação ao falar curitibano e londrinense, considerando-os inseguros. Interessante observar que seis informantes discordam da insegurança do locutor curitibano e sete do londrinense. Um informante não soube responder em relação ao falar curitibano. A informante 10 (51 a 70 anos, do ensino médio e sexo feminino) ilustrou sua afirmativa em relação ao falar londrinense, observando: Não me pareceu, ele tem uma voz tem firme. Considerações finais A percepção das variantes linguísticas é capaz de atuar na atribuição de características aos indivíduos, tecendo estereótipos segundo a relação valorativa existente. Neste estudo, as questões formuladas aos julgadores avaliaram quesitos como a capacidade intelectual, o grau de escolaridade e a inteligência emocional dos falantes. As análises permitem tecer algumas considerações. Primeiramente, os dados revelam que as crenças dos curitibanos em relação aos dois subdialetos não são tão díspares, não revelam crenças e atitudes estritamente negativas, mas permanecem em favor ao próprio subdialeto. O favorecimento do próprio falar indica a identificação dos julgadores com a fala parecida a sua e ilustra um caso de segurança linguística, segundo a definição de Calvet (2002, p.72) “fala-se de segurança lingüística quando, por razões sociais variadas, os falantes não se sentem questionados em seu modo de falar, quando consideram sua norma a norma”. O formato dessa pesquisa que visa descrever as possíveis crenças e atitudes linguísticas por meio da visão do informante, por ter caráter interpretativista, está suscetível a erros, uma vez que o informante pode se comportar de forma diferente diante do contexto de entrevista.
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Referências AGUILERA, Vanderci de Andrade. Crenças e atitudes linguísticas: o que dizem os falantes das capitais brasileiras. Estudos Linguísticos. São Paulo, v. 37, n. 2, 2008, p. 105-112. ALKMIN, Tânia Maria. Sociolingüística. In.: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina. Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. 5ªed. São Paulo: Cortez, 2005. BARCELOS, A. M. F. Cognição de professores e alunos: tendências recentes na pesquisa de crenças sobre ensino e aprendizagem de línguas. In: BARCELOS, A. M. F.; VIEIRA-ABRAHÃO, M. H. (Orgs.) Crenças e Ensino de Línguas: Foco no professor, no aluno e na formação de professores. Campinas, SP: Pontes Editores, 2006. BEM, Daryl Jay. Convicções, atitudes e assuntos humanos. Tradução de Carolina Martuscelli Bori. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária Ltda, 1973. BOTASSINI, Jacqueline Ortelan Maia. Crenças e atitudes linguísticas: um estudo dos róticos em coda silábica no norte do Paraná. Tese. Universidade Estadual de Londrina. Londrina, 2013. CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2002. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Curitiba: Editora Positivo, 2009. HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. IBGE. Disponível em: www.ibge.gov.br. Acesso em: 25.maio.2014. LAMBERT, William W.; LAMBERT, Wallace E. Psicologia social. 4ª ed. Rio de Janeiro, Zahar editores, 1975. LOPEZ MORALES, Humberto. Sociolingüística. Madri: Gredos, 1993. MORENO FERNÁNDEZ, Francisco. Principios de sociolingüística y sociologia del lenguaje. Barcelona: Ariel, 1998. SILVA-CORVALÁN, Carmem. Sociolingüística: teoria y análisis. Madri: Alhambra Universidad, 1989.
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SILVA, Hélen Cristina da. O /r/ caipira no triângulo mineiro: um estudo dialetológico de atitudes linguísticas. Dissertação. Universidade Estadual de Londrina, 2012. TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. São Paulo: Ática, 1986.
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HISTÓRICO DE FORMAÇÃO CONTINUADA EM UM MUNICÍPIO DO OESTE DO PARANÁ E SUAS RELAÇÕES COM A PRÁTICA DE PRODUÇÃO E REESCRITA DE TEXTO Dayse Grassi Bernardon (PG – UNIOESTE)1 RESUMO: Esta pesquisa se insere no Programa Observatório da Educação – CAPES/INEP – em que atuamos como pesquisadora voluntária dentro do Projeto Institucional, intitulado Formação Continuada para professores da educação básica nos anos iniciais: ações voltadas para a alfabetização em municípios com baixo IDEB da região Oeste do Paraná. Este estudo objetiva verificar se os momentos de formação continuada em Língua Portuguesa ofertado para professores de Educação Básica (anos iniciais), em 2011 e 2012, em um dos municípios participantes do Observatório da Educação, contribuíram significativamente para o trabalho do professor no que se refere à leitura e diagnóstico de textos escritos produzidos por seus alunos e à condução da prática de reescrita do texto. Para isso, problematizamos a pesquisa a partir do seguinte questionamento: os conteúdos abordados durante as ações de formação continuada, mais especificamente no que se refere à condução da prática de reescrita de texto, contribuíram para o trabalho do professor em sala de aula na avaliação diagnóstica de textos escritos pelos alunos? Esse estudo se insere dentro da Linguística Aplicada sustentado pela pesquisa qualitativa de base etnográfica. Todavia, nesse momento, para a análise, fizemos um recorte dos dados gerados, focalizando, especificamente, os resultados das entrevistas realizadas com os professores atuantes nos 4os. e 5os. anos do ensino fundamental que obtiveram mais de 80% de frequência nos encontros de formação continuada. Para sustentarmos teoricamente nosso estudo, nos pautamos em Bakhtin (2003), Bakhtin/Volochinov (2004), Costa-Hübes (2008), Geraldi (2013) dentre outros autores. Palavras-chave: Formação continuada. Diagnóstico do texto produzido pelo aluno. Reescrita de texto. ABSTRACT: This research is part of the Education Observatory Program -CAPES / INEP – in which we are volunteer researchers within the Institutional Project entitled Continuing Education for teachers of basic education in the early years: actions for literacy to towns with low IDEB on the West region of Paraná. This study aims to verify if the moments of continuous education in the Portuguese language offered to teachers of Basic Education (early years) in 2011 and 2012, in one of the towns which participates in the Education Observatory, contributed significantly to the work of teachers regarding reading and diagnosis of written texts produced by their students and the conduct of the practice of rewriting the text. For this, we problematize the research with the following question: the content addressed during the actions of continuing education, more specifically the ones related to the conduct of the practice of rewriting text, contributed to the work of the teacher in the classroom in the diagnostic evaluation of texts written by students? This study is inserted in the Applied Linguistics supported by qualitative ethnographic research. However, at this time, for the analysis, we made 1
Discente do Programa de Pós-graduação Stricto sensu em Letras – Linguagem e Sociedade, nível Doutorado, UNIOESTE – câmpus Cascavel. E-mail: [email protected].
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a cutout of the data generated, specifically focusing on the results of interviews with teachers, working in 4th. and 5th. grades of elementary school who obtained more than 80% attendance at meetings in continuing education. For theoretically sustaining our study, we based ourselves in Bakhtin (2003), Bakhtin / Voloshinov (2004), Costa-Hübes (2008), Geraldi (2013) among other authors. Keywords: Continuing Education. Diagnosis of the text written by the student. Rewritten texts.
Introdução Esse artigo buscará relatar o trabalho realizado em 2012 por meio do projeto iniciado em 2010, intitulado Formação continuada para professores da educação básica nos anos iniciais: ações voltadas para a alfabetização em municípios com baixo IDEB da região Oeste do Paraná (doravante, Projeto OBEDUC), aprovado pela CAPES/INEP e vinculado ao Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Letras – Nível de Mestrado e Doutorado – com área de concentração em Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. O projeto do Observatório da Educação – OBEDUC está centrado no tema: Formação Continuada de professores da Educação Básica – anos iniciais – da região Oeste do Paraná, focalizando, especificamente, municípios que apresentaram índices abaixo de 5,0 na avaliação do INEP/SAEB no ano de 2009. Para isso, em cada um dos municípios envolvidos no Projeto, desenvolveram-se, nos anos de 2011 e 2012, ações de formação continuada, totalizando uma carga horária de 80 horas, quando se aprofundou, numa relação teoria e prática, conteúdos voltados para o ensino da leitura e da escrita, numa abordagem dialógica e interacionista da linguagem. Diante disso, buscamos abordar, neste artigo, como foi desenvolvido esse projeto em um dos munícipios do Oeste do Paraná, enfocando a produção, diagnóstico/correção e reescrita de textos. A partir disso, abordamos parte dos resultados da entrevista realizada com os professores participantes da formação continuada com o intuito de discutir como se dá a produção, correção e reescrita de textos em sala de aula. Assim, refletimos se as ações de formação continuada contribuíram com a formação dos professores e, consequentemente, com suas ações pedagógicas. Fundamentação Teórica
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Para Bakhtin ([1992] 2003), a língua se constitui nas relações dialógicas entre “eu” e o “outro”, entre vários “eus” e “outros”, em diferenciados contextos sociais, sendo, portanto, reflexo dessas relações. Sob esse prisma, Koch e Elias (2010) compreendem que o sujeito tem “algo a dizer” ou um “projeto de dizer” que se concretiza sempre em relação ao outro, ou seja, seu interlocutor/leitor. Tomando por base a concepção de linguagem como um processo de interlocução em que os sujeitos envolvidos no discurso, interagem, trocam ideias influenciadas pelo contexto sócio-histórico-ideológico, Geraldi (1984) aponta caminhos para as inquietações sobre como ensinar, para que ensinar e o que ensinar, propondo práticas efetivas para o ensino de língua. Para o autor, o ensino da língua portuguesa deve se dar a partir do texto e de “atividades baseadas em três práticas interligadas: a) a prática da leitura de textos; b) a prática da produção de textos e; c) a prática da análise linguística” (GERALDI, 1984, p. 95). Reportando-nos para que foi trabalhado no projeto do OBEDUC no ano de 2012, observamos que as discussões teóricas e práticas se deram em torno das concepções da linguagem, gêneros discursivos, concepção de texto e escrita, produção, diagnóstico e reescrita do texto. Os três últimos são foco de nossa investigação. Posto isso, temos claro que a linguagem se dá na relação com o outro, no “modo de dizer” passado para o outro que também imprime o “seu modo de dizer”, conforme objetivo de seu dizer, no espaço e tempo em que é dito, no suporte em que é veiculado, nas escolhas linguísticas, textuais, cognitivas, discursivas e interacionais que, a partir do gênero discursivo, em consonância com as práticas sociais, se estabelece e se concretiza. O ensino de língua, compreendido sob esse enfoque, acena para o trabalho com os gêneros discursivos2 ou gêneros textuais3, pois Os modos de dizer do homem são realizados a partir das possibilidades oferecidas pela língua numa determinada situação ou contexto de produção, e só podem concretizar-se por meio dos gêneros discursivos, ou gêneros textuais entendidos, segundo Bakhtin 2
Definição apresentada por Bakhtin em “Estética da criação verbal”. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 179-287.
3
Definição apresentada por Bronckart em “Atividades de linguagem, textos e discursos. São Paulo: Educ, 2003, p. 137.
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(1997), como enunciados relativamente estáveis que circulam nas diferentes áreas de atividade humana, caracterizados pelo conteúdo temático, pela construção composicional e pelo estilo (AMOP, 2007, p. 145).
Em relação aos gêneros discursivos, Bakhtin ([1979] 2003), aborda que são “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, ([1979]) 2003 p. 262) que organizam nossa forma de dizer. Embora os gêneros se movimentem em direção a certa regularidade, o que nos permite reconhecê-los como tal, sofrem modificações determinados pelo suporte, pelo veículo de circulação, pelo momento histórico, pelos interlocutores, enfim, por fatores circundantes à sua produção. Em seu “projeto de dizer”, o sujeito deve considerar essas questões. Em se tratando da produção textual na escola, Geraldi afirma que a prática de leitura, produção e análise linguística do texto deve propor o “uso não artificial da linguagem, o domínio da língua padrão em suas modalidades oral e escrita” (GERALDI, 1984, p. 95). Diante disso, as propostas textuais devem ter claro que o que se quer produzir é um texto e não uma redação escrita apenas com o objetivo de ser lida pelo professor e ter uma nota por ele atribuída. A proposta textual deve considerar as interações socialmente estabelecidas, explicitando sua função social. Sob esse enfoque, a leitura deve deixar de ser tida como mera decodificação, passando a ser entendida como “um processo de interlocução entre leitor/texto/autor, pois aluno-leitor passa a ser agente que busca significações marcadas pelo processo de produção desse texto” (GERALDI, 1984, p. 95-96). A partir disso, a análise linguística passa a se colocar como “uma forma de re-tomada do texto produzido pelo aluno, atuando sobre possíveis problemas de compreensão que tal texto, como produzido em sua primeira versão, possa oferecer de leitura” (GERALDI, 1984, p. 95-96). Feitas essas considerações teóricas, um novo direcionamento, a fim de propor a correção/diagnóstico de textos, foi apresentado aos professores participantes da formação continuada, apontando como instrumento didático, a Tabela Diagnóstica, que segue abaixo:
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Quadro 01:CRITÉRIOS DE ANÁLISE LINGUÍSTICO-DISCURSIVA TABELA DIAGNÓSTICA – 4º e 5º ANOS Aspectos não Dominados – ND/ Marcar X Nome dos Alunos 1. GÊNERO/ SITUAÇÃO SOCIAL 1.1. Atende à necessidade de interação estabelecida (Quem? p/ quem? O quê? Quando? Onde? – contexto de produção)? 1.2 Está adequado à esfera de circulação? 1.3 Está adequado ao suporte físico de circulação? 1.4 Abrange satisfatoriamente o tema? 1.5 Atende ao formato do gênero? 1.6 Expressa o domínio da capacidade de linguagem que o gênero requer (narrar, relatar, argumentar, expor ou descrever ações)? 2. TEXTO 2.1 Apresenta clareza / coerência: 2.1.1 Tem progressão? 2.1.2 O grau de informatividade é adequado? 2.1.3 Apresenta ideias não-contraditórias ? 2.2 Uso adequado dos mecanismos de coesão: 2.2.1 Referencial 2.2.2 Sequencial 2.3 A variante linguística selecionada é adequada à situação? 2.4 Uso adequado dos circunstanciadores de tempo/lugar/modo etc. em textos predominantemente narrativos 2.5 Emprego adequado dos verbos (pessoa/modo/tempo)? 2.6 Emprego adequado da concordância verbal? 2.7 Emprego adequado da concordância nominal? 2.10 Adequação vocabular? 2.11 Pontuação adequada? 2.12 Paragrafação adequada? 3 ASPECTOS ORTOGRÁFICOS 3.1 Uso adequado de letras maiúsculas? 3.2 Traçado das letras é legível? 3.4 Ortografia correta? 3.5 Problemas de Hipercorreção? 3.6 Segmentação adequada das palavras? 3.7 Acentuação adequada? Fonte: Tabela produzida pelos professores participantes do Grupo de Estudos de Língua Portuguesa, que acontece na AMOP e é coordenado pelas Profas. Dras. Terezinha da Conceição Costa-Hübes e Carmen Teresinha Baumgartner, ambas do Curso de Letras da UNIOESTE – Cascavel/PR. (2009)
Pautada “na concepção sociointeracionista da linguagem, que compreende a língua como social, histórica e ideológica, revelada nos enunciados produzidos sempre a serviço da interação, os quais, por sua vez, se materializam sempre em um gênero textual” (COSTA-HÜBES, 2012, p. 8), a Tabela agrupa três componentes essenciais para a sistematização da escrita: 1) o gênero discursivo produzido na situação social de
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produção; 2) a materialidade linguística do texto; e 3) os aspectos ortográficos que convencionalizam a escrita. A primeira parte desse agrupamento, reflete em torno do contexto de produção, verificando se o mesmo atende à necessidade de interação - Quem? Para quem? O quê? Quando? Onde? A reflexão em torno desses itens tem como objetivo conferir: a) se o texto produzido atende seu contexto de produção; b) se está adequado à esfera de circulação; c) se abrange de maneira satisfatória o tema; d) o formato do gênero em questão; e) se apresenta a capacidade de linguagem requerida pelo gênero escolhido, ou seja, narrar, relatar, argumentar, expor ou descrever ações (COSTA-HÜBES, 2011). Na segunda parte da Tabela é abordada a análise diagnóstica do texto, observando: coesão e coerência no texto; coesão referencial e sequencial; o uso dos circunstanciadores de tempo/lugar/modo etc. em textos predominantemente narrativos; uso adequado verbos (pessoa/modo/tempo); concordância nominal e verbal; pontuação e paragrafação. A última parte propõe a análise dos aspectos ortográficos do texto “no que se refere mais especificamente à palavra e sua composição, ou seja, à formação de sílabas e ao emprego de determinadas letras conforme as convenções de escrita”. Considera-se que o erro faz parte do processo de aprendizagem à medida que a criança transpõe a palavra oral para a escrita e que isso, a partir do convívio com a escrita, irá se distinguindo para a criança (COSTA-HÜBES, 2012, p. 11). No que se refere ao processo de correção e reescrita de textos, Ruiz, (2001) apresenta a correção textual-interativa que corresponde a comentários longos, escritos pelo professor na sequência do texto do aluno, em forma de “bilhetes” que, muitas vezes, dada a extensão, estruturação e temática mais parecem “cartas” endereçadas ao aluno.
Essa forma de correção permite que o professor dialogue com o aluno,
incentivando o trabalho com a reescrita, dando ao texto um caráter dialógico, conforme é postulado por Bakhtin. Tomando por base a teoria até aqui apresentada e discutida, passamos agora para a apresentação e a análise do corpus de parte de uma pesquisa maior, em andamento, com o propósito de atender ao objetivo desse artigo, ou seja, verificar e refletir, a partir de parte da entrevista realizada com alguns professores participantes do projeto
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OBEDUC, como está sendo realizado o trabalho com a produção, o diagnóstico e a (re)escrita de textos em sala de aula. Procedimentos Metodológicos Para a geração de dados, nos pautamos na entrevista em grupo focal, pois essa forma de entrevista permite uma relação de interação, “havendo uma atmosfera de influência recíproca entre quem pergunta e quem responde” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 33). Ainda, esse instrumento de geração de dados, proporciona “coletar os dados dentro de um contexto e criar uma situação de interação mais próxima da vida cotidiana” (FLICK, 2009, p. 180), nesse caso, do contexto escolar. Para a realização da entrevista elaboramos um roteiro semiestruturado com seis questões a serem discutidas e respondidas pelos professores no grupo. Para garantir que as respostas fossem fidedignas, toda a entrevista foi gravada em modo de áudio. Assim, realizamos a entrevista com um grupo de sete professores que obtiveram frequência superior a 80% nos encontros de formação continuada, atuantes nos 4º e 5º. anos do ensino fundamental. Para as análises neste artigo, apresentamos as respostas dadas por dois dos professores entrevistados. Diante disso, apresentamos a seguir as considerações dos professores quanto à produção, diagnóstico e (re)escrita de textos. Resultados e discussões A partir das concepções teóricas até então estabelecidas, nossa primeira indagação aos professores tratou sobre o processo de produção textual, sendo questionado como os mesmos têm conduzido o trabalho em sala de aula quanto à produção textual. Dentre as respostas destacamos as respostas do professor 1 (P1) e professor 2 (P2) dadas durante a entrevista: P1 – (...) eu comecei trabalhando ditado pra eles, e eles tiveram muita, muito, muitas dificuldade na produção de frases, comecei lá com carimbo de bichinhos pra eles produzirem as frases e eles tiveram muita dificuldade. A concordância ali na produção de frases, só por Deus(...)
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P2 – (...) esse ano eu não fiz, mas os outros anos quando eu ia trabalhar carta (...) passava tudo como era o corpo da carta, o que se tinha, o que se poderia falar, dava vários exemplos de...de carta, que você poderia estar explicando. Como eu falei para você como eu queria introduzir sinopse agora... no... e vi que não ia dar tempo, fiz a mesma coisa, o que tem assim, aí mostrar o que vai dentro, daí diferenciar com outro tipo de gênero textual, que é resenha, que é o mais próximo ali né, então, porque a resenha, ela tem um... a diferença dela é que tem a opinião própria do que ta fazendo a resenha, né... e a sinopse não, sinopse é o resumo do autor que fez aquele texto ali, então você não coloca opinião sua nenhuma, né (...)
Considerando as respostas dadas pelos professores, evidenciamos que o P1 tem como ponto de partida para a produção textual “carimbos de bichinhos”, com o intuito de que os alunos, a partir das figuras, produzam de frases. Essa concepção tradicional de ensino de língua se apresentava nas famosas cartilhas, utilizadas na década de 1970. Essa prática de produção textual partindo de “carimbos de bichinhos” se configura como exercício de escrita e, não como uma proposta de produção de textos, conforme aponta Geraldi (1984). O P2, por sua vez, salienta não ter trabalhado até então com a produção textual, mas que, no ano anterior o enfoque em sala de aula foi dado à produção de carta. Notamos, em sua fala, a preocupação em repassar aos alunos a estrutura do gênero discursivo em questão, sem abordar os elementos composicionais dos gêneros: conteúdo temático, construção composicional e estilo linguístico (BAKHTIN, 2003, p. 279).
Trazendo para a discussão as questões referentes ao
trabalho dos professores quanto ao diagnóstico de textos, obtivemos as seguintes respostas: P1– (...) aquela tabela mas eu particularmente não estou usando eu já usei outros anos é muito trabalhosa aquilo dá um desgaste na hora de de você corrigir porque a gente não em alguns quesitos daqueles eu sou sincera em dizer que eu não tenho segurança... tá então, assim a.. eu de antemão já te falo a nossa formação não foi suficiente (...) e a análise linguística...é mui... é... gente é...né... é trabalhoso ... é trabalho árduo (...) eu já trabalhei com turmas que eu fazia isso... mas você olha pra tabela você tem uma... um panorâmica da turma de qual conteúdo que tá precisando ser trabalhado qual é né a maior deficiência da turma assim... né... geral, é muito boa, já fiz... tive essa experiência, mas é muito trabalhosa, com turmas grandes, olha... fica muito difícil o nosso trabalho (...)
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P2 – (...) principalmente com a reestruturação de texto quando se fala por exemplo coe... coere... coesão e coerência (...)na verdade todo mundo ficou em dúvida, na verdade são duas coisas bem distintas uma da outra.... e nessa tabela.... e a análise... é muita coisa....é muito trabalhoso (...) Por isso que eu optei em fazer esse daqui (grifos nosso), eles mesmos... como a gente está com outros cursos é... paralelos as aulas normais, né... daí eu tenho menos número de aulas, eu tenho optei por fazer o ditado e eles estar corrigindo, se auto corrigindo pelo menos a questão de pontuação, essas coisas (...) Daí eles já tem uma visão de pontuação, essas coisas de parágrafo, o que por enquanto ainda...entendeu... respeitar...
Notamos que o P1 e P2 enfatizam a dificuldade em se trabalhar com a Tabela Diagnóstica, principalmente nos aspectos linguísticos, pois os mesmo têm insegurança quanto a esse diagnóstico. O trecho “esse daqui” se refere a uma tabela elaborada pelo professor a partir da Tabela Diagnóstica apresentada nas formações, destacando os aspectos ortográficos da língua, sendo esta dada aos alunos para que os mesmos analisem seus “erros” na ortografia e pontuação. A elaboração dessa tabela reflete o que o professor conseguiu apreender do trabalho realizado com a tabela diagnóstica. O P1 enfatiza em sua fala que a formação continuada ofertada não foi suficiente para dar conta de todos os aspectos abordados na tabela diagnóstica. Ainda com relação à correção/diagnósticos de textos, os professores responderam que detêm a correção nos “erros” ortográficos, corrigindo letras maiúsculas, paragrafação e pontuação. No entanto, o diagnóstico de textos não pode se limitar somente a estrutura da língua, é necessário que se explore os entornos do textos. Podemos constatar isso no trecho abaixo: P1 – Eu também assim, eu de primeiro momento alguns, alguns erros ortográficos não dá pra... iniciar um texto ou o título sem letra maiúscula. Iniciar sem um parágrafo, pelo menos um, pra gente entender, né... sabe que ele sabe, que a letra maiúscula existe, que no quarto ano é difícil né, essa questão de eles não saberem isso ainda. P2 – É então, é... com essa tabelinha aqui que eu fiz para eles irem olhando eu falei gente vocês tão pulando erro, então cada erro que vocês pular eu vou verificar esses textos de novo, através de ditado, então eu vou verificar cada erro que vocês pular... pular é dois pontos a menos.
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A “tabelinha” a que P2 se refere, diz respeito à tabela elaborada por ela e repassada aos alunos para que os mesmos detectem seus “erros” na escrita a partir do ditado. A expressão utilizada pela professora “pular erros” quer dizer que o aluno pode não ter corrigido todas as palavras, deixando algumas com grafia incorreta, sem a devida correção, o que será punido com a subtração de nota. Percebemos que a concepção explicitada pela professora é de que o “erro” não faz parte do processo de aprendizagem devendo ser corrigido sem que o mesmo seja retomado, realizando assim, uma atividade de mecânica de decodificação, com o objetivo de que o professor leia e atribua nota. Quando questionados quanto à maneira que era conduzida a reescrita de textos, apenas um dos professores se pronunciou afirmando que, inicialmente, a reescrita era realizada de maneira individual. No entanto, o professor não deu conta de orientar todos os alunos, decidindo fazer a correção de maneira coletiva, admitindo que essa forma de correção não dê conta de atender as dificuldades específicas de cada aluno. Salientamos que a reestruturação de forma coletiva não exclui a reestruturação de texto individual, pois elas se complementam. Diante disso, notamos que, provavelmente, a prática de reescrita de textos, de forma coletiva e/ou individual, está sendo pouco utilizada em sala de aula ou, talvez, nem utilizada o que nos leva a perceber lacunas nesse trabalho, demonstrando a necessidade de se aprofundar estudos e reflexões em torno disso. Considerações finais Ao efetuarmos a análise das entrevistas realizadas na pesquisa de campo, percebemos que a teoria e a prática ainda caminham descompassadas. Percebemos que a teoria abordada e discutida nos cursos de formação quanto à produção, correção/diagnóstico e reescrita de textos estão muito timidamente sendo utilizadas no dia a dia do professor. Talvez isso se dê devido à insegurança do professor em trabalhar principalmente, com os aspectos linguísticos da língua portuguesa. No entanto, importa ressaltar que a linguagem está ligada a um contexto e só se revela numa situação e na cadeia de textos, estando ligado às relações dialógicas, devendo, assim, ser estudada como algo em movimento, que reflete e refrata opiniões e
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crenças. No entanto, essa concepção muitas vezes não é trabalhada em sala de aula, pois, a proposta de produção textual se dá, na maioria das vezes, como evidenciamos, como um exercício de escrita e não como uma proposta real de produção. Diante dessas discussões nos questionamos: Os encontros de formação continuada foram suficientes para que os professores pudessem rever sua prática pedagógica quanto ao ensino da língua a partir de uma visão sociointeracionista? Ainda caminhamos a passos lentos para isso, no entanto, percebemos que, mesmo timidamente, sim! Os encontros de formação continuada têm contribuído para que o professor possa refletir e revisitar sua forma de trabalho com o ensino de língua, de maneira a compreender que o ponto de partida para isso é o texto, construído nas mais diferenciadas esferas sociais, a partir das interações socialmente estabelecidas. Diante das discussões apresentadas, temos a consciência de que lacunas na formação do professor ainda permanecem e que a única forma de preenchê-las é através de momentos de discussões e reflexões em torno das práticas pedagógicas, que evidenciem caminhos a seguir. Salientamos que a leitura e discussões apresentadas não se esgotam aqui, pois outras análises poderão ser realizadas a fim de corroborar ou discordar desta, construindo, assim, novas reflexões. REFERÊNCIAS AMOP, Associação dos Municípios do Oeste do Paraná. Currículo Básico para a Escola Pública Municipal: educação infantil e ensino fundamental (anos iniciais). Cascavel: Assoeste, 2007. BAKHTIN, Mikhail [1979]. Estética da criação verbal. 3. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.Tradução: Paulo Bezerra. BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discurso: Por um interacionismo sócio-discursivo. Trad. Anna Raquel Machado, Péricles Cunha. São Paulo: EDUC, 2003. COSTA-HÜBES, Terezinha da Conceição. Sequência Didática: uma proposta para o ensino da Língua Portuguesa nas séries iniciais. Caderno Pedagógico 1. Cascavel: AMOP/ Assoeste, 2007. DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michele; SCHNEUWLY, Bernard. Seqüências didáticas para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e
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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO, FOMENTO DE PRÁTICAS INOVADORAS? Déborah C. C. Pereira Rorrato (UEL – Capes) Introdução Desde o início da educação no Brasil, a profissão docente foi moldada por diversos fatores. Tais como, a dependência com a antiga metrópole e com a Igreja Católica (Luz, 2010; Rodrigues e Hentz, 2011). O status de uma profissão temporária (Calvo, 2011) e da tecnicidade da racionalidade técnica (Luz, 2010; Pereira, 2000). Da desvalorização do trabalho por ser com crianças e da dedicação maioritariamente feminina (Luz, 2010; Rodrigues e Hentz, 2011; Cunha, 2012). Do deslocamento da atenção da prática docente para a pesquisa universitária (Kuenzer e Moraes, 2005). Mais recentemente, a Coordenação de Aprimoramento de Pessoal de nível Superior (Capes), em sua avaliação em 1996/1997, redesenhou o perfil da pós-graduação brasileira, voltando-a a pesquisa e a formação de pesquisadores (Kuenzer e Moraes, 2005) Assim, atualmente, os docentes universitários têm sua profissão marcada pela necessidade da produção acadêmica, por meio de publicações de artigos e participações em eventos. Portanto, esta prática nos leva a questionar: as dissertações (pesquisas) de mestrado estimulam práticas inovadoras? Para investigar tal questionamento analisaremos sob o viés da Análise Crítica do Discurso e do Sistema de Avaliatividade (Martin e White, 2005) a entrevista semiestruturada de três professores egressos de um curso de pós-graduação stricto sensu em nível de mestrado, pertencentes a um Programa em Estudos da Linguagem de uma Universidade Estadual no sul do Brasil.
Revisão bibliográfica Desde a regulamentação e oficialização dos cursos de pós-graduação no Brasil, no ano de 1965 por meio do Parecer Sucupira, foram estabelecidos critérios para a conclusão do mestrado e do doutorado (Parecer Sucupira, 1965). O curso stricto sensu em nível de mestrado possui certa flexibilidade quanto ao trabalho de conclusão, podendo ser feito em forma de dissertação ou artigo. Três décadas, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação - Lei 9394/96 - em seu artigo 66 indica que para lecionar no ensino superior, ou seja, se tornar um professor universitário, é necessário uma preparação em programas de mestrado e doutorado (Veiga, 2006).
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Os dados desta pesquisa foram gerados a partir de entrevistas com professores egressos de um curso de mestrado, cujo critério para obtenção do grau acadêmico é a produção de uma dissertação. Ainda que a obrigatoriedade da produção de uma dissertação não seja um fenômeno recente, nem mesmo inovador, o objetivo desta pesquisa é verificar se e como esta prática opera no processo de fomento de experiências inovadoras. Este estudo relaciona experiências inovadoras com a metodologia de intervenção, segundo a qual, a pesquisa é engajada, o pesquisador e os participantes buscam uma mudança, e conhecimento está vinculado a sua utilidade social (Querol et al, 2011). Em outras palavras, a pesquisa extrapola os limites textuais e se relaciona com a realidade social.
Metodologia do Estudo Como mencionado anteriormente, os dados desta pesquisa foram obtidos por meio de uma entrevista semi-estruturada com três alunos egressos de um curso de pósgraduação stricto sensu em nível de mestrado de uma Universidade Estadual no sul do país. O objetivo é investigar se a pesquisa (dissertação) de mestrado fomenta práticas inovadoras. Ou seja, a intenção é discutir a relação entre a pesquisa e as possíveis transformações na prática docente. Com vistas a tentar alcançar este objetivo, utilizei os aportes teóricos que serão discutidos a seguir.
Análise de Discurso Crítica Os textos são a maneira com que as pessoas (inter)agem nos eventos sociais (Fairclough, 2003). Fairclough defende que a forma com que as pessoas se expressam nos textos é uma parte significativa de como elas se identificam, a “texturização da identidade” (Fairclough, 2003, p. 116). Para investigar os textos dos alunos egressos, a análise crítica do discurso se faz interessante, pois reflete acerca da relação entre sociedade e linguagem (Resende, 2009), e, desta forma, pretendemos compreender como os professores identificam sua prática docente após a produção de sua dissertação de mestrado.
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Fairclough (2003) utiliza o termo avaliação (evaluation) quando os falantes se engajam implícita ou explicitamente em valores. As frases de avaliação são, portanto, aquelas que incitam avaliações positivas e negativas. As quais podem possuir um valor assumido (explícito) ou incorporado (implícito). Além de investigar as avaliações dos professores em seus textos, analisarei a maneira na qual os falantes se comprometem com suas declarações, revelando seus julgamentos, incertezas, possibilidades (Fairclough, 2003), por meio da categoria analítica da modalidade.
Sistema de Avaliatividade O Sistema da Avaliatividade parte do princípio de que um falante/escritor ao se manifestar revela mais do que um conteúdo comunicativo. Seu discurso demonstra sua ideologia, crença, cultura, personalidade. Ou seja, a Avaliatividade é a forma de investigar como as escolhas linguísticas e o discurso revelam tais aspectos do indivíduo em relação as suas opiniões e sentimentos. Segundo Martin e White (2005), a ideia não é somente revelar os sentimentos e valores do autor, mas também sua relação com seu próprio status e a relação retórica com seu potencial leitor. Assim, a teoria questiona também como as vozes do texto se posicionam em relação a outras vozes, bem como a tentativa de descrever a intensidade das declarações do autor. Este sistema é considerado um complexo diagrama (Lopes e Vian Jr., 2005), sendo dividido em três domínios interativos: atitude, engajamento e gradação, os quais possuem suas próprias categorizações. A Atitude é um subsistema que procura compreender como os sentimentos são expressos através da linguagem. Sendo considerada um “mapeamento de sentimentos” (Martin e White, 2005, p. 42). Os sentidos atitudinais podem ser divididos em: afeto, julgamento e apreciação. Afeto diz respeito à construção de reações emocionais. Julgamento lida com os recursos para avaliar comportamentos e princípios. E apreciação foca na construção de valores para as coisas. O Engajamento está relacionado à forma com que o falante se posiciona ao valor apresentado e as possíveis respostas a este valor. O foco da análise está nos recursos que o falante usa para marcar sua posição na interação, bem como nos seus efeitos retóricos.
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Em outras palavras, esta dialogia não envolve somente a forma com que o falante se manifesta, mas também suas expectativas em relação ao ouvinte. A terceira categoria da teoria da avaliatividade é a Gradação. A função deste sistema é de intensificação ou mitigação dos significados instanciados nos outros dois sistemas (Lopes e Vian Jr., 2007). Dois eixos o compõem: força e foca. Análise dos dados A entrevista semi-estruturada realizada com os professores possui diversos questionamentos. Entretanto, para esta pesquisa o foco será apenas um: Você acha que sua pesquisa de mestrado teve desdobramentos na sua prática? Com isso, pretendo investigar a relação da pesquisa de mestrado com a prática docente, visando uma prática inovadora. A primeira resposta nos leva refletir a respeito da relação entre a pesquisa e a vida profissional do pesquisador. A aluna egressa relata: “Sim e não. Foi uma dificuldade minha... como é que eu vou conciliar essas duas questões, a minha vida profissional e a pesquisa? Então essa foi uma dificuldade grande que eu ainda enfrento hoje. E então a pesquisa ela teve uma... se ela operou, modificou a minha prática? Depende qual, todas elas... ela mudou, mas não tão diretamente, porque eu não estava formando professores na época que eu estava fazendo e nem ensino línguas.” (Aluna egressa 1) A categoria de atitude pode ser expressa por meio de verbos, substantivos e adjetivos. A marca avaliativa Foi uma dificuldade minha, é caracterizada como atitudinal de afeto negativo, reforçada pela avaliação de gradação dificuldade grande. Como reflete Fairclough (2003), as marcas avaliativas ocorrem não somente de forma direta, como também de forma incorporada. Como um valor assumido, a professora revela explicitamente a dificuldade em conciliar sua pesquisa com sua prática profissional. Por outro lado, incorporado a este discurso, está a obrigatoriedade de produzir uma dissertação, mesmo que o tema não esteja relacionado a prática daquele docente. A segunda aluna enuncia:
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“Eu acho que sim, porque... as conclusões a que eu cheguei nessa pesquisa, elas estavam muito voltadas pra questão da formação do professor enquanto um profissional autônomo, e um pesquisador que tivesse é... mais voz, que tivesse mais agência, então eu acho que isso refletiu de certa forma na maneira como eu an... propunha determinadas atividades pros meus alunos, na maneira que eu tentava negociar algumas atividades com eles.” (Aluna egressa 2) Ao fazer uso de modalizações (Fairclough, 2003) como eu acho que sim, eu acho que isso refletiu, a professora não afirma algo categoricamente. Isto nos leva a pensar na falta de assertividade quanto ao fato da pesquisa ter ou não propiciado mudanças práticas na vida deste profissional. Em outras palavras, a própria aluna indica incertezas em relação a aplicabilidade social da sua pesquisa. O mesmo é notado na terceira aluna: “Sim. Podemos dizer que sim. Não talvez direto porque eu não estava na disciplina né? Mas eu pude ver as atividades dos alunos, eu pude ver a mudança deles. E ao trabalhar com leitura crítica, aprender sobre isso, porque antes também eu não sabia o que que era. Já tinha ouvido falar na faculdade. Mas, durante a graduação eu não tive nenhuma aula que focava nisso. Então eu aprendi também durante o mestrado. Então teve desdobramentos sim, porque conforme eu fui aprendendo, conforme eu fui fazendo a pesquisa eu fui querendo essa abordagem na minha prática. Falei “não, eu tenho que fazer mais pelos menos alunos, não posso deixar eles nessa leitura rápida. Tenho que fazer eles pensarem mais um pouco”, então eu fui querendo usar isso na minha prática como professora.” (Aluna egressa 3) Esta participante inicia seu texto também modalizando seu discurso a partir do uso do advérbio talvez. Podemos notar que ambas informantes minimizam o poder de suas falas, diminuindo o comprometimento com a resposta. Desta forma, interpreto uma insegurança e/ou indecisão quanto ao questionamento, ou seja, quanto ao fato da pesquisa ter contribuído em sua prática. Em outras palavras, as professoras não estão certas das consequências da pesquisa de mestrado em sua prática docente. Reflexões finais
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Como citado anteriormente, a pesquisa e/ou a dissertação em si, possui um caráter mandatório e, portanto, inerente ao curso de mestrado desde sua criação. Diante disso, surge a indagação: será que esta pesquisa já não é aspecto de um currículo engessado? Ao responderam ao questionamento, as professoras revelaram uma incerteza quanto às consequências práticas da dissertação em sua carreira docente. Mesmo tendo assumido uma posição favorável entre a dissertação e sua vida profissional. Portanto, retomando a investigação desta pesquisa e diante das considerações das professoras, entendemos que a mudança profissional como experiência inovadora após a pesquisa de mestrado depende de cada professor, do seu contexto de trabalho e da sua reflexão em relação a esses fatores. Referências CALVO, L. C. S. A identidade profissional de professores de professores de inglês: representações construídas por alunos do terceiro ano do ensino médio. In: REIS, S.; VAN VEEN, K.; GIMENEZ, T. (Org.). Identidades de professores de línguas. Londrina: Eduel, 2011. CUNHA, Amélia. T. B. da (2012) Sobre a carreira docente, a feminização do magistério e a docência masculina na construção do gênero e da sexualidade infantil. Anais do IX ANPED SUL, Brasil. FAIRCLOUGH, Norman (2003). Analysing discourse: Textual analysis for social research. London: Routlegde. KUENZER, A. C.; MORAES, M. C. M. Temas e tramas na pós-graduação em educação. In.: Educ. Soc. vol.26 no.93 Campinas Sept./Dec. 2005. LUZ, Mary. N. S. da (2010) Linguística e ensino: o discurso de entremeio na formação de professores de Língua Portuguesa. Tese de doutorado em Letras, Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, Brasil. MARTIN, James. R.; WHITE, Peter. R. R. (2005). The language of evaluation: Appraisal in English. London: Palgrave/Macmillan.
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O ADJETIVO PRIVATIVO NA PERSPECTIVA DA LINGUÍSTICA COGNITIVA Dedilene Alves de Jesus (UFRJ/CAPES) Resumo: O adjetivo privativo foi conceituado por Kamp (1975) como um tipo de adjetivo que estabelece relações de propriedades para propriedades, isto é, exerce função modificadora das propriedades intensionais do escopo. A modificação das propriedades intensionais pode ser entendida, segundo Chierchia (2003), como uma “renegociação do léxico”, promovendo um ajuste focal na construção. Para identificação do adjetivo privativo, partimos da disposição de que tal adjetivo é marcado discursivamente pela paráfrase “o que não é N”, quando associado a um nome ou construção nominal. Essa paráfrase implica a negação de propriedades intensionais de N, dentro de um contexto discursivo em que “falso”, por exemplo, não pode ser interpretado como “característica de pessoa com desvio de caráter”. Além disso, procuramos vincular a noção de propriedades intensionais ao conceito de affordance, propriedade invariante do ambiente provida ao indivíduo, termo emprestado pelas teorias de percepção visual (GIBSON, 1979), em uma perspectiva ecológica e corporificada da língua (LAKOFF, 1987). Assim, fizemos uso de dados coletados pela ferramenta de busca Google, analisados a partir do processo de mesclagem conceptual (FAUCONNIER E TURNER, 2002), para verificarmos as alterações nas affordances do escopo em construções como “falsa loura” e “marido falso”, por exemplo. Palavras-chave: Adjetivo privativo. Modificação adjetival. Mesclagem conceptual.
Introdução A noção de adjetivo privativo não é nova nos estudos de Linguística Cognitiva. Coulson (2001) e Sweetser (1999) já apontavam para o caráter privativo em algumas modificações adjetivais e as consequências desse fenômeno em nível de análise linguística. Apesar disso, poucos são os estudos em PB sobre esse aspecto singular do adjetivo.
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Ao percebermos essa ‘lacuna’ nos estudos linguísticos brasileiros, buscamos o embasamento teórico necessário que nos propiciasse uma análise satisfatória do fenômeno ora citado, a partir de pressupostos básicos da LC, da noção ontológica de affordance e das similaridades e diferenças estabelecidas entre adjetivos predicativos e não-predicativos segundo critérios distribucionais. Também nossa preocupação voltouse para a posição do adjetivo no SN, uma vez que a tradição gramatical aponta para a ordem livre como característica dos predicativos e a ordem fixa como um dos traços dos não-predicativos. Inicialmente, nosso objetivo foi enquadrar a questão da modificação adjetival nos estudos descritivos e no aporte da Linguística Cognitiva; após, tratamos da questão da modificação adjetival privativa e suas implicações. A partir desses embasamentos, debruçamo-nos sobre a análise das construções coletadas, visando o estabelecimento de um panorama de adjetivação privativa, a partir de critérios emergentes dos pressupostos apresentados. Assim, fica claro que nosso objetivo maior é o de mostrar o comportamento dos adjetivos privativos nos contextos discursivos coletados (nas formações A+N, N+A e N+N), para um delineamento em nível semântico dessa categoria de adjetivo no PB. 1 Embasamento teórico Neste tópico, apresentamos os pressupostos teóricos utilizados para embasar nossa análise. Tais pressupostos foram retirados de estudos semântico-discursivos sobre modificação adjetival e adjetivos privativos, perpassando a visão ecológica e corporificada da língua a partir da noção de affordance. 1.1 A modificação adjetival A modificação adjetival implica um tipo de predicação, em que temos a operação exercida por um modificador sobre um outro elemento, transferindo a ele propriedades semânticas que antes não lhe eram disponíveis. Nesse processo, pode
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ocorrer um desses tipos de transferência para o elemento modificado: a que afeta a intensão, a que afeta a extensão e a que afeta a modalidade (CASTILHO, 2010). Obviamente, a relação predicativa na modificação adjetival dependerá de outros fatores, como a posição do adjetivo em relação ao substantivo (obedecendo a uma ordem mais livre de anteposição ou posposição), a possibilidade de delimitação (especificação) em um conjunto de coisas, dando um sentido subjetivo para o elemento modificado. Dessa forma, as formas adjetivas que se comportam dentro desse quadro se caracterizam como adjetivos predicativos (vida simples); formas adjetivas que possuem uma ordem mais fixa (não admitem movimento em sua posição relacionada ao substantivo), com indicação mais objetiva para o substantivo, em um caráter não-vago, são denominadas adjetivos não-predicativos (indústria alimentícia). Um fator crucial na questão das similaridades e diferenças entre adjetivos predicativos e não-predicativos é o fato de que os primeiros derivam de construções relativas, são atributivos (vida simples – a vida que é simples), o que não ocorre com o outro grupo (indústria alimentícia – *indústria que é alimentícia). 1.2 A modificação adjetival privativa Nas classificações mais gerais a respeito dos adjetivos não-predicativos, existem estudos a respeito de adjetivos que funcionariam como privativos. O comportamento privativo é reconhecido como uma função de um tipo restrito de adjetivos. Pria (2008) apresenta o seguinte quadro comparativo da classificação semântica dos adjetivos nos estudos formais:
Quadro 1. Classifcação semântica dos adjetivos (PRIA, 2008, p.25)
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Nesse quadro, percebemos que a nomenclatura para o adjetivo privativo é diferenciada devido às especificidades observadas por cada estudioso. Kamp (1975) destaca o aspecto singular do privativo, a ponto de não ser representado por esquemas em seu trabalho; Chierchia e McConnell-Ginet (1990) também destacam a ausência de função predicativa nesse adjetivo; Kamp e Partee (1995) e Partee (2001) consideram a classe dos não-subsectivos como composta pelos não-subsectivos planos (alegado, predito) e os não-subsectivos ou privativos (fictício, imaginário), nos quais insere também elementos morfológicos, como os prefixos negativos pseudo-, ex- e não-. Vamos nos ater à proposta de Kamp (1975), precursora de todas as outras. Para ele, os adjetivos privativos são compreendidos como funções de propriedades para propriedades, ou seja, são funções que se aplicam a nomes, no intuito de gerar alterações nos traços essenciais do nome a que se referem; essas funções diferem de acordo com o tipo de adjetivo (PRIA, 2008). Essa categoria de adjetivo caracteriza-se pela modificação que causa no significado do substantivo – ‘revólver falso’ não é um revólver de verdade, isto é, o adjetivo ‘falso’ muda a propriedade do substantivo ‘revólver’, que se diferencia, dependendo do contexto. Kamp (1975) estabeleceu o seguinte postulado para esse tipo de adjetivo: Para cada propriedade P e cada w ∈ W, F(P)(w) ∩ P(w) = Ø. Lê-se: “para cada propriedade P e para cada w (“mundo possível”) ∈ (“pertencente a”) W (“o conjunto não vazio de todos os mundos possíveis”), F(P)(w) (“o significado F na propriedade P e no mundo possível w”) ∩ (“interseccionada com”) P(w) (“a propriedade P no mundo possível w”) = ∅ (“é um conjunto vazio”)”. Isso quer dizer que o adjetivo privativo transforma a condição de verdade do sintagma nominal, fazendo com que algumas informações do escopo sejam negadas (revólver falso não é um revólver em todas as suas propriedades essenciais, mas um objeto semelhante em algum aspecto a ele). Quanto à classificação dos adjetivos privativos, Franks (1995) estabelece as seguintes tipologias: quanto à estrutura: i) privativos próprios – teriam a formação A+N no inglês; no português, teríamos essa mesma formação, com ordem fixa para alguns casos (suposto amigo, falso documento);
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ii) privativos funcionais – teriam a formação N+N, em que o segundo N é um sintagma preposicionado (locução adjetiva como leão de pedra). quanto ao sentido: i) privativos negativos – em que o modificador gera conflito semântico com o nome (falso revólver, leão de pedra); ii) privativos equivocados – em que o modificador gera dúvidas em relação ao nome (suposto amigo, provável candidato). 1.3 Modificação adjetival e affordance Em estudo sobre construções nominais modificadas (A+N), ao se referir especificamente às construções com fake, safe e intellectual , Sweetser (1999) admite que leituras metafóricas não são suficientes para definir os tipos de processamento prévio quando se rejeita um sentido literal, assim como a interpretação a partir do processo garden-path
não serviria. Um dos motivos apresentados é a questão da
flexibilidade dessas construções, associada à manutenção de aspectos apropriados do sentido de cada palavra, que se manifestam para marcar aspectos da estrutura cognitiva da cabeça lexical. Para resolver tal impasse, a linguista aponta para a descoberta de affordances cognitivas, que teriam a função de conectar aspectos ou estrutura cognitiva a outro item, principalmente quando é manifestado um material com estrutura coerente e acessada pelo falante. Isso representa afirmar que as affordances cognitivas seriam suportes que dariam condições para uma interpretação não-literal de uma construção nominal modificada. As afirmações de Sweetser são respaldadas no conceito de affordance criado por Gibson (1979), na abordagem ecológica sobre a percepção visual. Para ele, o ambiente seria uma superfície que distingue substâncias do meio no qual os animais vivem. Sua tese é a de que ‘valores’ e ‘significados’ de coisas em um ambiente podem ser percebidos de forma direta e externa ao observador; ou seja, a percepção de propriedades de um objeto dependeria da forma como ele se apresenta no ambiente e de como esse observador o enxerga.
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As affordances seriam propriedades invariantes do ambiente oferecidas a uma espécie, o que é provido ou fornecido a essa espécie em seu ambiente, sendo tanto benéfico quanto prejudicial. Assim, a superfície terrestre possui propriedades que proveem aos animais formas de se fazer uso dela: é horizontal, rígida, tem uma extensão e suporta peso; ela é ‘pisável’ e ‘corrível’. Essas propriedades não são abstratas e atendem às necessidades do animal. Para cada espécie de animal, há propriedades de superfície que atenderão em maior ou menor nível; então, para cada situação estabelecese uma affordance diferente. 2 Questões sobre o adjetivo privativo Quando falamos a respeito da modificação adjetival privativa, o que se entende é que estamos tratando de uma modificação que ocorre a partir de um tipo específico de adjetivo. Sabemos que se trata de um adjetivo não-predicativo e, portanto, deve apresentar uma ordem fixa no SN. Nos estudos realizados a partir de construções nominais modificadas, vimos que o padrão da língua inglesa de anteposição do adjetivo não nos permite explanar sobre a posição do adjetivo, mas em se tratando do português brasileiro, que tem um padrão linguístico que admite anteposição e posposição do adjetivo, há que se falar a respeito disso, uma vez que essa questão é relevante na análise de alguns tipos de modificação privativa. A concepção de alteração de sentido associada à colocação dos adjetivos é bastante divulgada nos trabalhos sobre essa classe. De modo geral, a ideia apresentada nos compêndios gramaticais é a de que, quando se antepõem, os adjetivos favorecem uma predicação mais subjetiva do substantivo, ressaltando seus valores afetivos, como em grande homem, cuja significação é excelente homem. Castilho (2010), na abordagem multissistêmica da língua, também afirma que a anteposição ou a posposição do adjetivo afeta o processo semântico. Com vistas a corroborar essa ideia, o autor apresenta os seguintes exemplos: falso estudante / estudante falso e suposto comunista / comunista suposto. No primeiro elemento, segundo o gramático, a anteposição do adjetivo tem um efeito negativo sobre o substantivo (‘alguém que não é
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estudante’/ ‘alguém que não é comunista’); no segundo, o item adjetival pressupõe que ‘há um estudante’ e ‘há um comunista’. Nos estudos descritivos do português a respeito da anteposição do adjetivo em relação ao nome, o que concluímos é o seguinte: a) a anteposição não altera o sentido do N – mulher bonita / bonita mulher b) a anteposição intensifica uma propriedade de N – mulher boa / boa mulher c) a anteposição gera uma ressignificação de N – homem grande / grande homem Em breve análise, percebemos que o critério de posição nos adjetivos privativos é variável no caso dos privativos: [1] “Pior do que marido falso é marido de verdade.” (http://pseudointelectualoides.blogspot.com.br/) [2] “Ex-servidora do INSS validou a pensão por morte de falso marido da irmã”
(http://www.tribunadodireito.com.br/noticias-detalhes.php) [3] “E a Popozuda falsa, porque a bunda é puro silicone também é uma tremenda falsa!!!!” (http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20110915134248AALnZ0p) [4] “Enquanto se bronzeava, a falsa Popozuda - em seguida identificada como a funkeira Maysa Abusada - fez uma "farofinha" com os amigos, com direito a peixe e batata frita.” (http://ego.globo.com/praia/noticia/2012/10/sosia-de-valesca-popozuda-faz-farofa-empraia-carioca.html)
Como observamos, nos quatro casos estamos lidando com adjetivos privativos, dentro de uma ordem livre, mantendo o sentido de negação. No primeiro exemplo, ‘de verdade’ ativa a significação de não-marido na construção ‘marido falso’, silenciando a interpretação de desvio de caráter, esperada pela convencional posposição do adjetivo (forma não-marcada). O caso [2] apresenta uma forma anteposta, como no exemplo de Castilho (2010), em que há a negação de estado civil. Nos casos [3] e [4], percebemos a negação de propriedades do nome, mas há perspectivas diferenciadas: enquanto em
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‘Popozuda falsa’ é negada a naturalidade de parte do corpo da famosa (glúteos), em ‘falsa Popozuda’ é negada a identidade da famosa. 3 Análise dos dados 3. 1 Apresentação Inicialmente, trabalhamos com 30 construções linguísticas coletadas a partir da ferramenta de busca Google; essas construções são formadas a partir de adjetivos que alteram as propriedades intensionais do escopo, negando-as parcial ou totalmente. Para delimitarmos a busca, escolhemos os seguintes adjetivos: falso, suposto, a construção adjetiva prep + N (de mentira, de pedra, de pau, de ouro), postiço e antigo. A escolha foi motivada pelas leituras realizadas em Coulson (2001), Coulson e Fauconnier (1999) e Fauconnier e Turner (2002), que citam algumas dessas construções em inglês. Optamos pelas construções em que a modificação adjetival estivesse relacionada, em sua maioria, a pessoas e não objetos.
Os textos coletados a partir
dessa busca apontam para diversos gêneros textuais (máximas, comentários em blogs, textos noticiosos, textos de opinião e anúncios), em situações comunicativas diferenciadas. Assim, elencamos as seguintes construções: eu postiço / unhas postiças / mãe postiça / cílios postiços / cabelo postiço / dente postiço / homem de mentira / mulher de mentira / revólver de mentira / documento de mentira / loira de mentira / antigo dono / antiga Mulher-Maravilha / antigo homem mais rico da Rússia / antigo fumante / dente de ouro / Leão de Ouro / cavalinho de pau / falso estudante / Popozuda falsa / loura falsa / empregado falso / falsas magras / marido falso / suposto assassino / suposta mãe / suposto amigo / suposta namorada / suposta filha. Utilizamos os critérios distribucionais estabelecidos por Casteleiro (1979), mesclados aos critérios de negação, manutenção de affordances e tipo de mesclagem conceptual. A seguir, detalhamos tais critérios. 3.2 Critérios de análise Os 30 dados coletados foram analisados a partir das seguintes perspectivas:
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• Visão dos elementos característicos de adjetivos predicativos e nãopredicativos, em nível gramatical, a partir da análise de critérios distribucionais baseada em Casteleiro (1979) e retomada por Castilho (2010). • Visão corporificada da língua, a partir da análise de espaços mentais e processo de mesclagem conceptual, que colaboram para a checagem dos frames construídos e das ativações de significado possibilitadas pelas construções. Também se vincula a observação de construções mais ou menos abstratizadas. • Visão da manutenção de affordances cognitivas, como detalhamento de propriedades que são mantidas ou negadas na combinação conceptual. Nesses pressupostos, nosso objetivo é traçar o comportamento dos adjetivos privativos elencados, no raciocínio de critérios que caracterizem tais adjetivos: a) Posição do adjetivo/Atribuição de sentido – adjetivos predicativos não possuem ordem fixa, enquanto os não-predicativos possuem, mantendo uma interpretação única. b) Gradação – adjetivos predicativos aceitam intensificadores (muito), enquanto os não-predicativos os rejeitam. c) Coordenação – adjetivos predicativos aceitam elementos coordenativos; os não-predicativos rejeitam. d) Cadeia referencial – os predicativos formam cadeia referencial a partir de pronomes, enquanto os não-predicativos fazem a partir de nominalizadores. e) Anexação do copulativo ‘estar’ e de prefixos de negação – os predicativos aceitam o copulativo e prefixos de negação, enquanto os não-predicativos rejeitam tais elementos. f) Categorização do aspecto negativo – o aspecto totalizador de negação seria uma marca dos adjetivos privativos. g) Paráfrase – os privativos teriam a paráfrase parecida com “o que não é N”. h) Manutenção das affordances – os privativos apresentariam a negação de alguma affordance (propriedade inerente ao ser). i) Tipo de integração conceptual – os privativos realizam uma mesclagem em que há um espaço de negação/contradição.
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3.3 Discussão A partir dos critérios estabelecidos, obtivemos os seguintes resultados: Anexação do Adjetivo
Posição
Gradação
Coordenação
Cadeira referencial
copulativo ‘estar’ e de prefixos
de
negação falso
livre
não aceita
não aceita
nominalizações
não aceita
suposto
fixa
não aceita
aceita
nominalizações
não aceita
antigo
fixa
não aceita
não aceita
nominalizações
não aceita
de ouro
fixa
não aceita
aceita
nominalizações
não aceita
de pau
fixa
não aceita
aceita
nominalizações
não aceita
de mentira
fixa
não aceita
aceita
nominalizações
não aceita
postiço
fixa
aceita
aceita
nominalizações
não aceita
Tabela 1. Síntese dos resultados da análise dos adjetivos privativos (Critérios distribucionais)
Adjetivo
Aspecto
Paráfrase
negativo falso
negação
Manutenção das Tipo de integração affordances
“o que não é N”
total
nega
conceptual
affordance Input
da entidade
1:
objeto/humano Input
2:
não-
objeto/não-humano suposto
negação
“o que pode ou questiona
parcial
não ser N”
affordance entidade
Input
1:
da cenário/realidade Input 2: papel social
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antigo
de ouro
negação
“o que não é mais
nega
temporal
N”
de tempo
negação
“o que não é N”
nega
projetada
affordance Input 1: presente Input 2: passado
affordance Input
da entidade
1:
animal/orgânico Input 2: metal
de pau
negação
“o que não é N”
projetada de mentira
negação
nega
affordance Input 1: animal
da entidade “o que não é N”
projetada
nega
Input 2: material
affordance Input
da entidade
1:
objeto/humano Input
2:
não-
objeto/não-humano postiço
negação
“o que se parece
nega
affordance Input 1: humano
total
com N”
da entidade
Input 2: artificialidade
Tabela 2. Síntese dos resultados da análise dos adjetivos privativos (Critérios semânticos) Nas tabelas acima, observamos que os adjetivos analisados apresentam características de privativos, sendo que alguns se aproximam da conceituação de Kamp (1995), como falso, e outros se distanciam dessa conceituação, como suposto. 4 Considerações finais A partir dos dados levantados, que correspondem a uma pequena amostra desse tipo de adjetivo, pudemos observar que tal classe de adjetivo apresenta um comportamento próximo ao dos não-predicativos, no que diz respeito à gradação, à coordenação e à anexação do copulativo ‘estar’ e de prefixos de negação. Quanto à posição do adjetivo, ‘falso’ apresentou ordem livre, ao contrário dos outros exemplos. Quanto aos aspectos analisados pelo aporte cognitivista, reafirmamos o que Coulson (2001) postula: a checagem de frames e a mesclagem conceptual são, no momento, os processos mais eficazes no detalhamento desse tipo de adjetivo. Não podemos desconsiderar, no entanto, a identificação das affordances cognitivas nesse processo.
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Ainda sobre a posição do adjetivo privativo ‘falso’, por ora consideramos que sua ordem livre pode decorrer como um desencadeamento de usos frequentes de construções como ‘loira falsa’ (não-loira) e pode também ter uma frequência maior em textos coloquiais. A posposição desse adjetivo pode ser decorrente da tendência do português brasileiro em pospor adjetivos, considerada por Kato (1988) como um padrão comum por causa da ordem SVO (sujeito-verbo-objeto) do PB. Referências CASTILHO, A. Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010. ______________. Representações das categorias cognitivas e sua diacronia: Interface Linguística cognitiva – Linguística histórica. Filologia e Línguística Portuguesa, n. 13(1), p. 63-87, 2011. CHIERCHIA, G. Semântica. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2003. _____________.; MCCONNELL-GINET, S. Meaning and grammar. Cambridge: The MIT Press, 1990. COULSON, S. Semantic leaps: frame-shifting and conceptual blending in meaning construction. Cambridge University Press, 2001. ____________; FAUCONNIER, G. Fake guns and stone lions: conceptual blending and privative adjectives. In: B. Fox, D. Jurafsky, & L. Michaelis (Eds.) Cognition and Function in Language. Palo Alto, CA: CSLI, 1999. FAUCONNIER, G.; TURNER, M. The way we think: conceptual blending and the mind's hidden complexities. New York: Basic Books, 2002. ______________________. Conceptual integration networks (Mental spaces). In: FILLMORE, C.J. Frame semantics. In: Linguistics in the Morning Calm, Seoul, Hanshin Publishing Co., 111-137, 1982. KAMP, J.A.W. Two theories about adjectives. In: Keenan, E. L. Formal semantics of natural language. Cambridge: Cambridge University Press, 1975. LAKOFF, G. Women, fire and dangerous things: what categories reveal about the mind. Chicago, IL: University of Chicago Press, 1987. PARTEE, B. Are there privative adjectives? Conference on the philosophy or Terry Parsons, Notre Dame, 2003.
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A IDENTIDADE FEMININA EM VALENTE E ENTRE A ESPADA E A ROSA: DOIS OLHARES Deisi Luzia Zanatta (UPF) Fabiane Verardi Burlamaque (UPF) A inserção de novas personagens femininas na literatura infantil e juvenil procura representar uma característica muito importante para as leitoras contemporâneas: o seu caráter emancipatório e um auxílio em sintetizar seus desejos, angústias, medos e curiosidade, orientando-os a dar significado a coisas e fatos, ao mesmo tempo, na sua relação com o outro. O presente trabalho, de cunho bibliográfico, apresenta a análise do filme Valente, no original Brave, da Disney Pixar e do conto Entre a espada e a rosa, de Marina Colasanti, que de acordo com a temática da identidade feminina, no corpus de pesquisa será abordado sob o âmbito da emancipação. O filme Valente, lançado em 2012, é um conto de fadas e o primeiro longametragem dos Estúdios Disney Pixar protagonizado por uma personagem feminina. Mas além dessa novidade, o filme também é o primeiro da Pixar a ser produzido e dirigido por duas mulheres. A produção ficou por conta de Katherine Sarafian e a direção em conjunto por Brenda Chapman e Mark Andrews. Desde a origem dos tempos, histórias antigas sobre batalhas épicas e lendas míticas foram se disseminando, através da cultura oral popular por longas gerações, em uma misteriosa região montanhosa das Terras Altas da Escócia. No enredo fílmico, temos Merida, a bela princesa ruiva de cabelos cacheados (e indomáveis), filha do rei Fergus e da rainha Elinor. Merida é uma arqueira destemida e habilidosa e, ao contrário da mãe, não quer se casar e constituir família. Sua ousadia chega ao ápice quando ela mesma disputa e ganha sua mão no tiro de arco e flecha, diante de seus três pretendentes e todo o povo do reino. Rompendo com a sagrada tradição até então estável, desafiando todo o reino e os lordes, MacGuffin, Macintosh e Dingwall, Merida decide trilhar seu caminho e traçar seu próprio destino, como aconteceu com o primeiro filho do antigo rei da lenda, que por tentar romper com a tradição, teve um preço alto a pagar. Os atos da princesa desencadeiam um caos e o ódio do reino, mas, principalmente, o relacionamento fica tenso entre ela e sua mãe. Tentando fazer com que Elinor compreendesse seus propósitos, Merida procura a ajuda de uma velha feiticeira dizendo que precisa mudar sua mãe. A feiticeira atende ao pedido da princesa e transforma a rainha em urso, e com isso, juntas, mãe e filha, vão viver as mais loucas aventuras pela floresta, mas,
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principalmente, vão reestabelecer o elo do amor e compreensão. Nesse tempo, Merida descobre as artimanhas da verdadeira valentia, correndo contra o tempo para livrar sua mãe do perigo, antes que seja tarde demais. Mas além do filme Valente, significativo também para estudos sobre a questão da nova identidade feminina nas narrativas contemporâneas tem-se o conto Entre a espada e a rosa, de Marina Colasanti. A história se passa em um reino no qual o rei, a fim de estreitar relações e fronteiras com o povo nortista, resolve oferecer a mão de sua filha em casamento ao chefe desse povoado. Com muita tristeza, a princesa recebe a notícia da escolha de seu pai. Em seu quarto, debulhada em lágrimas, a princesa adormece, mas ao acordar e se olhar no espelho, se depara com uma enorme barba ruiva e cacheada. Pensou em cortála, mas descobriu que isso era a sua reprovação diante do ato do rei e qualquer homem que viesse buscá-la, não ia querer uma mulher barbada. Mas o rei ao vê-la daquela forma, tomado pela fúria, a expulsa do palácio. Ao passar de aldeia em aldeia, sua identidade se mostrava duvidosa, rosto de homem e corpo de mulher, por isso não aceitavam seus serviços. Com sua verdadeira identidade escondida atrás de um elmo e de uma couraça, montada em seu cavalo e com sua espada avante, decidiu que seria guerreiro. Vagando, encontra um rei que aceita seus serviços. Ao lado do jovem rei, viveu as mais itinerantes aventuras, mas chegou ao ponto de que era forçada por ele a tirar a couraça e revelar seu rosto ou ir embora. Aos prantos, adormece e ao acordar, percebe que no lugar da barba, há rosas cravejadas em seu rosto. Com o passar dos dias as pétalas vão caindo, deixando florescer um belo rosto de mulher. No quinto dia, com o cabelo solto, trajando seu vestido cor de sangue, a princesa desce as escadas do castelo e apresenta-se para o rei, enquanto o perfume de rosas percorre o castelo. Assim, objetivamos apresentar uma análise de Valente e Entre a espada e a rosa na tentativa de mostrar que as protagonistas, mesmo circunscritas em ambientes tradicionais, lutam com voz e atitude contra o destino que sobre elas pesa. 1. Um olhar sobre Valente É do conhecimento de muitas pessoas que os contos de fadas marcaram importante presença da infância de muitas crianças. Durante o início da vida, a criança inicia uma constante busca por algo que a auxilie a sintetizar seus desejos, angústias, medos e curiosidade, que as oriente a dar significado a coisas e fatos que ocorrem ao seu redor. Ela encontra esses elementos dentro de um conto de fadas e se deixar levar pelo “Era uma vez...”, pois há muito mais significados nessas três palavras do que podemos imaginar. Elas nos levam a um mundo repleto de magia e encanto, fazendo-nos viajar pelo mundo da imaginação. Mas na era contemporânea, surgem narrativas que passam por uma nova abordagem, a fim de representar, através de suas personagens, problemas, desejos e
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anseios das crianças e jovens da modernidade. Segundo Vera Maria Tietzmann Silva (2008, p. 72), “os autores de literatura infantil, cientes do fascínio que essas histórias conservam, vêm delas fazendo releituras em que oram imitam o padrão de sua construção narrativa, ora, ainda, subvertem esses padrões, provocando o riso e a reflexão crítica”. O filme Brave, traduzido para o idioma português como Valente é uma animação criada em pleno século XXI, para evidenciar algumas diferenças de opinião entre pais e filhos. A cena inicial do filme apresenta Merida, uma princesa ruiva de cabelos cacheados, do reino de Danbrock, filha da rainha Elinor e do rei Fergus. A pequena princesa está com seus pais em algum lugar da floresta, comemorando seu aniversário e se mostra uma menina travessa, escondendo-se de sua mãe, debaixo da mesa. Para alegrar sua filha, Fergus presenteia Merida com um arco e flecha, que com o auxílio de seu pai, já arriscava manusear a arma e claro, sob reprovação de Elinor que afirmava que a menina não deveria usar armas, afinal de contas, ela é uma princesa. Mas sem dar ouvidos a sua mãe, Merida continua sua prática como arqueira quando, de repente, sua flecha vai parar na floresta e a princesa vê e segue as luzes mágicas. Ao retornar sua mãe lhe diz que essas luzes a levam para o seu destino, evidentemente, já remetendo o que viria a acontecer no decorrer da narrativa. Isso mostra que Merida está sendo chamada a trilhar seu destino e esse marco em sua vida inicia quando sua mãe lhe comunica, durante o jantar, que é chegada a hora de se casar. A jornada da protagonista que inicialmente também se revela narradora da história, enquanto a cena nos apresenta a mítica Escócia como cenário, está diretamente ligada em firmar sua identidade como uma habilidosa e corajosa arqueira e não como uma mulher, esposa e dona do lar. As palavras iniciais da narradora e protagonista revelam que ela será levada a tomar uma decisão que mudará para sempre o seu destino: Dizem que o nosso destino está ligado a nossa terra, que ele é parte de nós, assim como nós somos dela. Outros dizem que o destino é costurado como um tecido, onde a sina de um se interliga a de muitos outros. É a única coisa que buscamos, que lutamos para mudar. Alguns nunca encontram o destino, mas outros são levados a ele.
Percebe-se que no filme, o poder matriarcal é que prevalece. O valente rei, que perdera a pena esquerda numa batalha com o feroz urso, durante a comemoração do aniversário de Merida na floresta, não exerce essa virtude na esfera do lar. Os contos de fadas tradicionais mostram que quando é chegada a hora da princesa se casar, é o pai quem lhe comunica e passa então, a escolher um pretendente para a filha, que na maioria das vezes, serve para estreitar relações de poder entre os reinos. Em Valente, é Elinor que toma à frente sobre o casamento de Merida, evidenciando que o poder patriarcal não tem voz dentro do lar.
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A protagonista do filme possui os traços característicos ao que Forster (2005, p. 100) classifica como personagem redondo. A principal característica, segundo o autor, deste tipo de personagem é a capacidade “de nos surpreender de maneira convincente”. Merida representa fielmente essa característica, pois não era o modelo de princesa exigido e esperado por sua mãe, que em muitos momentos a repreende por seu comportamento “rebelde”. Segundo Elinor, uma princesa deveria buscar a perfeição e por isso, exigia que sua filha fosse condicionada ao espaço doméstico, seguindo o seu exemplo. Nessa questão, a narrativa fílmica molda o modelo de que uma princesa não teria outra serventia fora do casamento. Desabafando com seu cavalo, Merida se mostra que não está pronta para o casamento e talvez, nunca esteja. Ela quer a liberdade. A vontade da rainha evidencia uma tradição pedagógica sobre o papel das jovens no meio social, casar e ter filhos. Vale destacar que o cabelo da princesa exerce uma simbologia de sua personalidade. As madeixas da protagonista são ruivas, o que nos remete ao fogo, um dos quatro elementos que se alastra com uma velocidade voraz. Os longos cachos representam os obstáculos que a princesa passaria por romper com a tradição, primeiramente com sua mãe, com todo o povo do reino e ao final, correndo contra o tempo para reverter a situação que transformou sua mãe em urso. Merida incorpora, fielmente, uma jovem à frente de seu tempo que quer por ela mesma fazer suas próprias escolhas. Descontente com tal atitude, Elinor volta e meia lembra sua filha da antiga lenda do príncipe que, ao decidir romper a tradição, seguindo seu caminho. A rainha enfatiza o prejuízo para o reino deste povoado devido a esta atitude e no que o príncipe se transformou. Merida não se convence, dizendo que é apenas uma lenda, mas sua mãe afirma que as lendas trazem a verdade, fato este que se concretizaria ao final do filme quando a princesa chega até o antigo reino da lenda contada por sua mãe e se dá conta de que o feitiço já aconteceu há muito tempo atrás. A protagonista representa, inicialmente, sua bravura e valentia quando, ao retornar para casa do seu “dia de não princesa”, fala para seus pais que escalou a Cascata de fogo. Surpreso, Fergus diz que somente os mais valentes reis conseguiram chegar até o topo da cascata, que de certa isso forma mostra que Merida é uma princesa moderna, não preparada para o casamento, mas para a liberdade. Sua atitude fez com que a rainha a preparasse para receber seus pretendentes, vestindo a jovem em um apertado vestido. Mas, a protagonista não dá por vencida e discute com sua mãe até o momento de ser apresentada aos pretendentes. Merida não ousa ultrapassar fronteiras para fazer valer sua liberdade, rasga o vestido apertado, tentando se libertar das amarras do casamento, disputa e ganha ela mesma sua mão no arco e flecha, o qual ultrapassa o alvo acertado pelo terceiro pretendente. Percebe-se que os três filhos dos lordes, são fracos e totalmente submissos, sendo direcionados a pretender a mão da princesa por vontade de seus pais. Quem luta contra essa condição é a princesa, uma mulher que vence a prova diante de todo o reino, traçando seu destino.
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Tal atitude provoca a fúria do reino e numa ardente discussão com sua mãe, Merida rompe com a espada, a imagem da tapeçaria em que mãe e filha apareciam lado a lado ao mesmo tempo em que afirmou preferir morrer a ser como Elinor. Tomada pela mágoa, a rainha joga ao fogo o arco da jovem, que revoltada, monta em seu cavalo e ruma floresta adentro. Seguindo as luzes mágicas, a princesa é levada para a casa de uma bruxa e para ela pede um feitiço que mude a sua mãe, que mude o seu destino. A feiticeira dá a jovem um doce, o qual transforma Elinor em urso. A rainha passa a ser perseguida pelo rei e pelo reino, confundida com o terrível urso que comeu uma das pernas de Fergus em batalha. A imagem da feiticeira representa o papel que cabe à avó: mulher mais velha e experiente que já viu e já viveu bastante, ela sabe que para mãe e filha se entenderem, é necessário que uma consiga se colocar no lugar da outra. Merida precisa aprender a cuidar dos outros para entender a carga de responsabilidade que pesa sobre sua mãe, e Elinor precisa reencontrar a jovem impetuosa dentro de si mesma, para entender o que significa para a filha abrir mão de sua liberdade para embarcar em um casamento arranjado (LHULLIER, s.p, 2012).
Assim, as luzes flutuantes levaram Merida até seu destino, o de transformar sua mãe em urso e com ela, viver as mais loucas aventuras. Esse acontecimento marcou para sempre a vida de mãe e filha, propiciando a convivência e a compreensão entre ambas. Contudo, até isso se concretizar, ela, então, luta contra o tempo para despistar o reino e tirar a salvo Elinor do castelo, a fim de reparar seu erro. Após uma longa jornada, ambas chegam até a casa da bruxa em busca da solução para o feitiço. Não encontrando a bruxa em casa, esta deixa um recado para Merida de que no segundo amanhecer, o feitiço duraria para sempre, mas que para desfazê-lo deveria lembrar das seguintes palavras: “Se não enterrada, olhe sua alma, remende a união, por orgulho separada”, o que remete ao elo rompido representado pela tapeçaria, em que imagem de mãe e filha foi dividida pela revolta da princesa. Como o destino traçado, mãe e filha são levadas ao antigo reino da lenda e aquela, ao ver a imagem do príncipe mais velho, dividida das imagens de seus três irmãos, a protagonista se dá conta de que o feitiço já aconteceu antes e a tapeçaria é a chave para transformar Elinor na forma de ser humano novamente. De repente Merida constata que o príncipe havia se transformado em Mordu, o urso que usurpara a perna de seu pai. Com muita coragem, defendendo sua cria, Elinor tira a filha do perigo e parte com ela para o palácio. O filme Valente mostra que a magia, o amor e algumas virtudes dos contos de fadas continuam nas narrativas modernas, apenas abordadas de uma maneira um pouco distinta. No filme, essa característica se evidencia quando após a convivência entre mãe e filha e a compreensão entre ambas é finalmente selada, Merida retorna ao castelo e diz a todos, incluindo seu pai, os lordes e seus pretendentes, que a rainha sente
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profundamente em seu coração que todos eles, tinham o direito de escolher a quem amar. Com o apoio de seus ex-pretendentes, a ela só caberia, agora, quebrar com o feitiço que transformou sua mãe em urso e contornar a perseguição que seu pai e o povo do reino travariam em busca de Elinor. Com a ajuda de seus três irmãos, agora transformados em ursinhos, a princesa segue as luzes mágicas consegue levar a rainha até o círculo do destino e lutar corajosamente contra seu pai em prol de sua mãe. Inesperadamente Mordu aparece no local e tenta ferir Merida, mas a rainha luta bravamente com o urso e armando uma emboscada, consegue matá-lo sem machucar sua filha. Então, é chegado o momento em que a magia ocorre no filme, originada através da jornada subjetiva da convivência entre mãe e filha, cujo, o sentimento da compreensão e do amor verdadeiro se refaz. Elinor, coberta com a tapeçaria costurada e abraçada por Merida aos prantos, declara seu amor e se transforma novamente em humana. Então, o elo entre mãe e filha se reestabelece para sempre. Acerca dessa questão, Diana Corso afirma que: É pelo amor da filha que a mãe volta à forma original, quando a jovem admite o que dela aprendeu. Já a mãe, ressurge marcada pela jornada de questionamento, precisa ver na sua descendente alguém capaz de escolhas, originalidade, opções que revolucionam a vida de ambas. As mulheres têm mudado vertiginosamente nos últimos séculos, mães e filhas sofrem com essa eterna mutação, sua relação é uma montanha russa de sentimentos. Já que indômitas, temos que ser, de fato, valentes para viver juntas tudo isso. Sou grata às minhas princesas irreverentes pelo tanto que seguem me revolucionando, pelo amor com que me permitem ensinar-lhes algo, pela parceria na infinita descoberta do que é ser uma mulher (CORSO, s.p, 2012).
Mesmo descendentes da nobreza, Merida mostrou que preferiu se tornar uma arqueira habilidosa, entrando para a história do reino por ter rompido com a tradição. Essa atitude desencadeou um caos no reino, mas principalmente entre mãe e filha, que ao passarem por uma jornada subjetiva de convivência, ambas descobrem o verdadeiro sentido da compreensão. Através disso, o filme analisado apresenta novos conceitos acerca da questão feminina, corroborando assim, ideais de uma nova era, em que crianças e jovens estão cada vez mais decididos a fazerem suas escolhas. Além da narrativa cinematográfica Valente, o conto de Marina Colasanti Entre a espada e a rosa também aborda tal ideia, sendo o próximo alvo de análise, presente nesse trabalho.
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2. Uma análise de Entre a espada e a rosa Nascida em Asmara, na Etiópia em 1937 e vivendo sua infância na Itália, Marina Colasanti, já adolescente se muda com seus pais para o Brasil. Marcada pelo efetivo cultural dos três continentes em que viveu, a literatura da escritora propicia inovação e sofisticação, porque cria novos contos de fadas. Sua carreira profissional teve início com as artes plásticas, mas ao conhecer sua habilidade com as palavras, iniciou uma jornada que só viria a enriquecer a literatura infantil e juvenil brasileira. Da escritora o público tem algumas coletâneas de contos: Uma idéia toda azul (1979), Doze reis e a moça no labirinto do vento (1982), Contos de amor rasgados (1986) Entre a espada e a rosa (1992), Longe como o meu querer (2001) e 23 histórias de um viajante (2005). Marina Colasanti se vale da literatura infantil e juvenil para abordar temas da atualidade, o que também caracterizam seus contos como uma literatura produzida para adultos. Do lirismo em suas produções infantis à criticidade em seus contos, a escritora produz uma literatura significativa, conquistando então, leitores e leitoras de todas as gerações. Entre a espada e a rosa é um conto de fadas moderno publicado na coletânea de contos de mesmo nome. Logo no início da narrativa, ao invés de apresentar aos seus leitores (as) o cenário da trama e o tempo em que ela acontece, a história mostra o momento em que a protagonista, uma princesa, é notificada pelo pai de que irá se casar. O rei não se importava se o pretendente a mão de sua filha fosse velho ou feio, mas sim com os benefícios que teria ao estabelecer relações com o povo nortista. A princesa deveria estar pronta, pois a qualquer momento seu noivo viria buscá-la. A princesa, então aos prantos implora para seu corpo e sua mente para que haja uma solução para o seu problema e muito cansada, adormece. Ao acordar, sente algo diferente em seu rosto e ao olhar-se no espelho, vê uma viçosa e cacheada barba ruiva, o que representa a sua reprovação e não preparação em relação ao casamento arranjado. Além disso, as características da barba tem um valor simbólico na narrativa como acontece com os cabelos de Merida, protagonista de Valente. A cor da barba é ruiva, o que nos remete ao fogo, algo que se alastra com velocidade, característica essa que a princesa nutre ai sair do castelo e conseguir sobreviver sozinha na floresta, tornando-se um valente guerreiro que vem a conhecer e conviver com um jovem rei, de um reino distante. Os cachos da barba se unem a essa característica para evidenciar que a princesa precisará passar por dificuldades, devido a sua identidade duvidosa. Seu objetivo até o final do romance é preservar essa dupla identidade, que só se desfará ao final do romance quando ela estiver realmente pronta para se apresentar a um pretendente. Nas entrelinhas, o conto representa a opinião contrária da princesa em relação à decisão do pai em escolher quando e com quem se casaria. Com isso, a condição feminina passa por uma transgressão em resposta ao poder patriarcal.
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Ao retomar o início do conto, temos o rei, que tomado pela fúria, ordena que a princesa fosse embora do palácio, antes que o reino ficasse sabendo e a vergonha caísse sobre ele e assim, “salva a filha, perdia-se, porém a aliança do pai” (COLASSANTI, 1992, p. 24). A jovem princesa, então, deixa o castelo apenas com seu vestido cor de sangue e algumas joias, atravessando sem se despedir de ninguém, a ponte levadiça que a levaria para fora do castelo, deixando no passado tudo o que havia sido seu e rumando ao futuro, que ainda não conhecia. Tem-se aqui a antiga tradição patriarcal de que a filha que se recusasse a casar com o pretendente escolhido pelo pai era expulsa de casa. Mas, essa expulsão, que em geral desemboca em desgraça e sofrimento para a jovem moça, no conto se mostra ser a salvação da princesa, que ao passar por algumas dificuldades na floresta, se transforma em uma mulher de coragem ao ocultar sua verdadeira identidade e se tornar um guerreiro. A princesa também usufrui da oportunidade de conhecer o mundo além das paredes do castelo, fato que não se concretizaria se por ventura, seu casamento tivesse ocorrido, em que ficaria no palácio, cuidando de seus filhos. Em todos os contos de fadas tradicionais, ou, pelo menos na maioria deles existe uma princesa que sonha em se casar com um príncipe encantado, vontade contrária da protagonista de Entre a espada e a rosa. A narrativa não explicita em suas linhas o desejo da princesa de escolher seu próprio príncipe encantado, mas o surgimento da barba vem como uma proteção contra o desejo do pai até ela ganhar o mundo além do castelo e por meio da convivência com o jovem rei, se apresentar para ele como uma mulher. Muitos leitores (as) poderiam se perguntar: se como será que uma bela princesa poderá sobreviver na florestar sem nunca antes ter saído do castelo? Não se mostrando nem um pouco passiva e medrosa, a coragem e perseverança da jovem princesa se revelam virtudes conquistadas por ela ao ter que sair do castelo e adentrar em florestas nunca antes percorridas. Com isso, percebe-se a preocupação da autora com a questão feminina estereotipada em figuras que somente poderiam atuar dentro do lar como mães e esposas. Como Merida, a protagonista do conto é uma personagem redonda, que surpreende seus leitores ao se oferecer para prestar serviços em algumas aldeias. Por ser forçada a deixar o castelo, o percurso trilhado pela personagem revela sua força diante do mundo novo habitado, não teme e enfrenta com garra e coragem as dificuldades encontradas no caminho, que não deixam de representar uma jornada transgressiva na subjetividade da protagonista. Chegando na primeira aldeia, ofereceuse para prestar serviços de mulher, mas sua barba evidenciava que era homem. Na aldeia seguinte, ofereceu-se para serviços masculinos, mas seu corpo mostrava que era mulher. Exausta, na aldeia seguinte a princesa pediu uma faca emprestada a um pastor e raspou a barba, mas esta voltou mais radiante e viçosa do que nunca. Esse caminho percorrido mostra que a princesa está sofrendo uma transgressão, ou seja, são etapas de amadurecimento que só virão a se concretizar quando ela passar pela nova identidade assumida, tonando-se um guerreiro.
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Ao perceber a dificuldade de ingressar em qualquer uma das aldeias, devido a sua dupla identidade, a princesa toma uma decisão e mostra-se ousada e destemida. Ela vende suas joias em troca de um elmo, uma espada e uma couraça e assim, torna-se um guerreiro valente. Esta transformação da protagonista de menina barbada, expulsa do castelo que tentou com grande esforço prestar seus serviços em duas aldeias, possui também o significado da busca. Veste-se em uma armadura de guerreiro e montada em seu cavalo, sai lutando de reino em reino, tornando-se o mais habilidoso vencedor entre todos os lutadores. Essa viagem pela floresta disfarçada em guerreiro marca um símbolo de superação. Isto representa uma escala de amadurecimento na vida da protagonista, que vence todas as provas até chegar o momento em que sua verdadeira identidade se revela quando está pronta como mulher. A aprendizagem individual da protagonista permite que ela entre no mundo desconhecido. Mas este mundo não é somente o da floresta em que ela luta como um guerreiro valente, é também o seu universo interior em que, transcende na escala subjetiva. É uma constante busca em se encontrar, deixando para trás a ingênua princesa do castelo e tornando-se uma mulher da floresta. A princesa de Entre a espada e a rosa transpõe os limites de sua condição e supera-os. Neste sentido, Vera Maria Tietzmann Silva ressalta que: “De toda a forma, transgredir limites é ação de teor iniciático, constitui um passo adiante no processo de maturação psicológica do transgressor” (SILVA, 2008, p. 61). Muitos contos de fadas tradicionais apresentam suas princesas como seres frágeis e ingênuos, que enclausuradas no castelo, só sairiam de lá, ao lado do esposo para habitar outro palácio. A princesa parece, ao sair do castelo, forçadamente, mostra sua coragem e assim é que enfrenta as dificuldades da floresta, oferecendo-se para trabalhar nas aldeias em troca de alimento, ao mesmo tempo em que tenta firmar sua independência. A superação para o limite dessa condição vem quando ela se torna um guerreiro e passando por diversos reinos, se torna imbatível nas batalhas. Assim, alastrava-se sua fama de guerreiro vencedor e com sua espada avante, ninguém mais recusava seus serviços. Mas, os rumores nos reinos em que passava eram constantes e a curiosidade de saber o motivo pelo qual o corajoso herói nunca tirava seus trajes de batalha, nunca dançava e cortejava as belas damas da corte levam a princesa a seguir o destino, partindo então, a cada amanhecer, temendo ser descoberta. Andando rumo ao desconhecido, a princesa bateu em outro reino, regido por um jovem rei. Um ao lado do outro vencem as mais difíceis batalhas. Mas intrigado e domado por um sentimento muito forte, diferente e jamais sentido por outro companheiro de batalha antes, o jovem rei ordena que seu amigo tire o elmo ou vá embora para sempre. Atormenta, no refúgio de seu quarto, a princesa se tortura porque o príncipe nunca poderia amá-la devido à barba ruiva. Chorando muito, adormeceu e ao acordar, percebe que há rosas no lugar da barba. Dia após dia, as pétalas caem, deixando, então, brotar, um lindo rosto de mulher. É chegado então o momento, do
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ápice do amadurecimento da protagonista. A seguinte passagem apresenta o desfecho do conto: Uma após a outra, as rosas murcharam, despetalando-se lentamente. Sem que nenhum botão viesse substituir as flores que se iam. Aos poucos, a rósea pele aparecia. Até que não houve mais flor alguma. Só um delicado rosto de mulher. Era chegado o quinto dia. A Princesa soltou os cabelos, trajou seu vestido cor de sangue. E, arrastando a cauda de veludo, desceu as escadarias que a levariam até o Rei, enquanto um perfume de rosas se espalhava no castelo (COLASANTI, 1992, p. 27).
Percebe-se que a jornada subjetiva da protagonista está concluída e o perfume das rosas é a magia dessa transformação, que brota dela mesma, do seu interior. Agora pronta para revelar sua verdadeira identidade, a princesa desce as escadas, mas o desfecho do conto fica em aberto, característica esta que a autora engendra em muitas de suas narrativas. O leitor (a) não sabe o que acontece depois, o novo final feliz, fica por conta da imaginação. Através disso, Marina Colasanti rompe com as características dos contos de fadas tradicionais, e cria o que ela mesma nomeia de “novos contos de fadas”. Sobre essa questão, Vera Maria Tietzmann Silva enfatiza que: Com relação à interferência de poderes sobrenaturais alterando o rumo das ações, nota-se que Marina Colasanti traz uma inovação de grande originalidade. Ela transfere a fonte geradora desse poder, que se situava na esfera externa (fadas, ogros, feiticeiros, objetos mágicos), para a esfera interna, para dentro do próprio protagonista. É quando ele convoca, não ser um superdotado (gênio, fada, feiticeiro), mas as forças que ele mesmo traz dentro de si. Quer dizer, o sobrenatural está contido nele mesmo, não acima dele, em outro plano. Exacerbadas pelo poder da vontade, as suas forças internas tornam-se sobrenaturais (SILVA, 2008, p. 78-79).
A análise de ambas as narrativas mostra personagens femininas fortes, que não se rendem à vontade de seus pais em escolher com quem se casariam. Com a mudança dos tempos, percebe-se que “em suma, a infância não é hoje (se é que alguma vez foi) um conceito estável” (HUNT, 2010, p. 94) e isso se concretiza, quando chega a adolescência. O final feliz dos contos de fadas tradicionais que culminam em um casamento e consequentemente numa formação familiar é desconstruído nas narrativas contemporâneas em que “novos finais felizes são buscados por autores contemporâneos na tentativa de compactuarem com novos valores” (BURLAMAQUE; WESCHENFELDER, 2010, p. 390).
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Percebe-se que a literatura produzida atualmente desmistifica a perfeição e coloca em questão o que as crianças e jovens são nos dias atuais: seres humanos espertos e conscientes, que sabem por si só o que desejam. Dessa forma, a jornada subjetiva de emancipação em que Merida e a protagonista do conto são submetidas, pode vir a contribuir para que muitos jovens lutem por suas ideias, opiniões e decisões.
REFERÊNCIAS BURLAMAQUE, Fabiane; WESCHENFELDER, Eládio. Ana Maria Machado: na trilha de Lobato. In: BURLAMAQUE, Fabiane Verardi; RÖSING, Tania Mariza. Atualizando a tradição: cânone e literatura para leitores de hoje. Passo Fundo: UPF Editora, 2010. p. 379-402. COLASANTI, Marina. Entre a espada e a rosa. Rio de Janeiro: Salamandra, 1992. CORSO, Diana. Sobre o filme “Valente”, aventuras da identidade feminina. Disponível em [http://www.marioedianacorso.com/ruiva-indomavel]. Acesso em: 17 ago. 2012. FORSTER, Edward Morgan. Aspectos do romance. Trad. Sérgio Alcides. 4. Ed. rev. São Paulo: Globo, 2005. HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. Trad. Lilia Goes. São Paulo: Cosac Naify, 2010. LHULIER, Luciana. Mãe ursa. Disponível em: [http://contesdesfee.wordpress.com/2012/08/17/mae-ursa/]. Acesso em: 22. Ago. 2012.
SILVA, Vera Maria Tietzmann. O universal e o local: raízes e frondes do imaginário infantil. In: SILVA, Vera Maria Tietzmann. Literatura infantil brasileira: um guia para professores e promotores de leitura. 2. ed. rev. Goiânia: Cânone Editorial, 2009. p.5367. Filme VALENTE (BRAVE). Direção Brenda Chapman, Katherine Sarafian e Mark Andrews. Roteiro de Brenda Chapman e Mark Andrews et al. EUA: Disney Pixar, 2012. (100 min).
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PROPOSTAS METODOLÓGICAS DE REVISÃO TEXTUAL‐INTERATIVA NO ENSINO DE PRODUÇÃO DE TEXTOS1 Denise Moreira Gasparotto (IFC-Videira) Renilson José Menegassi (UEM) 1. Considerações Iniciais O trabalho com a escrita em ambiente escolar é um desafio ao docente em todas as fases da aprendizagem. Preconizar um trabalho de escrita com foco na língua é ainda mais desafiador, pois significa concatenar atividades que vão desde a elaboração de uma unidade de ensino, a construção de um comando de produção até os processos de revisão e reescrita. Neste trabalho, discutimos sobre a prática docente de revisão de textos. Aliada ao processo de reescrita, a revisão é determinante para o desenvolvimento de habilidades discursivas escrita pelo aluno e pela consequente, qualidade da produção escrita. Ao destacar as propostas metodológicas de revisão textual cunhadas por Serafini (2004) e Ruiz (2010), atemo-nos à revisão textual-interativa, aprofundando a discussão sobre essa abordagem dialógica de colaboração ao texto do aluno. Assim, objetivamos compreender a amplitude do conceito de revisão textual-interativa e caracterizar estratégias específicas de
desenvolvimento
dessa
abordagem,
por
meio de
questionamentos, apontamentos e comentários. A análise é ancorada nas revisões de uma professora de Língua Portuguesa, ao desenvolver oficina de produção do gênero discursivo Conto de Terror para alunos de 4º e 5º anos do Ensino Fundamental. 2. Revisão textual docente O ato de escrever envolve etapas fundamentais, como o planejamento, a própria escrita, a leitura e a revisão, que não podem ser desconsiderados, especialmente quando Resultados parciais do Projeto de Pesquisa “Escrita e a formação de educadores de língua”, financiado pela Fundação Araucária do Paraná, [email protected]. 1
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se trata de escrita em situação de ensino (FIAD, 1991). Nessa perspectiva, Leal (2003) defende que é na interação contínua com a escrita, por meio de estratégias significativas que levem à compreensão do caráter dialógico da linguagem, que se aprende a escrever. Em consonância, Geraldi (2011) destaca que a produção textual na escola deve ser sempre a devolução da palavra ao sujeito. Assim, para compreender e colocar em prática o caráter social e processual próprios da concepção de escrita como trabalho, é imprescindível levar em conta os conceitos do Círculo de Bakhtin, como dialogismo, interação, palavra, interlocutor e responsividade. Dentre as atividades e estratégias metodológicas que levam à produção adequada de um texto, pode-se dizer que os processos de revisão e reescrita são os que mais evidenciam a interação e o papel ativo que devem exercer seus interlocutores. A revisão representa momento de troca, de negociação, de reflexão, seja entre professor e aluno ou entre o aluno e seu texto. A qualidade da reescrita está intrinsecamente ligada à efetividade da revisão. Ao discutir o trabalho docente de revisão textual, Menegassi (2013) destaca dois aspectos fundamentais da revisão no ensino: a) a revisão docente deve sempre orientar para a finalidade, para o interlocutor e para o gênero produzido; b) para além da avaliação, o professor deve assumir o papel de coprodutor, colaborando com o aprimoramento de texto por meio de seus comentários. Desse modo, antes de iniciar a revisão de um determinado gênero textual produzido por seus alunos, é imprescindível que o professor reflita sobre a finalidade e a metodologia desse processo. Ruiz (2010) elucida que, entre os conhecimentos necessários para o bom desempenho do aluno-revisor, está a compreensão dos comentários e apontamentos do professor. Por isso, “é enorme a responsabilidade do professor-corretor, pois de sua interpretação da redação a ser retextualizada dependerá a interpretação (leitura) que o aluno fará dessa mesma redação e, portanto, grande parte do próprio processo de retextualização (revisão)” (RUIZ, 2010, p. 26). Menegassi (2000) também pontua a relevância da construção da revisão pelo professor, afirmando que os comentários podem tanto auxiliar como dificultar a trabalho de reescrita pelo aluno. Nesse sentido, fica evidente o papel significativo da interação no processo de revisão e reescrita de textos. É pela interação, neste caso ocorrendo por meio do texto,
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que se constroem significados, que se lê e se devolve a palavra ao outro, num trabalho coparticipativo (GERALDI, 2001). No campo da Linguística Aplicada, têm-se duas pesquisadoras que muito contribuíram para a compreensão do trabalho docente de revisão textual. Serafini (2004) apontou propostas de revisão para aspectos mais estruturais do texto. A autora caracterizou três abordagens de correção, que chamou de resolutiva, indicativa e classificatória, A partir de seus estudos, outras pesquisas passaram a enfocar metodologias de trabalho que auxiliassem de maneira prática a ação do professor. Ruiz (2010) ancorou-se nos estudos de Serafini (2004) e apresentou a revisão textualinterativa, buscando suprir aspectos que ainda não haviam sido contemplados em pesquisas. A revisão textual-interativa veio como proposta para ir além dos aspectos estruturais e passar a incorporar, na revisão, elementos globais, relacionados ao conteúdo do texto, à construção discursiva. Ao propor a abordagem textual-interativa de revisão, Ruiz (2010) não se contrapõe à proposta de Serafini (2004). A autora salienta que há problemas que não demandam bilhetes interativos, porém, muitas vezes, as intervenções resolutivas, indicativas e classificatórias podem não ser satisfatórias. Nesses casos, a correção textual-interativa parece ser mais elucidativa, pois seu objetivo é a construção de um bilhete, que pode alocar-se no corpo, margem ou após o texto, para conversar sobre o texto do aluno. Essa troca de „bilhetes‟ nada mais é do que a expressão máxima da dialogia (BAKHTIN, 1997) constitutiva desse modo especial de correção não codificada. É, pois, a marca por excelência do diálogo – altamente produtivo – entre esses sujeitos que tornam o texto e o trabalho com o texto por objeto de discurso. (RUIZ, 2010, p. 50)
Assim, a proposta de Ruiz é uma correção que vai além das intervenções tradicionais presas especificamente às normas, é uma busca pelo aprimoramento da interação entre professor e aluno, reiterando o papel colaborador do professor em detrimento da figura de avaliador. Para a autora, a mensagem implícita em qualquer correção textual-interativa deve ser: “reflita sobre o que você disse sobre como disse e
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apresente uma alternativa” (RUIZ, 2010, p. 159). Portanto, no lugar de respostas prontas, promove-se a reflexão sobre o próprio discurso. Essa
discussão
apresenta
duas
pesquisas
com
diferentes
vertentes
epistemológicas, mas que caminham em uma única direção: contribuir para o trabalho docente de revisão textual. Na proposta de Serafini (2004), têm-se alternativas para corrigir aspectos mais locais do texto, resolvendo o problema, indicando onde ele está, ou classificando sua natureza. Já em Ruiz (2010), tem-se uma proposta dialógica, pensando na promoção da autonomia do sujeito autor, por meio da apresentação de bilhetes tratem, sobretudo, dos problemas globais do texto, podendo também incentivar o aluno ou elogiar por aspectos bem desenvolvidos. A abordagem de Ruiz (2010) vem ao encontro da concepção de escrita como trabalho e enaltece a relevância dos processos de revisão e reescrita para o desenvolvimento de habilidades linguístico-discursivas pelo aluno. Por se tratar de uma proposta bastante ampla, pretende-se, aqui, aprofundar os estudos sobre ela, caracterizando alternativas metodológicas específicas de correção textual-interativa, com intuito de instrumentalizar ainda mais o professor para este trabalho tão árduo e desafiador. 3. Metodologias de revisão textual-interativa Um aspecto relevante que levou à organização do presente trabalho foi a constatação do fato de que o professor deixar um bilhete no texto do aluno não significa que este tenha promovido maior interação do que uma correção resolutiva, por exemplo. Isto é, a questão instaura-se não somente na decisão por deixar um bilhete sobre problemas globais do texto do aluno, mas de como fazê-lo, para que cumpra seu papel mediador e efetivamente contribua para o trabalho de reescrita. Nascimento (2013) analisou o impacto dos bilhetes orientadores na aprendizagem de gêneros textuais escritos. Para a pesquisadora, esses bilhetes são gênero catalisadores (SIGNORINI, 2006), pois favorecem o desencadeamento de ações produtivas para o processo de formação do discurso. Foram analisados relatórios de experiências de alunos do 5º ano do Ensino Fundamental e os bilhetes de revisão foram todos escritos pela pesquisadora, que fez uma parceria com a professora da turma. Os
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resultados apontaram, dentre outros aspectos, que o uso de bilhetes orientadores aliado ao trabalho de reescrita contribui para a reflexão pelo aluno sobre seu próprio texto e contribui para a aprendizagem de práticas de escrita. O estudo de Nascimento (2013) ratifica a necessidade de se analisar mais a fundo a construção da correção pela abordagem textual-interativa, a fim de que seu uso possa estabelecer interação significativa com o aluno. No presente trabalho, foi analisado o conjunto de revisões feitas por uma docente de Língua Portuguesa de 4º e 5º anos do Ensino Fundamental I, ao trabalhar uma oficina de produção do gênero discursivo Conto de Terror. A professora utilizou correções resolutivas, classificatórias, indicativas e textual-interativas, porém, para atender ao objetivo deste estudo, são enfocadas apenas as correções textual-interativas. A análise dessas intervenções de revisão mostrou que a correção textualinterativa pode ser abordada de diferentes maneiras, sendo mais ou menos elucidativa e atendendo a diferentes aspectos: ao objetivo do professor por meio do bilhete; ao problema textual em questão, à idade escolar do aluno e às especificidades próprias do aluno-autor. O conjunto de revisões da docente mostrou três formas de correção textualinterativa: o questionamento, o apontamento e o comentário. Embora sejam todos bilhetes textuais, no que propõe Ruiz (2010), cada um apresentou uma forma particular de construção, atendendo ao objetivo a sua finalidade de produção. Tem-se, desse modo, ancorando-se em Bakhtin (2009), variações dentro de um mesmo gênero, isto é, a relativa instabilidade do bilhete de revisão permite que este seja adequado ao contexto imediato. A seguir, a caracterização dessas escolhas metodológicas: QUESTIONAMENTO: ao procurar chamar a atenção do aluno para um problema identificado no texto, apresentam-se questionamentos no sentido de instigar o aluno a acrescentar informações no texto ou refletir sobre algo que havia escrito. Os questionamentos, em geral, referem-se ao acréscimo de informações e alocam-se no corpo do texto. Quem é esse menino? Qual o nome dele? Que barulho é esse que João ouviu? Como ele descobriu? Como termina a história?
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APONTAMENTO: comumente introduzido por verbos no imperativo. Trata-se de uma frase breve que aponta a existência de um problema e, por vezes, indica o que o aluno deve fazer. Continue a história.
Melhore o final de sua história. Fala dos personagens devem ter parágrafo e travessão. Coloque parágrafo e travessão na fala dos personagens.
Como se nota, no apontamento, a preocupação maior é informar sobre o problema. Não há vocativos, elogios ou maiores orientações que complementem esse modo de revisão textual-interativa. COMENTÁRIO: abordagem de correção mais completa. Um comentário pode contar questionamentos e apontamentos. É uma abordagem em que o professor interage mais com o aluno, dialogando sobre o texto produzido, dando sugestões, motivando etc. Como se trata se uma tentativa de diálogo, os comentários podem abordar problemas distintos do texto, sendo que o mesmo comentário pode orientar sobre mais de um problema do texto. Por suas características, o comentário tende a ser mais elucidativo e, portanto, mais compreensível ao aluno. Ana, seu texto está confuso. A Maria Joaquina foi atrás dos bandidos? Por quê? Ela foi sequestrada?
Ayslan, leia seu texto e coloque os sinais de pontuação, termine as frases com ponto, recomece com letra maiúscula e use travessão na fala dos personagens. Carlos, preste atenção no seu texto, você escreveu algumas palavras erradas que deixaram o texto confuso. Acredito que você pode melhorar seu texto. Bom trabalho! Caique, conte mais sobre o que o menino e o vampiro fizeram no castelo dos monstros. Por que todos sumiram? Para onde foram? Estou curiosa para saber...
A seguir, analisam-se as ocorrências de cada uma dessas propostas e a efetividade delas para o trabalho com a escrita. No exemplo de questionamento, a seguir, o texto apresenta uma ruptura na sequência narrativa. No enredo, o filho pede ao pai para voltarem a um hotel onde haviam se hospedado certa vez. O pai promete ao filho que voltariam ao local no
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período de férias. No parágrafo apresentado, pai e filho chegam ao hotel, mas a história termina quando eles entram no quarto e a porta bate.
Como se nota, o conto não apresenta desfecho. O questionamento da professora é utilizado para motivar o aluno a terminar sua narrativa. Nesse caso, a professora poderia ter deixado um apontamento, como “termine a história”, contudo, o seu questionamento demonstra um interesse de leitor de saber como termina a história. Esse recurso pode ter motivado o aluno no trabalho de reescrita, como se observa na sequência.
A reescrita mostra que o questionamento da docente foi adequado ao objetivo da revisão, pois a resposta do aluno se materializa na conclusão que ele dá à narrativa, dizendo que ao ouvirem a porta bater, pai e filho imaginaram ser um fantasma e depois confirmaram que era o fantasma do dono do hotel que morrera há meses. Outro enfoque bastante pertinente para o uso de questionamentos é quando o texto apresenta problemas com referentes. Observe o excerto:
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Nesse conto, uma aluna narra sua aventura com suas amigas de escola. Depois de narrá-la, ela afirma: “no outro dia fomos contar para eles”. Como no texto não há referente determinado para o pronome “eles”, a professora deixa um questionamento na margem do parágrafo perguntado a quem elas haviam contado sobre o acontecido. Aqui, fica evidente o cuidado da docente em adequar seu bilhete à idade escolar da aluna. Nesse caso, não seria viável colocar um comentário altamente explicativo, dizendo à aluna que ela escreveu o pronome, mas que na leitura do texto não era possível identificar seu referente. Como se trata de uma criança do 5º ano do Ensino Fundamental, o questionamento, ainda que mais breve, torna-se mais elucidativo e compreensível à aluna. A prova disso é a resposta por meio da versão reescrita: “No outro dia nos contamos para os outros amigos da escola e eles não acreditaram”. Quanto ao apontamento, foi possível notar que são asserções bastante objetivas. O foco é informar ou orientar sobre um problema apresentado no texto, não havendo espaço elogios ou reflexões. Ainda assim, o apontamento mostrou ser uma alternativa de correção textual-interativa bastante eficaz se adequado ao nível de compreensão do aluno. No exemplo a seguir, o aluno apresenta uma narrativa com problemas em sua composição. Há várias falas diretas de personagens, mas não há pontuação adequada para isso.
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O apontamento da professora apenas recorda ao aluno de que a fala dos personagens deve vir acompanhada pelo travessão. Como não há exemplo de como isso deve ser feito ou um sinal mostrando como é o travessão, o apontamento da docente considera um conhecimento prévio do aluno acerca da pontuação de textos narrativos. Por isso, ela dispensa melhores explicações.
A reescrita aponta que o aluno realmente conhecia a pontuação da narrativa. Apenas não havia atentado para isso no momento da produção. Portanto, mesmo um apontamento breve e direto pode levar a um alto nível de interação entre professor e aluno e entre aluno e texto, desde que atenda às especificidades do contexto imediato. No tocante aos comentários, vimos que se trata da abordagem mais completa de revisão textual-interativa. O comentário engloba o apontamento e o questionamento e ainda apresenta maior interação. A seguir, apresenta-se um texto com problemas de conjugação verbal.
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O aluno redige todo o conto com verbos no presente. Além de sublinhar e marcar com asterisco os verbos que devem ser corrigidos, a professora deixa um comentário bastante explicativo que chama a atenção por alertar não somente para o problema do texto, mas também para a utilização dos verbos de ação nos gêneros narrativos em geral. O comentário objetiva que o aluno proceda adequadamente à reescrita, mas que compreenda porque aquela reformulação é necessária, contribuindo assim para a assimilação do gênero produzido. Na reescrita, o aluno consegue corrigir a maioria dos verbos que apresentaram inadequação.
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As marcações retangulares indicam as reformulações adequadas dos verbos que haviam sido marcados com asterisco. O círculo indica um verbo que não foi corrigido pelo aluno e os dois verbos sublinhados são reformulações que o aluno percebeu que seriam necessárias por ter compreendido o comentário da docente. Esses dois últimos verbos não foram sublinhados nem marcados com asterisco na primeira versão, mas a completude do comentário da docente levou o aluno à compreensão de outras reformulações, o que aponta uma reflexão sobre o problema abordado. Embora o comentário seja mais explicativo, não se pode afirmar que ele seja sempre mais adequado do que o apontamento e o questionamento, ou que seu caráter explicativo o fará sempre compreensível ao aluno. Em um dos textos analisados, o aluno não utilizou bem os sinais de pontuação. Para tanto, a docente deixou o seguinte comentário:
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Trata-se de um comentário bastante completo, mas que considera o conhecimento prévio do aluno acerca dos sinais de pontuação. Na reescrita, é possível notar que o aluno compreendeu o comentário, mas o pouco conhecimento acerca da pontuação não garantiu uma reescrita satisfatória.
O aluno utiliza pontos no meio do parágrafo, mas ao tentar corrigir a pontuação para fala de personagens utiliza pontos de exclamação no lugar do travessão. O comentário não foi suficiente para uma boa reescrita, porém ajudou a diagnosticar uma dificuldade apresentada pelo aluno, o que não seria possível se a professora tivesse feito correções resolutivas, deixando a reposta pronta para o aluno passar a limpo. 4. Considerações finais As propostas metodológicas apresentadas mostraram que o apontamento, o questionamento e o comentário são abordagens pertinentes de correção textualinterativa. A efetividade no uso dessas abordagens está relacionada a sua adequação ao gênero enfocado, ao aspecto do gênero, à idade escolar do aluno, ao objetivo do
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professor por meio da revisão e a possíveis especificidades do nível de aprendizagem do aluno. Desse modo, as escolhas metodológicas do professor no tocante às abordagens e aspectos relacionados podem gerar diferentes níveis de interação, desde professor-aluno até aluno e seu próprio discurso. Referências BAKHTIN, M. M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12ª ed. São Paulo: Hucitec, 2010. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4ª ed., São Paulo, Martins Fontes, 2009. FIAD, R. S.; MAYRINK-SABINSON, Maria L. T. A escrita como trabalho. Contexto: 1991. GERALDI, J. W. Da redação à produção de textos. In: GERALDI, J. W.; CITELLI, B. (orgs.) Aprender e ensinar com textos de alunos. Vol. I. São Paulo: Cortez, 2001, p. 17-23. LEAL, L. de F. V. A formação do produtor de texto escrito na escola: uma análise das relações entre os processos interlocutivos e os processos de ensino. In: M. das G. Costa Val (org.) Reflexões sobre práticas escolares de produção de texto. Belo Horizonte: Autêntica/CEALE/FaE/UFMG, 2003. MENEGASSI, R. J. Comentários de revisão na reescritura de textos: componentes básicos. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas: n 35,p. 84-93, 2000. ______. A revisão de textos na formação docente inicial. In: GONÇALVES, A. V.; BAZARIM, M. Interação, gêneros e letramento: a (re)escrita em foco. 2. ed. Campinas: Pontes, 2013. NASCIMENTO, C. L. Os bilhetes orientadores da reescrita e a aprendizagem do gênero relatório de experiência. In: GONÇALVES, A. V.; BAZARIM, M. Interação, gêneros e letramento: a (re)escrita em foco. 2. ed. Campinas: Pontes, 2013. RUIZ, E. D. Como corrigir redações na escola. São Paulo, Contexto, 2010. SERAFINI, M. T. Como escrever textos. Trad. Maria Augusta de Matos; Adap. Ana Maria Marcondes Garcia. 12ª ed., São Paulo, Globo, 2004.
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AS DIRETRIZES CURRICULARES ESTADUAIS, OS LIVROS DIDÁTICOS E O ENSINO DA LITERATURA NAS ESCOLAS PARANAENSES Donizeth Santos (FATEB) Nas últimas décadas, o ensino de literatura tem sido alvo de inúmeras críticas em relação à ineficiência de seus métodos. Parece que há uma unanimidade na afirmação corrente de que a “literatura é mal ensinada na escola”. As metodologias adotadas pelos professores e o sistema formal de ensino da escola não estão conseguindo conduzir de maneira eficiente o ensino da literatura. Nesse sentido, Santa Inês Pavinato Caetano (2001, p. 97) não hesita em afirmar que “o ensino da literatura é considerado um problema crítico dos currículos escolares brasileiros.” Sobre essa relação tensa e desequilibrada entre escola e literatura, Edmir Perroti (1990) observa que elas nunca foram fáceis pelo fato de a escola ser pragmática e estar voltada à transmissão do saber acumulado. O pragmatismo também aparece como vilão nas críticas de outros autores, transformando-se no principal motivo do fracasso no ensino da literatura, devido a escola privilegiá-lo em vez de priorizar a fruição literária, que procura despertar o gosto pela leitura. Nesse sentido, segundo Edmir Perroti (1990, p. 16), “... o problema específico – e talvez mais difícil – da literatura na escola é da fruição literária – ou não – dentro ou a partir da sala de aula, dada a existência da mencionada tensão permanente entre a natureza do processo escolar e do processo de fruição estética. A opinião de Regina Zilberman vai ao encontro da observação feita por Edmir Perroti: Compete ao ensino da literatura não mais a transmissão de um patrimônio já constituído e consagrado, mas a responsabilidade pela formação do leitor. (...) Raramente a escola se preocupa com a formação do leitor. Seu objetivo principal consiste na assimilação, pelo aluno, da tradição literária, patrimônio que ele recebe pronto e cujas qualidades e importância precisa aceitar e repetir. Supõe-se que atingida essa meta, o estudante transforme-se num apreciador da literatura e saiba escolher com segurança os melhores livros (ZILBERMAN, 1990, p.49)
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Neusa Ceciliato de Carvalho também tece suas críticas à metodologia de ensino da literatura no Brasil: ... o aluno lê para analisar personagens, o tempo, o espaço, o narrador, ou a rima, o ritmo, as figuras de linguagem do poema; ou, o que é mais comum, lê para fazer um resumo da obra. Ou, ainda, lê para fins gramaticais. Em todos os casos, a leitura tem sempre um fim pragmático: responder às perguntas objetivas dos encartes dos livros. (CARVALHO, 1997, p. 9)
Dessa forma, o ensino da literatura se transformou na leitura literária com finalidade pragmática, finalidade que se tornou mais importante que a própria atividade de leitura. O que importa são as atividades que o aluno vai desenvolver após a leitura, ou o conhecimento da história da literatura que vai adquirir por meio do estudo das principais obras e autores e do momento histórico dos períodos literários. Até mesmo os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa para o Ensino Médio (1998, p. 137) reconhecem que a “a história da literatura costuma ser o foco da compreensão do texto, uma história que nem sempre corresponde ao texto que lhe serve de exemplo”. Desse modo, a escola, ao optar pela leitura pragmática, abre mão do diálogo entre o aluno (leitor), a obra e o professor (mediador), e não deixa nenhum espaço para a fruição literária: leitura prazerosa, desinteressada e despreocupada de avaliações, e comprometida apenas com a emoção estética do texto. E isso tudo faz com que a escola, em vez de formar leitores, que deveria ser seu principal objetivo, alcance resultado inverso, afastando o aluno da obra literária. Vejamos a observação de Vera Aguiar sobre a questão: Do ponto de vista da formação do leitor, deve-se estar atento para a distância existente entre o conhecedor e o consumidor de literatura. Na verdade, a escola preocupa-se em transmitir ensinamento sobre a literatura e não ensina a ler. A educação formal tem por objetivo repassar dados sobre a história dos autores e das obras, cobrar exercícios de análise de textos para emissão de juízos, buscando fazer de todo leitor um conhecedor de literatura. O resultado, em nosso contexto, é o fracasso: o aluno não se torna um especialista nem se converte em leitor. (AGUIAR, 1996, p. 25)
A questão exposta acima, bem como as observações contidas nas citações anteriores, refletem o estado crítico a que chegou o ensino da literatura nas escolas brasileiras.
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A Secretaria de Educação do Estado do Paraná, ciente dos problemas que envolvem o ensino da literatura, tem sugerido, desde 2008, nos Fundamentos Teóricometodológicos das Diretrizes Curriculares da Educação Básica para o Ensino da Língua Portuguesa, “que o ensino da literatura seja pensado a partir dos pressupostos teóricos da Estética da Recepção e da Teoria do Efeito” (DCEs, 2008, p.58), teorias que reivindicaram o reconhecimento da importância do papel do leitor no processo de leitura literária. ... sugere-se, nestas Diretrizes, que o ensino da literatura seja pensado a partir dos pressupostos teóricos da Estética da Recepção e da Teoria do Efeito, visto que essas teorias buscam formar um leitor capaz de sentir e de expressar o que sentiu, com condições de reconhecer, nas aulas de literatura, um envolvimento de subjetividades que se expressam pela tríade obra/autor/leitor, por meio de uma interação que está presente na prática de leitura. (DCEs, 2008, p. 58) A Estética da Recepção, formulada pelo alemão Hans Robert Jauss (1994) nos anos 60, chama a atenção para o fato de que o leitor, no ato da leitura, dialoga com o texto literário, atualizando-o, independentemente da distância cronológica que há entre o momento da criação e o momento da leitura, sendo que o elemento que o instrumentaliza para isso é o seu conhecimento prévio. Nesse sentido, Jauss elege o leitor como o responsável pela atualização da obra literária, dando-lhe um papel tão importante quanto o do autor, pois caberia a ele/leitor dar vida a ela/obra literária no momento da leitura. Nas palavras do teórico: A obra literária não é um objeto que exista por si só, oferecendo a cada observador em cada época um mesmo aspecto. Não se trata de um monumento a revelar monologicamente seu ser atemporal. Ela é, antes, como uma partitura voltada para a ressonância sempre renovada da leitura, libertando o texto da matéria das palavras e conferindo-lhe existência atual. (JAUSS, 1994, p. 25)
Dessa forma, para Jauss, a leitura de uma obra literária é um grande diálogo entre leitor, texto e autor. Nesse diálogo, ambos podem identificar-se ou estranhar-se. É o que ele denomina de “distância estética“, ou seja, a diferença que há entre o horizonte de expectativas do leitor (seus conhecimentos prévios) e a obra. Assim, quando uma obra literária traz um conhecimento novo ao leitor, ao mesmo tempo em que há uma ampliação do seu horizonte de expectativas, há também uma valorização do texto lido,
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pois “uma obra [só] é perene enquanto consegue continuar contribuindo para o alargamento dos horizontes de expectativas de sucessivas épocas.” (BORDINI, AGUIAR, 1993, p. 85-86). Em consonância com a Estética da Recepção está a Teoria do Efeito, formulada por Wolfgang Iser (1996). Nesta teoria, Iser concebe os conceitos de leitor implícito, estruturas de apelo e vazios do texto. Para ele, o leitor implícito é uma estrutura do texto que antecipa a presença do receptor. Nesse sentido, no momento da escrita literária o autor faz uma previsão do seu interlocutor, o elemento que será responsável pela vida do seu texto. O leitor implícito é um leitor idealizado. Quanto às estruturas de apelo e vazios do texto, para Iser, todo texto literário possui pistas que orientam o leitor para uma leitura coerente (estruturas de apelo), ao mesmo tempo em que deixa lacunas (vazios do texto) que devem ser preenchidas pelo conhecimento prévio do leitor. Para a viabilização da utilização dessas duas teorias, é sugerido, nos Encaminhamentos Metodológicos das DCEs, o Método Recepcional de Ensino da Literatura, concebido pelas as professoras Maria da Glória Bordini e Vera Teixeira de Aguiar (1993), como metodologia adequada para o trabalho de ensino da literatura nas escolas paranaenses. Partindo dos pressupostos teóricos apresentados na Estética da Recepção e na Teoria do Efeito, as professoras Maria da Glória Bordini e Vera Teixeira de Aguiar elaboram o Método Recepcional, o qual é sugerido, nestas Diretrizes, como encaminhamento metodológico para o trabalho com a Literatura. Optou-se por esse encaminhamento devido ao papel que se atribui ao leitor, uma vez que este é visto como um sujeito ativo no processo de leitura, tendo voz em seu contexto. Além disso, esse método proporciona momentos de debates, reflexões sobre a obra lida, possibilitando ao aluno a ampliação dos seus horizontes de expectativas. (DCEs, 2008, p. 74).
O Método Recepcional parte de leituras próximas do cotidiano do aluno, leituras que fazem parte do seu horizonte de expectativas e, de forma gradativa, vão sendo oferecidas outras leituras, com um grau de dificuldade maior, que por sua vez vão lhe possibilitar a ruptura, o questionamento e a ampliação do seu horizonte de expectativas, pois,
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O leitor possui um horizonte que o limita, mas que pode transformarse continuamente, abrindo-se. Esse horizonte é o do mundo de sua vida, com tudo que o povoa: vivências pessoais, culturais, sóciohistóricas e normas filosóficas, religiosas, estéticas, jurídicas, ideológicas, que orientam ou explicam tais vivências. (BORDINI, AGUIAR, 1993, p. 87)
Para a aplicação do Método Recepcional em sala de aula, é necessário obedecer cinco etapas: 1) Determinação do horizonte de expectativas Nesta etapa, o professor deve identificar qual é o horizonte de expectativas da turma, ou seja, verificar qual o tipo de leitura pode agradar aos seus alunos. Para isso, ele deve observar o comportamento dos alunos em relação a leituras realizadas anteriormente, provocar discussões sobre o assunto para que eles se manifestem sobre suas predileções, realizar entrevistas ou questionários ou ainda verificar. na movimentação de títulos da biblioteca, quais obras são mais procuradas por eles. 2) Atendimento do horizonte de expectativas Uma vez identificado o horizonte de expectativas da turma, o passo seguinte é oferecer a leitura de uma obra literária que atenda esse horizonte e que possa satisfazer essa necessidade em relação ao objeto (que os textos escolhidos correspondam ao esperado) e às estratégias de ensino, que devem ser organizadas “a partir de procedimentos conhecidos dos alunos e de seu agrado” (BORDINI, AGUIAR, 1993, p. 88). Nesta etapa, segundo Bordini e Aguiar, o professor deve oferecer textos cuja temática e composição sejam bastante procuradas pelos alunos, seja na literatura ou em outros meios de expressão como música, televisão, histórias em quadrinhos ou histórias folclóricas. 3) Ruptura do horizonte de expectativas Para o rompimento do horizonte de expectativas dos alunos, é necessário que o professor ofereça a eles textos literários que apresentem maiores dificuldades de leitura do que os anteriores, embora sejam semelhantes a estes em pelo menos num aspecto, seja na temática, tratamento ou linguagem. 4) Questionamento do horizonte de expectativas
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O questionamento do horizonte de expectativas é o resultado da comparação das atividades de leitura realizadas nas etapas de “atendimento do horizonte de expectativas” e “ruptura do horizonte de expectativas”. 5) Ampliação do horizonte de expectativas Após a reflexão sobre as etapas anteriores, há uma tomada de consciência pelos alunos de que as leituras realizadas não são apenas tarefas escolares, mas também ajudam na ampliação de sua visão de mundo e, dessa forma, a literatura pode trazer uma grande contribuição intelectual para o desenvolvimento do indivíduo. Com os alunos mais conscientes sobre a importância do processo de leitura literária e do quanto isso é importante para o desenvolvimento intelectual, o professor oferece, a seguir, a leitura de uma obra literária muito mais complexa que as anteriores, que por sua vez possibilitará o reinício de todo o processo do método, enriquecido com a participação ativa dos alunos. Desse modo, o Método Recepcional, sugerido pelas DCEs do Estado do Paraná para o ensino da literatura, é um método de ensino que visa, acima de tudo, a formação do leitor e não a acumulação de conhecimentos literários, que, na maioria das vezes, desestimula em vez de estimular o aluno-leitor. No entanto, um problema se faz presente na adoção do Método Recepcional pelos professores paranaenses para o ensino da literatura no Ensino Médio: os livros didáticos disponibilizados pelo Governo Federal, por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), para a escolha das escolas são incompatíveis com um método de ensino de literatura focado no leitor, pelo fato de eles ainda serem estruturados com base na abordagem histórica da literatura, com enfoque nos períodos literários. Tomemos, para exemplificação, a coleção Novas palavras, de Emília Amaral, Mauro Ferreira do Patrocínio, Ricardo Silva Leite e Severino Antônio Moreira Barbosa, edição de 2010 da Editora FTD, utilizada por oito das treze escolas públicas estaduais que ofertam o ensino médio no município de Telêmaco Borba, Estado do Paraná. Os três volumes que compõem a coleção são estruturados em três partes: 1) Literatura; 2) Gramática; e 3) Redação e Leitura. A primeira parte, dedicada à Literatura, apresenta-se com a seguinte divisão em capítulos:
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Volume 1: 1) Literatura: a arte da palavra; 2) O texto literário; 3) O Trovadorismo; 4) O Humanismo; 5) Renascimento; 6) Quinhentismo brasileiro; 7) O Barroco português; 8) O Barroco brasileiro; 9) O Neoclassicismo português; 10) O Neoclassicismo brasileiro. Volume 2: 1) O Romantismo em Portugal; 2) O Romantismo no Brasil; 3) A prosa romântica brasileira; 4) O Realismo e o Naturalismo em Portugal; 5) O Realismo e o Naturalismo no Brasil; 6) O Realismo psicológico de Machado de Assis; 7) O Parnasianismo no Brasil; 8) O Simbolismo em Portugal; 9) O Simbolismo no Brasil. Volume 3: 1) O Pré-modernismo no Brasil; 2) As vanguardas artísticas europeias e o Modernismo no Brasil; 3) Semana de Arte Moderna; 4) A primeira geração modernista brasileira; 5) O Modernismo em Portugal e a poesia de Fernando Pessoa; 6) A segunda geração modernista brasileira: poesia; 7) A segunda geração modernista brasileira: prosa; 8) A terceira geração modernista brasileira; 9) Tendências contemporâneas da literatura portuguesa; 10) Tendências contemporâneas da literatura brasileira. Todos esses capítulos, com exceção dos dois primeiros do Volume 1, apresentam uma estrutura comum, com pequenas variações de capítulo para capítulo. Em geral, há uma: 1) primeira leitura, que serve de introdução à escola literária; 2) um pouco de história, onde aborda-se o contexto histórico de produção; 3) definição e as características da escola literária; 4) biografia dos principais autores; 5) leitura de fragmentos dos principais textos do período; 6) síntese dos conteúdos estudados; e 7) atividades. Peguemos, como exemplo, o décimo capítulo do Volume 1 (O Neoclassicismo brasileiro). Este capítulo é estruturado da seguinte forma: 1) Primeira leitura: sonetos de Cláudio Manuel da Costa acompanhados de um verbete sobre o autor e de um pequeno glossário para cada um dos dois poemas para facilitar a leitura. Seguem-se as sessões relacionadas, “Em tom de conversa”, com sugestões para a discussão dos poemas lidos; “Releitura”, com perguntas interpretativas; e “Comentário”, com observações dos autores do livro. 2) Um pouco de história: apresenta o contexto histórico do Brasil do século XVIII, onde surge o Arcadismo ou Neoclassicismo brasileiro.
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3) O Barroco mineiro: esclarece ao aluno que o Barroco mineiro, representado principalmente pela figura de Aleijadinho, é um barroco tardio, que surge somente no século XVIII e por isso é contemporâneo ao Neoclassicismo. 4) Leitura de imagem: apresenta imagens de igrejas barrocas mineiras, esculturas e pinturas dos artistas plásticos Antonio Francisco Lisboa (Aleijadinho) e Manuel da Costa Ataíde, acompanhados de um verbete sobre cada um deles. 5) Leitura: de um poema de Fernando Paixão (escrito em 1984) em homenagem a Aleijadinho, seguido da sessão “Releitura”, com perguntas interpretativas. 6) As características do Neoclassicismo no Brasil, acompanhadas de uma cronologia do período. 7) A poesia lírica: apresenta um breve comentário sobre Claudio Manuel da Costa, o iniciador do Neoclassicismo brasileiro, acompanhado da citação de suas principais obras (Obras poéticas e Vila Rica); e também sobre Tomás Antônio Gonzaga, enfocando, principalmente a relação dele com a adolescente Maria Doroteia Joaquina de Seixas, inspiradora do poema Marília de Dirceu. Também apresenta a citação de suas principais obras (Marília de Dirceu e Cartas chilenas), seguida de um comentário sobre a autoria de Cartas chilenas, e sobre as características e a estrutura de Marília de Dirceu. 8) Leitura: fragmentos de liras de Tomás Antônio Gonzaga. São apresentados fragmentos das liras XXXIV e LXXXI do poema Marília de Dirceu, seguidos das sessões “Releitura”, com perguntas interpretativas das duas liras; e “Comentário”, com observações dos autores do livro sobre o poema. 9) A poesia épica: cita os três poemas épicos do período Neoclássico: Vila Rica, de Claudio Manuel da Costa, O Uraguai, de José Basílio da Gama, e Caramuru, de Frei José de Santa Rita Durão, apresentando comentários e leitura de fragmentos de Uraguai I (A morte de Lindoia) e Caramuru. Uraguai é contemplado com uma sessão de “Releitura” com perguntas interpretativas, mas não há verbete bibliográfico sobre o autor, ao contrário de Caramuru, que apresenta verbete sobre o autor, mas não há sessão de “Releitura”. 10) Síntese dos conteúdos estudados: uma síntese dos pontos mais importantes do Neoclassicismo brasileiro, conforme a visão dos autores do livro.
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11) Atividades: apresenta a leitura de um soneto de Cláudio Manuel da Costa para o aluno responder às questões de 1 a 4, permeadas por um fragmento de “Confidência do itabirano”, de Carlos Drummond de Andrade, com o qual os autores sugerem um diálogo do soneto neoclássico. Depois são apresentados dois fragmentos de Marília de Dirceu para responder à questão 5, e um fragmento de um texto crítico de Sonia Salomão Khéde sobre Cláudio Manuel da Costa, que contém uma quadra de um soneto do poeta, cuja leitura e interpretação é necessária para responder às questões 6, 7 e 8. A própria estrutura do livro, cujos títulos dos capítulos são nomes de escolas ou períodos literários (com exceção dos dois primeiros capítulos do Volume 1), já deixa claro que o ensino da literatura se dá pelo método tradicional de ensino da história literária, de forma enciclopédica, com a abordagem do contexto histórico, características do período, vida e obra dos principais autores e fragmentos das principais obras. Não é preciso dizer que esse tipo de abordagem de ensino, orientado “para a exposição e explicação teórica do tema e não para a prática de leitura literária” (JURADO; ROJO, 2006, p. 47) inviabiliza qualquer tentativa dos professores de trabalhar com o Método Recepcional no Ensino Médio, conforme sugestão das DCEs, que pregam que tanto no nível Fundamental quanto no Médio, o ensino da literatura deve “partir do mesmo ponto: o aluno é o leitor” (DCEs, 2008, p. 75). Para a aplicação deste método, o professor precisa ponderar as diferenças entre o Ensino Fundamental e o Ensino Médio. No Ensino Médio, além do gosto pela leitura, há a preocupação, por parte do professor, em garantir o estudo das Escolas Literárias. Contudo, ambos os níveis devem partir do mesmo ponto: o aluno é o leitor, e como leitor é ele quem atribui significados ao que lê, é ele quem traz vida ao que lê, de acordo com seus conhecimentos prévios, linguísticos, de mundo. Assim, o docente deve partir da recepção dos alunos para, depois de ouvidos, aprofundar a leitura e ampliar os horizontes de expectativas dos alunos. (...) O professor não ficará preso à linha do tempo da historiografia, mas fará a análise contextualizada da obra, no momento de sua produção e no momento de sua recepção (historicidade). (DCEs, 2008, p. 75-77)
Da maneira como a coleção Novas palavras foi estruturada, não há outra alternativa ao professor que a utiliza senão ensinar a história da literatura. A não ser que ele chegue ao extremo de se abdicar do livro didático para as suas aulas. Dessa forma, a
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nosso ver, o livro didático analisado não possibilita aos professores aplicar o Método Recepcional ou trabalhar a leitura literária integral, pelo fato de que apresenta uma estrutura rígida que deve ser seguida para dar conta dos conteúdos a serem ensinados. Mesmo nos capítulos introdutórios do Volume 1, "Literatura: a arte da palavra" e "O texto literário", embora haja uma preocupação dos autores em explicar ao aluno o que é literatura, quais são as suas funções, o diálogo que ela trava com outras artes, qual a especificidade do texto literário, fazendo, inclusive, referência à importância do papel do leitor, os autores passam longe dos conceitos da Estética da Recepção e da Teoria do Efeito. Nesse sentido, lembramos algumas observações sobre os livros didáticos feitas pelo professor Hélder Pinheiro (2006), num artigo publicado há quase dez anos que ainda soa atual à vista do modelo de ensino da literatura que encontramos nos livros de hoje. Quase todos esses livros apresentam um conteúdo comum: partem do trovadorismo português (alguns se restringem à literatura brasileira) até tendências contemporâneas de nossa literatura. Alguns deles trazem também pequenas súmulas de literatura portuguesa. (...) (...) Outra questão problemática no livro didático é o modelo seguido para estudar literatura. Estuda-se mais história e não as obras em particular. E que história da literatura se estuda? Quase sempre os estilos de época na sua ordem cronológica. Não cabe aqui discutir essa opção, mas discutir como ela se realiza nos livros didáticos. Noutras palavras, a opção por ensinar história da literatura, muitas vezes presa a uma abordagem cronológica/evolucionista, priva o aluno de um estudo mais detido de um poeta, de um ficcionista ou dramaturgo. Por eleger uma formação de caráter enciclopédico, acaba-se por conhecer muito pouco cada obra, sobretudo no que ela tem de singular. A poesia sai, quase sempre, prejudicada, porque as obras não são estudadas em sua complexidade e sim como meros exemplos de determinado estilo de época. (...) (...) Quando afirmei que o aluno terá acesso a quatro ou cinco liras, fui otimista. O fato é que poucos autores chegam a cinco poemas. Sabemos que o problema não é do autor de livros: eles têm espaço delimitado e não podem ir além do que foi imposto. Portanto, o problema parece ser do modelo de livro didático predominante. (...) Algumas perguntas me ocorrem: precisamos de livro didático de literatura? Os livros didáticos de literatura, como estão, têm contribuído para a formação de leitores de obras literárias? Não seria mais rico, em vez de estudar literatura no ensino médio de um modo
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atrelado ao viés historicista, ler as obras com os alunos? (PINHEIRO, 2006, p. 106-113)
Concordamos inteiramente com as observações feitas pelo professor, principalmente quando ele questiona o modelo seguido pelos livros didáticos para ensinar literatura, no qual prioriza-se uma formação de caráter enciclopédico em detrimento da leitura das obras literárias, de modo a não formar um leitor e sim um conhecedor da história das literaturas brasileira e portuguesa. Nesse sentido, vemos uma necessidade urgente de se reformular o ensino da literatura no currículo do Ensino Médio, de forma a eliminar o seu caráter enciclopédico e pragmático e torná-lo mais humanista, centrado no leitor e na leitura de obras literárias. Talvez, e é bem provável que isso ocorra, uma reformulação desse porte leve a uma perda de espaço do estudo da literatura no currículo do Ensino Médio. Mas, a nosso ver, essa possível perda da quantidade seria compensada pelo ganho da qualidade e utilidade do ensino da literatura, e aí sim essa disciplina poderia realmente contribuir na formação do aluno. Com essa convicção, vemos com bons olhos as orientações das DCEs, pois acreditamos que tanto as teorias de Jauss e Iser quanto o Método Recepcional são boas opções para se romper com o modelo de ensino de literatura vigente, pautado no historicismo e no pragmatismo. No entanto, entendemos que o caráter inovador que elas apresentam se perde diante da incompatibilidade com o modelo de livro didático em vigência no Brasil. No caso da coleção Novas palavras, o livro didático mais utilizado nas escolas de Ensino Médio do município de Telêmaco Borba/PR, podemos afirmar, sem nenhum receio, que ela é incompatível com as orientações das DCEs em relação ao ensino da literatura. Em favor do livro criticado, observamos que ele segue à risca o modelo estabelecido e, dentro desse contexto, tem lá suas qualidades, como, por exemplo, a riqueza de ilustrações, a intertextualidade entre textos literários antigos e contemporâneos e o diálogo com outras artes explorado largamente no livro. Todos os seus capítulos apresentam esses elementos. Assim, o seu grande problema reside em fazer parte de um modelo de livro didático que trata o ensino da literatura de uma forma
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que não cabe mais nos currículos escolares, sob o risco de a literatura tornar-se uma disciplina sem utilidade e odiosa para a maioria dos alunos. Referências bibliográficas AGUIAR, Vera Teixeira. O leitor competente à luz da Teoria da Literatura. In. Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 124, jan./mar. 1996, p. 23-24. BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio. Brasília: 1998. CAETANO, Santa Inês Pavinato. O ensino de literatura: deficiências e alternativas para mudar paradigmas. In. FLORES, Onici (org.). Ensino de língua e literatura: alternativas metodológicas. Canos/Rs: Ed. ULBRA, 2001, p. 97-108. CARVALHO, Neuza Ceciliato de. Leitura e escola: problemas e perspectivas. In. Proleitura. Assis, n. 15. Ago. 1997. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à Teoria Literária. Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Àtica, 1994. JURADO, Shirley; ROJO, Roxane. A leitura no ensino médio: o que dizem os documentos oficiais e o que se faz. In. BUNZEN, Clécio; MENDONÇA, Márcia (orgs.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, p. 37-55. PERROTI, Edmir. Literatura e escola: diálogo difícil. Difícil? In. Páginas Abertas. São Paulo, n. 64, 1990, p. 16-17. PINHEIRO, Hélder. Reflexões sobre o livro didático de literatura. In. BUNZEN, Clécio; MENDONÇA, Márcia (orgs.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006, p. 103-116. SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DO PARANÁ. Diretrizes Curriculares da Educação Básica – Língua Portuguesa. Curitiba: SEED, 2008. ZILBERMAN, Regina; SILVA, Eziquiel Theodoro da. Literatura e pedagogia: ponto e contraponto. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990.
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PADRÃO TIPOLÓGICO: A REPRESENTAÇÃO DO MOVIMENTO
Dorival Gonçalves Santos Filho (UFSC)
Palavras iniciais O presente estudo tem por objetivo discutir a representação do movimento em português brasileiro (PB), a partir de noções da Semântica Cognitiva elaboradas por Leonard Talmy (2000b). Para tal empreitada, apresentaremos os conceitos de padrão tipológico, evento de movimento (EM) e satélite, com exemplos retirados da obra O Hobbit de J. R. R. Tolkien em três línguas – português, inglês e latim. A escolha de parte do corpus em diferentes línguas se justifica pelo fato de que a tradução de sentenças é útil para visualizarmos como cada língua expressa o EM em cada padrão tipológico. Por fim, questionaremos a que tipologia o português efetivamente pertence, apresentando exemplos retirados de jornais eletrônicos que demonstram um discreto cruzamento de fronteiras de um padrão tipológico a outro. Padrão tipológico Leonard Talmy, em sua tese de doutorado, pesquisou uma língua chamada atsugewi. Essa língua Honkan, do norte da Califórnia, tem uma configuração semântica e sintática peculiar. A partir desse estudo, o autor iniciou sua busca pelos universais semânticos que dessem conta da maioria das línguas do mundo. Ao encontrar esses universais, Talmy procurou demonstrar como eles são expressos na superfície (gramaticalmente). O estudioso percebeu uma certa regularidade em distintas línguas e passou a classificá-las, dependendo de sua configuração, em padrões tipológicos.
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Inicialmente, Talmy propôs três grupos: manner languages (LFS), path languages (LFV) e figure languages (LFF)1. Nos estudos posteriores, o autor classificou as línguas em apenas dois grupos: verb-framed languages e satellite-framed languages. A seguir, demonstraremos como funciona o EM que culmina na constituição das línguas em padrões tipológicos. O evento de movimento O evento de movimento (doravante EM) é esquematizado por Talmy como um evento que ocorre em situações que envolvem tanto deslocamentos quanto situações estáticas. Neste estudo, propomos discutir casos que envolvam apenas deslocamentos. O esquema básico de EM é constituído pelos seguintes domínios semânticos: MOVIMENTO, FIGURA, TRAJETO, FUNDO, MODO e CAUSA. MOVIMENTO, em seu sentido básico, refere-se ao fato de que um objeto muda a sua localização. FIGURA é o objeto em movimento que se desloca em relação a outro objeto de referência. TRAJETO é o caminho transcorrido pela FIGURA. FUNDO é o objeto de referência. MODO e CAUSA são eventos que se relacionam com o MOVIMENTO, caracterizando o MODO ou CAUSA do MOVIMENTO da FIGURA. O evento de Movimento básico consiste em um objeto (Figura) movendo-se ou localizado em relação a outro objeto (o objeto de referência ou Fundo). É analisado como tendo quatro componentes: além de Figura e Fundo, há o Trajeto e Movimento. O Trajeto (com T maiúsculo) é o caminho ou local ocupado pelo objeto Figura em relação ao objeto do Fundo. O componente de Movimento (com M maiúsculo) refere-se à presença per se ou movimento ou situação estática no evento. Apenas estes dois estados motrizes são estruturalmente distinguidos pela linguagem. (TALMY, 2000b, p.25, traduzimos).
Proponho as siglas LFS (línguas com frame no satélite), LFV (línguas com frame no verbo) e LFF (línguas com frame na figura). 1
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De acordo com o autor, esse esquema permite caracterizar as línguas nos padrões LFS, LFV e LFF, conforme os domínios semânticos são expressos gramaticalmente. Em seguida, reproduziremos o quadro de Talmy com os três grupos tipológicos. Categorias tipológicas para verbos de movimento Língua/ família de línguas
Componentes de um EM expressos na raiz do verbo
Românicas Semíticas Polinésias Nez Perce
MOVIMENTO + TRAJETO (LFV)
Caddo Japonês Koreano Indo-Europeias (menos as Românicas) Chinês
MOVIMENTO + coevento (MODO e
Finno-Ugric
CAUSA) (LFS)
Ojibwa Warlpiri Atsugewi Navaho
MOVIMENTO + FIGURA (LFF)
(TALMY, 2000b, p.60, adaptado) Línguas com frame no verbo No padrão tipológico do português, o EM se realiza com a seguinte configuração: o verbo principal concentra em si o MOVIMENTO e o TRAJETO; os coeventos MODO e CAUSA, se forem expressos, o serão por meio de uma construção gerundiva ou adverbial.
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(1) Alguns dos mais tolos saíram correndo da cabana [...]. (O Hobbit, p.179) FIG.
MOV.
MOD.
FUND2.
TRAJ. conflation Podemos verificar, nesse exemplo, a configuração do EM. A maneira como os domínios semânticos são representados gramaticalmente diz a qual padrão o português pertence. O domínio FIGURA alguns dos mais tolos está num processo de movimentação. O MOVIMENTO e TRAJETO dessa FIGURA são representados pelo verbo sair, que basicamente significa se deslocar para fora de um local. Há, ainda, o que Talmy chama de conflation, que é a incorporação de elementos semânticos em um único item lexical. Nesse caso, trata-se de MOVIMENTO e TRAJETO incorporados no verbo sair. O domínio MODO, sendo um coevento, representa de que jeito ou forma a FIGURA realiza o MOVIMENTO e TRAJETO: correndo. Por fim, o FUNDO é representado pelo substantivo cabana, ou seja, o local de onde a FIGURA se deslocou. Em síntese, nesse EM, temos os domínios semânticos FIGURA, MOVIMENTO, TRAJETO, FUNDO e MODO sendo expressos gramaticalmente e configurando o padrão LFV. Línguas com frame no satélite O padrão tipológico LFS tem como típico representante o inglês. Nesse padrão, há duas propriedades básicas que distinguem essa tipologia do padrão LFV: trata-se do conflation – MOVIMENTO e coevento e do TRAJETO, que é expresso por uma partícula que se associa ao verbo e é nomeada, nessa teoria, de satélite. Nesse sentido, podemos, de antemão, inferir que a representação desse EM será diferente. A seguir, apresentaremos o conceito de satélite.
2
Para uma melhor visualização, os domínios semânticos aparecerão abreviados nas sentenças.
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Satélite Para Talmy, satélite é um elemento de superfície pertencente a uma classe fechada de palavras. É a categoria gramatical de qualquer constituinte que não seja um complemento nominal ou frase preposicional que esteja em relação irmã como a raiz verbal. Refere-se à raiz como dependente de um núcleo. O satélite pode ser um afixo ou uma palavra livre, visa , assim, abranger as seguintes categorias gramaticais: partículas verbais do inglês, prefixos verbais separáveis e inseparáveis do alemão, prefixos verbais russos ou latinos, complementos verbais do chinês, “verbos versáteis” do Lahu, substantivos incorporados do caddo e afixos polissintéticos do Atsugewi em torno da raiz. (TALMY, 2000b, p.102).3
O conceito de satélite tem provocado muita polêmica com várias propostas de reformulação do conceito, como em Slobin (2004, 2006) e Beavers et al (2010), por exemplo. Por não ser o foco desse trabalho, não trataremos dessa discussão aqui. Mas ressaltamos a importância desse elemento gramatical para a configuração desse padrão tipológico. Satélite é muito importante para essa tipologia, pois, ao gravitar em torno do verbo de movimento, altera o seu conteúdo semântico. Como representante prototípico, exemplificaremos esse padrão com sentenças em inglês. A tradução das sentenças nos propicia a ideia de como as sentenças podem ser expressas em cada padrão estudado.
3
It is the grammatical category of any constituent other than a nominal or prepositional-phrase complement that is in a sister relation to the verb root. The satellite, which can be either a bound affix or a free word, is thus intended to encompass all of the following grammatical forms: English verb particles, German separable and inseparable verb prefixes, Latin or Russian verb prefixes, Chinese verb complements, Lahu nonhead “versatile verbs”, Caddo incorporated nouns and Atsugewi polysynthetic affixes around the verb root. (Talmy 2000, p.102)
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(2) The dwarves rushed
FIG.
MOV.
out of their great gate [...]. (The Hobbit, p. 22)
TRAJ.
FUND.
MOD. Conflation “Os anões correram para fora pelo seu grande portão [...]” (O Hobbit, p.31) Verifica-se,
nesse
exemplo,
que
alguns
domínios
semânticos
são
gramaticalmente expressos de forma distinta do padrão LFV. A FIGURA é representada pelo substantivo dwarves. Já o MOVIMENTO e MODO são incorporados pelo verbo rush, causando o fenômeno conflation. O TRAJETO é expresso pelo satélite, ou seja, a partícula out. Nesse momento, o conteúdo semântico do verbo rush é alterado, pois o MOVIMENTO inicial é agora direcionado. O FUNDO é expresso por great gate. A diferença básica consiste no fato de o verbo expressar MOVIMENTO e MODO, deixando para o satélite a tarefa de expressar o TRAJETO. (3) Bertus et Tomas ad cupam
FIG.
FUND.
exierunt. (Hobbitvs Ille, p.60)
TRAJ. MOV. Sat.
“Bert e Tom dirigiram-se para o barril” (O Hobbit, p.40) No exemplo (3) temos uma representação do EM com uma sentença em latim. A ordem dos domínios semânticos não é crucial para indicar a qual padrão tipológico uma língua pertence. O importante é constatar por qual elementos de superfície esses domínios são expressos. Note-se que o TRAJETO, assim como na sentença (2), é expresso por um elemento que funciona como uma irmã para a raiz verbal. Trata-se, aqui, do prefixo ex que significa movimento para fora. Os demais domínios constituemse da FIGURA Bertus et Tomas, do FUNDO cupam e do MOVIMENTO representado pelo verbo eo, no pretérito perfeito da terceira pessoa do plural.
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Línguas com frame na figura Línguas em que o ponto central do evento incide sobre a FIGURA, que é o objeto do EM, e em cuja raiz fundem-se os domínios semânticos de MOVIMENTO e FIGURA, pertencem ao padrão tipológico LFF. O Atsugewi, uma língua Honkan do norte da Califórnia, constitui um exemplo por excelência desse padrão. Segundo Santos Filho (2013, p.38), citando Talmy (2000): “O atsugewi, por exemplo, afirma Talmy, apresenta uma raiz verbal que expressa o MOVIMENTO e a FIGURA, o TRAJETO é expresso por um sufixo da raiz verbal, e o coevento4 é expresso por um satélite subordinado à raiz do verbo principal.” (4) / W-'- ca-st'aq'-ic't-a / -> [c'wast'aq'ic'ta]
A raiz do verbo principal especificando a FIGURA : -st'aq'- “um material nojento que se move / permanece localizado."
O prefixo especificando a CAUSA: ca- “como resultado do vento soprando sobre a FIGURA.”
O sufixo especificando o TRAJETO + FUNDO: -icv't “em líquido.”
Os afixos flexionais: w-'-- uma “3ª pessoa sujeito / factual probatório.”
Literalmente: “icky material moved into liquid as the result of wind blowing on it.” “O material nojento se deslocou para o líquido como resultado da ação do vento sobre ele.” Tradução livre: “The guts blew into the creek.” “O vento soprou as tripas no riacho”. (TALMY, 2008, p.13, tradução nossa). O inglês e o português contêm alguns exemplos em que na raiz verbal fundem-se os elementos MOVIMENTO e FIGURA. Veja o exemplo em português.
4
MODO e CAUSA são alguns tipos de coeventos.
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(5) Já passara da hora do chá e [chovia] a cântaros, [...] (O Hobbit, p.281) No exemplo (5), o verbo impessoal chover lexicaliza em sua raiz os domínios semânticos de MOVIMENTO e FIGURA. Em chover temos um MOVIMENTO e FIGURA expressos na raiz verbal; outro verbo que possui essas características é nevar. Embora o TRAJETO de chover faça parte da semântica do verbo com um MOVIMENTO de cima para baixo, o foco incide sobre a FIGURA, que é o elemento mais importante desse evento. No atsugewi, o TRAJETO e FUNDO, como já mencionado, são expressos por sufixos que se fixam no verbo. Isso demonstra que os verbos impessoais do português e do inglês compartilham de só uma porção do padrão tipológico LFF. O português como um padrão híbrido Nesta parte do trabalho não usaremos mais sentenças do corpus da obra “O Hobbit” nas três versões, mas sentenças retiradas de jornais eletrônicos da internet, como Folha de São Paulo, por exemplo, que servirão de modelo para a nossa discussão. A tipologia de Talmy tem provocado inúmeras discussões com vários estudiosos, os quais afirmam que diversas línguas não se encaixam plenamente na tipologia. Isso já tinha sido previsto por Talmy, ao afirmar que padrões diferentes podiam coocorrer numa língua, ressalvando que as línguas usam apenas um padrão em sua expressão mais característica. (6) [...] os funcionários [...] continuam bombeando [a água radioativa que se infiltrou nas instalações e galerias subterrâneas.]. http://folha.com/no902604 a) A água radioativa que se infiltrou nas instalações e galerias.
FIG.
TRAJ. MOV.
FUND.
Sat. A sentença (6) representa um EM no português, mas, como se observa, os domínios semânticos não estão expressos gramaticalmente como o padrão LFV
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configura. Há uma clara semelhança com o padrão da língua latina (LFS). Os elementos que mostram que o português está se comportando como um padrão não prototípico são o prefixo in, que significa movimento para dentro, e o verbo filtrar, que significa fazer passar ou passar por um filtro, selecionar ou separar. Essa configuração de prefixo indicando o TRAJETO do verbo permite constatar que essa sentença é típica do padrão LFS. Veja que o prefixo in altera o conteúdo semântico do verbo filtrar. Essa formação complexa significa que a FIGURA, água radioativa, se movimenta para dentro de um FUNDO e não apenas transpassa.
(7) imigrou para Israel aos 12 anos. http://folha.com/no1486589
a) Klapp
FIG.
TRAJ. MOV.
FUND.
Sat. b) Sofía
emigrou para a Espanha [...] http://folha.com/no1477818
FIG. TRAJ. MOV.
FUND.
Sat. c) A sonda Ulysses [...] circunavegou [...] as regiões polares do Sol [...]5
FIG.
TRAJ.
MOV.
FUND.
Sat. Os exemplos (7a, b, c) possuem a configuração tipológica LFS. Na sentença (7a), o verbo complexo imigrar é formado pelo prefixo in na forma i, que significa 5
http://vida-estilo.estadao.com.br/noticias/geral,missao-de-19-anos-de-sonda-solar-termina,395183
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movimento para dentro, e pelo verbo migrar, que significa mudar de um país ou região. Veja que o elemento que indica o TRAJETO da FIGURA é o prefixo in e não o verbo migrar, que expressa somente o MOVIMENTO. O mesmo ocorre na sentença (7b), em que o verbo complexo emigrar é formado pelo prefixo ex na forma e, que significa movimento para fora, e pelo verbo migrar. Nesse sentido, também podemos considerálo como padrão LFS. O TRAJETO de imigrar é para dentro e de emigrar é para fora, orientados pelos prefixos que indicam a direção do MOVIMENTO. Já a sentença (7c) apresenta um TRAJETO mais perceptível, pois o prefixo circum significa movimento circular, movimento ao redor de. O verbo navegar significa fazer viagem no mar ou no ar e a sua formação com o prefixo circum nos dá o delineamento do TRAJETO da FIGURA. Palavras finais Apresentamos, neste texto, como se configura o conceito de padrão tipológico na visão de Leonard Talmy. Alguns exemplos retirados da obra “O Hobbit” de Tolkien nos permitiram visualizar como se comporta um EM em cada um dos exemplos propostos. A tradução dessas sentenças, embora não analisadas, nos oferece subsídios para verificarmos como é o comportamento de um determinado EM. O português configura como padrão central a tipologia LFV, mas se comporta como o padrão LFF e LFS. Isso evidencia que o português, sendo originário do latim, língua de padrão LFS, carrega vestígios dessa tipologia. No curso da evolução do português, os satélites foram se lexicalizando nos verbos de movimento, mas alguns deles ainda orbitam em torno do verbo, expressando o TRAJETO. Consideramos, portanto, que o português é uma língua de padrão tipológico híbrido, o que poderá ser confirmado com os resultados de pesquisas que ainda estão em desenvolvimento.
Referências ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática latina: curso único e completo. 29.ed. São Paulo: Saraiva, 2000. BEAVERS, Joh; LEVIN, Beth; THAN, Shiao Wei. The typology of motion expressions revisited. Journal of Linguistics, v. 46, n. 2, p. 331-377, 2010.
0530
. Acesso em: 29 mai. 2014. FARIA, Ernesto. Dicionário escolar Latino/Português. 3.ed. Rio de Janeiro: FAE/MEC, 1962. SANTOS FILHO, Dorival. Padrão Tipológico do Português: Um estudo dos vestígios de satélites na expressão do Movimento e do Trajeto. 2013. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013. SLOBIN, Dan Isaac. The many ways to search for a frog: Linguistic typology and the expression of motion events. In: Sven Strömqvist and Ludo Verhoeven (Eds.). Relating Events in Narrative: Typological and Contextual Perspectives. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum Associates. 2004, p.219-257. SLOBIN, Dan Isaac. What makes Manner of motion salient? Explorations in linguistic typology, discourse and cognition. In: M. Hickmann y S. Robert (Eds.). Space in Languages: Linguistic Systems and Cognitive Categories. Amsterdam / New York, John Benjamins, 2006. p.59-82. TALMY, Leonard. Semantic Structures in English and Atsugewi. Ph. D. Dissertation, University of California, Berkeley, 1972. . Acesso em: 01 jun. 2014. TALMY, Leonard. Toward a Cognitive Semantics. Cambridge, MA: MIT Press. 2000b.
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FORMAÇÕES DISCURSIVAS EM CONFRONTO: ANÁLISE DE UMA REPORTAGEM DA REVISTA VEJA
Eliana Alves Greco (UEM) 1. Introdução A revista semanal Veja, de 17 de abril de 2013, publicou uma reportagem sobre a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, que liderou o governo de seu país de 1979 a 1990, época que marcou o fim do comunismo soviético. A reportagem, que tem como título “Uma dama do lado direito da história”, de autoria de Duda Teixeira, com colaboração de Tatiana Gianini e Nathalia Watkins, parecia ser uma homenagem à ex-primeira-ministra, em virtude de sua morte ocorrida em 08 de abril do mesmo ano. Entretanto, percebemos, pela materialidade linguística, um discurso que enaltece o capitalismo e critica o comunismo e as políticas de esquerda. Além disso, a mesma edição de Veja traz como reportagem de capa a volta da inflação, em que apresenta um quadro comparativo entre o Governo Dilma e o Governo Thatcher, com o título “O avesso da outra”. Assim, é possível levantarmos a hipótese de que a reportagem sobre Margaret Thatcher tem como foco não a homenagem à ex-primeira-ministra, mas a desmoralização do Governo Dilma e das políticas do PT. Diante dessas constatações, este artigo tem como objetivo analisar as formações discursivas em confronto na reportagem “Uma dama do lado direito da história”, publicada na Revista Veja, de 17 de abril de 2013, bem como verificar em qual formação discursiva o sujeito está inserido, tendo como aporte teórico a Análise do Discurso arquitetada por Pêcheux. Quanto à estrutura do trabalho, apresentaremos, inicialmente, os conceitos teóricos da Análise do Discurso; em seguida, faremos uma breve contextualização do governo de Margaret Thatcher. E, tendo por base os pressupostos teóricos, realizaremos a análise das formações discursivas na reportagem. Para finalizar, apresentaremos as considerações finais, mostrando os resultados da pesquisa.
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2. Discurso, sujeito e formação discursiva
A Análise do Discurso tem como objeto de estudo o discurso, concebido como efeito de sentido entre os interlocutores. E todo discurso é produzido por um sujeito, em determinado contexto histórico, social e ideológico. O discurso do sujeito é situado em relação aos discursos do outro. Outro que envolve não só o seu destinatário para quem planeja, ajusta a sua fala (nível intradiscursivo), mas que também envolve outros discursos historicamente já constituídos e que emergem na sua fala (nível interdiscursivo). Sendo assim, a linguagem não é produzida por um sujeito uno, homogêneo, todo-poderoso, porém por um sujeito que divide o espaço discursivo com o outro (BRANDÃO, 1996). Entretanto, até se chegar à questão de que a identidade do sujeito é construída na interação com o outro, vários conceitos foram se delineando no correr do tempo. A concepção de sujeito na Análise do Discurso vem sofrendo mudanças desde a sua constituição. De sujeito assujeitado e interpelado pela ideologia, construído na primeira fase da AD, chegamos aos desdobramentos mais recentes: um sujeito heterogêneo, marcado por traços sociais, históricos e ideológicos e que se constitui na sua interação com o outro. Esse outro não inclui somente o interlocutor, mas também a voz de outros discursos, historicamente constituídos, que se encontram no nível do interdiscurso. Na produção de discursos, o sujeito está inserido numa formação discursiva, noção que foi concebida inicialmente por Michel Foucault, em 1969, em sua obra Arqueologia do saber. De acordo com o autor, Um enunciado pertence a uma formação discursiva, como uma frase pertence a um texto, e uma proposição a um conjunto dedutivo. Mas enquanto a regularidade de uma frase é definida pelas leis de uma língua, e a de uma proposição pelas leis de uma lógica, a regularidade dos enunciados é definida pela própria formação discursiva. (FOUCAULT, 2002, p. 135)
Para Foucault, a formação discursiva é um sistema dispersão, ou seja, existe uma formação discursiva quando é possível “(...) descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma
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regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações)” (FOUCAULT, 2002, p. 43).
Essa noção foi deslocada para o interior da Análise do Discurso de linha francesa, com Pêcheux, que, inserido no quadro teórico do marxismo altusseriano, considerava que toda formação social, caracterizada por uma relação entre classes sociais, implicava a existência de posições políticas e ideológicas, que não são individuais, mas que se organizam em formações, as quais mantêm entre si relações diversas, como antagonismo, aliança, dominação (PÊCHEUX; FUCHS, 1997). Para Pêcheux e Fuchs, a formação discursiva é a manifestação, no discurso, de uma determinada formação ideológica. Esta é definida como “um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem ‘individuais’ nem ‘universais’ mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as outras.” (PÊCHEUX; FUCHS, 1997, p.166). Os autores concebem o discurso como um dos aspectos materiais da ideologia, relacionando, dessa forma, ideologia e discurso, isto é, cada formação ideológica comporta como um de seus componentes uma ou várias formações discursivas interligadas. Assim, a formação discursiva é, a partir de uma posição dada numa conjuntura, “o que pode e deve ser dito” por um sujeito, ou seja, é a formação discursiva na qual o sujeito está inserido que irá demarcar o que ele pode e deve dizer e o que não pode e não deve dizer. Posteriormente, com os estudos de Courtine (1981) e de Maingueneau (2005), passou-se a questionar o fechamento de uma formação discursiva. Maingueneau afirma que não se deve procurar a identidade de uma formação discursiva numa análise fechada, voltada para seu interior, porém numa análise que vê a formação discursiva em sua relação com outras com as quais dialoga e atravessam seu campo. Nesse sentido, uma formação discursiva deve ser definida a partir de seu interdiscurso, porque é a relação interdiscursiva que estruturará a identidade das formações discursivas. E é a identidade de cada formação discursiva, colocada em relação ao espaço interdiscursivo, que irá preestabelecer os possíveis sentidos de um discurso. Maingueneau (1997, p. 113) assim define interdiscurso:
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O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante no qual uma formação discursiva é levada [...] a incorporar elementos pré-construídos, produzidos fora dela, com eles provocando sua redefinição e redirecionamento, suscitando, igualmente, o chamamento de seus próprios elementos para organizar sua repetição, mas também provocando, eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação de determinados elementos.
De acordo com Maingueneau (2005), a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas o interdiscurso, ou seja, um espaço de trocas entre inúmeros discursos convenientemente escolhidos. Isso significa que sempre que se analisa um discurso, fazse uma análise dos discursos que com ele se articulam, respeitando-se, porém, a identidade e a autonomia relativa do discurso que é objeto de análise. De posse desse construto teórico, analisaremos a reportagem “Uma dama do lado direito da história”, publicada na Revista Veja, de 17 de abril de 2013.
3. Contexto histórico do governo de Margaret Thatcher
Margaret Thatcher era líder do Partido Conservador e, em 1979, tornou-se a primeira mulher a ocupar o cargo de Primeiro-Ministro da Grã-Bretanha, apresentando um estilo neoliberal e conservador. Thatcher liderou o governo de seu país de 1979, em plena Guerra Fria, até 1990, época que marcou o fim do comunismo soviético. Consideramos oportuno contextualizar o governo de Thatcher e distinguir o capitalismo do socialismo, que correspondem a dois tipos distintos de sistemas políticoeconômicos. Logo após o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, iniciou-se um novo conflito, liderado pelas duas grandes potências vitoriosas: os Estados Unidos e a União Soviética, que iriam disputar o poder político e a hegemonia do mundo. Esse período histórico, designado Guerra Fria porque nunca houve um confronto militar direto, foi marcado por conflitos de ordem ideológica, política, tecnológica e econômica entre as duas potências rivais, compreendendo o período entre o final da Segunda Guerra Mundial (1945) e a extinção da União Soviética (1991). As duas possuíam dois regimes político-econômicos antagônicos: o capitalismo e o socialismo, conduzidos, respectivamente, pelos Estados Unidos e pela União
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Soviética. Enquanto o objetivo principal do capitalismo é a acumulação de capital por meio do lucro, as bases do socialismo são a socialização dos meios de produção, ou seja, as empresas passam a pertencer ao governo, e há a extinção da sociedade dividida em classes1. Como seu próprio nome expressa, o foco do socialismo não é o lucro, mas a sociedade. Nesse período, as duas potências tentaram implantar, em outros países, os seus sistemas político-econômicos. Entretanto, no final de década de 80, as repúblicas soviéticas começaram a entrar em crise. O Muro de Berlim, um dos grandes símbolos do período de tensão entre as potências, caiu em 1989, reunificando as duas Alemanhas. Em dezembro de 1991, houve a dissolução da União Soviética, que enfraqueceu o sistema socialista, e o capitalismo foi sendo implantado, aos poucos, nos países socialistas. Margareth Thatcher possuía uma política anticomunista e governou o seu país de forma rígida e inflexível. Thatcher renunciou ao governo em 1990, mesmo depois de uma segunda reeleição, em 1989. Morreu no dia 08 de Abril de 2013, vítima de um acidente vascular cerebral2, nove dias antes da publicação da reportagem de Veja.
3. Análise Na reportagem “Uma dama do lado direito da história”, publicada na revista Veja, temos um confronto entre duas formações discursivas: a formação discursiva política de esquerda, na qual se inserem os partidos de esquerda e o comunismo, e a formação discursiva política de direita, inserindo os partidos de direita e o capitalismo. Margareth Thatcher representa o capitalismo e, consequentemente, a política de direita. Essas formações discursivas estão materializadas no texto de várias formas, sendo que os partidos de esquerda são nomeados com expressões e vocábulos com valoração negativa, enquanto os partidos de direita, o capitalismo e Thatcher são nomeados, por meio de expressões com valoração positiva. Percebe-se, assim, que o
1
Disponível em: . Acesso em: 28 ago. 2014. 2 Disponível em: . Acesso em: 28 ago. 2014.
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sujeito do discurso enuncia da formação discursiva da política direita, engrandecendo o capitalismo e denegrindo o socialismo e as esquerdas. Iniciaremos a análise com o título “Uma dama do lado direito da história”. O uso de “uma dama” remete ao seu apelido “Dama de Ferro”. Margaret Thatcher foi chamada, pela primeira vez, de Dama de Ferro por um jornal oficial soviético, por suas posições consideradas radicais, como depois explica o próprio sujeito no decorrer do texto: “foi chamada pela primeira vez de Dama de Ferro por um jornal oficial soviético, que julgou estar ofendendo-a. Ela adorava o apelido.” No título, temos a ambiguidade do adjetivo “direito”, que pode significar tanto a política de direita à qual Thatcher submeteu seu país, ou seja, uma política de direita e anticomunista, como a sua política estava do lado correto da história, marcando o posicionamento do sujeito. Por meio da expressão “do lado direito da história” presente no título, já podemos antecipar a posição do sujeito, que é corroborada com a análise no decorrer do texto. A exaltação da primeira-ministra e de seu governo está marcada em diferentes partes do texto, como abaixo: Nesse período, transformou a política no Reino Unido, ajudou a enterrar o moribundo comunismo soviético e criou uma doutrina de política econômica, o thatcherismo, que, em diferentes gradações, dominou o período áureo da globalização na década de 90, dando racionalidade aos políticos no poder e tirando milhões de pessoas da miséria em países tão díspares quanto o Vietnã e o México.
Nesse trecho, o sujeito ressalta a importância de Thatcher para o capitalismo, ao enaltecer seus feitos. A expressão “período áureo da globalização” cria o efeito de sentido de que a globalização é benéfica ao mundo, ao passo que “moribundo comunismo” mostra a decadência do comunismo. No recorte abaixo, temos a demonstração das duas formações discursivas em confronto – a de política de direita e a de esquerda: Thatcher foi demonizada pelas esquerdas retrógradas por ter obtido sucesso em suas políticas e tê-las imitadas em quase todas as partes do mundo.
O sujeito, ao categorizar as esquerdas, por meio do adjetivo “retrógrada”, mostra que as considera atrasada e contra o progresso, opondo-se ao “sucesso” e ao progresso
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do capitalismo. Thatcher é vista pelo sujeito como aquela que obteve sucesso em suas políticas, sendo imitada por “quase todas as partes do mundo”, corroborando aqui o discurso presente no título de que Thatcher estava “do lado direito da história”. O sujeito se utiliza do operador argumentativo “quase”, que segundo Koch (1992) orienta para a totalidade, mas será que realmente quase todas as partes do mundo imitaram a política de Thatcher? O que vemos é que o sujeito não diz quais países se utilizaram da política da primeira-ministra, ou seja, faz uma afirmação, a qual não é comprovada. Vemos ainda a materialização das duas formações discursivas no seguinte trecho: Se fizessem uma pequena pesquisa histórica, descobririam que, no Ocidente, os partidos de esquerda crescem mesmo é nos momentos de bonança econômica, quando o capitalismo produz excedentes econômicos bastantes para sustentar a imensa turma de socialistas e assemelhados que invariavelmente ganham a vida sem trabalhar. Foi assim nos Estados Unidos.
Podemos perceber, aqui, o confronto entre as duas formações discursivas: a capitalista X a socialista, no entanto, há, por meio das materialidades “produz excedentes econômicos”, a valorização da riqueza do capitalismo, que produz riquezas e ainda é capaz de sustentar os socialistas. Há, além disso, uma apreciação negativa dos socialistas, sendo considerados aqueles que crescem nos momentos de bonança econômica, são sustentados pelo capitalismo e ganham a vida sem trabalhar. O sujeito, para comprovar suas afirmações, sugere que se faça uma “pequena pesquisa histórica” e, ao final, exemplifica com os Estados Unidos, que “durante a recessão dos anos 30, o partido comunista praticamente desapareceu”, mas, “no esplendor econômico do pósguerra, quando a classe média enriqueceu e os pobres viraram classe média”, as ideias socialistas ganharam destaque naquele país: Durante a dura recessão dos anos 30, o partido comunista do país praticamente desapareceu. Foi só no esplendor econômico do pósguerra, quando a classe média enriqueceu e os pobres viraram classe média, que as ideias socialistas e comunistas ganharam maior projeção nos Estados Unidos.
Essa visão negativa dos militantes de esquerda ainda aparece no recorte: “não é por outra razão que o esquerdismo no Ocidente tem sempre um quê de esnobismo, um
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ar de superioridade moral, intelectual e de classe.” Segundo o dicionário Aurélio, “esnobismo” significa, entre outros sentidos, “ato de demonstrar falsa e exagerada superioridade”, “esnobismo intelectual”, ou seja, para o sujeito, os esquerdistas acreditam que possuem uma “superioridade moral, intelectual e de classe moral”, quando, na realidade, não possuem essa superioridade. No trecho abaixo, temos novamente o discurso de que os socialistas são sustentados pelo capitalismo, visto que o excedente econômico do capitalismo “permite aos militantes viver sem trabalhar”: (...) enquanto derrubam o sistema nos bares e em ambientes chiques, o capitalismo continua firme produzindo o excedente econômico que permite aos militantes viver sem trabalhar e aos ricos dizer-se de esquerda sem o temor de perder tudo para os revolucionários.
Destacamos aqui a expressão “enquanto derrubam o sistema nos bares e em ambientes chiques”, que produz o efeito de sentido de que os socialistas somente derrubam o sistema capitalista nos discursos, mas não conseguem ou não desejam derrubá-lo na prática, visto que “o capitalismo continua firme produzindo o excedente econômico”. Nesse discurso, há ainda a manifestação da valorização do capitalismo, como aquele que é forte e produtivo economicamente. O adjetivo “chiques” produz o efeito de sentido de que os militantes de esquerda pregam a luta de classes e a igualdade social, mas, na realidade, pertencem à classe média e alta: “ricos dizer-se de esquerda”. Nesse discurso, os esquerdistas se beneficiam da produção do capitalismo, porém, ao mesmo tempo, produzem o discurso de que esse mesmo capitalismo deve ser derrubado. Observemos o trecho abaixo: Com razão, pois o salvacionismo insurrecional das esquerdas só tem, na cabeça de seus seguidores, alguma chance quando tudo dá errado em um país e a miséria se instala.
A expressão “salvacionismo insurrecional das esquerdas” nos remete ao discurso dos movimentos de esquerda que acreditam que podem salvar o mundo, tirando as pessoas da pobreza, porém, para o sujeito, esse discurso não corresponde à realidade, visto ser incongruente ou absurdo e que existe somente na “cabeça de seus seguidores”.
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Os militantes de esquerda apenas produzem discursos, mas não possuem condições, para derrubar o capitalismo ou não o desejam, pois, assim, terão que trabalhar, visto que não serão mais sustentados pelo capitalismo, o qual produz o crescimento econômico. A imagem dos socialistas construída pelo discurso é a de que eles são retrógrados, vagabundos, ganham a vida sem trabalhar, vivendo às custas do capitalismo. Além disso, manifestam esnobismo, ou seja, demonstram uma falsa superioridade moral, intelectual e de classe; apenas produzem discursos, mas não conseguem derrubar o capitalismo. Ao analisarmos a reportagem inserida em seu suporte, ou seja, a revista Veja da edição 2317, de 17 de abril de 2013, podemos sugerir que o enaltecimento do capitalismo e a crítica ao comunismo e às políticas de esquerda tiveram um propósito. Essa mesma edição publica uma reportagem especial sobre a volta da inflação, com o título “Inflação: Dilma pisou no tomate”. Ao final dessa reportagem, é apresentado um quadro comparativo entre o Governo Dilma e o Governo Thatcher, com o título “O avesso da outra”, enaltecendo o governo de Thatcher e mostrando pontos negativos do governo de Dilma. Ao observamos a capa da revista, vemos que há uma foto com as pernas e a parte da roupa de uma mulher, sugerindo ser a presidenta Dilma. A roupa é vermelha, assim como o nome da revista e o primeiro título da reportagem da capa: “Inflação”. Nessa reportagem, ainda há duas fotos de Dilma em que usa roupa vermelha, além de desenhos e fotos de tomate da mesma cor. O vermelho é a cor associada à revolução, ao socialismo e à ideologia política de esquerda, ligando Dilma ao socialismo e à esquerda, que foram criticados na reportagem sobre Margaret Thatcher. Nesse sentido, a revista Veja, que se coloca como sujeito, produz o discurso de que o governo de Margareth Thatcher foi bom, ao passo que o de Dilma está sendo negativo. Nesse sentido, podemos afirmar que a reportagem sobre Margaret Thatcher não tem como foco apenas a homenagem à ex-primeira-ministra, mas a desmoralização do Governo Dilma e das políticas do PT, associando a imagem negativa do socialismo e dos militantes de esquerda construída pelo discurso ao Governo Dilma.
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7. Considerações finais Este artigo teve como objetivo analisar as formações discursivas em confronto na reportagem “Uma dama do lado direito da história”, publicada na Revista Veja, nº 2317, tendo como aporte teórico a Análise do Discurso conhecida como de linha francesa. O estudo evidencia que o sujeito, responsável pela reportagem, coloca em confronto duas formações discursivas: uma de direita e outra de esquerda e que esse sujeito pertence à formação discursiva de direita. Ao inserirmos a reportagem na totalidade da edição da revista, percebemos que Veja se utiliza do discurso desse sujeito, juntamente com a reportagem de capa, para desmoralizar o governo da presidenta Dilma. O discurso, concebido como efeito de sentido entre os interlocutores, é produzido por um sujeito, em determinado contexto histórico, social e ideológico. Todo discurso é produzido por um sujeito e, ao mesmo tempo, constrói sentidos que representam as posições sociais, históricas e ideológicas desse sujeito. Nesse sentido, a análise do discurso materializado na reportagem mostra a posição de um sujeito que defende o capitalismo e as políticas de direita, sendo contra o socialismo e os partidos de esquerda. Considerando que esse discurso foi produzido em um contexto histórico em que o governo do país é de esquerda, podemos considerar que esse sujeito, com o seu discurso, coloca-se contra a política atual do governo brasileiro. Nossa proposta procurou compreender o discurso midiático enquanto prática discursiva produtora e reprodutora de informação, opinião e ideologia, bem como procurou contribuir aos estudos sobre a linguagem.
Referências BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 5. ed. Campinas: Unicamp, 1996.
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PÊCHEUX, Michel; FUCHS, Catherine. A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas. In: GADET, Françoise; HAK, Toni (Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 3. ed. Trad. Bethânia S. Mariani et al. Campinas: Unicamp, 1997.
VEJA. São Paulo: Abril, n. 2317, 17 abr. 2013.
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A IMAGEM DO PROFESSOR NO DISCURSO ACADÊMICO SOBRE ENSINO E NOVAS TECNOLOGIAS
Eliana Maria Severino Donaio Ruiz (UEL)
Considerações iniciais As mudanças pelas quais passam os sujeitos e a sociedade no momento globalizado e tecnológico que estamos vivendo têm levado os estudiosos a proporem análises sob os mais variados pontos de vista. Entre essas reflexões, têm tido lugar de destaque questões referentes ao papel da escola no mundo contemporâneo. De par com as preocupações voltadas à formação do educando, insere-se também na pauta das discussões a questão de se (re)pensar a função docente num contexto tão específico como esse de transição de paradigmas. O presente trabalho, portanto, procura investigar, sob o aporte teórico da Análise Discurso de tradição franco-brasileira, em uma perspectiva arqueogenealógica foucaultiana, as representações que se têm acerca desse sujeito da educação, o professor, no contexto acadêmico da atualidade, altamente marcado pela presença das novas tecnologias de informação e comunicação. Afinal, que professor é esse na visão dos especialistas que falam sobre a atuação docente nos dias de hoje?1 A fim de procedermos a uma análise do discurso acadêmico visando a problematizar esse imaginário discursivo, fizemos uma busca inicial, no Google, por meio das palavras-chave “professor” e “novas tecnologias”. Buscávamos textos atuais, de várias áreas do conhecimento, em que tais termos figurassem no título e/ou no resumo do trabalho. Num levantamento prévio, chegamos a seis trabalhos de língua portuguesa publicados, entre 2011 e 2013, em periódicos ou anais das respectivas áreas de seus autores, a saber: • Marchiori, Melo e Melo (2011) – professores de Fonoaudiologia – UNOPAR, PR; • Garcia et al. (2011) – doutores em Educação – UNICAMP, SP; • Alda (2012) – mestranda em Linguística Aplicada – UCPel, RS; • Molin e Raabe (2012) – professores de Educação e Computação Aplicada 1
A pesquisa se insere num projeto maior, em desenvolvimento, que tem como título “Ensinoaprendizagem de Língua Portuguesa na Educação Presencial e Online: Múltiplos Olhares”, cujo objetivo é analisar os efeitos de sentido das representações de aluno, professor, ensino e aprendizagem que emergem de textos de vários gêneros discursivos, de diferentes esferas comunicativas, com ênfase na esfera educacional, privilegiando os que tematizam questões de ensino e aprendizagem em geral, e de língua portuguesa e de linguagens sincréticas, em particular.
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Universidade do Vale do Itajaí, SC; Vieira (2012) – professor de História - Centro Universitário de Maringá, PR; • • e Moura e Brandão (2013) – professores de Educação – FAE – Faculdade Anglicana de Erechim, PR. Dada a escolha aleatória das áreas de conhecimento e da região geográfica a que pertencem as instituições dos autores investigados, características dessa coleta inicial, os resultados que aqui apresentamos têm, evidentemente, caráter preliminar.
Ser professor hoje na visão acadêmica Sabemos, com Pêcheux (1990a), que o sujeito da Análise do Discurso não é o indivíduo, sujeito empírico, mas o sujeito do discurso, que carrega consigo marcas do social, do ideológico, do histórico. Assim, o discurso produzido por um sujeito pressupõe um destinatário que se encontra num lugar determinado na estrutura de uma formação social. Sempre que o sujeito de um discurso toma a palavra, ele mobiliza um funcionamento discursivo que remete a formações imaginárias: o sujeito que enuncia atribui imagens do destinatário, do referente e de si, e essas imagens condicionam o processo de elaboração discursiva, remetendo a mecanismos de funcionamento da linguagem – como relações de sentido, de força e de antecipação, todos condicionados pelas formações imaginárias. No caso do mecanismo de antecipação, o sujeito coloca-se no lugar do destinatário, podendo, dessa forma, prever o efeito de suas palavras; o locutor regula, pois, seu discurso, conforme os efeitos que tenciona reproduzir no interlocutor. Já na relação de forças, o sentido das palavras é regulado de acordo com o lugar social ocupado pelo sujeito falante; ou seja, a posição social ocupada por este é inerente ao seu dizer. Assim, certos dizeres dominam outros, conforme a representação que se faz do lugar social ocupado por aquele que enuncia. Tais mecanismos nos permitem, então, dizer que não são os lugares empíricos, ocupados pelos sujeitos, que determinam os dizeres, mas a representação que o sujeito faz de si, do outro, do outro em relação a si e do referente. Um discurso não implica necessariamente uma mera troca de informações entre interlocutores, mas sim um jogo de “efeitos de sentido” entre os participantes; os sentidos seriam produzidos por um certo imaginário, que é social e que é, por sua vez, resultado das relações entre poder e sentidos. Logo, nos processos discursivos, vemos funcionar uma série de formações imaginárias que designam os lugares “que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro.” (PÊCHEUX, 1990b, p. 82). De modo que interessa-nos, particularmente, que a representação que o sujeito faz do interlocutor direciona a produção de seu discurso. Transportando para a situação acadêmica em que os protagonistas da cena
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enunciativa, os pesquisadores, produzem dizeres (na forma de artigos científicos) endereçados a seus leitores, o que se observa é uma interação determinada por um jogo imaginário, segundo o qual tais especialistas reproduzem ações e dizeres próprios da ocupação de seus lugares, de suas posições-sujeito (PÊCHEUX, 1995). Segundo esse jogo, cabe ao pesquisador – enquanto aquele que, em princípio, sabe –, enunciar uma verdade ao leitor – a aquele que, em princípio, não sabe. Mais especificamente, os dizeres e as ações do sujeito-autor pesquisador se fazem segundo o que ele imagina que seja ele mesmo, o que seja o leitor e o que seja o referente. Vejamos como isso se dá relativamente aos dados analisados. De um modo geral, pudemos perceber que os artigos investigados consistem num discurso no qual se observa, a despeito da diferença entre as áreas de conhecimento de seus autores, uma impressionante regularidade na enunciação de uma verdade acerca do professor contemporâneo. Essa verdade, segundo pudemos notar, emerge na forma de uma grande proposição, composta por quatro enunciados complementares, que carregam em si, respectivamente, cada um dos traços que comporiam esse imaginário discursivo acerca do sujeito da educação professor. Apresentamos a forma sumarizada esses enunciados: O professor está diante de um desafio; O professor tem um novo papel; O professor deve ser um mediador; O professor precisa de capacitação. Evidentemente, tais enunciados não aparecem materializados na superfície linguística dos textos com essa estrutura sintática, por estarem a serviço do sentido global pretendido pelo enunciador em seu artigo. Porém, o que se observa é que, embora não apareçam necessariamente assim estruturados, nessa mesma ordem ou conjugados entre si, em cada um dos textos, a sua enunciação se dá, sempre na modalidade alética.2 Considerada a maneira com que o falante se expressa no conteúdo da frase que diz, “a modalidade alética refere-se às noções de verdade e/ou falsidade das proposições, podendo os enunciados de uma ciência ser necessaria ou possivelmente verdadeiros” (FERNANDES, 2014, p. 157). Abaixo seguem alguns recortes discursivos (RD) representativos do primeiro enunciado (O professor está diante de um desafio): RD1: A prática docente com o uso de tecnologias digitais se constitui em grande desafio aos professores nos tempos atuais. (GARCIA ET AL., 2011, p.79) RD2: Na atualidade, fala-se que as TIC têm um grande potencial para inovar a prática pedagógica, melhorando a qualidade do ensino e, portanto, da educação. No entanto, como se vem discutindo até aqui, a implantação dessas tecnologias na escola tem desafiado o professor no sentido de aprender a manipular o computador, usar seus aplicativos e a Internet, além de saber os porquês e como integrá-los à prática diária na escola. (MOLIN E RAABE, 2012, p. 256) O emprego da expressão desafio sugere que há uma disputa em jogo, uma 2
De acordo com Castilho (2002), modalidade é a estratégia que consiste em apresentar o conteúdo proposicional numa forma assertiva (afirmativa ou negativa), interrogativa (polar ou não polar) ou jussiva (imperativa ou optativa).
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convocação, em que alguém é instigado a ultrapassar um grande obstáculo, a realizar algo além de suas competências ou habilidades.3 Enquanto os sujeitos-enunciadores de RD1 afirmam que o desafio que está posto aos professores nos tempos atuais é a prática docente com o uso das tecnologias, os de RD2 entendem que tal desafio está na implantação dessas tecnologias na escola, aliada à sua manipulação na prática diária. Quando consideramos o segundo enunciado (O professor tem um novo papel), parece que o desafio a que os autores mencionados se referem adquire contornos mais delineados: RD3: Superar o paradigma tradicional ainda hegemônico implica, entretanto, (re)pensar o papel e as competências docentes para lidar com necessidades atuais de formação bem como a organização da sala de aula, já que sua configuração não é mais a mesma de anos atrás. (GARCIA ET AL., 2011, p.79) RD4: Além disso, as mudanças tecnológicas também modificam as novas gerações que surgem, e por conseguinte, surge um novo contexto educacional que exige uma nova postura por parte do professor. Desse modo, este artigo objetiva discorrer acerca desse novo contexto educacional que surge, visando esclarecer qual é o papel que o professor deveria assumir na contemporaneidade. (ALDA, 2012, p. 1) RD5: O ensino hoje requer mudança no papel do profissional de educação que possa estimular o aluno a buscar e selecionar as fontes de informação voltadas ao ensino e à pesquisa, estudando-as e recriando-as. (MOURA E BRANDÃO, 2013, p. 2) Trata-se, como se pode perceber, de impor ao professor o desafio aludido não apenas no sentido de inserir as novas tecnologias em sua prática, mas no sentido de fazê-lo transformar-se como tal, proceder a uma mudança, a uma alteração de si mesmo. Segundo a Wikipédia, “uma mudança ou transformação pressupõe uma alteração de um estado, modelo ou situação anterior, para um estado, modelo ou situação futuros, por razões inesperadas e incontroláveis, ou por razões planejadas e premeditadas”.4 A imposição vem na forma de uma exortação, por parte dos sujeitos-pesquisadores, a uma ação de grande porte a ser empreendida pelo professor: (re)pensar o papel e as competências docentes (RD3), [ter] uma nova postura (RD4), [proceder] a uma mudança no papel do profissional da educação (RD5). E a convocação se dá discursivamente pelo emprego das formas verbais do presente do indicativo: implica [repensar], exige [nova postura] e requer [mudança no papel] – que, como vimos, caracterizam a enunciação de uma verdade. A natureza dessa transformação a que é chamado o professor realizar vai aparecer melhor configurada no terceiro enunciado a que aludimos (O professor deve ser um mediador), conforme os excertos que seguem: RD6: Em um mundo conectado em rede, com inúmeras trocas de informação e 3 4
Conforme . Acesso em: 15 out. 2014. Disponível em . Acesso em: 15 out. 2014.
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rapidez de interação, o papel do professor, em suma, é auxiliar o aluno na busca pelo conhecimento, ser um mediador entre o aluno e a aprendizagem. O professor pósmoderno deve estar em sincronia com a contemporaneidade, saber utilizar as tecnologias em prol de um ensino mais eficiente e eficaz, trabalhar em parceria com o aluno e, além de tudo isso, ser consciente de que não é o detentor de todo o conhecimento. Hoje, é necessário ensinar nossos alunos a refletir, questionar, raciocinar e compreender a nossa realidade, para que possam contribuir com a sociedade e construir opiniões próprias. (ALDA, 2012, p.3) RD7: O que fazer com um aluno que já nasceu na era da informação e que já traz consigo a experiência de um mundo tomado pela velocidade dos acontecimentos? A resposta torna-se simples: respeitando e avaliando a base de conhecimento já incorporada pelo estudante quando ele chega à escola, conduzindo-o a pesquisa e produção do conhecimento, mediando-o em sua caminhada na carreira estudantil, incorporando novos conhecimentos no cotidiano em sala. Para tanto o professor pode e deve incorporar as novas tecnologias em seu método de ensino. Falando a “língua do aluno” [...]. (VIEIRA, 2012, p.97) RD8: O uso das novas tecnologias da comunicação e informação representa uma grande inovação na educação, pois propicia o desenvolvimento das produções em colaboração, podendo instigar o espírito investigativo tanto dos alunos quanto dos professores sendo que estes poderão apropriar-se do uso das tecnologias para mediar os trabalhos dos estudantes, sentindo-se desafiados a buscar condições mais adequadas para o processo de aprendizagem interativo e dinâmico. (MOURA E BRANDÃO, 2013, p.3) A grande mudança enunciada pelos sujeitos-especialistas relativamente ao papel do professor, como está posto nesses recortes, aparece atrelada a uma postura de mediação do conhecimento. Ensinar, agora, passa a ser mediar: “intervir como árbitro ou mediador”, sendo mediação “intervenção, intercessão, intermédio” (FERREIRA, [s.d.], p. 903); “ação de auxiliar como intermediário entre indivíduos ou grupo de pessoas” (dicionário online de português5). Pressupõe-se, pois, haver uma dupla possibilidade de atuação pedagógica por parte desse sujeito da educação, quando se considera os efeitos da presença das tecnologias no processo de ensino-aprendizagem: uma atuação anterior ao advento das novas tecnologias e uma atuação no interior das novas tecnologias. E a explicação para essa mudança de papel é feita por um dos próprios sujeitos-autores aqui pesquisados: A educação e o sistema educativo sofreram grandes mudanças nos últimos tempos. A partir do século XX, os avanços tecnológicos popularizaram o acesso à informação, modificando a maneira como vivemos e, consequentemente, a maneira como aprendemos. A nossa sociedade, atualmente, está em rede; e isso provocou mudanças marcantes. A aprendizagem não é mais individual, mas sim coletiva. 5
Disponível em: . Acesso em: 16 out.2014.
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O conhecimento é construído em grupo e incontestavelmente está mais acessível. Logo, qual é o papel do professor hoje? Qual é o impacto do professor numa sociedade em rede, com tantas oportunidades de aprendizagem? Anteriormente, o professor era o único participante ativo da sala de aula; aquele que detinha o conhecimento e que transmitia para os alunos todo o seu estudo e sabedoria de forma linear, passando apenas do professor para os alunos, sem grandes reflexões ou visão crítica dos conteúdos. A educação tradicional era centrada no professor, fundamentalmente baseada em texto e excessivamente expositiva. Porém, a nova geração está acostumada a agir em vez de passivamente assistir. Com a evolução das tecnologias e da sociedade, além das oportunidades de aprendizagem, os alunos também mudaram (ALDA, 2012, p.2).
Assim, o raciocínio que parece sustentar a proposição da verdade enunciada pelos sujeitos-especialistas, é o seguinte: se para atuar em sala de aula em conexão com as novas tecnologias o professor da atualidade enfrenta o desafio de mudar seu papel para o de mediador do conhecimento, então – eis o último enunciado que compõe a proposição –, ele precisa de capacitação. É o que vemos no nosso último bloco de recortes: RD9: Neste ponto, podemos pensar então na importância de expandir o repertório tecnológico dos docentes como meio de instrumentalizá-los para uma prática pedagógica fundamentada em um novo paradigma, diferente do tradicional, que mantêm distantes alunos e professores. (GARCIA ET AL., 2011, p. 79) RD10: Discute-se a importância da atenção no ensino/aprendizagem na universidade em conexão com as novas tecnologias, propondo-se de forma simples, o aprimoramento do desempenho do professor universitário em relação a estas tecnologias. (MARCHIORI, MELO E MELO, 2011, p.1) RD11: É evidente que os professores necessitam acompanhar as mudanças a fim de adaptar-se. Porém, tendo em vista que a maioria dos professores está acostumada com o ensino tradicional, linear, baseado em textos, prováveis desafios podem vir a ser enfrentados por professores, entre os quais, destacam-se a necessidade de letramento digital, a resistência ao uso de novas tecnologias e à formação continuada. Por isso, é de suma importância para o professor buscar um aperfeiçoamento contínuo, a fim de adaptar-se às novas metodologias que surgem para auxiliar o processo de ensino e aprendizagem. Devemos sempre acompanhar a evolução, a fim de buscar o conhecimento para compartilhá-lo. (ALDA, 2012, p. 4) RD12: [...] este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa que buscou conhecer as percepções de um grupo de professores sobre possíveis transformações ocorridas em suas práticas pedagógicas após terem participado, nos anos de 2008 e 2009, do curso de formação continuada ‘Introdução à Educação Digital’. Evento promovido, em todo o País, pelo Programa Nacional de Formação Continuada em Tecnologia Educacional - Proinfo Integrado. O objetivo deste curso é
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contribuir para a inclusão digital dos profissionais da educação, visando familiarizar, motivar e preparar os professores e gestores para a utilização dos recursos e serviços mais usuais dos computadores e da Internet. (MOLIN E RAABE, 2012, p. 250) Ora, uma vez afirmada a importância de [se] expandir o repertório tecnológico dos docentes, do aprimoramento do desempenho do professor, do seu aperfeiçoamento contínuo e de preparar os professores e gestores para a utilização dos recursos e serviços mais usuais dos computadores e da Internet, afirma-se a sua necessidade de capacitação, já que, por meio de um não-dito, afirma-se, igualmente, que os professores estão despreparados para dar conta do anunciado desafio. No intuito de concluir nossa análise de tais enunciados, trazemos Foucault ([1988]1999b), que nos ajuda a compreender que estamos diante de um discurso que funciona como um dispositivo de poder, porque se trata de um tipo de formação que, em determinado momento histórico, surge para responder a uma urgência (FERNANDES, 2012, p. 66): atuar pedagogicamente num mundo dominado pelas novas tecnologias. Além disso, é produzido a partir de um regime de verdade socialmente determinado, uma vez que, conforme Foucault ([1979]2009, p.12), “cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros”.
Considerações (in)conclusivas A análise preliminar a que procedemos desses artigos acadêmicos selecionados, nos indica que está em curso, no campo educacional, um saber pós-moderno focado nas novas tecnologias de informação e comunicação. Há uma vontade de verdade que relaciona educação e novas tecnologias sendo enunciada por sujeitos especialistas referendados pela sociedade. Na medida em que “o dispositivo é, antes de tudo, uma máquina que produz subjetivações e somente enquanto tal é também uma máquina de governo (AGAMBEN, 2009, p. 46, apud FERNANDES, 2012, p. 68), essa vontade de verdade é destinada a produzir, a moldar e a controlar a subjetividade, constituindo uma prática contemporânea de subjetivação do professor, fazendo-o mover-se para tornar-se outro diferente de si mesmo. Funciona como uma força sobre os sujeitos da educação, levando-os à sujeição, já que induz a uma ética educacional geral de acesso ao conhecimento das novas tecnologias. E é fundamental para definir e possibilitar o pertencimento desses sujeitos a um certo grupo, que hoje vai se constituindo com um status pedagógico privilegiado. Segundo o gesto interpretativo que ora fazemos, intenta-se, portanto, uma governamentalidade, um campo estratégico de relações de poder no universo acadêmico e educacional. Trata-se de um processo de fabricação de um “novo professor” ou de um “professor de sucesso”, poderíamos assim dizer, para atuar na sociedade tecnológica. De forma que um novo ethos do sujeito da educação professor (a maneira de ser do sujeito
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professor) está sendo produzido.
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A IMPORTÂNCIA DAS REESCRITURAS COMO FORMAS CONTEMPORÂNEAS DE REPRESENTAÇÃO DO HOMEM Eliane Benatti de Freitas (UEL) Representar o mundo contemporâneo no teatro em nossos dias, portanto, não é somente ordenar estes materiais de dramaturgias novas segundo formas teatrais antigas. É, ainda, e sobretudo, elaborar novas formas, suscitar novas relações entre o palco, a plateia e o mundo (DORT, 1977, p. 22).
A invenção da tragédia é mérito dos gregos e um legado para a humanidade. Essa explosão de obras-primas que durou uma média de oitenta anos aconteceu concomitantemente ao desenvolvimento político de Atenas. Vinte e cinco séculos depois continuamos a pedir licença e a tomar emprestados, deles, seus grandes temas e personagens. Tanto naquele momento quanto agora, na contemporaneidade, esses textos representam ou pelo menos tentam representar reflexões sobre o homem. De lá para cá aconteceram, como não poderia deixar de ser, mudanças profundas de estrutura (as divisões da peça em atos, a importância maior ou menor do coro, o tipo de conflito e as questões relativas à ação e ao tempo decorrido, entre outras) e de forma (como o texto é construído no papel, como ele é pensado na encenação, a própria reescritura, as abordagens políticas, sociais ou psicológicas, entre outras) desse gênero. Os mais diferentes trabalhos feitos sobre os mitos, as tragédias e reescrituras desses textos originais conseguem representar, senão em sua totalidade, pelo menos uma parte da importância desse legado para a sociedade. Fonte inesgotável de inspiração, provocam em nós a necessidade de difundi-los e perpetuá-los e esta tese faz parte do rol de muitos trabalhos que buscam entender sua importância. Eugene O´Neill (1888-1953) escreveu Electra enlutada (Mourning becames Electra, 1943) partindo do mito de Electra para representar o final da Guerra Civil norte-americana no século XIX, no seio de um drama familiar. Magaldi (1989) justifica a escolha do mito de Electra, por O´Neill, por este entender que ali ele encontraria terreno fértil para sua intenção de realizar um drama psicológico tendo como base as relações humanas e o sentido de destino sem, contudo, apelar para a crença em deuses
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ou qualquer coisa que beirasse o sobrenatural. O nome dado às suas personagens estabelece uma proximidade com os nomes contidos no mito grego. A guerra de Tróia é substituída pela da Guerra Civil e o palácio por uma mansão. E a semelhança não para por aí. Enquanto o mito de Electra encontra sua gênese em uma maldição familiar em que os deuses são os principais responsáveis por deflagrar vinganças e assassinatos, O´Neill constrói sua Electra partindo de um drama familiar cuja base é um amor clandestino, o assassinato, a vingança e a incapacidade de lutar contra o destino. Nesta Electra, conforme Magaldi (1989, p. 257), os deuses são outros, “[...] aparentemente muito mais tolerantes, contudo, algozes terríveis, pois inculcaram nos homens a ideia da culpa, do pecado original, de que não podem fugir”. Esse tom sombrio dado ao texto por O´Neill representa também o momento enfrentado pelos Estados Unidos da quebra da bolsa de Nova York e da depressão econômica. Ele aborda a culpa como herança trágica, o instinto versus o pecado, o puritanismo, os conflitos íntimos. De acordo com Magaldi (1989, p. 257), “Condenado pela civilização tortuosa a nunca usufruir as belezas da vida pagã – parece essa a imagem do homem moderno, fixada na trilogia o´nelliana”. O dramaturgo francês Jean Giraudoux (1882-1944) escreveu A guerra de Tróia não acontecerá (La guerre de Troie n’aura pas lieu, 1935) tentando transpor, para essa peça, a crise pela qual vinha passando a sociedade das décadas de 1930 e 1940. Aquino (2006, p. 309) escreve que “O texto mais aclamado de Jean Giraudoux (1888-1944), esta poética dramatização dos acontecimentos que levaram à Guerra de Tróia atualiza os personagens homéricos aproximando-os de nós [...]”. O conflito e as forças do destino estão presentes nessa obra, mas o autor deixa claro que os homens abraçam com prazer o ódio e a vingança, alimentam antagonismos e anseiam pelas guerras. Reescrevendo a guerra de Tróia, Giraudoux aborda a questão do destino e revela que ele está diretamente ligado ao que há de mais humano em nós, tal como a ganância, a luxúria e a vaidade. Mostrando uma Tróia antes de iniciada a guerra, pelo lado de dentro das suas muralhas, o autor constrói uma ponte entre a obra de Homero e o mundo contemporâneo. Apesar de revelar uma tragédia na qual os homens são seduzidos pelos deuses, que determinam impiedosamente seus destinos, Giraudoux, em A guerra de Tróia não acontecerá faz questão de colocar sobre os ombros das personagens o peso
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da responsabilidade sobre seus atos, personagens essas que parecem aceitar de bom grado os papéis que esses deuses lhes atribuem. Em um caminho contrário àquele percorrido pelo O´Neill de Electra enlutada, em que “O desgarramento do homem moderno, fustigado pela culpabilidade, leva-o a aniquilar-se na autodestruição (MAGALDI, 1989, p. 315), encontramos Jean-Paul Sartre (1905-1980). As moscas (Les mouches, 1943), é sua primeira peça teatral e considerada uma releitura da lenda grega de Orestes. Inaugurando sua carreira de dramaturgo, nessa peça Sartre transforma a vingança de Orestes em uma metáfora para temas como a vontade, a escolha e a liberdade, além de tecer uma crítica à ideia tradicional de destino. Conforme Magaldi (1989, p. 314), As moscas “[...] representa a primeira tentativa sartreana de colocar no teatro a problemática de toda a sua obra: como ser homem, como fazer-se homem, como distinguir a própria humanidade em meio aos outros homens”. O fato de Orestes, depois da vingança cumprida, deixar a cidade de Argos representa que pode escolher dar continuidade ao seu destino. De posse de sua liberdade, usou-a para uma ação justificável. Ele escolhe ficar na cidade e escolhe matar Egisto e sua mãe, Clitemnestra. Mas recusa-se a tomar para si aquela cidade e como seu aquele povo e parte novamente. Esse texto, conforme Magaldi (1989) está cheio de alusões ao momento político vivido por uma França ocupada pelos nazistas. Amedrontada e sentindo-se merecedora da derrota, essa França e sua população mantinham-se sob o jugo do dominador assim como o povo de Argos sob o domínio de Egisto. Esse breve relato sobre textos que revisitam os mitos gregos busca estabelecer a inconteste importância de um fenômeno que configura uma marca também e principalmente no teatro contemporâneo. Os espetáculos que retomam esses mitos e tragédias, sejam aqueles que reescrevem os mitos quanto os que, por meio de encenações inovadoras, provocam novos olhares e novas reflexões podem ser encontrados na Inglaterra, França, Estados Unidos, bem como no Brasil. Qual a particularidade contida nesses mitos e tragédias que provoca nos autores contemporâneos a necessidade de revisitar esses textos? De que forma essas reescrituras conseguem representar os aspectos políticos, sociais e filosóficos do homem
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contemporâneo? Conforme Gilson Motta (2011, p. 05), “Os mitos gregos reelaborados por Ésquilo, Sófocles e Eurípides teriam se tornado alguns dos mais importantes prismas culturais e estéticos através dos quais o mundo real, disfuncional e conflituoso do final do século XX refletiu sobre sua própria imagem”. Ainda conforme Motta (2011), o feminismo, a simpatia aos portadores de HIV, o apartheid, o holocausto, as diferenças culturais e o anticolonialismo, problemas que fazem parte da vida do homem moderno e contemporâneo, transformaram-se em mote para alguns dos mais significativos textos teatrais que têm origem nos mitos e tragédias. De Ésquilo a Sófocles e a Eurípides até a contemporaneidade, a tragédia grega transformou-se e renovou-se em quase todos os aspectos que a compõem. Esse fato vem sendo comprovado a partir dos textos dramáticos por meio de suas encenações. Os mitos, deuses, guerras e disputas de poder faziam-se presentes porque representavam o que era desejado e temido, o real e o imaginário dos homens. A visão sobre o mundo mudou, mas ainda são abundantemente encontrados textos e encenações que buscam inspiração nos mitos e nas tragédias clássicas. Mesmo que mantidas parcialmente as características formais inerentes à tragédia, apesar dos desvios e alterações encontrados nas reescrituras, ainda assim a fonte nas quais esses dramaturgos e encenadores contemporâneos bebem pode ser identificada. Sobre isso Romilly (2013, p. 157-158) escreve que: Do mesmo modo que, na representação das tragédias gregas, cada época ou cada encenador faz realçar certas características em detrimento de outras (ora é o equilíbrio e a harmonia, ora a severidade arcaica, ora uma política viva, ora uma religião intemporal), também as adaptações das peças variam de espírito e de inspiração segundo o momento ou a moda, também cada época e cada família de espírito é levada a privilegiar na própria noção de trágico um, ou outro aspecto; e o reflexo das tendências contemporâneas aclara esta noção com uma, ou com outra luminosidade.
Conforme Albin Lesky (2003) toda criação é condicionada e condicionante dos processos históricos. É preciso compreender as forças que nela encontram sua configuração e as leis pelas quais ela foi regida. Fenômeno único, pois que é uma obra de arte construída por um indivíduo, e ao mesmo tempo um cosmo, visto possibilitar infinitos encaixes e representações, essa sua dualidade quase que antitética lhe acarreta
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a capacidade de representar diferentes momentos históricos, buscando significados que ora caminham paralelamente, ora se distanciam, mas que sempre traduzem o sujeito e a sociedade. De acordo com Lesky (2003, p. 58) [...] não é possível conhecer a essência sem uma compreensão histórica, nem esta deve esperar aclarar o sentido de um fenômeno simplesmente por meio da incorporação histórica. As duas tendências não se acham em oposição, ao contrário; somente sua síntese poderá levar-nos adiante.
George Steiner (2004) escreve que o declínio da tragédia está associado à diminuição da importância dada às referências mitológicas que constituem a cosmovisão orgânica de sociedade. Quando essas simbologias e, consequentemente os rituais sagrados perdem seus significados essenciais, uma nova abordagem sobre os fenômenos que circundam o homem precisa substituir os anteriores, e isso se reflete no modo como o poeta representa literariamente o mundo.
As mudanças, então,
acontecem, na forma e no significado contido nesses textos clássicos. Compreender os mitos e, por meio deles, compreender as tragédias clássicas são fatos que permitem um entendimento mais profundo dos significados e intenções contidos nas reescrituras contemporâneas, que apesar de tratarem da problemática que circunda o homem dos séculos XX e XXI, não perdem o fio trágico que as liga à Grécia antiga. Ao serem analisadas as principais tragédias escritas sobre os mitos de Antígona e de Medeia , por exemplo, e algumas reescrituras do final do século XX e início do século XXI feitas por dramaturgos brasileiros que resgatam essas temáticas, podemos considerar que o produto advindo desses modelos, sejam esses produtos as tragédias clássicas, sejam as reescrituras, acabam se adequando às possibilidades de recepção de um público contemporâneo a essas obras. Mesmo sem que isso seja feito de modo intencional por parte do autor, os leitores e espectadores recebem os textos e os entrecruzam com suas experiências sociais e individuais estabelecendo significados particulares que muitas vezes vão além das possibilidades antevistas pelo próprio dramaturgo. Como Ésquilo, Sófocles e Eurípides poderiam imaginar a reverberação de
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suas obras na vida e na arte do homem moderno e contemporâneo? Como os autores do final do século XIX e início do século XX, ao tratarem de Antígona e Medeia, imaginariam essa mudança em personagens que conseguem, ainda hoje, representar a mulher, o sacrifício e a vingança? O que é encontrado, nesses textos contemporâneos, são personagens cientes do que seus atos acarretam. Não há deuses para serem responsabilizados, o futuro é imediato e a sorte depende das ações praticadas. O lirismo, estando antes sob a responsabilidade do coro nos textos clássicos, é encontrado no próprio texto que compõe os diálogos e os monólogos. Ele também está presente nos regionalismos, na intertextualidade estabelecida com os mitos e tragédias, na fragmentação do indivíduo, na sua capacidade de agir pelo coletivo e, finalmente, na figura de um herói que não mais existe em seu sentido mítico, e sim humano. O que temos, nos textos dramáticos contemporâneos, são indivíduos presos a situações de ordem, muitas vezes, existencial. As ações físicas, os atos em si já não mais são suficientes para libertá-los de situações como aquelas contidas nas tragédias clássicas. Os golpes de teatro já não funcionam mais. Esperar por um final em que a salvação advenha de uma pessoa que chega na última hora ou de uma informação reveladora que finalmente coloca ordem no caos não funciona na problemática cotidiana do sujeito contemporâneo. Não há salvação, e por vezes nem existe a manifestação da vontade de ser salvo, porque esse sujeito está de tal maneira amarrado em cadeias de desilusão, angústia e fracassos que o simples fato de continuar vivendo, por si só, já requer dele um esforço para além do que ele consegue executar. São personagens reveladoras dessa questão tão contemporânea sobre o aniquilamento do sujeito, portadoras de uma não-vontade, de um não-agir, mas há também, por sua vez, personagens que ainda se manifestam de forma ativa contra as questões políticas e sociais responsáveis, em parte, por esse aniquilamento, assim como podem também ser encontradas aquelas que agem diretamente contra situações de abandono, desamor, traição e morte. Medeias em busca de um entendimento, de um diálogo, e portadoras da capacidade de refletir sobre sua própria vida e sobre o resultado de suas ações. São ainda as Antígonas que vão à luta, seja no campo de batalha, seja dentro de si mesmas, na tentativa de fazer valer os direitos individuais e coletivos do sujeito. São, enfim, representações de uma sociedade que, passados tantos séculos,
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ainda reproduz as mesmas manifestações de poder, injustiça e desigualdade e, por isso mesmo, necessita de homens e mulheres, personagens anônimas ou
figuramente
mitológicas para uma tentativa de recuperação da humanidade perdida. Agora, esses conflitos acampam na superficialidade dos embates cotidianos que acontecem entre o homem, ele mesmo e o outro homem. Há, sim, interesses coletivos sendo defendidos e fatalidades que precisam ser encaradas, mas o indivíduo que habita essas reescrituras contemporâneas é aquele cujo próprio viver já é, por si só, trágico. Um indivíduo que busca resistir e seguir em frente, apesar do aniquilamento ao qual é submetido por força de uma sociedade desigual, onde o poder de uns sobre os outros se aplica de forma tão injusta ou ainda mais do que no passado clássico. E para que se dê essa resistência, ele usa das armas que o homem contemporâneo possui. Não mais a valentia dos heróis trágicos, não mais a proteção mística, muito menos poções mágicas ou ações sobre-humanas. Agora, ele se vale de sua própria fraqueza. É nela que ele encontra forças para seguir em frente. Temos, nessas reescrituras, personagens que sobrevivem às próprias tragédias graças à insistência com a qual decidiram viver suas vidas. Sua cultura, suas verdades, sua humanidade substituem as armas que os heróis antigos usaram. Assim como eles, ao final podem encontrar a morte, a dor pode, assim como naqueles, ter-lhes impresso marcas que jamais serão apagadas. Mas sua trajetória, de modo igual, demarca um final grandiosos, pois viver, por si só, já é suficientemente grande. O conflito, em sua concepção contemporânea, segundo Sarrazac (2005, p. 54), [...] não designa mais apenas o instante preciso da colisão, mas mais genericamente toda situação que coloque em cena duas entidades antagônicas – dois indivíduos, mas também dois países em guerra ou dois desejos no seio de uma mesma consciência -, seja o choque real ou subterrâneo.
Dessa forma, ao falarmos sobre conflito entre personagens pertencentes a um texto dramático contemporâneo precisamos considerar seu conceito sob uma outra ótica. A ação pode ter sido cerceada pela diminuição do conflito como originalmente o consideramos, mas esse conflito ainda habita esses textos, apenas se manifestando de uma outra forma. Ainda conforme Sarrazac (2005), os conflitos como que garantem a sobrevivência do teatro e, por conta disso, precisam estar presentes nas peças, mesmo que de forma diferente daquela apresentada pela tradição. Agora, eles instalam-se nas
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relações de força entre os casais, nas questões sociais e políticas e na problemática da vida moderna. Escolha moral, caráter, mythos, ações nobres e elevadas, conflito, todos esses termos possuem conceitos que precisam, nesta pesquisa, serem analisados sob a luz de dois momentos. O primeiro configura-se naquele em que as tragédias clássicas foram escritas, séculos atrás, e que representavam e eram representados por uma sociedade cuja tradição firmava-se por meio da religiosidade e da pólis. O segundo momento é o de agora, final do século XX e início do século XXI. Passados tantos séculos o que temos, na contemporaneidade, é uma sociedade formada por outros valores, condicionante e condicionada por indivíduos cujo cumprimento da vontade, crenças e atos de sacrifício ainda existem, mas se manifestam por meio de outras ações, não menos valorosas nem menos difíceis de serem executadas que aquelas, antigas, apenas diferentes, e essa diferença precisa ser considerada, pois é ela que estabelece os critérios de recepção desses textos de agora. Independentemente de todas as modificações que a tragédia grega sofreu ao longo dos séculos, no que diz respeito às questões formais e também temáticas, é fundamental considerarmos sua fundamental importância, enquanto texto e também enquanto forma de representação da sociedade e dos indivíduos que a compõe. Na contemporaneidade, o que se nota é que muitos dramaturgos aproveitam-se da diversidade contida nesses textos clássicos para darem vida a reflexões sobre a natureza do homem atual, suas inquietações, medos e desejos. As mudanças existem, e mostramse necessárias tendo em vista o quanto esta sociedade que aqui se mostra a nós é diferente daquela relatada pelos poetas gregos. Esse homem contemporâneo vive agora relações sociais baseadas em diferentes condicionantes políticos e ideológicos, e age de acordo com preceitos fundados em outras necessidades. Conforme Motta (2011, p. 05), “os mitos gregos reelaborados por Ésquiilo, Sófocles e Eurípides teriam se tornado alguns dos mais importantes prismas culturais e estéticos através dos quais o mundo real, disfuncional e conflituoso do final do século XX refletiu sua própria imagem”. Percebemos isso, principalmente nas muitas reescrituras que abordam os mitos femininos. Motta (2011), sobre isso escreve que nas
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últimas três décadas foi dada prioridade aos temas que tratam das questões femininas, tais como a relação com os filhos e a dominação masculina. Motta (2011, p.11) escreve que O interesse atual pela tragédia grega é estimulado também pela reflexão acerca da moral. Os textos gregos colocam-nos questões éticas diversas, tais como a legitimidade do desejo de vingança, o questionamento sobre os modos de julgamento dos criminosos e as vítimas de guerra, a premeditação de um crime. Essas questões apontam, necessariamente, para uma ordem metafísica ou religiosa, em uma reivindicação problemática numa sociedade cada vez mais marcada pela secularização. Assim, a crise dos valores éticos e espirituais vividos na sociedade ocidental a partir do segundo pósguerra encontra na tragédia grega um lugar para a autorreflexão.
Mas, apesar dos importantes pontos de intersecção entre as tragédias clássicas e as reescrituras, fica também a pergunta a respeito do modo como os espectadores, no caso das encenações, e dos leitores, no caso do texto escrito, recebem, na contemporaneidade, temas que fizeram sentido tantos séculos atrás, em uma sociedade construída tendo como base valores políticos, sociais e, inclusive, estéticos, tão diferentes daqueles correntes no final do século XX e início do século XXI. Ryngaert (1995) defende a inexistência de um verdadeiro sentido, expressão tomada de Paul Valéry, e que [...] o leitor não sabe o que fazer de sua liberdade, sobretudo diante de um texto de teatro. Certas encenações são assim qualificadas de “delirantes” por espectadores que não obstante aceitam o princípio de uma “leitura” do texto, mas que reclamam limites ou anteparos às interpretações que lhe são propostas. (RYNGAERT, 1995, p. 144)
Sobre essa questão também Magaldi (1989, p. 254) escreve, baseado em sua análise sobre as reescrituras de O´Neill, que “era grande o risco de esvaziar as tragédias originais de sua carga mítica, sem estabelecer valores novos, capazes de substituir-lhe o alcance”. Se considerarmos que Magaldi escreveu essas palavras na década de 1960, e que a análise aqui feita sobre as reescrituras contemporâneas contemplam aquelas existentes a partir da década de 1980, temos de considerar que vinte anos, duas décadas é pouco tempo, e que esse problema levantado por Magaldi ainda deve ser considerado por nós, mesmo no século XXI. Como acontece a recepção desses textos baseados nos mitos gregos por parte dos leitores e espectadores que talvez, por conta da pouca idade
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ou mesmo – e devemos considerar essa possibilidade – por total desconhecimento desses mitos, nunca ouviram falar desses mitos? Isso interfere nessa recepção ou, pelo contrário, esses textos são apreendidos em seus significados particulares, deixando de lado o universal, e age sobre esse leitor/espectador independentemente de sua dimensão clássica? Há, ainda, uma terceira questão, quando analisamos a recepção do público, e ela é levantada pelo próprio O´Neill que escreve, sobre a trilogia Mourning becames Electra, que o principal problema a enfrentar seria dar à trilogia uma aproximação psicológica moderna do sentido grego de destino a um público que não acreditava mais em crenças, deuses ou recompensas sobrenaturais. De que forma substituir ou simplesmente desconsiderar essas questões sobre destino, sacrifício e vingança quando o que temos em questão são textos escritos e encenados construídos sobre esses fundamentos basilares da tragédia grega? Magaldi (1989, p. 255) escreve, ainda sobre a peça de O´Neill, que “resta saber de as implicações transcendentes da tragédia grega foram substituídas por uma apreensão do mundo moderno, com igual profundidade. Se compararmos o que foi escrito por Motta e citado anteriormente com o que Magaldi escreve sobre a obra de O´Neill, e as próprias indagações de O´Neill, podemos concluir que suas preocupações mostram-se infundadas e que Gilson Motta soube descrever com clareza os motivos que essas tragédias clássicas teimam em sobreviver ao mundo moderno e contemporâneo. Mais do que sobreviver, Motta enumera as questões fundamentais que se tornam um ponto de aproximação entre textos de épocas e contextos tão diferentes. A sociedade, tanto a grega quanto a de agora, é composta por homens. Isso não muda. E se não mudam os homens, consequentemente seus sentimentos, dúvidas, medos e desejos também estão ali, presentes. A mudança está no modo como esses indivíduos encaram, agora, os acontecimentos, como reagem a eles e de que forma sobrevivem em um mundo que não é mais composto por deuses, crenças, o sobrenatural, enfim. Esse mundo que se mostra real, tangível e mais cruel que o anterior, pois agora o homem só pode contar com ele mesmo. Concluindo a questão da importância das reescrituras como formas de representação do homem, fica aqui o entendimento de que o sujeito trágico transcende a tragédia. Ele ainda existe na contemporaneidade, agora em outros moldes e envolvido
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em uma problemática diferente daquela, clássica, mas não menos trágica. Se nas tragédias antigas os temas circulavam entre as esferas da pólis e a do mito, aqui, na contemporaneidade, as abordagens dessas reescrituras questionam os valores humanos, sociais e políticos construídos por indivíduos que encontram-se perdidos em meio à solidão e ao niilismo. E esse sujeito é trágico em sua essência. Se nas tragédias clássicas ele estava dividido entre dois mundos, aqui não há sequer um mundo em que ele possa reconhecer sua existência. Mas, apesar dessa diferença fundamental entre os dois textos, aqui, nas reescrituras, assim como lá, nas tragédias, o que constitui o motor das ações representadas é a luta que se trava entre o diálogo e a intolerância. Dessa forma, conforme cita Motta (2006, p. 109), “o trágico é visto como uma característica fundamental da existência”, aconteça ela agora ou séculos atrás. Então, entendemos que o texto antigo é um meio, um veículo que se usa para falar de uma realidade atual, um texto que, como nenhum outro, serve como anteparo na construção de um discurso crítico sobre os acontecimentos da contemporaneidade. Referências DORT, Bernard. O teatro e sua realidade. Trad. Fernando Peixoto. São Paulo: Perspectiva, 1977. .GIRARD, René. A violência e o sagrado. Trad. Martha Conceição Gambini. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1998. LESKY, Albin. A tragédia grega. Trad. J. Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e Alberto Guzik. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. MAGALDI, Sábato. O texto no teatro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1989. MALUF, Sheila Diab; AQUINO, Ricardo Bigi de (Orgs.). Dramaturgia em cena. Maceió: EDUFAL, 2006. MOTTA, Gilson. O espaço da tragédia. São Paulo: Perspectiva, 2011. O´NEILL, Eugene. Electra Enlutada. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1970.
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ROMILLY, Jaqueline de. A tragédia grega. 2 ed. Coimbra: Edições 70, 2013. RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1996. ROMILLY, Jaqueline de. A tragédia grega. 2 ed. Lisboa: Edições 70, 2013. SARRAZAC, Jean-Pierre (Org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. Trad. André Telles. São Paulo: Cosac Naify, 2012. SARTRE, Jean-Paul. As moscas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. STEINER, George. A morte da tragédia. Trad. Isa Kopelman. São Paulo: Perspectiva, 2006.
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A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS NO PROCESSO DA INTERNACIONALIZAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR Eliane Regina Costa Oliveira (UTFPR) As novas tecnologias de informação e comunicação, são vistas como mediadoras entre os mercados financeiros e não apenas desses mercados, nota-se também que elas ligam o mundo todo, disseminando ideias, culturas, notícias, relações sociais mundiais tudo praticamente em tempo real. Portanto, prioridades estratégicas para o ensino superior podem ser estudadas visando ao aproveitamento satisfatório da globalização quanto à difusão ampla e rápida do conhecimento. A globalização é definida como um processo caracterizado pela intensificação das relações sociais mundiais e Knight (2005) afirma que os termos “internacional e global” na definição de internacionalização refletem a sua amplitude: internacional dá ênfase à noção de nação e se refere ao sentido de relações entre nações; global tem o significado de alcance mundial e não enfatiza o significado de nação. Globalização O termo globalização é tratado como um conceito amplo, com uma visão de causas e efeitos acontecendo no mundo atual e que, de alguma forma, influencia a educação: mudando conceitos, trazendo inovações e principalmente, forçando a universidade a tomar novos rumos visando ao seu desenvolvimento e modernização. Deste modo, o conceito de globalização aqui apresentado contém a internacionalização como um de seus efeitos. Muitas vezes os conceitos de globalização e internacionalização são usados com o mesmo significado quando se referem a atividades internacionais relativas à educação, o que não é o caso neste trabalho (COSTA OLIVEIRA, 2013). Os termos globalização e internacionalização têm significados diversos. O processo da globalização segundo Held (1999, citado por SANTIAGO et al. p. 235) “é a interconexão mundial que se alarga, aprofunda e é rápida”. Marginson (2004, citado por SANTIAGO et al., p 236) afirma que na globalização “surgem relações complexas em
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redes eletrônicas entre instituições e pessoas, criando um ambiente de informações abertas e sincronizadas em tempo real. ” Como resultado dos avanços econômicos, tecnológicos e do conhecimento vem a integração entre países e indivíduos sem que se dê real atenção às fronteiras. Knight e de Wit (1997, p. 8) concordam que a globalização afeta um país de forma diferente de outros devido à historicidade, tradição, cultura e prioridades individuais. E o país, ao sentir-se ameaçado ou invadido de alguma forma pode reagir de maneira diferente aos efeitos da globalização. São novos costumes e novas tecnologias apresentados, desenvolvidos, difundidos e aceitos com muita rapidez. David Held (1991, p. 9) considera o processo da globalização como o aumento das relações sociais mundiais que ligam comunidades distantes, de forma que os acontecimentos locais são adaptados por eventos que ocorrem em outros locais muito distantes e vice-versa. E preocupa-se ainda com a influência dos efeitos da globalização sobre o Estado-Nação e a democracia: As fronteiras nacionais tradicionalmente demarcaram as bases nas quais os indivíduos eram incluídos ou excluídos da participação nas decisões que afetam suas vidas; mas se muitos processos socioeconômicos e os resultados das decisões sobre esses processos se estendem para além das fronteiras nacionais, então as implicações desse fenômeno são sérias, não apenas para as categorias de legitimidade e consenso, mas para todas as ideias chaves da democracia (HELD, 1991, p. 22).
Há autores que utilizam a palavra globalização para definir o progresso econômico e social, inovação tecnológica, produtos e serviços diversos, informação e liberdade cultural crescentes e um padrão de vida mais elevado. Outros utilizam o mesmo termo para descrever a globalização como uma força devastadora que destrói tradições locais, subordinação das nações mais pobres às mais ricas, destruição do meio ambiente e a homogeneização da cultura e da vida cotidiana (MANDER e GOLDSMITH, 1996). Uma das críticas ao processo da internacionalização é o perigo da homogeneização da cultura ou efeito da globalização (SCOTT,1998, p 236). Essa homogeneização seria, em um processo lento, a percepção daquilo que é igual, homogêneo, nas diferentes culturas e as distinções entre essas culturas iriam, aos poucos, se extinguindo, se modificando ou se tornando semelhantes. Dessa forma os
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povos não mais teriam as características que os diferenciam uns dos outros, como tradições, etnias, usos e costumes, língua, modo de vida, entre outros, levando a um novo modelo de sociedade e ao fim das nações bem definidas. Santos (2002, p. 5-48) discorre sobre consenso hegemônico, abordando três dimensões: econômica, social e política denominado de “consenso neoliberal” ou “Consenso de Washington” assinado nos anos 1980 pelos Estados centrais do sistema mundial, consenso esse que compreende o futuro da economia mundial, políticas de desenvolvimento e especificamente, o papel do Estado na economia, transformando as empresas multinacionais em importantes atores da economia mundial e elementos da estrutura institucional, junto com os mercados financeiros e os blocos comerciais transnacionais, caracterizando a dimensão econômica. Essa seria a dimensão econômica, segundo Santos (2002, p. 5-48). Na dimensão social, o autor critica a globalização pelo crescimento do desemprego, falta de assistência à saúde, desmonte da economia de subsistência, falta de água e alimentos para milhões de pessoas e a fuga de cérebros (brain drain). Quanto à dimensão política da globalização, o autor analisa a força dos países ricos sobre os emergentes e pobres controlando a sua autonomia política e soberania. Além disso, traz um modelo organizado em privatizações, iniciativa privada e na primazia dos mercados. Outra dimensão é a globalização cultural, que conforme Ritzer (1995, citado por SANTOS, 2003, p. 10) poderia ser chamada de ocidentalização ou americanização simbolizada pelo individualismo, democracia pública, racionalidade econômica, utilitarismo, superioridade do direito, cinema, televisão, Internet, e outros. Internacionalização Como consequência da globalização, a internacionalização, por sua vez, referese ao “processo de integrar uma dimensão internacional, intercultural ou global ao propósito, funções ou estudo na educação superior” (KNIGHT, 2003, p. 2). Vê-se então,
que
o
processo
da
internacionalização
não
pode
ser
interpretado
independentemente do processo paralelo da globalização na esfera econômica e social que estão interligados e influencia a seu modo o ensino superior em cada país. Knight (2004; p. 11) afirma que a internacionalização é interpretada e usada de diferentes maneiras em diferentes países e por diferentes stakeholders e juristas que utilizam
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“internacional, intercultural e global” na definição de internacionalização refletindo a amplitude do termo: internacional é usado no sentido de relações entre nações, culturas ou países [...]. Intercultural é relativo à diversidade de culturas existentes dentro dos países, comunidades e instituições. Finalmente, global [...] tem o significado de alcance mundial. Continuando com as afirmações de Knight (2004, p.11), internacionalização cobre o espectro total de programas educacionais e atividades que contribuem ao aprendizado internacionalizado: desde a internacionalização de programas e de atividades em sala de aula visando à mobilidade de alunos e professores, considerandose formas intermediárias de educação transnacional como a mobilidade de instituições de ensino superior e/ou seus programas. De Wit (2011, p. 7) define internacionalização como um processo para apresentar as dimensões interculturais, internacionais e globais do ensino superior, para melhorar os objetivos, funções e ensino e desse modo, atualizar a qualidade da educação e pesquisa. Se a internacionalização for vista como um objetivo específico ou um simples plano, ela continua estagnada e sem muita importância. Rama (2009; p 218-220) aponta que a internacionalização do ensino superior traz novos focos a serem estudados e desenvolvidos pelas universidades, governos, empresas e sociedade, visto que há a incorporação de novos saberes, construção de redes de conhecimento e aumento na qualidade através da formação dos docentes locais. O autor descreve o nascimento da Educação da sociedade do conhecimento, como a revolução dos saberes promovida pela economia global visando ao mercado laboral. A universidade chegou ao limiar da necessidade de mudanças para competir no mercado profissional que exige atualização constante evitando a obsolescência do conhecimento É premente a necessidade da atualização do conhecimento que se desenvolve com grande rapidez, além das formas de sua disseminação visando ao mercado de trabalho internacionalizado para aqueles graduados mais bem preparados, aqueles que se apropriaram do conhecimento abraçando profissões agora globalizadas pelas qualificações que demandam. Pode-se pensar a universidade comprometida, cultural, a serviço da sociedade, do conhecimento e interessada no desempenho futuro de seus alunos estando alerta quanto às novas profissões que vêm surgindo ou antigas que vêm se transformando (COSTA OLIVEIRA, 2013).
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Gibbons (1998, p. 60) argumenta que a habilidade de um país de gerar e explorar conhecimento é um fator determinante do desenvolvimento de sua economia e a internacionalização é uma força para a sua expansão e as universidades são adeptas à produção de conhecimento. Entretanto, elas deverão tornar-se competentes na reconfiguração do conhecimento que foi produzido em outro lugar. A habilidade de reutilizar conhecimento em outras combinações, reconfigurá-lo com outras formas de conhecimento com a finalidade de solucionar um problema ou para sanar uma necessidade está se tornando crucial. E o conhecimento desenvolvido dentro da universidade deve ser mostrado ao mundo, podendo, desta forma, atrair estudantes, professores e técnicos, nacionais ou estrangeiros, interessados em contribuir no desdobramento do assunto. A criação do conhecimento é normalmente associada à atividade inventiva, especialmente para a criação de novas tecnologias e vive-se na “revolução da tecnologia da informação”. Nesse sentido, a inovação, particularmente no Brasil, traz à mente a figura padrão de cientistas trabalhando em universidades e engenheiros em laboratórios de pesquisa e desenvolvimento. A inovação, com vistas à construção do conhecimento, poderia iniciar na escola por meio da renovação de currículo, modernização da estrutura, reciclagem de professores (não apenas no domínio de novos temas, como também no treinamento no uso de novas técnicas de ensino e no uso da tecnologia em sala de aula), observando as dimensões internacionais para a pesquisa e ensino, aprimorando o nome da instituição. Dessa maneira, os alunos também se familiarizam com as inovações e vão procurar melhorá-las/renová-las em sua vida profissional. O professor não pode ser um transmissor de conhecimentos estáticos, desconectados do contexto da vida, da experiência dos alunos. Por outro lado, os alunos que desejam um desenvolvimento mais amplo de seus conhecimentos procuram universidades nacionais ou estrangeiras que ofereçam programas que contemplem seus objetivos de maior especialização nas áreas de seu interesse. A experiência de uma vivência com outro povo, outra cultura, é muito valorizada no momento da sua entrada no mercado de trabalho.
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Mobilidade Internacional Charles Homer Haskins (1927, p 369), em seu clássico “O Renascimento do Século XII”, discorre sobre o início da universidade como um produto da Idade Média, e afirma que no
século X pessoas se dirigiam aos centros intelectuais, procurando o conhecimento. Hoje, século XXI, estudantes, professores, pesquisadores procuram instituições de excelência, com reputação confirmada, que estejam nos primeiros lugares dos rankings de universidades do mundo. Buscam também a universidade localizada em um país com que tenham algum tipo de afinidade, como o conhecimento da língua, localização geográfica, cultura, modo de vida, algum detalhe importante que os ajude a interagir social e culturalmente n aquele país. A mobilidade internacional é vista como um fenômeno dos tempos da globalização. Trata-se da movimentação de pessoas estudando, ensinando ou trabalhando em instituições de ensino estrangeiras, fora de seu país de origem. É também a mobilidade de universidades com campus em outros países com presença física ou virtual, além da mobilidade do currículo de um curso que pode ser usado por instituição estrangeira. Conforme dados da OECD (2009), nas últimas três décadas o número de estudantes internacionais aumentou consideravelmente: de 0.8 milhões em 1975 passou a três milhões em 2007. A educação a distância também compõe esse quadro, pois os cursos online atravessam fronteiras. Neste trabalho, a mobilidade internacional tem seu foco nas pessoas que saem de seus países para estudar ou trabalhar em outros países e é tratada tanto como uma das consequências da internacionalização da universidade, quanto uma das suas causas. Cresswell (2006, p. 200) fala do fenômeno da mobilidade, dissociando a mobilidade atual do que era até há pouco tempo, o fluxo de A para B, isto é, a pessoa viaja, retorna e não interage, não passa adiante a sua experiência vivida no exterior. O autor reconhece a diversidade de fatores e processos que tanto influenciam a base do sistema produtivo, transportes, alimentação, enfim, o comércio em geral e também a vida particular das pessoas envolvidas na mobilidade e que são atingidas por esse fenômeno. As contribuições de estudantes e professores de outros países podem ser organizadas para trazerem um componente intercultural nas atividades educacionais da
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instituição, em seus programas acadêmicos formais e na interação com a comunidade local. Otten, (2000, p.16) aponta que os programas internacionais independentemente de seu foco curricular, regional ou institucional, devem oferecer ao máximo oportunidades de aprendizado intercultural aos estudantes locais e estrangeiros, assim como ao corpo docente envolvido.
Há a necessidade de a universidade ter ciência quanto ao currículo apresentado aos estudantes estrangeiros, ou seja, esse currículo deve ser discutido e adaptado, se necessário. A qualidade do conhecimento de LE do professor que vai trabalhar com esses alunos deve ser excelente e, junto com um currículo interessante, moderno, ambos geram mais motivação e interesse por parte dos estudantes estrangeiros e locais que participam do curso. Em se tratando do professor, quando participa de programa de mobilidade para estudar ou trabalhar ou viaja ao exterior para apresentar trabalhos em congressos, seminários, os seus horizontes se abrem para o mundo internacional. A experiência fora do seu país, lhe dá subsídios para compreender melhor o aluno estrangeiro que cursa a sua disciplina e também para recepcionar o aluno que retorna, dando-lhe a oportunidade de relatar aos colegas a sua experiência no exterior. O pessoal administrativo, que trata da mobilidade estudantil, recepção e documentação, poderia fazer visitas e estágios em países estrangeiros como desenvolvimento profissional ou para cursar uma LE. Língua Estrangeira Altbach (2007, p. 2-3) compara a língua inglesa ao latim, porque esta, hoje, domina a ciência, tecnologia, estudos e a educação como nunca antes. A hegemonia do latim terminou no século XIII após a Reforma Protestante, combinada com o crescimento da identidade nacional dos diferentes países, que valorizou a língua materna. Nos anos 1930, o alemão era a língua científica internacional, mas até a metade do século XX a língua materna de cada país era utilizada no ensino, e o alemão, francês, russo e espanhol eram as línguas das publicações acadêmicas e científicas. A língua inglesa começou a ser mais usada com a expansão do Império Britânico e de seu sistema acadêmico, logo surgindo publicações em inglês de pesquisadores que fazem
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parte da “super poderosa” comunidade científica americana e outros pesquisadores que desejam ter seus trabalhos reconhecidos, também publicam em inglês. Curry e Lillis (2007, p. 6) ponderam sobre o predomínio da LI em publicações acadêmicas dizendo que acadêmicos do mundo todo estão sob crescente pressão para publicar suas pesquisas em inglês. E como resultado, esta situação leva à “monocultura acadêmica”, como denomina a pesquisadora polonesa Anna Duszak (citada CURRY e LELLIS, 2007, p. 6). De Wit (2011, p. 6) comenta sobre o uso da língua inglesa como meio de comunicação na pesquisa e ensino, afirmando que há mais de vinte anos a tendência na educação superior é a de se ministrar aulas em inglês, como alternativa ao uso da língua materna. Destaca alguns efeitos negativos, não pretendidos, como dizer que o ensino ofertado em LI seria o equivalente à internacionalização, mas que resulta em um foco decrescente em outra LE. Outro efeito negativo é a qualidade do inglês falado por estudantes e professores, cuja língua materna não é o inglês, levando a um declínio na qualidade da educação. E ainda, coloca em dúvida se o conteúdo ministrado por um professor que fala mal a LE é válido e os estudantes podem reagir a isso comparando as habilidades didáticas às poucas habilidades com a LE. O conhecimento da LE e o reconhecimento da diversidade de culturas do mundo por parte de estudantes, corpo docente e administrativo é um dos fatores importantes para a recepção dos alunos estrangeiros que vêm estudar na universidade brasileira ou estrangeira. Knight (2001, p. 252) afirma que a língua é uma motivação para estudar em um país estrangeiro; línguas estrangeiras são vistas como passaporte para viajar, estudar, mas também para trabalho internacional e experiências em estágios, assim como para uma carreira internacional.
Por isso, os países cuja língua de instrução é muito
conhecida – falada e escrita – como o inglês, francês, alemão e russo, dominam os interesses de estudantes estrangeiros, em termos relativos ou absolutos. No Brasil, cursos oferecidos em LE são raros, os países próximos têm como língua oficial o espanhol que não é de difícil compreensão para os brasileiros, nem o português, para os falantes de espanhol então não se vê a necessidade do conhecimento mais aprofundado da LE, o que pode ser considerado um erro.
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O fato de o estudante ou o profissional não conhecer uma LE ou as condições internacionais faz com que ele tenha alguma dificuldade em conseguir estágio ou emprego na sociedade globalizada. A Língua Inglesa (LI), reconhecida como língua internacional de comunicação, tem sido utilizada em países onde ela não é a língua oficial e há políticas nacionais que permitem o ensino de disciplinas em inglês (OECD, 2007). Exemplos de países que usam a língua inglesa em seus cursos, especialmente de mestrado e doutorado: países nórdicos, Bélgica (Comunidade Flamenca), Croácia, República Tcheca, Estônia, Finlândia, Grécia, Islândia, Japão, Coréia, Noruega, Polônia, Portugal, Rússia, Espanha e Suécia além de algumas instituições no México, Holanda e Suíça (OECD, 2007). Na Europa, o crescimento do ensino da LI foi alavancado pela reestruturação universitária após as reformas do Processo de Bolonha que prevê programas de bacharelado e mestrado em língua inglesa. Segundo dados da OECD (2009) os países mais procurados pelos estudantes em mobilidade são os de LI, porque ou eles já aprenderam essa língua em seu país de origem, ou desejam aprender e aprimorar o conhecimento estando em imersão. Esses países são: Estados Unidos com 18%, Reino Unido com 9,9% e Austrália com 7%. Os países de outras línguas mais procurados são a Alemanha e França que vêm a seguir, com 7% e 6,8% respectivamente. A procura por estes dois países mostra que a língua alemã e a francesa também são bem conhecidas, facilitando o acesso dos estudantes internacionais a esses países. De Wit (2011, p. 7) demonstra preocupação quanto aos cursos ministrados em LE, porque exclui muitos alunos locais que não falam a LE. A proporção entre estudantes estrangeiros e locais se torna cada vez mais desigual, mas os alunos locais, muitas vezes se inscrevem nos cursos internacionais, imaginando que estes são melhores, causando um efeito negativo. O autor questiona se a presença de poucos estudantes internacionais justifica um curso em LE e como pode ser feita a integração desses estudantes nessa pequena proporção, porque há a ideia, mito, de que mesmo poucos alunos estrangeiros garantem o sucesso do programa internacional. Bradford (2012, p. 8-10) descreve três desafios relativos à implantação desses programas em LI. São eles: a) desafios linguísticos: preocupação quanto à qualidade do ensino e aprendizado quando professores e estudantes trabalham utilizando uma LE,
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mesmo aqueles estudantes com mais fluência, demonstram dificuldade em ouvir e tomar notas. Como consequência, são necessárias adaptações; b) desafios culturais: as instituições que oferecem cursos em LI atraem estudantes de diversas partes do mundo e também professores, isto abre um leque grande de culturas diferentes. Como consequência dessa variedade cultural, surgem problemas no comportamento em sala de aula, nas maneiras de avaliação do aluno e do professor; c) desafios estruturais: referemse à administração e gerenciamento dos programas. Os principais problemas administrativos em cursos oferecidos em LI são, em primeiro lugar, encontrar professores competentes, falantes de inglês, para trabalharem com alunos de nacionalidades diversas e, por conseguinte, falantes de línguas diferentes e com culturas diferentes. Conclusão A globalização, internacionalização, conhecimento, mobilidade e a língua estrangeira são desafios que já são enfrentados diariamente pelas instituições de ensino superior. Estas instituições devem em um curto espaço de tempo multiplicar esforços para uma adaptação adequada para levar seus estudantes a patamares sempre mais altos do conhecimento tornando-os cidadãos capazes, aptos e críticos preparados para enfrentar não apenas o mundo do trabalho ou a sociedade, mas a vida. “A educação pode ser compreendida como [...] o instrumento graças ao qual todo o indivíduo numa sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso; sabemos, no entanto, que na sua distribuição, naquilo que permite e naquilo que impede, ela segue as linhas que são marcadas pelas distâncias, pelas oposições e pelas lutas sociais. ” Foucault, 1971
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REVISITANDO O LIVRO DIDÁTICO JORNADAS.PORT DO 7º ANO: ATIVIDADES DE LEITURA Eliete Aparecida Borges (UNIOESTE) Introdução A proposta deste artigo é uma tentativa de relacionar a teoria e a prática quanto às atividades de leitura propostas no livro diático Jornadas.Port do 7º ano do Ensino Fundamental da escola pública do estado do Paraná, escrito por Dileta Delmanto e Laiz B. de Carvalho, em 2012, publicado pela Editora Saraiva, contendo 320 páginas, dividido em oito unidades: unidade 1 – Capturando o tempo (leitura de memórias e biografias); unidade 2 – Fazer e acontecer (leitura de recomendações e instruções); unidade 3 – O começo foi assim (leitura de lendas e mitos); unidade 4 – Em verso e prosa (leitura de cordel e causo); unidade 5 – O fato em foco (leitura de notícia impressa e on-line); unidade 6 – Outras terras, outras gentes (leitura de guia de viagem e mapa turístico); unidade 7 – De olho no cotidiano (leitura de crônicas) e unidade 8 – Propaganda: informação e sedução (leitura de anúncio e outdoor). Uma vez que a pesquisa abrange questões relativas ao ensino, importa fazer algumas considerações sobre o letramento e as concepções de texto e de leitura. Inicialmente, torna-se imprescindível descrever como foi o caminho do letramento e, para isso faremos um pequeno diálogo com grandes escritores. Em nosso país, o termo letramento surgiu na década de 1980 com o intuito de distinguir as práticas escolares de ler e escrever das práticas sociais de leitura e escrita mais complexas Nessa época, juntaram-se às pesquisas construtivistas sobre o termo, os estudos dos pesquisadores preocupados com questões de aprendizagem e ensino da língua materna. As contribuições dessas pesquisas adicionaram ao termo a dimensão sóciocultural. Com efeito, os alunos encontram-se inseridos em um meio social, no qual apresentam práticas culturais diversas que refletem esses meios. Dessa maneira, o letramento não poderia ser confundido com alfabetização, pois supera a decodificação gráfica e sonora da língua. Mas, afinal, o que é letramento? Magda Soares, em seu artigo “Letramento e alfabetização: as muitas facetas” define o letramento como “o desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema (sistema convencional de escrita) em atividades de leitura e de escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita”. (SOARES, 2004, p. 16). E, para a autora, não se deve dissociar o letramento da alfabetização, porque a entrada do aluno no mundo da escrita ocorre conjuntamente com a aquisição das habilidades desse sistema.
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Já Kleiman (1995, p.19) conceitua letramento “como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita , enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. Com efeito, podemos entender o letramento como as práticas e os eventos de leitura e escrita numa perspectiva sóciohistórica, em que são postos em ação, assim como as conseqüências deles sobre a sociedade. Kleiman apresenta duas concepções de letramento: o modelo autônomo e o modelo ideológico, ambos propostos por Street. O segundo modelo, de acordo com a autora, apresenta práticas de letramento não somente culturais, mas sociais,” nas quais a escrita assume significados para um grupo social dependendo dos contextos e instituições em que ela foi adquirida”(KLEIMAN, 1995, p.21). Tendo em vista a necessidade de que haja um interlocutor para os textos escritos e que são produtos de uma prática social, as práticas de letramento na escola deveriam estar vinculadas à realidade sócio-histórica na qual o aluno está inserido. Esses textos, produzidos pelos alunos deveriam ser realmente lidos por meio de um trabalho coletivo entre professores, alunos e sociedade. Essas atividades escolares constituem o trabalho pedagógico, que por sua vez encontra-se fundamentado num currículo, cujo conteúdo estruturante é o discurso como prática social. Com efeito, o letramento proposto pelas autoras acima mencionadas levam em consideração o impacto social da escrita: escreve-se ou se lê sobre algo relacionado dentro de um contexto de produção Um segundo conceito a ser observado é o de texto. Bakhtin (2003, p.307) “define o texto como a realidade imediata”. No entanto, temos aí uma dicotomia entre texto e a realidade, o que pressupõe a realidade em sua essência, envolvendo a interrelação histórica, um sistema linguístico, uma enunciação (a intenção e sua realização), o autor ( e sua intenção), uma interação ( entre o texto do autor e o texto a ser criado a partir desse texto), os valores dos enunciados ( determinados por diferentes formas de relação com a realidade, com o sujeito falante e com os outros (alheios) enunciados (particularmente com aqueles que são avaliados como verdadeiros, belos), a compreensão dos enunciados integrais e das relações dialógicas entre eles. Bakhtin apresenta o problema das fronteiras do texto como uma realidade imediata estabelecida por dois sujeitos. As interrelações dinâmicas que se estabelecem a partir desses dois sujeitos, a saber, são construídas de diferentes maneiras de compreensão dos enunciados. Para Bakhtin, todo texto apresenta dois pólos, a saber, o sistema e o enunciado. Em relação ao enunciado, o teórico russo apresenta a seguinte definição “o enunciado oral e escrito, primário e secundário, em qualquer esfera de comunicação verbal – é individual, e por isso pode refletir a individualidade de quem fala (ou escreve)” (BAKHTIN, 2003, p.309 ). Quanto ao texto como sistema, pode-se inferir à forma de tratamento lingüístico, que por sua vez, são as escolhas estilísticas, determinadas de forma individual, assim
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como são os enunciados . Com efeito, o sistema que o texto apresenta está arraigado ao enunciador sua intenção, ao papel social ocupado por ele, ao contexto de produção, à esfera de circulação. Entretanto, a cada enunciação o texto apresentará um conteúdo temático que será determinado pelo momento da enunciação. Além dessa apresentação do texto em seu sistema e enunciação, deve-se esclarecer que o princípio dialógico permeia a concepção de Bakhtin de linguagem e que o dialogismo é a condição de sentido do discurso. Examina-se, em primeiro lugar, o dialogismo discursivo, desdobrado em dois aspectos: o da interação verbal entre o enunciador e o enunciatário do texto e o da intertextualidade no interior do discurso. O enunciado, como o resultado de uma construção de sentido, se relaciona com um conjunto de valores pressupostos no meio social onde ocorre o discurso. Portanto, há uma interação social entre três participantes: o falante, o ouvinte e o tópico do discurso. Nesse sentido, o enunciado é determinado por esse processo de interação. Percebem-se as vozes do falante em contato com as do ouvinte que, ainda, interagem com o meio social. Para Bakhtin, o fenômeno da bivocalização é muito comum e primário da comunicação discursiva. Além desse embate entre as duas vozes, a do enunciador e a do enunciatário, são, ainda, seus discursos carregados de outras vozes, a saber, as dos jargões, as dos provérbios, as vozes jurídicas, as escolares e tantas outras. Além dissso, esse discurso apresenta-se imbuído de ideologias, a saber, “a falsa consciência”, ou melhor ainda: “ a expressão de uma ideia”, a partir de uma tomada de posição determinada. O conjunto de signos de um determinado grupo social é definido por Bakhtin como “universo de signos, que se materializa a partir de um contexto sóciohistórico, que recebe um ponto de vista, revelando-se como boa ou má, aceitável ou não” (BRAIT, 2010, p.168). Um terceiro conceito é o de leitura e para isso partir do entendimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que constituem um documento oficial que norteia a educação no Brasil, torna-se imprescindível, haja vista a análise de um livro didático adotado a partir dos listados pelo Ministério da Educação e da Cultura. Com efeito, os PCNs apresentam a seguinte finalidade para a prática de leitura: “a da formação de leitores competentes e, consequentemente, a formação de escritores, pois a possibilidade de produzir textos eficazes tem sua origem na prática de leitura, espaço de construção da intertextualidade e fonte de referências modelizadoras” (PCNs, 1997, p.40) Tendo em vista esse objetivo de leitura, em nenhum momento explica-se por que necessariamente precisa-se escrever após as práticas de leitura, observa-se aí, uma definição não muito clara sobre o verdadeiro objetivo de se praticar leitura no ambiente escolar brasileiro. Embora haja uma nota de rodapé especificando que a referência à formação de escritores não se trata de profissionalizar os alunos no sentido de se tornarem escritores com obras publicadas, mas que sejam competentes quanto à escrita, não é apresentada uma preocupação com a leitura na perspectiva sociocognitiva-
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interacionista, por exemplo, tendo em vista um conteúdo estruturante o discurso como prática social. Sob uma visão mais abrangente, a compreensão da leitura nas Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná, apresenta-se como “um ato dialógico, interlocutivo, que envolve demandas sociais, históricas, políticas, econômicas, pedagógicas e ideológicas de determinado momento”. Com efeito, aparece aqui o enunciador que participa de uma esfera social, na qual vai desenvolver o seu papel, apresentará o seu enunciado com as seguinte estrutura: conteúdo temático, estrutura composicional e fará opção por um estilo, tendo em vista essa perspectiva interacionista proposta por Bakhtin. Ao se pensar em leitura, torna-se imprescindível tratar de qual perspectiva o texto, objeto de estudo, está sendo apreciado. De acordo com o desenvolvimento das pesquisas, num primeiro momento, tratou-se de refletir sobre a concepção de leitura com o foco no autor. Com efeito, esse tipo de leitura torna o leitor assujeitado, pois o que valem são as intenções do autor. A segunda é a concepção de leitura de acordo com a compreensão do texto, quanto ao seu aspecto cognitivo, com tendências às retiradas de informações do texto. É o que se observa nos PCNs, quando se refere à leitura em voz alta que deve ser realizada pelo professor. Aqui se observa a necessidade do aluno em ter um bom modelo de leitor. Posteriormente, passou-se a refletir a leitura por meio de um processo de interação entre o leitor e o autor. Nesse caso, o leitor tem um papel autônomo, ativa seus conhecimentos prévios, buscando-os na memória, elabora hipóteses para entender o texto e as seleciona e cria estratégias de leitura. Esse constitui um processo descendente, pois quem determinará as suas escolhas é o leitor. A quarta é a concepção com foco na interação autor-texto-leitor. O texto é visto como um conjunto de sentidos, dependentes do lugar social do autor e do leitor, tendo em vista as condições de produção, a situação de interação entre o trinômio (autor-textoleitor), as finalidades de leitura, a esfera social de comunicação em que a leitura ocorre. Na presente pesquisa, para ilustrar melhor a concepção de leitura com uma perspectiva a partir do texto, fundamentaremos nossos diálogos, inicialmente com a proposta de Kleiman (1995) na qual a leitura é uma prática de decodificação. Dessa maneira, não levará o aluno a refletir sobre o texto, pois as atividades de leitura são basicamente aquelas nas quais o aluno vai ao texto com o intuito de responder as perguntas que são delimitadas pelo livro didático sem que haja a ampliação de seus conhecimentos prévios. Ainda sobre a perspectiva do texto, Menegassi aponta para um problema: “como um aluno pode encontrar a mensagem do texto logo após a sua leitura silenciosa ou em voz alta, sem antes poder conversar, interagir com os colegas e o professor sobre o conteúdo que acabou de ler?” (MENEGASSI, 2005, p.20)
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O autor ainda se refere às perguntas das atividades de leitura como: substituir a palavra sublinhada por um sinônimo, quantos parágrafos tem o texto, qual o título do texto, quantos versos tem o poema, enumere os parágrafos do texto e outras perguntas nas quais bastará passar os olhos uma única vez sobre o texto, não representando uma leitura com o objetivo de produção de sentido. Para Menegassi não se lê uma receita, por exemplo, da mesma forma que se lê uma tira jornalística. Para o autor, existem diferentes modos de ler, de acordo com o gênero textual, o suporte no qual foi veiculado o texto e, ainda mais, os objetivos do leitor em lê-lo Ainda sobre essa perspectiva do texto, Leffa relaciona quatro problemas:”o conteúdo não se transfere do texto para o leitor; não existe uma relação unívoca entre o texto e o conteúdo; a origem do significado não está no texto e a qualidade no ato da leitura não é medida pela qualidade intrínseca do texto” (LEFFA, 1996, p.13 e 14). Por outro lado, partindo-se da perspectiva do leitor, ou seja, do modo descendente. A compreensão parte dos leitores, são as suas reflexões a respeito do texto, suas considerações de maneira particular, aqui os leitores são autônomo para decidir sobre suas hipóteses, o que valem são suas opiniões sobre o texto. Para ilustrar essa perspectiva, inicialmente, fundamentaremos nosso aporte teórico em Leffa (1996) que defende um processo de interação diferente das atividades de leitura, no entanto, esse processo desloca-se do texto e centra-se no leitor. Segundo o autor, o conteúdo de um texto se reproduz no leitor, pois o texto não possui um conteúdo, mas reflete-o como um espelho. Por outro lado, não existe uma relação unívoca entre o texto e o conteúdo. A origem do significado está no leitor e não no texto. Como cada leitor apresenta seus conhecimentos prévios de maneira individual, então teremos os mais variados significados a partir de um único texto. Ao ler para responder as questões de interpretação propostas pelo livro didático, o aluno não fará uma leitura linear (descodificar as palavras), ao contrário, levantará hipóteses e as testará durante essa atividade de leitura. Segundo Menegassi, são exemplos de perguntas sobre a perspectiva de leitura voltada para o leitor: A partir da leitura do texto, a que conclusão você chega sobre a moral da história? Explique, em poucas palavras, o tema e o título do texto. O final do texto é pessimista ou otimista? Justifique sua resposta (MENEGASSI, 2005, p.27). De acordo com o mesmo autor, a relação entre o professor e o aluno é a de que sempre o aluno interpretou corretamente, pois é ele quem é o leitor do texto. E, por outro lado, se o aluno desconhece alguma figura de linguagem que apareceu durante a
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leitura de algum texto, sua interpretação errada ou não, é que prevalecerá, pois o professor é apena um facilitador da aprendizagem. Quanto à quarta concepção com foco na interação autor-texto-leitor, na qual o sentido de um texto é construído na interação entre sujeitos e o texto e não em algo que existia bem antes dessa interação, fundamentaremos nossa pesquisa, inicialmente, nas contribuições de Koch. Segundo a autora “a leitura é um processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem etc” (KOCH, 2010, p.12) A partir dessa afirmação, constata-se que além dos aspectos linguísticos do texto que constituem a sua estrutura, de sua organização, o aluno bem antes de iniciar a leitura propriamente dita, já fez sua escolha por determinado livro tendo em vista outras leituras preliminares – ao observar a capa do livro, a cor da ilustração contida na capa, o título que aborda a temática já fez uma leitura interacional entre sujeitos. Segundo a mesma autora, o texto é lugar de interação de sujeitos sociais que nela se constituem e são constituídos. Dessa forma, “formam-se” o autor e o leitor do texto. Nessa interação, caberá ao leitor, um sujeito que participa do processo, por meio de pistas deixadas pelo autor do texto, produzir sentidos a partir da leitura do texto, fundamentando-se não somente na descodificação, mas em outros conhecimentos, a saber, suas experiências, seus valores, seus dogmas, suas memórias, suas informações sobre o mundo. Por conseguinte, será capaz de levantar hipóteses, que serão refutadas ou não. Koch (2010) agrupa em três grandes sistemas os conhecimentos necessários nas práticas de leitura: o conhecimento linguístico: que envolve os conhecimentos gramaticais e os lexicais que são os responsáveis pela organização do material linguístico, por meio do uso dos recursos coesivos e pela seleção do léxico; o conhecimento enciclopédico: abrange o conhecimento de mundo do leitor; o conhecimento interacional: que envolve uma gama maior de conhecimentos – de inter-ação, do tipo ilocucional, comunicacional, metacognitivo e superestrutural. O conhecimento ilocucional relaciona-se aos objetivos do falante. O conhecimento comunicacional refere-se às normas da comunicação humana, a saber, a quantidade de informação, à variante linguística adotada em conformidade com a situação de interação e à adequação dos tipos textuais às situações de comunicação. O conhecimento metacognitivo possibilita ao leitor compreender a estrutura da língua. O conhecimento superestrutural diz respeito ao reconhecimento dos textos encontrados nos mais variados eventos sociais.
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A concepção de leitura como prática de interação inclui as pistas deixadas pelo autor do texto, o conhecimento prévio do leitor e o contexto em que os sujeitos se inserem. De acordo com Koch (2002), o contexto abrange o co-texto (entorno verbal), a situação de interação imediata, a situação mediata (entorno sociopolítico-cultural) e o contexto sociocognitivo. O contexto abrange todos os conhecimentos por parte dos sujeitos sociais, que no momento da interação precisam acioná-los: o conhecimento linguístico, o conhecimento enciclopédico, o conhecimento da situação comunicativa e de suas regras, o conhecimento da situação superestrutural, o conhecimento estilístico e suas adequações às situações comunicativas, o conhecimento sobre os gêneros textuais, o conhecimento sobre as práticas sociais e o conhecimento sobre outros textos que fazem parte de outras práticas sociais. Tendo em vista o acima exposto, deve-se compartilhar a ideia de que a leitura acontece nessa interação entre sujeitos e o texto, todos inseridos num contexto social. Ao se produzir um texto, pressupõe-se sempre determinados conhecimentos da língua, enciclopédico e interacional por parte do interlocutor, para que possa produzir sentidos. Com efeito, quanto maior for o conhecimento prévio por parte do interlocutor, maior será a sua competência em relação à leitura. Santos (2012) também apresenta essa perspectiva interacionista quando conceitua leitura como uma atividade estratégica de levantamento de hipóteses, conforme objetivos específicos, para pertencimento a um grupo sócio-historicamente. Assim como Koch, Santos (2012) afirma que ao ler acionamos nossos conhecimentos prévios, relacionados por ela como: o conhecimento textual (corresponderia ao que Koch relaciona ao conhecimento do gênero textual, por exemplo), o conhecimento linguístico, o conhecimento enciclopédico (ou conhecimento de mundo), o conhecimento intertextual e o conhecimento contextual. Dessa forma, há entre os conceitos de Koch e Santos interação quando defendem a ideia de que o trabalho com o texto pode começar antes mesmo de abrir um livro, pois pode-se pensar em uma atividade de leitura fundamentada em três fases: pré-textual (que é a de motivação), textual ( que é a da análise propriamente dita) e pós-textual ( que são as comparações com outros textos que fazem parte de outras práticas sociais). Essa proposição em três fases, apresentada por Santos (2012), pode ser explicada da seguinte forma: as atividades pré-textuais referem-se ao título e ao subtítulo do texto, caso haja e suas relações por meio do levantamento de hipóteses do valor semântico dos vocábulos, da contraposição de idéias, normalmente a que público-alvo se destinaria determinado texto. as atividades textuais são as que tratam do gênero, do suporte no qual se circulou o texto, a presença de elementos linguísticos, tais como modalizadores da enunciação (adjetivos, advérbios, verbos de valor e
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subjetivo, verbos que denotam um comportamento verbal, verbos de opinião, verbos performativos), a estrutura dos parágrafos, uso de conectivos, além de outros fatores extralingüísticos. As atividades pós-textuais são as que relacionam os gêneros textuais entre si, o entrelaçamento possível com outros textos que tratam do mesmo assunto. E a partir da leitura, propõe a produção de cartazes (gêneros escritos), de debates, entrevistas (gêneros orais, visitas- surpresa a alguma turma para falar do texto lido) e, a critério do professor, que poderá desenvolver uma série de atividades de leituras, gerando um circuito de leituras variadas e interativas. Geraldi (2006) também apresenta uma concepção de leitura centrada na perspectiva interacionista. Para o autor, a leitura é um processo de interlocução entre leitor/autor, ausente, que se dá pela sua palavra escrita. Como o leitor, nesse processo, não é passivo, mas agente que busca significações, “o sentido de um texto não é jamais interrompido, já que ele se produz nas situações dialógicas ilimitadas que constituem suas leituras possíveis” (Authier J., 1982, p.104, apud GERALDI, 2006, p.91). Para o autor, o aluno deve ter acesso à leitura de forma livre e despreocupada, com o intuito de propiciar o prazer pela leitura. No entanto, essa abertura à leitura deve ser limitada pelo professor, tendo em vista que determinados textos, devido à sua complexidade, podem desestimular as atividades de leitura. Menegassi (2005) apresenta a perspectiva discursiva na qual, durante o processo de leitura são levadas em consideração as condições de produção. Para se estudar sobre essa perspectiva deve-se orientar na análise dialógica do discurso (ADD) na qual se pretende questionar sobre o significado do texto, o movimento percorrido pelo sujeito ao ler determinado texto. Menegassi (2005) relaciona três princípios da ADD, a saber: o sujeito forma os significados do texto a partir de suas leituras prévias, ou seja, de todo o conhecimento já acumulado por ele; conceitua discurso como estrutura e conhecimento. Essa estrutura está condicionada aos aspectos históricos, sociais e ideológicos, uma vez que o sujeito sofre influência desses fatores; determina que o texto é a materialização do discurso e afirma que o discurso é o resultado de uma interação entre sujeitos envolvidos em um contexto linguístico, histórico e ideológico. A ADD relaciona-se com as condições de produção. Mas o que seriam essas condições de produção? São as relações entre os sujeitos e seus envolvimentos com o contexto do momento, além das contribuições dos contextos sócio-históricos, ideológicos, linguísticos, religiosos, etários e os que se envolverem com essas condições de produção. Essas condições de produção funcionam a partir da memória discursiva. Referem-se à ativação dos sentidos arquivados na memória dos sujeitos. Quando os
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sujeitos fazem isso, selecionam o que pode ser dito a determinado sujeito e qual é o momento adequado para se dizer o que se pretende. Então, percebe-se que ao dizer os sujeitos ocupam determinados papéis socais. E, nessas relações de discurso, os sujeitos estabelecem imagens uns dos outros, durante a abordagem de um determinado texto. Menegassi (2005, p. 37) relaciona as contribuições de Coracini, quando nos deparamos com perguntas nos livros didáticos como: “identifique as ideias centrais no texto”, ou ainda “quais são as interações do autor”, como sendo informações inúteis, pois são sempre construções, produto da interpretação de um dado leitor em um dado momento e lugar. O leitor, dependendo das condições de produção, estará em constante resignificação dos sentidos de uma determinada leitura. Em relação a essa competência do leitor de produzir sentido ao texto, deve-se observar, segundo Possenti ( 1996), citado pro Menegassi (2005, p.38), o fato de que ocorrerá, dependendo dos aspectos cognitivos e de seus conhecimentos, um comprometimento na produção de sentido, uma vez que o leitor seja deficitário em relação aos seus aspectos cognitivos e com poucos conhecimentos arquivados ao longo de suas leituras. Análise do livro didático e de sua utilização em sala de aula Para a realização deste trabalho selecionamos o livro didático do 7º ano do Ensino Fundamental da escola pública do estado do Paraná, da coleção Jornadas.Port, escrito por Dileta Delmanto e Laiz B. de Carvalho, em 2012, publicado pela Editora Saraiva e adotado pelos colégios da rede estadual do Núcleo Regional de Educação de Toledo. Esse livro didático, foi analisado na íntegra, quanto às atividades de leitura de acordo com as classificações propostas pelos autores a respeito das concepções de leitura relacionadas nesse trabalho de pesquisa. O livro contém 320 páginas, e está organizado em oito unidades: unidade 1 – Capturando o tempo (leitura de memórias e biografias); unidade 2 – Fazer e acontecer (leitura de recomendações e instruções); unidade 3 – O começo foi assim (leitura de lendas e mitos); unidade 4 – Em verso e prosa (leitura de cordel e causo); unidade 5 – O fato em foco (leitura de notícia impressa e on-line); unidade 6 – Outras terras, outras gentes (leitura de guia de viagem e mapa turístico); unidade 7 – De olho no cotidiano (leitura de crônicas) e unidade 8 – Propaganda: informação e sedução (leitura de anúncio e outdoor).
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Análise do corpus Perspectiva de leitura
Nº da Unidade Quant./Questões
Leitura com foco no autor
1
1
Leitura com foco no texto
21
Leitura com foco no leitor
18
Leitura com foco no autor-texto-leitor
2
Perspectiva de leitura
Nº da Unidade Quant./Questões
Leitura com foco no autor
2
0
Leitura com foco no texto
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Leitura com foco no leitor
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Leitura com foco no autor-texto-leitor
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Perspectiva de leitura
Nº da Unidade Quant./Questões
Leitura com foco no autor
3
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Leitura com foco no texto
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Leitura com foco no leitor
6
Leitura com foco no autor-texto-leitor
0
Perspectiva de leitura
Nº da Unidade Quant./Questões
Leitura com foco no autor
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Leitura com foco no texto
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Leitura com foco no leitor
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Leitura com foco no autor-texto-leitor
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Perspectiva de leitura
Nº da Unidade Quant./Questões
Leitura com foco no autor
5
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Leitura com foco no texto
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Leitura com foco no leitor
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Leitura com foco no autor-texto-leitor
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Perspectiva de leitura
Nº da Unidade Quant./Questões
Leitura com foco no autor
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Leitura com foco no texto
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Leitura com foco no leitor
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Leitura com foco no autor-texto-leitor
0
Perspectiva de leitura
Nº da Unidade Quant./Questões
Leitura com foco no autor
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Leitura com foco no texto
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Leitura com foco no leitor
6
Leitura com foco no autor-texto-leitor
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Perspectiva de leitura
Nº da Unidade Quant./Questões
Leitura com foco no autor
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0
Leitura com foco no texto
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Leitura com foco no leitor
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Leitura com foco no autor-texto-leitor
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Considerações finais A partir da teoria aqui adotada e da análise do livro didático selecionado, podemos perceber, a princípio, que a maioria das atividades de leitura atende à perspectiva textual, ao passo que a perspectiva do leitor apresenta-se em segundo plano e requerem os conhecimentos linguísticos e enciclopédicos por parte do leitor e, ainda, são raras as atividades sob uma ótica interacionista, lembrando que não se observa em nenhuma atividade de leitura a perspectiva discursiva. Então, como o livro analisado apresenta suas atividades de leitura centradas no “recorte” do texto e “cole” nas respostas da maioria das atividades de leitura, é a atuação docente que propiciará ao aluno uma nova metodologia, na qual haja uma interação entre o autor, o texto e o leitor a respeito de uma perspectiva do contexto discursivo. Referências BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010. DELMANTO, Dileta. Jornadas.Port – Língua Portuguesa, 7º ano. 2ª Ed São Paulo: Saraiva, 2012. GERALDI, João Wanderley. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2006. KLEIMAN, Angela B. Os significados do letramento. São Paulo: mercado de Letras, 1995. KOCH, Ingedore. Linguística Textual: introdução. 6. Ed. São Paulo: Cortez, 2002. ______________. ELIAS, Vanda. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2010. LEFFA, Vilson J. Aspectos da leitura: uma perspectiva psicolinguística. Porto Alegre: Sagra; DC Luzzatto, 1996.
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DESENVOLVIMENTO DA ESCRITA NO ENSINO SUPERIOR: INVESTIGANDO OS GÊNEROS RESENHA, ARTIGO CIENTÍFICO E RELATO DE OBSERVAÇÃO Elisa Cristina Amorim Ferreira (UFCG) Denise Lino de Araújo (UFCG) Introdução A universidade é uma comunidade discursiva na qual o licenciando busca ingressar através do desenvolvimento da escrita acadêmica materializada em gêneros textuais típicos. A resenha, o artigo científico e o relato de observação, comumente solicitados, surgem como propiciadores do desenvolvimento da escrita. Assim sendo, nessa comunidade discursiva, o desenvolvimento de escrita é entendido em um sentido amplo, qual seja de que aprender a escrever significa produzir textos especializados coerentes com o assunto, com o processo de escrita, com o gênero, e, consequentemente, com a comunidade discursiva na qual se estabelece. Nesse sentido, o desenvolvimento da linguagem escrita na universidade ocorre porque uma série de problemas de ensino-aprendizagem da escrita está sendo resolvida no ensino superior e não na educação básica. Além disso, existem especificidades da escrita acadêmica, materializada nos gêneros textuais do meio acadêmico, que precisam ser aprendidas nesse nível de ensino (cf. BRONCKART, 2006; SWALES, 2009) por estarem ligadas ao domínio de determinados conhecimentos (cf. BEAUFORT,1998 apud SWALES,2009, p.35 e TARDY, 2009 apud BAWARSHI & REIFF, 2003, p.164). A pesquisa aqui relatada, recorte de uma investigação maior, teve como objetivo identificar e analisar os conhecimentos para o texto especializado mobilizados no processo de desenvolvimento da escrita acadêmica materializada nos gêneros textuais acadêmicos resenha, artigo científico e relato de observação produzidos por um sujeito licenciando em Letras. A fim de atender ao objetivo apresentado, este artigo foi estruturado a partir do seguinte plano organizacional: a presente introdução; a seção metodológica, na qual caracterizamos nossa pesquisa; a seção teórica, na qual apresentamos nosso
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enquadramento teórico (estudos linguístico-retóricos para o desenvolvimento de escrita na academia); a seção analítica, na qual tecemos considerações sobre o percurso do sujeito através da análise de quatro produções textuais, com foco na unidade retórica de análise; as considerações finais, seguidas das referências. Aspectos metodológicos A investigação insere-se no campo da Linguística Aplicada e caracteriza-se como uma pesquisa de natureza qualitativa longitudinal de viés documental, uma vez que averiguou textos produzidos por um sujeito licenciando em Letras de uma universidade federal que vivenciou e vivencia duas mudanças expressivas, concomitantemente, a saber: (1) a turma do aluno foi a primeira a ingressar na instituição de ensino superior em questão, exclusivamente pelo ENEM, que substituiu o vestibular como forma de seleção; e (2) foi a primeira turma a ser regida pelo novo Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura Letras em referência (UAL, 2011). Nesse contexto, ao aprender a escrever para a academia, o sujeito produziu quatro grupos de dados, conforme representado no quadro a seguir. Momentos de geração dos dados
1º MOMENTO DE GERAÇÃO DOS DADOS (1º período letivo) 2011.1
2º MOMENTO DE GERAÇÃO DOS DADOS (curso de férias) 2011.1 / 2011.2
3º MOMENTO DE GERAÇÃO DOS DADOS (2º período letivo) 2011.2
4º MOMENTO DE GERAÇÃO DOS DADOS (3º período letivo) 2012.1
SUJEITO
1. Resenha.
2. Resenha.
3. Artigo científico.
4. Relato de observação.
Quadro 1: Sujeito e momentos de geração de dados.
A resenha 1 foi produzida na disciplina Fundamentos da Prática Educativa (2011.1), com base em textos-fonte discutidos em sala de aula. A resenha 2 foi elaborada em um curso de escrita acadêmica realizado nas férias, entre os períodos de 2011.1 e 2011.2, pela mesma instituição de ensino superior. O artigo científico foi produzido na disciplina Leitura e Escrita: teorias sociointeracionistas, em 2011.2, após discussões teóricas de textos diversos. E, por fim, o relato de observação foi escrito na disciplina Paradigmas de Ensino, em 2012.1, resultante de discussões teóricas variadas e de observação feita pelo sujeito de aulas do ensino básico em escola regular. Após análise preliminar, selecionamos as unidades retóricas de análise para nossa investigação. A “análise” foi selecionada depois de concluirmos que a resenha, o
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artigo cientifico e o relato de observação, cada um com suas devidas particularidades, apresentam a seção de “análise”. Esse eixo nos parece ser a linha comum e caracterizadora da escrita na comunidade acadêmica, a produção da análise, portanto, estabelece a pertença à comunidade discursiva acadêmica. Já que através dela o sujeito produtor do texto posiciona-se como especialista, de acordo com uma determinada base teórica e uma base de dados. Em vista disso, a investigação das produções escritas a partir dos conhecimentos para o texto especializado, revelados através da unidade retórica da análise em cada gênero são nossas categorias de análise. Fundamentos teóricos: estudos linguístico-retóricos Ao tomarmos os estudos linguístico-retóricos1 como base teórica, adotamos uma perspectiva de gênero textual indissociavelmente ligadas à situação de produção. Assim, as definições de gênero e comunidade discursiva apresentadas por estudiosos, como Swales (1990) e Miller (2009), cunhadas mantendo uma unidade de reflexão baseada em aspectos retóricos e sociais, são essenciais. Gênero e comunidade discursiva são conceitos intrinsecamente relacionados, pois os gêneros estabelecem-se nas comunidades. Os gêneros textuais pertencem não a indivíduos isolados e sim a comunidades discursivas compostas por grupos de indivíduos, que geram convenções restritivas às escolhas individuais (cf. BIASIRODRIGUES, HEMAIS E ARAÚJO, 2009). Compartilhando essa ideia, Miller (2009) afirma que “a comunicação bem sucedida requer que os participantes compartilhem tipos comuns; [e] isso é possível na medida em que os tipos são criados socialmente” (op. cit., p.31). Isso implica dizer que os gêneros (formas tipificadas de discurso), produzidos por um sujeito, só são reconhecíveis por outro sujeito em uma situação tipificada porque os gêneros são essencialmente sociais. A academia corresponde ao que Swales (1990; 1998 apud BONINI e FIGUEIREDO, 2010) define como comunidade discursiva ou “rede sociorretórica”. 1
Utilizamos o termo estudos linguístico-retóricos a fim de evidenciar as possíveis interconexões existentes entre as abordagens linguísticas (ESP – inglês para fins específicos, particularmente) e retóricas de gênero (ERG), sobre as quais tecemos considerações.
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Assim, a academia seria um grupo de pertença no qual o sujeito licenciando busca ingressar através da apropriação da escrita acadêmica materializada nos gêneros textuais típicos envolvidos nos eventos comunicativos e que são responsáveis, em parte, pela constituição e funcionamento de comunidades específicas. A produção de texto, nessa perspectiva, é uma atividade social ou “sociopsicológica” (cf. BAZERMAN, 2006) que se realiza conforme convenções discursivas especificas e revela comportamento social e conhecimento dos membros do grupo, sendo o ingresso e a ascensão de um sujeito/membro dependente do domínio dos gêneros da comunidade, “uma vez que eles [os gêneros] são peças centrais na realização dos propósitos sociais estabelecidos nesse contexto” (BONINI e FIGUEIREDO, 2010, p.123). Em cada comunidade, conhecer um gênero, segundo Bawarshi e Reiff (2013), requer ter o conhecimento de traços formais; dos propósitos a que o gênero serve; das negociações das intenções individuais na relação com as expectativas e motivações sociais dos gêneros; do quando, por que e onde usar o gênero; das relações leitor com escritor e das relações entre gêneros. São novas maneiras de compreender, interpretar e organizar o conhecimento, às quais os sujeitos devem se adequar. Essas maneiras não estão preestabelecidas no cognitivo deles nem são adquiridas automaticamente no contato com o meio acadêmico pelo simples fato de terem passado no exame de ingresso. A apropriação das práticas de escrita acadêmica requer múltiplas competências, “numa complexa inter-relação entre aspectos linguísticos, cognitivos e socioculturais” (BEZERRA, 2012, p. 247). Para estabelecer laços de pertencimento no grupo acadêmico, o graduando necessita, em síntese, desenvolver e dominar a escrita acadêmica, concretizada e articulada através dos gêneros característicos dessa comunidade, estabelecidos na e pela linguagem. Por conseguinte, há conhecimentos de diversas naturezas imbricados na produção de um texto especializado, ou seja, acadêmico, que devem ser desenvolvidos. De acordo com Beaufort (1998 apud SWALES, 2009, p. 35), cinco são os domínios de conhecimento contextualizado para o texto especializado: (1) conhecimento do assunto, (2) conhecimento retórico, (3) conhecimento do processo de escrita, (4) conhecimento do gênero e (5) conhecimento da comunidade discursiva.
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Tardy (2009 apud BAWARSHI E REIFF, 2013, p.164), por sua vez, com base em textos de estudantes de pós-graduação, descreveu as seguintes características multidimensionais de gêneros: (1) domínios de conhecimento formal, (2) conhecimento retórico, (3) conhecimento temático e (4) conhecimento processual. Essas características de Tardy assemelham-se aos quatro domínios de conhecimentos apresentados por Beaufort, o que nos permite redefinir esses domínios, tornando-os mais sintéticos e com fronteiras mais nítidas de análise. Assim, redefinindo os domínios de conhecimento com base em Beaufort (op.cit.) e Tardy (op. cit.) temos:
Gráfico 1: Domínios de conhecimento contextualizado para o texto especializado Fonte: Elaborado pelas autoras (2013) com base nos textos de Beaufort (1998 apud SWALES, 2009, p.35) e de Tardy (2009 apud BAWARSHI E REIFF, 2013, p.164)
O conhecimento do assunto (em amarelo), o conhecimento do gênero (em vermelho, primeiro plano), o conhecimento do processo de escrita (em azul) são os três conhecimentos base para a produção de um texto especializado (interseção do gráfico em marrom), isto é, de um texto que circule proficientemente no meio para o qual foi produzido, sendo aceito como exemplar do gênero por seus interlocutores. Além desses conhecimentos, destacamos o conhecimento da norma linguística padrão (em vermelho, segundo plano), que está dentro do conhecimento do gênero, que se evidencia devido a sua inegável importância na comunidade acadêmica, em especial num curso de Licenciatura em Letras. O conhecimento da comunidade discursiva (em cinza) estaria em um nível distinto dos demais, já que seria um conhecimento formado pelos outros conhecimentos e dependente destes. De acordo com os dados gerados nesta pesquisa, o conhecimento do assunto para as situações de escrita nas quais os dados foram gerados já estava dado, pois os
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assuntos foram previamente trabalhados em sala de aula antes das produções, o que implica dizer que os sujeitos deveriam dominá-los. O conhecimento do processo de escrita implica a própria montagem dos textos, nas idas e vindas do processo de escritura; portanto, para ser analisado profundamente necessita de acompanhamento que os nossos dados não revelam por serem versões finais dos gêneros. Restam o conhecimento do gênero e o conhecimento da comunidade discursiva, este último parece-nos ser o conhecimento mais significativo, por que ele revela a importância de se pensar o texto como uma tessitura complexa de inter-relação de aspectos e, juntamente com o conhecimento do gênero, permite a definição da unidade retórica da análise como um elemento constitutivo e característico da escrita acadêmica. Essas reflexões e contribuições teóricas nos fazem pensar que, embora o aparente consenso de que as práticas discursivas presentes nesse grupo influenciam todos os sujeitos, as influências dão-se de maneira desigual e variável em decorrência da história de experiências sociais comunicativas de cada um. Isso porque os conhecimentos não são compartilhados homogeneamente por parte dos sujeitos. A partir do exposto, podemos pensar o desenvolvimento da linguagem escrita além dos processos de aquisição do código. Em outras palavras, ao adotar a noção de desenvolvimento da escrita, não estamos nos referindo apenas à aquisição do código, pois os sujeitos licenciandos já o adquiriram. Estamos investigando o desenvolvimento em um sentido mais amplo, que envolve aspectos linguísticos, textuais e discursivos, característicos da escrita acadêmica e presentes nos gêneros textuais dessa esfera. Portanto, os licenciandos, nesse processo de desenvolvimento, não podem ser considerados como receptores passivos de conhecimento (SCARPA, 2001), pois eles buscam afirmarem-se como sujeitos da linguagem, como membros de uma comunidade discursiva, como construtores do seu próprio conhecimento de mundo passando pela representatividade do outro. Escrevendo na academia: considerações sobre o percurso de licenciando em letras A resenha, o artigo científico e o relato de observação analisados foram gerados em três disciplinas da grade curricular do curso de licenciatura e em um curso de férias, como apresentado na seção metodológica. As disciplinas, nos períodos investigados,
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pareceram não ter a preocupação explícita com o desenvolvimento da escrita. Já o curso de férias, realizado entre o primeiro e o segundo período letivo, surgiu dessa preocupação em melhorar a escrita do gênero acadêmico resenha, devido à constatação da dificuldade da turma de licenciandos em redigir textos desse gênero. Com base nas produções investigadas, construímos o quadro síntese, a seguir. RESENHA 1 Estrutura básica do gênero, mesmo que com menor complexidade; Sumarização e crítica; Críticas em forma de comentários; Reflexão comparativa entre textos-fonte; Cumpre com a análise, mesmo que de modo incipiente (às vezes, prescritivo); Segue uma organização textual; Sujeito começa a colocar-se como especialista; Engajamento; Expõe-se como produtor, ao passo que também preserva sua face;
Ainda algumas limitações e desvios da norma padrão;
Ainda não membro mas busca tornar-se através dos comentários; Essas ações revelam um grau ainda inicial de consciência linguística e textual em relação ao gênero produzido e resenhado, da comunidade, bem como do conteúdo, do processo de escrita e da norma padrão.
PRODUÇÕES RESENHA 2 ARTIGO CIENTÍFICO Estrutura básica do gênero; Manutenção das principais Estrutura básica do gênero; características de escrita;
RELATO DE OBSERVAÇÃO Estrutura básica do gênero;
Sumarização e crítica; Inclusão engajada e não velada dos posicionamentos; Comentário: reflexão, e correlações;
Relaciona dados, comentários e fundamentação teórica; Elabora tópicos de fechamento para os tópicos categorizados, relacionando-os;
Comentários mais fundamentados e embasados em fontes diversas (teóricas e observacionais); Faz ressalvas e mostra pontos de vistas positivos e negativos;
Segue uma organização textual;
Organiza logicamente a análise através de categorias; Uniformização da organização dos tópicos analíticos e do uso linguístico;
Uso de critérios e categorias para suas exposições;
Engajamento; Expõe-se como produtor e analista;
Engajamento; Posiciona-se como especialista;
Inclui o leitor (1ª pessoa do plural, por exemplo) e expõe-se como autor; Engajamento;
Gerenciamento de vozes; Modalização; Título;
Possivelmente, o sujeito repetiu as características bem aceitas na resenha 1. O curso foi um meio de confirmação do gênero. Comprovou estratégias da escrita e adquiriu/aprimorou outras; Desenvolvimento dos conhecimentos parece está ligado à repetição e a (des)confirmação de estratégias; Adquiriu mais autonomia escritora.
Títulos criativos e adequados;
Vem desenvolvendo o domínio dos conhecimentos para o texto especializado, através de uma percepção analítica que se amplia juntamente com a autonomia e sua busca por tornar-se membro; Proporcionalmente, amplia-se a quantidade de desvios quanto à norma padrão. O texto tem extensão maior e, com isso, mais desvios que às vezes prejudicam o texto. Quadro 2: Síntese das produções.
Uso de conectivos a fim de relacionar ideias; Começa a apresentar citações indiretas; Ainda apresenta inadequações micro e macroestruturais; Apresenta dificuldade de seguir normas de citação e referenciação; Demonstrações de desenvolvimento dos conhecimentos; Preocupa-se com a compreensão do leitor; Busca inserir-se na comunidade discursiva acadêmica através dos conhecimentos inerentes à escrita dessa comunidade, mesmo sem grande domínio da norma padrão, apesar dessa também ser exigência na comunidade.
A análise brevemente exposta no quadro valida a tese inicial de que o desenvolvimento da escrita acadêmica se dá por meio do desenvolvimento e/ou
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aprimoramento do domínio dos gêneros típicos dessa esfera discursiva por parte dos sujeitos. Em outras palavras, a escrita acadêmica materializa-se nos gêneros textuais típicos desse meio, cujo desenvolvimento é decorrente da inserção dos sujeitos como membros dessa esfera e também do seu conhecimento dos gêneros que nela são mobilizados por membros mais experientes e já iniciados. Tanto a inserção quanto o conhecimento dos gêneros estão interligados e evidenciam o domínio de conhecimentos para o texto especializado; por sua vez, a demonstração desses conhecimentos aponta para as etapas de imersão dos sujeitos produtores na comunidade discursiva, isto é, a aceitação/reconhecimento destes como membros. Ao analisarmos os dados, identificamos, inicialmente, que os conhecimentos e as etapas estariam relacionados à construção da unidade retórica de análise presente em cada um dos três gêneros (e em diversos outros gêneros textuais tipicamente acadêmicos), cada qual com suas especificidades, mas interligados por esse eixo comum e caracterizador da escrita dessa comunidade discursiva. É por meio dessa unidade que o sujeito produtor do texto posiciona-se com membro, de acordo com uma determinada base teórica e para análise de um dado, visando, com isso, cumprir com o objetivo comunicativo dos gêneros e ser aceito como membro da comunidade. O sujeito focalizado, apesar de dificuldades e mesmo que inconscientemente, busca apresentar a unidade retórica da análise em suas produções e, assim, ser reconhecido entre os pares. Isso nos faz pensar que o processo de desenvolvimento da escrita seria também decorrente de empenho pessoal do licenciando, mas não apenas deste. A unidade analítica na academia parte, muitas vezes, da síntese ou do relato, por exemplo, mas não se limita a isso, a análise implica em fundamentar, justificar, argumentar, persuadir, relacionar, inferir, comparar, averiguar, explorar, criticar etc. Essa complexa e multifacetada unidade requer abstração e subjetividade para demonstrar o que não é explícito objetivamente, logo, é um tipo de raciocínio que precisa ser iniciado e treinado, além de requerer conhecimentos do aparato linguísticotextual para concretizá-la. Em termos de conhecimentos, são esperados, no primeiro período, problemas e dificuldades, por parte do sujeito analisado, que teve de resumir e comentar capítulos de livros teóricos. No segundo período, verificamos a superação de alguns problemas e o
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surgimento de outros; nesse sentido, a produção das resenhas parece ter auxiliado a produção da fundamentação teórica do artigo científico, mas, além disso, o sujeito se deparou com a necessidade de elaborar análises fundamentadas de dados. No terceiro período, ao passar pela produção das resenhas e do artigo, supostamente encontramos a superação das dificuldades na análise da situação e sua correlação com teoria. Ao analisarmos os quatro textos do sujeito, com foco na seção analítica, verificamos que o processo de desenvolvimento de escrita na academia está ligado aos mesmos conhecimentos: conhecimento do assunto, conhecimento do gênero, conhecimento da norma linguística padrão, conhecimento do processo de escrita, conhecimento da comunidade discursiva, além de um outro conhecimento identificado a partir dos dados – o conhecimento da informática básica. O diferencial entre o processo de desenvolvimento desse e de outros sujeitos, cogitamos, que seja a maneira como esses conhecimentos são mobilizados. De maneira geral, alguns conhecimentos aparecem mais explicitamente nos dados devido à recorrência, outros são menos perceptíveis; talvez isto se dê em decorrência de esta investigação ter analisado versões finais das produções. Os dados demonstram que não houve fuga quanto ao conhecimento do assunto nem do gênero, já em relação ao conhecimento do processo de escrita, da norma linguística, da informática e da comunidade discursiva observamos uma atitude que influenciou diretamente no desenvolvimento da escrita desse sujeito: o engajamento. O sujeito, no seu processo de desenvolvimento, apesar de ainda não membro da comunidade focalizada e de limitações, busca tornar-se membro, por meio do seu engajamento. Desde o primeiro período letivo, coloca-se no papel de especialista, assumindo-se como autor e apresentando sequências analíticas em seus textos, mesmo que de modo incipiente. No decorrer das produções, o sujeito vai confirmando e aprimorando estratégias utilizadas e demonstrando que está adquirindo outras. Assim, o desenvolvimento dos conhecimentos inerentes à produção de texto especializado, evidenciado pelas produções do sujeito, dá-se, em parte, de modo empírico, pela repetição do exercício de escrever e pela confirmação de escolhas linguísticas na produção.
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Ao passo que se engaja nas produções, através de uma percepção analítica que se amplia juntamente com sua busca para tornar-se membro, o sujeito que aqui focalizamos vai adquirindo a autonomia escritora decorrente do aprimoramento dos conhecimentos da comunidade discursiva, do processo de escrita, do assunto e do gênero. Em decorrência dessa autonomia, suas análises começam a ganhar mais relações, comentários e fundamentações; em contrapartida, amplia-se também a quantidade de desvios quanto à norma linguística padrão. Esse sujeito, ao adquirir maior confiança em sua escrita, arrisca-se mais em suas construções e, em gêneros mais extensos, demonstra mais problemas de domínio do conhecimento da norma padrão que prejudicam sua composição textual. Dessa forma, os dados revelam que esse sujeito busca ser aceito por meio de vários conhecimentos inerentes à escrita acadêmica mesmo sem dominar a norma padrão da língua e programas de edição de texto que poderiam auxiliar na solução de problemas de ortografia e sintaxe (em casos mais simples). Assim, em seu processo, o sujeito evidencia o aprimoramento dos conhecimentos. Conhecimento do assunto, do gênero, do processo de escrita e da comunidade discursiva se mostram quando o sujeito generaliza sobre o tópico comum aos textos e/ou aos dados analisados; retextualiza; organizar o texto seguindo determinada ordem e/ou categorias de análise; intitula os textos e seus tópicos. O conhecimento do assunto, do gênero e da comunidade discursiva também são demonstrados quando o sujeito realiza comentários, reformulações, comparações, julgamentos e estabelece relações; bem como ao assumir-se como produtor do seu texto por meio de expressões e de formas verbais; ao fundamentar-se em aspectos teórico ou prático, ou seja, quando ancora seu texto. Conhecimento do gênero, do processo de escrita e da comunidade discursiva se mostram quando o sujeito gerencia as vozes do texto; utiliza pergunta retórica; cumpri as unidades retóricas; modaliza; utiliza estratégias de pessoalidade e impessoalidade; usa termos teóricos. E o conhecimento da norma linguística padrão foi demonstrado de modo incipiente, assim como o conhecimento da informática básica. Considerações finais
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Em nossa pesquisa verificamos que é fundamental para o desenvolvimento da escrita acadêmica a presença dos conhecimentos do assunto, do gênero, da norma linguística padrão, do processo de escrita, da informática e da comunidade discursiva, sendo este último resultante do domínio dos demais conhecimentos e, logo, caracterizador da unidade retórica da análise. Além disso, verificamos que, de fato, parece haver a necessidade de ensino assistido e sistematizado da escrita acadêmica. Os professores ministrantes das disciplinas cursadas pelo sujeito propuseram atividades de escrita, conforme os dados indiciaram, de acordo com o que eles supuseram ser a necessidade dos alunos ao escrever ou, talvez, de acordo com as necessidades das disciplinas que ministravam. Logo, a requisição dos gêneros esteve muito mais centrada no professor, na sua disciplina e em seu projeto de ensino, do que nas necessidades do licenciando. Em conclusão, a pesquisa realizada mostrou que o desenvolvimento da escrita na academia é um processo complexo e multifacetado ainda pouco estudado. É um campo de investigação fértil e relevante, tanto para o estudo de questões teóricas quanto para questões aplicadas. Este artigo centrou-se nas produções de um licenciando em Letras, todavia, vários elementos dessa rede discursiva ainda merecem destaque, como as etapas de desenvolvimento de escrita acadêmica que estão atreladas à aceitação do sujeito produtor do texto como membro da comunidade discursiva acadêmica, que nos leva a um outro artigo. Referências BAWARSHI, Anis S.; REIFF, Mary Jo. Gênero: história, teoria, pesquisa, ensino. Tradução Benedito Gomes Bezerra [et al.]. 1ª ed. São Paulo: Parábola, 2013. BEZERRA, Benedito Gomes. Letramentos acadêmicos na perspectiva dos gêneros textuais. Fórum Linguístico, Florianópolis, v. 9, n. 4, p. 247-258, out./dez. 2012. Disponível em: . Acesso em: 22 mar. 2013. BIASI-RODRIGUES, Bernardete; ARAÚJO, Júlio César; SOUSA, Socorro Cláudia Tavares de (Orgs.). Análise de gêneros na abordagem de Swales: princípios teóricos e
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metodológicos. In.: __________. Gêneros textuais e comunidades discursivas: um diálogo com John Swales. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. BONINI, Adair; FIGUEIREDO, Débora de Carvalho. Letramento e escrita acadêmica: uma experiência com o artigo de pesquisa. In: TFOUNI, Leda Verdiani (Org.). Letramento, escrita e leitura: questões contemporâneas. Campinas-SP: Mercado de Letras, 2010. BAZERMAN, Charles. Gênero, Agência e Escrita. São Paulo: Cortez, 2006. BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2006. MILLER, Carolyn. Estudos sobre: gênero textual, agência e tecnologia. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009. SCARPA, Ester Mirian. Aquisição da Linguagem. In.: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina (Orgs.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2001. p. 203-232. SWALES, John M. Genre analysis: English in academic and researching setting. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. __________. Sobre modelos de análise do discurso. In: BIASI-RODRIGUES, Bernardete; ARAÚJO, Júlio César; SOUSA, Socorro Cláudia Tavares de (Orgs.). Gêneros textuais e comunidades discursivas: um diálogo com John Swales. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. UAL. Projeto Pedagógico Curso de Licenciatura em Letras: Língua Portuguesa. Centro de Humanidades - CH. Unidade Acadêmica de Letras - UAL. Universidade Federal de Campina Grande – UFCG.
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A FUNÇÃO DAS PREPOSIÇÕES NA CONSTRUÇÃO DO TEMPO E ESPAÇO
Ellen Petrech Vasconcelos (UEPG)
Introdução Segundo Pontes (1992) a noção de espaço é fundamental para o homem, mas não temos consciência de como o conceituamos. Já com relação ao tempo, a autora, afirma que expressamos o tempo utilizando as categorias que indicam espaço, através de metáforas temporais. Segundo Pontes (1992, p 11), na formulação de tempo e espaço podem ser utilizadas classes gramaticais como advérbios, demonstrativos, preposições, locuções prepositivas e adverbiais. Neste trabalho escolheu-se observar o uso da preposição ao formular o espaço e tempo, como base para a nossa análise. Iniciamos apresentando o conceito de preposição como postulado por Cunha (2001), Castilho (2010) e Pontes (1992). Na sequência, verificamos a função da preposição na construção de tempo e espaço nos textos selecionados para a pesquisa.
As preposições As preposições são definidas por Cunha (2001) como palavras invariáveis que relacionam dois termos de uma oração, o termo antecedente é explicado ou complementado pelo consequente. Segundo o autor, a relação que se estabelece entre palavras ligadas por intermédio de preposição “pode exprimir um movimento ou uma situação daí resultante” (CUNHA, 2001, p. 556); denomina estas categorias de movimento e situação. O autor ainda completa que tanto movimento como situação pode ser considerados como referência ao espaço, ao tempo e a noção. Para esta
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pesquisa destacamos, no decorrer da análise, apenas as ocorrências do uso das preposições, na indicação de espaço e tempo. Mostramos um quadro baseado na classificação apresentada pelo autor (CUNHA, 2001, p.562-578). Preposição A Ante Após Até Com Contra De Desde Em Entre Para Perante Por Sem Sob Sobre
Movimento Situação X X X X X X X X X X X X X X X X X X X
Tempo X X X X
Espaço X X X X
X X X X X X X
X X X X X X X X
X X
X X
Nesta perspectiva traçada pelo autor, a preposição A e Em apresentam tanto movimento e situação em referência a tempo e a espaço. A maioria das preposições faz tal referência com exceção das preposições Com e Sem. Cunha (2001, p. 559) salienta que, algumas vezes, costuma-se não levar em consideração o sentido da preposição, valorizando apenas sua função sintática. Porém quando se tem uma relação sintática feita por intermédio dessa classe de palavras as escolhas são feitas devido ao seu significado básico. Castilho (2010, p. 583) afirma que “as preposições são palavras que atuam como núcleo do sintagma preposicional” e podem desempenhar as funções sintáticas ao ligar palavras e sentenças, semânticas ao atribuir um sentido geral de localização espacial e discursiva com o acréscimo de informações secundárias.
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Segundo o autor, as preposições podem localizar a figura ou termo antecedente, de forma geral, de três maneiras:
(i) em lugares precisos e em estados de coisa dinâmicos, considerando um percurso hipotético, tais como o ponto inicial do percurso, o segmento medial do percurso, o ponto final do percurso; (ii) em lugares precisos e em estado de coisa estático, tais como em cima/embaixo, à frente/trás, à direita/à esquerda; (iii) em lugares imprecisos, tais como dentro/fora, longe/perto, ausência/copresença. (CASTILHO, 2001, p. 585)
Percebe-se que a localização da figura é feita em relação ao ponto de referência. Por isso há situações que necessitam de mais precisão e outros momentos em que esta precisão não será relevante, podendo se ter uma localização imprecisa. Castilho (2010) apresenta a seguinte descrição do sintagma preposicional: SP→ (Especificadores) + Núcleo + (Complementadores) O núcleo do sintagma é a preposição e podem constituir como complementador desse sintagma o sintagma nominal, outro sintagma preposicional, o sintagma verbal e a sentença com verbo em forma nominal. Segundo o autor, as preposições possuem um sentido de base que é reconhecível quando elas expressam as categorias posição no espaço, deslocamento no espaço e distância no espaço. O autor ainda salienta que a noção de espaço físico pode se neutralizar em favor da noção de tempo quando a preposição liga a figura a um ponto de referência que pode ser uma indicação cronológica precisa ou imprecisa. Um dos aspectos importantes apresentado por Pontes (1992, p. 7) diz respeito ao fato de o conceito de espaço ser expandido de forma a indicar tempo. Segundo a autora, isso se deve ao fato de nossa compressão partir de conceitos menos abstratos para conceitos mais abstratos, e acrescenta: “Espaço é de alguma maneira menos abstrato, mais próximo de nós do que tempo, porque a gente pode visualizar as coisas à nossa volta, mas o tempo não” (p. 7).
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Pontes (1992, p.9) relaciona essa quase superposição de tempo e espaço com os estudos da física que chegam a sugerir algo como “espaço-tempo” onde espaço e tempo estão essencialmente interligados. Um exemplo usual, citado pela autora, dessa sobreposição e conceitos é a expressão “a duas horas de distância” (p. 9), onde a distância (espaço) é expressa em horas (tempo). A autora apresenta as preposições em ordem alfabética conforme aparecem nas gramáticas “a, ante, após, até, com, contra, de, desde, em, entre, para, perante, por (per), sem sob, sobre, trás” (p. 20), excluindo as que considera estar em desuso. Segundo a autora o uso da preposição a para indicar espaço está sendo quase totalmente substituída pela preposição em, provavelmente pela semelhança com o artigo definidor a. A preposição em indica lugar de maneira geral, usada quando queremos indicar um lugar sem especificar muito. Pontes (1992, p.25) afirma “Acho que ela indica o lugar de modo genérico e o conhecimento de mundo supre o resto” e completa dizendo “Se dizemos que ‘o livro está na prateleira’, ele está em cima da prateleira, mas não especificamos porque não há necessidade (é a única maneira de ele estar na prateleira)”. Logo a preposição em é genérica, pois nem sempre há a necessidade de sermos específicos. Pontes (1992, p. 26) trata preposição para (prá) também como uma preposição de uso genérico, mas nesse caso com o sentido de movimento, “vou prá casa”. A preposição entre é mais específica, pois marca uma posição no espaço entre outros dois espaços, “entre a porta e a janela há um sofá”. Temos ainda a preposição de que indica origem, como vemos nesses exemplos citados pela autora: “sou de São Paulo” (p. 27); desde também indica origem, mas é mais enfático, “vim desde Paris sofrendo” (p. 27); até que indica final de uma trajetória, “vim desde (de) Paris até o Rio chorando” (p. 27); e por indica o caminho, “vou ao Rio por Juiz de Fora” (p. 27). Após elencar as preposições usuais que indicam espaço, Pontes (1992) conclui com uma análise comparativa ente elas:
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As preposições de (e desde), para, por e até combinam-se com verbos de movimento, apenas. Já em combina-se com verbos estativos e de movimento (neste caso, substituindo a preposição a). Existe um paralelismo entre de (desde) de um lado e para, até de outro, os primeiros indicando o ponto de origem, os últimos o ponto de destino. (PONTES, 1992, p. 29)
Há também as sobreposições entre em e para, em que a diferença reside em a primeira indicar algo mais breve e a segunda algo mais permanente. Na sobreposição entre de e desde e para e até a distinção está em desde e até serem mais específicos e menos frequentes que de e para. A autora apresenta o seguinte quadro:
(PONTES, 1992, p. 30)
As preposições em e entre indicam principalmente posição no espaço, algo que não acontece com para, que indica movimento. Pontes (1992, p.11) também trata a questão do tempo nas categorias que indicam espaço: as preposições, os advérbios, as locuções adverbiais e as locuções prepositivas. As preposições não marcadas em, de, para e por, são usadas para indicar tempo. Pode-se somar a estas, a preposição a, que por ser usada de forma metafórica para indicar tempo, ainda permanece em uso como em “De 1980 a 1989 nada mudou”. Comenta, ainda que, em relação ao tempo, as preposições conservam os mesmos traços
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de significados se relacionados ao espaço: “em indica situação, de proveniência, para direção, por trajeto.” (p. 70). As preposições marcadas desde, até e entre, também seguem seus significado em relação ao espaço. Desde indica ponto inicial, até, indica final e entre espaço de tempo entre os dois anteriores. Pontes (1992) atenta para o fato de as preposições desde e até tomarem o momento da fala como ponto de referência, e as preposições de, por, em, a e entre não tomarem o momento presente como referência. Isso se pode observar nestes exemplos: “Desde ontem ela não faz nada” e “De 1980 e 1989 nada mudou.” (p. 70). A autora apresenta a seguinte conclusão para o uso concomitante de uma classe gramatical para indicar espaço e tempo:
[...] o tempo é concebido como uma linha e é isso que explica que as classes de palavras que se usam para indicar espaço possam ser usadas para indicar tempo. Ou seja, nosso conceito de tempo é espacial, é uma metáfora espacial — a metáfora da linha, formada de pontos, em que os acontecimentos se sucedem, “uns depois dos outros”. (PONTES, 1992, p. 82)
A percepção humana de tempo é de certa forma espacial, pois para conceber o tempo o imaginamos como uma linha. Tendo sido retomada anteriormente as posições de Cunha (2001), Castilho (2010) e Pontes (1992), percebemos estreita relação de espaço e tempo apresentada nas preposições. Partimos para a observação das preposições nos textos que formam nosso corpus.
Análise das produções textuais
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Tendo com aporte teórico os autores que discutem o assunto, o corpus para análise consta de dois textos produzidos por aluno de escola pública do município de Cascavel/PR, durante intervenção dos projetos em sala se aula que originaram a pesquisa aqui relatada. Os textos selecionados fazem parte do Projeto “Linguagem, sociedade, formação de professores: manifestação na diversidade”, vinculado ao Procad/Unioeste/UFSC, com financiamento CNPq/CAPES, e ainda aos projetos intitulados Aplicação e reflexão teórica na sala de aula: análise linguística como suporte para a produção de textos de uma escola pública do Estado do Paraná e Diagnósticos e aplicação teórica em sala de aula: verificação de rendimento e avaliação do ensino de análise linguística e produção textual de alunos do ensino médio de uma escola pública do Estado do Paraná. Essas pesquisas foram desenvolvidas na Escola Estadual São João, pertencente ao distrito de São João, cidade de Cascavel. O Projeto ART teve início em 2011 e terminou em 2012. O Projeto DAT teve início em 2012 e terminou em 2014. Os dois projetos foram desenvolvidos com apoio da Fundação Araucária, instituição de fomento à pesquisa do Estado do Paraná. Para a análise, fizemos recortes dos textos em que verificamos a incidência do uso da preposição como componente do sintagma preposicional, indicando tempo e espaço. Texto I Meio Ambiente: Um tesouro quase em extinsão Uma das questões mais comentadas (1) na atualidade é o Meio Ambiente. Fenômenos naturais, enchentes, deslizamentos, gases poluentes, o aquecimento global. Uma das causas que mais preocupam as autoridades brasileiras e internacionais, que mais chocam o mundo e que também destroem. Tudo isso acontece por uma série de problemas, que, devido a desconcientização populacional se agrava mais e mais (2) a cada dia. Como parar com isso? E eu vos pergunto, ainda há tempo? [...]
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Propagandas, documentários, noticiários, todos voltados a questão ambiental, tentando alertar toda a população, de que se continuarmos assim, talvez o fim estará bem próximo, e quanto maior o problema, mais complicada a solução. E apesar de tantas campanhas contra a poluição, boa parte da população ainda joga (3) lixo em rios, ruas, matas. Enquanto pessoas unem-se para limpar as ruas, 15, as vezes sem perceber, poluem o que foi limpo e belo. E o porque de tudo isso? Não se sabe. Será falta de orientação? Ou por simples preguiça de encaminhar-se à uma lata de lixo? Os fenômenos naturais agravam-se mais devido a poluição. Podemos dizer que (4) vivemos em uma estufa. Realmente é preocupante a situação do Meio Ambiente (5) hoje em dia e novamente pergunto a vós: AINDA HÁ TEMPO? Texto II Uma gota de vida [...] Introdução: A água é um bem que abrange grande parte da superfície terrestre. Portanto, discutiremos formas de conscientização para acabar com a crescente poluição de rios, lagos, nascentes mares. Considerando principalmente que é dever de toda a sociedade refletir sobre essa prática abusiva da poluição, sendo que mesmo sabendo das consequências de seus atos não agem corretamente, devemos preservar a água potável do planeta, de modo que (6) em um futuro próximo ou distante, possamos consumi-la abundantemente. [...] A conscientização da população em geral é muito importante para acabar com a poluição, pois, juntos somos capazes de mudar a forma com que agem as pessoas a respeito da água, pois, caso continuemos a poluir as fontes de água no mundo, logo ficaremos sem e habitaremos um “planeta marte” Se unirmo-nos podemos mudar o mundo, ora não jogamos (7) papel de bala em um rio, ora aconselhando o nosso
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vizinho a fazer o mesmo, ora educando as crianças a não poluir a água. Logo, podemos ver rios e lagos de nossa cidade limpos, sem lixo. Visto que a água constitui uma necessidade vital do ser humano, é dever preservá-la, para que a mesma não se torne um inimigo mortal devido a contaminação e nem precise ser disputada em sociedade. [...] Se a escassez não for contida a tempo, talvez uma futura geração culpe-nos por não poder desfrutar do bem natural da humanidade. É dever de toda a nação preservar, afim de que possamos desfrutar de nossa mais preciosa herança: água. Por esse motivo, essa questão deve ser abordada ora em casa ora na escola, enfim, (8) em toda a sociedade. Para não faltar, a solução é cuidar.
No texto I e II encontramos sintagmas preposicionais, destacamos alguns: (3) “joga lixos em rios”, (4) “vivemos em uma estufa”, (5) “hoje em dia”, (6) “em um futuro próximo”, (2) “se agravava mais e mais a cada dia”, as preposições utilizadas nestes sintagmas são classificadas por Pontes (1992) como mais generalizantes e por isso não marcadas. Nota-se que é farta a quantidade de preposições que indicam espaço e tempo expresso de forma não específica como no trecho do texto II (7) “papel de balas em um rio” não há uma especificação do espaço, um rio específico, mas uma generalização para representar qualquer rio; o mesmo ocorre com o tempo como no trecho do texto I (1) “comentadas na atualidade”, onde não há uma clareza do dia, apenas uma representação geral do período. Em contrapartida não são encontradas as preposições classificadas por Pontes (1992) como mais específicas, ou seja, marcadas. Acredita-se que esse fato se deva pela intenção do autor dos textos falar do meio ambiente como um todo, não se referindo apenas a uma determinada região. O mesmo ocorre com o tempo, em que a intenção do autor não é situar período de tempo específico. Exatamente, por esta escolha do autor de manter um caráter mais genérico nas informações de tempo e espaço, que vemos um maior uso da preposição em, como no sintagma (8) “em toda a sociedade”, ocorrência de espaço e em (6) “em um futuro próximo” ocorrência de tempo.
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Retomamos o que postula Pontes (1992) sobre o uso concomitante da classe gramatical das preposições para indicar espaço e tempo. Para a autora, isso se deve ao fato de a mente humana perceber o tempo de uma forma espacial, pois o imagina como uma linha. Por isso pode se justificar o uso das mesmas preposições tanto para organização do espaço como do tempo. Como em (4) “vivemos em uma estufa” e (5) “hoje em dia” onde verificamos a preposição em sendo utilizada tanto para expressar espaço como tempo. Cunha (2001, 559) salienta que as relações sintáticas feitas por intermédio das preposições não são feitas de forma aleatória e sim as escolhas de preposições se devem ao seu significado básico. Logo, as preposições escolhidas servem ao propósito do autor do texto e não podem ser substituídas porque modificariam o sentido dos textos em análise. Tendo em vista que são textos de gêneros diferentes, é importante frisar que nos exemplos analisados não foram encontradas diferenças no emprego das preposições no que se refere a tempo e espaço. Para finalizar, lembremos Castilho (2010) ao esclarecer o que ocorre quando a preposição liga a figura a um ponto de referência que pode ser uma indicação cronológica precisa ou imprecisa. Neste caso a noção de espaço físico se neutraliza em favor da noção de tempo. É o que ocorre no caso de (1) “comentadas na atualidade”, (5) “hoje em dia” e (6) “em um futuro próximo”, nos textos I e II.
Algumas considerações Refletimos sobre o conceito das preposições retomando Cunha (2001), Castilho (2010) e Pontes (1992), concluímos que as preposições possuem um significado de base que está ligado à noção de espaço e que essa noção pode ser substituída por uma noção de tempo quando temos presente no sintagma uma expressão cronológica. Em nossas análises, observamos que o produtor dos textos analisados utiliza as preposições tanto para marcar o espaço como o tempo. Observamos que o uso mais
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significativo foi de preposições mais generalizantes, não marcadas. Acreditamos ser devido à intenção do autor em manter a noção de espaço e tempo de forma mais genérica. Verificamos também que quando o ponto de referência de uma figura é uma expressão de tempo, a localização temporal atenua a localização espacial. Enfim, acreditamos que nossa pesquisa cumpriu o objetivo proposto de verificar a ocorrência da preposição como componente do sintagma indicando tempo e espaço. Outros pontos podem ser destacados no que diz respeito às preposições. Esta é uma pesquisa para um futuro próximo.
Referências CASTILHO, A. T. Nova gramática do português brasileiro, São Paulo: Contexto, 2010.
CUNHA, C. Nova gramática do português contemporâneo, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
PONTES, E. S. L. Espaço e tempo na língua portuguesa. Campinas: Pontes, 1992.
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O TRABALHO COM OS GÊNEROS DISCURSIVO EM SALA DE AULA Estela Mari Tomazelli Silveira Menezes (PG-UNIOESTE)1 Terezinha da Conceição Costa-Hübes (UNIOESTE)2
RESUMO: O Estado do Paraná publicou, em 2008, as Diretrizes Curriculares com o propósito de fortalecer a Educação Pública Estadual, fundamentando, então, a disciplina de Língua Portuguesa na noção de gêneros discursivos. Isso se deu pelo fato de que havia o objetivo de alicerçar o ensino das práticas de oralidade, de leitura e de escrita assumindo a concepção dialógica de linguagem, ou seja, pautando-se nos estudos de Bakhtin e do Círculo. Partindo deste pressuposto, o objetivo deste texto é apresentar a Pesquisa de Mestrado em andamento, que se circunscreve no âmbito do Programa Observatório da Educação, uma vez que somos bolsistas CAPES/INEP dentro do Projeto institucional intitulado Formação Continuada para professores da educação básica nos anos iniciais: ações voltadas para a alfabetização em municípios com baixo IDEB da região Oeste do Paraná. Na pesquisa, temos o intuito de verificar como os professores de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental de uma determinada escola Estadual no Município de Cascavel, região Oeste do Paraná, trabalham com os gêneros discursivos em sala de aula, em turmas de 6º ao 9º ano. Assim, questionamos o seguinte: Estariam os professores considerando os pressupostos teóricos das Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná? Ou estariam encontrando dificuldades para trabalhar com essa proposta? E, neste caso, quais seriam essas dificuldades? Para atender ao proposto, desenvolveremos uma pesquisa qualitativa, de cunho etnográfico e colaborativa, uma vez que pretendemos observar aulas de Língua Portuguesa dos sujeitos participantes da pesquisa. Tendo em vista que a pesquisa está em andamento, apresentaremos um dos instrumentos utilizados para a geração de dados, ou seja, as perguntas da entrevista para constatarmos como os gêneros discursivos estão sendo trabalhados. Como resultados, esperamos confirmar os avanços já obtidos em relação à proposta curricular ou levantar as dificuldades que ainda persistem e, se assim for, pretendemos buscar meios para amenizar tais dificuldades. PALAVRAS-CHAVE: Gêneros Discursivos. Práticas Sociais. Ensino da Língua Portuguesa. Introdução Objetivamos, com o presente artigo, apresentar nossa proposta de pesquisa em andamento no Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Letras, nível mestrado, cuja 1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, nível Mestrado e Doutorado, área de concentração Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do oeste do Paraná – UNIOESTE. 2 Profa. Dra. do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, nível de Mestrado e Doutorado, área de concentração Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.
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finalidade é de verificar como os professores do Ensino Fundamental, em turmas de 6º ao 9º ano, de uma escola pública da rede Estadual de Ensino no município de Cascavel, estão trabalhando com os gêneros discursivos em sala de aula. Ou seja, se estão de acordo conforme preconizam as Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná (Paraná, 2008), no que tange ao trabalho com a disciplina de Língua Portuguesa (LP, de ora em diante). Em 2008, foi publicado um documento nomeado Diretrizes Curriculares do estado do Paraná (doravante DCE). Para a tessitude deste documento foi necessário o envolvimento de todos os professores da rede estadual e de Ensino Superior, os quais, por meio de extenuantes discussões acerca das concepções teórico-metodológicas, elaboraram, de forma sistematizada e reflexiva, uma nova proposta que norteasse o ensino de LP nas escolas Paranaenses. O documento traz, como conteúdo estruturante na disciplina de LP, o discurso como prática social e, como conteúdo básico, os gêneros discursivos, vinculados às práticas de leitura, escrita, oralidade e análise linguística, assumindo, assim, a concepção dialógica de linguagem, conforme postulados bakhtinianos. Visto que “Nestas Diretrizes, considera-se o processo dinâmico e histórico dos agentes na interação verbal, tanto na constituição social da linguagem, que ocorre nas relações sociais, políticas, econômicas, culturais, etc., quanto dos sujeitos envolvidos nesse processo” (PARANÁ, 2008, p.50). Diante do exposto, pretendemos, em nossa pesquisa, responder aos seguintes questionamentos: Estariam os professores considerando os pressupostos teóricos das Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná? Ou estariam encontrando dificuldades para trabalhar com essa proposta? E, neste caso, quais seriam essas dificuldades? No momento, como se trata de uma pesquisa em andamento, buscamos, neste artigo, apresentar uma perspectiva de pesquisa em torno do trabalho com os gêneros discursivos em sala de aula. Inicialmente, traremos algumas informações acerca do percurso histórico dos gêneros discursivos como proposta de conteúdo de ensino. Em seguida, apresentaremos os pressupostos teóricos que fundamentam a nossa pesquisa e, por último, a metodologia que será utilizada para a geração de dados, assim como as perguntas elencadas para a obtenção dos dados partindo, assim, do instrumento entrevista.
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Uma proposta de trabalho com os gêneros discursivos: um breve percurso histórico Na década de 80, o Oeste do Paraná, de certa maneira, colaborou com o rompimento de um ensino estruturalista de LP ao propor que a linguagem fosse compreendida como forma de interação social entre os sujeitos. Tal concepção refletiuse no Estado do Paraná naquela década e cursos voltados para esta perspectiva foram ofertados na região de Cascavel através da Associação Educacional do Oeste do Paraná (ASSOESTE). Os cursos eram direcionados aos docentes da Rede Pública e ministrados por professores da UNICAMP, sob a coordenação do Professor João Wanderley Geraldi. O objetivo dos cursos era, portanto, proporcionar atualizações no âmbito teórico-metodológico ao ensino de LP. Mediante o trabalho voltado à formação dos professores e ao enfoque interacionista, foi publicado, em 1984, sob a organização de Geraldi, o livro “O texto na sala de aula”, o qual focalizava “uma postura educacional diferenciada, uma vez que situa a linguagem como o lugar de constituição de relações sociais, onde os falantes se tornam sujeitos” (GERALDI, 2011, p. 41). Dessa forma, tendo em vista que a língua é produzida socialmente no tempo e no espaço, ela constitui as relações sociais e permite que esses sujeitos se entendam. Assim, o autor prossegue suas considerações ressaltando a importância do texto na aquisição da língua: Considero a produção de textos (orais e escritos) como ponto de partida (e ponto de chegada) de todo o processo de ensino/aprendizagem da língua. [...]. Sobretudo, é porque no texto que a língua – objeto de estudos – se revela em sua totalidade quer enquanto conjunto de formas e de seu reaparecimento, quer enquanto discurso que remete a uma relação intersubjetiva constituída no próprio processo de enunciações marcada pela temporalidade e suas dimensões (GERALDI, 2013, p. 135).
Entende-se, nesse aspecto, a importância do texto no ensino/aprendizagem da língua, pois é possível, a partir da produção, realizada pelos alunos, de textos orais e escritos, trabalhar todos os aspectos linguísticos dependendo da situação comunicativa. Com esse enfoque, o Currículo Básico para a Escola Pública do Paraná (PARANÁ,
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1990) objetivou o ensino da linguagem, da mesma forma que propunha Geraldi (2013), porém, a noção de gêneros discursivos como conteúdo de ensino não transparecia ainda, embora se reconhecesse o caráter social da linguagem. No entanto, a noção de gêneros vai se configurar, pela primeira vez, no Brasil, em termos de documentos pedagógicos, nos Parâmetros Currículos Nacionais (doravante PCN), (BRASIL, 1998), que entraram em vigor no final da década de 1990, no qual o texto passa, então, a ser tomado como conteúdo de ensino, representativo de determinados gêneros discursivos. Este, por sua vez, é compreendido como objeto e configura-se conforme seu conteúdo temático, seu estilo e sua construção composicional, conforme postula Bakhtin (2000). Somente em 2008, com a publicação das DCE (PARANÁ, 2008), professores de LP do Estado do Paraná passam a contar com um documento que assume diretamente os pressupostos bakhtinianos, reconhecendo o discurso como prática social e os gêneros como forma de concretização da linguagem. Nesse âmbito, a linguagem “abre-se para a sua condição de atividade e acontecimento social, portanto estratificada pelos valores ideológicos” (PARANÁ, 2008, p.49). Seguindo os pressupostos de Bakhtin, afirma-se que o contexto sócio-histórico estrutura o interior do diálogo da corrente da comunicação verbal entre os sujeitos históricos e os objetos do conhecimento. Trata-se de um dialogismo que se articula à construção dos acontecimentos e das estruturas sociais, construindo a linguagem de uma comunidade historicamente situada. Nesse sentido, as ações dos sujeitos históricos produzem linguagens que podem levar à compreensão dos confrontos entre conceitos e valores de uma sociedade (apud PARANÁ, 2008, p.30).
Seguindo esta teoria, o documento, ao contrário dos PCN, tem consciência do caráter dialógico da linguagem e apresenta, como conteúdo estruturante, o discurso como prática social e os gêneros discursivos como conteúdo básico a serem trabalhados nas práticas discursivas. Assim, os gêneros discursivos são a manifestação da interação entre os sujeitos que, por meio da linguagem, elaboram seus discursos correspondendo à esfera social em que estão inseridos.
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Nesse sentido, conforme, Costa-Hübes (2011), cada gênero discursivo, a partir de suas especificidades, representa o seu discurso e a sua ideologia numa determinada esfera social, sendo formado por vários tipos de enunciados no qual ele pertence. Tendo os gêneros discursivos como conteúdo de ensino, as DCE propõem, como encaminhamento metodológico, as práticas de: leitura, escrita, oralidade e análise linguística. Assim, cabe a nós, professores de LP, desenvolvermos um trabalho com a linguagem de forma que a considere em suas diferentes situações de uso, materializadas nos gêneros, o que requer um embasamento teórico e metodológico que, de certa forma, está contemplado nas DCE. No entanto, como temos contato com o ensino de LP na Rede Pública Estadual do município de Cascavel, tanto no Ensino Fundamental quanto no Médio, percebemos a necessidade de ir ao encontro de uma formação mais ampla, a qual nos possibilite alargar nossos conhecimentos e, consequentemente, realizarmos um trabalho mais consistente. Assim, estaríamos trabalhando o ensino da LP conforme preconizado pelas DCE, ou seja, pautada na teorização bakhtiniana com relação aos gêneros discursivos, buscando compreendê-lo como conteúdo de ensino atrelado às práticas de: leitura, escrita, oralidade e análise linguística, para que, dessa forma, haja a concretude do ensino de LP. Bases teóricas Tendo como parâmetro as reflexões do Círculo de Bakhtin, nossa pesquisa se fundamenta na concepção dialógica da linguagem, uma vez que esta é compreendida como um instrumento de comunicação que se apresenta no processo de interação com o outro. Assim, seja por meio da fala ou da escrita, nos reportamos aos discursos já proferidos para que possamos construir o nosso discurso, portanto, a linguagem é, essencialmente, dialógica. Para Bakhtin,
a língua, em sua totalidade concreta, viva, em seu uso real, tem a propriedade de ser dialógica. Essas relações dialógicas não se circunscrevem ao quadro estreito do diálogo face a face, que é apenas uma forma composicional, em que elas ocorrem. [...], todos os enunciados no processo de comunicação, independentemente de sua
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dimensão, são dialógicos. Neles, existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre pela palavra do outro, é sempre e inevitavelmente também a palavra do outro (apud, FIORIN, 2008, p. 18, 19).
Logo, compreende-se, então, que o dialogismo está presente nas práticas discursivas, pois, ao organizarmos nosso discurso, nos apropriamos da voz do outro para enriquecer o nosso próprio discurso e, neste processo, estendemos o diálogo aos nossos interlocutores, constituindo, dessa forma, o nosso enunciado que é sempre uma resposta a outro enunciado. Assim, é por meio dessa interação que as relações dialógicas se constroem entre os enunciados. Partindo dessas considerações sobre o dialogismo presente no processo de interação, as DCE (PARANÁ, 2008) afirmam que cabe à escola possibilitar a participação dos alunos nas diferentes práticas sociais, de modo que estes reconheçam a língua como viva, dialógica, produtiva, reflexiva, ou seja, em constante movimentação. O documento enfatiza, ainda, que “é tarefa da escola possibilitar que seus alunos participem de diferentes práticas sociais que utilizem a leitura, a escrita e a oralidade, com a finalidade de inseri-los nas diversas esferas de interação” (PARANÁ, 2008, p. 48). Tendo em vista o caráter dialógico da linguagem, já que o diálogo se dá no processo de interação quando nos reportamos a interlocutores concretos, entendemos o propósito do documento em priorizar um trabalho pedagógico atrelado aos gêneros discursivos, possibilitando, assim, um maior contato do aluno com a linguagem nas diferentes esferas sociais. Nesse sentido, Bakhtin assevera: A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana [...], mas cada esfera da utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso (BAKHTIN, 2000, p. 279).
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Compreende-se, dessa forma, que os gêneros discursivos são a manifestação da interação entre os sujeitos que, por meio da linguagem, elaboram seus discursos, uma vez que cada esfera social produz o gênero correspondente à sua necessidade comunicativa e que o aluno, ao apropriar-se de cada especificidade dos gêneros, poderá ampliar o seu universo discursivo. Logo, tendo os gêneros discursivos como conteúdo de ensino, as DCE propõem, como conteúdo estruturante, o discurso como prática social e como encaminhamento metodológico as práticas de: leitura, escrita, oralidade e análise linguística. Nesse sentido, o documento especifica que “o aprimoramento da competência linguística do aluno acontecerá com maior propriedade se lhe for dado conhecer, nas práticas de leitura, escrita e oralidade, o caráter discursivo dos gêneros do discurso” (PARANÁ, 2008, p. 53). Sob essa perspectiva, o ensino de LP tem o interesse de melhorar os conhecimentos linguísticos e discursivos dos alunos nas diversas esferas comunicativas para que, assim, ele tenha condições de dominar e de interagir com esses discursos. Posicionamentos metodológicos A presente pesquisa se inscreve no campo da Linguística Aplicada (doravante, LA), à medida que “para construir conhecimento que seja responsivo à vida social, é necessário que se compreenda a LA não como disciplina, mas como área de estudos [...]” (MOITA LOPES, 2006, p. 97). Entendemos, sob esse ângulo, que a LA deve comportar-se como uma área interdisciplinar, uma vez abarca reflexões sobre a linguagem tanto no que diz respeito ao ensino de língua quanto às outras áreas de conhecimento como, por exemplo, Psicologia, Filosofia, Sociologia etc. Nesse sentido, Pennycook (2011), acerca dessa nova LA, postula que ela “Almeja atravessar fronteiras e quebras regras; tem como posicionamento reflexivo sobre o que e por que atravessa; é entendida como um movimento em vez de considerar aquilo em relação ao que é ‘pós’; é pensada para a ação e mudança” (apud MOITA LOPES, 2011, p.82). Partindo desses pressupostos teóricos, entendemos que nossa pesquisa se circunscreve no âmbito da LA porque pretende verificar o trabalho do professor de LP em relação ao trabalho com os gêneros discursivos em sala de aula, conforme determina
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as DCE. Além disso, caso seja constatado que o docente não consegue desenvolver este trabalho, pretendemos agir colaborativamente, problematizando a questão de forma que juntos possamos construir conhecimentos por meio de ações de formação continuada voltadas para o estudo teórico e prático do trabalho com os gêneros discursivos em sala de aula. Por esse caráter colaborativo e de inserção no campo da pesquisa, podemos defini-la, então, como uma pesquisa aplicada. Appolinário (2004) salienta que pesquisas aplicadas têm o objetivo de “resolver problemas ou necessidades concretas e imediatas.” (apud VILAÇA, 2010, p.78). Além disso, trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, uma vez que pretendemos colocarmos no ambiente da pesquisa (escola e sala de aula) para investigarmos e refletirmos qualitativamente sobre os problemas elencados. Nesse horizonte, Bortoni-Ricardo aponta que “A pesquisa na sala de aula insere-se no campo da pesquisa social e pode ser construída de acordo [...] com um paradigma qualitativo, que provém da tradição epistemológica conhecida como interpretativismo” (BORTONIRICARDO, 2013, p.10). Logo, trata-se de uma pesquisa de cunho etnográfico e de base interpretativista, uma vez que intencionamos, a partir da interação com o objeto pesquisado, compreender a realidade na qual ele está inserido para modificá-lo caso se faça necessário. Dado o fato de que a pesquisa etnográfica é um instrumento significativo de investigação qualitativa no âmbito escolar. Nesse sentido, mediante a entrevista, a observação participante e a gravação em áudio, objetivamos interpretar o entendimento que os professores estão tendo da proposta de trabalho com os gêneros discursivos no processo de ensino da LP como propõe as DCE. Os sujeitos da investigação serão quatro professores do Ensino Fundamental de 6º ao 9º ano que ministram a disciplina de LP em um colégio estadual no município de Cascavel - Pr, no qual também lecionamos. Esses professores serão entrevistados e, ao mesmo tempo, observados. Para o registro devido dos dados, recorreremos ao diário de campo e à gravação em áudio. Estes instrumentos são vistos no universo educacional da pesquisa como básicos para a geração de dados. A entrevista, conforme Ludke e André (2011), tem suas vantagens “sobre outras técnicas. É que ela permite a captação imediata e corrente da informação desejada,
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praticamente com qualquer informante e sobre os mais variados tópicos” (LUDKE; ANDRÉ, 2011, p.34). Outra vantagem é o fato de que o pesquisador e o pesquisado ficam frente a frente, propiciando, assim, uma proximidade maior, o que favorece a interação. Para Ludke e André (1986), é muito importante “o caráter de interação que permeia a entrevista. Mais do que outros instrumentos de pesquisa [...]” (LUDKE; ANDRÉ, 2011, p. 33). Diante das vantagens do instrumento entrevista, pretendemos apresentar as seis (06) perguntas que serão utilizadas para a geração de dados em nossa pesquisa, uma vez que se trata de uma pesquisa em andamento: 1) As Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná, ao assumir uma concepção dialógica de linguagem, a qual apresenta como o conteúdo estruturante o discurso como prática social na disciplina de língua portuguesa. Qual é a sua compreensão do conteúdo estruturante?; 2) Os gêneros discursivos são apresentados, nas Diretrizes, como instrumentos para o ensino da LP, por meio dos quais devemos trabalhar as práticas de leitura, oralidade, escrita e análise linguística. Você se sente preparado/seguro para trabalhar conforme essa orientação? Por quê?; 3) Caso responda não: O que está faltando, em sua formação e nas orientações que recebe, para trabalhar com a LP dentro dessa perspectiva teóricometodológica apresentada pelas DCE?; 4) As formações continuadas proporcionadas pelo Estado após a implantação do documento lhe trouxe embasamento para a realização de seu trabalho com a LP em sala de aula? Por quê?; 5) O livro didático adotado pela sua escola contempla uma proposta de trabalho com os gêneros discursivos, conforme preconiza as Diretrizes Curriculares?; 6) Você concorda com essa proposta de trabalho com os gêneros para o ensino de LP? No que concerne à observação participativa, ela é vista como um procedimento que “possibilita um contato pessoal e estreito do pesquisador com o fenômeno pesquisado [...]” (LUDKE; ANDRÉ, 2011, p.26), pois propicia a ele estar inserido no ambiente a ser pesquisado, observando as ações de todos os elementos presentes e, ao mesmo tempo, interagindo e participando com os sujeitos envolvidos na pesquisa. Nossa pesquisa se concentrará inicialmente na entrevista que realizar-se-á com 04 professores do Ensino Fundamental, ou seja, o total de docentes que ministram aulas de LP de 6º ao 9º ano da escola selecionada.
Depois, para reconhecer qual a
compreensão que os professores de LP têm em relação ao que está proposto pelas DCE
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quanto ao trabalho com os gêneros discursivos na sala de aula, faremos observação de aulas dessa disciplina, por meio das quais tentaremos compreender como os professores entendem os gêneros discursivos na mediação dos conteúdos para o ensino da LP. E, para realizarmos o registro das observações, recorreremos ao diário de campo e à gravação em áudio, uma vez que estaremos inseridos no ambiente a ser pesquisado, mediante a observação participativa. Assim, a partir dos dados gerados, procuraremos interpretá-los coerentemente para, em seguida, retornar aos professores sujeitos da pesquisa com algumas inquietações (caso elas se destaquem a partir das observações e entrevistas). Com esses questionamentos e a partir das ponderações dos professores, pretendemos problematizar as orientações teórico-metodológicas das DCE (PARANÁ, 2008), por meio de um processo de formação continuada, com um intuito colaborativo, uma vez que juntos possamos investigar e refletir sobre as práticas realizadas no ensino de PL, delineando proposições para possíveis mudanças. Nesse sentido, sobre a pesquisa colaborativa, Pimenta (2005) argumenta que “[...] os professores vão se constituindo em pesquisadores a partir da problematização de seus contextos. Na reflexão crítica e conjunta com os pesquisadores de Universidade, são provocados a problematizar suas ações” (PIMENTA, 2005, p. 523). Diante do exposto, esperamos que esta pesquisa, ainda em desenvolvimento, possa contribuir significativamente para os colegas professores da rede pública de ensino, levando-os a refletirem sobre a própria prática, para que todos possamos primar por um ensino de qualidade, contribuindo para formação de sujeitos críticos e atuantes na sociedade. Considerações finais Neste artigo nos propomos a apresentar somente um projeto de Pesquisa em mestrado (ainda em andamento) e um dos instrumentos que será utilizado para a geração de dados que nos permite concluir que se faz necessária tal abordagem, uma vez que as Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná (2008) propõem um ensino de língua vinculado aos gêneros discursivos. Assim como promover algumas inquietações aos professores de LP acerca de seu trabalho em sala com os gêneros discursivos, uma
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vez que o documento apresenta como conteúdo estruturante da disciplina de LP o discurso como prática social e, como conteúdos básicos, os gêneros discursivos como objeto de ensino, atrelado às práticas de leitura, escrita, oralidade e análise linguística, assumindo, assim, a concepção dialógica de linguagem, conforme pressupostos bakhtinianos, reconhecendo-a como prática que se efetiva nas diferentes esferas de nossa sociedade. Referências ANDRÉ, Marli Eliza D. A. Etnografia da prática escolar. 11. ed. Campinas, São Paulo: Papirus, 2004. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. O professor pesquisador: Introdução à pesquisa qualitativa. 2º ed. São Paulo: Parábola editorial, 2013. COSTA-HÜBES, Terezinha da Conceição. Por uma concepção sociointeracionista da linguagem: orientações para o ensino da língua portuguesa. In: Línguas & LetrasEdição Especial XIX CELLIP. Cascavel: Edunioeste, 2011(Seção: Linguagem e Ensino, p. 73-97). FIORIN, Luiz José. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008. GALAN, Maria Raquel A. C. Memória: relatos de uma professora de português. In: Línguas & Letras-Edição Especial XIX CELLIP. Cascavel: Edunioeste, 2011 (Seção: Linguagem e Ensino, p. 153-172). GERALDI, João Wanderley (org.). O texto na sala de aula. 5 ed. São Paulo: Ática, 2011. ______. Portos de Passagem. 5 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. (Coleção Linguagem). LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 2011. MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Por uma lingüística aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. PARANÁ, Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares da Educação Básica: Língua Portuguesa. Curitiba, 2008.
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PIMENTA, Selma Garrido. Pesquisa-ação crítico colaborativa: construindo seu significado a partir de experiências com a formação docente. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 521, 539, set/dez, 2005. Disponível em: http://www.readcube.com/articles/10.1590/S151797022005000300013?tab=summary Acesso em 04 Set 2014. VILAÇA, Mário Luiz Corrêa. Pesquisa e ensino: considerações e reflexões. Revista Escrita. Nilópolis, v. 1, n. 2, p. 59-74, 2010. Disponível em: http://www.uniabeu.edu.br/publica/index.php/RE/article/viewFile/26/pdf_23 Acesso em 05 Jun 2014.
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POSIÇÕES E FUNÇÕES DOS MARCADORES DISCURSIVOS EM INGLÊS NA INTERAÇÃO VERBAL
Fábio Franco (UFMS) Optamos pela investigação dos marcadores discursivos (doravante MDs) em função de percebermos as várias recorrências dos mesmos em eventos comunicativos nos quais os textos são produzidos de forma espontânea, e que se fazem presentes qualquer manifestação falada, independentemente da natureza do discurso ou do grau de cultura do falante. Os marcadores discursivos podem surgir nas mais variadas posições e com as mais distintas funções, não tendo um padrão pré-estabelecido. Para Fraser (1994, p. 158) “os marcadores discursivos apresentam um significado pragmático nuclear, um significado à parte de qualquer significado de conteúdo”, ou seja, os marcadores discursivos não afetam o significado conteudístico de uma oração, pois visam apenas orientar o ouvinte. Já Marcuschi (1989, p. 62) afirma que os marcadores discursivos “não contribuem com informações novas para o desenvolvimento do tópico, mas situam-no no contexto geral, particular ou pessoal da conversação”, como ferramentas de orientação do discurso do interlocutor. Por ocorrer em um ambiente social em que todos os falantes procuram ter seus pontos de vistas e opiniões aceitos e reconhecidos, subjaz a teria de face de Goffman (1974, p. 09), em que “a face é uma imagem de si delineada segundo certos atributos sociais aprovados”. Esse conceito é definido por Yule (1996) como a imagem pública de si mesmo, no sentido social e emocional, que todo interlocutor possui e espera ser reconhecida. Brown e Levinson (1987) reelaboraram a noção de face, na qual a face positiva baseia-se na necessidade de aceitação do individuo, e a face negativa na independência social do interlocutor, sua liberdade de expressão, e na não submissão à imposição dos
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outros. Arrolada a concepção de face, temos a teoria da polidez, a qual Yule (1996) salienta que, na interação comunicativa, os participantes desejam que suas faces sejam respeitadas, embora alguns enunciados possam ser considerados como uma ameaça a ela. O arcabouço teórico desse trabalho teve como base os conceitos da Análise da Conversação, e o corpus de estudo foi composto pela transcrição de uma entrevista realizada pela apresentadora Ellen Degeneres com o ator britânico Daniel Radcliffe, em seu programa homônimo, obtida pela internet, sendo ambos falantes nativos da língua inglesa. Por meio da transcrição do corpus, pode-se notar uma abundância de marcadores discursivos na entrevista, tais como “I mean”, “you know”, “well”, “really” e “so”, assim como algumas combinações. Este trabalho dedicou-se especialmente aos marcadores “I mean” e “you know”, devido ao maior número de ocorrências. O marcador discursivo “you know” pode desempenhar uma variedade de funções, dependendo das situações e do contexto, principalmente no discurso oral e informal, em situações de conversação face a face. Além da função organizadora do texto falado, esse marcador também opera como um planejador verbal, utilizado pelo falante para ganhar tempo de elaborar seu discurso. No corpus, ele possui a função predominante de evidenciar marcas de subjetividade, reforçar o discurso e proteção de face, quando associado ao marcador “well”. De acordo com Lyrio (2009, p. 140), a função do “I mean” é “focar a atenção do ouvinte numa modificação do que o falante faz da oração prévia e pode ser também uma tentativa de torná-la mais clara”. Assim, esse marcador tem por intuito orientar o discurso ou a mudança de ideias que o interlocutor faz na tentativa de elucidar o enunciado. Por meio da transcrição, podemos constatar que o marcador discursivo “I mean” atua primordialmente como modificador de ideias e de orientação do discursivo. Já na combinação “I don't know if it’s I mean”, retirada desse trecho “I don't know if it’s I mean I do feel that I have something to prove but it doesn't so much display itself in that way”, o marcador “I mean”, em posição medial, atua como um marcador discursivo “hedge”, ou seja, uma marcador de atenuação e preservação da imagem do falante, o qual o ator utiliza para atenuar seu discurso, evitando, assim, uma rejeição por parte dos interlocutores e de uma possível ameaça à sua imagem positiva.
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Isso se deve ao fato do ator Daniel Radcliffe ter adquirido sua fama e posição artística com os filmes da saga “Harry Potter”, o que demonstra seu cuidado ao mencionar a saga e a relação dela com sua carreira atual. O marcador discursivo “so” age como ferramenta de manutenção de turno conversacional, garantindo ao falante tempo para organizar seu discurso e demonstrar, dessa forma, que seu turno conversacional ainda não acabou. Já o marcador “really”, utilizado isoladamente e em caráter questionador, tem função predominante de reforçar o que foi dito e estimular o interlocutor a prosseguir o discurso. Observa-se que o marcador “well” configura um planejador verbal e possui o intuito de garantir tempo para que o falante elabore seu enunciado. Os resultados da análise do corpus demonstram que o uso dos marcadores discursivos colabora para que o falante estruture seu discurso, demonstre interesse, preserve sua imagem pública ou/e a do outro, além de lhe garantir tempo para direcionar seus argumentos, atuando, também, como planejadores verbais. Por meio do aporte teórico da Análise da Conversação, podemos observar que o ator Daniel Radcliffe faz uso dos marcadores para orientar, organizar e planejar sua fala, além de proteger sua imagem positiva e a dos outros envolvidos na interação verbal. De acordo com os resultados, os marcadores discursivos da língua inglesa encontrados no corpus desempenham mais de uma papel na interação verbal, e as funções mais recorrentes são os procedimentos de polidez, atenuação e preservação da autoimagem pública do falante.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BROWN, Penelope; LEVINSON, Stephen C. Politeness: some universals in language usage. 2ª ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1987. FRASER, Bruce. Uma abordagem sobre os marcadores discursivos. Confluência. Boletim do Departamento de Linguística. Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras. Assis, SP, ano 2, n. 2, p. 132-160, 1994.
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GOFFMAN, Erving. Les rites d’interaction. Paris: Les Éditions de Minuit, 1974. (Les Sens Commun) LEVINSON, Stephen. Pragmatics. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. Disponível em: http://www.mpi.nl/Members/StephenLevinson. Acesso em: 14 out. 2013. LYRIO, Aurélia Leal Lima. A aprendizagem de marcadores pragmáticos: A eficácia da instrução com foco na forma. 2009. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal Fluminense – UFF, Niterói. MARCUSCHI, Luiz Antônio.
Marcadores conversacionais no português
brasileiro: formas, posições e funções. Campinas: Unicamp, 1989. PRETI, Dino (Org.). Análise de textos orais. 6ª Ed. São Paulo: Humanitas Publicações FFLCH/USP. (Projetos Paralelos-NURC/SP). Vol 1. 2003. YULE, George. 1996. Pragmatics. Oxford: Oxford University Press.
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A FUNÇÃO TEXTUAL−DISCURSIVA DA HIPOTAXE ADVERBIAL NO GÊNERO RESPOSTA ARGUMENTATIVA Fátima Christina CALICCHIO (UEM) Introdução Na atualidade a caracterização dos gêneros textuais tem sido objeto de estudo das análises linguísticas, preocupadas com o aspecto da interação social da linguagem que se estabelece entre os participantes de um evento comunicativo. Entretanto, observa-se que esses estudos sobre os gêneros privilegiam sua função social, relegando os recursos gramaticais ao segundo plano. Nesse sentido, considerando que a língua é um instrumento que se presta à interação social e que a descrição de seu funcionamento pode revelar muito a respeito do contexto comunicativo em que é utilizada, objetivamos, de uma maneira geral, investigar se a função textual-discursiva das orações adverbiais1 presentes na articulação de orações pode contribuir para a construção da argumentatividade do gênero resposta argumentativa. De uma maneira especifica objetiva-se verificar qual a função textual-discursiva desempenhada pela hipotaxe adverbial no gênero resposta argumentativa. Portanto, esta pesquisa justifica-se pelo interesse em evidenciar a importância de estudos que se preocupem com os processos de articulação de orações 2, considerando o contexto de uso: como o papel do usuário da língua na organização de seu discurso e sua intenção comunicativa, isto é, a partir de um olhar funcionalista, esta pesquisa contemplará, em suas análises, além do nível sintático, o contexto, bem como critérios semânticos e pragmáticos3. A Teoria Funcionalista
De agora em diante, o termo hipotaxe adverbial fará referência às tradicionais orações subordinadas adverbiais, assim como considerou Decat (1999). 2 Nesta pesquisa, entendemos articulação de orações como a forma com que o usuário combina ou articula as orações no português em uso. 3 Neste estudo, tomamos a pragmática como a teoria do uso linguístico, isto é, teoria que reconhece o uso da língua e o modo como ela é empregada na interação verbal, não estabelecendo a dicotomia entre o que é interno e externo à língua (MARTELOTTA, 2009). 1
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O funcionalismo é uma corrente linguística que leva em conta fatores interacionais e pragmáticos4. Essa abordagem surgiu como um movimento particular dentro do Estruturalismo Linguístico, enfatizando a função das unidades linguísticas: o papel dos fonemas, o papel da sintaxe e o papel da estrutura da sentença no contexto. A origem do funcionalismo, segundo Martelotta (2009), atribui-se aos membros da Escola de Praga, especificamente do Círculo Linguístico de Praga, fundado em 1926 pelo linguista Mathesius, no qual destacaram-se, como principais representantes, Nikolaj, Trubetzkoy e Roman Jakobson. Esses linguistas se opunham ao ponto de vista saussuriano, com relação à distinção entre sincronia e diacronia, bem como a homogeneidade do sistema linguístico. O termo função/funcional é contribuição desse Círculo, ao se estabelecerem os fundamentos teóricos básicos do funcionalismo e das análises que consideram os componentes discursivos e pragmáticos A partir das propostas5 desses teóricos da Escola Linguística de Praga, surgem várias correntes denominadas funcionalistas, como a Gramática Funcional de linha holandesa (GF) de Simon Dik (1989); a Gramática Discursivo-Funcional (GDF) de Hengeveld e Mackenzie (2008); a Gramática Sistêmico-Funcional (GSF) de Halliday (1985), e a Teoria da Estrutura Retórica (RST), desenvolvida no âmbito do grupo conhecido como Funcionalismo da Costa-Oeste dos EUA e da Gramática Sistêmico Funcional (GSF) de Halliday (ANTONIO, 2009). Essas abordagens consideram o uso das expressões linguísticas na interação verbal, isto é, além de considerarem a língua um instrumento de comunicação e de interação em suas variadas situações de uso, as estruturas linguísticas são analisadas sob o ponto de vista funcional. Butler (2005) explica que é comum às teorias funcionalistas reconhecerem a importância do discurso e das relações contextuais, uma vez que a comunicação não se dá apenas por meio de frases, mas também pelo discurso. As teorias funcionalistas defendem que a língua sofre influência de fatores extralinguísticos, isto é, defendem a concepção de que a sintaxe não é autônoma em relação à semântica e à pragmática (BUTLER, 2005). Em consonância com o que afirma Butler (2005), Antonio (2009) ressalta que, no paradigma funcional, as expressões linguísticas não são estudadas isoladamente, mas levam em conta os propósitos para os quais foram utilizadas nos textos em que ocorrem. Para Neves (2010), o funcionalismo é uma teoria que se liga aos fins a que servem as unidades linguísticas, isto é, para a abordagem funcionalista, o estudo da língua está relacionado ao evento comunicativo, uma vez que sua organização São os fatores extralinguísticos de uso social da língua como: contexto situacional, os participantes da cena comunicativa, o conhecimento das normas e convenções linguísticas e sociais pertinentes ao contexto em questão, a atribuição de papeis e as funções de cada um dos envolvidos (MARTELOTTA, 2009, p. 90). 5 Segundo Martelotta (2009), o modelo funcionalista de análise linguística caracteriza-se por duas propostas que são as funções desempenhadas pela língua externas ao sistema linguístico e a influência das funções externas na organização interna do sistema linguístico. 4
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linguística envolve, de acordo com os estudiosos do funcionalismo, aspectos sintáticos, semânticos e pragmáticos. Materializações e funções textual-discursivas da hipotaxe adverbial Interessaram-nos especificamente para o desenvolvimento de nossa pesquisa os estudos de Decat (2009), sobre a função textual-discursiva da hipotaxe adverbial. Essa autora explica que várias são as funções textual-discursivas que estão na base do uso das orações hipotáticas adverbiais, pois, além de exibirem a relação semântica como tempo, modo, causa/motivo, concessão, condição etc., elas exercem funções textual-discursivas como guia, foco, tópico, moldura, ponte de transição, dentre outras, que podem propiciar o entendimento da intenção do usuário da língua ao fazer as combinações entre as orações na organização do texto (DECAT, 2009, p. 116). Essa autora já havia apontado em Decat (1999) para o fato de que [...] as adverbiais parecem formalmente dependentes, mas têm uma independência organizacional. Ora, isso leva à conclusão de que, se se pensar em termos pragmáticos, todo enunciado é dependente, já que ele requer contexto para a sua interpretação – ou, em outros termos, já que ele é o produto de uma atividade de enunciação. Essa dependência pragmática será, pois, definida em termos do contexto e das relações que nele mantêm as proposições (DECAT, 1999, p. 302).
Para Decat (1999), as orações adverbiais são opções organizacionais, termo utilizado por Matthiessen e Thompson (1988) para diferenciar essas das orações encaixadas, isto é, essa autora defende que as orações adverbiais são opções, pois o uso delas depende dos objetivos comunicativos do produtor do discurso. Assim, a partir das intenções comunicativas do falante é que serão determinadas as funções textual-discursivas. Ainda de acordo com Decat (2009), a combinação de orações não se dá necessariamente entre cláusulas adjacentes, por exemplo, uma cláusula adverbial pode estar relacionada com outra bem anterior no texto, ou se relacionar com o discurso subsequente, à maneira de “guias” ou guidepost. Sobre esse tema, Chafe (1984), ao utilizar o termo guidepost (guia), sugere que determinadas orações adverbiais presentes em alguns enunciados servem como “guia” para o interlocutor no discurso, sinalizando um caminho de orientação para as informações seguintes. Decat (2009) explica que a hipotaxe adverbial poderá servir a uma função tópica, funcionando como ponto de partida para a estruturação da informação. Assim a
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hipotaxe adverbial na combinação entre as porções textuais ao ocorrerem no início, servem a função tópica. Nesse sentido, elas podem evidenciar a intenção do produtor do texto ao construir sua argumentatividade por meio das funções textual- discursivas da hipotaxe adverbial, ao servirem de ponto de partida para a estruturação da informação do que vem expresso na porção nuclear. São comuns, nessa função tópica, a hipotaxe adverbial de condição, de motivo e de tempo. Decat (2009) ressalta que, por razões pragmáticas, o produtor pode desconsiderar o posicionamento de uma oração ao atribuir foco a determinada porção textual; a hipotaxe adverbial pode constituir, nesse sentido, uma forma de avaliação por parte do falante/produtor sobre o que vem expresso na porção do núcleo, em especial, quando posposta a esse núcleo. Essa autora aponta que a hipotaxe adverbial concessiva sustentada pela relação tese-antítese contribui para a argumentação do discurso e, por meio dessa articulação de orações, o falante pode fazer uma avaliação sobre o que vem expresso na porção central. Assim como Decat (2009), Neves (2000) também constatou a função discursiva da hipotaxe adverbial a exemplo das concessivas, em que essas construções são essencialmente argumentativas; e, para essa autora, a ordem das construções concessivas obedece aos propósitos comunicativos: Vistas de um ponto de vista pragmático, as concessivas indicam que o falante pressupõe uma objeção à sua asserção, mas que a objeção é por ele refutada, prevalecendo a sua asserção. O que está implicado, aí, é que, nas construções concessivas – como nas condicionais – existe uma hipótese, que, no caso das concessivas, é a hipótese de objeção por parte do interlocutor (NEVES, 2000, p. 874).
De acordo com essa autora, as concessivas antepostas carregam informação mais conhecida do interlocutor, isto é, essas orações ocupam uma posição mais tópica. Nesse sentido, a autora remete ao posicionamento de Givón (1995), em que a hipotaxe, quando posposta à oração-núcleo, codifica informação nova. Para esse autor, no geral, os efeitos da posição da oração do tipo adverbial em relação à nuclear (anteposta, intercalada, posposta) se inserem no domínio pragmático-discursivo servindo a uma função de ponte de transição. Assim, “toda oração apresenta algum tipo de dependência semântico-pragmática e gramatical em relação ao contexto imediato em que é produzida” (GIVÓN 1990, 1993 apud ANTONIO, 2004, p. 37).
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A par das considerações sobre as funções-textual discursivas dos autores acima citados, estão as de Thompson (1985), segundo as quais a adverbial de propósito anteposta tem a função de apresentar um problema e criar uma expectativa de solução. Eu sugiro que uma oração adverbial de propósito anteposta forneça um quadro no qual a oração principal possa ser interpretada, e que isso ocorra por meio da sua função como conector numa corrente de expectativa - uma cadeia que está ligada da seguinte forma: 1. O ambiente, incluindo o próprio texto, bem como o conhecimento que o leitor traz a ele, cria um conjunto de expectativas. 2. Dentro deste conjunto de expectativas, há um problema, tanto porque eles podem se identificar com os objetivos dos participantes da história, ou porque eles têm seus próprios objetivos. 3. A oração de propósito indica esse problema e ainda suscita algumas expectativas sobre a sua solução (THOMPSON, 1985, p. 61, tradução nossa6).
Como se pode observar, para essa autora, a adverbial de propósito anteposta fornece um quadro em que a porção núcleo pode ser interpretada, ao criar um conjunto de expectativas a partir da porção textual precedente e do conhecimento partilhado dos interlocutores, isto é, dentro desse conjunto de expectativas, cria-se não só um problema, como também uma expectativa de solução para esse problema. Análise - Tipo de construção x Função textual-discursiva As hipóteses levantadas nesta pesquisa nos permitem vislumbrar a possibilidade da ocorrência da hipotaxe adverbial estar diretamente ligada à intenção do falante em enfatizar sua intenção comunicativa, isto é, partimos da hipótese de que função textualdiscursiva das orações adverbiais, contribuem para a construção da argumentação do gênero resposta argumentativa. Assim, a análise a ser desenvolvida na sequência procederá no sentido de evidenciar quais foram as funções textual-discursivas desempenhadas pela hipotaxe adverbial. “I suggest that an initial purpose clause provides a framework within which the main clause can be interpreteed, and that it does this by means of its role as a link in an EXPECTATION CHAIN – a chain that is linked as follows: 1. The enviroment, including the text itself, as will as the knowledge which the reader brings to it, creats a set of expectations. 2. Within this set of expectations a problem, either because they can identify with the goals of the story participants, or because they have their own goals. 3. The purpose clause names this problem and raises further expecatations about its solutions.”.
6
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Tipo de Função textual-discursiva construção
4
6
Guia
21
Ponte
4
Moldura
Aponta problema
Propósito Causal
6
2
Adendo
Foco 9
Concessiva Temporal
Antecipa contra argumento
Tópico 9
Condicional
29
4
3 1
Quadro 1: Tipo de construção X Função textual-discursiva
Conforme expõe o quadro 1, no decorrer do cruzamento dos fatores Tipo de Construção X Função Textual-Discursiva, encontramos 40 ocorrências da função focal a serviço da argumentação. Dentre essas ocorrências, 31 foram realizados pela hipotaxe adverbial de causa e 9 pelas orações hipotáticas de condição. Decat (2009) explica que, por razões pragmáticas, o produtor do texto pode não considerar o posicionamento de uma oração ao atribuir foco em uma determinada porção textual, pois a hipotaxe adverbial pode constituir, nesse sentido, uma forma de avaliação/argumentação/realce por parte do falante/produtor sobre o que vem expresso na porção do núcleo, em especial, quando posposta a esse núcleo. São exemplos da função focal. 1. “Morar em república é uma experiência extremamente enriquecedora, pois me deu oportunidade de sair da minha zona de conforto.” (grifo nosso). 2. “Há também uma troca de culturas e valores, uma vez que esse estudante se relaciona com outros constantemente.” (grifo nosso). No decorrer da coleta e cruzamento dos dados, encontramos 21 orações hipotáticas temporais a serviço da função de moldura. As ocorrências abaixo são exemplos dessa função.
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1. “Me tornei um morador de república logo quando entrei na faculdade, aos 19 anos.” (grifo nosso) 2. “O jovem passa a ter uma maturidade que antes era adquirida somente depois dos 25 anos, quando saia de casa para trabalhar e casar.” (grifo nosso)
Como se pode observar, essas ocorrências da hipotaxe adverbial temporal evidenciam a função de moldura. De acordo com os estudos de Decat (2009), esse satélite adverbial apresenta a informação que o produtor considera necessária à compreensão entre as porções textuais. Por exemplo, em 1 “Me tornei um morador de república logo quando entrei na faculdade, aos 19 anos.”, a hipotaxe adverbial temporal cria um quadro/moldura ao limitar a informação que o falante/produtor do texto considera necessária à compreensão da informação que está contida na porção nuclear “... me tornei um morador de república...” por fornecer informações que marcam um evento/asserção circunstancialmente, e, do ponto de vista semântico, a hipotaxe adverbial temporal serve a essa função-textual discursiva. Para Decat (2009), além dessa função de moldura, a hipotaxe adverbial temporal ainda poderá servir, às vezes, como ponte de transição, em função anafórica e catafórica simultaneamente (DECAT, 2009, p. 116). Vejamos: 1. “Morar em república nos proporciona uma ampliação no nosso horizonte de ideias e na maneira como percebemos o mundo, por vivermos com pessoas de diferentes origens, opiniões e hábitos. Ao termos de conviver com as diferenças passamos a enxergá-las com outros olhos e até mesmo a incorporá-las.” (grifo nosso).
De acordo a ocorrência exposta, em se tratando de função anafórica e catafórica simultaneamente, evidenciamos que a hipotaxe adverbial temporal anteposta ao núcleo remete ao discurso precedente e subsequente funcionando como ponte de transição entre as porções textuais. Conforme o quadro 1, selecionamos a hipotaxe adverbial temporal com a função textual-discursiva de ponte de transição, ao evidenciar uma retomada da informação da porção do texto anterior, dessa forma estabelecendo um elo entre o discurso precedente e o subsequente, como no exemplo 1 Morar em república nos proporciona uma ampliação no nosso horizonte de ideias e na maneira como percebemos o mundo, por vivermos com pessoas de diferentes origens, opiniões e hábitos. Ao termos de conviver com as diferenças passamos a enxergá-las com outros olhos e até mesmo a incorporálas.” No decorrer da tabulação entre o tipo de construção x função textualdiscursiva, encontramos 29 ocorrências da hipotaxe adverbial temporal servindo à função de guia para o leitor. São exemplos dessa função.
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1. “Ao sair da casa dos pais o estudante adquire responsabilidades – como a de pagar contas – e aprende a dar seus passos sozinhos.” (grifo nosso). 2. “Quando moramos com nossos pais eles nos vigiam o tempo e nos fazem cumprir suas regras.” (grifo nosso).
As orações hipotáticas adverbiais temporais em posição anteposta ao núcleo servem à função textual discursiva de guia, função denominada por Chafe (1984) de guidepost. De acordo com esse autor, as construções hipotáticas adverbiais na função de guidepost fornecem ao leitor uma orientação para as informações seguintes. Por esse viés, esclarecemos que, no decorrer da tabulação dos dados, todas as orações temporais em situação de guia para o leitor, por ocorrerem no início da porção textual, direcionam o interlocutor ao discurso subsequente, delimitando, dessa forma, a informação, como podemos constatar por meio das ocorrências acima. Além dessas funções vistas até aqui, a hipotaxe adverbial pode servir a uma função tópica, funcionando como ponto de partida para a estruturação da informação. As ocorrências a seguir ilustram bem essa função. 1. Seu tivesse passado a vida inteira na casa dos meus pais eu não saberia dessas coisas, pois lá não tinha que me preocupar.” (grifo nosso). 2. “Se você não lava a sua roupa, consequentemente não vai ter o que vestir.” (grifo nosso).
De acordo com os dados do quadro 1, identificamos 9 ocorrências da hipotaxe adverbial que serviram à função tópica. Ao ocorrerem no início da porção textual, podem evidenciar a intenção do produtor do texto, servindo para a construção da argumentação por meio da função textual-discursiva materializada pela hipotaxe adverbial condicional, pois essa função serve de ponto de partida para a estruturação da informação do que vem expresso na porção nuclear, revelando-se, assim, como uma opção organizacional do discurso. No caso das construções concessivas, no cruzamento dos dados, selecionamos 3 ocorrências em posição anteposta ao núcleo. 1. “Apesar do receio de sair de casa e morar com outras pessoas, a convivência em uma república garante um imenso aprendizado para a vida.” (grifo nosso) 2. “Apesar de nada fácil, a vida em república foi um aprendizado que tive, e que continuo tendo, o qual será muito importante para toda a vida.” (grifo nosso) 3. “Apesar de ser preciso uma boa dose de compreensão, essa experiência de morar em uma república, te traz o sentimento de família com o grupo.” (Grifo nosso).
Decat (2009) aponta que a hipotaxe adverbial concessiva sustentada pela relação tese-antítese contribui para a argumentação do discurso e, por meio dessa articulação de
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orações, o falante pode fazer uma avaliação sobre o que vem expresso na porção central, como exemplificamos em 1 “Apesar do receio de sair de casa e morar com outras pessoas, a convivência em uma república garante um imenso aprendizado para a vida. “ Sobre os estudos das concessivas, podemos complementá-los com as considerações de Neves (2000). De acordo com essa autora, essas construções são essencialmente argumentativas e a ordem das concessivas obedece aos propósitos comunicativos. Dessa forma, para essa autora, as concessivas antepostas carregam informação mais conhecida do interlocutor, ocupando uma posição mais tópica, em que se refuta uma possível ou previsível objeção do interlocutor e depois se faz uma asseveração. Para exemplificar essa afirmação, utilizamos o exemplo 2 “Apesar de nada fácil, a vida em república foi um aprendizado que tive, e que continuo tendo, o qual será muito importante para toda a vida.” Portanto, por meio dos exemplos 1, 2 e 3 constatamos que as construções concessivas antepostas, ao anteciparem um contra-argumento e por constituírem-se como opções organizacionais no discurso, contribuem eficazmente aos propósitos comunicativos do falante/produtor do texto. Para Neves (2000), quanto às construções concessivas pospostas, não se pode invocar a função de tópico discursivo, pois elas exercem a função de adendo. Nesse sentido, essa autora remete ao posicionamento de Givón (1995), em que a hipotaxe adverbial, quando posposta à oração-núcleo, codifica informação nova, isto é, para esse autor, no geral, os efeitos da posição da oração do tipo adverbial em relação à nuclear (anteposta, intercalada, posposta) se inserem no domínio pragmático-discursivo ao servir como recurso importante na argumentação do produtor, candidato. As ocorrências a seguir merecem destaque, pois ao analisá-las detectamos que ocorreu uma sobreposição de funções, visto que as ocorrências das construções concessivas pospostas, além de funcionarem como adendo ao acrescentarem uma informação nova ao contexto em forma de comentário/esclarecimento do autor, justificando-a, também servem à função focal. Sobre as concessivas funcionando como adendo, 1. “É uma experiência de grande valia para os jovens que saem das casas de seus pais, pois aprendem a enfrentar as dificuldades que a vida cria em diversas circunstâncias, ainda mais se o dinheiro for curto, como no meu caso.” (grifo nosso). 2. “As primeiras experiências surgem logo nos meses iniciais, apesar de serem novidade a todos”. (grifo nosso).
Nesse sentido, portanto, evidenciamos que as construções concessivas quando pospostas ao núcleo têm importante função na argumentação do produtor/falante do texto, visto que acrescentam argumentos ao seu discurso.
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Outra função textual-discursiva que encontramos no decorrer da tabulação dos dados foi a função de apresentar um problema e criar uma expectativa de solução para o que está contido na porção nuclear. Conforme Thompson (1985), a adverbial de propósito anteposta fornece um quadro em que a porção do núcleo pode ser interpretada. E essa oração adverbial anteposta faz isso ao criar um conjunto de expectativas a partir da porção textual precedente e do conhecimento partilhado dos interlocutores e, dentro desse conjunto de expectativas, cria-se não só um problema, como também uma expectativa de solução. Para exemplificar a função-textual discursiva mantida pela hipotaxe adverbial de propósito anteposta. Vejamos 1. “Em nossa república para manter uma ordem fizemos tabelas as quais contém as despesas e como vamos dividi-las, escalas de limpeza e até mesmo quem fica responsável pela comida” (grifo nosso).
Pode-se notar, na exposição desses exemplos, que a porção textual que precede a adverbial de propósito anteposta cria um conjunto de expectativas em relação ao “problema de morar em uma república”, do exemplo 1, como afazeres domésticos e, simultaneamente, a porção textual representada pela adverbial de propósito anteposta fornece um quadro em que o leitor deve interpretar esse conjunto de expectativas, encaminhando-o para uma solução do “problema” criado na porção anteposta à adverbial de propósito. Conclusão Este trabalho analisou, à luz do funcionalismo, as Funções Textual-Discursivas− como função tópica, foco, antecipação de contra-argumento, adendo, função de apontar problema e criar expectativa de solução, função de ponte de transição, moldura e função de guia para o leitor que estão na base das orações hipotáticas adverbiais de condição, causa, concessão, propósito e temporal como recurso argumentativo do gênero Resposta Argumentativa. Conforme procedimentos de análise, em relação ao cruzamento entre o fator Tipo de Construção e Função textual-discursiva no desenvolvimento dessa pesquisa, a análise demonstrou a predominância da função de foco desempenhada pelas construções hipotáticas de causa e condição. A função de foco revela as intenções pragmáticas do produtor do texto, que, ao atribuir foco em uma determinada informação, pode desconsiderar o posicionamento de uma oração ou porção textual, pois a hipotaxe adverbial pode constituir-se como uma forma de avaliação/argumentação/realce por parte do falante/produtor sobre. A função de guia para o leitor também foi recorrente e materializou-se juntamente com outras funções, como moldura e ponte de transição, sendo a função de
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guia a segunda maior ocorrência das funções textuais discursivas desempenhadas pelas construções hipotáticas temporais. A função de guia para o leitor fornece uma orientação para as informações seguintes e a de moldura marca um evento, uma asserção circunstancialmente. Por sua vez, a função de ponte de transição estabelece um elo entre o discurso precedente e o subsequente. Ao término deste estudo, por meio dos resultados obtidos a partir do cruzamento dos fatores Tipo de construção, Função textual-discursiva, atingiu-se o objetivo inicial de identificar se as Funções Textual-Discursivas desempenhadas pelas orações poderiam constitui-se como recurso argumentativo ao gênero Resposta Argumentativa, uma vez que as orações adverbiais são opções organizacionais, cujo uso depende dos objetivos comunicativos do produtor do discurso. Nesse sentido, constatamos que é a partir das intenções comunicativas do falante é que serão determinadas as funções textual-discursivas da hipotaxe adverbial. Referências ANTONIO, Juliano. Desiderato. Estrutura retórica e articulação de orações em narrativas orais e em narrativas escritas do português. Araraquara, 2004. Tese (Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa). Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Araraquara, 2004. BUTLER, C. Functional approaches to language. In: BUTLER, C.; GÓMEZGONZÁLEZ, M.L.A. and DOVAL-SUÁREZ, S.M. (eds) The Dynamics of Language Use: Functional and Contrastive Perspectives. Amsterdam and Philadelphia: Jonh Benjamins, 2005, p. 3-17. CHAFE, W. L. How People Use Adverbial Clauses. In: Proceedings of the Tenth Annual Meeting of the Berkeley Linguistics Society, pp. 437-449. Disponível em http://linguistics.berkeley.edu/bls/, 1984. DECAT, Maria Beatriz Nascimento. Uma abordagem funcionalista da hipotaxe adverbial em português. Revista SériEncontros (Descrição do português: abordagens funcionalistas), Araraquara, SP, Unesp, ano XVI, n. 1., p. 299-318, 1999. ___________. A Relevância da investigação dos processos linguísticos, numa abordagem funcionalista, para os estudos sobre os gêneros textuais. In: ANTONIO, J. D. (Org.). Estudos descritivos do português: história, uso e variação. São Carlos: Editora Claraluz, 2008. ___________. A hipotaxe adverbial em português: materializações e funções textual-discursivas. In: SIMPOSIO MUNDIAL DE ESTUDOS DE LINGUA PORTUGUESA (II SIMELP), II, Évora, 2009. Anais... Évora, 2009, p. 113-121.
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VIOLÊNCIA E EXPOSIÇÃO FEMININA NA INTERNET: DISCURSOS DE PODER. Fernanda Aparecida Israel (UEPG) Introdução e Justificativa O presente trabalho busca promover discussões sobre a identidade de gênero feminina inserida em um contexto de escrita que é específico do tempo chamado “pósmoderno”. Este contexto é a internet, recortado a partir do site da revista Marie Claire. Embora minha preocupação central sejam as questões de gênero, entendemos que a sexualidade faz parte da identidade feminina, principalmente nos textos selecionados para este artigo em que constatamos, nos relatos de violência de gênero contra a mulher, que a motivação se dava por questões de sexualidade. Selecionamos a revista Marie Claire porque era interessante buscar uma revista que não tivesse um objetivo único, mas sim que se dirigisse ao público feminino com temáticas mais diversificadas. A revista Marie Claire tem como slogan a frase “Chique é ser inteligente”. Desta forma, entendi que uma revista que promove o feminino para além da aparência física, tem objetivos interessantes a serem analisados. A hipótese inicial sobre a revista Marie Claire é que os textos tratassem de questões políticas, de notícias que envolvessem a participação de mulheres em diversos espaços. Além disso, quando descobrimos a sessão Mulheres do Mundo, ampliamos nossas hipóteses sobre a mulher a partir da multiculturalidade. Neste sentido, a revista feminina Marie Claire se torna um terreno fértil para compreensão e discussão sobre as identidades femininas, bem como para entender e vivenciar o gênero como uma forma de emancipação dos sujeitos. O discurso em Bakhtin Neste momento, buscamos refletir sobre os gêneros discursivos a partir de uma análise bakhtiniana, pensando em que medida os três elementos do enunciado – conteúdo temático, estilo verbal e a construção composicional – (Bakhtin, 2010:262)
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materializam os discursos que produzem o gênero social feminino na revista Marie Claire. Partimos desta perspectiva de discurso para entendermos quais alcances as chamadas “condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas” (de atividade humana) tem sobre os textos da revista Maire Claire. Essas condições serão mobilizadas nas análises, mantendo uma preocupação sobre o público de leitoras, autores/as dos textos, veículo de circulação (internet), entre outras condições de produção. O centro da obra de Bakhtin (2010) é sobre como se configuram os gêneros do discurso. Torna-se importante ressaltar que, embora trabalhemos com certa pluralidade de gêneros em nossa pesquisa, como os gêneros relato, entrevista, reportagem e notícia, sabemos que o suporte revista online pertence à esfera jornalística. Para Bakhtin, os campos específicos de uso da língua elaboram seus “tipos relativamente estáveis de enunciados”, que são os gêneros de discurso. Os enunciados que nesta pesquisa se materializam nos textos da sessão Mulheres do Mundo são enunciados pertencentes não só a esfera jornalística como um todo, mas é uma esfera jornalística muito específica construída sócio-historicamente, denominada de “imprensa feminina Sendo assim, os textos publicados em uma sessão chamada Mulheres do Mundo não são produzidos nem acabam si mesmos como discursos individuais, mas pertencem a uma rede de enunciados sobre as múltiplas possibilidades do que significa ser mulher e a qual mundo elas pertencem ou devem pertencer na concepção da revista, bem como para qual mulher ela é direcionada. Esta característica, segundo Bakhtin (2010:272), de que “cada enunciado é um elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados” é um dos eixos centrais da nossa pesquisa, na medida em que nos atentamos para os discursos sociais sobre gênero que estão sendo mobilizados quando lemos um texto que evoca múltiplas possibilidades de vivenciar o feminino. Esses discursos são possíveis a partir de processos de interação com as leitoras. Conforme fundamentamos, um enunciado não existe fora da interação com o outro, sendo isso o que Bakhtin irá chamar de atitude responsiva ativa:
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“(...) o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (lingüístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc.” (BAKHTIN, 2010, p. 271) No caso do público feminino da sessão Mulheres do Mundo, as leitoras são sujeitos ativos desse processo de interação, como podemos ver em um exemplo: “Uma página no Facebook está causando polêmica no Oriente Médio. “Revolta das Mulheres no Mundo Árabe” reúne milhares de mensagens do mundo inteiro, dando seu apoio às mulheres da Arábia. A idéia é que cada envie uma foto segurando um cartaz com a mensagem "Eu apoio a revolta das mulheres no mundo árabe", antes de dizer o porquê. São protestos soidários e que demonstram indignação aos paradigmas culturais, religiosos e políticos que sofrem as mulheres da região”. (Texto “Revolta das mulheres no mundo árabe” causa polêmica em rede social)
Neste fragmento, mobiliza-se um diálogo entre as mulheres chamadas genericamente de “ocidentais” em favor da não violência contra a mulher árabe, ainda, segundo a revista “não emancipada”. A autora divulga uma campanha realizada nas redes sociais no momento em que o texto foi escrito. A campanha é feita através de mensagens compartilhadas pelas internautas que usam a rede social também como forma de protesto. Quando lemos “A idéia é que cada participante envie uma foto...” sugere-se que a leitora compartilhe desta campanha e também faça a “sua parte” de mulher ocidental: emancipada, solidária, politizada e que, obviamente, tem acesso às esferas discursivas da internet. Percebemos claramente o posicionamento da revista em provocar diretamente uma “resposta” por parte da leitora. E esta resposta não se limita à compreensão do texto, em concordar ou discordar individualmente do que está sendo dito. Mas uma resposta de elaborar outros enunciados que saem da esfera jornalística e vão para a esfera das redes sociais através dos gêneros discursivos fotos, mensagens, postagens, utilizando-se de uma diversidade de recursos lingüísticos para esta produção. Sendo assim, partiu-se de uma rede de enunciados sobre a violência contra a mulher na Arábia para a produção de um texto na revista feminina, que se preocupa com
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as questões da “inteligência”, numa sessão que tem como objetivos apresentar a mundialidade das identidades femininas, para assim, provocar resposta nas leitoras a partir da construção de outros enunciados em outras esferas de atividade humana. Essa provocação de uma atitude responsiva é o principal fundamento de um enunciado: “(...) ele (o falante) não espera uma compreensão passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma execução, etc.” (BAKHTIN, 2010, p. 272) Além da atitude responsiva, para o enunciado existir como tal é preciso que haja outro elemento, que Bakhtin (2010:280) nomina de conclusibilidade – “a alternância dos sujeitos do discurso” –. Esse elemento se manifesta numa espécie de possibilidade de conclusão/fechamento para que assim o outro possa tomar uma atitude responsiva ativa. Analisamos esse potencial de conclusibilidade do enunciado em textos do gênero discursivo entrevista. Não queremos inferir que só o gênero entrevista apresenta esta característica, mas concordamos que essas construções se aproximam do discurso oral, em que a conclusibilidade é marcada quando a voz de um interlocutor termina dando início à voz de outro: “MC - As primeiras coisas que as pessoas fazem quando algo como isso acontece é julgar a mulher. No último domingo, logo após a matéria do “Fantástico” que mostrou o caso da adolescente do Piauí, um blogueiro influente nas redes comentou o caso com a seguinte frase: “Eu não entendo porque alguém se deixaria filmar transando”. O que o senhor acha de comentários como esse? R – É fácil julgar a vida sexual de quem está exposto, não é mesmo?! Porque a filmagem é apenas uma das muitas preferências e fetiches sexuais. E o que queremos é justamente garantir o direito à privacidade, inclusive o de gostar de filmar.” O autor segue sua teoria dizendo que o chamado “dixi conclusivo” é determinado pela possibilidade de responder ao enunciado, e esse acabamento que pede resposta também é determinado foi alguns fatores: a exauribilidade do objeto e do sentido, projeto de discurso ou vontade de discurso do falante, formas típicas composicionais e de gênero do acabamento (BAKHTIN, 2010:281). O primeiro critério exauribilidade do objeto e do sentido pode ser manifestado no texto na medida em que o gênero discursivo entrevista era a melhor possibilidade
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para ampliar os discursos sobre a violência contra a mulher em situações de exposição na internet. Além disso, o gênero entrevista amplia o contato com o sujeito que legitima o combate contra essa violência, que é o deputado Romário. Ainda sobre este critério, podemos afirmar que a entrevista é construída a partir de questões que dão a possibilidade de acabamento e assim surge a atitude de resposta, que pode ser a próxima pergunta da jornalista, o entendimento que a leitora teve por parte desse enunciado e até a indução do conteúdo para a próxima pergunta. O segundo critério, vontade discursiva, refere-se a uma “idéia verbalizada”, a uma escolha do falante para determinado gênero discursivo que dará conta de expor o que ele tem a dizer. No gênero discursivo entrevista, embora seja no formato de escrita, percebemos claramente a intenção dos interlocutores ao escolher este texto, visto que já na introdução se mobiliza casos que repercutiram na mídia sobre mulheres que sofreram essa violência, para só assim, a partir da entrevista com o deputado Romário, apresentar uma possível solução para esta violência: “Casos como esses estão se tornando comuns e adivinhe quem são as principais vítimas? “Nossa sociedade costuma julgar as mulheres. É como se o sexo denegrisse a honra delas”, diz Romário. O deputado federal apresentou, no último dia 23 de outubro, um projeto de lei que transforma em crime a divulgação indevida de material íntimo”.
Neste trecho que antecede a entrevista, percebemos que a mobilização de outros enunciados sobre o tema da violência na internet funciona para dar legitimidade à escolha pelo gênero entrevista, e também para legitimar o discurso de autoridade do deputado Romário. O terceiro critério de acabamento do enunciado engloba a estabilidade do gênero, chamada de formas típicas composicionais e de gênero do acabamento, referese à realização da vontade discursiva através de um gênero discursivo, que neste exemplo é a entrevista, construída através da conversa entre a jornalista e o deputado, para depois se reconfigurar estes discursos através de um enunciado escrito. Nesta sessão nós retomamos os principais elementos que, segundo Bakhtin, configuram o enunciado. No entanto, vamos fundamentando nossa análise nesses conceitos. A partir de agora, faremos uma discussão sobre o caráter ideológico do signo, com a obra Marxismo e filosofia da linguagem.
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Signo ideológico: rede de significados discursivos Entendemos o nosso objeto de pesquisa, a revista Marie Claire, como “um produto ideológico” (Bakhtin, 2006). Justificamos esta perspectiva por defendermos que a revista feminina, sendo mais que um suporte de diversos gêneros discursivos, é um produto enunciativo construído sócio-historicamente. O caráter ideológico dela se constitui por meio de uma multiplicidade de discursos sobre as significações em torno da identidade feminina. Embora Bakhtin trabalhe com esta perspectiva de signo ideológico a partir da filosofia da linguagem marxista, entendemos que uma análise pautada nas questões de gênero também pode dialogar com esse conceito. Segundo o autor (2006:20) “Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo”. (BAKHTIN, 2006:20) Defendemos que o produto ideológico revista feminina online apresente estas características, pois é um instrumento de produção quando é vendida comercializada para servir de objeto de leitura de um público feminino. Além disso, ela existe a partir de peculiaridades que são próprias dessa produção. É produto de consumo na medida em que divulga informações e se vendem produtos de moda, beleza, padrões de comportamento, entre outros. No entanto, mais importante do que ser instrumento de produção e produto de consumo, ela reflete múltiplas realidades de identidades femininas construídas no exterior da revista, pelos contextos inseridos em Mulheres do Mundo. Metodologia O primeiro impasse para escolha do corpus para esta análise, foi a instabilidade percebida na produção do material que pretendíamos analisar. Os discursos que circulam na internet não são estáticos; ao contrário, condizem com a sociedade atual que é multifacetada e dinâmica.
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Muitos questionamentos vieram à tona, entre eles: qual é o limite entre o mecanismo social chamado gênero e os outros mecanismos sociais que estabelecem igualmente relações de poder entre os sujeitos? Esses outros mecanismos, como a raça, etnia, nacionalidade, escolaridade, idade, entre outros podem ser desvinculados da relação de gênero? Se pensarmos que a epistemologia feminista quer justamente desconstruir uma ideia de gênero num sistema binário (homem domina mulher) de modo que as relações sejam consideradas na sua ampla multiplicidade, é difícil e não honesto, eu diria, pretender analisar o gênero alheio aos outros mecanismos sociais. Neste sentido, a primeira análise desse trabalho foi ler os textos na sua integridade discursiva, não destacando só os momentos em que o gênero era mobilizado, mas os outros discursos que os permeavam. A escolha do corpus se deu pelos seguintes processos. Primeiramente, percebemos que a revista escolhida garantia textos mais preocupados em fazer representações de identidade feminina de forma mais pluralizada ao público de leitoras, tanto em relação à nacionalidade quanto em questões de raça, gênero, classe social, objetivos de vida, entre outros, conforme observamos nas primeiras leituras. Feito esse processo, partimos para um exercício que consistia em agrupar os textos que mantinham um vínculo entre si, seja pela temática, pelos sujeitos que são apresentados, ou até pela concordância em articulação de outros discursos que foram mobilizados na escrita desses textos. Os textos foram agrupados nas seguintes temáticas aproximativas: Mulher e violência, Mulheres do Oriente que lutam, Mulher e dependência química, Mulher e prostituição, mulher e aborto/parto, mulher e mastectomia, mulher e políticas públicas/ ONGs, mulher e sustentabilidade, mulheres que superaram deficiências físicas/doenças, mulher e/na política, mulher e ciência, mulher e a ditadura da boa-forma, mulheres e empreendedorismo, mulheres e as práticas feministas, entre outras temáticas. Totalizando 146 textos dessa sessão, que no site estavam publicadas em 19 páginas. Após este processo, elaboramos uma escolha parcial destes textos até a data de 15/05, totalizando 57 textos. Esta pré-seleção se deu por meio da leitura de todos os textos e aproximações temáticas entre eles. Mas o critério que mais evidenciamos na escolha foi pensar os textos que mais eram “representativos” dentro de suas temáticas,
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aqueles que mais explicitavam o momento histórico dos fatos e dos sujeitos reportados. Sendo assim, este trabalho terá uma forte preocupação com a intensidade dos discursos mobilizados sobre a identidade feminina nos textos, considerando-os não como discursos isolados e limitados em si, mas como discursos que fazem interação com outros discursos, dentro e fora da revista. Após a seleção dos 57 textos, no mês de junho/2014 deu-se início a uma primeira análise de cada texto selecionado, considerando alguns eixos que eram comuns aos textos daquela temática. Para reconhecermos essas aproximações, nos norteamos em: 1. Como são articuladas as discussões sobre cultura, pressupondo que uma sessão que se chame “Mulheres do mundo” tenha como objetivo entender as mulheres que vivenciam culturas diversificadas. 2. Como aparecem os discursos de autoridade, visto que numa primeira leitura dos textos percebemos que era comum a fala de pessoas que são reconhecidas, como autoridades políticas, especialistas e cientistas, para legitimar o discurso do texto. 3. A cultura oriental aparece de forma heterogênea e plural ou homogeneizada/estereotipada? Como são entendidas pelos textos da revista as relações de gênero com as mulheres orientais? As autoras dos textos fazem aproximações entre as realidades orientais e ocidentais? 4. Como se articulam os discursos sobre a violência, ela é entendida como um ato individual ou também compreende como atitudes de violência a culpa feminina, os julgamentos sociais e morais. Para sistematizamos essas questões na pesquisa, colocamos em tópicos todos os discursos que eram comuns aos textos daquela temática. Assim, selecionamos os discursos que eram mais comuns dentro daquela temática e os que representavam mais a identidade feminina na revista. Após este processo, nossa análise ganhou corpo pelo processo de destacar os discursos mais representativos, e assim, possibilitar uma reflexão mais sistematizada dos discursos sobre a identidade feminina, conforme demonstramos nos três textos que seguem: Texto 1: Pornografia de revanche, o relato da vítima: “Ele não esperava que eu tivesse força para expor o caso”, diz estudante que teve fotos nuas compartilhadas por ex.
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O texto se constitui discursivamente a partir do relato de uma jovem que foi exposta na internet. Marie Claire entende a atitude do ex-namorado como forma de violência: o relato da vítima sobre este crime tão covarde. Além disso, quando se refere ao ex namorado como “ele” e só depois por “ex”, já indica que a leitora compartilhe discursivamente de que é comum relações de violência contra a mulher praticadas por homens com os quais esta teve um relacionamento. A relação de confiança da mulher para com o companheiro está diretamente ligada à forma da mulher lidar com sua sexualidade e com o corpo: Sou segura com meu corpo, não tenho vergonha dele nem da minha sexualidade. Já no título, o texto se refere a Thamiris como vítima. O gênero discursivo relato é tratado pela autora como uma possibilidade de encorajamento feminino para lidar com a violência: criou coragem para contar sua história e (por isso) espera alguma punição para o ex-namorado. A “espera” pela punição vem mais pela exposição de sua história do que pela crença em uma lei consistente. Já na chamada do texto, mobiliza-se o discurso da culpa: Senti raiva, vergonha, tudo junto. Ver comentários ridículos de pessoas julgando você, te chamando de safada. Ninguém fala que o cara é culpado. Só quando você escreve um texto e mostra seu lado é que algumas pessoas entendem. Tinha gente rindo, fazendo piadas. Foi o pior tipo de humilhação que já passei na vida”. A publicação das fotos é chamada de “punição”, não pelo fim do relacionamento em si, mas pela quebra de um acordo machista em que as decisões devem ser tomadas pelo homem: Segundo ela, o rapaz não aceitou o rompimento e, como punição, publicou fotos íntimas da ex-namorada na web. Os meios de comunicação funcionam como forma de dar voz às mulheres (empoderamento), já que Thamiris viu outros casos semelhantes. Já no início do relato, a vítima faz uma justificativa pela existência das fotos, utilizando-se de termos como confiança e intimidade. Podemos dizer que essa forma é bem marcada pelo argumento do relacionamento heterossexual estável, relação hegemonicamente aceitável e exigida na sociedade: Foi normal ser fotografada durante nossa intimidade. Não sei se é fetiche ou fantasia, mas tínhamos uma relação de confiança forte. Aquilo ficaria entre nós.
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Em outra parte do relato, surge o discurso da vingança e da impotência, seguido dos discursos culpabilidade a mulher feminina: Ninguém fala que o cara é culpado. Só quando você escreve um texto e mostra seu lado é que algumas pessoas entendem. Julgamentos como “Se você não quisesse, não teria tirado a foto” é o que a maioria fala. Ao final do relato, aparece o discurso da impunidade, pois o ex-namorado continua mantendo contato e ameaçando a vítima. No relato de Thamiris, percebemos que para a sociedade, a atitude violenta do seu ex-namorado não causa tanto espanto quando o fato de que a mulher expôs sua sexualidade em fotos. Para Anthony Giddens, a sexualidade não é mais entendida como algo do domínio privado, mas sim “no domínio público” (1993, p.9). Thamiris teve que se empoderar através da própria mídia (rede social) que a julgou, bem como por meio da própria revista feminina para “se explicar” perante o ato de outra pessoa. Ainda em relação ao relato como forma de justificar a sexualidade, podemos retomar o que diz Richard Parker no texto Cultura, economia política e construção social da sexualidade, quando percebemos que a atitude da sociedade é julgar os sujeitos pela forma como vivenciam sua sexualidade: “O comportamento sexual é visto como intencional, embora sua intencionalidade seja sempre modelada no interior de contextos específicos de interações social e culturalmente estruturadas. Nesse sentido, compreender o comportamento individual é menos importante do que compreender o contexto de interações sexuais -- interações que são necessariamente sociais e que envolvem negociações complexas entre diferentes indivíduos”. (PARKER, 2000, s./p.)
Diante de atos de impunidade, a punição para o ex-namorado não se deu na forma de uma lei capaz de avaliar e julgar toda a situação. A compensação pela impunidade surge através de um castigo emocional, em que ela diz que “as pessoas o odeiam”. Esse viés emocional, advém do poder que se deu ao sexo em nossa cultura, em que todas as mulheres, como aponta Giddens, reinvindicam o que o autor chamará de “relacionamento puro” = confiança. Texto 2: Pornografia de revanche: “Nossa sociedade julga as mulheres como se o sexo denegrisse a honra”, diz Romário. Neste texto a figura masculina aparece como central na luta contra a violência. O deputado Romário é descrito como homem, deputado e pai, são identidades que
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condizem com uma ideia de masculinidade e proteção. O Estado funciona como este pai que vai proteger os mais fracos (mulher). O discurso de autoridade aparece quando os autores das exposições femininas são chamados de “criminosos”: “O criminoso se aproveita da vulnerabilidade gerada pela confiança da pessoa”, diz ele. No que segue, Romário mobiliza e critica o discurso da culpabilidade feminina, mas ao mesmo tempo, diz que os crimes acontecem pela “vulnerabilidade” que há no relacionamento a partir da confiança. De alguma forma, parte-se da mulher o motivo das agressões. Por isso, o texto vem trazendo algumas precauções que as mulheres devem tomar. Essa é uma característica da imprensa feminina, o discurso da auto segurança: as mulheres devem tomar precauções como, quando resolver registrar estes momentos, deter essas gravações ou fotografias. Não compartilhar, enviar por email ou aplicativos de celular. Ao final, o deputado afirma que a lei tem como objetivo preservar o direito das pessoas, inclusive o direito a produzir imagens e filmes das suas relações sexuais. Texto 3: Pornografia de vingança é combatida com novas leis nos Estados Unidos. O texto infere que no Brasil ainda não há uma lei consistente para este crime: Veja o que fazer no Brasil em caso de ter fotos íntimas publicadas na internet sem consentimento. Pressupõe já a impunidade que há nessas situações. Palavras como “truque-baixo” e “ataque”: Postar fotos da ex-namorada nua após o fim do namoro virou um truque baixo recorrente no Brasil e nos Estados Unidos. Aqui, é comum que o ataque venha em forma de emails recheados de fotos íntimas enviados a familiares e colegas de trabalho da vítima. Este texto retoma a recorrência da chamada “pornografia e vingança”, a modificação nas leis dos EUA referentes a esse crime enfatiza a polêmica que acompanha estas decisões, como o direito ao anonimato na internet. Além disso, há uma “dica” para as mulheres que forem vítima desse abuso, que é processar o agressor e esperar uma decisão da justiça. Considerações Até este momento, as reflexões acerca da “pornografia de vingança” nos revelam que a violência não se resume ao ato individual praticado por uma pessoa
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contra outra (homem > mulher). Mas sim, que a violência também se configura nos discursos produzidos sobre o que significa ser homem e ser mulher em nossa sociedade. Entendemos que, nesses textos, a identidade feminina é marcada pela corporeidade nas relações de gênero recontextualizadas pela internet. Além disso, há uma busca constante pelo direito à intimidade e à vivenciar sua sexualidade de forma que ela não seja vista para as mulheres apenas como meio de reprodução: “A emergência (...) para a reivindicação da mulher ao prazer sexual. A sexualidade plástica é a sexualidade descentralizada, liberta das necessidades de reprodução”. (GIDDENS, 1993, 10). Referências BAKHTIN, Michael. Gêneros do discurso. In: A estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. GIDDENS, Anthony. Sexualidade, Repressão, Civilização. In: A transformação da intimidade. Sexualidade, amor & erotismo nas sociedades modernas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993. MARIE CLAIRE. Online. Disponível em: http://revistamarieclaire.globo.com/ Acesso em 10/06/2014. PARKER, Richard. Cultura, economia e construção social da sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
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RELAÇÕES RETÓRICAS SINALIZADAS PELA ESTRATÉGIA DE PARAFRASEAMENTO EM ELOCUÇÕES FORMAIS Fernanda Trombini Rahmen Cassim (UEM) 1. Introdução A língua é concebida pela Linguística Funcional como um instrumento de comunicação “cuja estrutura depende da situação interacional e de fatores como a cognição e a comunicação, processamento mental, interação social e cultural, mudança e variação, aquisição e evolução” (NEVES, 2000, p. 03). Tendo isso em vista, planejamos este trabalho, o qual tem por objetivo geral investigar quais relações retóricas são sinalizadas pela estratégia de parafraseamento. Na paráfrase o EF “é matriz para movimentos semânticos de especificação ou generalização, expressos pelo enunciado-reformulador, que determinam uma progressão textual, gerando novos sentidos.” (FÁVERO; ANDRADE & AQUINO, 2006, p. 260). Portanto, essa estratégia consiste na reformulação de uma porção textual, ou seja, um Enunciado Fonte (doravante, EF) é trocado por um Enunciado Reformulador (doravante, ER). Com relação à semântica das paráfrases, pode haver graus de equivalência semântica entre EF e ER e essa relação pode ser minimamente perceptível, somente num quadro de conhecimentos extratextuais comum aos interlocutores, ou pode ser extremamente perceptível, como nos casos de pura repetição. Assim, Hilgert (1993) demonstra que é possível que uma paráfrase tenha equivalência semântica forte com a matriz ou equivalência semântica fraca, o que leva à constatação de que, no nível semântico, o parafraseamento é um deslocamento de sentido, que pode se manifestar do geral para o específico ou do específico para o geral. Por outro lado, quando há um deslocamento semântico do específico para o geral, temos uma paráfrase redutora, uma vez que há condensação sintático-lexical na atividade parafrástica.
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Além disso, consoante o autor, a mesma dimensão textual da matriz pode ser mantida na paráfrase, apesar dos movimentos semânticos já expostos. Nesse caso, têmse as paráfrases paralelas. Jubran, Koch, Galembeck e Preti realizaram pesquisas fundadoras no Brasil a esse respeito, as quais serviram de base para este trabalho. Porém, objetivamos relacionar a estratégia da língua falada a outra teoria: a Teoria da Estrutura Retórica (doravante, RST). A RST é uma teoria descritiva que busca caracterizar as relações que ocorrem no texto tanto no nível discursivo (as relações que se estabelecem entre as partes do texto) quanto no nível da combinação de orações. De acordo com Mann & Thompson (1988), essa teoria, além do conteúdo explícito veiculado pelas orações, há proposições implícitas que surgem a partir das relações que se estabelecem entre partes do texto, as chamadas relações retóricas ou proposições relacionais, que organizam o texto, dando-lhe coerência, e permitem que o autor atinja seus objetivos. Segundo Giering (2007), a análise a partir da RST atribui um papel e uma intenção a cada unidade informacional do texto, conferindo razão e existência a cada elemento, uma vez que toda unidade textual contém a intenção pragmática do falante/escritor, o qual procura atingir uma comunicação eficiente com seu interlocutor. As relações que se estabelecem entre as partes do texto são implícitas, pois podem ou não ser marcadas por conectores. Essas relações implícitas, que são identificadas pelo conteúdo semântico e pragmático das porções textuais, recebem o nome de proposições relacionais. Numa análise da RST, a informação semântica contida nas proposições relacionais é sempre indispensável. Dessa forma, “importa o tipo de proposição relacional que emerge da articulação de cláusulas, e não a marca lexical dessa relação” (DECAT, 2001). Mann & Thompson (1987) afirmam que as proposições relacionais estão em todo o texto, independente da extensão deste, e são responsáveis pela coerência textual. Suas definições são baseadas em critérios funcionais e semânticos. Os autores também mostram que a RST é aplicada a uma ampla variedade de gêneros textuais. Destarte, é possível perceber que as relações estabelecidas pela RST podem estar presentes tanto na microestrutura do texto (entre orações ou cláusulas) quanto na macroestrutura do texto (porções maiores de texto).
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Uma lista de aproximadamente vinte e cinco relações foi estabelecida por Mann e Thompson (1987) após a análise de centenas de textos por meio da RST. Apesar disso, o reconhecimento de novas relações pode ser necessário para a descrição dos textos. Neste trabalho, pretende-se discutir a aplicabilidade da RST a investigações da língua falada em um corpus formado por elocuções formais (aulas de curso superior). Dois aspectos serão levados em conta: a descrição da estrutura retórica dessas aulas, bem como a recorrência de estratégias típicas da língua falada como pistas que sinalizam relações retóricas, uma vez que se entende que as relações de coerência também estão presentes no texto falado pela compreensão por parte do falante. Em outros termos, este trabalho também contribui para a investigação das relações retóricas na língua falada. Nosso corpus de pesquisa constitui-se por aulas de ensino superior, transcritas para o corpus do FUNCPAR (Grupo de Pesquisas Funcionalistas do Norte/Noroeste do Paraná). 2. Desenvolvimento No corpus de pesquisa, foram encontradas 142 ocorrências que apresentavam a estratégia de paráfrase ocorrências (em um universo de 7.112 unidades de ideia). Com relação à semântica das paráfrases, encontramos no corpus de pesquisa paráfrases expansivas, paralelas e redutoras, na incidência apresentada pela tabela 1: Nº
Frequência das ocorrência
Expansiva
47
33,1
Paralela
73
51,4
Redutora
22
15,5
TOTAL
142
100
Quadro 1 – Semântica das paráfrases
Quanto às relações retóricas encontradas nas atividades parafrásticas, verificamos a recorrência de combinações entre a semântica das paráfrases e as relações retóricas estabelecidas. Em primeiro lugar, verificamos que as paráfrases expansivas
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estabeleciam relações retóricas de evidência ou elaboração. Essas relações estão descritas no quadro: Nome da relação Evidência
Elaboração
Restrições sobre o Restrições sobre o Núcleo Núcleo ou sobre o + Satélite Satélite individualmente em N: o A compreensão de S pelo leitor/ouvinte pode leitor/ouvinte aumenta a não acreditar em N a crença dele em N. um nível considerado pelo autor/falante como sendo satisfatório em S: o leitor/ouvinte acredita em S ou considera-o credível. Nenhuma S apresenta dados adicionais sobre a situação ou alguns elementos do assunto, apresentados em N ou passíveis de serem inferidos de N, de uma ou várias formas, conforme descrito a seguir. Nesta lista, se N apresentar o primeiro membro de qualquer par, então S inclui o segundo. Conjunto :: Membro Abstração :: Exemplo Todo :: Parte Processo :: Passo Objeto :: Atributo Generalização:: Especificação
Intenção do falante
A crença do leitor/ouvinte em N aumenta.
O leitor/ouvinte reconhece que S proporciona informações adicionais a N. O leitor/ouvinte identifica o elemento do conteúdo relativamente ao qual se fornecem pormenores.
Quadro 2– Relações retóricas de evidência e elaboração. (MANN & TABOADA, 2010)
Verificamos que, das 47 paráfrases expansivas encontradas no corpus, 40 delas estabeleciam relação retórica de evidência ou elaboração, ou seja, 85,01%, conforme podemos ver nos exemplos a seguir:
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Diagrama 1 – Relação retórica de evidência em paráfrase expansiva
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Diagrama 2 – Relação retórica de elaboração em paráfrase expansiva
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Quanto às paráfrases paralelas, verificamos que elas estabelecem relação retórica de reformulação, a qual está descrita na tabela a seguir: Nome da relação Reformulação (núcleosatélite)
Restrições sobre o Núcleo ou sobre o Satélite individualmente Não há
Restrições sobre o Núcleo + Satélite
Intenção do falante
S reformula N. S e N possuem um peso semelhante; N é mais central para alcançar os objetivos do falante do que S.
O leitor/ouvinte reconhece S como reformulação de N.
Quadro 3 – Relação retórica de Reformulação. (MANN & TABOADA, 2010)
Esse tipo de ocorrência foi encontrado com mais frequência (56,35%) no corpus de pesquisa e está exemplificado nos diagramas a seguir:
Diagrama 3 – Relação retórica de reformulação em paráfrase paralela
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Diagrama 4 – Relação retórica de reformulação em paráfrase paralela
Por fim, verificamos também que as paráfrases redutoras estabeleciam relações retóricas de resumo. Essa relação está descrita na seguinte tabela: Nome da relação
Restrições sobre o Núcleo ou sobre o Satélite individualmente
Restrições sobre o Núcleo + Satélite
Intenção do falante
Resumo
Em N: N deve ser mais do que uma unidade.
S apresenta uma reformulação do conteúdo de N com um peso inferior.
O ouvinte/leitor reconhece S como uma reformulação mais abreviada de N.
Quadro 4 – Relação retórica de Resumo. (MANN & TABOADA, 2010)
No diagrama a seguir, apresentamos uma ocorrência da relação de resumo sendo estabelecida por uma paráfrase redutora:
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Diagrama 5 – Relação retórica de resumo em paráfrase redutora
Apresentados os devidos exemplos, a seguir são apresentados os dados quantitativos referentes às relações retóricas encontradas no corpus de pesquisa: Nº
Frequência das ocorrências
Evidência
19
13,38
Elaboração
27
19,01
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Reformulação núcleo-satélite
80
56,34
Resumo
16
11,27
TOTAL
142
100
Quadro 5 – Relações retóricas estabelecidas pelas paráfrases
Conforme o quadro 5, a relação de reformulação foi a mais frequente no corpus, bem como as paráfrases paralelas. Do mesmo modo, as paráfrases expansivas foram encontradas na mesma frequência das relações retóricas de evidência e elaboração e assim também ocorreu com as paráfrases redutoras: estão no corpus na mesma frequência em que a relação retórica de resumo. Isso ocorre devido às características comuns das paráfrases e das relações. Em paráfrases paralelas, como um EF é substituído por um ER, a intenção é apenas reformulá-lo, para que o EF fique mais adequado, elucidando-o, e a relação de reformulação prevê exatamente isso: buscar um S que reformule o N, pois os dois têm um peso semelhante e alto grau de equivalência semântica. Já as paráfrases redutoras consistem em resumir um EF em um ER de menor extensão, assim como a relação retórica de resumo, a qual se caracteriza por reduzir N composto por mais de uma unidade - ao S - composto por uma unidade que resuma o que foi dito anteriormente. Aqui, vale lembrar o papel das paráfrases redutoras, que consiste em encerrar tópicos. Vê-se que o falante utiliza-se dessa estratégia justamente para encerrar o tópico inserido anteriormente. Por fim, as paráfrases expansivas buscam expandir sintaticamente e semanticamente o EF, acrescentando, por meio do ER, informações que possam elucidar o EF. As relações de evidência e elaboração têm o objetivo parecido. A primeira busca aumentar a crença do ouvinte por meio da expansão das informações presentes em N e a segunda apresenta, em S, elementos que elaboram o conteúdo de N, podendo estes elementos ser exemplos, passos, exemplificações e/ou atributos. 3. Considerações finais Este trabalho teve como objetivo investigar as relações retóricas sinalizadas pela estratégia de parafraseamento no texto falado.
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Verificamos que a maioria das paráfrases eram paralelas, ou seja, mantinham a extensão sintática e estreita relação semântica entre EF e ER. Como já foi mencionado, esse tipo de construção favorece a confirmação de uma explicação dada pelo professor, fazendo com que o aluno memorize o conteúdo. Nesses casos, a relação retórica estabelecida era de reformulação, na qual um satélite reformula o conteúdo do núcleo. As paráfrases expansivas também apresentaram alta frequência de ocorrência no corpus de pesquisa. Elas buscavam apresentar exemplos, evidências e detalhamentos a respeito do EF. Por meio desses elementos, o professor procurava reformular o que havia dito, porém de uma maneira mais elaborada, o que expandia a conteúdo sintático do ER, levando à relação semântica mais frouxa entre EF e ER. Nesses casos, as relações retóricas constatadas eram as de evidência e elaboração. A primeira busca aumentar a crença do interlocutor a respeito do que o professor estava falando, presente no núcleo. A segunda busca apresentar pormenores a respeito do conteúdo presente no núcleo, sejam eles partes de um todo, exemplos, especificações etc. Por fim, as paráfrases redutoras foram encontradas em menor número, geralmente quando o professor retomava o conteúdo apresentado anteriormente de forma resumitiva. Por isso, a relação retórica constatada nesses casos foi a relação de resumo, a qual prevê um satélite que reformula o núcleo com menos unidades, de forma mais abreviada. Esperamos que este trabalho possa auxiliar em novas pesquisas a respeito da língua falada que envolvam a RST e a estratégia de paráfrase, suscitando novas pesquisas a respeito do estabelecimento de relações de coerência da língua falada e da RST. Dessa forma, este tipo de estudo pode ser ampliado, por exemplo, investigando-se as relações estabelecidas por outras estratégias da língua falada. 4. Referências DECAT, M.B.N. “Leite com manga, morre!”: da hipotaxe adverbial no português em uso. São Paulo: PUC, 1993. (Tese. Doutorado em Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas). ______. Aspectos da gramática do português: uma abordagem funcionalista. Campinas/SP: Mercado de Letras, 2001.
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MARCAS DA ORALIDADE NA PRODUÇÃO ESCRITA DE ALUNOS DOS ANOS INICIAIS Fernando Arthur Gregol (UNIOESTE/ Bolsista CAPES/INEP)1 Considerações Iniciais É muito recorrente em produções escritas de alunos dos anos iniciais, que encontremos marcas de suas falas em suas produções textuais. Isso se dá por que o aluno recentemente está entrando em contato com a modalidade escrita da língua e conhece apenas a modalidade da fala. Segundo Koch e Elias, [...] a criança quando chega à escola, já domina a língua falada. Ao entrar em contato com a escrita, precisa adequar-se às exigências desta, o que não é tarefa fácil. É por essa razão que seus textos apresentam eivados de marcas da oralidade, que aos poucos, deverão ser eliminadas (KOCH e ELIAS, 2012, p. 18).
Diante dessa constatação teórica, o objetivo desta pesquisa é identificar marcas e influências da oralidade para a escrita, em textos de alunos dos anos iniciais. Trata-se, assim, de uma pesquisa qualitativa, de abordagem interpretativa, desenvolvida, como bolsista Capes, dentro do projeto Obeduc, pois recorremos a textos produzidos por alunos do 5º ano para identificar marcas da oralidade que ainda persistem na escrita para, depois, refletir sobre essas ocorrências. Como se trata de uma pesquisa em andamento, para este momento, em específico, foram analisados cinco textos, produzidos no ano de 2013, por alunos do 5º ano de um dos municípios envolvidos no projeto. Na perspectiva de atender ao proposto, organizamos este texto em duas partes: primeiramente refletiremos teoricamente sobre marcas da oralidade na escrita para, em seguida, apresentarmos uma análise dessas marcas nos textos selecionados.
Marcas da Oralidade As marcas da oralidade presentes em textos escritos são consideradas, muitas vezes, como erros de língua portuguesa. Considerar certas marcas orais, que são
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Acadêmico do curso de Letras – Língua Portuguesa/Língua Italiana e respectivas literaturas da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Bolsista do Projeto de Pesquisa Institucional Formação Continuada para professores de educação básica nos anos iniciais: ações voltadas para a alfabetização em municípios com baixo IDEB na região Oeste do Paraná, vinculado ao Observatório de Educação em Língua Portuguesa (Projeto OBEDUC). Orientadora: Profª Drª Terezinha da Conceição Costa-Hübes
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naturais no processo de apropriação da escrita, como erro de língua portuguesa, pode acarretar em outras marcas orais, que são mais difíceis de serem trabalhadas. Por isso, diferenciamos as marcas da oralidade do erro ortográfico. Para Cristófaro-Silva (2010), as marcas da oralidade se dão quando o aluno baseia-se na oralidade para escrever, enquanto que para Silva (2010) a ortografia é uma forma de unificação da língua e toda a violação dessa unificação caracteriza o erro ortográfico. Conforme Bagno (2007), a língua apresenta-se com diferentes variedades, e é porque ela varia que temos diferentes modos de fala caracterizada geograficamente (variação diatópica), economicamente (variação diastrática) e temporalmente (variação diacrônica). Diariamente, recebemos em nossas escolas alunos de diferentes faixas etárias, alguns podem ser oriundos de diferentes regiões geográficas, então, como professores, devemos saber lidar com o modo de falar de cada um, sem desprezá-lo. Nesse trabalho de variação linguística em sala de aula, não só os fatores extralinguísticos devem ser considerados, mas devemos considerar também os fatores linguísticos da variação. Tendo isso em mente, segundo nos explica Bortoni-Ricardo (2005), devemos considerar as diversas formas de variação na língua que podem ocorrer no nível fonético-fonológico (que se dá na pronúncia), relacionando-as com as formas padronizadas de escrita. Para demonstrar como se dão essas ocorrências, vamos à análise a seguir. Análise de marcas e de influências da oralidade em textos do quinto ano Os textos em análise pertencem ao banco de dados do Projeto OBEDUC e foram coletados no ano de 2013, em um município da região oeste do Paraná.Tratam-se de textos do gênero carta de apresentação, produzidos em uma situação de sala de aula quando os pesquisadores, ao visitarem a escola, depois de se apresentarem também por meio desse gênero, solicitaram que os alunos produzissem uma carta para se apresentarem aos visitantes. Para nossa pesquisa, recorremos a um corpus de cinco textos, todavia, neste trabalho, abordaremos apenas dois deles. Na análise, tomamos como base as palavras de Bortoni-Ricardo (2005) quando diferencia “marcas da oralidade” de “formas padronizadas de escrita”. Vejamos, então, os fenômenos que se apresentam no texto 1 (figura 1). O texto produzido pelo aluno, além de apresentá-lo ao pesquisador e de revelar os desejos infantis de uma criança, apresenta diferentes variações advindas tanto marcas
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da oralidade quanto do distanciamento das formas padronizadas de escrita, o que, nesse caso, se configura como erros ortográficos. Vejamos, Figura 01: Texto produzido por aluno do 5º ano em município da região oeste do Paraná
Fonte: Banco de dados do Projeto Obeduc - 2013
Para exemplificar melhor, apresentamos o quadro abaixo, listando o que consideramos marcas da oralidade provenientes principalmente da variedade linguística, indicando também o fenômeno ocorrido: Quadro 1: Análise de Marcas da Oralidade da Figura1 Marcas da Oralidade Pisicleta
Forma padronizada para a escrita Bicicleta
U Vua_
O Voar
Mushila Betra
Mochila Pedra
Brima
Prima
Luga* Mora* Coloca* Batima
Lugar Morar Colocar Batman
Fenômeno Ocorrido - Troca da consoante oclusiva, bilabial, sonora /b/, pela consoante oclusiva, bilabial surda /p/. - Neutralização da vogal posterior /o/. - Neutralização da vogal posterior /o/. - Supressão de fonema no final da palavra. -Neutralização da vogal posterior /o/. - Troca da consoante oclusiva, bilabial, surda /b/, pela consoante, oclusiva, bilabial, sonora /p/. - Troca da consoante oclusiva, linguodental, sonora /d/, pela consoante oclusiva, linguodental, surda /t/. -Troca da consoante oclusiva, bilabial sonora /p/, pela consoante, oclusiva bilabial, surda /b/. - Queda do /r/ final. - Queda do /r/ final. - Queda do /r/ final. - Desnasalização da vogal final; - Epêntese: adição de um fonema no interior da palavra.
Fonte: elaborado pelo pesquisador
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Além dessas marcas, destacam-se no texto, ainda, ainda erros ortográficos como: profesora, nasi, anima, estimasa, cavesna, con, en e bonbinha. Na palavra mushila, a marca da oralidade acima listada trata da neutralização da vogal, mas, há ainda um erro ortográfico em relação à troca do “s” pelo “c”.
Considerações Finais A partir da análise de textos de alunos do 5º ano constatamos que é possível perceber ainda marcas/influências da oralidade na produção escrita. O foco do presente trabalho não foi buscar por erros ortográficos, entretanto, identificamos vários, porém, a maioria influenciada pela própria oralidade. Como já havíamos comentado, é natural que o aluno transponha para o texto aquilo que fala, porém, é necessário que com o tempo, tais marcas/influências sejam eliminadas e, para isso, é importante que haja um trabalho sistemático com o ensino da escrita. REFERÊNCIAS BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso por uma pedagogia da variação linguística. 1. Ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolinguística & educação. 2. Ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. CRISTÓFARO-SILVA, Taïs. Representações fonológicas: contribuições da oralidade e da escrita. In: Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 45, n. 1, p. 87-93, jan/mar. 2010. KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever estratégias de produção textual. 2. Ed. São Paulo: Contexto, 2012. SILVA, Jorge Luís Lira da.O livro didático pós-PNLD, como anda o ensino de ortografia. Cadernos de Educação, FaE/PPGE/UFPel, Pelotas-RS, v. 35, p. 81-107, janeiro/abril 2010.
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O ACONTECIMENTO NAS REDES DE MEMÓRIA: O PAPEL DO ANALISTA Fernando Felício Pachi Filho (Unip/FTT) 1. Introdução As mídias sempre representaram um espaço privilegiado para análise do discurso social. Matérias jornalísticas, programas de TV e rádio e filmes integram corpus de análise em trabalhos que têm suas preocupações centradas em discursos constituintes (MAINGUENEAU, 2000), como o científico, o religioso, o filosófico, e também pesquisas que seguem categorias como as de discurso político, pedagógico, jurídico, entre outros. Nos últimos anos, a convergência das mídias (SANTAELLA, 2010) propiciadas e ampliadas pelas tecnologias de informação e comunicação, têm suscitado debates não só entre pesquisadores no campo das Ciências da Comunicação e das Tecnologias da Informação. Analistas de discurso também são convocados a refletir sobre o contexto atual das mídias, que impõe alterações velozes nos suportes comunicacionais Análises como as de Romão (2005) e Orlandi (2012) nos demonstram a pertinência dos conceitos desenvolvidos pela AD para o tratamento das questões relativas às mídias digitais. Dessa forma, noções historicamente trabalhadas e significadas ao longo do percurso téorico da Análise de Discurso na sua vertente francesa, em especial na tradição desenvolvida a partir de Pêcheux, contribuem para a problematização do discurso sobre as tecnologias de informação e da comunicação e para a emergência de questionamentos que podem apontar caminhos de análise que verticalizam as discussões já feitas para os materiais de origem midiática. Neste aspecto, consideramos que a AD pode delimitar um ponto de vista próprio para o tratamento das tecnogias de informação e comunicação. Neste trabalho, procuramos contribuir para este debate oferecendo uma reflexão sobre a produtividade do conceito de acontecimento.
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2. As tecnologias da informação e comunicação No domínio das Ciências da Comunicação e das Ciências Sociais, a emergência de uma sociedade marcadamente influenciada pelas tecnologias de informação e comunicação (TICS) têm alimentado o debate sobre as transformações na sociabilidade dos indivíduos. Sociedade em rede (CASTELLS, 2005), ciberespaço (LÉVY, 1999), sociedade da informação (POLIZZELI; OSAKI, 2008)
são denominações que
procuram abarcar essas alterações. Além disso, conceitos como conectividade, mobilidade, ubiquidade e convergência total (SANTAELLA, 2010) são usados para mostrar que a dinâmica social fundada na tecnologia permite novas relações sociais a partir da
intensificação e da onipressença das tecnologias nos processos
comunicacionais. Para a consolidação dos laços no ciberespaço, a comunicação desempenha papel preponderante.. Veron (2014), ao tratar dos processos de midiatização, explica que o crescimento de um meio que opera em novos dispositivos técnico-comunicacionais produz efeitos radiais, em todas as direções, afetando de diferentes formas e diferentes intensidades todos os níveis da sociedade funcional. Este fenômeno, segundo o autor, deriva de sua natureza sistêmica que implica numa rede enorme de retroalimentação. Veron também explica que isso ocorre, porque fenômenos midiáticos são claramente processos não lineares e distantes do equilíbrio.
Castells (2005) considera que as
tecnologias de base microeletrônica oferecem novas capacidades à organização social em redes Forma-se uma sociedade que propicia a hipersocialidade e, paralelamente, a emergência do individualismo em rede. Nestes ambientes virtuais, as interações se dão de modo imprevisível e não-planejado. Este espaço é assim baseado na autoorganização, sem hierarquia nem controle, dependendo dos modos como os elementos do sistema se conectam para sua própria evolução. Neste cenário, constroem-se as chamadas redes sociais que são a base comum de uma construção subjetiva produzida pelas redes e pelos campos de forças sociais (SANTAELLA; LEMOS, 2009). De modo geral, portanto, temos as mídias incorporando-se em atividades cotidianas, como parte de um processo social complexo, em que se criam cultura e
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regimes de verdade que necessitam ser continuamente analisados e interpretados nos seus fundamentos tecnológicos, sociais e simbólicos. 3. A AD e as tecnologias digitais No domínio dos estudos do discurso, sabemos que o objeto de análise não se modifica, temos o desafio, porém, de tratar as novas materialidades e linguagens que constituem os discursos. Orlandi alerta para o fato de que o conhecimento funciona nas redes pela informação imediata, pelo consumismo, pela quantidade e pela desconexão com o sistema produtivo (ORLANDI, 2012, p. 25). Este processo corresponde à ilusão de que a relação com o interdiscurso não está em funcionamento. A ênfase recai na intertextualidade, como se a adição de mais um texto estivesse relacionado a um (hiper) macrotexto. Isso corresponde, na visão da autora, a um lugar da quantidade da informação e rarefação da reflexão, que é consequência de um modo particular de relacionar estrutura e acontecimento. Dessa forma, Orlandi propõe um deslocamento do debate e do foco das noções de subjetividade para a de assujeitamento. Segundo ela, as formas históricas de assujeitamento do indivíduo seguem em paralelo ao desenvolvimento capitalista, que gere corpos e práticas. Neste aspecto, cabe considerar as práticas contraditórias que se desenvolveram na história capitalista. O sujeito, portanto, não pode ser considerado como mestre do sentido, mas como assujeitado ao discurso. Assim, o foco, na visão de Orlandi, é compreender as novas formas de assujeitamento que se impõem como questão. Questões que devem nortear a preocupação dos analistas são, portanto, a necessidade de analisar as relações com a memória, a ideologia, a história e a subjetividade. Soma-se a isso um questionamento sobre a estrutura e o funcionamento das novas tecnologias e como elas afetam o sujeito e a linguagem propiciando o deslocamento da função leitor e a reorganização do trabalho intelectual. Pecheux (1997, p. 63), por sua vez, afirma que a ´relação entre língua como sistema intrinsecamente passível de jogo, e a discursividade como inscrição de efeitos linguísticos materiais na história´ se ´constituio nó central de um trabalho de leitura do
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arquivo´. Assim, o analista deve identificar ´os intereses históricos, políticos e culturais´sem correr os riscos redutores do trabalho com a informática´. O que não se pode perder de vista é o fato de que na leitura do arquivo a materialidade da língua não pode ser tomada como transparente, sem levar em conta a discursividade que se estabelece nos gestos de leitura apreendidos na análise, que abre a perspectiva para a compreensão dos interesses políticos, históricos e culturais em jogo em determinado discurso. Portanto, para o analista de discurso, o ciberespaço integra novas possibilidades de pesquisa com o arquivo de materialidades diversas. A análise do discurso deve se interessar, portanto, pelas discursividades presentes nos espaços virtuais, como os indivíduos são interpelados ideologicamente como sujeitos desse discurso, assujeitando-se ao discurso do virtual. Em suma, o questionamento passa pela investigação sobre os posicionamentos assumidos e a construção de sujeitos nestes discursos. Neste aspecto, os comentários de textos podem ser analisados como discursos, ou seja são significados construídos historicamente e que fazem parte de formações discursivas e ideológicas, que se apresentam com força de evidência. Nesse sentido, o sujeito virtual é interpelado pela ideologia da revolução tecnológica. Os novos processos de conexão entre pessoas – midias sociais e sites de relacionamentos – criam uma forma sujeito virtual. (DESIDÉRIO, 2013). 4. A noção de acontecimento O conceito de acontecimento tem sido problematizado e utilizado como ponto de partida para análises em campos diversos das Ciências Sociais, tendo particularmente se instaurado nos estudos históricos, comunicacionais, da linguagem e discursivos. Sua utilização nestes campos, embora distinta, traz em comum o fato de o acontecimento ser compreendido em sua ancoragem sócio-histórica e como fenômeno de linguagem que obedece a uma ordem simbólica que precisa ser compreendida. Nos estudos do discurso, a noção de acontecimento atravessa obras de autores como Pêcheux (2002), Foucault (2000), Possenti (2009) e Guilhaumou (2009). A reflexão de Pêcheux (2002) sobre o acontecimento procura relacioná-lo à estrutura linguística discursiva que lhe dá suporte, por definição atravessado por uma memória.
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Assim, na perspectiva pecheutiana, a descrição e interpretação do acontecimento dependem do encontro da atualidade com a memória, que aciona interpretações variadas e deslocamentos nas redes de sentido que determinam o encaixe do acontecimento numa certa formação discursiva. O esforço para a construção de um universo logicamente estabilizado ou semanticamente normal, que faz com que o acontecimento ganhe contornos transparentes, esconde, porém, um conteúdo sociopolítico opaco, ou seja, enunciados podem remeter a um mesmo fato, mas ´não constroem as mesmas significações´ (PÊCHEUX, 2002, p. 20).. Ao tratar o discurso, Foucault (2000) acredita ser necessário compreender cada momento como a irupção de um acontecimento que aparece na dispersão temporal que permite sua repetição, seu esquecimento, sua transformação ou mesmo seu apagamento. Neste aspecto, cabe pensar as regras que constituíram um enunciado e que regras constiuíram enunciados semelhantes e ainda como surgem enunciados e nenhum outro em seu lugar. A proposta foucaultiana é, portanto, a de restituir ao enunciado a singularidade do acontecimento, em sua emergência histórica e como ele é repetido, transformado e reativado. Para Possenti (2009), a noção de acontecimento é fundamental em AD, por sua relação com a enunciação e com a história, que na visão deste autor deve ser explorada pelos analistas. A história é mais do que inserir acontecimentos em uma série, havendo a necessidade romper com qualquer concepção de linearidade. Dessa forma, poderiam ser analisados acontecimentos conhecidos e outros que escapam à consciência. Nesta perspectiva, o analista deve levar em conta tudo o que se diz em distintas materialidades sobre um determinado acontecimento, sem a necessidade de considerar sua duração. Segundo Guilhaumou (2009), a acontecimentalidade engendra o sentido. Para este autor, a Análise do Discurso, na sua vertente francesa, voltou-se para a dimensão criadora do acontecimentmento e não se interrogou sobre sua implicação no que se refere à totalização ao final de uma longa duração. Sua proposta é de uma abordagem de início centrada na dimensão linguística do acontecimento sem negligenciar aspectos pragmáticos e narrativos. Por isso, propõe uma síntese que engloba o acontecimento linguistico, o acontecimento discursivo e a narrativa do acontecimento.
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5. A análise do acontecimento Tomaremos como exemplo um texto publicado na mídia tradicional e compartilhado extensivamente nas redes sociais. Optamos, portanto, por observar um tipo de acontecimento e, indiretamente, um modo de interação entre mídia tradicional e mídia social. No dias 25 de agosto de 2014, o escritor e humorista Gregório Duvivier publica nos veículos do grupo Folha, o texto ´O país e o armário´. Na sua versão digital, o texto rapidamente é difundido pelas redes sociais pela ação de sujeitos que aderem ou se contrapõem ao universo de crenças proposto pelo autor. Assim, o acontecimento da publicação têm seus sentidos progressivamente retrabalhados de acordo com os comentários que são acrescidos a ele ou com a página em que é inserido, ou seja, o sentido deste texto e seus deslizamentos só podem ser compreendidos considerando sua inserção em outras redes de sentido. A partir deste acontecimento, retraçar estes deslocamentos e compreender os muitos sentidos que vão sendo assumidos por sujeitos que se movimentas nas mídias digitais é uma tarefa que se presta a análises mais detidas. Para efeitos deste texto, nos propomos a levantar questionamentos que nos auxiliem a interpretar estes movimentos discursivos nas redes sociais e suas condições de produção. Em primeiro lugar, notamos que o compartilhamento deste texto traz a marca de seu ator e do veículo em que ele está inserido. O sujeito das mídias sociais é interpelado como um indivíduo livre, que pode ser expressar sem os constrangimentos e os processos de seleção impostos pelas mídias tradicionais, com espaço de publicação restrito e critérios profissionais e de notoriedade social definidos para seus colaboradores. Este sujeito, portanto, livre destes condicionamentos, é afetado pelo imaginário de que sua manifestação não depende da avaliação ou dos parâmetros institucionais das práticas midiáticas anteriores ao universo digital. No entanto, sua submissão ocorre à ordem discursiva da tecnologia, que prevê o que pode e o que não pode ser feito pelo sujeito. O controle, portanto, incide num primeiro momento sobre sua prática discursiva não inteiramente livre. O que podemos observar é que o próprio texto inserido no portal UOL pode ser compartilhado no Facebook, no Tweeter, e no Google Mais. Compartilhar é uma atitude prevista para a movimentação do sujeito e para significação do acontecimento. Há assim um intricado
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sistema jurídico e informático que ´domestica´ este acontecimento e o faz circular, de modo autorizado, nestas redes socias. Os sujeitos livres ´podem´ reproduzir o texto, com o consentimento do autor e do veículo onde ele está publicado. Tenta-se assim conter sua dispersão para outros espaços não-autorizados. A velocidade da difusão, seus aspectos quantitativos e o mapemaneto de perfis e espaços onde o texto circula tornamse
possíveis devido à ferramenta tecnológica (KANASHIRO et al, 2013) que dá
suporte às redes sociais, que, de certa forma, estimulam a ação do sujeito que se pensa livre. Sabemos também que, ao sujeito que interage nas redes sociais, é dada a oportunidade de manifestações gerais e sem nuances, expressas pelas palavras ´curtir´e ´compartilhar´, gestos de interpretação que sinalizam a adesão do sujeito às redes e aos materiais simbólicos a que é exposto. Sua manifestação, no gesto de compartilhar, é crucial para a manutenção da circulação discursiva neste rede social, que se constrói por estes compartilhamentos, como dissemos previstos na forma de significar da rede, constituindo-se como sua condição de produção. Outra forma prevista é o ato de comentar, acréscimos significativos ou tomadas de posição em relação ao que é compartilhado em páginas pessoais. A irupção deste acontecimento, portanto, tem num primeiro momento sua circulação prevista pelas condições de produção e atualização da rede social, que se reserva ao direito de retirar publicações que firam as regras da comunidade. O texto de Duvivier compõe um produto editorial discursivo. A assinatura lhe confere o efeito de autoria, produzindo uma identificação com o que é dito, com tomadas de posição assumidas, ou seja, o autor é responsável pelo que diz. Foucault (1992) mostra que a noção de autor tem como resultado a delimitação do “modo de ser” de um texto. Assim, nos cabe compreender a tomada de posição de Duvivier, que, a nosso ver, determina seu potencial de ´compartilhamento´, de adesão ou rejeição, a formações discursivas. O acontecimento, como afirma Pêcheux, é o ´ponto de encontro entre uma atualidade e uma memória” (PÊCHEUX, 2002, p.17). É, portanto, nas tomadas de posição de Duvivier que se pode compreender sua circulação nas redes de sentido formadas pelas comunidades do Facebook. O texto de Duvivier se inicia por
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uma citação, tradução de um manifesto publicado em 1971 pelo Nouvel Observateur, apelando para o contexto francês da época, diverso do brasileiro e também da atualidade vivida no País. O tema inicial é o aborto, que divide a sociedade brasileira e provoca controvérsias em diversos países. Diz o texto citado por ´Duvivier`: "Todo ano, um milhão de mulheres fazem aborto na França. Eu sou uma dessas mulheres. Eu abortei." O manifesto foi assinado por 343 mulheres e publicado no Nouvel Observateur, em 1971.´Ao referir-se a este acontecimento, Duvivier pontua sua relevância, seu poder de mobilização e de debate na sociedade francesa. O aborto, crime na França da época, tinha sido praticado por mulheres de inegável expressão cultural, como Ariane Mnouchkine, Catherine Deneuve, Jeanne Moreau, Marguerite Duras e Simone de Beauvoir, redatora do manifesto, que coloca o Estado francês entre as posições de prendê-las ou reconhecer que ´elas não fizeram nada de errado´. O acontecimento francês se encontra com a memória de uma luta política na França e é significado num momento da história do Brasil, país que não discute o aborto, que está ´no armário´nesta questão. Notemos que o título ´O país e o armário´, expressão significada para os gays que ainda não assumiram publicamente a sexualidade, é deslocada para temas que são tabus na sociedade brasileira, como o aborto, em que o debate público é insuficiente. Os desdobramentos históricos do manifesto, que é seguido pela adesão de médicos e pela expansão da causa para a Alemannha são retomados por Duvivier para mostrar que a pressão social levou a França a alterar a legislação em 1975, descriminalizando o aborto e oferecendo a possibilidade de "interrupção voluntária de gravidez" até a décima semana de gestação. Neste aspecto, identificamos, portanto, que Duvivier toma uma posição em prol da descriminalização do aborto, tema que divide a sociedade e o universo político brasileiro. Esta tomada de posição refere-se ao que Pêcheux (2002, p. 57) demonstra ser um momento de interpretação, passível de ser descrito regularmente em montagens discursivas, e correspondentes a efeitos de identificação assumidos e não negados. Desse modo, estas tomadas de posição deslocam saberes, reconfiguram formações discursivas (FD) e alteram posiçoes identitárias dos sujeitos, num rearranjo constante. No Brasil, na perspectiva de Duvivier, uma lei como a da França está longe de ser realizada, porque nem os candidatos à presidência nem a classe artística parecem interessadoss em ´sair do armário´neste
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assunto. ´Sair do armário´ é significado como ´manifestar um posicionamento´. No Brasil, que segue em ´direção oposta´, a disputa é pelo voto conservador, de ´vender apego à tradição´. A adesão a um discurso conservador, nos quais valores familiares tradicionais são justificativas, é apresentada de modo caricatural por Duvivier: ´você me conhece, sabe que eu sou o que mais acredita em Deus, o que mais passou longe de dar a bunda, de cheirar pó, olhem só como a minha filha é virgem, olhem só como o meu filho é hétero´. Nesta disputa, ninguém ligaria para o ´voto aborteiro´, ou seja, há uma partição de sentidos derivados da política (ORLANDI, 1998). Ironicamente, Duvivier afirma que ´se as eleições, como anuncia o plantão da Globo, são a festa da democracia, essa festa, Dona Globo, está meio caída – ou fui eu que bebi pouco´. Isso porque tem pastor demais e maconha de menos. Os candidatos evitam assumir posições: ´a maioria dos candidatos não fede nem cheira – a não ser um deles, que cheira´. O autor passa a defender uma ´saída do armário. ´Manifesto´, ´levantar a bandeira´, ´manifestantes´compõem o campo semântico de uma ação política. Ao assumir a identificação com os defensores do aborto e de uma esquerda política tradicionalmente associada a estas bandeiras, Duvivier procura reunir os que são ´marginalizados pela tradição e evoca parcialmente a célebre convocação de Marx e Engels, no Manifesto Comunista: ´ateus, maconheiros, vagabundas, pederastas, sapatões e travestis do mundo: uni-vos. Porque o lado de lá tá bem juntinho.´ O texto assim irrompe como acontecimento que significa para as ccomunidades alinhadas com esta formação um alerta ou justificativa para suas preocupações. Este posicionamento pode ser notado nos comentários realizados a partir do compartilhamento feitos em algumas comunidades. Observemos um dos comentáriosm extraído de uma página pessoal: Gregório Duvivier arrebentou com esse texto que começa falando de aborto para mostrar como estamos descendo baixo em hipocrisia e como essa mediocridade entranhada no cotidiano se reflete de maneira porca na política. Por favor, não deixem de ler. ________________________ "É constrangedor ver todos os candidatos se estapeando pelo eleitorado conservador. Não se trata de propor mudanças, trata-se de vender apego à tradição. 'Você me conhece, sabe que eu sou o que mais acredita em Deus, o que mais passou longe de dar a bunda, de cheirar pó, olhem só como minha filha é virgem, olhem só como meu filho é hétero'. Todos estão desesperados pelo voto conservador". NÃO VOTE EM CANDIDATOS EVANGÉLICOS OU UNGIDOS DO SENHOR
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Neste comentário, o sujeito se inscreve na mesma formação discursiva de Duvivier, procurando divulgar o texto e o posicionamento assumido pelo autor. O significado acrescido é o de que ´Duvivier arrebentou com este texto´, ou seja, ele expõe com competência a hipocrisia e a mediocridade cotidiana que se manifesta na campanha política. Segue um apelo: ´por favor, não deixem de ler´ e uma recomendação, destacada em maíusculas: ´Não vote em candidatos evangélicos ou ungidos do senhor´. No momento em que selecionamos o texto para análise, o texto já havia recebido quatro compartilhamentos a partir da página em que foi inserido, 23 curtidas e 27 comentários, que se estruturam como um diálogo entre o autor da página e seus amigos, que se manifestam sobre o texto. O primeiro deles é uma crítica ao texto postado, ou seja, sujeito se afasta desta formação e procura se posicionar como quem não apreciou o texto, sem deixar explícita sua inscrição ideológica, considerando, porém, o texto sem profundidade e amador: ´Ele não arrebentou. Ele falou o básico. Um estagiário do segundo semestre escreveria isso´. A réplica do autor da página faz a defesa do autor do texto postado, procurando se afastar da formação na qual se inscreve seu ´opositor´: Essa é sua opinião. Tem gente que escreve texto superpomposo achando que está arrebentando e não está dizendo nada. Eu achei que ele falou talvez o óbvio, mas muito bem dito. Outros aspectos do texto, sobretudo o humorístico, são destacados: ´não sei, achei o fim a piadinha com cocaína. Mostra que o progressismo dele é fundo como um pires´. Este comentário se refere ao seguinte trecho do texto de Duvivier: ´A maioria dos candidatos não fede nem cheira -a não ser um deles, que cheira.´ Da mesma forma, outro comentário pontua o aspecto conservador em relação a drogas. ´Tb gostei do texto, mas a piadinha sobre a coca no final, tb me incomodou bastante – quase um contra-senso´. Esta pequena mostra nos dá a dimensão de que há uma linha divisória que se forma entre as opiniões defendidas no texto e os que lhe são contrários, desclassificados no seu dizer, na representação que se faz do seu discurso.
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6. Considerações finais Os processos de tomada de posição teorizados por Pêcheux (2002) permitem a demarcação das posições nas redes de memória e a compreensão de que não há cortes ou rupturas abruptas, mas sim deslocamentos que possibilitam a emergência de formações discursivas diferentes. Deste modo, como vimos nos compartilhamentos, há um trânsito entre os domínios de saber nos quais os sujeitos, ao assumirem determinadas
posições,
realizam
deslocamentos,
reconfigurando
conceitos
e
ressignificando-os no movimento entre as formações discursivas num acontecimento, o qual se tenta ´domesticar´ na estrtura tecnológica. Como explica Orlandi (2002, p. 65-66), o sujeito na AD é posição e o processo de subjetivação ocorre pela projeção do lugar deste sujeito no mundo para sua posição no discurso. Essa projeção transforma a posição social em posição-sujeito. Daí a a afirmação de que sujeito e sentido constituem-se simultaneamente, havendo neste processo espaço para repetições, deslocamentos e rupturas no jogo dos sentidos. Como não há, neste funcionamento discursivo,
um fechamento de sentidos, devido à
exposição ao equívoco, ocorre a permanente atribuição de sentidos na história por sujeitos que se constituem em diferentes posições discursivas. Além disso, não é apreensível para o sujeito seu modo de constituição, que é inconsciente e ideológico. Referências CASTELLS, M. A sociedade em rede: do conhecimento à política. In: ___; CARDOSO, G. A sociedade em rede. Do conhecimento à acção política. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 2005. DESIDÉRIO, P.M.M. O sujeito virtual nas mídias sociai: contribuições da análise do discurso para compreensão dos fakes. Revista Mosaico, Goiânia, v. 6, n. 1, p. 121-130, jan./jul. 2013. Disponível em: http://seer.ucg.br/index.php/mosaico/article/viewFile/2752/1677. Acesso em 10 ago. 2014. DUVIVIER, G. O país é o armário. Folha de S. Paulo. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/gregorioduvivier/2014/08/1505356-o-pais-e-oarmario.shtml. Acesso em 20 set. 2014 FOUCAULT, M. Ditos e Escritos, Vol. II: arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
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ANÚNCIOS EM JORNAIS IMPRESSOS DOS SÉCULOS XIX E XX: EMERGÊNCIA, ESTABILIDADE E MUDANÇA DE TRADIÇÕES DISCURSIVAS Fernando Laerty Ferreira da Silva (UFRN) Introdução Este trabalho busca contribuir com o Projeto Para História do Português Brasileiro – PHPB, trazendo em sua composição análises das Tradições Discursivas encontradas nos anúncios de jornais dos estados da Bahia, Ceará, Minas Gerais, Pernambuco e Rio de Janeiro nos séculos XIX e XX. O objetivo desta pesquisa é apontar formas e formulações linguísticas que atravessam os séculos no gênero anúncio de jornais. Essas expressões, utilizadas recorrentemente, são marcas da Tradição discursiva do texto que vão sendo utilizadas sempre que são evocadas, além disso, objetiva-se mostrar que ao longo dos séculos XIX e XX, a configuração dos anúncios de venda vem sendo moldada, revelando a mudança de estratégia que foi e está sendo feita pelos anunciantes. Este trabalho foi fundamentado pelo conceito de tradição discursiva, surgido na Alemanha nos estudos de Koch e Oesterreicher, e hoje difundido por Johannes Kabatek. Aporte teórico Segundo Coseriu, a linguagem deve ser vista como a atividade humana do falar e que, mesmo realizada individualmente, é condicionada pelas tradições Históricas. Deste modo, a linguagem se diferencia em três planos: o plano universal, o plano histórico e o plano individual. Apesar dos três níveis serem autônomos, quando existe uma situação de comunicação eles são empregados simultaneamente. Afinal, “não se pode falar "universalmente" sem falar uma língua e sem produzir textos, e não se pode falar uma língua como sistema de signos sem que seja mediante textos.” (KABATEK, 2006, p. 2) Peter Koch e Wulf Osterreicher, em seus trabalhos, dividiram o plano histórico coseriano em dois níveis, postulando a existência de dois fatores históricos: a língua como um sistema gramatical e as tradições discursivas, ou seja: “a atividade do falar, com uma finalidade comunicativa concreta, atravessaria dois filtros concomitantes até chegar ao produto do ato comunicativo ou enunciado: um primeiro filtro correspondente à
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língua e um segundo, correspondente às tradições discursivas.” (KABATEK, 2006, p. 3)
Portanto, existe uma história dos textos que independe da história da língua, ela abarca todas as formulas comunicativas recorrentes em um determinado gênero que vai além da língua e suas normas. Tradições discursivas é o nome dado a essas fórmulas comunicativas recorrentes e será o modelo teórico deste estudo. Corpus
O corpus analisado é formado por anúncios de jornais, categoria vendas de produtos, dos séculos XIX e XX, dos estados da Bahia, Ceará, Minas Gerais, Pernambuco e Rio de Janeiro. Com o objetivo de tornar os dados coletados homogêneo, foram divididos os dois séculos em dois meados, e, cada qual com sete anúncios, totalizando cento e quarenta, como mostra a tabela abaixo.
Tabela 1
É notório que o número de palavras neste corpus é bastante diminuto, logo não há como afirmar categoricamente que os elementos encontrados são marcas do gênero anúncios de jornais, mas será possível levantar hipóteses para serem, posteriormente, em um corpus significativo, confirmadas. Análise Nas primeiras análises foi possível dividir o corpus em dois grandes grupos: um grupo intitulado de marcas de vendas explícitas – os anúncios deixavam em evidência, através de expressões como “vende-se ou à venda”, o objetivo do anúncio – e um grupo intitulado de marcas implícitas – não havia expressões ou palavras que denunciassem o anúncio como de categoria venda, mas o elevado uso de adjetivos avaliativos mostrava que o real objetivo do anuncio era a valorização do produto, e, em consequência, a sua venda. Nos gráficos que se segue, divididos por séculos, percebe-se que o maior número de ocorrência foi o das marcas explícitas, mas, além disso, nota-se também que
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do século XIX para o século XX o número de anúncios com marcas implícitas cresceu bastante, chegando a ser o modelo mais presente no estado de Minas Gerais, no século XX, por exemplo.
Gráfico 1
Gráfico 2
Ao comparar os gráficos fica notório que o estado de Pernambuco, tanto no século XIX quanto no XX, apresenta o mesmo quadro de ocorrências. Esse resultado não está relacionado à variação regional, como se acreditava no início. Acreditou-se, posteriormente, que essa variação poderia estar relacionada à função de linguagem proposta por Jakobson (2003), logo foram divididos os explícitos e implícitos em três grupos: referencial, fático e conativo.
Gráfico 3
Gráfico 4
Como ilustrado no gráfico, a estabilidade dos dados em Pernambuco não se justifica pela função da linguagem, pois, como se observa, os números apontados em ambas as categorias permanecem praticamente idênticos. Essa estabilidade só foi possível ser respondida ao levar-se em consideração o modelo de argumentação em que cada anúncio está estruturado. Foi através do conceito de topoi - esquemas de argumentação gerais que podem ser “preenchidos” por conteúdos específicos – de Perelman & Olbrechts-Tyteca, que as respostas sobre os dados de Pernambuco chegaram. Ao dividir os anúncios em topos da variedade, do produto, do elogio, da origem do produto e da beleza, ficou evidente que os dados de Pernambuco divergem dos
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demais porque, este, diferente dos outros estados se apoiou no topos do produto, mantendo esse tipo de estrutura nos dois séculos, enquanto os demais estados passaram a adotar o topos do elogio, diminuindo a ocorrência do topos do produto como se vê no gráfico 6.
Gráfico 5
Gráfico 6
Por fim, partindo para as fórmulas recorrentes nos anúncios, foram apontadas, em grandes números, expressões formulaicas nos textos de marcas explícitas. Dentre as expressões encontradas as mais recorrentes foram “vende-se” e “trata-se”. Essas marcas encontradas comprovam a ideia defendida por Johannes Kabatek (2006) de que uma dada situação evoca formas ou formulações linguísticas que estão cristalizadas em um determinado gênero textual. Conclusão No presente trabalho percebeu-se que os anúncios com marcas explicitas apresentam, em sua estrutura, fórmulas cristalizadas que são evocadas nas diversas cenas de venda. Ficou evidente, também, que os anúncios dos séculos XIX e XX são predominantemente descritivos, bem como, que os produtores de anúncios estão optando por textos com funções mais persuasivas – o uso dos adjetivos avaliativos. Finalmente, viu-se que a Tradição Discursiva é determinada pelo modelo de argumentação, os topos, e que a estabilidade dos números de Pernambuco não estavam relacionadas à variação diatópica, mas sim, ao esquema de argumentação em que os anúncios estavam apoiados. Referências JAKOBSON, Roman (2003) : Linguística e Comunicação. São Paulo: Cultrix. KABATEK, Johannes (2006): “Tradições discursivas e mudança linguística”, In: LOBO, Tânia; RIBEIRO, Ilza CARNEIRO, Zenaide & Norma Almeida (eds.): Para a história do português brasileiro: novos dados, novas análises, Salvador: EDUFBA.
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DO INTERPESSOAL AO INTRAPESSOAL: DELINEANDO PERFIS DE PROFESSORES DE INGLÊS EM FORMAÇÃO INICIAL SOB UMA PERSPECTIVA SOCIOCULTURAL
Fernando Silvério de Lima (UNESP/FAPESP)1 Introdução A formação inicial do professor de língua estrangeira tem sido foco de diferentes pesquisas no Brasil e no exterior há décadas (BASSO, 2008; CONSOLO, 2007; ELLIS; EDWARDS; SMAGORISNKY, 2010; FREEMAN, 2001 JOHNSON, 2009; LIMA; CANDIDO-RIBEIRO; ZOLNIER, 2013; VAN HUIZEN, VAN OERS; WUBBEL, 2005). As pesquisas têm sinalizado tanto o êxito do campo de formação bem como as lacunas que ainda merecem ser investigadas por serem responsáveis pelos principais percalços de professores, que carregam essas lacunas para suas futuras salas de aula, podendo contribuir para os desafios já existentes nas escolas em geral. Pensando especificamente no professor de língua estrangeira é possível ponderar: como ocorre a formação de um professor de inglês na contemporaneidade? Uma possibilidade para responder esta pergunta está na tentativa de observar essa formação a partir das histórias que os futuros professores em formação narram. Que histórias esses professores trazem para o curso de Letras? Como elas se relacionam com a escolha pela carreira docente? Olhar para as histórias que os futuros professores vivenciam requer o entendimento de uma investigação a partir da pesquisa narrativa (CLANDININ, 2006). Requer ainda um olhar atento voltado para as diferentes transformações que ocorrem na formação de um professor, caracterizada assim como uma trajetória sociocultural, um desenvolvimento histórico (VYGOTSKY, 1930/1991) marcado por interações com pessoas e artefatos (instrumentos físicos e psicológicos) que auxiliam no seu desenvolvimento intrapessoal (JOHNSON, 2009).
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Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Processo 2013/04431-6.
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Sendo assim, o presente trabalho busca investigar as narrativas de uma professora de inglês em formação inicial. O percurso investigativo se constitui a partir de três perguntas centrais: 1) O que levou esta jovem ao curso de Letras e a escolha da carreira docente? 2) Quais fatos marcantes emergem de suas histórias ao tomar essa decisão? 3) O que representa para a aluna o primeiro ano da graduação? Tendo em vista esses questionamentos, as próximas seções trazem as bases teóricas de compreensão da formação de professores, os procedimentos metodológicos de geração de dados e por fim análise e discussão dos resultados.
A formação do professor de língua estrangeira: desafios contemporâneos Um dos grandes desafios contemporâneos da formação de professores é a superação da visão positivista que tem por muito tempo influenciado o conhecimento produzido neste campo científico. De acordo com Johnson (2009) a busca por conhecimentos generalizados, característica comum do paradigma positivista, pode ser entendido nas pesquisas de formação de professores, pela busca de padrões gerais em professores que pudessem caracterizar um perfil comum do “bom professor”. Apesar do olhar para as histórias de sucesso, ou em outras palavras, o que constitui um ensino bem sucedido, as investigações deixavam de lado as histórias individuais, as particularidades que possibilitam compreender como cada professor se tornou professor. Perspectivas mais recentes buscam entender a docência como uma trajetória construída a partir do conceito de professores enquanto “aprendizes”. Para Freeman (2001), considerando que os professores são mediadores da aprendizagem de seus alunos na sala de aula, é importante que eles mesmos se envolvam em sua aprendizagem
profissional,
pois
esse
engajamento
do
professor
contribui
significativamente para o desenvolvimento dos alunos. Na chamada virada sociocultural (JOHNSON, 2006), a formação de professores considera o desenvolvimento da
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cognição do professor (sua dimensão psicológica2) a partir das atividades que ele se envolve – seja como aprendiz ou como professor. A noção de virada sociocultural advém de releituras dos manuscritos do psicólogo soviético Lev S. Vygotsky. A proposta de uma psicologia de base marxista focada no desenvolvimento intelectual humano a partir das atividades culturais em que as pessoas estão envolvidas (VYGOTSKY, 1930/1991, 1934/2001) trouxe novas implicações para áreas como a Educação e a Linguística Aplicada, que têm se preocupado com a formação de professores. O trabalho docente tem assim o seu desenvolvimento profissional entendido a partir de pressupostos vygotskianos (cf. DANIELS, 2001, 2008). Um deles é a utilização de ferramentas (físicas e psicológicas) como mediadores das atividades que as pessoas realizam, e que por sua vez atuam no desenvolvimento intelectual. A então chamada formação de professores de uma vertente sociocultural (JOHNSON, 2006) ou histórico-cultural (ELLIS; EDWARDS; SMAGORINSKY, 2010) reconhece que as experiências vividas são formas possíveis e ricas de compreensão das trajetórias de formação dos professores. Não apenas as experiências, mas os contextos onde essas experiências são vividas e as pessoas que podem ter feito parte dessas experiências. Todos esses fatores interagem na maneira como os professores passam a interpretar os contextos de trabalho (sala de aula), os outros participantes com quem interage (seus alunos) e as atividades sociais que se envolve (o ensino). Voltando a atenção especificamente para a formação do professor de língua estrangeira no contexto brasileiro, pesquisas brasileiras têm demonstrado os problemas mais frequentes, sendo talvez a falta de conhecimento linguístico da língua alvo um dos mais impactantes (cf. BASSO, 2008; CONSOLO, 2007). Segundo Consolo (2007), apesar de alguns casos isolados, a proficiência linguística não é alcançada pela maioria dos graduandos em formação inicial. Para o autor, possivelmente os cursos de formação acabam não fornecendo oportunidades para o desenvolvimento desse conhecimento 2
Cabe ressaltar aqui que a dimensão psicológica aqui é entendida do ponto de vista sociocultural. Nos trabalhos de Vygotsky, a dimensão psicológica é entendida não apenas do ponto de vista biológico, mas também do histórico (desenvolvimento sociocultural da espécie), sempre em uma relação dialética.
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linguístico. As lacunas aqui são as mais diversas: a baixa proficiência dos alunos ingressantes no curso de Letras, a carga horária que não possibilita maior tempo dedicado às aulas de língua, dentre outros. No entanto, é importante ter em mente que o campo de formação não deve se focar apenas na detecção de lacunas, mas principalmente na busca de alternativas para enfrentar esses problemas contemporâneos. Para Basso (2008) uma das alternativas é a busca do desenvolvimento de competências, que de maneira bastante sintetizada pode ser entendida como atributos que os professores desenvolvem e que lhes permitem futuramente uma prática atrelada aos conhecimentos adquiridos na formação inicial, um conhecimento que permite o entendimento da prática, da realidade de sala de aula. Outros autores, como Lima, Zolnier e Candido-Ribeiro (2013) sinalizam que seria relevante a investigação da formação inicial de professores enquanto ela ainda se desenvolve, ou seja, ao longo dos anos de graduação. Em um estudo com graduandos de Letras (inglês), os autores mapearam alguns desafios que esses professores em formação inicial sentem em relação a futura profissão, tendo em vista que muitos deles entram para o mercado de trabalho antes mesmo da conclusão do curso. Os resultados mostram diversas questões de ordem afetiva (medo, insegurança, dentre outros) além de crenças que permeiam o discurso dos alunos, e possibilitam vislumbrar o que o formador deve ter em mente ao considerar quais os desafios contemporâneos na formação inicial de professores. Metodologicamente, o campo tem buscado na pesquisa qualitativa os recursos necessários para investigar como se dá a formação de professores. Para Clandinin (2006) a pesquisa narrativa foi bem aceita no campo educacional e tem sido cada vez mais recorrente nos tempos atuais. O resgate de histórias vivenciadas traz à tona diferentes formas de interpretar realidades, contextos e relações interpessoais que se estabelecem em determinados momentos histórico-culturais. O conceito de experiência é essencial na pesquisa narrativa (CLANDININ, 2006) e como já dito anteriormente, também na formação de professores de uma perspectiva histórico-cultural (ELLIS; EDWARDS; SMAGORISNKY, 2010) que busca entender o professor como um aprendiz de ensino, que interpreta sua realidade e age no mundo (e na sala de aula) intervindo em outras realidades, a de seus alunos.
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Nesta seção, busquei delinear brevemente algumas questões contemporâneas latentes no campo de formação de professores de línguas. A perspectiva sociocultural e a pesquisa narrativa formam o referencial teórico que serve de base para a investigação apresentada nas próximas seções. A seguir, apresento com maiores detalhes os passos metodológicos de geração e análise dos dados.
Metodologia da pesquisa O estudo se caracteriza pela sua natureza qualitativa longitudinal (DÖRNYEI, 2007; TARIS, 2000) ancorada em pressupostos da pesquisa narrativa na formação docente. Concebo a pesquisa narrativa como possibilidade metodológica para o estudo da experiência humana (CLANDININ, 2006), aquilo que as pessoas vivenciam nas diferentes fases da vida. No campo de estudos de formação de professores, a pesquisa narrativa se fortaleceu como metodologia apropriada pela possibilidade de resgatar as diferentes histórias vivenciadas que possibilitam vislumbrar como os professores construíram sua própria trajetória profissional, e como ela também é atravessada por pessoas e eventos que de alguma forma contribuem para a construção dessa trajetória. A participante A participante desse estudo é uma jovem graduanda de um curso de Letras com habilitação dupla (Inglês e Português) de uma universidade pública brasileira localizada na região sul do Brasil e será apresentada como Sarah, seu pseudônimo 3. Sarah faz parte de um grupo de graduandas envolvidas em um projeto de doutorado com três anos de duração que visa o estudo do desenvolvimento profissional do professor de língua estrangeira (inglês).
Por questões éticas a identidade da participante é preservada. A opção de mencionar sua origem apenas com base em seu estado de origem, sem citar sua cidade ou nome de sua universidade se volta ao mesmo princípio. O presente trabalho faz parte do projeto de pesquisa aprovado pelo comitê de ética em pesquisa com seres humanos da UNESP de São José do Rio Preto, SP (CEP/UNESP/IBILCE parecer nº 392.085).
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Instrumentos de geração de dados O estudo mais amplo conta com diferentes instrumentos qualitativos de geração de dados (narrativas orais, relatórios de estágio, entrevistas, diários de leitura, etc.). Neste trabalho, os dados apresentados na seção seguinte foram gerados a partir de grupos focais realizados com todas as participantes da pesquisa. Considerando o recorte feito para este trabalho, apenas os dados referentes às histórias vivenciadas por Sarah serão contemplados. Grupos focais consistem no registro de histórias vividas por meio de grupos de discussão (cf. BARBOUR; SCHOSTAK, 2005). Diferente das entrevistas individuais, pessoas são reunidas para compartilhar histórias e opiniões sobre temas em comum (neste caso a formação inicial em Letras). As gravações são posteriormente transcritas para análise dos eventos narrativos. Os dados aqui apresentados fazem parte de um dos grupos focais realizados no primeiro ano de geração de dados. Análise das Narrativas Sarah nasceu e cresceu em uma cidade de porte pequeno de um estado da região sul do Brasil. Suas primeiras histórias remontam o período de infância, quando era aluna de escola pública e começou um curso de inglês na única escola de idiomas de sua cidade. Infelizmente, ela recorda não ter permanecido muito tempo no curso, um de seus maiores arrependimentos, visto que hoje o conhecimento da língua inglesa é além de uma das maiores exigências de seu curso é sua maior dificuldade, como a de muitos alunos dessa licenciatura (vide CONSOLO, 2007). Durante sua adolescência, seu maior contato formal com o estudo da língua inglesa era a escola pública. Apesar das poucas aulas semanais (geralmente duas) e do conteúdo elementar trabalhado, ela tem boas recordações de seus professores de escola pública. Ao invés de cursar o ensino médio tradicional, Sarah acabou optando por fazer o magistério, que além dos anos escolares tradicionais lhe traria uma opção de emprego. E foi durante o magistério, que dentre outras opções de licenciatura, a jovem escolheu o curso de Letras. Veja o que ela diz:
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Figura 1. Narrativas de Sarah: experiências de aluna/futura professora
Sarah: Então, o que me levou pra Letras foram os meus professores do ensino médio. Porque eu gostava da forma como elas ensinavam, tanto de português quanto de inglês. E aí, por eu já ver o inglês desde pequena, lembrar do cursinho que eu parei, mas depois de um tempo caiu a ficha de que eu tinha que ter continuado, porque eu gostava, que foi que me levou pra Letras.
De acordo com a participante, seus professores da época de ensino médio (magistério) foram essenciais pela decisão de um curso de licenciatura. Partindo aqui de um exemplo claro de sua aprendizagem por observação daquilo que seus professores faziam em sala de aula (LORTIE, 1975), observando as práticas culturais compartilhadas naquele contexto e que por ela eram internalizados (VYGOTSKY, 1930/1990) como exemplos de práticas de sala de aula. Sua narrativa sugere que essas práticas vivenciadas (enquanto aluna) despertaram nela o desejo de ser professora. Aqui ela recorda também do arrependimento de não ter levado o curso de inglês adiantes. Atualmente ela sente a falta que o curso faz já que atualmente a língua inglesa é um dos aspectos chave de sua formação inicial. Mesmo assim, é seu gosto por aprender essa nova língua que também se torna crucial para decisão do curso de nível superior. O que vemos aqui no narrar suas experiências educacionais (CLANDININ, 2006) é um resgate de sua memória em que suas decisões são orientadas por desejos e escolhas particulares (gostar da língua inglesa e querer aprendê-la), mas também pelas interações com seus professores, que pelo que ela recorda, viam em Sarah o potencial para a carreira docente. A vivência em sala de aula, observando e fazendo parte de sua trajetória de aprendizagem escola, intensificou sua escolha final pelo curso de Letras.
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No entanto, sua escolha não foi rapidamente concluída. Durante o período de vestibular ela teve um breve momento de dúvida, conforme narra na próxima passagem.
Figura 2. Narrativas de Sarah: o papel dos professores em suas histórias pessoais
Sarah: Então, eu já tinha pensado em Letras, só que junto com Letras veio psicologia, porque eu sempre gostei disso. (...). Só que daí, já pela base de gostar do inglês, eu percebi que eu queria Letras. E aí eu também via as professoras e isso influencia muito. Porque você percebe assim, nossa, se a professora tá falando isso, eu penso que é o valor do professor. “Nossa, você não vai fazer Letras?” É sinal que eu sempre demonstrei uma vocação pra aquilo.
Este trecho resgata inicialmente uma dúvida entre duas opções. Sarah estava dividida entre a licenciatura em Letras e a Psicologia. E foi, segundo ela, o gosto pela língua inglesa, que ela já havia abandonado uma vez, um dos pontos de sua decisão. No entanto, o que se evidencia nesse trecho é o papel de seus professores nos anos escolares, especialmente no período de magistério. Aqui é possível visualizar mais uma vez que sua decisão parte de dois aspectos já mencionados: o apreço pela língua inglesa e o feedback de seus professores sempre que ela indicava seu interesse em fazer o curso de Letras. Como mostra a passagem, Sarah fala inclusive do conceito de vocação, para exemplificar o fato de que a licenciatura estava em sua trajetória como próximo passo. Ela parece reconstruir uma pergunta, provavelmente feita por algum(a) professor(a) durante a fase em que ela ainda não havia decidido se queria fazer Letras ou Psicologia (“Nossa, você não vai fazer Letras?”). Perguntas assim elevam a moral de Sarah, pois se ela vê em seus próprios
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professores, aqueles que já dominam as práticas culturais da profissão e as ferramentas (VYGOTSKY, 1930/1991) aqui entendidas para o potencial da instrução, que ela provavelmente tenha dado sinais de ter o mesmo potencial. Dessa forma, Sarah prestou vestibular para o curso de Letras. Sua chegada ao curso foi marcada por várias novidades, e especialmente pela vivência mais frequente do estudo da língua inglesa. Sobre este aspecto, suas narrativas se entrelaçam com fatos do passado aqui narrados. O arrependimento de não ter continuado o curso na infância é agora bastante sentido, principalmente porque a língua inglesa se revela como seu maior desafio, dado seu conhecimento bastante básico da língua. Mesmo assim, seus esforços para tentar superar sua dificuldade linguística são narrados como histórias de sucesso. Os desafios encontrados além de suas capacidades, ou em outros termos, de seu potencial real (VYGOTSKY, 1930/1991) de superar os desafios impostos pelo curso como parte seu crescimento profissional, enquanto trajetória (LIMA, 2014), são contados agora como histórias de amadurecimento. Figura 3. Narrativas de Sarah: o amadurecimento no curso de Letras
Sarah: Eu amadureci muito com ele, tanto pessoalmente quanto profissionalmente. Até o que eu to sendo agora é de tudo que juntou agora: primeiro ano, segundo ano e cursinho e o meu trabalho agora. Juntando tudo, nossa! Eu acho que eu melhorei muito, até inclusive as minhas amigas e a professora falam que eu melhorei muito depois que eu comecei a dar aula, depois que eu comecei a ter mais tempo de cursinho.
A maneira como concebe suas experiências em forma de narrativa é que seu crescimento compreende não apenas um crescimento pessoal, mas ainda profissional.
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Ela sintetiza seu crescimento como uma amálgama de seu primeiro ano no curso de Letras, dos esforços no curso paralelo de inglês, e de seu trabalho4. Novamente suas histórias são perpassadas por outras pessoas. Agora, no ensino superior, ela cita colegas de turma e a professora de língua inglesa, como exemplos que corroboram sua interpretação da experiência (CLANDININ, 2006) de que foi capaz de superar seus limites de progredir na disciplina da língua estrangeira. Comentários finais Apresentei brevemente nas seções anteriores as narrativas de Sarah, uma jovem estudante de Letras que trilha os próximos quatro anos de sua formação inicial. Meu caminho de análise, no entanto, foi retrospectivo. Minha retrospectiva mostrou várias histórias de uma pessoa que no momento está em busca de tornar-se uma professora de inglês. Afinal, qual seria a relevância desse olhar ao passado? Partindo de um ponto de vista sociocultural, concebo o desenvolvimento humano a partir da relação dialética entre a dimensão biológica e histórica. Isso implica considerar os saltos qualitativos (VYGOTKY, 1930/1991) que marcam as transformações nas vidas das pessoas. Temos aqui um forte diálogo entre experiências passadas e vivências do presente, todas elas compondo narrativas de experiência (CLANDININ, 2006). Sarah é uma pessoa cuja história de vida é marcada por experiências benéficas com relação ao papel dos professores em sua trajetória. Tais traços se voltam ao apreço e posterior decisão por também fazer parte deste grupo profissional. Visualiza no presente a necessidade de aprender uma nova língua, que sempre lhe traz à tona o fato ser muito nova e ter desistido do curso quando era criança. E tenta construir ao longo de sua formação o conhecimento de uma língua alvo que ensinará aos seus alunos em um futuro próximo.
4
Durante o ano da pesquisa, Sarah buscou um curso paralelo de língua inglesa como mediador de suas dificuldades na disciplina de língua inglesa. Ao mesmo tempo, conseguiu um emprego temporário como professora substitua de língua inglesa em escolas públicas de sua cidade. Por questão de espaço, esses aspectos não poderão ser detalhados. No entanto, eles foram foco de outro trabalho (LIMA, 2014).
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As narrativas tem o potencial de revelar esse passado que nos ajuda a criar uma visão que integra passado, presente, possibilitando vislumbrar um futuro com menos lacuna e mais histórias de êxito. Será necessário, portanto, mais estudos qualitativos que ao dialogarem com o legado de Vygotsky, tragam novas contribuições para o campo de formação de professores. Rerências BARBOUR, R.; SCHOSTAK, J. Interviewing and Focus Groups. In: SOMEKH, B.; LEWIN, C. Research Methods in the Social Sciences, London: Sage 2005. BASSO, E. A. As competências na contemporaneidade e a formação do professor de LE. In: SILVA, K.A; ALVAREZ, M.L.O. (Org.). Pesquisas e investigações em Línguística Aplicada. Campinas, SP: Pontes, 2008, p.127-155. CLANDININ, D.J. Narrative Inquiry: a methodology for studying lived experience. Research Studies in Music Education, v. 27, n. 1, p. 44-54, 2006. CONSOLO, D.A. Avaliação de proficiência oral: uma reflexão sobre instrumentos e parâmetros na formação do (futuro) professor de língua estrangeira. In: SILVA, K.A; ALVAREZ, M.L.O. (Org.). Linguística Aplicada: Múltiplos Olhares. Campinas, SP: Pontes Editores, 2007, p.109-118. DANIELS. H. (org). Vygotsky and Pedagogy. New York: Taylor & Francis, 2001. ______. (org). Vygotsky and Research. New York: Taylor & Francis, 2008. DÖRNYEI, Z. Research Methods in Applied Linguistics: quantitative, qualitative and mixed methodologies. Oxford: Oxford University Press, 2007. ELLIS, V.; EDWARDS, A.; SMAGORINSKY, P. Cultural-historical perspectives on teacher education and development. New York: Routledge, 2010.
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ANÁLISE DE UM FÔLDER PROPAGANDÍSTICO DO CANDIDATO A DEPUTADO FEDERAL ZECA DIRCEU ÀS ELEIÇÕES 2010, SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DO DISCURSO Fidel Pascua Vílchez (UNILA) Introdução O presente trabalho analisa, desde a perspectiva da análise do discurso, um texto propagandístico do candidato a deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores Zeca Dirceu, às eleições de 2010 (figura 1): Figura 1: fôlder da campanha do candidato Zeca Dirceu às eleições de 2010.
Fonte: Fullgraphics Ribeirão Editora e Gráfica LTDA.
O texto em foco pertence ao gênero da propaganda eleitoral, na qual, os responsaveis pela campanha de um candidato ou de um partido político tentam persuadir à população da excelência dessa candidatura específica nas próximas eleições, por meio de mensagens diretas, promessas e demais recursos de captação. Esse gênero, tanto na aparência externa, desenho, organização da informação e público destinatário,
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está relacionado com a propaganda comercial, pois ambos usam dos mesmos recursos argumentativos e o público-alvo é a massa. Porém, é na propaganda eleitoral onde mais claramente são visíveis os conceitos relacionados com as ideologias, além de ser o espaço natural onde elas são divulgadas. A Análise do Discurso é a disciplina da Linguística voltada ao estudo das ideologias presentes nos enunciados e nos textos. Já desde seus começos, nos anos 60, focou principalmente as questões políticas que guiavam os discursos: E, pois, sob o horizonte comum do marxismo e de um momento de crescimento da Linguística – que se encontra em franco desenvolvimento e ocupa um lugar de ciência piloto – que nasce o projeto da análise do Discurso (...). O projeto da AD se inscreve num objetivo político, e a Linguística oferece meios para abordar a política (MUSSALIM E BENTES, 2001, p. 102).
A propaganda eleitoral que estudamos aquí, como qualquer outra propaganda de tipo político, apresenta uma ideologia evidente, expressada nos presupostos ideológicos do partido ao qual representa. No caso de Zeca Dirceu, a ideologia predominante em seu discurso é a ideologia do Partido dos Trabalhadores. Trata-se de um partido de esquerda que defende o socialismo como forma de organização social, de base sindical, mas que não é considerado de ideologia marxista. Segundo o própio Lula da Silva (1989), questionado pelo candidato Fernando Collor quanto à filiação política marxista do PT, aquele respondeu textualmente: “não existe nenhum documento ofical de congresso que coloque o PT na linha marxista” (ÚLTIMO DEBATE COLLOR – LULA 1989, 09'). Esta ideologia subjacente na propaganda eleitoral de Zeca Dirceu é percebida pelo enunciatário (o leitor) não necessáriamente pelo conteúdo mesmo da publicidade, pois ao menos doze das treze razões esgrimidas pelo candidato poderiam ser assumidas também por partidos de ideologia liberal ou de direita. Só a razão número três “Seu mandato será participativo: o povo define as prioridades” (DIRCEU, 2010, p1) aponta a direção ideológica mais populista da esquerda1. Sabemos, então, da ideologia do candidato pelo esterótipo dele criado através da mídia. De acordo com Amossy: 1
O cumprimento da promessa iplícita na razão nº 3 requeriria um referendum popular antes de emprender qualquer ação política e orçamentária, o qual parece impossível. São os políticos quem definem as prioridades e as apresentam nas suas campanhas eleitorais para serem votados.
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A esterotipagem, lembremos, é a operação que consiste em pensar o real por meio de uma representação cultural preexistente, um esquema coletivo cristalizado. Assim, a comunidade, avalia e percebe o indivíduo segundo um modelo pré-construido da categoria por ela difundida e no interior da qual ela o classifica (AMOSSY, 2005, ps. 125-126).
É através deste estereótipo criado de Zeca Dirceu que podemos designar os modos de raciocínio próprios ao seu grupo e os conteúdos globais da doxa na qual ele se situa. Existem no próprio texto alguns elementos que contribuem ao reforçamento do estereótipo, como o icone da estrela vermelha do anúncio do candidato Dirceu e a indumentária informal dos cinco candidatos: as mulheres vestem todas de vermelho e os homens apenas com camisa, sem terno nem gravata, para não serem identificados como pertencentes à classe burguesa. Além do discurso principal que domina o texto da propaganda eleitoral (o discurso político da carácter esquerdista), existem outros discursos complementares que estão relacionados com o anterior: a) um discurso referente à importância da juventude na sociedade atual, relacionado com as razões quatro, oito, treze e com as imagens dos candidatos retocadas com programas informáticos; b) um discurso referente a corrupção como mal extendido na política universal e na brasileira em particular, relacionado com a razão número onze; c) um discurso referente ao valor da amizade com os poderosos na política, relacionado com a razão número doze. Ainda, o discurso principal está inserido em uma longa série de interdiscursos dos que deriva, aos que se opõe, etc., os quais são complementares2: O discurso só adquire sentido no interior de um universo de outros discursos, lugar no qual ele deve traçar seu caminho. Para interpretar qualquer enunciado, é necessário relacioná-lo a muitos outros (...) comentados, parodiados, citados, etc. (MAINGUENEAU, 2001, p. 55)
O texto em foco tem uma função conativa predominante (seguimos aqui a classificação
estabelecida
por
Maingueneau
(2001)
quanto
as
tipologias
comunicacionais e quanto as tipologias de situações de comunicação, a qual recolhe as
2
O discurso dos partidos da oposição, os manifestos da esquerda, o liberalismo, o socialismo, o comunismo, o capitalismo, etc.
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teorias de Jacobson (2007). A missão do fôlder publicitário é a de agir sobre o eleitor e conseguir o voto dele nas próximas eleições. As mensagens que estão incluidas no texto, de maneira explícita ou implícita, poderiam ser resumidas em uma só: vote em Zeca Dirceu. Além desta função predominante, podemos distinguir a função referencial nas razões para votar no candidato e no conjunto das informações dos candidatos, partidos políticos e endereços; existe também uma função emotiva nas imagens dos candidatos. Ainda, sob a perspetiva dos atos de fala, destacam no texto: a petição, como ato principal no conjunto do enunciado e também as promessas. Estas últimas estão bem definidas pelo uso do futuro e da perífrase de futuro em cinco das treze razões para ser votado. Enunciador e enunciatário O discurso inserido no texto propagandístico que estamos analisando está dirigido a destinatários bem definidos: todas aquelas pessoas capazes de votar nas eleições do dia 03 de outubro de 2010, sendo que essa data é o limite de validade da mensagem. Passada esta data, a mensagem carece de valor, não é mais possível interagir com ela. Então, segundo isto, os enunciatários seriam todas as pessoas maiores de 18 anos capazes de entender as mensagens inseridas no texto e com direito a voto. Eles são quem têm a possibilidade de interagir com o enunciador no dia senhalado anteriormente concedendo o voto em Zeca Dirceu. Menos claro resulta definir, a priori, quem são o autor e o narrador do texto3, presentes na propaganda eleitoral objeto do nosso estudo. Poderiamos entender que o enunciador fosse Zeca Dirceu, como autor intelectual dos conteúdos da propaganda, mas existem no texto indícios de que não é ele realmente quem está assumindo esse papel. O conjunto das razões para votar nele está escrito em terceira pessoa do singular, é (aparentemente) outra pessoa que está falando. A maneira mais clara de alguém assumir-se como autor empírico de um texto é assumir-se também como narrador; ou seja, utilizar a primeira pessoa, para não deixar lugar às dúvidas. 3
Usamos a terminología estabelecida por Genette ao tratar-se de um texto escrito e não a de Ducrot, mais voltada a linguagem oral. Ambas as duas terminologias estão recolhidas no texto de Brandão “Introdução à Análise do Dicurso”.
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De maneira que, segundo isto, Zeca Dirceu não quer se assumir como autor empírico do enunciado, isso é claro, mediante o recurso de colocar um narrador em terceira pessoa. Mas, por outro lado, observando as treze razões para votar nele, podemos achar: a) sete razões expressadas em terceira pessoa do presente de indicativo que anunciam as qualidades do candidato4. Estas razões poderiam ser assumidas por qualquer um que conhecesse a Zeca Dirceu e b) seis razões expressadas em futuro simples ou em perífrase de futuro (verbo “ir” + infinitivo) que anunciam promessas ou ações futuras, as quais só podem partir da pessoa encarregada de cumpri-las, de mais ninguém. Portanto, devemos concluir que Zeca Dirceu é o autor empírico das treze razões para votá-lo e que ele colocou um narrador em terceira pessoa como uma ficção discursiva. De acordo com Brandão (1993): A figura do locutor corresponde à figura do narrador da teoria de Genette. O locutor é apresentado como responsável pelo dizer, mas não é um ser no mundo, pois trata-se de uma ficção dscursiva. É aquele que fala, que conta, que é tido como fonte do discurso (BRANDÃO, 1993, p. 58).
Se nós assumirmos que Zeca Dirceu é o enunciador do discurso, então teriamos de assumir também que as informações as quais aparecem na propaganda partem também dele. No sistema político brasileiro, as listas eleitorais são abertas e qualquer um pode candidatar-se, de maneira que essa seria uma razão para pensar que ele está detrás da campanha e, portanto, ser ele o enunciador. Código e Repertório Para comprender, em toda sua dimensão, o conteúdo e a mensagem de texto precisamos de dois conhecimentos prévios, que são a base de qualquer análise linguística textual: código e repertório. Enunciador e enunciatário devem compartilhar o mesmo código para que a comunicação seja possível, para que o texto seja, ao menos inteligível. Segundo Orlandi, devemos distinguir entre inteligibilidade, interpretação e compreensão: A inteligibilidade refere o sentido à língua: “ele disse isso” é inteligível. Basta saber português para que esse enunciado seja inteligível; no entanto, não é interpretável pois não se sabe quem é ele e o que disse (...). Compreender é saber como um objeto simbólico 4
As razões 2, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13.
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(enunciado, texto, pintura, música, etc.) produz sentidos (ORLANDI, 2002, p. 27).
Pode resultar uma obviedade, mas para que a mensagem do texto seja compreendida e, portanto, possa causar o efeito desejado (ganhar o voto do eleitor), deve estar difundida no código compartilhado pela maioria dos votantes, no caso o português. Ainda, no texto, aparece a foto do candidato, junto com outras fotos dos companheiros de partido, para serem identificados facilmente por aquelas pessoas que ainda não saibam ler ou que, embora saibam, não tenham paciência para ler o conteúdo da propaganda, mas identifiquem na hora, pelas imagens, a procedência da mensagem, apoiando-se nos conhecimentos prévios adquiridos pelos leitores através da mídia audiovisual, principalmente a televisão. O outro requisito necessário para a compreensão do texto é o repertório. O leitor deve situar a informação no contexto. Para entender a mensagem, deve saber que o Brasil é um país democrático, que existem eleições, partidos políticos, que um dos partidos é o Partido dos Trabalhadores, de uma ideologia de esquerda, que existe uma representação do Paraná no Parlamento, etc. Todos esses conhecimentos básicos compartilhados pelos membros de uma comunidade fazem com que a mensagem seja rapidamente decodificada à simples vista. Intertextualidade Quanto à intertextualidade, uma primeira análise do texto mostra que o formato dele é bem similar a outras propagandas comerciais que são distribuidas nas ruas mais transitadas das cidades. O texto combina a linguagem escrita com as imagens, aproveitando ao máximo o pouco espaço disponível, apenas a metade de uma folha tamanho A4, e o corpo do texto está estruturado em 7 partes bem definidas, começando de cima para baixo, e da esquerda à direita, em ordem horizontal: os anúncios dos candidatos, o anúncio de Dirceu, as treze razões para votar nele, as imagens dos candidatos, as informações dos candidatos e partidos, a imagem da urna eletrônica e, finalmente, o endereço de e-mail do candidato Dirceu. O texto publicitário comercial guarda muitas semelhanças, quanto a sua estrutura, recursos de captação, linguagem, etc., com os textos de propaganda política.
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Ambos tentam persuadir ao destinatário, fazê-lo agir no sentido de escolher a opção desejada entre várias que nem sempre são tão diferentes entre si. No caso da propaganda comercial, por exemplo, podemos comprar uma máquina de lavar roupa da marca X em vários estabelecimentos comerciais. A escolha entre uma ou outra vai depender da maneira em que esses estabelecimentos ofereçam o produto aos consumidores finais: uns oferecerão um preço mais barato; outros, umas condições de financiamento melhores; outros um período de garantia mais amplo, etc. Todos irão salientar as vantagens da opção própria e desacreditar à concorrência. No caso da propaganda eleitoral o esquema é bem similar: na realidade, todos os candidatos se apresentam como benefactores e capazes de melhorar as condições de vida da população. Todos irão construir estradas, hospitais, escolas, garantem o acesso a uma saúde pública de qualidade, a uma educação melhor, a proteção do meio ambente, a luta contra a corrupção, etc. Os anúncios dos outros candidatos A primeira parte apresenta os nomes dos cinco candidatos que estão representados em imagens na parte de baixo. Os nomes não estão apresentados de maneira simples, escrito preto sobre branco, para simplesmente identificá-los. Em lugar disso, aparecem coloridos, em composições individuais e retangulares, na maneira que costumam ser os desenhos dos anúncios dos estabelecimentos comerciais. Chama muito a atenção o primeiro deles, referindo-se ao candidato Requião, pois remete claramente ao anúncio das Casas Bahia, com as cores vermelha e azul trocadas de lugar, mas a identificação parece clara. As Casas Bahia é o estabelecimento comercial preferido pela população devido aos preços, à ampla distribuição e às facilidades de pagamento que oferece aos clientes. Se alguém precisar mobiliar a sua casa, o primeiro nome que virá à cabeça será, provavelmente, Casas Bahia, porque é a loja que dá certo. Seguramente o candidato contou com isso na hora de escolher o anúncio da sua campanha, para criar a mesma imagem positiva quando é lido pelo eleitor, além de identificá-lo como o candidato do povo. O anúncio da segunda candidata, Gleisi, destaca pelo adorno em forma de coração que coroa todo o anúncio, numa cor rosa, cuja intenção é dar a idéia de
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bondade, cercania com o povo, defensora das políticas sociais e, principalmente, parece destinado ao eleitorado feminino. O anúncio de Osmar está baseado na imagem do sertão, na hora do amanhecer, com o sol saindo pelo horizonte. Tradicionalmente, o amanhecer é sempre visto como algo positivo, o novo dia que começa, o futuro que nasce, o que está por vir. A cor verde é a cor do campo, da natureza, da agricultura, da ecologia. O candidato Osmar pretende ser Governador do Paraná e o Paraná caracteriza-se, justamente, pela sua produção agropecuária e pela sua economia baseada no campo, no sertão. Toda esta simbologia caminha na direção de salientar claramente quais são as prioridades da sua campanha, as quais estão resumidas no primeiro ponto, o mais longo de todos eles, na lista de promessas do candidato Dirceu: “Vai criar incentivos para pequenos empresários e para a agricultura” (DIRCEU, 2010, p1). O anúncio de Dilma se destaca pela imagem do globo que aparece no centro da bandeira do Brasil, como se fosse o Planeta Terra e, lá, no fundo, o sol que está detrás, tentando sair em um universo, mais no fundo ainda, de cor verde amarela. A simbologia aponta à dimensão que o Brasil, conforme o tempo avança, vai criando na esfera internacional, quanto economia emergente, pujante, de crescente peso internacional, influente nas decisões, capaz de acolher uma Copa do Mundo, Jogos Olímpicos, etc. Resumindo: a candidata Dilma salienta a situação cada vez mais importante do Brasil no mundo. É muito interessante também a segunda parte do seu anúncio, já que se postula como “presidente” e não como “presidenta”. Hoje em dia, quando se trata de altos cargos na política ou nas empresas ocupados por mulheres, a tendência é marcar o gênero feminino, embora não seja necessário, pois “presidente” tem gênero comum, serve tanto para homens quanto para mulheres. Ainda, o slogan da sua campanha “Para o Brasil seguir mudando” (ROUSSEFF, 2010), também merece um comentário. A mensagem, quanto slogan de uma campanha política, só pode ser entendida de maneira positiva, como sinônimo de progresso, avanço social, desenvolvimento, etc. Entretanto, o significado real do verbo “mudar” é, simplesmente, “fazer ou sofrer mudança”, de maneira que nem toda mudança é sempre para melhor, mas é isso, justamente, o que está no fundo do slogan: no caso do Brasil,
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qualquer mudança é sempre para melhor, o qual tenta combater essa visão pessimista da opinião pública, expressada, de maneira cômica, pelo candidato Francisco Silva “Tiririca”: “Vote em Tiririca: pior do que tá não fica” (SILVA, 2010, 01'). O anúncio de Zeca Dirceu A segunda parte do texto, inserida na seguinte linha horizontal, está destinada à publicidade do candidato protagonista da propaganda, o qual aspira ao título de deputado federal e é salientado do resto da equipe, embora queira dar a imagem geral de ser um conjunto. Isso se vê também na fotografia da equipe, pois Dirceu ocupa o lugar preminente, sobressaindo-se do resto e a imagem dele é maior também e mostra a metade do corpo. O tamanho das letras do anúncio é bem maior do que as anteriores e a mensagem vem introduzida pelo número treze. Este número tem algumas conotações: é considerado tradicionalmente como número de sorte, boa ou ruim. Realmente não tem um sentido claro positivo, é bem ao contrário, de maneira que parece uma escolha não muito feliz, pois existem muitas pessoas que sentem aversão por este número. Embora existam também muitas outras que gostem do treze, o candidato deberia ter escolhido un número com umas conotações positivas claras, como o dez ou o doze. Porém, o numeral “treze” determina ao substantivo “razões” e a razão é, justamente, aquilo que se opõe à superstição, com o qual o valor negativo que, em princípio, tem o número treze, fica diminuído. Resalta a cor vermelha no corpo do anúncio (número treze, votar, federal), junto com a estrelinha símbolo do Partido dos Trabalhadores, todo relacionado com a ideologia de esquerda do partido ao qual pertence o candidato. Finalmente, o nome escolhido para a promoção do candidato é “Zeca” Dirceu. A preferência no uso do hipocorístico “Zeca” tem a ver com a proximidade com povo que o candidato quer transmitir. Essa proximidade faz o eleitor identificar-se com o candidato, alguém que pode ser chamado pelo apelido, igual a qualquer um de nós. Ortograficamente, deveria ir entre aspas, ao ser um término hipocorístico, mas isso mostraria que não é o seu verdadeiro nome, como o qual ficaria uma sensação de irrealidade, de falsidade até. As aspas senhalariam que o nome verdadeiro é José Carlos, um nome composto, menos empático do que Zeca, menos próximo do povo.
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As treze razões para votar em Zeca Dirceu A terceira parte do texto inclui as treze razões para votar no candidato Dirceu. Estão dispostas de maneira escalonada em ordem decrescente. Cada uma delas vem introduzida por um símbolo () em forma de risca em v, em que as pessoas costumam escrever para expressar a confirmação de alguma coisa ou a certeza de uma afirmação. Um exemplo claro do uso deste símbolo é quando um professor confirma a veracidade da resposta de um aluno à pergunta formulada na prova; outro exemplo seria a confirmação dos itens de uma lista de compras. A finalidade da colocação destes símbolos encabeçando as treze razões é criar no leitor a impressão de que as razões são verdadeiras e as promessas que fazem vão ser cumpridas. A disposição escalonada das orações faz com que os símbolos que as introduzem pareçam como um bando de pássaros sobrevoando aos candidatos abaixo, sorridentes e felizes, conferindo à cena uma aparência idílica. As razões estão expressadas em tempo futuro simples, perífrase de futuro (verbo ir em forma pessoal + infinitivo) para as promessas: vai criar, vai lutar, será participativo; tempo presente do verbo ser em terceira pessoa do singular, para manifestar as qualidades ótimas do candidato: é jovem, trabalhador, amigo, ficha limpa, Prefeito Empreendedor, candidato do mais emprego. Distingue-se um frame que tem a ver com a economia: empresários, agricultura, emprego, renda, mercado de trabalho, recursos, desenvolvimento, empreendedor, trabalhador. De todas as razões para Dirceu ser votado, a principal, salientada em caixa alta, é “o Paraná mais forte em Brasília”, o qual requer o conhecimento prévio do leitor acerca do sistema representativo parlamentário no Brasil. Conclusões Analisamos neste trabalho, sob a perspectiva da Análise do Discurso, o fôlder do candidato às eleições 2010 pelo Partido dos Trabalhadores Zeca Dirceu. Comprovamos como o discurso subjacente no texto pertencia ao gênero da propaganda política e mantinha nexos de união com outros gêneros de discurso, principalmente o gênero publicitário comercial; aliás, tentamos demonstrar o quanto se
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parecem um ao outro nos recursos de catação, linguagem e organização dos argumentos discursivos. Observamos também que, através das razões esgrimidas para ser votado, o candidato era o autor empírico do enunciado principal; ou seja, ele desenhou a sua própria campanha, mas tentou não apresentar-se como tal e criou, por esse motivo, um narrador ficçional que se expressava em terceira pessoa. Analisamos questões elementais referentes ao código e o repertório necessários para a comunicação ser possível. Aprofundamos no discurso que estava por baixo de cada um dos anúncios dos candidatos, voltados a aspectos específicos relacionados com a sua campanha particular. Finalmente, analisamos a composição fotográfica que juntava as imagens de todos os candidatos, seguindo uma disposição perfeitamente pre-estabelecida de antemão para à consecução do fim último perseguido pela propaganda eleitoral de qualquer signo político: conseguir o voto do eleitor. Referências AMOSSY, R. Imagens de si no discurso, a construção do ethos. São Paulo, Contexto, 2005. BRANDÃO, H. Introdução à Análise do Discurso. Campinas. Editora Unicamp, 1993. CASOY, B. Último debate Collor-Lula 1989. Em: Bandeirantes, Globo, SBT. São Paulo,
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TERRAS INDÍGENAS NO ACRE: APONTAMENTOS TOPONÍMICOS1
Flávia Leonel Falchi (UFG) Maria Suelí de Aguiar (UFG) 1 Introdução “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (BRASIL, 2008, p. 69). De acordo com Borges (FUNDAÇÃO DE CULTURA E COMUNICAÇÃO ELIAS MANSOUR, 2002), em 1983, a primeira terra indígena no estado brasileiro do Acre foi demarcada. Atualmente, nesse estado, há 37 terras indígenas. Nelas vivem índios das famílias etnolinguísticas Páno, Aruák e Arawá. Ademais, há, no Acre, indígenas isolados vivendo nessas terras, sobre os quais não se sabe ao certo a que família etnolinguística pertencem. Este trabalho apresenta um estudo sobre os nomes oficiais das terras indígenas presentes no estado do Acre, estado esse que compõe a Amazônia Legal. Os topônimos dessas terras são: Alto Purus; Alto Tarauacá; Arara do Igarapé Humaitá; Arara do Rio Amônia; Cabeceira do Rio Acre; Cabeceiras dos Rios Muru e Iboiaçu; Campinas/Katukina; Igarapé Taboca do Alto Tarauacá; Jaminawa/Arara do Rio Bagé; Jaminawa do Guajará; Jaminawa do Igarapé Preto; Jaminawa do Rio Caeté; Jaminawa/Envira; Kampa do Igarapé Primavera; Kampa do Rio Amônia; Kampa e Isolados do Rio Envira; Katukina/Kaxinawá; Kaxinawá/Ashaninka do Rio Breu; Kaxinawá da Colônia Vinte e Sete; Kaxinawá da Praia do Carapanã; Kaxinawá do 1 Este trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil, através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da Universidade Federal de Goiás (UFG), como parte do plano de trabalho 2011/2012. Uma versão preliminar do presente trabalho foi apresentada no IV Simpósio Mundial de Estudos de Língua Portuguesa (SIMELP), em 2013, em Goiânia, com publicação de resumo.
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Baixo Rio Jordão; Kaxinawá do Rio Humaitá; Kaxinawá do Rio Jordão; Kaxinawá do Seringal Curralinho; Kaxinawá do Seringal Independência; Kaxinawá Igarapé do Caucho; Kaxinawá Nova Olinda; Kulina do Igarapé do Pau; Kulina do Médio Juruá; Kulina do Rio Envira; Mamoadate; Manchineri do Seringal Guanabara; Nawa; Nukini; Poyanawa; Rio Gregório; e Riozinho do Alto Envira. Segue a descrição de alguns desses topônimos2. 2 Topônimos oficiais das terras indígenas no Acre A Terra Indígena Arara do Igarapé Humaitá fica nos municípios acrianos de Porto Walter e Tarauacá (GOVERNO DO ESTADO DO ACRE, 2008). Nela vive o grupo Shawandáwa (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2012). Segundo Aguiar (2008), esse grupo é também conhecido por Arara. Por essa razão, o topônimo dessa terra indígena apresenta o elemento formador Arara. De acordo com a autora, o nome Arara se refere à ave assim denominada. Esse nome foi dado à etnia Shawandáwa por esse grupo usar adornos com penas de arara. Conforme Machado (1990), o nome Arara tem origem na língua Tupi. Além disso, esse topônimo contém Igarapé Humaitá, que é um igarapé que, segundo o Governo do Estado do Acre (2008), banha essa terra indígena. Humaitá, como aponta Sampaio (1970), é originário da língua Tupi, sendo esse item uma alteração de mbaitá, que se refere à ave chamada de maitaca. Em relação a Igarapé, Dick (1992, p. 124, grifo da autora) expõe: Os caminhos lacustres que permitiam a navegação através de barcos ou de “pequenas canoas escavadas em um só tronco”, denominadas ygaras pelos Tupi, ficaram, desde então, conhecidos por igarapés ou “caminho da canoa”, os quais, por extensão, passaram a designar, segundo Theodoro Sampaio, “canal, furo ou braço de rio, ou esteiro, nos Estados do Amazonas, Pará e Maranhão”. Os igarapés seriam, assim, acidentes geográficos comuns, acrescidos, porém, de um conteúdo semântico específico, conferido pela própria natureza lexicológica do termo, que o distinguiria da generalidade significativa dos esteiros e canais. Acrescente-se, ainda, como traço pertinente a esses cursos d’água, a cobertura vegetal disposta ao seu redor, como verdadeiros “chapéus de sol” ou “impenetrável cerca”. Sua conformação naturalmente sombria parece ter sido a responsável pelo costume disseminado entre as 2 Devido ao limite de páginas estabelecido pelas normas do evento, no presente trabalho, não são apresentadas as descrições de todos os topônimos oficiais das terras indígenas situadas no Acre.
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populações marginais de se lhes atribuir “propriedades místicas”; neles habitariam as almas dos antigos pajés, razão por que todos que os atravessam, ou por eles passam, deixam algum mimo nos ramos das árvores, em sinal de respeito e adoração, para que aqueles mortos não lhes façam mal (DANIEL, [...] 1975).
No que diz respeito à Terra Indígena Arara do Rio Amônia, essa está situada no município de Marechal Thaumaturgo (GOVERNO DO ESTADO DO ACRE, 2008). Nela vive a etnia Apolima-Arara. Tal etnia, como aponta Aguiar (2008), é formada por indígenas de cinco grupos: Shawandáwa, Shipibo, Amahuaka, Jamináwa e Ashaninka. Segundo essa autora, os indígenas Shawandáwa são os mais numerosos na etnia Apolima-Arara. De acordo com Aguiar (2008), é isso que justifica o elemento Arara no nome Apolima-Arara, já que os Shawandáwa são também conhecidos por Arara. A presença de Arara no topônimo da terra indígena possivelmente se deve ao fato de haver Arara no nome Apolima-Arara e também dos Shawandáwa serem os mais numerosos no grupo. Ademais, no topônimo Arara do Rio Amônia, a presença de Rio Amônia se refere ao rio que, segundo o Governo do Estado do Acre (2008), corta essa terra indígena. Quanto à Terra Indígena Kaxinawá do Rio Humaitá, essa se localiza no município de Feijó (GOVERNO DO ESTADO DO ACRE, 2008). Nela vivem indígenas dos grupos Ashaninka, Kulina e Huni Kuin, sendo o último grupo também conhecido por Kaxinawá (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2012). Apesar de essa terra indígena ser habitada por indígenas desses três grupos, somente o nome Kaxinawá aparece no topônimo como elemento formador. Segundo Aguiar (2008), o nome Kaxinawá tem origem Páno e é traduzido por grupo do morcego, sendo morcego a tradução de kaxi e grupo a tradução de nawá. Em relação a Rio Humaitá, esse se refere ao rio que, segundo o Governo do Estado do Acre (2008), corta essa terra indígena. Vale apontar que, no Acre, há o rio Humaitá e o igarapé Humaitá (GOVERNO DO ESTADO DO ACRE, 2008), existindo, desse modo, mais de um curso de água com esse nome no Acre. O rio Humaitá é denominado Shawãya pelos Huni Kuin, conforme se pode observar no relato do indígena desse grupo Vicente Sabóia Kaxinawá (WEBER, 2004, p. 22, grifo da autora): “esse rio Humaitá é dos índios mesmo, eu tenho essa história pra contar, pai do meu pai me contava que nós morava nesse rio mesmo. Rio Humaitá na língua nossa é Shawãya, toda vida esse rio é do índio”.
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No que se refere à Terra Indígena Jaminawa/Arara do Rio Bagé, essa está localizada nos municípios acrianos de Marechal Thaumaturgo e Tarauacá (GOVERNO DO ESTADO DO ACRE, 2008). Essa terra indígena fica no rio Bagé (POSTIGO, 2010) e nela vivem indígenas Jamináwa-Arara (SOUZA, 2005). Por isso, há Jaminawa/Arara e Rio Bagé no topônimo dessa terra indígena. De acordo com Aguiar (2008), Jamináwa é de origem Páno, sendo grupo do machado a tradução de Jamináwa, em que jami é traduzido por machado, enquanto náwa é traduzido por grupo. Conforme Sampaio (1970), Bagé tem origem no Tupi page. Desse modo, Bagé corresponde a pajé. A Terra Indígena Jaminawa do Rio Caeté fica no município de Sena Madureira e é banhada pelo rio Caeté (GOVERNO DO ESTADO DO ACRE, 2008). Nessa terra moram indígenas Jamináwa (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2012), o que explica o elemento formador Jaminawa no topônimo da terra indígena. Rio Caeté diz respeito ao rio que passa, de acordo com o Governo do Estado do Acre (2008), nos limites da terra indígena. Sampaio (1970) aponta que Caeté é de origem Tupi, sendo caá-etê traduzido por mata virgem. Conforme Couto (2010), na Terra Indígena Jaminawa do Igarapé Preto vivem indígenas Jamináwa-Arara e Saynáwa. Os Saynáwa até recentemente eram conhecidos por Jamináwa. Isso justifica o fato de o nome Saynáwa não estar presente no topônimo dessa terra indígena. Seu Benedito nos disse que a denominação Jamináwa havia sido colocada por não-índios no tempo em que eles trabalhavam na extração da borracha. Ele nos disse que um patrão não-índio, seringalista, disse ao avô materno dele, Seu José Marcolino, já falecido, que eles eram índios Jamináwa e passou a chamá-los desse modo. O grupo, entretanto, não deixou de se autodenominar Saynáwa. Na verdade, Seu José Marcolino contava ao neto, Seu Benedito, como este nos disse posteriormente, que o nome antigo do povo não era Saynáwa, mas sim Saybaybô. Ao perguntarmos por qual razão o grupo aceitou ser denominado como Jamináwa, Seu Benedito nos disse que essa tinha sido uma decisão de seu avô, líder do grupo, e todos aceitaram por respeito à sua liderança. Quanto às razões do avô em tomar tal atitude, não soube explicar. Dessa forma, todo o povo passou a ser denominado desse modo, sendo assim reconhecido pelos não-índios e por índios que tiveram contato recente com eles. (COUTO, 2010, p. 30)
De acordo com Couto (2010), a Terra Indígena Jaminawa do Igarapé Preto se encontra no município de Rodrigues Alves. O topônimo dessa terra indígena é formado
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por Jaminawa e por Igarapé Preto, sendo esse o nome de um igarapé situado, segundo o Governo do Estado do Acre (2008), na região da terra indígena. Vale assinalar que, no Acre, o topônimo Preto é comum para nomear igarapé, havendo mais de um igarapé com esse nome no estado, conforme o que se pode observar nos mapas presentes em Governo do Estado do Acre (2008). Quanto à Terra Indígena Kampa do Igarapé Primavera, essa fica no município de Tarauacá (GOVERNO DO ESTADO DO ACRE, 2008) e é habitada por indígenas Ashaninka (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2012). Pimenta (2005, p. 2-3) assinala que, ao longo da história, os Ashaninka foram identificados sob vários nomes: Ande, Anti, Chuncho, Pilcozone, Tamba, Campari. Todavia, são mais conhecidos pelo termo 'Campa' ou 'Kampa', nome freqüentemente utilizado por antropólogos e missionários para designar os Ashaninka de maneira exclusiva ou os Aruak sub-andinos de forma genérica – com exceção dos Piro e dos Amuesha. Ashenĩka é a autodenominação do povo e pode ser traduzida como 'meus parentes', 'minha gente', 'meu povo'. O termo também designa a categoria de espíritos bons que habitam “no alto” (henoki).
Conforme Almeida (FUNDAÇÃO DE CULTURA E COMUNICAÇÃO ELIAS MANSOUR, 2002), os Ashaninka não aceitam a denominação Kampa, pois essa, segundo esses indígenas, é ofensiva. Essa denominação aparece no topônimo da Terra Indígena Kampa do Igarapé Primavera como um elemento formador, fazendo referência aos habitantes Ashaninka. Nesse topônimo, há também Igarapé Primavera, que é o nome do igarapé que banha, segundo o Governo do Estado do Acre (2008), a Terra Indígena Kampa do Igarapé Primavera. A Terra Indígena Kampa do Rio Amônia se localiza em Marechal Thaumaturgo (GOVERNO DO ESTADO DO ACRE, 2008) e é habitada por indígenas Ashaninka (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2012). No topônimo dessa terra indígena, emprega-se também o elemento formador Kampa como uma referência aos Ashaninka. Rio Amônia aparece como uma menção ao rio que, segundo o Governo do Estado do Acre (2008), corta a terra indígena. O elemento Kampa também forma o topônimo da Terra Indígena Kampa e Isolados do Rio Envira. Isso porque indígenas Ashaninka, conforme o Instituto Socioambiental (2012), habitam essa terra. Na Terra Indígena Kampa e Isolados do Rio
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Envira, também vivem indígenas isolados (BIBLIOTECA DA FLORESTA, 2010), o que explica a presença do elemento formador Isolados no topônimo. De acordo com o Governo do Estado do Acre (2008), essa terra indígena é cortada pelo rio Envira. Por isso, há Rio Envira no nome da terra indígena. Ferreira (2010) coloca que o item envira é uma variante de embira. Cunha (1989, 2001) aponta que embira possui origem no Tupi e é a designação de várias plantas que fornecem fibra para corda e estopa. Sampaio (1970, p. 203) diz ser embira originário de “mbira, o descascado, o tirado da casca”, sendo a entrecasca resistente de certas plantas, utilizada para corda. A Terra Indígena Kaxinawá/Ashaninka do Rio Breu está localizada nos municípios de Jordão e Marechal Thaumaturgo (GOVERNO DO ESTADO DO ACRE, 2008). Nessa terra, habitam indígenas Huni Kuin e Ashaninka (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2012). Logo, os elementos formadores Kaxinawá e Ashaninka no topônimo da terra indígena se referem aos habitantes dessa terra. Vale ressaltar que a Terra Indígena Kaxinawá/Ashaninka do Rio Breu é a única no estado do Acre que apresenta, no topônimo, a autodenominação Ashaninka e não a denominação Kampa. Quanto a Rio Breu, esse é uma referência ao rio que se encontra, de acordo com o Governo do Estado do Acre (2008), na região da terra indígena. O topônimo desse rio possivelmente se deve à árvore denominada breu, da qual se extrai, como explica Ferreira (2010), uma resina de mesmo nome. A Terra Indígena Kaxinawá do Baixo Rio Jordão se localiza no município acriano de Jordão (GOVERNO DO ESTADO DO ACRE, 2008). Nessa terra, segundo o Instituto Socioambiental (2012), habitam indígenas Huni Kuin. A presença desses indígenas justifica o elemento formador Kaxinawá no topônimo Kaxinawá do Baixo Rio Jordão. Quanto a Baixo e Rio Jordão, aquele designa a localização geográfica da terra indígena em relação a este rio, que, conforme o Governo do Estado do Acre (2008), atravessa a terra indígena. Assim, diz-se Baixo para o que “está situado mais próximo da foz” (FERREIRA, 2010, p. 268). Os mapas presentes em Governo do Estado do Acre (2008) mostram que a Terra Indígena Kaxinawá do Baixo Rio Jordão fica mais próxima da foz do rio Jordão do que a Terra Indígena Kaxinawá do Rio Jordão. Essa última terra também se situa no município de Jordão, sendo banhada, conforme o Governo do Estado do Acre (2008), pelo mesmo rio que atravessa a primeira. Por isso, há o nome
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desse rio no topônimo Kaxinawá do Rio Jordão. Na Terra Indígena Kaxinawá do Rio Jordão, habitam indígenas Huni Kuin (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2012), o que justifica o elemento formador Kaxinawá nesse topônimo. A Terra Indígena Katukina/Kaxinawá está localizada no município acriano de Feijó (GOVERNO DO ESTADO DO ACRE, 2008). Vivem nessa terra a etnia Shanenáwa e indígenas Huni Kuin (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2012). O elemento formador Kaxinawá se refere à denominação dos habitantes Huni Kuin. Já o elemento formador Katukina está relacionado a um equívoco, como assinala Aguiar (1994) em conformidade com o relato do índio Shanenáwa Dom Alberto. Os Shanenáwa, quando foram contatados, tiveram que trabalhar na coleta de borracha como empregados dos brancos para sobreviver. Mas quando não tinham mais trabalho, eles eram expulsos daquele lugar. Alegando que o povo Shanenáwa estava morrendo de fome, com doenças e, até mesmo, sendo mortos a mando dos “patrões” quando resistiam à ordem de sair, eles acabaram por conseguir um lugar para ficar aproximadamente em 1926. Esse lugar corresponde à terra que ultimamente ocupam. Depois de certo tempo, souberam que na placa colocada pela Funai na aldeia, às margens do rio Envira, constava o nome de Katukina. Apesar de serem conscientes de que foi um equívoco das autoridades da época, que consideravam irrelevante o nome dos grupos, esses índios não puderam protestar. (AGUIAR, 1994, p. 230)
Conforme o Instituto Socioambiental (2012), a Terra Indígena Kulina do Médio Juruá fica nos estados do Acre e do Amazonas. Essa terra é habitada por indígenas Madija, também conhecidos por Kulina. Assim, a presença do elemento formador Kulina no topônimo é explicada pela denominação Kulina. O elemento formador Médio localiza geograficamente a terra indígena em relação ao rio Juruá. Quanto ao elemento formador Juruá, esse, de acordo com Sampaio (1970), é de origem Tupi, sendo yurú-á traduzido como foz larga. A Terra Indígena Kulina do Rio Envira está no município acriano de Feijó (GOVERNO DO ESTADO DO ACRE, 2008). Essa terra também é habitada por indígenas Madija (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2012). Por isso, há o elemento formador Kulina no topônimo da terra indígena. A presença de Rio Envira no topônimo se deve ao fato desse rio passar, segundo o Governo do Estado do Acre (2008), nos limites dessa terra indígena. A Terra Indígena Kulina do Igarapé do Pau está localizada
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no município de Feijó (GOVERNO DO ESTADO DO ACRE, 2008). Nela também vivem indígenas Madija (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2012). Devido a isso também há no topônimo da terra indígena o elemento formador Kulina. Igarapé do Pau se refere ao igarapé que se encontra, de acordo com o Governo do Estado do Acre (2008), na região dessa terra indígena. A Terra Indígena Nukini se localiza no município de Mâncio Lima (GOVERNO DO ESTADO DO ACRE, 2008), nela vive o grupo Nukiní (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2012). Dessa forma, o topônimo dessa terra se refere à etnia que nela vive. Aguiar (2008) aponta que o nome Nukiní tem origem Páno, sendo traduzido por nós somos onça. A Terra Indígena Manchineri do Seringal Guanabara está situada no município de Sena Madureira (GOVERNO DO ESTADO DO ACRE, 2008) e é habitada por indígenas Manchineri (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2012). O elemento formador Manchineri no topônimo Manchineri do Seringal Guanabara diz respeito aos habitantes dessa terra. Quanto a Seringal Guanabara, esse corresponde ao nome de um seringal da região onde está a terra indígena, como se pode observar no relato do seringueiro Cícero Galdino (ALLEGRETTI, 2002, p. 246): Quando veio aquela caravana de compradores de terra, compraram Guanabara, Icuriã e São Francisco. Eram 50 sócios naquele tempo. Quando eles vieram, invadiram, compraram e foi aquele rolo todinho. Aí os meninos já sabiam da história como eu tinha feito, foram lá, a segunda guerra, nós soubemos que lá eles tinham feito do mesmo jeito. Foram lá pro meio do campo de aviação, fizeram aquela buraqueira toda, enfiaram os tocos, e acabou eles debandando tudo e hoje em dia tá a Reserva Chico Mendes lá dentro e as coisas todinhas. Isso custou muito. Eu fui seringueiro naquele seringal 18 anos.
Ademais, há no estado do Acre a Terra Indígena Riozinho do Alto Envira, localizada nos municípios de Feijó e Santa Rosa do Purus (GOVERNO DO ESTADO DO ACRE, 2008). Nessa terra, vivem indígenas Ashaninka e isolados (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2012). No topônimo Riozinho do Alto Envira, o elemento formador Riozinho diz respeito ao igarapé Riozinho. Segundo o Governo do Estado do Acre (2008), esse igarapé banha a terra indígena. No Acre, há dois igarapés com o nome Riozinho: o que passa na Terra Indígena Riozinho do Alto Envira e outro na região do rio Acre. Desse modo, no topônimo da terra indígena, Alto Envira particulariza o
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elemento formador Riozinho, estabelecendo que não se trata do igarapé Riozinho localizado na região do rio Acre, mas sim do igarapé Riozinho situado no alto rio Envira. Assim, o elemento formador Alto designa a localização geográfica do igarapé Riozinho em relação ao rio Envira e o elemento Envira faz referência a esse rio, um importante rio, situado, conforme o Governo do Estado do Acre (2008), na região da Terra Indígena Riozinho do Alto Envira. Vale apontar que essa terra indígena já foi nomeada Xinane (GOVERNO DO ESTADO DO ACRE, 2008), devido ao igarapé Xinane. Esse nome provavelmente é um registro histórico da migração de nordestinos para a região, visto que, de acordo com Ferreira (2010, p. 2185), xinane é uma planta cactácea das caatingas sáfaras, cujo caule é rico em água. Segundo Samonek (2006, p. 27), milhares de nordestinos migraram para a região amazônica fugindo de prolongados períodos de estiagem na região nordeste brasileira. Pinto (1984), relata que entre 1872 e 1900 teria sido da ordem de 260 mil pessoas. Araújo (1998) estima que até 1910 foram quinhentas mil, os trabalhadores emigrantes que se deslocaram à Amazônia para se juntar aos índios arregimentados para o trabalho extrativo da borracha. Santos (1995) relata que, entre 1840 e 1910, cerca de seiscentos a setecentos mil nordestinos vieram para a região como mão-de-obra quase escrava.
O surgimento de seringais na região acriana remonta ao início da exploração nessa região, como aponta Neves (FUNDAÇÃO DE CULTURA E COMUNICAÇÃO ELIAS MANSOUR, 2002, p. 13), quando, a partir de 1860, começaram a acontecer as primeiras viagens de exploração se constatou, não só a presença indígena, mas a grande riqueza natural dos rios acreanos, despertando a cobiça dos exploradores. Já em 1870 tinha início uma verdadeira corrida do ouro que fez com que em poucos anos os rios acreanos fossem tomados de assalto. Milhares de homens vindos de todas as partes do Brasil e do mundo passaram a subir os rios estabelecendo imensos seringais em suas margens. Era a febre provocada pelo ouro negro, a borracha extraída da seringueira que depois de defumada era exportada para abastecer as indústrias européias e norte-americanas, cada vez mais ávidas por esse produto.
3 Considerações finais Como se pôde observar, nos nomes oficiais das terras indígenas no Acre,
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etnotopônimos e hidrotopônimos são comuns, havendo nomes que são registros da exploração do látex na região, iniciada no século XIX. Em alguns topônimos formados por nomes de rio, há elementos formadores como alto e médio. Ademais, os topônimos oficiais das terras indígenas no estado do Acre estão em língua portuguesa, o que, em muitos casos, demonstra que, nos nomes oficiais, no ato denominativo das terras indígenas, as relações de poder entre índios e não índios se dão de forma desvantajosa para os indígenas, que não têm seus topônimos nas línguas indígenas reconhecidos como oficiais para nomear a terra em que vivem. Referências AGUIAR, Maria Suelí de. Fontes de pesquisa e estudo da família Pano. Campinas, SP: UNICAMP, 1994. ______. Names of Pano groups and the endings -bo, nawa and huaca. UniverSOS: revista de lenguas indígenas y universos culturales, Valência, n. 5, p. 9-36, 2008. ALLEGRETTI, Mary Helena. A construção social de políticas ambientais: Chico Mendes e o movimento dos seringueiros. 2002. 826 f. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável)-Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília, 2002. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2012. BIBLIOTECA DA FLORESTA. Índios isolados no Acre. Rio Branco, 2010. Disponível em: . Acesso em: 18 jul. 2011. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. In: EDITORA SARAIVA. Vade mecum. 6. ed. São Paulo, 2008. p. 1-149. COUTO, Cláudio André Cavalcanti. Análise fonológica do Saynáwa (Pano): a língua dos índios da T. I. Jamináwa do Igarapé Preto. 2010. 221 f. Dissertação (Mestrado em
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ESTRATÉGIAS DE ASSEVERAÇÃO NO DISCURSO DE POSSE PRESIDENCIAL: USOS DO VERBO SER + PREDICADOS AVALIATIVOS Francis Méry de Leão Coutinho (UNESP) O objetivo deste trabalho é investigar o modo como a asseveração é construída nos discursos de posse dos presidentes do Brasil eleitos a partir de 1984. Considerando a asseveração como uma afirmação categórica que o enunciador faz de determinada proposição que julga como verdadeira, pretendemos investigar as formas e as funções da indicação de certeza dos discursos de posse dos Presidentes da era democrática brasileira. Tendo em vista o caráter persuasivo do discurso político, será analisada a funcionalidade das orações simples e complexas construídas com o verbo ser + predicados nominais e predicados adjetivais avaliativos modais e não-modais na construção da assertividade do enunciador. Encontramos em Alonso (1995) uma definição da atribuição no espanhol como uma forma de predicação com os verbos ser, estar e parecer, os quais são dessemantizados e acompanhados de um atributo que incide, ao mesmo tempo, sobre o verbo e o sujeito. O autor divide as distintas relações de atribuição entre sujeito e atributo em três grupos: as atributivas puras, as equativas e as equacionais. Não nos debruçaremos sobre as estruturas equacionais, uma vez que o conteúdo do primeiro membro especifica o segundo (atributo), como se vê no exemplo: Contigo é com quem quero estar (ALONSO, 1995, p. 95), caracterizando uma oração clivada, a qual apresenta a função pragmática de focalização que difere da função de avaliação escopo dessa pesquisa. A caracterização feita das estruturas atributivas puras se assemelha à proposta por Ilari e Basso (2008), segundo a qual sujeito e atributo não são considerados reversíveis. Além dessa característica, Alonso (1995) lista outras três: i) essas estruturas formam-se com o verbo ser, estar e parecer; ii) o atributo pode ser expresso por adjetivo ou por uma oração completa e, iii) o atributo pode ser comutável pelo clítico “o”, como vemos no exemplo retirado do discurso de Lula, 2003 e reescrito, respectivamente: O Brasil é grande → O Brasil o é.
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Gonçalves (2001) estabelece propriedades em comum para as orações subjetivas e afirma que as orações encaixadas ocorrem sempre em posição não marcada, ou seja, à direita da oração matriz; na forma finita ou não-finita; com o tempo verbal na matriz, na maior parte das ocorrências, no presente do indicativo e na terceira pessoa do singular, sempre expressando uma avaliação do falante em relação ao conteúdo da oração encaixada. Em estudo sobre a prototipicidade das orações predicativas, Rodrigues (2001) propõe que as estruturas mais prototípicas ocorrem na forma não-finita; o verbo da matriz é o ser que está na P3 do presente do indicativo e a oração predicativa ocupa a posição à direita do verbo da matriz. A caracterização das orações subjetivas e predicativas segundo uma perspectiva funcionalista como a empreendida pelos autores que acabamos de discutir será de fundamental importância, na medida em que permitirá a análise do papel avaliador dessas construções com o verbo ser na construção da assertividade. Resultados parciais Na primeira análise dos resultados, buscamos os fatores que interferem na avaliação do falante em relação a certa proposição nas orações equativas, atributivas, subjetivas e predicativas. Os exemplos abaixo foram retirados dos seguintes discursos de posse: de Tancredo Neves, em março de 1985 (TN-85); de Fernando Collor em 1990 (FC-90); de Fernando Henrique Cardoso, em 1995 e em 1999 (FH-95 e FH-99) e de Lula, em 2003 e em 2007 (LL-03 e LL-07). A presença de adjetivos avaliadores de caráter absoluto, como definitiva e vital altera – no caso, reforça – a validade da relação de igualdade estabelecidas pelas estruturas equativas abaixo: 1) Para os jovens de hoje, que pintaram a cara e ocuparam as ruas exigindo decência dos seus representantes, assim como para as pessoas da minha geração, que aprenderam o valor da liberdade ao perdê-la, a democracia é uma conquista definitiva. (FH–95) 2) Outro ponto vital é a implantação de vigorosas medidas de desburocratização, sobretudo as que facilitem o comércio exterior, a
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abertura e fechamento de empresas, além de levar adiante o aperfeiçoamento das legislações sanitária e ambiental. (LL–03) Nas orações atributivas, também é possível identificar uma série de elementos que interferem no valor da avaliação instaurada, como se pode ver nos seguintes exemplos: 3) A questão é complexa e delicada, e tem seu fulcro na evidente desproporção entre o montante dos recursos que se pode arrecadar e as múltiplas atividades — e conseqüentemente gastos — a serem cobertos com os fundos públicos. (TN – 85) 4) O momento é favorável para que o Brasil busque urna participação mais ativa nesse contexto. (FH – 95) Em (3) os adjetivos ‘complexa’ e ‘delicada’ são não-transitivos e se ligam diretamente aos substantivos que eles qualificam. Já em (4), o adjetivo ‘favorável’ é transitivo, de forma que sua propriedade atributiva se expande também para o seu complemento. As relações de tempo (5) e a ordem (6) também são fatores que interferem no valor atributivo dessas relações, como se observa nos exemplos seguintes: 5) O caminho é conhecido e será percorrido com persistência. (FH – 99) 6) Sustentamos que naquela área do globo é urgente e clara a necessidade de que se observem estritamente os princípios essenciais do convívio internacional: o direito dos povos à autodeterminação; a negação da conquista pela força; a observância do direito internacional, particularmente os elementos incorporados nas resoluções do Conselho de Segurança. (FC – 90) Enquanto em (5) as atribuições no presente e no futuro são feitas com diferentes graus de certeza, a inversão da ordem dos termos em (6) reforça o valor dos adjetivos ‘urgente’ e ‘clara’. Na análise das orações subjetivas e predicativas, o primeiro aspecto que interfere na construção da avaliação é valor semântico do predicador. Os substantivos e adjetivos modais epistêmicos e deônticos determinam os campos do saber e do dever em que as avaliações se circunscrevem, como se vê nos seguintes exemplos:
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7) Pode ajudar a mostrar que neste planeta desigual, é possível avançar no sentido do entendimento, quando os interesses dos diferentes e, sobretudo, dos excluídos passam a integrar efetivamente a agenda nacional. (LL – 07) 8) A dura verdade é que, no Brasil dos anos oitenta, o Estado não só comprometeu suas atribuições, mas perdeu também sua utilidade histórica como investidor complementar. (FC – 90) Os resultados parciais obtidos permitem comprovar a hipótese de que o processo comparativo e avaliativo subjacente ao estabelecimento de igualdades e ao de atribuição de propriedades permite que o enunciador, ao utilizar essas estruturas, constitua sua assertividade expressando avaliações sem marcas do seu envolvimento.
Referências ALONSO, H. Nueva sintaxis de la lengua española. Salamanca: Colegio de España, 1995. GONÇALVES, S. C. L. Orações subjetivas e teoria dos protótipos. Scripta, Belo Horizonte, v. 5, n. 9, 2001, p. 183-196. ILARI, R.; BASSO, R. O verbo. In: NEVES, M. H.; ILARI, R. (Orgs.). Gramática do Português Falado Culto no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. p. 163-365. RODRIGUES, A. T. C. A prototipicidade das orações predicativas. Scripta, Belo Horizonte, v. 5, n. 9, p. 197-202, 2º sem, 2001.
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O FENÔMENO DA RECATEGORIZAÇÃO NAS REDES SOCIAIS FACEBOOK E TWITER Francisco Romário Paz Carvalho (UESPI) Considerações Iniciais Neste estudo, a partir de uma perspectiva sociocognitiva de abordagem do texto assumida pela agenda atual dos estudos em Linguística de Texto (doravante LT), tratamos do fenômeno da recategorização em postagens das redes sociais facebook e twiter. Assumimos que todo referente é evolutivo, de vez que seu estatuto informacional está sempre se modificando na memória discursiva dos interlocutores (CAVALCANTE, 2004). Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995) descrevem a recategorização como um recurso referencial em que uma entidade já introduzida no universo do discurso sofre transformações que são perceptíveis pelo emprego de expressões referenciais renomeadoras, ou seja, são constantemente recategorizadas. A pesquisa encontra-se metodologicamente estruturada em três momentos: um primeiro em que apresentamos a visão pioneira nos estudos sobre a recategorização lexical proposta por Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995); um segundo momento, em que apresentamos os postulados da recategorização metafórica (LIMA, 2003; 2009); um terceiro momento, em que procedemos a seleção e análise qualitativa dos dados. 1. A visão pioneira da recategorização O ponta-pé inicial no estudo da recategorização foi dado por Denis Apothéloz e M. J. Béguelin. Em 1995, no artigo intitulado Construction de la référence et stratégies de désignatio, os autores adotam a concepção de referência não-extensional ou referenciação, nas palavras de Mondada e Dubois (1995). Apothéloz e ReichlerBéguelin (1995) conceituam a recategorização lexical como o processo pelo qual os "falantes designam os referentes, durante a construção do discurso, selecionando a expressão referencial mais adequada a seus propósitos" (LIMA, 2003, p. 59). Para eles, a recategorização é, pois, uma estratégia de designação em que os referentes (objetos de discurso) podem ser reapresentados/ remodulados a partir do momento da enunciação. Dessa maneira, um falante pode, na designação de um referente, deixar de lado a sua
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denominação-padrão e dependendo das suas necessidades comunicativas fazer adequações à expressão por um processo de recategorização lexical. O trabalho desenvolvido pelos autores propõe uma sistematização do fenômeno da recategorização lexical a partir do tipo de manifestação das expressões anafóricas1. Segundo eles, as expressões anafóricas não possuem apenas valor referencial, assim sendo, as anáforas podem apontar tanto para um objeto de discurso, como também pode modificá-lo. Em outras palavras, essas expressões sofrem constantes recategorizações. Na proposta de classificação, os autores franco-suíços advertem sobre a existência de três níveis de ocorrência das recategorizações lexicais, são elas: a) quando há uma transformação do objeto de discurso no momento da designação anafórica; b) quando a expressão anafórica não leva em conta os atributos do objeto predicado anteriormente; c) quando a expressão referencial anafórica homologa os atributos do objeto explicitamente predicados. O primeiro nível, refere-se a casos de recategorizações em que os referentes sofrem uma transformação operado pelo anafórico sem que haja a retomada de nenhum atributo expresso anteriormente e "sem que se estabeleça nenhuma relação com as modificações que possam ter sido por eles sofridas" (LIMA, 2009, p. 31). A segunda situação descrita pelos autores, quando a expressão anafórica não leva em conta os atributos do objeto predicado anteriormente, versa sobre casos em que o objeto de discurso é recategorizado por meio de uma predicação, porém o anafórico não expressa essas modificações. Por fim, o último nível, apresentado por Apothéloz e ReichlerBéguelin (1995), versa sobre os de casos recategorização em que "um anafórico ulterior homologa as diversas transformações sofridas pelo objeto de discurso, sendo essas transformações decorrentes da predicação de um ou mais atributos" (LIMA, 2009, p. 31). 2. As recategorizações metafóricas: algumas considerações sobre o fenômeno Na ótica de Lima (2003) há dois tipos de recategorizações metafórica: É evidente que os autores trabalham com um conceito de anáfora que se enquadra numa visão não-extensional da referência. Ver mais sobre esse conceito de anáfora redimensionado em Ciulla (2002).
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i) Recategorização metafórica manifestada lexicalmente; ii) Recategorização metafórica não manifestada lexicalmente. O primeiro diz respeito a retomada de um referente em que o item lexical recategorizador está materializado na superfície textual, não sendo difícil a reconstrução desse referente. O segundo tipo diz respeito aos casos em que a expressão recategorizadora não aparece explicitamente na superfície textual, ficando, segundo Lima (2009), a sua (re)construção na dependência das inferências geradas a partir das pistas co(n)textuais. 3.Análise dos dados Texto I: Na escola me dou super- bem com minhas amigas. As demais alunas nem dou muita importância [...] tem uma tal de Jéssica [...] a rapariga enche o saco. (Disponível em: http://twitter.com/#!/MonicaSampaio)
Como podemos notar, as redes sociais em especial o facebook funciona como uma forma de diário para os internautas. Cada usuário coloca em suas postagens o seu dia-a-dia, demonstrando sempre amor, companheirismo ou o lado extremo, repulsa, raiva, como é o caso do Texto I. Na postagem acima temos a recategorização lexical do referente Jéssica como “a rapariga”. O caso acima é um típico exemplo de recategorização lexical por meio de anáfora direta coreferencial. A (re)construção do referente Jéssica se dá por meio de uma expressão nominal precedida de artigo definido “a rapariga”. Texto II: Flagrei minha vizinha Jaciara macumbeira roubando goiaba no meu quintal, já estava farta dessa demônia furtando minhas frutas ungidas. Bem na hora que ela tava enchendo o balde, fui lá e dei uma vuadora gospel de dois pé na cara da quenga. Quando noé colocou os animais na arca esqueceu essa piranha na minha rua. Misericórdia!(Disponível em: facebook.com/IrmãZuleide)
Note-se que, no Texto II, o referente Jaciara Macumbeira é recategorizado
metaforicamente como "demônia" e como "piranha", seguida da recategorização lexical "quenga", que retoma o referente por meio de uma Anáfora Direta Correferencial. As recategorizações metafóricas "demônia" e "piranha" são precedido de termo
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demonstrativo "dessa demônia" e "essa piranha", também, licenciadas, respectivamente, pelas metáforas: "SER HUMANO É UM ENTE IMAGINÁRIO" e "SER HUMANO É UM ANIMAL IRRACIONAL". Considerações Finais Neste trabalho, propusemos a análise de ocorrência de recategorização com o objetivo de verificar a hipótese de que esse fenômeno perpassa não somente uma concepção textual, mas para que se possa compreender todas as faces desse poliedro é de extrema importância um intercâmbio entre a Linguística Textual e a Linguística Cognitiva (LIMA, 2009). Dessa forma, os resultados apresentados demonstram que uma abordagem cognitivo-discursiva das recategorizações metafóricas nas postagens do facebook e do twiter é muito mais produtiva do que uma abordagem restrita somente ao âmbito da superfície textual (LIMA, 2003). Referências APOTHÉLOZ, D.; REICHLER-BÉGUELIN, M.-J. Construction de la référence et stratégies de désignation. In: BERRENDONNER, A.; REICHLER-BÉGUELIN, M.-J. (Eds.).
Du
sintagme
nominal
aux
objects-de-discours:
SN
complexes,
nominalizations, anaphores. Neuchâtel: Institute de Linguistique de l' Université de Neuchâtel, 1995. p. 227- 271. CAVALCANTE, M. M. O processo de recategorização sob diferentes parâmetros. In: CAVALCANTE, M. M; BRITO, M. A. (orgs) Gêneros textuais e referenciação. (CDrom.). Fortaleza: UFC/Protexto, 2004. 20 p. LIMA, S. M. C. Recategorização metafórica e humor: trabalhando a construção de sentidos. 170f. Dissertação (Mestrado em Linguística). Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2003. _____________. Entre os domínios da metáfora e metonímia: um estudo de processos de recategorização. Tese (Doutorado em Linguística)- Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2009. 204f.
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O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA POR MEIO DE GÊNEROS: ESTUDO DE CASO Gabriela Cristina Lauermann (UNIOESTE) Introdução Os estudos que relacionam os gêneros do discurso e o ensino de Língua Materna vêm se tornando um dos tópicos mais presentes nos estudos linguísticos atuais. Esse efeito é decorrência, em grande parte, das recomendações presentes nos documentos oficiais de ensino como os Parâmetros Curriculares Nacionais (Ensino Fundamental e Ensino Médio) – PCN (1998)/PCNEM (2000) – em termos nacionais e, das Diretrizes Curriculares da Educação Básica – DCEs (2008), no Estado do Paraná. Ao sugerirem os gêneros como objeto de ensino aprendizagem, tais documentos provocaram a necessidade do conhecimento desse novo objeto (ROJO, 2005). Inscrito nesta linha de pesquisa, o artigo que ora se apresenta tem a finalidade de expor os resultados obtidos em um projeto de Iniciação Científica Voluntária (ICV) nomeado O ensino de língua materna por meio de gêneros: estudo de caso. Especificamente, o objetivo é apresentar o produto das reflexões feitas a partir da confrontação do corpus com os pressupostos que orientam o ensino de Língua Portuguesa, publicados nos documentos instrutivos educacionais, PCNs, PCNEM e DCEs, especialmente no que tange à concepção sociointeracionista de linguagem e ao ensino de língua materna por meio de gêneros. Tal corpus é constituído por dados referentes aos encaminhamentos que englobam tanto o encaminhamento da produção textual em si (o comando feito pelo professor antes da produção, o qual fornece as orientações para a atividade), quanto às orientações que foram feitas antes deste ser proposto. Justifica-se a relevância em empreender uma análise sobre esta temática uma vez que, se um discurso (os gêneros como objetos de ensino nas aulas de Língua Portuguesa) que circula desde o final da década de 70 no país e foi consolidado nos documentos que guiam o ensino de Língua Portuguesa, tendo ainda se estendido por uma ampla gama de estudos sobre o assunto, é possível crer, pois, que tal discurso faça
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parte, efetivamente, do trabalho docente em sala de aula. É essa questão que nos propomos a investigar. Enfim, na primeira seção deste trabalho, apresentaremos os conceitos elementares para a nossa investigação juntamente com as reflexões teóricas acerca do tema. Na segunda parte, há a exposição de questões relativas à metodologia utilizada, em seguida é apresentada a análise e, por fim, são tecidas as considerações finais do estudo. Fundamentação teórica Como ponto de partida, cumpre discutir os conceitos que nortearam tal pesquisa, esclarecendo-os e tecendo-os na cadeia de reflexões e discussões que se produziu ao longo da pesquisa, culminando neste artigo. É necessário ainda, esclarecer que o trabalho O ensino de língua materna por meio de gêneros: considerações iniciais de um estudo de caso, já publicado por essa autora, traz o esboço teórico-metodológico, assim como as primeiras conclusões acerca do corpus pesquisado. Dessa forma, não vamos explanar todos os conceitos novamente, apenas traçar os aqueles fundamentais para o trabalho. Deixemos claro que o trabalho completo é composto do artigo citado acima, juntamente com este, para a melhor compreensão da pesquisa. Passamos então a tecer e refletir os conceitos que guiaram nossa pesquisa. O ensino de língua materna e estrangeira através de gêneros é um tema que tem inspirado inúmeras pesquisas. Tal movimento tem como causa, em grande parte, os referenciais estabelecidos nos documentos oficiais que orientam o ensino de língua materna e língua estrangeira, questão afirmada por Rojo (2005). Este estudo é fundamentado na perspectiva dialógica de linguagem e dos gêneros do discurso do Círculo de Bakhtin, as quais baseiam as diretrizes que orientam o ensino de Língua Portuguesa - os Parâmetros Curriculares Nacionais – Ensino Fundamental/Anos Finais (1998), os Parâmetros Curriculares Nacionais - Ensino Médio (2000), que norteiam o Ensino Médio e, no Estado do Paraná, as Diretrizes Curriculares da Educação Básica (2008), orientações estas direcionadas aos níveis fundamental e médio. Desta forma, é necessário compreendermos as bases que fundamentaram tais documentos, ou seja, entender como Bakhtin concebe a linguagem,
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os gêneros do discurso e o conceito de enunciado. Sobre a linguagem: ele a concebe como interação, como sendo essencialmente dialógica, pois ela se constitui na relação dinâmica entre homem e mundo. Segundo Silveira, Rohling e Rodrigues (2012, p. 78) o autor olha a linguagem como atividade, como forma de ação intersubjetiva; como lugar de interação que possibilita aos interlocutores de um determinado entorno sociocultural a prática dos mais diversos atos de linguagem, os quais exigem reações-respostas dos interlocutores. Trata-se de uma percepção de linguagem como interação discursiva. (SILVEIRA; ROHLING; RODRIGUES, 2012, p. 78).
Se a língua é utilizada em todas as esferas da atividade humana, como afirmado por Bakhtin (2003), é notório que não é utilizada sempre da mesma forma, mas sim, respeitando a finalidade, tema, estilo verbal e composição de cada situação de interação verbal, logo: a interação verbal ocorre através de gêneros discursivos, definidos pelo filósofo Bakhtin (2003, p. 263) como sendo “tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso” (grifos do autor). Ao compreender o que são os gêneros do discurso para Bakhtin, compreendemos o porquê o ensino de Língua Portuguesa se pauta na teoria dos gêneros discursivos, pois, segundo Dolz, Gagnon, Decândio (2010, p. 44), o gênero é um instrumento para agir em situações linguageiras; suas potencialidades de desenvolvimento atualizam-se e são apropriadas na prática um instrumento cultural, visto que serve de mediador nas interações indivíduo-objeto e é um instrumento didático, pois age como meio de articulação entre as práticas sociais e os objetos escolares. Instrumento de ensino, fixa significações sociais complexas referentes às atividades linguageiras.
A partir desta perspectiva dialógica de linguagem, são lançados os PCNs, cujo objetivo é o de estabelecer orientações para ensino de língua materna e estrangeira no Brasil. Tal documento propõe que os gêneros discursivos sejam os objetos de ensino nas aulas e, também, que o texto seja a unidade de ensino, pois Os textos organizam-se sempre dentro de certas restrições de natureza temática, composicional e estilística, que os caracterizam como pertencentes a este ou aquele gênero. Desse modo, a noção de gênero, constitutiva do texto, precisa ser tomada como objeto de ensino. (BRASIL, 1998, p. 23)
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Na mesma linha de pensamento, os PNCEM (2000) afirmam que o texto se encontra no centro do ensino de Língua Portuguesa, ele é a unidade básica pela qual o ensino deve se sustentar. Em 2008, o Estado do Paraná lançou suas próprias orientações: as Diretrizes Curriculares da Educação Básica (DCEs) , para os níveis fundamental – anos finais - e médio. Tais diretrizes seguem os mesmos pressupostos teóricos dos PCNs. Assim como os PCNs, as DCEs entendem os gêneros discursivos como: ‘formas comunicativas que não são adquiridas em manuais, mas sim nos processos interativos’ (MACHADO, 2005, p. 157). Nessa concepção, antes de constituir um conceito, é uma prática social e deve orientar a ação pedagógica com a língua. Compreender essa relação é fundamental para que não caia tão somente na sua normatização e, consequentemente, no que Rojo (2004, p.35) define como ‘pedagogia transmissiva das análises estruturais e gramaticais’, que dissocia o texto de sua realidade social. (PARANÁ, 2008, p. 53).
Perceber-se, nesta afirmação, algumas orientações para a ação pedagógica com a língua. Em outro trecho do texto, é apontado, como fator essencial para as aulas de Língua Portuguesa, a existência de uma associação entre os textos que são trabalhados na sala de aula e a realidade social dos estudantes, onde os professores possam aproximá-los o mais possível das situações sociodicursivas reais de uso da linguagem, pois: O aprimoramento da competência linguística do aluno acontecerá com maior propriedade se lhe for dado conhecer, nas práticas de leitura, escrita e oralidade, o caráter dinâmico dos gêneros discursivos. O trânsito pelas diferentes esferas de comunicação possibilitará ao educando uma inserção social mais produtiva no sentido de poder formular seu próprio discurso e interferir na sociedade em que está inserido. Bakhtin (1992, p. 285) afirma que ‘quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é possível e necessário)’ (PARANÁ, 2008, p. 53).
Ou seja, é para o desenvolvimento pleno do estudante que as práticas pedagógicas, nas aulas de Língua Portuguesa, devem estar voltadas. Há ainda um conceito muito importante a ser esclarecido: o enunciado. Segundo Bakhtin (2003, p. 261): “O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais
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e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana”. Como a língua é interação, cada palavra carrega o dizer de um alguém, que se relaciona com o que já foi dito anteriormente e vai ao encontro do dizer de um interlocutor, isto é, para Bakhtin, todos os nosso enunciados estão em relação dialógica, uma vez que nascem de outros enunciados já-ditos (explícitos ou não) e buscam a reação-resposta ativa dos outros (sempre falamos/escrevemos para um outro, mesmo que esse outro seja um desdobramento do nosso eu – pensemos aqui nos diários, por exemplo)” (SILVEIRA; ROHLING; RODRIGUES, 2012, p. 22-23)
Dessa forma, afirma-se que o enunciado que antecede a produção textual anuncia o querer dizer desse sujeito professor, revelando então, os conceitos de língua e sujeito que possui. Sobre este tema, cita-se COSTA-HÜBES (2012, p. 15): encaminhamentos são enunciados que dialogam com outros enunciados, revelando, portanto, conhecimentos anteriores que orientam a ação pedagógica do professor que, ao organizá-los ou selecioná-los, pressupõe uma resposta do aluno, dentro dos limites estabelecidos ou dos “comandos” dados, mesmo que para “obedecêlo”.
Portanto, poderemos perceber quais são os pressupostos teórico-metodológicos que guiam a sua práxis. Metodologia Para o desenvolvimento do presente projeto, foi realizada, primeiramente, uma revisão detalhada de literatura: sobre o ensino de Língua Materna através dos gêneros textuais, verificando seus conceitos-chave, bem como os dispositivos analíticos empregados para a construção desse estudo qualitativo; uma leitura crítica das diretrizes que orientam o ensino, (PCNs e DCEs) e; uma pesquisa sobre a importância do desenvolvimento da prática de linguagem escrita e para os alunos. Concomitantemente, foram determinados os critérios para: a) a seleção do lócus, a instituição de ensino-alvo, onde o corpus foi coletado. Além da nota do ENEM, foram elencados outros fatores para a seleção da instituição; b) a seleção do professor-informante, através de entrevista
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semi-estruturada que se constituiu por questões que envolvem a formação do docente, sua experiência profissional e o trabalho com produção textual; Estruturados os critérios, seguiram a eleição da escola – interior do município de Toledo – (PR) - instituição que forneceu o material para análise. Essa instituição foi contatada para concessão do desenvolvimento da pesquisa e foi concedida pela direção da mesma. Posteriormente, definida as escola-alvo, foi feito um levantamento dos professores que atuam no ensino de Língua Portuguesa - no Ensino Fundamental e Médio dessa escola - e, foram realizadas as entrevistas semi-estruturadas entre esses docentes. A partir da análise das entrevistas, foi eleito o professor que proveu o corpus para a análise. Posteriormente houve o levantamento do corpus e, por fim, a análise: confrontação dos dados selecionados para análise com o aparato teórico estudado. A entrevista semi-estruturada e o levantamento do corpus Como instrumento de coleta de dados foi eleita a entrevista semi-estruturada. Seu objetivo principal era encontrar os critérios para a eleição do informante, do professor que fornecerá o corpus a ser analisado. A entrevista semi-estruturada foi construída pela autora desse artigo juntamente com a colega Fernanda Maria Müller Gehring, que desenvolveu uma pesquisa com os mesmos objetivos, metodologia e bibliografia, porém diferencia-se dessa pelo corpus que analisa e também com a orientadora de ambas as pesquisas a professora Mirian Schröder. As questões que marcavam o roteiro da entrevista foram divididas em três seções: na primeira, as questões buscavam informações sobre a formação do docente; na segunda seção da entrevista foi indagado sobre a experiência docente dos informantes; nas últimas questões, a temática das perguntas foi em torno do trabalho com produção textual que o professor faz. O corpus Considerando que os documentos - os PCNs, PCNEM e as DCEs - são os alicerces teóricos-metodológicos nos quais os professores devem fundamentar seu
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trabalho, acredita-se que em sua práxis existam indicadores que reflitam tais pressupostos. Esta premissa é o norte deste estudo. Tal corpus é constituído por dados referentes aos encaminhamentos que englobam tanto o encaminhamento da produção textual. Porém, tivemos acesso também às orientações que foram feitas antes deste ser proposto que, juntamente com a entrevista, nos ofereceu mais suporte para análise. Assim, foram selecionadas 10 atividades de produção textual – correspondentes às produções feitas no primeiro semestre de 2013 - propostas por um professor de Língua Portuguesa a três turmas matutinas (1°, 2° e 3°) do Ensino Médio de uma instituição de ensino de Toledo – PR. Segue abaixo todos os encaminhamentos de produção textual que analisamos. Por questões relativas ao espaço, não há a possibilidade de apresentarmos uma análise de cada um individualmente. Por isso, traçaremos algumas considerações gerais acerca do corpus. 1° ano Após a leitura de vários relatos produza o seu relato sobre a importância da leitura em sua vida e qual foi o livro que mais te marcou. Agora é a sua vez de fazer um soneto. Seguindo a estrutura das rimas crie um poema com o tema do conteúdo estudado: Linguagens e códigos. Lembre-se das características da descrição e a exemplo dos textos que lemos, faça a descrição: a) De um lugar que te tráz lembranças boas. b) De uma pessoa importante para você. Vocês podem ler diferentes exemplos de fábula e, em seguida, escrever uma para entregar. (observem as características que já estudamos.)
2° ano
Leia com atenção os poemas analisados e crie um poema com o tema trabalhado em debate: Juventude atual. Com algumas ideias do debate, produza um texto expondo seu ponto de vista em relação à juventude. Após a leitura de diversos textos sobre o novo Código Florestal ou Casamentos homoafetivos. Sigam as orientações da dissertação argumentativa e produza a sua escolhendo um desses temas.
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3° ano
Leia com atenção os vários modelos de dissertação argumentativa e lembrando das características que já estudamos, faça a sua com o tema: Discriminação X Dignidade. Leitura de vários poemas, após isso, façam um soneto, usando a estrutura estudada, com o tema: liberdade. A partir da leitura de diversos contos e após fazer uma pesquisa e observação sobre os assuntos corriqueiros, assuntos do cotidiano, escreva agora o seu conto.
Para efetuar a análise do corpus tomamos como referência o modelo didático elaborado por Costa-Hübes (2012, p. 11):
Como podemos perceber, o quadro associa o modelo didático do gênero com a proposta de Geraldi (1997) para a prática de linguagem escrita, o qual vai ao encontro das orientações expostas nos documentos citados. Cita-se as DCEs: É desejável que as atividades com a escrita se realizem de modo interlocutivo, que elas possam relacionar o dizer escrito às circunstâncias de sua produção. Isso implica o produtor do texto assumir-se como locutor, conforme propõe Geraldi (1997) e, dessa forma, ter o que dizer; razão para dizer; como dizer, interlocutores para quem dizer. (PARANÁ, 2008, p. 56, grifos do autor).
Nossa análise se pautará no esquema apresentado acima, uma vez que ele representa os elementos necessários em um encaminhamento de produção textual cujo objetivo seja a interação, entendida nos pressupostos apontados na fundamentação teórica deste artigo. Desta forma, sobre o item A, o gênero: percebemos que, em geral, os encaminhamentos indicavam qual era o gênero, porém ainda houveram indicações
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como: “lembre-se das características da descrição (...) faça uma descrição” ou simplesmente “produza um texto”, assim sendo, nota-se uma aparente confusão de termos: a “descrição” (seria narrativa) e no encaminhamento que comanda “fazer um soneto/crie um poema”. Tais indícios transparecem o fato de que mesmo a diferença entre “tipo de texto” e “gênero discursivo” ainda não estão claras para este docente. O segundo ponto referido por Costa-Hübes são os interlocutores, o “para quem” o texto está sendo escrito. Em nenhum encaminhamento o professor indica quais são os interlocutores do texto, porém, durante a entrevista, ele afirma que fará um livro de coletâneas – composto pelos melhores textos produzidos durante o ano letivo, em suas turmas - o qual ficará disponibilizado na biblioteca. A proposta é interessante e corresponde a situações reais de interação dos textos literários, por exemplo. Porém, isto não corresponde à situação comunicativa de textos não literários, como os textos argumentativos propostos. O “o quê” escrever, isto é, o tema do texto está explicitado em quase todos os encaminhamentos deste professor, transparecendo que há uma aparente coerência entre a temática debatida e estudada em sala – anterior do encaminhamento - e a produção escrita solicitada. Porém, pelos limites que o próprio corpus nos dá, uma vez que propomos analisar apenas os encaminhamentos, não podemos saber se este tema foi trabalhado com o aluno ou não, durante as aulas. Há ainda que se ressaltar que o professor coloca como temática a experiência pessoal do estudante, desta forma, aproxima texto e realidade do estudante, estratégia importante para as aulas de Língua Portuguesa. No que toca a finalidade dos textos, o “por quê escrever?”, ela está ligada, neste caso, à coletânea que o professor realizará. Desta forma, como dito acima, também não cumpre uma situação comunicativa real. Por fim, as estratégias as quais os alunos recorrem para escrever. Alguns indícios deste elemento estão explícitos nos encaminhamentos, como, por exemplo: “lembre-se das características dos textos que lemos”, “observem as características que já estudamos”, “sigam as orientações”, “A partir da leitura de diversos contos e após fazer uma pesquisa e observação sobre os assuntos corriqueiros, assuntos do cotidiano”. Porém, a análise das estratégias propostas pelo professor revela outras
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questões. Elas nos revelam que há uma coerência entre o gênero trabalhado e a produção escrita, pois está implícito no encaminhamento do texto que eles leram ou estudaram o gênero que está sendo solicitado para a produção. Cabe ainda apontar outra questão recorrente nos encaminhamentos, as quais revelam algumas crenças do docente, o querer-dizer dele. A saber: ele se pauta na familiarização do gênero a partir da leitura, pois, como podemos perceber, em várias propostas a leitura é o ponto de partida (e apenas) para a produção. Ou ainda, se pauta em “modelos” e/ou “estruturas”, questão a partir da qual acreditamos revelar que o professor ainda não compreendeu efetivamente o que são os gêneros discursivos, assim como, o como trabalhar com este gênero, como ensinar Língua Portuguesa a partir dos gêneros discursivos, que é a proposta dos documentos instrutivos, que orientam o ensino. Enfim, apresentada, de forma breve as principais conclusões da análise feita, apresentamos as considerações finais do estudo. Considerações finais A partir das análises efetuadas, acreditamos que os indícios de que os pressupostos teórico-metodológicos – DCEs e PCNEM – ainda são poucos. Os encaminhamentos analisados transparecem que há diálogo entre a prática deste docente com os documentos, porém demonstram também que o professor ainda não compreende ou está preparado para o trabalho com os gêneros, de forma didática. Ademais, pode-se perceber que o próprio entendimento do conceito de gênero discursivo e sua proposta de transposição didática estão claros para o docente. Mesmo considerando que o corpus (análise do encaminhamento escrito) limitou algumas reflexões e a compreensão de como, efetivamente, o trabalho dele está acontecendo em sala de aula, acreditamos que os enunciado revelaram conhecimentos anteriores deste docente, mostrando assim, as concepções que orientam sua prática. Enfim, acreditamos que um trabalho mais efetivo com os documentos, ou ainda, mais suportes e reflexões sobre os pressupostos teórico-metodológicos durante os momentos de formação continuada deste profissional, são propostas para que houvesse uma maior correspondência entre teoria e prática, como vistas neste estudo.
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Referências BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M.M. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais (Ensino Médio). Brasília: MEC/SEF, 2000. Disponível em: < http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/blegais.pdf> Acesso em: 10 jan 2013. COSTA-HÜBBES, Terezinha da Conceição. Reflexões sobre os encaminhamentos de produção textual: enunciados em diálogo com outros enunciados. Disponível em: < http://www.celsul.org.br/Encontros/10/completos/xcelsul_artigo%20(215).pdf> Acesso em: 01 dez 2012. GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Diretrizes Curriculares da Educação Básica: Língua Portuguesa. Curitiba: 2008. 101 p. Disponível em: Acesso em: 23 out.2012. ROJO, Roxane. Gêneros do discurso e gêneros textuais: questões teóricas e aplicadas. In: MEURER, J. L.; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. (orgs.). Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. p. 184-207. SILVEIRA, Ana Paula Kuczmynda da; ROHLING, Nívea; RODRIGUES, Rosângela Hammes. A análise dialógica dos gêneros do discurso e os estudos de letramento: glossário para leitores iniciantes. Floriánópolis: DIOESC, 2012.
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IDENTIDADE E HETEROGENEIDADE DAS LÍNGUAS E DOS SUJEITOS: INTRODUÇÃO AO BILINGUISMO DE HUSTON E SEBBAR Gabriela Oliveira (Unesp/Ibilce) Introdução Este trabalho analisa as implicações subjetivas do contato entre línguas, isto é, os deslocamentos identitários decorrentes do bilinguismo. A partir dos estudos e discussões
de Coracini
(2007), Prasse
(1997), entre
outros,
estudamos
a
heterogeneidade das línguas e suas consequências para a formação identitária do sujeito que busca falar (e é falado por) essas línguas. Assim, objetiva-se refletir sobre a problemática da identidade nos estudos da linguagem, e, mais especificamente, apontar para a relação entre bilinguismo e identidade, além de contribuir com os estudos sobre as questões identitárias vinculadas à problemática da(s) língua(s). Nosso estudo tem como corpus principal os livros Nord Perdu (1999), de Nancy Huston, e Lettres parisiennes: histoires d’exil (1986), composto por cartas trocadas entre as escritoras Huston e Leïla Sebbar. Tanto o livro de ensaios quanto a coletânea epistolar narram os caminhos empreendidos pelo sujeito exilado em busca de uma identificação com a língua e a cultura que o cercam, problematizando a situação fragmentária do sujeito bilíngue. O bilinguismo é aqui entendido não como fenômeno restrito aos que convivem com duas línguas desde a primeira infância, mas como acontecimento que atravessa a subjetividade daqueles que por diversas razões e em diferentes etapas da vida passaram a viver entre-línguas. Em nosso percurso metodológico, a leitura e a análise de textos teóricos e ensaísticos constituem um mesmo movimento, pois além de servir como base teórica para a interpretação de outros escritos, tais textos fazem parte de nossa tarefa de análise. O próprio corpus que consideramos como específico, os livros Nord Perdu e Lettres parisiennes, além de ser um aporte teórico, constitui o motivo principal da análise. Desta forma, almejamos construir um vínculo direto entre duas atividades (leitura e análise) que podem parecer muito distintas, mas que estão intrinsicamente ligadas.
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Línguas e sujeitos A problemática das línguas passa pelas questões de identidade na medida em que ambas só ganham sentido dentro de um sistema de significação no qual foram criadas, ou seja, elas são construções sociais e culturais, portanto, instáveis. Além de compartilharem dessa instabilidade fundamental, são constitutivas uma da outra: não há processo de identificação sem a linguagem, a língua na qual somos criados interfere em como vemos e entendemos o mundo, e ao mesmo tempo, a língua é moldada pela cultura e pela subjetividade dos seus falantes. São justamente as características de instável, processual e criável que nos levam a refletir sobre a heterogeneidade das línguas e dos sujeitos, pois admitir tal caracterização urge repensar o paradigma essencialista e nos permite vislumbrar as inúmeras partes que formam o todo que chamamos de identidade. Essa multiplicidade carrega a conclusão de que a identidade é algo indecifrável e o que podemos depreender da suposta noção de identidade são apenas fragmentos: fragmentos de língua, de cultura, de história, de saberes. Para complicar, ao somarmos as línguas chamadas estrangeiras a essa reflexão, nos deparamos com o fato de que esses fragmentos tornam-se ainda mais indecisos quando se trata de lidar com a “estrangeiridade do outro” vindo de outro lugar com uma língua também outra. Jutta Prasse (1997) trabalha a questão das línguas estrangeiras, concluindo que o desejo de aprendê-las não é apenas um desejo de saber, mas sim um desejo pelo gozo do outro. A busca pela língua do Outro se dá pela inquietação “de não poder encontrar seu próprio lugar na sua própria língua materna” (p. 71) e pela “inveja dos bens e da maneira como gozam os outros” (p.71). A interdição que ocorre na/pela língua é necessária para situar esse desejo que poderíamos pensar como um anseio de ser o outro ou, até, de pertencer ao outro, ao outro meio, outro mundo, outra sociedade. Entretanto, nenhuma língua é totalmente outra, pois todas se imbricam, e constatar isso faz como que o desejo nunca se complete. Assim, a busca nunca cessa, o desejo se mantém na medida em que a língua una e possibilitadora do gozo maior se revela uma impossibilidade, uma ilusão. Nesse sentido, da mesma forma que todas as línguas que
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habitam o indivíduo perpassam sua subjetividade, com seus próprios interditos e atos falhos, saber mais de uma língua acentua a fragmentação da identidade do sujeito. Ainda, sobre o desejo de aprender uma língua estrangeira, Prasse postula: pode ser um desejo de ter escolha, de poder escolher a lei, as regras e muitas vezes o mestre de nosso gozo. É o desejo de ser livre para escolher uma ordem na qual “se exprimir”, de impor-se uma ordem por um ato voluntário, aprender, enfim, como se deve falar corretamente e gozar com isso. (PRASSE, 1997, p.72)
Esse trecho é esclarecedor em relação ao corpus da pesquisa. Uma das autoras de nosso estudo, Nancy Huston, escreve em francês para se sentir segura. Tenta abandonar a língua da mãe que a abandonou primeiramente, e se apropriar da língua do outro com o intuito de se sentir livre dos recalques da língua da mãe e controladora dos sentidos do texto. Tenta fugir das emoções ligadas a língua materna e se refugiar na possibilidade de correção e revisão da escrita. Mas claro, é uma ilusão, como veremos nas análises, o que permanece é a impossibilidade de controle dos sentidos, o retorno do inglês e o sentimento de desconforto e falta de morada. Também a partir de uma visão psicanalítica, Revuz (1998) mostra que a língua é objeto de conhecimento intelectual e objeto de uma prática. Prática que envolve a dimensão do eu; ou seja, expressar-se em determinada língua exige que o sujeito mobilize formas de afirmação de seu eu e modos de se relacionar com os outros e com o mundo. A língua é constitutiva do sujeito, ela é “o material fundador de nosso psiquismo e de nossa vida relacional” (Revuz, 1998, p. 217), e as outras línguas que aprendemos entram em relação com essa matéria fundadora e a perturbam. Assim, nenhuma língua, para nenhum sujeito falante, é vivenciada somente como um mero instrumento de comunicação, mas sim como um objeto complexo em vários sentidos. Assim, ao considerarmos a subjetividade de cada um como algo único, diferenciado da ideologia geral de uma sociedade, podemos perceber diferentes relações de certezas e incertezas com as línguas, como demonstra Coracini (2007). A autora elabora em seus textos uma reflexão minuciosa acerca das línguas e, dessa forma, das identidades e subjetividades de sujeitos que vivem entre-línguas. Seu trabalho mostra que são várias as formas de se relacionar com a língua, seja materna ou estrangeira, o
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que torna fluido os limites entre tais classificações. Portanto, é preciso questionar as definições tradicionais do que é “materno” e do que é “estrangeiro”, do que é “sua” língua e língua do outro. O questionamento se faz necessário para deslocar a ideia ilusória de continuidade e completude da língua veiculada pela escola e pela sociedade, pois tal ilusão traz consequências para a percepção de mundo do sujeito fazendo-o acreditar numa concepção de identidade fixa e estável e desejar a inalcançável completude das línguas. Portanto, podemos atribuir ao discurso ilusório das línguas como totalidades parte da culpa pelo desejo das línguas estrangeiras, e todas as consequências decorrentes desse desejo. Por isso entendemos que o sujeito se constitui pela e na linguagem, pois é ela que o torna desejante, castrado, incompleto, a quem falta algo e que sempre busca preencher essa falta no outro, com o outro, sem jamais conseguir. E, da mesma forma que esse desejo é o que singulariza o sujeito, já que é diferente em cada um, a relação de cada indivíduo com as línguas só pode, então, ser única. Dessa forma, a leitura das obras Nord Perdu (1999) e Lettres parisiennes (1986) permitiu perceber a relação particular de Nancy Huston com “suas” línguas, começando pelo fato de ela escrever em francês, independentemente do gênero, língua aprendida depois de adulta. Huston reflete sobre sua prática e a justifica por meio do fato de se sentir mais confiante em expressar seus conhecimentos na língua de adoção, enquanto que a língua da infância a faz relembrar o passado castrador. A relação de Huston com suas línguas pode ser evidenciada nas seguintes passagens: é em francês que eu me sinto à vontade em uma conversa intelectual, uma entrevista, um colóquio, toda situação linguística que faz apelo aos conceitos aprendidos depois de adulta. (HUSTON, 1999, p. 61)12 a língua francesa (e não apenas suas palavras tabus) era, em relação a minha língua materna, menos carregada de afeto e, portanto, menos perigosa. [...] Ela me era indiferente. (HUSTON, 1999, p. 63-64)3 1
Todas as traduções são nossas, salvo indicação em contrário nas referências. c’est en français que je me sens à l’aise dans une conversations intellectuelle, une interview, un colloque, toute situation linguistique faisant appel aux concepts et aux catégories appris à l’âge adulte. (HUSTON, 1999, p. 61) 3 la langue française (et pas seulement ses mots tabous) était, par rapport à ma langue maternelle, moins chargée d’affect et donc moins dangereuse. [...] Elle m’était égale. (HUSTON, 1999, p. 63-64) 2
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Para Huston, a “língua materna” está ligada às fortes emoções, à falta de controle e, por isso, nos momentos de estresse seu sotaque aparece e as palavras francesas lhe faltam. Por outro lado, essa língua chamada “materna” já não é mais a mesma. O contato com outra língua traz mudanças também para a língua da infância. As línguas se misturam e o limite entre “língua materna” e “língua estrangeira” deixa de ser claro e visível, pois as duas fazem parte da identidade desse sujeito, levando à sensação de que “possuir” duas línguas significa não dominar nenhuma. A respeito dos limites entre uma língua e outra, Huston escreve: O problema, veja você, é que as línguas não são apenas línguas; são também world views, ou seja, modos de ver e compreender o mundo. Há o intraduzível aí... E se você tem mais de um world view... você não tem, de um certo modo, nenhum. (HUSTON, 1999, p. 51)4
Essa consciência da impossibilidade de apropriação das línguas traz consigo questionamentos para a identidade desse sujeito entre-línguas. O fato de que língua e cultura estão sempre imbricadas, somado à percepção de que nossas identidades se formam por meio delas, torna evidentes a multiplicidade e a heterogeneidade constitutivas da resposta da pergunta “quem sou eu?”. Nas palavras de Huston: Quem somos nós, então? Se não temos os mesmos pensamentos, fantasmas, atitudes existenciais, até opinião, em uma língua e em outra? (HUSTON, 1999, p.52)5
Dessa forma, esse questionamento está diretamente ligado à multiplicidade constitutiva do sujeito. Somos uma combinação de vários fragmentos. Somos heterogêneos. Entretanto, é comum que o ser humano procure estabilidade e ancoragem, por isso preferimos a ilusão de completude e nos sentimos inquietos quando percebemos a impossibilidade de uma ancoragem estável. A situação de exílio e, por 4
Le problème, voyez-vous, c’est que les langues ne sont pas seulement des langues ; ce sont aussi des world views, c’est-à-dire des façons de voir et de comprendre le monde. Il y a de l’intraduisiblie làdedans... Et si vous avez plus d’une world view... vous n’en avez, d’une certaine façon, aucune. (HUSTON, 1999, p. 51) 5 Qui sommes-nous, alors? si nous n’avons pas les mêmes pensées, fantasmes, attitudes existentielles, voire opinion, dans une langue et dans une autre ? (HUSTON, 1999, p.52)
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transferência, o bilinguismo colocam em evidência a multiplicidade das identidades e a impossibilidade de apropriação das línguas, construindo um sujeito (quase) consciente da mobilidade constante em que vivemos. Nas cartas parisienses, entramos em contato com a relação de Leïla Sebbar com o francês e a França, ou seja, aprendemos sobre como o exílio é vivido por essa argelina educada em língua francesa. É por meio da escrita que Sebbar (1986) materializa sua condição de sujeito em constante movimento, por meio do uso e da acumulação de diversos tipos de papeis com diversas anotações feitas em momentos de inspiração. Para ela, exílio é movimentação e se associa com desordem: Eu acho que a mobilidade do exílio, eu a encontro também aqui, nesses papeis instáveis, febris, emprestados na desordem dos lugares que me mantêm em uma cidade. (HUSTON; SEBBAR, 1986, p. 8)6
Além de passar bastante tempo em cafés observando e escrevendo sobre o exílio, Sebbar sugere que até mesmo o conteúdo de sua bolsa – papéis, bilhetes de trem, passaporte – representa a pluralidade vivenciada por quem está no país do outro, longe da terra da infância. Para a autora, todos esses pequenos detalhes não podem ser chamados de outra coisa além de exílio, já que com certeza seriam diferentes se ela estivesse em sua terra natal. Tal excesso de pluralidade carrega, sempre, contradições. Uma das características de Sebbar, que poderíamos considerar contraditória, é seu gosto por estar em lugares de grande circulação de viajantes e sua falta de prazer em viajar: Eu não gosto de viajar, mas eu gosto das estações, dos portos, dos aeroportos..., esses lugares de circulação, de passagem, onde eu posso como em um café ficar horas sem fazer nada, sem ter de ir ou vir. Eu observo, escuto ou não, ninguém me perguntará nada e eu também não me perguntarei porque estou lá. Eu me incrusto nesses lugares públicos, anônimos, onde os códigos em vigor não me agoniam como aqueles dos lugares mundanos parisienses nos quais eu me entedio..., a não ser se, por uma inversão perversa, eu me coloco em situação de
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Je crois que la mobilité de l’exil, j ela retrouve aussi là, dans ces papiers instables, fébriles, empruntés dans le désordre aux lieux qui me retiennent dans une ville. (HUSTON; SEBBAR, 1986, p. 8)
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passageira, na borda, como em um banco de uma estação. (HUSTON; SEBBAR, 1986, p. 9)7
Os lugares públicos de grande circulação atraem Sebbar. Talvez por ela se identificar com a presença e a andança de múltiplas identidades. Mas ela gosta de estar lá como observadora, não como viajante. Talvez por já ser, sem poder de escolha, uma viajante constante. Se não viaja fisicamente, identitária e psicologicamente está sempre entre-lugares, indo e vindo, relembrando, rememorando o que foi e o que poderia ter sido. Por causa da sua posição de entre-línguas-culturas seus escritos sempre passam pelas questões do árabe, da Argélia, do exílio, e do movimento entre eles e a língua francesa. No que tange a língua francesa, Leïla Sebbar se diferencia da Nancy Huston na medida em que o francês é a língua aprendida desde a infância pelos laços familiares, sendo sua única possibilidade de escrita e comunicação; mas ainda assim vivida como estranha e carregada da cultura e da história do outro. Sebbar não se sente acolhida e acalantada pela língua da mãe, embora não saiba a língua do pai (o árabe). Sua relação com o francês é de língua do outro dominante, colonizador, enquanto ela se sente na posição de colonizada. Mesmo depois de anos na França, ela não se sente capaz de praticar de forma eficaz os códigos culturais do anfitrião, sendo levada ao “mutismo obstinado e estupido”, como escreve no fim da sua primeira carta a Huston: Eu não consegui, depois de tantos anos, adquirir a flexibilidade, a inteligência que me permitiria a prática eficaz de um certo número de códigos sociais, culturais, mundanos que eu conheço e que me levam sempre a um mutismo obstinado e estupido. (HUSTON; SEBBAR, 1986, p. 9)8
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Je n’aime pas voyager, mais j’aime les gares, les ports, les aéroports..., ces lieux de circulation, de passage, où je peux comme dans une brasserie rester des heures sans projet, sans avoir à partir ou à revenir. Je regarde, j’écoute ou non, on ne me demandera rien et je ne me demanderai pas non plus pourquoi je suis là. Je m’incruste dans ces lieux publics, anonymes, où les codes en vigueur ne m’angoissent pas comme ceux des lieux mondains parisiens où je m’ennuie..., sauf si, par un renversement pervers, je me mets en position de passagère, à la lisière, comme sur le banc d’une gare. (HUSTON; SEBBAR, 1986, p. 9) 8 Je n’ai pas, après tant d’années, réussi à acquérir la souplesse, l’intelligence qui me permettraient la pratique efficace d’un certain nombre de codes sociaux, culturels, mondains que je connais et qui me précipitent chaque fois dans un mutisme obstiné et stupide. (HUSTON; SEBBAR, 1986, p. 9)
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Dessa forma, Sebbar tenta explicar sua escrita em francês pontuando a impossibilidade, ideológica, de escrever em árabe: Pois o que eu sei, depois de tantos anos de múltiplas práticas da língua materna, o francês, é que se eu tivesse aprendido árabe, a língua de meu pai, a língua do autóctone (indigène), a falá-la, lê-la, a escrevêla..., eu não teria escrito. Disso eu tenho certeza hoje. Se eu tivesse ficado no país de meu pai, meu país natal com o qual eu tenho uma história tão ambígua, eu não teria escrito, porque fazer essa escolha significava fazer uma aliança com uma terra, uma língua, e se fazemos uma aliança ficamos tão perto que não temos mais visão nem audição, e não escrevemos, não estamos em posição de escrever. (HUSTON; SEBBAR, 1986, p. 18)9
Sebbar tem um certo fascínio pela cultura e língua árabe, mas ao mesmo tempo guarda um distanciamento. Distanciamento marcado justamente na escrita. Ela escreve sobre o país, sobre o pai, sobre a língua do pai no país e na língua da mãe. Se as línguas fossem meros instrumentos de comunicação, seria simples para ela aprender e usar a língua objeto de suas reflexões. Mas não são. Casos como esses comprovam o imbricamento da subjetividade na relação dos sujeitos com as línguas. Demonstram os múltiplos fatores que formam as línguas: a cultura e a história atreladas à língua, o estranhamento presente em todas as línguas, sejam chamadas “minhas” ou “do outro”. Na verdade, as língua não são apropriáveis, não são “minha” nem “do outro”, são sempre familiares e estranhas ao mesmo tempo, ou seja, hibridas, compostas, heterogêneas. Fechamento Apenas encerrando o texto, mas não a discussão de um tema tão amplo, e dando os primeiros passos em nossas investigações, reforçamos que a heterogeneidade é a qualidade daquilo que é composto de partes ou elementos de diferentes naturezas. A 9
Car ce que je sais, après tant d’années de pratiques multiples de la langue maternelle, le français, c’est que si j’avais su l’arabe, la langue de mon père, la langue de l’indigène, la parler, la lire, l’écrire..., je n’aurais pas écrit. De cela je suis sûre aujourd’hui. Si j’étais restées dans le pays de mon père, mon pays natal avec lequel j’ai une histoire si ambiguë, je n’aurais pas écrit, parce que faire ce choix-lá, c’était faire corps avec une terre, une langue, et si on fait de corps, on est si près qu’on n’a plus de regard ni d’oreille et on n’écrit pas, on n’est pas en positions d’écrire. (HUSTON; SEBBAR, 1986, p. 18)
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identidade é heterogênea na medida em que o sujeito é composto por vários fragmentos de história, cultura, gênero, língua, etc. E essa característica se acentua quando percebemos que esses fragmentos também são compostos por vários outros, numa multiplicidade sem fim. Voltando nossa atenção para a língua, percebemos que sua heterogeneidade tem papel constitutivo na formação dos sujeitos. Buscamos dominar a língua, possuí-la, mas sua constituição híbrida torna isso impossível, torna a apropriação um desejo irrealizável. O contato com mais de uma língua e, portanto, com mais de uma cultura e história, torna flagrantes essas características. Quanto mais línguas conhecemos ou quanto mais estudamos as línguas, melhor percebemos que sua totalidade é uma ilusão. Assim, a escrita, apesar de ser entendida como uma forma de tentar “prender” a língua, é, na verdade, uma porta para as inúmeras possibilidades da língua; é por meio da escrita que podemos vislumbrar os fragmentos que compõem as línguas e os sujeitos.
Referências CORACINI, M. J. A celebração do outro: arquivo, memória e identidade. Campinas: Mercado de Letras, 2007. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade (1992). Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. HUSTON, N. Nord perdu. Paris: Actes Sud, 1999. HUSTON, N; SEBBAR, L. Lettre parisiennes: histoires d’exil. Paris: Actes Sud, 1986. PRASSE, J. O desejo das línguas estrangeiras. Tradução de Dulce Duque Estrada. Revista Internacional, Rio de Janeiro, ano 1, nº 1, p. 63-73, 1997. REVUZ, C. A língua estrangeira entre o desejo de um outro lugar e o risco do exílio. Tradução de Silvana Serrani-Infante. In: SIGNORINI, Inês. (Org.). Lingua(gem) e Identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 1998, p. 213-230.
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AS MANIFESTAÇÕES POLÍTICAS BRASILEIRAS DE 2013 SOB A PERSPECTIVA DA REVISTA ALEMÃ DER SPIEGEL Gabriella Silveira Hóllas (UFPR) Em junho de 2013, uma onda de protestos percorreu diversas cidades brasileiras. As primeiras manifestações iniciaram em São Paulo e tiveram como motivo o aumento das passagens de ônibus. O movimento ganhou força e ao se espalhar por outras cidades passou a abranger diversas reivindicações dos mais diversos grupos sociais. O movimento ocorrido no país prestes a sediar a Copa do Mundo de 2014 e que, naquele momento, era palco da Copa das Confederações, repercutiu internacionalmente. O presente trabalho se propõe, assim, a investigar a cobertura das Jornadas de Junho realizada pela revista alemã Der Spiegel, analisando as reportagens publicadas tanto na versão impressa, quanto na versão online da revista. Sob o tema protestos, foram publicadas, entre junho e dezembro de 2013, 49 matérias, sendo seis na versão impressa e 43 na online. Grande parte dessas matérias (cerca de 44,9%) foi publicada na editoria de Política, seguido de publicações na editoria Esporte (26,5%), Exterior (10,2%), Panorama (8,1%), Economia (6,1%) e Cultura (4%). Do total de matérias publicadas, 41 se referiam especificamente às Jornadas de Junho. As oito matérias restantes diziam respeito a protestos ocorridos durante a visita do Papa Francisco durante a Jornada Mundial da Juventude, a manifestações contrárias ao leilão do campo de Libra e a reivindicações de professores no Rio de Janeiro. Podemos iniciar a nossa análise a partir das possíveis designações usadas pela revista para se referir ao movimento e aos seus participantes. Segundo Dresch, “a designação indica uma forma específica de compreensão da palavra e o modo de referir é uma forma de determinação, de predicação.” (DRESCH, p.34). Dresch (p.35) também
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cita o modo como Pêcheux trata a referência como um objeto imaginário e não como realidade empírica, assim, a referência é entendida como construída discursivamente. Para Dresch, portanto, é a designação que cria a referência. Ou seja, as referências são construídas discursivamente, no momento em que se estabelece a relação da língua com o acontecimento empírico. Quando nos referimos, não estamos apenas denominando objetos e acontecimentos, mas caracterizando-os e dando indicações para a sua interpretação. A designação, ainda, não apenas estabelece uma relação de referência entre a língua e o objeto no mundo, como também delimita o lugar político-social em que o sujeito é colocado determina condutas e valores morais e define o lugar dos sujeitos envolvidos (DRESCH p. 23-24). Dessa forma, foram encontradas as seguintes designações e seus respectivos números de ocorrências, divididas aqui em dois grupos: Grupo 1 - Designação
Número de ocorrências
Krawall (tumulto, riot)
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Randal, Randalier (Balbúrdia e baderneiros)
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Plünderung, Plünderer, plündern (saque, saqueadores,
11
saquear) Ausschreitung (distúrbios)
17
Unruhen (distúrbios, inquietação)
3
Protest (protesto)
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Grupo 2 - Designação Demonstration, Demonstrant, demonstrieren (manifestação,
Número de ocorrências 212
manifestar, manifestante) Bewegung (movimento)
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Sobre o primeiro grupo de designações, Ertl (p. 36) afirma que “a referência semântica às motivações políticas se dá em expressões como Demonstrant”. Para a autora, de modo contrário, termos como Randal e Plünderung “sugerem o uso de violência ou fazem referência a um delito, de modo algum transmitem os motivos políticos dos ativistas.” Sobre o termo Krawall, Grieswelle (p. 324) o classifica como “eufemismo para violência.” Para Busse (p.6), a palavra Protest apresenta um caráter mais pejorativo se comparado ao termo Demonstration. Assim, vemos que, majoritariamente, o termo usado para designar as jornadas e seus envolvidos, Demonstrant, reconhece as motivações políticas do movimento, legitimando-o. De forma oposta, o maior uso de designações como Krawall, Plünderung, Randal, etc. demonstrariam uma oposição, desqualificando-o. Nas sequências discursivas (SD) a seguir podemos ver o uso de tais designações: Na SD “Em torno de 200 pessoas manifestam-se pacificamente contra o governador Sérgio Cabral e exigem sua renúncia.“ (Der Spiegel 31/07/2013)1, vemos a relação entre a designação manifestante e a caracterização positiva de seus atos, descritos aqui como pacíficos. Já na SD “Apesar de alguns baderneiros violentos, foi uma festa da democracia.“ (Der Spiegel 18/06/2013)2 vemos uma oposição entre baderneiros e democracia. A conjunção apesar implica que baderneiros seriam, a princípio, um impasse para a democracia, não fazendo parte dela. Naquele momento, porém, a democracia teria se sobressaído, apesar deles. Na SD “Algumas centenas de baderneiros tomaram de assalto o histórico Palácio Tiradentes, a câmara do Rio, devastaram a área de entrada, jogaram coquetéis Molotov e tacaram fogo em um carro.” (Der Spiegel 18/06/2013)3 e na SD “Uma manifestação ficou fora de controle quando 50 baderneiros,
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Rund 200 Menschen demonstrierten friedlich gegen Gouverneur Sérgio Cabral und forderten seinen Rücktritt.
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Es war, trotz einiger gewalttätiger Randalierer, ein Fest der Demokratie.
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Einige hundert Randalierer stürmten den historischen "Palacio Tiradentes", das Landesparlament von Rio, verwüsteten den Eingangsbereich, warfen Molotow-Cocktails und steckten ein Auto in Brand.
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que estavam parcialmente armados com martelos e trajando máscaras, começaram a quebrar as vitrines de bancos, de lojas e de uma concessionária de automóveis. (Der Spiegel 01/08/2014)4 vemos que o uso da designação baderneiros relaciona estes indivíduos a atos violentos e de vandalismo. Ao relacionar uma designação de conotação negativa, como baderneiros, a revista se posiciona de modo a condenar os atos praticados, desvinculando-os de motivações políticas. De forma semelhante ao que ocorreu na mídia brasileira, os manifestantes foram, então, também pela Der Spiegel, divididos em dois grupos: os que estavam nas ruas por motivações políticas (Demonstranten) e os que estavam apenas para tumultuar e saquear, designados por termos como Randalierer e Plünderer. Esta polarização está nítida na SD a seguir: Enquanto 50.000 manifestantes protestavam pacificamente contra a corrupção e as mazelas sociais, tumultuadores encapuzados tentavam demolir as grades de proteção da zona de segurança ao redor do Estádio do Mineirão em Belo Horizonte. (Der Spiegel 27/06/2013) 5
Aqui vemos a oposição destes dois grupos. De um lado os manifestantes (Demonstranten), definidos como pacíficos, que protestavam contra as mazelas sociais. De outro, os tumultuadores (Krawallmacher) que, ocultando suas identidades, vandalizavam o entorno do estádio. Na SD a seguir, mesmo que em um primeiro momento a revista utilize a designação manifestantes, (Demonstranten) logo em seguida designa os envolvidos nos atos como baderneiros (Randalierer), atribuindo a eles a autoria dos atos de vandalismo: 4
Eine Demonstration war außer Kontrolle geraten, als etwa 50 Randalierer, die teilweise mit Hämmern bewaffnet und maskiert waren, begannen, die Schaufenster von Banken, Läden und einem Autohaus einzuschlagen. 5
Während 50.000 Demonstranten friedlich gegen Korruption und soziale Missstände protestierten, versuchten vermummte Krawallmacher die Absperrgitter vor der Sicherheitszone rund um das MineiraoStadion in Belo Horizonte einzureißen.
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São Paulo, houve distúrbios entre manifestantes e a polícia. Os baderneiros demoliram uma filial de banco e uma loja de carros. A Força de Segurança lançou bombas de efeito moral e sprays de pimenta – duas pessoas ficaram feridas, pelo menos 20 foram presas.“ (Der Spiegel 31/07/2013)6
É destaque na revista, em diversos momentos, a fúria dos brasileiros contra a classe política e a Copa do Mundo, como vemos nas SDs: “Furiosos com o governo, não com a Seleção” (intertítulo - Der Spiegel 20/06/2013)7 e “A fúria das pessoas com os gastos milionários para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 transforma-se em ira e em violência“ (Der Spiegel 18/06/2013)8 Quanto às motivações para as Jornadas, a revista apontou como principais: a corrupção, a Copa do Mundo, a falta de escolas e de hospitais, sendo que as duas primeiras ocupam um papel de destaque como força motriz da fúria brasileira contra seus governantes. Estas motivações estão evidentes nas seguintes SDs: “Há muito não se trata mais da passagem de ônibus 20 centavos mais cara. O Protesto dirige-se também contra os estádios superfaturados, o toma-lá-da-cá entre os governantes e a FIFA, a cleptocracia no congresso e no senado”. (Der Spiegel 16/06)9; “ Os protestos em massa no Brasil pegaram os políticos e a polícia de surpresa. Há muito trata-se de algo mais que o futebol, trata-se de um sistema como todo. São acima de tudo estudantes da classe média, que já estão fartos de corrupção e do desgoverno.”
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In São Paulo ist es zu Ausschreitungen zwischen Demonstranten und der Polizei gekommen. Die Randalierer demolierten eine Bankfiliale und ein Autohaus, plünderten Geschäfte. Die Sicherheitskräfte setzten Tränengas und Pfefferspray ein - zwei Menschen wurden verletzt, mindestens 20 festgenommen. 7
Wütend auf die Regierung - nicht auf die Mannschaft
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Der Ärger der Menschen über die Milliarden-Ausgaben für die Fußball-WM 2014 und die Olympischen Spiele 2016 schlägt auch in Wut und Gewalt um.
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Längst geht es nicht mehr nur um die 20 Centavos teureren Busfahrkarten, der Protest richtet sich auch gegen die überteuerten Stadien, die Kungelei zwischen Regierenden und Fifa, die Kleptokraten in Kongress und Senat.
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(subtítulo - Der Spiegel 18/06)10; “A fúria das pessoas com os gastos milionários para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 transforma-se em ira e em violência.” (Der Spiegel 18/06)11; e “Contra todo o sistema, sob o qual o Brasil sofre: desgoverno, escolas e hospitais apodrecidos, desigualdade extrema e, acima de tudo, a corrupção.” (Der Spiegel 19/06/2013)12 A revista também destacou o caráter negativo dos protestos, tanto em relação à atuação truculenta da polícia militar, como também aos atos violentos de alguns manifestantes/baderneiros. Na SD “A polícia lançou bombas de gás, balas de borracha e usou cassetetes. Exibem-se tanques. Helicópteros da polícia ameaçam o ar.” (Der Spiegel 14/06/2013)13, a polícia é representada como autora de atos violentos. O uso do verbo ameaçar destaca a imagem predatória e aterrorizante da polícia. O uso do verbo exibir para se referir ao uso dos tanques mostra não o uso efetivo, mas uma maneira de ostentação do poder policial. Em outra SD, “A maioria deles ruma pacificamente pelo centro da cidade em direção à sede do prefeito. Mas a situação complica quando a polícia joga bombas de gás no grupo de manifestantes.“ (Der Spiegel 21/06/2013)14, a oração adversativa evidencia um contraste: a situação era pacífica e foi somente com a chegada da polícia militar que ela se complica. Os policiais são, portanto, os que incitam a violência. Há, portanto, uma crítica à postura policial, já que eles seriam os responsáveis pelos atos iniciais de violência. 10
Die Massenproteste in Brasilien haben Politiker und Polizei kalt erwischt. Längst geht es um mehr als Fußball, es geht um ein ganzes System. Es sind vor allem Schüler und Studenten aus der Mittelschicht, die genug haben von Korruption und Misswirtschaft. 11
Der Ärger der Menschen über die Milliarden-Ausgaben für die Fußball-WM 2014 und die Olympischen Spiele 2016 schlägt auch in Wut und Gewalt um.
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Gegen das ganze System, unter dem Brasilien leidet: staatliche Misswirtschaft, verrottete Schulen und Krankenhäuser, extreme Ungleichheit, vor allem aber die Korruption. 13
Die Polizei setzte Tränengas, Gummigeschosse und Schlagstöcke ein. Es fuhren gepanzerte Fahrzeuge auf. In der Luft dröhnten Polizei- Helikopter. 14
Die meisten von ihnen zogen friedlich durch das Zentrum der Stadt in Richtung Amtssitz des Bürgermeisters. Doch die Situation eskalierte, als die Polizei Tränengasgranaten auf den Protestzug abfeuerte.
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A revista também destaca a subordinação da polícia militar ao Estado e a sua relação com a ditadura, ainda presente em sua mentalidade: “A polícia brasileira não está preparada para a tomada dos manifestantes. Ela está subordinada aos governadores dos estados e é organizada militarmente – nas casernas predomina ainda frequentemente a mentalidade da Ditadura.“ (Der Spiegel 18/06/2013)15 Outros pontos importantes abordados pela revista são o descontentamento do cidadão brasileiro e as severas críticas em relação à presidenta Dilma Rousseff. Majoritariamente nas matérias analisadas, são direcionadas a ela somente críticas negativas, como podemos ver em: “Depois de uma longa fase de crescimento econômico, cresce no Brasil o descontentamento com o governo da presidente Dilma Rousseff. A inflação crescente e o aumento da violência incomodam os brasileiros.“ (Der Spiegel 14/06/2013)16. A revista também apresentou um posicionamento cético em relação às propostas apresentadas pela presidenta. Sob o título e subtítulo a SD a seguir marca com aspas o grande pacto proposto. Segundo Maingueneau, o uso de aspas faz uma alusão a outro discurso dentro de seu próprio discurso (MAINGUENEAU, p. 204). Dessa forma, ao demarcar o pacto como inscrito no discurso do Outro, a revista demonstra não compactuar com o pacto em questão. Reação aos Protestos: Rousseff promete “grande pacto” para um Brasil melhor. A presidente estende a mão para os manifestantes: Dilma Rousseff anunciou um diálogo com o movimento de protestos. A chefe de Estado prometeu enormes esforços – na luta contra a corrupção e por condições melhores de vida. (Der Spiegel 22/06/2016)17
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Brasiliens Polizei ist nicht vorbereitet auf den Ansturm der Demonstranten. Sie untersteht den Gouverneuren der Bundesstaaten und ist militärisch organisiert - in den Kasernen herrscht vielfach noch die Mentalität der Diktatur 16
Nach einer langen Phase des wirtschaftlichen Aufschwungs wächst inBrasilien die Unzufriedenheit mit der Regierung von Präsidentin Dilma Rousseff. Die steigende Inflation und die zunehmende Gewalt beunruhigen viele Brasilianer 17
Reaktion auf Proteste: Rousseff verspricht "großen Pakt" für ein besseres Brasilien. - Die Präsidentin reicht den Demonstranten die Hand: Dilma Rousseff hat einen Dialog mit der Protestbewegung in
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A Der Spiegel destacou intensamente a relação entre democracia e futebol. Em diversos momentos, a revista salientou a surpresa de que um país antes conhecido pelo seu futebol volta-se contra ele. A revista se posiciona de modo a questionar e a ironizar a consciência e o engajamento políticos dos brasileiros. Estes pontos estão evidentes nas seguintes SDs: “Protestos no Brasil louco por futebol – contra o futebol? “ (subtítuloDer Spiegel 18/06/2013)18; “Futebol é importante, mas mais importante para os brasileiros atualmente são os protestos em massa.“ (subtítulo- Der Spiegel 20/06/2013)19; e “Mas aqui é política. Não um simples acontecimento. [...] mas, apesar disso, protesto POLÍTICO?” (Der Spiegel 20/06/2013)20 . Neste última, ao deixar o termo político em caixa alta, produzem-se efeitos de surpresa. Ou seja, não era esperada que em um país como o Brasil, o cidadão saísse às ruas para protestar por mudanças políticas. A revista também usou o futebol como metáfora para explicar o processo democrático brasileiro: “Isso se aplica especialmente para o processo sem fim da democracia brasileira, que não irá deslanchar sem passes duplos e manobras táticas. [...] Vamos ver quem vai vencer.“ (Der Spiegel 08/07/2014) 21. Além disso, ao mencionar o processo sem fim, caracterizou de forma negativa a democracia no Brasil, afirmando que o país não alcançará um estado democrático pleno. Nesta mesma reportagem, a revista afirma que seria necessário para o brasileiro se desvincular do futebol, para que, então, houvesse uma chance de alcançarmos a democracia: “Nos dias em que o futebol brasileiro morreu, a democracia brasileira nasceu. Esta seria uma bonita primeira sentença, mas ela está apenas meio certa, porque a seleção está jogando mais esplendidamente do que o esperado na Copa das Confederações.” (Der Spiegel Brasilien angekündigt. Die Staatschefin versprach enorme Anstrengungen - im Kampf gegen Korruption und für bessere Lebensbedingungen. 18
Proteste im fußballverrückten Brasilien - gegen Fußball?
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Fußball ist wichtig, noch wichtiger aber sind den Brasilianern derzeit die Massenproteste:
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Aber das hier ist Politik. Kein Happening. Wobei sich das ja nicht ausschließen muss. Aber trotzdem, POLITISCHE Proteste?
21
Das gilt ganz besonders für den endlosen Prozess der brasilianischen Demokratie, in der es offenbar auch künftig nicht ohne Doppelpässe und taktische Winkelzüge abgeht. [...] mal sehen, wer gewinnt.
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08/07/2013).22 Assim, o posicionamento da revista demonstra uma suposta impossibilidade de coexistência entre o futebol e a democracia. A Revista aponta, sobretudo, mudanças nos padrões culturais brasileiros, como no título “Protestos no Brasil: Alergia e futebol não bastam mais” (Der Spiegel 20/06/2013)23 e na SD a seguir: Brasil significa facilidade, alegria, praias e a Seleção. O que os políticos fazem lá em cima não desempenhava nenhum papel na vida das pessoas. O crescimento econômico dos últimos anos fortaleceu a classe média. Os estudantes desta classe não estão mais satisfeitos com alegria e futebol. Eles querem participar na política e combater a corrupção onipresente. (Der Spiegel 20/06/2013)24
Ou seja, o brasileiro, que antes era visto como um povo alegre, adorador de praias e de futebol e alienado politicamente, passou a participar mais ativamente da política. Essa evidência se dá no momento em que se afirma que a ação dos políticos não desempenhava um papel na vida dos cidadãos. Agora, porém, este mesmo cidadão não se satisfaz mais apenas com a alegria que antes, supostamente, o completava plenamente. Como o título afirma, futebol e alegria não mais bastam ao brasileiro. Eles precisam de algo a mais, como as mudanças na política brasileira para alcançarem a plenitude. A mudança é também declarada na SD a seguir: “A nação industrial emergente do Brasil é considerada apesar de todos os problemas um país feliz, mas nesses últimos dias, ela não vai contar com esse clichê.” (Der Spiegel 18/06/2013)25. 22
In den Tagen, in denen der brasilianische Fußball starb, wurde die brasilianische Demokratie geboren. Das wäre ein hübscher erster Satz, allerdings stimmt er nur halb, denn die Seleção, die Nationalmannschaft, spielt prächtiger als erwartet während des Confed-Cups 23
Proteste in Brasilien: Frohsinn und Fußball reichen nicht mehr
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Brasilien steht für Leichtigkeit, Frohsinn, Strände und die Seleção. Was die Politiker "da oben" gemacht haben, spielte im Leben der Menschen lange kaum eine Rolle. Der Wirtschaftsaufschwung der vergangenen Jahre hat jedoch die Mittelschicht gestärkt. Die Studenten aus dieser Schicht geben sich nicht mehr mit Freude und Fußball zufrieden. Sie wollen politisch mitbestimmen unddie omnipräsente Korruption bekämpfen 25
Die aufstrebende Industrienation Brasilien gilt trotz aller Probleme als fröhliches Land, doch in diesen Tagen wird sie dem Klischee nicht gerecht
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Novamente, a famigerada e célebre alegria do brasileiro, apesar de qualquer mazela, é mencionada. A oração adversativa demonstra que, com os protestos, ocorre uma quebra neste estado de felicidade já considerado um clichê brasileiro. Também temos no subtítulo a seguir uma referência à quebra da política “pão e circo” em um país antes conhecido por sua paixão pelo futebol: Dê às pessoas um evento esportivo e elas te amarão – desde os antigos funciona o princípio do ´Pão e Circo´ como fórmula de sucesso. Mas quando as pessoas no país dos loucos por futebol de repente protestam contra o futebol está claro: nada é como antes.“ (Der Spiegel 22/06/2013)26
Com o estudo analisado, observamos, portanto, um deslocamento na imagem do Brasil. O país antes era conhecido pela alegria de seu povo, pelo futebol, pela pacificidade e passividade política. Com as Jornadas de junho, acentuou-se o destaque para a corrupção na política brasileira e para as mazelas sociais. Salientou-se também a violência policial brasileira, ligada à ditadura militar. O povo não é mais pacífico, mas está agora furioso e agressivo e atos de violência são registrados nas ruas. O país não seria mais o do futebol, do carnaval e do samba. A paixão pelo futebol teria sido substituída pelo engajamento político e pela busca pela democracia.
Referências Ausschreitungen in Brasilien: Zehntausende protestieren auch nach Zugeständnissen weiter. Der Spiegel Online. 27/06/2013 disponível em: http://www.spiegel.de/politik/ausland/neueproteste-in-brasilien-nach-zugestaendnissen-a-908095.html, acesso em: 26/05/2014 Brennende Autoreifen: Proteste vor Beginn des Confed Cups in Brasilien. Der Spiegel Online 14/06/2013 disponível em: http://www.spiegel.de/panorama/gesellschaft/confedcup-dutzende-verletzte-bei-unruhen-in-brasilien-a-905859.html acesso em: 26/05/2014 BUSSE, Dietrich. Chaoten und Gewalttäter - Ein Beitrag zur Semantik des politischen Sprachgebrauchs. In BURKHARDT,Armin Burkhardt; HEBEL, Franz; HOBERG,Rudolf
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Gib den Menschen ein Sportereignis, und sie werden dich lieben - seit der Antike gilt das Prinzip "Brot und Spiele" als Erfolgsformel. Doch wenn die Menschen im fußballverrücktesten Land der Erde plötzlich gegen den Fußball demonstrieren, ist klar: Nichts ist mehr wie früher
0756
Hoberg (orgs.): Sprache zwischen Militär und Frieden. Aufrüstung der Begriffe (= Forum Fachsprachenforschung, Bd. 7), Tübingen: G. Narr Verlag, 1989
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Brasilianer
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http://www.spiegel.de/sport/fussball/demonstrationen-in-brasilien-gegen-blatter-und-
die-fifa-a-907224.html, acesso em: 26/05/2014 Reaktion auf Proteste: Rousseff verspricht "großen Pakt" für ein besseres Brasilien. Der Spiegel Online 22/06/2013 disponível em: http://www.spiegel.de/politik/ausland/brasilienrousseff-verspricht-dialog-mit-protestierenden-a-907269.html acesso em: 26/05/2014 Sturm auf die Bastille. Der Spiegel. Hamburg. Nº 28. 08/07/2013 disponível em: http://www.spiegel.de/spiegel/print/d-102241705.html acesso em: 18/04/2014
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O VALOR ANAFÓRICO DOS TERMOS ADVERSATIVOS CONTUDO, ENTRETANTO E NO ENTANTO EM TEXTOS MIDIÁTICOS Geisa Pelissari Silvério (UEM) Introdução Compreender os diferentes usos da Língua Portuguesa é tarefa difícil para aquele que a analisa somente pelos quesitos referenciados pela gramática tradicional. Com as diferentes situações comunicativas, faz-se imprescindível acrescentar, aos aspectos morfológicos, sintáticos e semânticos, a visão pragmática, a fim de que esta auxilie na investigação das diversas aplicações linguísticas. Para tanto, o funcionalismo, levando em consideração esse aspecto pragmático, objetiva estudar a língua em uso a fim de compreender como se expressam os falantes no ato comunicativo. Além disso, esta corrente permite verificar o motivo pelo qual o falante faz determinada escolha linguística e de que maneira isso interfere no discurso como um todo, e não descontextualizado como faz a gramática normativa. Com o intuito de visualizar tais motivações, este trabalho, fundamentado na corrente
teórica
gramaticalização
supracitada, e
como
os
procura
estudar
o
termos
“contudo”,
processo
denominado
“entretanto” e
“no
como
entanto”,
considerados como conjunções adversativas pelos estudos normativos, ainda não apresentam esse processo consolidado. Ademais, deseja-se comprovar o modo como o falante utiliza-se desses elementos como elementos coesivos no discurso, selecionando-os para retomar toda uma informação exposta no texto, além de também poderem enfatizar uma ideia dada como destaque para o leitor. Para isso, selecionaram-se exemplos do gênero textual artigo de opinião, por se tratar de um gênero com tipologia predominantemente argumentativa.
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1. A corrente funcionalista O funcionalismo estuda a língua em uso, considerando as intenções do falante e seu contexto de produção. Para Cunha (2012), este instrumento de interação social que é a linguagem, ao determinar a relação entre linguagem e sociedade, vai além da simples estrutura gramatical, procurando a motivação para os fatos. A autora assevera que: Na análise de cunho funcionalista, os enunciados e os textos são relacionados às funções que eles desempenham na comunicação interpessoal. Ou seja, o funcionalismo procura essencialmente trabalhar com dados reais de fala ou escrita retirados de contextos efetivos de comunicação. É a universalidade dos usos a que a linguagem serve nas sociedades humanas que explica a existência dos universais linguísticos (...). (CUNHA, 2012, p.158).
Sendo assim, essa corrente considera que é de fundamental importância para a análise o papel desempenhado pela língua no ato comunicativo, não podendo ser vista como objeto autônomo, uma vez que está inserida em uma situação comunicativa. Para Neves (1997), as funções linguísticas possuem, nessa corrente, papel de destaque. Desse modo, estudiosos dessa vertente defendem que, sem referência à sua função comunicativa, não há como uma determinada estrutura da língua ser descrita. Segundo Martelotta & Areas (2003) e Cunha (2012), observa-se a língua com base no contexto linguístico e na situação extralinguística. Devido às vicissitudes do discurso, essa concepção trata a sintaxe como uma estrutura em constante transformação. Sendo assim, é preciso estudar a língua em seus efetivos contextos discursivos, uma vez que é neste contexto que ocorre a construção da gramática. Isso corresponde às noções de “gramática emergente” (Hopper, 1998) e “sistema adaptativo” (Du Bois, 1985), de acordo com Cunha (2012). Sobre esse aspecto esta autora conclui que: Considerar a gramática como um organismo maleável, que se adapta às necessidades comunicativas e cognitivas dos falantes, implica reconhecer que a gramática de qualquer língua exibe padrões morfossintáticos estáveis, sistematizados pelo uso, ao lado de mecanismos de codificação emergentes. Em outras palavras as regras gramaticais são modificadas pelo uso (isto é, as línguas variam e mudam), e, portanto, é necessário observar a língua como ela é falada. (CUNHA, 2012, p. 164).
0760
Os principais temas de estudos funcionalista são: informatividade, iconicidade, marcação, transitividade e plano discursivo, prototipia, conceito de Tópico, a estrutura argumental preferida e fluxo de informação e gramaticalização. Esta última é o estudo que realmente interessa neste trabalho, sendo melhor explanada na sequência. 2. Gramaticalização Antoine
Meillet,
ao
introduzir o
termo
gramaticalização,
compreende a
importância do processo de mudança linguística. Meillet ressalta que é necessário que a discussão sobre a temática vá além da origem das formas gramaticais, expondo as transformações por elas sofridas. O autor define gramaticalização como “a atribuição de um caráter gramatical a uma palavra anteriormente autônoma” (1912/1948, p. 131, apud Neves, 1997, p. 113). Isso o levou a constatar que essa transição para palavra gramatical ocorre como uma espécie de continuum, sendo sempre a fonte uma palavra lexical. Logo, a gramaticalização altera o sistema linguístico como um todo, uma vez que produz ou principia categorias gramaticais novas sem expressão linguística. Observa-se ainda que, para ele, os falantes procuram formas de criar na linguagem para mencionar ideias já conhecidas, devido à ânsia de serem mais expressivos, o que resulta no processo em estudo. Conforme Silva, Meillet afirma, em relação às conjunções, que: Essas tendem a enfraquecer pelo uso frequente e velocidade com que são pronunciadas, o que acaba favorecendo o desgaste de material semântico e a perda de expressidade, necessitando, então, a renovação das formas. Os falantes, por sua vez, inconscientemente, reagem à automatização, criando formas alternativas a partir do repertório existente na língua. (2010, p.22).
Meillet ainda enfatiza que a gramaticalização não possui um fim. Isso significa dizer que os termos criados de maneira não previsível, devido à necessidade de se expressar, em certo estágio, vão se desgastando, sendo usados somente como acessórios gramaticais. Sendo a gramaticalização, conforme expõe Cunha (2012), um fenômeno ligado a necessidade de se refazer que toda gramática possui, conceituar de um só modo esse termo não é viável, visto que, embora com ideias similares, os diversos estudos sobre o tema demonstram diferentes aspectos desse processo. Gonçalves et al. (2007) assevera
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que todos os estudiosos sobre o tema dividem o mesmo posicionamento no que diz respeito a gramaticalização: (i) fazem a distinção entre itens lexicais, signos linguísticos plenos, classes abertas de palavras, lexemas concretos, palavras principais, de um lado, e itens gramaticais, signos linguísticos “vazios”, classes fechadas de palavras, lexemas abstratos, palavras acessórias, do outro; (ii) consideram que as últimas categorias tendem a se originardas primeiras. (p.19)
Para Castilho (2012), a gramaticalização é comumente conceituada como um conjunto de processos pelo qual uma palavra passa, adquirindo novas propriedades sintáticas, morfológicas, fonológicas e semânticas, alterando-se para uma forma presa, e podendo deixar de existir, resultado de uma cristalização externa. Corroborando com essa ideia, Longhin-Thomazi (2004) enfatiza que se trata justamente do processo pelo qual a gramática de uma língua se molda permanentemente, lembrando que a trajetória de formação das conjunções explicita este se constituir da linguagem. É possível dizer que o termo em discussão, para Traugott e Heine (1991), discorre sobre a teoria da linguagem que possui como foco a interdependência entre langue e parole, entre o categorial e o menos categorial, entre o fixo e o menos fixo na língua. Isso evidencia a tensão existente entre o lexical, o qual é livre de restrições, e o código morfossintático, sujeito a restrições, destacando a indeterminação relativa da língua e o aspecto não-discreto de suas categorias. Hopper e Traugott (2003) sugerem o seguinte cline de mudança, que enfatiza o caráter categorial do léxico: [item de conteúdo] > [palavra gramatical] > [clítico] > [afixo flexional]. Com isso, ressaltam a afirmação que a gramaticalização é um processo no qual itens e construções lexicais passam a assumir funções gramaticais, em determinados contextos, e, após gramaticalizados, continuam a desenvolver novas funções gramaticais. Essa definição condiz com os itens que aqui serão investigados, uma vez que eram itens lexicais que funcionavam como advérbio e passaram a ter papel de conjunção em certos contextos, sendo mais gramaticais que os advérbios. Segundo
Silva (2010),
Bybee,
assim como Traugott, considera que a
gramaticalização vincula-se à criação de novas construções. A gramática não é estática, fechada, consoante a autora, e não possui um conteúdo próprio, mas sim está
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predisposta à mudança e é altamente afetada pelo uso linguístico. Silva (2010) apresenta algumas características do processo de gramaticalização, expostas pela autora: i. palavras e sintagmas que sofrem gramaticalização são reduzidos foneticamente, por meio de assimilações e eliminações de consoantes e vogais, produzindo sequências que exigem menos esforço muscular. ii. significados concretos que entram no processo tornam-se generalizados e mais abstratos e, como resultado, tornam-se apropriados a uma crescente gama de contextos. iii. a frequência de uso das construções gramaticalizadas aumenta radicalmente conforme a gramaticalização se desenvolve, fazendo crescer também os tipos de contexto em que as novas construções são possíveis. iv. as mudanças na gramaticalização ocorrem muito gradualmente e são acompanhadas por muitas variações na forma e na função. (BYBEE, 2002, apud SILVA, 2010, p. 28).
Como se observa, as diferentes concepções completam-se entre si, e remontam a definição clássica trabalhada por Meillet. 3. A gramática normativa e as conjunções adversativas no português Inseridas como uma classe de palavra pertencente aos estudos morfológicos da gramática tradicional,
as conjunções são comumente definidas pelos gramáticos
normativos como um termo invariável que liga duas orações ou palavras da mesma oração, sendo conceituadas como coordenadas, ao relacionar orações independentes, e subordinadas, ao estabelecerem relação de dependência entre as orações. Em relação às conjunções coordenativas, Azeredo assevera que “chama-se conjunção coordenativa a espécie de palavra gramatical que une duas ou mais unidades (palavras, sintagmas ou orações) da mesma classe formal e mesmo valor sintático” (2011, p. 198). Nesse viés, são inseridos itens que conectam as orações estabelecendo relações sintáticas e semânticas, mas que não possuem características semelhantes àquelas das conjunções prototípicas. Dentre esses itens, estão os termos selecionados para análise nesse trabalho: entretanto, no entanto e contudo. Bechara (2009) expõe que as conjunções são denominadas como coordenadas por apresentarem o mesmo nível sintático e, consequentemente, podem aparecer em enunciados separados. Buscando comprovar sua ideia, o autor dá o seguinte exemplo:
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(1) “Pedro fez concurso para medicina, e Maria se prepara para a mesma profissão.” (p.319, grifo do autor)
Para ele, os enunciados acima apresentados podem ser ditos separados, evidenciando a independência existente entre eles. Por isso, define a conjunção coordenativa como um conector, diferentemente da subordinativa, a qual tratará como um transpositor. No que diz respeito aos termos em questão, o autor afirma serem unidades adverbiais
e
não
conjunções coordenativas,
classificadas tradicionalmente como
conjunções. “Levada pelo aspecto de certa proximidade de equivalência semântica, a tradição gramatical tem incluído entre as conjunções coordenativas certos advérbios que estabelecem relações interoracionais ou intertextuais. É o caso de (...) entretanto, contudo, todavia, não obstante. (...) Não incluir tais palavras entre as conjunções coordenativas já era lição antiga na gramaticografia de língua portuguesa. (...) Perceberam que tais advérbios marcam relações textuais e não desempenham o papel conector das conjunções coordenativas, apesar de alguns manterem com elas certas aproximações ou mesmo identidade semânticas.” (BECHARA, 2009, p. 322)
Sendo assim, para ele, esses termos não são conjunções coordenativas por possuírem
determinadas
características
como
compatibilizarem-se
com
outras
conjunções, poderem aparecer em qualquer posição na oração em que se inserem, não constituírem
um
bloco
unitário
de
enunciados
coordenados,
não
estabelecem
coordenação entre subordinadas equifuncionais e podem aparecer em uma subordinada para marcar certa relação semântica, mas não conectar os enunciados. O aspecto que discorre sobre a posição desses termos na sentença também é discutido por Azeredo (2011), ao mencionar os termos porém, contudo, entretanto, no entanto e todavia. O autor afirma que “são tradicionalmente classificadas como conjunções, mas têm características que as assemelham a advérbios – como a mobilidade posicional na frase – e comportam-se como verdadeiros equivalentes de „ainda assim‟, „infelizmente‟, „pelo contrário‟, „apesar disso‟ etc” (AZEREDO, 2011, p. 306). Ademais, este autor mostra a possibilidade desses termos ocorrerem no interior da oração, mesmo que a sentença apareça antecedida pela conjunção e.
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Castilho (2012) afirma que esses termos são resultado do processo de gramaticalização pelo qual muitos advérbios se tornam conjunções. Ao discutir sobre o assunto, o autor compreende que: “As demais conjunções adversativas mencionadas nas gramáticas descritivas, tais como porém, contudo, todavia e entretanto, refugiaram-se na língua escrita, sendo raras suas ocorrências na língua falada (Dias de Moraes, 1987: 126-128). Elas derivam da gramaticalização ou de sintagmas preposicionados (cf. por+inde > porende > porém; com+tudo > contudo; entre+tanto > entretanto) ou sintagma nominal (tota+via>todavia). A presença dos quantificadores tudo, todo e tanto unifica esse processo.” (CASTILHO, 2012, p. 354, grifos do autor).
Numa tentativa de distinção entre conjunções coordenativas e advérbios, Rojas Nieto (1970) apresenta quatro marcas importantes presente naquelas: “a) relacionar tanto orações quanto constituintes; b) introduzir construções com ordem fixa; c) poder relacionar orações de imperativo; d) relacionar elementos introduzidos por nexos subordinantes” (p.124). Fica evidente com a literatura exposta acima que, para muitos autores os itens em questão mantêm marcas adverbiais, mesmo quando apresentam características de conjunção. Isso explicita possíveis traços de gramaticalização. A fim de entender melhor esse processo, far-se-á uma breve análise desses termos em textos midiáticos, evidenciando o valor anafórico que possuem. 4. A anáfora e os termos Contudo, Entretanto e No entanto em textos midiáticos Separada
em coordenada
e
subordinada pela Nomenclatura Gramatical
Brasileira (NGB), a divisão do período composto é assim designada porque a gramática normativa considera, como critérios relevantes para a classificação, apenas os aspectos morfológicos, sintáticos e semânticos, entretanto, nem sempre de maneira uniforme, isto é, nem todos consideram todos esses critérios. Para a linguística moderna,
conforme Said
Ali (1971),
ao invés das
determinações coordenação e subordinação, opta-se pelos termos parataxe e hipotaxe respectivamente. Para definir essas relações, diversos autores utilizam-se das expressões “dependentes” e “independentes” para nomeá-las, como o fez Azeredo.
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“Coordenação (ou parataxe) e subordinação (ou hipotaxe) são, portanto, dois processos de construção: a coordenação une partes do texto – palavras, sintagmas ou orações – formal e funcionalmente equivalentes; a subordinação une partes formal e funcionalmente distintas. A chave desta distinção é a noção de „hierarquia‟. Com isto estamos dizendo que ao se combinarem numa construção, as unidades gramaticais – palavras, sintagmas, orações – se associam por dois modos básicos distintos: ou elas se situam no mesmo nível de modo que a presença de uma independe da presença da outra (coordenação ou parataxe), ou elas se situam em níveis distintos, imediatos ou não, de modo que uma delas é a base e a outra serve de complemento ou de termo adjacente (hipotaxe ou subordinação). A unidade subordinada sempre vem contida numa unidade maior, que lhe é superior na hierarquia gramatical interna da oração.” (AZEREDO, 2011, p. 294)
A primeira relação que se constatou nos exemplos selecionados do corpus deste trabalho diverge dessa característica apregoada às conjunções de conectar palavras, sintagmas, orações. Os dados a seguir demonstram, de maneira evidente, como as conjunções adversativas em estudo
ocorrem com mais frequência relacionando
macroestruturas textuais, e não microestruturas como determinado pela gramática normativa. (1) Se você quiser insistir que haverá grandes problemas futuros, está bem (por favor, explique), mas os fatos até agora são bastante bons. Entretanto, o que vejo – e o que se vê quando se sugere que as coisas vão bem – é uma enxurrada não só de desacordo, mas de fúria. As pessoas ficam rubras de raiva, praticamente a ponto de incoerência, diante da sugestão de que Obama não é um desastre. (KRUGMAN, 2014). (2) Mais que essa ausência, a questão fundamental recai sobre a sobrevivência do texto. Uma crônica fica de pé se não tiver uma única retuitada ou curtida no Facebook? Ora, se a obra existe registrada por algum meio, ela reúne condições de existir e persistir. No entanto, se for verdade o que dizem os teóricos da recepção e o texto que não chega ao destinatário não existe? Ele não teria história nem futuro, nem presente. Os teóricos afirmam que não existe texto sem leitor. Assim sendo, é desconfortável passar a vida escrevendo para a página em branco ou para os scanners, mesmo que sejam supersensíveis. (GIRON, 2014). (3) É o momento em que vale apena habitar os dias de ninguém, os meus favoritos. Vivo mais neles do que em outros dias do ano, pois consigo respirar e resolver problemas que foram prorrogados até o limite. Até problemas não parecem um problema. É como se, em 60 horas, a eternidade se apresentasse e eu pudesse senti-la sem ter de me angustiar ou morrer para isso. No entanto, infelizmente, fatos continuam a ocorrer nesse período. Jornalistas vivem de notícias, mas torcem para que elas não aconteçam entre as festas de fim de ano. Muitas catástrofes costumam acontecer, independentemente da vontade dos homens de notícia. Agora é a estação das chuvas no Sudeste do Brasil e morros e casas despencam e
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rios inundam os vales, deixando milhares de flagelados. Foi em 26 de dezembro de 2004 que o tsunami atingiu a Indonésia, matando 230 mil pessoas. Como se fôssemos acordados com gritos de terror no meio de um sono bom, um sono sem sonhos. Nâo, isso não pode ter acontecido... (GIRON, 2013). (4) O governador tucano de São Paulo, Geraldo Alckmin, costuma adotar uma fala ponderada e contida sobre a totalidade dos assuntos que lhe aparecem pela frente. Sua oratória é sempre pausada, e seu conteúdo prima por ser inodoro. Dele, pode-se dizer que é contundente nas platitudes. Seu estilo de pronunciar em tom solene e grave as irrelevâncias mais insípidas acabou lhe rendendo um dos mais célebres apelidos da política nacional: Picolé de Chuchu. Diet, por certo. No fim do ano passado, contudo, o homem saiu do trilho. Indagado sobre o inquérito de formação de cartel no metrô de São Paulo, que cita nominalmente quatro secretários de seu governo, Alckmin afirmou que havia, numa das peças da acusação, “objetivo nitidamente político eleitoral”. (BUCCI, 2014a).
Em todos esses exemplos apresentados é possível verificar a retomada de toda uma informação anteriormente expressa, e não de somente determinado período com o qual se relaciona, expondo que o processo de gramaticalização de tais termos não se deu por completo. Todos os termos no contexto em que aparecem possuem o valor anafórico/adversativo, ou seja, retomam todo o contexto promovendo uma contrajunção à ideia expressa. Isso mostra que, apesar de atuarem como anafóricos, não houve perda do valor adversativo que costumam expressar. Outro aspecto evidente foi aparição desses termos com elementos também conceituados como conjunções, o que acaba por compreender o valor ainda adverbial desses elementos em questão. (5) Quem ganha com isso? Não, não são os opositores. Quem ganha é a coalizão que já está no poder e que, em caso de necessidade, tem na manga a melhor carta de todas: Lula lá de novo. Eis a sinuca em que se encontra a oposição. Se o mundo sorrir para Dilma, ótimo para o governo. Se, no entanto, Dilma derreter, tanto melhor. (BUCCI, 2014b). (6) Copa do Mundo também seria melhor sem intoxicação publicitária. Mais do que ninguém os publicitários deveriam saber que tudo o que é excessivo cansa. E, no entanto, dá-lhe Felipão vendendo carro, televisores, assinatura de telefone celular. Dálhe Neymar vendendo tudo. Antes de começar a Copa já enjoou. Sorte que depois do apito inicial do jogo inicial o enjoo passa. Cura-o a atração irresistível da bola correndo. (TOLEDO, 2014). (7) Até aí, como se sabe, foi tudo muito fácil. Desde sempre, a humanidade se compraz em nomear ratazanas, vermes, abutres, sanguessugas, hienas, vampiros, parasitas e demais bichos de estimação. Nunca fracassou gravemente no exercício dessa honrosa atribuição linguística que lhe foi confiada pelo Senhor. Eis, contudo, que, de uns meses para cá, a operação nomeadura complicou. (BUCCI, 2014c).
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Apesar do valor adversativo que exprimem nos textos que aparecem, depreendese que os elementos aparecem como uma maneira de enfatizar aquilo que já foi dito, uma vez que há um termo anterior que estabelece a relação semântica real que se quer dar entre as sentenças. Isso mostra que o produtor do texto objetivou dar destaque à informação dada, buscando convencer seu leitor daquilo que escreve. Por fim, segue-se um exemplo um tanto quanto curioso, pois não há relação adversativa para se expressar; ao contrário, uniram-se aqui as relações de anáfora e ênfase possíveis para os termos em estudo. (8) E a maconha? No relatório, ela sequer é mencionada porque é raro alguém morrer por overdose de cannabis, que, no entanto, é ilegal. Vejam que contradição! Mas tem uma série de dados em que os números se invertem: quando falamos das mortes decorrentes do tráfico ilegal e da guerra às drogas. (WYLLYS, 2014).
Não há uma ideia oposta à sentença expressa anteriormente no exemplo (8). Observa-se simplesmente a adjetivação dada à cannabis, nome científico para maconha, de esta ser ilegal. O que se estava contrariando eram as informações apresentadas no texto como um todo, de a venda de álcool e cigarro ser legal e da maconha não, já que está mata menos que as outras duas drogas mencionadas. Fato esse que comprovada a função anafórica do termo “no entanto”, no exemplo em questão, e a possibilidade deste e os outros termos, “entretanto” e “contudo”, também serem utilizados pelo falante com valor anafórico, depreendendo que o processo de gramaticalização desses termos não se deu ainda como um todo. Considerações Finais Acreditar que a língua portuguesa é um conjunto de normas fechadas e inalteradas fará certos usos de seus falantes não serem considerados, já que fogem ao que é determinado como regra. Diante disso, os diferentes estudos gramaticais, e neste caso o funcionalista, procuram dar tratamento além daquilo que é limitado pela gramática tradicional. Sendo assim, este trabalho, ao buscar trabalhar com os usos, que se tornam cada vez mais frequentes na língua, visa dar conta daquilo que os estudos normativos não
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conseguem explicar e, ao mesmo tempo, compreender que tais usos podem, com o tempo, tornarem-se consagrados pelos falantes. Com base nisso, buscou-se expor como os termos “contudo”, “entretanto” e “no entanto”, denominados comumente como conjunções adversativas e que possuem base adverbial, ainda exprimem no uso dos falantes o aspecto adverbial que possuíam, evidenciando, assim, que o processo de gramaticalização desses termos não se consolidou por completo como o termo “mas”, conjunção prototipicamente adversativa. Isso porque expressaram um valor anafórico nos exemplos encontrados e, até mesmo, enfático, além de aparecerem com os termos definidos como conjunções. Por fim, conclui-se que outros estudos que visem a um levantamento quantitativo maior poderão determinar qualitativamente outras funções pragmáticas que os elementos aqui estudados estão promovendo nos discursos dos falantes, procurando entender as seleções linguísticas que os interlocutores fazem para atingir seus falantes. Referências AZEREDO, J. C. de. Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Publifolha, 2011. BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. BUCCI, E. O derretimento de Dilma. In: Revista Época On-line, São Paulo, 17 abril. 2014a. Disponível em: _________. Os interesses eleitorais dos outros. In: Revista Época On-line, São Paulo, 16 jan. 2014b. Disponível em: < http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/eugeniobucci/noticia/2014/04/bo-derretimentob-de-dilma.html> _________. Todo tucano é mineiro? Ou todo mineiro é que é tucano? In: Revista Época On-line, São Paulo, 17 mar. 2014c. Disponível em: < http://epoca.globo.com/colunas-eblogs/eugenio-bucci/noticia/2014/03/btodo-tucano-e-mineiro-bou-todo-mineiro-e-quee-tucano.html> CASTILHO, A.T. Nova Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2012. CUNHA, A. F. Funcionalismo. In: MARTELOTTA, M. E. (Org.). Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2012.
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GIRON, L. A. Dias de ninguém. In: Revista Época On-line, São Paulo, 26 dez. 2013. Disponível em: < http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/luis-antoniogiron/noticia/2013/12/dias-de-bninguemb.htmll> GIRON, L. A. É hoje! In: Revista Época On-line, São Paulo, 12 jun. 2014. Disponível em: GONÇALVES, S.C.L.; LIMA-HERNANDES, M.C.; CASSEB-GALVÃO, V.C. (Orgs.). Introdução à gramaticalização: princípios teóricos e aplicação. São Paulo: Parábola, 2007. HOPPER, P.; TRAUGOTT, E. Grammaticalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. KRUGMAN, P. O mito da inflação. In: Revista Carta Capital On-line, São Paulo, 03 ago. 2014. Disponível em: LONGHIN-THOMAZI, S. R. VEREDAS - Rev. Est. Ling., Juiz de Fora, v.8, n.1 e n.2, p.215-232, jan./dez. 2004. MARTELOTTA, M.E.; AREAS, E.K. A visão funcionalista da linguagem no século XX. In: CUNHA, M.A.; OLIVEIRA, M.R.; MARTELOTTA. M. E. (orgs.). Linguística funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. NEVES, M. H. M. A Gramática Funcional. São Paulo: Martins Fontes, 1997. SILVA, T. M. da. Gramaticalização de juntivos adversativos na história do português. Dissertação de Mestrado – Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto: [s.n.], 2010. TOLEDO, R. P. de. Notas pré-Copa. In: Revista Veja On-line, São Paulo, 17 maio 2014. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/opiniao-2/notas-precopa-por-roberto-pompeu-de-toledo/> TRAUGOTT, E.; HEINE, B. (orgs.) Approaches to grammaticalization. vol. 1. John Benjamins Publishing Company, 1991. WYLLYS, J. Maconha deve ser legalizada, e traficantes da droga, anistiados. In: UOL notícias, São Paulo, 30 abril 2014. Disponível em: < http://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2014/04/30/maconha-deve-ser-legalizada-etraficantes-da-droga-anistiados.htm>
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AS VOGAIS MÉDIAS PRETÔNICAS NO PORTUGUÊS DA AMAZÔNIA PARAENSE: O DIALETO DO MIGRANTE MARANHENSE FRENTE AO DIALETO FALADO EM BELÉM/PA Giselda da Rocha Fagundes (UFPA) Introdução Esta pesquisa teve como objetivo descrever a variação das vogais médias pretônicas no português falado em Belém/PA, levando-se em conta os fatores linguísticos e extralinguísticos que podem influenciar e condicionar o fenômeno pesquisado. Para isso foram necessários: a) descrever as variantes das vogais médias pretônicas /e/ e /o/ no português de Belém, a fim de verificarmos a variante mais favorecida. Os dados apontaram a manutenção como a mais recorrente. Todavia, devido ao fato do alteamento, assim como o abaixamento, das vogais serem variantes típicas da fala dos maranhenses, como atestou Castro (2008), e nossa amostra se compôs também de pessoas dessa região, optamos pelo estudo do fenômeno de alteamento em detrimento da manutenção; b) identificar os fatores linguísticos e extralinguísticos que interferem no condicionamento das variantes de e no alteamento. Das onze variáveis controladas para este estudo, o programa Goldvarb X selecionou seis como significantes para explicar o alteamento de no português de Belém: natureza da vogal tônica; natureza da vogal seguinte; seguimento precedente; seguimento seguinte; tipo silábico e escolaridade, e no que tange ao o programa selecionou seis grupos: natureza da vogal tônica; natureza da vogal seguinte; distância relativa à sílaba tônica; seguimento precedente; seguimento seguinte; e tipo silábico; e c) relacionar aspectos de variação inter e intradialetal para explicar o comportamento de e no dialeto da zona urbana de Belém (PA) para a realização de uma possível caracterização sociolinguística do português falado nessa localidade. Para isso, utilizamos dados coletados da fala espontânea de migrantes nordestinos oriundos do estado do Maranhão e de seus descendentes, paraenses
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nascidos na localidade pesquisada e/ou maranhenses que migraram para lá ainda pequenos. Este trabalho está organizado em três tópicos. No primeiro apresentamos um esboço de algumas pesquisas realizadas sobre as médias pretônicas passíveis de explicar o comportamento variável dessas vogais em posição pretônica. No segundo apresentamos os procedimentos metodológicos utilizados para a realização deste trabalho. Descrevemos a forma como foi composto o corpus, o processo de codificação, e como foram realizadas as análises estatísticas. Por fim, no terceiro, apresentamos os resultados estatísticos para a aplicação do alteamento das médias e , apresentando os grupos de fatores – variáveis independentes - escolhidos pelo programa estatístico Goldvarb X como significantes à aplicação das regras de alteamento. 1. As vogais médias pretônica nas regiões Norte e Nordeste: Projeto Vozes da Amazônia e Castro (2008). O projeto Vozes da Amazônia, da qual este estudo faz parte, é integrante de um diretório de pesquisa nacional denominado Descrição Sócio-Histórica das Vogais do Português – PROBRAVO. O PROBRAVO investiga
como são realizadas
foneticamente as vogais no Português do Brasil (PB), assim como a base da diversidade de realizações fonéticas das vogais átonas do
PB, e como os falantes do PB se
entendem apesar das diversidades da qualidade vocálica. Sobre a variação das vogais médias pretônicas, alvo desta pesquisa, o projeto já procedeu a descrições do processo em cinco localidades do Estado do Pará, a saber: Belém (Cruz et al 2008, Sousa, 2010; Cruz & Sousa, 2013), de Breves (Dias et al 2007; Oliveira 2007; Cassique et al 2009), de Cametá (Rodrigues & Araújo 2007), de Mocajuba (Campos 2008), de Breu Branco (Marques 2008) e de Aurora do Pará (Ferreira 2013). Todas são descrições sociolingüísticas de cunho variacionista. Todos os resultados sobre as variedades do português da Amazônia paraense apontam para uma tendência dos dialetos paraenses, dos quais se tem descrição do fenômeno em questão, de preferência pela preservação das médias pretônicas em detrimento do alçamento, como pode ser verificado no quadro 1 abaixo.
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Grafico 1 – Tendência ao não alteamento das vogais médias pretônicas no português da Amazônia Paraense, de acordo com os resultados dos trabalhos realizados pela Equipe do Projeto Norte Vogais da UFPA.
Fonte: Adaptado de Cruz (2012, p.203)
Os dialetos da Amazônia paraense apresentam uma configuração do fenômeno de alteamento que exige um maior aprofundamento de suas causas sejam internas ou externas, pois os dialetos da zona rural de Breves (Dias et al 2007), das ilhas de Belém (Cruz et al 2008) e de Mocajuba (Campos 2008) apresentam percentuais muito próximo de alteamento e manutenção das médias pretônicas com tendência maior para ausência de alteamento, atestando, inclusive variação neutra das vogais médias pretônicas no caso do português falado em Mocajuba (Campos 2008), reforçado por Cametá (Rodrigues & Araújo 2007) e por Breves no geral (Cassique et al 2009) que comprovam uma tendência mais acentuada para ausência de elevação das médias. A relação presença versus ausência de alteamento é ainda mais acentuada no português falado na zona urbana de Breves (Oliveira 2007) e no município de Breu Branco (Marques 2008), como mostra o gráfico 1. Cruz (2012), em sua conclusão, levanta a hipótese de que os fatores externos são relevantes no condicionamento da realização das variantes das médias pretônicas e fazem com que tal variedade seja muito diferente da demais, na fala da Amazônia paraense. Para comprovar tal hipótese a autora afirma que deverá ser feita uma nova coleta de dados, controlando como principal fator a origem ou ascendência do falante. Acreditamos ser talvez a variável que esteja controlando a realização dessas variantes. Verificaremos também além da variável origem do falante, a fim de se verificar se se trata de uma mudança estável ou em progresso.
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Com esta nova abordagem temos o trabalho pioneiro de Ferreira (2013) em Aurorá do Pará; e Belém, com esta nossa pesquisa. Para proceder este novo processo de investigação, as pesquisas tomam como base para a formação do corpus o conceito de rede social, de Bortoni-Ricardo (1985), por ser o melhor instrumento para lidar simultaneamente com as diferenças individuais e com a identificação da variação dos padrões sistemáticos e o da análise das redes sociais dos migrantes, já usado anteriormente em sociolinguística correlacional (LABOV, 1972; MILROY, 1980). Ao pesquisarmos sobre o falar Maranhense, encontramos a dissertação Descrição Histórica das Vogais na Fala do Sertanejo da Região de Balsas – MA, de Castro (2008). A partir desse trabalho respaldamos nossas análises, certos de que o referido estudo representa apenas um recorte de todo o sistema linguístico do falar maranhense. A pesquisa de Castro (2008) tem como base o método históricocomparativo, utilizado para a descrição do falar pesquisado pela autora, ao comparar os fenômenos fonético-fonológicos característicos do corpus pesquisado com os apresentados na literatura da história da língua portuguesa. Ainda segundo Castro (2008) a manutenção das pretônicas, ou seja, os fonemas fechados /e/ e /o/ são raros em posição pretônica, pois a tendência maior é alçá-los para /i/ e /u/, respectivamente. Castro (2008) observou, durante a fase das entrevistas, que esse falar é muitas vezes marginalizado e suscetível de mudança e de ameaça de extinção. Esses falantes da região de Balsas – MA demonstram em seus discursos terem consciência de que o processo de escolarização e a vivência na cidade fazem com que haja uma modificação na linguagem das pessoas, além de que possibilita melhores oportunidades de trabalho. Outro fato observado por Castro (2008) é que esse falar possui um número pequeno de falantes e de modo geral é rejeitado pelas novas gerações (filhos, netos, habitantes da cidade) que usam pouco da sua linguagem nativa característica. Ou seja, no momento, esse falar regional e local parece estar caindo em desuso, sendo utilizados somente em seus ambientes eco-linguísticos ou nem isto, pois, segundo a autora da pesquisa, muitas vezes, os próprios familiares desencorajam o uso da língua materna, haja vista que os filhos ou parentes próximos, por questão de preconceito ou mesmo de funcionalidade, desencorajam os pais e/ou avós, parentes mais idosos, a manterem o uso
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do falar natural, mas ainda há, como atestou Castro (2008) alguns falantes que mostraram-se satisfeitos pela sua identidade sertaneja e pela forma como falam. 2. Metodologia Esta pesquisa tomou como base os pressupostos da sociolinguística quantitativa de Labov (1972). Utilizamos também alguns procedimentos metodológicos seguidos por Bortoni-Ricardo (1985) para Análises de Redes Sociais, importantes para o estudo de dialetos em comunidades de migração, como é o caso Belém. No que se refere à análise quantitativa de dados, tomamos como referência os nortes dados por Guy e Zilles (2007), para o uso de programas estatísticos. O corpus utilizado corresponde a 570 ocorrências das vogais médias pretônicas, sendo que 346 são ocorrências da variável e 224 da variável . Esses dados foram extraídos dos discursos gravados de 06 informantes, num total de oitenta e três minutos e oitenta e um segundos de gravação, que corresponde, em média, a 14 minutos de gravação por informante. Para compor a amostra, utilizamos os procedimentos metodológicos adotados por Bortoni-Ricardo (1985). Para explicar o comportamento linguístico dos migrantes a autora utiliza o conceito de redes sociais, tomando por base o conceito de grupo de referência. Com base neste conceito, estabelecemos dois grupos para a amostra: um grupo de ancoragem, composto, para esta análise preliminar, por 04 (quatro) migrantes maranhenses, com faixa etária acima de 50 anos e divididos em sexo, masculino e feminino; e um grupo de controle, composto por 02 (dois) informantes, com faixa etária entre 20 e 30 anos e divididos em sexo, um informante nascido em Belém/PA e a informante BE0F3C17, que nasceu em Pedrinhas - MA, mas veio para o Pará com apenas três meses de vida. Os informantes do grupo de controle são descendentes dos informantes do grupo de ancoragem. O trabalho de campo foi realizado entre agosto e outubro de 2013. Para efetivação desta etapa, seguimos as orientações de Tarallo (2003). Para este estudo, utilizamos três softwares: o PRAAT, o GOLDVARB X e Yed Graph Editor, por meio dos quais foi possível realizar todo o tratamento dos dados do corpus e confecção de gráficos.
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3. Apresentação dos resultados A tabela 1, a seguir, apresenta os dados distribuídos entre as variantes de alteamento, manutenção e abaixamento. A apresentação dos dados dessa forma objetiva nos mostra que, no dialeto de Belém/ PA, assim como em grande parte dos dialetos estudados pelo Projeto Vozes da Amazônia, predominam as variantes de manutenção. Contudo, as análises exploradas tomaram como objeto o alteamento das médias pretônicas, uma vez que o alteamento é a segunda variante que mais ocorre no dialeto de Belém, conforme atestou Cruz et al (2008), Souza (2010) e Cruz e Souza (2013). Tabela 2 – Percentuais das variantes de e no falar de Belém/PA. Variante de
Alteamento – (fal[i]Cida / carv[u]eiro)
30,1
21,9
Manutenção – (r[e]união / b[o]letim)
37,0
43,8
Abaixamento – (g[E]ladeira) / (n[O]vela)
32,9
34,4
Fonte: elaborada pela autora
No caso do alteamento, nossa hipótese era de quê como Castro (2008) não trabalhou com pesos relativos e nem porcentagens, mas afirma em seu estudo que o alteamento é produtivo no falar da Região de Balsas/MA, esta variante seria igualmente produtiva, todavia nossa hipótese foi refutada tanto para quanto para . Os dados do abaixamento e manutenção foram amalgamados, para podemos controlar as variantes de alteamento e não alteamento. Assim realizamos as rodadas binárias no Goldvarb X, e os resultados deste estudo para este recorte analítico está apresentado na Tabela 3. Tabela 3 – Resultado para aplicação e não aplicação do alteamento das médias pretônicas no dialeto de Belém/PA. Alteamento Não alteamento
% 31,1% 69,9%
P.R .31 .70
% 21,9% 78,1%
P.R .22 .78
Fonte: elaborada pela autora.
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O programa estatístico selecionou seis fatores significantes para as variantes de e seis para . O quadro 1, a seguir, apresenta esses fatores selecionados marcados com “x”, e os excluídos foram marcados com a cor azul. Quadro 1 – Fatores selecionados e excluídos nas rodadas de aplicação do alteamento e do não alteamento das médias pretônicas em Belém/PA. Fatores/Variantes Natureza da vogal tônica Vogal pré-pretônica quando for oral Vogal pré-pretônica quando for nasal Natureza da vogal seguinte Distância relativa à sílaba tônica Seguimento precedente Seguimento seguinte Tipo silábico Sexo do informante Grupo de Amostra Escolaridade Fonte: elaborado pela autora
Alteamento
Alteamento
X
Não alteamento X
X
Não alteamento X
X
X
X X X
X X X
X X X X X
X X X X X
X
X
Conforme já dissemos, seis foram os grupos de fatores que programa Goldvarb X selecionou como responsáveis pela aplicação do alteamento de no dialeto de Belém/PA. Desses, cinco são linguísticos e um é social, a saber: Natureza da vogal tônica; Natureza da vogal seguinte; Seguimento precedente; Seguimento seguinte; Tipo silábico e Escolaridade. Seis também foram os grupos de fatores que programa Goldvarb X selecionou como responsáveis pela aplicação do alteamento de . Todos os grupos elencados são linguísticos. São eles: Natureza da vogal tônica; Natureza da vogal seguinte; Distância relativa à sílaba tônica; Seguimento precedente; Seguimento seguinte; Tipo silábico. 3.1. Alteamento da variável dependente média anterior
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Com relação a Natureza da vogal tônica, a vogal média fechada posterior /o/, teve maior peso relativo para aplicação do alteamento de , .79 de peso relativo, o segundo maior peso foi da vogal alta posterior.78, seguido da vogal alta anterior, que teve .73 de peso relativo, e média fechada anterior .51. O menor peso foi o da média aberta posterior, .27, seguida da vogal baixa .3. Podemos, então, concluir que para o alteamento de no dialeto de Belém/PA concorrem como favorecedoras, em posição tônica, as vogais altas e média fechada posterior /i, u, o/, configurando a harmonia vocálica como um fator condicionante da regra. Sobre a natureza da vogal seguinte, o fator sem vogal aberta foi o que teve maior peso relativo e o único fator favorecedor do abaixamento de , .61. Os fatores vogal aberta imediata e vogal aberta não imediata tiveram pesos relativos inferiores a .50, ficando com os pesos, .36 e .18, respectivamente. Essa mesma constatação ocorreu nos dados de Freitas (2001), em Bragança. Segunda a autora, As vogais altas em posição contígua, sejam tônicas ou átonas, geralmente apresentam-se como favoráveis ao alteamento. Podemos então dizer que há um processo de harmonia vocálica atuando na aplicação da regra de alteamento de . O que é ratificado por Nina (1991 apud CAMPOS, 2008, p. 140): “[...] a influência da vogal tônica ou átona que segue de imediato à pretônica evidencia um processo de harmonização vocálica”. Sobre o seguimento precedente observamos que o seguimento vazio é o único favorecedor dessa variante. Todos os fatores, consoante labial, consoante coronal, consoante dorsal e ramificado inibem o abaixamento com os pesos relativo, .28, .40, .10, .51, respectivamente, sendo o fator consoante dorsal o que menos favorece. Assim também ocorreu com o seguimento seguinte, pois os dados apresentados revelam que o segmento vazio é o maior favorecedor para aplicação da regra do alteamento no dialeto de Belém/PA, assim como as consoantes dorsais. Segmento vazio apresentou peso relativo de .69, maior peso relativo, peso este bem próximo do obtido pelas consoantes dorsais, com .61 de peso relativo, já as consoantes labiais e coronais obtiveram .39 e .40 de peso relativo, respectivamente. Para o tipo silábico destacamos três tipos de estrutura silábica CV (consoante vogal), CVC (consoante, vogal, consoante) e Não se aplica (consoante, vogal, vogal), ou seja, sílabas leves e pesadas. Os resultados indicam que o alteamento tem maior
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probabilidade de ocorrência quando a sílaba é leve, .65 de peso relatico. As sílabas CVC, com .43 de peso relativo, e os casos em que não há CV ou CVC, não tem influência sobre o fenômeno, pesos relativos de .43 e .29, respectivamente. Dentre as variáveis independentes sociais, a escolaridade foi a única das selecionadas como importante para explicar a aplicação do alteamento no dialeto de Belém/PA. Os dados de Belém/PA revelam que os níveis fundamental e médio favorecem o alteamento e o nível superior desfavore a regra. o alteamento de é favorecido pelos níveis médio e fundamental, com pesos relativos de .79 e .60, respectivamente, enquanto o nível superior tendem a inibir a regra, com .43 de peso relativo. 3.2. Alteamento da variável dependente média posterior Assim como fizemos com a média anterior, verificamos a vogal em posição tônica que mais favorece o alteamento de . Os resultados foram os seguintes: vogal média fechado posterior foi o fator de maior peso, .78. Vogal alta posterior, juntamente com a vogal média fechada anterior tiveram o segundo maior peso relativo, ambas com .73, seguidas da vogal alta anterior. Já o fator vogal baixa teve .26 de peso relativo e a vogal média aberta anterior teve .21 de peso relativo o menor peso. Sobre a Natureza da vogal seguinte o fator sem vogal aberta foi o que teve maior peso relativo e o único fator favorecedor do abaixamento de , .68. Os fatores vogal aberta imediata e vogal aberta não imediata tiveram pesos relativos inferiores a .50, ficando com os pesos, .16 e .37, respectivamente. Para os resultados para a variável Distância relativa à sílaba tônica na realização do alteamento de consideramos as seguintes distâncias para essa variável: distância 1(um) - (c[u]mida), e distância 2 (dois) - (m[u]vimento). Como não houve ocorrências de pretônica posterior alta nos fatores Distância 3 e Distância 4, estes fatores foram retirados das rodadas. O fator distância 1 (um), que obteve o peso relativo de .58, favorece o alteamento, e o fator Distância 2 (dois), com peso relativo de .32, desfavorece o alteamento. Com relação ao Seguimento precedente da sílaba da vogal-alvo para aplicação do alteamento podemos observar que os seguimentos coronal e dorsal , ambos com o
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peso relativo .55, e labial, com peso relativo .78, favorecem o alteamento de . Já o fator ramificado desfavorece o alteamento, pois apresentou peso relativo quase categórico, .08. O segmento da sílaba seguinte foi outra variável selecionada pelo programa Goldvarb X como importante para a aplicação do alteamento de . Tal qual ocorreu com a variável Seguimento precedente da sílaba da vogal alvo, os dados revelam que as consoantes labiais são favorecedoras da aplicação da regra do alteamento no dialeto de Belém/PA obtendo os resultados: consoante labial .73 de peso relativo, consoante coronal, com .50 de peso relativo, seguimento vazio, com .44 de peso realtivo e consoante dorsal, com .13 de peso relativo. Já sobre o tipo silábico os resultados indicam que o alteamento tem maior probabilidade de ocorrência quando a sílaba é do tipo CV com .65 de peso relativo e do tipo CVC com .57 de peso relativo. Já as sílabas em que os casos CV e CVC não se aplica apresentaram .13 de peso relativo. Conclusão A partir das 570 ocorrências dos dados dos 06 informantes entrevistados, divididos em grupo de Amostra – migrantes maranhenses – e grupo de controle – descendentes dos migrantes –, verificamos que há uma tendência para a não aplicação da regra de alteamento e da regra de abaixamento das vogais médias pretônicas no dialeto de Belém/PA, contudo ambas representa cerca de um terço da realização das vogais médias pretônicas. Esse fato aponta para a perda da marca de identidade linguística dos migrantes quando em confronto com falantes de outros dialetos. O alteamento, no dialeto de Belém/Pa embora represente marca diletal do Maranhão (CASTRO, 2008), não é a marca dialetal desta localidade posto que nela predomina o não abaixamento. Os resultados obtidos nas rodadas indicam um índice probabilístico abaixo do considerado significante para essa variante, apontando que os migrantes não mantem essa regra no dialeto estudado. O mesmo ocorre com o alteamento, segunda variante mais utilizada no dialeto maranhense (CASTRO, 2008), que, em Belém/PA não é a marca dialetal posto que nela
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predominou o não alteamento. A realização do alteamento no dialeto de Belém/Pa quando ocorre está bastante associada ao processo de harmonia vocálica. Referências BISOL, L. Harmonia vocálica: uma regra variável. 1981. 333f. Tese (Doutorado em Linguística) –Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. BORTONI-RICARDO, S.M. Do campo para a cidade: um estudo sociolinguístico de migração e redes sociais. São Paulo: Parábola editorial, 2011. _________. The urbanization of rural dialect speakers: a sociolinguistic study in Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. CÂMARA JR., J. M.Estrutura da língua portuguesa. 20. ed. Petrópolis: Vozes, [1969]1991. CAMPOS, B. M. do S. Alteamento vocálico em posição pretônica no português falado no Município de Mocajuba-Pará. 2008. 202 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Federal do Pará, Belém. CASSIQUE, Orlando. Mĩnĩna bũnita...olhos esverdeados: um estudo variacionista da nasalização vocálica pretônica no português falado na cidade de Breves-PA. 2002. 97 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Federal do Pará, Belém. _________. et al. Variação das vogais médias pré-tônicas no português falado em Breves (PA). In: HORA, D. (Org.). Vogais no ponto mais oriental das Américas. João Pessoa: Ideia, 2009. p.163-184. 108 CASTRO, Maria Célia Dias de. Descrição histórica das vogais na fala do sertanejo da Região de Balsas-MA. 2008. 184 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia. CRUZ, Regina; SOUSA, Josivane. Variação vocálica das médias pretônicas no português falado na cidade de Belém (PA). Letrônica, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 26-46, jan./jun., 2013. CRUZ, R. et al. Alteamento vocálico das médias pretônicas no Português falado na Amazônia Paraense. SIMPÓSIO SOBRE VOGAIS DO PORTUGUÊS BRASILEIRO, 2, 2009, Minas Gerais. Anais... Belo Horizonte, UFMG, 2009. _________. As vogais médias pretônicas no português falado nas ilhas de Belém (PA). In: ARAGÃO, M. do S. S. de (Org.). Estudos em fonética e fonologia no Brasil. João Pessoa: GT-Fonética e Fonologia / ANPOLL, 2008
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Disponível
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A CONSTRUÇÃO DE IMAGENS EM ARTIGO OPINATIVO Gisely Gonçalves de Castro (UFES/FAPES) Introdução Considerando que o ethos não se identifica exclusivamente ao orador e que este pode construir, em seu discurso, imagens de outrem, propomos uma discussão sobre o modo como Elio Gaspari constrói imagens de outras personagens em um de seus artigos de opinião. Uma vez estruturado com o formato de e-mail, o artigo de opinião que analisamos simula uma interação entre personalidades políticas e, dessa forma, coloca em cena a imagem dessas personalidades. Para conduzir nossas reflexões, baseamo-nos nos pressupostos teóricos desenvolvidos pelos estudiosos da Retórica aristotélica e da Nova Retórica, como Aristóteles (2005), Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), Reboul (2004) e Meyer (2007). Consideramos, principalmente, as observações de Meyer (2007) sobre o conceito de ethos, já que elas fornecem as bases para tratar de casos em que um orador constrói imagens de outras personagens. Após a análise do texto selecionado, constatamos que Elio Gaspari procura construir uma imagem positiva do político que atua como remetente do suposto e-mail e uma imagem negativa daquele que figura como destinatário. Tal procedimento contribui para o desenvolvimento de seu projeto argumentativo/persuasivo. O conceito de ethos O ethos, para Aristóteles (2005), está ligado ao caráter que o orador assume para inspirar confiança em seu auditório: “Persuade-se pelo caráter quando o discurso é proferido de tal maneira que deixa a impressão de o orador ser digno de fé. Pois acreditamos mais e bem mais depressa nas pessoas honestas [...]” (p. 96). Nessa concepção, o ethos se constitui no interior do discurso, e não fora dele. Trata-se da imagem de si, real ou não, que o orador cria em seu discurso. Em Aristóteles, o ethos também evoca hábitos, modos e costumes, isto é, não apresenta apenas sentido moral. Há dois campos semânticos opostos ligados ao termo:
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“um, de sentido moral e fundado na epieíkeia, engloba atitudes e virtudes como honestidade, benevolência ou equidade; outro, de sentido neutro ou „objetivo‟ de héxis, reúne termos como hábitos, modos e costumes ou caráter” (EGGS, 2013, p. 30). Embora em campos semânticos opostos, esses conceitos não se excluem: não se pode realizar o ethos moral sem realizar, ao mesmo tempo, o ethos neutro. Com efeito, para dispor favoravelmente o auditório, as escolhas realizadas ao tomar a palavra, devem ser, segundo Aristóteles (2005), apropriadas ao assunto tratado e ao caráter e tipo social do orador. Nessa perspectiva, o orador dispõe de três qualidades a serem exercitadas para inspirar confiança: phrónesis, areté e eúnoia. “Os oradores inspiram confiança, (a) se seus argumentos e conselhos são sábios e razoáveis [phrónesis], (b) se argumentam honesta e sinceramente [areté], e (c) se são solidários e amáveis com seus ouvintes [eúnoia]” (EGGS, 2013, p. 32, grifos do autor). Com a ressignificação da retórica, o conceito de ethos também passou por uma ampliação de seu significado: “hoje se aceita como ethos a imagem que o orador constrói de si e dos outros no interior do discurso” (FERREIRA, 2010, p. 90). Uma visão mais ampla do termo pode ser vista na definição de Reboul (2004, p. 87). Segundo o autor, “numa propaganda eleitoral, por exemplo, não só a voz é essencial como também todo o comportamento, a aparência do candidato, que é a forma moderna do ethos”. Meyer (2007, p. 35) também oferece uma abordagem mais abrangente para o tratamento do ethos. Conforme o autor, o ethos não se identifica exclusivamente ao orador, não se limita àquele que fala ou escreve: Não podemos mais identificar, pura e simplesmente o éthos ao orador: a dimensão do uso da palavra é estruturada de modo mais complexo. O éthos é um domínio, um nível, uma estrutura – em resumo, uma dimensão –, mas isso não se limita àquele que fala pessoalmente ao auditório, nem mesmo a um autor que se esconde atrás de um texto e cuja “presença”, por esse motivo, afinal, pouco importa. O éthos se apresenta de maneira geral como aquele ou aquela com quem o auditório se identifica, o que tem como resultado conseguir que suas respostas sobre a questão tratada sejam aceitas.
O conceito de intergenericidade A fim de caracterizar o texto selecionado para análise, já que se trata de um artigo de opinião com formato de e-mail, realizamos, neste item, algumas considerações
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acerca do fenômeno designado intergenericidade. Ao tratar da configuração híbrida que os gêneros podem assumir, Marcuschi (2008, p. 164) afirma ser algo muito comum “burlamos o cânon de um gênero fazendo uma mescla de formas e funções”. Embora esse fenômeno já tivesse recebido outra denominação, intertextualidade intergêneros, o autor propõe o termo intergenericidade – que, em seu ponto de vista, é a terminologia que melhor traduz a questão, já que existe uma relação entre um gênero e outro – para designar os casos de mescla de gêneros em que um assume a função de outro. Assim, Marcuschi (2008, p. 163) sustenta que a sua identificação não se deve pautar por um conjunto de características estruturais: “não é uma boa atitude imaginar que os gêneros têm uma relação biunívoca com formas textuais”. Dessa forma, a proposta do autor é que a determinação dos gêneros se dê basicamente pela função, e não pela forma, o que não exclui outros elementos do processo de produção, circulação e recepção dos textos. Na verdade, o autor reconhece que a forma estrutural, o propósito comunicativo, o conteúdo, o meio de transmissão, os papéis dos interlocutores, entre outros elementos, em geral, atuam em conjunto na identificação de um gênero. Entretanto, quando se tem algum problema de determinação, é comum que ele seja solucionado em atenção ao propósito comunicativo. A construção de imagens O texto sob análise foi publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 13 de março de 2002. Como, até o momento, contamos com 65 artigos de opinião com formato de email,
escolhemos
a
primeira
publicação
desse
segmento1:
Mensagem
de
[email protected] para FFHH. O artigo de opinião Mensagem de [email protected] para FFHH aborda questões relacionadas ao governo FHC, mais especificamente, as críticas feitas por Fernando Henrique Cardoso ao FMI durante um encontro do BID ocorrido em Fortaleza, no ano de 2002. Vejamos:
1
O texto foi adquirido através da Folhapress, serviço que comercializa arquivos publicados na Folha de S. Paulo.
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Uma vez que Juscelino Kubitschek desempenha o papel de remetente do suposto e-mail, cabe a ele a tarefa discutir aspectos relacionados ao governo de seu remetente. Nesse caso, Juscelino Kubitschek recorre a sua experiência para avaliar o governo de Fernando Henrique Cardoso, bem como exortá-lo no que diz respeito ao FMI. A primeira imagem que se sobressai é, portanto, a de experiente, a qual é construída, sobretudo, por meio da figura retórica denominada alusão. Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p. 201), há alusão quando a interpretação de um texto, se se omitisse a referência voluntária do autor a algo que ele evoca sem designar, estaria incompleta; esse algo pode consistir num acontecimento do passado, num uso cultural, cujo conhecimento é próprio dos membros do grupo com os quais o orador busca estabelecer [...] comunhão.
Por meio da alusão, Elio Gaspari faz referência a acontecimentos do passado político de Juscelino Kubitschek, configurando-o como uma pessoa experiente, como um indivíduo que já vivenciou o compromisso de governar um país. Vejamos o seguinte exemplo, o qual designamos pela letra E. E-1 “Quando eu briguei com o FMI, você tinha 28 anos e aplaudiu” (GASPARI, 2002). E-1 faz alusão ao choque entre o governo brasileiro e o Fundo Monetário Internacional ocorrido no final do governo JK, em 1959. O acontecimento evocado nesse Fragmento concorre para a construção do ethos de experiente de Juscelino Kubitschek na medida em que evidencia o fato de que esse político já vivenciou situações pertinentes ao governo do Brasil, isto é, teve que buscar soluções para os problemas econômicos que afetaram o Brasil entre 1957 e 1959, o que acabou levando o governo a romper com o FMI. Portanto, o rompimento com o FMI demonstra que Juscelino Kubitschek carrega uma experiência a esse respeito e, por isso, pode interferir nos assuntos concernentes à relação governo FHC/FMI. Por ser aconselhado a respeito de sua atuação política, Fernando Henrique Cardoso, fica numa condição bastante desconfortável. Com efeito, se, de um lado, temos um político que conta com sua experiência para aconselhar seu destinatário a
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respeito de suas atitudes no governo, de outro, temos um político que depende desses conselhos para acertar nas decisões a serem tomadas. Assim, a imagem que se constrói de FHC é a de um sujeito incompetente, a qual emerge da incompatibilidade, argumento baseado na noção de contradição dos sistemas formais. Na demonstração lógica, tornar manifesta uma contradição de um sistema significa torná-lo incoerente e inutilizável. Por outro lado, na argumentação, não é assim que acontece, já que, nesse caso, as premissas raramente são explicitadas, e quando o são, raramente definidas de modo totalmente unívoco. Por isso, em vez de contradição, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) propõem o termo incompatibilidade. Vejamos o exemplo abaixo: E-2 Voltando aos guarda-livros do FMI. Conte aos brasileiros porque nos tratam como analfabetos. Pelas contas deles, se um governo privatiza um sistema de saneamento urbano, consegue R$ 100 milhões e os aplica na construção de uma rede de esgotos num bairro pobre, isso conta como despesa e aumenta a dívida, enquanto os R$ 100 milhões não contam como receita. Isso nas contas que eles fazem para nós. Nas que fazem para eles, com o nosso dinheiro, sustentam a indústria da Califórnia arrumando brigas nas montanhas do fim do mundo. Quando a siderurgia deles vai mal, taxam o nosso aço. Eles não nos acham analfabetos. Estão convencidos de que somos bobos (GASPARI, 2002). Em E-2, Juscelino mostra que há incompatibilidade entre a reclamação de FHC e a condescendência de seu governo em relação ao FMI, já que o governo aceita as regras contábeis impostas pela instituição, além de permitir que os EUA taxem o aço brasileiro quando a siderurgia deles vai mal. Como podemos constatar em E-1 e E-2, Elio Gaspari constrói uma imagem positiva de Juscelino Kubitschek e uma imagem negativa de Fernando Henrique Cardoso. Esse procedimento é fundamental para a construção da persuasão em seu artigo de opinião. Afinal, o conteúdo temático do artigo de opinião é voltado para a crítica do governo FHC, dessa forma, construir uma imagem desfavorável de Fernando Henrique Cardoso e confirmar uma imagem favorável de Juscelino Kubitschek constitui fator determinante para obter a adesão do auditório. Assim, o prestígio, os atos de Juscelino Kubitschek, isto é, o argumento de autoridade, é um importante meio para validar as críticas à postura do governo FHC em relação ao FMI.
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Considerações finais A análise realizada neste artigo mostra que as imagens das personagens mobilizadas importam mais do que a imagem do próprio orador. Assim, Elio Gaspari constrói, por meio da figura retórica denominada alusão, uma imagem positiva de Juscelino Kubitschek, a de experiente, e, através do argumento de incompatibilidade, uma imagem negativa de Fernando Henrique Cardoso, a de incompetente. Portanto, uma vez que Elio Gaspari constrói, sobretudo, imagens de outras personagens em seu artigo de opinião, o ethos parece ser a prova responsável por gerenciar o projeto argumentativo/persuasivo do orador. Referências ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. EGGS, E. Ethos aristotélico, convicção e pragmática moderna. In: AMOSSY, R (org). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2013. FERREIRA, L. A. Leitura e persuasão: princípios de análise retórica. São Paulo: Contexto, 2010. GASPARI, E. Mensagem de [email protected] para FFHH. Folha de São Paulo, São Paulo, 13 mar. 2002. Primeiro Caderno, p. 8. MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. MEYER, M. A retórica. São Paulo: Ática, 2007. PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2005. REBOUL, O. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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QUANDO O DISCURSO SOBRE O ARTÍSTICO É O OBJETO ARTÍSTICO Guilherme Radi Dias (UEM) Renata Marcelle Lara (UEM) Introdução Observamos, no contexto da arte contemporânea, produções que buscam se reinventar, dentro de propostas que colocam em relação práticas artísticas e sentidos de arte na contemporaneidade. Partindo disso, trazemos o filme francês Les Guerriers de la Beauté (Os Guerreiros da Beleza)1, produção em longa metragem lançada em 2002 e apresentada em mostras de cinema e exposições de arte, conforme consta em sites de museus2 como, por exemplo, no Museu Berardo (Lisboa) e na Haus der Kunst (Munique). Esta obra cinematográfica, que associa as poéticas do cineasta contemporâneo Pierre Coulibeuf e do artista multidisciplinar Jan Fabre, oportuniza, em um trabalho analítico-discursivo, observar os modos pelos quais a produção fílmica fala de arte, ao mesmo tempo em que se constitui como obra de arte. Esta confluência do ser arte e do dizer sobre a arte, neste filme, nos instiga a observar Os Guerreiros da Beleza como materialização do discurso sobre o artístico e também do discurso artístico, tendo em vista sua dupla configuração e funcionamento: como filme e como obra/objeto de arte. Orientando-nos pelos fundamentos e procedimentos da Análise de Discurso francesa, de Michel Pêcheux, procuramos compreender no e pelo discurso fílmico-artístico (filme sobre arte) e artístico-fílmico (objeto/obra de arte fílmica) os sentidos acerca da arte e de práticas no campo artístico, analisando os discursos sobre arte e de arte em funcionamento material. Considerando essa especificidade constitutiva do material de análise, elaboramos um recorte teórico a 1 2
Adotaremos, neste texto, a versão traduzida do título original. Cf. MUSEU BERARDO. Pierre Coulibeuf: dentro do labirinto. Disponível em: . Acesso em: 6 set. 2014. Cf. HAUS DER KUNST. Open End: Goetz Collection at Haus der Kunst. Disponível em: . Acesso em: 6 set. 2014.
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partir das conceituações apresentadas nos estudos de Nádia Neckel, na compreensão da especificidade do discurso artístico, considerando os sentidos produzidos na textualização do audiovisual. Sob esta perspectiva discursiva, interrogamos que efeitos de sentido acerca da arte e das práticas artísticas contemporâneas advêm do funcionamento fílmico como objeto artístico que discursiviza sobre arte e a arte. No desenvolvimento de nosso percurso de análise, levantamos as condições de produção que permitem visibilizar, no filme, uma interpretação discursiva sobre a arte, e observamos, também, os entremeios nos modos do fazer artístico na constituição fílmica, seguindo, enfim, com a visualização de como o(s) sentido(s) do belo na arte se apresentam no discurso fílmico. Estas etapas permitiram organizar nosso corpus analítico na forma de Sequências Discursivas, em que mostramos, resultando do trabalho analítico-discursivo desenvolvido até o momento, a metamorfose, a (des)continuidade do objeto artístico, a oposição homem/animal e a presença do nu (no) artístico, que apontaram para o funcionamento de sentidos de resistência a discursos estabilizados no campo da arte. Conhecendo o material de análise O filme Os Guerreiros da Beleza, segundo Small (2012), foi realizado sob direção de Pierre Coulibeuf, em parceria com Jan Fabre e alguns dos principais colaboradores deste, como Els Deceukelier3 e William Forsythe4. Pierre Coulibeuf é cineasta e artista visual, nascido em 1949, em Elbeuf, França, e reside, atualmente, em Paris5. Segundo Almeida (2009), Coulibeuf não se enquadra em uma classificação definida. Seu trabalho é caracterizado por uma estrutura narrativa que não obedece a formas convencionais, pois se articula em sequências alteradas, 3
Atriz que trabalhou em peças teatrais de Jan Fabre, como Elle était et est elle est, même e o monólogo Etant donnés, escrito por ele especialmente para a atriz, em 1975. Cf. TROUBLEYN - JAN FABRE. She was and she is, even etant donnes. Disponível em: . Acesso em: 4 jul. 2014. 4 Dançarino e coreógrafo novaiorquino que já realizou diversos projetos em conjunto com outros artistas. Fundador da Companhia Forsythe, que produz trabalhos com performance, instalação e filme. Cf. FORSYTHE COMPANY. Disponível em: . Acesso em: 29 jun. 2014. 5 Cf. CENTRE NACIONAL DU CINÉMA ET DE L’IMAGE ANIMÉE. A look at Pierre Coulibeuf. Disponível em: . Acesso em: 5 nov. 2013.
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repetidas, justapostas ou independentes. Coulibeuf (2009) declara compreender o cinema como experiência criadora que se vale de um jogo com as criações artísticas de outros expoentes do circuito artístico contemporâneo. A utilização das diversas formas de criação contemporânea (visual, coreográfica, literária, musical e arquitetônica) como material do trabalho plástico e fílmico opera, na construção material do filme, novas criações. O cineasta não concebe o processo cinematográfico como reprodução da realidade, mas voltado à re-criação, assim como um entremear (do/no) artístico, que funciona, discursivamente, como a presença de uma arte em outra. Seu projeto de cinema não é, portanto, de representação, e seus filmes visam a produzir uma realidade audiovisual, individual. Jan Fabre, segundo Catarino (2011), nasceu em 1958, na Antuérpia, Bélgica, e desenvolve trabalhos nos campos da escultura, desenho, body art6 e performance, envolvendo-se também com trabalho cenográfico, coreográfico, cênico e ensaístico. O artista trabalha com seus atores na companhia de teatro Troubleyn7, conforme Boato (2013), utilizando conhecimentos adquiridos em suas primeiras performances para o preparo dos atores. Neste processo, que envolve também a elaboração de cenas e ações, o artista busca integrar a performance e a instalação. Fabre considera o artista, como aponta Catarino (2011), possuidor de capacidade visionária para unir realidades distintas, como um guia da humanidade. Assim, uma das figuras de destaque no discurso plástico de Fabre, o guerreiro, conforme Catarino (2011), está relacionada com a combatividade do artista no contexto social, como defensor e guia espiritual da humanidade. Também está associada à expressão “guerreiro da beleza”, com a qual o artista faz referência a si mesmo, que representa um caminho de liberdade, fora do tempo histórico, (supostamente) alheio à ideologia e à moral. O artista trabalha também com o conceito de metamorfose, que, para Fabre, liga-se “à presença eminente e
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Vertente da arte contemporânea que propõe a apropriação do corpo como suporte e meio de expressão nos trabalhos artísticos, em que geralmente se realizam ações relacionadas à violência, à dor ou ao esforço físico. Cf. ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL. Body art. Disponível em: . 25 jun. 2014. Companhia de teatro fundada por Jan Fabre, em 1986, localizada na Antuérpia, onde o artista e diretor desenvolve suas propostas e realiza pesquisas. A companhia atua também em âmbito internacional. Cf. INSTITUTE FOR THE PERFORMING ARTS. Troubleyn/Jan Fabre. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2014.
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constante da morte, encarada como possibilidade de transubstanciação rumo a um estado de pureza” (CATARINO, 2011, p. 39). Observa-se, no trabalho de Fabre, uma forte relação com o animal e, em especial, com os insetos, que o acompanha desde seus primeiros trabalhos, conforme Catarino (2011), influenciado pelo convívio com o avô, um entomologista francês. Os insetos assumem um caráter metamórfico e se constituem, para Fabre, “metáforas vivas de transmutação e ressureição, dados os seus processos biológicos, constituindo-se por isso como modelos a seguir pela humanidade” (CATARINO, 2011, p. 41). Boato (2013) afirma que Fabre estuda e observa os animais desde a infância, por influência da família, registrando-os em desenhos, muitas vezes misturando a forma do homem com a do animal. Descrição do material de análise e condições de produção Coulibeuf define Os Guerreiros da Beleza como adaptação, transformação do imaginário, ou seja, dos elementos característicos da poética de Jan Fabre ou, como enfatiza, “uma passagem de uma forma para a outra” (COULIBEUF, 2013, online, tradução nossa). A ação se desenvolve no interior de um espaço com várias passagens, à semelhança de um labirinto, e os textos verbais do filme são estruturados em monólogos, declamados de forma fragmentada ao longo do filme. Neste “filmelabirinto” (SMALL, 2012, p. 38, grifo do autor), temos a atriz Els Deceukelier, vestida como noiva, atuando como uma espécie de Ariadne8, conduzindo o espectador pelas imagens que Coulibeuf apresenta para traduzir, à sua maneira, os temas de Jan Fabre. Os sentidos referentes ao labirinto serão explorados no percurso de análise, como apresentaremos mais adiante. O próprio dispositivo fílmico é, conforme Aumont (2004), traço significante, e se refere ao modo como o filme é apresentado em sua materialidade própria, bem como as circunstâncias de sua projeção, em sua inserção em uma visada ideológica, dependente da categoria de sujeito, e que contribui para confirmá-la. Nesse sentido, o
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Segundo a mitologia grega, Ariadne foi uma princesa cretense, que deixou pistas para guiar o herói Teseu pelo labirinto do Minotauro, e depois foi abandonada por aquele, na ilha de Naxos.
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cinema pode então ser compreendido como “uma máquina simbólica de produzir pontos de vista” (AUMONT, 2004, p.77). Consideramos, na perspectiva do discurso, a existência de um movimento interpretativo, um gesto de interpretação do cineasta, que nos provoca, em um jogo com a não-linearidade, por meio da produção fílmica, ao mesmo tempo em que trabalha sobre “como ir de um universo até o outro, de um universo plástico ou literário até um universo fílmico [...] completamente original em sua própria forma e desse modo autônomo, tendo sua própria necessidade mas relacionado com o universo que o inspira por múltiplas ressonâncias” (COULIBEUF, 2009, online). Em relação à Análise de Discurso, o audiovisual, pontua Neckel (2010), envolve a imbricação de diferentes materialidades – como temos, no caso de nosso material de análise, materialidades correspondentes ao cinema, ao teatro e à performance, e que se inscrevem no filme – , e a materialidade constitutiva do audiovisual desfaz a dicotomia verbal/não verbal. Percurso de análise Neckel (2010) afirma que as produções contemporâneas são afetadas pelas condições de produção da própria contemporaneidade, e os dizeres artísticos contemporâneos estão envolvidos em um processo de opacidade que está em constante deslocamento, em razão de sua própria constitutividade. Aproximando-nos da especificidade do nosso material de análise, a produção audiovisual contemporânea, diz ainda a autora, se sustenta na imbricação material, como um tipo de dizer ancorado na relação entre as materialidades significantes. Considerando as condições de produção da materialidade fílmica, construímos, ao longo da pesquisa, o nosso corpus analítico-discursivo com recortes verbais e imagéticos do filme Os Guerreiros da beleza, sistematizados na forma de Sequências Discursivas (SD)9. Trabalhamos com a descrição verbal das cenas que fazem parte dos recortes, para proceder então à interpretação analítico-discursiva, identificando os efeitos de sentido possíveis no que o filme diz. 9
Por questões de direitos de uso de imagem, não apresentamos no trabalho os frames do filme utilizados em nosso percurso analítico, atendo-nos, em nossa análise, à descrição das cenas que compõem as SD.
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Consideramos, no processo de análise, um gesto de interpretação afetado pela materialidade fílmica. Trata-se de “gesto como ato simbólico”, tal como compreende Pêcheux (1997, p. 78). Tratando da especificidade material da arte, esses gestos passam pelo que Neckel (2010) denomina como projeções sensíveis, que são visibilizadas nos gestos de leitura dos sujeitos do processo discursivo na arte. Tais gestos se dão, como pontua a pesquisadora, considerando a produção artística em sua determinação sóciohistórica. No processo de análise, como aponta Neckel (2010), os gestos de interpretação partem tanto do analista como do artista. Assim, estudamos o filme como instância de produção de sentidos, visualizando, pelo gesto analítico, como se caracterizam os sentidos relacionados com dizeres sobre o artístico, funcionando na produção fílmica. Nas cenas utilizadas na SD1, trabalhamos com a ideia da metamorfose, que é geralmente evidenciada por Fabre em suas propostas, e que também permeia a ação das personagens no filme. Nas cenas desta sequência discursiva, um homem cai de uma abertura na parte superior da parede, sobre uma mesa de metal, e, na sequência, dois outros personagens entram em cena para cobrir o corpo do performador com uma substância vermelha. Nesse contexto, a imagem da personagem descendo da abertura na parede, como um recém-nascido, marca um sentido relacionado com a vida; temos também o corpo estático do performador sobre a mesa apontando para um sentido de corpo sem vida, impossibilitado de agir, como em uma mesa de cirurgia ou de um necrotério, que é submetido a um ritual – ao ser coberto de vermelho. Este corpo coberto, saindo da mesa e movendo-se sobre o chão, tal como um ser recém-nascido coberto de placenta, provocando um efeito de sentido relacionado ao nascimento, retoma o sentido de vida. A metamorfose que estrutura o dizer na materialidade fílmica está relacionada com o trabalho dos artistas, e indica um discurso da transição entre as artes, em processos nos quais uma produção artística se permite influenciar por características e elementos oriundos de outra(s) forma(s) de produção. Surgem formas “mestiças”, presentes na arte contemporânea, que se apresenta, conforme Cattani (2007 apud NECKEL, 2010), como campo de experimentações, levando-nos a nos perder entre a multiplicidade de sentidos, em que “todos os cruzamentos entre passado e presente,
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manualidade e tecnologia, materiais, suportes e formas diversos se tornam possíveis.” (CATTANI, 2007, p. 25 apud NECKEL, 2010, p.69). Na SD2, tratando da (des)continuidade no objeto artístico, analisamos cenas com referências ao percurso da ação fílmica. Destacamos a personagem usando vestido de noiva, que, no imaginário social, é o traje cerimonial de bodas, caracterizando a mulher a ser desposada e, por conseguinte, relacionada à figura mítica de Ariadne, apresentada pelo cineasta no filme. A personagem caminha como se estivesse desorientada, perdida no cenário labiríntico, remetendo, em seu monólogo, a outras personagens relacionadas com o labirinto do rei Minos, como Ícaro e o Minotauro, como indica o recorte verbal que apresentamos: Eu tenho que procurar por penas, as menores primeiro, e arrumá-las próximas uma da outra, [...], e eu preciso de cera também, [...], se você for muito baixo, a água vai fazer suas asas ficarem pesadas, se você for muito alto você vai queimar! [...] eu, criança envergonhada de um humano e de um animal, neste robusto labirinto, [...] (tradução nossa)
Ainda nesta SD, trazemos cenas em que a noiva aparece correndo por uma das passagens do cenário labiríntico, perseguida por um falcão, e indo em direção à câmera. Esta ação apresenta, ao longo do filme, algumas variantes. Em uma das cenas, a noiva cai no chão, no meio da corrida, e o falcão aparece voando em direção a ela. Em outra, a noiva cai no chão e, em seguida, o falcão a sobrevoa. Em cena posterior a esta, o falcão vem voando de longe, mas desvia para um dos lados, antes de chegar até a noiva. Na materialidade fílmica identifica-se, na montagem destes planos, efeitos sintáticos de disjunção e de alternância, pela sequência não-linear de planos, que se relacionam com a ideia de descontinuidade cênica, observada no filme, com caminhos interrompidos, interditados, mas também retomados, retraçados de forma inconsciente. Inscreve-se, metaforicamente, a figura humana em sua contradição constitutiva, como sujeito livre e determinado. O labirinto, conceito explorado em outros trabalhos artísticos de Coulibeuf, funciona, em termos discursivos, como a impossibilidade de definir ou encontrar formas de escapar, ou mesmo de saber se um caminho já foi ou está sendo percorrido novamente por engano. Existe um sentido de eterno retorno, sufocamento, aprisionamento, angústia, busca incessante por uma saída.
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Tomando o tratamento dos animais como elemento poético por Jan Fabre, enquanto condição de produção, apresentamos, na SD3, algumas marcas sobre a configuração de sentidos, no filme, a partir da oposição homem/animal. As cenas mostram, em meio aos atores e performadores em ação, animais como o falcão, a coruja, a cobra e a iguana. Há uma significação do animal que presentifica o humano, assim como há, também, um apagamento do humano conforme aparecem as características de animal, na expressão corporal dos atores, em diversos momentos do filme, manifestando uma oposição da civilidade, relacionada ao humano, com a selvageria, relacionada ao animal. O imbricamento homem-animal aproxima racionalidade
e
irracionalidade
em
relações
metafóricas,
fazendo
advir,
discursivamente, a complexidade humana entre o sensível, o instintivo e o racional. O discurso fílmico apresenta uma indeterminação do humano, não havendo uma fixidez da posição-sujeito da qual ele (se) diz. Nos gestos performáticos dos atores, se desencadeiam deslocamentos de sentidos ligados ao comportamento animal, que possibilitam a estes significar de outra forma. Assim, o discurso fílmico traz a noção de que a arte não se restringe a práticas humanas, considerando que a arte, como pontuam Deleuze e Guattari (1997), não é uma prerrogativa humana, e que o homem não deixa de ser homem para se tornar definitivamente animal, mas se inscreve em aproximações, transitando entre um e outro. Este contraponto homem/animal, que observamos no filme, tem suas marcas nas cenas e no texto verbal do filme, na parte do monólogo da personagem da noiva, que diz [...] Eu não sou A, nem B, nem um homem, nem um animal, porque eu sei muito, eu sei muito sobre os dois lados, e aqueles dois – eles nada sabem. (tradução nossa)
Acentuamos, ainda, a presença dos insetos, que participam na construção da proposta artística e que, nas cenas do filme, aparecem saindo da boca dos atores e andando pelos corpos. Nessa combinação de elementos, em que joga com efeitos de sentido de abjeção, repulsa, provocados pelos insetos, a obra também faz com que estejam em funcionamento, no discurso fílmico, sentidos acerca do belo. Aparece, ao pensarmos na contemporaneidade, uma “dissolução da oposição feio-belo” (ECO, 2007, p.431). O feio, conforme Eco (2007), está relacionado com aquilo que provoca
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repugnância. Assim, os artistas não trazem uma beleza normatizada, institucionalizada, legimitizada socialmente, mas buscam, dentro das condições de produção, uma correspondência com sentidos de beleza que não estão somente no que é considerado agradável, mas também naquilo que culturalmente se considera como angustiante. O filme mobiliza possíveis sentidos de beleza, produzidos a partir de sentidos associados ao feio, que funcionam ao mesmo tempo. Identificamos também, conforme observamos na SD4, no processo de análise, o nu como dizer (no) artístico, que aparece nesta produção cinematográfica. Como observamos a partir desta sequência discursiva, o artístico, conforme trabalhado no filme, permite que o nu apareça, pois este se inscreve em uma forma de dizer – o dizer artístico – que flexibiliza a visibilidade do corpo, uma vez que, no imaginário social, o nu é, de certa forma, negado, ocultado, proibido. A sociedade impõe dizeres impeditivos e interditivos para a exibição do corpo, e este irrompe no dizer do artista, que, por sua vez, enuncia a nudez nas performances do filme. Os sentidos mobilizados pela presença do corpo no filme se relacionam ao significado que esse corpo assume nas propostas artísticas contemporâneas, em que, tornando-se ele próprio meio artístico, “passa da condição de objeto da arte para a de sujeito ativo e de suporte da atividade artística” (MICHAUD, 2011, p.558). Interpretação da análise Funciona, no filme, a todo o momento, um jogo de extremos, que relacionamos ao jogo do mesmo e do diferente, sinalizado pelas cenas em que as ações das personagens produzem efeitos de repetição, apresentando, ao mesmo tempo, elementos do acaso, que aproximam a ação fílmica da ação performática que caracteriza os trabalhos de Jan Fabre. Nos deslizamentos que se fazem presentes no filme, no discurso que se configura nos entremeios das práticas artísticas inscritas no filme, observamos, pela análise discursiva, que a arte, nas suas formas de fazer contemporâneas, permite que se digam, no objeto artístico, sentidos marginais, que significam de fora de campos estabilizados da construção da obra artística. Estão em movimento, no discurso fílmico, os sentidos do instável, do imprevisível, que também são mobilizados por meio de posições-sujeito cambiantes.
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Conforme trouxemos, em nossa análise, é patente no discurso fílmico o incômodo resistindo ao constante, ao estável. A análise nos permite observar, discursivamente, conforme Neckel (2010) acentua, a operação dos sentidos “na incompletude, na abertura, na possibilidade de sentidos outros” (NECKEL, 2010, p.38). Considerações parciais Tomando o que foi desenvolvido até este momento da análise, observamos processos de significação da arte no objeto fílmico, pela relação entre as linguagens e formas de fazer artísticos. Na análise discursiva de Os Guerreiros da beleza, os sentidos mobilizados no e pelo fílmico questionam certos discursos acerca das práticas artísticas que são determinados historicamente. Este filme, enquanto obra de arte e enquanto objeto discursivo, mobilizou um trabalho analítico que se sustenta na existência de outras possibilidades interpretativas, fundamentado nos deslizamentos que são instaurados pela polissemia que, como destacado por Neckel (2010), caracteriza a materialidade artística significante. Retomando os objetivos expostos anteriormente que direcionaram nossa análise, encontramos marcas que apontam, no filme, a possibilidade de vínculos entre os diferentes modos de fazer artístico, e como a imbricação entre as formas de fazer artístico ressignificam o objeto fílmico. Existem, no discurso fílmico, sentidos do belo que, significando também a partir de elementos simbólicos relacionados ao feio, são marcados pela contradição, que é constitutiva da materialidade significante do filme. O filme, inscrito em condições de produção específicas referentes à arte, busca romper, pela produção de sentidos outros, com paradigmas existentes na prática artística e que são reproduzidos por um discurso sobre o artístico. A possibilidade do sentido outro, que está na incompletude como abertura para sentidos outros, e que é, conforme Orlandi (2012), o lugar do possível, do irrealizado, reverbera na possibilidade de sentido outro que é característico da arte contemporânea. Observamos, ao mesmo tempo, que “o sujeito e os sentidos, embora pareçam estar sempre lá, também são produzidos, e isto é efeito da ideologia em sua materialidade” (ORLANDI, 2012, p.85). Por isso, o artista contemporâneo, sujeito do processo de significação, é sujeito como resultado da interpelação ideológica do indivíduo.
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OS PROGNÓSTICOS PARA O ALÇAMENTO DE CONSTITUINTES ARGUMENTAIS DA ENCAIXADA À POSIÇÃO DE SUJEITO DA MATRIZ
Gustavo da Silva Andrade (Unesp/FAPERP Processo: 079/2014)
Considerações Iniciais Na literatura linguística, as construções de Alçamento configuram-se pela codificação de um dos argumentos do predicado da oração encaixada, seu sujeito ou seu objeto direto, nos limites do predicado da oração matriz, como seu sujeito ou seu objeto direto. Neste artigo, com base nos critérios tipológicos (NOONAN, 2007 [1985]), objetivo confrontar os critérios que identificam o fenômeno translinguisticamente com as ocorrências de dois tipos específicos de Alçamento no português brasileiro (PB): (i) o Alçamento de sujeito a sujeito (ASS) e (ii) o Alçamento de objeto a sujeito (AOS). Em (1) e (2), exemplifico esses dois tipos de Alçamento de interesse neste artigo.1 (1)
Alçamento de Sujeito a Sujeito (ASS) a. o cara num parece [tê(r) setenta anos de idade] (AI-005; L.178) (= o cara ter setenta anos) b. atrapalha muito ... o namoro é difícil [pra andá(r) pra frente né?] (AC-046; L.410-414) (= o namoro andar pra frente)
(2)
Alçamento de Objeto a Sujeito (AOS) a. eu dobro toalha tam(b)ém ... toalha é compliCAdo pa caramba pa dobrá(r) (AC-016; L. 360) (= eu dobrar toalha) b. ele saiu [da prisão] ele:: graças a Deus ... o serviço é difícil [arranjá(r)] mas conseguiu um servicinho lá (AC-071; L. 135) (= ele arranjar o serviço)
Em (1a), o sintagma nominal (SN) o cara, argumento semântico do predicado encaixado, recebe marca de concordância, i.e., adquire relação gramatical com o predicado matriz, o que o faz concorrer à posição de sujeito. O SN, o namoro, Ao final de cada ocorrência extraída do corpus, identifico, respectivamente: o tipo de amostra (AC, amostra censo, ou AI, amostra de interação), o número do inquérito e a linha de onde o dado foi extraído.
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argumento do predicado encaixado, também desenvolve relação gramatical com o predicado matriz. Nos exemplos em (2), os argumentos alçados do predicado encaixado, toalha e o serviço, respectivamente, objetos diretos em (2a) e em (2b), concorrem à posição de sujeito dos predicados matrizes é complicado e é difícil, respectivamente. O Alçamento encontra ambiente propicio para ocorrência nas orações encaixadas, em posição de sujeito do predicado matriz, por se tratarem de construções impessoais. Por essa razão, a descrição desse tipo de construção gramatical vem contribuir com diversos estudos sobre as orações encaixadas no PB, em específico, as em posição de sujeito do predicado matriz (GONÇALVES, 2011, 2012; GONÇALVES; SOUSA, 2013; FORTILLI; GONÇALVES, 2013; GONÇALVES; ANDRADE, 2013). Partirei de dois importantes trabalhos de natureza tipológica, afim de identificar, os critérios que possibilitam a identificação e definição do fenômeno. O primeiro é o de Noonan (2007 [1985]), sobre a complementação oracional; e o segundo é o trabalho de Serdol’boskaya (2006), específico sobre Alçamento em um conjunto de 26 línguas. Ao tomarmos como ponto de partida esses trabalhos, pretendo comprovar quais são os critérios de base tipológica que melhor caracterizam o fenômeno no PB. Para tanto, investigarei os parâmetros de análise expostos no quadro 1, a fim de atestar quais são necessários e suficientes para a descrição do Alçamento a Sujeito. Nível de análise Morfossintático
Semântico Pragmático
Parâmetro de análise (a) [+/- concordância] do SN alçado com o predicado matriz (b) [+/- concordância] do SN alçado com predicado encaixado (c) presença de pronome cópia na oração encaixada (d) tipo de conector entre matriz e encaixada (que, de, para ou zero) (e) formato da oração encaixada (finita ou não finita) (a) tipo semântico do predicado matriz (epistêmico ou avaliativo) (b) referencialidade do SN alçado [+/- definido; +/- genérico] (c) animacidade do SN alçado [+/- animado; +/- humano] (a) topicalidade (tópico discursivo) (b) status informacional do SN alçado (novo, dado, inferível) Quadro 1. Parâmetros de análise de construções de Alçamento.
Em decorrência de minha opção teórica, empreenderei a investigação do Alçamento no PB em córpus empírico. Para tanto, recorrei a amostras de fala do Banco de Dados IBORUNA, um banco de dados de médio porte (disponível em ), com pouco mais de um milhão de palavras e que
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registra a variedade do português falado no interior paulista, por meio de uma amostra do censo linguístico de parte da região noroeste do estado de SP e de uma amostra de interação, gravada secretamente (GONÇALVES, 2007) em contextos de interação social livres, sem qualquer controle de variantes sociais. Explicitados, nesta parte introdutória, os objetivos do trabalho e seu aparato metodológico, este trabalho estrutura-se em duas seções principais: na seção (1.), apresentamos uma caracterização geral do Alçamento; na seção (2.), mostro como o fenômeno se manifesta no PB, a partir de ocorrências no córpus, com especial interesse para os casos de ASS e AOS; à guisa de conclusão, apresento as considerações finais, que apontam para uma necessidade de continuidade de investigação do tema, em busca de uma definição mais precisa para o fenômeno, consistente com uma abordagem funcionalista.
1. Caracterização geral do fenômeno Noonan (2007 [1985]) define o Alçamento como base em apenas propriedades morfossintáticas. Segundo o autor, o Alçamento é um […] método através do qual argumentos podem ser removidos de suas predicações, resultando em estrutura de complementação de tipo não sentencial [non-s-like]. Esse método envolve a colocação de um argumento nocionalmente parte da proposição complemento (tipicamente o sujeito) em uma posição com relação gramatical (por exemplo, de sujeito ou de objeto direto) com o PTC [predicado que toma complemento]. Esse movimento de um argumento de uma sentença de nível mais baixo para uma de nível mais alto é chamado alçamento. (NOONAN, 2007 [1985], p.79).2
Dessa definição de Noonan (2007 [1985]), é possível extrair alguns aspectos relevantes para a caracterização do Alçamento. Primeiramente, o constituinte alçado é semanticamente parte de uma oração completiva, i.e., é um constituinte argumental do Tradução livre do original: “[…] method whereby arguments may be removed from their predications resulting in a non-s-like complement type. This method involves the placement of an argument notionally part of the complement proposition (typically the subject) in a slot having a grammatical relation (eg subject or direct object) to the CTP [complement taking predicates]. This movement of an argument from a lower to a higher sentence is called raising.” (NOONAN, 2007 [1985], p.79).
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predicado encaixado, e, não, do predicado matriz. Segundo, o Alçamento é um fenômeno que afeta, tipicamente (mas, não somente) o sujeito da oração encaixada, que, ao ser alçado, desenvolverá relações gramaticais com o predicado matriz, i.e., será seu sujeito ou seu objeto. Em terceiro lugar, após o Alçamento, a oração complemento assume a forma reduzida (infinitiva), dessentencializando-se. Algumas implicações decorrentes desses aspectos relevantes da definição de Alçamento podem ser identificadas. Segundo García Velasco (2013), a primeira delas é que o Alçamento seria uma discrepância entre Sintaxe e Semântica: as relações semânticas mantêm-se, porém suas relações sintáticas são alteradas, o que levaria a um desalinhamento entre funções de nível representacional (semântica) e funções de nível morfossintático. Uma segunda implicação refere-se aos ajustes morfossintáticos decorrentes do Alçamento, quais sejam: relação de concordância e atribuição de caso morfológico (nas línguas que o requerem) envolvendo o constituinte alçado e o predicado matriz, e a expressão infinitiva da oração encaixada. Por fim, uma terceira implicação envolve o reconhecimento de construções variantes com e sem Alçamento: excluem-se do fenômeno casos em que não haja a contraparte não alçada do par, como ocorre, em PB, construções com o verbo acreditar, como mostrado no contraste em (3). (3)
Reconhecimento de variantes com e sem Alçamento (ASO) a. João acredita que [Maria está grávida] a’. ? João acredita Maria [estar grávida] / * João a acredita [estar grávida].
Portanto, acreditar não é predicado de Alçamento. Deve ter ficado claro até aqui que os tipos de Alçamento possíveis nas línguas naturais decorrem da relação entre a função de S e O do constituinte no interior da oração encaixada e a posição em que ele ocorre na oração matriz. É dessa relação que, na literatura, são reconhecidos os quatro tipos principais de Alçamento: o Alçamento de Sujeito a Sujeito (ASS); o Alçamento de Objeto a Sujeito (AOS); o Alçamento de Objeto a Objeto (AOO) e o Alçamento de Sujeito a Objeto (ASO). Intralinguisticamente, nem todos os tipos de Alçamento são produtivos ou mesmo atestados, como é o caso de AOO para o inglês (NOONAN, 2007, p.81). Complementarmente ao trabalho de Noonan, Serdobol’skaya (2008) aponta que, nas línguas naturais, não somente os argumentos Sujeito e Objeto estão sujeitos ao
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fenômeno de Alçamento, também objetos indiretos e outros constituintes não argumentais. Observe-se, por último, que, apesar de o trabalho tipológico de Noonan (2007) ter um forte apelo funcionalista na descrição geral da subordinação, no tocante ao Alçamento, ele não destaca propriedades de ordem semântica e pragmática intervenientes no fenômeno. Não diferentemente do princípio de saliência cognitiva de Langacker (1995), Givón (2001a, p.13) aponta que a topicalidade, um dos subsistemas gramaticais orientados para o discurso, explica a codificação de SN como sujeito (tópico primário) ou como objeto (tópico secundário) e está relacionada com dois aspectos da coerência referencial: a acessibilidade do referente e sua importância temática. São esses dois mecanismos que restringem as escolhas gramaticais usadas na codificação da estrutura morfossintática, o que reflete o caráter pragmático e discursivo tanto de simples casos de topicalização como também de Alçamento. Para Givón (2001b, p.272), a ocorrência do Alçamento está relacionada à presença de verbo de atividade mental com argumento proposicional. Dentro do argumento proposicional, um SN é dado como tópico, normalmente, o sujeito, e, pela sua importância, é alçado da posição de argumento tópico da subordinada para argumento (sujeito ou objeto) da principal.
2. Tipos de alçamento no PB e o alçamento a sujeito Dessas três implicações apontadas por García Velasco (2013), a partir de uma definição mais estrita de alçamento, a redução da oração encaixada a forma infinitiva é de interesse particular para a caracterização do fenômeno no PB. Se, de fato, esse ajuste é postulado como necessário, três situações se configurariam para o PB. Primeiramente, a redução da oração encaixada à forma infinitiva é opcional e, portanto, o fenômeno é compatível também com oração encaixada na forma finita, como mostram os exemplos em (4). (4)
Redução da oração encaixada (opcional em PB?) a. as crianças parecem [estar cansadas] / as crianças parecem cansadas b. as crianças parecem [que estão cansadas]
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Se oração encaixada permanece na forma finita, como em (4a), não estamos diante de um caso propriamente de alçamento, mas de simples topicalização. Se (4b) é de fato uma construção de alçamento, a dessentencialização da oração encaixada não pode ser uma propriedade definitória do fenômeno. Tornaremos a essa questão mais adiante. Colocada essa questão à parte, ocorrem no córpus investigado dois dos principais tipos de alçamento: ASS, mostrado de (5 a), AOS, mostrado em (6a), com a explicitação, em cada caso, do que constitui a contraparte sem alçamento ((5b) e (6b)). (5)
(6)
a. b. c.
ASS a informante parece [pensar em algo mais para dizer] (AC-004; L. 63) Parece que a informante pensa em algo mais para dizer A informante parece [que pensa em algo mais para dizer]
AOS a. O serviço é difícil [arrajá(r)] b. É difícil arranjá(r) o serviço c. ?? O serviço é difícil [que se arranje].
Um terceiro tipo de alçamento atestado no PB, não encontrado no córpus, é ASO, exemplificado por (7) e (8) (cf. SOUSA E SILVA; KOCH, 2009, p.110). (7)
ASO a. O professor mandou os alunos [entregarem os trabalhos datilografados] b. O professor mandou [que os alunos entregassem os trabalhos datilografados] c. O professor mandou-os [entregar os trabalhos datilografados]
(8)
a. As provas do processo confirmaram (o réu) [ser (o réu) um estelionatário] b. As provas do processo confirmaram [que o réu é um estelionatário] c. ?? As provas do processo confirmaram-no [ser um estelionatário].
Em (5a), observamos uma construção prototípica de alçamento instanciada por um predicado matriz de modalidade epistêmica, o verbo parecer. Trata-se de estrutura prototípica em decorrência da manutenção de todos os critérios de alçamento oferecidos por Noonan (2007), inclusive a redução da oração complemento. A reconstrução em (5c) mostra que a redução da oração encaixada, mesmo em estrutura semelhante à de
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alçamento, não é uma propriedade necessária, ao menos para esse tipo semântico de predicado matriz. Em (6a) e no seu correspondente não alçado em (6b), segue um caso de AOS, tipo favorecido por predicados avaliativos do tipo (é) fácil/difícil. Ocorre, categoricamente, para esse tipo de alçamento, a redução da oração completiva, com a diferença de que é raro (se não estranho) que a contraparte sem alçamento ocorra na forma finita, como mostra (6c). Podemos observar, em (7a) e (8a)3, construções de alçamento, relativamente à variante sem alçamento correspondente (7b) e (8b). Em (8a), há ainda posposição do sujeito semântico réu ao verbo ser da oração encaixada, algo que, segundo Sousa e Silva e Koch (2009), marcaria uma escolha estilística alternativa a As provas do processo confirmaram [o réu ser um estelionatário], confirmando, assim, tratar-se de caso de ASO, como bem mostra a pronominalização de acusativo totalmente aceitável em (7c), mas discutível em (8c). Até onde pudemos constatar, casos de AOO, em PB, não são atestados, ou são pouco produtivos, como os de ASO. Pelas análises acima oferecidas, nem todos os critérios oferecidos por Noonan (2007 [1985]) para identificar o fenômeno de alçamento se aplicam consistentemente ao PB, senão vejamos: Critério ASS AOS (i) relações argumentais (semânticas) entre o SN alçado e o predicado encaixado + + (ii) dessentencialização da oração encaixada +/+ (iii) ajuste morfossintático de concordância entre SN alçado e o predicado matriz + + (iv) ajuste morfossintático de caso do SN alçado no domínio da oração matriz Quadro 3. Critérios de alçamento (NOONAN (2007 [1985]) e tipos reconhecíveis no PB
ASO + + -
Sobre o quadro apresentado acima, cabem os seguintes esclarecimentos. O critério (ii) relaciona-se fortemente com o tipo semântico de predicado matriz: predicados de modalidade epistêmica favorecem o ASS, e a redução da encaixada é facultativa ou se trata de um tipo apenas aproximado de alçamento (o que nos leva a ficar com a primeira alternativa); predicados avaliativos ou confirmativos são mais correlacionados a AOS e ASO, e a dessentencialização parece constituir propriedade Não encontramos no córpus nenhuma ocorrência de ASO, embora esse tipo também se manifeste no PB. Assim, recorremos a exemplos de SOUSA E SILVA e KOCH (2009) para afirmar a existência desse tipo de alçamento.
3
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obrigatória. O critério (iii) deve ser relativizado porque a concordância entre Sujeito e o Verbo constitui regra variável no PB. Além disso, em quase todas as ocorrências do córpus, o argumento alçado é um SN de 3ª pessoa singular, o que restringe a verificação inequívoca da obrigatoriedade de aplicação desse critério. Por fim, o critério (iv) não se aplica a nenhum dos tipos porque o PB não manifesta marcação morfológica de casos; apenas mantém alguns resquícios casuais em formas pronominais, que, por vezes, perde mesmo essa distinção, em favor de formas de nominativo. As ocorrências em (9) e (10) ilustram os dois tipos mais frequentes de alçamento no PB. Com predicado de modalidade parecer, ASS é o tipo mais produtivo, e com predicado avaliativo do tipo fácil/difícil, menos produtivo, porque distribuído entre ASS (9g) e AOS (10a). (9)
ASS (mais produtivo no PB) a. b. c. d. e. f. g.
(10)
essa pelo menos parece que é artista (AC-147; 337) ele conta que a escritu::ra parece que tinha ficado em mãos de terce(i)ros... (AC-146; 150/151) a gente que percebe porque o pai parece que num tem noção de percebê(r) que a criança num tá bem... (AC-086; 551/552) os pais:: eles parece que têm... uma barre(i)ra com a gente que é incrível... sabe?... (AC086;523/524) o cara num parece tê(r) setenta anos de idade (AI-005;178) a gente percebe que as histórias dele realmente aconteceu [Doc.: uhum ((concordando))] mas tem uma.... que/ eu num tava perto não... ele ele que conta ele e minha mãe eles conta... pa/ parecem sê(r) verdade também... (AC-086; 147) atrapalha muito... o namoro é difícil pra andá(r) pra frente né? eu a/ eu penso assim (AC-046; 410/414) AOS (pouco produtivo)
a.
e eu dobro toalha tam(b)ém (inint.) toalha é compliCAdo pa caramba pa dobrá(r)… mui/ tem muito detalhe… tem que dobrá(r) ela no me::io depois no meio de no::vo… (AC-016; 353/360)
No quadro abaixo, atesto outras propriedades do alçamento a sujeito, no PB. Critério ASS AOS (i) Pronome cópia na oração encaixada (ii) Tipo semântico de predicado matriz Predicado de modalidade epistêmica + Predicado avaliativo +/+ (iii)Topicalidade Status informacional: informação dada ou inferível + + Referencialidade definida e específica + + (v) Animacidade do constituinte alçado Quadro 4. Outros critérios de alçamento e o ASS e AOS no PB.
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Dentro do córpus, não encontrei ocorrências de pronomes cópias na oração encaixada, o que não significa uma impossibilidade de ocorrência. Se tomarmos os exemplos em (9b) e em (10a), reproduzidos abaixo, a construção com pronome cópia é gramatical, respectivamente (9b’) e (10a'). (9)
b. b'.
a escritu::ra parece que tinha ficado em mãos de terce(i)ros... (AC-146; 150/151) a escritu::ra parece que ela tinha ficado em mãos de terce(i)ros...
(10)
a. a'.
toalha é compliCAdo pa caramba pa dobrá(r) (AC-016; 353/360) toalha é complicado pa caramba pa dobrá(r) la
No tocante ao tipo semântico do predicado matriz, com predicados de modalidade epistêmica, aqueles que indicam uma opinião do Falante ou que demonstram seu grau de certeza e/ou de comprometimento com o conteúdo veiculado pela oração encaixada, encontramos ocorrências com o predicado parecer (9a-f). Com predicados avaliativos, aqueles que expressam uma avaliação subjetiva do Falante em relação ao estado-de-coisas codificado pela oração encaixada, encontramos ocorrências com predicados do tipo fácil/difícil, tanto com construções de ASS (9g), como com construções de AOS (10a). Se voltamo-nos, agora, para o status informacional do constituinte alçado, construções de alçamento são passíveis de ocorrência com SNs que veiculam informações dada (11a) ou inferível (11b). Os SNs que veiculam informação dada são aqueles que já foram mencionados durante a interferência, como, por exemplo, o milho, em (11a); enquanto SNs que veiculam informação inferível são suposições do Falante de que o Interlocutor pode inferir o referente como uma entidade discursiva já evocada, como, por exemplo, o namoro, em (11b). No córpus, não encontramos Alçamento de SNs novos. SNs novos, aqueles que veiculam informação nova apresentada pela primeira vez durante a interação, são mais comumente relacionados à variante sem alçamento (11c). (11)
a.
Inf.: 5[milho puro] tá entã/ então vamo(s) lá então normalmente num precisa até domingo passado... domingo agora... eu:: até::... fiz como normalmente quando eu costumo fazê(r) eu sô(u) um po(u)co exagerado né? 6[eu fiz] 6[Doc.: hum] com quarenta espigas [Doc.: nossa] [Doc. e Inf.: ((risos))] quarenta espigas de milho... então num é éh ele nu/ ele:: é trabalhoso num é que é difícil ele é trabalhoso porque são várias etapas 7[Doc.: uhum ((concordando))] 7[então nor]malmente o
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b.
c.
milho é bom assim que a gente comprá(r) no dia... tá? (AC-115-TRANS-306/312) tem muito namorado namorada que não aceita isso que tem um ciúme doentio que... só aceita que qué(r) sê(r) só ELE... que qué(r) ficá(r) vinte e quatro horas por dia que tudo que faz tem que sê(r) pra ele tem muitos que tem ciúmes da família... muitos dos amigos e num é certo isso não é legal... atrapalha muito o namoro é difícil pra andá(r) pra frente né? eu a/ eu penso assim (AC046-TRANS-410/414) então tanto é que o fundo da casa... parece que começa o morro (AC-115-TRANS-248/249)
A referencialidade dos constituintes alçados relaciona-se a três propriedades: (i) definida, quando o SN apresenta itens especificadores, como, por exemplo, artigos, pronomes; (ii) indefinida, quando os itens especificadores indefinem o constituem; e (iii) genérica, o SN não conta nem com especificadores, nem com caráter de definitude. Como é possível atestar por meio de exemplo, como (9c) e (10b), constituintes genéricos também podem instanciar o alçamento. Acreditamos, com base na literatura sobre a ordem de palavras (cf. BRAGA, 1987), que não somente constituintes definidos e indefinidos podem ser alçados, mas, também, constituintes genéricos, como, por exemplo, o SN toalha, em (10b). Quanto à marcação da referencialidade do SN alçado, acreditamos que, em função da frequência, possa ser possível atestar qual o tipo mais frequente de SN alçado. A animacidade do SN alçado, diferente de outras línguas (SEDOBOL’SKAYA, 2008) parece não ser um fator definitório para o fenômeno. Em nosso trabalho, optamos por adotar esse fator, em decorrência da relevância tipológica atribuída. Para o português, tanto sujeitos humanos, quanto não humanos, quanto inanimados ocorrem na variante com Alçamento. À guisa de conclusão A descrição dos expedientes morfossintáticos, semânticos e pragmáticos das construções com Alçamento de constituintes argumentais trazem um avanço para o estudo dos comportamentos sintático, semântico e pragmático das orações encaixadas em posição de sujeito, sob perspectivas sincrônica e diacrônica. Com base em pesquisa de córpus, no PB, ocorre três tipos alçamento de constituintes: ASS, ASO e AOS. Para todos esses casos reconhecíveis nas línguas em geral, os seguintes parâmetros parecem suficientes para a identificação do fenômeno, mas não necessários na mesma medida: (i) presença de duas orações; (ii) ajuste
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morfossintático no novo domínio do constituinte alçado; (iii) perda de propriedades oracionais da oração encaixada (explicitude de sujeito, força ilocucionária, finitude, concordância etc). No PB, o alçamento a sujeito é favorecido por predicados matrizes epistêmicos e avaliativos, tipos semânticos que permitem atestar os seguintes critérios: (i) redução da encaixada (mais com avaliativos e menos com epistêmicos) e concordância do item alçado com o predicado matriz (igualmente com os dois tipos); além dessas propriedades, outra exclusiva de predicados avaliativos é a encaixada vir ou não introduzida por preposição. Quanto às propriedades semântico-discursivas, o alçamento a sujeito está mais correlacionado a SN com status informacional dado e inferível, o que revela que a topicalidade dos constituintes é fator relevante para o alçamento, uma vez que constituintes tópicos tendem a ocorrer à esquerda. Ainda relacionado ao status informacional, o alçamento incide mais frequentemente sobre SN definidos de referência genérica ou específica, mas rejeita SN de referência indefinida. Animacidade não parece ser fator decisivo para o alçamento, possibilitando a ocorrência do fenômeno com SN de referentes tanto inanimados quanto humanos. Diante desses resultados preliminares, atesto, então, que, para o PB, dos tipos de Alçamento verificados nas línguas naturais, o ASS é o mais produtivo, embora com poucas ocorrências na modalidade falada, razão que me leva a ter de expandir o córpus da investigação, incluindo a modalidade escrita. Atesto também a suficiência dos parâmetros morfossintáticos e semânticopragmáticos para a identificação do fenômeno, mas não para sua definição corrente, tal como a apresentada na literatura sobre o assunto, a qual, na grande maioria, privilegia mais critérios morfossintáticos do que os de natureza semântico-pragmática, fato que nos instiga a prosseguir com a investigação em busca de uma definição mais precisa. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRAGA, M. L. Ordem de palavras, status informacional e caráter definido do SN. In: XV Seminário do GEL, 1987, Campinas. Anais…, 1987, p. 7-18. DIK, S. C. Raising in functional grammar. Lingua, n. 47, 1979, p.119-140.
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O PAPEL DAS RELAÇÕES RETÓRICAS NA GESTÃO DAS RELAÇÕES DE FACES1 Gustavo Ximenes Cunha (UNIFAL-MG) Introdução O objetivo deste trabalho é evidenciar que as relações retóricas exercem papel importante na forma como os candidatos a cargos políticos se apresentam ao eleitor em debates eleitorais, construindo uma determinada imagem (face) e atacando a imagem (face) do adversário. O interesse pelo estudo da forma como os interlocutores constroem imagens de si no debate eleitoral se explica pelo fato de ser esse um gênero do discurso que pode ser comparado a um combate. Isso porque, enquanto participante de um debate, cada candidato sabe, de antemão, que seu adversário vai se esforçar por assumir uma linha de conduta que lhe permita se apresentar ao eleitor como o candidato mais preparado para o cargo que pleiteiam. Por isso, ao longo do debate, cada candidato vai realizar ações verbais que permitam construir e preservar uma imagem favorável de si e que, ao mesmo tempo, desestabilizem o adversário, agredindo ou destruindo sua imagem, na tentativa de mostrar (provar) para o eleitor quem é o candidato mais preparado para o cargo em disputa. Essa luta verbal característica do gênero debate justifica a necessidade de se estudarem os mecanismos linguísticos e textuais empregados por seus participantes nesse trabalho (agressivo) de construção e destruição de imagens. Neste estudo, embora saiba que o gênero escolhido é rico para o estudo de todos esses mecanismos, estou interessado em investigar como apenas um dos planos da organização do discurso auxilia os participantes do debate a construírem imagens recíprocas. Aqui investigo o papel que desempenham nesse aspecto relevante dos debates as relações de discurso ou retóricas, conforme o quadro teórico em que me baseio e que será exposto mais adiante.
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Este trabalho apresenta os resultados parciais da pesquisa de pós-doutorado que venho desenvolvendo na UFMG, sob a supervisão da Professora Maria Beatriz Nascimento Decat.
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A decisão de estudar o papel somente das relações retóricas se deve ao fato de que o plano da organização retórica do discurso não costuma ser considerado nos estudos sobre gestão de imagens. Pelo menos, nesses estudos, as relações retóricas não recebem a mesma atenção que recebem, por exemplo, os tempos e modos verbais ou os atos de fala (BROWN; LEVINSON, 1987). E, embora no quadro do Modelo de Análise Modular do Discurso as análises da gestão de imagens sempre considerem as relações de discurso (ROULET, FILLIETTAZ, GROBET, 2001, CUNHA, 2013, 2014), o papel dessas relações nessa gestão ainda não foi objeto de um estudo sistemático no modelo modular. Mas, apesar da pouca atenção que o plano da organização retórica tem recebido nos estudos sobre gestão de imagens, parto da hipótese de que ele exerce papel de primeira importância nessa gestão em todo e qualquer gênero, mas especialmente no debate eleitoral. Afinal, estabelecendo relações retóricas, um candidato realiza diferentes manobras, buscando assumir uma linha de conduta que o auxilie a construir para si a imagem que considera a mais adequada e a atacar a imagem construída pelo adversário, mostrando-se ao eleitor como o melhor candidato. Assim, na busca por construir uma imagem ou preservá-la de ataques recebidos, um candidato pode apresentar evidências de que sua gestão é ou será a mais eficiente, listar as várias obras e ações que já realizou, dispor em sequência os acontecimentos mais marcantes de sua trajetória política, apresentar sua candidatura como a solução para vários problemas, justificar condutas irregulares, etc. Da mesma forma, na busca por atacar a face do adversário, um candidato pode contrastar a gestão do outro e a sua, apresentar evidências de que o adversário não é tão preparado quanto diz, mostrar incompatibilidades entre o que o outro afirma e o que os jornais apresentaram em momento anterior ao debate, expor as consequências negativas causadas por ação praticada na gestão do adversário, etc. Para verificar a pertinência dessa hipótese, os dois itens seguintes apresentam a fundamentação teórica deste estudo. No próximo item, defino de forma sucinta a noção de face, tal como proposta por Goffman, para esclarecer o conceito de imagem com que trabalho. Em seguida, faço uma breve descrição da Teoria da Estrutura Retórica, que é a teoria por mim adotada para estudar as relações entre informações do texto. Feita a
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exposição da fundamentação teórica, apresento os critérios para a escolha do corpus de análise, que é o debate promovido pela TV Globo, em 2012, entre os então candidatos à prefeitura de São Paulo, Fernando Haddad (PT) e José Serra (PSDB). Por fim, apresento os resultados das análises já desenvolvidas até o presente momento. 1 A noção de face Na proposta de Goffman (2011, p. 13-14), a face diz respeito ao “valor social positivo que uma pessoa efetivamente reivindica para si mesma através da linha [de conduta] que os outros pressupõem que ela assumiu durante um contato particular”. Especificando melhor o conceito, o autor define face como uma imagem que se constrói na interação: “A fachada [face] é uma imagem do eu delineada em termos de atributos sociais aprovados” (p. 14). A construção dessa imagem se dá à revelia do sujeito, ou seja, sempre que interagimos, assumimos uma linha de conduta ou um determinado “padrão de atos verbais e não verbais” e, consequentemente, projetamos de nós mesmos uma determinada imagem ou face, ainda que disso não estejamos conscientes. No que se refere ao gênero debate eleitoral, a situação de confronto entre adversários própria do debate torna a relação de faces extremamente delicada, mais do que em outros gêneros políticos, como a propaganda eleitoral, por ser essa relação menos submetida ao controle e aos cuidados de um marqueteiro. Por isso, o debate eleitoral é um gênero especialmente interessante para o estudo das relações de face. Nesse gênero, cada participante é bastante consciente da construção de sua autoimagem e atento à imagem que o outro (o adversário) constrói para si, bem como aos efeitos que as imagens construídas podem alcançar junto ao espectador (eleitor). No debate, são duas as razões que levam os adversários políticos a ter consciência das relações de face ou a perceber de forma mais acentuada que as ações realizadas projetam imagens de si. Em primeiro lugar, o debate eleitoral materializa uma situação de interação complexa. Isso porque, diferentemente do que ocorre num bate papo entre amigos, por exemplo, o debate combina diferentes níveis de interações. Num primeiro nível interacional, ocorre a interação entre os candidatos. Num segundo nível, ocorre a interação entre os candidatos (e a emissora de televisão ou a estação de rádio) e os espectadores. A primeira interação – entre os candidatos – se justifica apenas em função
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da segunda – entre os candidatos e os espectadores. Afinal, a razão de ser ou a finalidade do confronto entre os adversários políticos é permitir aos espectadores (eleitores) que conheçam e comparem suas propostas, para decidir em qual deles votar. Assim, o diálogo que os candidatos estabelecem com o espectador torna-os conscientes de que, para persuadi-lo, precisam assumir uma linha de conduta durante o debate, linha de conduta cujo efeito seja a emergência da face considerada a mais apropriada para obter a confiança do eleitor. Ou seja, ao longo do debate, os candidatos sabem (estão consciente de) que devem realizar ações verbais e não verbais que convençam o espectador de que eles são políticos honestos e confiáveis, gestores eficientes e preparados, cidadãos sérios e interessados na coletividade. Essas são algumas das faces consideradas adequadas para os participantes de um debate eleitoral ou algumas das faces que o gênero debate oferece para a escolha dos participantes. Em segundo lugar, a outra razão que leva os candidatos a ter consciência das relações de face é o fato de que, num debate, eles atuam como representantes de unidades sociais mais amplas. Goffman (2011, p. 21) nota que o grau de perceptividade para as relações de face é mais alto nas situações em que os participantes representam unidades mais amplas, como linhagens ou nações, “pois o jogador, aqui, está apostando com uma fachada [face] à qual os sentimentos de muitas pessoas estão ligadas”. É exatamente o que ocorre nos debates eleitorais. Neles os candidatos são representantes de partidos políticos e dos segmentos da sociedade que compartilham dos valores e dos pressupostos ideológicos desses partidos. O fato de um candidato representar unidades sociais mais amplas torna-o mais sensível às relações de face. Afinal, um ataque à sua face compromete não só sua imagem individual de figura pública, mas a imagem daqueles que nele depositaram confiança e apoio. Da mesma forma, a manutenção de uma face adequada, ao longo do debate, auxilia o candidato não só a se apresentar como o mais preparado, mas a apresentar o partido que representa como o mais apto a assumir os quadros e setores de um governo. Após definir a noção de face, bem como sua importância no gênero debate eleitoral, passo à apresentação da Teoria da Estrutura Retórica.
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2 Teoria da Estrutura Retórica A Teoria da Estrutura Retórica (Rhetorical Structure Theory – RST) constitui uma abordagem que se preocupa em explicar a construção da coerência dos textos, a partir da descrição de como seus constituintes se articulam. Nessa abordagem, a coerência de um texto resulta da função que cada um dos seus constituintes desempenha em relação a outro constituinte (TABOADA, 2006, DECAT, 2010). Assim, a RST é uma teoria descritiva, cujo objetivo consiste em caracterizar as relações retóricas (proposições relacionais) que emergem da combinação dos constituintes textuais (ANTONIO, 2004, 2008). A lista das relações retóricas identificadas pela RST se compõe de aproximadamente vinte e cinco relações (MANN; THOMPSON, 1986, 1988), as quais se dividem em dois grupos. De um lado, estão aquelas que dizem respeito ao conteúdo, porque o locutor as estabelece com o fim de fazer o interlocutor reconhecer a relação. Algumas dessas relações são: elaboração, circunstância, solução, condição, meio, avaliação, etc. De outro lado, estão as relações que dizem respeito à apresentação da relação. Essas relações permitem ao locutor levar o interlocutor a agir de acordo com as informações expressas no constituinte mais central (o núcleo), a concordar com essas informações ou a acreditar nelas. Algumas dessas relações são: motivação, antítese, fundo, evidência, justificativa, etc (MANN; THOMPSON, 1986, 1988). Para essa teoria, as relações retóricas se estabelecem em todos os níveis da estrutura textual, tanto no nível dos constituintes mínimos (as sentenças), como no nível dos constituintes formados por porções maiores do texto. Por esse motivo, postula-se que “os textos são formados por grupos organizados de orações que se relacionam hierarquicamente entre si” (ANTONIO, 2004, p. 39). As sentenças de um texto e os grupos em que se organizam podem se combinar por meio de dois tipos de relações:
1) Relações núcleo-satélite, em que um constituinte textual (o satélite) é subsidiário de outro (o núcleo). Nesse tipo de relações, representa-se a relação por meio de um arco que sai do satélite em direção ao núcleo, o qual é identificado com uma linha vertical.
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1-2
elaboração 1
2
2) Relações multinucleares, em que um constituinte textual não é subsidiário do outro, cada um dos quais funcionando como núcleo distinto. Nesse tipo de relações, cada linha representa um núcleo distinto.
1-2 lista 1
2
A hierarquia entre os constituintes de um texto se verifica à medida que são definidas as relações ou proposições relacionais (núcleo-satélite ou multinucleares) que se estabelecem entre as porções de um texto. A definição das relações não leva em conta critérios formais, como estruturas sintáticas e conectores, mas sim critérios funcionais e pragmáticos. Assim, critérios como as intenções (presumidas ou declaradas) do locutor e os efeitos do texto sobre o universo de crenças do interlocutor participam da definição dessas proposições. Dessa forma, é possível perceber que a estrutura por meio da qual a RST propõe representar a organização dos constituintes do texto não deve ser entendida como resultante de uma combinatória formal. A estrutura retórica constitui um instrumento de análise com o qual o estudioso da língua pode explicitar sua interpretação de como o locutor organizou o texto e qual função cada constituinte textual exerce. Apresentados os pressupostos teóricos deste estudo, o item seguinte trata do corpus de análise, explicitando os critérios que nortearam a escolha do debate analisado, bem como a parte desse debate que será estudada neste trabalho. Esses esclarecimentos serão necessários para a compreensão das análises apresentadas no último item do artigo. 3 Escolha do corpus de análise O corpus de análise desta pesquisa se constitui do debate realizado pela TV Globo, no dia 26 de outubro de 2012, entre os então candidatos à prefeitura de São Paulo, Fernando Haddad (PT) e José Serra (PSDB). O debate foi transcrito e publicado
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pelo jornal Folha de S. Paulo, no dia 27 de outubro de 2012. A análise recai sobre essa transcrição2. Dois critérios básicos nortearam a escolha desse debate. O primeiro deles foi a necessidade de o corpus da pesquisa ser um debate ocorrido em eleição na qual eu não estivesse pessoalmente implicado enquanto eleitor. O debate ocorreu em uma eleição para prefeito de São Paulo, cidade em que não resido. Embora a total imparcialidade na pesquisa científica seja uma ilusão, considerei essa decisão importante para tentar neutralizar um pouco a influência de minhas convicções político-ideológicas na interpretação das falas de cada candidato. Esse critério explica, assim, por que optei por não estudar debates de candidatos ao governo de Minas Gerais, estado em que resido, ou à presidência da República. O segundo critério adotado foi a seleção de debate que pudesse ser considerado representativo desse gênero. Isto é, era necessário selecionar um debate promovido por uma empresa de comunicação influente, que alcançasse um número bastante expressivo de eleitores. Por isso, decidi analisar o debate promovido pela maior empresa de comunicação do país, a TV Globo, entre os candidatos à prefeitura da cidade mais populosa do Brasil, São Paulo. Uma prova da representatividade do debate escolhido é a própria transcrição e publicação desse debate pelo jornal Folha de S. Paulo, no dia seguinte à sua ocorrência. No que se refere à macroestrutura do debate analisado, ele é composto por quatro blocos. No atual estágio da pesquisa, foi analisado apenas o primeiro bloco. Esse bloco se compõe de quatro seções. Em cada seção, um candidato faz uma pergunta ao adversário. Na sequência, este responde à pergunta. A resposta é seguida por uma réplica. A réplica é finalmente seguida de uma tréplica. Ao todo, o primeiro bloco do debate é formado por dezesseis turnos, os quais foram analisados do ponto de vista da Teoria da Estrutura Retórica. Como o tempo de fala dos candidatos é cronometrado, os turnos não são extensos. O menor é formado por seis sentenças, enquanto o maior é formado por 28 sentenças. A seguir, exponho os resultados das análises desses turnos. 2
O texto completo do debate pode ser acessado em: . Acesso em: 02/03/2014.
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4 Apresentação dos resultados Por motivo de espaço, neste item, não apresento uma análise detalhada de todos os dezesseis turnos produzidos pelos candidatos no primeiro bloco do debate. Apresento apenas a análise da estrutura retórica de dois fragmentos, um extraído da fala de cada candidato, fragmentos cuja análise considero satisfatória para ilustrar a linha de conduta de cada candidato e, consequentemente, a forma como cada um se vale das relações retóricas para construir e proteger sua face e para atacar a face do adversário. Considero que as análises desses fragmentos serão suficientes para evidenciar como as relações retóricas podem atuar na gestão de faces. Por ordem alfabética, inicio pela análise de fragmento extraído de turno produzido por Fernando Haddad3. (01) Na minha opinião, o candidato José Serra tem uma visão muito restrita da mulher. (02) Ele vê a mulher apenas como gestante. (03) Eu vejo a mulher muito mais amplamente. (04) Eu vejo a mulher desde o nascimento até a idade mais avançada, até a terceira idade. (05) Ele compreende o Mãe Paulistana, (06) ele acha que resolve o problema da mulher. (07) Não resolve.
Na porção formada pelas sentenças (01-04), o candidato estabelece uma relação de contraste entre o modo como ele e o adversário entendem a mulher. As sentenças (01-02) apresentam o ponto de vista atribuído por Haddad a Serra, enquanto as sentenças (03-04) apresentam o ponto de vista de Haddad. Estabelecendo esse contraste entre os dois pontos de vista, Haddad busca se apresentar como um candidato que tem uma visão mais ampla e humanitária em relação às mulheres. No bloco formado por (01-02), o candidato emprega a sentença (02) para elaborar a informação dada em (01). Ele não poderia apenas afirmar que o candidato José Serra tem uma visão muito restrita da mulher (01). Para tentar convencer o eleitor dessa afirmação, Haddad considera necessário sustentá-la, esclarecendo em que sentido ele entende que Serra tem uma visão restrita da mulher. Por isso, em (02), ele informa que Ele [Serra] vê a mulher apenas como gestante. No bloco formado por (03-04), o candidato realiza o mesmo movimento realizado em (01-02). Oferece, em (03), uma afirmação sobre como ele vê a mulher (Eu vejo a mulher muito mais amplamente),
3
No fragmento, a numeração indica que ele foi segmentado por mim em sentenças.
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afirmação que, em (04), é mais bem especificada (Eu vejo a mulher desde o nascimento até a idade mais avançada, até a terceira idade). A simetria estrutural entre os blocos (01-02) e (03-04) permite a Haddad estabelecer um contraste entre sua visão e a visão que atribui ao adversário acerca de uma parcela do eleitorado (as mulheres). Procedendo dessa forma, Haddad se mostra como um candidato que não teme o confronto e que representa em sua fala um embate não só entre propostas diferentes, mas entre concepções políticas divergentes. Afinal, por meio dessa relação de contraste, o candidato busca levar o eleitor a crer que ele tem uma visão mais humanitária de gestão pública. A construção de uma face de candidato mais agressivo, que não teme o embate com o adversário, é reforçada pelo bloco formado pelas sentenças (05-07). Nesse bloco, Haddad resume, concluindo, o que disse em (01-04). O candidato utiliza esse resumo como uma estratégia para atacar ainda mais a face de seu oponente e valorizar sua própria face. Em (05-06), Haddad argumenta que, para Serra, apenas um programa voltado para as gestantes, o “Mãe Paulistana”, resolve o problema da mulher. Para mostrar-se às eleitoras como um candidato que sabe do que elas verdadeiramente necessitam, Haddad informa, em (07), que apenas esse programa não resolve. Com o fim de negar a ideia atribuída ao adversário de que apenas o “Mãe Paulistana” é suficiente para atender às demandas da mulher, ele articula as sentenças (05-06) à sentença (07) por uma relação de antítese. Represento essa análise por meio desta estrutura retórica (figura 1).
1-7 resumo
1-4
5-7 antítese
contraste 3-4
1-2 elaboração
(01) Na minha opinião, o candidato José Serra tem uma visão muito restrita da mulher.
(02) Ele vê a mulher apenas como gestante.
5-6 elaboração
(07) Não resolve.
fundo
(03) Eu vejo a mulher (04) Eu vejo a mulher (05) Ele compreende muito mais desde o nascimento o Mãe Paulistana, amplamente. até a idade mais avançada, até a terceira idade.
(06) ele acha que resolve o problema da mulher.
Figura 1: estrutura retórica (Haddad)
As análises de todos os turnos produzidos por Haddad no primeiro bloco do debate evidenciaram que ele adota uma linha de conduta semelhante à que adotou no
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fragmento analisado. De modo geral, ele constrói sua fala, atacando o adversário, comparando o que pretende fazer com o que foi ou não foi feito pelo adversário, elaborando melhor as ideias que apresenta, apresentando sua candidatura como a solução para problemas da cidade mantidos pelo adversário ou por seus colegas de partido (Kassab). Embora este estudo não adote uma metodologia quantitativa, é importante sabermos, com precisão, quais e quantas relações retóricas emergem na fala de Haddad, no primeiro bloco do debate. A tabela 1 traz essas informações. Tabela 1: relações retóricas (Haddad) Relações Elaboração Contraste Evidência Antítese Solução Conjunção Justificativa Fundo Resultado Preparação Causa Reformulação Lista Propósito Condição Disjunção Método Resumo Circunstância Sequência Avaliação Junção Total
N 20 10 9 8 6 6 6 5 5 4 4 3 3 3 2 2 1 1 1 1 0 0 100
% 20 10 9 8 6 6 6 5 5 4 4 3 3 3 2 2 1 1 1 1 0 0 100
Ao estabelecer constantemente relações retóricas de elaboração, contraste, evidência, antítese, solução, Haddad demonstra ter escolhido seguir uma linha de conduta com que busca construir para si a imagem (face) de candidato inconformado com a situação da cidade que pretende governar, interessado no bem da coletividade e conhecedor dos problemas da população. Passo agora à análise deste fragmento, o qual foi retirado de turno produzido por José Serra.
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(01) O que eu devo dizer pela segurança é o seguinte, (02) como prefeito eu vou da batalha, (03) vou ser um prefeito ativista (04) para ajudar o Governo do Estado na tarefa da segurança. (05) Primeiro, vamos contratar mais PMs na operação delegada, mais quatro mil PMs nas ruas. (06) Segundo, vamos multiplicar ainda mais as câmeras de segurança por toda a cidade (...). (11) Terceiro, nós vamos cuidar também de melhorar a iluminação (...). (15) Quarto ponto: Guarda Civil metropolitana. (16) Nós vamos reforçar a guarda, inclusive com mais efetivos (...).
Esse turno é produzido como resposta à pergunta de Haddad sobre a responsabilidade que Serra atribui a si no aumento da violência na cidade de São Paulo. Nessa resposta, Serra opta pela estratégia de elencar as várias ações que pretende realizar para reforçar a segurança, caso seja eleito. No bloco formado pelas sentenças (01-04), Serra utiliza a sentença (01) (O que eu devo dizer pela segurança é o seguinte) para preparar o espectador do debate para o que vai dizer em seguida. Com a sentença (02), Serra revela a postura que pretende assumir contra a violência (como prefeito eu vou da batalha). Reformulando a informação expressa em (02), Serra produz o bloco formado por (03-04) na busca por reforçar a face de candidato firme, que sabe quais medidas devem ser tomadas para fortalecer a segurança do município. Assim, em (03), ele informa: vou ser um prefeito ativista. Para Serra, assumir essa postura “ativista” é necessário para que ocorra a ação expressa em (04): para ajudar o Governo do Estado na tarefa da segurança. Por isso, o candidato articula as sentenças (03) e (04) por uma relação de propósito. Ou seja, ele vai ser um prefeito ativista com o propósito de diminuir os níveis de violência na cidade de São Paulo. Se Serra apenas trouxesse as informações expressas em (01-04), afirmando que é preciso ser um prefeito ativista, o eleitor poderia suspeitar de que ele não tem propostas concretas para combater a violência. Pior que isso, o adversário poderia acusá-lo explicitamente de não ter essas propostas, o que seria muito prejudicial para sua face. Por isso, após se apresentar, em (01-04), como um candidato que assumirá uma postura agressiva contra a violência, Serra elabora as informações dadas nessas sentenças, apresentando as medidas que pretende tomar. Essas medidas são apresentadas em forma de lista, a qual é fortemente estruturada pelo candidato pelas expressões primeiro, segundo, terceiro e quarto ponto. Por um lado, a estratégia do candidato de listar as várias medidas que pretende adotar contra a violência cria o efeito de que ele sabe como agir, tem muitas propostas e
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está guiando sua fala por um programa de governo bem elaborado. Por outro lado, no debate em análise, essa mesma estratégia de listar ações futuras coloca Serra numa posição vulnerável em relação a Haddad. Isso porque este havia perguntado: Eu queria saber se você como prefeito, governador, se sente responsável de alguma maneira por isso [o aumento da violência]. Ao responder com promessas, Serra permite que o adversário interprete sua fala como uma tentativa de fugir da pergunta. É o que comprova a réplica de Haddad: Bom, o candidato não respondeu a que atribui a escalada da violência no último ano. Desse modo, a tentativa de Serra de construir para si a imagem de candidato que sabe como combater a violência, por meio da listagem de promessas, mostra-se prejudicial para sua face, pois abre espaço para ataques do adversário. Represento a análise do trecho estudado por meio desta estrutura retórica (figura 2).
1-9 elaboração 1-4
5-9
preparação
(01) O que eu devo dizer pela segurança é o seguinte,
2-4 reformulação (02) como prefeito eu vou da batalha,
3-4
propósito (03) vou ser um prefeito ativista
(05) Primeiro, vamos contratar mais PMs na operação delegada, mais quatro mil PMs nas ruas.
(06) Segundo, vamos multiplicar ainda mais as câmeras de segurança por toda a cidade (...).
(04) para ajudar o Governo do Estado na tarefa da segurança.
lista (11) Terceiro, nós vamos cuidar também de melhorar a iluminação (...).
8-9 fundo
(15) Quarto ponto: Guarda Civil metropolitana.
(16) Nós vamos reforçar a guarda, inclusive com mais efetivos (...)
Figura 2: estrutura retórica (Serra)
As análises de todos os turnos produzidos por Serra no primeiro bloco do debate evidenciaram que ele constrói sua fala adotando uma linha de conduta próxima da verificada no fragmento estudado. Serra dialoga com Haddad e com os espectadores atacando pouco o adversário, apresentando problemas não resolvidos por sua própria administração ou pela administração de colegas de partido (Kassab), elaborando informações com a promessa de realizar ações não realizadas em sua gestão, apresentando sequências de ações que o adversário demonstra achar que servem apenas para fugir da pergunta, justificando a importância de se realizarem ações não realizadas em sua administração. A tabela 2 expõe quais e quantas relações retóricas emergem nos turnos produzidos por Serra no primeiro bloco do debate.
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Tabela 2: relações retóricas (Serra) Relações Elaboração Preparação Propósito Justificativa Sequência Avaliação Fundo Conjunção Circunstância Contraste Método Resumo Evidência Antítese Solução Junção Resultado Reformulação Lista Causa Condição Disjunção Total
N 15 8 7 7 7 6 6 6 6 5 4 3 3 3 2 2 2 2 1 1 0 0 96
% 15,62 8,33 7,29 7, 29 7,29 6,25 6,25 6,25 6,25 5,20 4,16 3,12 3,12 3,12 2,08 2,08 2,08 2,08 1,04 1,04 0 0 100
Ao fazer emergir constantemente relações retóricas de elaboração, preparação, propósito, justificativa, sequência, Serra demonstra ter escolhido seguir uma linha de conduta com a qual construiu para si a imagem (face) de candidato defensivo, que se preserva mal dos ataques do adversário, que demonstra saber o que deve fazer para governar, embora não o tenha feito quando foi prefeito, em gestão anterior, e que não consegue explicar bem por que não realizou essas ações. Ao final das análises, é importante fazer a ressalva de que, com os resultados expostos neste item, não pretendo desvendar o que os candidatos são, mas sim como eles, por meio de seus discursos, se apresentam aos eleitores no debate. Portanto, vale esclarecer que esses resultados não pretendem revelar uma suposta verdade sobre os candidatos. Considerações finais A análise do papel das relações retóricas na gestão das relações de faces, no primeiro bloco do debate entre os então candidatos à prefeitura de São Paulo, Fernando
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Haddad e José Serra, permitiu identificar que eles constroem para si imagens bem diferentes. Enquanto Haddad se mostra ao eleitor como um candidato mais agressivo, Serra se mostra ao eleitor como um candidato mais defensivo. Na continuação da análise, estudarei os outros três blocos do debate, a fim de investigar se esses “perfis retóricos” se mantêm ou se, ao longo da interação, cada candidato modifica a linha de conduta assumida até aqui, estabelecendo de outra forma as relações retóricas e, consequentemente, construindo para si novas imagens ou faces. Mas, embora o estudo do debate eleitoral entre Haddad e Serra esteja em andamento, as análises feitas até o momento constituem evidências a favor da hipótese que guia este trabalho. Como informado na introdução, parto da hipótese de que, independentemente do discurso estudado ou do gênero a que este pertença, as relações retóricas exercem papel de primeira importância no estabelecimento das relações das faces envolvidas na interação. E as análises realizadas evidenciam que, de fato, a forma como os candidatos vão articulando sentenças e porções textuais, à medida que produzem os turnos, permite a eles se apresentar de determinada maneira ou desqualificar o modo como o outro se apresenta. Referências ANTONIO, J. D. Estrutura retórica e articulação de orações em narrativas orais e em narrativas escritas do português. 2004. 245f. Tese (Doutorado em Linguística) Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2004.
ANTONIO, J. D. Estrutura retórica e combinação de orações em narrativas orais e em narrativas escritas do português brasileiro. Estudos Lingüísticos, v. 37, n. 1, p. 223-232, 2008.
BROWN, P; LEVINSON, S. Politeness: some universals in language use. Cambridge: Cambridge University Press, 1987.
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CUNHA, G. X. A construção da narrativa em reportagens. 2013. 601f. Tese (Doutorado em Linguística) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
CUNHA, G. X. Para entender o funcionamento do discurso: uma abordagem modular da complexidade discursiva. Curitiba: Appris, 2014.
DECAT, M. B. N. Estrutura retórica e articulação de orações em gêneros textuais diversos: uma abordagem funcionalista. In: MARINHO, J. H. C.; SARAIVA, M. E. F. (Org.) Estudos da língua em uso: da gramática ao texto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 231-262.
GOFFMAN, E. Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face. Petrópolis: Vozes, 2011.
MANN, W. C.; THOMPSON, S. A. Relational propositions in discourse. Discourse Processes, v. 9, n. 1, 1986, p. 57-90.
MANN, W. C.; THOMPSON, S. A. Rhetorical Structure Theory: toward a functional theory of text organization. Text, v. 8, n. 3, 1988, p. 243-281.
ROULET, E.; FILLIETTAZ, L.; GROBET, A. Un modèle et un instrument d'analyse de l'organisation du discours. Berne: Lang, 2001.
TABOADA, M. Discourse markers as signal (or not) of rhetorical relations. Journal of Pragmatics, v. 38, n. 4, p. 567-592, 2006.
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A LEITURA DE PARÁFRASES EM REDAÇÕES VESTIBULAR: ALGUMAS PROBLEMATIZAÇÕES
Hélder Sousa Santos (UFU) Introdução Propomos, com o presente trabalho, problematizar questões relativas ao modo com que dois corretores de redação de vestibular – corretores A e B (CA e CB) leram gestos de paráfrases produzidos por vestibulandos em redações de vestibular. Para tanto, inscrevemos nossas formulações dentro do quadro teórico da Análise de discurso fundada por Michel Pêcheux e seus colaboradores, na década de 60 do século XX. Ali, conforme sabemos, há um vasto arcabouço teórico que busca compreender modos de funcionamento dos fatos parafrástico e polissêmico na linguagem – este como sendo um efeito da tensão-relação-(con)fusão daquele. Sendo assim, tomaremos como hipótese a situação seguinte, que, em função de nosso trabalho desenvolvido no mestrado (SANTOS, 2010) – momento em que pontuamos bastante o fator subjetividade implicado à maneira de correção dos ― mesmos‖ sentidos de um texto motivador (TM) em redações de vestibulandos – lida com a impossibilidade de se localizar, em nosso caso estrito, na produção escrita de vestibulandos, o Um e o Não-Um de sentidos para o que supostamente estaria dito (ou não) no TM presente na prova de redação de vestibular. Afirmamos ser impossível isso, pois, de acordo com o constante posicionamento trabalhado pela analista de discurso Eni Orlandi — (1987), (1998), (2004), (2005), (2008), (2012) —, ― paráfrase e polissemia são dois processos fundantes da linguagem‖, estando ambos em uma complexa relação de implicação e de tensão; nunca em oposição. Tal relação-tensão é, pois, prova cabal de que a estrutura da língua está sujeita a (e)feitos de coação e de liberdade, colocando-se, com isso, em um movimento pendular que tanto joga com possibilidades de (sua) ordenação (o ― mesmo‖), quanto com
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aberturas em direção ao outro (o sentido diferente). Desse prisma, então, torna-se possível irmos ao encontro de nossa hipótese de estudo, a qual questiona o aspecto ― localizável‖ do sentido parafrástico imputado por corretores de redação de vestibular à produção escrita de vestibulandos. Em outras palavras, propomos a seguinte observação: a despeito de haver, da parte de corretores de redação de vestibular, atenção às regras propostas pelo chamado ― Manual de Correção de Redações de Vestibular‖ (2008), particularmente às que pontuam critérios para a ― localização de reformulações parafrásticas em redações de vestibulandos‖, podemos notar que, com a tentativa de aplicação dessas, produz-se uma fissura no conceito de paráfrase ali (in)formado. Cobra-se, no caso, a presença do ― mesmo‖ (a paráfrase) na redação de vestibular, mas encontra-se o diferente ali (a polissemia do dizer). Quanto a isso, respaldamo-nos na ideia de que os corretores de redação de vestibular encontram-se, de diferentes modos, afetados por diferentes redes de memória discursiva; circunstância que os leva a dissensões. Possivelmente, há aí ― formas de individua(liza)ção‖ (ORLANDI, 2012) efetivando-se, já que
têm de decidir se
determinado enunciado foi ou não parafraseado, conforme prescrevem as injunções do vestibular.
Sendo
assim,
questionamo-nos
acerca
desse
critério
avaliativo,
particularmente sobre a interpretação construída por corretores de redação de vestibular ante a gestos de (re)formulação que a escrita de vestibulandos re(a)presenta para as informações pressupostas de um texto motivador. Tal interpretação, com efeito, parece se pautar em raciocínios da Lógica tradicional, onde, por meio, de comutações de elementos (palavras e frases) tenta-se atribuir critérios de validade (verdade) para proposições alcançadas. Se, por exemplo, elementos de um texto ― inicial‖ ― X‖ forem reconhecidos em outro texto ― Y‖, teremos, com isso, a consumação de fatos esperados — diz a Lógica. Ou seja, ― X‖ estando em ― Y‖ trata-se de um caso de paráfrase; o contrário, ― Y‖ não estando em ― X‖, um caso de polissemia. Essa forma precedente de caracterizar o fato linguístico da polissemia chama-nos atenção, uma vez que, consoante aludido, em estudos da analista de discurso Orlandi (idem), as noções de paráfrase e de polissemia não se justificam mediante simetrias da ordem do pensamento lógico. Isso pela via de palavras, frases e enunciados já ― portadores‖ de sentidos, presumindo-se, para tanto, sentidos ― localizáveis em formas
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da língua‖; sentidos, pois, (de)limitados entre o que lhes seria o ― unívoco‖ e o que lhes seria o ― plural‖, estaticamente. Resumindo, no que respeita o tratamento teórico-metodológico desenvolvido neste nosso estudo, questionamos o seguinte: ante a relação (in)tensa entre os processos parafrástico e polissêmico — ambos constitutivos da linguagem (re)formulada em contexto de vestibular —, torna-se passível (ou não), dali, um espreitar (localizar) de elementos de natureza linguística que atestem como verdadeira a efetivação de sentidos ― iguais‖ aos de outrora, pautando-se, para tal, exclusivamente, em critérios da Lógica? Vejamos, na sequência, nosso posicionamento, construído para responder isso. A análise Notas acerca da avaliação de paráfrases em redações de vestibular A redação transcrita abaixo apresenta-nos gestos de (re)formulação de um scriptor — leitor e escrevente de textos (CALIL, 2008) — ocupado com a demanda de produção de um texto expositivo-argumentativo, conforme determinam regras do vestibular. Nela são trabalhadas respostas possíveis para o questionamento seguinte: ― Como conter a fome no mundo?‖ (PROVA DE REDAÇÃO DE VESTIBULAR, 2008). Façamos, antes de nada mais, uma leitura atenta dessa redação, a materialidade (1). (M1) A fome é uma emergência mundial Após de tantos disperdícios de alimentos é necessário a iniciativa para que aproveite melhor. Com a saída da população da zona rural em busca de melhoria para suas vidas atrás de emprego favorável em torno de um mundo globalizado, a zona urbana, deixam para lá as grandes produção esquecendo da necessidade de cultivo. No Brasil assim como já se passam na maior parte da África não está longe de um colapso, da miséria, isto é, se já não esta acontecendo, onde pessoas vão ficando bastante desnutridas ou até mesmo no óbito, por não terem com o que se alimentarem. Mas os
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brasileiros possuem uma grande vantagem em relação aos africanos há terras prontas para o cultivo de lavouras, criação, etc, é necessário só a mão de obra. Nos supermercado do mundo todo há grandes disperdícios de alimento, apto para alimentar indivíduos que tem fome. É preciso implantar políticas internas para a valorização na produção agrícola, em que as pessoas retomem sua visão para a zona rural novamente, como já está começando acontecer no Brasil com o plantio de soja entre outros.
Em vista do que nos interessa analisar na M1, a avaliação dos corretores A e B ante a obrigatoriedade de produção de paráfrases de enunciados de um TM em redações de vestibulandos, reproduzimos ainda sua escrita-avaliativa (grifos e/ou comentários dos CA e B) — esta é referente ao modo com que é corrigida a paráfrase em redações de vestibular. Sendo assim, vejamos a fala/comentário do CA acerca do que notou na M1. Consoante às suas palavras: O candidato faz referência ao desperdício de alimentos e à saída da população rural para a urbana [TM], mas não consegue parafrasear estas ideias de forma coerente com que se propõe desenvolver. Por este motivo pode-se dizer que ele não consegue fazer a paráfrase de 1 informações do texto motivador, transcrevendo-as .
De saída, recortamos das palavras do CA o trecho em que diz da ― falha cometida pelo vestibulando‖ mediante a paráfrase ― ausente‖ na M1: ― O candidato (...) não consegue parafrasear (...) ideias de forma coerente com que se propõe desenvolver‖. Ora, o que seria, na óptica desse corretor, parafrasear? Seria apenas referir-se (transcrever) às (as) informações (coerentes) do (no) TM? — perguntamos. Sim, seria isso, e nada a-mais. Veja-se, a propósito, que o CA relaciona-se com a significação da M1 apenas pelo que ali seja ― inteligível‖, com a coerência lógica entre enunciados, com as relações esperadas, e não com interpretações possíveis para o dizer. No tocante a esse fato, o olhar do CA para a M1 é fiel à perspectiva da ― língua-do-todo‖, em que supõem coerências e consistências lógicas sendo coordenadas por um locutor com suas ― intenções‖ (ORLANDI, 2004, cf., p. 136). 1
Os destaques em negrito são nossos.
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Levando em conta o que parágrafo precedente argumenta, perguntamos também se seria possível avaliar sentidos da ordem do ― mesmo‖ do TM na M1 ― apenas‖ pela via de formas linguísticas reescritas de um modo outro? Aqui, antes de responder tal questionamento, vale observar que o vestibular — e/com suas regras avaliativas — precisa ― objetivar‖ suas injunções, já que, na condição de uma prova, um documento que envolve questões jurídicas, pressupõem-se mecanismos corretivos ― evidentes‖ àqueles ali envolvidos (a corretores de redação e a vestibulandos). Dentro dessa lógica imaginária, as formas linguísticas — suas ― transcrições‖ — representam, então, instrumentos prováveis para que, por exemplo, o CA possa ― garantir à negativa de paráfrases ‗irrealizadas‘ na M1‖. Trata-se, dessa maneira, de uma questão de ― leitura seletiva‖, apoiada em dados e informações ― ditas‖ por um autor em seu texto e que precisam ser validadas pelo efeito-leitor (em nosso caso, pelo corretor de redação) no texto que o retoma (ORLANDI, 1988). Todavia, ao que nos parece sensato esclarecer não é pela via das mesmas formas linguísticas que se chega aos mesmos sentidos de outrora. ― A paráfrase‖, sublinha Santos (2010), ― é uma questão semântica, e não gramatical (formal)‖. Com efeito, esse modo de ― localizar‖ a paráfrase no vestibular nada mais é que função da interpretação que o corretor A, interpelado pela língua que ― não falha‖, realizou a partir de formas linguísticas do TM. Tenta-se, com isso, normatizar os gestos de interpretação do vestibulando, posto que, em não havendo ― informações transcritas‖ do TM em sua redação, não se efetivam parafraseamentos aí. Trata-se, pois, de uma interpretação (a do CA) trabalhada pelos ― mesmos‖ sentidos (a paráfrase) supostos na ― literalidade‖ das palavras. Ou seja, uma posição particular ao discurso pedagógico (ORLANDI, 1996), em que são desconsiderados os aspectos da natureza polissêmica da linguagem, justamente os que fariam cair por terra o princípio da leitura homogeneizante constitutivo do discurso do vestibular (suas regras). Determinados pela ― literalidade‖, os sentidos que o corretor A esperaria ― localizar‖ na M1 nada têm a ver com sua história de (re)formulações. Haja vista, nesse caso, que se trata de apenas uma repetição formal, uma interpretação ― já construída por um autor‖, cabendo ser recuperada pelo scriptor. Notemos isso em palavras do próprio
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CA (― o candidato faz referência ao desperdício de alimentos e à saída da população rural para a urbana (...)‖), que, também, permitem-nos problematizar o fato seguinte: como pensar a realização de uma redação expositivo-argumentativa isenta do dissenso (comum) de ideias a priori estabelecidas? Impossível! Toda argumentação joga com possibilidades de significação do ― mesmo‖; jogo esse que, naturalmente, convoca exterioridades, trama de sentidos. Daí ser improvável ao gesto-leitor-avaliador proceder à procura (― localização‖) pelos (de) sentidos ― iguais‖ aos de um TM então reformulados. Afinal, em termos discursivos, o que temos (sempre) são sentidos se inscrevendo em diferentes regiões (formações discursivas), em função de condições materiais de produção, e não ― o‖ sentido exato, aquele ― já‖ alocado em palavras, frases, textos. Demais, se retomarmos ao comentário em tela — o que o CA produziu ao tentar ― localizar‖ paráfrases na M1 —, notar-se-á que o posicionamento construído aí fala de reescritas que ― não utilizam a mesma ordem das ideias que aparecem no TM da prova de redação de vestibular‖. Essa informação, que aparece subentendida quando ele se refere à ausência de coerências internas às formulações do vestibulando, corrobora aqui a ideia de paráfrase exposta no ― Manual‖ dos corretores (2008). No que toca à questão da ordem das ideias, há, em outras redações corrigidas pelo CA, referências a esse quesito avaliativo: ― o vestibulando não fez paráfrases porque seu texto não utiliza de sinônimos, de inversões de períodos, etc.‖ — afirma o corretor (A). Em suma, diríamos que a maneira com que o CA avalia a produção dos ― mesmos‖ sentidos do TM em redações de vestibulandos filia-se fortemente à ideia de paráfrase como produto linguístico (formal) ― localizável‖ em textos. Parafrasear, para ele, equivale a ― transcrever informações de textos motivadores‖ — transcrição que, aqui, levar-nos-ia a questionar se a confirmação de raciocínio assim garante que dada reescrita seja parafrástica. Passando às palavras do outro corretor, o CB, vemos uma nova forma de pontuar a― ausência‖ da paráfrase na redação do vestibulando. Reportando-nos às suas palavras, somos informados de que, na M1, ― o candidato não acrescenta novas ideias [para o TM], faz apenas alguns comentários, não transcreve a mesma ordem de ideias que
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aparece no texto motivador, portanto não faz a paráfrase‖ . Neste momento, perguntamo-nos sobre duas coisas: 1ª) o que o CB estaria chamando de acréscimo de ― novas ideias‖?, e 2ª) como ― garantir‖ que comentários acerca de dado tema não sejam —― ou sejam‖ a partir de quê pressupostos/relações? — paráfrases? Vejamos, agora, algumas possibilidades de compreender mais isso! Primeiramente, há que ser notado o fato de o CB, inscrito possivelmente em perspectivas da Linguística textual, (de)marcar funções de avaliação diferentes das do CA. Ora, sua correção (a do CB) não se filia — como a do CA — ao que ― diz‖ no ― Manual‖ (2008), dado que, nesse passo, parafrasear não mais significa (apenas) ― transcrever informações de textos motivadores‖, mas ― acrescentar-lhes ideias‖, articulá-las. Vejamos, em contraparte, que o que está em pauta na avaliação do CB são os chamados ― fatores de textualidade‖ indicados consensualmente por linguistas do texto. Isso pode ser constatado via outros comentários que o CB faz, não exatamente para a M1, mas para outras redações também corridas por ele (o candidato ― não esclareceu o tema central do texto motivador‖; ― não reproduziu a ideia do autor do TM 3
com suas palavras‖; ― não entendeu o que se diz no texto original‖) . Tais fatores, com efeito, ― dão‖ fundamento à leitura desse corretor, que atenta a aspectos textuais relativos ― ao poder de síntese, clareza e precisão vocabulares‖ (MANUAL, 2008) direciona sentidos para o que postula ― ser‖ a paráfrase na M1. Acerca disso, importa salientar que o CB até grifa na M1 enunciados a princípio mesma ordem das ― concebidos‖ como parafrásticos — só que, por não enxergar ali a ― ideias do TM‖, descarta essa possibilidade. A despeito da avaliação do CB, deve ser considerado que há sentidos que o TM aciona, que também são acionados no texto do vestibulando — neste último caso, temos inclusive esclarecimentos semelhantes aos do TM para o problema da fome no mundo (ambos, TM e M1, referem-se a fatos reais, como, por exemplo, o atual ― desperdício de alimentos‖, a migração de populações ― da zona rural para a zona urbana‖, entre outros). 2
Os destaques em negrito são nossos.
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― Novos‖ comentários do CB recortados de outras redações que ele corrigiu.
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Sendo assim, observamos que o CB fixa uma realidade para o que compreende por paráfrase. E isso, de certa forma, barra a possibilidade de avaliar na M1 o sentido diferente (a polissemia), dado que passa a ser um problema de linguagem, e não um fato de sua constituição. Em tese, não existem nenhuma garantia nisso que os corretores A e B tomam para dizer se é ou não uma paráfrase determinado enunciado reescrito por vestibulandos. Vejamos aí outro dissenso: para o CA, parafrasear seria algo próximo a não deixar ― faltar dados/informações‖ (estruturais) que remetam ao dizer de textos motivadores; para o CB, parafrasear seria ― articular ideias‖ (o excesso!?) com aquilo que se propõe desenvolver em dado texto. Em suma, a avaliação da paráfrase no vestibular diz de relações que esses corretores (re)constroem para fundamentar suas avaliações. Uma questão, pois, de interpretação. E interpretação, como sabemos é função da ideologia, opera com possibilidades, e nunca com realidades. Conclusão Vê-se, por conseguinte, uma impossibilidade de proceder à localização dos ― mesmos‖ sentidos dos TMs em redações de vestibulandos, tomados os critérios lógicos de correção de redações do vestibular. Afirmamos isso porque as avaliações dos corretores A e B — analisadas há pouco pela M1— (d)enunciam modos diferentes de se ler a paráfrase produzida (e esperada) aí. Ora esses corretores pontuaram a ― existência‖ de sentidos ― iguais‖ aos de ― antes‖ no texto do vestibulando, ora não. Neste ponto, importa notar que suas correções falam de lugares específicos, respectivamente, por meio dos discursos da gramática e do texto (a linguística textual). São, pois, resumindo, diferentes formas de individua(liza)ção procurando significar o já-dito (os TMs). Referências CALIL, E.. Escutar o invisível: escritura e poesia na sala de aula. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2008. COPEV. Arquivo de prova. Dez 2008. Disponível em: . Acesso em: 03.01.2012.
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ORLANDI, E.. Segmentar ou recortar. Linguística: Questões e Controvérsias, Centro de Ciências Humanas e Letras da Faculdade Integrada de Uberaba. Série de Estudos n. 10, p. 9-27, 1984. ______. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez e Editora da UNICAMP, 1988. ______. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas, SP: Pontes, 1996a. ______. Discurso: fato, dado e exterioridade. In CASTRO, Maria Fausta Pereira (Org.). O método e o dado nos estudos de linguagem. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1996b. p. 209-218. ______. Paráfrase e polissemia: a fluidez nos limites do simbólico. Rua – Revista do núcleo de desenvolvimento da criatividade da Unicamp NUDECRI. Campinas: UNICAMP, n. 4, 1998, p. 9-19. ______.Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, São Paulo: Pontes, 2002. ______. Interpretação: autoria, leitura, efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 2004. ______. O sujeito discursivo contemporâneo: um exemplo. In: INDURSKY, F., LEANDRO FERREIRA, M. C. Análise de discurso no Brasil: mapeando conceitos, confrontando limites. São Carlos: Claraluz, 2007. ______. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008. ______. Discurso e Texto: formulação e circulação dos sentidos. São Paulo: Pontes, 2012. ______.Uma tautologia ou um embuste semântico-discursivo? Ainda a propaganda de estado: pais rico é pais sem pobreza. In. Petri, V.; Dias, C. (Orgs.). Análise de discurso em perspectiva: teoria, método e análise. Santa Maria: editoraufsm, 2013. SANTOS, H. S.. A paráfrase no vestibular: uma prática de (re)formulação do dizer. Uberlândia, MG: 2010. (Dissertação de Mestrado).
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PELA SIMPLIFICAÇÃO DA LINGUAGEM JURÍDICA Helena Cristina Lübke (Professora do Centro Universitário Católica de Santa Catarina – campus de Jaraguá do Sul) (Doutoranda em Ciências da Linguagem pela UTAD – Portugal)
1. Introdução Com espia no referido precedente, plenamente afincado, de modo consuetudinário, por entendimento turmário iterativo e remansoso, e com amplo supedâneo na Carta Política, que não preceitua garantia ao contencioso, nem absoluta nem ilimitada, padecendo ao revés dos temperamentos constritores limados pela dicção do legislador infraconstitucional, resulta de meridiana clareza, tornando despicienda maior peroração, que o apelo a este Pretório se compadece do imperioso prequestionamento da matéria abojada na insurgência, tal entendido como expressamente abordada no Acórdão guerreado, sem o que estéril se mostrará a irresignação, inviabilizada ab ovo por carecer de pressuposto essencial ao desabrochar da operação cognitiva. (apud MACIEL, 2007, p.2).
Entendeu alguma coisa? O texto postado em site jurídico pelo professor de Português e Literatura, Roger Luiz Maciel, traz uma ideia dos termos linguísticos rebuscados, arcaicos, misturados com verbos que ninguém conjuga e que, costumeiramente, são utilizados pela maioria dos juristas no Brasil. Diante dessa complexidade linguística presente no vocabulário dos operadores de Direito, que faz existir um fosso na comunicação entre a comunidade leiga e os intelectuais juristas, discorrer<se<á sobre a importância da clareza na linguagem jurídica, com pretensão de desmistificar essa linguagem empolada, recheada de vícios, citações desnecessárias, que prolongam os prazos de execução dos processos e tornam a justiça cara e morosa.
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Em matéria de direito e linguagem, é possível encontrar um ponto de equilíbrio entre o discurso técnico e a linguagem cotidiana que possa colocar o judiciário ao alcance de todos. 2. Clareza na linguagem jurídica é fundamental
Sabe<se que a palavra tem fundamental importância no dia a dia de todos, principalmente na vida do operador do Direito, haja vista que a ciência jurídica é a mais linguística de todas as instituições. Conforme diz Gabriel Chalita (2009, p. 59): A palavra é, em si, o elemento maior da sedução, o principal recurso à disposição de advogados e promotores para exercerem suas funções. Ela é, mais do que por assim dizer, a ferramenta de trabalho do profissional do Direito. (CHALITA, 2009, p. 59)
A linguagem permite ao homem entender a evolução das relações sociais e pessoais, uma vez que lhe permite expressar seu entendimento acerca de assuntos os quais lhe interessam e são necessários. Sendo assim, essa linguagem deve ser acessível a todos. Então, vem o questionamento: qual o papel dos operadores de direito frente à linguagem rebuscada e, por vezes, obscura da área jurídica? Logicamente, cabe ao profissional da área jurídica facilitar ao seu interlocutor, isto é, ao jurisdicionado, o entendimento frente àquilo que este busca na esfera jurídica: seus direitos. Mas sabe<se que nem sempre isso acontece, pois a linguagem jurídica possui muitos vocábulos que para boa parte da população não são compreensíveis. Para Chalita (2007, p.59): Frases bem articuladas podem garantir que os significados sejam transmitidos corretamente, no que diz respeito à objetividade. A palavra é importante, sem dúvida, para comunicar fatos, idéias, pedidos ou ordens, raciocínios, em suma, um significado objetivo, que pode ser compartilhado por meio dela entre diferentes pessoas [...] (CHALITA, 2009, p. 59)
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Quanto à rapidez, que caracteriza a comunicação atual, Maciel (2007) entende que a linguagem jurídica não prosperou e enfatiza: O "modus expressandi" dos operadores de direito enseja uma revisão. A maneira como se redige um texto jurídico deve ser repensada. Não é apenas uma necessidade formal, no tocante ao uso da língua consoante à gramática ou segundo técnicas de redação; impõe<se uma necessidade de ordem prática, tendo em conta toda a sociedade juridicamente assistida. O destinatário da mensagem não é apenas o juiz, o desembargador ou o ministro, mas também o bancário, o mecânico e o comerciante... Enfim, todos que precisam ser amparados pela justiça. Poucos conseguem entender sequer a procuração que assinam para o advogado, tanto menos será compreensível uma petição ou um recurso, também carecendo de tradução o despacho ou a sentença expedida pelo magistrado. (MACIEL, 2007, p. 2).
Em relação ao rigor formal, é sabido que este é necessário ao procedimento jurídico, uma vez que o ramo do direito é repleto de formalidades, solenidades, termos técnicos e lógicos. Coan (2009) afirma que o Direito é uma ciência e que, por isso, exige uma linguagem correspondente, pois detém vocabulário refinado e específico, com terminologia própria, mas, em função disso, não pode se distanciar totalmente dos sentidos originários dos verbetes encontrados no dicionário, ou seja, deve haver harmonia no sentido de similaridade representativa das ideias entre emissor/receptor. Tal autor também salienta que: [...] para esse trabalho persuasivo/interpretativo será exigido o nível culto da linguagem (rebuscado; ritualizado, inclusive), devendo o seu operador demonstrar capacidade para se expressar com grau de formalidade adequado ao assunto e a seu interlocutor, pois não se valerá, como cediço, do mesmo modo discursivo para tratar de temas técnicos e de temas familiares, bem como não utilizará o mesmo padrão ou registro de linguagem para se dirigir a um amigo e para se comunicar com uma autoridade. [...] De outro turno, se a clareza corresponde ao uso semântico adequado das palavras a fim de evitar vagueza, ambigüidade ou obscuridade na mensagem, ela não poderá ser estudada sem que esteja correlacionada com o atributo precisão. (COAN, 2009, p. 4).
O que se condena é o excesso de formalismo, de rebuscamento, a falta de discernimento/sensibilidade na escolha/seleção lexical. Um grande exemplo disso foi o
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julgamento dos mensaleiros em 2012, em que os ministros do Supremo Tribunal Federal fizeram questão de falar difícil, em um julgamento que foi transmitido ao vivo para milhões de brasileiros. O Supremo Tribunal Federal, órgão máximo da Justiça da União no Brasil, e que tem como competência primordial a defesa da Constituição Federal, não deu tanta importância ao artigo 13 da Constituição em vigor que determina que “a Língua Portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil”, utilizando uma linguagem incompreensível para a maioria dos espectadores. Guzzo (2012) comenta sobre o episódio em um tom sarcástico: “Daria na mesma, no fundo, se os ministros do STF tivessem falado em javanês – tanto que foi indispensável, para os meios de comunicação, armar um serviço de tradução simultânea para as pessoas”. Ainda salientou que: O português tem cerca de 200 000 palavras ─ mais do que o suficiente, portanto, para Suas Excelências encontrarem termos de compreensão mais fácil. Decidiram fazer justo o contrário: não perderam uma única oportunidade de substituir toda e qualquer palavra clara por outra que ninguém entende. Para que isso? Uma sentença não fica mais justa porque é escrita nessa linguagem torturada. É óbvio que num congresso de física molecular, cirurgia neurológica ou prospecção de petróleo os participantes têm de usar termos técnicos em sua conversa; são até obrigados a isso, para trabalhar com eficiência. Juristas podem fazer exatamente o mesmo, nos seus encontros profissionais. Mas magistrados exercem uma função pública ─ e isso exige que falem para o público, e não apenas para si mesmos.
3. “Juridiquês” e a morosidade da Justiça O “juridiquês1” também é para alguns pensadores um dos responsáveis pela lentidão da justiça brasileira. Para Maciel (2007, p. 1): Há transcrição exagerada de textos de leis, doutrinas e jurisprudências. Desconsidera o advogado, que um par de teses favoráveis ao seu 1
Juridiquês – uso desnecessário e excessivo de termos técnicos de Direito; vocábulo usado no Brasil que ainda não consta dos dois principais dicionários brasileiros (Aurélio Buarque de Holanda e Antonio Houaiss); trata<se, portanto, de um neologismo. Disponível em: . Acesso em: 6 nov. 2013.
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pedido já é suficiente. O juiz nunca lerá integralmente uma petição extensa. Para conseguir despachar inúmeros processos diariamente, é obrigado a dispensar o supérfluo e se ater apenas ao essencial. Ao exagerar em citações, o peticionário estará somente desperdiçando tempo e engrossando os autos processuais. A economia textual é palavra de ordem na órbita da justiça e elemento mor para a celeridade dos processos. Ater<se ao formalmente necessário é meia causa ganha pelo profissional do direito. (MACIEL, 2007, p. 1).
Sabe<se também do caso de uma petição inicial que continha cento e vinte páginas. Mesmo esta estando bem encadernada, foi devolvida pelo juiz com um pedido de que fosse mais sucinta. Refeita a petição, ficou esta com 70 páginas. Como se tratava de uma simples reclamação trabalhista, o juiz novamente devolveu o pedido, exigindo mais objetividade. Por fim, o advogado entregou a petição contendo catorze páginas. Casos como esse demonstram o exagero na linguagem, que consome ainda mais o tempo das cortes superiores que, por sinal, já estão sobrecarregadas com milhões de processos a serem resolvidos. Frente a isso, Vianna (2008, p.1) faz a seguinte menção: Assim, salvo melhor juízo, as peças processuais devem primar pela simplicidade, concisão, clareza e objetividade. Os períodos devem ser curtos e na ordem direta, evitando<se adjetivações que pouco contribuem para esclarecimentos dos fatos e das teses. Com isso, facilita<se a transmissão das idéias – finalidade da palavra, escrita ou falada –, além de se correr menor risco de erros gramaticais. A propósito, vale lembrar Carlos Drummond de Andrade: "escrever bem é a arte de cortar palavras". E, ainda, Hegel: "quem exagera no argumento, prejudica a causa". (VIANNA, 2008, p.1).
4 Linguagem Forense Para Nascimento (1992, p 3): A linguagem socializa e racionaliza o pensamento. É axiomático, modernamente, que quem pensa bem escreve ou fala bem. Assim cabe ao advogado e ao juiz estudar os processos do pensamento, que são objeto da Lógica, conjuntamente com a expressão material do pensamento que é a linguagem. Talvez nenhuma arte liberal necessite mais de forma verbal adequada que a advocacia [...] (NASCIMENTO, 1992, p 3).
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Para uma linguagem ser considerada eficiente é imprescindível que apresente quatro qualidades essenciais: precisão, concisão, pureza e clareza. Segundo Nascimento (1992), essas qualidades se definem da seguinte maneira: a) Precisão: se adquire por meio do estudo do sentido das palavras (semântica), de sua colocação e da organização das orações no período. b) Concisão: é a qualidade principal da linguagem forense, uma vez respeitadas as demais. Consiste na busca para a forma breve, incisiva para o pensamento. Breve e certo, doutrinavam os latinos: Esto brevis, sed placebis. Para a consecução dessas virtudes da linguagem, uma norma apreciável é escrever períodos curtos. Os trechos longos, entremeados de orações subordinadas, de relativos e conjunções, não raro geram obscuridade. c) Pureza: resume<se em escrever a língua sem recorrências a palavras ou construção estranhas. d) Clareza: os textos obscuros são quase sempre resultados de: a) emprego vicioso dos possessivos “seu”, “sua”, que gera ambiguidade frasal; b) emprego do relativo que, com antecedente distante; c) colocação inadequada da palavra na frase. 4. Simplificação da Linguagem Jurídica A complexidade da linguagem jurídica, somada aos excessos de expressões latinas, juntamente com o formalismo exacerbado e adornado com uma vultosa erudição, é, ao mesmo tempo, bela e obscura para o leigo. Entretanto, o contrário da obscuridade é a simplicidade. Afinal, clareza na linguagem jurídica é, também, uma forma de fazer justiça. Para isso a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB2) lançou em agosto de 2005, na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, Brasil, uma campanha pela “Simplificação da Linguagem Jurídica” utilizada por magistrados, advogados, promotores e outros operadores da área, com o objeto de aproximar o Poder 2
CAMPANHA Pela Simplificação da Linguagem Jurídica. AMB. 2005. . Acesso em: 14 nov. 2013.
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Judiciário do cidadão comum, através de uma reeducação linguística nos tribunais e nas faculdades de Direito, com o uso de uma linguagem mais clara e objetiva. Segundo Vianna (2008: p. 2): Para esta "simplificação", convém lembrar que peças processuais não são trabalhos acadêmicos, sendo desnecessário recorrer, em regra, a considerações de ordem Histórica ou ao Direito Comparado. Tampouco devem servir de palco para demonstração de "conhecimento" ou "cultura". Deve, portanto, prevalecer o "fim", ou seja, busca pela prestação jurisdicional, e não o "meio", isto é, peças processuais extensas e repletas de "juridiquês" e outras inutilidades. (VIANNA, 2008, p. 2).
A Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Fátima Nancy Andrighi (2005, p.1), ressalta que: O exercício incansável do juiz deve ser o de tornar compreensíveis suas decisões. Contudo, mesmo produzindo decisões com linguagem direta e simplificada, em determinadas circunstâncias, é imprescindível a utilização de expressões técnicas. Dessa forma, é necessário que se crie um mecanismo eficaz para explicar ao cidadão, sem formação jurídica, o que, efetivamente, foi decidido. Da mesma forma que o médico não se restringe a dizer o nome da doença, mas busca explicar ao paciente o diagnóstico apresentado, o juiz não deve apenas julgar, mas precisa fazer com que o cidadão entenda o que foi decidido e as razões que o levaram a decidir daquela forma. (ANDRIGHI, 2005, p.1).
Ela também propõe que o Tribunal faça um texto explicativo e o divulgue pela internet, referente ao que foi determinado na Súmula. Por exemplo: a Súmula 278 do STJ estabelece que: “o termo inicial do prazo prescricional, na ação de indenização, é a data em que o segurado teve ciência inequívoca da incapacidade laboral”. Traduzindo, isto significa que: “A pessoa, que tiver contratado um seguro de vida e de acidentes pessoais e sofrer um acidente que a torne incapaz para o trabalho, terá um prazo máximo para pedir na justiça o pagamento de indenização. A Súmula 278 do STJ estabelece que esse prazo começa a ser contado a partir do dia em que a pessoa tiver a certeza de que não poderá mais trabalhar”. Andrighi (2005).
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6 Reflexões acerca da prática pedagógica na disciplina Direito e Linguagem no Curso de Direito da Católica de Santa Catarina em Jaraguá do Sul As reflexões feitas neste texto acerca da Simplificação da Linguagem Jurídica são fruto de minha vivência como professora da disciplina Direito e Linguagem, ministrado no curso de Direito do Centro Universitário Católica de Santa Catarina em Jaraguá do Sul. Tais reflexões não têm a intenção de dar conta da complexidade da linguagem, mas trazer para a sala de aula, principalmente, a acadêmicos de Direito de fases iniciais, uma possibilidade de discussão/reflexão acerca da importância da linguagem usada nas mais diversas esferas, especialmente a jurídica. Desde 2003, atuo como docente no curso de Direito do Centro Universitário Católica de Santa Catarina em Jaraguá do Sul. Na época ministrava a disciplina Linguagem Jurídica, a qual passou, em 2005, após longas reflexões sobre sua terminologia, a se chamar Direito e Linguagem. À época, os conteúdos trabalhados eram Argumentação Jurídica e Semiótica. No entanto, em 2005, ao tomar conhecimento da campanha lançada pela AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) sobre a Simplificação da Linguagem Jurídica, tornou<se importante levar esse assunto para a sala de aula, a fim de discutir com os acadêmicos sobre a importância da linguagem, especialmente na esfera jurídica, haja vista que o direito é uma ciência essencialmente linguística ou, melhor dizendo, é a mais linguística de todas as instituições. Como já dito aqui, AMB lançou, em 11 de agosto de 2005, na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, uma campanha pela “Simplificação da Linguagem Jurídica” utilizada por magistrados, advogados, promotores e outros operadores da área, com o objeto de aproximar o Poder Judiciário do cidadão comum, por meio de uma reeducação linguística nos tribunais e nas faculdades de Direito, com o uso de uma linguagem mais clara e objetiva. Partindo do mote: ninguém valoriza o que não conhece, a campanha teve por como foco os estudantes de Direito. Por meio de palestras do presidente da entidade, juiz Rodrigo Collaço, a AMB divulgou a iniciativa em quatro Estados: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná e no Distrito Federal. Também foi lançado um livreto com termos acessíveis, que transmitem as mesmas ideias das expressões complicadas, frequentemente utilizadas nos documentos produzidos pelos profissionais do Direito.
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Para incentivar os estudantes a tomar consciência sobre a importância do uso de um vocabulário mais simples, a AMB criou um concurso para premiar os melhores trabalhos dos alunos de Direito relacionados à simplificação da linguagem jurídica. Outro concurso prestigiou os magistrados associados à entidade que desenvolvem no dia a dia formas de simplificar a linguagem utilizada em peças processuais, como sentenças e notificações, entre outras. Dentre os estudantes, os textos premiados foram: A Ponte (Claudia Dantas Ferreira da Silva – UnB – DF); Com Complexidade não há igualdade
(Pedro
Carvalhaes
Vieira
UFMG);
Linguagem
Jurídica
versus
Comunicação (João Zacharias de Sá – FGV – Rio de Janeiro). Dentre os magistrados, os textos premiados foram: Embargos de Declaração (Rafael Infante Faleiros – Juiz de Franca (SP); A Clareza da Linguagem Judicial como Efetivação do Acesso à Justiça (Lourival de Jesus Serejo Sousa – Juiz de São Luís – Maranhão); Pela Compreensão da Justiça (Fátima Nancy Andrighi – Ministra do Superior Tribunal de Justiça – Brasília – DF). Então, em outubro de 2006, tive o privilégio de convidar e contar com a ilustre presença do Dr. Rodrigo Collaço em nosso Centro Universitário, o qual fez uma palestra para os alunos sobre o referido tema. Desde então, todo semestre, busco possibilitar aos alunos a leitura dos textos acima referidos e, a partir deles e de outras considerações que se consideram pertinentes frente ao tema, é solicitado que produzam um texto argumentativo posicionando<se acerca do tema em tela. Essa tem sido uma forma (eficaz) que encontrei de levar à universidade, especialmente aos alunos que cursam a disciplina Direito e Linguagem, uma reflexão e, acima de tudo, um despertar para uma consciência linguística crítica, pois, como bem salientou Bacon, o grande ideal é “pensar como pensam os sábios, mas falar como falam as pessoas comuns”. Também são bem
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excessos (e exageros) na linguagem jurídica, na comunicação dos advogados e magistrados, nas peças processuais, nas súmulas, que vão além do técnico, do lógico, do racional, do eficiente, ou seja, que atinge o nível do supérfluo, do obscuro, do ridículo, que faz nascer a morosidade mórbida do Judiciário de todos os dias. Para sanar isso, é necessário clareza na comunicação, sensibilidade para saber com quem se está lidando, ou seja, ser culto para com os cultos e simples para com os simples. Ter ciência de que a Justiça é para todos, sem exceção. É saber que um juiz, um promotor, um advogado, um operador do Direito exerce seu ofício para promover justiça aos povos – “todo poder emana do povo” – e que este povo é composto por pessoas de diferentes classes sociais, intelectuais, culturais e econômicas, e que também possuem o direito de entender seus direitos. Em síntese, simplificar a linguagem jurídica não é sinônimo de involução intelectual, o contrário disso, é evolução! Já dizia Machado de Assis (apud FETZNER, 2006, p. 5): Não há dúvida de que as línguas se aumentam e alteram com o tempo e a necessidade dos usos e costumes. Querer que a nossa pare no século de quinhentos é um erro igual ao de afirmar que sua transplantação para a América Latina não lhe inseriu riquezas novas. A este respeito a influência do povo é decisiva. [...] ASSIS, apud FETZNER, 2006, p 5).
A simplicidade é maior do que a complexidade; simplicidade está no nível da nobreza, da realeza. O operador de Direito que compreende isso deixa de ser um mero “doutor da lei”, um profissional fabricado em laboratório e terá mais condições de promover o bem<estar de toda coletividade, concedendo e garantindo os direitos fundamentais essenciais ao desenvolvimento humano, aliado à democracia, que afirma a soberania popular no poder como instrumento de efetivação dos direitos previstos, ocupando o judiciário um importante papel de interpretar e aplicar os direitos fundamentais previstos na Constituição. Por fim, segue uma citação de Sócrates para complementar o raciocínio: “Devese organizar o discurso de tal maneira que os discursos simples sejam dirigidos às almas simples e os discursos mais complexos e abrangentes às almas mais elevadas”.
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Referências ANDRIGHI, Fátima Nancy. Pela compreensão da Justiça. AMB. 2005. . Acesso em: 18 nov. 2013. BAIÃO, Rosaura de Barros. A fala do Advogado. Rio de Janeiro. CAMPANHA Pela Simplificação
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A CONSTITUIÇÃO DE CORPUS A PARTIR DA NOÇÃO DE FÓRMULA DISCURSIVA: CATEGORIAS DE BUSCA E ANÁLISE Hélio de Oliveira (UNICAMP/CNPQ)
Introdução A noção de fórmula proposta por Alice Krieg-Planque (2003, 2010, 2011) oferece um quadro ao mesmo tempo teórico e metodológico muito útil aos pesquisadores interessados em explorar a heterogeneidade e a circulação dos discursos no espaço social. Mecanismos de busca textual e imagética na web conhecidos como “motores de busca” (do inglês, searchengine) ou, simplesmente, “buscadores” (Google_Search, Bing, entre outros) têm sido utilizados para pesquisa de dados e coleta de material a propósito das fórmulas. Todavia, esses buscadores apresentam algumas limitações que poderiam falsear dados e confundir o direcionamento da análise. KriegPlanque sintetiza essa preocupação ao perguntar: “Como não se sentir limitado a um funcionamento de computador e, então, entregar-se a uma hermenêutica livre?” (2011, p.29). Este trabalho pretende discutir algumas soluções para a problemática que abrange questões de busca e análise de dados, partindo de algumas categorias teóricas já delineadas na própria constituição das fórmulas discursivas. Por exemplo, a pesquisa por elementos peculiares que correspondem ao chamado “contexto discursivo” da fórmula, assim como o processo de identificação das quatro propriedades do estatuto formulaico, considerando aspectos específicos dessas propriedades, como as estruturas “X:Y” (enunciado referencial: enunciado informacional) e “não existe x”. Com efeito, circunscrever, descrever e analisar uma fórmula discursiva significa aplicar conceitos que se apresentam, simultaneamente, como abstração teórica que embasa a análise e como prática metodológica que restringe e direciona a coleta e o tratamento dos dados. Ao elencar as propriedades das fórmulas, Krieg-Planque afirma que esses traços “determinam certas tomadas de posição no método de apreensão do objeto, tanto do ponto de vista da construção do corpus (...), quanto no que diz respeito às orientações metodológicas”, assim como “restrições que pesam sobre o estudo de uma fórmula”(2010, p.61). Conhecer e aplicar cada uma dessas propriedades implica seguir o traçado requerido pelo método, sob o risco de se perder o objeto. Nesse sentido, a noção de percurso proposta por Maingueneau (2008, p.23) contribui para tornar ainda mais operacional a noção de fórmula, permitindo discretizar
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as unidades de análise e evitar a dispersão exacerbada. Dentro dos limites que o recorte do corpusoferece, considerar a fórmula como um percurso significa justamente explorar a heterogeneidade dos discursos, ultrapassar as fronteiras dos posicionamentos e dos campos discursivos, ciente das dificuldades que o “controle” desse percurso demanda – dificuldades que, embora se apresentem como desafio à pesquisa, podem ser geridas a contento. 1. Unidades não-tópicas em Análise do Discurso: o caso dos percursos Ao dizer que a fórmula é uma palavra (ouum sintagma, slogan, pequena frase) que sintetiza e cristaliza temas sociopolíticos numa determinada época e num determinado espaço social, Krieg-Planque (2010, p.61) lhe atribui quatro propriedades essenciais: funcionar como referente social, ter uma estrutura cristalizada, ter um caráter discursivo e ser polêmica. Além dessas propriedades (ou como efeito da fusão de todas elas), uma das primeiras características empiricamente observáveis da fórmula é sua exacerbada circulação por diversos campos e em diversas mídias (impressa, online, televisiva etc.). A notória circulação da fórmulapermite compor o que Maingueneau (2008) chama de “percurso”, ou seja, uma espécie de unidade que não dispõe de um “lugar” (ou “topos”) específico no espaço social, mas atravessa diversas fronteiras instituídas, fato que a torna uma “unidade não-tópica”. Nesse caso, lida-se com um tipo de corpus construído pelo analista, e que não corresponde a espaços já “pré-delineados” pelas práticas verbais, como seria o caso das “unidades tópicas” (discurso socialista, discurso comunista, discurso médico). Com efeito, os percursossão definidos como “unidades de diversas ordens (lexicais, proposicionais, fragmentos de textos) extraídos do interdiscurso, sem procurar construir espaços de coerência ou constituir totalidades” (MAINGUENEAU, 2008, p. 22). Segundo o autor, o que se pretende, ao contrário, é desestruturar as unidades instituídas. Neste mesmo texto, Maingueneau cita o trabalho de Alice Krieg-Planque como exemplo de pesquisa sobre percursos fundados a propósito da circulação de uma fórmula, a saber, o livro “Purification ethnique”: une formule et son historie (KRIEGPLANQUE, 2003). Para explicar a aproximação teórica entre percurso e fórmula, pode-se, ainda, recorrer à conhecida metáfora do ajuste de enfoque por meio de uma lente “fotográfica”, partindo de categorias mais amplas para chegar ao objeto “único”, alvo da análise (os trechos entre aspas, a seguir, correspondem a Maingueneau, 2008, pp. 16-23). Assim, dentre todas as categorias a que recorrem os analistas de discurso, há unidades tópicas e não-tópicas. Fechando o foco sobre o segundo tipo (as unidades não-tópicas), encontram-se as formações discursivas e os percursos. Por sua vez, direcionando o foco sobre os percursos, distinguem-se “percursos de tipo formal” (por exemplo, baseados em uma derivação sufixal ou em uma metáfora), os “percursos fundados em materiais
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textuais” (as “diversas contextualizações de um ‘mesmo texto’”) e percursos fundados sobre “materiais lexicais” (as “retomadas e transformações de uma mesma fórmula em uma série de textos”). Apontando-se a lente para o tipo de percurso que trata da circulação de uma mesma fórmula, ajusta-se o foco ainda mais para então chegar, por exemplo, ao sintagma “consciência negra” 1. O movimento poderia ser representado por: unidade não-tópica> percurso > fórmula > “consciência negra”. A partir dessa etapa, o enfoque seria “microscópico” e se direcionaria às propriedades constitutivas “internas” e outras características (formais, estruturais, entre outras) da própria fórmula – sem esquecer que mesmo essas características formais são influenciadas (ao mesmo tempo em que influenciam) pela dimensão externa em que circulam. O pesquisador que lida com unidades não-tópicas se depara com a construção de corpora heterogêneos. Ele deve estar ciente, todavia, de que a constituição de uma unidade não-tópica não é aleatória, já que os próprios enunciados que a constituem estão profundamente inscritos na história. Dessa forma, a heterogeneidade converge para a unidade na medida em que o pesquisador põe em prática (testa) suas hipóteses históricas na análise do corpus, num constante jogo de esboçar fronteiras para, logo em seguida, subvertê-las. A ideia de unidade, em Análise do Discurso, não implica necessariamente coerência; muito pelo contrário, deve implicar contradições (MUSSALIM, 2008, p. 100). 2. Mecanismos de busca e a noção de interpretante razoável O funcionamento das unidades não-tópicas, pelo fato mesmo de não possuírem um “lugar” previamente constituído no espaço social, impõe ao analista a necessidade de procurar uma forma de recortá-las. Seria impossível trabalhar com unidades nãotópicas sem lhes conferir alguma “unidade”. Por outro lado, no caso específico da noção de fórmula, existe outra exigência, que é a circulação da fórmula por diferentes campos discursivos. Com isso, chega-se a uma situação em que é necessário equilibrar duas demandas: garantir a unidade necessária para conclusão da análise/pesquisa e garantir que não sejam desprezados (ou excluídos) aspectos essenciais do objeto que poderiam prejudicar os dados e a análise. A solução que tem sido cada vez mais utilizada nas pesquisas que se interessam pelos fenômenos de circulação dos discursos é investir num trabalho de busca seletiva e filtragem de dados para constituição do corpus baseado em ferramentas digitais como os programas chamados “motores de busca”. Google Search, Bing e Yahoo são os mais utilizados nas américas, enquanto o Yandex é o favorito na Rússia, o Naver, na Coreia do Sul e o Baidu, na China 2 – este último já está disponível também no Brasil. 1
“Consciência negra” corresponde a uma provável fórmula, com a qual estamos trabalhando durante o doutorado em Linguística no IEL/UNICAMP. 2 “Google: conheça as alternativas ao gigante das buscas”. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/. Acesso em 25/08/2014.
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A relevância dos buscadores digitais para pesquisas com fórmulas e pequenas frases é um tema bastante discutido em encontros científicos da área. O trabalho ora apresentado não se detém nas críticas direcionadas às empresas responsáveis pelos grandes buscadores, por exemplo, a prioridade dessas empresas em veicular resultados de conteúdos pagos, em detrimento a conteúdos gratuitos, a suposta “customização” dos usuários por meio de algoritmos que filtram os resultados de acordo com as preferências e pesquisas prévias daquele usuário específico 3 (o que esbarra em questões relativas à privacidade na web e ao compartilhamento de dados pessoas nas redes sociais e outros domínios) e até mesmo o monopólio comercial e enriquecimento ilícito relacionado a gigantes como o Google e o Facebook (WU, 2012). O trabalho parte da ideia de que a metodologia embasada em preceitos teóricos deve nortear o uso que se pode fazer dos buscadores e não vice-versa. A noção de interpretante razoável considerada a seguir pretende ser suficiente para esclarecer esse aspecto. De qualquer forma, concordamos com a asserção de Cassar (apud FRAGOSO, 2014) a respeito dos vários tipos de usuários e várias técnicas utilizadas para encontrar informações na web, e a tomamos como uma das justificativas para a presença dessas ferramentas virtuais na pesquisa: “Não importa se este comportamento é motivado por ignorância ou destreza, o resultado final é o mesmo: o buscador é o ponto focal da experiência online para todos os tipos de usuários da internet” (p. 164). Os programas de busca disponibilizam interfaces altamente sofisticadas e capazes de grande refinamento em pesquisas, que envolvem buscas desde uma única palavra, até pequenas frases e slogans. Um benefício adicional é o fato de que as grandes revistas impressas e os grandes jornais do país estão digitalizando e disponibilizando o conteúdo integral de suas páginas – inclusive edições antigas – na web, alguns gratuitamente, outros, mediante pagamento de taxas por algum período. Dessa forma, o pesquisador não precisa ler todas as edições de um determinado jornal (ou vários deles) ou de determinada revista durante um (ou mais) ano(s), mas pode submeter esse extenso conteúdo a uma busca a partir de programas e interfaces específicas (alguns domínios têm seus próprios buscadores), restando ao pesquisador ler apenas aquelas páginas indicadas pela ferramenta em que ocorre a frase ou formulação procurada. Depois dessa primeira seleção que as especificações do programa de busca permitem fazer, o material passa por uma segunda filtragem no que concerne à
Alguns procedimentos simples podem burlar, ou, pelo menos, minimizar a interferência da “configuração” dos resultados a partir da identificação dos padrões de pesquisa do usuário, suas preferências e sua frequência de acesso a determinados conteúdos e redes de compartilhamento. Pode-se acessar os buscadores de diferentes computadores (diferentes IPs), por exemplo, recorrendo às LAN Houses, além de acessar o ambiente virtual sem efetuar login em nenhumr site, email ou rede social. Também é prudente recorrer a variados buscadores: o Baidu, favorito em números de busca na China, recentemente começou a disponibilizar seus serviços no ocidente, e o Wolfram Alpha, embora ainda esteja operando somente em inglês, promete engendrar uma revolução na experiência de buscas na web. 3
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representatividade daqueles enunciados para o corpus, procedimento que diminui ainda mais a quantidade de material restante que será efetivamente submetido à análise discursiva. No caso de “consciência negra”, encontram-se vários tipos de enunciado em que é apenas “informado” que tal dia é dedicado à “consciência negra”, sem qualquer construção parafrástica ou reformulação. Nesses casos, há grandes chances de que esse material seja descartado para fins analíticos. Isso acontece porque nem todas as ocorrências do sintagma em estudo representam a fórmula considerada. Um exemplo desse tipo de pré-seleção do corpus é comentado por Krieg-Planque (2010, p. 93) sobre a massiva aparição, na imprensa francesa, da palavra “avalanche” nas semanas que se seguiram a uma catástrofe natural (ocorrida em 23/01/1998), envolvendo um grande deslizamento de neve, numa estação de esqui nos Alpes e que resultou em várias mortes. Nesse caso, o aumento da frequência do termo resultou de um acontecimento “de ordem mundana”, ordinário – ainda que terrível –, mas não foi sintoma de um acontecimento discursivo, no sentido compreendido pela problemática da fórmula. Para explicar o processo de filtragem que leva a uma delimitação do material a ser analisado (uma forma de “organizar” e “minimizar” a dispersão de uma fórmula), a autora propõe uma noção que abarca a própria figura do analista, a noção de interpretante razoável. Para Krieg-Planque, o interpretante razoável é aquele que não é nem inteiramente invadido pelo já-dito de toda palavra, aturdido pelo dialogismo no qual cada palavra se produz, sufocado pela memória interdiscursiva de que o mais singelo dos discursos é depositário (esse interpretante veria a fórmula purificação étnica ao passar por uma tinturaria ‘lavagem a seco’), nem inteiramente preso aos grilhões do dicionário e da gramática mais tradicional, que ele reconhece como parâmetros de representação de uma língua “correta” (2011, p.30).
Assim, acredita-se que eventuais instabilidades decorrentes da interferência da ferramenta de busca no processo de coleta de dados na internet possam ser suficientemente geridas a ponto de não prejudicarem os resultados da análise, uma vez que o arcabouço teórico se mostra como o lugar de segurança (sempre relativa) para o analista. 3. Uma proposta para coleta e filtragem de dados Tendo em vista o exposto até agora, propõem-se algumas categorias de busca materializadas na forma de critérios que possam ser aplicados em pesquisas que mobilizem a noção de fórmula. Dois esclarecimentos se fazem necessários: (1) a proposta visa compartilhar experiências no trabalho com fórmulas discursivas, especialmente no que diz respeito ao uso das ferramentas de buscas, “testadas” tanto em trabalhos pessoais, quanto em pesquisas de colegas que desenvolvem estudos na mesma área, além de “oficinas” ministradas a alunos de graduação em Letras/Linguística sobre
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o tema. (2) os critérios são baseados nas propriedades constitutivas das fórmulas tais como apresentadas por Krieg-Planque (2003, 2010, 2011), e representam uma tentativa de operacionalizá-las ainda mais. A partir de cada critério (disposto do lado direito da tabela a seguir), foram elencadas algumas formulações (lado esquerdo da tabela) que podem ser digitadas ipsis litteris na barra de pesquisa do buscador escolhido. As formulações do lado esquerdo são tentativas de “flagrar” empiricamente (na materialidade textual, por assim dizer) vestígios dos critérios discursivos como “valor de re/de dicto”, conteúdo informacional/referencial; circulação de pequenas frases/slogans/citações e outros aspectos abaixo especificados. Um exemplo de como proceder a partir desses critérios é procurar pela discussão, por parte dos locutores, em torno do uso de um determinado termo (a defesa ou recusa desse termo específico). Esse breve confronto põe em cena o valor de dicto4 e é um sintoma de que esse termo seria uma fórmula. Nesse caso, boas opções para pesquisa desse aspecto do funcionamento formulaico seriam formulações do tipo: “discordo do termo x” (em que “x” corresponde á fórmula escolhida), “não concordo com a palavra x”, “não aceito o termo x” e outras variantes, mudando alguns elementos da frase, como a pessoa e o tempo verbal, assim como o substantivo “palavra”, “termo”, “sintagma”, “expressão” etc. Seria de grande ajuda, também, recorrer à função “pesquisar palavras exatas”, disponível na maioria dos buscadores, a partir da opção “pesquisa avançada”. Utilizando essa técnica, foi possível encontrar os seguintes fragmentos, a propósito da fórmula “educação a distância”: Acredito que em breve o termo “Educação a Distância” possa deixar de existir. Acredito que o “ensino semipresencial” seria um termo mais adequado, ou “educação apoiada pelas novas tecnologias”, ou simplesmente “educação” 5. Discordo desse termo “educação a distância”. Para mim, ele destaca o que há de pior na modalidade, e não o que há de melhor, que são justamente as diferentes e ricas formas de interação6.
4
Krieg-Planque (2010, p. 57) reconhece que as categorias de re / de dicto, versões medievais da transparência e da opacidade, têm o inconveniente de serem muito rudimentares para os procedimentos da Análise do Discurso. Entretanto, elas são úteis nas primeiras abordagens do corpus, pois são indicativos do caráter polêmico das fórmulas.
5
Disponível em www.latec.ufrj.br/educaonline/index.php/artigos-tecnicos/64-. Acesso em 08/09/2014.
6
Educadores criticam o termo ‘Educação a Distância’. Folha de S.Paulo, 05 de outubro de 2011. Disponível na versão online, acessada em 08/09/2014.
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Outro exemplo é explorar a estrutura X:Y (enunciado referencial: enunciado informacional). A própria autora apresenta fragmentos que contêm esse tipo de enunciado: A parte da esquerda (“X”) da manchete é um “enunciado referencial”, um pressuposto, remete a um mundo supostamente conhecido pelo leitor. A parte da direita (“Y”) constitui o “enunciado informacional” da manchete, é o posto, o novo, o presumidamente desconhecido. [...] Manchetes como “Periferia: a febre do sábado à tarde”, “Periferia: a prevenção pelo esporte”, “Periferia: a política do talão de cheque”, “Periferia: amanhã uma Los Angeles?” e “Periferia: a constatação do fracasso” são, assim, o índice de que “Periferia” funciona como referente social num dado momento no espaço público francês (KRIEG-PLANQUE, 2010, pp. 98,99).
Nesse caso, uma opção seria procurar por manchetes e notícias (gêneros mais comuns em que esse tipo de estrutura aparece), digitando na barra de busca: “reportagem x”, “revista x”, “manchete x”, “notícia x” etc. Seria muito extenso, para este artigo, fornecer exemplos e a indicação teórica de cada um dos critérios contidos na tabela a seguir (Tabela 01). Apenas assinalamos, conforme já dito, que os itens para pesquisa foram concebidos a partir das obras de Krieg-Planque, citadas nas referências.
Tabela 01:critérios para busca/pesquisa de fórmulas discursivas
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Considerações finais Krieg-Planque assume que os trabalhos em AD são marcados pela diversidade de métodos e tipos de saberes que mobilizam. É necessário sublinhar, de acordo com a autora, que os corpora construídos são em verdade certas hipóteses, ou seja, haveria a possibilidade constante de que sejam reformulados, deslocados e reorganizados, “se queremos bem considerar que a ciência que nos ocupa aqui é, em vez de uma empresa ou uma técnica de verificação, um processo de conhecimento e de compreensão”. (2011, p. 66). Nesta seara, as ferramentas de busca na internet são uma valiosa ajuda na constituição do corpus e concepção das hipóteses. As críticas à instabilidade desses mecanismos virtuais, ainda que legítimas, não devem impedir o analista de se debruçar em entender os processos implicados nesses recursos e buscar aqueles que melhor se adequem ao seu objetivo. Pelo contrário, a rapidez com que os buscadores se alteram (e se aperfeiçoam) impõe ao pesquisador o constante refinamento de sua prática. Por outro lado, acima de tudo, o embasamento teórico deve se apresentar como o lugar de segurança (ainda que relativa) para que o analista possa exercer sua expertise (ainda que insuficiente) em constante (re)construção.
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A QUESTÃO POLÊMICA DO GAY NA MÍDIA DE MASSA: UMA ANÁLISE ACERCA DO DISCURSO NA REVISTA VEJA Héliton Diego Lau (UEPG) Introdução A comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis – LGBT – vem ganhando cada vez mais espaço na sociedade brasileira, desmistificando tabus e quebrando o preconceito, tanto por meio de redes sociais quanto em novelas. O foco deste trabalho será a análise da homofobia presente no discurso do pai César na novela Amor à Vida, discutido num artigo da revista Veja realizado em parceria com o produtor da novela, Walcyr Carrasco. Para analisarmos os discursos, é necessária uma breve abordagem teórica sobre a Análise do Discurso (doravante AD) de linha francesa e a questão de identidade(s) dos sujeitos. Discursos e identidades O discurso, para Brandão (2004, p. 33), é “um conjunto de enunciados que se (sic) remetem a uma mesma formação discursiva [...]”. A base de estudo para a AD de linha francesa é o que se fala, escreve, os comportamentos, que geram várias interpretações. Orlandi (2005) usa a ideia de percurso, de movimento, ou seja, que o discurso é sempre aberto, livre para várias interpretações. Não se fica preso a regras gramaticais, sintáticas, mas, sim, notar a mediação entre o falante com sua realidade social. “Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive” (ORLANDI, 2005, p. 15). Segundo Mussalim (2004, p. 110): “O estudo do discurso para a AD [...] inscreve-se num terreno em que intervêm questões teóricas relativas à ideologia e ao sujeito”. Em tudo o que falamos, expomos nossa opinião e estamos defendendo nossa ideologia e, também, criamos nossa identidade, que é influenciada pelo Outro, pois, ninguém é exclusivo. O “[...] Outro ocupa uma posição de domínio com relação ao
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sujeito, é uma ordem anterior e exterior a ele, em relação a qual o sujeito se define, ganha identidade” (MUSSALIM, 2004, p. 109). Os analistas do discurso devem estar “inseridos” no contexto social analisado, aplicar a leitura de mundo sobre o objeto estudado. A Análise do Discurso considera como parte constitutiva do sentido o contexto histórico-social. [...] O contexto histórico-social, então, o contexto de enunciação, constitui parte do sentido do discurso e não apenas um apêndice que pode ou não ser considerado (MUSSALIM, 2004, p. 123).
Logo, a partir da inserção do contexto histórico-social, conhecemos melhor o sujeito, conhecendo, assim, sua identidade. Bauman (2005) afirma que a identidade só é composta através de “comunidades”, pela sociedade em geral na qual estamos inseridos: costumes, culturas, comportamentos adquiridos em função do Outro. Por intermédio dessas “comunidades”, o sujeito é refletido pelo “eu”, como Hall esboça: somos diferentes a todo momento, nossas identidades não estão fundidas em apenas um “eu”, mas sim em vários. “Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas” (HALL, 2006, p. 13). Bauman (2005), novamente, comenta que a identidade não é sólida. As pessoas vão mudando de acordo com o ambiente em que estão inseridas e também pelo Outro, tornando-a, assim, uma identidade líquida. A análise dos discursos dos personagens em destaque, César e Félix, mostra essa (des/re)construção de cada um, a partir do veículo revista Veja, cuja tiragem expressiva e cuja linguagem é acessível ao leitor comum, diferentemente do que aconteceria se se tratasse de um livro ou uma revista científica. O gênero utilizado para exibir o discurso dos personagens foi reportagem. A caracterização do homossexual De acordo com as redes midiáticas, a novela Amor à Vida, exibida em 2013, foi a primeira novela brasileira a ter um beijo entre dois homens. A cena em questão gerou polêmica e uma grande repercussão em redes sociais, ora fazendo menção a
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menosprezo, nojo, difamação, ora a apoio. A partir dessa nova inserção do sujeito homossexual na novela, pressupomos essa nova abordagem que, particularmente, as novelas da rede Globo estão adotando. Mateus Solano interpretou o personagem Félix Khoury, que trabalhava em uma empresa do pai, César Khoury (Antonio Fagundes). Depois de ter desviado dinheiro da empresa do próprio pai, Félix foi sustentado pela mãe Pilar Khoury (Suzana Vieira) por algum tempo. O nosso objeto de análise é o discurso dos personagens representados na reportagem da revista Veja, publicada em 14 de agosto de 2013, a qual mostra um pouco da história da novela, principalmente como foi a revelação de que o protagonista é homossexual, e sua relação com o pai, juntamente com alguns discursos do produtor Walcyr Carrasco. Na reportagem, há uma ilustração (figura 1) em que mostra pai e filho perto com alguns discursos do personagem homofóbico César.
Figura 1 – Discursos do homofóbico César. Fonte: Revista Veja de 14 de agosto de 2013, p. 106.
Antes mesmo de o leitor começar a ler a reportagem em si, os discursos colocados na voz do pai de Félix causam algum impacto e, pressupomos, chamam a
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atenção para que o leitor continue. Podemos enumerá-las para fazer uma breve análise acerca do que está por vir: Enunciado 1a: Para um homem como eu, que sempre deixou as mulheres loucas, não querer um filho gay é questão de princípio. Enunciado 1b: Você tem coragem de me chamar de pai? Enunciado 2a: Sem mulher e sem filho, você vai soltar a franga. Enunciado 2b: Entre você e esse rapaz, quem é o homem e quem é a mulher? Enunciado 3: É uma mariquinha, uma bichinha – e a culpa é sua, Pilar. Enunciado 4: Eu não tenho preconceito. Quem quiser ser gay, que seja, mas não meu filho. (grifos meus) Podemos notar no enunciado 1a que a homofobia se justifica pela ideia de “masculinidade”, um tanto estereotipada em nossa sociedade heteronormativa, em que um homem para ser um homem “de verdade” é rotulado ao pegar várias mulheres, no caso de César, deixa-las loucas, diferente do filho, por causa de sua condição/orientação sexual, fato exposto no enunciado 1b geralmente do pai negar o filho que é homossexual, devido ao discurso machista. No enunciado 2a, podemos reconhecer um pressuposto da “família tradicional” (pai, mãe e filho/filha), para a qual a junção entre os sujeitos masculino e feminino evita que um sujeito homossexual se assuma. No enunciado 2b, há a possibilidade de nos referirmos ao binarismo que Butler (2003) comenta acerca da heteronormatividade, pois quando vem à nossa mente a palavra “casal”, imaginamos um homem e uma mulher, geralmente. Há associações errôneas de que um casal homossexual seja chamado de “par”, pois ambos são do mesmo sexo, iguais, como um par de brincos, por exemplo. Supondo por um momento a estabilidade do sexo binário, não decorre daí que a construção de “homens” aplique-se exclusivamente a corpos masculinos, ou que o termo “mulheres” interprete somente corpos femininos. Além disso, mesmo que os sexos pareçam não problematicamente binários em sua morfologia e constituição [...], não há razão para supor que os gêneros também devam permanecer em número de dois (BUTLER, 2003, p. 24).
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Para ilustrar, podemos observar a tabela abaixo em que mostra o rompimento do binarismo e percebemos a diversidade. Sexo Masculino Feminino Masculino Feminino Masculino Feminino Masculino Feminino
Gênero Masculino Feminino Masculino Feminino Masculino Feminino Feminino Masculino
Desejo Feminino Masculino Masculino/Feminino Feminino/Masculino Masculino Feminino Masculino/Feminino Feminino/Masculino
Tabela 1 – Desconstrução da relação entre sexo, gênero e desejo
As duas primeiras linhas da tabela mostram a possibilidade dos sujeitos serem heterossexuais, pois o seu corpo é cisgênero, ou seja, nasceu assim, se identifica como tal e o seu desejo é o oposto; este é, ainda em nossa sociedade pós-moderna, considerado o único “normal”. A partir da terceira e quarta linhas, há a possibilidade de os sujeitos serem bissexuais, pois são atraídos tanto por pessoas do mesmo sexo quanto pelas do sexo oposto. Na quinta e na sexta, os sujeitos são homossexuais, pois o que eles representam, com que se identificam e têm atração é do mesmo sexo. E, finalmente, nas últimas duas linhas, os sujeitos são identificados como travestis e/ou transexuais, pois o sexo com o qual nasceram não se iguala ao gênero com o qual se identificam, e a atração pode ser heterossexual e/ou homossexual. Por exemplo, nasceu uma menina, pois a identificamos assim por ela possuir os traços que a caracterizam dessa maneira, em especial, o órgão reprodutor. Entretanto, em períodos de adolescência, juventude ou até mesmo na infância, ela não se identifica como menina, mas sim como menino, ou seja, seu gênero é oposto ao sexo, e ele (nesse caso, tratando o sujeito como se identifica) pode tanto sentir atração por meninos cisgêneros, meninas cisgêneras ou os dois. Dependendo do seu desejo, ele poderá ser heterossexual, bissexual ou gay, pois a condição/orientação sexual não está ligada ao gênero. No enunciado 3, as palavras ditas por César ofendem o filho, trazendo à tona palavras com as quais a “comunidade heterossexual” julga o ser homossexual, e que
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podemos fazer uma ponte, mais adiante, de palavras que a “comunidade LGBT” utiliza também para classificarem os “grupos” nos quais convivem. No enunciado 4, podemos notar o preconceito “acobertado” que ainda é dito. A afirmação da liberdade do sujeito, porém, com a marca relativa à argumentação (cf. Brandão, 2013) aponta para a direção por meio da conjunção “mas”: “Eu não tenho preconceito. Quem quiser ser gay, que seja, mas não meu filho.” Pensemos no discurso de César visto no enunciado 4, em que o pai de Félix diz não ser homofóbico. “É pela descrição da enunciação que se chega ao sentido do enunciado, isto é, analisando o modo pelo qual o sujeito falante representa a própria enunciação que está realizando” (BRANDÃO, 2013, p. 38). Devemos ter o enunciado contextualizado, pois a frase poderia ter outro(s) sentido(s). No caso, esse discurso é dito pelo pai de Félix, sujeito que menospreza o filho devido à sua condição/orientação sexual, e isto é visto claramente no discurso de César. O estudo de diálogos efetivos mostra que o encadeamento de réplicas se funda, geralmente, menos sobre o que foi dito pelo locutor do que sobre as intenções que, segundo o destinatário, teriam levado o locutor a dizer o que disse. [...] Se se admite que estas intenções fazem parte do sentido, tem-se uma razão a mais – considerando-se que a determinação depende das circunstâncias da fala – para admitir que o sentido não se deduz diretamente da significação. [...] É necessário, então, conhecer não só a frase mas a situação em que ela é empregada para saber o que fez aquele que a enuncia (DUCROT, 1987, p. 91).
Quando César iniciou seu discurso, pressupomos que ele era uma pessoa pósmoderna, que respeita as minorias, no caso a comunidade LGBT. Já na segunda parte do seu discurso, ele coloca a condição/orientação sexual homo como escolha, excluindo essa possibilidade do seu filho, de acordo com a nossa observação e as teorias utilizadas. Na reportagem, há uma síntese da novela expressa pelo autor da reportagem e da cena em especial a qual Félix se assume: Fragmento 1 No começo de Amor à Vida, o personagem foi apresentado como um pai amoroso e
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dono de hospital preocupado com seus pacientes pobres. Aos poucos, contudo, César foi se revelando um santo do pau oco. Ele não teve escrúpulos em se envolver com sua secretária, Aline (Vanessa Giácomo), bem debaixo do nariz da mulher, Pilar (Suzana Vieira). Mais recentemente, soube-se que Paloma (Paolla Oliveira), sua filha caçula, é fruto de outra relação extraconjugal. A máscara caiu de vez com a reação brutal de César à descoberta de que o filho mais velho é gay. Durante o jantar em família no qual Félix (Mateus Solano) foi arrancado do armário à fórceps, César fez expressão de nojo ao ver as provas do negócio: foto do seu rebento enroscado com o amante que chama de “anjinho”. Segurou-se para não agredir o filho: “Por mim, eu dava um murro na cara dele” (MARTHE, 2013, p. 106-107). Podemos perceber como é formada a família, seguindo sempre o padrão heteronormativo, a família dita como “tradicional”, que inclui o clichê das novelas que envolve traição. Ao notarmos o comportamento de César, que tinha como amante sua secretária, Aline, recorremos a Beavouir (1980, p. 75) que comenta: “O homem, reinando soberanamente, permite-se, entre outros, o capricho sexual: dorme com escravas ou hetairas, é polígamo”. Mais adiante, percebemos que César tem nojo porque seu filho é gay e ainda é obrigado a assumir, sendo ameaçado de levar um soco, entretanto, permite-se ter relações extraconjugais e é a favor da “família tradicional”, como observamos no enunciado 2a, mais acima. Durante a reportagem, notamos a narração da novela em que Félix “sai do armário”, menção utilizada aos membros da comunidade LGBT que não expressam sua identidade, contraposta ao padrão heteronormativo empregado ainda na sociedade, ou por não terem encontrado uma “comunidade” com a qual se identifiquem ou por medo e opressão da família. Segundo Sedgwick (2007, p. 27): “A imagem do assumir-se confronta regularmente a imagem do armário, e sua posição pública sem ambivalência pode ser contraposta como uma certeza epistemológica salvadora contra a privacidade equívoca oferecida pelo armário [...]”. Enquanto a família de Félix não sabia de sua verdadeira condição/orientação sexual, sua verdadeira identidade, tudo estava ocorrendo normalmente com os demais, entretanto, quando a verdade é exposta e ele é obrigado a assumir quem ele realmente é, devido às provas, isso gera desprezo, inclusive nojo, para César. Mais adiante, temos mais uma narração acerca do discurso de César, reproduzido pelo autor da reportagem.
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Fragmento 2 Em conversa com a mulher o médico tachou Félix de “mariquinha” e “bichinha”, e acusou Pilar de ter transformado o filho em homossexual com seu jeitão de perua [...]. “Você mimou demais esse menino. Quando ele dizia que seu sapato não combinava com o vestido, eu queria morrer”, disse. Mas o pior, claro, foram as palavras reservadas ao próprio Félix. César revelou que sempre odiara seus trejeitos. “Você é discreto como um destaque de escola de samba”, acusou. Não se sensibilizou, por fim, quando Félix revelou seu alívio de sair do armário. “Você carrega meu nome. Isso me enche de vergonha”, tascou o pai (MARTHE, 2013, p. 107, grifos meus). Vemos, novamente, a reação negativa com relação a condição/orientação sexual do filho, conforme já exposto no enunciado 1b. Juntamente com o enunciado 3, em que o pai caracteriza o filho de mariquinha e bichinha, adjetivos mencionados no feminino, que Beavouir (1980, p. 25, grifos meus) afirma: “Na boca do homem o epíteto ‘fêmea’ soa como um insulto. No entanto, ele não se envergonha de sua animalidade, sente-se, ao contrário, orgulhoso se dele dizem: ‘É um macho!’ O termo ‘fêmea’ é pejorativo [...]”. O discurso machista empregado pelo pai afeta o filho que é homossexual pelo fato de que quando xingamos um homem utilizando uma palavra no feminino como, por exemplo, “isso é coisa de mulherzinha”, na mente dos machistas isto está “diminuindo” por estar fazendo algo que deveria ser feito por uma mulher, como cuidar e limpar da casa, por exemplo. Além disso é comum se referir à ela como um sujeito fraco, indefeso, indelicado, até submisso, inclusive no ato sexual. Isso também evoca o sentido do homem ser ativo e a mulher passiva, durante o ato. Fator que chama a atenção e curiosidade, vista no enunciado 2b de César, pois fazem uma afirmação errônea, como no discurso do pai do Félix que pergunta quem é “homem” e quem é a “mulher”, quando classificam o sujeito ativo de “homem” e o sujeito passivo de “mulher” numa relação sexual homo. O produtor Walcyr Carrasco deixa seu depoimento acerca da comunidade LGBT:
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Fragmento 3 Carrasco pretende deixar claro que no meio gay vigora uma divisão de classes. “Os gays atacam seus pares com apelidos como ‘barbies’1 – aqueles que fazem muita ginástica – e ‘pão com ovo’2 – os muito pobrezinhos”, relata o autor (MARTHE, 2013, p. 107). Através do discurso do autor da novela relatado pelo autor da reportagem, podemos fazer menção às classificações que a comunidade LGBT faz de si mesma, de seus “grupos”. Estes vocábulos mencionados pelo produtor são utilizados pela comunidade LGBT e possuem significados enumerados pelo livro Aurélia, a dicionária da língua afiada, que reúne 1300 verbetes reunidos de cada estado e de alguns países que utilizam o bajubá. O bajubá, linguagem utilizada pela comunidade LGBT, provém da língua religiosa pregada no Candomblé, o iorubá. O iorubá é uma língua única, constituída por um grupo de falares regionais concentrados no sudoeste da Nigéria [...] e no antigo Reino Quero [...] hoje, no Benim, onde é chamada de nagô, denominação pela qual os iorubás ficaram tradicionalmente conhecidos no Brasil (CASTRO, 2005, p. 3, grifo da autora).
Alguns termos do iorubá também são utilizados na Umbanda/Candomblé como, por exemplo, “erê” que é criança, já para a comunidade LGBT, a mesma palavra significa adolescente, homossexual mais novo. Os usuários do bajubá, proveniente do iorubá, utilizam-no quando estão reunidos em suas “comunidades de prática” (cf. Rampton, 2006), muitas vezes para falar sobre determinado assunto, para que outros ao redor não saibam do que estão falando, como se fosse uma espécie de código. Alguns adolescentes utilizam gírias com a mesma finalidade. Ao utilizar essa linguagem, seus usuários depreendem o valor de uma determinada palavra, que é considerada neutra, signo ideológico por excelência (cf. Bakhtin, 2006). Por exemplo, a palavra “babado”, para a “comunidade heterossexual” S.f. Homossexual de corpo inflado, adepto da musculação e das bombas anabolizantes. Muitas barbies juram que são bofes (VIP & LIBI, 2013, p. 26). 2 S.m.(SP) 1. Lanchinho que as bibitas sem condições financeiras para comer na rua levam de casa. 2. As próprias bichas adeptas do lanchinho (Ibid, p. 103). 1
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que conhece apenas esta como um adjetivo, em que, por exemplo, uma criança estava comendo papinha se babou, e ficou babada. Para a comunidade LGBT os usuários tornam essa palavra “neutra” em algo que possui um sentido para eles e, por consequência, produz uma ideologia, que para eles significa fofoca. Esta mesma palavra com este significado também é utilizada por mulheres, em alguns casos. O significado das gírias também varia de região para região. Considerações finais Como pudemos observar, a comunidade LGBT, mais especificamente os gays neste artigo, sofrem estereotipação, já que alguns ainda acreditam que a orientação sexual possa ser uma escolha. Para aqueles que pensam dessa forma, não há problema em as pessoas serem gays, desde que não sejam seus próprios filhos ou algum membro da família, forma de pensar vista no discurso de César. Outro ponto relativo aos estereótipos sofridos pelos gays é a comparação com o binarismo presente numa relação heterossexual, na qual um dos membros precisa ser o “homem” e o outro a “mulher”. Para os homossexuais, isso não faz sentido, pois na relação homossexual não se fica preso ao binarismo, conceito que precisa ser revisto para que se diminua o preconceito e a homolesbotransfobia, pelo fato de ainda estarmos presos em conceitos “fechados”, ainda presentes em nossa sociedade no século XXI. O estereótipo não é só da “comunidade heterossexual” para a “comunidade LGBT”, pois nesta as “minorias” se subdividem em grupos e classificações tais como “inferiores” e “superiores”, em geral relativos à condição socioeconômica. Referências BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 12 ed. São Paulo: Hucitec, 2006. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 3 ed. Difusão Europeia do Livro, São Paulo: 1980.
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BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Introdução à análise do discurso. 2 ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. ______. Enunciação e construção do sentido. In: FIGARO, Roseli. Comunicação e Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2013. BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CASTRO, Yeda Pessoa de. A influência das línguas africanas no português brasileiro. In: Secretaria Municipal de Educação – Prefeitura da Cidade do Salvador. (org.). Pasta de textos da professora e do professor. Salvador: Secretaria Municipal de Educação, 2005. DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Revisão técnica da tradução Eduardo Guimarães. Campinas, SP: Pontes, 1987. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. MARTHE, Marcelo. A César o que é de César. Veja, São Paulo, n. 2334, p. 106-107, 2013. MUSSALIM, Fernanda. Análise do Discurso. In: BENTES, Ana Christina; MUSSALIM, Fernanda. Introdução à linguística: domínios e fronteiras. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2004, v. 2, p. 101-142.
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VALORES CULTURAIS NA METÁFORA DE ESPECIALIDADE: IMAGENS DA CRISE ECONÔMICA MUNDIAL
Ieda Maria Alves (USP) Iolanda Galanes Alves (UVIGO) Odair Luiz Nadin da Silva (UNESP) Manoel Messias Alves da Silva (UEM) Introdução Fruto de um projeto intitulado "Valores culturais e didáticos na metáfora de especialidade: as múltiplas imagens da crise econômica mundial na imprensa escrita", e desenvolvido mediante um acordo de cooperação mútuo entre a Universidade de Vigo (Espanha) e a Universidade de São Paulo (Brasil), esta associada com a Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (Araraquara) e a Universidade Estadual de Maringá (Maringá), com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), no âmbito do Brasil, e na Espanha, pela Direção Geral de Política Universitária (DGPU), vinculada ao Ministério da Educação, Cultura e Desportos (MECD), com vistas ao Programa de Cooperação Internacional CAPESDGPU, o presente artigo busca apresentar informações quanto à montagem dos corpora em português brasileiro (PB) e espanhol europeu (EE), demonstrando ainda uma análise comparativa nas duas línguas com o que já foi possível identificar em relação às imagens criadas pela crise econômica mundial. Antes, porém, vale mencionar que o projeto busca contribuir para o estudo da terminologia econômica no EE e no PB, a partir de uma perspectiva comunicativa que considere a variação linguística (micro)cronológica, funcional e estilística com o objetivo de elaboração de um catálogo de imagens e metáforas didáticas sobre a crise econômica, que sirva de referência para o trabalho de terminólogos, tradutores, intérpretes e mediadores culturais, entre outros. Isso se concretizará a partir de uma abordagem semântica e comparada de um evento (a crise econômica), com base em neologismos jornalísticos, do ponto de vista
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intercultural e multilíngue. A utilização da imprensa como fonte permitiu, de um lado, contextualizar cronologicamente os dados e coletar terminologias in vivo, como também relacioná-las a uma comunidade cultural não apenas linguística, pois a percepção das crises econômicas é vista diferentemente segundo os antecedentes históricos em que se desenvolvem e à medida que as pessoas se sintam afetadas por elas. É levado em consideração, portanto, o estudo morfológico, conceptual e semântico comparado, a partir de uma perspectiva multilíngue e multicultural da crise por meio desses neologismos que foram utilizados na imprensa para explicá-los e o estudo das imagens (metáforas, analogias, comparações, etc.) presentes nesta terminologia. Os resultados previstos são, por um lado, estabelecer as bases para a feitura de um dicionário da crise econômica mundial (imobiliária, financeira, social e trabalhista) e, por outro, elaborar um catálogo de imagens e metáforas da crise econômica nas duas culturas estudadas. Devido ao espaço, serão priorizados nesse trabalho a apresentação da montagem dos corpora em EE e PB, assim como exemplos de metáforas já identificadas nas duas línguas. 1. Estabelecimento dos corpora A construção dos corpora em EE e PB se deu inicialmente com a divisão em dois subcorpus: um subcorpus espanhol e um subcorpus brasileiro. A princípio, constituiu-se, para cada uma das culturas, um corpus com as notícias divulgadas pela imprensa sobre a crise econômica mundial com as seguintes características: i. fontes: dois jornais de circulação nacional, de informação geral (El Pais, El Mundo // Folha de S. Paulo, O Globo) e um jornal especializado (Expansión // Valor Econômico) ii. frequência: um exemplar por semana (sexta-feira); iii. período: agosto de 2007 a dezembro de 2013; iv. totais: foram examinados um total de 332 exemplares de cada um dos três jornais. Para cada cultura, o corpus foi constituído por 996 exemplares dos jornais. Foi proposta a elaboração de uma ficha descritiva de cada jornal em que figurassem dados sobre: volume total de palavras de um exemplar desse jornal (ponderado) e um sumário que descrevesse as seções que representa. Cada um dos
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textos selecionados pelo parâmetro “crise econômica” foi identificado no começo e no final com uma chave que, posteriormente, permitiu saber de que texto provinha uma ou outra denominação. O formato das etiquetas de identificação que figuram no começo e no final do texto incluíram informações sobre: o nome do jornal, a data da publicação do artigo, o número da página, a seção, o autor do texto e os dados de tradução, caso houvesse. Assim, por exemplo, um texto da Folha de S. Paulo de 3 de agosto de 2007 que figurasse na página 8, na seção Internacional, assinada por Josep Stiglitz e traduzida por Walter Costa figuraria do seguinte modo: . Estes corpora foram constituídos por vinte e dois milhões de ocorrências em EE e trinta e cinco milhões de ocorrências no PB. Para se obter concordâncias, lista de palavras, contextos, estatísticas, etc., foi utilizado o programa Word Smith Tools na versão 6.0. Do estudo destes corpora foram obtidas as seguintes informações: 1. quanto espaço cada um dos jornais/culturas dedica, em média, ao evento crise econômica com relação a um exemplar-modelo (ficha descritiva); 2. uma relação de termos especializados presentes nos documentos-fonte com seus contextos e data de edição, jornal, seção, autor, etc.; 3. dados de frequência da presença de cada termo em relação com as variáveis cronológica, texto semiespecializado ou de divulgação, autor, etc. A partir das concordâncias, busca-se decidir, em revisão manual e por frequência, quais são os candidatos a termos mais representativos da crise econômica mundial e quais os conceitos (e denominações) que esta crise introduz na sociedade de recepção (por exemplo, crédito subprime, banco malo, etc.). Está sendo elaborada uma lista de termos da crise econômica (mais representativos + mais inovadores) que possam servir como palavras-chave para constituir a nomenclatura do dicionário já aludido, que se pretende construir na renovação do projeto. É possível que a lista de termos seja ampliada conforme os textos compilados sejam estudados, de modo que um mesmo conceito possa registrar várias denominações, sendo possível que algumas dessas denominações somente sejam detectadas nesta fase. É importante compilar a maior quantidade de variantes terminológicas e realizar a busca também com estas denominações.
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Estão sendo igualmente elaboradas as concordâncias com o programa Word Smith. Do estudo destes corpora serão obtidas informações pertinentes para um estudo semântico. A intenção é obter: 1. uma relação de termos especializados, presentes nos documentos-fonte, com seus contextos e data de edição, jornal, seção, autor, etc.; 2. informação nocional que permita estabelecer relações semânticas entre os conceitos da crise econômica, como também relacionar cada uma das variantes denominativas com o conceito que representam; 3. a partir do estudo dos termos, busca-se identificar os que apresentam uma imagem (metáfora, anáfora, comparação) em seu interior. A partir das concordâncias se decidirá, por meio de revisão manual e por frequência, quais são os termos mais representativos da crise e quais os conceitos (e denominações) mais importantes e se aprofundará no modo como a crise se apresenta e por meio de que imagens, nas respectivas sociedades. A partir de janeiro de 2014, foi iniciada uma Fase 2. Ela consistiu na elaboração de uma base de dados relacional que, partindo do conceito, sirva para agrupar suas variantes denominativas. Além disso, deve colocar em relação de equivalência as denominações que esse conceito receber em ambas as culturas. Para cada variante se identifica os dados de localização e se inclui informação sobre o campo que serve de referência na imagem. A informação pode ser recuperada por este último campo. O desenho da base de dados já se encontra ativo com os pesquisadores trabalhando on-line na Espanha e no Brasil. 2. Análise comparativa nas duas línguas O entendimento do que seja metáfora vem balizando as recolhas das imagens criadas pelos jornalistas sobre a crise econômica mundial. Essa imagem, considerada como veículo, pode ser qualquer interação entre dois campos semânticos em que um é externo (total ou parcialmente) em relação ao campo semântico de referência, ou seja, a crise. Aplicado à crise são os objetos ou ideias de um campo semântico qualquer (Medicina, por exemplo), que se utilizam como referência para denominar os conceitos da crise econômica (imobiliária, financeira, etc.). A imagem de origem é transportada a um texto econômico sobre a crise linguisticamente. Essa reutilização para um fim concreto, que é explicar a crise, faz com
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que o elemento linguístico externo adquire ou se realize no texto com um novo sentido (figurado ou semifigurado). Diante dessas premissas, faz-se necessário pensar inicialmente nas intersecções entre áreas de conhecimento, como as metáforas empregadas na terminologia da Economia. Há também termos da Medicina que formam termos metafóricos no domínio da Economia e é possível analisar a intersecção entre dois domínios de diferentes naturezas por meio de termos da Medicina, vinculado às Ciências da Saúde, empregados metaforicamente na terminologia da Economia, que se insere entre as Ciências Sociais Aplicadas. Aliás, os domínios terminológicos estão em permanente intersecção A história da formação das diferentes terminologias tem mostrado que os domínios terminológicos, longe de serem isolados entre si, influenciam-se e, à medida que novos domínios surgem a partir de outros, as respectivas terminologias também se originam desses domínios que lhes deram origem. Mas, o que a Medicina e a Economia têm em comum? São áreas muito presentes na vida cotidiana, de grande importância para todos os indivíduos. Como exemplo, temos a Canção de saudação ao Ano Novo, que diz: Adeus, Ano Velho / Feliz Ano Novo / Que tudo se realize no ano que vai nascer / Muito dinheiro no bolso, / Saúde prá dar e vender. Com base em Lakoff e Johnson (1980), pode-se definir a metáfora como uma operação mental básica pela qual podemos compreender o mundo através de mapeamentos de domínios conhecidos para domínios desconhecidos (domíniosfonte/domínios-alvo) e as conceptualizações são estruturadas em nossas mentes. É possível afirmar que há possibilidade de conceituar um domínio em termos de outro domínio. Com base em Fauconnier (1997), ela é um mapeamento que pode ser definido como uma correspondência, normalmente parcial, entre dois domínios (domínio-fonte e domínio-alvo), em que um elemento do primeiro domínio encontra sua contraparte no segundo domínio. Neste aspecto, pode-se afirmar que a Economia é um ser, como se percebe em exemplos já identificados no Projeto TermNeo, coordenado pela pesquisadora responsável do atual projeto no Brasil, como "saúde financeira", "saúde da economia",
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entre outros. Em EE, pode-se citar a imagem doença no âmbito do campo semântico da Medicina, com os seguintes exemplos: activo dañado, aliviar la deuda, banco sano, contagio de la crisis, convulsión, síntomas de recuperación, agravamiento, colapso inmobiliario, ataque ao corazón financiero, sangría del paro. Mais especificamente, quando se utiliza o termo crise, a palavra-chave por excelência nesse projeto, é preciso resgatar a descrição de um dicionário de língua geral, como segue: crise substantivo feminino (s XVIII)1 hist. med segundo antigas concepções, o 7º, 14º, 21º ou 28º dia que, na evolução de uma doença, constituía o momento decisivo para a cura ou para a morte p. opos. a lise 1.1 med o momento que define a evolução de uma doença para a cura ou para a morte 2 med dor paroxística, com distúrbio funcional em um órgão 3 psicn estado de manifestação aguda ou de agravamento de uma doença emocional e/ou mental, suscitado pela interferência de fatores objetivos e/ou subjetivos ‹terapia de c.› ‹c. de separação› 4 p. ext. estado de súbito desequilíbrio ou desajuste nervoso, emocional ‹c. de nervos› ‹c. de choro› 5 p. ext. iron. eventual manifestação repentina de um sentimento, agradável ou desagradável ‹c. de amabilidade› ‹c. de ciúme› 6 p. ext. iron. estado de incerteza, vacilação ou declínio ‹c. de fé› ‹c. moral› 7 econ grave desequilíbrio conjuntural entre a produção e o consumo, acarretando aviltamento dos preços e/ou da moeda, onda de falências e desemprego, desorganização dos compromissos comerciais 7.1 econ fase de transição entre um surto de prosperidade e outro de depressão, ou vice-versa Etimologia lat. crĭsis,is 'momento de decisão, de mudança súbita, crise (us. esp. acp. MED)', do gr. krísis, eōs' ação ou faculdade de distinguir, decisão' p.ext. 'momento decisivo, difícil', der. do v. gr. krínō 'separar, decidir, julgar'; já no lat. ocorre a acp. 'momento decisivo na doença'; a pal. ganha curso em ECON a partir do s XIX. (DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2012)
Pode-se observar ainda em outros exemplos no PB, oriundos do Projeto TermNeo, que o campo semântico vai se expandindo para outros domínios, como se vê na sequência: A origem dos excessos de cada é diversa: cada é uma . Mas a que consumiu a República de Weimar e a <superinflação> da Nova República de Sarney, ou a da Ásia no final dos anos 90 e da Argentina de Cavallo em
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pleno século 21 tiveram pelo menos um ponto em comum: a desordem orçamentária e o excesso dos gastos e de endividamento do governo. (EXAME, 16-10-02) Desde a afirmação de sua supremacia, em meados dos anos 80, os mercados financeiros foram palco de uma sucessão de <episódios críticos>. Entre eles, estão o <"crash"> das Bolsas de Valores em 1987, a <derrocada dos mercados imobiliários> em 1989, o da Bolsa de Tóquio em janeiro de 1990, os em 1992 e em 1993, a em meados de 1994 e a de dezembro do mesmo ano. Isso para não falar da , no <default russo de 1998>, na operação de resgate do LCTM> no mesmo ano e na de 2001. Os <desastres> só não tiveram maior alcance por conta das intervenções de última instância dos bancos centrais mais poderosos [Luiz Gonzaga Belluzzo]. (FSP, 23-11-03) Um governo que gasta demais, investe de menos e não tem agilidade regulatória para criar espaço para investimento privado é o calcanharde-aquiles do Brasil nestes momentos de . Luiz Carlos Mendonça de Barros acha que a situação vai se acalmar nas próximas semanas, apesar do que chama de "irresponsabilidade na concessão de empréstimos". Mas ele está convencido de que o mundo sairá desta crescendo menos. Esta é diferente das outras que enfrentamos no passado. Acontece no centro da economia global. É o mercado financeiro americano o centro da . (G, 17-08-07) Não é a primeira vez - nem a última - que a economia americana entra em e precisa daquele que, quando foi aplicado às economias emergentes, eles chamavam de <"resgate">. Agora eles é que precisam ser . O resgate das instituições símbolos do mercado financeiro tem vindo dos novos poderosos: os fundos soberanos de países árabes e asiáticos. O <socorro> para a sua própria economia virá do Tesouro americano, emissor da moeda ainda usada como referência no mundo. (G, 03-10-08) afetará desenvolvimento humano no mundo. O abalo causado pela deverá afetar o ranking do IDH, alerta o coordenador do relatório de Desenvolvimento Humano no Brasil, o economista Flávio Comim. Ciente de que a elevará o desemprego e a pobreza e afetará os rendimentos, ele observa que países cujos avanços têm sido puxados sobretudo pelo aumento da renda per capita ficarão mais vulneráveis à crise. Entre eles, poderão estar peso-pesados como Islândia - líder do ranking e que sofreu um com a -, EUA, China e Índia. (G, 19-12-08)
Em relação ao EE, os exemplos são ainda mais numerosos, haja vista que a crise se deu de forma mais intensa na Espanha e em alguns países da Europa. Apenas para exemplificação, vale citar as seguintes metáforas do campo semântico da físicamovimento: caída de la demanda, alza de los tipos de interés, burbuja inmobiliaria, capital flotante, repunte de las ventas, retrocesso del ahorro de los hogares. Vale a pena
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também mencionar as ações bélicas, no âmbito das guerras, como em: amenaza de los especuladores, ataque a los mercados, batalla, bomba nuclear, combatir, artillería pesada Há também alguns aspectos jocosos que se sobressaem, como o que se viu no jornal francês „Le Monde‟, comentados no Jornal O Globo pertencente ao corpus brasileiro: Lula tinha razão sobre <„marolinha‟> / Crise no Brasil foi <„vaguelette‟>, diz jornal. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez uma previsão “bastante correta” ao dizer, ano passado, que o não passaria de uma <“marolinha”> no Brasil, afirmou quarta-feira o jornal francês “Le Monde”, que traduziu a expressão por . Isso porque a recessão só durou seis meses, já que o país cresceu 1,9% no segundo trimestre. Zoellick concorda que o mundo está em “zona perigosa”, mas acha improvável um segundo mergulho recessivo das maiores economias do mundo. Reconheceu, porém, que sua confiança nisso “está sendo erodida diariamente pelas notícias econômicas”. Ele enfatizou o papel a ser desempenhando pelos países ricos para impedir o para os mercados em desenvolvimento. . Já a queda da atividade de 0,32% previsto pelo BC no terceiro trimestre de 2011 mostra “o no Brasil foi maior do que se esperava”, para a economista-chefe do Royal Bank of Scotland (RBS), Zeina Latif: — É um quadro pior do que se imaginava lá atrás. Tem mais do que se esperava. Não é um simples ajuste de estoque. É redução de investimentos, de consumo das famílias, do crédito sem força e aumento da inadimplência. O que a Europa está vivendo é . Nesse quadro, tudo pode se precipitar. Basta um evento: a quebra de um banco, um país não conseguir rolar sua dívida, e pode haver pânico no mercado. “A floresta já pegou fogo”, disse Armínio Fraga. Nesse clima é que estão reunidos hoje os chefes de Estado dos países que há quase 13 anos decidiram viver a aventura de uma moeda única. — Já há uma que reúne ao mesmo tempo uma enorme dificuldade de os bancos se financiarem e uma crise da dívida pública dos países membros. A Itália está com cada vez mais dificuldades de captar e a um custo muito grande. As opções estão se estreitando — diz Fraga. A situação não é ainda de , acha a economista Monica de Bolle, mas ela também usa a expressão <“crise sistêmica”>.
Assim posto, é possível concluir que a maior parte dos termos econômicos metafóricos, originários do domínio da Medicina, referem-se a uma situação difícil, patológica, não a uma situação de equilíbrio.
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Já para Berber Sardinha (2007, p. 16), as metáforas "são um recurso natural de qualquer língua". O exemplo "A economia saiu da UTI." revela que os tipos de comunicações (ou gêneros do discurso) mais convencionais admitem metáforas convencionais; os mais criativos, metáfora mais originais. Entender melhor como o mundo é conceptualizado, as pessoas, os sentimentos, os conceitos mais profundos e duradouros da humanidade, enxergar criticamente como grupos sociais e ideológicos enquadram o mundo e que tipos de mensagens querem passar e detectar o estilo de escritores, políticos e outros profissionais pode ser a contribuição valiosa que o estudo da metáfora pode trazer para os estudos linguísticos. Assim, os exemplos aqui trabalhados não são definitivos ainda, mas se enquadram naquilo que a literatura tem nomeado por estudos em pré-corpus. Dessa forma, "[...] se pueden efectuar estudios de pre-corpus con el fin de proponer hipótesis de trabajo o con el objetivo de explorar ciertas características o categorías para una posterior recolección más amplia y robusta" (PARODI, 2009, p. 27). Com essa concepção, outros exemplos retirados dos corpora são: Vivemos, porém, uma espécie de , com a permanência de vícios do passado que conspiram contra nossa passagem a um estágio de maturidade. Passado o pânico sobre a crise, o por risco cresce. <APETITE DO DRAGÃO>: Ontem, o governo norte-americano informou que a China efetuou compras de 1,9 milhão de toneladas de soja. ) Nos próximos dias, o secretário do Tesouro dos EUA, Timothy Geithner, deverá apresentar um novo plano para tentar livrar os maiores bancos dos EUA dos chamados . Bancos acabaram sendo estatizados pelo governo, limpos de , ou <"tóxicos“>, como agora são chamados, e depois vendidos no mercado ou liquidados. A estourou, e os EUA passam parte da conta para o mundo, inflacionando sua economia, desvalorizando o dólar e ajudando assim também a encarecer o preço das commodities, de resto ainda vistas como proteção contra a inflação e alternativa de investimento ao <papelório podre> americano. Uma alternativa a ser considerada é a inversão da lógica da separação entre o "good bank" e o <"bad bank“>. Em vez de focar na criação do
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"bad bank", em razão das dificuldades acima, o governo seria autorizado pelo Congresso a criar o "good bank", apenas com capital público em um primeiro momento. Esse novo banco compraria os ativos que hoje têm um preço de mercado transparente, deixando o "bad bank" com os ativos tóxicos. Uma das ideias que se debatem hoje é a de dividir os bancos em dificuldades em um ("bad bank") e outro com menores problemas de crédito ("good bank"). "As tradings de commodities que sobreviveram por longo período têm excelente administração de riscos", disse Jeffrey Christian, diretor executivo do CPM Group. Ele disse que não estava tão seguro quanto à competência dos recém-chegados para lidar com o risco. "O dinheiro que está chegando agora ao mercado é o ", disse ele na semana passada. "E creio que o vai se assustar um pouco quanto ao que o dinheiro burro pode fazer". Diferentemente das crises anteriores, a área econômica já identificou que o <estresse financeiro> desencadeado por problemas imobiliários nos EUA tem novas formas de contágio do Brasil que não apenas a volatilidade dos fluxos de capital especulativo de curto prazo.
Conclusões A pesquisa apresentada nesta mesa-redonda está ainda em fase de desenvolvimento, razão pela qual foram apresentados apenas resultados parciais, embora a equipe esteja coesa no sentido de sua continuidade a partir do pedido de renovação enviado à Capes e à DGPU para os anos de 2015 e 2016. A partir, portanto, da constituição dos corpora, já é possível afirmar que o maior volume de informação sobre a crise encontra-se no Brasil em comparação com a imprensa espanhola. Foram identificados como novos conceitos aqueles que vêm do sistema bancário dos Estados Unidos e que se espalharam para a imprensa de outros países sem que existisse previamente um conhecimento a respeito. Também estão sendo considerados novos conceitos aqueles que já existiam, mas ainda não faziam parte da terminologia de especialistas, como também aqueles que a partir de uma mudança semântica têm adquirido novas acepções. Dentre estes, tem despertado interesse na equipe os termos que recobrem imagens que estão sendo analisados a partir da construção da base de dados relacional.
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As ferramentas desenhadas especialmente para a manipulação dos corpora e para a análise do banco de dados têm permitido dar conta do conteúdo especializado sobre a crise econômica mundial, que é expresso por meio das Unidades de Conhecimento Especializado (UCEs) que vão desde o sufixo à fraseologia. Vale destacar, por último, a enorme instabilidade terminológica de alguns conceitos que se observa na produtiva criação de variantes denominativas que são recolhidas no banco de dados vinculadas a um único conceito em EE e PB. O trabalho com imagens que está sendo articulado com vários campos tem permitido identificar se há conceitos específicos de um país ou de um ator, quais são os domínios do conhecimento a que se vinculam, a qual campo semântico pertencem e os valores presentes neles, como as hipérboles, os eufemismos, as metáforas, etc. Referências ALVES, I. M. (2001). Em torno de um jargão técnico: o economês. In: URBANO et al. (orgs.). Dino Preti e seus temas: oralidade, literatura, mídia e ensino. São Paulo: Cortez, 2001, p. 173-80. BERBER SARDINHA, T. Metáfora. São Paulo: Parábola, 2007. FAUCONNIER, G. Mental spaces. Aspects of menaning construction in natural language. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. GALANES SANTOS, I.; ALVES, I. M. Metodología de trabajo para el estudio de las múltiples imágenes de la crisis económica en la prensa escrita. In GALLEGO, D. (coord.) Enfoques actuales en traducción económica e institucional. Actas del Congreso Internacional de Traducción Económica, Comercial, Financiera e Institucional / Current Approaches to Business and Institutional Translation. Proceedings of the International Conference on Economic, Business, Financial and Institutional Translation, Servicio de Publicaciones de la Universitat de Alacant (en prensa).
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GRESSER, J.-Y. Ontologies des risques financiers-Continuité d´activité, gestion de crise, protection des infraestructures critiques financières. In ROCHE, C. (ed.) Terminologie & Ontologie: Théories et applications. Actes de la conférence TOTh 2010 (p. 155-175). Annecy: Institut Porphyre. Savoir et Connaissance, 2010. HOUAISS, A.; VILLAR, M. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Instituto António Houaiss, 2012. KOCOUREK. R. La langue française de la technique et de la science. 2è. éd. Wiesbaden: Brandstetter Verlag, 1991. LAKOFF, G.; JOHNSON, M, Metaphors we live by. Chicago: The University of Chicago Press, 1980. MURAKAWA, C. de A. A., NADIN, O. L. Terminologia: uma ciência interdisciplinar. Série Trilhas Linguísticas nº 23. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2013. OLIVEIRA, I. Nature et fonctions de la métaphore en science. L´exemple de la cardiologie. Paris: L´Harmattan, 2009. PARODI, G. Lingüística de Corpus: de la teoría a la empiria. Madrid/Frankfurt: Iberoamericana/Vervuert, 2010. PROJETO
TermNeo.
Observatório
de
neologismos
do
português
brasileiro
contemporâneo (Projeto Integrado de Pesquisa junto ao CNPq n. 550520/2002-3, coordenado pela Profa. Dra. Ieda Maria Alves), Universidade de São Paulo, 1988-Atual.
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ASPECTOS DISCURSIVO-PRAGMÁTICOS NA RELAÇÃO LOCUÇÃO ADJETIVA-ADJETIVO: UM ESTUDO DA SEÇÃO GUIA Iury Mazzili Gomes DANTAS (UFRN)
Introdução Este trabalho trata-se de uma análise sobre o adjetivo e a locução adjetiva, com foco na sua relação com o substantivo modificado. O adjetivo é definido como a classe de palavra responsável por modificar o sentido de um substantivo ou classe similar, atribuindo-lhe novas propriedades (Bechara, 2009). A locução adjetiva, por sua vez, é uma construção formada por uma preposição mais um substantivo, que possui, do mesmo modo que o adjetivo, função de modificadora nominal (Cipro Neto; Infante, 1998). Uma vez que as duas classes possuem a mesma função e por vezes outras similaridades, tais como o mesmo radical e proximidade semântica, alguns autores, a exemplo de Neves (2010) e Bechara (2009), sugerem que existem situações em que as formas são correlatas, ou seja, podem ser substituídas entre si sem que ocorram alterações semântico-pragmáticas no texto final no qual a forma estava inserida. Para este trabalho, no entanto, defende-se que qualquer mudança na forma ocasiona uma mudança no significado, por mais sutil que esta seja. O objetivo geral é definir os padrões de uso da locução adjetiva, principalmente no que se refere a formas locucionais que possuem um adjetivo similar, seja em forma (ou seja, um adjetivo com o mesmo radical do substantivo que faz parte da locução) ou em sentido. Os objetivos específicos são: (i) verificar a frequência de uso de cada forma, de modo a perceber qual delas é a preferida pelos interlocutores; (ii) identificar as motivações para o uso de uma forma ou de outra quando se existe um termo ou uma construção correlata; e (iii) identificar os fatores que restringem o uso de uma ou de outra forma.
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Suporte teórico O suporte teórico é a Linguística Funcional Centrada no Uso (LFCU), a qual agrupa pressupostos teórico-metodológicos da Linguística Funcional norte-americana, representada por autores como Givón (1984), Bybee (2010), Traugott e Dasher (2005) e Furtado da Cunha et. al. (2013) e da Linguística Cognitiva, tal como desenvolvida por Lakoff (1987) e Lakoff e Johnson (1980). O princípio básico da LFCU é que a estrutura linguística é derivada de seu uso. Em outras palavras, é na interação entre os falantes que se dá a evolução de uma língua. A LFCU entende a gramática como uma estrutura maleável, em constante mutação. Mesmo sem rejeitar a ideia de que o ser humano possui um sistema biológico propício ao desenvolvimento da linguagem, para a LFCU a influência desse aparato biológico é menor do que a influência dos contextos de uso. Outra característica da LFCU é o estudo de todos os níveis de análise em conjunto. Aqui, não se faz uma análise desconsiderando, por exemplo, fatores de natureza semântica ou textual, pois, uma vez que se trabalha com língua em uso, todos os níveis são relevantes nas análises. Considera-se que todos os níveis de análise estão intrinsecamente ligados, e quaisquer mudanças ocorridas em um nível são refletidas também nos outros. Corpus e Procedimentos metodológicos O corpus é composto de 12 textos, retirados de 12 edições da revista Veja, publicadas entre janeiro e março de 2013. Para este trabalho, foi utilizada a seção Guia, que corresponde a textos de natureza injuntiva, cujo objetivo é auxiliar o leitor com problemas de diversas naturezas, tais como o cuidado com joias, conselhos sobre como se planejar para uma viagem, dicas na realização de festas infantis, etc. A pesquisa tem caráter quantitativo e qualitativo. Trabalhou-se com contagem de dados no corpus selecionado e então com a análise desses dados. O primeiro passo foi a coleta dos dados: nos 36 textos que serviram de corpus, foram registrados todos os usos de adjetivo e de locução adjetiva. Com esses dados em mãos, procedeu-se para o comparativo da frequência de uso. O passo seguinte foi a análise dos dados, conferindo-
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se a possibilidade de uso de uma forma correlata (um adjetivo que se relaciona semanticamente com uma locução adjetiva) para cada adjetivo ou locução adjetiva encontrada, seguido de uma análise das motivações para o uso da forma encontrada no texto em detrimento da outra possibilidade. Caracterização do adjetivo e da locução adjetiva Para este trabalho, em razão do curto espaço, fez-se um recorte com apenas 3 gramáticas de língua portuguesa, escolhidas dentre outras por tratarem de adjetivo, de locução adjetiva e da relação entre essas formas: Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara (2009); Gramática da Língua Portuguesa, de Pascoale Cipro Neto e Ulisses Infante (1998); e Gramática de usos do português, de Maria Helena Moura Neves (2011). Bechara (2009), em sua Moderna gramática portuguesa, define adjetivo como “a classe de lexema que se caracteriza por constituir a delimitação, isto é, por caracterizar possibilidades designativas do substantivo, orientando delimitativamente a referência a uma parte ou a um aspecto do denotado” (p.142). Sobre a locução adjetiva, encontra-se o seguinte na gramática de Bechara (2009, p.144-145): Locução adjetiva - é a expressão formada de preposição + substantivo ou equivalente com função de adjetivo: Homem de coragem = homem corajoso Livro sem capa = livro desemcapado "Era uma noite medonha Sem estrelas, sem luar" (GD) Homem de cor Escritores de hoje Note-se que nem sempre encontramos um adjetivo de significado perfeitamente idêntico ao de locução adjetiva: Colega de turma A língua poética é mais receptiva ao emprego do adjetivo que exprime matéria em lugar da locução adjetiva:
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áureas estátuas - estátuas de ouro nuvens plúmbeas - nuvens de chumbo colunas marmóreas - colunas de mármore (p. 144-145)
Nota-se que o autor trata da especificidade de formas, apresentando exemplo de uma locução que não pode ser substituída por um adjetivo simples (colega de turma). O autor também menciona a especificidade quanto ao uso de uma ou outra forma, ao afirmar que adjetivos que tratam de matéria são mais aceitáveis na linguagem poética. Cipro Neto e Infante (1998), em sua Gramática da Língua Portuguesa, definem o adjetivo como a palavra que caracteriza o substantivo, ou atribuindo-lhe qualidades (ou defeitos) e modos de ser, ou indicando-lhe o aspecto ou o estado, tal como os exemplos a seguir: sindicato fictício, eficiente, deficitário, representativo. Quanto à locução adjetiva, os autores a definem como um conjunto de palavras que tem valor de adjetivo. Essas locuções são formadas por uma preposição e um substantivo ou por uma preposição e um advérbio e, para muitas delas, encontram-se adjetivos equivalentes (p.245): Conselho de pai (=paterno)
inflamação da boca (=bucal)
Atitude sem qualquer cabimento
alma em frangalhos
Jornal de ontem
gente de longe
Cipro Neto e Infante (1998) são os únicos autores que dedicam uma seção do capítulo sobre adjetivos à questão da correlação entre adjetivo e locução adjetiva. De acordo com os autores, “a correspondência de significado nesses casos não significa que a substituição da locução pelo adjetivo correspondente seja sempre possível.” (p. 252) Os autores apresentam alguns casos, como colar de marfim e contrato leonino, cujos correspondentes colar ebúrneo e contrato de leão, estariam restritos, respectivamente, à linguagem literária e à linguagem jurídica. Por outro lado, em alguns casos, a substituição é “perfeitamente possível”, transformando a equivalência entre essas formas em mais uma ferramenta de aprimoramento dos textos (p.252). Em sua Gramática de usos do português (2000), Maria Helena de Moura Neves define o adjetivo como uma classe utilizada para atribuir uma propriedade singular a
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uma categoria denominada por um substantivo. Essa atribuição de propriedades funciona de dois modos: qualificando, como em “Lembro-me de alguns, Dr. Cincinato Richter, homem GRANDE, GENTIL e SORRIDENTE, que às vezes trazia seu filhinho Roberto e a esposa, moça BONITA e SIMPÁTICA.”; ou subcategorizando, como em “Foi providenciada perícia MÉDICA e estudo PSICOLÓGICO” (exemplos da autora, encontrados na página 173). A autora faz a distinção entre os adjetivos simples e os ‘perifrásticos’, ou locuções adjetivas, apresentando uma descrição mais ampliada sobre a locução e sua correlação com os adjetivos. Vejamos: Na língua portuguesa existem: a) adjetivos simples, como AMIGO e DESAGRADÁVEL, em Pus-me a dar pancadinhas AMIGAS no dorso onde a transpiração produzia uma DESAGRADÁVEL unidade. (BH) b) adjetivos perfrásticos, ou locuções adjetivas, como DO INTERIOR, em Um jovem DO INTERIOR, que acabara de chegar a Berlim, estava iniciando seus estudos de chinês para entender, pois não confiava em traduções. # Neste caso, pode-se até encontrar um adjetivo da língua que seja correspondente exato da locução usada: Um jovem INTERIORANO, que acabara de chegar a Berlim estava iniciando seus estudos e chinês para entender, pois não confiava em traduções. Não é necessário, entretanto, que isso ocorra para que uma expressão se configure como locução adjetiva, já que a existência, ou não, de um adjetivo correspondente é questão de léxico, e não da gramática da língua. Assim, também é uma locução adjetiva a construção DE TRANSPORTE, que ocorre em Entende-se, assim, o aparecimento dos sistemas digestivo, respiratório, DE TRANSPORTE, excretor. Independentemente de ser possível, ou não, o uso de um adjetivo como TRANSPORTADOR, TRANSPORTATIVO, TRANSPORTATÓRIO ou TRANSPORTANTE, por exemplo, em substituição. (p. 173-174)
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A autora afirma, ainda, que as locuções adjetivas compreendem principalmente expressões formadas por preposição de, em ou a + substantivo; e preposição sem + substantivo. Apresentação e análise dos Dados De acordo com um estudo anterior sobre a correlação entre a locução adjetiva e o adjetivo (Dantas; Silva, 2012), definiram-se quatro grandes motivações para a escolha de uma ou de outra forma, conforme apresentadas no contexto comunicativo. Foram considerados fatores dos níveis semântico, pragmático e sintático, tais como o paralelismo linguístico, possíveis mudanças no significado decorrente da substituição de uma forma por outra e o padrão discursivo no qual a forma se insere. Na seção Guia, foram encontrados 1453 adjetivos em forma simples e 1108 locuções adjetivas. Dentre as locuções, 516 não possuem um correspondente, restando 592 para análise. Os resultados estão similares aos da pesquisa anterior, que revelou que a maior parte dos usos de locuções adjetivas se deve a motivações semânticas. Para fins de análise, foram consideradas 4 motivações implicadas no uso da locução adjetiva ou do adjetivo correspondente, sendo essas 4 as mais significativas e recorrentes. São elas: i) alteração semântica: implica mudança no sentido quando comparados adjetivos e locuções adjetivas de sentido similar; ii) forma lexicalizada: é um tipo de alteração semântica que se destaca em razão do uso de uma construção cristalizada; iii) paralelismo estrutural: é uma motivação de natureza sintática, utilizada para manter a continuidade no uso de determinada forma quando sequenciada; e iv) motivação estilística: implica a motivação mais decorrente de estilo, de modo que tanto o adjetivo simples quanto a locução adjetiva podem ser usados sem que ocorram mudanças semânticas, ficando a escolha da forma mais a critério do autor do que governada por questões textuais. Nota-se que a maior parte dos casos é composta por formas locucionais que possuem termos correlatos, mas que uma substituição resultaria em grandes mudanças semântico-pragmáticas. Seguem os quadros com as quantificações dos dados encontrados nas revistas:
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Motivação para o uso locucional
Ocorrências
Percentuais
Alteração semântica
354
59,8 %
Lexicalização formal
143
24,1 %
Paralelismo Estrutural
52
8,8 %
Motivação Estilística
43
7,3 %
Total
592
100%
Tabela 1: Quantificação dos dados na seção Guia
Os resultados apontam para uma realidade diferente daquela teorizada em algumas das gramáticas consultadas, a exemplo de Neves (2000) e Bechara (2009). Segundo esses autores, algumas locuções adjetivas apresentam correlatos perfeitos em forma adjetiva, podendo haver substituição de uma por outra sem qualquer prejuízo. Ocorre, porém, que a maior parte das locuções são específicas a ponto de não permitirem substituição na forma pela não existência de um termo correlato. Em seguida, vêm as locuções cuja substituição por um adjetivo implicaria alteração semântica, ficando as formas que possuem correlatos de sentido semelhante em minoria. Considerando-se as motivações para a opção pela locução adjetiva em detrimento do adjetivo equivalente, prevalecem os casos em que a substituição de uma forma pela correspondente implicaria alteração semântica na substituição, pois o uso de sua forma correspondente ocasionaria mudança total no sentido proposto, conforme as ocorrências em 2 e 3: 1. É consenso também que ter escapado da armadilha de ser o eterno país do futuro garante apenas que a direção é correta e que não haverá retrocessos traumáticos. Para o Brasil efetivamente dar a passada final e entrar para o clube das nações ricas e civilizadas, será necessário aproveitar muito melhor e mais rapidamente as oportunidades do momento demográfico favorável, o bônus de termos uma população economicamente ativa que cresce mais do que a média. (VEJA, 9 de janeiro de 2013)
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2. Uma semana antes, o senado anunciou um pacote de racionalização de gestão que vai economizar, em dois anos, 262 milhões de reais. Será que os parlamentares brasileiros ouviram o clamor da opinião pública e tomaram jeito? Mas ainda é cedo para saber se esses arroubos de contenção de abusos sinalizam uma guinada duradoura na direção correta ou se são apenas uma estudada oferenda no altar da austeridade feita pelos novos presidentes do Senado, Renan Calheiros, e da Câmara, Henrique Eduardo Alves. (VEJA, 6 de março de 2013) Apesar de as formas pertencerem a um campo semântico similar, muitas vezes possuindo o mesmo radical, os sentidos dos termos nem sempre vão ser correspondentes em todas as situações. No amostra destacada no trecho 2, país do futuro, haveria uma duplicidade de sentido no caso de uma substituição por país futurista, criando uma situação diferente da proposta inicialmente. Além de incluir o sentido de do futuro, o termo futurista faz menção, também, ao movimento artístico-literário do final do século XIX, o Futurismo. O termo futurista, muitas vezes, é utilizado para tratar de ideias de velocidade e tecnologias ainda não alcançadas, como propulsores antimatéria e transporte instantâneo, bem diferentes da ideia sugerida no texto da VEJA sobre a necessidade da realização imediata dos planos econômicos propostos pelo governo brasileiro. No segundo caso, ocorre a expressão contenção de abusos, que também apresenta uma forma correlata cuja mudança ocasionaria alterações semânticas no texto. Aqui, a construção contenção abusiva traria um sentido totalmente oposto ao sentido da locução utilizada no texto em (2). Enquanto que, no Editorial da VEJA 2311, Um passado para refletir, a expressão contenção de abusos refere-se ao fato de deputados e senadores brasileiros limitando as próprias regalias, uma contenção abusiva, por outro lado, implica uma contenção censurável ou reprovável, trazendo uma mudança de significado que pode implicar uma censura na contenção de benefícios como o 14º e 15º salários. Outra motivação diz respeito à especialização do emprego de determinadas estruturas, que resulta em formas lexicalizadas, a exemplo de construções formadas por um substantivo mais um adjetivo ou uma locução adjetiva que servem como substantivo
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próprio, sendo utilizadas para se designar um referente específico. Entram aqui nomes de cidades, objetos ou instituições, que foram registrados da forma como são encontrados nos textos. 3. Um reportagem desta edição de VEJA mostra alguns dos privilégios que os 513 deputados e 81 senadores desfrutam em Brasília. São tentações inatingíveis para a imensa maioria dos brasileiros, como moradia gratuita, plano de saúde para toda família sem limite de gastos e com duração vitalícia e verba mensal adicional ao salário de até 34000 reais. (VEJA, 6 de março de 2013) 4. Se o teto era inflamável, a casa não poderia ter recebido no palco uma banda que utiliza efeitos pirotécnicos – o que era sabido de todos. Se a lotação máxima era de 600 pessoas, não se pode aceitar que tenha entrado quase o dobro. Em lugares públicos em que se aglomeram multidões, tem de haver extintores de incêndio e saídas de emergência. Nada disso foi observado. (VEJA, 6 de fevereiro de 2013) Na ocorrência 4, plano de saúde, a construção é empregada para designar um serviço de assistência médica. Sua forma correspondente, plano saudável, não tem a mesma implicação. Ainda que possível em outras situações (um plano de reeducação alimentar, por exemplo, pode ser um plano saudável), o termo plano de saúde não aceita substituição. Em 5, temos dois exemplos de formas lexicalizadas, extintores de incêndio e saídas de emergência. Como no dado anterior, existem termos correlatos para as duas locuções adjetivas: extintor incendiário e saída emergencial. Ocorre, porém, que haveria alteração semântica: no primeiro caso, haveria uma inversão de sentido, uma construção de sentido diverso e contraditório, dada a incompatibilidade semântica dos termos. Para o caso de saída de emergência, não há nenhuma grande mudança no sentido quando alterada a forma para saída emergencial, mas, uma vez que o uso da locução é cristalizado para representar saídas reservadas para situações de risco, o que
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se espera é o uso da construção substantivo mais locução (em vez de substantivo mais adjetivo) para representar uma dessas saídas. Enquanto que as mudanças de sentido podem ser similares às mudanças ocorridas nos casos de alteração semântica, as formas lexicalizadas diferem dela porque, em geral, alcançam seus referentes por meio da mesma construção, mais especializada. Enquanto banco brasileiro pode representar um banco localizado no Brasil, Banco do Brasil já remete a uma instituição específica. O mesmo vale para o dado saída de emergência, apresentado anteriormente. O próximo caso são as formas motivadas por paralelismo estrutural, casos em que o contexto de uso limita a escolha por fatores sintáticos e textuais. O paralelismo estrutural é a tendência da manutenção de uma estrutura após o uso de outra similar, ou seja, nos casos em que há sequências de substantivos modificados ou por um adjetivo ou por uma locução, o mais provável é que se tenha uma continuidade da forma utilizada, seja esta uma sequência de termos modificados por adjetivos simples ou uma sequência de termos modificados por locuções adjetivas. As formas escolhidas em razão do paralelismo podem ou não possuir um termo correspondente de significado similar, mas em muitos casos o paralelismo prevalece, sendo locuções muitas vezes utilizadas em sequência, conforme a amostra 6: 5. Uma reportagem desta edição de VEJA mostra como a maioria das projeções do governo para o crescimento da economia, a ampliação da malha rodoviária, da oferta de energia, do número de vagas escolares, entre outros indicadores, é ambiciosa demais e realista de menos. Grande parte das estimativas oficiais não pode ser encarada como meta a ser atingida. São miragens. (VEJA, 16 de janeiro de 2013) Na amostra 5, em meio a termos que não possuem correspondentes ou termos cujo correspondente ocasionaria mudança semântica, os dados projeções do governo e crescimento da economia demonstram locuções com correlatos de sentido similar provavelmente escolhidas por razões sintáticas. O redator costuma manter um padrão nas formas quanto utilizadas em sequência. Sejam adjetivos ou locuções adjetivas, por
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questões de paralelismo estrutural, a sequência de formas costuma ser mantida, sendo esse mais um fator relevante para a escolha de uma forma ou de outra. Outro aspecto que parece motivar a opção pela locução adjetiva ou pelo adjetivo correspondente é de natureza estilística. Nesse caso, a locução adjetiva não apresenta grande especificidade semântico-textual, podendo ser substituídas sem que ocorram grandes mudanças no texto final. Os trechos a seguir ilustram a situação: 6. Mas, como diz o poeta, nem tudo é naufrágio. Parece estar nascendo uma tenra plantinha de racionalidade no imenso deserto de insensatez que tem caracterizado as ações do governo. (VEJA, 13 de fevereiro de 2013) 7. Os privilégios já derrotaram antes outros presidentes dispostos a aproximar um pouco mais o folgado modo de vida dos integrantes do Congresso da labuta diária dos brasileiros que os sustentam com seus impostos. O PMDB de Renan e Henrique Alves tem no seu passado a renhida luta pela redemocratização do Brasil. (VEJA, 6 de março de 2013) O primeiro caso, encontrado no trecho 7, ações do governo, poderia ser substituído por ações governamentais. Como a primeira construção inclui um artigo definido (o), há generalização quando se comparadas as duas formas, mas tanto a construção ações do governo quanto a construção ações governamentais implicam o mesmo sentido: ações tomadas pelo governo, de modo que essa generalização não resulta em mudança no significado. Diferente das situações apresentadas anteriormente, não há uma implicação tão grande de fatores sintáticos ou semânticos, aumentando-se as possibilidades da liberdade do uso entre uma forma e outra. Do mesmo modo, redemocratização do Brasil e redemocratização brasileira possuem o mesmo significado, não havendo restrições textuais que inviabilizem a permuta de uma forma pela outra.
Conclusões
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Conforme os resultados apontam, há uma relação intrínseca entre forma e função, havendo sempre motivação para cada escolha linguística. A especialidade semântica termina sendo responsável pela forma utilizada pelo interlocutor, não havendo acaso nas escolhas ou formas que podem ser interpoladas sem que resultem mudanças semântico-pragmáticas no texto final.
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ANÁLISE CRÍTICA DE PRÁTICAS DISCURSIVAS: O PAPEL DO DESIGN VISUAL NO PROCESSO DE RECONTEXTUALIZAÇÃO
Ivandilson Costa (UERN/UFPE)
Introdução Fairclough (2001) já chama a atenção para o processo da comodificação, em que os domínios e as instituições sociais, cujo propósito não seja o de produzir mercadorias no sentido econômico restrito de artigos para a venda, vêm, não obstante, a ser organizados e definidos em termos de produção, distribuição e consumo de mercadorias. Em termos de ordem de discurso, acentua o autor, podemos entender a comodificação como a colonização de ordens de discurso institucionais e mais largamente da ordem de discurso societária por tipos de discurso associados à produção de mercadoria. O fenômeno passa a ser revisto a partir da consideração de dados aportes, ancorados no papel da linguagem na conjuntura das práticas sociais, especialmente no que se reporta ao processo atual na economia da sociedade moderna, o da globalização. Nesse contexto, Fairclough (2006) defende que a relação entre o „fora‟ e o „dentro‟ pode ser vista como uma relação de recontextualização – entidades externas são recontextualizadas, relocadas dentro de um novo contexto. Recontextualização pode ser, portanto, vista como uma relação dialética: ao mesmo tempo uma relação de colonização e de apropriação. A presente proposta busca investigar como um gênero, pertencente a uma ordem não necessariamente mercadológica, passa a incorporar caracteres de gêneros promocionais, mais especialmente o da publicidade. Para tal, examinará a reestruturação de um gênero vinculado à esfera do discurso político, o guia eleitoral (cf. LUNA, 2006), a partir da análise de como se dá a estruturação do design visual. O foco aqui será a metafunção representacional, correlata da função hallidayana ideacional e, mais
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propriamente, a relação das representações narrativas e seus processos – ação, reação, processo verbal, processo mental. A amostra delimitada para esta abordagem foi destacada de material resultante de procedimento de ampliação de corpus de nossa pesquisa anterior sobre a recontextualização do guia eleitoral (PACHECO; COSTA, 2010; COSTA; PACHECO, 2010; COSTA; PACHECO, 2011). O material consta de dez edições do programa televisivo do guia eleitoral da candidata ao cargo político majoritário do país, Dilma Roussef, veiculadas em rede nacional de televisão entre o período de 17 de agosto a 30 de setembro de 2010. Destes, tomamos para recorte, análise e exposição no presente trabalho, o primeiro programa exibido, por julgarmos ser significativo, principalmente em termos de trabalho de construção e consolidação de marca publicitária, fenômeno chave nesta investigação. A amostra foi tratada e analisada com base nos postulados teóricos erigidos para esta pesquisa, especialmente os enquadres da Gramática do Design Visual (KRESS; van LEEUWEN, 2006), destacadamente os elementos dos significados representacionais narrativos; e da teoria Telefílmica (IEDEMA, 2001; OUVERNEY, 2008), mais detidamente o nível do enquadramento, caracterizado pelo recorte saliente/representativo da fotografia. Desenvolvimentos e conceitos operacionais da teoria de base: a Análise Crítica do Discurso Concebida como uma proposta de continuidade à Linguística Crítica, a Análise Crítica do Discurso (ACD) abrange uma abordagem teórico-metodológica que atribui grande relevância à compreensão da linguagem na condução da vida social e preenche uma lacuna quanto à atenção até então dada ao discurso como elemento que molda e é moldado pelas práticas sociais. A ACD, nesse sentido, considera o contexto de uso da linguagem como um elemento crucial, propondo pesquisas voltadas mais para relações sociais não tão estabilizadas de luta e conflito, materializadas por discursos como o institucional, político, de gênero (gender), da mídia. Com isso, os conceitos de ideologia, poder e hierarquia vêm a ser fundamentais para a interpretação ou explicação do texto. A ACD leva em conta, ainda, os pressupostos de que:
(a)
o
discurso
é estruturado
pela
dominação;
(b)
cada
discurso
é
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historicamente produzido e interpretado, isto é, está situado no tempo e no espaço; (c) as estruturas de dominação são legitimadas pelas ideologias dos grupos que detêm o poder (cf. WODAK, 2004). Numa primeira fase dos estudos em ACD, Fairclough (1990; 2001 [1992]), ao conceber sua Teoria Social do Discurso, elaborou um modelo que considera três dimensões passíveis de serem analisadas: a do texto, a da prática discursiva e a da prática social. Diferentes categorias analíticas se enquadram em cada uma das dimensões. Na dimensão do texto devem ser observadas as categorias de vocabulário, gramática, coesão e estrutura textual, a fim de se observar a organização textual; na dimensão da prática discursiva devem ser examinadas as categorias de produção, distribuição e consumo de textos, bem como noções como contexto, força ilocucionária, coerência e intertextualidade, a fim de verificar o modo como o discurso é distribuído e consumido pela sociedade ou por grupos sociais específicos; na dimensão da prática social devem ser observadas as categorias de ideologia, sentidos, pressuposições, metáforas, hegemonia, orientações econômicas, políticas, culturais e ideológicas, a fim de se observar a manutenção ou a mudança que o discurso produziu na sociedade ou em grupos sociais particulares. Mais recentemente, especialmente a partir dos estudos expostos em Chouliaraki e Fairclough (1999), a teoria caminhou para uma consideração mais enfática do papel crucial da prática social. Passou a ser posta em xeque a centralidade do discurso como foco dominante na análise, passando o discurso a ser visto como tão somente um dos momentos das práticas sociais. Foi nesse contexto que tomaram assento novos aportes, que se agregaram para reconstruir o arcabouço teórico da ACD: o Realismo Crítico de Baskhar; a teoria crítica da racionalidade comunicativa de Habermas; a Linguística Sistêmico-Funcional de Halliday; a teoria da estruturação de Giddens; o materialismo histórico-geográfico de Harvey; o tratamento da ideologia de Thompson. Nessa perspectiva, Ramalho e Resende (2011), remontando especialmente a Fairclough (2003), elencam os seguintes postulados no que se reporta às redes de ordens de discurso: a rede de opções de ordens de discurso é formada por gêneros, discursos e estilos – modos relativamente estáveis de agir, representar e identificar discursivamente;
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o potencial de linguagem para significar é mantido tanto por recursos disponíveis no sistema quanto por recursos disponíveis nas redes de ordens de discurso; por meio da análise de gêneros, discursos e estilos em textos situados é possível investigar relações entre aspectos discursivos e não discursivos de práticas sociais; os três tipos de significados sempre presentes em textos associam-se aos elementos constituintes de ordens do discurso: o significado acional associa-se a gêneros, o significado representacional, a discursos e o significado identificacional, a estilos. Perscrutando uma teoria de fundo: a onipresença da linguagem publicitária O conjunto de necessidades materiais e sociais dá a tônica da relação informação/persuasão na publicidade: os objetos que usamos e consumimos deixam de ser meros objetos de uso para se transformarem em veículos de informação sobre o tipo de pessoa que somos ou gostaríamos de ser. A rigor, podem ser apontadas como cinco as tarefas básicas do publicitário (VESTERGAARD; SCHRØDER, 1988, p. 47): “chamar a atenção; despertar o interesse; estimular o desejo; criar convicção; induzir a ação”. Cabe ao publicitário, nesse sentido, para criar verdadeira convicção sobre a superioridade de um produto em relação aos concorrentes, o desenvolvimento daquilo a que Vestergaard e Schrøder (1988, p. 65) chamaram de Proposta Única de Venda (PUV): “o mais provável é que as PUV sejam essencialmente estéticas como o sabonete transparente ou a pasta de dentes com listas; a inovação estética em grande caso é revelada por uma inovação de estética linguística”. A par disso, o discurso publicitário, segundo Carvalho (1998, p. 59), “tem as características especificas da sociedade na qual se insere e é o testemunho autorizado dos imaginários sociais do contexto envolvente, revelando o funcionamento cultural”, ajudando a configurar a publicidade como um grande instrumento da sociedade de consumo no sentido de tornar imóveis os códigos sociais existentes, colocando cada um dos indivíduos em seu devido lugar. Bhatia (2004) faz uma abordagem detalhada sobre características formais e funcionais dos gêneros promocionais, dando destaque para o anúncio publicitário, do qual explana a estrutura dos movimentos retóricos. Nesse ponto, o autor ressalta que
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“um dos mais importantes movimentos no discurso da publicidade é „oferecer uma descrição do produto‟ como bom, positivo e favorável” (BHATIA, 2004). Ao elaborar uma retrospectiva de suas pesquisas sobre a marca publicitária, Zozolli (2005) tece reflexões sobre a marca comercial/institucional, apreendida como bem simbólico, concebido como signo social resultante de um trabalho de coenunciação por parte dos agentes de sua produção e transmissão, do(s) destinatário(s), bem como do próprio mercado e da sociedade. Echeverria (2006), ao analisar o modelo de construção de marcas de uma importante agência de publicidade, põe a marca como consistente estratégia para a sobrevivência dos negócios pela criação mesma de um forte relacionamento com o consumidor. O conjunto destes postulados põe, portanto, o próprio fazer publicitário como aquilo que nos confere o poder de dar um certo conteúdo representativo ao mundo dos produtos: como quis Péninou (1974), muitos não têm conteúdo para nós, não nos dizem nada e continuariam nada significando, a não ser pela promoção publicitária. Significados Representacionais, Processos narrativos e recontextualização do gênero guia eleitoral O significado linguístico, em sua interface com o aparato lexicogramatical, não se apresenta em uma relação especular com a realidade. O que temos são dimensões da estrutura semântica que se organizam para a construção em três dimensões: como representação, como intercâmbio, como texto (HALLIDAY; MATHIESSEN, p. 20; GHIO; FERNÁNDEZ, 2008, p. 91). Assim, temos um princípio metafuncional ideacional, uma metafunção interpessoal, uma metafunção textual. Para o objeto do presente trabalho, nos deteremos na análise de um fenômeno com o foco mais na metafunção ideacional através da transitividade, categoria “responsável pela materialização desse conjunto de atividades [fluxo de eventos ou acontecimentos atos ligados a agir, dizer, sentir, ser e ter] através dos tipos de processos (verbos), com cada tipo modelando uma fatia da realidade” (CUNHA; SOUZA, 2007, p. 53). Ainda sob os propósitos levantados desde a introdução deste trabalho, vamos tomar os postulados da gramática do design visual. No que tange ao nosso foco, temos que a função representacional é obtida nas imagens através dos participantes
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representados, que podem ser pessoas, objetos ou lugares. Kress e van Leeuwen (2006) subdividem essa função em estrutura narrativa, quando há presença de vetores indicando que ações estão sendo realizadas, ou conceitual, quando existe uma taxonomia. No que se refere às representações narrativas, temos que os participantes se engajam em eventos e ações, podendo estabelecer uma relação entre si. O que distingue uma proposição visual narrativa é a presença de uma ação, desempenhada por um vetor. De acordo com o tipo de vetor e número de participantes envolvidos, é possível perceber alguns processos narrativos: ação (ator, meta, interatores), reação (reator, fenômeno), processo verbal (dizente, enunciado), processo mental (experenciador). Na amostra em análise podemos destacar o uso de elementos da proposição visual narrativa. Logo na primeira cena da edição, vemos a imagem de um carro que avança em direção a Brasília, detalhe que podemos depreender pela característica edificação da ponte JK, que vai se descortinando. No carro, paralelamente à elocução de sua voz, vemos a silhueta da candidata Dilma Roussef, que vislumbra o cartão-postal, à medida que avança e tergiversa sobre assuntos paralelos aos de sua plataforma de campanha. Aqui, numa estrutura considerada transacional, temos dois participantes: um ator, marcado pela figura humana da silhueta de Dilma, aquele do qual parte um vetor, responsável pela direção de movimento; um outro se identifica como a meta, definida pela edificação, simbolizando Brasília, o epicentro do poder, se tomarmos o contexto de situação, marcado por uma disputa acirrada entre candidatos ao cargo eletivo majoritário. O recurso telefílmico utilizado aqui é o da visão com, em que o espectador tem uma foco de privilégio, comungando do olhar e da ação do protagonista da cena. Para um caso como este, Sells e González (2003) veriam a presença de um terceiro participante do enquadre visual, o espectador, (e)leitor, que acompanha o ator na realização em direção de sua meta. Talvez não seja desarrazoado propor este tipo de organização visual, quando se trata do estabelecimento de uma campanha eleitoral e se passa a „convidar‟ o potencial eleitor, em um exercício de indução, convicção, persuasão.
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Temos ainda uma ação marcada pelo olhar, sendo o participante principal, marcado pela figura de Dilma, considerado o reator, separado por uma faixa tênue, mas considerável, a imagem de outro ponto topográfico chave, o lago Paranoá. De seu outro lado, a imagem pouco distante, mas nítida de Brasília. O recurso fílmico mais uma vez leva o (e)leitor a compartilhar do objeto para o qual se direciona o vetor, aqui, por se tratar de ação visual marcada pelo olhar, chamado de fenômeno. Cardoso (2008) vai buscar resultados congruentes aos nossos ao analisar o papel dos componentes visuais do anúncio publicitário na construção do recurso persuasivo, especificamente para o caso que nos interessa de perto, o das representações narrativas, potencializadas pelos elementos ator/vetor/meta, quando da associação com o apelo em favor da obtenção de um produto e seus adjuvantes aquisição, compra, consumo. Em nosso caso, pelo recurso telefílmico da câmera por detrás, cumulam a meta do participante ator na imagem (a figura humana da então candidata Dilma) com a do participante
espectador/(e)leitor/consumidor,
que
acabam
assumindo,
pelo
direcionamento da linha vetorial, o objeto de desejo, o poder. Este, no enquadre, vem representado pelas edificações emblemáticas da cidade de Brasília. Diante de um apelo publicitário que reza “compre x e obtenha o sucesso, o conforto, a realização”, temos uma máxima que sugere algo como “compre o „produto‟ Dilma/Presidente e obtenha o objeto de desejo, o poder (que “emana do povo” (?)). Por consequência, temos os procedimentos que trabalham em função da construção e consolidação da marca Dilma/Presidente e o que esta (a marca) proporciona: identificação, localização, garantia, personalização, praticidade, confiança, além da consolidação de um mecanismo de PUV, a tal Proposta Única de Venda. Aliás, a construção da marca pode ainda ser depreendida a partir de outros recursos, organizados em termos da estruturação do design visual do desenvolvimento cena/sequência da edição do guia eleitoral em foco. É como quando temos uma estrutura bidirecional, com interatores, marcada pela ação do cumprimento e a troca incisiva dos olhares. Essa configuração, que aponta para uma característica colaborativa na ação, vai se repetir no filme, em uma cena emblemática, como podemos depreender na amostra da pesquisa.
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Neste último caso, além de enfatizar o caráter colaborativo, a narrativa levanta um dos recursos mais relevantes da argumentação publicitária: o apelo à autoridade. Este ocorre quando, para o estabelecimento ou consolidação de uma marca, é chamada uma figura de destacado e reconhecimento prestígio para „emprestar‟ seu aval em favor do procedimento de qualificação do produto. A cena aqui em questão (com fotografia em preto e branco para marcar o recurso do flash-back), traz para o enquadre a figura do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, gozador de ampla popularidade à época e politicamente interessado na eleição de sua sucessora. Embora ainda de modo limitado, até pela natureza mesma do presente trabalho, o conjunto dos dados expostos aponta para um fenômeno de grande impacto na constituição das práticas sociais e discursivas na atualidade, qual seja o da recontextualização de ordens de discurso. Para o caso aqui específico, nota-se uma relevante reestruturação de um gênero, o guia eleitoral, não diretamente, em princípio, ligado à atividade social de produção de mercadorias para consumo. Para esse caso, tal reordenação vem se estabelecendo em função do movimento colonizador da publicidade, esta sim imbuída das práticas de produção, distribuição e consumo de mercadorias. Considerações finais Os resultados até aqui cotejados apontam para um premente processo de recontextualização da ordem de discurso político pela reestruturação do gênero não promocional guia eleitoral televisivo. Tal constatação vai ao encontro das nossas investigações anteriores sobre o tema (PACHECO; COSTA, 2010; COSTA; PACHECO, 2010; COSTA; PACHECO, 2011), em que o foco foi a metafunção composicional, visando a um exame da distribuição do valor da informação e ênfase dos elementos do design visual. E, perpendicularmente, quando nos reportamos ao movimento, na esteira de Bhatia (2001; 2004; 2008), no que tange à análise de gêneros textuais, especificamente àquilo relativo a como gêneros pertencentes a uma ordem não necessariamente mercadológica, passam a incorporar características estruturais e discursivas de gêneros promocionais, mais especialmente as do anúncio publicitário (COSTA; BEZERRA, 2013).
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O processo de recontextualização, vale dizer, se dá de um modo dialético: não é tão somente a um movimento colonizador do discurso mercadológico da publicidade; é igualmente flagrante uma reestruturação das ordens não necessariamente econômicas como a do discurso político, em um procedimento de apropriação dos recursos semióticos das práticas discursivas promocionais. Nesse sentido, é provável constatar que a prática societária do discurso político, acaba, como constatou Charaudeau (2008), por oscilar entre um ideal de credibilidade e captação. Ela é o resultado da construção de uma identidade discursiva pelo sujeito, realizada de tal modo que os outros sejam conduzidos a julgá-lo digno de crédito. Já no discurso publicitário não há necessidade de se mostrar crível, posto que, para esse caso, seria tão somente necessário desencadear no potencial consumidor um desejo de crer: “não é preciso que a promessa se realize, basta que ela faça sonhar” (CHARAUDEAU, 2008, p. 119). Entretanto, a prática política trabalha com a função de angariar votos e, no entremeio, captar a anuência de um número maior possível de potenciais eleitores. Começa a se configurar, a partir desse ponto fulcral, a necessidade de construção de um fazer publicitário, ancorado nas atividades de chamar a atenção, despertar o interesse, estimular o desejo, criar convicção, induzir a ação última do sufrágio do voto. Referências ALMEIDA, Danielle. Perspectivas em análise visual. João Pessoa: Editora da UFPB, 2008. BHATIA, Vijay. Towards critical genre analysis. In: BHATIA, V.; FLOWERDEW, J.; JONES, R. (Ed.) Advances in discourse analysis. London/New York: Routledge, 2008. ______. Worlds of written discourse: a genre-based view. London: Continuum, 2004. ______. [1997] Análise de gêneros hoje. Revista de Letras, v.1, n. 2, jan./dez 2001. CAMPANHA Dilma Presidente 2010. Disponível em: http://www.dilma13.com.br Acesso em 10 out. 2010.
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A ATIVIDADE DE RETEXTUALIZAÇÃO NA MÍDIA IMPRESSA: UMA ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA DA ESTRUTURA RETÓRICA
Jairo Venício Carvalhais Oliveira – UFMG Carmen Starling Bergamini Grijó – UFMG RESUMO: O presente trabalho, construído com base na observação de práticas do discurso jornalístico impresso, buscou analisar, por meio do processo de retextualização, a organização retórica de textos que tratam de um mesmo tema, mas pertencentes a diferentes gêneros textuais. De forma mais específica, procurou-se descrever as relações retóricas presentes na macroestrutura textual de um exemplar do gênero notícia de jornal e verificar, até que ponto e com qual finalidade, ocorre a manutenção dessa organização retórica no gênero editorial. Para dar conta dessa empreitada, lançamos mão de postulados teóricos da Linguística Textual no que diz respeito ao tratamento conceitual do fenômeno da retextualização. Além disso, adotamos como suporte teórico-metodológico a Rhetorical Structure Theory – RST, teoria descritiva, de orientação funcionalista, que se preocupa em descrever a coerência textual a partir da organização retórica que se estabelece entre as partes de um texto. Em linhas gerais, foi possível observar que as relações retóricas presentes nos gêneros investigados estão estreitamente relacionadas com o projeto de dizer da instância de produção textual e são determinadas pelo fim discursivo de cada gênero. Palavras-chave: Teoria da Estrutura Retórica. Retextualização. Mídia Impressa.
1. Introdução O presente trabalho, construído com base na observação de práticas do discurso jornalístico impresso, teve como objetivo central analisar a organização retórica de textos que tratam de um mesmo assunto, mas pertencentes a diferentes gêneros textuais1. Para tanto, partiu-se do pressuposto de que, na mídia impressa (jornal diário), muitas vezes, a elaboração de um texto pertencente ao gênero editorial, por exemplo, A terminologia utilizada na conceituação de gêneros apresenta algumas variações, tais como: “gêneros discursivos”, “gêneros do discurso”, “gêneros textuais”, “gêneros de texto”. Pelo fato de não termos como objetivo opor ou contestar nomenclaturas, neste trabalho, há de se considerar, como muitos autores, indistintamente, os termos gênero textual e gênero discursivo, ambos se referindo a tipos de enunciados relativamente estáveis, que estão vinculados a situações de comunicação social. Nesse sentido, a célebre definição de Bakhtin (1997 [1979]) para gêneros discursivos é também válida para gêneros textuais. 1
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parece ser produto de um processo de retextualização de um gênero de cunho informativo, como a notícia. Isso se justifica porque, na tentativa de convencer o leitor sobre um determinado ponto de vista, a instância midiática que atua na produção do editorial lança mão de um fato ou acontecimento social que, a priori, é veiculado por meio de um gênero informativo, o qual parece servir de ponto de partida para a construção da opinião sobre o assunto. Nesse sentido, a instância que atua na construção de um editorial é levada a realizar diferentes manobras linguageiras, as quais se refletem na forma como as porções do texto se articulam. Assim, é coerente afirmar que a organização retórica de um determinado gênero textual parece ser determinada pelo propósito comunicativo que esse gênero encerra. Para tratar dessas questões, o presente trabalho toma como referencial teóricometodológico a RST - Teoria da Estrutura Retórica -, uma teoria de orientação funcionalista, que tem por objeto de estudo a organização dos textos, descrevendo as relações que se estabelecem entre suas partes (MANN & THOMPSON, 1988; MANN, MATHIESSEN & THOMPSON, 1992). O pressuposto básico da RST é que, além do conteúdo proposicional explícito veiculado pelas orações ou partes de um texto, há proposições implícitas, as chamadas proposições relacionais, que surgem das relações que se estabelecem entre porções de um determinado texto. Um pressuposto teórico importante, no qual se baseia é a RST e que vem ao encontro do presente trabalho, diz respeito ao fato de que as relações que se estabelecem entre porções textuais podem ser descritas com base na intenção comunicativa do enunciador e na avaliação que esse enunciador faz do seu enunciatário (leitor em potencial). Esse apontamento, guardadas as devidas particularidades teóricas, leva-nos a pensar no conceito de visadas discursivas proposto por Charaudeau (2007)2, uma vez que todo gênero textual, por estar inseridoo em uma situação comunicativa, caracteriza-se, entre outros aspectos, por 2 Em relação à finalidade do texto, Charaudeau (2007) afirma que toda troca linguageira envolve a expectativa de sentido dos participantes em relação à interação. Assim, todo ato de linguagem se dá em uma problemática de influência que pode ser expressa em forma de visadas, que são de quatro tipos: (i) a prescritiva, que consiste em querer “fazer fazer”, isto é, querer levar o outro a agir de uma determinada maneira; (ii) a informativa, que consiste em querer “fazer saber”, isto é, querer transmitir um saber a alguém a quem se presume não possuí-lo; (iii) a incitativa, que consiste em querer “fazer crer”, isto é, querer levar o outro a pensar que o que está é verdadeiro (ou possivelmente verdadeiro) e (iv) a visada do páthos, que consiste em “fazer sentir”, ou seja, provocar no outro um estado emocional agradável ou desagradável (CHARAUDEAU, 2007, p. 69).
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uma finalidade discursiva. Assim, a opção por um determinado fim discursivo exercerá influência sobre a organização retórica de um texto, uma vez que, em função da finalidade a que visa, o produtor lançará mão de certas estratégias para organizar retoricamente o seu texto e atingir os objetivos a que se propõe. A partir dessas observações, cumpre frisar que o presente estudo levou em consideração o processo de retextualização de um gênero textual de cunho informativo para outro cuja finalidade concentra-se na defesa de um ponto de vista sobre uma mesma temática. Procurou-se, de forma mais específica, descrever as relações retóricas presentes na macroestrutura textual de um exemplar do gênero “Notícia” e verificar, até que ponto e com qual finalidade, ocorre a manutenção dessa organização retórica no gênero “Editorial”. Para dar conta dessa empreitada, o artigo aqui apresentado encontra-se organizado da seguinte forma: além desta introdução, o texto está dividido em quatro partes: nas partes 2 e 3, apresentam-se, de forma bastante breve, os pressupostos teóricos que deram sustentação à pesquisa realizada. Na parte 4 (subitens 4.1 e 4.2), apresentam-se as análises efetuadas e os resultados obtidos. Por fim, na última parte, são tecidas as considerações finais na tentativa de responder à questão central que motivou o presente estudo. 2. A Teoria da Estrutura Retórica – RST A Teoria da Estrutura retórica (RST) constitui uma abordagem de natureza funcionalista que se preocupa em explicar a construção da coerência dos textos, a partir da descrição de como as suas partes se articulam. Nesse sentido, a coerência de um texto resulta da função que cada uma de suas partes desempenha em relação à outra (TABOADA, 2006). Assim, a RST é uma teoria descritiva, cujo objetivo consiste em caracterizar as relações retóricas (proposições relacionais) que emergem da combinação dos segmentos textuais. Para essa teoria, as relações retóricas se estabelecem em todos os níveis da estrutura textual, tanto no nível dos constituintes mínimos (as sentenças), como no nível das porções maiores do texto. Por esse motivo, postula-se que “os textos são formados
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por grupos organizados de orações que se relacionam hierarquicamente entre si” (ANTONIO, 2004, p. 39). As sentenças de um texto e os grupos em que se organizam podem se combinar por meio de dois tipos de relações:
Relações núcleo-satélite, em que um constituinte textual (o satélite) é subsidiário de outro (o núcleo).
Relações multinucleares, em que um constituinte textual não é subsidiário do outro, cada um dos quais funcionando como núcleo distinto. A hierarquia entre as partes de um texto se verifica à medida que são definidas
as relações que se estabelecem entre as porções desse texto. E é dessas relações (núcleosatélite ou multinucleares) que surgem as relações retóricas ou proposições relacionais. A definição das proposições relacionais não leva em conta critérios formais, advindos da sintaxe, mas sim critérios funcionais e pragmáticos. Assim, critérios como as intenções (presumidas ou declaradas) do enunciador e os efeitos do texto sobre o universo de crenças do enunciatário participam da definição dessas proposições. Dessa forma, é possível perceber que a estrutura por meio da qual a RST propõe representar a organização das partes do texto não deve ser encarada como resultante de uma combinatória formal. Ainda que o fenômeno das proposições relacionais seja “combinacional” (MANN; THOMPSON, 1983), a estrutura retórica é um instrumento de análise com o qual o estudioso da língua pode explicitar a sua interpretação de como o autor organizou o texto e qual função cada porção textual exerce. Em linhas gerais, conforme esclarece Decat (2010), a RST pode ser entendida como uma teoria descritiva que tem por objeto o estudo da organização dos textos em termos das relações que se estabelecem entre suas partes (spans), tanto na micro quanto na macroestrutura. Relações como solução, evidência, justificativa, elaboração, teseantítese, motivação, condição, entre outras, fazem parte de uma lista, não exaustiva, de aproximadamente 25 relações elencadas por Mann & Thompson3 (1988), que emergem entre a porção núcleo (N), mais essencial aos objetivos comunicativos, e a porção 3
Para uma consulta mais detalhada acerca das relações retóricas propostas pela RST, ver MANN, W.C. e THOMPSON, S.A. 1988. Rhetorical Structure Theory: Toward a functional theory of text organization. Text, 8 (3). 243-281. Disponível em: Acesso em 12 ago. 2014.
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satélite (S), a informação subsidiária. Como esclarece Giering (2008), essas relações são funcionais, pois apresentam categorias de sentidos produzidos ou intenções do produtor. Se a instância de produção, por exemplo, supor que o leitor não compreenderá suficientemente a porção núcleo (N), poderá lançar mão da relação de Fundo, cujo satélite (S) tem como característica fornecer informações que servirão para facilitar a compreensão da afirmação em (N). Como efeito esperado da relação de Fundo, tem-se, pois, o aumento da capacidade do leitor para entender o núcleo (N). Assim, as relações podem ser descritas em função dos objetivos do produtor e de suas suposições em relação ao leitor. Vale acrescentar que as relações retóricas (ou proposições relacionais) surgem nos textos independentemente de sinais específicos de sua existência, pois não há necessidade de inclusão, nos textos, de elementos linguísticos que tenham por função indicar as relações estabelecidas. A seguir, serão apresentados conceitos breves no que diz respeito ao fenômeno da retextualização. 3. A prática de (re)textualização: breves considerações A prática da escrita de gêneros orientada pela leitura de um texto e pelo desafio de transformar seu conteúdo em outro gênero, mantendo a fidelidade às suas informações de base, é uma atividade que tem se mostrado bastante produtiva para a verificação do funcionamento e da caracterização dos diferentes gêneros que circulam na
sociedade
(DELL`ISOLA,
2007, p. 41). Essa
prática,
denominada de
retextualização, tem sido objeto de estudo de pesquisadores que atuam nas ciências da linguagem e pode ser entendida, como bem pontua Marcuschi (2001), como um processo que envolve operações complexas que interferem tanto no código como no sentido, podendo evidenciar uma série de aspectos da relação entre oralidade-escrita, oralidade-oralidade, escrita-escrita e escrita-oralidade. Segundo esse autor, as atividades de retextualização não são mecânicas, ao contrário, são rotinas com que os indivíduos lidam a todo instante nas sucessivas reformulações dos mesmos textos, numa intricada variação de registros, gêneros textuais, níveis linguísticos e estilos. Partindo dessas considerações, parece ser possível afirmar que as instâncias responsáveis pela produção escrita de diferentes gêneros que circulam na esfera midiática, guardadas as devidas proporções, também fazem uso do fenômeno da
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retextualização, ainda que numa acepção mais ampla. Isso porque, conforme já apontava Bakhtin (1997 [1979]), “o enunciado é um elo na cadeia da comunicação verbal. Representa a instância ativa do locutor numa ou noutra esfera do objeto do sentido.”. Com base na observação de práticas do discurso jornalístico impresso, é coerente afirmar que, em muitos casos, na tentativa de convencer o leitor sobre um determinado ponto de vista, a instância midiática que atua na produção de um gênero opinativo como o editorial lança mão de um fato ou acontecimento social que, a priori, é veiculado por meio de um gênero de cunho informativo, o qual parece servir de ponto de partida para a construção da opinião sobre um determinado assunto. É nesse sentido, portanto, que a elaboração de um editorial parece ser fruto de um processo amplo de retextualização, haja vista que o universo temático desse gênero é povoado por fatos atuais e polêmicos. Por essa razão, nota-se que a instância de produção dialoga com um “já-dito” e escreve sobre um fato que, após ter sido abordado pelo noticiário, seja também capaz de mobilizar a atenção da opinião pública e, por isso, acaba exigindo que os veículos de comunicação apresentem as análises e os posicionamentos relacionados ao fato ocorrido. Para ilustrar esse fenômeno, pode-se perceber ou imaginar vários eventos linguísticos, até mesmo corriqueiros, em que atividades de retextualização, reformulação, reescrita e transformação de textos estão presentes, tais como: um delegado ditando para o escrevente um depoimento, uma pessoa contando um filme, um capítulo de novela, uma ata de uma reunião (a secretária passando para a escrita o que foi relatado anteriormente), um aluno escrevendo as explicações orais do professor, assim por diante. Na realidade, nossa produção linguística diária, de acordo com Marcuschi (2008), se analisada com cuidado, pode ser tida como um encadeamento de reformulações,
tal o
imbricamento
dos jogos linguísticos praticados nessa
interdiscursividade e intertextualidade. Ainda no que diz respeito a essa temática, Matencio (2003) explicita que retextualização é “a produção de um novo texto a partir de um ou mais textos-base” (MATENCIO, 2003, p. 1), dando ênfase à condição derivada do segundo texto, produto executado a partir de outros que são utilizados como fontes ou como macros. Partindo da operação mais autoral a uma operação derivada, Matencio (2003, p. 3-4) explica que
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textualizar é agenciar recursos linguageiros e realizar operações linguísticas, textuais e discursivas. Retextualizar, por sua vez, envolve a produção de um novo texto a partir de um ou mais textos-base, o que significa que o sujeito trabalha sobre as estratégias linguísticas, textuais e discursivas identificadas no texto-base para, então, projetálas tendo em vista uma nova situação de interação, portanto um novo enquadre e um novo quadro de referência. (MATENCIO, 2003, p. 34).
Assim, parece-nos que o conceito de retextualização pode ser, sem dificuldades, associado a uma mudança entre modalidades de veiculação e entre gêneros textuais, aqui entendidos como “formas verbais de ação social relativamente estáveis realizadas em textos situados em comunidades de práticas sociais típicas e em domínios discursivos específicos” (DELL’ISOLA, 2007, p. 17). Mais do que intervenções de caráter meramente linguístico, interessa, no processo de retextualização, a adequação de um texto a determinada situação comunicativa, o que pode implicar mudanças inclusive na composição tipológica ou genérica ou, ainda, exercer influência na finalidade discursiva de um determinado gênero textual. Na sequência, serão apresentadas as análises da organização retórica de dois textos. O primeiro, pertencente ao gênero “Notícia”, foi publicado na versão impressa do jornal O Globo, em 24 de julho de 2014, e tem como título “IDH: Brasil sobe um degrau em ranking de qualidade de vida para 79ª posição” e tem como finalidade discursiva levar ao leitor informações sobre o assunto em pauta. O segundo texto, pertencente ao gênero “Editorial”, também foi publicado no jornal O Globo, em 25 de julho de 2014, e tem como título “IDH do Brasil perde dinamismo”, caracterizando-se como um texto de cunho essencialmente argumentativo, a partir da construção de um ponto de vista sobre o assunto abordado. Vale esclarecer, com base em Chafe (1980, apud Decat, 2010), que os textos foram divididos em unidades de informação, aqui entendidas como “jatos de linguagem ou blocos de informação”. Assim, para o presente trabalho, cada um dos textos analisados foi dividido em unidades de informação, as quais se encontram devidamente sinalizadas por marcação numérica. A distribuição dessas unidades levou em consideração o título e o subtítudo dos textos, conforme segmentação apresentada a seguir.
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4. Análise dos dados
4.1 Análise da estrutura retórica do texto I – Notícia 1. IDH: Brasil sobe um degrau em ranking de qualidade de vida para 79ª posição Aumento da renda e da expectativa de vida sustentou avanço 2. BRASÍLIA. O Brasil subiu um degrau no novo ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), divulgado nesta quinta-feira pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). O país ocupa agora a 79ª posição (junto com Geórgia e Granada) numa lista que inclui 187 nações. O IDH está em 0,744, o que mantém o Brasil na categoria de alto desenvolvimento humano, onde também estão outros emergentes como Rússia, China, Turquia e Uruguai. Pelos critérios da ONU, quanto mais próximo o indicador estiver de 1, maior é o desenvolvimento humano. 3. De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) 2014, o Brasil avançou graças, principalmente, ao aumento da renda e da expectativa de vida da população. O documento aponta que a Renda Nacional Bruta (RNB) per capita do país subiu de US$ 14.081 em 2012 para US$ 14.275 em 2013, enquanto a expectativa de vida aumentou de 73,7 anos para 73,9 anos no mesmo período. O ranking do IDH divulgado em 2014 é relativo ao ano de 2013. 4. Já os indicadores de educação, que provocaram polêmica com o governo no ano passado, ficaram estáveis. A expectativa de anos de estudo (que significa quanto tempo se espera que uma criança ficará na escola) se manteve em 15,2 anos e a média de anos de estudo, em 7,2 anos. No entanto, o Pnud fez questão de destacar que isso não significa que o Brasil não fez avanços nesse campo. 5. “O Brasil avançou nas três áreas que compõe o IDH (saúde, educação e renda), mas isso não apareceu na educação porque as bases de dados ainda não captaram essas mudanças” explicou a coordenadora do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, Andréa Bolzon. 6. Segundo o cientista político Simon Schwartzman, presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), apesar de o Brasil conseguir avançar nas três dimensões medidas, ainda encontra dificuldade de dar saltos qualitativos. 7. “Estamos numa armadilha da renda média. Temos uma renda relativamente alta em relação a países africanos, nossa mortalidade infantil melhorou, as crianças estão na escola, mas o problema é como passar a ter educação de qualidade, como dar o salto” avalia. 8. No ano passado, o governo brasileiro fez duras críticas ao relatório e à colocação do Brasil no ranking do IDH, porque os dados de educação que haviam sido usados para calcular o índice eram de 2005. A reação do Palácio do Planalto chegou a fazer com que, pela primeira vez, o Pnud recalculasse o IDH do Brasil informalmente para acalmar os ânimos. Este ano, os dados de educação vieram da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2012.
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9. Em 2013, o IDH do Brasil deixava o país em 85º lugar no ranking de desenvolvimento humano. Recalculado pelo Pnud, o indicador passou o Brasil para a 69º posição, mas como a conta era informal, não alterou o relatório. 10. Este ano, o índice passou por novas mudanças metodológicas. Essas alterações, segundo o Pnud, são feitas para aprimorar o IDH e recalculam os números de todos os países desde 1980. Assim, a colocação do Brasil do ano passado ficou na 80ª posição e agora subiu para o 79º lugar. 11. O RDH 2014 se intitula “Sustentar o Progresso Humano: Reduzir as Vulnerabilidades e Reforçar a Resiliência”. Segundo o representante do Pnud no Brasil, Jorge Chediek, o documento alerta para os riscos de os países perderem os avanços que já conseguiram em desenvolvimento humano em função de problemas como desastres naturais, crises econômicas e conflitos. Por isso, defende que as nações adotem políticas de proteção social. 12. “A crise (financeira) internacional (iniciada em 2008) cortou pela metade o desenvolvimento social”alertou Jorge Chediek, lembrando que o desenvolvimento humano continuou avançando no mundo, mas perdeu fôlego após 2008. 13. Segundo o RDH 2014, 18 países ganharam posições no ranking do IDH, que é liderado pela Noruega, cujo índice é de 0,944. A expectativa de vida de um cidadão norueguês é de 81,5 anos. Já a RNB per capita é de US$ 63.909. Em média, a população tem 12,6 anos de estudo e uma expectativa de 17,6 anos de estudo. 14. Outros 114 países se mantiveram na mesma posição do ranking e 35 caíram, entre eles, Síria e Venezuela. Na lanterna do IDH está o Níger, cujo índice é de 0,335, com uma expectativa de vida de apenas 58,4 anos e uma RNB per capita de US$ 873. 15. De acordo com o relatório, apenas cinco países da América Latina e Caribe ganharam posições no ranking do IDH. Além do Brasil, subiram na lista Chile (que está entre as nações com desenvolvimento humano muito alto - 0,822), Panamá, Suriname e Uruguai. Mas o Brasil tem um índice acima da média da região, que é de 0,740. Já entre as nações que integram o Brics, o Brasil fica na segunda colocação, perdendo apenas para a Rússia, que está em 57º lugar e tem um IDH de 0,778.
O texto I é um exemplar do gênero notícia e busca informar o leitor a respeito da posição ocupada pelo Brasil, no ano de 2013, no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Segundo a notícia, o Brasil ocupa a 79ª posição, numa lista composta por 187 países. Observa-se que esse texto caracteriza-se por uma visada de informação, ou seja, de divulgar e de “fazer-saber” o público do fato em questão. Assim, para que seja concretizado esse fim discursivo, diferentes estratégias foram colocadas em cena pelo jornalista responsável pela produção do texto noticioso. Entre essas estratégias, estão as formas de articulação das informações e a maneira como esse profissional organizou a estrutura retórica do texto.
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Observa-se que o texto da notícia foi segmentado em 15 porções textuais, considerando a sua organização macroestrutural. A porção de texto (1) – que é o título – constitui S e foi considerada como preparação para o restante do texto, formado pelos segmentos (2 a 15), os quais constituem N. Isso se dá pelo fato de o título despertar o interesse e a atenção do leitor para a leitura global do texto. A porção (2) funciona como satélite para as porções (3-15), estabelecendo uma relação de fundo entre essas partes, já que S aumenta a capacidade do leitor para compreender o conteúdo de N. Nas porções (3-15), observa-se a relação de sequência estabelecida entre (3-7) e (8-15). Na porção constituída pelas unidades (3-7), é possível perceber a apresentação de dados do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) 2014 e na porção formada pelas unidades (8-15) apresenta-se um paralelo do desenvolvimento (RDH) entre os anos de 2013 e 2014. Dando sequência à análise, foi possível identificar nas porções (4-6) a relação de elaboração em relação à porção (3) que forma N. Essa relação mostra-se plausível porque o bloco formado pelas unidades (4-6) fornece informações adicionais ao conteúdo do Relatório (RDH). Outra ocorrência da relação de elaboração materializa-se entre as porções (9-10), as quais constitui S em relação à unidade (8) que se constitui como N, uma vez que acrescenta novas informações sobre as críticas do governo brasileiro aos dados do relatório. A relação de comentário emerge entre a porção (7) – que constitui S – e a porção formada pelas unidades (3-6) que formam N. A emergência dessa relação retórica caracteriza-se pelo fato de o jornalista inserir no texto noticioso, por meio de discurso direto, a voz do cientista político Simon Schwartzman, o qual afirma que o Brasil encontra-se numa armadilha da renda média, concluindo em sua afirmação que o Brasil obteve alguns avanços, mas que o desenvolvimento efetivo somente ocorrerá como uma educação de qualidade. Conforme propõem Fuchs, Souza e Giering (2009), nota-se que a relação de Comentário caracteriza-se por ter um satélite que constitui uma nota subjetiva sobre um segmento anterior do texto. Vale destacar que não se trata de uma nota subjetiva fundada em um juízo de valor, mas trazida ao texto a partir de uma perspectiva que não se encontra explicitada nos elementos focados no núcleo. Situação semelhante de comentário pode ser observada entre a unidade (6) e a porção textual constituída pelas unidades (4-5), em que, mais uma vez, a voz do
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cientista político é trazida para a materialidade de texto, com vistas a tecer um comentário quanto ao fraco crescimento do Brasil no ranking do IDH. De modo geral, as relações retóricas presentes no texto noticioso mostraram-se bastante compatíveis com o projeto de dizer do jornalista responsável pela produção do texto, uma vez que a notícia, como já afirmado, caracteriza-se, em linhas gerais, por uma visada de informação. Vejamos, na sequência, a análise do editorial. 4.2 Análise da estrutura retórica do texto II - Editorial
1. IDH do Brasil perde dinamismo 2. Em mais uma divulgação de Índices do Desenvolvimento Humano (IDH) pela Organização das Nações Unidas, estes referentes a 2013, o Brasil repete o desempenho de versões anteriores, em que há avanços, mas nada que garanta a chegada do país aos primeiros lugares do ranking, em horizonte de tempo previsível. 3. O Brasil subiu uma posição, para o 79º lugar, numa relação de 187 países, ficando ao lado de Geórgia e Granada, e, na América Latina, abaixo, por exemplo, de Chile, Uruguai e Cuba. Como na última vez, o governo — agora, com mais motivos, devido à campanha eleitoral — reclama da ONU o uso de dados atualizados sobre educação, e de questões metodológicas. A seguir os números do governo, o Brasil teria ficado na 67ª posição do ranking. Não seria uma mudança estrondosa, mas certamente ajudaria na propaganda. 4. O progresso do Brasil é indiscutível, e nenhum governo isoladamente pode capitalizá-lo. Todos deram uma contribuição. De 1980 em diante, o IDH brasileiro cresceu 36,4%. Entre os fatores que ajudaram nesta evolução, a expectativa de vida do brasileiro aumentou 11,2 anos (está em 73,9 anos), a renda per capita, 56% (US$ 14.275), e a escolaridade média passou de 2,6 anos para 7,2 anos. Mas, observando-se os últimos anos, constata-se uma perda de dinamismo no IDH: de 2008 a 2013, o índice passou de 0,731 para 0,744 — quanto mais próximo de 1, melhor —, porém, no período, o Brasil perdeu três posições. Ou seja, há países em que o desenvolvimento humano evolui num ritmo superior ao do brasileiro. 5. E a taxa de aumento médio do IDH brasileiro tem desacelerado: 1,16% ao ano entre 1980 e 1990, 1,10% entre 90 e 2000, e apenas 0,67% de 2000 a 2013. 6. É preciso entender o que acontece. No período iniciado em 2000, tem-se o aumento substancial dos recursos para programas sociais, enquanto se inicia, de maneira mais focada, o programa de melhoria da qualidade do ensino público básico, séria vulnerabilidade do país. Há, ainda, a partir de 2011, a desaceleração da economia e a passagem da inflação para um patamar superior. E, além de tudo isso, persistem as deficiências no SUS. 7. Ao analisar este último relatório da ONU, o cientista político Simon Schwartzman, presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), disse estar o Brasil numa “armadilha da renda média”. Para ele, o brasileiro tem uma renda relativamente alta em relação a países
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africanos, a mortalidade infantil melhorou, as crianças estão nas escolas, mas a questão é como ter uma educação de qualidade. Dar, enfim, o salto para o estágio de desenvolvimento. 8. É muito provável que tudo passe pela melhoria dos gastos bilionários de um Estado que já absorve 40% das rendas da sociedade. Revoga-se, assim, a ideia corrente de que todos os problemas se resolvem com mais dinheiro. Na verdade, ele existe, porém parte importante dele é desperdiçada.
O texto II é um exemplar do gênero editorial e trata de emitir uma avaliação geral sobre a posição ocupada pelo Brasil, em 2013, no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), conforme relatório publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Diferentemente do que foi constatado na análise da notícia, nota-se que o editorial é caracterizado pelo fim discursivo “fazercrer”, haja vista que busca defender um ponto de vista sobre o assunto e procura levar o leitor a crer no posicionamento defendido. Assim, para que seja concretizado esse fim discursivo, observam-se as seguintes opções do produtor, conforme a análise empreendida: No que diz respeito às relações retóricas presentes no texto do editorial, nota-se, já de início, uma macroação empreendida pela instância de produção, ou seja, estabelece-se uma relação de Preparação: o título – unidade de informação (1) constitui S e o restante do texto – segmentos (2-8) forma “N”. É plausível afirmar que o produtor mobiliza tal relação a fim de captar a atenção do leitor para a leitura completa do texto. Em seguida, estabelece-se uma relação de Avaliação da via de Conteúdo: a unidade de informação (8) compõe S em relação aos segmentos (2-7), os quais formam N. É plausível afirmar que a unidade (8) estabelece uma avaliação e emite um posicionamento não muito positivo do Brasil em relação ao conteúdo precedente do texto. Nota-se que a instância de produção associa o lento crescimento do Brasil no ranking divulgado pela ONU à ausência de qualidade no que diz respeito à administração do dinheiro público. Na sequência, verifica-se uma nova macroação colocada em cena pela instância de produção do editorial. Trata-se da presença de uma relação de elaboração, da via de apresentação, em que as unidades de informação de (3-7) formam S e elaboram o conteúdo do que é afirmado em (2), que constitui N. É coerente afirmar que essa relação acrescenta informações para o leitor no que diz respeito ao conteúdo afirmado em N, ou
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seja, trata-se de um detalhamento do fraco avanço do Brasil no ranking do IDH referente ao ano de 2013, conforme publicação da Organização das Nações Unidas. A unidade de informação (7), que constitui S, configura-se como uma relação de comentário em relação ao bloco formado pelas unidades (3-6), entendido como N. A partir do conteúdo expresso em S, nota-se que a instância de produção traz para a materialidade textual a voz do cientista político Simon Schwartzman, o qual tece o comentário de que o Brasil encontra-se numa espécie de “armadilha da renda média”, ao analisar o relatório do IDH e concluir que o Brasil obteve alguns avanços, mas que o desenvolvimento efetivo somente ocorrerá como uma educação de qualidade. Observase que a relação de Comentário define-se por ter um satélite que constitui uma nota subjetiva sobre um segmento anterior do texto. Vale destacar que não se trata de uma nota subjetiva fundada em um juízo de valor, mas trazida ao texto a partir de uma perspectiva que não se encontra explicitada nos elementos focados no núcleo. Dando prosseguimento à análise, é plausível afirmar que o bloco textual constituído pelas unidades de informação (3-6) é formado por dois outros blocos menores de porções (3-4) e (5-6), entre os quais emerge uma relação multinuclear de sequência. A emergência dessa relação justifica-se pelo fato de haver uma ordem sequencial dos argumentos apresentados, o que está a serviço da instância de produção do editorial, numa clara tentativa de “fazer valer” o seu ponto de vista sobre o assunto em pauta. Por fim, observa-se a presença da relação de elaboração entre diferentes porções do texto analisado. A unidade de informação (4) constitui S em relação à unidade (3), a qual forma N. Dito de forma mais clara, o conteúdo apresentado em S traz dados adicionais sobre o fato de o Brasil ocupar o 79º lugar no ranking dos países avaliados quanto ao IDH. Constatação semelhante pode ser observada na unidade de informação (6), entendida como S em relação à unidade (5), que forma N. O conteúdo presente em (6) expõe informações detalhadas que explicam a desaceleração da taxa de aumento médio do IDH brasileiro nos últimos anos. Em linhas gerias, as relações observadas nesse texto mostraram-se bastante compatíveis com o projeto de dizer da instância responsável pela produção do editorial, haja vista que os textos desse gênero caracterizam-se pela argumentação e pela defesa explícita de um ponto de vista sobre o conteúdo que veiculam.
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Considerações finais O presente trabalho, construído com base na observação de práticas do discurso jornalístico impresso, buscou analisar o processo de retextualização de um gênero textual informativo para outro cuja finalidade concentra-se na defesa de um ponto de vista sobre um mesmo assunto. Procurou-se, de forma mais específica, descrever as relações retóricas presentes na macroestrutura textual de um exemplar do gênero notícia de jornal e verificar, até que ponto e com qual finalidade, ocorre a manutenção dessas proposições relacionais na estrutura retórica no gênero editorial. Em linhas gerais, o estudo realizado indica que, na tentativa de convencer o leitor sobre um determinado ponto de vista, a instância midiática que atua na produção do editorial lança mão de um fato ou acontecimento social que, a priori, é veiculado por meio de um gênero de cunho informativo, o qual parece servir de ponto de partida para a construção da opinião sobre o determinado assunto. Nesse sentido, a instância que atua na construção de um editorial é levada a realizar diferentes manobras linguageiras, que se refletem na forma como as porções do texto se articulam. Além disso, foi possível observar que as relações retóricas presentes nos gêneros investigados estão estreitamente relacionadas com o projeto de dizer da instância de produção textual e, sobretudo, com o propósito comunicativo (fim discursivo) de cada gênero. Neste trabalho, procurou-se verificar a possibilidade de relacionar a emergência de algumas relações presentes no conteúdo proposicional dos títulos e nos conteúdos dos textos analisados, levando em consideração a construção da coerência na macroestrutura textual dos gêneros estudados. É importante registrar que, embora as análises efetuadas tenham sido apresentadas na íntegra para ambos os textos, é preciso lançar luz sobre as relações retóricas que se mantiveram nos dois textos. Desse modo, ao se estabelecer um paralelo entre as análises dos textos pertencentes aos gêneros notícia e editorial, verificou-se que, no editorial, foi plausível a relação de Avaliação, a qual não se mostrou presente no texto noticioso. Semelhante aspecto é justificável porque o gênero editorial caracteriza-se, entre outros aspectos, pela possibilidade de se explicitar uma opinião por um tema ou assunto, o que explica a escolha de uma relação
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dessa natureza. Segundo a RST, a relação de Avaliação caracteriza-se pelo fato de o leitor reconhecer que o conteúdo apresentado na porção Satélite confirma o que é exposto no Núcleo, reconhecendo, por sua vez, o valor que lhe foi atribuído. Observase, em ambos os textos, a ocorrência da relação de Comentário, a qual se caracteriza por apresentar um Satélite que constitui uma nota subjetiva sobre um segmento anterior do texto. Vale destacar, conforme já observado nas análises, que não se trata de uma nota subjetiva fundada em um juízo de valor, mas trazida ao texto a partir de uma perspectiva que não se encontra explicitada nos elementos focados no Núcleo, o que torna a presença dessa relação perfeitamente aceitável nos dois gêneros analisados. Foi possível perceber que a organização retórica de cada um dos textos mantém uma estreita relação com o fim discursivo de cada gênero, ou seja, uma visada de “fazer-saber” diretamente relacionada ao gênero notícia e uma visada de “fazer-crer’, como elemento predominante no texto do editorial. Além disso, verificou-se que as relações de Elaboração emergidas na notícia mantêm-se com maior frequência na retextualização desse gênero para o gênero editorial, possibilitando verificar a ocorrência dessa relação como um elemento prototípico do editorial, haja vista ter esse gênero um caráter marcadamente argumentativo, na tentativa constante de defender um ponto de vista sobre aquilo que enuncia. Desse modo, é plausível afirmar que a ocorrência dessa relação em um texto de cunho opinativo justifica-se pelo fato de ela apresentar em (N) a informação básica, que, por sua vez, amplia-se em (S), constituindo elementos que tentam convencer o leitor sobre os assuntos abordados no texto. Por fim, cumpre registrar a eficácia de análises realizadas sob a perspectiva teórica da RST, seja para investigar a organização da sequência lógica e coerente das partes de um texto, seja para mensurar, como mostram os resultados do presente estudo, as estratégias utilizadas pelas práticas midiáticas para informar os seus leitores ou para fazer valer um posicionamento argumentativo em relação ao conteúdo que veiculam. Referências ANTONIO, Juliano Desiderato. Estrutura retórica e articulação de orações em narrativas orais e em narrativas escritas do português. 2004. 245f. Tese (Doutorado em Linguística) - Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2004.
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BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997. (Original de 1979) CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. Trad. Angela S. M. Corrêa. São Paulo: Contexto, 2007. DECAT, Maria Beatriz Nascimento. Estrutura retórica e articulação de orações em gêneros textuais diversos: uma abordagem funcionalista. In.: SARAIVA, M. E. F.; MARINHO, J. H. C. (Orgs.). Estudos da língua em uso: da gramática ao texto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 231-262. DELL’ISOLA, Regina L. Péret. Retextualização de gêneros escritos. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. GIERING, Maria Eduarda. A argumentação em artigos de divulgação científica: o fim discursivo fazer-crer e as escolhas do produtor. In: III Simpósio Internacional sobre Análise do Discurso, 2008, Belo Horizonte. Anais do III Simpósio Internacional sobre Análise do Discurso. Belo Horizonte: UFMG, 2008. v. 1. p. 1-12. FUCHS, Juliana Thiesen; SOUZA, Juliana Alles de Camargo de; GIERING, Maria Eduarda. A relação de Comentário como escolha estratégica em textos midiáticos de divulgação científica. In: MOTTA-ROTH, D.; GIEIRING, M.E.. (Org.). Discursos de popularização da ciência. Santa Maria: PPGL Editores, 2009, v. 1, p. 1-12 MANN, William & THOMPSON, Sandra. Relational propositions in discourse. California: University of Southem California, 1983, p. 3-9. MANN, William & THOMPSON, Sandra A. Rhetorical Structure Theory: Toward a Functional Theory of Text organization. Text, v. 8, n. 3, p. 243-281, 1988. Disponível em: Acesso em 12 ago. 2014. MANN, W. C.; MATTHIESSEN, C. M. I.M.; THOMPSON, S.A. Rhetorical Structure Theory and text analysis. In.: MANN, W. C.; THOMPSON, S. A. (eds). Discourse description: diverse linguistic analyses of a fund-raising text. Amsterdam/Philadelphia: J. Nenjamins, 1992. P. 39-77. MARCHUSCI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de rextextualização. São Paulo: Cortez, 2008. MATENCIO, Maria de Lourdes Meirelles. Referenciação e retextualização de textos acadêmicos: um estudo do resumo e da resenha. In.: III Congresso Internacional da ABRALIN, 2003, Rio de Janeiro. Anais do III Congresso Internacional da ABRALIN, 2003. TABOADA, Maitê. Discourse markers as signal (or not) of rhetorical relations. Journal of Pragmatics, v. 38, n. 4, p. 567-592, 2006.
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A ESCRITA NOS DOCUMENTOS CURRICULARES OFICIAIS DO BRASIL E DE PORTUGAL Jane Cristina Beltramini Berto (UEM/CAPES/SEED-PR) Renilson José Menegassi (PLE-UEM) Considerações Iniciais O movimento do sistema educacional acerca da valorização e da promoção do saber em diversos países esteve atrelado ao atendimento às necessidades sociais e políticas emergentes, aprimoramento e apreensão de novos conceitos e em novos paradigmas, de forma a ressignificar as práticas já existentes no contexto educativo, essencialmente na escola. No Brasil, as mudanças foram impulsionadas pela conjuntura social e econômica da democratização do ensino, após os anos 70 e, em especial, a adequação do ensino devido às novas camadas de egressos aos bancos escolares. Em Portugal, atestados pelos exames nacionais e internacionais de avaliação, dentre estes o PISA1 , houve avanços significativos nos domínios em leitura e escrita, entendidos como possíveis reflexos das grandes reformas, decorrentes em parte pela nova proposição de conteúdos, relativa à abertura da escola em 1986 e as reformulações nos manuais de ensino nas décadas de 80 e 90. Nessas décadas, os avanços despontam como resultado de estudo do currículo (SOUZA & MESSIAS, 2012) e à expansão do campo da didática, na Didáctica da Escrita (PEREIRA, CARDOSO & GRAÇA, 2009). Este estudo pretende destacar alguns pontos dos referenciais curriculares oficiais destes dois países e buscar, nesse engendramento, as proposições específicas para o ensino da escrita com vistas a compreender as aproximações e os distanciamentos entre estas propostas curriculares, que partem do ensino da língua escrita portuguesa. 1. Os documentos curriculares oficiais brasileiros Desde a década de 70 e 80, no Brasil, a preocupação com a democratização do ensino fez emergir propostas curriculares que pudessem dar conta do ― novo aluno‖ que ingressava ao sistema público e do ineficiente ensino de língua portuguesa das escolas 1
Dados do PISA. Disponível Acesso em 23 jun. 2014.
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brasileiras. Fiad (2012) destaca a importância destes documentos pela ― recuperação histórica de práticas escolares, crenças e concepções [...] educacionais, políticas e científicas que circulavam no momento de sua elaboração [...] em contextos institucionais – Secretarias de Educação, Ministério de Educação – [...] representam vozes institucionais mas também outras vozes, dentre elas as dos estudos científicos (2012, p.107). Nesse sentido, a publicação do conjunto de documentos curriculares brasileiros, os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN, Anos Iniciais 1º e 2º ciclos (BRASIL, 1997); os PCN – Anos Finais 3º e 4º Ciclos (1998); os PCN – Ensino Médio /PCNEM (BRASIL, 2000) foram acrescidos por nova orientação intitulada PCNEM+_ ― Orientações Educacionais Complementares ao Ensino Médio‖ (BRASIL, 2002), e passaram a reger as práticas pedagógicas, após a formação continuada dos professores. Nos PCN, a língua é concebida como ― sistema de signos histórico e social‖ e, portanto, por meio dela é possível ao homem ressignificar o mundo e a realidade. Pois ― aprendê-la é aprender não só as palavras, mas também os seus significados culturais e, com eles, os modos pelos quais as pessoas do seu meio social entendem e interpretam a realidade e a si mesmas‖ (BRASIL, 1997, p.17). A proposta de cunho interacionista abrange a concepção de língua em sua dimensão social, materializada pela presença dos gêneros discursivos (BAKHTIN, 2003). E, como afirma o documento, o foco do ensino não está centrado nas palavras, mas sim em textos que, em situações reais de interlocução, fazem sentidos e possibilitam práticas sociais mediadas pela leitura, escrita e oralidade para desenvolver a competência discursiva do aluno (BRASIL, 1997). É nesse bojo do desenvolvimento das dimensões sociopolítico e cultural dos alunos para um agir em sociedade consciente e crítico, visando a sua transformação por meio de atualidade de conhecimentos e a criatividade, ética e a perseverança (BRASIL, 1997), que o ensino se organiza por eixos articuladores, centrados em blocos de língua oral e escrita e na análise e reflexão sobre a língua. Como postula o documento, os conteúdos ― aparecem ao longo de toda a escolaridade, variando apenas o grau de aprofundamento e sistematização‖ (BRASIL, 1997, p.31), e são entendidos como ponto de partida para a produção/compreensão dos discursos, o que pressupõe o movimento metodológico da ação – reflexão – ação.
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No que se refere à escrita, há uma subdivisão em ― Língua escrita: usos e formas, ‗Prática de leitura‘ e ‗Prática de produção de texto‘. A prática da escrita se desdobra em ‗Aspectos discursivos‘ e ‗Aspectos notacionais‘(BRASIL, 1997, p.35). Isso significa que enquanto os aspectos discursivos se ocupam das características da linguagem em uso, os aspectos notacionais voltam-se à forma, ao aspecto normativo da língua, às características gráficas da linguagem. Quanto aos PCN dos Anos Finais, a mesma estrutura é indicada para a produção textual, embora regulada pela complexidade por ano/ensino, pois no PCNEM, as orientações para a escrita subjazem às demais orientações, com destaque para as condições de produção do texto e sua circulação (GERALDI, 1997) já que são orientadas para ― ter o que dizer [...], o lugar social [..], para quem [...]mecanismos composicionais [...] e de forma se tornará público [...]‖ (BRASIL, 2002, p.80). Dessa forma, o objetivo da escrita é ― formar escritores competentes capazes de produzir textos coerentes, coesos e eficazes‖ (BRASIL, 1997, p.40), atendendo ao interlocutor, circunstância da enunciação e o gênero. Da compreensão do ensino centrado em práticas reais de uso da linguagem, voltada ao envolvimento dos alunos com as condições de produção da escrita, Geraldi (1997) destaca os princípios básicos: o que escrever, para quem, como e para quê, num processo cognitivo complexo e discursivo de uso da linguagem, pois, as práticas de escrita e leitura embora entrelaçadas, são diferentes em sua constituição e no seu ensino. Por isso, os encaminhamentos metodológicos para a produção textual reforçam que os alunos devem ser incentivados a produzir seus próprios textos, no início de sua escolarização, mesmo que não saibam realizá-los de forma convencional (BRASIL, 1997).
Nesse
sentido
ganha
destaque
os
conceitos
de
― legibilidade‖ e de
― provisoriedade‖ da escrita, pois o primeiro aponta aos interlocutores e leitores reais e enfatizam a escrita ordenada, já o segundo garante a retomada do texto, para que possa ser revista, acrescida, reescrita a qualquer tempo e servindo também como parâmetro para avaliar a progressão do processo de planejamento, a escrita e a revisão do texto. A revisão é compreendida como atividade recursiva, isto é o escritor reescreve e faz alterações no texto durante a produção ou ao final da1ª versão, e destaca-se como ― conjunto de procedimentos por meio dos quais um texto é trabalhado até o ponto em
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que se decide que está, para o momento, suficientemente bem escrito. Pressupõe a existência de rascunhos sobre os quais se trabalha, produzindo alterações que afetam tanto o conteúdo como a forma do texto‖ (BRASIL, 1997, p.54). Ainda, a revisão é ― espaço privilegiado de articulação das práticas de leitura, produção escrita e reflexão sobre a língua, e mesmo de comparação entre linguagem oral e escrita‖ (BRASIL, 1997, p. 54) e, o conceito surge nos PCN como ― uma espécie de controle de qualidade da produção, necessário desde o planejamento e ao longo do processo de redação e não somente após a finalização do produto‖ (BRASIL, 1997, p.55), que se reflete diretamente no planejamento do professor em etapas que não se colocam como lineares. Assim, quanto à avaliação do processo de escrita, o documento reitera tanto a revisão coletiva quanto individual, de forma a desenvolver nos alunos ― atitude crítica em relação à própria produção e a aprendizagem de procedimentos eficientes para imprimir qualidade aos textos‖ (BRASIL, 1997, p.55), porém para escritores iniciantes, há indicação da mediação do professor, já que crianças em situação de produção e, posteriormente, no momento da revisão precisam ser auxiliadas na compreensão de onde e como podem melhorar seus textos, adequando-os ao gênero e as finalidades. 2. Os documentos curriculares portugueses O Programa de Português do Ensino Básico (PPEB), instituído pelo Ministério da Educação de Portugal e Direcção-Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular (MEC-DGIDC, 2009), surgiu da necessidade de reformular documentos curriculares que já vigoravam há quase duas décadas. Sua constituição considera os programas curriculares que o precederam: o Currículo Nacional do Ensino Básico (MEC, 2001); Competências Essenciais (2001) gerais e específicas para cada nível de ensino; o Programa Nacional do Ensino do Português2 (2006) para a formação de professores de 1º ciclo e o Plano Nacional de Leitura3 (2007), sob a responsabilidade do MEC (REIS et al., 2009). Nesses documentos, a concepção de ensino de língua prevê o português aliado ao uso metodológico das ferramentas digitais e relaciona as práticas de leitura e 2
PNEP, programa realizado de 2006-2010, constou da elaboração de materiais para formação continuada que visavam a melhoria da qualidade do ensino em Portugal. Para informações adicionais, site DGIBC, acesse . 3 Plano Nacional de Leitura, disponível para consulta em .
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escrita apreendidas na escola às tecnologias de informação e comunicação presentes no mundo. Essa postura entende que ― o ensino e a aprendizagem do Português determinam irrevogavelmente a formação das crianças e dos jovens, condicionando a sua relação com o mundo e com os outros‖ (REIS et al., 2009, p.6), por permitir o exercício da cidadania. O professor é o interlocutor do documento e este traz a organização programática do 1º, 2º e 3º ciclos de forma sintética e prática, em tabelas e quadros explicativos, o que permite visualizar a progressão curricular nos 9 anos do ensino: 1º ciclo - CEB, 1º, 2º, 3º e 4º anos; o 2º ciclo, 5º e 6º anos e, o 3º ciclo aos 7º, 8º e 9º anos. Há, ainda, um capítulo denominado ― Orientação de Gestão‖, com ênfase aos descritores de desempenho, compreendidos como as expectativas de aprendizagem esperadas acerca do conteúdo, isto é, são condições que os alunos devem alcançar em diversas competências - escrita, leitura, literatura, e gramática- ao final de cada ciclo. Na proposta, situa-se ainda, os recursos tecnológicos e de informação e comunicação (TIC), acesso à biblioteca e o dicionário terminológico aos professores. Ao PPEB (2009) vigente coadunam-se as Metas Curriculares de Português para o 1º, 2º e 3º CEB, com vistas a fornecer ― uma visão mais objetiva possível daquilo que se pretende alcançar, permitindo que os professores se concentrem no que é essencial, ajudando a delinear as melhores estratégias de ensino‖ (BUESCU et al., 2012, p.3). Isso se dá por quatro características essências – conteúdos por ano de escolaridade; os quatro domínios no 1º e 2º ciclos - Oralidade, Leitura e Escrita, Educação Literária, Gramática, os objetivos pretendidos e os descritores de desempenho dos alunos. Nesse âmbito,
o
conhecimento
explícito
da língua que contemplava o
desenvolvimento consciente dos mecanismos linguísticos e seu aprimoramento para as situações e uso no PPEB é, atualmente, designado por gramática nas Metas Curriculares. De forma a não se tratar apenas de uma alteração de nomenclatura, posto que se pretende a aquisição de regras para o desenvolvimento da capacidade de compreensão dos textos e, mais adiante, o emprego na produção textual, como explicita o trecho ― sistematizar unidades, regras e processo gramaticais de nossa língua, de modo a fazer um uso sustentado do português padrão nas diversas situações da Oralidade, da Leitura e da escrita‖, uma vez que o ensino dos ― conteúdos gramaticais devem ser
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realizado em estreita sintonia com atividades inerentes à consecução dos objetivos dos restantes domínios‖ (BUESCU et al., 2012, p.4). Ainda, as Metas Curriculares (BUESCU et al., 2012) incluem no domínio Educação Literária, o texto literário como ― repositório de todas as possibilidades históricas da língua, veicula tradições e valores e, é, como tal, parte do patrimônio nacional [...] e a educação literária, contribui para a formação completa do indivíduo e do cidadão‖ (BUESCU et al., 2012, p.4). Assim reúnem na Literatura, os descritores dispersos em outros domínios, como na leitura, por exemplo, por isso, é recorrente nos documentos portugueses as listas de obras e textos literários para leitura anual no Ensino Básico, como um currículo mínino válido em todo o território nacional com vistas a não reprodução de diferenças socioculturais exteriores. O ensino do português no PPEB (2009) postula o princípio da transversalidade no
desenvolvimento
das
competências: humana,
a
linguística,
o
conhecimento
linguístico e o translinguístico, para além das fronteiras disciplinares. O Português, como disciplina, aponta para ― a compreensão de discursos, as interacções verbais, a leitura como actividade corrente e crítica, a escrita correcta, multifuncional e tipologicamente diferenciada, a análise linguística com propósito metacognitivo‖ (REIS et al., 2009, p.14). Todavia, a compreensão das práticas de linguagem reside nas competências do oral/expressão do oral, centradas nas práticas de leitura e escrita. Quanto à escrita, definida como um resultado de processos de representação do sistema linguístico e gráfico aliado ao processamento cognitivo e translinguístico de planejar, textualizar, revisar (corrigir) ou reformular o texto final, o documento reitera, a mobilização de conteúdos que ativam ― as competências metalingüísticas, metatextuais e metadiscursivas‖ (REIS et al.,2009, p. 16-17) centradas nos domínios do modo oral, escrito e do conhecimento explícito da língua. Dessa forma, o processo de fixação linguística ― convoca o conhecimento do sistema de representação gráfica adoptado, bem como processos cognitivos e translinguísticos complexos (planeamento, textualização, revisão, correcção e reformulação do texto)‖ (REIS et al.,2009, p.16). Há duas etapas distintas: na primeira, no nível iniciante, valoriza-se sua adaptação e a expressão oral, pois esta se encontra voltada ao ― desenvolvimento da consciência fonológica e o ensino explícito e sistemático da decifração, como condições
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básicas para a aprendizagem da leitura e da escrita‖ (REIS et al., 2009, p.21) e, após dominados os primeiros aspectos da consciência fonológica, o aluno passa à segunda fase, marcada pela ― aprendizagem de novas convenções sobre o modo como o texto escrito se organiza, o uso correcto da pontuação, o alargamento do repertório lexical e o domínio de uma sintaxe mais elaborada‖ (REIS et al., 2009, p.22). Esses domínios são verificados depois nas tarefas de planificar, textualizar e rever o texto: ― competência gráfica (relativa ao desenho das letras); competência ortográfica (relativa ao domínio das convenções da escrita); e competência compositiva (relativa aos modos de organização das expressões linguísticas para formar o texto)‖ (REIS et al., 2009, p.70). Assim, o aluno utiliza a compreensão e interpretação textual como formas de ampliar seu repertório de experiências, associada ao desenvolvimento linguístico e à formação leitora (REIS et al., 2009). O documento português destaca que a prática de escrita permeia toda a escolarização e é regulada pelo professor nas atividades que ora apresentem modelos, ora sejam criativas e pessoais, o que possibilita ao aluno a compreensão do uso da língua e de suas normas. Dessa forma, os dois grandes objetivos da escrita: ― Escrever em termos pessoais e criativos; Escrever para construir conhecimentos e Expressar conhecimentos‖ (REIS et al., 2009, p.24-25) reiteram a mediação do professor, pois ―a s actividades a desenvolver terão como objectivo proporcionar-lhes a aquisição contextualizada de regras, normas e procedimentos respeitantes à estrutura, à organização e à coerência textuais‖ (REIS et al., 2009, p.23). Os autores do documento PPEB (REIS et al., 2009) destacam primeiramente o desenvolvimento das competências de leitura como ― fonte de conteúdos‖ sobre a temática para apropriação de suas características e, posteriormente o traçar as informações, ordenar e hierarquizar para a composição escrita na construção do texto, resumidas pelos autores nas seguintes etapas: ― planificação [...] o objectivo da comunicação, o tipo de texto, geram-se ideias e elabora-se um plano‖, advindas da leitura ou de audição de textos visando a ― geração de ideias‖. Já a ― textualização, [...] à redacção do texto segundo o plano previamente elaborado, seleccionando vocabulário, organizando as frases, períodos e parágrafos, para formar um texto coerente‖ podem compor-se de palavras ou expressões trabalhadas no oral, e por fim, ― a revisão tem como objectivo melhorar o texto‖ (REIS et al., 2009, p. 70).
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Dessa forma, embora os gêneros textuais listados nos anos de cada ciclo de ensino e possam ser tomados como modelos pelos alunos, ― fonte de conteúdos para as produções‖, sobretudo os narrativos, não se efetivam níveis de aprofundamento aparentes nessa indicação/seleção presentes no documento e nas metas curriculares. 3. Convergências e divergências nos documentos curriculares oficiais Em ambos os documentos o professor é o interlocutor da proposta curricular. No Brasil, esta se apresenta como a possibilidade de ― completude‖ e de ― inovação‖, pois reúne as novas metodologias e os resultados de contribuições de diversas áreas da ciência linguística no país e relegam a um segundo plano, as práticas tidas como tradicionais. Já a proposta portuguesa surge da necessidade de se reformular o ensino e agrega dos referenciais anteriores, os avanços no ensino de línguas em Portugal, a reflexão sobre os resultados e as práticas, tendo em vista os exames internacionais e incluem a ênfase às novas tecnologias (TIC) para o trabalho escolar. No que se refere ao plano curricular, os conteúdos são priorizados em diversos níveis de retomada/aprofundamento progressiva, tanto nos documentos brasileiros quanto nos portugueses. Nos PCN os conteúdos são apresentados de forma cíclica, em espiral e voltados ao ensino de 8 anos na educação básica, enquanto que em Portugal, no PPEB, há ênfase aos conteúdos organizados por eixo de progressão ao longo dos 9 anos, em diferentes domínios no currículo (REIS et al., 2009, p.10). Para as práticas de escrita, a proposta portuguesa defende no 1º ciclo a escrita de textos curtos, coerentes e coesos, e nos 3º e 4º anos há ênfase nas técnicas de registro de informações, organização e transmissão de informações, que aludem à planificação, textualização e revisão no desenvolvimento da produção escrita, aliada à ferramenta digital: ― [...] processos de planificação, textualização e revisão, utilizando instrumentos de apoio, nomeadamente ferramentas informáticas‖ (REIS et al., 2009, 24-25). Os referenciais brasileiros incentivam a produção textual desde os primeiros níveis e enfatizam a inserção em espiral dos conteúdos com diferentes graus de aprofundamento por níveis alcançados, atendendo as etapas de ― planejar o texto, redigir rascunhos, revisar e cuidar da apresentação, com orientação‖ (BRASIL, 1997, p.74-75).
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Nos anos iniciais, o atendimento as condições de produção do texto já é destaque, bem como a finalidade da produção escrita e meio de circulação real, previamente definidos. No que tange à mediação do professor na produção escrita, nas etapas de revisão e reescrita, são indicadas as atividades em colaboração entre pares e individuais, mas primeiramente a revisão mediada para que o aluno possa compreender o processo de revisar o próprio texto e adquirir mecanismos para realizá-lo posteriormente. Referendada em ambos os documentos, dada as inúmeras variáveis no processo de ensino da escrita, a mediação do professor é requerida: ― cabe ao professor desenvolver e mobilizar os alunos quanto aos conhecimentos prévios, reestruturação e reorganização, pesquisa e seleção de informações sempre atendendo o objetivo da escrita e o tipo de texto a ser produzido‖ (PINTO, 2011, p.30). Nos documentos brasileiros, destaca-se ainda o critério de legibilidade, que possibilita leitores reais para as produções para além do professor e, a provisoriedade dos escritos, que permite a revisão e reescrita dos textos, ambos centrados na necessidade de o aluno rever seus escritos. No primeiro caso, pela existência de leitores outros e no segundo, pela possibilidade de melhorar sua produção a qualquer tempo, caracterizando a recursividade no processo de escrita. Contudo, há referência tanto nos documentos portugueses quanto brasileiros à escrita e revisão mediada por pares e pelo professor, no processo de ensino e aprendizagem da escrita. O documento português destaca que a recursividade na produção escrita nos primeiros níveis implica o desenvolvimento não-linear de três competências: ― gráfica‖, ― ortográfica‖ e ― compositiva‖ e que, posteriormente, refletem-se nas atividades de planejamento, escrita e revisão. Nos PCN, mesmo no nível iniciante, destacam-se os objetivos para a produção textual_ o destinatário, a finalidade do texto e o gênero_ ― identificar o gênero e o suporte que melhor atendem à intenção comunicativa; [...], utilizando a escrita alfabética e preocupando-se com a forma ortográfica, considerar a necessidade das várias versões que a produção do texto escrito requer, empenhando-se em produzi-las com ajuda do professor‖ (BRASIL, 1997, p.74-75). Em ambos os documentos, PCN e o PPEB, é recorrente a produção textual a partir dos gêneros discursivos, no Brasil, e gêneros textuais, em Portugal, bem como a circulação destes textos, com níveis diversos de gradação, enfatizando a definição de
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interlocutor e finalidade da produção, tendo em vista que o professor não é o único interlocutor da escrita do aluno, já que esta serve a outras finalidades e propósitos definidos e, deve atender ao gênero e a esfera de circulação. A indicação dos gêneros discursivos (BAKHTIN, 2003), desenvolvidos por propostas com base em Bronckart e Schneuwly no PCN, destaca o que deve ser ensinado e não o que os alunos devem dominar ao final do ciclo de estudos, de forma a reconhecer o conteúdo temático, a estrutura composicional e o estilo em suas produções escritas (BRASIL, 1998). No que tange especificamente aos processos de revisão e reescrita, o referencial português PPEB apresenta orientações que retomam a ― releitura e o aperfeiçoamento‖ como operações conscientes e indispensáveis para que se alcance bom nível de adequação textual e correção. No Brasil, o ensino da escrita no 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental, dá ênfase às condições de produção do texto, que verificadas durante o processo de revisão, correlaciona o atendimento às intenções primeiras da comunicação, mobilizando-se os recursos linguísticos e comunicativos em prol de cada objetivo. Essa consciência autônoma do processo de escrita leva os alunos a descobriremse como produtores de texto, por meio do processo de revisão com o professor ou em coletivo, permite a compreensão clara do que se pretende dizer, reconhecendo a própria reorganização textual, distinção de ideias, procedendo à reorganização textual e a correção de possíveis erros. Assim, no processo de revisão, encontra-se a refacção do texto, que se inicia pelo acompanhamento do professor, pois ― mais do que o ajuste do texto aos padrões normativos, os movimentos do sujeito para reelaborar o próprio texto: apagando, acrescentando, excluindo, redigindo outra vez determinadas passagens de seu texto original, para ajustá-lo à sua finalidade‖ (BRASIL, 1998, p.28). Por outro lado, o currículo português enfatiza a ― indissociabilidade entre leitura e escrita‖ (REIS et al., 2009, p.149) já que pela leitura é possível reconhecer as características de textos de diferentes modelos textuais e propiciar aos alunos oportunidades de ampliação leitora, maior sensibilidade às produções escritas próprias e a qualidade dos textos de outros autores, em condições adequadas: ― Através das actividades de leitura os alunos contactam com diferentes modelos textuais, em que podem reconhecer características e modos de configuração distintos‖ (REIS et al., 2009, p.149).
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Na escrita, o documento reforça a importância de se desenvolver as capacidades dos alunos para produções de textos do narrar, descrever, expor, explicar, comentar e argumentar, integrada aos projetos de escrita, intrinsicamente voltados aos textos literários, para exploração de informação e o estudo escolar. Como reforça o documento PPEB (2009) têm-se como referenciais mínimos para o 7º ano (3º CEB), nas atividades de expressão oral e escrita,em abordagens de sessões de 90 minutos: ― três narrativas de autores portugueses; um conto tradicional; um texto dramático de autor português; um conto de país de língua portuguesa; uma narrativa de autor estrangeiro; dois textos de literatura juvenil e poemas de subgêneros variados‖ (REIS et al., 2009). E, a inclusão de estudo dos cantos de ― Os Lusíadas‖, como referenciais mínimos para o 9º ano (3º CEB). No Brasil, os documentos não apresentam quadros e delimitação de obras em determinações específicas para este ensino mesmo nos anos iniciais, dada a perspectiva ― dialógica de linguagem‖ assumida (BRASIL, 2000, p.22), contudo os PCNEM forjamse nas competências e habilidades a serem desenvolvidas e destacam a necessidade de estudar obras literárias e escolas literárias para a formação de leitores: ― especial atenção à formação de leitores, inclusive das obras clássicas de nossa literatura, do que mantenha a tradição de abordar minuciosamente todas as escolas literárias, com seus respectivos autores e estilos‖ (BRASIL, 2002, p.71). Assim, passamos a relacionar os pontos já destacados entre os documentos brasileiros e portugueses em um quadro sinótico, no âmbito das prescrições oficiais para o ensino da escrita. Quadro 1 – Contrapontos entre os documentos curriculares oficiais Pontos destaque Interlocutor Dimensão do ensino Princípio/ ensino Ensino da língua Foco nos gêneros Progressão dos conteúdos
BRASIL - PCN
PORTUGAL – PPEB/ Metas
Professor (tom indicativo) 08 anos – 3 níveis Interacionista
Professor (tom coercitivo) 09 anos (4 níveis e reguladoras) Sociointeracionista
Dimensão social
Dimensão cultural, literária e linguística
Discursivos
Textuais ( textos narrativos/literários)
Forma cíclica, espiral
Organizados por eixos, em domínios
Produção escrita
Planejamento, escrita e revisão
Planificação, textualização e revisão ― planejar, textualizar, revisar (corrigir) ou reformular‖ (2009, p.16)
2
Metas
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Orientação para o ensino Ensino Produção textual escrita Escrita
Práticas leitura, oralidade, escrita Leitura e escrita articuladas em práticas complementares Vinculada às condições de produção ―E n volve dois processos paralelos: compreender a natureza do sistema de escrita da língua — os aspectos notacionais — e o funcionamento da linguagem que se usa para escrever — os aspectos discursivos; que é possível saber produzir textos sem saber grafá-los e é possível grafar sem saber produzir; que o domínio da linguagem escrita se adquire muito mais pela leitura do que pela própria escrita; que não se aprende a ortografia antes de se compreender o sistema alfabético de escrita; e a escrita não é o espelho da fala‖ (BRASIL, 1997, p.48).
Revisão
Conjunto de procedimentos por meio dos quais um texto é trabalhado até o ponto em que se decide que está, para o momento, suficientemente bem escrito. Pressupõe a existência de rascunhos sobre os quais se trabalha, produzindo alterações que afetam tanto o conteúdo como a forma do texto (BRASIL, 1997, p.54). [...]― uma espécie de controle de qualidade da produção, necessário desde o planejamento e ao longo do processo de redação e não somente após a finalização do produto‖ (BRASIL, 1997, p.55).
Reescrita
Parte do processo: ― Revisão, refacção do texto‖ ― refacção como um processo que está além da revisão do texto, pois ― mais do que o ajuste do texto aos padrões normativos, os movimentos do sujeito para reelaborar o próprio texto: apagando, acrescentando, excluindo, redigindo outra vez determinadas passagens de seu texto original, para ajustá-lo à sua finalidade‖ (BRASIL, 1998, p.28).
Oralidade, leitura e escrita, educação literária, gramática. Leitura e escrita indissociáveis e interdependentes. Vinculada à leitura. Escrita criativa, em termos pessoais. ― resultado, dotado de significado e conforme à gramática da língua, de um processo de fixação linguística que convoca o conhecimento do sistema de representação gráfica adoptado, bem como processos cognitivos e translinguísticos complexos (planeamento, textualização, revisão, correcção e reformulação do texto)‖ (REIS et al., 2009, p.16). ― processo continuado, que exige múltiplas oportunidades para experimentar a produção de textos com um cunho pessoal, em função de diversas finalidades e de diferentes destinatários‖ A revisão tem como objectivo melhorar o texto ( REIS et al., 2009).
Etapa no processo de ― Revisão, correção e reformulação do texto‖ (REIS et al., 2009, p.16).
O quadro apresenta pontos de aproximação e de distanciamento entre os documentos curriculares do Brasil e de Portugal, contudo eles comungam em proposições para o ensino da língua, no âmbito da Linguística Aplicada no Brasil e, mais recentemente, na Didáctica da Escrita, em Portugal.
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Considerações Finais O texto apresenta alguns pontos nodais dos documentos curriculares oficiais, destacamos que as propostas para o Ensino Médio não foram objeto de descrição, em virtude da ausência de determinações específicas para a produção textual neste nível de ensino no Brasil e, também, pela implantação recente do Programa e Metas Curriculares em Portugal (2014). Por outro lado, as prescrições curriculares dos documentos portugueses nos permitem afirmar a valorização do ensino da língua nas dimensões cultural, literária e linguística, com ênfase aos textos literários considerados completos por excelência. A inclusão de Metas Curriculares, que tinham como objetivo verificar e orientar o trabalho pedagógico apresenta algumas incoerências quanto ao currículo atual, observadas pelo grau de complexidade dos gêneros indicados para trabalho nos níveis de ensino, em contraste aos textos literários, que figuram nas metas por sua representatividade e são definidos por ano de escolaridade. Outro fator preponderante centra-se na indissociabilidade no ensino da leitura e escrita e interdependência da oralidade, em Portugal. Com foco no ensino dos conteúdos, as metas (BUESCU et a.l, 2012) apresentam como prioritários o domínio da gramática, sobrepondo à reflexão sobre o uso da língua e a produção textual associada ao uso de tecnologias – TIC no documento português e prescritas por um currículo mínino, que determina o que o aluno deve assimilar ao final de cada nível, a partir dos descritores de desempenho. Essa ênfase ao ensino respalda-se nas discussões científicas sobre o ensino da língua tanto em Portugal quanto no quadro europeu de referência. No Brasil, as práticas de leitura e escrita centram-se na teoria dos gêneros discursivos, com foco nas competências e as produções textuais consideram o meio de circulação dos textos e ressaltam a mediação do professor no desenvolvimento da escrita. Contudo, em ambos os países, essas produções ainda se encontram vinculadas a projetos temáticos, que por vezes as descaracterizam de seu cunho efetivamente social. As etapas de revisão e reescrita são contempladas nas prescrições oficiais e enfatizam a recursividade e a provisoriedade dos escritos, que não obedece ao plano linear da produção textual, porém há conceitos com encaminhamentos pedagógicos fragilizados que carecem de outras explicitações metodológicas.
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Nas atividades relativas à produção textual destacam-se as condições de produção (GERALDI, 1997) e a reformulação do texto que tende à reflexão sobre a linguagem em uso, pela prática de análise linguística. Quanto à literatura, o documento reforça que leitura e a escrita são práticas complementares, porém não há destaque para o texto literário, como vislumbrado no documento curricular português. Cientes de que a abrangência deste estudo precederia à análise sistemática da prática pedagógica, limitamo-nos a conferir as implicações das prescrições oficiais quanto à escrita nestes países, levando-se em conta que estas devem ser claras e consistentes para o professor, seu principal interlocutor, pois a ele caberá operar as mudanças pretendidas. Referências BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BRASIL.
SECRETARIA
DE
EDUCAÇÃO
FUNDAMENTAL.
Parâmetros
curriculares nacionais: língua portuguesa /Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: 1997.144p. _____. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental:
língua
portuguesa/
Secretaria
de
Educação
Fundamental.
Brasília:
MEC/SEF, 1998. _____. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: 2000. BRASIL/SEMTEC. PCN+ Ensino Médio: Orientações educacionais complementares aos
Parâmetros
Curriculares
Nacionais.
Volume
Linguagens,
códigos
e
suas
tecnologias. Brasília, DF: MEC/SEMTEC, 2002. BUESCU, H.C.; MAIA, L. C.; SILVA, M. G.; ROCHA, M. R. Ministério da Educação e Ciência. Metas Curriculares para ao Ensino Básico. Lisboa: MEC, 2012. FIAD. R. S. Diálogos entre propostas de ensino de escrita em documentos oficiais. In: SIGNORINI. I.; FIAD, R. S. (Orgs) Ensino de língua: das reformas, das inquietações e dos desafios. Belo Horizonte: UFMG, 2012, p.106-120.
0936
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Currículo
Nacional do
Ensino
Básico
–
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L.
A.,
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I.,
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revista
científica.
Dez/2012.
p.
421-479.
Disponível
online
em
Acesso
em 21 mar.2014.
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PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA EM INÍCIO DE CARREIRA: PROCESSO DE INSERÇÃO E TOMADA DE DECISÕES EM SALA DE AULA
Jardiene Leandro Ferreira (PósLe-UFCG) Edmilson Luiz Rafael (Pósle-UFCG) Introdução Este trabalho é decorrente da investigação da minha dissertação de mestrado em andamento que investiga o meu agir enquanto docente em meu primeiro ano de atividade profissional. Para tal, cabe destacar a situação geradora do problema desta pesquisa, qual seja o momento no qual me torno institucionalmente responsável pelas realizações das ações didáticas em um sistema de organização educacional, não mais dependente das avaliações/orientações referentes a um estágio, por exemplo. Convém ainda afirmar que esse contexto em particular é relevante de ser estudado, pois a minha inserção no mercado de trabalho se deu em uma situação na qual havia sido realizado o segundo concurso de professores da educação básica do estado da Paraíba em quatro anos de mandato da atual gestão. Desse modo, mesmo que este estudo esteja ligado a um caso particular, estou imersa a uma realidade que foi nova para grande parte dos docentes contratados na cidade neste processo de entrada de novos professores para a rede estadual de ensino1. Esta situação de inserção no mercado de trabalho docente passa pela compreensão de que é o momento ao qual me inseri em um sistema de organização social, com regras já estabelecidas, na qual eu precisava me submeter, questionando ou 1
. Acesso em 06 out. 2014.
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me aceitando a organização já posta (ROJO, 2013). Assim, inquietei-me tanto como professora, pois me questionava sobre a construção de minha identidade profissional, quanto como pesquisadora, pois procurava compreender os saberes que mobilizei nesses momentos iniciais que, em certa medida, passam despercebidos no cotidiano do trabalho. Além disso, questionei, numa visão mais abrangente, como o professor age numa situação institucional que pede segurança, domínio (de conteúdo, de autoridade, de dinamicidade), sagacidade para planejar e executar aulas de língua portuguesa que desenvolvam as competências leitoras, escritoras e analíticas dos alunos. Sendo assim, sou um sujeito, que, de maneira similar a muitos que assumiram o cargo de professor de língua portuguesa, teve de fazer escolhas para iniciar o trabalho ao qual foi admitido. Cabe ainda dizer que a escolha do objeto desta pesquisa não foi aleatória, pois remete a minhas indagações que surgiram num contexto primeiramente não acadêmico e foi tomando forma no desenvolvimento da investigação. Considerando-me uma professora em início de carreira docente, inserida num contexto problemático, por ser mais um responsável por fazer o sistema de ensino público funcionar, é pertinente, saber, nessas condições, como eu realizei minha prática de ensino e como eu (não) desenvolvi minha autonomia profissional no primeiro ano de trabalho enquanto professora de língua materna. Para me inserir nesse novo contexto profissional, fiz escolhas, tais como que metodologia utilizar, que conteúdos ensinar, que habilidades desenvolver. Desse modo, a pergunta geradora da pesquisa, como um todo, se apresenta da seguinte forma: Como se construíram as escolhas metodológicas realizadas por uma professora de português em seu primeiro ano de trabalho? Tal pergunta busca conduzir a pesquisa para um caminho que descreva a minha atuação enquanto profissional em processo de inserção no trabalho, buscando perceber as escolhas que orientaram minha prática de ensino. Entendo que essas escolhas não são neutras, pois estão imersas a um contexto educacional que foi consolidado através da rotinização de práticas realizadas pelos agentes sociais (GUIDDENS, 2009). Sabemos, porém, que o professor, enquanto um dos protagonistas da sala de aula, tem a possibilidade de fazer escolhas que estão além do que preconiza tal rotinização. Assim,
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na pesquisa em andamento, tenho por objetivo mais amplo investigar como foram construídas as escolhas metodológicas realizadas por mim, enquanto professora de português em meu primeiro ano de trabalho. Para este artigo em específico, apresento os resultados da primeira fase do primeiro objetivo de pesquisa, qual seja identificar os momentos de transição entre a autonomia e adaptação da professora em foco, observando os dados referentes aos objetivos de aula traçados nos meu primeiro ano de trabalho e aos conteúdos abordados para tal. Para isto, faço uso dos meus planos de aula elaborados durante minha atuação no período que perpassa o mês de abril ao mês de janeiro do ano de 2013. Este trabalho está organizado por esta introdução, seguida da metodologia empregada para a investigação, traz a seção dedicada à linha teórica assumida, e, por fim, apresenta a análise dos dados. Percurso metodológico Esta pesquisa enquadra-se no campo da Linguística Aplicada (MOITA LOPES, 2013), com foco na formação do professor de língua materna. Por estar imerso neste campo, possui natureza qualitativa de pesquisa e caracteriza-se como um estudo de caso, pois investiga uma realidade em específico. Considerando que este trabalho faz parte de uma investigação mais ampla, busco aqui apresentar a primeira fase da pesquisa, que visou identificar os possíveis momentos de transição entre autonomia e adaptação do meu agir, através de dados que denunciem os meus objetivos de aula e os conteúdos escolhidos para tal. Acredito que trazer à tona estes primeiros indícios contribuem para compreender quais foram esses movimentos de escolha metodológica em relação ao meu próprio trabalho docente. Convém ainda destacar que a realidade investigada diz respeito à minha imersão no trabalho de docência em uma escola pública estadual no município Campina Grande, Paraíba. Meu ingresso se deu no mês de abril de 2013, por esse motivo, já encontrei as turmas formadas e deixadas por um professor contratado anterior.
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Nessa escola, fiquei responsável por quatro turmas (duas turmas do ensino fundamental e duas turmas do 1º ano do ensino médio) a cada semestre no contexto de educação de jovens e adultos (EJA). Os dados para esta investigação possuem naturezas diferentes: aulas audiogravadas, relatos autobiográficos e planos de aula. Para este trabalho em específico, faço uso do último conjunto de dados. A realidade das aulas voltadas para o ensino médio foi escolhida para a análise, pois fazem parte do agrupamento de dados que se repetiu nos dois semestres, quais sejam duas turmas de 1º ano para cada semestre. O perfil do sujeito investigado: que tipo professor sou eu? Tomo o professor em início de carreira como aquele profissional que se inseriu recentemente no mercado de trabalho. Para a realidade desta pesquisa, eu me coloco, ao mesmo tempo, como pesquisadora e sujeito investigado, buscando me afastar da neutralidade, porém, buscando uma descrição detalhada que contribua e esclareça o fenômeno investigado. Enquanto sujeito de pesquisa, coloco-me como uma professora da rede pública do Estado da Paraíba e que me encontrava, no momento de geração dos dados, em meu primeiro ano de trabalho, estando, assim, em processo de estágio probatório, conforme prevê a lei complementar nº 58, de 30 de dezembro de 2003 do Estado da Paraíba2. De acordo com essa disposição legal, os professores recémchegados à profissão são submetidos, durante três anos, à avaliação de assiduidade, disciplina, iniciativa, produtividade e responsabilidade e, ao final desse processo, a autoridade competente (diretor escolar) avalia esse profissional, atestando sua permanência do cargo ou sua exoneração. No momento da geração de dados, encontrava-me em um processo que, após três anos de avaliação, me atestaria como profissional apta a permanecer de fato no cargo. Destaco, porém, que, apesar de passar por esse processo, já nos momentos iniciais de trabalho, é pressuposto que o professor já saiba ministrar uma aula, “dominar” a turma, planejar, elaborar atividades etc. Tal pressuposição se dá tanto pela
2
Conforme a lei complementar nº 58, de 30 de dezembro de 2003 do Estado da Paraíba.
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formação na licenciatura em Letras, bem como pela aprovação em um concurso público para o cargo de professor. Para compreender a situação na qual inicio minha carreira efetivamente profissional, considerando meus primeiros momentos como professora, destaco que, antes mesmo de chegar a ocupar este cargo, eu já havia me submetido à experiência docente. Em meu curso de licenciatura, cursei duas disciplinas referentes ao estágio, planejando e ministrando aulas para o público do ensino fundamental e médio. Também participei, na condição de bolsista, do PIBID (Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência), cujo foco é voltado para a inserção de estudantes licenciaturas no contexto de escolas públicas para que desenvolvam atividades didático-pedagógicas, junto com o professor da própria escola3. Desse modo, destaco que me encontrava em início de carreira, mas não em experiências iniciais de situações de ensino. O que deve ser evidenciado é que situações de trabalho e situações de estágio possuem dimensões diferenciadas e, no contexto desta investigação, analisamos a primeira. Fundamentação teórica Para fazer a leitura dos dados, lanço mão de alguns referenciais teóricos que ajudam a compreender o processo de tomada de decisão que investigo. Tomo então o meu objeto de pesquisa, qual seja o meu agir em sala de aula, numa concepção teórica do ensino enquanto trabalho. Nessa perspectiva, a linguagem é entendida enquanto atividade, conforme a perspectiva do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), o qual é assume a centralidade do problema da linguagem na ciência do humano (BRONCKART, 2006). Assumindo este princípio, estamos considerando que investigar os problemas de linguagem passa, necessariamente, pela relação linguagem-pensamento humano-sociedade-cultura, numa lógica de interdependência. Diante dessa lógica, instaura-se nos estudos do ISD uma relação mútua entre os campos do conhecimento e entre o pensamento teórico e a prática. É, nesse sentido, que Bronckart (2006, p. 10) assume as práticas linguageiras situadas como “instrumentos principais do
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Fonte: . Acesso em 28 jul. 2014.
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desenvolvimento humano, tanto em relação aos conhecimentos e aos saberes quanto em relação às capacidades do agir e da identidade das pessoas.” (ênfase acrescida) Nessa perspectiva, analisar o meu trabalho enquanto professora, em meu primeiro ano de atividade docente significa compreender esse agir enquanto uma prática linguageira situada e numa visão ergonômica do trabalho. De acordo com tal perspectiva, no âmbito dos estudos que concebem o ensino como trabalho, este é abordado como elemento central organizador e estruturante dos componentes da situação de trabalho. A atividade (realização) é uma resposta às prescrições (tarefas) determinadas exteriormente ao trabalhador e, simultaneamente, ela é susceptível de transformá-las. Ela estabelece, portanto, por sua realização mesma, uma interdependência e uma interação estreita entre seus componentes. (SOUSA-E-SILVA, 2004, p. 89 – ênfase acrescida)
De acordo com a autora, a atividade não depende apenas da dimensão individual, pois é orientada através de fatores mais amplos. Mesmo assim, o trabalhador tem a possibilidade de transformá-las de acordo com as possibilidades. Através dessa relação, destaco que o contexto de inserção no trabalho docente é um processo que vai além da relação professor-escola, já que o contexto educacional brasileiro insere-se dentro de uma lógica capitalista de mercado na qual a escola é uma das agências de letramento que fazem parte desse sistema. (SIGNORINI, 2013). Dessa forma, analiso o meu trabalho docente, tendo em vista que minha iniciação no campo do trabalho se dá num sistema de articulações e conteúdos pré-concebidos tanto nas orientações curriculares de ensino quanto nos livros didáticos, bem como nas minhas crenças e saberes, desenvolvidos em todo o meu processo de formação. Considerando que o trabalho docente está inserido num contexto complexo de relações sociais, não podendo ser visto numa dimensão simplória e individual, evidencio o conceito de rotinização social, entendido como tudo aquilo que é feito rotineiramente e estabelece um elemento básico da atividade social. (GUIDDENS, 2009). Neste trabalho, este conceito tem o papel de evidenciar que as escolhas metodológicas são guiadas por uma rotinização de práticas já estabelecidas, pois estamos imersos a uma conjuntura de regras e recursos estabilizados no tempo e no
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espaço social (op. cit). É importante salientar, porém, que essas regras são continuamente (re)modeladas, tendo em vista as próprias práticas de rotinização que os agentes estabelecem em suas relações sociais. Entendendo que tais práticas, já rotinizadas, podem sofrer alterações – em processos amplos e demorados – considero que tal movimento também ocorre em micro contextos, como é o caso dessas relações sociais em situação de trabalho. De acordo com esta constatação, considero que as escolhas de um profissional em início de carreira, por demonstrarem certa tensão no momento de escolhas para agir, podem caminhar no sentido de continuar tal processo de rotinização, ou de criar outros movimentos que são possíveis na medida em que a estrutura social permite. Entendendo o trabalho do professor como aquele que deve possuir componentes motivacionais e intencionais mobilizados no nível coletivo, destacamos, segundo Bronckart (2008), os determinantes externos, de natureza coletiva e os motivos, que são as razões do agir interiorizadas por uma pessoa, em sua dimensão individual. No plano intencional, por sua vez, o autor apresenta as denominações finalidades, que possui origem coletiva e as intenções, que são relativas ao agir de uma pessoa em particular. É importante destacar essas denominações para relacioná-las ao percurso de escolha profissional que será analisado adiante. Coaduno os termos cunhados por Bronckart (2008) em suas dimensões coletivas e individuais com as noções de adaptação e de submissão, primeiras grandes categorias que surgiram durante a investigação. Essa designação tem por base a investigação desenvolvida por Rojo (2013) sobre o uso dos materiais didáticos para o ensino de língua e o seu uso pelos professores. Frente ao papel do uso do livro didático na prática docente, a autora considera que, para além da submissão do que propõe esse material, é preciso adotar uma postura de autonomia do professor na preparação de suas aulas. Para este trabalho, porém, o livro didático é considerado como um dos estruturadores do ensino de língua, dentro de um conjunto mais vasto, como as diretrizes de ensino (governamentais e da escola), as representações e objetivos de cada professor etc. Considerando, então, essas duas posturas profissionais, ao invés de utilizar a palavra submissão, optamos pela palavra adaptação por acreditarmos que o ato de
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submeter-se está atrelado a uma ideia de sujeito sem opções para fazer escolhas. O termo adaptação, por sua vez, nos remete a uma postura de buscar entrar em uma realidade já em funcionamento, e que, por esse motivo, precisa adequar-se ao sistema vigente. Já o termo autonomia é retomado neste trabalho para representar os movimentos que geram escolha de diferentes mecanismos, mais próximas da coletividade, para desenvolver minha prática docente. Discussão dos dados Neste trabalho, apresento a dimensão do meu trabalho planificado (MACHADO, 2009), materializado pelos os planos de aula de língua portuguesa desenvolvidos por mim para as turmas da primeira série do ensino médio pelas quais fiquei responsável durante meu primeiro ano de docência. Para uma melhor compreensão de como essas aulas tomaram vida, ilustro abaixo os objetivos de ensino traçados para as turmas nas quais o trabalho foi realizado. As turmas foram denominadas “1º X” e “1º Z” e o número ao lado, entre parênteses, revela o semestre para o qual os objetivos foram esboçados. Quadro 1: Objetivos traçados para as turmas do primeiro ano, durante o primeiro semestre de trabalho 1ºX (1) Diferenciar fonemas de letras Compreender a organização silábica das palavras, focando o fenômeno do dígrafo que tende a ser o principal problema de escrita dos alunos por tratar-se da representação gráfica de apenas um som. Compreender como se realizam a ditongação, tritongação e o hiato. Diferenciar textos em prosa e textos em poesia através de exemplos expostos no módulo. Diferenciar os gêneros literários.
Fonte: os autores
1ºZ (1) Diferenciar fonemas de letras Compreender a organização silábica das palavras, focando o fenômeno do dígrafo que tende a ser o principal problema de escrita dos alunos por tratar-se da representação gráfica de apenas um som. Compreender como se realizam a ditongação, tritongação e o hiato. Diferenciar textos em prosa e textos em poesia através de exemplos expostos no módulo. Diferenciar os gêneros literários.
Conforme o quadro acima, retirado dos objetivos traçados para meu primeiro semestre de trabalho, iniciado no mês de abril, para turmas de EJA, são encontrados objetivos iguais para as duas turmas. Os conteúdos abordados nas duas turmas também
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são os mesmos (fonemas, encontros vocálicos e consonantais, prosa e poesia e gêneros literários). Outro dado relevante para compreendermos este processo de escolha é que o levantamento para o que ensinar foi embasado no o módulo utilizado na escola, conforme pode ser verificado ao visualizar os sumários dos módulos de Gramática e de Literatura utilizados na escola:
Lopes (s/d) Lima (s/d)
Tal evidência é um dos traços que denunciam a preconização daquilo que já estava posto para ser ensinado. Em outras palavras, as escolhas por mim mobilizadas durante o primeiro semestre de ensino revelam apego ao material didático enquanto documento de autoridade. Essa pista inicial sinaliza para o que podemos chamar de adaptação ao sistema já posto, no sentido de verificar a relação entre os objetivos por mim traçados e os conteúdos preconizados pelo material didático. Esse dado me permite também perceber que o movimento de tomada de decisões, no contexto inicial de docência caminhou para a manutenção de uma rotinização social já consolidada. Para verificarmos como esse processo de escolha caminhou durante o meu segundo semestre de trabalho, vejamos o quadro abaixo que ilustra os objetivos de ensino traçados:
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Quadro 2: Objetivos traçados para as turmas do primeiro ano, durante o segundo semestre de trabalho 1º X (2) Fazer levantamento da realidade dos alunos, através de uma sondagem Compreender as seis funções da linguagem através da leitura de gêneros diversos
1ºZ (2) Fazer levantamento da realidade dos alunos, através de uma sondagem Apresentar textos em uma ou mais modalidades e questionar aos alunos se aqueles exemplos ilustravam de textos Compreender a existência da linguagem Definir a ideia de texto como unidade mais ampla, verbal, não-verbal e mista4. focando em seu aspecto discursivo/ comunicativo. Problematizar o fenômeno da Compreender a existência da linguagem verbal, nãointertextualidade através de músicas, verbal e mista poesia, anúncios publicitários, obras de arte e trechos bíblicos Levantar problemática sobre a escola ou Problematizar o fenômeno da intertextualidade através comunidade que possa ser abordada em de músicas, poesia, anúncios publicitários, obras de atividades na escola arte e trechos bíblicos Escolher gênero a ser produzido pela turma Levantar problemática sobre a escola ou comunidade que possa ser abordada em atividades na escola Produzir o gênero convite a ser enviado Escolher de gênero a ser abordado pelos alunos para a diretora da escola a fim de realizar uma futura entrevista Compreender o uso dos pronomes de Compreender a função enunciativa de uma carta aberta tratamento e perceber sua importância em utilizá-los em contextos mais formais, como um convite em um contexto institucional; Analisar entrevistas escritas e televisivas, Realizar roda de conversa sobre a problemática da focando nos aspectos em comum violência através da reportagem. (apresentação, jogo de perguntas e respostas) e diferenças. Produzir o gênero entrevista com a diretora da escola, acerca da merenda escolar, através de perguntas pré-elaboradas pela turma. Assistir a gravação da entrevista e analisar conjuntamente a realização da atividade.
Ler e levantar aspectos constitutivos de uma carta aberta. Elaborar carta aberta, utilizando como um dos argumentos o direito à segurança, através de trechos da constituição brasileira, bem como a argumentos gerados pelos próprios alunos durantes as discussões em sala; Analisar trechos de produção dos alunos quanto ao uso do mas/mais, nós/nos, plural de palavras terminadas
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Conteúdo abordado no módulo de redação utilizado na escola. Não exposto aqui pela limitação de espaço.
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em –ão; Analisar dois exemplos de textos completos dos alunos e reescrita conjunta dessas produções
Fonte: os autores Este quadro ilustra os objetivos traçados por mim no segundo semestre de trabalho. Os objetivos marcados em itálico representam menor distanciamento do livro didático, apesar de ainda ser utilizado como fonte para o trabalho. Os objetivos sublinhados, por sua vez, representam aqueles que se distanciaram do material didático, partindo para escolhas provenientes de outra natureza, como, por exemplo, o fato de problematizar, juntamente com os alunos, algum tema a ser estudado na disciplina. Por fim, os objetivos sem nenhum grifo referem-se àqueles que ainda apresentaram apego ao material didático da escola. Diante do exposto, é notório o fato de que, aos poucos, esse processo de escolhas se desenvolveu para mais distante do material didático empregado na escola e caminhou para outra forma de desenvolvê-las. Tal dado, visto unicamente, apenas diz que as motivações partiram de uma natureza mais individual para aquela com foco no coletivo. Convém dizer, porém, que esta é a ilustração de uma das fases da pesquisa, que apresenta o meu agir na dimensão do trabalho planificado. Para compreender como se deu esse processo em uma dimensão maior, está sendo realizada a triangulação dos dados de outra natureza. Algumas considerações Retomando o objetivo que guiou este trabalho (identificar os momentos de transição entre a autonomia e adaptação da professora em foco), destaco, conforme os dados apresentados, que o meu agir docente, nas condições iniciais de trabalho, indicou um movimento de rotinização já estabilizado, e, aos poucos, aparecem marcas de escolhas que me levam o que chamo de marcas de autonomia profissional. Minhas primeiras escolhas que priorizam práticas já estabilizadas apontam para opções que me levam para a mobilização de intenções (foco para o individual). Os dados revelam ainda que as ações mobilizadas através de motivações para o foco essencialmente no coletivo aparecem quando os alunos começam a também participar do processo de ensino aprendizagem.
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Por meio dessas evidências, é necessário destacar a necessidade de um maior envolvimento da comunidade escolar para acolher os novos professores e familiarizá-los com sua nova realidade de trabalho. Desse modo, o apego forte ao material didático da escola, conforme exposto na análise, poderia possibilitar uma maior segurança para tomar escolhas para além daquelas que os materiais prontos preconizam. Referências: BRONCKART, J. P. A. linguagem como agir e a análise dos discursos. In.______. O agir nos discursos. Tradução Ana Rachel Machado, Maria de Lourdes Meirelles Matêncio. Campinas: Mercado de Letras, 2008. ____________, J.P. Por que e como analisar o trabalho do professor. In._______. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Tradução Anna Rachel Machado, Maria de Lourdes Matencio [et al.]Campinas, Mercado de Letras, 2006. 203-229. GUIDDENS, A. A constituição da sociedade. Tradução Álvaro Cabral. 3.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. LIMA, C. da S. Educação e Diversidade: Gramática. Ensino médio – Semipresencial. Módulo I. Recife: Soler Edições Pedagógicas, s/d. LOPES, J. D. Educação e Diversidade: Literatura. Ensino médio – Semipresencial. Módulo I. Recife: Soler Edições Pedagógicas, s/d. MACHADO, A. R. Linguagem e Educação: o trabalho do professor em uma nova perspectiva. Campinas: Mercado de Letras, 2009. MOITA LOPES, L. P. da (Org.) Linguística Aplicada na modernidade recente: festschirift para Antonieta Celani. SP: Parábola: 2013 ROJO, R. Materiais didáticos no ensino de línguas. In. In.:MOITA LOPES, L. P. da (Org.) Linguística Aplicada na modernidade recente: festschirift para Antonieta Celani. SP: Parábola, 2013. SIGNORINI, I. Política, língua portuguesa e globalização. In. MOITA LOPES, L. P. (org.). O português no século XXI: cenário geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola Editorial, 2013. SOUSA-E-SILVA, M. C. P. O ensino como trabalho. In: MACHADO, A. R. (org.). O ensino como trabalho: uma abordagem discursiva. Londrina: Eduel, 2004. p. 81-104
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NOVAS TECNOLOGIAS APLICADAS À FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA Jéssica Bell’Aver (UTFPR-LD)1 Alessandra Dutra (UTFPR-LD)2 Introdução Ao assumir o papel de língua global, a Língua Inglesa torna-se uma das mais importantes
ferramentas,
tanto
acadêmicas
quanto
profissionais.
É
hoje
inquestionavelmente reconhecida como a língua mais importante a ser adquirida na atual comunidade internacional. De acordo com Schütz (2010) este fato é incontestável e parece ser irreversível. O inglês acabou tornando-se o meio de comunicação por excelência tanto do mundo científico como do mundo de negócios. David (2005) corrobora afirmando que: [...] a língua inglesa hoje se caracteriza como o código linguístico apropriado para satisfazer as necessidades e expectativas daqueles que anseiam em participar da comunidade internacional, quem não se utilizar desse instrumento, estará parcialmente excluído [...] (DAVID, 2005, p. 32).
Devido à importância do aprendizado de um segundo idioma, as línguas estrangeiras são hoje consideradas tão essenciais como qualquer outra disciplina do currículo escolar e nesse sentido, há inúmeras publicações nas quais os autores justificam a importância de estudar a língua inglesa não apenas como fator de desenvolvimento intelectual, mas também como ferramenta que amplia os horizontes geográficos, histórico-sociais e humanos dos alunos (DAVID, 2005; ALMEIDA FILHO, 1993). A AMOP, (Associação dos Municípios do Oeste do Paraná), que atua acerca de treze anos na região, possui em média cinquenta municípios filiados e todos utilizam o mesmo currículo de conteúdos escolares, ou seja, todos esses municípios encontram-se em sintonia com relação ao que deve ser trabalhado em sala de aula com as crianças. 1
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Desses cinquenta municípios, cerca de quinze possuem a disciplina de Língua Inglesa em suas escolas, atendendo turmas da Educação Infantil ao 5º ano do Ensino Fundamental. Porém, a disciplina de Língua Inglesa por sua vez, não possui seus conteúdos especificados para as crianças da Educação Infantil e para as primeiras turmas dos Anos Iniciais (1º, 2º e 3º), apenas para as turmas de 4º e 5º ano. Diante desse contexto, nota-se que o ensino da Língua Inglesa na Educação Infantil e nos Anos Iniciais das escolas públicas precisa de elementos norteadores que venham a atender as especificidades de ensino-aprendizagem dessa faixa etária. A Proposta de Formação Continuada Atual A proposta de formação continuada que existe hoje oferece encontros para professores de Língua Inglesa das escolas municipais através da AMOP, os quais oportunizam a socialização do grupo, momentos de estudos de textos relacionados à docência, trocas de experiências e atividades, enfim, permitem que haja a interação entre os profissionais envolvidos com o ensino da Língua Inglesa nos municípios filiados ao órgão. Entretanto, considerando que a prática de ensino da Língua Inglesa na Educação Infantil e nos Anos Iniciais é relativamente nova, e que é nessa etapa da vida que se inicia a formação linguística, o ensino de qualquer língua estrangeira deve ser levado muito a sério e de forma criteriosa. Logo, observa-se que tais encontros oferecidos atendem minimamente essas necessidades, pois esses momentos são extremamente pontuais ao longo do ano letivo (cerca de cinco encontros por ano), não correspondendo com a demanda das questões relacionadas à implantação dessa disciplina nas escolas, assim como os anseios e as angústias dos professores. Além disso, até o presente momento o currículo vigente não específica os conteúdos a serem trabalhados na Educação Infantil e nos Anos Iniciais pelo fato de que a oferta da Língua Inglesa não é obrigatória nessas modalidades, porém, vários municípios do Oeste do Paraná optam por lecionar a disciplina e trabalham de forma aleatória, sem um instrumento direcionador. Essa questão dificulta e/ou na maioria dos
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casos impede a garantia de que conteúdos mínimos sejam trabalhados com as crianças, o que pode comprometer seriamente a qualidade do ensino da Língua Inglesa. A participação ao longo de dois anos nesse encontros, juntamente com a atuação na coordenação da disciplina de Língua Inglesa no município de Toledo, permitiu observar e compreender a grande necessidade de ampliar a proposta de formação existente, tornando-a mais dinâmica e acessível aos professores, pois a demanda desses profissionais é grande e nem todos tem a disponibilidade para estar na sala de aula com frequência. Além disso, esses docentes possuem uma grande carga horária de trabalho, moram em municípios distantes e os encontros da AMOP são realizados apenas no município de Cascavel. Levando em consideração tais argumentos, por meio desse estudo busca-se a reflexão acerca dessa problemática e a proposição da criação de um ambiente virtual para otimizar a interação, a produção de materiais e a troca de experiências entre os professores dos diferentes municípios da região, uma vez que na maioria dos casos estes são os únicos a lecionarem a Língua Inglesa em suas escolas e não têm com quem socializar ideias e planejamentos. Formação Continuada e Tecnologia A tecnologia na vida das pessoas não é um acontecimento novo, é quase tão antigo quanto a história da humanidade, e se segue desde quando os seres humanos começaram a usar ferramentas de caça. Uma das definições de tecnologia é que são ferramentas e máquinas que ajudam a resolver problemas, “as tecnologias viabilizam novas formas produtivas” (MORAN, 1995, p.84). Sem dúvida as tecnologias vêm modificando todas as áreas da sociedade, o impacto é sentido em todas as esferas da vida social, seja no trabalho, no lazer, nas relações pessoais, principalmente na maneira como nos comunicamos. E esse fenômeno não passa despercebido na escola. A instituição de ensino também apresenta a necessidade de se modificar e a internet, por exemplo, é a principal ferramenta para este crescimento. Dal Molin (2003) explica a importância da tecnologia:
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Num mundo em transformação, no qual a tecnologia, dia a dia, é o link da mente e um instrumento essencial de trabalho, as instituições de ensino não podem preparar os futuros profissionais para um mundo de subalternidade, tanto do ponto de vista individual quanto na perspectiva do coletivo. Enfatizamos, portanto, que a inclusão digital significa muito mais do que ensinar o emprego da tecnologia ou disponibilizar o acesso à rede: faz-se necessário um trabalho sério e aprofundado a fim de conhecer as demandas relativas à capacitação dos cidadãos para a lida com a tecnologia (DAL MOLIN, 2003, p.56).
Cientes da influência e da necessidade das tecnologias no ensino, a formação continuada para professores não pode se eximir disso. Pelo contrário, essa deve fazer uso constante desses recursos para cada vez mais deixar os profissionais da educação familiarizados com ela, percebendo a sua aplicabilidade na escola e na sua própria capacitação enquanto professor. Para Szewczyk (2005), o professor tem que fazer sua parte: É preciso que o professor reconheça a importância de sua própria formação, buscando aprimoramento continuado para fazer frente às exigências do mundo atual, o que pode ser feito por iniciativa pessoal, através de estudos e cursos, ou acompanhando as formações propiciadas pelo sistema educacional. Quando o professor reconhece o quanto seu trabalho pode criar oportunidades para que seus alunos possam melhor desempenhar seu papel como cidadãos do mundo, este pode ser desenvolvido com mais entusiasmo e criatividade (SZEWCZYK, 2005, p.186).
Pensando no contexto do dia-a-dia do professor, onde as leituras e os estudos são essenciais à sua prática, antecedendo e precedendo a mesma, a possibilidade de uma formação continuada a distância, via Internet, otimiza o tempo do profissional, uma vez que a possibilidade de acessar e interagir com o conhecimento previamente construído pelo grupo está a um clique de distância. Ludovico & Dal Molin corroboram: [...] cursos à distância podem alcançar um grande número de interessados podendo fazê-los sem a rigidez do tempo e nem da clausura do lugar. Uma dinâmica que só um ensino a distância pode proporcionar: um curso com a integração de mídias interativas dando a oportunidade para que os cursistas estudem, reflitam, produzam e
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realizem suas tarefas no melhor momento para cada um (LUDOVICO & DAL MOLIN, 2013, p.5).
Estudos diversos já foram realizados argumentando sobre a necessidade da aproximação da escola com as tecnologias digitais. No entanto nota-se ainda a escassez dessa prática na sala de aula, principalmente, nas aulas de Língua Inglesa. O professor precisa de formação necessária que lhe permita entender que “não existe um modelo único, um método perfeito e imutável, mas que a interação no ciberespaço oportuniza a mutação de comportamentos, mudanças em um idioma e principalmente, precisa saber lidar com esse fenômeno”. (MOTTER, 2011, p. 72). Em linhas gerais, no pensamento de Nóvoa (1991), uma proposta de formação continuada deve estar articulada com o desempenho profissional dos professores, tomando o ambiente escolar como referência. Com efeito, Garcia (1997) conclui que um espaço para formação centrado na atividade cotidiana da sala de aula, próxima dos reais problemas dos professores, assume uma dimensão participativa, flexível e investigadora, características fundamentais à ação docente. Ambiente Virtual: Uma Proposta A necessidade de atualizar as práticas pedagógicas no ensino de línguas estrangeiras é constante. Acredita-se que a criação e a manutenção de um ambiente virtual de caráter formativo e interacional contribuiria com a formação continuada dos docentes, no sentido de reduzir a distância entre os professores e diminuir os intervalos de tempo que os mesmos ficam sem assessoramento ou apoio pedagógico. O ensino de uma Língua é dinâmico e precisa fazer proveito das tecnologias digitais, visto o leque de possibilidades disponíveis tanto para os professores aperfeiçoarem seus conhecimentos e a sua prática, quanto para os alunos se interessarem mais pelas aulas e terem a oportunidade de vivenciar o contato com a língua real, por meio de diversas mídias interativas que encontram-se hoje na internet. Os professores participantes dessa proposta de formação continuada poderão oferecer aos alunos novas metodologias de aprendizagem, mais próximas daquilo que as crianças e os adolescentes têm interesse na atualidade. 1
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Com a finalidade de executar a proposta de Formação Continuada via ambiente virtual, estudos teóricos, contato com as secretarias dos municípios e professores para explanação da proposta, antecederão a aplicação de questionários e a prática da entrevista com os docentes, o que irá contribuir para que os mesmos ajudem a definir as especificidades que o ambiente virtual deverá contemplar. A observação do trabalho dos professores também será uma alternativa que norteará a elaboração das perguntas do questionário e trará subsídios para enriquecer a construção e a formulação dos conteúdos do ambiente. Na sequência, dar-se-á início a elaboração do ambiente virtual em si, em seguida os testes, primeiros contatos e acessos, e a apresentação do produto semi-pronto aos professores. Pois assim como os professores estão em formação permanente, o ambiente também estará em constante avaliação e avanços, observando sempre as novas necessidades que surgirão. Contudo, propõe-se a manutenção do ambiente virtual, por meio da qual será possível a ampliação da formação continuada oferecida pela AMOP para professores de Língua Inglesa possibilitando uma interação maior entre os professores, no sentido de trocar, produzir e divulgar materiais feitos pelos mesmos e ao longo desse processo, construir de forma coletiva, o currículo de conteúdos de Língua Inglesa para a Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental, considerando metodologias e atividades condizentes com essa faixa etária. Além disso, será dada ênfase na formação linguística do professor, por meio de espaços destinados a prática oral, auditiva e escrita. A proposta será observada e avaliada constantemente no que diz respeito a sua aplicabilidade, resultados e satisfação dos professores, bem como o envolvimento e o crescimento dos mesmos na Língua Inglesa e a sua desenvoltura no uso das tecnologias digitais.
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Considerações Finais A partir dos argumentos apresentados, acredita-se que a elaboração de um espaço virtual que viesse a fazer parte do dia a dia dos professores para fomentar sua prática docente e aperfeiçoar sua proficiência na língua poderia ser um meio de minimizar a problemática existente nessa área e, além disso, incentivar os professores a buscar constantemente exercer sua atividade docente com qualidade, além de proporcionar de forma gradativa o domínio das tecnologias digitais. Proporcionar um ambiente virtual com espaços para busca de materiais, conteúdos condizentes com cada faixa etária, metodologias possíveis de serem aplicadas, espaço para chat, divulgação de trabalhos, entre outras possibilidades que essa ferramenta pode oferecer, parece ser uma estratégia possível de trazer muitos benefícios para o trabalho do professor em sala, e consequentemente, para os seus alunos. Por meio dessa proposta, espera-se oportunizar aos professores, de forma mais abrangente e constante, a reflexão sobre as suas práticas de ensino, oferecendo um recurso que servirá de auxílio para nortear as ações e o planejamento dos conteúdos, considerando a nova relação do saber e a realidade dos alunos que encontramos nas salas de aula hoje. Por fim, espera-se que os profissionais que atuam na área tenham oportunidade de aperfeiçoamento na Língua em si, possibilidade de interação com outros professores e obtenção de novas estratégias de ensino que venham de encontro com as suas necessidades enquanto docentes. Referências ALMEIDA FILHO, J. C. P. Dimensões Comunicativas no Ensino de Línguas. Campinas: Pontes Editores, 1993; DAL MOLIN, Beatriz Helena. Do tear à tela: uma tessitura de linguagens e sentidos para o processo de aprendência. Tese de Doutorado, Florianópolis, UFSC/CTE, 2003;
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DAVID, Patricia D. O inglês no mundo: língua de prestígio. Revista Trama – volume I – número 2 –– 2º semestre. Marechal Candido Rondon: UNIOESTE, 2005; GARCIA, Carlos Marcelo. Pesquisa sobre formação de professores – O conhecimento sobre o aprender e ensinar. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. XX Reunião Anual da ANPED, Caxambu, 1997; LUDOVICO, F. M.. DAL MOLIN, B. H.. EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: uma avaliação: 1º Congresso de educação da FAG: Formando Educadores para a Diversidade. ISSN: 2013; MORAN, José Manuel. Tecnologia Educacional: Novas tecnologias e o reencantamento do mundo. Rio de Janeiro, vol. 23, n.126, setembro-outubro 1995, p. 2426; MOTTER, Rose Maria Belim at all. Formação de professores de inglês na era da cibercultura. In: Conhecimento e ciberespaço: tessituras de sentido. Cascavel, Edunioeste, 2011; MOTTER, Rose Maria Belim. MY WAY: um método para o ensino-aprendizagem para língua inglesa. 2013. 281f. Tese de doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento. Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento – Mídia do Conhecimento, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013; NÓVOA, Antônio. Concepções e práticas da formação contínua de professores: In: Nóvoa A. (org.). Formação contínua de professores: realidade e perspectivas. Portugal: Universidade de Aveiro, 1991; PRENSKY, Marc. Digital Natives, Digital Immigrants. MCB University Press, Vol. 9 No. 5, October 2001: Marc Prensky; SCHÜTZ,
Ricardo.
História
da
Língua
Inglesa.
Disponível
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http://www.sk.com.br/sk-enhis.html. Acesso em: 05 de abril de 2014; SZEWCZYK, Sonia. Teorias e Fazeres na Escola em Mudança: Ensino de língua estrangeira: entraves e possibilidades. Porto Alegre: Editora da UFRGS/ Núcleo de Integração Universidade & Escola da PROREXT/UFRGS, 2005;
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THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação, 17. ed. São Paulo, Editora Cortez, 2009.
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FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA: O LETRAMENTO CRÍTICO NO ESTÁGIO SUPERVISIONADO Jhuliane Evelyn da Silva (UFCG) Marco Antônio Margarido Costa (UFCG) Considerações iniciais Para situar a formação de professores de língua inglesa, suas preocupações e desenvolvimentos vivenciados atualmente, optamos por fazer um breve percurso dos conceitos e características da modernidade e da pós-modernidade para, em seguida, destacar a necessidade da formação crítica daqueles sujeitos por meio dos pressupostos teóricos do Letramento Crítico, buscando responder ao nosso objetivo de verificar e identificar se e, em que medida, nossos sujeitos de pesquisa – seis professores em formação inicial – manifestam criticidade em sua prática pedagógica. Desse modo, este artigo, fruto de um olhar inicial sobre os dados de nossa pesquisa de mestrado (em andamento), está dividido em duas partes. A primeira revela as bases nas quais estamos assentados para a argumentação sobre a formação de professores e a segunda parte mostra a análise de questionários e planos de aula, instrumentos de coleta, para a tessitura de algumas considerações sobre o proposto no artigo. 1. Formação de professores de inglês e (pós)modernidade Constituindo-se como área de interesse e desenvolvimento crescente por parte de pesquisadores (ANDRÉ, 2006), a formação de professores de língua estrangeira (LE) vem, há algum tempo, mostrando certo despreparo desses profissionais quando se trata de atender à complexidade e às necessidades presentes na contemporaneidade (CORACINI, 2007). Por estarem baseados em um modelo de educação moderna marcada pelo racionalismo, pela crença em verdades universais e pelo positivismo, os professores de Língua Estrangeira (LE) ainda tendem a adotar uma perspectiva unicamente tecnicista, a qual se utiliza de métodos, técnicas e abordagens para o ensino de línguas. Como dissociam a teoria da prática, esses professores adaptados ao
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paradigma moderno podem não viabilizar a formação de um professor, e consequentemente, de um aluno crítico, questionador, cidadão participativo de sua comunidade, tão necessário na pós-modernidade. Um dos motivos que justificam esse cenário é que, como a pedagogia de métodos está baseada na modernidade, na crença de um sujeito consciente e controlador de seu processo de ensino-aprendizagem, insiste-se na tentativa de encontrar modos para acelerar a aprendizagem da língua-alvo (CORACINI, 2007), Acrescentemos a esse quadro ainda as questões políticas, ideológicas e culturais que envolvem a temática. Para ilustrar apenas um desses aspectos, no contexto nacional, a língua estrangeira é frequentemente apresentada como superior à língua e à cultura do discente. Essa situação alimenta ainda mais as crenças construídas sobre a superioridade de uma(s) língua(s) em detrimento de outra(s). Nesse sentido, ao levarmos em consideração que a escola é fruto do período moderno, acreditamos que o processo de formação de professores na pós-modernidade deveria ocorrer de modo a acompanhar a lógica desse tempo, modificando sua pedagogia de verdades absolutas para uma pedagogia situada, instável e contextual (BAUMAN1, 1999). Bauman (1999) vê a pós-modernidade como “a modernidade chegando a um acordo com sua própria impossibilidade, uma modernidade que se automonitora, que conscientemente descarta o que outrora fazia inconscientemente” (BAUMAN, 1999, p. 288), sendo notável por sua liquidez, mobilidade e inconstância (BAUMAN, 2001). Apesar de suas discussões centrarem-se nas mudanças da sociedade de modo geral, é possível refletirmos sobre as implicações desse sociólogo para a educação, tendo em vista que a escola é fruto da modernidade e tem, nesse momento, seu papel social problematizado. Expandindo o modelo de educação moderna vinculado ao ideal iluminista, a pós-modernidade apresenta-se como o momento do questionamento, da incerteza, da incredulidade e da instabilidade, que instaura o tempo do conhecimento fluido, situado e contextual (COSTA, 2008). Nessa perspectiva, os programas de formação docente 1
Bauman (1999, 2007) não foca sua argumentação em questões educacionais, porém, entendemos que a discussão por ele feita propicia-nos espaço para que pensemos nos reflexos sobre essas questões educacionais.
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potencializam-se como espaços de formação e transformação de identidades, quando possibilitam aos professores recriarem suas identidades profissionais e críticas. Como resultado, assumem a posição de agentes críticos do mundo no qual vivem, comprometidos com uma atuação pedagógica em prol do desenvolvimento da consciência crítica de seus alunos. Acreditamos, portanto, que a crise instalada na sala de aula deve ser problematizada e questionada dentro de uma concepção pós-moderna via letramentos críticos, adotada neste trabalho por entendermos que, a partir de seus pressupostos, o professor de língua inglesa ensina, para além da gramática, as práticas discursivas de grupos dominantes (LUKE; FREEBODY, 1997). Por essa razão, voltamos nossa preocupação para o letramento crítico compreendendo-o como uma postura filosófica que perpassa todos os estudos de letramento a partir das considerações de Street (1984, 2014) com seu modelo ideológico. Essa vinculação revela nossa percepção da ruptura com o conceito liberalhumanista de leitura e da centralidade dos conceitos sobre reflexão, desconstrução, hibridez e criticidade nas pesquisas atuais que investigam esse tema e que se fundamentam nessa linha teórica. Ademais, como objeto de nosso estudo, a formação de professores deve ir ao encontro dessas discussões fundadas no conceito de criticidade e responder às necessidades encontradas nas escolas, a partir do diálogo entre universidade (programas de formação docente) e sociedade, acordando também com as propostas educacionais promulgadas nos documentos parametrizadores oficiais brasileiros. A partir do Letramento Crítico busca-se investigar como se dá a representação de ideologias nos textos por meio de uma leitura crítica, não a postulada pela tradição liberal, ora sim aquela ressignificada pelos letramentos. Sendo duas ontologias distintas e co-presentes no campo de ensino, a leitura crítica, para a tradição liberal humanista, se apresenta como aquela de cunho positivista que objetiva o discernimento neutro e racional entre fatos e opiniões por meio de sua decodificação, sendo o autor o portador dos sentidos e intenções presentes nos textos e o leitor como aquele capaz de fazer inferências e emitir julgamentos. O letramento crítico, por sua vez, estaria mais em consonância com o modelo ideológico, quando reconhece e legitima os múltiplos
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sentidos dos textos, intencionando uma crítica voltada a questões sociais, preocupandose com uma postura problematizadora, questionadora, perturbadora. Nessa linha de pensamento, Luke e Freebody (1997) abordam o conceito de leitura, tomando-a como uma prática social crítica que se utiliza do texto escrito como um meio para a (re)construção de sentidos e que está atrelada “à política e às relações de poder da vida cotidiana em culturas letradas” (LUKE; FREEBODY, 1997, p. 191, tradução nossa). Os autores referidos enfatizam que o letramento não é neutro, mas está intimamente relacionado a questões identitárias, de poder, gênero, etnia, classe social, cultura, entre outras, ou seja, ele é situado e dependente das relações que estabelece com o contexto que o rodeia. Dessa maneira, as práticas de letramento e os materiais podem ser tomados como os locais onde “discursos culturais, ideologias políticas e interesses econômicos são transmitidos, transformados e podem ser contestados” (LUKE; FREEBODY, 1997, p. 182, tradução nossa). Apoiando-nos nesses estudos, percebemos o uso da linguagem como uma prática social não mais tida como uma habilidade ou capacidade cognitiva individual. Como Monte Mór aponta, “o letramento crítico parte da premissa de que linguagem tem natureza política, em função das relações de poder nela presentes” (MONTE MÓR, 2013, p. 42), desvelando a presença de ideologias em todo e qualquer discurso que permeia a sociedade. 2. Aspectos metodológicos De natureza qualitativa, esta pesquisa enquadra-se dentro do paradigma de pesquisa interpretativista (MOITA LOPES, 2001) de cunho etnográfico (MOREIRA; CALEFFE, 2008), que considera a realidade como construída pelos sujeitos, não se contemplando a neutralidade, uma vez que os fatos sociais são interpretados a partir de um pesquisador, que, como sujeito integrante do processo, interpreta os fenômenos e lhes atribui significados. Por esse motivo, à sua visão, outras devem ser acrescentadas no intuito de que a intersubjetividade e a validação da pesquisa se deem por vias da triangulação dos dados. Essa pesquisa, também de caráter descritivo, insere-se dentro do paradigma da Linguística Aplicada, quando buscamos elucidar aspectos relevantes da participação dos
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sujeitos envolvidos. Com tal intento, exigiu-se a observação direta e comprometida dos pesquisadores no coletar, selecionar e interpretar dos dados. Finalmente, realizamos uma pesquisa envolvendo seis alunos-professores2 – aqui nomeados por AP1, AP2, AP3, AP4, AP5 e AP6 – em formação inicial de uma universidade pública do Estado da Paraíba e os acompanhamos durante suas aulas na disciplina de Estágio de Língua Inglesa: 3˚ e 4˚ ciclos do Ensino Fundamental, com carga de 105 horas, ofertada no sexto período na graduação de Letras – Língua Inglesa, bem como suas aulas no campo de estágio. Os APs estagiaram no 4˚ ciclo do Ensino Fundamental (9˚ ano) na disciplina de Língua Inglesa. O tema gerador da escola que deveria ser contemplado pelos planos de aula dos APs era “Arte na escola: inserção social e entretenimento”. Sendo este um recorte da pesquisa de mestrado, analisaremos somente os instrumentos de coleta planos de aula e entrevistas. 3. Afinal, há professores críticos aqui? Iniciando nossa análise, buscaremos alcançar o objetivo proposto neste artigo, a saber: verificar e identificar se e em que medida nossos sujeitos de pesquisa manifestam criticidade em sua prática pedagógica. Para tanto, iniciaremos por alguns planos de aula, por traduzirem a ação desses alunos-professores bem como sua reflexão com respeito à sala de aula, aos alunos e ao contexto do qual fazem parte e os contrastaremos com as entrevistas, isto é, o dizer e o fazer dos alunos-professores. No plano da aula de AP5, observamos o objetivo de “refletir sobre o porquê de se aprender inglês”. Como procedimentos, AP5 apresenta alguns questionamentos para, a partir deles, revelar a necessidade dessa língua na vida cotidiana de seus alunos. Notamos aqui a percepção de AP5 sobre a importância do estabelecimento de uma relação, ao menos funcional, do assunto a ser aprendido com seu alunado, de modo a despertar interesse e atenção daqueles. Procedimento: - Reflexão sobre Why to learn English? O PE3 começará uma discussão com os alunos sobre o Por que de se 2
Longe de nos apoiarmos no paradigma positivista ao impessoalizar os sujeitos, justificamos a escolha das siglas por preservar de forma mais completa a identidade e o sexo dos sujeitos. 3 Como retirado do relatório final dos alunos, optamos por preservar o trecho como lá aparece. A sigla, então, faz referência a professor estagiário.
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aprender inglês, fazendo perguntas como: Você gosta de estudar inglês?, Você fala inglês no seu dia-a-dia?, Em que situação você pronuncia alguma palavra em inglês? Você sabe em qual país se fala inglês?. Em seguida, o PE deve mostrar o quanto o inglês está presente no dia-a-dia do brasileiro, seja na internet, nas ruas, no shopping... (grifos no original) (Plano de aula de AP5, 12/03/14).
Para sua aula, AP4 destaca como objetivos: - Reforçar através de explicação o uso dos modais can e may vistos na aula anterior; Ensinar o uso dos verbos modais de sugestão e obrigação should, must e have to, assim como introduzir o modal de possibilidade could; Apresentar o conteúdo gramatical através do diálogo com a turma e da utilização de imagens; Promover reflexão dos alunos através das atividades propostas. (Plano de aula de AP4, 26/03/14).
Percebemos sua preocupação com os aspectos puramente formais da língua, excetuando-se
o
último
objetivo
apresentado.
Este,
porém,
é
diluído
no
desenvolvimento de seu plano quando voltado à explanação do uso dos modais, ou seja, quando a reflexão é subutilizada para explicação de um tópico gramatical, como se faz possível perceber em: Entregar uma imagem para cada grupo. Os alunos devem discutir entre si quais modais usar nas situações e o porquê da utilização. As imagens contêm situações cotidianas para que seja promovida a reflexão sobre o que deve ser feito em tais situações (obrigação, sugestão, etc.) para que com isso o uso dos modais seja empregado no dia-a-dia dos alunos. Dessa forma, eles também irão refletir sobre os deveres e obrigações que eles têm como cidadãos tanto na escola como na comunidade. (Plano de aula de AP4, 26/03/14).
Há de se enfatizar, contudo, uma manifestação de criticidade nesse último procedimento na atitude de AP4, ao tentar promover a reflexão dos alunos sobre seus deveres na sociedade, partindo de seu contexto imediato, a escola e o local onde vivem, constituindo-se como um movimento de expansão de perspectiva, como o denomina Monte Mór (2013). A aula ministrada por AP1, por sua vez, constitui-se como resultado da discussão promovida na primeira aula sobre o que poderia ser considerado arte. Os alunos, à ocasião, afirmaram o estatuto do grafite bem como dos piercings e tatuagens como arte, fomentando o debate sobre grafite e pichação. Nesse sentido, o tema
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desenvolvido na aula foi: “Grafite - vandalismo ou arte?” e os objetivos giravam em torno de: - Dar continuidade às discussões das aulas anteriores (vinculadas ao tema-gerador da escola) sobre arte, por meio da delineação preliminar da temática do grafite – O que é? Quem produz? Que materiais são usados no processo? É comum na(s) cidade(s) dos alunos? O que diferencia esta modalidade de arte do vandalismo, apesar dos dois usarem como tela os muros e paredões da cidade?; Revisar os modais ‘can’ e ‘should’. (Plano de aula de AP1, 26/03/14).
Faz-se interessante destacarmos a construção de conhecimento (MENEZES DE SOUZA, 2011) promovida em virtude do planejamento e execução de aula a partir da interação aluno-professor. Ainda atentamos para os questionamentos pensados por AP1 para discussão em sala de aula que partem da leitura crítica (O que é? Quem produz?) para um letramento crítico (É comum na cidade dos alunos?), quando situa esse conhecimento e parte da realidade do aluno. De modo geral, percebemos que as ações dos APs 5, 4 e 1, em condições de sala de aula, ainda priorizam o ensino do conteúdo formal em detrimento do desenvolvimento de um cidadão crítico, tão reclamado atualmente. Nesse recorte, porém, é visível que as aulas de AP1 foram planejadas mais contextualmente por causa da adoção do tema Arte e sua vinculação com a superação. Mesmo assim, as atitudes supracitadas podem ser caracterizadas como manifestações de criticidade que surgem nas brechas das aulas, uma vez que estas ainda têm como foco e fio condutor o ensino do tópico gramatical. Essa situação pode ser explicada pela baixa carga horária da disciplina, pelo papel de estagiários (alunos-professores) e não professores efetivos que têm a possibilidade de acompanhar a turma durante todo um ano letivo, pela tradição do ensino formal, pela regulação imposta pelos currículos escolares, pela crença no ato de ensinar arraigado no ensino de conteúdos gramaticais ou ainda pela incerteza de um saber fazer na ausência de modelo (epistemologia do desempenho) (LANKSHEAR; KNOBEL, 2003) dos próprios alunos-professores. No entanto, não obstante as especulações feitas no parágrafo anterior, o que é certo é que, em determinados momentos, enxergamos a tentativa de ruptura, de desestabilização para o diferente, de ampliação de visões, quando primam pela reflexão
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dos alunos sobre os temas em questão. Acreditamos que, quando presos/educados em uma tradição liberal-humanista, isto é, em uma perspectiva de educação moderna, tornase difícil atender às necessidades hoje clamadas, e mais difícil ainda romper com a tradição para, a partir do contexto exposto, ampliar o universo do aluno para a agência crítica. Almejando uma visão holística e mais fundamentada desses dados, apoiamo-nos também na análise de entrevistas4, essas feitas em forma de diálogo, posteriormente gravadas e transcritas, realizadas em período anterior a seu exercício em sala de aula de Estágio. Partindo de perguntas voltadas à sua formação docente, os APs eram incentivados a opinar sobre suas crenças e seu processo formativo na universidade, de modo a tornar possível a comparação, ou ao menos o estabelecimento de um continuum entre o saber e o fazer, a teoria e a prática, proposta do novo currículo 5 e dos próprios letramentos. Quando questionados sobre a sua formação inicial, os APs respondem: AP5: não é um ensino apenas gramatical. É um ensino que o aluno ... faz com que o aluno observe, reflita sobre tudo o que está em volta da língua, não apenas regras gramaticais, mas o contexto, a cultura, o o porquê de se trabalhar com língua seja materna ou estrangeira. AP1: [...] Na universidade, eles vão puxar mais de você. É.. em que sentido? Eles querem que você demostre que você compreende, que você é capaz de usar a língua de forma efi eficiente. [...] Eles querem que você reflita sobre a língua também, não só na língua. Então isso é isso é bacana. E também voltando muito pro ensino. [...]
Notamos que os APs percebem conscientemente as ações e motivações de seus professores (“os professores sempre batem nisso”/“Eles querem que”) quando propõem o ensino da língua visando sua comunicação eficiente, uma vez que serão professores de línguas e assim responsáveis pelo ensino/aprendizagem de muitos outros. Somado a essa visão, os APs revelam saber da importância de expandir os horizontes para além da letra, indo ao encontro do contexto de produção, à cultura dos falantes e ainda à sua função ali na universidade, o ensino. 4
As entrevistas foram realizadas no período compreendido entre 24/02/14 e 28/02/14. Os APs que constituíam essa turma eram a primeira turma após a mudança curricular do programa de Letras – Língua Inglesa daquela universidade. 5
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Por meio das entrevistas também se faz notável a reincidência da palavra reflexão como conceito-chave na formação dos mesmos. Mesmo sendo longas, apresentamos as respostas de alguns APs no que concerne à mudança de perspectivas em vista da língua e de seu ensino a partir de sua entrada na universidade. AP1: Mudou, mudou bastante. Porque antes eu usava como uma ferramenta mesmo, e hoje em dia eu uso como uma ferramenta, mas é... refletindo, sempre refletindo. [...] Você vai começando a a pensar nas verdades que vão lhe passando e duvidando delas, que é uma coisa que o curso também puxa muito. É a universidade lhe faz pensar demais assim... criticamente... Você começa a ser um sujeito mais crítico. Lógico que se você quiser. [...] AP3: Mudou, principalmente por conta do da questão do ensino. [...]a língua tá em qualquer lugar [...]São aquelas questões até das próprias crenças que a gente vem construindo desde o ensino médio, desde que a gente começa a aprender e quando a gente chega aqui a gente começa a desconstruir. AP4: É, acredito que sim, porque agora, depois da universidade, você se torna mais crítico né? Em relação a tudo [...].
Diante desses relatos, destacamos a recorrência das palavras reflexão e criticidade como elementos formadores e pertencentes à esfera universitária. Esta tem como um de seus objetivos desenvolver esse olhar crítico e questionador de seus estudantes para sua ação consciente e cidadã na sociedade. Reconhecemos também algumas manifestações de criticidade dos próprios APs quando refletem sobre suas ações e pensamentos e revelam transformações. AP1 demonstra que desenvolveu essa atitude questionadora frente aos fatos, linguísticos e não linguísticos, bem como o entendimento da não garantia possibilitada pela universidade da formação crítica (LUKE; FREEBODY, 1997) de seu alunado. Percebemos ainda a vivência da desconstrução das representações ideológicas na fala de AP1, confirmando sua postura de agente crítico segundo o letramento crítico. Essas marcas, portanto, justificam a ação docente de AP1 de questionar e construir conhecimento situado, contextual e conjunto com a participação ativa de seus alunos. De forma similar a AP1, AP3 reflete sobre suas crenças e a necessidade de desconstrução das mesmas, ampliando seu escopo de visão e inquietando-se quanto às representações de ordem absoluta que lhes foram repassadas e que devem ser
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contestadas. AP4 também percebe o movimento em direção à construção de criticidade desse aluno-professor e, em sua prática, tenta refletir sobre os fatos linguísticos a partir do conteúdo proposto. Essas atitudes confirmam os espaços de formação como propícios ao desenvolvimento crítico do formando para romper, contestar, afirmar e agir sobre a realidade da qual faz parte. Esses espaços favorecem o debate e a discussão com o objetivo de que esse professor em formação desenvolva a percepção de múltiplas verdades, de diversificadas representações que concorrem geralmente para a hegemonia de um discurso privilegiado, sendo seu (potencial) dever o agir crítico (JORDÃO, 2010). Considerações finais À guisa de conclusão, retomamos alguns resultados obtidos e analisados no corpo desse trabalho. Os dados apontam para o professor em formação inicial pósmoderno como um sujeito fragmentado, que sente necessidade de acompanhar o futuro (conhecimento compartilhado e construído conjuntamente), mas que tem vontade de permanecer no que considera estável, tomando por base a ordem e o correto (controle da turma, desejo de silêncio, transmissão de conhecimento). Em sua vivência e identidade de professor, moderno e pós-moderno se entrecruzam (MOITA LOPES, 2013), como pôde ser observado nas entrevistas e nos planos de aula. Ao passo que, como alunos na universidade, discutem sobre a promoção da cidadania e criticidade por meio das aulas de inglês; como professores na escola pública prendem-se aos currículos e à aprendizagem de conteúdos gramaticais, refugiando-se em momentos mínimos para sua agência e para o desenvolvimento crítico do seu alunado. Desse modo, em linhas gerais, as entrevistas desvelam que os alunos-professores estudados nesse trabalho agem situada e contextualmente – manifestação de criticidade – quando se preocupam em atender aos interesses dos alunos, levando em consideração suas vivências. Assim, reafirmamos o letramento crítico como uma prática social e política, que intenciona desenvolver uma atitude crítica dos sujeitos sobre a realidade a partir de
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práticas de letramento situadas. Nesse processo de construção de sentidos, os sujeitos – neste caso específico, professor e aluno – podem desenvolver percepção crítica em relação aos eventos que são retratados em sua sociedade, desenvolvendo também autoria. Dito de outro modo, esses sujeitos podem vir a ser agentes críticos (LUKE; FREEBODY, 1997) a partir de uma cidadania ativa (KALANTZIS; COPE, 2008; MATTOS, 2011), voltada para a participação na vida política de sua comunidade, para a busca dos direitos e do cumprimento dos deveres de todos. Referências ANDRÉ, M.E.D.A. Dez anos de pesquisas sobre formação de professores. In: BARBOSA, R. L.L. (Org.). Formação de educadores: artes e técnicas – ciências e políticas. São Paulo: Editora UNESP, 2006. BAUMAN, Z. Globalização: As consequências humanas. (Trad. de Marcus Penchel) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. _____. Tempos Líquidos. (Trad. de Carlos Alberto Medeiros) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. CORACINI, M. J. Pós-modernidade e novas tecnologias – no discurso do professor de línguas. In: _____. A celebração do outro: arquivo, memória e identidade: línguas (materna e estrangeira), plurilinguismo e tradução. Campinas: Mercado de Letras, 2007, p. 209-224. COSTA, M. A. M. Do sentido da contingência à contingência da formação: um estudo discursivo sobre a formação de professores de inglês. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. 231p. JORDÃO, C. M. A posição do professor de inglês no Brasil: hibridismo, identidade e agência. Revista Letras & Letras, v. 26, n. 2, p. 427 – 442, jul-dez. 2010.
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ASPECTOS LINGUÍSTICOS E CULTURAIS DA COMUNIDADE SÃO LOURENÇO EM CÁCERES-MT Jocineide Macedo Karim (Unemat) 1. Introdução Este estudo é parte do resultado da pesquisa de doutorado desenvolvida junto ao Doutorado em Linguística, vinculado ao Programa de Pós-Graduação, do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. A pesquisa teve por objetivo descrever usos linguísticos e culturais da comunidade São Lourenço, localizada no município de Cáceres-MT. Além da descrição desses usos, buscou-se ainda compreender o comportamento social dos informantes em relação à variedade local, observando suas avaliações e crenças a respeito de sua própria língua e sua cultura. Nesse contexto se incluem as atitudes de aceitação ou de rejeição, consideradas positivas ou negativas, que influenciam o modo como o nativo percebe a língua e a cultura do seu grupo e do grupo de pessoas vindas de fora. Todavia, aqui nesse espaço apresentaremos apenas alguns resultados dos usos linguísticos observados na comunidade São Lourenço. A escolha dessa comunidade justifica-se pelo fato de ela contar com um número expressivo de cacerenses nativos e de um número reduzido de migrantes, que se estabeleceram nas terras devolutas dessa localidade. O português falado por habitantes tradicionais do São Lourenço apresenta marcas das variedades que o formaram, traços provenientes da linguagem dos colonizadores. Muitas variantes em uso na comunidade são características de variedades populares do português do Brasil. Pode-se supor que o falar da comunidade tenha se constituído a partir da miscigenação que aconteceu na região pela ação do colonizanizador bandeirante. Além disso, temos conhecimento da existência de algumas etnias indígenas nessa região e ainda de alguns descendentes de escravos africanos (MENDES, 2009). Considerando o quadro apresentado, a pergunta que norteou a nossa pesquisa foi: quais são os usos característicos do falar da comunidade do São Lourenço em Cáceres? Para a análise utilizamos um corpus coletado por entrevistas realizadas a partir de um roteiro de perguntas que abarcam aspectos linguísticos e sociais, e informações oriundas de observação participante.
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2. A constituição do corpus – Os informantes O corpus analisado foi constituído a partir de entrevistas realizadas conforme sugestões de Labov (1972) e Tarallo (1997). Foram entrevistados doze informantes nativos da cidade de Cáceres, que fazem parte da comunidade São Lourenço. Os informantes, com linguagem estabilizada, se distribuem em duas faixas-etárias: a primeira, de 42 a 51 anos (adultos mais novos) e, a segunda, de 59 a 91 anos (adultos mais velhos). Essa escolha se justifica pelo fato de que nessas faixas-etárias os falantes apresentam um comportamento definido em relação à linguagem. Além da consideração do sexo e da faixa etária, os informantes foram selecionados de forma a respeitar os seguintes critérios: a) ser nascido na cidade de Cáceres; b) ter pais nascidos na região sudoeste do Estado de Mato Grosso; c) ter baixa escolaridade, desde nenhum grau até a 8ª série. 3. A coleta de dados Para a coleta de dados, elaboramos um roteiro 1 de entrevista, com 27 perguntas elaboradas com o propósito de abarcar aspectos culturais e linguísticos da comunidade, distribuídas em cinco temas: (1) A cidade de Cáceres; (2) As características dos nativos; (3) A cultura cacerense; (4) O falar da comunidade nativa; (5) O grupo de pessoas vindas de outras localidades. Antes da coleta dos dados, conversamos com uma moradora da comunidade, Maria Felícia J. de Oliveira, nascida em Cáceres, aluna do Curso de Agronomia da UNEMAT, sobre o projeto de tese, o objetivo do estudo e o perfil do informante que se pretendia entrevistar. Ela se dispôs a nos auxiliar, facilitando nossa entrada na comunidade. Maria Felícia nos acompanhou no primeiro contato com os informantes, nas residências das famílias que supostamente tinham o perfil esperado. Na primeira visita, observamos se o perfil do informante estava de acordo com os critérios préestabelecidos e se ele aceitava participar da pesquisa. No caso de resposta positiva, marcávamos o dia e horário para a entrevista. Inicialmente conversávamos com o informante sobre diversos assuntos, por exemplo, a família, o trabalho, a formação da comunidade, o que, de certa forma,
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O roteiro de entrevista foi elaborado com base nos questionários utilizados por Alves (1978), Bisinoto (2000) , Krug (2004) e Amâncio (2007).
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rompia com a formalidade da entrevista, deixando o informante mais à vontade2. Nessa conversa inicial justificávamos a realização do estudo, dizendo que tínhamos interesse em saber como ocorreu a formação da comunidade, e em conhecer alguns aspectos da cultura e do falar dos informantes nativos. Dessa maneira, a entrevista no geral foi informal, já que o objetivo era gravar a fala espontânea da comunidade. Logo após essa conversa, preenchíamos a ficha do informante com seus dados pessoais: nome, idade, sexo, naturalidade, estado civil, naturalidade da esposa (o) escolaridade, profissão, endereço, etc. Na ficha há um espaço reservado para observações sobre o comportamento do informante durante a entrevista, dados fornecidos sobre cada informante em particular, que funcionam como complementares à análise. Na sequência aplicávamos o roteiro da entrevista. De um modo geral, os informantes se mostraram bastante receptivos, interessados em responder às perguntas. No caso de não compreensão da pergunta refazíamos a questão – conseguíamos a resposta, ou o informante permanecia em silêncio.
4. Fundamentação teórica Esta pesquisa se situa na área da Sociolinguística, e se fundamenta teoricamente nos estudos desenvolvidos por Labov (1963 e 1968), Brigth (1974), Berutto (1979), Alkmin (2001), Calvet (2002). Também buscamos através das obras de Amaral (1920), Nascentes (1966), Marroquim (1934) e Teixeira (1938), compreender os usos linguísticos constatados na comunidade, que conservam usos antigos da língua.
4.1 O falar da comunidade São Lourenço Desde os trabalhos pioneiros de nossa Dialetologia, desenvolvidos por (Amaral (1920), Nascentes (1923), Marroquim (1934) e Teixeira (1938)), se reconhece a importância de estudos regionais para se chegar a uma visão abrangente do português do Brasil. Nosso objetivo neste estudo é focalizar os usos linguísticos do falar da
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De acordo com Labov (1972/2008, p. 244-245), uma maneira de superar o paradoxo do observador “é romper os constrangimentos da situação de entrevista com vários procedimentos que desviem a atenção do falante e permitam que o vernáculo emerja. (...) Também podemos envolver a pessoa com perguntas e assuntos que recriem emoções fortes que ela experimentou no passado, ou envolvê-la em outros contextos”.
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comunidade São Lourenço3 e, assim, trazer uma contribuição para o conhecimento da variação dialetal no português do Brasil. Procuramos, neste espaço, caracterizar o falar da comunidade-SL, destacando, inicialmente, três usos linguísticos identificadores da comunidade, que chamam a atenção do falante de outras regiões brasileiras. Em seguida apresentamos algumas características fonéticas do falar da comunidade-SL que são típicas, mas não exclusivas do falar local, tendo sido já atestadas em outras áreas, no português popular do Brasil. Destacamos também algumas características morfossintáticas que já foram observadas em outras áreas e, por último, apontamos alguns usos lexicais aparentemente particulares do falar das regiões mais antigas do Estado de Mato Grosso. Considerando os aspectos fonético e morfossintático, apresentamos três usos linguísticos característicos do falar local, claramente identificados e exemplificados nas entrevistas realizadas na comunidade. São eles: (I) uso do masculino em vez do feminino na concordância nominal de gênero; (II) realizações africadas [tᶴ] e [dƷ] em vez das fricativas [ᶴ] e [Ʒ], e (III) alternância de [ãw] e [õ]. I. Uso do masculino em vez do feminino na concordância nominal de gênero: No falar da comunidade São Lourenço, atesta-se o uso do masculino em vez do feminino esperado conforme as normas da língua padrão, o que se manifesta de formas distintas, como ilustram os exemplos abaixo: (1) nós tamos perdendo pra próxima cidade aqui pertinho de nóis... Mirassol... Quatro Marco... Araputanga hoje era... tudo era município daqui. E hodje... djá tá tudo...não são mais porque... porque começaram crescê e nossa cidade... se não atcha um meio... vai ficá ruim esse é o parte negativo. (M2)4. (2) por que nós fala dereto né nossa língua é um só. (F2). (3) Ah, eles vêem assim... como as pessoa que é preguiçoso. (F2)
II. Realizações africadas [tᶴ] e [dƷ] em vez das fricativas [ᶴ] e [Ʒ]: No falar da comunidade São Lourenço constata-se o uso de realizações africadas [tᶴ] e [dƷ] em vez das fricativas [ᶴ] e [Ʒ], como ocorre nos exemplos abaixo:
3 4
De agora em diante a comunidade São Lourenço será também identificada como Comunidade-SL. Entre parênteses se identifica o informante que forneceu o exemplo (sexo e faixa etária).
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(4) aqui é o único lugar da dgente sobrevivê... eu já andei fui... em São Paulo... Campo Grande e num atchei fundamento. (M1). (5) ((Sinto)) Orgulho por causa... que eu nasci nessa terra e todo que aqui é uma cidade que é pacata... é hospitaleira. Todo mundo tchega em casa de quarqué um... todo mundo... porque eu sou cacerense eu tenho esse dom... tchegô djá ofereço morada... tchegá uma pessoa aqui em casa... djá ofereço só não tenho dinheiro. Vamos tchegá... não tenho onde durmi... Vamo arrumá um colchão... djá damo ((um jeito)) eu sou hospitaleiro porque eu gosto daqui... todo mundo... se eu posso tchegá na casa da senhora... eu duvido que a senhora vai me negá... atcho que é nosso dom é esse aqui... por causa da hospitalidade. (M2)
III. A alternância do ditongo [ãW] e [õ]: O termo alternância significa que duas (ou mais formas) são registradas no desempenho de um falante ou em uma variedade. Ex.: um falante mostra, em seu desempenho, realizações com [ãw] e também realizações com [õ], como mostram os exemplos abaixo: (6) então... minhocon [é] do rio né... é do rio. Meu sogro era pescador né... ele é falecido.... então... ele tchegô de vê minhocon aqui né... logo após o Empa aí onde falava os poçon. (F1).
4.2. Peculiaridades lexicais da comunidade São Lourenço Destacamos a seguir alguns itens lexicais usuais em São Lourenço e que aparentemente são exclusivos do sudoeste do Mato Grosso. Indicamos também outros itens que, embora não exclusivos do falar local, chamam a nossa atenção. 1.Tchá e tchô usados no lugar de senhora e senhor: (7)
a tchá Romana... tava numa gaiaria ((galharia)) de pau aí de tarde. (M2)
(8)
ela gritô... me acode tchá Crara... me acode! (F2)
A forma tchô grafada/Xô, com o valor de senhor/seu, ocorre até mesmo em nome de estabelecimento comercial: Casa do pescador Xô Nei localizado no centro da cidade de Cáceres. Além desse caso, registramos também o uso da forma no nome de uma lanchonete que funcionou por muitos anos em Cáceres: Xô Paulo Lanches (Xô = senhor/seu). 2. Aluá: (9) por causa que vem minhas irmãs... porque elas trabalham... sempre começa já é nove horas... faço salgadinhos né... faço aloá... faço (risos) ah tem que fazê... é promessa né... enton a gente tem que cumpri né... porque é tão bom né... São Sebastion livra nós das pestes né... das guerras... das doenças.(F1).
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3. Furrundu, furrundum: (10) doce de aquela larandja azedo... furrundu. (M2)
4. Ribuçá em vez de cobrir, recobrir: (11) Não pegô a criança... graças a Deus... eu falei com a cumadre... deita e detcha ele djunto co cê... ribuçá bem ele e fica djunto co ele... quando ele tchegô pra pegá a criança... mais felizmente a mãe dele morava pregado com a casa. (F2).
5. Cururu e siriri: (12) em Cuiabá tem... por que quê nós não podemos tê... uns minino tocando violino... tocando um violão... acordion... o siriri o cururu né... aquelas coisas... né... tá acabando a cultura nossa. (M2).
6. Viola de cocho: (13) O cururu eu gosto muito... a festa... a levantação de mastro... treiná a moçada na escola pra dança. Pera aí um pouquinho... vô mostrá minha viola de cotcho. (M2).
7. Sarvá em vez de cumprimentar: (14) Eles vêm sarvá a dgente... vem com aquela amizade...(F2)
8. Entrevero, intreverá e intreverado: (15) Já acontece essa entrevero entre as línguas. [mistura entre as línguas]. (M2) (16) O bugre é aquele que se mistura... tanto faz se um paulista... se um mineiro... goiano... paulista intreverá com uma família que tem um descendente de um índio ele cabâ sendo intreverado ele caba sendo bugre (M2).
10. Cacunda: (17) batia nela com facon... foi até que riscô a cacunda dela... e ela gritô e correu prá lá. (M2).
4.3 Outras características linguísticas da comunidade São Lourenço Além dos usos destacados anteriormente, bastante peculiares, constatam-se ainda, no falar da comunidade em estudo, diversos traços linguísticos que não são exclusivos do falar local. São usos já atestados no português popular do Brasil, conforme os estudos clássicos de Amaral (1920), Nascentes (1923), Marroquim (1934)
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e Teixeira (1938). Entre esses traços, destacamos inicialmente algumas características fonéticas. 1. Rotacismo da lateral alveolar em grupo consonantal e em coda silábica: (18) Aí a tcha Crara chamô o marido dela e foram lá... tchegô pra sarvá a criança. (F2).
2. Apócope do [l] e [r] finais: (19) eu morei... fiquei dentro da cidade... quando ele foi pra midiçon com o pessoá... porque num tinha midiçon. (F2).
3. Vocalização da lateral palatal: [ λ] > [ j ] (processo fonético conhecido como iotização): (20) porque eu posso fazê outras coisas... mas quem cuida das coisas aqui é a muié... eu memo detcho tudo djogado. (M2).
4. Aférese (supressão da vogal átona no início da palavra): (21) até que acertô uma nele e aí ele saio devagarinho... foi fundano... fundano... fundano e sumiu. (M1).
5. Metátese: (22) Eles vem sarvá a dgente vem com aquela amizade aí pregunta da dgente o nome tudo. (F2).
6. Hipértese (deslocamento de um fonema de uma sílaba para outra na mesma palavra): (23) pra nóis... é uma sastifação ser cacerense... e morar aqui dentro de Cáceres... e pra mim não existe outra terra melhor que a nossa. (M2).
7. Nasalização da vogal átona inicial [i] : (24) décadas aí aquelas pessoas vai sumindo... quando pensa que não... aí cadê os indioma cabô. (M2).
8.Redução de ditongo nasal átono final: (25) e eu vi ele... tava lá em baixo do figueiron... lá e se esse home vai atrás de mim? Só eu com Deus. (F2).
9. Redução do ditongo [ie] a [e]:
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(26) você ficá queto... então uns fica queto e vão embora né e outros ignora e aí que eles apanha né. (F1).
10. Depois é realizado como despois (27) quando era criança... né meus pais moro no sítio... eu era criança despois disso nunca mais morei no sítio. (F2).
11. Diferente é pronunciado como deferente (assimilação). (28) É interessante porque eles falâ deferente... é o djeito de falâ... o djeito de comunicâ... a gente acha que tá falando errado. (M2).
12. A palavra bom é pronunciada como bão: (29) eu tenho... tenho... porque os cacerense são muito bondoso... são carmo... pra fazê uma coisa precisa [coisa séria] ... agora tem a violência né... mas... antigamente não tinha... era um lugar sossegado... num tinha... era demais de bão. (F1).
13. Uso de mea para minha: (30) só quem vai votâ no mim... é você... mea mulher a verdadeira num ia votâ no mim... a modo que só mea filha memo. (M2).
14. Uso de memo para mesmo (31) nós morava lá em baixo nós memo porque eu não tenho estudo e eu era do tamanho dessa criança aí meu pai era caçadô de jacaré. (M1).
15. Elevação da pretônica média anterior [e]: (32) vieram pra cidade... e aí não atcha imprego... é a única coisa que agente tem que atchá pra fazê aqui é pescá. (M2).
4.3.1 Características morfossintáticas da comunidade São Lourenço Na caracterização do falar da comunidade São Lourenço, devem ainda ser mencionados alguns usos de natureza morfossintática, não exclusivos, ou seja, também atestados em outras áreas. Entre esses usos, mencionamos:
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1. Pronome oblíquo mim como sujeito de infinitivo (no lugar do pronome do caso reto eu): (33) se a senhora vem com um sotaque deferente... uma língua deferente... eu já começo a notá o que quê cê tá falando... pra mim despois caçoar do cê. (M2).
2. Uso de construções arcaicas: (34) (Perguntamos ao informante: você gosta de morar na cidade de Cáceres? E ele respondeu:) Gosto... modo do rio. (por causa do rio). (M1). (35) a modo que só mea filha memo. (M2).
5. Considerações finais Esta pesquisa foi desenvolvida na perspectiva teórica da Sociolinguística. Trata de usos linguísticos da comunidade-SL em Cáceres-MT. O estudo teve como objetivo básico: descrever usos linguísticos recorrentes no falar dos informantes nativos da cidade de Cáceres, moradores da comunidade-SL, com o intuito de fornecer dados para a descrição de uma variedade do português brasileiro. Constatamos em nossos dados peculiaridades linguísticas que identificam o falar local, e que chamam a atenção das pessoas vindas de outras localidades: (I) o uso do masculino em vez do feminino na concordância nominal (37)5; (II) realizações africadas [tᶴ] e [dƷ] em vez das fricativas [ᶴ] e [Ʒ] (196); (III) alternância do ditongo [ãW] com [õ] (38). Verificamos que os usos mencionados em (I) e (II) ocorrem em variedades do português popular falado no Brasil e em Portugal. Já o uso registrado em (III) é atestado na cidade de Cáceres-MT e na região norte de Portugal. O uso linguístico (I) também foi atestado em São Paulo
(AMARAL,
1920/1982); em Minas Gerais (TEIXEIRA, 1938); na Bahia (FERREIRA, 1994; LUCCHESI, 2000), na área rural do Paraná (NAVARRO & AGUILERA, 2009); em Mato Grosso, no falar dos índios do Parque Nacional do Xingu (LUCCHESI & MACEDO, 1997); no dialeto da baixada cuiabana (DETTONI, 2003; LIMA, 2006), em Cáceres (MACEDO-KARIM, 2004). Nos estudos mencionados os autores trataram a questão do gênero como resultado de processos distintos: traços do português arcaico, probabilidade da existência de crioulização no português do Brasil; contatos linguísticos do português com línguas indígenas e africanas ocorrido no processo de colonização. 5
Indicamos entre parênteses o número total de ocorrências de cada uso.
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As realizações destacadas em (II), frequentes no falar dos nossos informantes, também foram atestadas no dialeto caipira do interior de São Paulo (AMARAL, 1920). Silva Neto (1960) apontou pesquisadores (RIBEIRO, 1881; PEREIRA, 1919; AMARAL, 1920) que documentaram o som tchê no falar caipira de São Paulo; nas zonas caipiras de Mato Grosso (Roquete Pinto e de Karl Von den Stein). Palma (1980) pesquisou possíveis mudanças linguísticas que vinham ocorrendo em Cuiabá-MT, em referência ao uso das africadas. O uso linguístico destacado em (III) foi registrado em Silva Neto (1970), em referência a peculiaridades do dialeto da província entre Douro e Minho, Portugal; Silva (2000) atestou essa alternância no português falado por outro grupo de informantes na cidade de Cáceres-MT. Procuramos avaliar a presença dos três usos linguísticos no falar dos nossos informantes. Esses usos ocorreram de forma significativa nos dados examinados e funcionam como conservação de marcas antigas da língua portuguesa, explicável por longo período de isolamento da região em relação aos grandes centros urbanos do Brasil. Em nossos dados, constatamos ainda, itens lexicais, marcas do falar da comunidade-SL, como o uso das formas tchô e tchá no lugar de senhor e senhora (7), mais evidentes na fala dos informantes mais velhos. É possível dizer que essas formas talvez ocorram nas áreas mais antigas de Mato Grosso, nas localidades que passaram por processos de colonização semelhantes. As formas tchô e tchá resultado da evolução: (a) senhor > sinhô > siô > tchô e senhora > sinhá > siá > tchá. Constatamos também no falar local a presença de diversos traços de natureza fonética, morfossintática e lexical, atestados no português popular do Brasil de um modo geral. Podemos dizer que os instrumentos teóricos e metodológicos da sociolinguística foram decisivos para a identificação dos traços linguísticos característicos do falar em estudo, como também para compreendemos as atitudes dos nossos informantes sobre aspectos linguísticos e culturais de sua comunidade. Os resultados obtidos neste estudo mostram como a relação dos fatores socioeconômicos e culturais criam condições para a conservação de traços linguísticos da região. Portanto, os usos linguísticos existentes no falar de uma comunidade não podem ser compreendidos apenas em termos de suas relações internas, mas devem ser considerados como parte de um contexto sociocultural mais abrangente.
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Para finalizar, mencionamos que este estudo não se encerra aqui, os fenômenos linguísticos admitem vários olhares e a riqueza do material coletado na comunidade São Lourenço abre um leque de possibilidades de estudos de aspectos igualmente relevantes do falar cacerense/mato-grossense, como o uso da 3ª pessoa para a 1ª pessoa; a fricativa em coda silábica; as vibrantes; entre outros usos linguísticos.
6. Referências bibliográficas ALVES, Maria Isolete Pacheco Menezes. (1979). Atitudes linguísticas de nordestinos em São Paulo: uma abordagem prévia. Dissertação de mestrado. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas. AMÂNCIO, Rosana Gemina. (2007). As “cidades trigêmeas”: um estudo sobre atitudes sociolinguístico-sociais e identidade. Dissertação de Mestrado. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. AMARAL, Amadeu (1920). O dialeto caipira: gramática, vocabulário. 4ª. ed. São Paulo, SP; Brasília, DF: HUCITEC: INL, 1982. BISINOTO, Leila Salomão Jacob. (2000). Atitudes sociolinguísticas em Cáceres-MT: efeitos do processo migratório. Dissertação de Mestrado. Instituto dos Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. CINTRA, Geraldo. (1992). Transcrição da fala corrente: teoria e observação. Estudos linguísticos XXI – Anais de Seminários do GEL. Jaú: Fundação Educacional “Raul Bauab”, Vol. I: pp. 614-620. CUNHA, Celso Ferreira da (1917). Gramática de base. Rio de Janeiro, Fename, 1978. DETTONI, Rachel do Valle. (2003). A concordância de gênero na anáfora pronominal: variação e mudança linguística no dialeto da baixada cuiabana – Mato Grosso. Tese (Doutorado) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte - MG. DUBOIS, Jean. et. al. (1973). Dicionário de Linguística. Tradução de Frederico Pessoas de Barros, Gesuína Domenica Ferretti, Dr. John Robert Schmitz, Dra Leonor Scliar Cabral e Maria Elizabeth Leuba Salum. 6ª. ed. São Paulo, SP: Cultrix, 1998. KRUG, Marcelo Jacó. (2004): Identidade e comportamento linguístico na percepção da comunidade plurilíngue Alemão-Italiano-Português de imigrante-RS. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. LABOV, William. (1972). O quadro social da mudança linguística. IN: Padrões sociolinguísticos. Tradução de Marcos Bagno, Maria Marta Pereira Scherre, Caroline R. Cardoso. São Paulo, SP: Parábola, 2008. p. 301-373. LIMA, José Leonildo. (2006). A variação na concordância do gênero gramatical no falar cuiabano. Tese de Doutorado, Campinas:Universidade Estadual de Campinas.
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LUCCHESI, Dante. (2000). A variação na concordância de gênero em uma comunidade de fala afro-brasileira: novos elementos sobre a formação do português popular do Brasil. Tese de Doutorado em Linguística. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras. LUCCHESSI, Dante & MACEDO, Alzira. (1997). A variação na concordância de gênero no português de contato do Alto Xingu. Papiá – Revista de Crioulos de Base Ibérica, 9: 20-36. MACEDO-KARIM, Jocineide. (2004). A Variação na concordância de gênero no falar da comunidade de Cáceres-MT. Dissertação de Mestrado. Araraquara-SP: UNESP, Faculdade de Ciências e Letras. MARCUSCHI, Luiz Antônio. (1998). Análise da conversação. 4ª. ed. São Paulo: Ática. MARROQUIM, Mário (1934). A Língua do Nordeste: Alagoas e Pernambuco. 3. ed. Curitiba, PR: HD Livros Editora, 1996. MENDES, Natalino, Ferreira. (2009). História de Cáceres: história da administração municipal. 2. ed. Cáceres, MT: Editora da Unemat. NASCENTES, Antenor. (1923). O linguajar carioca. 2. ed. completamente refundida, Rio de Janeiro: Organização Simões, 1953. NAVARRO, Ana Maria Mattos & AGUILERA, Vanderci de Andrade. (2009). Casos de não concordância nominal na linguagem rural paranaense: traços do português arcaico, influência africana ou indígena? Vanderci de Andrade Aguilera (Org.). IN: Para a história do português brasileiro. Volume VII: vozes, veredas, voragens. Londrina: EDUEL. p.196-222. SILVA, Mariza Pereira. (2000). Um Estudo de Variação Dialetal: a alternância de [ãw] ~ [õ] final no português falado na cidade de Cáceres-MT. Campinas-SP: IEL – UNICAMP. TARALLO, Fernando. (1997). A pesquisa Sociolinguística. São Paulo: Ática. TEIXEIRA, José Aparecido. (1938). O falar mineiro. IN: Separata da Revista do Arquivo Municipal de São Paulo.
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LÍNGUA E IDENTIDADE: O DESAFIO DOS ALUNOS INDÍGENAS/TURMA MÉDIO SOLIMÕES DO CURSO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO/ UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS Jonise Nunes Santos (UFAM)
Diante das mudanças sofridas pelas comunidades indígenas, as questões de identidade são fundamentais nos estudos linguísticos, pois a língua faz parte do ser humano, de suas constituições, como ele se constrói dentro das relações sócio-históricas e culturais. As relações entre linguagem e identidade são indissociáveis, pois não se podería falar de linguagem sem falar das pessoas que as usam. Por outro lado, pensar a identidade como construção é refletir sobre sua mutabilidade, ou seja, a identidade nunca será um produto pronto, acabado e fixo, mas sim, um movimento de construção constante. Ibrahim (2003, p. 171) destaca que é através da língua que “formamos e performamos nossa identidade social e negociamos histórias e relações sociais históricas”. A língua não deve ser entendida somente como meio de comunicação, mas como o sujeito se relaciona e interage, e constrói sua identidade. Assim, o sujeito está imerso num processo contínuo de tornar-se, pois se baseia na ideia de fluidez, performatividade, através do qual o ser nunca está completo, mas ele está em constante processo. Nesse contexto, destacamos a turma Médio Solimões do Curso de Formação de Professores Indígenas da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas é formada por representantes de sete povos indígenas (Mayoruna, Tikuna, Miranhã, Apurinã, Kokama, Kambeba, Mura), de comunidades dos municípios de Tefé, Maraã, Fonte Boa, Alvarães, Uarini, Coari. Essas etnias não são, originalmente, desses municípios, mas de outros, dos quais famílias se deslocaram para sobreviver dos processos de contato, que desafiavam a continuação da identidade indígena.
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Nesses municípios, os indígenas continuam sofrendo forte influência e impacto da sociedade envolvente, principalmente, das ações públicas que não consideram a diversidade linguística e cultural. Esse processo não tem sido “tão pacífico, nem tão fácil. Custou sangue, custou vidas [...] instaurando uma atmosfera de terror e vergonha que inviabilizou em grande parte a reprodução dessas línguas [...] que perderam seu lugar, passando seus falantes a usá-las apenas em âmbitos comunicacionais cada vez menos
extensos”,
atingindo,
consequentemente,
a
identidade
indígena
(RODRIGUES,1985, p. 42). Os professores indígenas em formação têm o desafio de contribuir, mediante promoção de atividades pedagógicas, com o fortalecimento da identidade e da língua indígena nas suas comunidades, que também tem apresentado resistência à identidade étnica, diante da constante exclusão que sofrem pela identidade indígena e pela ausência do domínio da língua de seu povo. Para tanto, os professores têm buscado se apropriar dos fragmentos da língua indígena na comunidade e os conduzir ao espaço escolar, atendendo aos objetivos da escola e aos direitos garantidos em lei. 1. Cultura, língua e identidade A cultura enquanto “complexo de valores, costumes, crenças e práticas que constituem o modo de vida de um grupo específico” (EAGLETON, 2005, p. 55), regido pela língua, contribui para que o indivíduo passe por constantes processos de identificação e desidentificação com aquilo que o interpela. Nesse sentido, língua, cultura e identidade são conceitos que se interligam, considerando que é por meio da língua que a cultura se constitui, difundi-se e ocosiona os processos de identificação, que se transformam ininterruptamente. Essa relação entre língua, identidade e cultura acompanha a formação dos seres humanos, enquanto seres sociais, desde que nascem, materializada pela expressão dos pensamentos e sentimentos, comunicando-se, por meio da fala, da escrita e de outras formas de linguagem. Assim, as relações sociais estreitam-se e as culturas, ideologias e conhecimentos são difundidos.
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Ressalta-se que esse processo é possibilitado, principalmente, pela língua que “é inseparável do homem, segue-o em todos os seus atos”, conforme Hjelmslev (2006, p. 148). A língua envolve todas as ações e pensamentos humanos e possibilita ao indivíduo exercer influências ou ser influenciado pelo outro, desempenhar seu papel social na sociedade, relacionar-se com os demais, participar na construção de conhecimentos e da cultura, enfim, permite-lhe se constituir como ser social, político e ideológico. Nesse sentido, a palavra constitui-se, segundo Bakhtin (1997, p. 36), como “o fenômeno ideológico por excelência [...] o modo mais puro e sensível de relação social”, dado ao poder que possui de encantar, influenciar, conduzir, seduzir, reprimir, entre outros. Chauí (2006, p. 155) destaca que “a linguagem é a via de acesso ao mundo e ao pensamento, envolve e habita o ser humano”. Logo, a linguagem é base que sustenta a vida social, pois se faz presente nos diversos âmbitos que a circundam: social, político, religioso, familiar, educacional, ideológico, midiático, econômico, amoroso, ou seja, a linguagem medeia as relações sociais. Em sentido amplo, enquanto língua e fala, a língua se constitui por meio dos fatores: físicos - anatômicos, fisiológicos, neurológicos, motrizes, sensoriais - que permite a fala, a audição, a escrita e a leitura; socioculturais, que determinam a diferença entre as línguas e entre as linguagens dos indivíduos; psicológicos emocionais, afetivos, perceptivos, imaginativos, lembranças, inteligência - que incitam a necessidade e o desejo da informação e da comunicação; e linguísticos, que se referem à estrutura e ao funcionamento da linguagem. A língua, nessa perspectiva, é um instrumento que permite ao homem expressarse e interagir com o outro. Ela é viva, uma vez que “vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta” (BAKHTIN, 1997, p. 124), por isso está em contínuo movimento, considerando que só existe nas relações sociais, que se caracterizam justamente por este processo de dinamicidade. Conforme Bakhtin (1997, p. 107-108), a língua não é simplesmente transmitida; já que esta dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da
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comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar. Dessa perspectiva, os indivíduos são inseridos na comunicação verbal, entretanto, a língua não se configura como algo pronto e acabado, está em um contínuo processo de construção. Além disso, são inseridos na teia social por meio da língua, que possibilita aos sujeitos sociais o contato com a cultura, com as ideologias, com as identidades, tornando-se um instrumento para reforçar ou suprir culturas ou grupo minoritários, conforme tem se observado nos alunos da turma Médio Solimões do Curso de Formação de Professores Indígenas da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas, formada por representantes de sete povos indígenas (Mayoruna, Tikuna, Miranhã, Apurinã, Kokama, Kambeba, Mura), de comunidades dos municípios de Tefé, Maraã, Fonte Boa, Alvarães, Uarini, Coari. A cultura é um processo contínuo, na qual se acumulam conhecimentos e práticas que resultam da interação social entre indivíduos, por meio da língua, que permite que a cultura seja transmitida e difundida entre as gerações. Conforme Eagleton (2005, p. 55), a cultura possibilita ao indivíduo inserir-se e interagir, permite negociar “maneiras apropriadas de agir em contextos específicos”. A cultura inclui o que se vive, como “afeto, relacionamento, memória, parentesco, lugar, comunidade, satisfação emocional, prazer intelectual” (EAGLETON, 2005, p. 184). A cultura acumula conhecimentos e experiências ao longo das gerações, construindo conhecimentos, que são transmitidos entre seus semelhantes, (re)vividos e (re)atualizados, gerando novos conhecimentos e novas experiências. A cultura não é resultado da ação isolada de um único indivíduo, mas de uma coletividade e se configura como sinônimo de criação, de aprendizagem e de cooperação. É modificada e enriquecida continuamente, num processo coletivo. No entanto, a sociedade, de forma geral, tem experimentado transformações de ordens diversas (classe, gênero, sexualidade, etnia, raça, religião etc.). Essas transformações influem em todos os aspectos da vida humana, especialmente nos processos identitários dos indivíduos. Conforme Hall (2004, p. 7), “[...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo”.
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Essa mudança estrutural vem ocorrendo na sociedade com a pós-modernidade e é “vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.” (HALL, 2004, p.7). Há um “descentramento” que atinge todos os setores sociais e que vai influir diretamente nas identidades, que estão agora fragmentadas, fluidas. O indivíduo integrado, centrado, dotado de uma identidade, cede lugar ao indivíduo fragmentado, composto por várias identidades. Segundo Hall (2004, p. 12) “O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático”, contrariando a concepção positivista de identidade fixa, essencial ou permanente. Conforme Silva (2000, p. 89), a identidade “é um significado – cultural e socialmente atribuído”. Não é “fixa, estável, coerente, unificada, permanente [...] tampouco é homogênea, definitiva, acabada, idêntica, trancendental.” É uma “construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada.” Logo, tudo que é construído é passível de mudanças, alterações, inclusões. A identificação é “construída a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de características que são partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo ideal” (SILVA, 2000, p. 106). A partir do processo de identificação do indivíduo com alguma ideia, ele assume uma posição, ou seja, uma identidade. De acordo com Hall (2004, p. 12-13), o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que as identificações estão sendo continuamente deslocadas. À medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, os indivíduos são confrontados por uma multiplicidade de identidades possíveis. Nessa perspectiva as identificações vão se deslocando ao longo da vida, de acordo com os contextos sociais nos quais os indivíduos estão inseridos. Nesse processo, as identificações também sofrem transformações, por isso não se pode pensar
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na identidade “como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento.” (HALL, 2004, p. 38). Conforme Castell (2000, p. 23-24), toda e qualquer identidade é construída, valendo-se “da matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso”. Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo/espaço. A construção da identidade ou das identidades se dá ao longo da vida do indivíduo, uma vez que ele passa por processos de identificação continuamente. Ao se deparar com as identidades que “flutuam” à sua frente, ele se identifica com alguma(s) naquele momento. Entretanto, em outro recorte de tempo ou espaço, pode passar a não se identificar mais com aquela(s) identidade(s) e a identificar-se com outra(s), por isso, diz-se que as identidades não são fixas, ao contrário, são moventes, conforme atesta Bauman (2005, p. 17-18), o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis [...] as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade”. Bauman (2005, p. 18-19) destaca nessa época líquido-moderna, o mundo está repartido em fragmentos mal coordenados, enquanto as existências individuais são fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente conectados. Poucos indivíduos, se é que alguém, são capazes de evitar a passagem por mais de uma “comunidade de idéias e princípios”, sejam genuínas ou supostas, bem-integradas ou efêmeras, de modo que a maioria tem problemas em resolver. Nesse sentido, os indivíduos, enquanto seres sociais integrados a uma comunidade/sociedade,
são
suscetíveis
a
mudanças
de
identificações
e
desidentificações, a contradições, enfim, ninguém consegue manter-se apenas em um conjunto de ideias e princípios, haja vista conviver em um mundo marcado pela pluralidade, pela fragmentação e pela movência.
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A relação entre língua e identidade (e cultura) é insaparável, pois não há cultura sem língua e a identidade é construída por meio desta e da cultura, conforme Chauí (2006, p. 156): “Há um vaivém contínuo entre as palavras e as coisas, entre elas e as significações, de tal modo que a realidade, o pensamento e a linguagem são inseparáveis, suscitam uns aos outros, referem-se uns aos outros e interpretam-se uns aos outros”. 2. Língua e identidade: desafios e perspectivas Segundo Maher (1998, p. 116), “a questão da identidade indígena, o “ser índio”, remete a uma construção permanentemente (re)feita a depender da natureza das relações sociais que se estabelecem, ao longo do tempo, entre os índios e outros sujeitos sociais e étnicos”. Alguns grupos indígenas no Brasil têm feito esse movimento de olhar para suas origens e tentado apropriar-se de elementos que pertenceram à vida de seus antepassados. Isso se reflete como uma forma de reviver algo que foi roubado, silenciado, apagado. A articulação indígena com a sociedade civil organizada possibilitou que grupos indígenas, a exemplo da organização dos povos indígenas do Território Etnoeducacional Médio Solimões, propusessem ações coletivas politicamente em favor de sua cultura indígena, por meio dos quais têm construído seus modos de ser indígena, apropriandose e reelaborando suas identificações. Isso reflete o que a identidade é de fato, como ela diz, “um construto sócio-histórico por natureza, e por isso mesmo, um fenômeno essencialmente político, ideológico e em constante mutação” (MAHER, 1998, p. 117). A identidade de um povo não está, necessariamente, na sua língua. Mas pode estar, em maior ou menor grau, também nela. O abandono da língua materna indígena de muitos grupos etnicos pode ter sido provocado pela tentativa de fuga de uma identidade socialmente marcada como negativa no meio da sociedade dos não-índios e a busca de outra identidade, de alguma forma externamente valorizada e vantajosa, mesmo em pleno século 21. Esse processo de encontro e desencontros de identidades pode não ser bem sucedido: com o tempo a pessoa descobre que não falar a língua indígena, ou falar bem
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o português, não dão nenhuma garantia de valorização ou de não-discriminação a ninguém. Os não-índios discriminam os indígenas por outros motivos, e não pelo fato de falarem sua língua. Para os preconceituosos, o fato de que um índio fale bem o português não muda nada. E também já se comprovou que não é o fato de falar bem Português que garante aos índios não serem enganados ou dominados: nem mesmo entre os não-índios isso resolve. A questão não é de língua, mas de poder econômico e político. No entanto, muitas comunidades indígenas tem boas terras, e às vezes, de tamanho suficiente para despertar a ganância ou a cobiça da sociedade regional. Mas como os índios tem pouca força política, e quase nunca tiveram apoio do governo (ao contrário), então mesmo tendo essa coisa valiosa que é a terra, não são respeitados. Por outro lado, o abandono da língua materna pode ser provocado por certas razões práticas. Quanto mais a pessoa ou grupo é chamado a interagir com os “brancos” na língua portuguesa (pelo comércio, pelas necessidades de trabalho, pelas questões políticas, pela pressão da escola, pela pressão das religiões estrangeiras, etc), menos espaço deixa para uso da própria língua. Se isso se generaliza para todos os tipos de falantes (adultos de ambos os sexos, velhos e até crianças), em pouco tempo as interações dentro da própria comunidade passam a ser feitas na língua dos invasores, começando nos lugares e situações mais relacionados com a sociedade dominante: no Posto Indígena (com funcionários do governo), na escola (em geral, com material didático em língua portuguesa, e muito frequentemente, com professores “brancos”, ou índios que não falam a língua indígena), nas igrejas das religiões dos não-índios, etc. Os casamentos com não-índios são outro fator importante na perda da língua: um dos pais não fala a língua indígena e, se for o próprio pai, isso tem uma influência maior ainda. Além disso, com a mãe ou o pai sendo não-índio, ganha-se parentes nãoíndios (tios, avós e primos) e, frequentemente, padrinhos (e compadres) não-índios. Isso provoca uma grande ampliação nas relações que a pessoa precisa manter usando a língua portuguesa. Isso não significa que a família indígena esteja interessada em abandonar sua identidade indígena. Mas, por outro lado, significa que, nessa comunidade, a língua não é vista como parte importante da identidade étnica.
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A escola, por sua vez, mesmo com direitos educacionais específicos garantidos aos povos indígenas, continua reproduzindo essas práticas e comportamento social, ocasionando ao professor dificuldade de fazer seus alunos perceberem a riqueza da identidade indígena, apesar dos professores em formação estarem buscando, por meio da formação de professores, realizar, um movimento contrário para fortalecer marcadores da identidade étnica. Diante das fortes pressões sobre a escola, a partir da relação de contato com a sociedade envolvente e cada vez maior dos não-índios, os alunos do curso de Formação de Professores Indígenas da turma Médio Solimões definiram uma Política para essa relação de contato. Mesmo sem se reunir numa grande conferência e discutir claramente como encarar o processo ensino aprendizado na escola, na prática, os professores vem discutindo e experimentando possibilidades de promover ações que insiram e garantam cada vez mais os conhecimentos tradicionais na escola. Segundo Hall (1996), no mundo contemporâneo, as identidades compõem-se a partir de discursos de pertencimentos que os sujeitos criam sobre si, de forma a se identificarem com grupos sociais. Esses discursos são transitórios, isto é, modificam-se ao longo da vida, e múltiplos, uma pessoa se coloca como pertencendo a vários grupos. Nesse sentido, construir princípios norteadores para um currículo e discussão sobre a identidade configura-se como fundamental. Nesse perspectiva, os professores vislumbram oferecer, na escola da comunidade, oportunidades de criação de laços culturais e de identidade com a línguacultura de herança, caminhando por uma abordagem intercultural (Mendes, 2008), na qual se incentiva pontos de encontros e de diferenças entre as culturas para afirmar, valorizar e acomodar a ideia de um múltiplo pertencimento. Dessa forma, a construção de um discurso de pertencimento na língua-cultura não exclui a participação e a construção de identidades em outras. Para tanto, solidifica-se a necessidade de realização de planejamento de aulas culturalmente sensíveis que valorizem e aproveitem a diversidade, sem impor os limites de sua própria identidade, considerando que os alunos participam simultaneamente de duas ou mais culturas, dependendo da localização da comunidade indígena.
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Assim, os professores indígenas da Turma Médio Solimões entendem que o fortalecimento da cultura e da identidade étnica pode ser promovido ainda pela realização de formação continuada dos demais professores indígenas; pela Participação no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID/Diversidade, por meio do qual objetiva-se sistematizar os fragmentos da língua indígena na comunidade e. posteriormente, os conduzir ao espaço escolar, atendendo aos objetivos da escola e aos direitos garantidos em lei; e, principalmente, pela discussão de políticas linguísticas para as comunidades.
Referências
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_______. Questions of cultural identity. London: Sage, 1996. MAHER, T. M. Sendo índio em português. SIGNORINI, I. (Org.). Lingua (gem) e identidade: elementos para uma discussão no campo aplicado. Campinas: Mercado de Letras, 1998. Mendes, E. (2008). Língua, cultura e formação de professores: por uma abordagem de ensino intercultural. In Mendes, E.; Castro, M. L. S (org.). Saberes em português: Ensino e formação docente. Campinas, Pontes. SILVA, Tomaz Tadeu da. Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
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O DISCURSO MILONGUEIRO: UMA PERSPECTIVA BAKHTINIANA José Geraldo Marques (UNICENTRO) Introdução O presente texto traz algumas questões que estruturam o projeto O discurso poético das milongas em suas vertentes canônica e popular: uma visão bakhtiniana, que tem, como objeto amplo, o gênero musical milonga (vamos chamá-lo provisoriamente assim), sua história e constituição no sul da América do Sul e, enquanto objeto específico, as canções do CD “Délibáb”, produzido, em 2010, pelo músico e escritor gaúcho Vítor Ramil. A origem das milongas, ritmo musical presente no Uruguai, na Argentina e no Rio Grande do Sul, divide os estudiosos: para alguns, tratar-se ia de uma forma de canto e de dança da Andaluzia que se popularizou nos subúrbios de Montevidéu e de Buenos Aires em fins do século XIX e que se transformaria no tango; para outros, a origem é africana (milonga, em Bantu, significa “palavra”) e os negros escravizados no Uruguai seriam os responsáveis por sua primeira manifestação no nosso continente. A origem das milongas e suas transformações se constituem, assim, no contexto histórico de nossa pesquisa. Em “Délibáb”, Vítor Ramil, reúne poemas do poeta João Cunha Vargas (19001980) e do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), acrescentando a eles melodias de sua autoria. Borges dispensa apresentações: contista, poeta e ensaísta, é um dos grandes escritores do século XX. Cunha Vargas não ultrapassou o aprendizado das primeiras letras; ele declamava seus textos “de memória” e pedia para alguns parentes transcreverem suas criações1. Duas questões iniciais merecem ser lembradas como introdução à descrição de nossa pesquisa. A primeira nos remete ao título do disco de Ramil - “Délibáb”. No encarte do disco, Délibáb é explicado como um fenômeno das planícies húngaras e do sul da América do Sul, consequência da “refração desigual dos raios solares nas camadas de ar, de temperatura e rarefação diferentes” (Sábato, apud Ramil, 2009).
1
Cf.
http://criteriosamente.wordpress.com/2013/06/19/joao-da-cunha-vargas/
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Trata-se, segundo o encarte, de um tipo de espelhismo que, em dias de calor, manifesta-se diante do observador, trazendo a ele cenas distantes, ou seja, cenas que não estão acontecendo ali, mas a muitos quilômetros de distância. A nitidez e a clareza extraordinárias de suas imagens encantam a quem as vislumbra. Não cabe para os nossos propósitos discutir o fenômeno do “Délibáb” - sua existência ou não no mundo. Fundamental é entendê-lo como uma realização estética, ou seja, entendê-lo como símbolo, como gênese de um produto cultural ressignificado ou, se preferirmos, uma feliz imagem que nos remete a uma dada historicidade, à singularidade de uma dada cultura. “Délibáb” é uma metáfora espacial. Aquelas imagens que vemos, deslumbrados, não acontecem ali, mas alhures, simultaneamente. Se pensarmos nos poemas musicados por Ramil, estamos diante de produtos culturais que trazem experiências percebidas pelo olhar da memória: em Borges, ela suporta um eixo axiológico mítico ensopado pelos valores da valentia, da masculinidade, da honra e da coragem entre iguais; em Cunha Vargas, os valores engendrados pela memória das experiências vividas: do pago onde se foi criado, da infância maravilhosa, dos anos de formação, da liberdade campeira do gaúcho, das amizades, da celebração da vida colada à natureza, da dor intrínseca à experiência humana. A metáfora espacial do “Délibáb” pressupõe uma outra metáfora, temporal. Um empreendimento como o de Ramil propõe que tenhamos diante de nossos olhos, imagens especulares de um passado que é (ou pode ser) simultâneo ao nosso tempo, ao presente. Penso em Walter Benjamin, em uma de suas inúmeras imagens “redentoras” da história. Para ele, o passado não se cansa de gesticular em relação ao hoje para que os projetos e sonhos utópicos que desapareceram possam ser ressignificados no presente em uma perspectiva de futuro. Os poemas de Borges e Cunha Vargas, transformados por Ramil em canções milongueiras, dão-nos conta das perdas relativas daqueles valores transfigurados axiológica e esteticamente em suas obras. Nossa época, essa época da qual somos contemporâneos, não tem lugar para a memória e para o mito, que devem ser apagados em nome de um presentismo célere, cego (individualista e consumista) e, portanto, vazio de valores humanistas. Vargas, Borges e Ramil projetam hoje, diante de nós, esses valores para que os ressignifiquemos na esperança de um futuro menos asfixiante e aberto a novas possibilidades de valorização do homem e da natureza.
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A segunda questão se refere à apresentação que Borges faz ao leitor, na pequena introdução à coletânea de poemas “Las 6 Cuerdas” (1966), considerando seus textos não como poemas, mas como milongas2, trazendo ao pesquisador uma interessante dúvida: tratar-se-ia de poemas ou de letras a serem musicadas compondo um segundo gênero, a canção? Ou ainda, mais sutilmente, de poemas em estado latente de letras para milongas? Longe de ser um problema menor, os gêneros discursivos (BAKHTIN, 1992) assumem uma dimensão importantíssima para aqueles que se propõem a fazer uma investigação baseada na Teoria Dialógica do Discurso como é o nosso caso. Referir-se a um objeto estético (BAKHTIN, 1993) pressupõe uma especificação do gênero discursivo a que pertence, embora o mestre russo nos lembre, em muitas passagens de sua obra, da plasticidade dos gêneros: eles mudam em contextos históricos outros, podem imbricar-se, servir de matéria-prima para gêneros nascentes, pertencer a esferas diferentes da atividade humana, assumir formas conforme suas condições de produção e recepção permitam etc. Os gêneros secundários poema e canção, embora se assemelhem em muitos aspectos, apresentam características diferentes e têm funções e finalidades diferentes em suas esferas de circulação social e isso se reflete em sua estrutura com variações no próprio enunciado concreto. Segundo Bakhtin, os gêneros do discurso são tipos relativamente estáveis de enunciados e, como nos lembra de maneira feliz, Fiorin (2006, p. 64), não se tem dado muita importância ao advérbio relativamente no célebre enunciado bakhtiniano. Essa modalização nos leva necessariamente a duas condições fundamentais dos gêneros discursivos: sua historicidade irredutível e a imprecisão de suas fronteiras3. E é justamente por isso que não podemos, como certa crítica ligeira faz, confundir os dois gêneros, utilizando-se de argumentos frágeis como a falácia da amplitude democrática da canção em contraposição a um suposto elitismo da poesia ou ainda através de apelos à velocidade das novas relações engendradas pelas novas 2
(...) En el modesto caso de mis milongas, el lector debe suplir la música ausente por la imagen de un hombre que canturrea, en el umbral de su zaguán o en un almacén, acompañándose con la guitarra. La mano se demora en las cuerdas y las palabras cuentan menos que los acordes (...). 3
É justo lembrarmos aqui que o pensador da linguagem João Wanderley Geraldi, em muitos de seus trabalhos, insiste em apontar o equívoco da não relativização da célebre definição bakhtiniana, principalmente na transformação dos chamados gêneros discursivos, pela escola, em objeto de ensinoaprendizagem de Língua Portuguesa.
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tecnologias digitais, que levariam os gêneros a se confundirem, ou ainda a se fundirem no contemporâneo, ou ainda a ideia de que o as funções do poema teriam sido absorvidas pelas funções da canção etc. Entender o problema dessa forma significa tão somente não entender os dois gêneros do discurso em seu funcionamento social e estético. Neste campo de reflexões, pretendemos analisar, da perspectiva da Teoria Dialógica do Discurso (TDD), algumas milongas presentes no CD “Délibáb” do músico e escritor gaúcho Vítor Ramil. Faremos também aproximações entre os gêneros discursivos canção e poema e refletir sobre as relações estéticas e discursivas das vertentes populares das milongas face ao cânone, representado aqui por Jorge Luis Borges e João Cunha Vargas. A inclusão de Vargas como representante do cânone pode causar alguma estranheza, pois, em nossa microbiografia do poeta gaúcho, acentuamos sua situação de quase analfabeto. Nossa posição se justifica porque, na atitude de ditar seus poemas de memória para serem escritos, ele estava de acordo com aquilo que resultava de seus ditados: enunciados poéticos dispostos em estrofes e versos. Ora, essa atitude o confirma como um participante consciente de eventos de letramento, ou seja, como autor-criador dentro da esfera canônica de produção literária, embora praticamente analfabeto.
Fundamentação teórica A fundamentação teórica do presente trabalho terá, como elemento central, alguns conceitos e pontos de injunção dos ensaios O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal (p. 14-70) e O discurso no romance (p. 71-210), da obra Questões de literatura e de estética. A teoria do romance, de Mikhaïl Bakhtin (1993). Ao nos situarmos nos parâmetros da TDD, sabemos que os conceitos bakhtinianos são instáveis (embora nunca provisórios) no sentido de receberem, de acordo com a evolução de seus escritos, uma complexificação cada vez maior. Isso não serve de conforto a nenhum pesquisador, muito pelo contrário. Aquele que se inscreve, de alguma forma, na TDD, deve entender que as conclusões de suas pesquisas serão provisórias (mas não instáveis). O aparato teórico bakhtiniano não é operacionalizável no sentido habitual da palavra, ou seja, eles são andaimes virtuais para construções que, com o tempo, terão de ser reerguidas necessariamente.
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É já bastante sabido que a base da reflexão bakhtiniana é a negação de todas as dicotomias. Para ele, são indissolúveis as relações entre vida e arte e entre vida e literatura. A vida está na literatura efetivamente, só que transferida pela forma estética para outro plano de valores, ou seja, para outro plano axiológico. Tanto o domínio ético quanto o domínio cognitivo da realidade são integrados ao objeto estético. A dimensão estética individualiza, concretiza, isola e arremata o ato ético do sujeito e o conhecimento (dimensão cognitiva) realizados na realidade mesma vivida, mas não recusa seus valores; pelo contrário, a forma estética se deixa orientar por esses valores trazidos da realidade. O elemento ético-cognitivo é, na realidade, para Bakhtin, o conteúdo (Ibid.; p. 33). O objeto estético faz um recorte de elementos da realidade - o mundo ético, ou seja, o da vida vivida, e o mundo cognitivo, ou seja, o mundo da ciência - para outro plano, dando a eles um acabamento (impossível para a realidade mesma) consubstanciado em uma forma composicional apoiada no material linguístico vivo, situado. Investidos, portanto, da visão bakhtiniana que entende o objeto estético como a transferência do plano axiológico da realidade avaliada e conhecida para o plano da obra artística, ordenando-a de modo novo, mas não recusando sua identificação e sua valoração, investigaremos nos poemas e canções que pretendemos analisar, os valores (eixo axiológico) do mito gaúcho, ou seja, a virilidade, a honra, o destemor, o destino, a lealdade etc, e os valores da memória – a infância, o pago, os modos de convivência, a amizade etc, transferidos para dimensão estética. Estaremos atentos às ressignificações desses valores para as condições de produção da época atual, aos sentidos produzidos por eles no contemporâneo. Portanto, ao investigar os produtos culturais dos gêneros discursivos canção e poesia, teremos que considerar com muito cuidado e discernimento, a questão estética. Márcia Abreu (2004), refletindo sobre a insuficiência do valor estético para a consagração de uma obra literária, chega à conclusão que o prestígio social dos intelectuais encarregados de definir Literatura faz com que suas ideias e seu gosto sejam tidos não como uma opinião, mas como a única verdade, como um padrão a ser seguido” (p. 40 e 41, itálico da autora).
E esse gosto, explica a autora, pode ser confundido com opinião, exigindo uma série de pré-requisitos para que a literariedade seja legitimada: a) a maneira como o
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autor organiza o seu texto; b) como emprega a linguagem e c) como adere a certa convenção. Mas há outros critérios que contam; critérios externos à obra e, por isso mesmo, subsumidos ou desconsiderados na valoração desses produtos culturais: nome do autor, mercado editorial, o grupo intelectual a que se liga e os critérios críticos em vigor naquele momento (Ibid.; p. 41). Ao analisar, de uma perspectiva bakhtiniana, algumas canções do CD “Délibáb”, de Vitor Ramil, destacamos duas preocupações: aproximar os gêneros discursivos canção e poema e refletir sobre as relações estéticas e discursivas das vertentes populares das milongas face ao cânone, representado aqui por Jorge Luis Borges e João Cunha Vargas. No que diz respeito especificamente ao cânone e, por decorrência, ao “Délibáb”, levaremos em conta as proposições mais significativas do ensaio A estética do frio. Conferência de Genebra (2004). O escrito de Ramil não é uma proposição teórica, mas sim estética. O músico e escritor gaúcho elabora uma estética a partir de suas experiências
profissionais
e de vida,
tendo,
como
elemento
central,
uma
redefinição/reconstrução daquilo que se constituiu na história musical da Argentina, do Uruguai e do Rio Grande do Sul, ou seja, de uma perspectiva transfronteiriça – e, portanto, profundamente dialógica - como milonga. Para preconizar uma estética do frio em contraponto “a uma estética que se adequava perfeitamente ao clichê do Brasil tropical” (Ibid.; p. 13)4, Ramil utiliza como argumento principal um enunciado do escritor cubano Alejo Carpentier: “O frio geometriza as coisas” para, em seguida, propor uma imagem primordial, gênese de sua proposição estética: “A imagem em alta definição do gaúcho fitando a longa linha regular do horizonte: não um cartão postal, mas uma atmosfera melancólica e introspectiva” (Ibid.; p. 20). Ele nos adverte, porém, de que “não fora acometido de um surto de estereótipo”, pois: Pampa e gaúcho estavam ali porque eu me transportara ao fundo do meu imaginário, lá onde, tanto um como o outro, têm o seu lugar. O pampa pode ocupar uma área pequena do Rio Grande do Sul, pode, a rigor, nem existir, mas é um vasto fundo na nossa paisagem interior. (Ibid.; p. 19)
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O ensaio de Ramil apresenta muitas outras facetas e nuances, além da questão desse contraponto estético. Não as trouxemos para este artigo em função de seu caráter descritivo e conciso.
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Estabelecidos argumento e imagem/gênese, Ramil, a partir da tradição da milonga pampeana ou campeira, a milonga-canção, simples e monótona e cantada em tom menor (o contrário de outra tradição, da milonga afeita para dançar, em tom maior, ao som forte do acordeom), (re)traça as coordenadas estéticas da milonga: Lenta, repetitiva, emocional; afeita à melancolia, à densidade, à reflexão, apropriada tanto aos voos épicos como aos líricos, tanto à tensão e à suavidade, e cuja espinha dorsal são o violão e a voz. (p. 22)
A estas, ele adiciona que “a milonga, assim como a imagem [gênese] opõe-se ao excesso, à redundância. Intensas e extensas, ambas tendem ao monocromatismo, à horizontalidade”. Afinal “que outra forma seria tão apropriada à nitidez, aos silêncios, aos vazios?”, indaga (p. 22). Debruçar-se sobre essas questões exige aproximar-se de um pensamento em constante mudança, um pensamento que revisita obsessivamente as próprias premissas, que as coloca em suspensão; pensamento que, embora sobrevoe ansioso e constantemente seus objetos, busca-os radicalmente no concreto, não separando vida e estética, pensamento que tem o desejo de completude teórica e conceitual sempre insatisfeito, como é o pensamento de Mikhaïl Bakhtin. Entendemos que, ao elaborar as melodias para os poemas de Borges e Vargas, Ramil mudou os poemas em canções. É de nossa responsabilidade, portanto, investigar este novo estatuto genérico, ou seja, refletir sobre as consequências desta transformação, o que ela significa de fato, concretamente. A análise dos poemas-canções de “Délibáb” vai nos proporcionar um olhar em que
sentido
os
valores
da
memória
e
do
mito,
projetados
pela
tríade
Ramil/Borges/Vargas, podem ser ressignificados para os tempos em que vivemos, marcados por um presentismo arrivista e pela morte da memória. Finalmente faremos uma aproximação cuidadosa, dialógica, delicada, entre a vertente popular e a vertente canônica das milongas: suas semelhanças e diferenças. Suas temáticas e construções formais. A representação estética de seus valores. O seu impacto e sua importância hoje nas esferas culturais em que circulam. O cuidado com essas delicadas aproximações nos deixará, por fim, mais à vontade para analisarmos de uma maneira mais fenomenológica e isenta de preconceitos estetizantes, os produtos culturais vindos da tradição popular e da vertente canônica das milongas.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Anais do III CIELLI (2014) - ISSN 2177-6350
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las
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A IMPORTÂNCIA DA ESCRITA E DA REESCRITA NA CONSTRUÇÃO DA REPRESENTAÇÃO DO CARÁTER DIALÓGICO E FUNCIONAL DO TEXTO NOS EDUCANDOS Juliane Francischeti Martins Motoyama (PG FCT/UNESP/CELLIJ) Palavras iniciais Este estudo tem como objetivo compreender como criar condições para que os alunos aprimorem as representações sobre a funcionalidade e dialogia da produção de textos escritos, ou seja, desenvolvam um controle consciente e autônomo do domínio da articulação entre o que se diz e como se diz. Para este fim, analisamos os resultados parciais da pesquisa provisoriamente intitulada Representação funcional da escrita: um estudo de caso com alunos do 6º ano do Ensino Fundamental e organizamos este trabalho em três partes: inicialmente, apresentamos e discutimos algumas considerações teóricas a respeito da produção textual; em seguida, realizamos um diagnóstico da escrita dos participantes do estudo e, por último, tecemos considerações a respeito da oficina de produção textual que vem sendo desenvolvida com esses alunos. Algumas considerações sobre a escrita Embora a discussão sobre produção de textos em alguns momentos pareça saturada, ela se renova a cada instante a partir de novas questões que surgem na dinâmica de pesquisas e salas de aula. Se, inicialmente, versava sobre a necessidade de garantir que nas situações de escrita os alunos tivessem acesso ao gênero textual e suas particularidades, atualmente o desafio é organizar as ações para que os educandos, além de utilizarem o gênero textual em sua plenitude, façam isso em contexto social, real e entrem em “Atividade” 1. 1
Atividade é empregada neste texto como referência à Teoria da Atividade de Leontiev (1984) que a concebe como processos psicológicos pautados na ação em que se tem um objetivo para estimular o sujeito a executar uma determinada tarefa.
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Nesse sentido, entrar em atividade pressupõe proporcionar aos discentes momentos em que a escrita assuma sua função social e signifique particularmente para cada indivíduo. Esta ação é o novo desafio da escola, ou seja, desenvolver processos psíquicos de modo que os educandos consigam aprimorar sua interlocução por meio de uso de instrumentos culturais. Para compreender como é possível desenvolver ações que possibilitem a atividade ao aluno, neste item serão discutidas as principais concepções de língua e as práticas de escrita resultantes de cada uma delas. Com a intenção de didatizar as considerações que serão aqui tecidas, elaboramos um quadro conceitual. Quadro 1: Concepções de escrita DESIGNAÇÃO (GERALDI, 2011)
CONCEPÇÃO DE LÍNGUA (CURADO, 2011)
Expressão pensamento
DEFINIÇÃO DA ESCRITA (MENEGASSI, 2010) Escrita com foco na língua
do
Wilhelm Dilthey (Inatismo; idealismo) Redação
HISTÓRIA (MARCUSCHI, 2010)
CONSIDERAÇÕES
Forte presença nas escolas do início do século XX até os anos 1950 que, muitas vezes, também utilizavam os textos para auxiliar na formação “moral” dos educandos.
Ideia vinculada a gramática normativa, desta forma, a construção do texto nega as características dialógicas do gênero textual e foca nas normas. É uma escrita de via única, ou seja, do pensamento para o papel.
Escrita como dom/inspiração
Instrumento de comunicação Saussure (Estruturalismo) e Chomsky (Gerativismo)
Escrita como consequência
Do mesmo modo que a anterior, prende-se a gramática normativa e deixa a escrita do discente incompleta, sem definir o gênero textual, leitor, contexto ou qualquer outro suporte que poderia direcionar a produção. Entre os anos de 1960 e 1970 a língua era vista como um código e o aluno precisava seguir modelos uniformes e claros.
Tem como base o Estruturalismo e o Gerativismo, portanto, afasta os falantes de sua produção ao se focar na gramática descritiva. Neste caso, os educandos são submetidos a propostas de escrita que não
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favorecem a articulação dos discursos e sem tempo para reflexão. Produção Textos
de
Interação entre os indivíduos
Escrita trabalho
Bakhtin (dialogismo)
Organização: MOTOYAMA (2014)
como
Nos anos 1980 os estudiosos do texto começam a denunciar a redação escolar como um “nãotexto”.
Inspirada nas ideias do dialogismo, essa concepção permite ao aluno um trabalho em sua escrita, submetendo-o a um processo longo e reflexivo de construção da escrita.
O que se concebe neste quadro são dois grupos maiores – redação e produção de textos – que englobam as práticas de escrita na escola. Na categoria das redações, encaixam-se três das concepções de escrita apresentada por Menegassi (2010), sendo elas a escrita com foco na língua, escrita como dom, escrita como consequência, ou seja, atos pautados em devolver a palavra à escola sem proporcionar uma interação real entre a criança e seu texto. Nestas práticas, muitas vezes o educando sequer consegue vislumbrar um leitor, alienando o produto de sua escrita à escola, a fim de obter notas. A produção de textos é uma ação muito recente na escola, que se entrelaça com a ideia da concepção de língua interacionista e de escrita como trabalho (MENEGASSI, 2010), de modo que o docente contextualiza a produção textual em uma situação real para a criança passar por vivências e utilizar a escrita como instrumento de registro e reflexão, construindo novos saberes. Para elucidar essas circunstâncias, Geraldi (2011) conceitua os atos de escrita nesses dois momentos que aparentemente atuam nas escolas como sinônimos, mas que revelam o paradigma da escrita. É justamente esta dicotomia que se estabelece entre redação e produção textual que é possível diferenciar as práticas adequadas de ensino da escrita para que o educando entre em atividade ou apenas escreva como uma devolutiva às práticas escolares. A redação é conceituada por Geraldi (2011, p.129 -130) como um jogo escolar, pois à medida que o texto do aluno não apresenta reflexão e não estabelece interlocução com o leitor. De acordo com o autor, esta ação “trata-se do preenchimento de um arcabouço ou um esquema, baseado em fragmentos de reflexões, observações ou
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evocações desarticuladas”. Nesta dinâmica, o estudante é condicionado a escrever do modo como a escola lhe ensinou e deseja formá-lo, anulando a subjetividade dos discentes e gerando a construção do “aluno-função”. Analisando as produções de materiais didáticos para serem utilizados na escola, Marcuschi (2010) verificou que a escola sempre trabalhou com o conceito de redação e que, antes do século XXI, os liceus não se voltavam para o gênero textual. Conforme apresenta a autora, no século XX o foco dos exercícios de escrita em sala de aula era o ensino da gramática normativa. Um recente estudo de Vinhal (2013) revelou que ainda são recorrentes práticas escolares que priorizam o ensino de gramática e da estrutura da língua em detrimento do dialogismo do texto, por exemplo, nas aulas de produção textual observadas somente em 13,33% dos casos existiu a preocupação em trabalhar com o contexto de produção e com a presença de um leitor, nos demais momentos optou-se pelo ensino direcionado para a estrutura do gênero textual e da língua. Segundo Menegassi (2010), as situações de escrita que se voltam para o ensino da gramática, relacionadas à concepção de língua como expressão do pensamento, não estão distantes das salas de aula. Como exemplo o autor cita a escrita com foco na língua, em que os sujeitos que possuem o domínio da gramática são considerados bons escritores, pois são capazes de realizar a transposição de regras e de princípios gramaticais para o papel; e a escrita como dom/inspiração, na qual o educando recebe um tema sobre o qual necessita discorrer, mas esta prática não proporciona reflexão e consequentemente o estudante dificilmente conseguirá articular suas ideias na construção de um texto dialógico, ficando preso em aspectos gramaticais sem se ater ao plano do conteúdo textual. Neste panorama de propostas de escrita para os aprendizes, não se oferece a oportunidade de entrar em atividade, ou seja, utilizar o produto de sua escrita para construir reflexões e novos conhecimentos, conforme salienta Landsmann (1998). Muitas vezes, sequer se desenvolvem práticas de reescrita que possibilitariam ao educando um retorno ao conteúdo do texto para refletir. Ainda no contexto da redação, Menegassi (2010) traz a ideia de escrita como consequência. Nesta dinâmica, após alguma experiência, o docente solicita aos alunos que escrevam um relato, mas acabam não refletindo sobre os atos porque apenas
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descrevem passos de um determinado momento vivido. Novamente o discente fica impossibilitado de exercer a dialogia em sua produção, pois não tem tempo nem recebe os instrumentos para articular os discursos, ou seja, não tem tempo para refletir e desenvolve uma produção mecânica, ou melhor, uma “reprodução” (GERALDI, 2013). Marcuschi (2010), ao descrever os exercícios dos materiais didáticos, menciona que entre os anos 1960 e 1970 apresentam-se propostas muito similares: os educandos eram instigados a desenvolverem uma ação e realizarem o registro através de modelos uniformes e claros, portanto, sem espaço para refletir ou construir algo de sua autoria. Atualmente, essas práticas de construção de textos pautados em modelos rígidos previamente estabelecidos, ou após dinâmicas em sala de aula, ainda são comuns nas escolas, mesmo com o avanço dos estudos de linguagem. Somente após os anos de 1980, Marcuschi (2010) afirma que se começou a reconsiderar as práticas de linguagem em algumas escolas a partir de estudos de pesquisadores como Geraldi (2011) que buscavam refletir sobre a redação escolar e a classificava como “não texto” por não possuir as características interlocutivas dos textos em situações sociais reais. A essas práticas discursivas de produção textual, Menegassi (2010) dá o nome de escrita como trabalho, pois nessas situações o discente ganha a possibilidade de desenvolver a escrita planejada, tendo acesso aos processos produtivos do texto, desde o planejamento, passando pela execução, até a reescrita. Para Geraldi (2011) o grande diferencial que rompe com a redação e estabelece a produção de texto é a tomada da palavra por parte do aluno. É neste ato de tomar para si a palavra e trabalhar sobre a sua escrita de modo a construir algo novo e reflexivo que a criança entra em atividade e desenvolve processos psicológicos cada vez mais elaborados, os quais a levará para uma escrita proficiente e dialógica. Com o lápis na mão: o diagnóstico da escrita dos educandos A escrita que serviu como diagnóstico inicial desta pesquisa foi realizada pelos discentes no dia 28 de março de 2014, durante a aplicação da Avaliação da
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Aprendizagem em Processo (AAP)2. Os passos de aplicação propostos pela Secretaria do Estado da Educação de São Paulo (SEE/SP) foram seguidos pela professora responsável pela turma que se orientou por meio das recomendações expressas no caderno Comentários e Recomendações Pedagógicas (SÃO PAULO, 2014). Serviram como corpus de análise para este diagnóstico inicial a primeira escrita dos participantes, ou seja, aquela que ainda não havia recebido orientações e sugestões da docente para melhor adequação do texto. A AAP do 6º ano, de março de 2014, trazia como proposta de produção um exemplar do gênero textual conto de terror intitulado “A Noite das Bruxas” (PRIETO, 1998), a fim de ser recontado pelos discentes após a leitura em voz alta pelo docente. Esta opção pela reconto se deu conforme justificam os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998) para que o professor e os gestores pudessem avaliar de forma clara o aluno com foco no “como dizer”, à medida que já se estabeleceu na leitura do conto realizada pelo educador “o que dizer”. A produção de autoria só é cobrada dos educandos na AAP a partir do 7º ano quando se considera que o aluno começou a desenvolver maturidade intelectual para a construção de uma escrita mais criativa. Para analisar a escrita dos participantes, fez-se uso do instrumento de avaliação sugerido pela própria prova, qual seja, uma grade com diversos itens para serem avaliados e preenchidos. Essa opção se deu para que o estudo dialogue com as práticas reais de correção às quais os docentes estão acostumados como, por exemplo, os descritores do SARESP, Prova Brasil e da própria AAP. A grade de correção que compõe a AAP, e também utilizada aqui como instrumento de análise, foi desenvolvida com base no material da Olímpiada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro e se divide em três critérios. O primeiro é a adequação ao tema, em seguida, avaliam-se as regularidades das características do gênero (tempo, espaço, personagem, narrador, conflito, sequência cronológica dos fatos, relações de causa e consequência) e, por último, o uso das convenções da escrita (segmentação, ortografia, pontuação, concordância, parágrafos, discurso direto e indireto, sinônimos). Muito embora tenham sido analisados todos os itens propostos por esta grade, a análise 2
A AAP faz parte de uma ação da SEE/SP, visando dinamizar o ensino fundamental e médio e oferecer diagnósticos para os docentes no primeiro e segundo semestres letivos.
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da produção escrita que é desenvolvida neste estudo mantém o foco no que diz respeito ao primeiro e segundo critérios. O terceiro item será analisado em outra oportunidade. No total de 22 convites enviados para participar desta pesquisa, 7 obtiveram respostas positivas, todavia, para este estudo será apresentado o diagnóstico da escrita de apenas 3 participantes, ou seja, um recorte na pesquisa original que deverá ser desenvolvida na íntegra durante a construção da dissertação de mestrado. No diagnóstico inicial logo se constatou a dificuldade dos participantes em articularem suas ideias de modo a torná-las claras para seus interlocutores. Mesmo a AAP tendo dado “o que dizer”, os discentes apresentam dificuldades para escrever o conteúdo do texto de forma coerente. Os participantes, em sua maioria (75%), construíram sínteses do material original e não um reconto conforme havia sido proposto. No processo de construção deste texto, os educandos acabaram omitindo uma série de informações que ocasionaram em lacunas e consequente impossibilidade de compreensão do leitor. Em todos os textos analisados, foram comuns problemas como a omissão da apresentação das personagens, do tempo, do espaço e a redução ou exclusão do conflito. Neste fragmento, produzido pelo P1, fica nítida a incompletude do enunciado criado pelo estudante: “Estou com fome traga algo para eu comer. E a dona de casa trouxe bolo, a outra bruxa disse estou com sede, traga agua do posso em uma balde e uma voz disse assin a montanha e grite 3 vezes ela fez isso”. Nota-se que a criança não situa o leitor para o local e o momento em que se passam a história, não apresenta as personagens, deixando a quem lê a tarefa de inferir todas estas informações. Outro dado que foi levantado neste diagnóstico inicial é a dificuldade que os participantes apresentaram em articular as relações de causa e consequência que estabeleceriam a linearidade de sua escrita. Em todos os casos analisados, as crianças omitiram, pelo menos, uma causa o que ocasionou em uma consequência expressa sem nexo, comprometendo a coerência e a coesão do texto. Assim, ao não visualizarem as relações de causa e consequência que estruturavam o conto, os participantes omitiram informações importantes para a construção do conflito, prejudicando assim a compreensão do leitor deixando a escrita incoerente e comprometendo a sequência lógica dos fatos que desencadeiam o conto.
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Constatou-se no diagnóstico também que um dos participantes (P3), mesmo tendo ouvido o conto de terror da AAP, escreveu uma história muito próxima dos contos de fadas dando início ao texto com a expressão “Era uma vez” e transformando a essência da história em algo mais sutil e menos aterrorizante. De um modo geral, os textos aqui analisados compactuam com a ideia apresentada por Geraldi (2011) de “aluno – função” que faz redações, ou seja, os participantes tentam devolver a palavra que lhes foi dada pela escola, sem tentar estabelecer uma interlocução com seus possíveis leitores, gerando textos pobres de conteúdo e que buscam o primor gramatical. Consequentemente, as crianças não conseguiram dimensionar a escrita para atender aos preceitos de uma produção textual que saísse do lugar comum, já que preveem como foco um leitor escolar: a professora. Após estas constatações iniciais, buscou-se refletir sobre qual a forma mais adequada para intervir nesta realidade e auxiliar esses educandos a produzirem textos proficientes. O caminho encontrado, dentre tantos outros que se vislumbraram, foi o trabalho desenvolver com os alunos miniaulas para planejarem, estruturarem, construírem, revisarem e reescreverem suas produções. Para tanto, foram utilizadas as concepções de Vygotsky (1989) sobre mediação e Zona de Desenvolvimento Proximal para estruturar as intervenções que serão realizadas junto aos participantes. No item a seguir apresentamos a dinâmica de oficina de produção textual proposta e que está em desenvolvimento. Passando a limpo: oficina de produção de textos Com os dados levantados até o momento, compreendemos que a reescrita – com mediação docente – é um passo fundamental para a construção de representação funcional da escrita, ou seja, a reescrita é importante para o desenvolvimento de uma escrita proficiente e que atenda aos parâmetros buscados nas avaliações como SARESP e o uso da linguagem escrita nas esferas sociais. É no processo de reelaboração do que foi escrito que a criança encontra a oportunidade de reflexão e compreensão, que levará a articulação entre o que se diz e como se diz (GÓES, 1993).
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Sete educandos participaram de oficinas de produção textual que ocorrem semanalmente na sala de leitura de uma escola no interior do estado de São Paulo na região da Alta Sorocabana. Essas oficinas deverão acontecer até o final de outubro de 2014, portanto, ainda não contam com uma análise aprofundada de seu produto final, ficando neste item a sua apresentação apenas em caráter descritivo e de levantamento de dados. As oficinas estão organizadas em forma de miniaulas, em que o mediador primeiro explica e instrumentaliza como a criança pode realizar as etapas da escrita e, posteriormente, o participante é convidado a realizar seu trabalho de produtor de textos sozinho, mas ainda contando com a mediação em momentos estratégicos. Esta etapa é importante para que a criança consiga ir se apropriando dos procedimentos envolvidos na atividade de escrita e possa gradativamente ir assumindo sua autoria (CALKINS, et. al., 2008). Os conteúdos que compõem as miniaulas da oficina de produção de texto foram eleitos a partir do diagnóstico inicial da escrita dos participantes. A dinâmica selecionada está pautada na interação (CALKINS et. al., 2008), de forma que as crianças passem por situações de observação de textos de escritores de conto profissionais como Ricardo Azevedo, Ana Maria Machado, Christina Dias, Angela Lago, dentre outros. Após a leitura e análise da escrita desses autores, os educandos são convidados a planejarem a construção de seus textos e, em um momento posterior, revisá-los e reescrevê-los. O processo de planejamento da escrita se dá com o auxílio de grades organizadoras que conta com itens como: personagens, tempo, espaço, narrador, causas e consequências. Essas grades são utilizadas como estratégias para que os participantes possam aprender a planejar antes de construir o texto e assim visualizar no concreto como ficará sua história e se necessita de ajustes antes mesmo de ser redigida (OLNESS, 2005). Após o preenchimento da grade, o mediador dialoga com a criança para que ela oralize o que pensou e desenvolva com o professor uma interação sobre o conteúdo de sua escrita, ou seja, o aluno avalia sua própria produção, antes de entregá-la ao professor e depois de receber de volta de seu leitor (CALKINS, et. al.,2008).
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De posse da grade completa, o discente pode construir a sua produção inicial autonomamente, sem a interrupção do mediador. No encontro seguinte, a criança retoma seu texto e a partir da propositura de um processo de interação, o mediador circula pela sala discutindo o que a criança quis dizer e o que realmente disse em cada enunciado. Assim, por meio da mediação docente, o aluno consegue observar a própria escrita, dialogar com ela e realizar os ajustes de modo a torná-la compreensível para o outro. Com este trabalho de mediação, o educando avança gradativamente da zona de desenvolvimento proximal para a zona de desenvolvimento real (VYGOTSKY, 1989). Ao final de cada miniaula, o texto da criança é direcionado a uma circulação social real, seja impresso e disponibilizado no pátio da escola para que os alunos que circulam por lá possam ler ou para a construção de um livro que será doado à sala de leitura. Considerações finais Este estudo buscou apresentar resultados parciais da pesquisa provisoriamente intitulada de Representação funcional da escrita: um estudo de caso com alunos do 6º ano do Ensino Fundamental. Até o presente momento, levantou-se um diagnóstico da escrita de três dos sete participantes da pesquisa e concluiu-se que estas crianças apresentam alguns problemas no que diz respeito à construção de enunciados coerentes. Um dos itens que ficou evidente é que a falta de estabelecimento das partes fundamentais da narrativa como as relações de causa e consequência e o conflito acabaram por ocasionar lacunas na escrita destes educandos. Para auxiliar na observação e correção desses problemas, se propôs o desenvolvimento de uma oficina de produção textual de modo a constatar os avanços que podem ser alcançados com este grupo e refletir de que forma o ato de produzir textos na escola pode ser transformado em uma atividade (LEONTIEV, 1984). A reflexão que se deixa desta observação inicial perante os dados da pesquisa é de que se avançou nas práticas de produção textual em ambiente escolar, pois já existem diversas pesquisas na área e propostas de trabalhos com o uso contextualizado do gênero textual, mas ainda há muito a ser pensado sobre essa questão, em especial sobre
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a oferta de atividades significativas para as crianças, a fim de que possam construir conhecimentos e não apenas redigir redações para a escola. Referências BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quatro ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC / SEF, 1998. CALKINS, L.; HARTMAN, A.; WHITE, Z. Crianças produtoras de texto: a arte de interagir na sala de aula. Porto Alegrae: Artmed, 2008. CURADO, O. H. F. Linguagem e dialogismo. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA. Prosgrad. Caderno de formação: formação de professores didática geral. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. p. 26-33, v. 11. GERALDI, J.W. Portos de passagem. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2013. ________. Escrita, Uso da Escrita e Avaliação. In: GERALDI, João Wanderley (Org.) O Texto na Sala de Aula. 5. ed. São Paulo: Ática, 2011. p. 127 – 131. GÓES, M.C.R. de. A criança e a escrita: explorando a dimensão reflexiva do ato de escrever. In: SMOLKA, Ana Luiza B. & GÓES, Maria Cecilia de (Org). A Linguagem e o Outro no Espaço Escolar – Vygotsky e a construção do conhecimento. 5. ed. São Paulo: Papirus, 1993. LANDSMANN, L. T. Escrever na escola. In: LANDSMANN, L. T. Aprendizagem da linguagem escrita: processos evolutivos e implicações didáticas. Trad: Cláudia Schilling. 3. ed. São Paulo: Ática, 1998. LEONTIEV, A. N. Actividad, conciencia y personalidad. Editorial Catargo de Mexico: Ciudad de Mexico, 1984.
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AS RUAS DE LONDRINA: UM ESTUDO DOS NOMES SURGIDOS DURANTE O CICLO DO CAFÉ Julianne Rosy do Valle Satil Neves (UEL) Introdução Neste trabalho, objetivamos captar os efeitos de sentido produzidos pelas designações dos nomes de logradouros, em Londrina-Paraná, cidade fundada em 1934, durante o Ciclo do Café. Para tanto, foram selecionados os nomes de ruas e avenidas que trazem nomes de unidades federativas brasileiras, os quais são apresentados no Album do Municipio de Londrina, de 1938. E... por que os nomes de ruas e avenidas? Dias (2000, p. 105) defende que “analisar a organização dos nomes de rua de uma cidade é aferir dimensões significativas de sua relação com a história”. Nesse sentido, a nomeação de ruas não é uma atividade meramente baseada na localização espacial da cidade, ela é atravessada pela ideologia e pela memória, as quais são materializadas por meio da língua. E... por que durante o Ciclo do Café? Porque foi o momento históricoeconômico que orientou a fundação de Londrina, em 1934. Em 1938, a comercialização de lotes de terras e o plantio de café regiam a economia e a sociedade do norte paranaense e naquela época, a cidade de Londrina já possuía grande pluralidade cultural, com pessoas de nacionalidades diferentes e de várias regiões do Brasil. Portanto, considerar esse momento histórico no presente estudo possibilita, além da reflexão sobre a língua portuguesa, a reflexão sobre a história do povo londrinense. 1 O ciclo do café no Paraná: breve contexto No estado do Paraná, a ocupação territorial e o desenvolvimento de atividades econômicas se deram por meio de ciclos, entre eles: o ciclo do ouro, da erva-mate, da madeira e o ciclo do café, que se estendeu de 1860 até a década de 1970,
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aproximadamente. Oliveira (2001, p.33) apresenta como foi instaurado o ciclo cafeeiro no estado do Paraná O cultivo do café se iniciou em escala apreciável no Paraná por volta de 1860. Nessa ocasião, fazendeiros paulistas e mineiros começaram a ocupar a região Nordeste do Estado, que se conhecia como Norte Pioneiro, como parte da expansão da área plantada que vinha de São Paulo. Como decorrência desses fatos, eram escassos os vínculos dessa região com o restante do Estado. Tanto o escoamento dessa produção quanto o abastecimento da região com os gêneros nos quais ela não era auto-suficiente se faziam pelo Estado de São Paulo. Seria somente a partir de 1924 que essa região começaria a se integrar de forma mais consistente à economia paranaense.
É necessário esclarecer que, quando tratamos do ciclo do café no estado, devemos considerar a região norte em que essa cultura foi desenvolvida. Com a descoberta da “terra roxa”, o norte paranaense passou por um processo muito rápido de ocupação territorial. Em razão da expansão da cafeicultura, essas terras, desde o século XIX, já despertavam o interesse de paulistas e mineiros. O norte paranaense – delimitado pelos rios Itararé, Paranapanema, Paraná, Ivaí e Piquiri – com uma superfície de aproximadamente 100 mil quilômetros quadrados desenvolveu seu processo de ocupação em três momentos: - Norte Velho (1860 a 1920) – que se estende do rio Itararé até a margem direita do rio Tibagi, cidades como Jacarezinho, Tomazina e Santo Antônio da Platina foram criadas nessa época; - Norte Novo (1920-1950) – que vai até as barrancas do rio Ivaí e tem como limite, a oeste, a linha traçada entre as cidades de Terra Rica e Terra Boa, nesse período foram fundadas as cidades de Londrina, Cambé, Rolândia, Maringá e Apucarana; - Norte Novíssimo (1950-1960) – que se desdobra dessa linha entre Terra Rica e Terra Boa até o curso do Rio Paraná, ultrapassando o rio Ivaí e abarcando toda a margem direita do rio Piquiri. Foram criadas, nesse período, as cidades de Umuarama, Xambrê e Cruzeiro do Oeste. Sobre a colonização do norte paranaense, é importante esclarecer que:
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No século XX, começa a expansão do norte velho entre o Paranapanema e o Tibagi. Em princípios do século, o major Antonio Barbosa Ferraz Junior, agricultor de Ribeirão Preto, sentindo os efeitos da exaustão de suas terras, resolveu transferir-se para o Paraná, experimentando a fertilidade do solo norte-paranaense. Comprando uma grande gleba entre Ourinhos e Cambará, ele desbravou uma extensa área e plantou um milhão de cafeeiros. Conhecido o êxito dessa iniciativa, outros lavradores adquiriram terras da miraculosa região. Sua euforia, porém, foi logo turbada pelo difícil escoamento de safras abundantes, deterioradas pela falta de comunicações, só corrigida com a formação, de redes viárias. (C.M.N.P., 1977, p. 240).
Pozzobon (2006) acrescenta que no final do século XIX, dado o isolamento, as plantações de café se expandiram de modo lento para o norte velho do Paraná, atingindo, primeiramente, os municípios de Jacarezinho, Santo Antônio da Platina, Siqueira Campos, Cambará, Tomazina, Wenceslau Braz, dentre outras do norte pioneiro. Posteriormente, o norte novo de Londrina, Cambé, Apucarana, Rolândia, Ivaiporã, Primeiro de Maio, Sertanópolis, Maringá, dentre outras, e, por fim, o norte novíssimo de Paranavaí e Umuarama. Esse processo ocorreu especialmente em função da ação de algumas companhias colonizadoras, cuja mais representativa foi a Companhia de Terras Norte do Paraná – CTNP. Em 1924, Lord Lovat, juntamente com outros investidores, fundaram a Brazil Plantations Syndicate Ltda. e uma empresa subordinada a ela, organizada por Arthur Thomas, a Companhia de Terras Norte do Paraná, instituída em 18 de setembro de 1925. A CTNP passou a executar um plano imobiliário, objetivando a comercialização de lotes de terras; o plano colonizador foi organizado visando à produção de café no norte paranaense, visto que os benefícios econômicos eram muito significativos. Dentre os elementos que proporcionaram o êxito da cultura do café no estado e a rápida ocupação dessa região, podemos elencar: a qualidade do solo, a chamada “terra roxa”; a política econômica governamental e a facilidade para a aquisição de terras no Estado. Em 1929, pela introdução dos cafezais, inicia-se, então, a ocupação do território que originaria o município de Londrina, emancipado politicamente em 10 de dezembro de 1934. No final da década de 1930, havia 31 nacionalidades diferentes em Londrina, além disso, migrantes oriundos de vários estados do Brasil, também, marcavam presença na cidade, atraídos pela fertilidade da “terra roxa sem saúva”:
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Nesta terra em que não ha saúvas, os homens trabalham como ellas, num labor continuo e organizado [...] Reza a historia sacra que quando a humanidade em sua maior expressão de ambição e vaidade, tentou alçançar os céos por meio de elevadissima e engenhosa torre, que tomou a denominação de Babel, Deus para castigar essa peccadora humanidade, fez com que os sacrilegos constructores não mais se entendessem, dando um idioma diferente a cada um, impedindo assim, o proseguimento daquela obra. Entretanto, no bemdito sólo londrinense, nas roxas terras destas paragens, homens de 31 nacionalidades diversas, confraternisados, se comprehendem perfeitamente na collaboração do rude trabalho agricola, cooperando dessa forma para o engrandecimento da terra de promissão que é esta região paranaense [...] (GOMES, 1938, p. 76, grifo nosso)
Durante as décadas de 1930 e 1970, Londrina experimentou um alto índice de crescimento populacional e econômico. Naquele período, o desenvolvimento urbano e financeiro foi alavancado, justamente, pelo cultivo e comercialização do café – o “ouro verde” – tendo a cidade, na década de 1950, recebido o título de "Capital Mundial do Café". No entanto, na década de 1960, a cultura cafeeira demonstrou os primeiros sinais de esgotamento. Segundo Oliveira (2001), alguns fatores levaram ao processo de declínio, entre eles: as superproduções nas safras dos anos de 1950 e o confisco cambial dos exportadores efetuado pelo governo de Juscelino Kubitschek. O autor reforça, também, que as fortes geadas no final dos anos de 1960 e início da década de 1970 foram decisivas para a erradicação dos cafezais. Em 1975, a geada “negra” que atingiu agressivamente o norte do Paraná, selou o fim desse ciclo econômico. 2 Fundamentação teórica Esta análise enunciativa fundamenta-se nos pressupostos teóricos da Semântica do Acontecimento, área de estudos da significação formulada por Eduardo Roberto Junqueira Guimarães, professor-pesquisador do Instituto de Estudos da Linguagem, na Universidade Estadual de Campinas (IEL/UNICAMP). A seguir, apresentaremos as categorias de análise que serão mobilizadas neste trabalho. Sobre o espaço da enunciação, é importante destacar que ele é constituído pela relação língua-falante. Os falantes são determinados pela língua que falam, “são sujeitos
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da língua enquanto constituídos por este espaço de língua e falantes” (GUIMARÃES, 2002, p.18), assim sendo, o falante se apresenta como uma figura política constituída pelos espaços de enunciação. Os papéis sociais tomados pelos falantes em relação à língua revelam uma divisão social desta que é marcada por uma disputa política. Logo, “o espaço de enunciação é assim político” (GUIMARÃES, 2006, p.48) e falar consiste em exercer uma relação de poder. A cena enunciativa é formada por lugares constituídos pelos dizeres sinalizados por uma temporalização própria de acontecimento e não por donos de seu dizer. São espaços determinados pelo processo, marcados pela moral e pela ética que definem a distribuição de papéis sociais, os quais são os lugares da enunciação no acontecimento. Para Guimarães (2002) o Locutor-L é a fonte do dizer, não é uma figura do mundo físico, uma vez que é edificada pelo sentido, sendo fundamentada pelo discurso. Na enunciação, há o desdobramento de L em locutor-x, que é o lugar social que o autoriza a falar de um modo específico. O enunciador é apresentado como lugar do dizer, enquanto enunciador, o locutor, ao falar de um lugar específico, divide-se como se dissesse de algum lugar meramente do dizer. Assim, esses lugares do dizer são o que Guimarães denomina de enunciadores, os quais “se apresentam sempre como a representação da inexistência dos lugares sociais de locutor.” (GUIMARÃES, 2002, p.26) Na introdução de Semântica do Acontecimento, o autor distingue nomeação de designação. A nomeação “é o funcionamento semântico pelo qual algo recebe um nome” (GUIMARÃES, 2002, p.9). A designação, por sua vez, é um processo de constituição de sentido, é como o nome significa no acontecimento. Para Rancière (1994) o nome ultrapassa o mero estatuto da classificação, possuindo a propriedade de identificar. Por isso, a designação relaciona-se à [...] significação de um nome, mas não enquanto algo abstrato. Seria a significação enquanto algo próprio das relações de linguagem, mas enquanto uma relação linguística (simbólica) remetida ao real, exposta ao real, ou seja, enquanto uma relação tomada na história. (GUIMARÃES, 2002, p. 9)
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Assim, a designação é um acontecimento enunciativo, compreendida como uma exterioridade produzida pela linguagem, objetivada pelo confronto de discursos, no sentido em que o objeto é constituído por uma relação de discursos e a sua materialidade é este confronto de discursos. 3 Sobre o processo de nomeação de ruas É significativo observarmos que os nomes de ruas, ao mesmo tempo em que evocam um passado memorável, funcionando como narrativas memoráveis do local, possuem como finalidade primeira atender as necessidades do discurso administrativo em estabelecer os endereços para os cidadãos, com o intuito de localizá-los e , de certa forma, controlá-los. Esse processo evidencia o funcionamento de instrumento de controle urbano sobre o cidadão. Coloca visível essa futuridade instalada no nome de rua enquanto lugar que identifica para depois e sempre os espaços e os que o habitam. Tem-se aí um sentido de controle que faz parte do processo de identidade social das pessoas enquanto identificação com um endereço. (GUIMARÃES, 2002, p.51)
Ainda sobre o controle dos cidadãos, é necessário observar, também, que Estes nomes designam e referem ruas, na medida em que as identificam num certo processo socal e histórico. E aqui o processo envolve uma relação de sentido entre a identificação dos espaços pelos nomes e sua localização, enquanto efeito institucional e administrativo. (GUIMARÃES, 2002, p. 92)
As ruas do centro de Londrina receberam os nomes de estados brasileiros antes da fundação da cidade, nomes que foram selecionados pelos funcionários da CTNP, empresa que loteou e colonizou o norte paranaense. Dessa forma, as cenas enunciativas em que o locutor-oficial faz as nomeações são tomadas por um memorável, revelando a história da cidade, o que reforça nossa posição de que a escolha desses nomes não é casual. Não se trata, portanto, de uma etiqueta colada à palavra, pois o processo de nomeação é motivado por questões históricas e políticas.
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O nome não é um selo para um objeto, mas é, de algum modo, a construção de um objeto pelo que o nome designa. A construção de um objeto deve ser aqui entendida como uma divisão do real pela linguagem que a ele está exposta e que assim o identifica simbolicamente. (GUIMARÃES, 2002, p. 63)
Cumpre destacar que esse processo de escolha, ao incluir determinados nomes, exclui tantos outros, havendo, dessa forma, um silenciamento (ORLANDI, 2007), no sentido de que certos nomes foram escolhidos e outros não para identificarem as vias públicas da cidade de Londrina. O sentido legitima, também, por meio de nomes de rua, o poder de um determinado grupo, numa determinada conjuntura histórica, política e social. Dessa forma, Os nomes no mapa, mesmo que apareçam aí como meras etiquetas de espaços urbanos, são, enquanto nomes, o mapa (linguagem) que relaciona esta cidade com sua história, sem a qual ela não é uma cidade. E estes nomes [...] são, enquanto sentido (designação), o que produz incessantemente uma identificação dos espaços da cidade e da cidade consigo mesma. E assim constitui estes espaços como espaços de identificação de sujeitos. (GUIMARÃES, 2002, p. 56)
Considerar o mapa como um texto, consiste em analisá-lo em uma relação integrativa, exigindo que se tome o nome das ruas no texto do qual faz parte, no caso, no mapa do bairro, que, por sua vez, é constituinte do mapa da cidade. Segundo Guimarães (2002), essa perspectiva permite mostrar o modo pelo qual as designações dos nomes das ruas se constituem, principalmente, porque, ao se analisar a temporalidade do acontecimento para descrever o memorável que dele faz parte, esse processo, também, traz as enunciaçoes que significam no acontecimento. Devemos, portanto, recorrer sempre ao mapa, por ser uma unidade maior e mais ampla, para se chegar ao sentido de um nome de rua. 4 Análise do corpus O corpus deste trabalho é composto por 21 nomes de ruas e avenidas que trazem nomes de estados brasileiros, os quais estão no Album do Municipio de Londrina (Figura 1), documento organizado, em 1938, por Adriano Marino Gomes, um dos
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diretores da CTNP. O Album foi desenvolvido com o objetivo de divulgar as qualidades do novo município nos âmbitos nacional e internacional e atrair compradores de lotes de terras comercializados pela CTNP. Na seção “Denominação de vias publicas da cidade”, localizada na página 19, encontramos os nomes: Rua Acre, Rua Alagoas, Rua Amazonas, Rua Bahia, Rua Ceará, Rua Espírito Santo, Rua Goyaz, Rua Maranhão, Rua Minas Geraes, Rua Matto Grosso, Rua Pihauy, Rua Pará, Rua Parahyba, Rua Pernambuco, Rua Rio Grande do Norte, Rua Rio Grande do Sul, Rua Sergipe, Rua Santa Catharina, Avenida Paraná, Avenida Rio de Janeiro e Avenida São Paulo. Figura 1: Página do Album do Municipio de Londrina
Fonte: http://search.4shared.com/postDownload/HmAb_qVy/Album_de_Londrina_1938.html
As enunciações que nomeiam logradouros de Londrina são determinadas por uma história de nomes que se espelham em vias públicas de outras cidades do Brasil, podendo produzir diferentes sentidos e significar memórias distintas de urbanização. A palavra “rua” ou “avenida” articulada a outro nome se apresenta como unidade que
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identifica o espaço urbano, nesse sentido, é importante ressaltar que a diferença entre uma e outra nem sempre é percebida pelo contraste de dimensões. Por isso, “rua” e “avenida” possuem um funcionamento determinado sócio-historicamente; na Londrina de 1938, a distinção entre “rua” e “avenida” se dava, principalmente, pela importância comercial determinada a cada logradouro. Como já apresentamos anteriormente, Guimarães (2002) defende que o mapa deve ser considerado como texto, o qual precisa ser lido e interpretado, pois conta uma história. Dentro dessa perspectiva, as ruas do mapa são enunciados que se entrecruzam, indicando que o processo designativo é atravessado pela memória e pela ideologia, não sendo uma mera atividade de denominação territorial. Nesse sentido, analisando a primeira planta de Londrina – chamada de Planta Azul (Figura 2) – verificamos como os enunciados se relacionam uns com os outros dentro do mapa. Figura 2: “Planta Azul” - a primeira planta da cidade de Londrina
Fonte: BORTOLOTTI, 2007, p. 74.
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O nome Avenida Paraná designa o centro financeiro da cidade no final da década de 1930, onde eram negociados os lotes de terras da CTNP. Avenida São Paulo e Avenida Rio de Janeiro estão engenhosamente demarcadas, sendo duas vias urbanas que conduzem à Catedral, templo religioso de destaque, localizado no ponto mais alto da cidade, ou seja, em um local privilegiado. São Paulo, naquela época, já era um estado com forte influência no cenário político brasileiro, assim como o Rio de Janeiro que encerrava a capital do país; Paraná reforça, além do tom de homenagem, a imponência do estado, ao nomear a via pública mais importante de Londrina. A disposição desses nomes no mapa urbano londrinense nos possibilita afirmar que no processo de nomeação, determinados estados foram considerados mais importantes do que outros, identificando ruas e avenidas com maior prestígio dentro da cidade. Para Guimarães (2002, p. 47), “a nomeação de rua é sempre uma enunciação de outra enunciação anterior”; na enunciação em que se dão as nomeações das ruas e avenidas de Londrina, a enunciação toma e inclui as enunciações que, num momento anterior, nomearam os estados do Brasil. Nessa perspectiva, Guimarães (2002, p. 50) aponta que “um aspecto interessante do funcionamento semântico-enunciativo é que na cena enunciativa da nomeação das ruas um locutor-oficial está tomado por um memorável (enunciação de nomes de pessoas, datas, etc.)”. Nesta análise, poderíamos acrescentar que o locutor-oficial está tomado por um memorável de enunciação que nomeia logradouros em ruas e avenidas. Na cena enunciativa do acontecimento de nomeação das ruas de Londrina, há a astúcia da CTNP em agradar os seus clientes, pois todo o traçado inicial da cidade recebeu nomes de estados brasileiros, com o intuito de arquitetar um ambiente mais receptivo aos povos de diferentes regiões do Brasil que já se encontravam aqui ou que ainda iriam chegar. Houve, portanto, a tentativa de instaurar uma sensação de pertencimento nessas pessoas com relação a esse novo espaço urbano, dessa maneira, nessa nova cidade haveria um pouco de cada região do país. Ainda, nesta cena enunciativa, há, também, um Locutor-L (fonte do dizer) que se desdobra em locutor-x (locutor-oficial), este, autorizado pelo seu lugar social, o de funcionário da CTNP, enuncia nomes de estados brasileiros para identificar ruas e avenidas de Londrina, recortando como memorável um passado de enunciações desses nomes.
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Outro
aspecto
que
deve
ser
levado
em
consideração
é
o
administrativo/governamental. Na década de 1930, o Brasil possuía um governo nacionalista e autoritário – o Estado Novo de Getúlio Vargas – o que impossibilitava aos funcionários da CTNP homenagear personalidades britânicas, pois tal atitude não seria apreciada pelo governo nacional. Desse modo, a opção pelos estados brasileiros foi boa solução, revelando-se um mecanismo para fomentação da identidade nacional. Sobre o espaço da enunciação é importante salientar que ele é sempre regulado por uma língua oficial. No caso de nossa pesquisa, o corpus funciona em um espaço de enunciação em que a língua oficial é a língua portuguesa do Brasil. É interessante observarmos a maneira pela qual a enunciação que nomeia as ruas se relaciona com outras enunciações. As ruas com nomes de estados brasileiros remetem a um memorável de nacionalidade, de pertencimento à nação brasileira, de uma história nacional. Por outro lado, o nome “Londrina” – que significa “Pequena Londres” ou “Filha de Londres” – remonta a uma história local, na qual a colonização inglesa é exaltada. Logo, constatamos contradições entre o discurso oficial da época em prol de uma hegemonia nacional e o discurso regional, local, que busca a construção de uma identidade que se distancia dessa hegemonia. Considerações finais Esta análise permitiu a observação de sentidos que deram origem ao acontecimento da nomeação de ruas na cidade de Londrina, na década de 1930, durante o período histórico “Ciclo do Café”. Sentidos que foram constituindo a identidade londrinense e que foram construídos ao longo do processo histórico da ocupação de uma região que se tornou parte do Estado do Paraná. Desse modo, pudemos constatar que os enunciados designativos que nomeiam as ruas de Londrina se constituem nas relações enunciativas. Assim, a análise do memorável, a cada enunciação, recorta um passado que remete às histórias desse processo histórico, histórias que se enunciam e enunciam a/na própria história da formação do município de Londrina.
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Referências BORTOLOTTI, J. B. Planejar é preciso: memórias do planejamento urbano de Londrina. Londrina: Midiograf, 2007. COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DO PARANÁ. Colonização Desenvolvimento do Norte do Paraná. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, 1977.
e
DIAS, R. B. A história das placas: os nomes de ruas de Maringá (PR) e a memória histórica. História e ensino. Londrina, v. 1, n. 6, 2000. Disponível em .Acesso em 10 jul 2014. GOMES, A. M. Album do municipio de Londrina. Londrina: [s.n], 1938. Disponível em < http://www.4shared.com/postDownload/HmAb_qVy/Album_de_Londrina_1938. html> Acesso em 01 jun 2014. ______. Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação Campinas: Pontes, 2002. ______. Enunciação e política de línguas no Brasil. 06/ 2006. Revista Letras (UFSM). V. 27, p. 47-54, Santa Maria, RS, Brasil, 2006. OLIVEIRA, D. de. Urbanização e industrialização do Paraná. Curitiba: SEED, 2001. ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6ª ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. POZZOBON, Irineu. A epopéia do café no Paraná. Londrina: Grafmarke, 2006. RANCIÈRE, J. Os nomes da história: um ensaio da poética do saber. Trad. Eduardo Guimarães, Eni Orlandi. São Paulo: EDUC/Pontes, 1994.
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LETRAMENTO DE ALUNOS SURDOS: APRENDIZAGEM DA LÍNGUA PORTUGUESA COMO SEGUNDA LÍNGUA Jussara Linhares Granemann (UFMS) Raimunda Madalena Araujo Maeda (UFMS) Este artigo abordará algumas questões pertinentes ao letramento de alunos surdos no transcorrer do período de aprendizagem da Língua Portuguesa como segunda língua (L2). Fundamenta-se na precedência de que para a aprendizagem dessa nova língua ocorrer é necessário que esses alunos vivenciem mais que um simples agrupamento social inclusivo, mas, sobretudo, o acesso ao conhecimento, tanto da Língua Brasileira de Sinais – Libras (L1) quanto da Língua Portuguesa na modalidade escrita em contextos socialmente significativos, descrevendo sucintamente os diferentes estágios de interlíngua, em que utilizam-se de estruturas e regras conhecidas na primeira língua para conferir segurança na nova língua. A Língua Brasileira de Sinais e a aprendizagem da Língua Portuguesa como segunda língua A aprendizagem da língua escrita por alunos surdos em um enfoque bilíngue com base na Língua Brasileira de Sinais – Libras e a Língua Portuguesa permeia muitas pesquisas na Educação de Surdos no Brasil, uma vez que essa questão ainda encontra-se em construção pelos estudiosos e professores da área. Por conseguinte, esse processo transita entre a aprendizagem da Libras e da Língua Portuguesa na modalidade escrita, garantida pela oficialização da lei: Art. 1o É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados. Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil. (LEI FEDERAL, nº 10.436 de 2002)
Pereira analisa o uso das duas línguas no decorrer da escolarização do aluno surdo: A Língua Brasileira de Sinais tem, para as pessoas surdas, a mesma função que a Língua Portuguesa na modalidade oral tem para as ouvintes e é ela, portanto, que vai possibilitar às crianças surdas
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atingirem os objetivos propostos pela escola, incluindo o aprendizado da Língua Portuguesa na modalidade escrita. (PEREIRA, 2008, pg.22)
Fernandes, por sua vez, considera a importância da aprendizagem e a utilização em sua plenitude da língua, uma vez que somente dessa forma estaremos realmente oportunizando o acesso a essa língua: Apenas o domínio de uma língua adquirida em sua totalidade e fluência permite ao ser humano a captação dos signos, a produção de novos signos, da combinação entre signos e novos sentidos para os signos em jogo, não apenas no processo de comunicação como no processo cognitivo. Admitir tais recursos instrumentais em uma criança surda privada de língua de sinais, como sua primeira língua, e apenas aprendiz da Língua Portuguesa equivale a desconhecer os caminhos básicos da aquisição de uma língua e, consequentemente, privá-la do seu direito a ter a disposição os caminhos naturais a seu desenvolvimento. (FERNANDES, 2005, p.19) Assim, no período escolar a utilização da Libras servirá como entrada no mundo letrado da Língua Portuguesa na modalidade escrita, proporcionando a leitura dos sinais e das palavras. Quadros enfatiza a importância das duas línguas no ensino da leitura e escrita: O fato de passar a ter contato com a língua portuguesa trazendo conceitos adquiridos na sua própria língua possibilitará um processo muito mais significativo. A leitura e a escrita podem passar a ter outro significado social se as crianças surdas se apropriarem da leitura e da escrita de sinais, isso potencializará a aquisição da leitura e da escrita do português (QUADROS, 2005, p.33).
Portanto, somente a partir da utilização concomitante da língua de sinais e a da Língua Portuguesa enquanto L2 durante as aulas os alunos surdos poderão, efetivamente, produzir textos significativos e não apenas “amontoado” de palavras sem significados. É fundamental o trabalho com a leitura de textos com sentido e não como vocábulos isolados, pois, somente assim os alunos surdos assumirão papel ativo durante o processo de aprendizagem da leitura e escrita. Interlíngua O processo de interlíngua acontece com todos os aprendizes de uma segunda língua, por meio de simplificações, empréstimos, estruturação semânticas e sintáticas, até estabelecimentos dos seus novos conhecimentos, ou seja, utilizam estruturas e regras conhecidas na primeira língua para conferir segurança na segunda língua.
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Os usuários apoiam-se em uma interlíngua para consolidar os seus novos conhecimentos, isto é, se utilizam de estruturas e regras conhecidas na L1 para conferir segurança na nova língua. Chan-Vianna ressalta: A interlíngua se caracteriza pela variabilidade no uso de flexão verbal e nominal e em itens lexicais relacionados. Morfologia relacionada a concordância, número, gênero, caso, tempo, entre outras categorias, estão às vezes presentes, às vezes ausentes da produção dos aprendizes de L2, quando seriam obrigatórios para os falantes nativos. Quando estão presentes, podem não ser convergentes com a gramática alvo do falante nativo. (CHAN-VIANNA, 2006 p. 66)
Com os surdos, tal processo também ocorre no aprendizado da Língua Portuguesa na modalidade escrita como se fossem estrangeiros. Bentes enfatiza que: A interlíngua se manifesta quando um aluno está aprendendo uma língua estrangeira e faz simplificações, empréstimos e recriações semânticas e sintáticas, podendo ocorrer quando faz uma tradução literal. No caso, será considerado aqui como interlíngua o sistema intermediário utilizado pelos aprendizes surdos ao transferir e fazer interferências entre uma língua materna, no caso do surdo a Língua de Sinais, e uma língua de contato, a Língua Portuguesa, e vice-versa, constituindo formas sintáticas autônomas da qual o aluno se serve para alcançar seus objetivos comunicativos.Para este uso do termo, defende-se a aceitação da interlíngua na escrita do surdo, por ser, [sic] resultante do processo de aquisição da escrita por surdos, sendo um processo de aprendizagem relativa às características da surdez e resultante da influencia das línguas de contato de duas comunidades, com línguas distintas. (BENTES, 2007 p.01)
No caso dos alunos surdos, enquanto aprendizes da Língua Portuguesa como L2, esse processo de interlíngua também ocorre e Quadros e Schmiedt apud Brochado 2002 discorrem: A segunda língua apresentará vários estágios de interlíngua, isto é, no processo de aquisição do português, as crianças surdas apresentarão um sistema que não mais representa a primeira língua, mas ainda não representa a língua alvo. Apesar disso, esses estágios da interlíngua apresentam características de um sistema linguístico com regras próprias e vai em direção à segunda língua. A interlíngua não é caótica e desorganizada, mas apresenta sim hipóteses e regras que começam a delinear uma outra língua que já não é mais a primeira língua daquele que está no processo de aquisição da segunda língua. Na produção textual dos alunos surdos fluentes na língua de sinais, observa-se esse processo. (QUADROS E SCHMIEDT, 2006, p. 34)
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Em relação à produção escrita dos surdos, Brochado (2003) aponta quatro estágios no processo de interlíngua: a) Estágio de interlíngua I - a produção textual caracteriza-se especificamente pela estrutura linguística da Libras, com poucas interferências da Língua Portuguesa. b) Estágio de interlíngua II – a produção textual apresenta ora estrutura linguística da língua de sinais ora da Língua Portuguesa, é um estágio intermediário entre as duas línguas. c) Estágio de interlíngua III – a produção textual apresenta predominância da estrutura linguística da língua Portuguesa.
Letramento Giordani estabelece relações entre o uso das línguas, tanto de sinais quanto escrita enquanto fator social: Assim como a língua de sinais, a língua escrita é parte da linguagem, e como tal, o uso desta língua não é fruto de uma decisão individual, e sim é o resultado de uma determinação social, dada em uma comunidade. Dessa forma, entende-se letramentos como práticas socais de leitura e escrita, que ultrapassam os limites determinados pelas instituições escolares e que são, além dos aspectos da cultura, estruturas de poder. (GIORDANI, 2012, p.148-149)
E Soares expõe o termo letramento como: [...] letramento pode ser, estado ou condição de quem não só sabe ler e escrever, mas exerce as praticas sociais da leitura e escrita, que circulam na sociedade em que vivem, conjugando-as com as praticas sociais de interação oral. (SOARES,1999, p.86) Nesse sentido, letramento não pode ser entendido como mero ato de codificação e decifração de letras ou palavras, uma vez que seu alcance está muito além de um ato mecânico e sem significado social. Nesse sentido, a autora destaca que as práticas pedagógicas que envolvem o ensino da leitura e da escrita, em muitos casos, se utilizam de modelos de textos estabelecidos em livros de alfabetização e de listas de palavras decoradas para a produção dos textos. Assim:
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È natural que, ao escrever, os alunos tendam a obedecer a esses “modelos”; a isso os levam as próprias condições de produção de texto na escola: é comum pedir-lhes que escrevam a partir de um desenho e que usem as “palavras treinadas”. A consequência é que, em geral, todas as “composições” da turma sejam extremamente semelhantes, e, com os “textos” dos livros de iniciação à leitura, não passem de uma lista de orações sem unidade temática, sem coerência, sem coesão. (SOARES, 2004, p. 108)
Como resultado de tais práticas temos a simplificação das produções escritas dos alunos em meras reproduções de textos evasivos, não há participação efetiva dos alunos como produtores, pois os mesmos não se colocam como autores e sim apenas como reprodutores de uma situação muitas vezes totalmente descontextualizada de sua realidade. Com isso, há o empobrecimento textual e também a desmotivação para a escrita. Karnopp destaca que o processo de ensino da Língua Portuguesa deverá pautarse na realidade vivenciada dos alunos, porque esta terá significação na Libras, pois, do contrário, estará limitando as práticas de leitura e escrita dos alunos surdos: O ensino da Língua Portuguesa em geral apresenta-se desvinculado do conhecimento de mundo e do conhecimento linguístico dos alunos. Desconsidera-se a língua de sinais nas práticas de leitura e escrita, priorizando um tipo de leitura preso à gramática da Língua Portuguesa, tendo os sinais como apoio e limitando a tradução dos enunciados do português, ou seja, na escola, busca-se uma correspondência estreita entre a Língua Portuguesa e a língua de sinais, subordinando os sinais à estrutura sintática da Língua Portuguesa. Consequentemente, práticas de exercitação gramatical são impostas aos surdos sem considerar a diferença linguística e cultural dos mesmos. Predomina, na escola, a leitura do professor, desconsiderando as possibilidades de leitura dos alunos e desconsiderando a leitura como tradução. (KARNOPP, 2012, p. 170) A autora esclarece a importância do ambiente bilíngue no decorrer da aprendizagem, uma vez que a partir da vivência das duas línguas os alunos surdos poderão concatenar práticas efetivas de produção escrita e de leitura, ou seja: [...] enfatizamos a necessidade de análise das atitudes em relação ás línguas, ou seja, o status linguístico da língua de sinais e Língua Portuguesa no contexto escolar, a consideração das capacidades do bilíngue, ou melhor, as habilidades desenvolvidas com relação à língua estrangeira, os tipos de
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consciência em relação à linguagem e as práticas bilíngues. (KARNOPP, 2012, p. 170) Corroborando com as práticas bilíngues, que concebem o uso das duas línguas na educação dos alunos surdos, Quadros e Schmiedt expressam: Letramento nas crianças surdas, enquanto processo, faz sentido se significado por meio da língua de sinais brasileira, a língua usada na escola para aquisição das línguas, para aprender por meio dessa língua e para aprender sobre as línguas. A Língua Portuguesa, portanto, será segunda língua da criança surda sendo significada pela criança na sua forma escrita com as funções sociais representadas no contexto brasileiro. Nessa perspectiva, caracteriza-se aqui o contexto bilíngue da criança surda. (QUADROS E SCHMIEDT, 2006, p. 17)
Portanto, o contexto bilíngue compreende a co-existência de duas línguas, no caso dos alunos surdos a Libras e a Língua Portuguesa na modalidade escrita. Desse modo, é inaceitável que o ensino da leitura e escrita seja realizado sem a utilização das duas línguas e, também, decorrente de atividades significativas pautadas na relação com o meio social, ou seja, o uso da L1 e da L2 estão permeando todo o processo de letramento. Nesse contexto educacional, os alunos surdos começam a produzir textos com liberdade, partindo de suas vivências familiares, sociais e linguísticas, pois conseguem estabelecer relações entre as duas línguas que os envolvem. Para tanto, os professores necessitam da fluência na língua de sinais para efetivar a comunicação e também para o ensino dos conteúdos curriculares, de entender o surdo como um ser linguisticamente diferente e não como um deficiente, conhecer a realidade em que cada aluno está inserido, identificar o estágio de interlíngua em que seu aluno se encontra, proporcionar atividades de letramento e aplicação de recursos didáticometodológicos que venham de encontro com o ensino da Língua Portuguesa como segunda língua. Referências Bibliográficas BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10436.htm. Acesso em 04 Agosto. 2014. BROCHADO, S. M. D. A. A apropriação da escrita por crianças surdas usuárias da Língua de Sinais Brasileira. Tese de Doutorado. Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho. São Paulo: UNESP, 2003.
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MEMÓRIA DE AULA: UM OLHAR SOBRE OS MECANISMOS DE CONTROLE DO DISCURSO Jussara Regina de Souza Lisboa (UFG) Considerações preliminares Este trabalho conta com algumas noções da AD francesa, em especial aquelas que dizem respeito à sua terceira fase em que se encontram as contribuições do filósofo Michel Foucault, para discutir como se dão os mecanismos de controle do discurso do aluno bem como o fato de aparecer a determinação de uma inscrição do sujeito tanto no discurso como na história através dos enunciados presentes nas Memórias de aula (MA). Objetiva-se, então, discutir como as MAs materializam os mecanismos de controle do discurso do aluno direcionando-os à construção de uma determinada posição sujeito, ou seja, como essas produções de textos realizadas em sala de aula pelos alunos os controlam para que possam aderir ao discurso educacional dominante, contribuindo assim para a construção de uma determinada posição sujeito dentro dessas condições de produção. A hipótese que norteia essa investigação é a de que as MAs controlam, de uma maneira especial, os alunos para que possam aderir ao discurso educacional dominante, contribuindo, assim, para a construção de um determinado aluno de pedagogia, ou suja, há mecanismos de controle do discurso que determinam quem e como se pode entrar na ordem do discurso e qual posição é preciso assumir para entrar em tal ordem. Como suporte para a análise proposta, pretende-se contar com as contribuições de Foucault no que diz respeito a conceitos importantes que circulam no campo teórico da AD francesa com os quais o objeto de investigação ganha um olhar teórico específico. Entre as noções consideradas importantes estão as de discurso, enunciado, formação discursiva, contradição discursiva, sujeito e subjetividade; noções essas que orientam a investigação em termos de teoria, metodologia e análise. O artigo está organizado em partes, quais sejam: inicia-se com a discussão de algumas das noções mencionadas anteriormente às quais são mobilizadas sob a ótica de
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Michel Foucault que contribuem para a organização da investigação. Em seguida, pretende-se apontar através da análise uma MA os mecanismos de controle do discurso bem como a subjetivação na construção de uma determinada posição sujeito imposta pelo discurso dominante. Por fim, pretende-se tecer algumas considerações preliminares com o intuito de dar um fechamento relativo à proposta de análise deste artigo. Noções foucaultianas para a análise do discurso presente nas MAs Uma das noções mais importantes apresentadas por Foucault reside na definição que apresenta de discurso, a qual parte do pressuposto de que qualquer manifestação da língua em condições históricas e sociais implica em discurso. O discurso para o autor, segundo Fernandes (2012, p. 17), “é uma categoria fundante do sujeito, do saber, do poder, da verdade, da subjetividade.” Sendo assim, o discurso pensado na sua relação com o poder, o saber e a verdade formam subjetividades, ou seja, no contexto desta investigação, o discurso constitui e é constituído pelo sujeito dentro de uma rede de relações poder, saber, verdade. Segundo Foucault, em Arqueologia do saber, O discurso é constituído por um conjunto de sequências de signos, enquanto enunciados, isto é, enquanto lhes podemos atribuir modalidades particulares de existência. (...) conjunto de enunciados que se apóia em um mesmo sistema de formação (...)”. (FOUCAULT, 2007, p. 122)
Na proposta do autor, o discurso não é a língua e a sequência de signos que organiza, mas necessita deles para existir, sendo, portanto, um conjunto de enunciados
pertencentes ou não a campos diferentes, mas que obedecem às regras de formação desses enunciados. A noção de discurso proposta por Foucault é apropria Díaz para tratar do discurso pedagógico e do sujeito desse discurso. Segundo tal autor Não existe sujeito pedagógico fora do discurso pedagógico nem fora dos aspectos que definem suas posições nos significados. A existência de um sujeito pedagógico não está ligada a vontades ou individualidades autônomas e livremente fundadoras de suas práticas. O sujeito pedagógico está constituído, é formado pela ordem, pelas posições que esse discurso estabelece. O sujeito pedagógico é uma função do discurso no interior da escola e, contemporaneamente, no interior das agencias de controle. (DÍAZ, 1998, p. 15)
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Isso ajuda-nos a compreender que a noção de discurso de Foucault está diretamente relaciona à questão dos controles que permeia a formação de um discurso bem como de identidades dentro desses discursos. O discurso presente nas MAs produz e é produzido por sujeitos, ele determina certas escolhas, posicionamentos os queis são aceitos e exclui outros. Nessa linha de pensamento do filósofo, o enunciado (Foucault, 2007) não pode ser confundido com uma frase, uma proposição ou um ato de fala, embora possa se materializar em qualquer um deles. Além do mais, acrescenta que o que faz com que tanto uma frase, uma proposição, um ato de fala sejam considerados enunciados é justamente o fato de que é produzido por um sujeito que ocupa uma dada posição social e histórica o qual obedece a certas regras, também sociais e históricas que autorizam o dizer. Nas palavras do autor, Descrever o enunciado não significa isolar e caracterizar um segmento horizontal, mas definir as condições nas quais se realizou a função que deu a uma série de signos (...) uma existência, uma existência específica. Esta a faz aparecer não como um simples traço, mas como relação com um domínio de objetos, não como resultado de uma operação individual, mas como conjunto de posições possíveis para um sujeito; não como uma totalidade orgânica, autônoma, fechada em si e suscetível de – sozinha – formar sentido, mas como um elemento em um campo de coexistência; não como um acontecimento passageiro ou objeto inerte, mas como materialidade repetível. (FOUCAULT, 2007, p. 123)
O enunciado, de acordo com o exposto pelo filósofo, deve ser pensado como um
acontecimento discursivo, uma vez que em condições sociais e históricas dadas pode-se definir uma rede de relações que seguem a determinadas regras de formação que possibilitam certos feixes de relações e não outras em seu lugar. A esses feixes de relações que se mencionou, pode-se compreender que a existência de um enunciado está condicionada a um já dito e um jamais dito, isto se dá na medida em que todo enunciado apresenta suas “margens povoadas de outros enunciados” (FOUCAULT, 2007, p. 110), enunciados já ditos que voltam a fazer novas redes de relações e enunciados que ainda serão ditos a partir dessa rede de relações. Sendo assim, para Foucault, deve se considerar o discurso na sua emergência como determinado por condições sociais e históricas. O discurso deve, então, ser tomando como dispersão na medida em que é atravessado por discursos outros que, de
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certa forma, alteram seu modo de existência. Assim, os enunciados presentes nas MAs são indícios de que o discurso é atravessado por outros discursos os quais aparecem em forma de contradição discursiva, indício de que o discurso do aluno é controlado. Além do mais, tal controle se dá em relação às condições sócio-históricas que possibilitam sua existência. Ainda, segundo o autor, o discurso só tem existência, porque está submetido a regras de formação, isto é, à formação discursiva. A noção de formação discursiva, dentro do quadro teórico da AD francesa sofreu algumas transformações entre as quais se destaca justamente as contribuições de Foucault para delinear tal conceito. Segundo o autor, parte-se do pressuposto de que uma formação discursiva não pode ser tomada como algo estanque, fechada em si mesma, cuja estrutura não permitiria perturbações. Pelo contrário, para ele, a formação discursiva é atravessada por outros discursos os quais podem garanti-la, contradizê-la, rejeitá-la. Sendo assim, No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhantes sistemas de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (...) diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva. (Foucault, 2007, p. 43)
Sendo assim, as regras de formação de um discurso estão relacionadas às condições que possibilitam a existência de tal discurso, às regras de formação de dado discurso, ao fato de se poder dizer algo em dada época em não dizê-lo em outra. O
discurso, portanto, é constituído por um conjunto de enunciados apoiados e formações discursivas que são organizadas por um mesmo conjunto de regras (FOUCAULT, 2007). Essas noções são importantes quando se pensa o controle do discurso do aluno como algo determinado pelo discurso dominante que circula na escola, discurso esse cuja formação está condicionada a regras as quais o sujeito, para entrar na ordem do discurso (FOUCAULT, 2008), precisa se submeter. Tomando por base os estudos de Díaz sobre o discurso do professor, podemos dizer que aquilo que ele diz sobre o professor também se aplica ao aluno, pois, segundo ele, discurso do professor não constitui um projeto deliberado de um falante autônomo a partir de uma intenção comunicativa (...) é assumido a partir de uma ordem, a partir de um sistema de produção do discurso, a partir de princípios de controle, seleção e exclusão que
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atuam sobre suas (re)produções de significados e sobre suas práticas especificas. (Díaz, 1998, p. 15).
Do ponto de vista desse autor o professor é um sujeito pedagógico cujo discurso é regulado a partir de uma dada ordem, o aluno que produz MAs também está
submetido a essa ordem, ele também é um sujeito pedagógico, na medida em que “é constituído, é formado e regulado, no discurso pedagógico, pela ordem, pelas posições e diferenças que esse discurso estabelece” (Díaz, 1998, p. 15). Acrescenta-se a essa discussão as considerações de Sommer sobre “A ordem do discurso escolar”, segundo ele, “as práticas discursivas da escola obedecem a um ordenamento prévio, que os enunciados obedecem a regras de formação específicas, que alguns ditos são sancionados e outros interditados” (SOMMER, 2005, p. 04). Então, o discurso dos alunos nas MAs está submetido a um ordenamento prévio que define que posição podem ocupar e que discurso devem mobilizar. Essas noções apresentadas anteriormente, em especial a de discurso e formação discursiva, contribuem para que se possa entender porque o aluno adere a determinados discursos e não outro em seu lugar. Além do mais, se é possível evidenciar o discurso ao qual se chama de dominante, por não haver um termo mais adequado no momento, nas MAs do alunos, é possível, ainda, evidenciar os atravessamentos de outros discursos que evidenciam que o discurso do aluno está sendo controlado. Neste sentido, o conceito de contradição discursiva de Foucault ganha relevância por ser um indício forte de que o aluno submete-se à ordem do discurso dominante. Ainda em Arqueologia do saber, o autor, quando define discurso como sendo marcado por enunciados que vem de diversos lugares, que o antecede e o sucede, ele ressalta a existência da contradição como constitutiva do discurso e como princípio de sua existência. A contradição “é a ilusão de uma unidade que se oculta ou que é ocultada” (FOUCAULT, 2007, p.170), ou seja, tem-se a ilusão necessária de fechamento da formação discursiva que é perturbada pela contradição. E acrescenta que Tal contradição longe de ser aparência ou acidente do discurso, longe de ser aquilo de que é preciso libertá-lo para que ele libere, enfim, sua verdade aberta, constitui a própria lei de sua existência: é a partir dela que ele emerge; é ao mesmo tempo para traduzi-la e superá-la que ele se põe a falar, é para fugir dela, enquanto ela renasce sem cessar através Del, que ele continua e recomeça indefinidademente, é por ela está sempre aquém dele e por ele jamais poder contorná-la
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inteiramente que ele muda, se metamorfoseia, escapa de si em sua própria continuidade. (FOUCAULT, 2007, p. 170)
Essa citação ratifica a idéia de que a contradição não é um acidente, ela é
necessária para que os discursos se transformem, permaneçam, surjam outros. Para essa investigação ela assume um papel importante visto que se torna o indício do controle ao qual o discurso do aluno é submetido na pratica de escrita das MAs em sala de aula. Segundo Foucault (2007), há dois tipos de contradição: as extrínsecas e as intrínsecas. A primeira diz respeito a duas formas de tratar, por exemplo, o mesmo objeto, estando, portanto, em duas formações discursivas diferentes, em razão disso contraditórias, no que diz respeito ao tratamento dado a tal objeto. Foucault considera a existência dessa contradição extrínseca, porém não a toma como objeto de investigação. Para o autor, o que interessa é contradição que aparece dentro de uma mesma formação discursiva perturbando sua ordenação, seu aparente fechamento. Segundo o autor as contradições intrínsecas são As que se desenrolam na própria formação discursiva e que, nascidas em um ponto do sistema de formação, fazem surgir subsistemas (...). A oposição aqui não é terminal: não sai proposições contraditórias a propósito do mesmo objeto, nem duas utilizações incompatíveis do mesmo conceito, mas duas maneiras de formar enunciados, caracterizados uns e outros por certos objetos, certas posições de subjetividade, certos conceitos e certas escolhas estratégicas. (FOUCAULT, 2007, p. 173)
Essa contradição e importante nesta investigação na medida em que se observa que o aluno está, inevitavelmente, sobre o controle de dado discurso, neste caso o que se chama-se de dominante nesta investigação. A contradição que aparece no discurso que o aluno toma como seu é indícios de que o discurso do aluno é controlado e ele, aceitando fazer parte da ordem de tal discurso, não tem controle do seu dizer na media em que a não controla os efeitos de sentido de seu dizer. O aluno, nesta perspectiva, é tomado como posição sujeito (FOUCAULT, 2007, p. 107). Não se trata de considerar o sujeito como a fonte ou a origem do dizer, tampouco tomá-lo como sendo a pessoa física ou o indivíduo, mas como uma “posição vazia” (idem) que pode ser ocupada por indivíduos diferentes. Segundo Foucault, “seria absurdo negar a existência do indivíduo” (FOUCAULT, 2008, p. 28), mas devem ser consideradas as posições que o sujeito assume no fio do discurso para pertencer à “ordem do discurso” (FOUCAULT, 2008).
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As instituições de ensino superior, sejam elas privadas ou públicas, estão autorizadas pelo regime de poder, saber, verdade a determinar condutas, disseminar verdades. Esse poder que a escola assume a autoriza a produzir determinados saberes que por fim produzem “efeitos de poder”, ambos autorizam a verdade, isto é, são procedimentos interligados que autorizam em uma dada conjuntura que uma verdade seja estabelecida e não outra em seu lugar. Sendo assim, através dos mecanismos de saber e poder presentes na instituição escolar, certos discursos são autorizados dentro de tal instituição ao passo que outros são automaticamente recusados. Assim como em outras instâncias, o discurso presente na instituição escolar é controlado, tal controle se dá em razão da “ordem do discurso” (FOUCAULT, 2008), a qual atua sobre o discurso determinado qual posição o sujeito precisa ocupar para fazer parte de tal ordem, como ele pode enunciar daquele discurso, o que ele pode dizer; tudo isso, considerando que há condições sociais e históricas específicas em que o discurso é produzido. E justamente nessa ordem que se estabelece na escola que se procura analisar a contradição discursiva como indício do controle do discurso do aluno bem como indício, também, de que o discurso dominante cria uma posição sujeito para os alunos de pedagogia do segundo semestre. Neste sentido, torna-se importante uma reflexão sobre como se dá construção da posição sujeito através do discurso das MAs. A construção da posição sujeito no discurso das MAs é controlada e determinada na medida em que se espera que o indivíduo assuma a posição determinada pela formação discursiva dominante no contexto dessas produções textuais. Isso implica dizer que o discurso dominante atua sobre o sujeito produzindo sua subjetividade. Considerando-se que a subjetivação é constitutiva do sujeito, diferentes modos de subjetivação produziram, também, diferentes sujeitos. Partido desse pressuposto, considera-se que as MAs trazem enunciados que, inscritos nas relações de poder que o determinam, aponta (m) e determinada (m) posição (ões) sujeito as quais devem ser assumidas pelo indivíduo. Cabe, portanto, observar como a construção dessa subjetividade se dá através das MAs. MAs e controle do discurso: indícios de contradição e de determinação da posição sujeito
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Parte-se dos pressupostos da AD francesa e, em especial, dos estudos do filósofo Michel Foucault os quais concebem, portanto, o discurso como uma prática sóciohistórica, sendo assim, a escola é tomada como lugar onde os enunciados se materializam das mais variadas formas entre as quais destacamos as MAs através das quais os sentidos são construídos. A escola, ou a instituição de ensino superior, é o espaço de conflitos, confrontos, de produção e de circulação de efeitos de sentido e, portanto, um mecanismo importante de construção de posições sujeito e de discursos contraditórios. Segundo o próprio Foucault, “o que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação e uma fixação de papéis para os sujeitos que falam, (...) senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes.” (FOUCAULT, 2008, p.44-5) A escola, como instituição reconhecida socialmente e autorizada produzir verdades que se apóiam em redes de saber-poder, através de seu discurso, produz sujeitos. Sendo assim, a partir da análise de uma MA que faz parte do corpus de pesquisa do doutorado, verificar-se-á, então, como se da o controle do discurso dos alunos para que possam aderir ao discurso educacional dominante, contribuindo assim para a construção de um determinado aluno de pedagogia. A MA seguinte foi produzida em uma das aulas nas quais se discutiam as tendências pedagógicas na prática escolar1, como se vê a seguir. 1
As tendências pedagógicas foram abordadas em sala de aula sob a perspectiva de José Carlos Libâneo. Na ocasião foi trabalho o texto “Tendências pedagógicas na prática escolar” presente no livro “Filosofia da educação”, publicado no ano de 2012, por Cipriano Carlos Luckesi. Segundo os autores a prática escolar é perpassada por duas grandes tendências, quais sejam: Liberal e progressista. Ambas implicam em posicionamentos diferentes no ambiente escolar tanto para professor quanto para aluno, além de apresentarem perspectivas bastante diferentes, também, no que diz respeito aos conteúdos e métodos de ensino, ao papel da escola e etc. Em síntese, observa-se que a tendência liberal acentua o caráter passivo do aluno, autoritário do professor, centralizador do conhecimento disseminado em sala uma vez que se toma como verdade somente o que a escola ensina. Já a tendência progressista caminha na “contramão” na medida em que prega a valorização do aluno como sujeito crítico, ativo, como um sujeito que já possui conhecimento, capaz de produzir conhecimento. O professor deixa de ser visto como dono da verdade, autoritário e começa a ser tomado como o mediador do conhecimento, mediando, portanto, o aluno tem com ao conhecimento institucional. Neste contexto de discussão teórica, o discurso dominante na escola gira em torno da segunda tendência, uma vez que os currículos institucionais bem como as leis de regulamentação da educação apóiam essa perspectiva. Sendo assim, quando se fala em discurso dominante na escola, fala-se justamente em posicionamentos que os sujeitos a essa instituição relacionados devem adotar para fazerem parte dessa ordem.
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A aluna começa sua produção com o título “A tendência liberal tradicional” o que nos remete à idéia de que ela discorrerá sobre tal tendência construídos posicionamentos giram em torno de ser a favor ou contra tal tendência, uma vez que a MA tem como finalidade que o aluno posicione-se criticamente acerca da discussão teóricas apresentas em sala. Em seguida a aluna começa sua fala mobilizando a fala do autor com o qual dialoga, uma forma de manter coerência com o título que apresenta, em “são conhecimentos e valores sociais acumulados pelas gerações adultas e repassados ao aluno como verdades (...)”. Tal enunciado diz respeito aos conteúdos de ensino da tendência mencionada pela aluna, que faz parte da tendência liberal, e a forma como tais conteúdos são trabalhos sob essa ótica. Logo em seguida a aluna tenta cumprir a tarefa exigida pela atividade de se posicionar criticamente quando diz “eu como futura pedagoga viverei nessa situação”. A aluna, portanto, começa sua MA posicionado-se, de certa forma, em oposição ao discurso dominante que considera a tendência tradicional uma tendência que deve ser superada na prática escolar, uma vez que a ordem do momento obriga que os sujeitos se enquadrem na perspectiva progressista, a verdade instituída nessas condições de produção de sala de aula.
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No entanto, observa-se que a fala da aluna segue outros rumos justamente quando ela deveria defender seu ponto de vista acerca da proposta que apresenta. O enunciado “eu como futura pedagoga viverei nessa situação” que, de acordo com a lógica apresentada pela aluna no início de sua MA, apontaria para a defesa de uma tendência a qual não é mais permitida na ordem do discurso escolar, o que configuraria uma forma de resistência à adesão ao discurso dominante, produz outros efeitos de sentido. O discurso que a aluna mobiliza para justificar seu posicionamento é o discurso dominante, uma vez que diz que viverá nessa situação, qual seja, “dando espaço e abertura aos alunos para que eles possam se dirigir e tirar dúvidas, não serei as avaliações na base do decoreba de acúmulos de conhecimento, vou também considerar o conhecimento tracido de casa, porque nem todos os alunos pensam igual (...)”. O referente “nesse situação que deveria exercer no discurso a função de anafórico, assume a função de catafórico. O que se observa é a imposição de um discurso com o qual o aluno não se identifica, mas para fazer parte dessa ordem acaba assimilando-o para si. A posição sujeito assumida pela aluna sofre modificações na MA, pois se observa uma posição sujeito inicial a qual é modificada por outra posição sujeito na medida em que mobiliza enunciados vindos de outra formação discursiva, discurso tradicionalista. Então, pode-se diz que esse mesmo sujeito que se mostra assujeitado ao discurso dominante muda de posição ao longo do discurso uma vez que seu discurso é controlado para que faça parte de determinada formação discursiva. Observam-se indícios de que há, portanto, a construção de outra posição sujeito que contradiz a primeira. A fala da aluna, citada em destaque anteriormente, compreendida como materialidade discursiva, revela que a ordem do discurso institucional, discurso progressista, o qual é social e exterior ao sujeito atua sobre o sujeito produzindo uma posição sujeito determinada a qual tal aluna deve aderir e a qual determina certos posicionamentos aceitos na atualidade. Se a aluna quer ser professora, ela precisa adotar posicionamentos para ocupar a posição sujeito professor progressista, posição esta que o discurso escolar dominante determina como sendo a mais adequada às condições sociais, políticas e históricas nas quais esses sujeitos se encontram, ou seja,
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“cada um faz não o que quer, mas aquilo que pode, aquilo que lhe cabe na posição de sujeito que ele ocupa numa determinada sociedade.” (MILANEZ, 2004, p. 183) O que a princípio parecia uma tomada de posição da aluna em oposição ao discurso dominante na medida em que se mobilizou enunciados que não faziam parte da formação discursiva dominante na escola, se configurou como uma contradição, pois o sujeito passou a assumir um discurso outro que atravessou a formação discursiva dominante. Isso significa que o exterior, o social e o histórico passaram a determinar a posição que a aluna deveria adotar e o discurso o qual deveria privilegiar; assim, dentro dessas condições, o discurso dominante passou a ser tomado como verdade pela aluna. Voltando, ainda, ao enunciado da aluna “eu como futura pedagoga viverei nessa situação”. Bem como ao que o sucede “dando espaço e abertura aos alunos para que eles possam se dirigir e tirar dúvidas, não serei as avaliações na base do decoreba de acúmulos de conhecimento, vou também considerar o conhecimento tracido de casa, porque nem todos os alunos pensam igual (...)”, observa-se que a aluna se marca linguisticamente e discursivamente como sujeito do discurso, assumindo-se enunciadora em primeira pessoa, “eu” enfatizando sua posição como forma de evidenciar seu compromisso com a futura pedagoga, professora, que pretende ser dentro desse discurso institucional. Nota-se que para marcar a posição sujeito que assume dentro do discurso dominante, a aluna enuncia de acordo com os valores, verdades que considera pertencerem a esse discurso como se vê em “vou também considerar o conhecimento tracido de casa, porque nem todos os alunos pensam igual (...) e exclui outra posição professor que tal discurso dominante rejeita com se vê em “não serei as avaliações na base do decoreba de acúmulos de conhecimento”. O esforça da aluna em faz parte dessa ordem do discurso dominante permanece em grade parte de sua MA, porém a tentativa de controlar a coerência do seu discurso é quebrada pela contradição discursiva, na medida em que se parte do pressuposto de que o sujeito não tem controle sobre os efeitos de sentido do que diz, além do mais, como dispersão, sujeito e discurso são atravessados por discursos outros que surgem no interior da formação discursiva para abalar ou para retirar-lhe o efeito de fechamento, de completude. Isso pode ser observado no enunciado “que o dever do professor é prepara
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o aluno para a vida adulta da aluno”. Ora, esse enunciado produz efeitos de sentido diferentes do que a aluna propunha de acordo com a posição sujeito professor que ela assumiu. Dissemos que para fazer parte da ordem do discurso dominante na escola a aluna assumiu a posição de professor mediador, que reconhece o sujeito como alguém que apresenta conhecimento, crítico na medida em que pode relacionar o que já sabe como o novo que escola apresenta, enfim, um professor progressista tal como o discurso dominante determina segundo os enunciados da aluna. Porém, com o enunciado destacado anteriormente, o que se observa é a inscrição dessa aluna em outra posição sujeito professor e, consequentemente, em outra formação discursiva diferente da primeira por ela assumida. Dentro da primeira posição sujeito o professor é mediador a cabe ao aluno construir-se a si mesmo para ocupar seu lugar na sociedade, nesta segunda posição o professor é o responsável pela construção desse aluno, ou seja, contradiz-se uma posição professor progressista cujo papel é o de auxiliar o aluno sujeito crítico e ativo, com a inserção no discurso de uma posição professor liberal cujo papel é o de determinar os rumos que o aluno sujeito passivo, condicionado, acrítico deve tomar para fazer parte da sociedade. Essa contradição discursiva ainda é reforçada quando a aluna enuncia “o aluno sabe porque precisa buscar a escola para enriquecer seus conhecimentos e ser alguém na vida”, ou seja, instaura-se no fio discursivo uma contradição, pois a escola na perspectiva do discurso dominante é o lugar da mediação, da transformação, da reflexão, da possibilidade de mudança de posição social, já no discurso contraditório ela é a única possibilidade de salvação para o aluno. O que se observa através da MA dessa aluna é que há uma posição sujeito privilegiada pelo discurso dominante e que a aluna tenta assumir para si essa posição como forma de ser aceita nessa ordem que lhe impõe determinados posicionamentos e que, por conseguinte, determina que a aluna diga determinadas coisas e outras não. Embora sua MA apresente duas posições sujeitos diferentes e uma delas apareça para desestabilizar o domínio da outra, deve-se salientar que ambas as posições assumidas pela aluna são de professor. Tal aluna fala como se fosse professora e isso é bastante interessante quando se pensa que tipo de sujeito essas condições de produção da MA está produzindo.
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Essa posição ocupada pela aluna é um indício forte de que o discurso dominante na instituição ó o de formação de professores, uma vez que parece ser essa a única possibilidade para o aluno de pedagogia. A posição sujeito professor que a aluna assume no primeiro momento (progressista) a coloca em uma condição de considerar-se capaz de controlar seu discurso uma vez que demonstra ter compreendido as regras para fazer parte dele, porém a segunda posição professor (liberal) contraditória, instaurada dentro da mesma formação discursiva dominante a impossibilidade de se controlar seu próprio discurso em razão dos muitos discursos que o atravessa. Para concluir, ainda pode ser feita uma indagação: Por que a aluna assume a posição sujeito professor? Uma possibilidade já foi aponta no parágrafo anterior, mas, além desse, há uma outra que está relaciona aos mecanismos de controle do discurso, a de que algumas sujeitos têm o privilégio da fala (FOUCAULT, 2008) em determinados discurso. A aluna quer fazer parte dessa ordem dominante e para isso ela recorre à posição sujeito professor, porque nessas condições de produção o professor é quem tem certa autoridade para dizer, sendo, portanto, uma posição autorizada pela formação discursiva à medida que essa posição dá ao sujeito um espécie de reconhecimento de sua voz como verdadeira dentro dessa relação de poder e de saber. Considerações finais O que se observa é que o discurso do aluno dentro das condições de produção de sala de aula por meio da MA é controlado de modo que o aluno se vê obrigado a fazer parte, a aderir ao discurso dominante, mesmo que sua formação discursiva apresente discursos vindos de outras lugares que se contrapõem ao que está sendo imposto. Embora o discurso escolar defenda que é preciso fazer sujeitos críticos capazes de se constituírem como tal, o que se observa é. Ainda, a tentativa de imposição de uma função sujeito ao aluno de pedagogia. Os indícios apontam para o fato de que a única, ou a mais provável, posição que o aluno de pedagogia deve adotar é a de futuro professor mediador, não sendo possível, inclusive, ser outra coisa a não ser professor. Os indícios apresentados na MA da aluna apontam, portanto, para a existência de práticas de subjetivação fortes de em função da posição sujeito professor que deve ser ocupada por alunos de pedagogia.
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O USO DESGARRADO DE CLÁUSULAS HIPOTÁTICAS CIRCUNSTANCIAIS NO PORTUGUÊS Karine Oliveira Bastos (UFRJ) Orientadora: Profª Drª Mônica Maria Rio Nobre (UFRJ) Coorientadora: Profª Drª Violeta Virginia Rodrigues (UFRJ)
Este trabalho é fruto de uma inquietação típica de professores de língua materna quando se deparam com certos usos linguísticos nos textos produzidos por seus alunos. Muitas vezes, não sabemos como agir diante, por exemplo, de algumas construções sintáticas que – muito embora pareçam fazer todo o sentido dentro do discurso em que estão inseridas – não se explicam pelas regras prescritas pela tradição gramatical. Assim, a presente pesquisa busca investigar o uso de uma construção sintática cada vez mais recorrente na modalidade escrita do Português Brasileiro (doravante PB), seja em textos produzidos no âmbito escolar, seja em textos pertencentes ao próprio domínio jornalístico. Estamos nos referindo a um tipo de oração que, apesar de guardar em si algumas marcas formais e funcionais típicas da subordinação adverbial, não está submetida à realização padrão de um período composto por subordinação, qual seja: oração principal + oração subordinada. Ao contrário disso, tal construção não acompanha uma oração principal, presumida dentro do período composto por subordinação, mas se manifesta isolada por meio da pontuação terminativa – geralmente, o ponto final e, em alguns casos, o ponto e vírgula e as reticências –, tal como podemos observar a seguir: (1)
Senhor deputado Bolsonaro, essa reportagem só tem a mostrar, que existiu e continua existindo preconceitos. Por mais que a sociedade tenta dizer que não. Pessoas como o senhor deputado Bolsonaro, tem ajudado muito com o crescimento da violencia contra negros, religiosos mendigos, homosexuais, nordestinos etc. O exemplo (1) foi extraído de um texto produzido no âmbito escolar em junho de 2012, com base no seguinte tema previamente discutido em aula: “Sociedade, preconceito e mobilização social”. A autora do texto é uma estudante de Ensino Médio da modalidade de Educação de Jovens e Adultos (doravante EJA) e parece enfatizar, na
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oração destacada em negrito, as contradições vividas por uma sociedade no combate ao preconceito. No entanto, considerando o papel de normatização dos usos linguísticos desempenhado pela escola, é possível supor que tal exemplo seja alvo de correção por não obedecer às regras prescritas pela Gramática Tradicional (doravante GT). Podemos dizer o mesmo quanto ao exemplo que compõe o título do presente trabalho – extraído também das produções textuais da EJA e que, além de tudo, define bem este público de estudantes: (2)
Atualmente, as mulheres conquistaram seu espaço. Trabalhando fora, estudando e cuidando da família. Muitas vezes, elas exercem as mesmas funções de trabalho do homem. Essas construções sintáticas já têm despertado, há algum tempo, o interesse de alguns estudiosos funcionalistas. Encontramos, nos trabalhos de Decat (1993, 1999, 2001a, 2001b, 2002, 2004, 2008a, 2008b, 2009a, 2009b, 2010, 2011), reflexões bastante valiosas para o nosso estudo. Além de tratar amplamente da articulação de cláusulas1 no âmbito da hipotaxe adverbial, a linguista discute o fenômeno desgarramento2 sob diversos aspectos. As “estruturas desgarradas”, segundo Decat (2011, p. 15), “tidas como subordinadas e dependentes pela Gramática Tradicional, vêm ocorrendo, tanto no português escrito quanto no falado, de forma solta, isolada, como um enunciado independente”. Assim, a partir das noções de “unidade informacional” (cf. Chafe, 1980) e de “proposição relacional”, a autora desenvolve estudos que investigam o desgarramento tanto em cláusulas adjetivas quanto em adverbiais, até mesmo o desgarramento de sintagmas nominais. Desse modo, com base nas considerações apresentadas por Camara Jr. (1978) sobre a impossibilidade de a subordinação – diferente da coordenação – ocorrer em períodos distintos e no fato de a GT apresentar uma resistência maior quanto à fragmentação da subordinação, nos motivamos a investigar o fenômeno desgarramento no âmbito da hipotaxe. Além disso, como acreditamos que tal fenômeno possa desempenhar um papel importante no discurso em que se insere, optamos por nos concentrar nas cláusulas hipotáticas circunstanciais
desgarradas, até porque
1
O termo cláusula, tradução de clause em inglês, tem sido usado, de um modo geral, pelo Funcionalismo para se referir à oração. 2 Instituído por Decat (1999), o rótulo desgarramento também é usado por nós ao longo deste trabalho.
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identificamos uma presença significativa deste caso no corpus em análise – especialmente, em sequências argumentativas. Isso posto, destacamos nossa intenção de estreitar o diálogo com o ensino de língua materna, uma vez que a pesquisa tenha se iniciado – mesmo que informalmente – na própria escola. Consequentemente, a escolha do corpus deste trabalho não poderia ser outra senão a produção textual escrita de estudantes da Educação Básica de Ensino. Nesse caso, optamos pela produção textual escrita de estudantes da modalidade de Educação de Jovens e Adultos. Em turmas de EJA, se soma o fato de o letramento social3 ser mais evidente do que, de uma forma geral, se espera no ensino regular. Assim, quanto à observação das cláusulas hipotáticas circunstanciais na EJA, se espera menos influência do letramento escolar, e, portanto, das classificações impostas pela Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB). Do mesmo modo, se espera uma liberdade maior por parte desses estudantes para refletir acerca das relações existentes – de fato – entre as cláusulas, acerca dos fatores que levam à manifestação do desgarramento.
As contribuições do Funcionalismo para o estudo de combinação de cláusulas A sintaxe do período composto não encontra um tratamento dado pela GT – e pelo ensino de língua materna – que, de fato, se aproprie do real funcionamento da língua, em especial, no que se refere aos mecanismos de articulação de orações. A análise tradicional, como sabemos, se restringe ao nível da sentença, de modo que se estagna na dicotomia coordenação versus subordinação, além de não discutir amplamente a noção de dependência. É exatamente por isso que compreender o fenômeno desgarramento de cláusulas, não contemplado pela tradição gramatical, nos exige maior aproximação com uma teoria que proponha a inter-relação entre a configuração formal das cláusulas e o papel que elas exercem no discurso. Decat (1993), ao tratar da articulação das cláusulas adverbiais presentes no português em uso, discute as questões que envolvem a dicotomia coordenação versus subordinação oferecida pela GT. A autora aponta que não há consenso entre os gramáticos na tarefa de estabelecer tal distinção, justamente porque permanecem na 3
O termo letramento social é usado com o objetivo de manter uma distinção entre este e o letramento que ocorre no contexto escolar. Entende-se, no entanto, que a prática ocorrida na escola também está inserida no contexto social.
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circularidade das definições na medida em que se sustentam na noção de dependência: ora formal, sintática, gramatical, ora semântica. No que se refere ao critério da dependência semântica, para se alcançar tal distinção, a autora lista alguns problemas, dentre os quais dois nos chamam mais atenção, justamente por nos conduzirem à existência de cláusulas desgarradas: a impossibilidade de se sustentar que (a) a subordinada não pode constituir por si só um “enunciado” e que (b) a oração principal sempre carrega a informação mais importante. Quanto ao critério da dependência formal, Decat (1993) menciona o equívoco de a tradição gramatical atrelar as definições das orações subordinadas necessariamente à presença de uma marca formal (conectivo). Para ilustrar tal equívoco, faz referência ao gramático Góis (1955), que dera o nome de “anomalia gramatical” para as orações subordinadas que ocorriam, segundo seu ponto de vista, sem a principal. Por fim, no que se refere ao critério da dependência sintática, Decat (1993) destaca as noções de nuclearidade e periferia para tratar do grau de incorporação da oração subordinada na principal, de modo que critica o fato de as subordinadas serem indiscriminadamente consideradas a porção acessória do período. Todas essas reflexões, certamente, se mostram bastante valiosas no sentido de assumirmos que, para que o fenômeno desgarramento seja estudado, é preciso rever inevitavelmente os critérios que insistem manter na tradição gramatical a coordenação e a subordinação como únicos processos de articulação de orações.
Caracterização das cláusulas hipotáticas circunstanciais desgarradas Como foi dito, a motivação desta pesquisa – inserida em um projeto de Mestrado – surgiu na própria sala de aula, a partir da observação da produção escrita de estudantes de Educação de Jovens e Adultos. O uso recorrente de orações – classificadas pela GT como subordinadas adverbiais – “isoladas” no texto pela marca de uma pontuação terminativa na escrita, ao despertar a atenção de alguns professores, deu origem à composição do corpus da presente pesquisa. Para isso, no decorrer do estudo, foram analisados 825 textos referentes ao trabalho de produção textual realizado entre agosto de 2010 e dezembro de 2012 em quatro turmas de Ensino Médio do curso da EJA. Para além da consideração dos gêneros textuais trabalhados em sala de aula, privilegiou-se um olhar mais atento para as sequências tipológicas nas quais o discurso se insere. Nesse contexto, assumimos como hipótese que a ocorrência de cláusulas
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hipotáticas circunstanciais desgarradas seja maior na sequência argumentativa, de modo que uma ideia registrada neste tipo de cláusula possa ser usada, em certa medida, no sentido de fazer acréscimos ou propor contrapontos e, portanto, enriquecer a argumentação. Ao longo desse tempo, todos os textos produzidos por 105 estudantes foram analisados e, do total de 825 produções, foram encontradas 113 cláusulas hipotáticas circunstanciais denominas desgarradas. Como critério definidor do fenômeno desgarramento de cláusulas, na linha de Decat (1999, 2001a, 2001b, 2004, 2008a, 2008b, 2009a, 2009b), foram consideradas a pontuação terminativa – geralmente, o ponto final e, em alguns casos, o ponto e vírgula e as reticências – bem como a noção de unidade informacional postulada por Chafe (1980). Desse modo, plenas ou reduzidas, encabeçadas ou não por conectivos, foram selecionadas todas as cláusulas hipotáticas circunstanciais desgarradas que apresentassem um conteúdo semântico, a fim de que pudéssemos buscar explicações gerais e específicas para o seu funcionamento na modalidade escrita do português em uso. Quanto à hipotaxe circunstancial, encontrada em maior número no corpus em análise, objetivamos, num primeiro momento, traçar um panorama das relações de sentido que emergiam das cláusulas desgarradas. No entanto, como já esperávamos, as classificações determinadas pela GT não dão conta de abarcar um número significativo de cláusulas encontradas neste corpus. Do mesmo modo, notamos a necessidade de atrelar as diferentes relações ao próprio fenômeno desgarramento – igualmente ignorado pela GT. Assim, foi possível alcançar a categorização de quatro macrorrelações4, a saber: causalidade, contrastividade, modo e intensificação. A seguir, apresentamos um exemplo de cláusula desgarrada para cada uma dessas categorias. Nesta seleção, todos os dados foram submetidos à atividade de retextualização e ao teste de atitude, de modo que é possível fazermos – além das relações semânticas – o reconhecimento auditivo da pausa referente ao contorno entonacional da cláusula destacada5. Assim, o reconhecimento auditivo, somado às 4
Usamos o termo macrorrelações para marcar nosso primeiro olhar para as relações que emergem entre as cláusulas. No trabalho completo da pesquisa de Mestrado, estão presentes os desdobramentos de cada macrorrelação. 5
A atividade de retextualização, como já dissemos, consiste na leitura em voz alta do texto pelo próprio aluno que o produziu. O reconhecimento auditivo da pausa, por sua vez, será registrado por meio da “seta para baixo” ( ), indicando o contorno entonacional da cláusula desgarrada.
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justificativas dadas pelos estudantes acerca da pontuação usada no texto escrito, contribui para a defesa de que as cláusulas em foco constituam por si só uma unidade de informação. (3)
A educação na sociedade brasileira precisa de muitas melhorias em vários setores. Porque um paiz sem educação, não pode avançar nas áreas: Tecnológicas, empresariais, sociais, ambientais, familiares etc. (EJA, 21CA, 2012) (4)
Governo para mim é uma democracia onde eles só prometem benefícios no seu bairro, melhoria de vida para sua população, tudo isso em troca de votos, depois de eleito nada é cumprido. Sabendo que só são eleito através do povo, por isso deveriam trabalhar e ajudar as pessoas que necessitam, e prometer menos para que possamos votar com vontade e dedicação. (EJA, 14CO, 2012) (5) Parei no tempo, parecia que eu estava dormindo. Passando humilhação quando trabalhava na casa dos outros. Minha mãe sempre disse para eu voltar a estudar, trabalhar de carteira assinada e me formar. (EJA, 3MO, 2012) (6)
As escolas não estão preparadas adequadamente, existem escolas que nem ventiladores têm, Por isso no verão as crianças sofrem bastante e algumas até deixam de ir pra escola. Sem falar nos salários dos professores, que é muito baixo para ser uma profissão que se exige muito, alguns deles desanimam de trabalhar. (EJA, 9IN, 2012)
Ilustrando a macrorrelação de causalidade, a cláusula desgarrada presente em (3), durante a atividade de retextualização e o teste de atitude, foi justificada como um recurso ligado, de alguma forma, à modalidade oral da língua, uma vez que a própria informante sinaliza: “O ponto final serve para organizar melhor a minha fala. Assim, as pessoas entendem melhor, param para refletir, descansar a voz”.
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A macrorrelação de contrastividade presente em (4), por sua vez, é marcada pelo uso de uma cláusula desgarrada reduzida de gerúndio. O ponto final, usado para encerrar o período anterior, segundo o informante, tem a função de “causar impacto” à ideia concessiva que viria em seguida, expressa pela cláusula em análise. Em (5), podemos dizer que a macrorrelação de modo está representada pela cláusula desgarrada em destaque, sob a forma reduzida de gerúndio. Conforme apontou a informante, ao escrever sobre as motivações que a fizeram retornar à escola, houve a necessidade de dar destaque à ideia de humilhação vivida por ela no decorrer de sua experiência profissional. Nesse caso, a humilhação sofrida está associada ao fato de ter “parado no tempo”, de parecer “estar dormindo”. Já em (6), o desgarramento ocorre na mudança de um parágrafo para o outro. A cláusula em destaque, abrindo a ideia que será desenvolvida ao longo de todo o novo parágrafo, apresenta uma espécie de intensificação dos problemas relacionados à educação. Em outras palavras, podemos dizer que a expressão “sem falar”, além de provocar destaque, indica que um argumento, que talvez fosse desconsiderado, pode contribuir significativamente para a defesa de uma tese. A tabela a seguir apresenta a distribuição das cláusulas hipotáticas circunstanciais quanto às macrorrelações categorizadas por este estudo:
Macrorrelações
nº
%
Causalidade
58
51,33%
Contrastividade
22
19,47%
Modo
20
17,70%
Intensificação
13
11,50%
TOTAL
113
100%
Tabela 1 – Macrorrelações das cláusulas hipotáticas circunstanciais desgarradas
As informações da tabela 1 apontam para uma grande disparidade existente entre a primeira macrorrelação apresentada – a causalidade – e as demais. Totalizando 51,33% dos dados do desgarramento, essa macrorrelação abarca quatro classificações de orações subordinadas adverbiais no âmbito da GT: as causais, as condicionais, as finais e as consecutivas. Ainda quanto à distribuição das cláusulas hipotáticas, em
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seguida, a mesma tabela mostra que as macrorrelações de contrastividade (19,47%) e de modo (17,70%) apresentam percentuais próximos; e, com uma propensão ainda menor ao desgarramento, a macrorrelação de intensificação corresponde a 11,50% dos dados. O gráfico a seguir ilustra com maior clareza a disparidade existente entre a macrorrelação de causalidade e as demais:
Gráfico 1 – Macrorrelações das cláusulas hipotáticas circunstanciais desgarradas
Com base na hipótese relacionada à importância do uso desgarrado das cláusulas hipotáticas circunstanciais para a argumentação, buscamos não só conferir se essas cláusulas estavam inseridas em sequências tipológicas argumentativas, mas principalmente compreender de que modo tais usos contribuem para estas sequências e para o discurso como um todo. Nesse sentido, na análise do corpus, focalizamos as macrorrelações e, por conseguinte, microrrelações que envolviam a combinação de cláusulas nas produções de estudantes da EJA. Assim, destacamos um total de 4 macrorrelações, desdobradas em 14 microrrelações, tal como se apresentam no quadro a seguir:
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MACRORRELAÇÕES E MICRORRELAÇÕES DAS CLÁUSULAS CIRCUNSTANCIAIS DESGARRADAS MACRORRELAÇÕES
Causalidade
Contrastividade
Modo
Intensificação
MICRORRELAÇÕES Causa acontecimento Causa verdade universal Ilustração Expectativa de causa Expectativa de efeito Efeito lógico ou natural Contraste-reforço Contraste-adendo Contraste auto focado Modo prototípico Exemplificação Recorrência Semântica Ampliação Agravamento
Quadro 1 – Macrorrelações e microrrelações das cláusulas hipotáticas circunstanciais desgarradas
Tais macrorrelações e microrrelações, manifestadas no cotexto e no contexto em que cláusulas desgarradas estão inseridas, como verificamos ao longo da análise, fundamentam a importância desse uso para o desenvolvimento da argumentação. Em outras palavras, causalidade, contrastividade, modo e intensificação, tal como foram abordadas, são relações típicas de sequências argumentativas. Se o desgarramento de cláusulas hipotáticas circunstanciais se explica por meio dessas relações, é sinal de que esse fenômeno traz contribuições significativas para a argumentação. Notamos também que o fator posição é fundamental para o entendimento de como as cláusulas desgarradas se aplicam. Baseando-nos no que Decat (2008b) já havia discutido a respeito da importância da posposição de cláusulas concessivas para o desgarramento na escrita, ampliamos esta hipótese para todos os nossos dados. Assim, chegamos à conclusão de que a posposição de cláusulas em relação ao conteúdo com o qual se vinculam – somada ao cotexto e contexto da argumentação, bem como às macro e microrrelações envolvidas nesse processo – é um fator que propicia a realização do desgarramento de cláusulas hipotáticas circunstanciais na modalidade dos textos da EJA.
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A tabela a seguir, por sua vez, apresenta informações acerca da forma das cláusulas hipotáticas circunstanciais desgarradas:
FORMA MACRORRELAÇÕES
%
MICRORRELAÇÕES
%
das cláusulas desgarradas
plena
Causalidade
Contrastividade
Modo
Intensificação
51,33
19,47
17,70
11,50
reduzida
Causa acontecimento
15,93
(%) 15,93
Causa verdade universal
13,28
13,28
0
Ilustração
2,66
2,66
0
Expectativa de causa
1,77
1,77
Expectativa de efeito
7,96
7,96
0
Efeito lógico ou natural
9,73
3,53
6,20
Contraste-reforço
4,425
4,425
0
Contraste-adendo
4,425
0
Contraste auto focado
10,62
5,31
5,31
Modo prototípico
12,39
0
12,39
Exemplificação
4,42
4,42
Recorrência Semântica
0,89
0,89
0
Ampliação
7,08
6,20
0,88
Agravamento
4,42
0,88
TOTAL:
(%)
45,13
9,735
5,31
7,08
67,255
0
0
4,425
0
3,54
6,20
9,735
12,39
4,42
32,745
Tabela 2 – Forma das cláusulas hipotáticas circunstanciais desgarradas distribuídas por macro e microrrelações
Os resultados da tabela 2 revelam que o percentual de cláusulas desgarradas plenas (67,255%) é maior do que o de cláusulas desgarradas reduzidas (32,745%). No entanto, se quiséssemos fazer uma análise mais profunda do desgarramento em cláusulas hipotáticas circunstanciais reduzidas, esses dados não seriam suficientes, uma vez que valeria, nesse caso, contrastar com cláusulas hipotáticas circunstanciais não desgarradas. Em outras palavras, queremos dizer que, apesar de o percentual de cláusulas reduzidas ter sido inferior ao de cláusulas plenas neste trabalho, acreditamos
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que 32,745% seja significativo no que se refere à presença de cláusulas reduzidas no âmbito do fenômeno desgarramento. Assim, finalizamos a caracterização das cláusulas hipotáticas circunstanciais desgarradas na modalidade escrita dos textos da EJA, justificando esse uso como uma estratégia a serviço da argumentação. Nossa maior intenção, com o presente trabalho, foi permitir que o estudo do desgarramento de cláusulas hipotáticas circunstanciais configurasse, de algum modo, uma discussão pertinente para o laço que buscamos estreitar entre pesquisa e ensino.
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MAPEAMENTO DOS ESTUDOS SOBRE O PIBID NA ÁREA DE LÍNGUA INGLESA: LACUNAS E PERSPECTIVAS
Katia Bruginski Mulik (UFPR)1 Iara Maria Bruz (UFPR)2 Introdução
O PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência) teve seu surgimento no ano de 2010 com base em Lei nº 11.502/2007 que atribui a CAPES a indução e o fomento à formação para o magistério da educação básica. A procura para participar do PIBID tem crescido nos últimos anos, como podemos perceber no aumento em pesquisas relacionadas ao tema, observado aqui neste artigo.
Neste
programa existe a participação de três frentes dentro da formação docente: alunos de licenciaturas, professores de ensino básico e professores de ensino superior. Todos os participantes recebem uma bolsa da CAPES para participarem e ainda, existe uma verba par ser gasta com material, ajuda de custo para participação de eventos, etc. Em 2014, o Programa contou com um total de 313 projetos em todo o Brasil, concedendo 90.254 bolsas3. Embora o foco principal do programa esteja voltado para a formação inicial de alunos licenciandos (JORDÃO, 2013; KADRI, 2013, 2014) esse também atinge a formação continuada de professores da rede pública (MULIK, 2014). Como é um programa que envolve muito dinheiro público, acreditamos serem essenciais pesquisas que mostrem os resultados desse programa direta e indiretamente na educação, já que esse é o foco principal para a existência do PIBID. Nesse sentido, como forma de 1
Mestre em Letras DEstudos Linguísticos pela UFPR; professora de língua inglesa do quadro próprio do magistério na rede pública estadual (SEED-PR). Contato: [email protected] 2 Doutoranda em Letras DEstudos Linguísticos pela UFPR; mestre em Educação pela UFPR. Contato: [email protected] 3 Acesso em 16 set. 2014.
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compreender os impactos dessa política pública na educação brasileira, o objetivo deste trabalho consiste em mapear as pesquisas já realizadas sobre o PIBID, especificamente dentro da área de língua inglesa. Por questões de espaço, tivemos que limitar nossa busca a alguns locais, pois sabemos que o PIBID tem sido tema de diversas pesquisas, sob diferentes temáticas. Para isso, tomamos como base para de referência para este mapeamento a biblioteca eletrônica Scielo, o banco de teses e dissertações da CAPES e os anais dos dois principais eventos de linguística aplicada: CBLA (Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada) e o CLAFPL (Congresso Latino-Americano de Formação de Professores de Línguas) entre os anos de 2011 e 2013. Além disso, relatamos as publicações recentemente editadas que também abordam questões relacionadas ao programa. Dentre os trabalhos/estudos pesquisados encontramos reflexões acerca do programa principalmente relatando experiências nas escolas participantes, o desenvolvimento de atividades a partir de pressupostos teóricos específicos e possíveis impactos na formação inicial. No entanto, ainda percebemos algumas lacunas sobre questões que podem ser explorados para que seja possível compreender a dinâmica dessa política pública e o que ainda deve ser implementadas para que o PIBID traga impactos ainda mais positivos para a educação dentro de uma perspectiva crítico-transformadora. Livros publicados
Dentre os livros voltados para questões do programa, no decorrer deste tempo (2011-2014), destacamos três publicações. O primeiro, O PIBID nas aulas de inglês: divisor de águas e formador de marés (JORDÃO, et Al, 2013), se configura como um relato e amostragem do trabalho desenvolvido na edição 2010-2012 do PIBID de língua inglesa da UFPR. No livro é feito um detalhamento das atividades e projetos que envolveram as escolas participantes. Os autores tecem alguns comentários sobre os impactos e as dificuldades na implementação das atividades realizadas como forma de compartilhamento da vivência do grupo. Percebemos uma discussão voltada a formação inicial em geral.
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O segundo que destacamos aqui é Experiências de formação de professores de línguas e o PIBID: contornos, cores e matizes (MATEUS; EL KADRI; SILVA, 2013). A obra é composta por 10 artigos escritos por professores pesquisadores de diversas universidades brasileiras (UFPR, UEL, UnB, UTFPR, UFSCar entre outras) e alguns acadêmicos oriundos dessas universidades e participantes do programa. O conjunto de artigos trata de diversos temas como a ralação universidadeDescola, contribuições do programa para a formação do professor como um todo, perspectivas e desafios do programa, a questão dos pressupostos teóricos que embasam os projetos do programa nas universidades, avaliação e práticas de colaboração e o papel do professor supervisor. É um excelente material para se ter uma noção mais abrangente sobre o programa. E o terceiro livro comentado aqui Com as palavras, os pibidianos: práticas de Ensino e Formação de Professores de Língua Inglesa no cotexto do PIBID (ORTENZI, et AL, 2013). Neste livro encontramos relatos dos próprios licenciandos sobre suas experiências. Assim, mais uma vez, o destaque das pesquisas sobre o PIBID se volta para a formação inicial. Congressos Optamos por delimitar nossa busca concentrandoDnos em dois grandes eventos da área: Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada (CBLA) e Congresso LatinoAmericano de Formação de Professores de Línguas (CLAFPL), pois estes dois eventos são de grande relevância nacional e suas temáticas estão diretamente interligadas as pesquisas feitas sobre questões relacionadas ao PIBID. Como o Programa começou oficialmente nas Universidades em 2010, optamos por investigar os eventos a partir desse ano. Em 2011, no CBLA catorze resumos foram apresentados com o tema PIBID, sendo que desses, treze eram especificamente de inglês. Dentre os temas apresentados nesse evento estão: ●
Possíveis impactos na formação inicial (JORDÃO; VALE; ORTENZI;
GREGOLIN e GATTOLIN; CALVO; XAVIER);
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●
Impactos na formação continuada e inicial (ORTENZI; EL KADRI e
GAFFURI e MATEUS); ●
Identidade (SILVA e GATTOLIN; GREGOLIN);
●
Projeto como um todo (BARCELLOS e GATTOLIN; SOUZA;
GATTOLIN). Também foram apresentados dois pôsteres: um sobre material didático (ROSA e BIANNA) e outro sobre o desenvolvimento de atividades a partir de pressupostos teóricos específicos (GALOR e ALBUQUERQUE). Em 2013, houve outra edição desse Congresso e o número de trabalhos voltados ao PIBID quase triplicou, foram vinte sete no total e desses, vinte e quatro sobre o PIBID inglês. Os temas foram: ●
O desenvolvimento de atividades a partir de pressupostos teóricos
específicos (MOREIRA e TILIO; CARREIRA; SILVA; TILIO; ); ●
Material didático (BRANDÃO; APARICIO e ANDRADE; SILVA e
TÍLIO); ●
Possíveis
impactos
na
formação
inicial
(MULIK;
PADULA;
MUSHASHE e SILVA; COELHO; CEZAR; AUDI e PASSONI; STURM, EL KADRI; OLIVEIRA); ●
Políticas (MATEUS);
●
Formação continuada (UNITAU);
●
Impactos na formação continuada e inicial (SILVA) e reflexões acerca
do programa principalmente relatando experiências nas escolas participantes (MACIEL; MONTEIRO). Além dos trabalhos, foram apresentados três pôsteres: reflexões acerca do programa principalmente relatando experiências nas escolas participantes (BRAGA e MILLER; MATTOS); Material didático (JESUS) e Formação continuada (MOTA e MATOS). Interessante destacar que nessa edição do Congresso já não encontramos trabalhos focando o PIBID como um todo. Uma das razões pensadas para isso ter ocorrido é que na edição anterior o PIBID ainda era uma novidade e ainda estava sendo
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visto de forma abrangente. Com o passar do tempo, pode ser percebido que esse Programa é complexo e existiam outros aspectos que poderiam render outros estudos. Já no livro de resumos do CLAFPL (ANDRADE; CERQUEIR.; ALMEIDA, 2013), foram trinta e quatro resumos sobre o PIBID e dentro desses, catorze sobre PIBID inglês. Os trabalhos apresentados foram agrupados nos seguintes temas: ●
Reflexões acerca do programa principalmente relatando experiências nas
escolas participantes (BRANDÃO; APARÍCIO e ANDRADE; PÁDULA; SILVA E SILVA; MATEUS; SILVA e MASCARENHAS); ●
O desenvolvimento de atividades a partir de pressupostos teóricos
específicos (MASHASHE E SILVA; SANT'ANA e LEITE; UYENO; COELHO; CÉZAR; BARBOSA; SOUZA; MATEUS e EL KADRI); ●
Possíveis impactos na formação inicial (MULIK; SANTOS DA SILVA;
SANTOS; AUDI, PASSONI, VALE e DOS SANTOS; STURM; MACIEL; EL KADRI e PASSONI; NOGUEIRA e LOPES; VALE e BARATA; EVANGELISTA , ROCHA
e CÔRREA; GREGOLIN; ROZENFELD e
PACHECO); ●
Formação continuada (JAMOUSSI; CHIMENTÃO e FIORIDSOUZA;
SOUZA; SODRÉ e ORTENZI); ●
Impactos na formação continuada e inicial (SALGADO e COSTA e
SOUSA, et al; JAMOUSSI; SILVESTRE); ●
Currículo (MASCARENHAS e FERNANDES e OLIVEIRA); material
didático (COSTA;FONSECA; BONFIM e DONATO; GOMES e SANTOS); ●
Identidade (SILVA) e sobre a influência da família nos estudos dos
alunos (SIQUEIRA; DENARDI). Biblioteca Scielo
Como já colocado, existem diversas publicações no país que estão buscando o PIBID como foco de pesquisas. Para poder fazer este estudo optamos por delimitar nossa pesquisa apenas a artigos publicados em revistas indexadas na plataforma Scielo. Nesta pesquisa obtivemos apenas um resultado: “Práticas de formação colaborativa de
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professores/as de inglês: representações de uma experiência no Pibid” (MATEUS, 2013). Nele encontramos mais uma vez o foco na formação inicial. Dissertações e teses
Um critério parecido com o utilizado com a procura dos artigos foi utilizado para buscar teses e dissertações sobre o assunto. Assim, escolhemos apenas buscar na plataforma CAPES. Sabemos que inúmeros pesquisadores e pesquisadoras estão estudando o PIBID, porém, apenas vinte e seis registros já constam na plataforma sobre o PIBID. Desses apenas um tinha a temática PIBID inglês: Rupturas e Continuidades na Formação de Professores:
um Olhar para as Práticas Desenvolvidas por um Grupo no Contexto do Pibidinglês/Uel. (GAFFURI, 2012). Embora ainda não conste na base de dados, uma das autoras defendeu recentemente uma dissertação de mestrado intitulada O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência (PIBID) como espaço de formação continuada de professores de língua inglesa (MULIK, 2014). Na dissertação foram discutidas questões relacionadas diretamente ao papel do professor supervisor dentro do programa e como ele se percebe como coDformador dos acadêmicos. Tais discussões tiveram por base os estudos voltados ao letramento crítico de forma a trazêDlos como pressupostos para se pensar a formação de professores na contemporaneidade. Lacunas
Dentre as pesquisas aqui colocadas, conseguimos perceber que existem variadas lacunas com relação às pesquisas sobre o PIBID dentro da área de língua inglesa. Os temas que apontamos como lacunas servem como sugestões para futuros pesquisadores incorporarem em seus estudos a fim de que tenhamos um panorama mais amplo sobre os impactos que o programa, enquanto política pública tem ocasionado: ●
As relações existentes entre os pibidianos e os alunos das escolas
participantes; ●
A formação de professores formadores das universidades participantes;
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●
Relatos do professor supervisor e a sua atuação dentro do programa;
●
Relações entre pibidianos e professor supervisor;
●
Impactos do programa para os acadêmicos na sua atuação profissional
entre outros aspectos; ●
Impacto do Programa nos cursos de Letras como um todo.
Considerações finais
Expandindo nossa pesquisa para outros meios, a quantidade de trabalhos e pesquisas encontradas é maior. Porém, como foi já colocado neste trabalho, por uma questão de espaço optamos por fazer o levantamento nos meios aqui expostos. Assim, podemos concluir que as pesquisas voltadas ao Programa estão crescendo se compararmos o número de trabalhos apresentados em congressos perto do início do PIBID, e de congressos mais recentes. Além disso, por ser um Programa que cede bolsas para todos os envolvidos, ou seja, professores universitários, acadêmicos, professores supervisores das escolas, além de fornecer verba para a compra de materiais para as escolas participantes, acreditamos na necessidade de sabermos os resultados que esse investimento está trazendo para a educação brasileira. Sabemos que as políticas públicas veem incentivando a exigência pelo conhecimento de língua inglesa de alunos graduandos de universidades públicas (aplicações gratuitas de testes de proficiências, aulas gratuitas de inglês). Por isso, por também se tratar de um programa voltado ao ensino dessa língua acaba sendo essencial compreender, não apenas como o programa está envolvido com a formação de professores, mas também com a ideia de melhorar o ensino básico e fundamental em escolas públicas no que tange ao ensino da língua inglesa. Pretendemos ampliar esse mapeamento, pois temos acompanhado o programa nesses últimos anos sabemos que vários estudos estão em andamento ou em fase de conclusão e que ainda não puderam ser contemplados nesse texto. Esperamos que as considerações e reflexões que aqui apresentamos chamem atenção de futuros pesquisadores a fim de se envolverem em estudos que tratem do PIBIDDInglês dentro
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dessas lacunas existentes e também, de outras licenciaturas que tenham o Programa. Assim poderemos ter uma noção mais significativa sobre os investimentos do Programa e seu impacto na educação. Referências ANDRADE, M. M.; CERQUEIRA, S. L. S.; ALMEIDA, V. B. (Orgs.) Livro de Resumos do IV Congresso Latino-Americano de Professores de Línguas (CLAFPL), Brasília, DF: UnB, 2013. CONGRESSO BRASILEIRO DE LINGUÍSTICA APLICADA: Linguística Aplicada e Sociedade, IX, 2011. Rio de Janeiro. Caderno de Resumos. Rio de Janeiro: Associação de Linguística Aplicada do Brasil, 2011, 401 p. CONGRESSO BRASILEIRO DE LINGUÍSTICA APLICADA: Políticas e Políticas Linguísticas, X, 2013. Rio de Janeiro. Caderno de Resumos. Rio de Janeiro: Associação de
Linguística
Aplicada
do
Brasil,
2013,
308
p.
Disponível
em:
Acesso em: 13 de out. 2014. GAFFURI, P.
Rupturas e Continuidades na Formação de Professores: um Olhar
para as Práticas Desenvolvidas por um Grupo no Contexto do Pibid-inglês/Uel. 2012. 146 f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem)D Universidade Estadual de Londrina, Londrina. 2012. JORDÃO, C. M. et AL. O PIBID nas aulas de inglês: divisor de águas e formador de marés. Campinas, SP: Pontes Editores, 2013. MATEUS, E.; EL KADRI, M.; SILVA, K. A. da (Orgs.). Experiências de formação de professores de línguas e o PIBID: contornos, cores e matizes. Campinas, SP: Pontes Editores, 2013.
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MULIK, K. B. O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação a Docência (PIBID) como espaço de formação continuada de professores de língua inglesa. Dissertação de mestrado. Programa de PósDgraduação em Letras: Estudos Linguísticos, 2014. ORTENZI, et AL. (Orgs.) Com as palavras, os pibidianos: práticas de Ensino e Formação de Professores de Língua Inglesa no cotexto do PIBID. Londrina: UEL, 2013.
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#SOMOSTODOSMACACOS: UMA ANÁLISE DOS DESLIZAMENTOS DE SENTIDO SOBRE RACISMO NA MÍDIA1 Laís Virginia Alves Medeiros (UFRGS) Debbie Mello Noble (UFRGS)
Introdução No dia 27 de abril de 2014, o jogador de futebol Daniel Alves estava em campo quando foi atingido por uma banana. O ato racista de um torcedor (e a resposta do jogador, que comeu a banana) gerou uma mobilização nas redes sociais. Iniciada por outro jogador de futebol, Neymar, a hashtag #somostodosmacacos foi adotada por figuras populares, o que gerou respostas ora de adesão ora de repulsa. Nossa proposta, então, é analisar a repercussão dessa campanha – que depois viemos a descobrir ser uma jogada de marketing com apoio de uma agência publicitária – em dois veículos midiáticos bastante populares: as revistas Veja e Carta Capital em seus formatos online. Ancoradas na Análise de Discurso pêcheutiana, trazemos entre as noções norteadoras desta análise a de Formação Discursiva (PÊCHEUX, 1990 e 2009) e, a partir dela, a questão do deslizamento; de Orlandi (1997), trazemos as categorizações do silêncio e como essas podem auxiliar na constituição do sentido. Tomando como corpus sequências discursivas recortadas de artigos de revistas de posições editoriais distintas, a reflexão aqui proposta se centra nas determinações e nos deslizamentos de sentidos. As sequências discursivas observadas, ao diferirem radicalmente entre si, possibilitam sinalizar a existência não só de diferentes Formações Discursivas, mas também de uma relação de oposição que leva a uma polissemia de concepções sobre o racismo, reveladas a partir de uma disputa por sentidos a respeito da hashtag #somostodosmacacos.
1
Trabalho desenvolvido com auxílio de bolsa CAPES/FAPERGS.
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Das formações discursivas e da constituição dos sentidos A fim de investigar a constituição e os deslizamentos de sentido na campanha #somostodosmacacos, buscaremos esclarecer algumas noções fundamentais para este propósito, iniciando com a de Formação Discursiva. O conceito de Formação Discursiva de que falaremos aqui é o proposto por Pêcheux (2009), como “aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito” (p. 147), o que significa que “as palavras, expressões, proposições etc., recebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas” (PÊCHEUX, 2009, p. 147). É por isso que dizemos que o sentido de uma palavra não está nela mesma, não existe de forma automática ou estabilizada, mas é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas. Em outras palavras, isso ocorre porque é na FD que se dá a interpelação do indivíduo como sujeito ideológico. Assim, ele significa seu discurso através da ideologia pela qual é interpelado, determinando os sentidos sempre ideologicamente. É em Orlandi que nos apoiamos para dizer que “tudo o que dizemos tem, pois, um traço ideológico em relação a outros traços ideológicos” (2012, p. 43), o que está na discursividade, na maneira como a ideologia dota os discursos de sentido. É por isso que afirmamos, com Courtine, que o “discursivo será considerado como um dos aspectos materiais das ideologias” (2009, p. 72). Ainda, cabe ressaltar a heterogeneidade que é inerente às formações discursivas: como se distinguem umas das outras pelos seus limites compartilhados, toda formação discursiva é heterogênea em si mesma, “pois já evoca por si ‘o outro’ sentido que ela não significa” (ORLANDI, 1997, p. 21). Além de evocar o outro, as formações discursivas são heterogêneas também por serem atravessadas o tempo todo por saberes de outras formações discursivas e por abrigarem diferentes posições-sujeito, mais ou menos identificadas com os saberes daquela formação em que estão inseridas (INDURSKY, 2008).
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Outra noção primordial para falar em sentido em AD é a de efeito de sentidos. O conceito, proposto por Pêcheux (1990), define o discurso não mais como transmissão de informação, mas como efeito de sentidos entre locutores (ORLANDI, 2010), numa relação não linear, com “efeitos que resultam da relação de sujeitos simbólicos que participam do discurso, dentro de circunstâncias dadas” (ORLANDI, 2010, p. 15). Entram em jogo as condições de produção, a memória, a historicidade: embora seja preciso que já haja sentido para se produzir sentidos (falamos com palavras que já têm sentidos), estes não estão nunca completamente já lá. Eles podem chegar de qualquer lugar e eles se movem e se desdobram em outros sentidos (ORLANDI, 1997, p.
24).
É por isso que podemos afirmar que os sentidos das palavras ou expressões não possuem significados estanques, elas adquirem diferentes sentidos de acordo com a posição daquele que fala, que desestabiliza ou retoma os sentidos que ressoam por meio da memória discursiva. É dessa forma que podemos falar em deslizamentos de sentido, uma vez que, de uma formação discursiva para outra, novas formulações podem surgir, ressignificando os discursos, como veremos nas análises a seguir. #Somostodosmacacos A partir das noções anteriormente expostas, é possível pensar a língua não mais como um código a ser decifrado, em que cada uma das palavras ou expressões já possuem sentidos estabilizados. Assim, relacionando o discurso às condições de produção e pensando nele como atravessado pela exterioridade, entendemos, a partir da AD, que os sentidos se movimentam, deslizam, são deslocados entre diferentes Formações Discursivas para significar de formas distintas. Nossas análises se centrarão, então, nessa possibilidade de deslizamento. Observamos a primeira sequência discursiva, recortada do blog de Ricardo Setti, na revista Veja on-line em 1º de maio de 2014: SD1: “Colocado como foi, ironicamente, na situação (logo após a maravilhosa atitude do Daniel Alves), a hashtag, mais a imagem de Neymar com seu filho, não chama os negros de macacos, mas lembra
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ou alerta os brancos que somos todos iguais, vindos ‘do mesmo macaco’. Este é um fato científico provado e comprovado (salvo alguns fanáticos que ainda questionam Darwin), não uma opinião”, informou a agência (SETTI, 2014)
Por identificar deslizamentos distintos nos dizeres que se referem à campanha #somostodosmacacos, enxergamos as revistas inscritas em duas Formações Discursivas distintas em relação ao que pode ou não ser dito sobre a associação entre pessoas negras e macacos na interpretação da hashtag. Na FD em que a Veja se inscreve, o sentido de macaco remete ao animal, à evolução, ao Darwinismo. A ressignificação racista que a palavra adquiriu historicamente é silenciada em defesa da campanha alavancada por uma agência de publicidade. Cabe referir aqui ao estudo que Orlandi publicou em 1997, que analisa as formas do silêncio e o categoriza em formas distintas. Há o silêncio fundador, que existe nas palavras, e a política do silêncio, que dispõe as cisões entre o dizer e o não dizer, comportando duas divisões: o silêncio constitutivo, que refere ao fato de que todo dizer cala algum sentido, e o silêncio local, ou seja, a censura. Ateremos-nos a este último por identificá-lo na FD em que a Veja se inscreve. Compreendemos a censura, nas palavras de Orlandi, como “a interdição da inscrição do sujeito em formações discursivas determinadas, isto é, proíbem-se certos sentidos porque se impede o sujeito de ocupar certos lugares, certas posições” (p. 107). Na FD em análise, enxergamos uma censura no que diz respeito ao protagonismo da campanha: não são as pessoas negras que podem ocupar a posição central de combate ao racismo, mas, sim, o macaco. A conotação racista e o teor ofensivo percebido pelas pessoas negras frente à referência ao animal são silenciados, e é imposta uma posição de cientificidade que justificaria a adoção do termo na campanha. Não se trata, nesse caso, de reconhecer as discriminações sofridas pela comunidade negra, tampouco de reconhecer seus movimentos organizados de combate ao racismo, mas, sim, de silenciar essas questões e disfarçá-las sob a hashtag somostodosmacacos. A esta FD denominaremos Formação Discursiva de apoio à
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campanha, que toma por evidente o sentido cientificista da palavra macaco, silenciando e rejeitando os sentidos racistas para ela e, assim, justificando a legitimação da hashtag. A segunda sequência discursiva foi retirada do blog Negro Belchior, pertencente à edição on-line da revista Carta Capital: SD2: E acho os macacos bichos incríveis, inteligentes e fortes. Adoro o filme Planeta dos Macacos e sempre que assisto, especialmente o primeiro, imagino o quanto os seres humanos merecem castigo parecido. Viemos deles e a história da evolução da espécie é linda. Mas se é para associar a origens, por que não dizer que #SomosTodosNegros ? Porque não dizer #SomosTodosDeÁfrica ? Porque não lembrar que é de África que viemos, todos e de todas as cores? E que por isso o racismo, em todas as suas formas, é uma estupidez incompatível com a própria evolução humana? (BELCHIOR, 2014)
Nessa sequência discursiva, fica nítida a importância da noção de Formação Discursiva para a análise dos sentidos possíveis: as mesmas palavras e expressões significam diferentemente porque se inscrevem em formações discursivas diferentes. Para analisar a SD2, nos baseamos também em Mittmann (2014), que propõe uma distinção entre deslizamento e deslocamento: o deslizamento seria o movimento de ressignificação entre posições-sujeito no âmbito de uma mesma formação discursiva, enquanto o deslocamento seria o movimento de ressignificação de uma formação discursiva para outra. Assim, podemos enxergar também como deslocamento a ressignificação do sentido de “macaco” quando inscrito em outra FD: embora seja um animal “incrível, inteligente e forte”, ele não é considerado uma representação apropriada das origens humanas em comum. O sentido de macaco considerado evidente pela FD de apoio à campanha, qual seja, o de animal, é deslocado, pois são considerados os traços que remetem a uma ofensa de cunho historicamente racista. Assim, o macaco não remete nem de longe a argumentos científicos, para os quais novas formulações são propostas: “África”, “negros” etc. Por isso, enxergamos a Carta Capital inscrita no que chamaremos de FD de combate à campanha. Trazemos agora outras duas sequências discursivas que tratam especificamente sobre a reação frente ao racismo:
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SD 3: Para o filósofo Luiz Felipe Pondé, “muita gente pegou carona e só quis parecer bonitinho na foto, mas a origem da campanha de Neymar é inteligente. Pegar uma banana e dizer que #somostodosmacacos é muito mais criativo do que querer abrir um processo” (ELES, 2014, p. 88). SD4: Comparar negros a macacos é racismo e não podemos admitir; Fortalecer a ideia de que devemos absorver ofensas racistas é um desrespeito à população negra, além de um golpe ideológico: “Sofram calados, não façam escândalo, levem na esportiva” (BELCHIOR, 2014).
Nessas SDs, as diferenças entre as Formações Discursivas se marcam pelas diferentes formas de tratar o racismo. Enquanto a FD de apoio à campanha defende uma forma “criativa” de se posicionar frente à discriminação, a FD de combate defende a não absorção de ofensas racistas. Dessa forma, os significantes escolhidos pela campanha #somostodosmacacos são considerados ofensivos para a FD que os combate, ao observar o racismo existente na utilização da palavra macaco, sugerida de um modo “esportivo” pela FD de apoio à campanha. Ainda cabe destacar que na FD de combate à campanha aparecem novamente os silêncios de que trata Orlandi. Nela, identificamos o silêncio local (ORLANDI, 1997), uma vez que se censuram os sujeitos que se apropriaram da campanha sem jamais terem experienciado o preconceito e a associação pejorativa ao termo macaco. É como se esses sujeitos ficassem, assim, interditados de ocuparem um local de apoio nessa campanha, já que ela silencia as lutas genuínas dos negros, como já mencionamos antes, e expressa o silêncio constitutivo já observado pela própria SD da Carta Capital em: “Sofram calados, não façam escândalo, levem na esportiva”. Esses silenciamentos de outros dizeres nos remetem, ainda, aos esquecimentos de que fala Pêcheux (2009). É a interpelação ideológica, como vimos anteriormente, que leva o sujeito a acreditar que é origem e fonte de seu dizer, que tem controle sobre si e seus dizeres, o que Pêcheux denominou Esquecimento nº 1, e também é esta interpelação que o leva a crer que o dito só pode ser dito daquela maneira, que seu discurso é evidente e não abre possibilidades de outros sentidos (Esquecimento nº 2). Assim, observamos especialmente o esquecimento nº 2 funcionando no discurso de
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Veja, uma vez que as SDs que o representam mostram um sujeito que vê seu discurso como evidente, numa ilusão que o leva a acreditar que somente esta relação entre os dizeres e o mundo é possível. Considerações Finais Neste breve artigo, percebemos que um acontecimento é instaurado a partir da circulação da hashtag #somostodosmacacos, o que alerta para a condição de opacidade inerente à lingua. Muitas vezes, a mídia e a rapidez na circulação das informações não proporcionam uma reflexão mais apurada dos sentidos daquilo que circula todos os dias. Assim, o sujeito produz seus discursos na ilusão da evidência do sentido, efeito da ideologia, “que não nos deixa perceber seu caráter material, a historicidade de sua construção” (ORLANDI, 2012, p. 45). No entanto, como vimos, uma palavra ou expressão nunca possui sentido evidente, nem o sentido está colado a ela. Dessa forma, as palavras e expressões escorregam, deslizam seus sentidos de acordo com as FDs em que estão inscritas. O trabalho do analista é, por isso, considerar os ditos e não-ditos, os possíveis deslizamentos e deslocamentos de sentido entre os diferentes discursos. Sendo assim, o que parece evidente para a FD de apoio à campanha, que visa legitimar a hashtag e a campanha como um todo, não é legítimo na FD de combate a ela. O sujeito que apoia a campanha esquece os dizeres que esta silencia, esquece que o dizer nunca é óbvio, o que demonstra, após esta análise, o funcionamento da ideologia e dos esquecimentos de Pêcheux. Referências BELCHIOR, Douglas. Xingar de macaco: uma pequena história de uma ideia racista. Blog
Negro
Belchior.
Carta
Capital,
29
abr.
2014.
Disponível
em:
. Acesso em: 20 jun. 2014.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Anais do III CIELLI (2014) - ISSN 2177-6350
ESTUDO FONOLÓGICO DA NASALIZAÇÃO DAS OCLUSIVAS EM POSIÇÃO DE CODA SILÁBICA EM MAWÉ Larissa Giovanna da Silva Leite (UFAM) Raynice Geraldine Pereira da Silva (UFAM) A língua Sateré-Mawé é falada no médio Amazonas por aproximadamente 8.000 indígenas que habitam a Terra Indígena Andirá-Marau na divisa dos estados do Amazonas e do Pará (Franceschini, 1999). No Amazonas, a Terra Indígena Andirá-Marau apresenta-se dividida em duas regiões: a primeira corresponde ao rio Marau e está ligada ao município de Maués, a outra região corresponde ao rio Andirá e está ligada ao município de Barreirinha. Os trabalhos de análise linguística feitos sobre a língua Mawé não são muitos, apenas algumas listas de palavras e sentenças simples, artigos de análise linguística preliminar, feitos por missionários do Summer Institute of Linguistic (Graham, A & S., 1978 e 1984); os estudos de Franceschini (1999) com enfoque na morfologia nominal, verbal e constituição de bases complexas em nível de sintagma; a proposta de uma gramática pedagógica e um dicionário bilíngue feita por Graham (1995) e Brandon e Graham (1983), respectivamente. O trabalho mais completo da língua foi feito por Silva (2005) que realizou um estudo da língua Sateré-Mawé que contemplou aspectos fonéticos e fonológicos da língua, e em sua tese (2010) realizou um estudo morfossintático da mesma. Apesar disso, por se tratar de um estudo com língua, não podemos dá-lo por acabado, até mesmo porque alguns fenômenos não foram contemplados nos trabalhos acima citados. Um exemplo disso é a ocorrência da nasalização das oclusivas em coda silábica, fenômeno que é objeto dessa pesquisa. Esta pesquisa então, afim de responder a indagação de como ocorre a nasalização dessas oclusivas na posição de coda, utiliza-se da abordagem não-linear proposta, mas não desenvolvida por Silva (2005), o estudo teve com pressuposto teórico a abordagem fonêmica com base nos trabalhos de Kindell (1981) e Pike (1943) e (1947). Utiliza-se ainda, a abordagem não-linear a partir de Piggott (1992) e do estudo em línguas da família Tupi, como em Kaiowá (Cardoso 2008). A partir da análise desses segmentos nas línguas citadas, estabelece-se um ponto de partida para o estudo das oclusivas nasalizadas em coda na língua Mawé, bem como a comparação entre essas línguas Tupi.
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Os dados da língua Sateré-Mawé analisados consistem no registro de expressões orais e do léxico da língua, parte coletados durante uma ida a campo em decorrência do curso de Licenciatura Indígenas dos Professores Sateré-Mawé no período de maio de 2013, através de monitoria da disciplina “Língua Sateré-Mawé”, e parte reaproveitados dos dados já coletados por Silva (2005, 2010). A partir desses dados, os segmentos oclusivos e nasais foram transcritos foneticamente de acordo com os símbolos e diacríticos do IPA-2003 e analisados acusticamente com a utilização do software Praat, versão 5.3.56. A análise e documentação de aspectos fonológicos e gramaticais em línguas indígenas pressupõem um estudo onde se crie uma interface desses aspectos com o uso que se faz, ou seja, a grafia da língua. Neste sentido, a pesquisa sobre a nasalização dos segmentos oclusivos [p], [t] e [k] e seus alofones sonoros [b], [d] e [g] em posição de coda silábica, servirá como subsídio na elaboração de material didático e nas reflexões sobre os sistemas ortográficos adotados atualmente no Mawé. A língua Sateré-Mawé possui um inventário fonético composto por 27 fones consonantais e 18 fones vocálicos. Não são registradas as ocorrências de [b], [d], [g] no quadro acima, pois esses seguimentos são considerados pela autora, bem como nessa pesquisa, como alofone dos seguimentos oclusivos surdos [p], [t], [k]. Silva (2005) considera que a nasalização dessas oclusivas ocorre na posição de coda silábica, isto é, em final de sílaba ou em fronteira de palavra devido ao processo morfofonêmico de enfraquecimento consonantal, no qual as oclusivas se transformariam em [m], [n] e [Ŋ]. A autora apresenta separadamente o caso das oclusivas [p] e [t], do caso da oclusiva [k], tendo em vista que, nos seguimentos que a autora analisou, esta assimilaria a sonoridade da nasal que a antecede, enquanto aquelas apenas se transformariam em nasais diante apenas da ocorrência de [h]. Silva (2005) explicita a ocorrência da nasalização em [p] e [t] da seguinte forma: /p,t/ -+ /m,n/ I
#h
Enquanto a nasalização em [k] é representada assim: /k/ -+ /g/ I [ Cnasal ]# Um dos exemplos que a autora utiliza é a expressão “cabelo muito preto” – fonologicamente em Mawé /i-a-sap hun kahato/ – onde ocorre o enfraquecimento de [p], que torna-se [m] diante da palavra “preto” em Mawé – hunt, por essa iniciar-se com [h]. Como se pode observar nos exemplos a seguir: nome dele – iwat het – [iwan hɛt]
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cabelo preto dele – i-wasap hun – [ʔiasãm hũn] Essa nasalização, conforme observado nos dados que abaixo serão explicitados, se dá em posição de coda ou fronteira de palavra e diante da presença de [h] no início da palavra seguinte. Os espectrogramas a seguir, do programa de análise acústica PRAAT versão 5.3.56, mostram a realização dos segmentos oclusivos nasalizados:
Figura 2 – realização da nasalização da oclusiva [t] com transcrição fonética, palavra fonológica e tradução em português. FONTE: PRAAT, 5.3.56
Esse dado – “o nome dele” é, de todos os dados analisados, o que explicita melhor e mais claramente a nasalização da oclusiva [t], que diante do seguimento fricativo glotal [h] passa a realizar-se como [n], formando assim [iwanhɛt]. O mesmo processo ocorre em “o olho dele”, no entanto não é tão claro, mas com o auxílio da análise acústica pode-se observar essa realização através do espectrograma a seguir:
Figura 2 – realização do alofone sonoro de [t], [d] com transcrição fonética, palavra fonológica e tradução em português. FONTE: PRAAT, 5.3.56
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Em “olho dele” a realização da nasalização da oclusiva é menos perceptível e identificável. Com a análise acústica percebe-se a realização do alofone sonoro de [t], [d]. Optou-se por não considerar esse processo de transformação de [t] em [d] como realização de pré-nasalizada, tendo em vista que as pré-nasalizadas só ocorrem em determinados ambientes, por exemplo, após vogais nasais e esse não é o caso em “iwat i-ha”, onde ocorre apenas a realização do alofone sonoro de [t], e não a nasalização dele, conforme o espectrograma. Observando as oclusivas na posição de coda silábica e em fronteira de palavra, pode-se concluir – dentro de um corpus limitado – que esse processo de nasalização das oclusivas ocorre nessa posição diante de palavras que iniciam-se com [h], e que essa ocorrência é resultado de um processo morfofonêmico da língua Sateré-Mawé. Isso ocorre devido ao ambiente articulatório em que esse som é introduzido, onde o trato vocal prepara-se para fazer o som que lhe é mais próximo, sendo assim ao invés de produzir uma oclusiva surda após uma vogal e diante da fricativa glotal, produz uma nasal ou uma oclusiva sonora – alofone sonoro – considerando a maior proximidade articulatória. Esta pesquisa deixa em aberto ainda, como toda pesquisa com língua, a questão da obrigatoriedade desse fenômeno acontecer diante de [h]. Essa questão foi observada durante a análise dos dados, mas não foi solucionada devido à limitação do corpus da pesquisa e do curto período em que esta se realizou. Referências CARDOSO, V.F. Sistematização da Fonologia Kaiowá: nasalização e/ou nasalização. Revista Síntese, São Paulo: Editora da Unicamp, 2009 p. 31 a 72. PIGGOTT, G.L. Viability in feature dependency: the case of nasality. Natural Language and Linguistic Theory. V.10 p. 33-77, 1992. SILVA, R.G.P. Estudo fonológico da língua Sateré-Mawé. Dissertação (Mestre) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2005. RODRIGUES, A. D. Línguas Brasileiras. Para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo: Edições Loyola. 1986.
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VERBO ACHAR: FUNÇÕES E SENTIDOS DENTRO DO LÉXICO HISTÓRICO DO PORTUGUÊS PARANAENSE Leonardo Dias Guimarães (UEL) Este artigo, desenvolvido como Iniciação Científica, vinculado ao projeto Para uma História do Português Paranaense (PHPP), do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina, visa identificar, analisar e comparar com base nos pressupostos da Gramática funcionalista, o uso e os sentidos do verbo achar em duas sincronias (séculos XVIII e XIX), usando como base a língua portuguesa registrada no Léxico Histórico do Português Paranaense (AGUILERA, inédito). Para compor o corpus para estudo, utiliza-se uma amostra retirada de 734 documentos manuscritos oficiais (correspondências eclesiásticas, notariais, cartas ao governo, petições) de autoria de brasileiros ou de portugueses radicados no país, que retratam a linguagem escrita usada no início da formação do Brasil, no período entre os séculos XVII e XIX. Como base teórica, destaca-se a Gramática de usos do português, de Maria Helena de Moura Neves e, para o levantamente das acepções, optou-se pelo Dicionário Aurélio. Enfim, visamos analisar a frequência do verbo achar nos documentos do PHPP, com diferentes acepções. Identificar e analisar os usos do verbo achar – Dicionário Aurélio. Identificar a utilização do sentido pleno e epistêmico do verbo.
O verbo achar Segundo Casseb-Galvão (1999), o verbo achar data do século 10, sendo que carrega certo ar de mistério. Seu étimo nunca foi estabelecido com firmeza absoluta, mas a maioria dos estudiosos aceita a tese de uma origem latina: afflare, que significa “bafejar, soprar sobre” ou ainda “cheirar, farejar”. Estudiosos afirmam que afflare teria adquirido o significado de “encontrar, localizar, descobrir” no vocabulário dos caçadores – achar a presa era farejá-la, rastreá-la pelo cheiro. A acepção de supor, acreditar (sem no entanto ter certeza), pode ter sido desdobrada da mesma ideia: quem
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acha alguma coisa está confiando apenas em seu faro, em seu bom senso, mas sabe que pode acabar desmentido pelos fato. Assim, o elemento lexical achar desempenha, em princípio, função de verbo pleno e com o sentido concreto de “encontrar”, “descobrir”, e em um segundo momento, o sentido epistêmico, que tem um sentido mais abstrato, que seria “supor”, “julgar”, “pensar”. Discussão dos resultados e conclusões 1 - DEPARAR COM, ENCONTRAR POR ACASO - (6 ocorrências). A – a folhas sessenta e duas AXEI no termo de eleisaõ feito no dito livro. B – a folhas quarenta e seis AXEI o seguinte registo da carta.
2 – CONSIDERAR - (6 ocorrências). A - e por nos foraõ aprovados por AXARMOS que na pessoa dos mesmos comcorrem. B - em provizoins para os indigenas do pais AXEMOS ser do nosso mais serio dever fazer igual intimaçaõ .
3 – JULGAR - (4 ocorrências). A - pasadoz juizes e officiais da camara se AXASSEM promptoz para o hirem acompanhar cada ves. B - meter ao nosso soberano para desedir como AXAR justo para o aumento desta villa. 4 – ESTAR - (10 ocorrências). A – a rezaõ de juros se AXAÕ em mauns de alguns negociantes e lavradores. B - por se AXAR vago o dito posto por baixa que deu Ignacio. 5 – ESTAR SITUADO (PRESENÇA) - (6 ocorrências).
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A - de se le atolarem nos brejos que se AXAÕ da atual cerca para dentro e de serem lanceadas. B – tres coartos de largo aonde se AXA a tropa de alferes Bernardo Joze Pinto. 6 – EXISTIR (HAVER) - (4 ocorrências). A – AXAMÇE nesta freguezia oito inoçentes por baptiza. B – declara no mesmo regimento e hnde se ACHA o caso da ley naõ se pode aplicar diversso.
Das 338 ocorrências do verbo achar encontradas no corpus do Léxico Histórico do Português Paranaense, podemos perceber que o verbo achar é empregado com um número menor de acepções do que os citados no Dicionário Aurélio. Tivemos apenas seis ocorrências das treze propostas no dicionário em questão. Além disso, o sentido pleno do verbo achar teve uma maior frequência (26 vezes) do que seu sentido epistêmico, que aparece 10 vezes no total de 36 sentenças analisadas.
Referências CASSEB-GALVÃO, Vania C. O achar no português do Brasil: um caso de gramaticalização. 170 f. Campinas: Unicamp, 1999. Dissertação [Mestrado em Linguística] Instituto de Estudos da Linguagem. Universidade de Campinas, 1999. FERREIRA, A.B.de Novo dicionário da língua portuguesa. 2.ed.rev.aum. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. xxiii, 1838p. NEVES, Maria Helena Moura. Gramática de usos do Português. UNESP, 2000. SILVA, Eliêda de Matos. Usos do verbo ACHAR na fala popular de Salvador: gramaticalização e contexto morfossintático. Universidade do Estado da Bahia, 2011.
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SOUZA, Gelson Martins de. Item Lexical “Achar”: Uma abordagem
discurso-
funcional. Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 2 . Universidade Estadual de Maringá.
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PARA UMA ABORDAGEM DA ESCRITA INFANTIL: UMA REFLEXÃO SOBRE A JUSTAPOSIÇÃO Lúcia Regiane Lopes-Damasio (UNESP) Introdução Neste trabalho, investigo as construções predicativas conectadas de modo paratático por justaposição com o objetivo de examinar os fatores que contribuem para essa ligação, bem como para a emergência de um sentido no complexo. Para isso, procurarei mostrar, na linha de Pekarek-Doehler et al. (2010) e Thumm (2000), que essa ligação é configurada a partir de propriedades morfossintáticas, semântico-lexicais e prosódicas, mas também que está associada ao contexto, em nível discursivo. Para tanto, lanço mão de um modelo funcionalista de junção, fundado na não discretude dos processos e num arranjo bidimensional (RAIBLE, 2001), em que se entrecruzam o eixo tático e o das relações lógico-semânticas e cognitivas (KORTMANN, 1997); de uma base teórica que entende a escrita como constitutivamente heterogênea e como modo de enunciação (CORRÊA, 2004); e de uma concepção de aquisição desse modo de enunciar que considera as tradições de falar/escrever (KABATEK, 2006). Considero que para a produção de enunciados, a criança lida com regras idiomáticas (sistema e norma) e regras discursivas, que pertencem ao domínio das tradições discursivas (TDs) – englobam atos de fala, gêneros e tipos textuais, estilos, formas literárias etc. – e se referem aos modos tradicionais de dizer/escrever, reguladores da produção e recepção dos discursos. A abordagem da composicionalidade das tradições, no âmbito da junção, aqui especificamente da justaposição, pressupõe que a aquisição de TDs seja sempre processual (OESTERREICHER, 1997). Gradualmente, a criança apreende as propriedades fixadas e variáveis das TDs, ou seja, o que apresentam como evocação do já-dito e o que apresentam como evocação de um projeto de dizer.
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Assim, este trabalho concentra-se na seguinte questão: Com base em quê a relação entre os componentes de uma construção paratática justaposta se fundamenta? A hipótese é de que os componentes dessa construção devam ser analisados em seu contexto discursivo, em associação com suas propriedades prosódicas, morfossintáticas e semânticas. A análise desse contexto deve levar em consideração, por sua vez, a TD em que o enunciado se desenvolve. O universo da investigação é composto por 100 textos extraídos de um dos bancos de dados sobre aquisição de escrita infantil, constituído para subsidiar os trabalhos do Grupo de Pesquisa Estudos sobre a Linguagem (CNPq/UNESP).1 O material selecionado reúne produções textuais de alunos das antigas primeira e segunda séries de uma escola pública (Romano Calil) localizada na periferia da cidade de São José do Rio Preto-SP. Quanto ao método, são conjugadas as abordagens quantitativa e qualitativa, em duas etapas principais: (i) análise das paratáticas justapostas a partir da consideração de aspectos contextuais-discursivos determinantes para a caracterização das construções; (ii) conjugação dessa análise com aspectos das TDs. Quadro teórico: sintaxe, aquisição de escrita e discurso O termo parataxe inclui, a partir de uma abordagem funcionalista hallidayana (1985), estruturas que a gramática tradicional chama de justaposição assindética, ou seja, construções em que as orações têm o mesmo estatuto, sem qualquer elemento de ligação e que podem codificar quaisquer relações de sentido, desde as mais concretas, como a adição simétrica, até as mais abstratas, como a concessividade. Nessa direção, a identificação parataxe aponta para um traço do funcionamento tático, em oposição, por exemplo, à hipotaxe, enquanto a identificação justaposta aponta para um traço do mecanismo por meio do qual essa taxe se efetiva, em oposição às construções, de mesma natureza, articuladas por outros mecanismos que não “zero” (Ø), como, por exemplo, e, ou, mas, por exemplo, isto é etc.
1
As propostas foram elaboradoras e aplicadas por Capristano e as coletas, realizadas com periodicidade quinzenal. Os alunos foram acompanhados de 2001 a 2004, durante as quatro primeiras séries do Ensino Fundamental, sempre em contexto escolar.
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Segundo Thumm (2000, p. 4-5), a natureza exata da relação que se estabelece entre essas orações é determinada a partir de inferências discursivas, a partir do (co-) contexto em que ocorrem. Sendo assim, as construções paratáticas justapostas, muitas vezes tratadas como primitivas ou sintaticamente simples, não podem ser consideradas como facilmente identificáveis e/ou definidas, uma vez que os contextos não são dados, não estão apenas lá como um conjunto pronto, pré-estabelecido, imutável, que os sujeitos simplesmente evocam. Eles são, ao contrário, dialogicamente estabelecidos e (re)ajustados durante a interação verbal. É necessário, pois, o reconhecimento de uma noção dinâmica de (con)texto, não dado como produto, mas como processo. É nesta perspectiva que assumo um entendimento próprio da face lacunar das TDs como projetos de dizer, que evocam, a partir de um diálogo com o já-dito, outros dizeres, novos, e intrinsecamente associados ao seu locus de produção. Nesse universo, os dados de aquisição de escrita caracterizam um material instigante para o estudo do processo pelo qual se constitui e modifica a complexa relação entre sujeito e linguagem, a partir de uma discussão acerca da natureza dinâmica dessa relação no âmbito de uma teoria de linguagem perpassada pelas TDs. Não se trata de observar o processo de aquisição/aprendizagem da escrita unicamente enquanto sistema e norma de uma língua, mas de observar a relação que se constitui entre sistema, norma e as tradições de falar/escrever, tomadas como filtro para a formulação dos enunciados. Os enunciados escolhidos para esta pesquisa são formulados numa base semiótica – o traço gráfico (escrita) – e tomados como um modo de enunciação (CORRÊA, 2004). Aproximo-me, pois, de uma proposta que enxerga fala e escrita como modos de enunciação, em que a escrita, apesar de se mostrar como enunciação solitária, nunca se realiza sem a representação de um outro/leitor/destinatário, o que a aproxima do modo de enunciação da fala, em que, mais do que a presença física dos interlocutores, conta sua representação (CORRÊA, 2008, 2004). Portanto, o modo escrito de enunciação é visto, neste trabalho, como espaço que privilegia a manifestações da singularidade dos sujeitos, tomadas aqui como hipóteses e operações desses sujeitos, e não como faltas/erros.
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Aspectos morfossintáticos e semânticos em tradições discursivas Estudos anteriores (cf. LOPES-DAMASIO, prelo; TUÃO-BRITO, 2014; LONGHIN-THOMAZI, 2011a/b) mostraram que, em dados de aquisição de escrita, os sujeitos optam preferencialmente por esquemas de junção com e e justaposição, na codificação de várias relações de sentido, conforme o Gráfico 1:
Gráfico 1: Frequência token dos mecanismos de junção (TUÃO-BRITO, 2014) A Tabela 1 mostra a frequência da justaposição, nos textos analisados, conjugada às relações de sentido elencadas numa escala de complexidade cognitiva crescente: Tabela 1: Frequência da justaposição em dados de aquisição de escrita. Ø CALIL01 CALIL02 Tt
0
TEMPO SIMUL 0
TEMPO POST 45
17
CON TRASTE 1
144
26,21%
0%
0%
14,56%
5,5%
0,32%
46,6%
81
1
1
53
25
4
165
26,21%
0,32%
0,32%
17,15%
8,09%
1,29%
53,39%
162
1
1
98
42
5
309
52,42%
0,32%
0,32%
31,71%
13,59%
1,61%
100%
ADIÇÃO
MODO
81
CAUSA
Tt
No Gráfico 2, chama a atenção a ampliação da frequência dos usos da justaposição nos textos da segunda série (CALIL 02) que contrasta com as teses que
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atribuem simplicidade à parataxe, especialmente à justaposição, e associam-na à sintaxe da língua falada (numa visão dicotômica) e das línguas em seus estágios mais primitivos. Ao invés disso, a análise revela que, em textos menos desenvolvidos, na 1ª série, e mais desenvolvidos, na 2ª, diferentes relações semânticas são codificadas, via mobilização dialógica de contextos, intrinsecamente associadas às TDs. Essa ampliação é explicada pelo uso dessa estratégia de junção na codificação de uma gama maior de relações de sentido, cf. Gráfico 3:
Gráfico 2: Justaposição em dados de 1ª e 2ª séries do EF
Gráfico 3: Relações de sentido da justaposição em dados de 1ª e 2ª séries do EF
Serão expostas aqui as análises de dois textos produzidos segundo as propostas 8 e 9, apresentadas na sequência, para ilustrar o padrão semântico de causa: P(8) Relato de experiência – ao relatar uma experiência vivida, as TDs relato, descrição e narração podem ser produzidas, dado que, ao centrar-se no relato dessa experiência (uma palestra), o escrevente poderia também descrever o que foi apresentado nela e/ou contar isso tudo ao outro; e P(9) Precisando de óculos – ao falar sobre a anta, além da descrição, torna-se necessária a TD argumentativa, a fim de explicar/justificar tais e tais características, comportamentos desse animal e dos que com ele estão relacionados; Na ausência de juntores explícitos, o sentido de causa manifesta-se discursivamente, nesse tipo de construção. A concepção de causalidade assumida, portanto, neste trabalho excede o domínio lógico-semântico e se efetiva à luz de
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relações discursivas, intrínsecas ao conhecimento de mundo dos participantes da interação (ZIV, 1993, 1997).2 Seguindo essa perspectiva, as paratáticas justapostas, mesmo sem marcas linguísticas explícitas, licenciam uma leitura causal, desvinculando, dessa forma, a representação conceitual e linguística da causalidade, mas, ao mesmo tempo, atrelando a representação conceitual a aspectos pragmático-discursivos, apreendidos no contexto.3 Nessas condições, as construções paratáticas justapostas, nos textos analisados, permitem, contextualmente, a apreensão de leituras causais, dentro da polissemia semântica desse domínio, realizando, na grande maioria dos casos, causais de conteúdo sócio-físico (SWEETSER, 1991), do tipo causa-efeito ou asserção-explicação, conforme, respectivamente, os exemplos extraídos dos textos (01) e (02). (Texto 01) Usando oculos Anta. A femia é maior doque o macho o filhotes e quinem a mãe a anta não enxerga direito Ø ela fica trombando nas arvores Ø ela gostadecoisa salgada Ø os cassadores pôm sacolas de sal e quando chóve molhaosal e as coisas que ela come ficão salgadas e também ela é muito grande ela é grande do tamanho de um elefante éla é mamifera. [CALIL01-P(9)] (Texto 02) Mai hoje eu apredi como cuida do ovido itudo mais é muintacoisa Ø não daprais prica porque é coisa dimais ite uma cordinha que sobe ate u selepru e tanbei que tetrês Esse entendimento aproxima-se de uma categoria básica para a representação do conhecimento humano que abrange uma polissemia semântica – causa, consequência, razão, explicação e justificativa. 3 Esse fenômeno foi também investigado por Ziv (1997) para construções do inglês. O autor mostra que interpretações causais podem derivar de princípios associados à relevância (GRICE, 1975) e ao conhecimento de mundo, em estudos de paratáticas justapostas, paratáticas com and, bem como construções não-finitas de gerúndio e particípio, além de construções relativas. Sobre construções relativas com valores circunstanciais, ver também Longhin; Lopes-Damasio (no prelo). 2
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ossino [CALIL01-P(8)]
No texto (07), produzido a partir da P(9) Precisando de óculos, o escrevente se dirige ao outro/destinatário pesquisador/professor a partir do título, Usando óculos, que liga seu enunciado ao que foi enunciado na proposta. No entanto, sente a necessidade de especificar ainda mais o tema de seu dizer, de modo que sinaliza, com o título Anta, outra representação de destinatário, enquanto interlocutor direto que não conhece o animal sobre o qual falará e que, portanto, justifica a descrição que será apresentada. Nessa cena, a criança representa a si mesma como alguém que detém conhecimentos necessários para apresentar um determinado animal ao outro/destinatário, representado como aquele que não conhece esse animal, quando, na realidade, também acabou de ser apresentada a ele, como mostra a comparação ela é grande do tamanho de um elefante. Os enunciados são filtrados, portanto, basicamente, em tradições descritivas, associadas a argumentativas, já que algumas características do animal que é apresentado e daqueles que com ele se relacionam (os caçadores) precisam ser explicadas. Na primeira sequência binária em destaque, a anta não enxerga direito Ø ela fica trombando nas árvores, o fato de não enxergar direito é entendido como a razão de as antas ficarem trombando nas árvores. Na segunda, ela gosta de coisa salgada Ø os cassadores põem sacolas de sal, o fato de elas gostarem de coisas salgadas é entendido como a razão da atitude dos caçadores. Nessas sequências, a ordem temporal icônica e a semântica verbal de ação ou evento disponibilizam para os enunciados a interpretação causal. No plano informacional, cada par do complexo causal é responsável pela apresentação de uma informação nova que, no plano prosódico, codifica-se em unidades entoacionais distintas. A relação de causa-efeito entre essas informações novas, em orações entoacionalmente independentes, é, entretanto, codificada no contexto, a partir do conhecimento de mundo (recém-adquirido) do falante/escrevente. No texto (08), produzido a partir da P(8) Relato de experiência, conforme o que lhe foi proposto, o escrevente dirige-se ao outro/destinatário Mãe, representado como participante-interlocutor
direto
do
diálogo,
mas
fica
evidente
também
um
outro/destinatário constituído pelo pesquisador/professor, que é quem torna necessária a argumentação do escrevente em relação aos motivos de não se sentir em condições de relatar/explicar a experiência realizada. O diálogo com esse outro/destinatário parece
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também encontrar eco no trecho e tem uma cordinha que sobe até o cérebro e também que tem três ossinhos, informações talvez relembradas pelo professor/pesquisador ao aluno no momento da produção do texto. De forma mais pontual, na sequência – é muita coisa Ø não dá para explicar –, a asserção é muita coisa é a base do adendo explicativo não dá para explicar, ou seja, não posso explicar tudo o que aprendi, porque é muita coisa/é coisa demais. Há, nesse contexto, no plano discursivo, um adendo que resulta de uma avaliação que o escrevente faz de seu próprio discurso e que, portanto, justifica sua asserção inicial, seu posicionamento. Como no exemplo anterior, no plano informacional, cada par do complexo causal é responsável pela apresentação de uma informação nova que, prosodicamente, é codificada em unidade entoacional distinta. Novamente, é o conhecimento de mundo do escrevente que sustenta a relação de causalidade apreendida no contexto. Em outras palavras, é a partir de uma avaliação pessoal acerca das condições de seu discurso, que o escrevente faz uma afirmação e um adendo e estabelece entre eles uma relação de causa do tipo asserção-explicação. De acordo com Ziv (1993), portanto, o sentido causal, nas paratáticas justapostas, é legitimado, contextualmente, por princípios de ordem discursiva. A noção de tempo, em certas instâncias, alimenta a leitura de causa, dado que a sucessão temporal entre os eventos no mundo traduz-se, linguisticamente, na ordenação de orações assimétricas, ligadas a uma ordem icônica, que faz convergir mundo e linguagem. Nessa ordem icônica, a interpretação do que vem antes como causa, como ocorre nas ocorrências destacadas do texto (01), e asserção, como na do texto (02), e o que vem depois como efeito/explicação, respectivamente, é bastante natural: é natural a anta trombar nas árvores, porque não enxerga; os caçadores colocarem sacolas de sal, porque a antas gostam e eles querem atraí-las; alguém não conseguir explicar algo, porque esse algo lhe parece muito complexo (coisa demais). No entanto, além da relação temporal, básica nas construções em questão, a relação de causa depende do contexto, que pode legitimar, ou não, a implicação causal, a partir do conhecimento do falante/escrevente e de suas crenças acerca do mundo. A noção de causa, nas paratáticas justapostas, é, pois, fortemente discursiva, sustentandose não só em traços do contexto linguístico, como a ordem icônica das orações e a
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significação verbal, mas também em esquemas enunciativo-discursivos dos modelos e expectativas de mundo. Esses esquemas são particularmente relevantes e, por isso, recorrentes, em contextos marcados pela tradição de apresentar um determinado ponto de vista, o do escrevente, chamado, correntemente, de argumentativos. Considerações finais O olhar lançado, neste trabalho, sobre as construções justapostas, em dados de aquisição do modo escrito de enunciação, permitiu confirmar a hipótese de que a ligação entre os membros desse tipo de construção e a relação de sentido que emerge dela são discursivamente decorrentes. Nessa direção, para a compreensão adequada desse tipo de construção, a consideração de questões inerentes às TDs é tão relevante quanto a de suas propriedades morfossintáticas, semântico-lexicais e prosódicas. No ambiente discursivo de uma dada TD, frames/esquemas/scripts são evidenciados e para que as expectativas deles decorrentes sejam atendidas, algumas relações de sentido, ainda que não estejam explicitamente marcadas, são mais esperadas que outras. A relação de causa, como mostrado, excede o domínio lógico-semântico e se efetiva à luz de relações discursivas, intrínsecas ao conhecimento de mundo e ao conjunto de crenças dos participantes da interação, especialmente do escrevente, em determinados enunciados relativamente estáveis (BAKHTIN, 2000). Essa relação foi constatada nos textos sempre que o traço recorrente é a argumentação, para o estabelecimento do vínculo causa-efeito ou asserção-explicação a partir de conteúdo sócio-físico. Uma questão discursiva relevante neste trabalho e que segue os resultados apresentados por Capristano; Oliveira (2014) é a representação que o escrevente faz do outro/destinatário de seu enunciado, que emerge, nos textos, concomitantemente voltada para: (i) o outro instituição escolar que não pode deixar de ser reconhecido, visto que todos os textos pertencem a uma macro TD escolar, enquanto tradição de escrever que se configura exclusivamente no contexto formal da escola; (ii) o outro professor/pesquisador; e (iii) o outro participante-interlocutor direto do diálogo. A essa questão, associo a dependência dos enunciados ao contexto de enunciação, em que escrevente e leitor compartilham a mesma situação de enunciação,
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o que permite ao primeiro apontar para ela na configuração dos sentidos do texto. Nesse universo, o uso das justaposições é um gesto da criança/escrevente que indicia o fato de que ela conta com esse conhecimento partilhado com seu outro/destinatário/leitor, no momento da enunciação. Na mesma linha de Capristano; Oliveira (2013, p. 355) e Corrêa (2004), sugiro que, por acreditar que o contexto em que o seu enunciado foi produzido está plasmado em sua escrita, a criança junta as orações de forma justaposta, sem explicitar, por mecanismos táticos de junção, a codificação das mais diferentes relações de sentido, da mesma forma como realiza outras manobras, como a utilização de expressões nominais definidas e pronomes sem referentes, investigadas em outros trabalhos (cf. CAPRISTANO; OLIVEIRA, 2013). No entanto, esse gesto do escrevente em fase de aquisição de um modo (escrito) novo de enunciar apresenta uma especificidade, enquanto gesto que se realiza em enunciados relativamente estáveis: ao mesmo tempo em que aponta para o contexto, deixa pistas também no co-texto, ou seja, marcas linguísticas que aproximam o outro/destinatário da relação de sentido pretendida. Isso indica que o sujeito se insere na escrita, circulando pelo fixo, mas também pelo lacunar das tradições. Sintetizando, aponto pelo menos três considerações importantes que resultam desse estudo: (i) na composição sintagmática de uma dada tradição, atuam outras tradições, de forma dinâmica – o que estou chamando de mescla de TDs; (ii) o fator que rege esse princípio de composicionalidade das TDs é fortemente discursivo, no sentido de que são os propósitos discursivos do sujeito, segundo suas representações de um determinado momento, espaço de interlocução e outro/destinatário de seu enunciado, que determinam quais tradições atuam como matéria para a produção de uma tradição; e, por fim (iii) nos dados de aquisição do modo escrito de enunciar, a mescla de TDs, bem como as junções que ocorrem no interior de uma mesma tradição, são recorrentemente empreendidas por meio da justaposição, enquanto gesto que aponta, no espaço gráfico, para a situação concreta de enunciação, uma vez que o sujeito imprime, na construção de tradições da escrita, suas experiências com as tradições da oralidade, especialmente o diálogo. Referências
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EU CONTO EM LIBRAS E RECONTO NA LÍNGUA PORTUGUESA: A REESCRITA DO ALUNO SURDO Luciana Aparecida Guimarães de Freitas (PBH)
Introdução Os estudos sobre a leitura e principalmente a escrita de alunos surdos, estão sempre em pauta nos eventos relacionados à surdez. Muito se ouve falar e é possível presenciar discussões e relatos sobre como o aluno surdo escreve. Mas a proposta é a apresentação de um trabalho para se chegar nessa escrita. Utilizamos a escrita a todo momento para nos comunicar: e-mails, cartas, recursos tecnológicos no celular ou computador nas redes sociais. A cada dia utilizamos mais desses recursos para estabelecer uma comunicação seja de perto ou à distância. As pessoas surdas não são diferentes, elas querem, necessitam e podem se comunicar através de uma língua – a Libras – e a Língua Portuguesa na modalidade escrita, conforme o decreto 5.626/2005 que reconhece a Língua de Sinais Brasileira como primeira língua da pessoa surda e a Língua Portuguesa como segunda língua. Portanto, o foco desse trabalho será a leitura e a reescrita do aluno surdo. No primeiro ciclo de alfabetização – turma de alunos surdos, numa Escola Municipal de Belo Horizonte, a partir de uma metodologia de análise global do texto e de atividades contextualizadas. O trabalho apresentado será baseado na literatura infantil A Bonequinha Preta, da escritora Alaíde Lisboa, numa proposta Bilíngue, tendo como língua mediadora a Língua de Sinais Brasileira e, como resultado final, a produção escrita do reconto da obra de Alaíde Lisboa, uma das maiores escritoras mineiras.
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Alfabetização e Letramento do aluno surdo: uma busca contínua Ao pensar sobre a Alfabetização e Letramento, não podemos deixar de conceituar estas duas palavras à luz da educação. No seu livro Letramento: um tema em três gêneros, Soares (2009) nos esclarece que essas duas palavras foram usadas ao longo dos anos com diferentes objetivos. No primeiro momento a autora recorre ao uso do dicionário para conceituá-las e nos mostra que já estamos familiarizados com a palavra Alfabetização e que Letramento é ainda um assunto novo nas práticas educacionais. Soares define que ANALFABETO é aquele que não conhece o alfabeto, que não sabe ler e escrever (p.30) e ALFABETIZAÇÃO é a ação de alfabetizar, de tornar “alfabeto” (p.31). Diante do uso dessas palavras e derivadas, eis que surge a palavra letramento A palavra letramento ainda não está dicionarizada, por que foi introduzida muito recentemente na língua portuguesa, tanto que quase podemos datar com precisão sua entrada na nossa língua, identificar quando e onde essa palavra foi usada pela primeira vez. [...] Parece que a palavra letramento apareceu pela primeira vez no livro de Mary Kato1: No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística, de 1986. (SOARES, 2009, p.32)
Atualmente usamos mais a palavra letramento, mas ainda percebemos dificuldades dos professores em conceituar estas duas palavras e diferenciá-las. Nos cursos de formação docente, vimos ainda uma resistência em dar o significado e discutir sobre o assunto. Soares acredita que Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque, no quadro das atuais concepções psicológicas, linguísticas e psicolinguísticas de leitura e escrita, a entrada da criança (e também do adulto analfabeto) no mundo da escrita ocorre simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional de escrita – a alfabetização – e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita – o letramento. (SOARES, 2009, p. 14)
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KATO, Mary A. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. São Paulo: Ática, 1986. (Série Fundamentos)
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Segundo a autora, alfabetização e letramento são processos indissociáveis no ensino e na aprendizagem das primeiras letras para o aluno. Não é correto dissociar essas duas concepções chamando a atenção para as práticas sociais e conclui que letramento é o estado ou condição de quem interage com diferentes portadores de leitura e escrita, com diferentes gêneros e tipos de leitura e de escrita, com diferentes funções que a leitura e a escrita desempenham na nossa vida. Enfim: letramento é o estado ou condição de quem se envolve nas numerosas e variadas práticas sociais de leitura e escrita. (SOARES, 2009, p.44)
Diante disso, podemos inferir que a condição para ser letrado não é inerente ao processo de alfabetização, pois o indivíduo antes mesmo de ler e escrever já está em contato com os vários portadores de leitura e escrita como: revistas, jornais, livros, rótulos e embalagens que apresentam conteúdos de acordo com a sua função social. Isso mostra que o sujeito poderá ser analfabeto e letrado como também alfabético e iletrado. Não se pode negar a devida importância ao processo árduo da tecnologia do ler e escrever. Codificar e decodificar as palavras também são necessários para a construção de um leitor e escritor, só não podemos dissociar essas duas práticas. A leitura e escrita devem ser com significado. O processo de alfabetizar letrando do aluno surdo Mas em se tratando de alunos surdos o que alguns autores pensam sobre o assunto? Diante desta questão abordaremos aqui a opinião de alguns autores sobre a educação dos surdos e o ensino da Língua Portuguesa na modalidade escrita. De acordo com Sanchez (apud Fernandes), Em seu processo de letramento ele (aluno surdo) passará de uma língua não-alfabética (a língua de sinais) para uma língua alfabética (o português). A condição diferenciada dos surdos que aprendem a ler e escrever o português sem passar pelo conhecimento fonológico da língua é denominada como a de “leitores não alfabetizados”. Isso
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significa que são leitores competentes em uma primeira língua nãoalfabética e dominam a forma escrita de outra língua alfabética, sem conhecer os sons de suas grafias (SÁNCHEZ, 2002 apud FERNANDES, 2006, p.8)
A autora considera a Língua Portuguesa com base alfabética e com diferente estruturação em relação a Libras e que, portanto, os alunos surdos terão dificuldades no processo de aprendizagem da leitura e escrita. E Sanchez lança um questionamento: “como alguém que não ouve e que, portanto, não pode discriminar os diferentes traços definitivos e talvez, nem sequer conceber os sons da fala, poderia correlacionar os sons as letras e vice-versa?” (SANCHEZ, 2002, p.12). Sanchez (2002) não vê possibilidade no aprendizado da Língua Portuguesa a partir da concepção oral-auditiva em que está organizada toda a estrutura dessa língua. Já Fernandes (2006), por sua vez, também critica a forma como são oferecidas as metodologias e o ensino para o aluno surdo, pois As dificuldades na leitura e escrita ainda são alardeadas como principal problema dos surdos e professores esforçam-se por buscar caminhos para ensinar o português, entretanto seguem tentando “alfabetizar” os surdos com as mesmas metodologias utilizadas para crianças que ouvem. O português permanece sendo o inatingível objetivo da escola. (FERNANDES, 2006, p.5)
E ainda nos diz que “seja partindo de textos, de palavras, de famílias silábicas ou de letras isoladas, o processo de alfabetização baseia-se em relações de fonemas e grafemas” (FERNANDES, 2006, p.8). Sendo assim, percebe-se uma insatisfação em relação às práticas pedagógicas na educação dos surdos. Assim também podemos ver nas palavras de Quadros (2003, p. 100), “que os professores desconhecem a experiência visual surda e suas formas de pensamento que são expressas através de uma língua visual-espacial: a língua de sinais”. Para a autora ainda há um despreparo em relação aos professores que estão presentes na sala de aula sem conhecimento da Libras e que são responsáveis pela Alfabetização e
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Letramento deste aluno, mesmo sem ter acesso a um curso de Libras e sem conhecer aspectos muito específicos da surdez, que vai além de uma deficiência. Os surdos são diferentes, mas não deficientes, salvo alguns casos em que a pessoa tenha um comprometimento no que tange o entendimento ou impedimento de realizar qualquer outra atividade. É imprescindível que o aluno surdo tenha acesso às informações na sua língua materna, a Libras, para que tenha significado nas práticas sociais. Para os autores Fernandes, Quadros e Sanchez, o aprendizado da Língua Portuguesa ocorre de maneira equivocada, visto que há por parte dos educadores pouco preparo e falta de conhecimento sobre a área da surdez e quanto à metodologia a ser utilizada no ensino da Língua Portuguesa como segunda língua para o aluno surdo. É importante destacar a insatisfação que esses autores apresentam em relação ao desempenho do aluno surdo e a prática pedagógica do professor. Sabemos das dificuldades e anseios de cada um em relação ao seu ponto de vista, de um lado o professor sem conhecimento e do outro lado um aluno que necessita entender o seu mundo de acordo com a leitura que o outro fará por ele. Aquisição tardia da Libras e a Língua Portuguesa: conflitos na aprendizagem Ao longo dos anos a pessoa surda foi considerada incapaz de realizar qualquer atividade ou não se dava crédito a ela por causa da surdez. Ser surdo era sinônimo de deficiência e por isso durante séculos, a comunidade surda carregou as marcas da deficiência e da incapacidade. A partir do século XVI, como nos conta a história, alguns educadores da época começaram a olhar para a pessoa surda acreditando na sua capacidade de aprender e compreender as situações vivenciadas, desde que fossem apresentadas a eles de forma compreensível. Cardano, Pedro Ponce de Leon e Abade L´epee são alguns dos nomes que aparecem na história da educação dos surdos, mostrando como estas pessoas contribuíram para que os surdos saíssem da marginalização sendo consideradas pessoas capazes de aprender e desenvolver na sociedade. Naquela época deu-se o início da comunicação pela Língua de Sinais, na qual temos influência da Língua de Sinais Francesa (LSF). A partir daí começaram a pensar sobre a educação dos surdos. Nesse
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pensar surgiram três filosofias educacionais que até nos dias de hoje orientam os docentes sobre as práticas pedagógicas na educação dos surdos. No livro “A Criança Surda”, da autora Márcia Goldfeld, além de falar sobre as filosofias educacionais, faz também uma análise crítica sobre essas filosofias. O Oralismo percebe a surdez como uma deficiência a ser minimizada pela estimulação auditiva, reabilitando a criança surda em direção à normalidade (GOLDFELD,2001).
Goldfeld analisa
também que para a sociedade naquela época o mais importante é que o surdo oralizasse e tornasse participante da cultura ouvinte, mas estudos comprovaram que a capacidade de entendimento através da leitura labial é muito inferior e neste sentido a pessoa surda perde muito na comunicação por causa da falta de entendimento. Com a percepção de que o surdo estava com baixo rendimento escolar, devido à oralidade e a falta de entendimento na comunicação, os estudos apontam para outra filosofia denominada Comunicação Total a partir dos anos 60. A Comunicação Total foi muito difundida a ponto de ser adotada na Universidade de Galaudett que se tornou o maior centro de pesquisa desta filosofia, mas mesmo assim sofreu críticas por utilizar de todas as formas de comunicação, desvalorizando a Língua de Sinais e incidindo ainda dificuldades na comunicação devido ao uso do Português sinalizado, como aqui no Brasil e ocorrendo em vários países como Francês sinalizado, Inglês sinalizado e outras. Diante dessas discussões, eis que surge uma nova filosofia educacional que ainda mostra vários questionamentos e pesquisas sobre o assunto. A terceira filosofia é o Bilinguismo. Nessa filosofia, de acordo com o Decreto 5.626/2005, a Língua de Sinais Brasileira (Libras) é reconhecida como a primeira língua da comunidade surda e deverá ser ensinada como tal e a Língua Portuguesa como segunda língua na sua modalidade escrita. O importante desta filosofia é sua relação com o desenvolvimento da criança surda. Esta língua é a única que pode ser adquirida espontaneamente em suas relações sociais, nos diálogos, adquirindo da mesma força e velocidade que a criança ouvinte adquire a língua oral, não sofrendo nenhum dano cognitivo ou emocional decorrente do atraso da linguagem.
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Portanto, aprender a ler e escrever ainda são os grandes desafios para os professores que lidam com as dificuldades de aprendizagem de discentes surdos em sala de aula. Os conflitos na aprendizagem se dão pelo fato de que a maioria dos alunos surdos chegam à escola sem a compreensão da Libras e pouco conhecimento da Língua Portuguesa oral, por ter uma habilidade na leitura labial, muitas crianças surdas conseguem identificar algumas palavras e algumas ordens dadas, no ambiente familiar. Muitas vezes utilizam de gestos naturais criados junto aos pais, irmãos, parentes e amigos próximos. A literatura infantil como proposta de trabalho A literatura infantil na escola representa estímulo forte à aprendizagem da leitura e da escrita, seja na forma de reconto ou produção textual. Essa atitude como proposta de trabalho nos anos iniciais pode estimular o desenvolvimento psicológico, cultural, emocional, cognitivo e a criatividade do educando. O trabalho foi realizado na proposta bilíngue. O ensino a todo o momento foi ministrado nas duas línguas: Libras e Língua Portuguesa na modalidade escrita. Foram desenvolvidas atividades baseadas nas concepções de Quadros, que diz que “as atividades devem sempre ser precedidas pela leitura em sinais, uma leitura contextualizada e que provoque nos alunos interesse pelo assunto” (QUADROS, 2006, p.40). Corroborando com tais idéias, podemos repensar a nossa prática pedagógica em que fosse possível a interação de todos os alunos. O foco era a aprendizagem e foi imprescindível apontar caminhos que levassem a ela. O Bilingüismo ainda é uma proposta nova para a educação dos surdos, é necessário o empenho de vários profissionais para que esse novo enfoque dê certo e se torne efetivamente o modelo de educação para os surdos, privilegiando o acesso, a permanência e a construção de um conhecimento prático com autonomia e respeito às pessoas surdas. A utilização de recursos imagéticos, para visualização dos conteúdos: vídeos, dramatização, contos e recontos da Literatura Infantil e as atividades escritas sobre a história, foram determinantes para a organização do pensamento e aprendizagem em duas línguas distintas.
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Neste trabalho o uso do gênero Literatura Infantil, propiciou saberes e fazeres dentro da sala aula e desenvolvimento da comunicação. A Literatura Infantil permitiu a ampliação de vocabulário através do reconto e leitura das imagens. Reconhecer a importância da literatura infantil e incentivar a formação do hábito de leitura é o caminho que leva a criança a desenvolver a imaginação, as emoções e os sentimentos de forma prazerosa e significativa. A oferta da literatura infantil na escola representa um estímulo forte à aprendizagem da leitura e escrita, seja na forma de reconto ou produção textual. Essa atitude, como proposta de trabalho, nos anos inicias, pode estimular o desenvolvimento psicológico, cultural, emocional, cognitivo e a criatividade do educando. Os contos infantis oferecem à criança uma forma lúdica de aprender e contribuem para sua formação. O método utilizado foi o Método Global de Contos que se baseia na unidade tomada como ponto de partida, o texto. O que se pretende com a escolha de um método para a alfabetização de alunos surdos é experimentar como este método poderá favorecer a aprendizagem deste aluno. De acordo com Maciel, “aceitemos que, desejando aprender, a criança o consiga mediante qualquer método, mas sejamos bastante razoáveis para conceber que se aprende mais rapidamente e melhor com um bom método”. (MACIEL, 2008, p.108) É importante ressaltar aqui, a participação deste aluno na sua aprendizagem com o desenvolvimento da autonomia. A proposta apresentada neste trabalho é o uso do método global de contos, sem fazer uso da relação letra e som e sim a leitura do texto, frase e palavras a partir dos recursos imagéticos levando o aluno a fazer uma leitura crítica e contextualizada do conteúdo proposto. A literatura escolhida foi A Bonequinha Preta, da autora Alaíde Lisboa e os alunos fizeram o reconto da história através da Libras e posteriormente várias atividades de alfabetização e letramento foram inseridas para a apropriação da escrita. Num primeiro momento, a sinalização foi feita pela professora em momentos distintos,
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pois a turma tinha aulas de Libras com a instrutora surda e posteriormente as outras disciplinas foram ministradas pela professora bilíngue que fazia uso da Libras como língua mediadora da comunicação para troca de conhecimentos entre alunos e professores, no ensino dos conteúdos escolares. As aulas foram ministradas com o uso de slides projetados pelo datashow, em tons e tamanhos que propiciaram a participação dos alunos nas atividades de reconto. O respeito pelo entendimento e compreensão dos assuntos estudados, com o uso da Libras, garantiram aos discentes, aulas que possibilitaram um desenvolvimento lógico do pensamento. Para facilitar aos alunos o reconto da história, foi dada a oportunidade de colocar as imagens na ordem correta dos acontecimentos da história e vice-versa. A professora sinalizava cada etapa da história e eles colocavam em ordem, assim também, após a ordenação das cenas, a professora sinalizava e os alunos teriam que escolher a cena correta. Pequenos trechos da história foram apresentados na modalidade escrita em que os alunos puderam ler, interpretar questões de múltipla escolha e questões abertas. Assim como também outras atividades como jogo da memória com a imagem e palavra, textos lacunados, caça-palavras e cruzadinhas propiciaram aos alunos uma ampliação no vocabulário e o contato com a escrita que favoreceu a reescrita da história. Considerações finais A importância das atividades para os alunos e a necessidade que a criança surda possui de apreender o conteúdo a partir da imagem foi destaque para a discussão final. Dessa forma se torna mais claro para o aluno a construção do conhecimento, pois não apresenta ou apresenta pouco recurso auditivo para captar mensagens orais. A oralidade dificulta o processo de conhecimento da informação para o indivíduo surdo, sendo de extrema necessidade o conteúdo a ser ensinado na Língua de Sinais e posteriormente na Língua Portuguesa escrita tendo como referência as pistas visuais. Houve uma estruturação de idéias e situações em que tanto as professoras e os alunos desempenharam o papel de colaboradores no processo de ensino e aprendizagem, pois à medida que os alunos foram participando da atividade, os mesmos serviam de referência
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para os outros alunos permitindo a criação de estratégias de aprendizagem para o desenvolvimento pleno da linguagem que facilitou a comunicação e a aprendizagem em grupo e individual. Nos resultados foram observados a ampliação de vocabulário e comunicação na Língua de Sinais Brasileira, assim como a produção da reescrita da História A Bonequinha Preta, da autora Alaíde Lisboa. Referências
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TRANSFERÊNCIAS DA LINGUAGEM ORAL PARA A ESCRITA: UM ESTUDO DISCURSIVO DO GÊNERO CARTA DE APRESENTAÇÃO Luciane Watthier (UNIOESTE / Bolsista CAPES) 1 Introdução Este texto se inscreve nos trabalhos que desenvolvemos no Projeto de pesquisa “Formação continuada para professores da educação básica nos anos iniciais: ações voltadas para a alfabetização em municípios com baixo IDEB da região Oeste do Paraná”, ligado ao Observatório da Educação – OBEDUC. É parte das reflexões que estamos desenvolvendo em nossa tese de doutorado, cujo objetivo é olhar para textos do 5º ano do Ensino Fundamental e do 1º ano da graduação em Letras, identificando, analisando e interpretando criticamente, nesse corpus, as transferências da linguagem oral para a escrita no nível discursivo/textual, estabelecendo relações com a configuração dada ao conteúdo temático, construção composicional e estilo linguístico desse gênero discursivo por esses dois públicos. Além disso, outro objetivo que delineia o desenvolvimento de nossa tese é a compreensão de como se dá o trabalho com esse tema nas aulas de Língua Portuguesa no 5º ano do Ensino Fundamental dos municípios envolvidos. A partir de tal estudo, o objetivo final é propor encaminhamentos metodológicos o ensino da língua portuguesa, já que o trabalho se inscreve na Linguística Aplicada. Essa necessidade de pesquisa se delineou a partir da observação de que muitos alunos do 5° ano escrevem como se estivessem falando, com expressões próprias da língua oral, sem marcação de pausas, sem utilização dos sinais de pontuação e de paragrafação e uso de letras maiúsculas. São dificuldades no plano discursivo/textual, principalmente no que se referia à organização e registro das ideias, as quais interferiam na organização do texto, por vezes prejudicando, até mesmo, sua compreensão. O corpus de pesquisa é constituído por Cartas de Apresentação do 5º ano do Ensino Fundamental e do 1º ano da graduação em Letras da turma 2013 da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), campus de Cascavel. No
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total, são 51 cartas analisadas, sendo 42 do primeiro público citado e 09 do segundo. Para este texto em específico, analisamos um texto do Ensino Fundamental e um do Ensino Superior. Neste trabalho, pautamo-nos nas teorias do círculo de Bakhtin e, assim, na concepção dialógica de linguagem e no interacionismo. Compreendemos, portanto, que o desenvolvimento social e cognitivo do ser humano se dá por meio de relações dialógicas com a linguagem. A interação verbal permite, pois, no diálogo com o outro e com suas ideologias, (re)construir a si e ao mundo, pois todo enunciado está carregado de múltiplas vozes sociais. O mais importante no dialogismo é o encontro, a conversa entre as vozes sociais, os valores nelas expressos por diferentes sujeitos sociais e a construção de sentidos. 2 Análise dos dados Considerando a extensão do corpus de pesquisa, não é possível apresentar, aqui, o estudo completo de todas as cartas. Por isso, iniciamos com comentários gerais das reflexões realizadas, para, em seguida, falar especificamente de dois textos, sendo a carta 01 do Ensino Fundamental e a 02 da graduação. Sendo assim, analisamos as cartas seguindo essa ordem metodológica de Bakhtin. Olhamos, primeiro, para o conteúdo temático; em seguida, para a construção composicional e, por último, para o estilo linguístico, quando tratamos, ainda que de forma breve, das transferências da linguagem oral para a escrita. Seguem os textos analisados neste capítulo: Carta 01:
Fonte: Banco de dados do projeto OBEDUC
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Carta 02:
Fonte: Banco de dados do projeto OBEDUC
Pautando-nos em Bakhtin (2010), o conteúdo temático de um texto é constituído, pelo “sentido da enunciação completa” (BAKHTIN, 2010, p. 128), o que significa olhar para além do linguístico e, assim, contemplar todo o discurso dos alunos, ou seja, seu querer-dizer justificado e originado na situação de interação. Dessa forma, para visualizarmos a configuração dada ao conteúdo temático, apresentamos, a seguir, um quadro com a exploração de seu contexto de produção: Quadro 01 – Conteúdo temático e contexto de produção das cartas de apresentação Aspecto analisado Autores
Configuração nas cartas do 5º ano do Ensino Fundamental Alunos do 5º ano do Ensino Fundamental, de escolas públicas dos envolvidos. de escolas públicas Papel social do Alunos municipais. autor Suporte de Folha de papel. circulação Veículo de Nesse caso, houve um contato direto entre locutores e a interlocutora, pois circulação o texto foi entregue pelos alunos diretamente à professora. Propósito de Apresentar-se à interlocutora produção Momento em que os alunos recebem Momento uma visita, considerada, por eles, de histórico grande importância e, por isso representado querem falar tudo o que consideram relevante em sua vida. Professora Luciane Watthier Interlocutor
Configuração nas cartas do 1º ano da graduação em Letras Alunos do 1º ano da graduação em Letras (turma 2013) da UNIOESTE. Alunos da graduação, calouros no curso de letras. Folha de papel. Houve um contato direto entre locutores e interlocutores (a carta foi entregue em mãos por seus autores). Apresentar-se à interlocutora Momento em que esses alunos estão iniciando uma graduação em Letras e, por isso, apresentam-se às professoras da disciplina Leitura e Produção Textual. Professoras Terezinha da Conceição Costa-Hübes e Dayane Hoffmann
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Papel social do Professora de uma cidade vizinha que Professoras da disciplina Leitura e os visitava para conhecê-los melhor e Produção Textual do 1º ano do interlocutor desenvolver sua pesquisa. curso em Letras da UNIOESTE – 2013. Local e data de A proposta foi desenvolvida por A proposta foi desenvolvida no dia cidades, cada uma em uma data 21 de fevereiro de 2013, na cidade produção distinta. de Cascavel. Fonte: organizado pela pesquisadora
Guiados pelo objetivo comunicativo da Carta de Apresentação, no 5º ano, os subtemas de escrita foram variados: preferências; assuntos particulares de sua vida: um “bueiro” que caiu próximo a sua casa, a morte de um irmão, a separação dos pais e a superação desses fatos, o telhado da casa que caiu, animais de estimação que morreram, casa que a mãe conseguiu comprar pelo programa “Minha casa, minha vida, etc.; dia a dia: horário em que acordam e as atividades realizadas durante o dia; família: com quem e onde moram, em que trabalham seus familiares, onde já moraram, etc.; assuntos relacionados à escola: nomes de professores, de amigos, atividades que mais gostam, brincadeiras ou jogos de que participam durante o intervalo, horário em que estudam, outros cursos que realizam, etc.; profissão que desejam seguir; apresentação pessoal: nome, idade, local em que nasceram (nome da cidade e do hospital), etc.; nossa visita: agradecendo e dizendo que ficaram felizes com a carta recebida, que gostariam de conhecer-nos melhor, de conhecer nossa casa e de que fôssemos visitá-los novamente. Houve, então, uma grande diversidade de subtemas. No entanto, todos são relacionados ao aluno. Assim, embora alguns sejam inadequados ao gênero (acontecimentos pessoais que tiram o foco da apresentação), não descaracterizam o texto como uma Carta de Apresentação. Houve, dessa forma, uma compreensão do objetivo da proposta de produção escrita e a funcionalidade do gênero discursivo, cumprindo-o e dando continuidade à interação iniciada com a carta recebida. Isso foi demonstrado no discurso desses alunos, o qual se organizou conforme o gênero discursivo carta de apresentação, materializado no texto/enunciado produzido. Já em relação às cartas da graduação, temos interlocutores jovens e adultos, que estão cursando uma graduação. A maioria entre 17 e 20 anos. Isso é refletido nas próprias produções e nos subtemas de escrita. Assim, ao se apresentarem, ao invés de falarem sobre a rotina do dia a dia, animais de estimação, brincadeiras preferidas e outros gostos pessoais, predominaram falas sobre o estudo e a profissão que desejavam
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seguir (professores de língua portuguesa e/ou estrangeira), sobre a família e gostos pessoais, pois era o mais adequado para o contexto social do momento: professores universitários e alunos da graduação na Universidade, na primeira aula da disciplina. Constatamos, dessa forma, que, no contexto social de escrita dessas cartas, esses alunos selecionaram
temas
mais
adequados
para
o
interlocutor.
Nesse
sentido,
Bakhtin/Volochinov apontam que “a situação e os participantes mais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p. 114), ou seja, o que e como se diz. Vejamos essas características nas cartas 01 e 02. Na carta 01, o aluno aponta vários assuntos, para ele, considerados importantes, mas percebemos que a família se destaca, pois umas das primeiras ideias desenvolvidas é o fato de que ele é amado por seus pais e irmãos. Essa fala constitui-se a partir das ações que se pressupõe do outro sobre o locutor, isto é, seu interesse em saber sobre sua família. Nesse sentido, “trata-se das outras vozes discursivas - posições sociais, opiniões - que vêm habitar de diferentes formas o discurso em construção” (DI FANTI, 2003, p. 98), interferindo na seleção do que e como dizer. Destacamos, ainda, que o autor, embora desenvolva subtemas mais distantes do contexto escolar, não deixa de assumir sua função social de aluno, pois se coloca como tal ao falar de sua classe e, ainda, ao se dirigir a sua interlocutora tratandoa por “Querida prof° Luciane”. Já a carta 02 é um exemplo que se detêm a falar apenas da área profissional. A carta resume-se a esses dois subtemas, além de sua apresentação pessoal (nome e idade). Assim, para esse autor, o mais importante a se falar, nesse contexto social, é em relação à profissão, apontando suas demais graduações e sua visão em relação a ser professor. Em outras palavras, esse autor assume sua função social de aluno, o que ele demonstra na seleção de subtemas mais adequados para a situação de interação estabelecida, ao se apresentar como graduando em Letras, justificando a escolha, falando de suas demais formações, e ao revelar, por meio de seu discurso, a função social de suas interlocutoras: professoras da graduação (“Caras professoras de Leitura e Produção Textual”). Conforme apontado anteriormente, em nossos estudos, pautamo-nos no dialogismo e, dessa forma, compreendemos que ele é constituinte da linguagem. Por
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isso, é inseparável da mesma, já que, parafraseando Bakhtin (2004), onde há língua, há relações dialógicas e a todo o momento, sujeitos se (re)construindo por meio da interação verbal. Nos textos analisados, isso pode ser visualizado em diversos fragmentos. Para exemplificar, trazemos um recorte de cada uma das cartas apresentadas ao início da seção: “Eu não sou casado e nem pretendo se caza agora porque só tenho 11 anos” (carta 01). Percebemos, aqui, a voz do outro; o autor dialoga, com suas ideologias, com as vozes sociais que organizam a sociedade (discurso religioso, familiar, entre outros), concordando com elas e aplicando-as em seu enunciado. Nas palavras de Bakhtin, “o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo [...], o ouvinte se torna falante” (BAKHTIN, 2010, p. 271). Assim, o fragmento destacado é, provavelmente, fala de algum adulto (você é muito novo para casar). Com essas vozes, o aluno dialoga em seu dia a dia, (re)constituindo-se como sujeito. Na carta 02, destacamos o fragmento: “Já no meu curso na UNIPAR notavase um tom marxista na educação mas aqui na unioeste no curso de pedagogia os professores nos emsinaram que o sistema capitalista é o meio de exproração e que nós devemos nos conscientizar na nossa profissão de formar cidadãos” (carta 02). Nesse trecho, está clara a voz dos professores do curso de história (marxistas) e dos de pedagogia (“professores nos ensinaram que o sistema capitalista é um meio de exploração”). Trata-se da voz do outro. Quando essas ideias são apresentadas, o autor com elas dialoga e reconstrói-se como sujeito, formando suas ideologias, discordando de ideias marxistas e concordando com o capitalismo. Assim, “o acontecimento da vida do texto, isto é, sua verdadeira essência se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos” (BAKHTIN, 2010, p. 311). Passemos a falar da construção composicional das Cartas de Apresentação. Esse gênero discursivo é composto, em sua estrutura, por alguns elementos principais, quais sejam: local e data, vocativo, texto, despedida e assinatura (BAUMGÄRTNER e CRUZ, 2009). Quanto aos 42 textos do Ensino Fundamental, praticamente todos conseguiram dominar essa construção, pois 35 apresentaram todos esses elementos, compreendendo o gênero produzido. Apenas 07 alunos tiveram dificuldades, no sentido
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de não colocar despedida, assinatura, data ou vocativo, ou de inverter a ordem padrão desses elementos. Lembramos que, no momento da escrita, isso foi facilitado porque havíamos iniciado a interação como esses alunos entregando-lhes nossa Carta de Apresentação, texto em que eles puderam visualizar a estrutura desse gênero discursivo. No entanto, isso não bastou: houve, de fato, uma preocupação com esse elemento, já que os alunos da graduação também haviam recebido uma carta de suas professoras e, mesmo assim, tiveram uma dificuldade muito maior quanto a esse aspecto: menos da metade (04 cartas de um total de 09) dominou o gênero em relação à construção composicional, o que representa um baixo domínio. Mais uma vez, reforçamos o caráter relativamente estável dos gêneros discursivos, pois, mesmo com essa inversão dos elementos ou a falta de algum deles, esses textos não deixaram de se caracterizar como Cartas de Apresentação porque cumpriram a função social de tal enunciado: “retratar a sua pessoa e personalidade” (MOSCHIN, 2012, p. 02), ou seja, falar de si, de suas habilidades, etc. Ainda em relação à construção composicional, a carta de apresentação é caracterizada por organizar-se, normalmente, em um texto curto (MOSCHIN, 2012): uma lauda e entre três e cinco parágrafos. Entretanto, nos textos do Ensino Fundamental, houve uma grande variação quanto a isso, porque temos produções de até duas laudas, demonstrando um interesse muito grande de escrita, por parte desses alunos. No entanto, nesse aspecto, percebemos a dificuldade na paragrafação, haja vista que sem mudar o subtema, muitos autores iniciam novos parágrafos ou misturam vários assuntos em um mesmo parágrafo (família, preferências, escola, profissão, etc.) ou, ainda, falam de um no início do texto, passam a outro, depois voltam para o anterior e assim por diante. Tal conteúdo não está, por isso, dominado por todos esses sujeitos. Já nas cartas da graduação em Letras, os textos se apresentaram, todos, com, no máximo, uma lauda. A maior parte configurou-se em 03 parágrafos, dos quais metade apresentou a seguinte organização: um para apresentação pessoal (nome, idade, onde mora, onde já morou, etc.), outro para estudos anteriores à graduação e, por fim, um para justificar a escolha do curso em Letras. Isso demonstrou um bom domínio desse conteúdo pela graduação, embora alguns alunos demonstraram dificuldades.
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Outro destaque a se fazer, ainda em relação à construção composicional das cartas, é o fato de que grande parte demonstrou que seus autores adotaram a carta recebida como um modelo a ser seguido, utilizando estrutura, paragrafação e expressões lexicais iguais ou semelhantes. Para configurar uma carta a mais próxima possível da comumente utilizada em relação à construção composicional, tomaram o texto recebido como um referencial. Tal fato não precisa ser tomado como algo negativo, haja vista que, para fazê-lo, foi necessária uma compreensão do conteúdo da carta que receberam para, após, por meio de atitudes responsivas ativas, produzir um novo enunciado. Vejamos como a construção composicional se configura nas Cartas de Apresentação 01 e 02. A carta 01, assinada por um aluno do 5º ano do Ensino Fundamental apresenta todos os elementos que compõem a construção composicional do gênero discursivo: local e data, vocativo, texto, despedida e assinatura (BAUMGÄRTNER e CRUZ, 2009). Nisso, ela se difere da carta 02, assinada por um aluno do 1º ano da graduação em Letras, que apresenta apenas o vocativo e o texto, não colocando os demais elementos que compõem a sua construção composicional: local e data, despedida e assinatura, o que não a desconfigura como Carta de Apresentação, já que, conforme já apontando, ela cumpriu a função social do gênero discursivo. Passamos, agora, ao terceiro elemento constitucional do gênero discursivo: o estilo linguístico. Ao encaminharmos essa proposta de produção nas turmas do 5º ano, esclarecemos que o estilo de linguagem de um determinado enunciado é definido pelo contexto social, pelo gênero discursivo e pelo propósito comunicativo do locutor. Dessa forma, apontamos que o mais adequado, naquela situação de interação, seria que tentassem desenvolver uma linguagem formal. Nos textos do 5º ano, do total de 42 analisados, 25 demonstraram marcas de linguagem formal, número que representa mais da metade das cartas. Em apenas 17, ou seja, pouco menos da metade houve, ainda, o uso da linguagem informal, com expressões próprias desse estilo. Por outro lado, das 09 cartas da graduação, quatro utilizaram o estilo informal e em outras quatro predominou o estilo formal. Comparando o estilo linguístico nos textos desses dois públicos, podemos apontar, novamente, uma grande dificuldade tanto nos textos do Ensino Fundamental quanto nos da graduação, já que, naquele contexto social, o mais adequado era um
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planejamento linguístico, de forma a não falaram tal qual pensavam. Isso porque a Carta de Apresentação é um gênero discursivo secundário, pois é mais complexo e exige um maior planejamento (BAKHTIN, 2010). Ou seja, a dificuldade persiste e é bem considerável, tendo em vista que, se pensarmos em percentuais, praticamente 50% dos textos do 5° ano e do 1° ainda se configura com linguagem informal quando o contexto exigia um estilo mais formal. No entanto, essa dificuldade deveria ter diminuído com esse tempo de escolarização e não sido mantida, como constatamos em nossas análises. Destacamos, também, o estilo linguístico dos vocativos e despedidas das cartas. A maioria dos alunos do 5º ano e do 1º ano utilizou expressões próprias da linguagem informal e, portanto, inadequadas a essa situação de comunicação. Por exemplo: “querida professora”, com muito amor”, “beijos e abraços”, “um grande abraço grande”, “um abraço com carinho”, “um beijo com muito carinho”, “um apreço do meu coração, beijo, beijo, beijo”, etc. O mais adequado para esse gênero, principalmente considerando que eram alunos que escreviam para uma professora que haviam acabado de conhecer, seria o uso de expressões formais. Todavia, compreendemos que o emprego dessas expressões foi motivada pela situação social, representando uma tentativa de aproximação e de simpatia com as professoras. Nas cartas 01 e 02 apresentadas no início dessa seção, podemos observar duas configurações distintas de estilo linguístico. O primeiro texto, embora traga expressões que demonstram uma tentativa de linguagem formal (por exemplo, “em primeiro lugar”), se caracteriza por um predomínio de linguagem própria da oralidade em contextos informais, devido a expressões do tipo “vou falar”, “querida professora”, “de cê", “nem pretendo se caza”, “abraço”, “a” (ah) e, ainda, por falta de pontuação e pela repetição excessiva de palavras. Já a carta 02, apesar de ter algumas marcas de oralidade, demonstra uma tentativa de escrita formal, com destaque aos léxicos “exerceu”, “pela qual”, “me motiva”, etc. Entretanto, ambas as Cartas de Apresentação possuem transferências da linguagem oral para a escrita. Vejamos alguns fragmentos: “[...] Eu vou falar um pouco de mim eu sou (nome) eu sou muito querido [...]” (Carta 01);“[...] Eu escolhi o curso de letras porque está na minha área de educação e sempre fui a fim de ser professor já que minha mãe é pedagoga e exerceu a profissão pela qual se aposentou ela também
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tinha duas irmãs que eram professora uma se aposentou como professora e a outra mudou de profissão e se tornou comerciaria [...]” (Carta 02). Nesses dois trechos, destacamos a sequência das ideias e a não utilização de sinais de pontuação, isto é, a forma como as mesmas são “jogadas” no texto, sem marcação de pausas. Vejamos que o autor da carta 01 inicia com uma introdução, esclarecendo seu objetivo de interação e, em seguida, sem marcar uma pausa, se apresenta (nome) e, logo, aponta que é muito querido. Na Carta 02, observamos essa mesma característica: o autor fala que sempre desejou ser professor, que sua mãe é pedagoga e, em seguida, escreve sobre a formação de suas tias. Embora esse percurso todo seja feito para justificar a escolha do curso de letras, muitas ideias foram jogadas em uma mesma frase. Dessa forma, temos a impressão de que os autores estão falando, pois os textos não trazem uma das características essenciais da linguagem escrita: os sinais de pontuação, cuja função é marcar as pausas. Outro aspecto a destacarmos é a reiteração do mesmo léxico, observado nos fragmentos já recortados (eu - carta 01, professora, e - carta 02). Compreendemos se tratar de outra transferência da linguagem oral para a escrita, tendo em vista que em contextos informais de interação por meio da oralidade, esse é um acontecimento muito comum, devido à rapidez que caracteriza essa esfera de utilização da língua. Também constatamos o uso da interjeição Ah!, em muitos textos grafada simplesmente como A, como no que segue: “[...] A se ongulho de çe Brasileiro [...]” (carta 01). Trata-se de um uso próprio da linguagem oral, demonstrando que, quando estava encerrando seu enunciado, o locutor lembrou-se de dizer algo. Por ser utilizado, nesse caso, na escrita, compreendemo-lo como uma transferência da linguagem oral para a escrita. Outras transferências podem ser observadas nestes dois trechos: “[...] sempre fui a fim de ser professor [...]” (carta 02) e “[...] aí fui trabalhar e mais tarde [...]” (carta 02). No primeiro, destacamos a escolha lexical a fim, compreendendo-a como uma gíria. No segundo recorte, chamamos atenção para o léxico aí, um marcador temporal muito comum na linguagem oral e inadequado para contextos de escrita formais, como no caso da Carta de Apresentação.
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E fechando, por ora, nossas análises, percebemos o pouco domínio da linguagem escrita em situações formais, tanto em relação aos alunos do Ensino Fundamental quanto do Ensino Superior. É, pois, um dos motivos que nos leva a essa investigação, no sentido de que almejamos, desenvolver uma proposta metodológica a ser utilizada em sala de aula no trabalho com esse tema. 3 Algumas palavras finais Trouxemos parte de nossas análises das Cartas de Apresentação que compõem o corpus de estudo de nossa tese de doutoramento. Olhamos para a configuração dada por seus autores ao conteúdo temático, estilo e construção composicional. Tanto os alunos autores das cartas do Ensino Fundamental e do Ensino Superior apresentaram dificuldades em relação a esses três elementos composicionais do gênero discursivo Carta de Apresentação, porém, em graus distintos. Quanto ao conteúdo temático, comparando os textos dos dois públicos, os graduandos, levando em conta o contexto social, selecionaram subtemas mais adequados à situação. Já na construção composicional, percebemos uma dificuldade maior por parte da graduação ou, talvez, a ideia errônea de que a estrutura da carta fazia-se desnecessária naquele momento. O mesmo aconteceu em relação ao estilo: em um número mais considerável predominou a linguagem informal. No entanto, aqueles que demonstraram uma tentativa de escrita formal apresentaram termos mais elaborados e próprio ao gênero. Isso se justifica na diferença entre as duas faixas etárias: os, pelo menos, doze anos de estudo que os distancia proporcionaram um maior domínio linguístico, embora ainda com muitas transferências da linguagem oral para a escrita e, por isso, carente de mais conhecimentos. No entanto, quanto à paragrafação e pontuação há uma grande dificuldade para os dois públicos que necessita, ainda, ser mais trabalhada. Por outro lado, os textos produzidos pelos alunos do Ensino Fundamental são ainda mais simples e menos elaborados em relação aos textos da graduação: demonstram ainda um ensaio, uma tentativa de produção, pois, mais do que na graduação, a impressão é a de que eles escrevem como se estivessem falando. Por isso, conseguimos destacar mais termos e usos inadequados à situação. Compreendemos que
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esses alunos ainda estão desenvolvendo uma noção clara do que e como convém dizer ou não convém em determinados momentos. Por fim, apontamos que o estudo das Transferências da linguagem oral para a escrita: aspectos discursivo/textuais não se encerra nesse texto e que nosso percurso ainda é longo, já que o objetivo final é o retorno para as escolas envolvidas na pesquisa, de forma a colaborarmos com o ensino da língua portuguesa. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. [Trad. Paulo Bezerra]. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010 ________; VOLOCHINOV. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. [Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira].11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004. BAUMGÄRTNER, C. T.; CRUZ, C. A. A. S. Gêneros do discurso: apontamentos. In: CATTELAN, João Carlos; LOTTERMANN, Clarice (Orgs.). A redação no vestibular da Unioeste: alguns apontamentos à luz da Linguística Textual. Cascavel: Edunioste, 2009. p. 162-188. DI FANTI, M. G. C. A linguagem em Bakhtin: pontos e pespontos. In. Veredas - Rev. Est.
Ling,
v.7,
n.1
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n.2,
p.95-111,
jan./dez.
2003.
Disponível
em:
http://www.ufjf.br/revistaveredas/files/2009/12/artigo32.pdf. Acesso em: 19 de abril de 2014. MOSCHIN, A. Manual de elaboração de carta de apresentação de emprego. UNIVERSIDADE
SANTA
CECILIA:
Santos,
2012.
Disponível
em:
http://sites.unisanta.br/ndc/modelo_carta_apresentacao.pdf.
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GÊNERO DISCURSIVO FILME DE ANIMAÇÃO: UMA PROPOSTA DE CARACTERIZAÇÃO E INTERVENÇÃO
Luiz Antonio Xavier Dias (UENP – PG-UEL)
Há mais de uma década, no Brasil, as propostas oficiais de ensino, como os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1998), e as Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa do Estado do Paraná – DCE – (PARANÁ, 2008), postulam que o ensino de Língua Portuguesa deve abranger fatores enunciativos, relacionados às práticas da linguagem, não tendo como eixo de progressão curricular o ensino gramatical desarticulado dos usos. Perfeito (2005), ao fazer um levantamento sobre algumas concepções de linguagem assinala que o ensino baseado apenas em teorias behavioristas de “siga o modelo” ou seja, na repetição, “estímulo-resposta-reforço” não leva o aluno a um aprendizado significativo. Nesse panorama, resgatamos, assim como a autora (2005), a visão de Geraldi (1991) de análise linguística, contextualizada às práticas de leitura, escrita e produção textual, “criadas as condições para as atividades interativas efetivas em sala de aula, quer pela produção de textos, quer pela leitura de textos, é no interior destas e a partir destas que a análise linguística se dá.” (GERALDI, 1991, p. 189). Nesse contexto, as DCEs preconizam o ensino da língua que tem o discurso como prática social, deve extrapolar o horizonte da palavra e da frase. Assim, um trabalho produtivo com a linguagem deve privilegiar a análise linguística, visando a: “verificar como os elementos verbais (os recursos disponíveis da língua), e os elementos extraverbais (as condições e situação de produção) atuam na construção de sentido do texto” (PARANÁ, 2008, p.60). Nesse sentido, cabe destacar o que esse documento afirma sobre a concepção discursiva textual da língua como interação:
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Quando se assume a língua como interação, em sua dimensão linguístico discursiva, o mais importante é criar oportunidades para o aluno refletir, construir, considerar hipóteses a partir da leitura e da escrita de diferentes textos, instância em que pode chegar à compreensão de como a língua funciona e à decorrente competência textual (PARANÁ, 2008, p. 60). A partir da concepção interacionista1 da linguagem (BAKHTIN/VOLOSHNOV, 1992; VYGOTSKY, 1994) o ensino de Língua Portuguesa vem sendo repensado, dessa forma não mais centrado na teoria gramatical e sim nas práticas de leitura e produção textual, tendo o professor como o mediador desse processo e não mais como mero “transmissor” de conhecimentos e consequentemente o aluno transformador de sua própria realidade. Nesse contexto, os documentos oficiais são unânimes em apontar a escolha dos enunciados concretos viabilizados por gêneros discursivos como eixo de articulação/progressão curricular, visando proporcionar ao aluno a ampliação do horizonte discursivo, por veicular diferentes propósitos, com diferentes contextos sóciohistóricos. Tal escolha teórica justifica-se em virtude de muitos estudiosos sustentarem a ideia de que as propostas de produção textual, leitura e análise linguística precisam “corresponder àquilo que, na verdade, se escreve fora da escola – e, assim, sejam textos de gêneros que têm uma função social determinada, conforme as práticas vigentes na sociedade” (ANTUNES, 2003, p. 62-63). Assim, a DCE (2008, p. 69) ressalta a importância da escolha do gênero para aprimorar as práticas da escrita e análise linguística2 a cada série/turma dentre os milhares que circulam em âmbito social. Sob tal enfoque, neste artigo, mobilizamos o gênero discursivo filme de animação infantil, pertencente à esfera literária, uma vez que apresentam relevância para a formação estética do sujeito. Além disso, compartilhamos a posição de Di Camargo (2009, p. 13) ao lecionar que o “cinema pode ser considerado a mais dialógica de todas as artes modernas, entendido como Sétima Arte3, encerrando 1
Interacionismo: Bakhtin (1999) defende uma concepção histórico-discursiva de sujeito, para ele, a interação verbal constitui a realidade fundamental da língua. O aprendizado envolve sempre a interação com outros indivíduos e a interferência direta ou indireta deles. (Postulação inserida nas Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná, 2008). 2
Tal proposta é advinda de Geraldi, em 1984, acentuada em sua obra Portos de Passagem (1991), na qual o autor cunha o termo análise linguística para os estudos gramaticais contextualizados, no ensino básico. 3 Em 1912, o intelectual italiano Ricciotto Canudo, propôs no seu Manifesto das Sete Artes e Estética da Sétima Arte que o cinema fosse considerado como a sétima arte. O manifesto foi publicado posteriormente em 1923.
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por si só todas as outras manifestações artísticas (artes plásticas, literatura, teatro, música, dança e fotografia)”. Nesse contexto, é importante analisarmos seus produtos (os textos fílmicos), de forma a resgatar os possíveis diálogos com outras formas de expressão artísticas e linguísticas neles presentes e consequentemente a formação do sujeito. Nesse prisma, a escolha desse gênero justifica-se uma vez que objetivamos quebrar o estigma de que o uso de filmes na sala de aula é feito apenas para preenchimento de aula vaga ou apenas como mera ilustração, mas para comprovar que é possível por este meio o aluno melhorar sua capacidade interpretativa (NAPOLITANO, 2005). Na concepção de Vanoye e Goliot-Lété (1994, p. 55), um filme pode ser utilizado para se analisar uma sociedade, visto que ele oferece um conjunto de representações, as quais remetem à sociedade real, de modo direto ou indireto. Para uma interpretação sócio-histórica, a hipótese diretriz é a de que um filme sempre faz alusão ao presente, ao seu contexto de produção. No
filme, “a sociedade não é
propriamente mostrada, é encenada” (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 56) É importante lembrar que o presente trabalho é fruto de reflexões teóricometodológicas do Projeto de Pesquisa “Análise linguística e plano de trabalho docente: gêneros das esferas literária, midiática e acadêmico-escolar” (UEL), coordenado pela Profa. Dra. Alba Maria Perfeito, e da Disciplina da Disciplina Linguística Aplicada e Ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa, do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, da UEL. Nesse panorama, o referido artigo tem como aporte teórico a Linguística Aplicada – LA de forma interdisciplinar, ancorada em concepções pós-modernas de linguistas aplicados como: Pennycook (1998), Moita Lopes (1996; 2006) e Almeida Filho (2009). Em uma perspectiva contemporânea de LA, Moita Lopes (2006) afirma ter surgido uma necessidade de se pensar uma área de pesquisa que dialogue com outras teorias que estão perpassando o campo das ciências sociais e das humanidades. Nesse movimento, a LA reveste-se de uma natureza inter/transdisciplinar, e coloca-se a favor de “[...] criar inteligibilidade sobre problemas sociais em que a linguagem tem um papel central” (MOITA LOPES, 2006, p. 14).
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Em síntese, o trabalho em tela está dividido em três seções, que resgatam a concepção teórica de gênero discursivo, a caracterização do gênero filme de animação infantil, seus diálogos, intertextos.
O gênero discursivo: concepção teórica
Para que se obtenha um ensino mais significativo, em âmbito escolar, postulamos que os enunciados concretos de diferentes gêneros discursivos sejam tomados como objetos de ensino. Bakhtin (2003), ao caracterizar os gêneros, defende que estes são “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2003, p. 262) isto é, são formas de textos criados pela sociedade, que funcionam como mediadores entre o enunciador e o destinatário. Ao expressar a contemporaneidade bakhtiniana, Di Camargo (2009, p. 23) afirma que o “gênero é uma força aglutinadora e estabilizadora dentro de uma determinada linguagem, um certo modo de organizar ideias, meios e recursos expressivos suficientemente estratificado numa cultura”. O ponto de partida do autor (2003) é o vínculo indissolúvel entre a utilização da linguagem e as esferas de atividade humanas. Nesse contexto, os enunciados devem ser vistos na sua função no processo de interação, estabelecendo uma interconexão da linguagem com a vida social. Desse modo, a linguagem penetra na vida por meio dos enunciados concretos e, ao mesmo tempo, pelos enunciados a vida se introduz na linguagem. Dessa maneira, são sempre vinculados ao domínio de atividade humana, refletindo suas condições específicas e suas finalidades.(Bakhtin, 2003). Para Rodrigues (2005), os gêneros são enunciados típicos que apresentam certos traços (regularidades) que se construíram historicamente a partir/nas atividades humanas, em uma determinada situação de interação relativamente estável. A autora (2005) afirma ainda ser necessário investigar os gêneros a partir de sua historicidade, pois não são unidades convencionais ou apenas estruturações textuais regulares, mas tipos históricos de enunciados (e, portanto, de natureza social, discursiva, histórica, cultural e dialógica).
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Para Bakhtin (2003), o gênero discursivo possui três elementos que o definem: conteúdo temático, estilo linguístico e organização composicional, sendo que os dois primeiros são definidos pela enunciação e, por isso, podem ser variáveis, e o terceiro elemento, a estrutura composicional, é invariável, sendo o que caracteriza determinado gênero enquanto tal. Vale ressaltar, ainda, que esses três componentes do gênero discursivo estão “indissoluvelmente ligados no todo do enunciado”, isto é, um precisa do outro para acontecer e um sempre recorre ao outro. Assim sendo, seguindo postulações de Perfeito (2005, 2010, p. 55,56) e Rojo (2005, p. 198 – 199) podemos afirmar que o gênero discursivo possui: • • • •
Contexto de produção autor/enunciador, destinatário/interlocutor, finalidade, época e local de publicação e de circulação; Conteúdo temático: o que é que pode ser dizível nos textos pertencentes a um gênero. (BRASIL, 1998, p. 21) Construção composicional e linguística: a estrutura (o arranjo interno) de textos, pertencentes a um gênero. Marcas linguístico-enunciativas: recursos linguísticoexpressivos do gênero e suas marcas enunciativas do produtor do texto.
Além disso, Rojo (2005, p 198-199) assevera que os pesquisadores que adotam a perpectiva de gêneros do discurso4 partirão sempre de uma análise em detalhe dos aspectos sócio-históricos da situação enunciativa, privilegiando, a vontade enunciativa do locutor – isto é, a finalidade, mas também e principalmente e, a partir desta análise, buscarão as marcas linguísticas do texto, composição (gramática) estilo, e é essa a mesma perspectiva que adotamos nesse trabalho. Na próxima seção, será exposta a caracterização do gênero filme de animação infantil, da esfera literária.
4
Segundo Rojo (2005), a designação “gêneros do discurso ou discursivos” é adotada por autores que adotam a concepção bakhtiniana, que centram seus estudos nos elementos da situação de produção dos enunciados/textos.
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Filmes de animação infantil: algumas regularidades e instabilidades
A chamada “sétima arte” exerce sobre o público do mundo inteiro um grande poder de fascínio. Sem dúvida, uma das razões desse êxito surpreendente deve-se ao poder de comunicação de sua linguagem. Ela corresponde a uma espécie de linguagem universal que pode ser compreendida por pessoas de origens e faixas etárias, o mundo cinematográfico é mágico, pois no momento que paramos diante da tela, entramos para outro mundo, nos envolvemos com a história, choramos, rimos, e sentimos quase o que a personagem está vivendo. O cinema é a mais semiótica de todas as artes, para isso retomamos as palavras do mestre russo “Tudo o que é ideológico possui um valor semiótico (BAKHTIN/VOLOSHNOV, 1992, p.32). Semiótico é o que o cinema é em sua primeira impressão, na sua primeira forma de análise. Di Camargo (2009, p. 23) ressalta que ao analisar um filme, primeiro nos damos conta do caráter semiótico, mas: somente após essa primeira absorção dessa realidade que vai ali se desenrolado e se desenvolvendo é que passamos a prestar atenção em detalhes e características mais dialógicas ou intertextuais que estas obras carregam implicitamente em si, como se fossem um código a ser decifrado por caçadores de enigmas, prontos a desvendar ali o seu gênero.
Durante um filme, tanto nosso físico, quanto nosso psicológico é afetado. No final, podemos nos sentir tristes ou alegres perplexos ou indiferentes, com dor na barriga de tanto rir ou com o rosto molhado de tanto chorar. Tudo isso se deve ao roteiro, à direção, ao envolvimento entre os atores do filme, à mensagem que este nos passa. Em relação à construção composicional e linguística, o processo de animação refere-se a maneira que cada fotograma de um filme é produzido individualmente, podendo ser gerado quer por computação gráfica quer fotografando uma imagem desenhada, ou repetidamente fazendo-se pequenas mudanças a um modelo,
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fotografando o resultado. Quando os fotogramas5 são ligados entre si e o filme resultante é visto a uma velocidade de 16 ou mais imagens por segundo, há uma ilusão de movimento contínuo (por causa da persistência de visão). A construção de um filme torna-se assim um trabalho muito intensivo e por vezes entediante. O desenvolvimento da animação digital aumentou muito a velocidade do processo, eliminando tarefas mecânicas e repetitivas. Falar de animação no cinema é o mesmo que falar de tecnologia na arte. Sempre com maior progresso do que os filmes tradicionais, a animação sempre trouxe aos espectadores uma forma de sonhar e imaginar. Já em 1892 foi projetado o primeiro desenho animado, apoiado na invenção Praxynoscópio, Émile Reynaud foi quem deu vida ao “Pobre Pierrot” (Pouvre Pierrot), e com seu próprio projetor, coloca no Musée Grevin, em Paris sua nova criação. Pertencente ao agrupamento da ordem do narrar (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004)6, em geral, os filmes de animação infantis de grandes produtoras com Pixar, Disney, e DreamWorks são computadorizados. A última é um estúdio de animação computadorizada fundada em 1980 por Cal Rosendahl, Glenn Entis e Richard Chuang, desde sua criação já passou por vários donos, hoje é de propriedade de Steven Spielberg e David Geffen. A DreamWorks firmou-se neste gênero cinematográfico criando filmes como A Fuga das Galinhas, O Príncipe do Egito e chegando no auge de suas criações com Shrek, Shrek 2 e Shrek 3, filmes estes que renderam bilhões em bilheteria. No que se refere ao filme Shrek, os estúdios DreamWorks criaram seus próprios programas de softwares para a criação, contando com quatorze programadores. Usaram apenas 15 a 20% de softwares comerciais. Dentre os programas criados, o mais usado foi o Schape que altera a superfície de dentro para fora, criando movimentos sofisticados. São mais de quinhentos controles para animar o rosto, só para a sobrancelha são cinco pontos de referência e muitos outros recursos foram usados para 5
Fotograma - cada uma das imagens impressas quimicamente no filme cinematográfico. Fotografados por uma câmara a uma cadência constante (desde 1929 padronizada em 24 por segundo) e depois projetados no mesmo ritmo, em registro e sobre uma tela, os fotogramas produzem no espectador a ilusão de movimento. Isto se deve à incapacidade do cérebro humano de processar separadamente as imagens formadas na retina e transmitidas pelo nervo óptico, quando percebidas sequencialmente acima de uma determinada velocidade. Esta persistência da visão faz com que nossa percepção misture as imagens de forma contínua, dando a sensação de movimento natural. 6
Embora apontemos para o critério de ordens, adotamos neste artigo a classificação bakhtiniana (2003) de esferas de atividade humana.
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criar as maravilhas que constatamos no filme, isso sem mencionar a criatividade dos animadores. (COSTA LUZ, 2012). O conteúdo temático da maior parte dos filmes de animação infantil gira em torno de conflitos humanos como a busca da felicidade, seja ela como em Cinderela buscar um príncipe encantado, seja em Happy Feet (2006), no caso do pinguim que queria demonstrar seu talento e ser reconhecido. Em geral, o contexto de produção, ou seja, o objetivo dessas produtoras, ao trabalharem com temas importantes como a desconstrução da beleza na saga Shrek, não se pode ser inocente a ponto de pensar que a DreamWorks está se importando apenas com a formação das crianças, ao fazer paródias dos filmes da Walt Disney, pois ela investiu milhões de dólares na produção de Shrek, a fim de obter retorno do seu investimento, por isso, a DreamWorks e outras corporações investem em artigos derivados de seus filmes e personagens para obter mais lucros tais como brinquedos, escova de dentes, pratos, copos, roupas, material escolar entre outros. Em relação às marcas linguístico-enunciativas podemos perceber que, em geral, os filmes de animação infantis apresentam, predominantemente, entre outras características, diálogos travados em discursos diretos e uma linguagem feita por meio de verbos no presente do indicativo. Em seu enredo, utilizam linguagem simples, reprodução da fala, por meio de diálogos diretos e dificilmente monólogos interiores, ou seja, a fala do personagem com ele mesmo. Dentro dessas discussões, para demonstrar de maneira mais profunda, algumas regularidades e instabilidades do gênero filme de animação infantil, reunimos quatro grandes obras fílmicas e analisamos sua recorrência. São elas: Shrek2 (2004), Cinderela (1950), Deu a louca na Cinderela (2007) e Rio (2011). É importante lembrar que alguns critérios de reconhecimento do gênero em tela foram apontados por Neves (2012).
Critérios
Shrek 2
Cinderella
Deu a Louca na
Rio
Cinderela O ano da produção do filme; Especial atenção ao estúdio que produziu o filme
2004
1950
2007
2011
Dreamworks
Walt Disney Company
Europa Filmes
Blue Sky Studios – distribuído Fox Filme
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É uma animação clássica ou cartoon? O desenho se origina em um conto de fadas? Qual o período histórico que o desenho encena? Características das Personagens
Computadorizada – 3D
Computadorizada – 3D
Computadorizada3D
Sim
Sim
Não
Idade Média
Idade Média
Atualidade
Pessoas e animais que falam
Pessoas e animais que falam
Discriminação e busca da felicidade
Busca da justiça e liberdade
Discursos diretos, intercalado com música
Discursos diretos, intercalado com música
Sim
Pessoas e animais que falam Discriminação e busca da felicidade Discursos diretos, intercalado com música Sim
Tema do filme
Discriminação, beleza.
Linguagem verbal (Dimensão verbal)
Discursos diretos, simples, são muitas falas.
O filme inicia-se com um livro? É um musical? Há referências cinematográficas na animação? (intertextos) Local onde se passa Observar a nacionalidade do desenho;
Sim
Não
Comédia romântica SIM
Musical SIM
Comédia romântica SIM
Musical e comédia SIM
Reino Tão, Distante EUA
Floresta imaginária EUA
Reino imaginário
Brasil – Rio de Janeiro BRASIL
Sim
Idade Média
Pessoas e animais que falam
Tão
Desenho papel
em
EUA/Alemanha
Quadro caracterizador de recorrências do gênero em apreço. Após essa breve consideração sobre o gênero filme de animação infantil, passamos a algumas conceituações sobre o filme Shrek 2(2004).
Considerações Finais
Percebemos que pelas experiências discutidas, o gênero discursivo filme de animação infantil tem muito a acrescentar no contexto escolar com um diálogo importante como motivador para a aprendizagem. Embora a proposta do artigo em apreço não contemple a didatização do gênero em pauta, esse pode muito bem ser transposto didaticamente ao ensino básico e até ao ensino superior como motivação para a formação do docente inicial.
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Como discutido inicialmente, a escola precisa utilizar-se das novas mídias como a cinematográfica para conseguir trabalhar melhor os conteúdos propostos pelo professor, como leituras cada vez mais desafiadoras, além de trazer mais mecanismos para que o discente se sinta encantado, assim como observamos o seu olhar e seu fascínio ao observar a sétima arte e ao fazer a leitura de um filme de animação infantil.
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A CONSTITUIÇÃO DO CIBERSUJEITO NOS COMENTÁRIOS PUBLICADOS NO PORTAL DE NOTÍCIAS CGN Luiz Carlos de Oliveira (UNIOESTE). RESUMO: Neste trabalho, trato dos comentários de leitores (cibersujeitos) sobre uma notícia que aborda um fato violento. Tenho como objetivo discutir a constituição discursiva dos cibersujeitos a partir de comentários sobre uma matéria publicada no portal de notícias CGN – Central Gazeta de Notícias, da cidade de Cascavel, Paraná. O foco desta abordagem está em pensar como ocorre a constituição discursiva do cibersujeito ao comentar a violência noticiada no espaço virtual (ciberespaço). A abordagem está fundamentada na teoria da Análise do Discurso Francesa. Contribuem para a análise os estudos de Dias (2004), Lévy (2010), Mariani (1998), Pêcheux (2009) e Romão (2004; 2006). Foco o mecanismo no qual o cibersujeito, enquanto autor dos comentários, para comentar tem a necessidade de lidar com a dispersão dos sentidos os quais o constituem sob o manto da evidência e unicidade. Todavia, destaco a hipótese segundo a qual, no ciberespaço, a constituição do cibersujeito pode ocorrer de maneira sui generis. Para fomentar as discussões, selecionei seis comentários de leitores, sendo, respectivamente, os três primeiros e os três últimos da lista de comentários publicados até a data na qual efetuei a coleta do corpus. PALAVRAS-CHAVE: cibersujeito, autoria, ciberespaço O discurso A teoria que fundamenta esta discussão, a Análise de Discurso de linha francesa (doravante, AD), busca refletir a constituição do sujeito na e pela linguagem, porém considera que a língua não é neutra e está à mercê do funcionamento do inconsciente e do modo como a ideologia atua em uma determinada conjuntura histórica1. Assim, o sujeito só pode refletir e se inteirar da sua existência a partir da sua inserção na língua afetada pelo inconsciente e pela ideologia. O sujeito desde o seu nascimento entra no processo discursivo tomando palavras que já estão carregadas por determinados efeitos de sentidos, os quais se constituem de acordo com a dinâmica das relações sociais contraditórias: Se o discurso é uma materialidade histórica sempre já dada, na qual os sujeitos são interpelados e produzidos como ‘produtores livres’ de 1
[...] o sujeito dividido, ou seja, afetado pelo inconsciente, quando diz ‘eu’ [...], o faz a partir de um efeito retroativo que é resultado de sua constituição pela linguagem – os significantes aparecem sempre como já-lá – e interpelação pela ideologia – o efeito de evidência dos sentidos, produzido a partir de significantes colados a determinadas significações. Para ter a ilusão de ser sujeito do que diz, sendo assujeitado a significantes com significações determinadas, foi necessária uma pré-inscrição no campo da linguagem, e isso não se realiza de qualquer maneira. (MARIANI, 2006, p. 28).
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seus discursos cotidianos, literários, ideológicos, políticos, científicos, etc..., a questão primordial cessa de ser a da subjetividade produtora do discurso e torna-se a das formas de existência histórica da discursividade [...] (PÊCHEUX, 2011, p. 156).
A AD, dessa forma, considera que os posicionamentos tomados na linguagem resultam do funcionamento do inconsciente e da interpelação ideológica que encobrem o modo pelo qual funcionam ao constituir o sujeito sob a evidência do “eu sou”, da autonomia. Ao tomar consciência da sua existência, o sujeito assume como evidente os sentidos sobre si e o mundo, ocorrendo, assim, uma constituição mútua do sujeito e dos sentidos. Esse processo produz infinitas direções pelas quais o sujeito pode ser interpelado, de acordo com as formações ideológicas que irão pautar a constituição dos efeitos de sentidos através das formações discursivas (doravante, FDs) que compõem o seu discurso. Assim, “[...] diremos que os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes” (PÊCHEUX, 2009, p. 147, itálico do autor). Portanto, a FD sintetiza a forma como os posicionamentos ideológicos se materializam na linguagem, como cada palavra é efetivamente empregada pelo sujeito. Também, através da FD é possível perceber o inconsciente afetando a tomada das palavras através dos lapsos, dos equívocos que constituem o discurso do sujeito. A noção da existência e do funcionamento de uma determinada FD não pode ser descrita a priori, mas a partir da análise, pela qual o analista poderá traçar discursos mais ou menos regulares. Assim, no dizer de cada sujeito podem existir distintas FDs, com predominância de uma específica sobre as outras. Portanto, [...] uma palavra, uma expressão ou uma proposição não tem um sentido que lhe seria ‘próprio’, vinculado a sua literalidade. Ao contrário, seu sentido se constitui em cada formação discursiva, nas relações que tais palavras, expressões ou proposições mantêm com outras palavras, expressões ou proposições da mesma formação discursiva. De modo correlato, se se admite que as mesmas palavras, expressões ou proposições mudam de sentido ao passar de uma formação discursiva a uma outra, é necessário também admitir que palavras, expressões ou proposições literalmente diferentes, podem no
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interior de uma formação discursiva dada, ‘ter o mesmo sentido’ [...] (PÊCHEUX, 2009, p. 147-148, itálicos do autor).
Mesmo não sendo possível definir a priori o funcionamento de uma FD, é possível afirmar que todo discurso só pode ocorrer através de uma FD. Todo sujeito discursivo está inscrito em determinadas FDs que irão pautar o seu dizer. No ciberespaço o discurso dos cibersujeitos ocorre segundo esse mecanismo e, ainda, por meio do imaginário sobre o funcionamento da internet. O ciberespaço e a constituição do cibersujeito A partir da noção de que “estamos vivendo a abertura de um novo espaço de comunicação, e cabe apenas a nós explorar as potencialidades [...] deste espaço nos planos econômico, político, cultural e humano” (LÉVY, 2010, p. 11), é necessário questionar o modo como o sujeito é constituído ao transitar por esse lugar que não pode ser tomado pelas mesmas leis do espaço físico, mas que é marcado pelo hipertexto, como por hiperlinks e tags que levam o sujeito a infinitas tramas da rede. Nesse lugar, “[...] cada link é uma rede em si mesmo, como se por analogia cada onda do mar pudesse encerrar nela mesma um outro mar de ondas à parte. Assim, gestos de leitura e escrita recebem nova configuração” (ROMÃO, 2006, p. 309). Dessa forma, [...] a Internet funciona como um vetor de transformação social, produzindo evidências de sentido. Isso inclui a sociedade contemporânea, com a cibercultura e o desdobramento da noção técnica da informática em uma verdadeira rede ciberespacial, em um prolongamento da vida no espaço de silício (DIAS, 2004, p. 49,
itálicos da autora).
Portanto, o ciberespaço deve ser tomado como um lugar distinto do espaço físico, por meio do qual novas sociabilidades são construídas. O ciberespaço [...] não é localizável. Experimentamos esse espaço virtualmente, no entanto, não podemos localizá-lo em nenhum lugar. Há nisso fundamentalmente, um deslocamento de sentido. Experimentamos o espaço de um outro modo, de um modo virtual (DIAS, 2004, p. 31).
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Neste sentido, na errância dos roteiros não lineares ou não mapeados a priori, o hipertexto, que estrutura o modo como o usuário desloca-se no ciberespaço, conduz o sujeito pela rede. Conforme aponta Romão (2006), o ciberespaço2 pode ser acatado discursivamente sob a perspectiva do arquivo proposta por Pêcheux ao autor considerar o arquivo um “campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão” (PÊCHEUX apud Romão, 2006, p. 305). O arquivo digital sintetiza o aparato documental constantemente inserido, copiado, lincado, modificado. Conteúdo esse gerado de acordo com as coerções ideológicas, jurídicas e os interesses econômicos. Dados que são previamente filtrados. Porém, a dinâmica do funcionamento do ciberespaço é tomada como evidente, encobrindo imaginariamente o mecanismo de filtragem dos dados (ROMÃO, idem). Essa evidência está ancorada na memória e nos trajetos já tomados no ciberespaço, isto é, sustentada pelo imaginário do que seja essa rede. Essa evidência faz parte das condições de produção imediatas e da circunstância de enunciação da net. A técnica interpela o indivíduo em sujeito na relação ciberespacial, a partir de uma norma identificadora (PÊCHEUX, 1995). Ou seja, a partir do funcionamento da ideologia. Desse modo, passarei a chamar o sujeito interpelado no lugar da evidência, em sua relação com o sentido do ciberespaço e suas determinações na forma-sujeito (Pêcheux, 1995) (pela qual o “sujeito do discurso” se identifica com a formação discursiva que o constitui) (p. 167), de cibersujeito. O cibersujeito, para mim, é aquele que age nessa evidência de sentido3 (DIAS, 2004, p. 49).
O cibersujeito, ao interagir no ciberespaço, é invariavelmente tomado pelo imaginário da forma como funciona e se estrutura a internet. Além disso, a própria constituição do sujeito no ciberespaço, deslocado da materialidade física – apesar dela, campo para deslizamentos entre inúmeros avatares e possibilidade de produzir “fakes”, é tomada como evidente. “Por isso a evanescência do cibersujeito traz uma ruptura em relação ao poder político, jurídico e administrativo, no que se refere aos modos de regulação e imputação da ação de um sujeito” (DIAS, 2004, p. 94). 2
“Os deslizamentos de uma página a outra, de um texto a outro abrem uma fronteira larga, na qual o sujeito do discurso se move e transita por uma invernada de sentidos diversos e (des)ordenados e faz da sua vagação discursiva um ir-e-vir de aparições ligeiras sem assentamentos” (ROMÃO, 2004, p. 73). 3 “Não é possível, sabemos, abandonar o corpo físico, mas é possível submete-lo à experiência virtual de um ‘outro eu’, ou de um ‘cibereu’. O corpo pode assumir formas diversas” (DIAS, 2004, p. 129).
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Não é o caso de negar a constituição do sujeito sob a forma-sujeito jurídica, mas atentar para o fato de a constante inserção do ciberespaço no cotidiano produzir deslocamento nesse processo, o que pode ser observado na urgência que os estados passam, atualmente, a discutir maneiras de “regular” a internet, surgindo novos direitos, deveres e crimes virtuais; inclusive, o direito de ser esquecido4. Tomando essa noção de cibersujeito, é possível pensar os comentários no portal de notícias CGN. Dessa maneira, interesso-me em refletir sobre a constituição do discurso do cibersujeito ao comentar uma matéria no portal de notícias. Comentários no portal de notícias CGN O portal de notícias CGN foi criado na cidade de Cascavel no ano de 2006. Posteriormente, em 2011, uniu-se ao grupo Universo Online (UOL). O portal publica notícias vinculadas à cidade de Cascavel (e região Oeste do Estado do Paraná) e também referentes à cidade de Curitiba e sua região metropolitana. As matérias são compostas, em regra, respectivamente, por vídeo, texto e fotografias; o vídeo é iniciado com publicidade que pode ser “pulada” após cinco segundos de exibição. Logo abaixo da matéria existe um espaço (box) dedicado aos anunciantes (“Anúncios”); mais abaixo estão os ícones que permitem compartilhar a matéria nas redes sociais e, logo abaixo destes, há a exposição dos comentários, quando algum já foi publicado, e o espaço onde os internautas podem redigir seus comentários e responder a outros já publicados. Também podem avaliar5 positiva ou negativamente as opiniões que já foram divulgadas. Além disso, as matérias com maior relevância, cujo tema já foi abordado em outras publicações, têm logo após o texto a inscrição de tags6 (“Leia mais sobre:”) que permitem ao cibersujeito clicar e visualizar uma lista de todas as matérias já publicadas sobre o assunto. Dessa maneira, a tag é um hiperlink que, ao ser clicado, indexa 4
Um cidadão espanhol conseguiu, em 2014, uma decisão favorável ao seu pedido de “ser esquecido”, no Tribunal de Justiça da União Europeia, no qual solicitou que seus dados fossem apagados dos servidores e não pudessem, consequentemente, ser publicados nos resultados das buscas do Google. 5 A avaliação será contada apenas uma vez em cada clique no ícone (positivo ou negativo); dessa forma o cibersujeito poderá avaliar o mesmo comentário de maneira negativa e positiva, porém não consegue corrigir a avaliação uma vez dada. 6 Mecanismo com funcionamento parecido com o da hashtag, utilizada com mais frequência nas redes sociais.
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expressões semelhantes já publicadas no portal de notícias. A matéria da qual selecionei o corpus, três tags estão dispostas com os nomes das pessoas envolvidas no caso publicado pelo portal – abordarei o tema da matéria mais abaixo –, ou seja, o da criança, o do seu padrasto e o da sua mãe. A tag que traz o nome da menina resulta numa lista de 25 matérias, a do padrasto traz 20 notícias, e o da mãe 19 textos. Assim, as tags podem fazer menção a uma mesma matéria e a textos distintos. Esse mecanismo permite pensar a constituição do arquivo eletrônico, como apontado por Romão (2006), porém em uma escala menos abrangente. O site do portal, enquanto um arquivo de páginas e matérias publicadas, conectadas umas as outras, com a possibilidade de serem buscadas e acessadas em alguns segundos, toma o aspecto de um arquivo e ao mesmo tempo reforça o imaginário sobre a forma como funciona o ciberespaço no qual o portal está estabelecido. A matéria sobre a qual ocorreram os comentários foi publicada em 10 de abril de 2013, às 11h44min, e atualizada em 12/04/2013 às 12h07min, com o título “Polícia Civil investiga sumiço de criança de cinco anos”. Essa foi a primeira matéria divulgada sobre o caso. O texto recebeu 107 comentários até a data da pesquisa (09/05/2014). Abordarei os comentários levando em conta a especificidade de eles ocorrerem no ciberespaço e, também, considerando o tipo de discurso no qual está envolta a constituição discursiva dos comentários, ou seja, o discurso jornalístico. Esse tipo de discurso é o que estrutura as matérias do portal de notícias CGN. Dessa forma, tomo o discurso jornalístico como um tipo de discurso amparado no imaginário da informatividade jornalística, imparcial e literal (MARIANI, 1998). Esse discurso reforça o seu modo de ser amparado por uma memória constituída ao longo do tempo, pela qual é produzida a evidência da verdade, imparcialidade e literalidade sobre as matérias que a imprensa publica. Selecionei seis comentários: respectivamente, os três primeiros e os três últimos efetuados até a data da pesquisa, considerando-os como sequências discursivas7 (doravante, SD). O primeiro comentário foi escrito por uma pessoa que se identificou como “Mayy”, e ocorreu seis minutos após a publicação da matéria: 7
Considero as sequências discursivas imersas no processo de interpelação ideológica, produzidas no âmbito do discurso jornalístico pensado para ser publicado no ciberespaço.
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SD1: Mayy 10/04/2013 11:50h 26 [+] 1 [-] Espero que realmente essa bisca tenha dado a menor....e que seja pra uma pessoa boa, melhor que ela ja sabemos q é..Tadinha Responder este comentário (grifos meus)
O discurso da SD1 está diretamente ligado à perspectiva construída na matéria, isto é, a suspeita de que possa ter ocorrido algo mais grave com a criança do que a doação (“dado”), conforme a justificativa da mãe sobre o desaparecimento da filha. Esse efeito é produzido através do emprego do verbo “espero” e do uso das reticências. A palavra “menor”, que foi utilizada na matéria ao se apontar para a possibilidade da criança ter sido vítima de alguma violência, é empregada no comentário, porém ocorre o deslocamento dessa perspectiva para a da possibilidade da criança ter sido doada e estar viva. Nesse casso, a criança é digna de pena pelo que passou (“Tadinha”). A FD ligada a uma perspectiva familiar produz a oposição “bisca” versus “pessoa boa” e o posicionamento aproximado entre “menor” e “Tadinha”. Porém, no encadeamento discursivo, o deslocamento ocorre a partir de “bisca”, passa por “menor”, “pessoa boa”, até chegar em “Tadinha”, demonstrando o deslocamento entre FDs distintas, na qual a mãe que doa a filha ou pode lhe fazer algo prejudicial recebe a denominação que produz os efeitos de sentidos de uma injúria, de ser uma mulher sem os valores esperados de uma mãe. Pode-se também aventar a possibilidade da denominação “bisca” ser dita pelo fato de o discurso ser produzido no ciberespaço sob o efeito imaginário de como se constitui a internet, ou seja, a evidência do cibersujeito tudo poder dizer, da liberdade do deslocamento entre sites e links, da instantaneidade existente entre a escrita do cibersujeito e a publicação do seu dizer no portal, da dificuldade do cibersujeito ser identificado e responsabilizado pela injúria cometida. Quatro minutos após a publicação do primeiro comentário sobre a matéria, ocorre o segundo comentário: SD2: LIZi 10/04/2013 11:54h 37 [+] 0 [-] sim e a diretora desse colegio que não foi atraz para saber porque a criança não estava indo a escola e o conselho tutelar meu DEus. Responder este comentário (grifos meus)
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Na SD2, a menção à diretora do estabelecimento no qual a criança estudava e ao conselho tutelar chama a atenção para o papel do Estado que deveria utilizar suas instituições e servidores para proteger a criança. Na possibilidade da falha dessas instituições, resta o apelo ao divino (“meu DEus”). Esta SD mostra como o ciberespaço produz o efeito de participação democrática (cidadania), por permitir que o cidadão que tem acesso à rede virtual possa cobrar o Estado, através das suas instituições e agentes públicos. De maneira distinta da SD1, o cibersujeito produz o seu discurso orientado por uma FD ligada à cidadania, não mencionando os responsáveis pela criança. Três minutos após o comentário da SD2, é publicado o seguinte: SD3: Lua M. 10/04/2013 11:57h 11 [+] 0 [-] Era só o que faltava mesmo!!! #Tomaraquenão Responder este comentário (grifo meu)
Pais
matando
filhos!!!
Na SD3, existe a esperança de que a criança esteja bem, ao se empregar o verbo “Tomara”, porém apontando para a possibilidade de algo pior ter ocorrido, reproduzindo a perspectiva criada na matéria, como na SD1. Novamente, a FD da família aponta para a contradição existente, segundo o posicionamento desta FD, pois os pais podem estar envolvidos com a possível morte da filha. O interessante desse comentário é a tentativa de se utilizar a hashtag “#Tomaraquenão”. A hashtag tem o funcionamento parecido ao das tags, como apontei acima. Porém, a hashtag é utilizada primordialmente nas redes sociais como uma palavra-chave ou expressão que sintetiza ideias, a qual é antecedida pelo símbolo #. Ao clicar sobre uma hashtag, o cibersuejito terá acesso aos dizeres e postagens de outros usuários que utilizarem expressão idêntica. Esse mecanismo tomou força no Brasil a partir da rede social (microblogue) Twitter, sendo aplicado posteriormente em outras redes sociais. Essa tentativa da utilização da hashtag pode ser compreendida segundo a evidência imaginária na qual o ciberespaço é tomado como um espaço sem fronteiras. Os métodos e técnicas de manipulação, deslocamento e produção de efeitos de sentidos na rede virtual são concebidos como universais, como se pudessem funcionar da mesma maneira em distintas partes desta espacialidade. Porém, não é o que ocorre, pois, no
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portal CGN, mesmo que o cibersujeito tenha a possibilidade de compartilhar a matéria nas redes sociais e inserir hashtags nessa ocasião, a CGN não permite o uso nos comentários no portal. O comentário da SD4 é publicado no dia posterior (11/04/2014) à divulgação da matéria (10/04/2014) e à confissão do assassinato da criança, que ocorreu no período vespertino do dia 10 de abril, pelo padrasto e pela mãe da menina. SD4: cascavel em luto 11/04/2013 15:40h 3 [+] 0 [-] o que sera que esse anjo indefeso fez pra merecer tanta crueldade e essa mãe se é que pode se chamar de mãe na verdade e um lixo Responder este comentário (grifos meus)
Nesse caso, no seu comentário o cibersujeito traz dados que não foram citados na matéria, pois em nenhum momento é dito que a criança foi assassinada. Mesmo não mencionando a morte da menina no comentário8, o cibersujeito se identifica como “cascavel em luto”. Dessa maneira, o internauta contribui para a produção dos efeitos de sentidos sobre o tema, incrementando informações sobre o ocorrido, sobre a confissão do crime pelos pais da criança. Nesse comentário, de maneira próxima ao da SD1, orientado pela FD da família, o trajeto discursivo ocorre de “mãe” para “um lixo”. Nas SD5 e SD6 ocorrem injúrias, ameaças e apologia à violência. A partir dessas SDs, é possível pensar sobre as restrições impostas aos cibersujeitos que desejam comentar no portal de notícias CGN e nos moldes que constituem o dizer no espaço envolto pelo discurso jornalístico. SD5: ANA PAULA BACH 11/04/2013 19:31h 2 [+] 0 [-] vagabundos tem que matar e essa descraçada nem mae nao é prq mae nao faz isoo justiçaaaaaaaaaaaaaaaa pela mor de Deus eles vao pagar Responder este comentário (grifos meus) SD6: Aff 12/04/2013 11:03h 3 [+] 1 [-] noosa c esses dois sai da cadeia eu matoo elees doiis filhos da puta da so na caraa pq nao cria logo pra noiis mata ela biscataa Responder este comentário (grifos meus) 8
Não abordarei neste trabalho o princípio do comentário proposto por Foucault. Sobre a aplicabilidade desse princípio, segundo as possibilidades oferecidas pelo ciberespaço, ler Oliveira (2014).
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A FD da família constitui o dizer focado no papel da mãe, como na SD5 (“mãe não faz isso”) e SD6 (“biscataa”). O discurso que clama justiça não o faz sustentado nos pressupostos jurídicos amparados nos direitos humanos, mas no da justiça com as próprias mãos. Ocorre um acirramento nos posicionamentos dos cibersujeitos de acordo com o desenrolar do caso, mesmo que a matéria não mencione o assassinato da criança confessado pelos seus responsáveis. Dessa maneira, distinto do modo como ocorre os comentários na mídia impressa, o cibersujeito tem a possibilidade de se deslocar pelo hipertexto acompanhando o caso na medida em que as notícias vão sendo divulgadas, e efetuar os comentários na primeira matéria sobre o tema, trazendo novos dados a partir do que é publicado no próprio portal ou em outros meios jornalísticos. Cabe ressaltar que antes de efetuar o seu comentário no portal o cibersujeito deve aceitar os termos propostos pelo portal CGN, nos quais o portal sugere que o internauta seja “criterioso”, que escreva de maneira a não ser mal “interpretado”, que não utilize “linguagem grosseira”, assinalando para a existência de um “moderador”, solicitando que o cibersujeito não fuja “do conteúdo noticiado”. Ainda, os comentários devem ser escritos com no máximo 140 caracteres e o cibersujeito deve identificar-se com um nome e e-mail. Não obstante, esses dois campos podem ser preenchidos com apelidos e e-mails inexistentes, pois não há necessidade de efetuar cadastro prévio no portal e não há validação do e-mail digitado. A possibilidade de contornar o processo de identificação, apesar de o portal alertar que o IP do usuário fica gravado e pode ser rastreado, aumenta ou reforça a evidência da liberdade no ciberespaço, permitindo que injúrias, ameaças e apologia à violência sejam efetuadas e publicadas pelo portal, que apesar de acenar para a existência de moderadores, divulga os comentários. Assim, [...] o sujeito-de-direito que outrora estabelecera suas bases em detrimento do sujeito religioso (Orlandi, 1999, 2001; Haroche, 1992, Lagazzi, 1988), fica enfraquecido pelo aparecimento de um sujeito-datecnologia digital, marcado pela multiplicidade, pela evanescência, e submetido à tecnologia, uma vez que não é o sujeito diretamente que o poder jurídico vai procurar, mas sim a máquina que ele utilizou. O que importa nessa relação específica é o IP da máquina, sua identidade fixa e identificável pelo Estado, e não o RG do sujeito, sua identidade fixa e identificável, já que esta, no ciberespaço, não tem esse sentido.
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A identidade do sujeito na net se caracteriza pela evanescência e multiplicidade (DIAS, 2004, p. 94).
Portanto, é possível discutir a existência de uma brecha nesse mecanismo no qual o dizer das SDs toma uma direção distinta dos pressupostos legais, dos bons costumes (ética, moral), dos direitos humanos que marcam as práticas que envolvem o discurso jornalístico, conforme destaca Mariani (1998). A brecha ou enfraquecimento ocorre sob duas formas: a) o enfraquecimento da constituição da forma-sujeito jurídica, como apontado por Dias (2004); b) a desestabilização do imaginário sobre como deve se constituir os dizeres no espaço jornalístico. No portal de notícias CGN essas duas formas de deslocamento dos moldes constituídos estão, respectivamente, conectadas: a) o cibersujeito faz o seu comentário sob a evidência do funcionamento do ciberespaço e, consequentemente, da maior dificuldade de ser identificado pelo estado; b) o comentário efetuado pelo cibersujeito, que tem o conteúdo contrário ao regramento jurídico e às propriedades do discurso jornalístico, é mesmo assim publicado. Segundo Mariani (1998), O discurso jurídico, impondo regras e punições aos envolvidos na prática jornalística, passa a funcionar como uma espécie de ‘selo de garantia’ [...]. Há um duplo movimento: a lei é da imprensa, pertence a ela de modo a instituí-la e, exatamente por este motivo, pode funcionar contra ela, porque regula a liberdade que a fundamenta (MARIANI, 1998, p. 76).
No caso das SDs analisadas, esse “selo de garantia” não funciona da maneira esperada. O cibersujeito resite em se adequar aos ditames jurídicos e às regras infligidas pelo portal de notícias. Porém, mesmo assim o portal publica o comentário do cibersujeito. Isso pode estar ocorrendo devido às condições de produção existentes, isto é, os dizeres serem efetuados no ciberespaço, especificamente, em um portal de notícias, no qual a redação e publicação dos comentários estão imersas em um processo distinto do que ocorre na mídia impressa. Referências
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DIAS, C. P. A discursividade da rede (de sentidos): a sala de bate papo hiv. São Paulo: Unicamp, 2004. 176p. Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, 2004. CGN. Polícia Civil investiga sumiço de criança de cinco anos. Disponível em: < http://cgn.uol.com.br/noticia/49400/policia-civil-investiga-sumico-de-crianca-de-cincoanos>. Aceso em: 09 mai. 2014. LÉVY, P. Cibercultura. 3 ed. São Paulo: Editora 34, 2010. MARIANI, B. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais. Rio de Janeiro: Revan, 1998. ______. Sentidos de subjetividade: imprensa e psicanálise. Polifonia, EdUFMT, Cuiabá, v.1 2, nº 1, p. 21-45, 2006. PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. São Paulo: Unicamp, 2009. OLIVEIRA. L. C. Comentários de leitores: a violência noticiada na internet. In: CATTELA. J. C. (org.); CARMO, A. S. A. (org.). Análise de discurso: estudos de estados de corpora.1 ed.Toledo/PR : Fasul, v.1, p. 1-274, 2014. ______. Análise de discurso: Michel Pêcheux. Textos selecionados: Eni P. Orlandi. 2 ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2011. ROMÃO, L. M. S. Nós, desconhecidos, na grande rede. Linguagem em (Dis)curso LemD, Tubarão, v. 5, n.1, p. 71-91, jul./dez. 2004. ______. O cavalete, a tela e o branco: introdução à autoria na rede eletrônica. D.E.L.T.A, São Paulo, PUC, v. 22, n. 2, p. 303-328, 2006.
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PROPOSTA DE UMA ESTRUTURA CONCEPTUAL PARA A ÁREA DA INCLUSÃO SOCIAL DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA Manoel Messias Alves da Silva (UEM) Priscilla Teixeira Mamus (UEM) A partir dos anos de 1990, ocorrem ações mais contundentes a favor da inclusão social das pessoas com deficiência, as quais integram diversos setores a fim de eliminarem os fatores de exclusão e de colocaram essas pessoas em seu lugar de direito, entre eles, no mercado de trabalho, no ensino regular de qualidade, no lazer, no esporte, nos planos das políticas públicas. Desse modo, elas passam a integrar, ainda que paulatinamente, um grupo de consumidores específicos, ansiosos pela busca e melhora na qualidade de vida, fonte de pesquisas, discussões e alvo de desenvolvimento tecnológico científico. Todos esses fatores originaram diversos tipos de textos específicos sobre essa temática e, consequentemente, novos conceitos, como os relacionado à acessibilidade, que permeia a área da inclusão em várias estâncias. Aos poucos a sociedade foi se deparando com termos como pessoa com deficiência, inclusão e acessibilidade, entre outros como sociedade inclusiva, ambiente adaptado, comunicação alternativa, Libras, integração social etc, sem saber ou ter certeza de todos os conceitos atrelados; até mesmo entre especialistas da área há divergências no uso de determinado termo em detrimento de outro. Logo, embora uma nova linguagem surgia, a falta de uma organização entre os termos da área faz, até hoje, com que termos impróprios sejam utilizados. A fim de padronizar essa nova linguagem é que se pretende, por meio da ciência da Terminologia, delimitar conceitos próprios da área e mostrar que se a inclusão das pessoas com deficiência for tratada como um saber especializado, possuidor de termos técnicos, muitos dos problemas, como a mudança na concepção de deficiente e o uso de termos adequados, poderão ser resolvidos. Para identificar a terminologia dessa área, é preciso seguir alguns passos fundamentais, entre eles a elaboração de um estrutura conceptual, pois ela facilita tanto a compreensão das relações entre os conceitos da área quanto o reconhecimento de seus termos. Este trabalho, portanto, tem como objetivo
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apresentar a estrutura conceptual da inclusão das pessoas com deficiência, com base nos preceitos da Teoria Comunicativa da Terminologia (TCT).
A constituição de uma nova área específica do saber
Os documentos da Organização das Nações Unidas - Programa Mundial de Ação Relativo às Pessoas com Deficiência, de 1983, e Normas sobre a Equiparação de Oportunidades para Pessoas com Deficiência, de 1994 – o estabelecimento da concepção de “sociedade para todos”, com a Resolução 45/91, da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, de 1990, e a Declaração de Salamanca, de 1994, são marcos relevantes na visão da inclusão não mais apenas como uma questão social a ser resolvida, mas como uma importante e grande área para a qual as atenções têm se direcionado nas últimas décadas. Essa mudança nos hábitos sociais e no pensar político fez surgir novas legislações e novos saberes técnicos e científicos, da mesma forma que no XVIII e XIX, como salienta Barros (2004), quando o desenvolvimento produzido pela revolução industrial fez surgir muitos engenhos e fábricas, bem como organizações e novas leis e, consequentemente, surgia um vocabulário mais técnico e científico para designar as novas especialidades, e para representar os novos rumos do desenvolvimento. Esse paralelo mostra que o desenvolvimento da sociedade é sempre acompanhado com a evolução da linguagem, sobretudo das linguagens utilizadas em determinados setores, as linguagens especializadas, pois para viver em um mundo globalizado e em constante desenvolvimento, no qual as informações veiculam rapidamente, é preciso saber se expressar e compreender novos saberes. Ou seja, não basta o domínio do discurso diário. Este discurso é aquele relacionado à língua geral utilizada pelos falantes de uma determinada língua, cuja norma está na gramática e cujos temas fazem parte de conversações e situações linguísticas do cotidiano, aprendidas naturalmente na convivência em uma sociedade linguística. Diferentemente ocorre com as linguagens de especialidade, pois conforme Pavel&Nolet (2002, apud BARROS, 2004), a linguagem de especialidade é um “sistema de comunicação oral ou escrita usado por uma comunidade de especialistas de uma área particular do
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conhecimento”. Logo, são linguagens que surgem no meio profissional para a melhor eficácia na comunicação, gerando terminologias específicas de cada área do saber. Embora as linguagens de especialidade façam uso de recursos da língua geral na composição de seus textos, estes possuem suas particularidades estruturais. Conforme Cabré (1993), as linguagens de especialidade se diferenciam da linguagem comum por possuírem uma terminologia própria, o que também as diferenciam de outras linguagens específicas. No caso da temática da inclusão das pessoas com deficiência, houve um longo percurso até que se configurasse em uma área específica. O histórico da inclusão aponta que é somente nos últimos trinta anos que ela tem tido maior relevância e, portanto, possui uma terminologia ainda em formação. A História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil (LANNA JR, 2010) mostra que houve, inicialmente, uma preocupação linguística de cunho social, mas que representa os indícios de uma necessidade de padronização que, até os dias de hoje, não foi efetivamente realizada. Nota-se, primeiramente, o rompimento com os usos pejorativos de termos como “inválidos”, “aleijados”, “defeituosos”, utilizados em grande parte do século XX. Essa visão negativa de incapacitados, no final dos anos 1970, deu lugar à expressão “pessoas deficientes”, amplamente divulgada no início da década de 80, época em que ocorreu o Ano Internacional das Pessoas Deficientes. Em seguida, foi incluído o termo “portador”, a fim de apontar para a especificidade da “pessoa portadora de deficiência”, termo encontrado na Constituição Federal de 1988 e nas leis e documentos posteriores. A expressão não foi considerada adequada pelos que lutam pela inclusão, pois a deficiência não é algo que se porta, mas que faz parte da pessoa. Surgiram, também, na tentativa de valorização da pessoa com deficiência, alguns eufemismos como “pessoa com necessidades especiais”, os quais também foram criticados pelos movimentos de inclusão, uma vez que a luta pela igualdade de direitos não condiz com a condição que o adjetivo “especial” trás à pessoa. Foi somente em 2006, com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que o termo “pessoa com deficiência” foi adotado como o mais adequado, pois expressa a questão humana, em primeiro lugar, seguida da condição de deficiente. Apesar desse termo ser considerado o que melhor representa as pessoas em questão, frequentemente aparece, em textos midiáticos, principalmente, o termo “pessoa portadora de
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deficiência”, pois ainda não há uma padronização por meio da qual especialistas e comunidade em geral possam se basear, como dito acima. As palavras utilizadas pela sociedade em geral foram dando lugar a unidades lexicais mais específicas, pois conforme foram surgindo textos na área da inclusão, foram surgindo os termos, já que junto de uma área específica do conhecimento há também uma linguagem específica, como se pretende mostrar nesta pesquisa. Toda área específica do conhecimento, destarte, é composta por um conjunto de termos que possuem, em suas definições, as noções que são úteis à determinada área, compondo a sua terminologia, e a transmissão do conhecimento específico é feita por meio de textos que carregam essa terminologia, e possuem características peculiares em diversos níveis: sintático, semântico, pragmático, semiótico, lexical. O número de diferentes textos que surgem da inclusão das pessoas com deficiência denotam que ela se constitui enquanto área do conhecimento, como será visto a seguir. Um importante documento na composição dessa área é a Classificação Internacional de Funcionalidade, Deficiência e Saúde (CIF), publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2001, após alguns anos de divergências quanto a definições de alguns termos e traduções do inglês para o português. Conforme Sassaki (2006), o documento foi lançado em 1980, com o título Classificação Internacional de Impedimentos, Deficiências e Incapacidades, e trazia as seguintes definições: Impedimento (impairment) – Qualquer perda ou anormalidade da função ou estrutura psicológica, fisiológica ou anatômica. Deficiência (disability) – Qualquer restrição ou falta (resultante de um impedimento) da habilidade para desempenhar uma atividade de uma maneira, ou com variância, considerada normal para um ser humano. Incapacidade (handicap) – Uma desvantagem, resultante de um impedimento ou de uma deficiência, que limita ou impede a realização de um papel considerado normal (dependendo de idade, sexo e fatores sociais e culturais) para um dado indivíduo (SASSAKI, 2006, p. 46).
O autor salienta que estas definições foram muito criticadas, pois foram elaboradas por especialistas sem consulta ao movimento de inclusão e às pessoas com deficiência. Por isso, ou eram superficiais ou consideravam apenas a questão médica.
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Após anos de estudos, a CIF foi aprovada pela OMS em 2001 no formato de hoje, e a tradução para o português trocou o termo incapacidade por deficiência. A CIF é importante não só pela classificação dos tipos de deficiência, mas também por contribuir com as ações de inclusão amparadas pelas leis. Além disso, pode ser aplicada “em intervenções clínicas, em estatísticas, em desenvolvimento de políticas sociais e em educação” (idem, 2006, p. 48). Um dos objetivos da CIF é a unificação da linguagem, a partir da descrição de estados relacionados à saúde. Muitos conceitos relacionados à inclusão das pessoas com deficiência podem ser encontrados a partir do “Paradigma de Suporte” (ARANHA, 2001). Segundo a autora, esse paradigma se caracteriza pelo direito de acesso das pessoas com deficiência aos mesmos recursos dos demais cidadãos, sem segregação. Para tanto, é preciso que sejam desenvolvidos instrumentos que possibilitem o suporte, seja ele social, econômico, físico, instrumental. O desenvolvimento desses recursos é responsável pela elaboração de textos específicos, que têm como base conceitos de diversas áreas, como a das ciências sociais, da psicologia, da medicina, da economia, do desenvolvimento tecnológico, entre outras. Essa interdisciplinaridade aponta para um dos princípios da Terminologia enquanto ciência, especificamente, da Teoria Comunicativa da Terminologia (TCT), que ancora esta pesquisa. Esse princípio mostra que a interdisciplinaridade da terminologia de uma área ocorre quando diferentes campos do saber a compõem. Mas não basta, somente, acrescentar fundamentos de diferentes disciplinas. É preciso reorganizar os conceitos (CABRÉ, 1999). Retomando-se o paradigma acima citado, como suporte social, que trata dos direitos das pessoas com deficiência, inclusive do direito ao ensino regular, houve a criação de documentos como declarações, leis, decretos e portarias. A Lei de Cotas, Lei n° 8. 213, de 27/7/91 pode ser considerada como suporte econômico. Conforme essa lei, todas as empresas com cem ou mais empregados devem conter de 2% a 5% de funcionários reabilitados ou com deficiência. Em 2001, foi publicada a Instrução Normativa n° 20, pelo Ministério de Trabalho, por meio da qual as empresas passaram a ser fiscalizadas. Logo, a lei de cotas teve maior visibilidade e uso na sociedade, principalmente entre os empregadores. Eles tiveram de compreender essa lei para aplicá-la, e como ela é carregada de conceitos de inclusão, muitas vezes
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sua aplicação fica comprometida, pois há muitos casos em que o deficiente é apenas colocado na empresa, mas sem o auxílio e apoio técnico que tem por direito. Isso mostra que a falta de compreensão dos conceitos trazidos pela terminologia dessa área é fator determinante para que não ocorra a inclusão, efetivamente. Para a aplicação da lei de cotas no mercado de trabalho, é preciso ter conhecimento das leis de acessibilidade. Embora amparada por leis, a inclusão não é possível sem que os espaços se modifiquem, a fim de cumprir o princípio da acessibilidade às pessoas com deficiência. Por isso surgiram as leis de acessibilidade, e o Decreto Lei n° 5296, de 2/12/04, que regulamenta a Lei n° 10.048 (sobre a prioridade de atendimento) e a Lei n° 10.098 (que estabelece normas gerias e critérios básicos para a promoção da acessibilidade). Essas modificações enquadram-se no suporte físico. As adaptações necessárias para garantirem a inclusão geraram diversas normas da ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas.
Ora, para que as ações da sociedade e do Estado estejam em
consonância com os princípios de acessibilidade, é fundamental que se padronizem os processos, e que haja a garantia de qualidade e segurança. Ao se padronizar os processos, há a necessidade de se padronizar o uso de uma linguagem específica, a fim de que haja compreensão por parte de quem executa os processos e, portanto, eficácia e qualidade. Algumas normas da ABNT enquadram-se à criação das Tecnologias Assistivas, que são produto, recursos, serviços que visam à autonomia e melhoria na qualidade de vida de pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. Também conhecidos por Produtos de Apoio, são classificados pela ISO 9999: 2007, que traz uma lista de definições, como exemplo “Produtos de apoio para atividade doméstica: Incluem-se, p. ex., produtos de apoio para comer e beber”. A temática em questão também tem gerado muitos livros e pesquisas acadêmicas. Em uma busca com o termo “inclusão das pessoas com deficiência” no banco de teses da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), foram encontrados 376 trabalhos, entre teses e dissertações. Já a busca no banco de teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) resultou em 126 trabalhos. Quanto a livros, a Revista Sentidos, que se dedica à temática da inclusão, publicou, em
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2006, uma lista de 100 livros fundamentais sobre deficiência. A maioria aborda a questão a partir da inclusão. Todos os textos pertencentes à temática da inclusão caracterizam-se como textos especializados, pois são construídos a partir da gramática de língua geral sendo, portanto, linguisticamente complexos e sua ampla possibilidade de utilização lhes garantem caráter pragmático também complexo. Além disso, as situações de comunicação nas quais são inseridos transmitem conhecimentos específicos de sua área do saber, de modo que os especialistas podem se comunicar entre si. Como já foi dito anteriormente, as linguagens de especialidade são constituídas por um conjunto de termos que a configuram. O termo, designado neste trabalho como Unidade de Conhecimento Especializado (UCE), deixa de ser uma unidade do léxico comum quando o seu conteúdo específico o integra a uma área do saber, tornando-se objeto de estudo da Terminologia. Assim, ao se identificar as UCEs que compõem a terminologia de uma dada área, é importante, primeiro, observar sua extensão semântica, o seu significado para, em seguida, indicar o seu significante, a sua forma linguística, de modo que as UCEs se definem em relação ao seu universo terminológico de sua área. Essa abordagem é denominada onomasiológica, pela qual a Terminologia parte do conceito, geralmente, para então apontar a UCE correspondente (FINATTO,1998). Os significados das UCEs não devem ser considerados isoladamente, pois eles fazem parte de uma rede de conceitos de um domínio especializado. Para Cabré (1999), esses conceitos mantêm diversos tipos de relação, formando um mapa conceitual, e o conteúdo das unidades dependem da situação de uso.
os conceitos não estão isolados, fazem parte de um campo especializado e relacionam-se com outros conceitos, formando uma rede ou estrutura conceptual. São estas estruturas conceptuais representando um conjunto sistematizado dos conceitos – que descrevem um âmbito especializado (ALMEIDA, 1998, p. 224)
Para se desenvolver uma estrutura conceptual, é preciso ter grande conhecimento da área que se deseja trabalhar, o qual pode ser obtido pela leitura dos textos especializados e pelo auxílio de especialistas. Como essa pesquisa faz parte de uma
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investigação maior, que visa ao desenvolvimento de uma dicionário terminológico, apresentar a estrutura conceptual da área da inclusão das pessoas com deficiência é um processo imprescindível, pois é nela onde se enquadram as definições das UCEs, conforme o lugar que ocupam. Segundo Almeida (2006, p. 89), a importância desse processo consiste em: 1) possibilitar uma abordagem mais sistemática de um campo de especialidade; 2) circunscrever a pesquisa, já que todas as ramificações da área-objeto, com seus campos, foram previamente consideradas; 3) delimitar o conjunto terminológico; 4) determinar a pertinência dos termos, pois separando cada grupo de termos pertencente a um determinado campo, poder-se-á apontar quais termos são relevantes para o trabalho e quais não são; 5) prever os grupos de termos pertencentes ao domínio, como também os que fazem parte de matérias conexas; 6) definir as unidades terminológicas de maneira sistemática e, finalmente; 7) controlar a rede de remissivas.
Logo, por meio dos campos e subcampos determinados na estrutura, as UCEs são coletadas no corpus, e tornam possível visualizar o modo como a área se apresenta. A familiarização com a temática, após leitura de diversos textos específicos e consultas em sites, leis e especialistas, permitiu observar que ela se insere em um contexto interdisciplinar, partindo de uma grande área que é a da inclusão social. Vale ressaltar que o conceito de inclusão social surgiu como tentativa de colocar em prática as discussões sobre a exclusão social, tema multidimensional que trata dos deficientes, da pobreza, dos imigrantes, dos ex-prisioneiros, dos dependentes químicos, dos idosos, entre outros grupos que estão à margem da sociedade:
INCLUSAO SOCIAL
Pessoa com deficiência
Pobre
Dependente químico
Idoso
Outros grupos marginalizados
A Inclusão Social está em um primeiro nível, seguido das áreas correspondentes. A área Pessoa com deficiência está no segundo nível, a partir do qual aparecem suas as
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subáreas. Se a concepção dessa estrutura seguir o paradigma de suporte apontado por Aranha(2001), ancorada pelas divisão feita pelo especialista Romeu Sassaki (2006) que parecem ser o que melhor abrange a realidade da inclusão, estabelecem-se as subáreas (Nível 3). A primeira subárea seria a do suporte social, que compreende a inclusão da pessoa com deficiência no esporte, turismo e lazer e no ensino regular, que também se divide em ensino fundamental médio e ensino superior. A outra subárea seria o suporte econômico, que enquadra a inclusão no mercado de trabalho. Como suporte físico, encontram-se as UCEs relacionadas aos ambientes, com a concepção: “todas as coisas construídas que cercam o ser humano: as edificações, os espaços urbanos, o mobiliário, os aparelhos assistivos, os utensílios e os meios de transporte” (SASSAKI, 2006, p. 143). Para melhor divisão, essa estrutura coloca os utensílios, chamados tecnologia de apoio, e os produtos de acessibilidade comunicacional na subárea do suporte instrumental.
Estrutura conceptual da inclusão das pessoas com deficiência I. Suporte Social I.1 Inclusão no esporte I.2 Inclusão no turismo e lazer I.3 Inclusão no ensino regular I.3.1 Inclusão no ensino fundamental e médio I.3.2 Inclusão no ensino superior
II. Suporte Econômico II.1 Inclusão no mercado de trabalho
III. Suporte físico III.1 Acessibilidade aos espaços físicos III.1.1 Equipamentos urbanos III.1.2 Edificações
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III.2 Acessibilidade ao transporte III.2.1 Transporte público III.2.1.1 Aéreo III.2.1.2 Aquaviário III.2.1.3 Rodoviário III.2.1.4 Ferroviário 2.2.2 Transporte autônomo em veículos automotores
IV. Suporte instrumental IV.1 Acessibilidade comunicacional IV.1.1 Acessibilidade digital IV.1.2 Comunicação alternativa IV.1.3 Caixas eletrônicos IV.1.4 Televisão IV.2 Tecnologias de apoio IV.2.1 Conforto IV.2.2 Alimentação IV.2.3 Vestuário IV.2.4 Higiene IV.2.5 Comunicação IV.2.6 Locomoção IV.2.7 Prótese
Conclusão
Após a descrição da inclusão social das pessoas com deficiência enquanto uma área de especialidade, pode-se observar que ela se constituiu a partir de novos conceitos que surgiram, todos relacionados a essa área, que se configura como uma subárea da Inclusão Social, de modo geral. Isso foi possível observar não só por meio dos aspectos teóricos relacionados à área, mas também pelo embasamento teórico concernente à Terminologia, através do qual se configurou a estrutura conceptual apresentada.
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Com o Paradigma do Suporte, apontado por Aranha (2001), delineou-se a estrutura onde a terminologia e os conceitos da área são amoldados, partindo de quatro dimensões: i. Suporte social, ii. Suporte econômico, iii. Suporte físico e iv. Suporte instrumental. Em cada dimensão podem ser encontrados os termos cujos conceitos se relacionam, formando redes de relações, já que não se constituem isoladamente. A partir, então, dessa estrutura conceptual, será possível organizar a terminologia da área em questão e concluir um passo fundamental para o desenvolvimento futuro de um dicionário.
Referências
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SASSAKI, R, K. Curso de inteligências múltiplas na educação inclusiva. Caldas Novas: Governo de Goiás, 2001.
_____________. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. 7 ed. Rio de Janeiro: WVA, 2006.
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OBJETOS DE ACORDO EM ANÚNCIOS DO “19 DE DEZEMBRO” Marcelo Silveira (UEL) Introdução O projeto de pesquisa intitulado Para a História do Português Paranaense (PHPP), sediado na UEL e que propõe estudar o português brasileiro com base em documentos oficiais escritos entre os séculos XVII e XIX, é o motivo inicial para a redação destas reflexões iniciais acerca do tema proposto. Em busca de dados e ideias para pesquisa, surgiu o tema Tradições Discursivas (TD), área esta que é considerada, segundo Kabatek (2006), fundamental para o estudo da história de uma língua. Concordando com esse autor, pretendemos unir sua área de pesquisa à dos Estudos Retórico-Argumentativos (ERA) (representados, sobretudo, por Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996)), para fazer análises concernentes à argumentação e aos elementos retóricos. Nosso corpus de pesquisa é composto, inicialmente, pelos anúncios no jornal “19 de Dezembro”, que circulou no Paraná, no século XIX. Para fazer jus aos estudos das Tradições Discursivas, os séculos seguintes também serão investigados pelas TD e pelos ERA. Sendo assim, vamos abordar, num primeiro momento neste artigo, a teoria das Tradições Discursivas. Em seguida, passaremos a discorrer brevemente sobre a Teoria da Argumentação, que tem base na Retórica Aristotélica e ajuda a construir a Nova Retórica. Finalmente, faremos breves análises sobre alguns anúncios do jornal “19 de Dezembro” circulados no século XIX, o que nos dará base de dados inicial para que, acompanhando a trajetória diacrônica dos periódicos paranaenses até a atualidade, nos detenhamos mais demoradamente sobre as Tradições Discursivas, no quesito
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argumentação. As considerações finais e as referências bibliográficas seguem as análises e encerram o texto. Tradições discursivas As TD, segundo Kabatek (2006, p. 7), são a “repetição de um texto ou de uma forma textual ou de uma maneira particular de escrever ou falar que adquire valor de signo próprio (portanto é significável)”. Tendo isso em mente, esse material composicional pode ou não perdurar ao longo da história do gênero em questão. As distintas formas de escrever podem criar tradições discursivas diferentes, sendo que o uso ou não de certos elementos linguísticos é sintoma para determinar as tradições discursivas a que eles pertencem. De acordo com Kabatek (2006), e é nele que nos basearemos nos textos deste item, essa área dos estudos linguísticos diacrônicos nasceu na Alemanha com forte influência do ensino de Eugênio Coseriu, para quem a fala é dividida fundamentalmente em três níveis, sendo eles “três aspectos da atividade lingüística cuja diferenciação é considerada requisito prévio imprescindível para qualquer questão do estudo da linguagem” (KABATEK, 2006, p. 1). Os três níveis são: o “falar em geral”, como dispositivo do homem para comunicar-se por meio de signos linguísticos; o histórico, “das línguas como sistemas de significação historicamente dados” (KABATEK, 2006, p. 1, grifo do autor); os textos ou discursos concretos, que são a atualização do nível histórico. Os três níveis só são separados para fins de investigação, pois são concomitantes, visto que não há como o falar universalmente somente pode se dar por meio de uma língua particular e em forma de textos. Baseada, então, nessa classificação coseriana, as TD a ampliam e precisam o que nelas não estava contido. Depois de algumas fases de mudanças e incrementos, nos anos 60 passa-se a estudar as particularidades do texto, ganhando o status de disciplina nos anos 70. Em seguida, identificaram-se diferentes campos no estudo da textualidade: a partir de elementos linguísticos; a partir do conteúdo; com relação à inserção situacional; de acordo com sua função ou finalidade comunicativa (KABATEK, 2006).
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Foi quando Brigitte Schriben-Lange, em 1983, ex-aluna de Coseriu, propôs uma pragmática histórica, que acabou se tornando o fundamento para os estudos das TD, principalmente no que tange ao fato de que “existe uma história dos textos independente da história das línguas e que o estudo histórico das línguas deve tê-la em conta” (KABATEK, 2006, p. 3), e, em seguida, por meio dos trabalhos de Peter Koch (1997) e Wulf Oesterreicher (1997), que reduplicam o nível histórico, sendo eles a língua como sistema gramatical e lexical, e as tradições discursivas. Sendo assim, uma determinada finalidade argumentativa passaria por dois filtros para se tornar um enunciado, filtros estes compostos justamente pelos sistemas gramatical e lexical, bem como pelas tradições discursivas. Pode-se entender, à primeira vista, as TD como “modos tradicionais de dizer as coisas, modos que podem ir desde uma fórmula simples até um gênero ou uma forma literária complexa.” (KABATEK, 2006, p. 4). É aqui que nasce uma pequena confusão, que faz com que se pense que as TD são sinônimos dos estudos bakhtinianos sobre os gêneros textuais, o que fez com que Kabatek (2006, p. 5) esclarecesse que uma ampliação no conceito de TD seria aquela que se refere “a todos os tipos de tradição de textos, não unicamente às complexas” e a outra, mais importante, é de que é possível haver diferentes tradições dentro de um mesmo gênero, os quais são sempre “tradições de falar”. O que define as TD é “a relação de um texto em um momento determinado da história com outro texto anterior: uma relação temporal com repetição de algo”, desde que tal repetição seja discursiva, estando em uma situação (contexto, canal, suporte) que a evoque ou que a exija, que Kabatek chama de “constelação discursiva” (KABATEK, 2006, p. 5, 6). Assim, quando dissemos, no início deste tópico, que as TD são “repetição de um texto ou de uma forma textual ou de uma maneira particular de escrever ou falar que adquire valor de signo próprio (portanto é significável)” (KABATEK, 2006, p. 7), podemos entender o signo metatextual anúncio como tendo seu próprio valor de signo, portanto passível de apresentar uma tradição discursiva. Diante dessa explicação inicial e básica a respeito das TD, partamos, agora, para algumas definições importantes sobre a Teoria da Argumentação e sobre a Nova
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Retórica, para que, conforme nosso objetivo, possamos traçar possíveis intersecções entre essas duas áreas de estudo. Teoria da Argumentação e Nova Retórica Depois de séculos sendo vista somente do ponto de vista estilístico, que é somente uma característica de uma das cinco partes da Retórica clássica, esta, que é considerada a arte de se comunicar eficaz e persuasivamente, ganhou novo fôlego com elementos trazidos pela linguística moderna, bem como com uma teoria da argumentação apresentada, principalmente, pelo jusfilósofo belga Chaïm Perelman, do grupo µ da Universidade de Liège. Seu Tratado da Argumentação: a nova retórica, em coautoria com Lucie Olbrechts-Tyteca (1996) é o marco que dá novos ares à Retórica Aristotélica, trabalhando a questão da verossimilhança do discurso persuasivo do orador em relação a seu auditório. Como os elementos linguísticos são também (em relação às TD) o material de estudo da Nova Retórica e da Teoria da Argumentação, sentimo-nos à vontade para realizar essa intersecção entre as áreas, entendendo que a revitalização da Retórica clássica possa trazer incrementos ao estudo das TD. Na antiguidade clássica, havia a figura dos sofistas, que eram mestres em argumentar e ensinavam essas técnicas a cidadãos que precisavam se defender na corte. Segundo Silveira (2007, p. 71), dois de seus ensinamentos era “o fato de que há sempre dois lados para cada questão (devido a Protágoras) e as noções de lugares-comuns, depósito mental onde o material da argumentação pode ser encontrado”. Esses lugares-comuns são usados, essencialmente, como objetos de acordo, e estes podem servir de premissa para a argumentação, segundo Perelman (1996), o qual os classifica em duas categorias: a) relativa ao real (composta de fatos, verdades e presunções); e b) relativa ao preferível (composta pelos lugares do preferível, valores e hierarquias). Como nosso objetivo é analisar os anúncios do jornal “19 de Dezembro”, no quesito Objetos de Acordo, é preciso entender que os interlocutores dos anúncios, a saber, na terminologia da Retórica, o orador (anunciante) e o auditório (público leitor
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e/ou aqueles que ouviam a leitura dos anúncios, como sugere Pina (2010), ao escrever sobre O jornal, o leitor e a leitura no oitocentos brasileiro), partilhem um acordo prévio, a saber, é preciso que haja algo em comum entre ambos para que “os raciocínios se desenvolvam a partir daí” (SILVEIRA, 2007, p. 77). Assim, Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) dividem os objetos que servem de acordo em dois tipos: o que se relaciona ao real e o que concerne ao preferível. Antes de nos determos sobre os tipos de acordo, queremos adiantar que os objetos de acordo relativos ao real têm pretensão de validade para o auditório universal, enquanto que os objetos de acordo relativos ao preferível pretendem a adesão apenas de grupos particulares. Falemos, então, um pouco sobre cada um desses tipos de auditório, para, em seguida, falarmos dos objetos de acordo. Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 33) ensinam que Auditório Universal é o auditório “constituído pela humanidade inteira, ou pelo menos por todos os homens adultos e normais”. Acreditamos que tal ideia só pode existir em tese, pois sempre existirá um problema de heterogeneidade. O Auditório Particular, por sua vez, é formado pelo interlocutor cujas crenças e juízos de valor, o orador deve identificar, a fim de que escolha as provas mais adequadas para conseguir do auditório a adesão. Da mesma forma que acontece com o Auditório Universal, ou seja, o problema da heterogeneidade, também acontece com o particular, por causa dos diferentes pontos de vista possíveis de serem suscitados. É com esses dois auditórios que o enunciador dos anúncios do “19 de Dezembro” lidarão, e não com o terceiro tipo de auditório elencado no Tratado da Argumentação: o que se refere ao próprio sujeito, quando este delibera consigo mesmo a respeito de seus próprios atos – a deliberação íntima (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 45). Tratemos, agora, dos objetos de acordo. Os objetos de acordo relativos ao real, enfatizamos, pretende ser válido para o auditório universal e são classificados em três tipos, a saber, fatos, verdades ou presunções. O fato designa objetos de acordo precisos, limitados e não pode ser controverso. As verdades, por sua vez, são sistemas mais complexos e têm relação com as ligações entre os fatos, podendo transcender a experiência. Por último, temos as presunções, que podem não ter tanta adesão como os outros dois objetos de acordo,
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então espera-se que sejam reforçadas, para serem salientadas, o que não pode acontecer com o fato, cujo estatuto corre o risco de ser diminuído. Assim, cremos na seguinte presunção: presume-se, até que se prove em contrário, “que o normal é o que ocorrerá, ou melhor, que o normal é uma base com a qual se pode contar em nossos raciocínios” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 79-80). Os objetos de acordo relativos ao preferível estão relacionados à adesão do auditório particular e são também divididos em três tipos: valores, hierarquias e lugares do preferível. Os valores são entidades que “possibilitam uma comunhão sobre modos particulares de agir”, diretamente ligados à doxa, por se tratar de opinião do grupo (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 85). A hierarquia, por sua vez, quando comparada aos valores, tem a ver com o estudo da caracterização do auditório, pois este precisa da hierarquização para que a busca dos valores – que cria incompatibilidades e obriga a escolhas – seja feita. Os lugares do preferível são premissas de ordem geral que permitem fundar valores e hierarquias, bem como servem de ponto de partida para argumentar; são conhecidos também como lugares-comuns e divididos em dois subtipos principais: os lugares da quantidade e da qualidade e mais outros quatro secundários, os lugares da ordem, da existência, da essência e dos valores da pessoa (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996). Vejamos cada um deles. O lugar da quantidade afirma que algo é melhor por razões quantitativas. O lugar da qualidade dá valor à característica qualitativa do acordo. Dentro dos lugares da qualidade, Aristóteles destacou o lugar do precário, que se opõe ao valor quantitativo da duração e a correlação ao único, ao original; relaciona-se por oposição ao lugar do estável e vincula-se ao lugar da oportunidade, que é o preferível no momento de maior importância. Há também o lugar do irreparável, que acentua o do precário e pode estar ligado tanto à qualidade quanto à quantidade. “O lugar da ordem afirma a superioridade do que é anterior ou posterior, do que é causa ou do que é princípio, do que é fim ou do que é objetivo” (SILVEIRA, 2007, p. 79). Sobre o lugar do existente, temos “a superioridade do que existe, do que é atual, do que é real, sobre o possível, o eventual ou o impossível” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 106). No lugar da essência, pode-se “dar um valor superior aos indivíduos enquanto representantes bem caracterizados dessa essência, da função, do padrão” (SILVEIRA,
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2007, p. 79). Por fim, o lugar dos valores da pessoa é vinculado à sua dignidade, ao seu mérito, à sua autonomia, e “confere também valor ao que é feito com cuidado, ao que requer um esforço.” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 107-108). Destacados os itens que nos importam para as análises que pretendemos fazer dos anúncios no jornal “19 de Dezembro”, neste artigo, tanto das TD quando dos ERA, passemos à transcrição de alguns exemplos, acompanhados de suas análises, não sem antes um alerta: este projeto pretende analisar não somente os acordos referentes às premissas, mas também a escolha das premissas e a apresentação delas, que são dois passos seguintes das análises feitas pelos ERA. Além disso, não se deve esquecer que, para que haja tradição discursiva, é preciso que descrições sejam feitas diacronicamente, o que não se dará neste primeiro momento. Anúncios do “19 de Dezembro” Como explicamos que os objetos de acordo relativos ao real são válidos para o auditório universal e os relativos ao preferível ao auditório particular, cabe uma explicação adicional: as análises serão feitas levando em conta o fato de que o auditório relacionado aos anúncios pode tanto ser universal quanto particular. Sendo assim, caberão ambas as análises, já que não se sabe a qual leitor estará atingindo, apesar de poder ficar nítido a qual leitor ele foi escrito. Iniciemos as análises argumentativas com um anúncio de 02/04/1856: “A DIRECTORIA do baile que teve lugar no dia 25 do mez p. p. convida a todos os Snrs. que tiverem a haver qualquer pagamento, a comparecerem na casa em que elle teve lugar, no dia 4 do corrente, ás 4 horas da tarde, com suas contas para serem verificadas e pagas.” Vejamos quais são os acordos usados aqui para uma possível argumentação. A princípio, pode-se dizer que não há argumentação alguma, visto que não há uma resposta por parte do auditório. Dizemos que a resposta não precisa ser imediata como num diálogo e também não sabemos qual foi a resposta, se é que houve. Podemos, porém, inferir do texto qual será provavelmente a resposta, pelo modo como se comporta linguisticamente o autor do texto.
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Outro possível argumento contra nossa ideia de que este texto se trata de uma argumentação seria dizer que o texto é apenas informativo. Porém, Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996, p. 1) dizem que “não se delibera quando a solução é necessária e não se argumenta contra a evidência”. Ora, se todos achassem que a solução, no texto acima, era necessária, não teria razão de o anúncio existir, e, se não houvesse argumento no anúncio acima, seria sinal de que o acerto das contas é evidente e de que não precisaria existir um anúncio para tanto. No entanto, não foi o que aconteceu. O anúncio foi publicado e veiculado, chamando os devedores ao pagamento da quantia devida. Com relação aos objetos de acordo relativos ao real, temos presentes os fatos: (a) houve um baile, que se prova com a data do evento; (b) os nomes dos devedores não foram revelados, mas, apesar do uso do subjuntivo (tiverem) – o que pode sugerir somente uma hipótese, por vezes pouco provável –, entendemos que há os que têm a haver pagamento; (c) o baile aconteceu em uma casa, no dia 4 do mesmo mês de publicação do jornal, ou seja, abril, às 4 horas da tarde. Os três itens e seus dados se encaixam na descrição dos autores do Tratado da Argumentação, pois são preciso, limitados e não são controversos (pelo menos, nas edições seguintes do jornal, não há nada que mude os fatos destacados nesta edição). Quais seriam as verdades? Uma verdade que parece evidente é a que trata dos costumes da época. O baile ocorreu, nem todos pagaram, mas há uma esperança de que alguns ou todos os devedores voltem e quitem sua dívida. Essa é uma verdade estabelecida pelo autor do texto, com nítido intuito de recuperar uma parte ou o todo do que foi consumido durante o baile. Hoje em dia, se isso acontece (o anúncio e o pagamento) é raridade. “Embutida” na verdade acima está a presunção. Na realidade, para que a verdade exista, há uma presunção anterior, sua causa. O autor presume que, anunciando no jornal, seu pedido será atendido, senão não o faria. Temos a impressão de que ele quer mostrar como normal essa atitude. Não podemos afirmar, hoje, que o autor tinha certeza de que, anunciando, seu pedido seria atendido, é preciso recorrer à história, mas podemos falar, no mínimo, de sua presunção. Com relação aos objetos de acordo relativos ao preferível, podemos ver, pelo menos, um valor no texto. Esse valor está ligado também à presunção detectada, de que,
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por esquecimento ou por costume (sem eliminar a atitude deliberada), o devedor deixou de quitar sua dívida na saída do baile. Se não há o valor pretendido pelo autor do anúncio, há, pelo menos, uma tentativa de que esse valor seja reconhecido pelo leitor e a atitude seja tomada. Uma possível hierarquia neste anúncio tem justamente a ver com o valor descrito como possível. O autor, ao acreditar que alguns ou todos os seus devedores voltaram para fazer o acerto de contas, destaca o leitor que se encaixa na descrição do seu público-alvo, colocando-o em nível superior àquele devedor que pensa em não ir ou não irá fazer o acerto de contas, trabalhando, com isso, com a ética, com a moral. Partindo para os lugares do preferível, temos o predomínio linguístico dos lugares da quantidade, que vemos, não somente nos plurais, mas também nos números, apesar de fazerem parte dos dados. O autor do anúncio poderia ter mencionado somente o local onde o baile aconteceu e a data, porém detalhou ainda mais. Porém, tendo por base a hierarquia e o valor, percebemos nitidamente o lugar da qualidade, o que é possivelmente o cerne da argumentação, no caso, a qualidade do devedor que paga suas dívidas; aliás, esses termos não são usados, pois que negativos, mas sim “haver qualquer pagamento” e “contas para serem verificadas e pagas”, minimizando o problema por parte do devedor. É possível vermos, também, o lugar da oportunidade no texto, já que o anunciante está dando uma oportunidade de as dívidas dos participantes do baile serem quitadas, deixando implícita uma possível punição, caso o pedido não seja aceito no prazo estipulado, talvez até deixando implícito o lugar do irreparável, já que não ficou explícito o que pode acontecer vencido o prazo de pagamento. Um outro lugar é o do existente, que fica nítido quando se compara o existente, o real, o atual (baile ocorrido, dívidas e devedores existentes, data para pagamento) ao inexistente, ainda não real ou atual (o pagamento das dívidas), ou seja, a superioridade do fato em relação à presunção no plano real ou a superioridade da presunção ao fato, no plano axiológico. Para encerrar, outros dois lugares se fazem presentes: o da essência e o dos valores da pessoa. Ambos estão muito ligados aos valores aqui analisados e à hierarquia, visto que eleva os devedores ao posto de indivíduos superiores, que certamente pagarão suas dívidas, devido à essência que têm dentro de si ou, no caso dos valores da pessoa,
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pondo em relevo a dignidade de cada um, ao seu mérito, ainda mais pelo deslocamento ao local do baile para honrar com dignidade seus compromissos. Considerações Finais O espaço deste trabalho nos permitiu traçar algumas linhas gerais sobre as TD e sobre os ERA, bem como explicitar o alcance deste projeto, além de demonstrar em uma análise abrangente, mas não completa, dos possíveis acordos referentes às premissas em um anúncio do jornal “19 de Dezembro”, que circulou no Paraná no século XIX. A intenção foi mostrar como é profícua uma análise dos Estudos RetóricoArgumentativos, no nível dos possíveis acordos referentes às premissas para uma argumentação e como esses elementos analisados podem ser recorrentes nos textos do gênero em estudo (outras análises já foram feitas, e isso foi constatado), podendo, inclusive, incorrer em uma tradição. Ainda é cedo para qualquer conclusão que vá além daquelas que o estado da arte atual tem propagado, porém caminhamos, com essas análises, para encontrar e sistematizar possíveis Tradições Argumentativas, com base nas TD propagadas por Johannes Kabatek, mesmo porque, em busca feita por intermédio do Google (que é o atual mais eficaz buscador do mercado), não se encontrou nenhuma ocorrência da expressão “tradições argumentativas” (nem seu singular) somadas ao nome Kabatek, nem também somada à expressão “tradições discursivas” (nem seu singular, e nem as demais combinatórias). Nossa intenção também é que outras reflexões sejam divulgadas nos meios acadêmicos e que outros interessados possam colaborar e refletir juntos sobre esse assunto que nos é tão empolgante, a fim de que possamos escrever um pouco da história sobre a história do português paranaense, colaborando com a história do português brasileiro.
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Referências KABATEK, Johannes. Tradições discursivas e mudança linguística. In: LOBO, Tânia; RIBEIRO, Ilza; CARNEIRO, Zenaide; ALMEIDA, Norma (Eds.). Para a história do português brasileiro: novos dados, novas análises, Salvador: EDUFBA, 2006. PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1996. PINA, Patrícia Kátia da Costa. O jornal, o leitor e a leitura no oitocentos brasileiro. Labirintos, n. 8, p. 1-14, 2. sem. 2010. SILVEIRA, Marcelo. O Discurso da Teologia da Prosperidade em Igrejas Evangélicas Pentecostais. Estudo da Retórica e da Argumentação no culto religioso. 2007. Tese (Doutorado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa, Universidade de São Paulo, 2007.
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ATIVIDADES DE ANÁLISE LINGUÍSTICA: QUESTÕES DE METALINGUAGEM NO PROCESSO DE COMPREENSÃO TEXTUAL Márcia Cristina Greco Ohuschi (UFPA-Castanhal) Zilda Laura Ramalho Paiva (UFPA-Castanhal) Considerações Iniciais Vinculado ao Projeto de Pesquisa “Língua Portuguesa: formação de professores e ensino-aprendizagem” (UFPA), este artigo apresenta uma proposta de ensino de Língua Portuguesa (LP) voltada para a prática de análise linguística (AL), contemplando aspectos epilinguísticos e metalinguísticos no processo de compreensão textual. A proposta surgiu por meio de resultados de projetos anteriores (de pesquisa e de extensão) que diagnosticaram as dificuldades dos professores de LP de Castanhal e região, sobretudo no que se refere ao ensino da gramática, de forma reflexiva e contextualizada. Nesse sentido, inseridas no interior de um trabalho com um gênero discursivo específico, elaboramos, no âmbito do projeto atual, uma sequência de encaminhamentos para a construção de atividades de AL que, por questões didáticas, denominamos roteiro. O roteiro pauta-se na visão sócio-histórica da linguagem (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992) e nas perspectivas dos gêneros discursivos (BAKHTIN, 2003) e da variação e consciência linguísticas (BAGNO, 2007; DUARTE, 2011), Resultados preliminares, pautados em atividades de AL construídas por professores em formação continuada, considerando o roteiro proposto, demonstraram que: a) todos os grupos de professores conseguiram elaborar atividades contemplando o efeito de sentido de um elemento gramatical do texto; b) apenas dois grupos resgataram a teoria gramatical nas questões elaboradas; c) somente um grupo se aproximou da proposta do trabalho com a estrutura do elemento gramatical (OHUSCHI; PAIVA, 2014). Além
desse
momento
com
professores
em
formação
continuada,
desenvolvemos, junto a alunos de graduação em Letras, atividades de AL considerando
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do conto de fadas Os gnomos e o sapateiro. Essas atividades nos permitiram perceber as suas contribuições para a formação inicial, já que estas possibilitam o diálogo concreto entre as teorias discutidas no curso e a sua empregabilidade nas aulas de LP na educação básica. Com base no exposto, primeiramente, apresentamos uma breve reflexão teórica acerca da prática de AL e, em seguida, o roteiro e as atividades propostas. 1. Breve referencial teórico Com o avanço das Ciências Linguísticas, sobretudo a partir da década de 1980, em que houve a disseminação das pesquisas acerca do ensino de Língua Portuguesa, tomando o texto como objeto de ensino, Geraldi (1984) propõe a prática de AL, partindo dos textos dos alunos, enfocando, assim, o momento da reescrita textual. Desse modo, o autor destaca a “(...) substituição do trabalho com a metalinguagem pelo trabalho produtivo de correção e autocorreção de textos produzidos pelos próprios alunos” (GERALDI, 1984, p. 79). Na década seguinte, Geraldi (1997) apresenta a prática de AL no interior das atividades de leitura e de produção de textos e a define como um (...) conjunto de atividades que tomam uma das características da linguagem como seu objeto: o fato de ela poder remeter a si própria, ou seja, com a linguagem não só falamos sobre o mundo ou sobre nossa relação com as coisas, mas também falamos sobre como falamos (GERALDI, 1997, p. 189190).
Nesse contexto, o linguista discorre a respeito de duas atividades que compõem a prática de AL, atividades: a) epilinguísticas; b) metalinguísticas. O teórico considera que as primeiras propiciam a reflexão sobre a linguagem levando em consideração “(...) o uso destes recursos expressivos em função das atividades lingüísticas em que está engajado” (GERALDI, 1997, p. 190) e que as segundas possibilitam “(...) a reflexão analítica sobre os recursos expressivos, que levam à construção de noções com as quais se torna possível categorizar tais recursos” (GERALDI, 1997, p. 190-191). O autor
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ainda ressalta que as atividades metalinguísticas serão relevantes se forem precedidas pelas atividades epilinguísticas. Segundo Bezerra e Reinaldo (2013, p. 38), Esses dois tipos de reflexão – epilinguística e metalinguístca – possibilitaram a adição, aos estudos gramaticais, de novos conteúdos referentes aos textos, correspondendo não apenas à substituição da unidade de análise (da palavra/frase para o texto), mas também a mudanças mais profundas (MENDONÇA, 2006), incluindo contribuições de teorias de gênero. Se, em 1984, o foco era a adequação do texto às categorias gramaticais e às estrutura textuais – narrativas, descritivas, dissertativas, normativas e de correspondência (GERALDI, 1984) -, nos anos 90, esse foco passa a ser categorias do texto e/ou do discurso (GERALDI, 1993), para chegar à primeira década do século XXI apontando para categorias oriundas das teorias de gênero.
No âmbito da teoria bakhtiniana dos gêneros discursivos (BAKHTIN, 2003), Perfeito (2005, p. 60) define AL como (...) o processo reflexivo (epilingüístico) dos sujeitos-aprendizes, em relação à movimentação de recursos textuais, lexicais e gramaticais, no que tange ao contexto de produção e os gêneros veiculados, no processo de leitura, de construção e de reescrita textuais (mediado pelo professor)
Nesse mesmo viés, Ritter (2010) explica as atividades epilinguísticas, exemplificando com uma discussão, no momento da leitura de um texto, sobre os efeitos de sentido do uso de uma expressão vocabular, refletindo sobre sua adequação ou não ao gênero em que o texto se insere, à sua finalidade discursiva, aos seus interlocutores etc. Com relação às atividades metalinguísticas, a pesquisadora explicita a sistematização dos conceitos e normas da língua, “(...) possibilitando que a criança entenda, por exemplo, o que é um verbo, um adjetivo, e de que maneira essas categorias gramaticais funcionam e caracterizam os textos dos gêneros a serem estudados” (RITTER, 2010, p. 91). Como citado na introdução, ao trabalharmos junto a professores (formação inicial e continuada) a construção de atividades de AL, percebemos uma maior dificuldade no desenvolvimento de atividades metalinguísticas. Os professores, de maneira geral, conseguiam identificar os recursos expressivos com os quais poderia ser abordado o efeito de sentido no texto, mas, no momento da construção de atividades de
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metalinguagem, voltavam-se para o modelo tradicional, prendendo-se meramente a questões de classificação e de identificação pautadas na gramática normativa. Ao constatarmos essas dificuldades, questionamo-nos sobre como auxiliar os professores no desenvolvimento de atividades metalinguísticas que ajudem os alunos a compreenderem de forma reflexiva a estrutura e o funcionamento da língua. Para isso, tomamos como base as considerações de Duarte (2011) acerca do que é, de fato, conhecer as palavras de uma língua. De acordo com a autora, compreender e saber usar uma palavra pressupõe diferentes dimensões: (i) Conhecer a sua forma fónica; (ii) Conhecer a sua forma ortográfica; (iii) Conhecer o(s) seus(s) significado(s); (iv) Saber a que classe e subclasse de palavras pertence; (v) Conhecer as suas propriedades flexionais; (vi) Reconhecer as unidades mínimas com significado que a constituem; (vii) Saber com que classes de palavras se pode combinar para formar unidades linguísticas mais extensas; (viii) Saber que papeis semânticos distribui pelas expressões linguisticas com que se pode combinar; (ix) Saber que propriedades sintáctico-semânticas tem de ter as expressões linguísticas a que atribui papeis semânticos. (DUARTE, 2011, p. 17).
Para dar conta das dimensões propostas por Duarte (2011), percebemos a necessidade de as atividades terem como base enunciados concretos (gêneros discursivos), partindo da análise de seu contexto social, para as características do texto e, só então, para sua forma linguística, seguindo o método sociológico proposto pelo Círculo de Bakhtin. Nessa perspectiva e com base em Duarte (2011), embora a autora aborde especificamente ao léxico da língua, optamos por direcionar as dimensões, com as devidas adaptações, a outros níveis da linguagem. Assim, neste trabalho, ao nos voltarmos para o nível morfológico, mais especificamente, para o sufixo –inho, estamos considerando diferentes dimensões: as suas possíveis formas fônicas, a sua forma gráfica, a sua estrutura ao se agregar a uma palavra, os seus significados de acordo com o contexto em que se insere.
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2. Proposta de atividades de Análise Linguística O roteiro apresentado nesta seção está sendo desenvolvido no âmbito do Projeto de Pesquisa “Língua Portuguesa: formação docente e ensino-aprendizagem” (UFPA). Para sua elaboração, como posto, partimos das dificuldades apresentadas por professores (em contexto de formação inicial e continuada) em trabalhar, de forma reflexiva, questões de metalinguagem. Vale ressaltar que se trata de uma sugestão, não de uma receita pronta e que, por isso, pode sofrer alterações. Além disso, nessa proposta, as atividades ocorrem no interior de um trabalho com um gênero discursivo específico e no momento da prática de leitura. Desse modo, como forma de auxiliar os professores, elencamos alguns itens que são importantes na construção de atividades de AL. Ressaltamos que esses itens não precisam, obrigatoriamente, constar em uma única questão. Quadro 1: Roteiro para elaboração de atividades de AL - Partir do texto que está sendo trabalhado; - Inserir a teoria do elemento gramatical a ser trabalhado; - Propiciar reflexão sobre o efeito de sentido do elemento gramatical em função do contexto de produção do texto; - Propiciar reflexão sobre a estrutura e o funcionamento do elemento gramatical. Para exemplificar a utilização do roteiro, destacamos algumas atividades elaboradas a partir do gênero discursivo conto de fadas, especificamente, do textoenunciado “Os gnomos e o sapateiro”, de autoria dos Irmãos Grimm (PRIETO, 1992, anexo). Para iniciar o trabalho, desenvolvemos uma atividade que busca realizar um resgate de conhecimentos prévios do aluno, acerca da relação língua e sociedade, por meio da reflexão sobre a estrutura morfológica da LP. Destarte, antes de apresentar o texto aos alunos, o professor pode instigá-los a refletirem sobre a relação entre significante e significado, considerando as palavras “sapato” e “sapateiro”. Em nosso
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exemplo, optamos por apresentar cada uma das palavras, seguidas pela discussão entre o que os alunos imaginaram e a figura por nós selecionada. Quadro 2: Atividade prévia à leitura
SAPATO
SAPATEIRO
Após esse momento de atividade prévia, sugerimos que o professor mostre o texto aos alunos, verificando, junto com eles, se as hipóteses levantadas são confirmadas ou não. No caso do texto em questão, uma das hipóteses levantadas sobre a situação socioeconômica do sapateiro pode ser confirmada logo no primeiro parágrafo “Era uma vez um sapateiro tão pobre, mas tão pobre”. A seguir, é necessário que o docente trabalhe a leitura do texto com os estudantes, contemplando suas diferentes estratégias, bem como a compreensão e a interpretação textual. Somente depois de ter explorado a leitura do texto, o professor pode dar início ao trabalho com a AL, seguindo a ordem metodológica proposta por Bakhtin/Volochinov (1992) e transposta para o ensino por diversos pesquisadores. Para esse momento, indicamos a utilização do roteiro, conforme exemplificamos nas próximas atividades. No momento da elaboração dessas atividades, considerando o roteiro proposto, percebemos a necessidade de contemplar, também, exemplos que não estejam no texto base, pois, dessa forma, podem ser explorados outros aspectos do elemento gramatical
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em análise. Ademais, as atividades procuram seguir uma gradação em que os alunos, primeiramente, refletem sobre o elemento no próprio texto, na sequência, refletem sobre esse elemento em outros contextos, para, finalmente, demonstrarem, na prática, o conhecimento apreendido. A partir do exposto, as atividades abaixo estão direcionadas para o trabalho com a reflexão sobre o processo de formação de palavras em Português, de forma específica, sobre a utilização do sufixo –inho (a). As atividades 1 e 2 abordam o efeito de sentido do sufixo –inho (a). A primeira, conforme o roteiro proposto, parte do texto, insere a teoria do elemento gramatical em análise e propicia a reflexão sobre o efeito de sentido desse elemento no contexto em que está inserido. Nessa proposta, a teoria gramatical consiste em uma breve explicação sobre o elemento em estudo, o que precisa ser, posteriormente, aprofundado, considerando a gramática da língua. A segunda, também partindo do texto e abordando o efeito de sentido, propõe a expansão com exemplos de outros contextos e, ao final, propõe a demonstração prática do conhecimento por parte dos alunos. 1) No segundo e no décimo parágrafos do texto, encontramos duas palavras com a terminação –inho: prontinho e homenzinhos. Normalmente, o sufixo –inho (a), ao se juntar a uma palavra, indica diminutivo. Qual é o efeito de sentido dessa terminação nas duas palavras, no contexto em que estão inseridas? 2) No texto “Os gnomos e o sapateiro”, Heidi, a mulher do sapateiro, trata os gnomos como “homenzinhos” e se propõe a costurar “roupinhas” para eles. Nos dois casos, o sufixo -inho demonstra também a afetividade (carinho). Esse sufixo também pode indicar, entre outras coisas, pejoratividade (depreciação) e intensidade. Nas frases abaixo, explique o sentido do sufixo nas palavras destacadas. •
João, eu já te falei que eu não quero essa mulherzinha aqui em casa.
•
Cadê o bebezinho da mamãe?
•
A areia da praia está branquinha.
Dê outros exemplos de frases em que esse sufixo pode assumir o sentido de pejoratividade, de afetividade ou de intensidade.
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As atividades 3 a 6 contemplam aspectos relacionados à estrutura e funcionamento do elemento gramatical, adaptadas por meio das dimensões propostas por Duarte (2011). Na questão 3, são abordadas as mudanças morfológicas que podem ocorrer tanto no elemento gramatical, quanto nas palavras a que eles se agregam. Nesse caso, os alunos teriam, por exemplo, que explicar por que em “carro” e “mala” as vogais finais “o” e “a” desaparecem das palavras, quando a estas se acrescenta o sufixo – inho(a), o que não ocorre na palavra “café”. Com a reflexão propiciada nesta questão, na atividade 4, os alunos acrescentarão os sufixos às palavras, refletindo sobre as mudanças que poderão ocorrer. Em seguida, serão levados a identificar que a palavra “pobre” apresenta, dicionarizadas, duas formas para o diminutivo com –inho (pobrezinho e pobrinho) e a dar outros exemplos em que isso ocorra. 3) O sufixo –inho (a), ao se juntar a algumas palavras, produz alterações, quer na estrutura da palavra, quer na sua própria estrutura (pronto – prontinho; homem – homenzinho). Observe as palavras abaixo e procure explicar por que isso acontece: Carro – carrinho Flor – florzinha Café – cafezinho Mala – malinha Celular – celularzinho Viagem - viagenzinha 4) De acordo com as regras apresentadas na questão anterior, acrescente o sufixo – (z)inho(a) nas palavras abaixo: Sapato Canção Mesa Livro Pobre
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Por que, em algumas palavras, quando se acrescenta o sufixo –inho, pode ocorrer a perda da vogal final átona e em outras não? Uma das palavras acima apresenta, oficialmente, duas formas para o diminutivo com o sufixo –inho. Dê exemplos de palavras que também podem apresentar formas diferentes quando a elas se acrescenta esse sufixo. A questão 5 propõe, primeiramente, o reconhecimento de que nem toda palavra que termina por –inho (a) está no diminutivo. Além disso, propicia o trabalho com outros sufixos (-ebre, -culo (a)) que apresentam o sentido diminutivo. Nesse caso, os alunos refletirão sobre as possibilidades semânticas da utilização desses diferentes sufixos. 5) Marque somente as palavras que estão no diminutivo: ( ) farinha
( ) padrinho
( )casebre
( ) calcinha
( ) versículo
( ) pezinho
( ) caminho
( ) galinha
( ) gotícula
Faça uma lista com as palavras que você marcou e justifique as suas escolhas. Para ampliar a discussão suscitada na questão 5, a atividade 6 propõe o trabalho com diferentes formas para o diminutivo (analítica e sintética) e a sua utilização de acordo com a intencionalidade do falante. 6) Quando acrescentamos um sufixo para indicar o diminutivo a uma palavra, temos o diminutivo sintético, como em “casebre” e “pezinho”. Outro tipo de diminutivo é o analítico, em que são utilizadas duas palavras, como em “casa pequena” e “pé pequeno”. A escolha por um ou outro pode depender da intencionalidade de quem fala (afetividade, objetividade, pejoratividade). A partir disso, procure identificar nas frases abaixo qual o sentido empregado na utilização do diminutivo. •
Olha o pezinho dela, tão bonitinho!
•
Carlos, compra o sapato número 31, pois a Maria tem o pé pequeno.
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A elaboração das atividades de AL demonstra que há várias possibilidades de trabalho com um determinado elemento gramatical. Desta feita, sintetizamos, no quadro abaixo, aquelas que vislumbramos por meio do trabalho com o diminutivo. Quadro 3: Possibilidades de trabalho com um elemento gramatical Para compreensão do próprio texto Relação língua e sociedade Efeito de sentido Estrutura do elemento gramatical ELEMENTO GRAMATICAL
Funcionamento do elemento gramatical Reflexão sobre dúvidas ortográficas Relação teoria e prática Possibilidade de trabalho com a língua em uso Possibilidade de aumentar o capital lexical Utilização no momento da produção textual
Além das possibilidades apresentadas no quadro acima, outras, como questões de variação fonética do elemento gramatical, podem ser desenvolvidas, ficando a cargo do professor selecionar aquelas que vão ao encontro dos objetivos de sua aula e às necessidades da turma. Considerações Finais A proposta de atividades de AL apresentada neste trabalho resulta de uma pesquisa que vem sendo realizada no âmbito do Projeto “Língua Portuguesa: formação docente e ensino-aprendizagem”. Como mencionado, a elaboração das atividades toma como base um roteiro em desenvolvimento que agrega pressupostos teóricos advindos do Círculo de Bakhtin e dos estudos sobre a Consciência Linguística. Os resultados demonstram a importância de se considerar, na elaboração de atividades de AL, questões relacionadas à estrutura e ao funcionamento da língua,
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possibilitando discussões sobre temas como relação entre língua e sociedade, estrutura morfológica e regras ortográficas, afetividade e pejoratividade, dentre outros. Dessa forma, as temáticas auxiliam o aluno a compreender não apenas o enunciado concreto em foco, mas a utilização desses elementos em outros gêneros, assim como a percepção da dinamicidade da LP. Referências BAGNO, M. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação lingüística. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. BAKHTIN, M./ VOLOCHINOV, M. Marxismo e Filosofia da linguagem. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1992. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4 ed., São Paulo: Martins Fontes, 2003. BEZERRA, M. A.; REINALDO, M. A. Análise linguística: afinal a que se refere? São Paulo: Cortez, 2013. DUARTE, I. O conhecimento da Língua: desenvolver a consciência lexical. Lisboa: Ministério da Educação, 2011. GERALDI, J.W. Portos de passagem. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. _______. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1984. OHUSCHI, M. C. G.; PAIVA, Z. R. Projeto de Pesquisa Língua Portuguesa: formação docente e ensino-aprendizagem. Universidade Federal do Pará, 2013. _______. A construção de atividades de análise linguística na formação continuada de professores de língua portuguesa. In: Anais do III Seminário Interação e Subjetividade no ensino de línguas: faz diferença ser autor da aula que ministro? Castanhal, PA: UFPA/Faculdade de Letras, 2014 (no prelo). PERFEITO, A. M. Concepções de linguagem, teorias subjacentes e ensino de língua portuguesa. In: Concepções de linguagem e ensino de língua portuguesa (Formação de professores EAD 18). V. 1. Ed. 1. Maringá: EDUEM, 2005. p. 27-75. PRIETO, H. Duendes e Gnomos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1995.
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RITTER, L. C. B. Análise linguística no ensino fundamental. In: SANTOS, A. R. dos; RITTER, L. C. B.; MENEGASSI, R.J. (orgs.). Escrita e ensino. Maringá: EDUEM, 2010, p. 87-112 (Coleção Formação de Professores EAD, n. 42). Anexo Os gnomos e o sapateiro – Conto dos Irmãos Grimm Era uma vez um sapateiro tão pobre, mas tão pobre que só lhe restava couro para um único par de sapatos. Certa noite, quando ia começar a fazê-lo, sentiu-se cansado. Apenas recortou uma tira de couro e deixou para terminar o serviço no dia seguinte. De manhã, quando voltou para a mesa de sua oficina, encontrou o par de sapatos prontinho. Apanhou cada um dos sapatos e examinou-os, tentando descobrir quem os havia confeccionado, mas não conseguiu: era um verdadeiro mistério. Intrigava-o ainda mais o fato de que aquele par de sapatos era o mais perfeito que ele já tinha visto. O sapateiro ainda estava parado, pensando, com o par de sapatos na mão, quando um freguês entrou na sua oficina. O homem apaixonou-se pelos sapatos e fez questão de comprá-los imediatamente. Peter, o sapateiro, não desejava vendê-los; queria primeiro descobrir como haviam aparecido em sua mesa. Mas o freguês lhe ofereceu tanto dinheiro pelos sapatos que ele terminou concordando em vendê-los. Peter usou o dinheiro para comprar mais couro. À noite, cortou o material e foi se deitar. No dia seguinte, aconteceu a mesma coisa: os sapatos apareceram prontos e em seguida veio um freguês que os comprou por um preço altíssimo. E, assim, os dias se passavam e o sapateiro se tornava cada vez mais rico. Até que Heidi, sua mulher, sugeriu: – Precisamos descobrir o que está acontecendo! Em vez de ir dormir, vamos nos esconder atrás da porta e espiar. À meia-noite em ponto surgiram dois graciosos gnomos, completamente nus. Sentaram-se na mesa de Peter e trabalharam com tanta rapidez que ele e sua mulher não conseguiam enxergar os movimentos de suas mãos. Heidi ficou encantada com os pequenos gnomos: – Eles nos ajudaram, agora estamos ricos! – disse. – Mas os dois homenzinhos caminham pela noite nus, passando frio! Isso não é justo! Vou costurar roupinhas lindas e confortáveis para dar de presente a eles. Naquele dia ela passou a tarde trabalhando, e depois do jantar o sapateiro e sua mulher colocaram as roupas novas ao lado do couro, em cima da mesa da oficina. Mais uma vez, esconderam-se atrás da porta para ver o que fariam os gnomos. Os homenzinhos dançaram e cantaram, felizes com o presente. A canção dizia mais ou menos isto: Agora que somos elegantes e lampeiros, Para que sermos ainda sapateiros? Desse dia em diante, os dois gnomos nunca mais voltaram, mas mesmo assim Peter, Heidi e os filhos que vieram a nascer viveram com muita sorte, saúde e fortuna. PRIETO, H. Duendes e Gnomos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1995.
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A CONCEPÇÃO DE LEITURA DO PROFESSOR E EM MATERIAIS DIDÁTICOS DE 5ºANO Marcia Cristina Hoppe (UNIOESTE/ bolsista- CAPES)1 RESUMO: A leitura é um dos meios pelos quais acontece a interação entre os seres humanos, além de promover a reflexão sobre diferentes assuntos, o que favorece a formação de um leitor crítico. Nesse sentido, podemos reconhecê-la como fundamental para todos os seres humanos, pois também pode ampliar seu conhecimento de mundo e os capacita para as diferentes formas de interação. É essa compreensão de leitura que deve ser trabalhada na sala de aula, a fim de garantir a formação de um leitor proficiente. Partindo desse pressuposto, o objetivo desse artigo é refletir sobre as diferentes concepções de leitura que cerceiam o ensino e relacioná-las com as atividades que estão sendo desenvolvidas em sala de aula, mais especificamente em turmas de 5º anos da educação básica (anos iniciais) de uma escola da rede municipal de ensino de Cascavel – PR, cujo índice do IDEB em 2011 configurou-se abaixo de 5. Tais reflexões fazem parte de um estudo de caso, desenvolvido como pesquisa de Mestrado (em andamento). Neste artigo, em específico, para refletirmos sobre alguns dados que já foram gerados, faremos a análise de um plano de aula de um dos professores que atuam no 5º ano, na perspectiva de interpretar qual a concepção de leitura que permeia os encaminhamentos do trabalho desenvolvido na sala de aula. Para a análise, utilizamonos de Bakhtin (2003); Kleiman (2008); Menegassi e Angelo (2005); Rojo (2002), entre outros que focalizam a reflexão sobre leitura. Tal pesquisa se inscreve no Programa Observatório da Educação – CAPES/INEP – por configurar-se como um subprojeto do Projeto de Pesquisa e Extensão Formação Continuada para professores da educação básica nos anos iniciais: ações voltadas para a alfabetização em municípios com baixo IDEB da região Oeste do Paraná, o qual representa o Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Letras no âmbito do Programa Observatório da Educação – CAPES/INEP. Os resultados revelaram que a concepção de leitura com foco no texto está muito presente, ainda, no planejamento das atividades de sala de aula. PALAVRA CHAVE: leitura, concepção de leitura, material didático. Introdução A leitura é um dos principais caminhos para que o aluno adquira conhecimentos e, nesse sentido, ler é muito mais do que somente decodificar símbolos; para se ler coerentemente, necessita-se da interação do leitor com o texto, com autor e com o contexto que os envolve, extrapolando, assim, o universo linguístico do texto. Ler, na 1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Bolsista CAPES/INEP e pesquisadora no âmbito do Observatório da Educação, por meio do Projeto Institucional Formação Continuada para professores da educação básica nos anos iniciais: ações voltadas para a alfabetização em municípios com baixo IDEB da região Oeste do Paraná.Professora da Rede Municipal de Educação de Cascavel.
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verdade, é um dos meios pelos quais acontece a interação entre os seres humanos, e a reflexão sobre diferentes assuntos, ato esse que favorece a formação de um leitor crítico. Diante dessa constatação, este artigo, que faz parte de uma pesquisa para Mestrado em andamento, tem o objetivo de refletir sobre as diferentes concepções de leitura que cerceiam o ensino para, posteriormente, relacioná-las com o planejamento de atividades de leitura, desenvolvido por um professor do 5º ano da educação básica (anos iniciais). Para isso, o artigo encontra-se assim organizado: primeiramente apresentarei algumas definições de leitura; em seguida, refletirei sobre as diferentes concepções de linguagem e de leitura; e, finalmente, farei uma análise de um plano de aula de 5º ano para verificar qual a concepção de leitura que permeia esse planejamento didático. Trata-se, assim, de uma reflexão sobre dados gerados em uma pesquisa de cunho etnográfico, de base interpretativa, em um processo de estudo de caso. Definição de leitura Ler é uma atividade que pode ser muito rica em conhecimentos, porém, complexa, quando se trata, principalmente, da leitura do texto escrito, uma vez que envolve conhecimentos linguísticos que passam pelo reconhecimento de letras, fonemas, morfemas para chegar ao processo de decodificação, condição básica para a leitura do texto escrito. Porém, mais que decodificação, a leitura é uma atividade, um processo de interação, por meio do qual o leitor, o autor e o texto interagem entre si, seguindo objetivos e necessidades socialmente determinadas. Em se tratando da leitura na sala de aula, o processamento da leitura dependerá do que o aluno já sabe sobre o assunto em pauta e de suas experiências adquiridas ao longo de sua existência, o que pressupõe uma relação dialógica do leitor com o texto e com outros discursos já vivenciados. Logo, o aluno aprende a ler quando relaciona o que lê com seu conhecimento de mundo, ou seja, com as experiências que traz em sua “bagagem” cultural. Assim, cada pessoa terá uma leitura particular de um mesmo texto, dependendo do seu conhecimento prévio. O ato e a capacidade de ler se desenvolve e se amplia a partir do contato com textos que circulam socialmente, gerando e atendendo necessidades. Todavia, a escola exerce um importante papel na formação do leitor, fato esse que está assegurado nos documentos pedagógicos das escolas do ensino fundamental. A escola tem consciência teórica de seu papel na formação leitora, pois os documentos pedagógicos asseguram esse procedimento nas escolas do ensino fundamental. O Currículo Básico do Ensino Fundamental de Cascavel ressalta que: ler não significa apenas a aquisição de um “instrumento” para a futura obtenção de conhecimentos, mas uma forma de
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pensamento, um processo de produção do saber, um meio de interação social com o mundo (CASCAVEL, 2007, p. 144). Entende-se, então, que a leitura é uma forma de se obter conhecimentos para a produção do saber elaborado e também uma maneira de interação social com o mundo, o que significa dizer que ao lermos, abrimos fronteiras, alargamos horizontes, ampliamos os diálogos e alcançamos lugares e pessoas distantes. A leitura é, assim, uma prática social de uso da linguagem. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN – (BRASIL, 1998), a concepção de leitura delineada é uma variante da interacionista e tem também seus fundamentos ancorados na Psicologia cognitiva, na Psicolinguística e na Sociolinguística. Na definição de leitura encontrada nos PCN, é possível constatar essa semelhança: A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que se sabe sobre linguagem, etc. [...] Trata-se de uma atividade que implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência [...] (BRASIL, 1998, p.69).
Embora reconheça a leitura como um ato de interação, quem está em foco, nessa visão, é o leitor, a quem é dada a autonomia para agir sobre o texto e sobre o autor, inferindo, antecipando informações, confirmando-as. Trata-se de outra maneira de conceber a leitura, mas que, de certa forma, compartilha com uma visão interacionista de ler. Já as Diretrizes Curriculares da Educação Básicas do Estado do Paraná (DCE)- afirmam que: A leitura é compreendida como um ato dialógico, interlocutivo, que envolve demandas sociais, históricas, políticas, econômicas, pedagógicas e ideológicas de determinado momento. Ao ler, o indivíduo busca as suas experiências, os seus conhecimentos prévios, a sua formação familiar, religiosa, cultural, enfim, as várias vozes que o constituem (PARANÁ, 2008, p.56). Ao reportar à leitura com essas palavras, as DCE estabelecem um diálogo com Bakhtin (2003) que reconhece o leitor como um sujeito envolvido em um processo de interação. Tanto é verdade que o autor afirma: Pode-se dizer que o interpretador é parte do enunciado a ser interpretado, do texto (ou melhor, dos enunciados, do diálogo entre estes), entra nele como um novo participante. O encontro dialógico de duas consciências nas ciências humanas. A molduragem do enunciado do outro pelo contexto dialógico (BAKHTIN, 2003, p. 329).
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Sob essa perspectiva, a leitura é compreendida como um ato dialógico e, interlocutivo, pois o leitor, ao ler, assume uma atitude responsiva, interagindo com o texto e com o leitor, comprometendo-se com eles por meio de um envolvimento efetivo com o texto. O leitor participa da construção de sentidos do texto, complementando a voz do autor. É nessa interação dialógica que ocorre o encontro de “duas consciências” - do autor e do leitor – intermediadas pelo texto e também pelos enunciados com os quais dialogam. Essa compreensão bakhtiniana de leitura é assim interpretada pelas DCE: Um processo que implica uma resposta do leitor ao que lê, é dialógico, acontece num tempo e num espaço. No ato de leitura, um texto leva a outro e orienta para uma política de singularização do leitor que, convocado pelo texto, participa da elaboração dos significados, confrontando-o com o próprio saber, com a sua experiência de vida (PARANÁ, 2008, p.56). Tais palavras implicam na compreensão de que a leitura sempre nos levará de um texto para outro que por ventura já tenhamos lido (processo dialógico) e essa relação contribuirá com a elaboração de significados. Para Bakhtin, “as relações dialógicas são relações (semânticas) entre toda espécie de enunciados na comunicação discursiva. Dois enunciados, quaisquer que sejam se confrontados em um plano de sentido, acabam em relação dialógica” (BAKHTIN, 2003, p. 323). Portanto, ler é aproximar enunciados, é dialogar com eles, é aproximá-los para, então, construir novos enunciados.
Para melhor compreendermos como a leitura se orienta ou é orientada a partir da forma como é concebida, dedicamos à próxima seção Leitura: as suas concepções. O aperfeiçoamento de estudos e as diferentes teorias sobre o ensino da leitura desenvolvidos ao longo dos tempos nas escolas brasileiras estão ligados ao desenvolvimento da Linguística, como sendo uma ciência que estuda a linguagem humana e que está articulada à fala e à escrita. Esse tratamento da linguagem alterou, consequentemente, o cenário no que se refere ao ensino de Língua Portuguesa, pois, se no início, o foco era um ensino voltado para unidades isoladas da língua (letras, fonemas, palavras, frases, texto), hoje o texto tornou-se o objeto de estudo. Com relação às diferentes compreensões de linguagem ao longo dos anos, temos, no Brasil, as seguintes denominações apresentadas por Geraldi (1984) que correspondem aos apontamentos de Bakhtin: (1) Linguagem como expressão do pensamento; (2) Linguagem como instrumento de comunicação e (3) linguagem como forma de interação. Essas concepções possuem uma relação direta com as práticas de leitura que incorpora a sua essência, ou ainda, o que cada uma dessas concepções priorizam.
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Assim, nessa mesma relação, coexistem diferentes perspectivas de leitura: (1) perspectiva do autor; (2) perspectiva do texto; (3) perspectiva do leitor, (4) a perspectiva da interação entre autor-texto-leitor e, por fim, (5) a perspectiva discursiva. Ressaltamos a importância de estabelecermos uma organização para a exploração das concepções de linguagem e de leitura, uma vez que uma não invalida a outra; elas aparecem em supremacia, e acabam sendo modificadas, adaptadas, ou ainda transformadas, a partir de uma base já existente, pelas emergências de um contexto social dinâmico. A presente discussão será realizada na sequência. Linguagem como expressão do pensamento – leitura com a perspectiva no autor: essa concepção de linguagem e de leitura configuram-se como um ato monológico e individual, pois acredita-se que a organização do pensamento segue as regras do bem falar e do bem escrever. Essas regras estão nas Gramáticas Tradicionais ou Normativas, e toma como base a linguagem literária como um exemplo do “escrever bem”. A outra concepção de linguagem, denominada como instrumento de comunicação, trata a leitura, conforme Geraldi (1997), sob a perspectiva do texto, uma vez que vê a língua como um código, um conjunto de signos que se combinam segundo regras, operando na transmissão de uma mensagem do emissor ao receptor. Essa concepção, embora entenda a língua como um ato social, desconsidera o uso e, consequentemente, os falantes e o contexto, limitando-se a um estudo do funcionamento interno da língua, que se apoia nos estudos linguísticos realizados pelo Estruturalismo. Paralelamente a essa concepção de linguagem, desenvolveu-se uma outra perspectiva de leitura: a com foco no leitor. Conforme Costa-Hübes (2010), nessa concepção, são levadas em conta as estratégias de leitura utilizadas pelo leitor, ou seja, a percepção do leitor com relação ao texto é tão importante quanto à compreensão de todos os termos nele inseridos, levando em conta sua linearidade e disposição. Com relação a isso Menegassi (2005) afirma que o leitor, nessa concepção, é o foco central da leitura, pois utiliza seus conhecimentos prévios para atribuir significado ao texto, podendo inclusive existir diferentes compreensões de um mesmo texto, tendo em vista a existência de diferentes leitores. Ao leitor são atribuídas diversas funções, como selecionar partes do texto, produzir inferências, fazer perguntas ao texto, etc. Por fim, surge a concepção interacionista da linguagem, a qual defende que às reflexões sobre a língua deve ocorrer sob a perspectiva dialógica. A concepção interacionista e dialógica apresenta uma nova postura diante do ensino, considera a língua em situação real de interação. A concepção interacionista compreende que na leitura tanto o autor, quanto o leitor e o texto são importantes, devendo ser considerados como elementos construtores de sentidos. Logo, trata-se da leitura focar-se no autortexto-leitor, conforme Koch e Elias (2007). E, dentro dessa perspectiva, alargamos a compreensão para a leitura com foco discursivo, a qual compreende que o autor, ao fazer uso da linguagem, interage com seu interlocutor (ouvinte/leitor), resultando numa produção de sentidos entre interlocutores que ocupam posições sociais, históricas,
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culturais e ideológicas, dentro de um determinado contexto de interação. Essa concepção caracteriza-se pelo diálogo e, portanto, é dialógica, conforme preceitos bakhtinianos. Passo na sequência, para a análise das concepções de leitura já mencionadas em um plano de aula, para verificar qual é a concepção de linguagem e de leitura que permeia o trabalho do professor em sala de aula. Análise das concepções de leitura em um plano de aula. Parto do pressuposto de que o plano de aula é uma ferramenta imprescindível para realizar o pedagógico em sala de aula. Por meio dele, os professores podem planejar os conteúdos que serão trabalhados, selecionar os procedimentos metodológicos a serem adotados, traçar os objetivos que pretende ser atingidos, pensar nas atividades a serem desenvolvidas durante a sua realização, bem como as formas de se avaliar o conteúdo em foco. Para Grillo ( 2014), um plano de aula consiste em: Uma previsão de atividades vinculadas a um plano de ensino mais amplo desenvolvidas em etapas sequenciais, em consonância com objetivos e conteúdos previstos. Serve para organizar a intenção do professor e o modo de operacionalizá-la. Expressa, ainda, as opções desse professor diante de seu contexto de trabalho, que implica pensar simultaneamente o conteúdo e os sujeitos com os quais interage (GRILLO, 2014, p.10).
Portanto, de acordo com o que a autora afirma, o plano de aula está vinculado a um plano de ensino mais amplo no qual as atividades estão amparadas. No caso da escola a qual solicitei os planos de aula, essa plano maior é o Currículo Básico de Cascavel, que orienta a organização do trabalho dos professores quanto à aplicabilidade dos conteúdos e objetivos previstos. Logo, nas aulas de leitura que constam na disciplina de língua portuguesa, o plano de aula, além de ser um instrumento que orienta as atividades em sala de aula, revela, implicitamente, a concepção de leitura do professor. Para confirmar esse meu pressuposto, selecionei, dentre os sujeitos participantes da pesquisa, um plano de ensino, preparado para se trabalhar 5 horas/aula, sobre o qual irei lançar um olhar na perspectiva de identifica a(s) concepção(ões) de leitura que o subjaz. Nesse sentido, ao analisar o plano de aula, busco levantar quais as concepções de leitura que estão orientando as ações desses professores, para a formação de leitores críticos. Passo, a analisar o plano de aula. PLANO DE AULA DE LÍNGUA PORTUGUESA Conteúdo: oralidade, leitura e escrita. - Descrição de situações, reconhecimento da intencionalidade no texto, autoria da escrita.
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- Realizar leitura do texto: “O coveiro” de Millôr Fernandes. - Antes de iniciar a leitura, apresentar a sequência das atividades que serão realizadas. - Escrever no quadro o nome do autor do texto, Millôr Fernandes, explicando aos alunos um pequeno trecho de sua vida. - Após os alunos realizarem a leitura silenciosa do texto, o professor fará a leitura em voz alta e em seguida solicitará que alguns alunos também leiam, sendo que cada um fará a leitura de um pequeno trecho até finalizar o texto. - Observar a fluência e entonação. - Questionar os alunos sobre o tipo de texto que foi lido, deixando que expressem sua opinião. Em seguida dizer a eles que é uma fábula, pois conta uma história de fundo moral. - Distribuir para os alunos as atividades relacionadas ao texto já impressas, solicitando que eles acompanhem a leitura que a professora fará explicando como realizar cada uma das atividades, deixando bem claro que para realizar um bom trabalho terão que consultar o texto a todo momento. O Coveiro Millôr Fernandes Ele foi cavando, cavando, cavando, pois sua profissão - coveiro - era cavar. Mas, de repente, na distração do ofício que amava, percebeu que cavara demais. Tentou sair da cova e não conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que sozinho não conseguiria sair. Gritou. Ninguém atendeu. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enrouqueceu de gritar, cansou de esbravejar, desistiu com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado. A noite chegou, subiu, fez-se o silêncio das horas tardias. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, não se ouviu um som humano, embora o cemitério estivesse cheio de pipilos e coaxares naturais dos matos. Só pouco depois da meianoite é que vieram uns passos. Deitado no fundo da cova, o coveiro gritou. Os passos se aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima, perguntou o que havia: "O que é que há?" O coveiro então gritou, desesperado: "Tire-me daqui, por favor. Estou com um frio terrível!" "Mas, coitado!" - condoeu-se o bêbado - "Tem toda razão de estar com frio. Alguém tirou a terra de cima de você, meu pobre mortinho!" E, pegando a pá, encheu-a e pôs-se a cobri-lo cuidadosamente. Moral: Nos momentos graves, é preciso verificar muito bem para quem se apela. Responda: 01. Lendo o texto, você conclui que o coveiro ( ) não gostava do que fazia. ( ) era uma pessoa atenta ao que fazia. ( ) recebeu ajuda, rapidamente, do bêbado. ( ) não foi capaz de pedir ajuda. ( ) não foi bem sucedido no seu ofício. 02. Que afirmativa abaixo expressa a mesma ideia da moral do texto? ( ) Deve-se pedir socorro a qualquer pessoa. ( ) Não importa a quem se pede ajuda. ( ) Ao precisar de ajuda, deve-se saber a quem pedir. ( ) Nunca se precisa de ajuda. ( ) Ao ajudar, não se deve cobrar. 03. Por que o bêbado não atendeu ao pedido do coveiro? ( ) Porque ele não ouviu o seu pedido de socorro. ( ) Porque enterrar defunto era o seu ofício.. ( ) Porque ele não estava em plena consciência dos seus atos.
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( ) Porque ele queria brincar com o coveiro ( ) Porque ele não era capaz de carregar o coveiro. 04. Ao cair na cova, o coveiro ( ) ficou sem reação. ( ) não pediu socorro. ( ) recebeu ajuda imediata. ( ) sempre teve esperança. ( ) se viu impotente. 05. Ao dizer Alguém tirou a terra de cima de você, meu pobre mortinho!, o bêbado ( ) achou que o coveiro estava se divertindo. ( ) sentiu pena do coveiro por estar coberto de terra. ( ) não entendeu a sua situação. ( ) tratou o coveiro com palavras indelicadas. ( ) humilhou o coveiro. 06. Qual característica não se observou no coveiro? ( ) Distraído. ( ) Trabalhador. ( ) Persistente. ( ) Apavorado. ( ) Preguiçoso. 07. Durante a noite, o coveiro ( ) ouviu bastantes vozes de pessoas. ( ) presenciou o barulho dos animais. ( ) teve ajuda de várias pessoas. ( ) sentiu bastante frio. ( ) saiu da cova. 08. Separe as sílabas corretamente: a) coveiro:___________________ b) distração:___________________ c)conseguiu:___________________d)enterrar:___________________ e) ninguém:___________________ f) silêncio:__________________ 09. Assinale as duas frases que demonstram o desespero do coveiro: ( ) “ tem toda razão de estar com frio”. ( )” enrouqueceu de gritar”. ( ) “ele foi cavando, cavando...” ( ) “ cansou de esbravejar...” 10. Escreva as palavras em ordem alfabética para descobrir o significado de cada uma delas: Oficio Esbravejar Pipilos Ébria Horas tardias Condoeu-se Apelar Coaxares a-...........................................= chamar,pedir ajuda
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b-.....................................= vozes dos sapos e das rãs. c-....................................= sentiu pena, teve dó. d-.....................................= bêbada, embriagada. e-......................................= gritar alto e com fúria. f-.....................................=horas avançadas da noite. g-...................................= função, cargo. h-...................................= pios de aves e insetos 11. Se você fosse o autor da história como ela terminaria? Faça a sua versão para a história. Ele foi cavando, cavando, pois sua profissão- coveiro- era cavar. Mas, de repente, na distração do ofício que amava, percebeu que cavara demais. Tentou sair e não conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que sozinho não conseguiria sair.
Fonte: dados gerados pela pesquisadora
Ao observar a metodologia (procedimentos) que foi especificada no plano de aula, posso constatar que foi apresentado aos alunos um texto pertencente ao gênero discursivo fábula, embora não se tenha mencionado nada em relação ao gênero. Seus aspectos contextuais e funcionais foram ignorados. A leitura, foco da aula, é encaminhada para se concretizar em dois momentos: “primeiro a silenciosa e na sequência a oral. Posteriormente também é percebido que o professor apresenta o que será desenvolvido durante a aula”. Aqui percebo que a mesma está pautando-se na concepção de linguagem e de leitura sob a perspectiva da teoria da comunicação, na qual a língua é considerada como um conjunto de signos que precisam ser combinados para que o indivíduo possa transmitir a sua mensagem, sua informação ao receptor. E, esse código precisa ser dominado tanto por quem está falando/escrevendo como por quem está ouvindo/lendo para que haja comunicação e a mesma seja efetivada. Segundo Rojo (2002), a leitura é vista apenas como um processo perceptual e associativo de decodificação de grafemas (escrita) em fonemas (fala) para se acessar o significado da linguagem do texto. Nessa teoria, as capacidades focadas são as de decodificação do texto, portal importante para o acesso à leitura, mas que absolutamente não esgota as capacidades envolvidas no ato de ler. Numa primeira instância, percebi que, no conteúdo “descrição de situações, reconhecimento da intencionalidade no texto, autoria da escrita”, tem-se uma orientação de leitura que corresponde à concepção com foco no autor, pois a leitura é monológica e individual, dando-se a maior ênfase para o que o autor pensou e escreveu e do qual temos que extrair a sua intenção. Na sequência, aparece o encaminhamento: “Após os alunos realizarem a leitura silenciosa do texto, o professor fará a leitura em voz alta e em seguida solicitará que alguns alunos também leiam, sendo que cada um fará a leitura de um pequeno trecho até finalizar o texto.” Vejo também que há uma preocupação maior do professor com a leitura vozeada (oralização do texto escrito): lê melhor quem se aproxima da leitura modelar do professor. Aqui representa a concepção de linguagem e de leitura como representação do pensamento, ou seja, busca-se o modelo de leitura do professor, sem
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que se tenha um aprofundamento maior no que está escrito, sendo que a preocupação é com o que o autor escreve. E, em outro objetivo, também e possível observar essa mesma concepção tanto de linguagem quanto de leitura: “Observar a fluência e entonação”. Portanto, a prática da leitura não passa de mera reprodução, pois o bom leitor é o que lê o texto do modo previsto, capta e devolve a informação prevista. Segundo Kleiman (2008), essa primeira concepção de linguagem - expressão do pensamento – correlaciona-se a “concepção escolar” de ensino à medida que objetiva o domínio individual do código e vê a escrita como um conjunto de atividades para se apoderar do “bem falar” (linguagem oral) e do “bem escrever” (linguagem escrita). Se o autor, sob essa perspectiva, é o bom exemplo a ser seguido para falar e escrever bem, o importante é que sua ideia seja vasculhada e que o aluno seja capaz de descobrir a intenção do autor ao escrever o texto que está sendo lido. Já nas atividades que foram propostas é possível perceber o foco no texto. No exercício nº 1, “Lendo o texto, você conclui que o coveiro”, não é necessário que o aluno faça uma reflexão mais profunda em relação ao texto. Se ele tiver feito à leitura mesmo que seja decodificada, no mesmo instante chegará à resposta. Portanto, nessa perspectiva o texto utilizado é visto apenas como objeto para a codificação de um autor que será decodificado pelo leitor, no caso os alunos, bastando a eles, para isso, ter o conhecimento do código que foi utilizado para a escrita do texto. Segundo Rojo (2002), a leitura, por meio da decodificação é vista apenas como um processo perceptual e associativo de decodificação de grafemas (escrita) em fonemas (fala) para se acessar o significado da linguagem do texto. Nesta teoria, as capacidades focadas são as de decodificação do texto, portal importante para o acesso à leitura, mas que absolutamente não esgotam as capacidades envolvidas no ato de ler. O mesmo foco da leitura é percebido nos exercícios 3, 5, 6 e 7. O exercício 3 ”Por que o bêbado não atendeu ao pedido do coveiro?”; exercício 5” Ao dizer Alguém tirou a terra de cima de você, meu pobre mortinho!, o bêbado:”; exercício 6 “Qual característica não se observou no coveiro? E, exercício 7 “Durante a noite o coveiro:” são questões cujas respostas claramente aparecem no texto. O aluno só precisa voltar ao texto e encontrar a resposta que encontra-se explicitamente na linearidade do texto. Logo, o foco ainda recai sobre o texto e a leitura acaba sendo um processo passivo, pois o aluno não constrói significados, já que é submetido ao texto. Porém, no exercício 2 “Que frase abaixo tem a mesma ideia da moral do texto?” aparece um outro foco: no autor-texto e leitor, pois a leitura aqui deve provocar o aluno para ir além da linearidade, buscando as informações que estão implícitas (entrelinhas) e subentendidas no texto, provocando o aluno a revisitar seus
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conhecimentos e experiências que já possui. Portanto, o texto, nesse caso, é o lugar de diálogo, onde autor e leitor irão produzir os significados da leitura. Aqui o leitor é visto como sendo um sujeito ativo, uma vez que, segundo Bakhtin (2003), “o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discordo dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo” (BAKHTIN, 2003, p. 271). Logo, nesta forma de exercício, a leitura é vista “como um diálogo que o autor e o leitor realizam por meio do texto” (LEFFA, 1999, p. 25). E, com esse diálogo, o leitor, interage com o texto, busca informações deixadas pelo autor nas entrelinhas para chegar à compreensão. Na sequência, relaciona o texto com sua vida, faz reflexões e forma a sua opinião, chegando à interpretação, concordando ou não, tendo, então, uma atitude responsiva ativa. Nos exercícios 09 e 10, a professora apresenta atividades enfocando a gramática, que pode ser considerada como a concepção de linguagem sob a forma estruturalista. Considerações finais No plano de aula analisado a leitura se destaca em dois focos: foco no autor e no texto. O foco no autor porque as atividades propostas visam apenas o ponto de vista do autor e, o foco no texto porque as atividades planejadas a partir do texto ou objeto lido pauta-se na observação de informações que estão na superfície do texto, impossibilitando ao aluno uma leitura mais profunda. Portanto, os alunos não precisam ir além do que está escrito ou fazer as inferências para descobrir a resposta; basta que leiam o comando para buscar a resposta no texto. A leitura, nessas condições, é considerada como um meio de extrair as informações do texto, desconsiderando-se, assim, o contexto histórico e social. Essa concepção de leitura se relaciona com a concepção de linguagem como instrumento de comunicação. E mesmo com todas as discussões a respeito das concepções de linguagem e de leitura, em cursos de formação continuada que são ofertados aos professores, ao analisar o plano de aula (ensino), ainda percebo que, a maior parte das atividades aplicadas para os alunos, está pautada na concepção de leitura com foco no texto. Isso significa que é preciso continuar a investir em estudos e na formação continuada para que os conhecimentos sejam ampliados e a leitura com foco na interação autor-texto-leitor seja contemplada.
REFERÊNCIAS
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A “PRODUÇÃO” DE CORPOS (HOMO)SEXUAIS Marcieli Cristina Coelho (UEM)
Considerações iniciais O discurso midiático, ao falar sobre homossexual, reserva um lugar privilegiado à sexualidade e às possíveis classificações desses corpos, ditando o que é normal e anormal e colocando-o na “ordem arriscada dos discurso” (FOUCAULT, 2012, p.7). Nessa perspectiva, pensar o poder e seus agenciamentos é dar visibilidades às posições e efeitos sobre esses corpos num efeito gladiador entre poder e resistência, na tentativa de adequá-los a uma normalização a partir da norma. Portanto, o objetivo deste trabalho é compreender, pelo dispositivo da sexualidade, a produção de efeitos de poder sobre os corpos (homo)sexuais e como os discursos da mídia incidem por uma proposta de controle-estimulação, produzindo modos de existência de si ou estilos de vida (homo)sexuais. Para tanto, buscaremos como aporte teórico a Análise de Discurso de linha francesa e seus desdobramentos no Brasil, e tomaremos como operadores analíticos as noções foucaultianas de poder e o dispositivo da sexualidade. O discurso midiático como instrumento normalizador Foucault, ao longo de suas pesquisas sobre o sujeito e a noção de “relação consigo”, os “cuidados de si”, percebeu que a ideia de “liberdade” do sujeito passa, com o decorrer dos séculos e dos sistemas que gerenciam a população, a ser tolhida e emaranha-se nas malhas do poder. Os poderes institucionais, antes, concedidos à Igreja, agora se estendem por todos os campos associados: a medicina, a escola, a mídia. As práticas/técnicas de produção de verdade antes restrito à confissão religiosa, passam a fazer parte do dia a dia do sujeito, confessa-se tudo, principalmente a nossa sexualidade, o sujeito é um animal confessional. Segundo Araújo (2008)
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Enquanto os gregos se preocupavam em cuidar dos prazeres por meio de regimes em que os guias práticos eram a moderação e a temperança, nós hoje tratamos de colocar o sexo em discurso para extrair dele nossa verdade, descobrir nele e através dele quem somos. Há nessa hermenêutica do desejo táticas do poder que fazem do discurso sobre o sexo a matriz de nosso autoconhecimento. O que somos? O sexo- história, […] o sexo-significação, […] o sexodiscurso (p. 178).
Nessa complexa rede de poder/saber, seguimos presos nas tramas da teia que o compõe, somos enredados pelas suas amarras e, ao mesmo tempo, buscamos modos e práticas para resistir a essas disciplinas que incidem sobre nós, bem como, o poder. Emaranhar-se no discurso foucaultiano acerca da sexualidade é, antes de tudo, investigar como
o corpo é alvo do poder e, principalmente, como na
contemporaneidade, em que o discurso sobre a sexualidade é cada vez mais incitado, em que há uma necessidade de falar/confessar sobre ela, a sexualidade, ou mais precisamente, no caso do objeto de pesquisa, a homossexualidade, como ela é regimentada, controlada, cerceada, ou ainda, seguindo as reflexões de Foucault indagamos: Qual é o tipo de investimento do corpo que é necessário e suficiente ao funcionamento de uma sociedade capitalista como a nossa? Eu penso que do século XVII ao início do século XX, acreditou-se que o investimento do corpo pelo poder devia ser denso, rígido, constante, meticuloso. Daí estes terríveis regimes disciplinares que se encontram nas escolas, nos hospitais, nas casernas, nas oficinas, nas cidades, nas famílias...E depois, a partir dos anos sessenta, percebeu-se que este poder tão rígido não era assim tão indispensável quanto se acreditava, que as sociedades industriais podiam se contentar com um poder muito mais tênue sobre o corpo. Descobriu-se desde então, que os controles da sexualidade podiam se atenuar e se tomar outras formas...Resta estudar de que corpo necessita a sociedade atual (FOUCAULT, 1988, p.147-148). Portanto, para estudar esse corpo de que precisa e compõe nossa sociedade, fazse necessário entender como emergiram a norma/normalização e a disciplinarização dos corpos, visto que, essas duas técnicas são modos de atuação do poder, poder esse que é compreendido por Foucault em suas análises, não somente como um poder soberano, mas por meio de mecanismos que se exercem em níveis e formas que extravasam do
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Estado e de seus aparelhos, a sua ação é sutil, não mais atua pelo direito, pela lei e pelo castigo, mas sim, pela técnica, pela normalização e pelo controle. É, dessa forma, que o agenciamento/controle da sociedade não é mais levando em conta a soberania, o corpo do rei, mas sim o corpo social, ou seja, a arte de governar, agora, século XIX, é pela população. Foucault (2008) argumenta que para chegar no processo de norma/normalização é necessário antes a disciplinarização dos corpos, pois a disciplina normaliza os corpos, enquadra-os, especifica-os, corrige, enfim, “ela os decompõe em elementos que são suficientes para percebê-los, de um lado, e modificá-los, de outro” (FOUCAULT, 2008, p. 74-75). E, essa modificação, essa classificação é que faz com que seja separado o que é normal do que é anormal, tendo sempre um modelo padrão a ser seguido A normalização disciplinar consiste em primeiro colocar um modelo, um modelo ótimo que é construído em função de certo resultado, e a operação de normalização disciplinar consiste em procurar tomar as pessoas, os gestos, os atas, conformes a esse modelo, sendo normal precisamente quem é capaz de se conformar a essa norma e o anormal quem não é capaz. Em outros termos, o que é fundamental e primeiro na normalização disciplinar não é o normal e o anormal, é a norma. Dito de outro modo, há um caráter primitivamente prescritivo da norma, e é em relação a essa norma estabelecida que a determinação e a identificação do normal e do anormal possíveis. Essa característica primeira da norma em relação ao normal, o fato de que a normalização disciplinar vá da norma a demarcação final do normal e do anormal, é por causa disso que eu preferiria dizer, a propósito do que acontece nas técnicas disciplinares, que se trata muito mais de uma normação do que de urna normalização (p.75). Sendo assim, se a normalização (o que é normal ou anormal), passa pelo processo da disciplina, o corpo do homossexual também foi/é disciplinado para que seja normalizado, ou seja, o processo de normalização do homossexual passa pela disciplina desses corpos, com trejeitos, corpos „desviantes‟ e para que sejam normatizados seguem um modelo de relações, seja ela: monogâmica e assistida institucionalmente. Assim, ao adentrar no meio social e dele fazer parte, é deixar-se emaranhar pelas malhas do poder, pois ao estar dentro da norma é estar disciplinado.
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Assim, pensar no processo de “construção” de corpos (homo)sexuais, é, justamente pensar no processo de norma/normalização da sexualidade, é analisar as técnicas do dispositivo da sexualidade que disciplinam e normalizam, com mecanismos cada vez mais sutis. O conceito de dispositivo é sumarizado por Foucault (1988) como a rede que pode ser estabelecida entre o dito e o não dito, elementos esses que existem em um jogo de mudança de posições que tem como principal função responder a uma urgência. Para o filósofo, o dispositivo consiste em “estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles” (FOUCAULT, 1988, p. 246). Para o autor, este seria o meio pelo qual a sexualidade é produzida e regida, bem como o sexo (ato sexual), disciplinado. Em suas palavras: Através deste termo [dispositivo] tento demarcar [...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes termos (FOUCAULT, 1988, p. 244).
Tecendo essa consideração acerca do dispositivo, podemos considerá-lo como um conjunto de saberes e poderes emaranhados nas práticas discursivas e não discursivas, visando impor normas, controle e criar efeitos de "verdades" sobre os corpos e o gozo que dele advém. O dispositivo da sexualidade é "um tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência" (FOUCAULT, 1988, p. 244), urgência essa que era controlar a sexualidade por meio de discursos e práticas sociais que correspondessem ao comando de uma biopolítica. Muito se fala sobre a sexualidade, dela não se esgota o assunto, todos os campos, instituições, falam sobre ela: a igreja, a medicina, a escola. Assim, não houve uma repressão acerca da sexualidade, mas o modo como ela foi discursivizada. A discursivização da sexualidade perpassa as relações de poder em toda a trama social,
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assim, incutidos no discurso da repressão há toda uma vontade de saber, um regime de verdade que cercam nossos desejos (ARAÚJO, 2008). Assim, Foucault (1988) questiona a ideia de que a sexualidade a partir do século XVIII sofreu um processo de repressão, desencadeado, principalmente, pela moral burguesa e pelo regime vitoriano, esse argumento é regimentado por uma ordem capitalista em que a sexualidade e o trabalho estavam estreitamente relacionados, pois o corpo deveria ser submetido ao trabalho e não ao prazer, mas, o que houve de fato, segundo o autor, foi uma incitação ao discurso acerca da sexualidade, nunca falou-se tanto sobre a sexualidade, e isso decorre, principalmente, da pastoral cristão que ao instituir a confissão obrigatória a todos os seus fiéis, fez com que se confessa-se tudo, inclusive, o sexo. (No processo de confissão) coloca-se um imperativo: não somente confessar os atos contrários à lei, mas procurar fazer de seu desejo, de todo seu desejo, um discurso. Se for possível nada deve da tal formulação, mesmo que as palavras empregadas devam ser cuidadosamente neutralizadas. A pastoral cristã inscreveu como dever fundamental, a tarefa de fazer passar tudo o que se relaciona com o sexo pelo crivo indeterminável da palavra (FOUCAULT, 1988p. 25).
Essa prática da confissão se estende a outros domínios e, é, justamente, nesse processo que a sexualidade passa a ser discursivizada, falada, e, com isso, o poder que até então era exercido de forma soberano e repressivo passa a ser tomada nas relações de
poder,
se
exercendo
em
diferentes
tecnologias
que
envolvem
corpo,
comportamentos, o sexo, a sexualidade. Assim, somos convidados a falar sobre a sexualidade, sobre nossas práticas sexuais, continuamente. Porém, ao fazer essas asserções não estamos dizendo, amparados por Foucault (1988), que a sexualidade, na sociedade capitalista-burguesa, prova de grande gozo, sem recriminações e repressões, mas, devido a diluição do poder nos meios sociais e institucionais, os episódios de interdições tornam-se mais ardilosos e discretos. Para compreendermos como a mídia, em meio as suas práticas, incide por uma proposta de controle-estimulação por meio do processo de normalização da sexualidade e das relações, analisaremos duas campanhas publicitárias que circularam na mídia em 2014, da Old Spice, P&G e da Natura Cosméticos, ambas com circulação nacional. O
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discurso midiático, ao falar sobre o homossexual, reserva um lugar privilegiado à sexualidade e às possíveis classificações desses corpos.
Frame: Comercial Old Spice
O enunciado de Old Spice, faz um chamado a todos os homens do Brasil, mas não é qualquer homem, é um homem Homem: Vocês são sobreviventes de uma espécie em extinção: o homem/homem. O homem que sabe como incendiar um encontro, um homem que sempre chega lá, não importa como. A missão de Old Spice é trazer de volta o orgulho de ser e cheirar como homem. O futuro da humanidade está em suas mãos! Chegou Old Spice, o desodorante do homem/homem, o único com partículas de cabra macho. Atenda o chamado se for homem! (Propaganda Old Spice, 2014, grifo nosso). Em uma perspectiva discursiva, evidenciamos que no discurso usado na campanha publicitária, a comunidade heterossexual, aclamada como homem/homem, socialmente normatizada, na tentativa de inverter os papeis sociais, coloca-se como o sujeito em exclusão, em ameaça, diante da “imposição” da homossexualidade, há uma inversão nos papeis socialmente aceitos. Assim, convocam-se homens, como que para uma batalha, a atender o chamado para trazer de volta o orgulho de ser e cheirar como
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homem, fazendo uma alusão à Parada do orgulho Gay ou LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis) que cresce veemente a cada ano. Diferentemente das causas defendidas nas Paradas e pelo movimento LGBT, a igualdade, o respeito às diferenças, o chamado é colocado, como um ato heroico, afinal o futuro da humanidade depende deles e, esse futuro, refere-se à reprodução. Para que isso aconteça, o desodorante, possui uma partícula de cabra-macho, que em uma expressão nordestina é o homem macho, o homem forte e corajoso, atributos que podem ajudar na missão de salvar a humanidade. Já na materialidade da campanha publicitária realizada pela Natura Cosméticos, compreendemos que há uma outra perspectiva em relação as uniões e a sexualidade homossexual.
Frame: Natura cosméticos
Vejamos o enunciado: Mãe é mãe, amor para sempre. Mãedrasta é presente que chega de repente. Bisamãe, é mãe com três gerações de histórias para contar. Irmãe é que já sabe cuidar, mas ainda gosta de brincar. Multimãe é uma só com multicolos. Mãe-Mãe são dois colos de mãe numa família só. Os formatos mudam, o amor não.
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Toda relação é um presente! ((Propaganda Natura cosméticos, 2014, grifo nosso).
Em relação à campanha anterior, compreendemos nessa há uma normalização e não um controle da sexualidade, não uma resistência, pois os dois colos de mãe, um casal homoafetivo, podem constituir uma família, podem criar seus filhos e nem por isso será o fim da humanidade, como pressupõe a campanha do desodorante. A sexualidade, também, é abordada de maneira distinta, enquanto a Old Spice trata da sexualidade somente como modo de reprodução, a Natura, amplia esse olhar e o modo de dizer sobre as diferentes formas de se relacionar. Considerações finais Nessa perspectiva, pensar o poder e seus agenciamentos é dar visibilidade às posições, às táticas e os efeitos sobre esses os corpos, num efeito gladiador entre poder e resistência, na tentativa de adequá-los a uma normalização. Podemos evidenciar que esse processo perpassa tanto o corpo biológico quanto o social inscrevendo-se nessa rede de dispositivo da sexualidade em que o corpo que produz é o corpo que consome, inscrevendo-se nessa rede de dispositivo da sexualidade entre norma e normalização. Nessa trama, o discurso midiático faz viver um modo de vida e deixar morrer outro. Referências ARAÚJO, Inês Lacerda. Foucault e a crítica do sujeito. 2ª ed. Curitiba: Ed. da UFPR, 2008. FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. __________, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
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TIRAS CÔMICAS NA INTERNET: ASPECTOS DA CIRCULAÇÃO
Márcio Antônio Gatti (UFSCar/FEsTA) Introdução Defendi, em outra ocasião (GATTI, 2013; GATTI & SALGADO, 2013), observando a transmidiação de tiras cômicas e de seus personagens infantis de seus suportes mais tradicionais, como o livro e o jornal, para a rede social Facebook, que as alterações que as tiras sofriam, bem como as novas palavras que eram postas a funcionar “na boca” destes personagens, apoiavam-se na aposta de um reconhecimento imediato dos personagens pelo leitor. Alguns dos personagens infantis de tiras cômicas mais famosos (Mafalda e Charlie Brown, por exemplo) têm suas tiras recortadas e alteradas na já mencionada rede social. Os leitores se deparam, pois, tanto com excertos de tiras (normalmente um quadro), quanto com novas falas e até novas imagens associadas aos personagens. Isso não ocorre, porém, com todos os personagens de tiras cômicas. Para alguns deles, as tiras sofrem pouquíssimas ou nenhuma alteração, circulando integralmente pela rede. Um dos objetivos deste texto é, assim, analisar essa peculiaridade, tentando observar os motivos pelos quais as tiras desses personagens não sofrem alterações substanciais como os demais. Neste texto, observo o modo como algumas tiras circulam pela. Em especial, analiso tiras de um personagem que tem uma boa circulação na rede, o Armandinho. E, em comparação com a circulação de personagens como Mafalda, tento avaliar as diferenças de circulação do personagem Armandinho e dos demais. Além disso, observando que, mesmo não sofrendo alterações, as tiras de Armandinho têm uma grande circulação por essa rede, procuro levantar hipóteses para a
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aceitação e grande circulação tanto das tiras quanto dos personagens infantis no Facebook. Armandinho As tiras do personagem, de autoria de Alexandre Beck, foram primeiramente publicadas no “Diário Catarinense”, em 2010, e desde o final de 2012 têm grande circulação no Facebook, época em que ganhou notoriedade ao tematizar a tragédia de Santa Maria, no Rio Grande do Sul1. Desde então, Armandinho é personagem frequente de postagens nessa rede. O curioso é que não é somente o personagem que aparece nas postagens, mas a tira toda. Digo que isso é curioso porque nessa mesma rede, como já antecipei, parece que a alteração e o recorte de quadros é uma tendência quando se trata de tiras cômicas com personagens infantis. Cito como exemplos dois textos que foram postados na rede e que usam Mafalda como personagem. No primeiro texto, composto de um único quadro, Mafalda olha para uma placa onde se lê “Brasil todos pela educação” e pensa, com semblante preocupado, “o governo tá sabendo disso?”. Trata-se de uma clara alteração, em que tanto é atribuída uma nova fala a Mafalda quanto se inserem outras imagens (a placa, por exemplo). No outro texto, também composto de um único quadro, Mafalda está caminhando numa calçada e ao lado de um carro, também com semblante de preocupação, pensa “que importam os anos? O que realmente importa é comprovar que a melhor idade da vida é estar vivo!”. Trata-se de um provável recorte de um quadro de uma tira de Mafalda. No caso de Armandinho, as alterações que pude observar ocorreram na linearidade dos quadros, isto é, os quadros, antes dispostos de forma linear e horizontal, passam a ser organizados de outra forma, basicamente em duas variações. Numa das variações, dois quadros são dispostos sobre um outro, ficando o quadro final isolado e 1
Na tira a que fazemos referência, o personagem Armandinho, no primeiro quadro, está olhando para o céu diurno, dizendo “O dia inteiro não teve uma nuvem! Não fez frio, nem calor...”. No segundo quadro, na mesma posição, mas à noite, o personagem diz: “Agora a lua cheia e montes de estrelas pontilham o céu... velando o dia mais triste que Santa Maria já viu.”. A tira faz uma clara alusão ao incêndio ocorrido numa boate da cidade de Santa Maria no dia 27/01/2013, que vitimou mais de 200 pessoas.
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centralizado abaixo dos dois iniciais. Na outra, o quadro inicial é que se isola e se dispõe centralizadamente sobre os dois quadros finais. Observada essa peculiaridade das pequenas variações, as tiras de Armandinho que circulam pelo Facebook parecem confirmar hipóteses levantadas antes (GATTI & SALGADO 2013; GATTI, 2013). Defendi, assim, que as alterações que sofriam as tiras dos personagens: 1- eram possíveis porque os personagens eram muito conhecidos; 2convocavam e se alinhavam com o ethos prévio (MAIGUENEAU, 2006) dos personagens; 3- reforçavam o estereótipo da ingenuidade infantil e o da criança em desenvolvimento numa mescla do ethos prévio dos personagens e dos estereótipos de criança. Além disso, apostei que aquelas alterações enquadravam-se num regime de enunciação aforizante (MAINGUENEAU, 2010 e 2014) e que as imagens recortadas dos personagens reforçavam e contribuíam para este enquadramento. Dessa maneira, a circulação das tiras de Armandinho com pequenas ou sem nenhuma alteração sugere que o personagem ainda é pouco conhecido se comparado aos outros que sofrem alteração na rede e por isso seu ethos prévio ainda é pouco delineado para todos os leitores. A aposta de um destacamento recairia apenas nos estereótipos de criança e no reconhecimento destes pelo leitor, excluindo-se o necessário reconhecimento do ethos prévio do personagem. De certo modo, essa circulação corrobora as hipóteses levantadas, em especial do fato de que as alterações estariam baseadas no reconhecimento imediato do personagem pelo grande público e, obviamente, de todas as implicações que uma alteração permite que observemos, como o próprio ethos prévio. Outra hipótese para a não alteração das tiras do personagem é de ordem interna à cenografia (MAINGUENEAU, 2006) dos textos: Armandinho aparece raramente de frente, seus traços são sempre de perfil e muitas vezes está acompanhado de outro personagem. Estas duas características podem contribuir para que as falas e as imagens desse personagem ainda não sejam destacadas dos textos originais. Um dos motivos pelos quais defendi que as alterações de tiras de personagens mais conhecidos estão num regime de enunciação aforizante é que o tom e o teor das falas tendiam a ser mais sérios, com um viés de verdades universais. Os personagens, no geral, pareciam, portanto, falar a um auditório universal. Estas duas características
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(Armandinho estar de perfil e acompanhado na maioria das tiras) das tiras de Armandinho dificultariam o destacamento, porque a cenografia do texto se imporia como enunciação menos universalizante e mais situada que as outras alterações de personagens infantis flagradas na rede. Circulação das tiras De qualquer forma, é verdade que as tiras cômicas com protagonistas infantis e suas alterações e recortes ocupam um espaço importante na já citada rede social, sendo compartilhadas por inúmeros usuários. Prova disso é o texto que mencionei acima de Mafalda questionando a Educação no Brasil, ou o comprometimento do governo com ela, cujos compartilhamentos ultrapassavam os oitenta e sete mil, na data de acesso2. Passo, assim, a tentar observar quais aspectos próprios das tiras cômicas que as fazem obter tal circulação pela rede. Um deles parece ser a sua estrutura curta. Quase sempre limitada a três ou quatro quadros, a tira facilmente pode ser manipulada com pequenas manobras de editores de imagem, como as reordenações das tiras de Armandinho que mencionei. Além disso, as falas curtas dos personagens alinham-se com a tendência das frases também curtas que predominantemente circulam pelo Facebook. Outro aspecto que parece favorecer a circulação das tiras nesta rede social é a linguagem verbo-visual típica das tiras. Assim como as falas curtas dos personagens, também essa característica alinha-se à tendência desta rede social de articular a linguagem verbal com alguma imagem. Além dos vídeos e fotos que predominam na rede, imagens de diversos tipos, como desenhos, capturas de imagens de seriados e novelas de TV e outras se associam à escrita. Além desses dois aspectos das tiras, pertencer ao campo do humor (POSSENTI, 2010) parece ser um bom motivo pelo qual esse gênero do discurso tem uma boa circulação pela rede social. Nela várias publicações com viés humorístico são exaustivamente compartilhadas. Seja pelas piadas, vídeos ou outros textos e frases de 2
O texto foi acessado no Facebook no dia 31/07/2014.
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cunho humorístico, tal rede está, também, a serviço da circulação do humor, que parece cumprir, no Facebook, um papel muito interessante, seja como entretenimento ou como tentativa de promover algum tipo de reflexão e/ou desnudamento de questões controversas. As tiras não são exceção e circulam recobrindo essas funções, mas acabam, também, por fornecer material para um uso bem mais específico que é o da enunciação aforizante. Retornamos ao caso das alterações e recortes. Nesse caso, o enfoque recai sobre o personagem, não exatamente sobre a tira. Seu reconhecimento e de seu ethos prévio permitem que o leitor associe um caráter a uma corporalidade. E no caso dos personagens infantis de tiras cômicas outro aspecto se integra na leitura: o personagem faz rememorar estereótipos específicos de criança, como a ingenuidade, alinhando-se ou rompendo com eles, e permite que a criança da tira, ou no caso dos recortes, diga o que diz. O personagem quando passa a ser protagonista de um recorte integra um modelo de enunciação aforizante presente na rede: imagens de figuras famosas (reais ou personagens fictícios), como escritores, filósofos, monges, personagens de programas televisivos, são associados a alguma frase de efeito. Numa dessas postagens, o famoso quadro de Paul Delaroche, “Napoleão na véspera de sua primeira abdicação”, no qual Napoleão é retratado com um semblante enigmático, é complementado pelos dizeres: “o Facebook é uma grande competição para ver quem é mais feliz. Vai ganhar quem aparecer montado num unicórnio voando em Saturno”. É, portanto, visível que a imagem ganha contornos especiais nessas enunciações associadas a pesonagens conhecidos nesta rede social. O mesmo ocorre com os personagens infantis de tiras cômicas conhecidos pelo grande público. No caso de figuras públicas não fictícias, a tendência é que estejam associadas a frases “elevadas”, como se falassem de um patamar diferente. Normalmente uma lição de vida, um ensinamento (a não ser que sejam humoristas, ou figuras associados ao humor). No caso de personagens fictícios, a tendência é que haja humor e que a frase atribuída a eles busque algum efeito humorístico. No caso de personagens infantis, as duas coisas parecem ocorrer aleatoriamente, sem uma regra. Os textos que usam Mafalda como personagem base citados acima são exemplos que podem muito bem
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ilustrar isso. Vemos no texto em que a personagem questiona a educação no país, embora haja uma crítica a um governo, que o efeito mais saliente é o do humor. No texto em que a garota fala sobre as idades e a vida, o efeito de sentido mais saliente é o do ensinamento, da frase filosófica. Conclusão Pode-se observar, assim, que há uma diferença básica entre personagens facilmente reconhecidos e os que ainda se consolidam como personagens acessíveis ao grande público. Os primeiros são, na rede, de alguma forma, correlatos tanto de grandes personagens da história mundial, como de personagens famosos da ficção. Os recortes e alterações servem a um modelo de enunciação aforizante que se instituiu muito fortemente na rede. Os personagens menos conhecidos não se apresentam dessa forma, sendo a integralidade das tiras necessária para a instituição do ethos do personagem. O ethos prévio tem pouca relevância nesse caso. A circulação das tiras de personagens em consolidação ou pouco conhecidos do grande público serve aqui como um argumento às avessas, para defender que só há alteração e recorte dos personagens infantis de tiras cômicas porque estes são muito conhecidos. Seu ethos prévio se vincula na memória do leitor tão rapidamente quanto os estereótipos de criança. Isso não tende a ocorrer nos personagens menos conhecidos, já que um ethos prévio depende de uma circulação razoavelmente grande de textos num determinado espaço de tempo. Assim, o uso de personagens infantis de tiras cômicas na rede com funções diversas se deve, entre outras coisas, pela versatilidade com que a criança é representada no humor. Às vezes sabida demais, às vezes extremamente ingênua, mas sempre intrinsecamente ligada à imagem que fazemos dela, que elas não sabem de nada. Somos mesmo inocentes!
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Referências GATTI, Márcio Antônio. A Representação da Criança no Humor: um estudo sobre tiras cômicas e estereótipos. 2013. 240 p. Tese (Doutorado em Linguística) – Instituto de estudo da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013. GATTI, Márcio Antônio; SALGADO, Luciana Salazar. Personagens infantis de tiras cômicas em suportes diversos: uma questão de circulação, aforização e estereotipia. D.E.L.T.A., 29:Especial. p. 517-534, 2013.
MAINGUENEAU, Dominique. Cenas de Enunciação. Curitiba: Criar, 2006. p. 112132. ____. Aforização – enunciados sem texto? Trad. Ana Raquel Motta. In ____. Doze Conceitos em Análise do Discurso. São Paulo: Parábola, 2010. p. 9-24. ____. Frases sem Texto. Trad. Sírio Possenti et alii. São Paulo: Parábola, 2014. POSSENTI, Sírio. É um campo: um programa. In ____. Humor, Língua e Discurso. São Paulo: Contexto, 2010. P. 171-180.
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A SUBJETIVIDADE DO SUJEITO-TRADUTOR Maria Amélia Lobo- Pires (UEM) Vânia da Silva (UEM) Introdução O escopo da Análise Crítica do Discurso, doravante ADC, é a compreensão das interações sociais a partir da análise de textos. Podemos dizer que a ADC é uma disciplina de entremeio, inserindo-se em um limiar entre os campos da Sociologia e da Linguística dos Textos. Sabemos que estudos do discurso têm galgado lugar de destaque na escrita científica, não apenas nas ciências da linguagem, como também, nas ciências sociais. Por sua natureza interdisciplinar, a Análise de Discurso, a Análise Crítica do Discurso, o Sociointeracionismo Discursivo e a Teoria da Enunciação fornecem importantes ferramentas de análise, também para as questões de gênero. Processos de formação podem ser revelados ao se buscar investigar a linguagem em uso nas interações cotidianas, quer de perpetuação, quer de mudança nas relações de poder entre indivíduos e grupos. Por outro lado, considerando-se também que os estudos sobre a Tradução devem ser acompanhados por reflexão a respeito do que é traduzir e do que é a tradução, o processo tradutório deve ser pensado como espaço de reivindicação, posicionamento e conquistas por parte das mulheres tradutoras, compreendendo-se determinadas relações de poder e valores discriminatórios que se mostram no e pelo discurso (DÊPECHE, 2004). É deste lugar que esta pesquisa justifica-se, haja vista que busca compreender, a partir da perspectiva da ADC, a presença de elementos textuais que permitam observar posicionamentos e posturas do sujeito-tradutora na obra aqui analisada. Partindo-se do pressuposto de que a atividade tradutória é sobredeterminada por circunstâncias sócio-históricas e político-ideológicas, devem-se considerar também particularidades deste sujeito-tradutor que, por sua vez, se inscreve no discurso com uma posição-sujeito, e que se sustenta a partir da ilusão de autonomia e de unidade do
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discurso e de si próprio enquanto sujeito. Essa ilusão busca assegurar a coerência e a completude de uma determinada representação; ilusão esta necessária à constituição do sujeito e do discurso. Nesse sentido, de acordo com Mittmann (2003, p. 172), pode-se considerar que a ideologia atua internamente no processo tradutório. Diante desta perspectiva acerca da tradução, delineia-se o objetivo principal deste artigo: perceber os diferentes posicionamentos ideológicos, subjacentes à interação, que permeiam os discursos presentes na história de Vasalisa, a sábia, do livro “Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem”, de Clarissa Pinkola Estés (1992), traduzido por Waldéa Barcellos. Como objetivo específico, buscaremos discutir e problematizar a articulação destes textos, em português e inglês (“Women Who run with the wolves”), e suas implicações para a construção de identidades de gênero no processo tradutório. O sujeito tradutor e a produção de sentidos Quando se pensa em processo tradutório, a partir de uma perspectiva discursiva, refuta-se a ideia de um processo transparente de sentidos, onde a intenção do autor do texto „original‟ pode ser resgatada e retransmitida em sua íntegra no texto traduzido. O que ocorre, no entanto, é uma reprodução de mensagens em outro código, a produção de sentidos entre os interlocutores. É uma rua de mão dupla, onde o caminho se constrói ao caminhar, isto é, o tradutor é um sujeito sócio-histórico constituído e marcado por ideologias. Há produção de sentidos pelo autor e entre todos os participantes do processo (MITTMANN, 1999), e por meio de práticas linguístico-discursivas, diversas vezes, relações de dominação, de poder e de violência simbólica podem ser cristalizadas. Mittmann (2003) propõe a articulação entre a AD e os Estudos da Tradução de forma profunda, e, dessa forma, descarta um papel de obscuridade e silenciamento do tradutor, negando o sujeito como aquele que tem papel de transportar ou transpor conteúdos. Esta perspectiva pós-moderna ou contestadora da tradução, outorga ao tradutor papel ativo de coautoria do novo texto produzido, no caso a tradução. Segundo Mittmann (2003, p. 46), a língua é um pré-requisito, é a base sobre a qual se efetua o processo de produção de discurso. Para a ACD, o sujeito não é totalmente atravessado e sujeito à ideologia, mas se torna senhor do seu dizer e de seu
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discurso, socialmente construído e constituído, porém com mais consciência e participação ativa deste sujeito como autor de seu discurso. Para Fairclough (2001), é preciso considerar mais do que a função meramente representativa da linguagem. O autor concebe assim o discurso não apenas como a representação do mundo e das relações nele existentes, mas como uma prática de significação, “constituindo e construindo o mundo em significado”. (FAIRCLOUGH, 2001, p.91). Em suas diversas manifestações, a linguagem é, portanto, uma prática social de representação e de significação, sendo o discurso um conjunto de práticas linguísticas que estabelecem, mantêm ou questionam estruturas sociais. Práticas sócio-discursivas, gênero e poder Ao pensar na relação entre gênero e poder, a ADC se coloca como lugar de reflexão profícua, haja vista que possibilita que se compreenda os textos de autoria feminina, acerca do feminino e da mulher, como aquele que orienta práticas sociais e sentidos caracterizadores das relações de gênero e contribui para a construção de “„identidades sociais‟ e „posições sujeito‟ para os „sujeitos‟ sociais e os tipos de „eu‟” (FAIRCLOUGH, 2001, p.91). Entendemos, então, que esses textos condicionam-se, perpetuam-se ou reorganizam os comportamentos e a distribuição ao poder, os modos e lugares de ação e a voz possibilitada à mulher e ao feminino. Sendo assim, discursos de autoria feminina podem, em condições propícias, servir como marcador ideológico das necessidades das mulheres. bem como de uma emergência da emancipação feminina no processo ativo de tradução, uma vez que a prática discursiva é constitutiva também de maneira criativa, o que possibilita transformar “identidades sociais, relações sociais, sistemas de conhecimento e de crença” (FAIRCLOUGH, 2001, p.92). Vale esclarecer que as formulações e prática sociais possibilitam aos usuários que as realizam confirmar ou desestruturar sentidos, bem como significar construtos sociais e políticos mais amplos. Ao elaborar um discurso, os atores não o fazem aleatoriamente; eles enunciam de lugares discursivos e ideológicos em meio à conjuntura social, a qual direciona seus dizeres.
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Segundo Fairclough (2001), as práticas sociais são heterogêneas e históricas, possibilitando a resistência e a constituição de atores sociais que materializam efeitos de sentido e de poder diversos, de acordo com valores sociais e culturais vigentes em dada instância ideológica e institucional. Ações simbólicas possibilitam a naturalização de dados comportamentos, hegemonias e identidades, promovendo efeitos de evidência pelo uso dos discursos, sedimentando relações de poder por meio de regimes de verdade, os quais colocam a mulher, no que tange às relações de gênero, em espaço desprivilegiado de voz e atuação. Em relação à tradução de gênero, o mesmo caminho trilhado pela maioria das mulheres, ao longo da história do Ocidente, pode ser percebido nas tradutoras femininas, ainda que raramente feministas, as quais também sofreram o grande silêncio perpetuado pelo mundo androcêntrico, e suas imposições da língua patriarcal, falocêntrica. (DÉPÊCHE, p.83). Em seu texto Gênero e a Metafórica da Tradução (1998), Chamberlain discute as oposições binárias de autor e tradutor, original e tradução, e mostra como isso tem sido associado tradicionalmente ao binarismo homem/mulher, que sugere a obrigatória fidelidade do segundo ao primeiro, mostrando que o mundo se concentra no masculino, visto como original, e a autoridade sobre o feminino, isto é, a cópia. Discute-se este paradigma, baseado no gênero, que regula valores culturais por meio da distinção entre trabalho produtivo e reprodutivo e que provoca a hierarquia entre escrita original e tradução. Sob tal aspecto, a originalidade e a criatividade da produção associam-se à paternidade e autoridade, enquanto o feminino, à repetição e à procriação. Além disso, diferentes metáforas utilizadas tradicionalmente, referindo-se à tradução, ligadas à mulher, seja como mãe, filha, amante ou como esposa; isso também explica que as pesquisas feministas realizadas em diversas disciplinas têm demonstrado que a oposição entre trabalho produtivo e reprodutivo determina o modo como os valores de uma cultura atuam: esse paradigma descreve originalidade e criatividade em termos de paternidade e autoridade, relegando à figura feminina uma série de papéis secundários (CHAMBERLAIN, 1998, p. 33-34). Da mesma maneira que a mulher, a tradução era considerada como tendo uma função de reprodução, inferior àquela de produção, que está ligada ao homem e ao texto
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original; o ato tradutório era classificado como secundário e inferior em relação ao original. A analogia, além de gerar graves problemas para a profissão, aponta a tradução como feminina, e o original como masculino, e sugere ainda o original como “natural, verdadeiro e legítimo”, e a cópia como “artificial, falsa e traidora” (CHAMBERLAIN, 1998, p. 34). Ela também ressalta a importância não apenas de traduzir, mas de escrever sobre tradução, de teorizar a respeito, assumindo abertamente suas escolhas tradutórias. Dessa maneira, as tradutoras feministas quebram os padrões convencionais de fidelidade
e
fazem
da
tradução
um
espaço
de
criação
de
significados.
(CHAMBERLAIN, 1998, p.37). (Re)tomadas e deslocamentos em Mulheres que correm como lobos A mobilização de conceitos pertinentes à ACD permite-nos analisar e problematizar determinadas escolhas linguísticas em Recortes Discursivos (RDs) selecionados, na história de Vasalisa a sábia, do livro Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem, que constituem nosso corpus. Cabe retomar que, para a ADC, o discurso é definido como “uso da linguagem”, ou “linguagem em uso” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 31-33; RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 25-26). Importante entendê-lo por essa teoria, como um modo de ação historicamente situado em que o sujeito é interpelado ideologicamente, mas não determinado por completo pela ideologia. Ele pode agir criativamente, operando mudanças. Pensa-se em articulação, em vez de determinação. A estrutura não determina o sujeito; ela constitui e é constituída por ele: “dualidade da estrutura” (GIDDENS, 1989 apud RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 34). Trata-se de um sujeito localizado na modernidade tardia, elemento importante de reflexão na ACD. Alguns traços desse período contribuem para essa visão de sujeito (HALL, 1998, p. 7-9; FAIRCLOUGH, 2006, p. 33-34). Primeiro, o fato de que na pósmodernidade a tradição não tem o mesmo papel que tinha em estabilizar identidades e posições sociais. Segundo, o sujeito pós-moderno está constantemente em busca de uma auto-identidade. Essa busca, no entanto, é atravessada por uma “reflexividade”, resultante de um novo estado social imerso na informação e nos “sistemas de especialidades”
(conhecimento).
O
sujeito
pós-moderno
é,
nesse
sentido,
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necessariamente fragmentado, constituído de várias identidades contraditórias, que se rearranjam politicamente a partir de uma constituição social. Da mesma forma, o discurso é articulado com outros elementos do social. Ele é pensado como um dos momentos da prática social. Essa articulação se desdobra para cima em redes de práticas sociais (esquema sobre as redes de práticas c.f. RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 42). As articulações são de especial interesse para a ACD, porque é nelas que são encontradas as brechas para mudanças sociais; “existe uma possibilidade intrínseca de desarticulação e rearticulação desses elementos. Essa possibilidade relaciona-se à agência humana.” (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 44).
Os recortes aqui analisados foram escrito pela terapeuta junguiana Clarissa Pinkola Estés, que utiliza 19 histórias que buscam mostrar o arquétipo da Mulher Selvagem, ou a essência da alma feminina. A autora do livro, após estudar durante anos o comportamento dos lobos, observou semelhanças entre a loba e a mulher, principalmente no que se refere à dedicação aos filhos, ao companheiro e ao grupo. Estés (1999) afirma que a „cultura‟ transformou a mulher em uma espécie de animal doméstico, que responde mansamente a determinado condicionamento, permitindo a atrofia de recursos presentes em sua psique, o que invariavelmente, roubalhe muito da natureza e essência desta mulher em sua plenitude. Este condicionamento, travestido de adequação às demandas e questões da pós-modernidade, desenvolve nesta mulher, em contrapartida, sintomas como depressão e fadiga bloqueio como resposta ao boicote feito à essência de sua psique instintiva mais profunda. Por meio da interpretação de mitos e histórias deste arquétipo, o livro convida a nós, mulheres-leitora da obra, que embarquemos na aventura de resgate à nossa natureza primordial, reencontrando-nos com o lado selvagem, nossa alma de lobas, prática essa que deve ser exercida, segundo a autora, por toda mulher ao longo da vida. A seguir, os RDs selecionados, com os textos em inglês e a respectiva tradução feita pela tradutora Waldéa Barcellos do inglês para o português. RD1- Intuition is the treasure of a woman’s psyche. It is like a divining instrument and like a crystal through which one can see with uncanny interior vision. (Estes, 1992, p.74) RD1’- “a intuição é o tesouro da psique da mulher. Ela é como um instrumento de adivinhação, como um cristal através do qual se pode ver com uma visão interior excepcional”. (Barcellos, 1999, p. 99)
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RD2-As women we call upon our intuition and instincts in order to sniff things out (p.75) RD2’“Como mulheres, recorremos à nossa intuição e aos nossos instintos para farejar tudo”. (p. 99) RD3 “In this way the doll represents the inner spirit of us as women” (p.89) RD3’ “Dessa forma, a boneca representa o espírito interior das mulheres”. (p.117) RD4This is the wisdom of the homunculus, the small being within. It is our helper.(p.89) RD4 “Essa é a sabedoria do homunculus, o pequeno ser interior. Ele é a ajuda”. (p.117)
Nos RD1- divining instrument e RD1’- instrumento de adivinhação, para traduzir divining instrument, a tradutora, muito provavelmente, lançou mão de dicionários, e fez sua escolha por instrumento de adivinhação, ao invés de instrumento divino, que também poderia ter sido traduzido como algo a serviço do sagrado. Os sentidos, em inglês para “divining”, em dicionários de inglês on line, trazem tanto having the nature of or being a deity, e ainda being in the service or worship of a deity; sacred1, sentidos que se aproximam a algo divino, sentido de sagrado; ou então, também, to practice divination, to guess2. O sujeito-tradutora faz sua leitura a partir de filiação a determinada formação discursiva (FD), por não ser possível acesso à real intenção do sujeito-autor, ao referirse à intuição como um “divining instrument”, comparando à boneca que, na história de Vasalisa, é dada como herança da mãe moribunda à sua pequena filha. O interdiscurso, o „já-dito‟ em outros tantos discursos nos autoriza pensar na organização mental de uma criança que perde precocemente sua mãe, e da necessidade que possui de ferramentas psíquicas para que ocorra o processo desenvolvimento mental e emocional, compensando a perda desta mãe, colocando-se a figura da boneca como auxiliar da formação de sua psique. Poderíamos dizer que estes recursos divinos exerceriam uma função sagrada para que a menina que ganhou a boneca fosse equipada para seu desenvolvimento como mulher com ciência e habilidades para responder a desafios interentes a cada etapa de sua vida. Ainda, pode-se perceber que, interdiscursivamente, há referência à good enough mother (p.475) ou à figura da “mãe suficientemente boa” (p.580) e que, de acordo com 1
Ter a natureza de, ou ser um deus, uma divindade e estar a serviço ou adoração a um deus ou a uma divindade (http://www.thefreedictionary.com/divination) 2 Prática da adivinhação; adivinhar. FONTE:http://www.thefreedictionary.com/divination Acesso em: 25/7/2013.
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o terapeuta Donald Winnicott, mencionado pela autora do livro nas notas no final do livro. Ao buscar atermo-nos apenas à análise do processo discursivo em questão, é interessante perceber outras vozes presentes neste enunciado que, consciente ou inconscientemente, afetaram tanto as escolhas do sujeito-autor no livro em inglês, quanto as do sujeito-tradutor do livro em português, significando pelo jogo entre memória e esquecimento. Portanto, entende-se que, a partir do lugar ocupado pelo tradutor e, ao mesmo tempo, considerando o autor do „original‟ como o outro, ocupa-se um lugar no discurso, ou ainda, assume-se uma posição enunciativa, que se divide em várias posições-sujeito no discurso e, portanto, no texto da tradução (MITTMANN, 2003). A tradutora, invariavelmente, mostrará determinadas filiações a determinados discursos que, na RDs selecionadas, parecem apontar uma filiação à Formação Discursiva Feminina, em alguns momentos. Isso ocorre em “Como mulheres, recorremos à nossa intuição e aos nossos instintos para farejar tudo”. (RD2‟, p. 99) e em outros, logo em seguida, traduz apenas de forma meio que „genérica‟. No texto-fonte ou texto de partida, em inglês, a autora coloca-se como mulher em todos os enunciados, onde se faz referência à posturas e escolhas que toda mulher terá que fazer no decorrer de sua vida. Estés filia-se aos discursos que inserem a mulher como guerreira capaz e autorizada a protagonizar sua história de vida. Em RD2, As women we call upon our intuition and instincts in order to sniff things, a autora do texto em inglês valida o uso da intuição como instrumento de empoderamento das mulheres, como recurso capacitador e que fornece instrumentos e discursos capazes de resignificar a natureza íntima da mulher, para que desempenhe papéis e funções sem violentar a natureza de seu verdadeiro self. A escolha da tradutora gera, assim, um efeito de sentido que funciona por uma filiação ao mesmo discurso de empoderamento da mulher, pelo resgate à sua íntima natureza selvagem. Por meio da utilização da primeira pessoa do plural que, nós mulheres recorremos à nossa intuição e aos nossos instintos para buscar as coisas que nos dizem respeito. “Para farejar tudo”, pode ser pensado como “para mudarmos o foco de nossos discursos”, enquanto mulheres, para que nossa representação interna de mulher seja remodelada a partir de nosso discurso libertador.
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O sujeito-tradutora logo em seguida traduz no RD3, “the inner spirit of us as women”, como “a boneca representa o espírito interior das mulheres”. (p.117). O que diferenciaria essa tradução das tecidas em recortes anteriores, em que a tradutora se coloca em primeira pessoa do plural? Sabemos que, como prática social, o discurso não apenas representa o mundo e as relações nele existentes, mas é uma prática de significação, “constituindo e construindo o mundo em significado” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91). Causa-nos estranhamento esta necessidade, consciente ou não, de generalizar e procurar isentar-se do empoderamento conferido pelo discurso do sujeito-autora. Este RD3‟, assinala-se o poderio de uma linguística falocêntrica, em uma sociedade latino-americana, onde a configuração identitária da mulher, inúmeras vezes traz em seu âmago, discursos de submissão e subserviência perpassados, fazendo com que, em algum momento esta mulher subverta sua adesão ao discurso libertador, buscando uma postura de „invisibilidade‟ neste RD3‟. Desse modo, em “the doll represents the inner spirit of us as women” (RD3, p.89), o texto em inglês, o sujeito-autor (a) do livro escreveu boneca, inscrevendo-se neste discurso, apropriando-se do ritual de iniciação das mulheres, pela utilização da boneca herdada de sua mãe moribunda, metáfora para a intuição. Neste RD3‟, a tradutora optou por não se filiar ao grupo mulheres desta FD, presente no processo e marcada na voz da autora do „original‟, em inglês. Como se observa, no RD3’ “a boneca representa o espírito interior das mulheres”. (p.117), ou seja, a escolha tradutora procura isentar-se desta FD3‟, em particular. O mesmo ocorre nos RDs abaixo, onde se refere à ferramenta usada pela menina Vasalisa, isto é, a sua pequena boneca: RD4: This is the wisdom of the homunculus, the small being within. It is our helper. (p. 89) RD4’: “Essa é a sabedoria do homunculus, o pequeno ser interior”. “Ele é a ajuda”. (p. 117)
Uma vez mais, a autora escreve It is our helper, onde „our‟ é pronome possessivo na primeira pessoa do plural. O sujeito-autor (a) do livro, em inglês, inscreveu a boneca, reportando-se à iniciação das mulheres pela utilização da boneca, metáfora para a intuição, e colocou-se na FD feminina, com a utilização de „nossa‟, ou no caso „our‟. A
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tradutora, mais uma vez, traduz como que de forma genérica, “a sabedoria do homunculus, ou a intuição ou ainda a boneca”, apenas “Ele é a ajuda”. No processo tradutório, especificamente nestes RD3‟e RD4‟, a tradutora não se coloca da mesma maneira que a autora do livro. Estés confirma sua adesão ao discurso que se apropria de ferramentas que fornecem recursos de libertação às mulheres pela conscientização de recursos disponíveis no inconsciente de todas as mulheres. A autora, mulher-terapeuta, fala do espírito interior de nós mulheres, e não apenas, ao que nos pareceu uma tradução higienizada, buscando certa (in) visibilidade, que sabemos ser utópica, Barcellos traduz apenas como "espírito interior das mulheres”. E, no RD seguinte, no texto em inglês, está escrito “é nossa ajudadora”, enquanto que no texto em português, de forma genérica é traduzido por “é a ajuda”. Voltando-nos para a discussão de questões acerca de gênero social, o livro de Walsh tem como objetivo desenvolver um quadro analítico que combina a Análise de Discurso Crítica e uma ampla perspectiva feminista acerca do discurso como prática social. Uma questão discutida é, se as mulheres aceitam práticas discursivas préexistentes, não-criticamente, ou se elas as contestam e tentam mudá-las, ou se transitam estrategicamente entre essas posições, dependendo do que percebem como apropriado a determinada ocasião, o que para Walsh não se traduz em emancipação. Para caminharmos às considerações finais desta reflexão (MARIANI, 2003, p.53) afirma que, para compreensão da interpelação ideológica constitutiva da produção de sentidos nos sujeitos, há de se fazer menção ao sujeito cindido da psicanálise. Segundo Pêcheux, “só há causa daquilo que falha”, deve-se considerar a categoria de sujeito da análise do discurso, reconhecendo a presença desta causa [do que falha] à medida que insistem em se ‟manifestar‟ incessantemente, em multiformes possibilidades, como por exemplo, o ato falho, lapso, e assim por diante, no próprio sujeito, por que traços inconscientes do significante não são jamais ‟apagados‟ ou ‟esquecidos‟, mas trabalham, sem se deslocar, na pulsação sentido/non sens do sujeito dividido”. (MARIANI, 2003, p.53). Autores da perspectiva contestadora ou pós-moderna da tradução entendem também o discurso como prática social, uma vez que concebem que toda tradução é um processo de „resistência‟, o que nos faz pensar que, ao ser atravessado pela ideologia,
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este sujeito-tradutor (a), no processo de suas escolhas na produção do texto da tradução, assina o texto traduzido, inculcando sempre sua „assinatura‟, deixando marcas de sua subjetividade nas traduções, enquanto sujeito cindido, ideológico, que se faz presente e „visível‟ de diferentes formas e por diferentes efeitos de sentido, em todo o processo discursivo. É, portanto, por meio do discurso de e sobre a mulher que sentidos outros podem advir; discursos capazes de agenciar mudanças discursivas e sociais sobre ser mulher e conceber a mulher. Parece ser esse o lugar de fala do sujeito-tradutora no corpus analisado. 5. Considerações finais Na escrita tradutora, pode-se perceber a construção da subjetividade do sujeitotradutor (a) durante o processo tradutório. A escrita tradutora é, assim, impregnada por ideologia(s), trazendo a assinatura deste sujeito, o que revela sua presença, por meio do não-dizer ou de suas marcas, conscientes ou não. O texto traduzido é um novo texto, o chamado „original‟ é original, por questões sócio-históricas, construídas e constituídas, não existindo, portanto, de acordo com a abordagem desconstrutivista da tradução aquilo que o „senso comum‟ insiste em chamar „tradução literal‟. Percebemos por meio dos recortes discursivos analisados que o texto significa a partir das marcas de subjetividade assinaladas no processo tradutório; ainda que se busque determinado nível de in-visibilidade na tradução, esta pretensa invisibilidade sempre será utópica, pois, consciente ou inconscientemente, este sujeito-tradutor (a) sempre deixa marcas de sua subjetividade nos textos que traduz. Assim, o texto em uma língua-fonte, no caso o inglês, foi traduzido para outra língua de chegada, o português, por meio de escolhas, que produziram discursos com dizeres que apontam a possibilidade e necessidade de que se ressignificação os discursos da sociedade como um todo, tanto em relação ao gênero como em relação à tradução e ao ato de traduzir.
Referências AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Tradução de Celene M. Cruz e João W. Geraldi. Caderno de Estudos Lingüísticos, Campinas, n. 19, 1990, p. 25-42.
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CHAMBERLAIN, Lori. Gênero e metafórica da tradução. In: OTTONI, Paulo (Org). Tradução: a prática da diferença. Campinas: Editora da Unicamp, 1998. DÉPÊCHE, Marie-France. As teorias feministas da tradução e suas práticas subversivas. In: CARVALHO, Marie Jane Soares; ROCHA, Cristianne Maria Famer (Org.). Produzindo gênero. Porto Alegre: Sulina, 2004. DERRIDA, Jacques. Torre de Babel. Tradução de Junia Barreto. Belo Horizonte: UFMG, 2002. ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. ____. Woman who run with the wolves: myths and stories os the wild woman archetype. New York: Ballantine Books, 1992. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora da UnB, 2001. MARIANI, B . Subjetividade e imaginário linguístico. Linguagem em (Dis)curso. Tubarão, v. 3, número especial, p.55-72, 2003. MELLO, Giovana Cordeiro Campos. Assimilação e resistência sob uma perspectiva discursiva: o caso de Monteiro Lobato. 2010. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras, Rio de Janeiro, 2010. Disponível
em:
.
Acesso em 2 ago. 2013. ____. Notas do tradutor e processo tradutório: análise sob o ponto e vista discursivo. Porto Alegre: Ed. da UFGRS, 2003. ____. O processo tradutório: uma reflexão à luz da Análise do Discurso. Porto Alegre: PPG-Letras-UFRGS, 1999.
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GÊNERO PROPAGANDA E A COMPREENSÃO LEITORA DOS ALUNOS DO 4° ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL Maria do Carmo Cabreira (PG – PROFLETRAS UNIOESTE/CAPES) Resumo: com base na compreensão do caráter dialógico da língua, na concepção interacionista da linguagem e nos gêneros discursivos como instrumentos de ensino, este estudo tem como objetivo apresentar uma análise da compreensão leitora de alunos do 4º ano dos anos iniciais do Ensino Fundamental da rede pública de ensino, a partir do gênero propaganda. No artigo, iremos analisar dados de um diagnóstico em leitura, com a finalidade de diagnosticar as dificuldades de compreensão leitora dos alunos, objetivando contribuir com propostas de ensino da leitura por meio de trabalhos com os gêneros discursivos. Trata-se de uma parte dos dados gerados dentro de uma Pesquisa de Mestrado – PROFLETRAS – em fase de andamento, caracterizando-se, assim, como uma pesquisa qualitativa-interpretativista, do tipo etnográfico e pesquisa-ação, alicerçada pela Linguística Aplicada. Os sujeitos envolvidos são alunos do 4° ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede municipal de ensino de Toledo, Paraná. Palavras-chave: gêneros discursivos, diagnóstico de leitura, compreensão leitora. 1. Introdução Dada a importância da leitura no processo de formação dos sujeitos, defendemos que essa prática no cotidiano escolar é condição essencial no processo de ensino e aprendizagem, pois é por meio do ato de ler que o aluno se apropriará dos elementos básicos como: compreender informações e conceitos; ampliar a capacidade de análise e reflexão para interagir criticamente com o texto, posicionando-se, dialogando, interferindo, contra argumentando, enfim, agindo conscientemente. Por isso, as práticas de leitura devem estar presentes em todas as ações pedagógicas das diferentes modalidades de ensino. Conforme dados divulgados pelo Indicador de Alfabetismo Funcional da população adulta brasileira (INAF)1 no site do Instituto Paulo Montenegro2, nos últimos dez anos ocorreu a redução do analfabetismo, “o que reflete uma transformação social 1 2
Indicador de Alfabetismo Funcional da população adulta brasileira. Disponível em: http://www.ipm.org.br Acesso: 20 de novembro de 2013.
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sem precedentes, desde meados do século XIX, quando cerca de 10% da população era não alfabetizada” (QUEIROZ, 2013, p.14). Porém, de acordo com o relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a questão do letramento ainda é uma preocupação, pois “somente um em cada quatro brasileiros domina as habilidades básicas de leitura, escrita e matemática”3, demonstrando dificuldades do sistema educacional em desenvolver práticas pedagógicas que garantam que os alunos aprendam a ler, escrever e usar adequadamente essas competências, nos diversos contextos sociais de que participam. Esses dados são ratificados pelas avaliações externas que são realizadas com o objetivo de medir a capacidade de leitura dos estudantes brasileiros. Podemos citar como de avaliações externas o Programme for International Student Assessment (Pisa) − Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), Prova Brasil, Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) e Provinha Brasil. Todavia, conforme Cafiero e Rocha (2009), “[...] quando essas avaliações chegam à escola, ou, principalmente, quando seus resultados chegam, são recebidos com desconfiança [...]” (CAFIERO e ROCHA, 2009, p. 76). Os professores geralmente questionam e argumentam que essas avaliações e os dados gerados por meio delas não expressam o processo de aprendizagem dos seus alunos, pois desconhecem quem elaborou as avaliações e os pressupostos teóricos e metodológicos usados para a elaboração, o que resulta em pouco aproveitamento do resultado desses diagnósticos nas práticas pedagógicas, “e, assim, há pouco efeito das avaliações externas na escola, quando deveria ser exatamente o contrário. Isto é, os resultados dessas avaliações deveriam funcionar como um diagnóstico importante para gerar mudanças” (CAFIERO e ROCHA, 2009, p. 76). Decorrente disso, nós, professores do Ensino Fundamental, Anos Iniciais, temos consciência das dificuldades de leitura apresentadas pelos alunos, mas não sabemos de fato onde reside essa dificuldade e qual é seu motivo. Diante do contexto exposto, é que justificamos a proposição desta pesquisa, pela inexistência de dados que apontem para as maiores dificuldades de leitura de alunos que concluíram o ciclo de alfabetização, ou seja, alunos 4° ano do Ensino Fundamental. 3
Disponível em: http://www.todospelaeducacao.org.br. Acesso: 26 de novembro 2013.
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Então, com o intuito de investigar as dificuldades de compreensão leitora desses alunos, realizamos um diagnóstico avaliativo para identificar as dificuldades de compreensão leitora dos alunos do 4° ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede municipal de ensino de Toledo, Paraná. Para elaboração do instrumento diagnóstico, adotamos como parâmetro os descritores do Sistema de Avaliação da Educação Básica – Prova Brasil (SAEB), por considerar que esses descritores ultrapassam a leitura como mera decodificação, uma vez que exigem a leitura de diversos gêneros discursivos, incluindo textos verbais e não verbais, assim como de diferentes esferas da comunicação. Compreendemos que esse aspecto é importante porque, nas palavras de Costa-Hübes, Cada esfera, em particular, orienta-se socialmente para uma realidade específica, definindo objetivos discursivos e funções ideológicas específicas. No âmbito da esfera social e nele imersos, os gêneros comportam intercâmbios comunicativos que os complexificam conforme as esferas da qual se originam (COSTA-HÜBES, 2014, p.22).
Assim, não podemos pensar em uma avaliação da leitura de texto pertencente a determinado gênero sem considerar sua esfera de produção e de circulação. Analisando e compreendendo esses pressupostos, optamos por usar a Matriz Referencial de Língua Portuguesa para o quinto ano do Ensino Fundamental, da Prova Brasil
(BRASIL,
2008).
Porém,
ressaltamos
que
as
atividades
foram
adaptadas/adequadas ao nível do quarto ano do Ensino Fundamental. A elaboração da Prova Brasil segue Matrizes de Referências. Segundo nos informa o MEC, essas Matrizes foram produzidas a partir de orientações dos PCN e consultas “aos currículos propostos pelas Secretarias Estaduais de Educação e por algumas redes municipais” (BRASIL, 2008, p.17). No entanto, é relevante destacar que as matrizes de referência não abrangem todo o currículo escolar. “É feito um recorte com base no que é possível aferir por meio do tipo de instrumento de medida utilizado na Prova Brasil e que, ao mesmo tempo, é representativo do que está sendo contemplado nos currículos vigentes no Brasil” (BRASIL, 2008, p.17). A Matriz de Referência da Prova Brasil, conforme explica Costa-Hübes, “se divide,
estruturalmente,
em
duas
dimensões:
uma
denominada
Objeto
do
1220
Conhecimento, em que são listados os seis tópicos; e outra denominada Competência, com descritores que indicam habilidades a serem avaliadas em cada tópico” (COSTAHÜBES, 2014, p.9). Os tópicos apresentados na Matriz de Referência são: Tópico I: Procedimentos de leitura; Tópico II: Implicações do suporte, do gênero e/ou enunciador na compreensão do Texto. Tópico III: Relação entre textos; Tópico IV: Coerência e coesão no processamento do texto; Tópico V: Relação entre recursos expressivos e efeitos de sentido; Tópico VI: Variação linguística. Inseridos em cada tópico há um conjunto de descritores “em ordem crescente de aprofundamento e/ ou ampliação de conteúdo ou das habilidades exigidas” (BRASIL, 2008, p.22). O instrumento avaliativo por nós aplicado foi organizado de modo a avaliar os descritores da Matriz de Referência da Prova Brasil. Nesse artigo, faremos a análise das questões que avaliaram o Reconhecimento do Gênero, o descritor 5 (interpretar texto com o auxílio de material gráfico diverso – propagandas, quadrinhos, fotos etc.) e descritor 9 (identificar a finalidade de textos de diferentes gêneros). 2. Análise das questões do diagnóstico O instrumento diagnóstico aplicado foi composto por questões objetivas e discursivas. Optamos por fazer questões discursivas por favorecerem a argumentação e a ampliação das relações estabelecidas entre o texto e as práticas sociais da leitura. Para elaborar as questões selecionamos o tema bullying por ser familiar e muito discutido pelos alunos, principalmente na escola. Como dito anteriormente faremos analise da capacidade de reconhecimento do gênero, da capacidade de interpretação de texto com o auxílio de material gráfico diverso – propagandas, quadrinhos, fotos e etc. e da capacidade de identificar a finalidade de textos de diferentes gêneros. Vejamos então, o texto e as questões propostas.
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Leia o texto apresentado a seguir e depois responda às questões. TEXTO I
Disponível em: http://bullying-ciaatoresdemar.blogspot.com.br Acesso em: 06/03/2014.
2.1 Descritor − Reconhecimento do Gênero. Para avaliar essa capacidade, elaboramos a seguinte questão discursiva: Que gênero textual o TEXTO I é exemplo? Pergunta elaborada pela pesquisadora.
Considerando que, segundo Dolz e Schneuwly (2004), o gênero é um “megainstrumento” que possibilita, materializa as ações de linguagem e no contexto escolar, é instrumento das atividades de linguagem como também instrumento de estudo, é importante que o leitor/aluno identifique o gênero por meio do qual se molda o texto de leitura. Essa identificação pode ocorrer pelo reconhecimento das características do gênero, do suporte, da esfera de circulação e/ou da função social. Nesse processo de reconhecimento, o que está em jogo são “[...]os conhecimentos enciclopédicos do leitor, ou seja, os conhecimentos prévios armazenados em sua memória de leitura (aquela que se constrói ao longo dos anos, em todos os ambientes sociais possíveis)[...]” (MENEGASSI e ANGELO, 2010, p.35), uma vez que
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quanto maior for à relação entre as informações do texto e os conhecimentos prévios do leitor, melhor será sua compreensão leitora. Embasados nesse pressuposto, esperávamos que nessa questão os alunos fossem capazes de reconhecer o gênero como propaganda, uma vez que se trata da divulgação de uma campanha de conscientização sobre o bullying. O gênero propaganda, da esfera publicitária, tem como função a propagação de ideias vinculadas a produtos, empresas e serviços, programas institucional, governamental, informativo e de incentivo à participação popular em eventos culturais, esportivos, comunitários, campanhas de conscientização e etc. Para Catellan e Wust (2007), A propaganda constitui-se como um meio de promover vendas em massa. Nesse sentido, são produzidas para interessar, persuadir, convencer e levar à ação. Baseando-se no conhecimento da natureza humana, pretende influenciar o comportamento do consumidor (CATELLAN, WUST, 2007, p.145).
A influência exercida pelo gênero propaganda é o resultado de um enunciado carregado de argumentos velados, originados de certos artifícios que o discurso torna possíveis para induzir o leitor a determinadas atitudes e/ou conclusões. De acordo com Buzzi et al., os objetivos do gênero propaganda “são de informar, persuadir, lembrar e reforçar informações ao público-alvo. Ela se caracteriza, principalmente, por fazer uso de veículos de comunicação de massa, comprar espaços publicitários e não envolver contato pessoal” (BUZZI et al., 2011, p.42). O suporte de circulação do gênero pode ser outdoors, televisão, rádio, jornal escrito, revistas, folders, panfletos e cartazes. A estrutura do gênero também é arquitetada de forma a influenciar o leitor, pois se organiza por textos curtos (slogan), com uma linguagem de fácil compreensão e uso de imagens como logotipos, logomarca e entre outras. Trata-se, portanto, de um gênero multimodal, que “são textos especialmente construídos que revelam as nossas relações com a sociedade e com o que a sociedade representa” (DIONÍSIO 2006, p.160), articulando formas diferentes de linguagem. Para Oliveira (2013),
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A multimodalidade focaliza a inter-relação de diferentes modos de significação ou modos semióticos, que incluem o linguístico, o visual, o gestual. Um texto multimodal é aquele que admite mais de um modo de representação semiótica como a oralidade, a escrita, a imagem estática ou em movimento, o som, dentre outros (OLIVEIRA, 2013, p.3).
Portanto, a multimodalidade articula o linguístico e visual. A sociedade atual tem se tornado cada vez mais “visual” e produzido uma grande variedade de gêneros multimodais, sendo assim é necessário que esses gêneros sejam objetos de estudo na sala de aula. Na leitura do texto em questão, os alunos tiveram dificuldade de reconhecer o gênero propaganda. Não conseguiram articular seu conhecimento prévio às marcas textuais evidenciadas no gênero. 96% dos alunos que participaram da avaliação erraram a questão. 4% dos alunos responderam que o gênero é um “cartaz”. Consideramos a resposta como correta, mesmo tendo o conhecimento que cartaz é suporte do gênero. A aceitação ocorreu porque na tabela onde constam os gêneros sugeridos para trabalho nos anos iniciais apresentada no Currículo (AMOP, 2010), traz o cartaz como gênero e não suporte. As respostas levantadas no diagnóstico foram: 5 alunos se reportaram ao gênero como sendo a data da realização da campanha, 25 de setembro, exposta no canto direito da propaganda; 57 alunos usaram o tema da campanha como do gênero, ou seja, campanha contra o bullying; Os que fizeram referência ao gênero foram: cartaz (4 alunos); mapa (1 aluno); recado (3 aluno); aviso (1 aluno); bilhete (1aluno); 4 alunos se referiram a finalidade do texto como gênero; 1 aluno disse que era um texto informativo; Analisando as respostas e a pergunta formulada para a avaliação, concluímos que os alunos desconhecem o significado do termo “gênero textual”4, o que ocasionou
4
Usamos o termo “gênero textual” por se tratar do termo apresentado pelo Currículo Básico para a Escola Pública Municipal do Oeste do Paraná (AMOP, 2010), documento de orientação curricular no município.
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falha “na compreensão devido a conhecimento linguístico insuficiente” (KLEIMAN, 2013, p.16). O conhecimento linguístico abarca o conhecimento gramatical, lexical, o uso das regras já estabelecidas no sistema gramatical da língua, componente do conhecimento prévio que é “[...] o contexto e o conhecimento de mundo trazidos em sua bagagem cultural e linguística [...]” (FREITAS, 2012, p.74). Esse conhecimento é necessário para a compreensão leitora por ser fundamental para as relações entre o que se lê, o texto, e as experiência já vividas. Para Freitas (2012), A leitura de vários gêneros textuais tem sido vista como um dos fatores responsáveis pelo desenvolvimento do vocabulário. [...] Ressalta-se, porém, a relevância do desenvolvimento do vocabulário pelo que se aprende pela oralidade na convivência com os pais, familiares, amigos e na interação com professores e colegas, na escola e em outros ambientes (FREITAS, 2012, p.75).
Consequentemente, os sujeitos que possuem maior contato com uma diversidade de gêneros discursivos situados em diferentes práticas sociais de uso da língua, apresentam um desempenho melhor de compreensão leitora. 2.2 Descritor 9 – Identificar a finalidade de textos de diferentes gêneros. Para averiguar o conhecimento que os alunos têm sobre a função social dos gêneros propomos a seguinte questão objetiva: Qual a função do TEXTO I? (A) Realizar uma campanha de conscientização sobre estudo. (B) Realizar uma campanha de conscientização sobre o bullying. (C) Realizar uma campanha de conscientização sobre a dengue. (D) Realizar uma campanha de conscientização sobre vacinas. Pergunta elaborada pela pesquisadora.
Questões com essa estrutura, segundo a Matriz Curricular (BRASIL, 2008), possibilitam o reconhecimento do gênero, baseando na finalidade de perceber a função social do texto, ou seja, se o texto produzido tem o propósito de informar, convencer, advertir, explicar, comentar, recomendar, instruir, solicitar e etc.
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Em relação a essa capacidade, podemos afirmar que 93% dos alunos compreenderam a finalidade do gênero propaganda apresentado na avaliação. Os alunos que não depreenderam a finalidade do texto pelo sentido global e função social, provavelmente pautaram-se pela familiaridade dos termos usados nas alternativas, já que os vocábulos “estudo”, “vacina” e “dengue” são de uso constante no contexto escolar e familiar. 2.3 Descritor 5 – Interpretar texto com o auxílio de material gráfico diverso (propagandas, quadrinhos, fotos etc.). Com o intuito de avaliar essa capacidade elaboramos a seguinte questão discursiva: No TEXTO I observe que há um símbolo embaixo da palavra Bullying. O que esse símbolo significa? Pergunta elaborada pela pesquisadora.
O princípio básico dessa questão é a averiguação da capacidade da leitura de elementos não verbais, ou seja, perceber a interação entre a imagem/o visual e os signos linguísticos na construção do sentido do texto. A compreensão do sentido do texto requer o domínio do código linguístico, assim como, conhecimentos dos recursos das diferentes modalidades semióticas como construtoras de sentido do texto, porque conforme assevera Oliveira (2013), Nesse mundo multimodal em que a imagem tem sido um elemento constitutivo da representação da realidade social, só a leitura do texto verbal não é suficiente para a produção de sentidos. É preciso, portanto, novos letramentos que desenvolvam capacidades específicas de leitura de imagens e outras semioses. Quando nas atividades de ensino-aprendizagem de língua portuguesa em que estão presentes gêneros multimodais como, por exemplo, tiras, charges, propagandas, e não são considerados seus elementos verbais e visuais, a compreensão do todo do enunciado pode ser prejudicado (OLIVEIRA, 2013, p.2).
No que tange a essa questão, somente 23% dos alunos conseguiram articular a linguagem verbal e não verbal na compreensão do texto e 77% apresentaram dificuldades para considerar o símbolo como texto a ser interpretado.
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Entre as respostas encontradas no diagnóstico, elencamos aqui as que nos causaram maior estranhamento pelo distanciamento do que pode ser inferido em relação ao símbolo. São elas: “Muitas coisas “pra” crianças que sofrem bullying”;
“O bullying esta empurrando um menino”;
“O dia, mês e ano”; “Para mostrar a onde e pra ver”; “Reticências”; “Solidão”; “Que a gente não pode jogar lixo na rua em casa e outras coisas”; “Que tem um menino agredindo o outro”; “São duas crianças brincando de estudar”; Podemos inferir, a partir das respostas, que os alunos tiveram dificuldade em retornar ao texto, localizar a palavra BULLYING e o símbolo que está embaixo da palavra e, a partir da localização, realizar a leitura do símbolo. Alguns alunos se concentraram na ilustração que faz parte do texto e não compreenderam o sentido do símbolo convencionado como proibição. A escola precisa formar leitores para a grande variedade de gêneros que circulam na sociedade (SOARES, 2010). Para isso, é preciso assegurar diferentes processos de leitura e ensinar diferentes procedimentos e estratégias para o ato de ler. Deve-se trabalhar As diferenças no modo de ler um texto verbal (leitura paulatina e linear) e um texto não verbal (como uma totalidade indivisível, ou seja, a partir do todo, que pode depois ser pormenorizado) passam despercebidas na leitura. Todavia, as linguagens são necessárias para a interpretação; elas se complementam (ROSA, TEIXEIRA E CASARIL, 2014, p.120).
No entanto, observamos que esses diferentes modos de ler textos não estão assegurados aos alunos. 3. Considerações Finais
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Os resultados das questões analisadas apontam que os alunos dominam o descritor 9, (capacidade de identificar a finalidade de textos de diferentes gêneros), porém o descritor reconhecimento do gênero apareceu como a capacidade de maior grau de dificuldade dos alunos, uma vez que 94% erraram a questão, assim como também o descritor 5 (interpretação de texto com o auxílio de material gráfico diverso (propagandas, quadrinhos, fotos etc.) que teve um percentual de 77% erros. Analisando esses dados, podemos inferir que o descritor 5 (Interpretar texto com o auxílio de material gráfico diverso (propagandas, quadrinhos, fotos etc.) e Reconhecer o Gênero têm uma inter-relação, pois o gênero a ser reconhecido é um gênero propaganda, que exige a capacidade de leitura dos componentes gráficos (imagens, layout, símbolos e etc.) e está relacionado a textos multimodais. Portanto, é possível notar que, mesmo sendo intensa a leitura dos gêneros multimodais fora do contexto escolar, ainda é insuficiente as capacidades de leitura dos alunos em relação a esses gêneros. Portanto é necessário, e urgente, desenvolver um trabalho sistematizado que considere as modalidades semióticas como construtoras de sentidos nos textos. 4. Referências bibliográficas AMOP – Associação dos Municípios do Oeste do Paraná. Currículo Básico para a Escola Pública Municipal: Educação Infantil e Ensino Fundamental – Anos Iniciais. Cascavel: ASSOESTE, 2010. BRASIL. Ministério da Educação. Plano de Desenvolvimento da Educação: Prova Brasil: Ensino Fundamental: Matrizes Referências, tópicos e descritores. Brasília: MEC/SEB/INEP, 2008. BUZZI, Priscila; CASTELA, Greice da Silva; RUTH, Ceccon Barreiros; MANCHOPE, Elenita Conegero Pastor. Gênero propaganda: possibilidades de uso em sala de aula. In: CASTELA, Greice da Silva. Leitura, interdisciplinaridade e ludicidade: proposta pedagógica. Cascavel: Assoeste, 2011. p. 41−50 CAFIEIRO, Delaine; ROCHA, Gladys. Avaliação da leitura e da escrita nos primeiros anos do Ensino Fundamental. In: CASTANHEIRA Maria Lúcia; MACIEL; Francisca Izabel Pereira; MARTINS Raquel Márcia Fontes et al. Alfabetização e letramentos na sala de aula. 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora: Ceale, 2009. p.75−102. CATELLAN, Alice Rosália; WUST, Neli Ivete Dorst; Sequência didática: gênero textual propaganda. In BAUMGÄRTNER, Carmem. Terezinha.; COSTA-HÜBES, Terezinha da
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O TOPÔNIMO AMARO LEITE: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS DE UM BANDEIRANTE, UM ARRAIAL, UMA RUÍNA Maria Geralda de Almeida Moreira (UEG - UnU de Iporá)
O estudo dos topônimos, o seu significado, bem como a motivação para a nomeação é realizado pela Toponímia. Não envolvendo somente o estudo da palavra, a sua origem, mas muito mais do que isso, a toponímia permite compreender o espaço, as formas de convivência, de representar e como se relacionam [sujeito e lugar]. De acordo com Dick (1990b, p. 20), o topônimo “(...) se reveste como fonte de conhecimento, não da língua falada na região em exame apenas, como também de ocorrências geográficas, históricas e sociais testemunhadas pelo povo que habitou, em caráter definitivo ou temporário”. Nesse sentido, compreender a história e o significado de um topônimo não demanda somente a decodificação linguística da(s) palavra(s), mas os sentidos atribuídos a esses códigos pelos sujeitos e, ainda, o seu contexto, levando-nos a vasculhar a história desse arraial do século XVIII. Reconstruir a história dos arraiais do ouro é importante não somente para montar o leque da história regional, explicar processos históricos que forjaram a singularidade e a identidade dessa região, mas, também, para resgatar histórias que permitem valorizar o legado histórico-cultural dos lugares e de seus sujeitos, compreendendo as interrelações existentes entre sujeito e lugar. Lançamo-nos nesse desafio conscientes de que a reconstrução da história de Amaro Leite não se configura como tarefa fácil, uma vez que, na maioria dos registros, Amaro Leite é apenas citado, dando notícia de sua existência, mas não apresentando dados sobre suas condições. Sabe-se que sua origem deve-se à descoberta de lavras de ouro na região pelo bandeirante Amaro Leite, todavia sua localização foi fator dificultador da comunicação do arraial com outros arraiais da época e tal isolamento foi fator de impedimento da passagem dos viajantes pelo arraial, o que, certamente, deixaria à disposição mais registros. Segundo Botelho (2004), mesmo Pohl, que permaneceu por prolongado período na região “(...) passou a largo de Amaro Leite (...) a sua ausência revela o quão afastado encontrava-se das rotas principais de comércio e como sua população devia ter sofrido com este isolamento” (BOTELHO, 2004, p. 86).
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Na elaboração deste trabalho, as fontes consultadas foram: documentos do Arquivo Histórico Estadual de Goiás (AHE); Chorographia Histórica da Província de Goyaz e Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão pelas Províncias de Minas Gerais e Goyaz, de Raymundo José da Cunha Mattos; edições do Jornal Matutina Meyapontense entre 1830 e 1844; as narrativas orais, obtidas através do trabalho de campo nos anos de 1998, 1999 e 2001 junto aos moradores, visando a estabelecer o diálogo entre fontes escritas e orais em uma relação de complementaridade que possibilite essa reconstrução. Segundo Khoury (2001, p. 79), “nos estudos sobre algumas cidades, lembranças narradas por seus moradores auxiliaram na recuperação de outros contornos e viveres da cidade”, também no caso de Amaro Leite, de sua própria história. Nas lembranças narradas pelos moradores, vestígios de resistência e luta dos sujeitos e do lugar se apresentam por meio das memórias individuais sobre o vivido. O trabalho com as narrativas orais “(...) ultrapassam a busca pela veracidade dos fatos” (CARDOSO, 2010, p. 32), mas configura-se como um mecanismo eficaz para identificarmos as memórias subterrâneas, silenciadas em detrimento das ostentadas pelo discurso oficial. Por outro lado, além de ser um elemento para a compreensão do topônimo e de sua história, as narrativas permitem estabelecer relações mesmo que os sujeitos envolvidos nesses diálogos tenham interesses diferentes sobre o mesmo tema. Buscando contribuir tanto com os estudos da área de Linguística Histórica, através do estudo do Topônimo Amaro Leite, bem como com os estudos de História Regional e Local, abordaremos vários aspectos não somente linguísticos, mas históricos, pois, nesse processo, história e sujeito, códigos e significados estão imbricados na tessitura das narrativas do lugar e de seus sujeitos. Na sequência, apresentaremos esse contexto para posterior compreensão do Topônimo. Amaro Leite: o Bandeirante Amaro Leite Moreira, homem de seu tempo, paulista, bandeirante envolvido no processo de descobertas de novas lavras em Goiás, Mato Grosso, porém pouco sabemos sobre sua história. Fala-se que, em 1730, este coronel “preparou e levou a efeito uma expedição às margens do Maranhão e seu afluente do Araguaya (...)”, porém, somente em informações obtidas a partir de documento datado de 1761, que temos notícias de uma
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bandeira exitosa desse bandeirante. Na Memoria Justificativa dos Limites de Goyaz, de 1761, constam os sucessos da bandeira de 1736, empreendida por Amaro Leite, Balthazar Gomes de Alarcão e João da Veiga Bueno, em busca dos Araés. Amaro Leite Moreira e João da Veiga Bueno (...) marcharam ao Sudoéste até o Rio Cayapó, em que descobriram oiro, e aqui, não sei porque motivo, se desouveram os commandantes. João da Veiga se metteu no sertão, e Amaro Leite desceu em canôas, que fez pelo Rio Grande, guiado por dois índios araés até à barra do rio, a que as muitas enfermidades, que soffreram os de outras expedições fez dar o nome de Rio das Mortes, e já destroçado, subindo pela sua correntesa, descobriu ouro em pedreiras e se demorou, ainda que os guias lhe afirmassem serem as Araés muito mais abaixo. Mas devemos acreditar que esta bandeira do coronel Amaro Leite teve muito maior importância. Segundo Alencastro João da Veiga regressou a Goyaz, mas Alarcão e Amaro Leite persistiram (...). Os bandeirante de Amaro Leite passando uma ou duas invernadas de tempo nas explorações nas Campanhas além delle (Rio das Mortes) continuaram a derrota até o Rio Farto, que desagua mais abaixo da mesma ilha que se estende de 70 a 80 legoas, expediram varias esquadras de soldados na mesma diligência até o rio Paraupava que denominaram de São Pedro por se descobrirem nesse dia e se presume que faz barra naquelle acima do salto que faz antes do Rio Tocantins (...) em conclusão, o empreendimento de Amaro Leite, estendeu-se por terras além dos sertões do Rio das Mortes, notoriamente desta Capitania e marca um ponto interessante na historia da conquista das margens do Araguaya (CORREIO OFFICIAL DE GOYAZ, v.10, 1920).
Após ter percorrido os sertões por esse longo período, Amaro Leite já não tinha homens nem condições para continuar a empreitada de busca pelos Araés, então pediu socorro a Goyaz e não teve resposta. Recorreu a Cuyaba e pouco obteve, e comtudo a este titulo te ficou pertencendo esse descobrimento, feito por esta capitania, ainda que o vigário de Anta se empossou primeiro, e em quanto houve ouro continuou a fazer as desobrigações quaresmaes (CORREIO OFFICIAL DE GOYAZ, v.10, 1920).
O fervor das descobertas iniciais foi escasseando após a década de 30 do século
XVIII, porém as bandeiras continuam a ser organizadas, as buscas continuaram “(...) mas o resultado é pequeno, e cada vez menor” (PALACIN, 1976, p. 36). Por serem as descobertas o motor do processo de ocupação dos sertões, em 1750, D. Marcos de Noronha escreveu ao capitão Bartolomeu Gomes de Alarcão, parceiro de Amaro Leite nas bandeiras, que sem embargo do trabalho de onze anos que tudo ficou baldado, porque no decurso deste tempo nem Amaro Leite nem também seus
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companheiros fizeram as descobertas que se supunha, não posso deixar de mandar continuar no exame do mesmo sertão por onde até agora andou esta Bandeira, por me segurarem haverem mostras de se poderem fazer descobertas úteis aos povos e para S. Mde. Tenho resoluto que nas secas presentes torne a sair Amaro Leite com a sua Bandeira (...) (PALACIN, 1976, p. 36).
Amaro Leite não era um bandeirante independente, mas estava a serviço da Capitania de Goiás na busca por novas “descobertas”, principalmente do tão procurado Araés. Após a descoberta das lavras de Amaro Leite, arraial que levou seu nome, esse Bandeirante não logrou mais êxitos em suas expedições e morreu pobre, em 1768, sem completar sua expedição. Amaro Leite: o Arraial Em expedição pelos sertões dos Araés, o bandeirante Amaro Leite encontrou ouro na passagem de um rio que, posteriormente, foi batizado de rio do Ouro. N´este logar se formou o arraial de Amaro Leite dos Araés, que foi rico, ainda que seu ouro foi de muito baixo toque. O Capitão Thomaz de Souza o examinou depois, e ainda viu onze pedreiras que tinham dado muito ouro, e um veeiro crystal, em que se fizeram jornaes de seis oitavas por dia, affirmando-lhe alli o alferes José Pereira da Silva ter encontrado (...) (REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO. V. 12, p. 446-447)
O arraial “(...) fica ao Norte (...) do Rio do Ouro na distância de 180 passos ordinários (...)” (MATTOS, 1836, p. 152.). A data de sua fundação consta de 1742, alguns anos após o bandeirante ter saído em expedição com a finalidade de encontrar os Araés. Embora seu ouro não tenha sido de boa qualidade e a forma de extração tenha levado a sua efemeridade inicial, a mineração continua e juntamente com outras atividades econômicas, como a criação de gado, permitiu a sobrevivência do arraial. Em 1824, Cunha Mattos, em sua viagem pela Província de Goiás, registra, em seu diário de viagem, que o arraial de Amaro Leite possuía “(...) 36 casas de telhas e quatro de capim (...)” (1979, p. 119), somando um total de 40 humildes habitações; uma igreja dedicada a Santo Antônio. A igreja possuía três altares, porém, mesmo assim, foi considerada pobre por Cunha Mattos. Botelho (2004, p. 87), no texto Família e domicílios em Goiás na época da independência, mais precisamente para o ano de 1823, apresenta 134 domicílios e 850 habitantes, portanto um número bem maior que o
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apresentado por Cunha Matos, evidenciando, assim, se não uma divergência entre dados, um processo de migração do arraial. Segundo Botelho, 747 destes são homens e mulheres livres e 103 escravos, representando a última categoria 12,1% da população do local. Amaro Leite possuía uma escola pública, “(...) huma Companhia de Infantaria Miliciana. Está tem estado em tão grande abandono, que não conserva hum só Official” (MATTOS, 1836, p. 110-113; ainda, uma Companhia de Infantaria de Pardos e Juiz de Paz. Essas Companhias de Ordenanças, conhecidas ainda como Corpos Auxiliares ou Milícias, eram consideradas tropas de segunda linha e complementavam a atuação do Exército em regiões que esse não se fazia presente. A existência dessas, em Amaro Leite, justifica-se não somente por ser um arraial do ouro, mas, ainda, em função dos constantes conflitos entre moradores e indígenas, demonstrando-se, assim, preocupação com a manutenção e a segurança do arraial e de sua população, porém não mantida, seguramente, em função da mineração na região não lograr os êxitos esperados. Amaro Leite pertenceu inicialmente, ao Julgado de Traíras, como consta nos registros da Capitania de Goiás de 1809; em 1834, através de uma Lei Provincial de n. 14, de 23.07.1835, o povoado foi elevado a distrito do Município de Pilar de Goiás; em 1933, passou a pertencer à jurisdição de Uruaçu e foi emancipado em 1954. Todavia, a busca de autonomia para o arraial é bem anterior. Em 1834, encontramos, na Matutina Meyapontense, uma representação que buscava esclarecimento pela não-elevação do arraial a Julgado (...) Leo se uma representação de Jerônimo Francisco de Castilho, queixando-se de ter a Camara de Pilar de Goiás mandado, que o Juiz de Paz do Curato1 de Amaro Leite fizesse avisar aos Officiaes, e Officiaes Inferiores para procederem a nomeação do Estado Maior, o Conselho resolveo que se respondesse ao mesmo, que a Camara de Pilar tinha procedido conforme a Lei, quando exigio a remessa das Listas por isso que o Arraial de Amaro Leite não estava elevado a Julgado (...) (MATUTINA MEYAPONTENSE. ed. 597. de 15.01.1834. p. 2).
Amaro Leite foi elevado à condição de município pela Lei Estadual n. 760, de 26 de agosto de 1953, tendo sido instalado no dia 1º. de janeiro de 1954 e, em 1958, passou a ter sob sua jurisdição o distrito de Formoso – situado no atual extremo norte de Goiás 1
Curato era usado para designar povoados com as condições necessárias para se tornar uma freguesia ou um município.
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–, o que demonstra sua importância e sua expressividade na região em função de um processo minerador que não findou, mas manteve-se juntamente com outras atividades que permitiram ao distrito de Amaro Leite obter “(...) benfeitorias e equipamentos, como instalação de energia elétrica e máquinas para construção de estradas e vias públicas, o que impulsionou o desenvolvimento da região (...)” (BORGES, 2009, p. 16) e a sua emancipação. Essa expressividade não foi suficiente para Amaro Leite continuar a existir. Motivos, que buscamos elucidar em outro trabalho, levaram à fundação de uma nova localidade e à transferência dos moradores, o que proporcionou rapidamente o processo que denominamos arruinamento de Amaro Leite. A Ruína: persistências e permanências Em 1963, ocorre a transferência de sede, ficando a 5 km da antiga, e a alteração toponímica. O topônimo Amaro Leite foi substituído por Mara Rosa. A transferência datada de 1963 não ocorreu rapidamente, foi um processo relativamente lento que se iniciou com a eleição de Antônio Caldeira em 1958, conforme relatou uma simpática Senhora, em sua fala simples, mas cheia de sentimento e protesto (...) Antônio Cadera foi ganhá a inleição aqui pra mudar para Mara Rosa, foi em 1958, mudo para Mara Rosa, ai acabô (...)2. Com o processo de nomeação, Mara Rosa passa a ser territorialidade construída e definida a partir da ação humana, evidenciando que o ato de nomear não é isento de intencionalidades e faz parte das disputas de poder (FONSECA, 1997). Amaro Leite, por sua vez, passa por um processo acelerado de arruinamento, com a destruição efetiva e intencional de sua história que se evidencia de forma concreta na derrubada das casas, conforme nos informaram moradores do arraial em entrevista. Os moradores foram (...) mudano, mudiano e rancano as casas (...) foi rancano as casas e carregano (...)3. Podemos entender, a partir das narrativas construídas pelos sujeitos, que essa ação intencionava a substituição deliberada da antiga sede, o que não ocorreu em função da persistência de alguns moradores em permanecer – seis famílias quando da nossa última visita –, evitando, assim, o apagamento total dessa localidade, pois Mara Rosa tomou para si a história de surgimento de Amaro Leite como podemos constatar em todos os registros históricos posteriores à transferência. 2 3
Entrevista realizada em 1998 pela pesquisadora Dra. Maria Suelí Aguiar com moradores de Amaro Leite. Idem.
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Tal processo não implica consequência apenas no campo das ideias, nas representações, mas na vida prática das pessoas que nasceram, são naturais de Amaro Leite, assim como para as que ainda permanecem no lugar, haja vista a sua inexistência oficial e, consequentemente, o não-benefício por ações do próprio estado. O processo de arruinamento continuou nos anos subsequentes à transferência e quando da nossa primeira estada em Amaro Leite para realizar a pesquisa de campo, em 1998, conhecemos alguns dos resistentes da batalha pela permanência de Amaro Leite, que narraram, em meio a conversas descontraídas, detalhes presentes em suas memórias sobre a história do lugar e as suas próprias histórias. Em suas narrativas, indícios cheios de nostalgia para com a Amaro Leite de outrora vão sendo reavivados, como nessa fala de Dona Sebastiana, moradora do lugar (...) nesse vão zão que a senhora vê, aqui nesses pé de manga tudo era casa (...) prá li tudo era casa (...) pro lado e outro (...) daqui até lá naquele córrego (...) do lado e do outro era casa. Era rua. Chamava Rua do Baú4. Esses relatos são indícios da memória individual sobre o vivido (CARDOSO, 2010), mas contém, ainda, vestígios importantes sobre a especialidade habitada por esse sujeito. Nos diálogos estabelecidos, os moradores elaboraram narrativas plenas de subsídios reavivados de acordo com o contexto e as lutas travadas entre os diferentes espaços e sujeitos. Essas narrativas foram tomadas aqui como subsídios para compreendermos a história do topônimo Amaro Leite. As narrativas, segundo Khoury (2004), são práticas sociais, experiências vivenciadas e interpretadas que nos permitem compreender seus sujeitos e suas tramas. Ao narrar a realidade construída e vivida, acrescenta Khoury (2004, p. 131), “as pessoas estão sempre fazendo referências ao passado e projetando imagens, numa relação imbricada com a consciência de si mesmos, ou daquilo que elas próprias aspiram ser na realidade social”. Ao construir suas narrativas, os moradores se empoderam de sua capacidade de representar momentos guardados na memória que são reelaborados, ressignificados a partir de vivências pessoais e coletivas atuais, pois o passado é flexível e sensível às transformações sociais. As narrativas sobre Amaro Leite transitam por diferentes espaços, tempos e sujeitos: Amaro Leite, o homem, o arraial, a ruína e as lembranças. Todos esses elementos perpassam a tessitura desse sujeito/lugar presente na memória dos moradores e expressas através das narrativas. 4
Entrevista realizada em 1998 pela pesquisadora Dra. Maria Suelí de Aguiar com moradores de Amaro Leite.
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Nos anos posteriores, fizemos outras visitas para conversas com os moradores e fomos percebendo que o processo de arruinamento não se faz presente somente na fala cheia de emoção dos moradores, mas de forma concreta na paisagem, agora em ruínas, como podemos visualizar nas imagens a seguir.
Casa em ruína. Acervo profa. Maria Suelí. Foto tirada em 1998.
Cemitério de Amaro Leite5
Casarão em ruína. Acervo profa. Maria Suelí. 1998.
Capela de Santo Antônio
A dinâmica observada na história do lugar é bastante peculiar, não somente pelo fato da substituição intencional do espaço original, mas pela transferência da história do arraial para Mara Rosa, o que, mesmo com a permanência e a resistência de alguns moradores, levou a perdas. A perda da referência pelos sujeitos originários desse lugar, pois, a partir do momento em que Mara Rosa assume a história de Amaro Leite, esta deixa de existir. É uma perda, além de efetiva, também afetiva e simbólica. O Topônimo Amaro Leite: algumas considerações Cada topônimo é um complexo cultural linguístico que nos permite compreender linguagens, códigos, símbolos e representações da sociedade que o empregou e que, ao longo do tempo, pôde ter o seu significado substituído. No caso de Amaro Leite, tal processo não ocorreu, pois, mesmo com a construção da nova sede em 1963 e a 5
Disponível em: http://www.mararosa.com.br/noticias/o-descaso-com-o-cemiterio-da-comunidade-de-amaro-leite/.
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transferência paulatina das pessoas da primeira localidade para a segunda, ainda hoje as pessoas se referem ao bandeirante como elemento motivador no processo de escolha do topônimo. Se por um lado, em 1963, houve o interesse no apagamento da localidade, hoje ocorre uma preocupação visível com o processo de patrimonialização 6 das ruínas do antigo arraial, o que demonstra uma mudança de postura, se não da sociedade mararrosense ao menos de alguns segmentos desta em relação à localidade. O topônimo Amaro Leite, conforme a proposta taxionômica de Dick (1990b), insere-se na categoria mais ampla denominada de antropocultural. Essa categoria subdivide-se em outras dezesseis (16), sendo que, dessas dezesseis (16), o referido topônimo é um antropotopônimo. O antropotopônimo, segundo Dick (1990b), refere-se a nomes de pessoas (prenome + apelido de família). De acordo com informações que permaneceram na memória social dos moradores do local e na documentação consultada, o topônimo Amaro Leite foi uma homenagem a seu fundador, o bandeirante Amaro Leite Moreira, que empreendeu várias expedições de busca e apreensão de índios, exploração e reconhecimento geográfico pelos sertões de Goiás, fundando, por ocasião da última bandeira de que fez parte, o arraial. De acordo com Boaventura (2006, p. 7), além das expedições de Amaro Leite, várias outras que buscavam conhecer e explorar esse território, “(...) que não se sabia ainda exatamente a quem pertencia”, foram realizadas, sendo os sertões de Goiás “batizados” a partir dessas incursões. Percebemos o uso de outros topônimos para fazer referência ao arraial, no início de sua existência. Em alguns registros, como o encontrado no Correio Official de Goiás (1837 - 1921), o arraial é denominado de Amaro Leite dos Araés; outros topônimos também foram encontrados: Descuberto, Lavrinhas, Santo Antônio dos Morrinhos e Amaro Leite. Todavia, o topônimo Amaro Leite foi usado desde o início como forma designativa – reconhecida ainda nos dias de hoje –, sendo que, em alguns momentos, se usava os outros; também, para se referir ao arraial, não havendo, portanto, de acordo com a documentação consultada, um período específico de uso de cada um dos topônimos. Visando a entender o topônimo Amaro Leite, realizamos o percurso histórico desse arraial, de sua construção pelo Bandeirante que cedeu seu nome à localidade ao processo de arruinamento deste em função da construção de Mara Rosa, dinâmica essa 6
O termo é usado conforme proposto por CRUZ, Rita de Cássia. “Patrimonialização do patrimomônio”: ensaio sobre a relação entre turismo, “patrimônio cultural” e produção do espaço. Espaço e Tempo, São Paulo, nº 31, p. 95 - 104, 2012.
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que se mostra contínua na história da região ao observarmos o surgimento de novas localidades, como Amaralina, Marolândia que muito tem angariado para si da sociedade mararrosense.
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PROFESSOR FORMADOR E PROFESSOR EM FORMAÇÃO: UMA TEIA COLABORATIVA PARA APRENDIZAGENS E DESENVOLVIMENTO Maria Ilza Zirondi (UEL) Introdução Nosso objetivo, nesse artigo, é discutir como a interação entre formadores e professores em formação continuada, por meio da análise e interpretação da linguagem produzida, pode nos conduzir à compreensão dos Cursos de Formação como instrumento de formação para propiciar o desenvolvimento docente. Defendemos, assim, a tese de que a mediação formativa sobre as práticas de ensino focadas em gêneros textuais, quando utilizadas em situações de formação continuada, podem ser instrumentos para promover a construção de saberes e capacidades docentes dos professores em formação. Desta forma, a elaboração de Modelos Didáticos de Gêneros como trabalho prévio e a construção de sequências Didáticas de gêneros, aliadas às reflexões encadeadas por meio de socialização das experiências sobre trabalho, podem gerar desenvolvimento. Os dados doravante apresentados são um esboço da tese de doutorado1 (ZIRONDI, 2013) e foram pensados e coletados para/com professores das séries iniciais do Ensino Fundamental I, junto a um grupo de 20 professores da Rede Municipal de Ensino de um município próximo à cidade de Londrina/Pr. Propomos à Secretaria Municipal de Educação um projeto de trabalho, que se constituísse em investigação para o pesquisador, e para o professor formador e para os professores participantes, em formativo. Trabalho resultante da participação no projeto de pesquisa “Atividades de linguagem e trabalho educacional” (ALTED), desenvolvido na Universidade Estadual de Londrina e coordenado pela Dra. Elvira Lopes Nascimento e Tese de doutoramento defendida em março de 2013 e disponível em: http://bibliotecadigital.uel.br/document/?code=vtls000183714 1
1242
Fundamentos teóricos A base de nosso trabalho consiste em discutir sobre as relações entre a linguagem, aprendizagem e desenvolvimento humano. No quadro de nosso objeto de investigação defendemos a ideia de que os elementos externos – os signos ou sistemas de signos -, mudam fundamentalmente o funcionamento psíquico criando um novo nível do psiquismo. Como Schneuwly (2004), postulamos que o gênero de texto, ou seja, a forma que toma a atividade de linguagem em uma dada situação, é o instrumento para dominar as práticas de linguagem em uma determinada sociedade, articulando distintos sistemas e modos semióticos de produção. Essa complexidade de sistemas e modos semióticos implicam condições para o desenvolvimento de operações de linguagem necessárias às práticas de linguagem que produzem suas formas próprias discursivas, adaptadas a funções diversificadas num determinado contexto histórico, o que faz do gênero um “megainstrumento” complexo (SCHNEUWLY, 2004). Para tentar explicar essa complexa relação entre a linguagem e
o
desenvolvimento, nosso trabalho tem suas bases epistemológicas amparadas na teoria Vygotiskiana sobre o pensamento humano e, consequentemente, na Teoria Histórico Cultural (LEONTIEV, 1998; VYGOTSKY, 2001; 2002), que preconiza o fato de os fatores culturais, vinculados às manifestações sociais, propiciarem o processo de internalização. Atrelada a essa mesma perspectiva e enquanto base epistemológica do Interacionismo Sociodiscursivo, a linguagem passa a ser vista como o instrumento fundador e organizador dessas atividades socialmente contextualizadas (BRONCKART, 1999; 2006; 2008). Portanto, são as ações verbais e não verbais de um agente produtor que se transformam no instrumento ou ferramenta simbólica que promovem o desenvolvimento humano em meio às interações sociais. Além do quadro teórico do ISD para tratar das questões relacionadas à análise dos textos/discursos em seus níveis: semântico, enunciativo e organizacional (MACHADO E BRONCKART, 2009; BULEA, 2010), outros autores e aportes se fizeram necessários, tais como: a noção de desenvolvimento real e proximal (ZDR e
1243
ZDP), instrumento e mediação em Vygotsky (2001/2002); o trabalho voltado ao ensino de gêneros na escola, o de construção/elaboração de sequências didáticas e o desenvolvimento das Capacidades de Linguagem com Schneuwly e Dolz (2004); sobre o trabalho do professor (MACHADO, 2004, 2009, 2011) dentre outros. Metodologia Uma das principais questões que norteia nossa pesquisa consiste em saber quais os agires das professoras durante o processo de trabalho coletivo e individual da sequência didática em relação: a) à organização externa (situação de produção para o desenvolvimento das Capacidades de Ação que contemplem a mobilização de operações psíquicas sobre o contexto); b) à
organização interna para o desenvolvimento de
Capacidades Discursivas e Capacidades Linguístico-Discursivas que contemplam a mobilização de
operações psíquicas sobre a
organização do discurso; c) às
características apontadas pelo Modelo Didático; d) às concepções de linguagem; d) aos saberes e às capacidades docentes. Para responder a essas questões, nossa pesquisa, de cunho qualitativo, insere-se no campo da pesquisa social que provém da tradição epistemológica de caráter interpretavista. Para coletar os discursos, foco de nossas análises, fez-se necessário que o pesquisador se colocasse como mediador de uma intervenção formativa, realizando, assim, uma pesquisa ação na qual desempenha uma dupla função de caráter mais ou menos complexo: de um lado, elabora e executa o Curso de Formação, agindo sobre e no contexto e, de outro, observa, descreve, analisa e busca interpretar não só as ações discursivas dos professores em formação, mas o seu próprio agir discursivo, enquanto professor formador em formação. Neste trabalho coletivo, portanto, buscou-se fundar, não só o estabelecimento de confiança entre as partes, segurança em relação às promessas acordadas na apresentação do projeto, mas, principalmente, uma identidade. Colocando-se como parte do grupo, o objetivo foi estabelecer uma relação de familiaridade, fidelidade, afetividade e respeito às dificuldades e às diferenças existentes.
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Para responder às perguntas de pesquisa e aos objetivos propostos para a busca de comprovar (ou não) nossa tese, expressamos os movimentos de nossa pesquisa na figura a seguir: Figura 1: Movimentos da pesquisa
SOCIALIZAÇAO DAS EXPERIÊNCIAS
ATIVIDADES INTERNAS E EXTERNAS AO CURSO DE FORMAÇÃO
MODELOS DIDÁTICOS DE GÊNEROS
SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS
Pensando nesses critérios, elaboramos e executamos o cronograma, cujas atividades ocorreram praticamente durante todo o ano de 2011. A partir de março iniciamos as oficinas, nas quais os encontros ocorreram na sede da Secretaria de Educação do Município, no período das 17h30min às 19h00min, todas às quartas-feiras úteis dos meses entre março e setembro, com exceção do mês de julho, período de recesso escolar. Os encontros individuais passaram a acontecer a partir do momento em que as professoras iniciaram o projeto individual do Modelo Didático do Gênero (MDG) escolhido. A organização metodológica do CFC foi determinante para a coleta e seleção dos dados a serem analisados. Para isso, utilizamos diferentes instrumentos como: questionário, gravações, atividades, tarefas, entrevistas. Para as análises foram realizados levantamento dos movimentos temáticos dos textos das transcrições. Para definir os temas e subtemas, buscamos na interação dos textos e na distribuição dos turnos de fala, segmentos que de um lado introduzem um tema, geralmente, pelo formador (Seguimento de Orientaçao Temática – SOT) e, de outro, como esse segmento é “tratado”, principalmente, pelos professores em formação e retomado pelo formador
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(Seguimentos de Tratamento Temático – STT), no qual os interactantes buscam reformular, questionar, particularizar, exemplificar ou focalizar um aspecto considerado importante (BRONCKART, 2008; BULEA, 2010). Para interpretar a ação dos sujeitos envolvidos na pesquisa, o ISD propõe que nos utilizemos de uma metodologia compreensiva/interpretativa das produções verbais efetivamente realizadas (MACHADO, FERREIRA E LOUSADA, 2010 e 2011). Para isso, as referidas autoras propõem uma ficha de análise para “detecção das representações (reconfigurações)” que podem ocorrer em três momentos com configuração descendente/ascendente: 1º Momento: de “entrada” dos textos, ocorre sem que se tenha que proceder à análise do texto e se refere aos aspectos interacionais e contextuais da ação de linguagem, mais especificamente, às condições de produção de um texto; 2º Momento: Inicia-se com o texto propriamente dito e os aspectos relativos à visão de conjunto dos textos em análise, os três estratos do folheado textual; 3º Momento: os procedimentos se constituem na detecção das funções sintáticosemânticas dos sintagmas nominais que permitem reconhecer os principais actantes em cena e as ações que realizam no plano motivacional; das intencionalidades; dos recursos para agir. Em nossas análises dos dados coletados, introduzimos outras figuras de ação de acordo com os segmentos de discurso construídos através da interação do Curso de Formação Continuada. Paralelamente, analisamos segmentos do texto que ora dizem respeito ao formador, ora se refere aos professores em formação. Como a proposta de interação partiu do formador, por uma questão metodológica e de clarificação dos dados interpretados, às figuras de ação encontradas chamamos de figuras de ação-proposta, pois buscam a responsividade ativa do interlocutor e às que buscam “responder”, entendo-se aqui, o termo como o diálogo entre os interactantes, denominamos como figuras de ação-resposta. A desconstrução e descrição genérica do Curso de Formação Continuada Nesse tópico, buscaremos, dar uma mostra, da desconstrução e descrição do Curso de Formação Continuada. Partimos, primeiro, da segmentação do curso em temas
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gerais que envolvem sempre uma tentativa de adesão dos participantes, o que, a nosso ver, se constitui como a incursão física e subjetiva (parâmetros físicos e subjetivos, BRONCKART, 1999) para uma ação de linguagem. Consideramos física, pois é necessária a participação ativa desses agentes (vinda aos encontros semanais e a permanência durante o curso) e subjetiva, porque é necessário que esses mesmos agentes tenham o desejo, a vontade, o interesse em manter-se filiado ao grupo. Segundo, o que chamamos de subtemas são as ações empreendidas tanto pelo professor-formador em formação quanto pelo professor-em-formação. Por meio dos registros escritos e do áudio, identificamos as principais ações efetuadas por ambos os participantes, o que, a nosso ver, corresponde justamente às categorias de análise do agir (BULEA, 2010). A partir delas, a esse terceiro grupo, atribuímos a denominação de ação-proposta e ação-resposta. Como proposta, temos um formador que, amparado por instituições legais (no caso a Universidade e a Secretaria da Educação), busca a adesão dos participantes, por meio, também, de vozes de autoridades e dos pré-requisitos de sua formação. A figura de ação-ocorrência (BULEA, 2010) apresenta inicialmente um agir que busca, além de qualificar o formador, criar uma imagem respeitável e de confiança, a partir do uso de figuras de autoridade como “UEL”, “Professora Y”, “Bronckart”, “Anna Rachel Machado”, “Vygotsky” e figuras de confiança como “também sou professora”, “assessorando há mais de três anos”, “especialização”, “mestrado”, “projeto de pesquisa”. Ao utilizar esses recursos há uma tentativa de, por um lado, angariar a simpatia e adesão das professoras em formação e, de outro, conquistar o respeito e a confiança sobre aquilo que está se propondo a fazer. Assim, ao mesmo tempo em que se “autocontextualiza”, acaba por contextualizar toda a situação de enunciação que doravante passa a existir. Além disso, o agente retira de seu passado “histórias” que têm um caráter ilustrativo, trata-se de episódios que, no caso, o formador, os utiliza a fim de ilustrar o que diz na intenção de fazer-se compreendido. A oralidade do relato se encaixa no discurso interativo. Isso demonstra que as experiências apreendidas pelo actante durante a sua formação se constituem como um fator determinante para o curso. Os episódios apresentados são escolhas realizadas de acordo com essa vivência, por isso, tem caráter
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particular, individual, mas quando inseridas no contexto passam a integrar as vivências dos interactantes e são passíveis de avaliações, aceitação/assimilação e/ou rejeição. A ação-experiência (BULEA, 2010)
também se encontra encaixada ao
discurso interativo. A ação-experiência revela características próprias do fazer do actante. O processo de enumeração das diferentes atividades, também, acaba por se constituir como um recurso para demonstrar o quanto o actante domina em relação aos conteúdos, o que, talvez, espera que impressione os interactantes e os faça aderir ao projeto. O quadro a seguir representa os aspectos que configuram esses elementos: FIGURAS DE AÇÃO PROPOSTA
Definição
Função
Tematização Agentividade
AÇAOOCORRÊNCIA Constitui uma compreensão do agir - referente como contíguo à sua textualização. Segundo Bulea (2010) caracteriza-se por “um fortíssimo grau de contextualização no sentido de que sua construção mobiliza intensamente elementos disponíveis no entorno imediato do actante”.
AÇAOACONTECIMENTO PASSADO Constitui uma compreensão retrospectiva do agir, ainda que não esteja situado na relação de contiguidade com a situação de sua textualização, pode preservar um caráter que se destaca, considerando a experiência ou a prática ordinária do actante (BULEA, 2010).
AÇAOEXPERIÊNCIA Constitui uma compreensão do agir-referente sob “o ângulo da cristalização pessoal de múltiplas ocorrências vividas do agir e propõe uma espécie de balanço do estado atual da experiência do actante em relação à tarefa concernente” (BULEA, 2010).
Compreensão do agirreferente sob “o ângulo da cristalização pessoal de múltiplas ocorrências vividas do agir e propõe uma espécie de balanço do estado atual da experiência do actante em relação à tarefa concernente” . Contextualização da situação de comunicação
Utiliza-se a fim de ilustrar o que diz, na intenção de fazer-se compreendido.
Ilustração para a contextualização
Repetição de tarefas em situações diversas que são recontextualizáveis pois, a configuração geral na qual se realiza, construída e assumida pelo actante são adaptáveis a diferentes contextos de apresentação Ilustração para Contextualização
Implicação dos parâmetros físicos de ação de linguagem (meu, eu e os verbos e outros segmentos do texto que se referem ao agenteprodutor)
Marcas linguísticas de primeira pessoa eu e nós e marcas do discurso indireto com ela, ele/ eles etc
Rompe com a enunciação até então contextualizadora e passa a relatar numa sequência lógica os acontecimentos experienciados (eu)
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Verbos
Tipos de discurso
Verbos do presente 1ª p. singular (sou, trabalho, to, estudo)
Discurso interativo (conjunção– mundo do expor)
Unidades Representativas dos verbos do dizer (ela fala fala/conta - discurso indireto) e (achei, temos, vou, vamos, retomamos, deveríamos, incursão dos parâmetros físicos de linguagem. Discurso interativo (conjunção – mundo do expor)
Quadro 1: Figuras de ação-proposta
As formas do pretérito imperfeito (trabalhava, havia, íamos, necessitava) marcam a disjunção em relação ao momento de fala. Relato interativo encaixa ao discurso interativo (mundo do narrar e expor, respectivamente.
Podemos interpretar que esses elementos podem ser subtendidos como um esforço em se obter o respeito e a confiança pretendidos, uma vez que se relacionam à duração do evento e à necessidade envolvimento dos participantes. Já, para as figuras de ação-resposta, também agrupadas em subconjuntos, aferimos outros nomes como sugeridos pelos subtemas. Assim, o silêncio marca uma etapa de introdução a interação que começa a se estabelecer. O agir-proposta, assim, se constitui como um agir orientado a busca de entendimento mútuo, o silêncio, nesse caso, pode caracterizar-se como um distanciamento, um processo avaliativo das propostas e das intenções que podem ser validadas ou não. A questão das anotações enquanto um dos subtemas, pode se constituir como recurso de implementação de normas para o Discurso que começa a se estabelecer. Essas normas conferem caráter de regras que passam a regular a situação de comunicação, por isso a necessidade de registrá-las. O silêncio e as anotações cujas expressões faciais são enigmáticas podem se constituir como uma ação muito importante, à medida que propiciam uma leitura, embora impressionista, de muitos aspectos avaliativos da interação – por exemplo, um menear de cabeça que pode significar uma confirmação ou uma negação; bocejos como indicação de uma situação entediante; um erguer de sobrancelhas como dúvida ou desconfiança; assim como, a forma de se sentar, cruzar os braços, olhar para os lados, levantar e/ou sair do recinto que conferem impressões sobre o andamento do discurso. Ao externar gestos, isso revela que, sutilmente, os sujeitos envolvidos estão refletindo sobre os acontecimentos, uma vez que, a partir desse momento, também passam a integrar suas experiências. O discurso é descentrado do locutor (formador),
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lançado para os textos que achou condizentes, pois ilustram suas experiências e propõe uma reflexão em que o interlocutor tem que relacionar o seu Discurso a esses outros que “intrometidos” se interrelacionam formando um todo de sentido. Como subtemas da ação-vivência, relacionamos a execução de tarefas e o depoimento. A execução de tarefas ocorreu em silêncio. A proposta era a de que a partir do que havia sido dito até o momento, as professoras em formação desenhassem uma árvore. Ao pensar sobre como poderiam desenhar essa árvore, as vivências foram se manifestando, resultando em diferentes desenhos de um mesmo objeto. Já, o depoimento se constituiu em um determinado momento do Discurso, no qual o professor-formador em formação solicita dos participantes que relacionem a árvore que desenharam à sua própria vida, à formação que tiveram. Como podemos observar, a professora, embora não mencione abertamente, demonstra que a árvore pode ser comparada às suas vivências que mesmo sendo únicas passam por um processo de altos e baixos em um recomeçar constante. O quadro a seguir sintetiza as ocorrências das figuras de ação resposta:
FIGURAS DE AÇAO RESPOSTA
Definição
Função
Tematização
AÇAOPASSIVA
AÇAOREFLEXÃO
A formalidade da situação e por ainda não se ter estabelecido uma relação de atividade comunicativa intensa e mútua e devido às relações de poder estabelecidas. Manter distanciamento, um processo avaliativo das propostas e das intenções que podem ser validadas ou não
Sob o julgo de avaliações, os subtemas silêncio e expressões faciais e gestos, caracterizam, por se referir aos comportamentos cometidos durante a ação-acontecimento passado. Externar gestos que sutilmente revelam que os sujeitos envolvidos estão refletindo sobre os acontecimen-tos
Contextualização da situação de comunicação proposta silêncio e as anotações – que também ocorrem
Contextualização da situação de comunicação proposta silêncio e as anotações
AÇAOVIVÊNCIA O resgate de algumas vivências, mas que pelo fato de não terem se repetido, ainda não se tornaram experiências.
Contextualizadas e aplicadas em um momento e contexto específico, diferente da açãoexperiência que vão sendo recontextualizadas, pois são aplicáveis a cada contexto particular. Contextualização da situação de comunicação proposta Uso de unidades linguísticas dêiticas (você,
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Agentividade
Verbos
Tipos de discurso
em silêncio – são acompanhados por expressões faciais e gestos
são acompanhados por expressões faciais e gestos
Não há.
Não há.
Silêncio pode repercutir no discurso interativo produzido na proposta
Silêncio pode repercutir no discurso interativo produzido na proposta
Quadro 2: Figuras de Ação-resposta
comigo, minha, essa)
Uso dos verbos no pretérito perfeito (falou, fiz, foi) em alternância com os verbos do presente (tem, são, nascem, caem, e’). Discurso interativo (conjunção e implicação)
As vivências expostas se caracterizam por uma “compreensão do agir-referente sob o ângulo da cristalização pessoal de múltiplas ocorrências vividas do agir e propõe uma espécie de balanço do estado atual da experiência do actante em relação à tarefa concernente” (BULEA, 2010). Consideramos, assim, que a ação-vivência seria o resgate de algumas vivências, mas que pelo fato de não terem se repetido, ainda não se tornaram experiências. À medida que vão se relacionando com o Discurso, essas vivências vão sendo contextualizadas e aplicadas nesse momento e contexto específico, diferente da ação-experiência que s vão sendo recontextualizadas, pois são aplicáveis a cada contexto particular. Em outras palavras, enquanto a ação-experiência é utilizada em diferentes contextos e aplicável a diferentes discursos, a ação-vivência se restringe àquele contexto em particular, àquele momento propriamente dito. Assim, a conjunção e implicação do actante na interação demonstra que o Discurso inicia o recebimento de validação, pois começa a inserir valores culturais nessa interação, o que ultrapassa o caráter normativo do inicio, quando são registrados apenas silêncios, expressões faciais e gestos. Considerações Finais Consideramos que os interactantes do Curso de Formação estejam “entrando” no processo interativo que corresponde à formação, pois constitui, a nosso ver, uma primeira fase, a do contato inicial em que, de um lado, o formador busca contextualizar o curso e angariar a adesão dos participantes e, de outro, esses participantes que avaliam em silêncio a proposta antes de aderi-la. Nessa etapa, todos os participantes se veem
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individualizados, pois, a princípio, os interesses de cada um e o ponto de vista se diferem e, talvez, nem se relacionem. Portanto, há consciência de que todos têm interesses individuais a perseguir, avaliação que gera tensão e conflitos. As atividades linguageiras, expressas em textos, constituem-se como unidades comunicativas globais, cujas propriedades dependem da interação e dos aspectos contextuais que as evolvem. Por isso, a necessidade de se analisar os signos linguísticos produzidos, as relações predicativas que organizam as falas e, consequentemente, o pensamento, além das propriedades dos tipos de discurso, pois esses revelam como se constituem os tipos de raciocínio a busca de desenvolver o pensamento consciente. Referências bibliográficas BULEA, Ecaterina. Linguagem e efeitos desenvolvimentais na interpretação da atividade. Trad. Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin, Lena Lúcia Espínola Rodrigues Figueirêdo. – Campinas, SP: Mercado das Letras, 2010. BRONCKART, Jean-Paul. Atividades de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. Tradução Anna Rachel MACHADO; Péricles CUNHA. São Paulo: EDUC, 1999. _____ Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Organização MACHADO, Anna Rachel e MATÊNCIO, Maria de Lourdes Meirelles; tradução MACHADO, Anna Rachel e MATÊNCIO, Maria de Lourdes Meirelles [ET all.]. – Campinas, SP: Mercado das Letras, 2006. _____. O agir nos discursos: das concepções teóricas às concepções dos trabalhadores. Trad. Anna Rachel Machado; Maria de Lourdes Meirelles Matencio. – Campinas, SP: Mercado das Letras, 2008. LEONTIEV, Alexis N. Uma contribuição à Teoria do Desenvolvimento da Psique Infantil. Org.: VYGOTSKY, Lev; LURIA, Alexander; LEONTIEV, Alexei. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. Trad. De Maria da Penha Villalobos. São Paulo: Ícone, 2001, p.59-82. MACHADO. A. R. O ensino como Trabalho: uma abordagem discursiva. Londrina: Eduel, 2004. MACHADO, A. R; BRONCKART, J. P. (Re)Configurações do trabalho do professor construídas nos e pelos textos: a perspectiva metodológica do grupo ALTER-LAEL. In: MACHADO, A.R. et al. (Org.). Linguagem e educação: o trabalho do professor em uma nova perspectiva. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2009.
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O QUE PODE E O QUE NÃO PODE: A INTERDIÇÃO DA PALAVRA NOS DISCURSOS PUBLICITÁRIOS Maria Leuziedna Dantas (IFPB) Introdução A sociedade de outrora e hodierna sempre foi demarcada pelas formas de interdições discursivas nas produções de subjetividades e objetividades, sendo então objeto temático para a Análise do Discurso (doravante AD) que considera pertinente a busca pela compreensão das formas de mecanismos de controle do dizer, as singularidades e regularidades que se apresentam nos enunciados produzidos sóciohistoricamente. Partindo disso, este trabalho tem o intuito de analisar duas campanhas publicitárias, tendo como suporte os relatórios apresentados pelo CONAR (Conselho Nacional de Autorregulação da Propaganda Publicitária), uma organização não governamental que julga as denúncias de consumidores, autoridades, associados ou integrantes da própria diretoria, sobre anúncios publicitários veiculados, sendo de sua responsabilidade recomendar alteração ou suspensão dessas peças. A partir dos fundamentos de Foucault (2008,1998) sobre interdição, ordem, saber, poder, formações discursivas, elementos essenciais nas produções de subjetividades, nos posicionamos diante da tarefa de entender como as linguagens materializadas fazem sentido e que relações sociais são construídas pelos mecanismos de controle da palavra dita ou silenciada. Abordar a mídia como objeto de investigação enriquece os estudos de linguagem distanciadas dos aspectos internos da própria língua, assim como afirma Courtine (2009, p.30) “o discurso é pensado como uma relação, uma correspondência entre língua e questões que surjam no exterior desta”. Desta forma, a AD rompe com a perspectiva saussuriana e seu método de estudo imanente da língua, para sobrepor uma visão em torno da historicidade, importando aqui, como são produzidos os discursos dos sujeitos e seus sentidos materializados na linguagem.
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1 A ordem do discurso e os mecanismos de exclusão Existem, em nossa vida diária, procedimentos de exclusão que regulam nossas interações discursivas, a partir de dispositivos como a interdição manifestada pelas relações de poder. Para Foucault (2008, p.9) em sua aula inaugural pronunciada no College de France “não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa.” Com essas palavras, este filósofo situa a interdição como forma de controle que se desloca entre repressão e estimulação das subjetividades. A interdição é explicada a partir da delimitação do discurso, numa espécie de engrenagem que seleciona e organiza os dizeres, a partir dos mecanismos de poder, determinando-os como verdadeiros ou falsos. Esses mecanismos de poder se relacionam e constroem as formas de saber disciplinador de sujeitos, seja de forma docilizada ou reversiva. A primeira forma de controle excludente dos enunciados discursivos é o tabu do objeto cujo princípio básico reside na ideia de que não se pode falar de tudo. Para o autor, os temas que mais se destacam desta ordem do discurso diz respeito às matérias de sexualidade e política. Essas matérias causam inquietação, por isso buscamos entender o questionamento foucaulteano: O que há de tão perigoso nos discursos? Para entender esse questionamento, passamos a encarar o sujeito não como sendo dado, mas construído historicamente, devido a sua imersão nas práticas discursivas, que se organizam em seleções de dizeres e não dizeres manipulados pelo jogo de poder típicos das relações sociais. O ser humano sujeito, está em um mundo, em um jogo de relações, o seu dizer não é inédito, único, totalmente singular. A sua singularidade está no assujeitamento desenvolvido pelas práticas de linguagem e que por isso é interpelado em todos os ângulos, demarcando inconscientemente seus enunciados. O segundo processo que produz subjetividades, diz respeito ao ritual da circunstância que é “não se pode falar de tudo em qualquer circunstância” (FOUCAUL, 2008, p. 09). Com base disso, questionamos: O que determina certos dizeres em detrimentos de outros? Para o autor a ordem do dizer está inscrita no ritual da circunstância, condição essencial para produzir discursos, determinando o que pode ser dito ou não para os sujeitos. Essa ideia de circunstância permite entender que há tantas significações possíveis quantos contextos possíveis. Vivemos em circunstâncias
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históricas, os sentidos são produzidos em contexto, e mesmo aqueles travados ao longo do tempo não são estáveis. O terceiro se refere ao direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala (não se tem o direito de dizer tudo). Sobre este posicionamento, Foucault (2008, p.9) afirma que “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo”. Navarro (2004, p.113) ao fazer uma leitura de Foucault responde que ser protagonista do discurso não é condição para qualquer sujeito. “É preciso, antes, que lhe seja reconhecido o direito de falar, que fale de um determinado lugar reconhecido pelas instituições, que possua um estatuto tal para proferir discursos”. Esses mecanismos explicitados dizem respeito às formas externas de produção de enunciados, que são abordadas pela AD conforme a posição apresentada por Gregolin (2004, p.26): Porque o que torna uma frase, uma proposição, um ato de Iinguagem em um enunciado é justamente a função enunciativa- o fato de ele ser produzido por um sujeito, em um lugar institucional, determinado por regras socio-historicas que definem e possibilitam que ele seja enunciado.
A função enunciativa implica também em procedimentos internos como formas de exclusão, pondo em jogo o poder e o desejo tais como o comentário, o autor e a disciplina, essenciais na constituição do dizer. (FOUCAUL, 2008). O comentário entra em cena na prática discursiva como forma de repetição, constituindo característica heterogênea na perspectiva de apontar a presença de outro, na voz daquele que aparentemente parece ser única. Foucault (2000, p. 28) assevera que: (...) todo discurso manifesto repousaria secretamente sobre um já dito; e esse já dito não seria simplesmente uma frase já pronunciada, um texto já escrito, mas um „jamais–dito‟, um discurso sem corpo, uma voz silenciosa como um sopro, uma escrita que não é senão o vazio de seu próprio rastro.
Nesse sentido, o discurso, como heterogêneo permite entender o que a história produz e é produzida pelas memórias discursivas, fazendo aparecer uma noção de interdiscurso. Ele representa os fragmentos de elos que formam cadeias discursivas, aproximando os textos um dos outros.
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Entendemos que as palavras compõem um fio de redes tecidas com o apoio de outras palavras representativas de vozes que retomam outros modelos, outros ditos e assim permitem montar o pano de fundo no qual imerge o grande discurso da humanidade. Segundo Achard (1999, p.51) “essa memória não pode se entendida não no sentido psicologista da „memória individual‟, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, social inscrita”. De acordo com AD, o papel da memória não consiste em retomar obviamente frases meramente desconectadas de uma rede produtiva de sentido, mas, sobretudo abordar uma cadeia de implícitos mediados pela regularização, como em um jogo de forças que se unem ou se embatem. Entram também no cenário da interdição o autor e a disciplina como procedimentos coletivos do fazer discursivo, indicando que os sentidos instalados se projetam na novidade do acontecimento e não no que é dito, de uma forma relacionada aos limites disciplinares que estão postos na sociedade em onde está inserido o autor. O autor, não entendido, é claro, como indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência. (FOUCAULT, 2008, p.10)
Isto nos leva à compreensão de que um texto resulta de uma infinidade de outros, para que possamos entender como a discursividade constitui os sujeitos, problematizando a interpretação dos sentidos, a partir de uma microfísica de poder que se instala nessas produções, conforme afirma Foucault: (1998, p.8) “O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, forma saber, produz discurso”. O poder é aqui compreendido não apenas como circunstância de rebelião, mas, sobretudo como uma força que produz saberes dentre das regras da sociedade disciplinar que o materializam através das formas que regulam o corpo, num circuito de repetições, sob a mira do olhar vigilante, modelando os sujeitos configurados no tempo e no espaço. Entendemos que o poder não está apenas nas representações estatais, ele está em toda parte a partir das subordinações do cotidiano, entretanto apesar da disciplinarização
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não é absolutamente permanente, é possível uma reelaboração, por isso há o embate constante entre lutas e resignações. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza e um bem. O poder funciona e se exerce em rede. (Ibid.1998, p.183)
O embate do poder é possível dada à natureza do circuito das redes que o mobiliza, numa sociedade caracterizada pela constate disputa de posições seja para recusá-lo ou repeti-lo, numa batalha que é, sobretudo, histórica. A metáfora das redes nos faz interpretar as diversas formas de captação e ligação das subjetividades pela sociedade de controle, por isso consideramos a mídia um mecanismo produtor de identidades através da sua materialidade discursivamente híbrida, conforme advoga Gregolin (2007, p. 50) “O trabalho discursivo de produção de identidades desenvolvido pela mídia cumpre funções sociais básicas tradicionalmente desempenhadas pelos mitos - a reprodução de imagens culturais, a generalização e a integração social dos indivíduos”. Portanto, fica claro que a mídia é um dos principais veículos de difusão e reprodução de identidades comportamentais, fabricando efeitos de sentidos provenientes de saberes sedutores e ludibriantes. 2 A palavra interditada na produção discursiva da mídia Como corpus de análise, estabelecemos uma leitura de campanhas publicitadas interditadas pelo CONAR em 2012 e 2013, (i)campanha Axe - prateado e preto (ii) Axe - duas gostosas e um sortudo. As campanhas exploram a discursividade temática da sexualidade, região ainda encarada como tabu passível à interdição pela sociedade disciplinar, seja através das instituições regulamentadoras como o CONAR1 e o Ministério Público ou mesmo pelo próprio sujeito social, a partir das relações estabelecidas pelo micropoderes.
CONAR é uma organização não-governamental que visa promover a liberdade de expressão publicitária e defender as prerrogativas constitucionais da propaganda comercial. Seu objetivo consiste no atendimento a denúncias que são julgadas pelo Conselho de Ética, com total e plena garantia de direito de defesa aos responsáveis pelo anúncio. Quando comprovada a procedência de uma denúncia, é sua responsabilidade recomendar alteração ou suspender a veiculação do anúncio.
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Segundo o relatório2 da campanha (i) consumidoras do Rio e Niterói (RJ), Salvador e Feira de Santana (BA), São Paulo e Franca (SP), Belo Horizonte (MG), Parobé (RS) e Fortaleza (CE), num total de treze e-mails, queixaram-se ao Conar contra campanha em mídias sociais do desodorante Axe. Elas consideram o anúncio desrespeitoso e machista ao afirmar que, usando o produto, "você começa a acumular mulheres". O anúncio é ilustrado com uma foto de um homem cercado por algumas dezenas de jovens e belas mulheres usando biquíni, em poses eróticas.
Figura 1- Axe prateado e preto3. Com base neste relatório, a campanha sofreu alteração de acordo com o Artigo do Código de ética, referente à matéria de respeitabilidade, ao afirmar que toda atividade publicitária deve caracterizar-se pelo respeito à dignidade da pessoa humana, à intimidade, ao interesse social, às instituições e símbolos nacionais, às autoridades constituídas e ao núcleo familiar. O relator não julgou condenável a imagem apresentada ou o apelo, mas sim o termo "acumular mulheres". Seu voto, pela alteração, foi aceito por unanimidade. O discurso verbal e não verbal da peça publicitária produz uma subjetivação em torno da identidade masculina e feminina. Observamos através da interdição da palavra, uma luta entre as manifestações discursivas, gerando um embate entre uma sociedade que coisifica a mulher, como objeto de desejo masculino, e ao mesmo tempo, outra ala
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Disponível em: http://www.conar.org.br/ Disponível em: http://consumoepropaganda.ig.com.br/index.php/ 2012/09/19/axe-tera-de-mudaranuncio/ Acesso em: 20 de maio de 2014. 3
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que tenta desfazer esta subjetivação, apresentando uma discrepância quanto aos saberes instalados, através da censura. A mídia se apresenta como importante veiculadora de reprodução e produção de identidade. Observamos como a imagem veicula valores que permeiam o comportamento masculino viril, cujo objetivo maior é cultuar a figura do macho que domina as fêmeas. A imagem retoma a memória discursiva de um solário, os corpos cultuados são perfeitos magros e bronzeados, ratificando uma ideia foucaulteana (1998,147) “Como resposta à revolta do corpo, encontramos um novo investimento que não tem mais a forma de controle repressão, mas de controle estimulação, fique nu, mas seja magro, bonito e bronzeado!”. O texto “acumular mulheres” retoma também, através da memória e da instauração histórica, os ditames da sociedade patriarcal sob a qual se primava acumular bens e riquezas, o que, na propaganda, é subvertido pela imagem da mulher. Sabemos que o patriarcalismo é caracterizado pelo sistema de dominação, envolvendo as dimensões da sexualidade, da relação de gênero entre homem e mulher no contexto de escravidão. As mulheres eram submetidas ao homem, seu senhor e detentor do poder. Sob a chefia administrativa do patriarca, os bens materiais e as propriedades se mantinham para conservar a fortuna do clã. A ideia de apropriação da mulher objeto imersa numa rede de poderes que criam a sujeição presente, foi interditada pelo saber legislativo do comitê de ética, influenciado pelos micropoderes do cotidiano. Entretanto apesar da palavra escrita ter sido silenciado, a imagem verbal chama mais atenção entre os elementos não verbais tais como o cenário descontraído, com corpos em posições sexuais, ao redor de um homem satisfeito, materializando a discursividade de um hárem, que retoma a memória discursiva de um palácio ou casa muçulmana onde se instalam mulheres inferiorizadas e subordinadas ao fetiche masculino. Através dos dispositivos de análise da AD diante da materialidade linguística, podemos dizer que esta imagem verbal prevalece na produção de subjetividades na sociedade pós-moderna, mesmo sem a expressão “acumule mulheres”. O saber veiculado pela imagem determina o que pode ser dito de acordo com os efeitos de sentido que o segmento visa projetar sobre o sujeito. Na imagem mulher, observamos o jogo da sedução, através do comportamento inibido, distanciado de dogmas morais e
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religiosos. Imagem esta que se repete de acordo com a campanha (ii) Axe - duas gostosas e um sortudo.
Figura 2- Axe - duas gostosas e um sortudo4 Segundo relatório do CONAR em 2013, uma consumidora enviou e-mail denunciando haver desrespeito às mulheres e apelo excessivo à sensualidade em filme promovendo o desodorante Axe, veiculado em mídias sociais. Nele, duas moças em trajes sumários se massageiam e passam a despir um homem vendado enquanto aspergem o desodorante no corpo dele. A relatora concordou com o teor da denúncia e propôs a sustação agravada por advertência à Unilever, voto aceito por maioria. Ela não aceitou a linha da defesa, segundo a qual a linguagem do anúncio era bem-humorada e em sintonia com a linha de comunicação do produto. Diante do exposto indagamos: o que permite o dizer e o não dizer numa materialidade como essa? A campanha foi sustada porque veiculava um saber que fere a circunstância social, com uma linguagem sensual. O momento sócio histórico produz um saber de uma sociedade pós-moderna que não é bígama, ferindo a ordem e moral, estabelecida pelo discurso da verdade sustentada pela instituição e pelo micro-poder, conforme afirma Silva (2004, p.160): “O poder não mais localizável, mas multidirecional, espalhado como micro-poderes - grãos de poderes na mesa do social”. Portanto, a produção da verdade se constrói em torno do poder que gera o saber, fazendo calar tudo o que está lhe parece contrário através da interdição.
Disponível em: http://exame.abril.com.br/marketing/noticias/8-campanhas-publicitarias-que-foramparar-no-conar-em-2013#9. Acesso em: 20 de maio de 2014.
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Conclusão As análises das peças publicitárias, sob o olhar da AD, revelaram que a produção da subjetividade se desenvolve através das relações de saber e poder, advindas dos procedimentos disciplinares estabelecidos no cotidiano das pessoas. Nossos dizeres são perpassados pela memória discursiva, reproduzindo significados que atravessam o tempo e ao mesmo tempo, podem ser figurados num embate ideológico, que renuncia o dito a fim de construir novas significações permitidas pelo viés histórico. A interdição é uma forma de censura do dizer, fundamentado pela técnica do saber, veiculado na mídia para produzir identidades. Observamos que essa construção da subjetividade é palco de luta entre as manifestações discursivas, gerando um embate entre uma sociedade que coisifica a mulher, como objeto de desejo masculino, e ao mesmo tempo, outra ala que tenta desfazer esta subjetivação, apresentando uma discrepância quanto aos saberes instalados, através da censura. Referências ACHARD, P. et al. Papel da memória. Tradução e introdução: José Horta Nunes. 2. ed. Campinas, São Paulo: Pontes, 1999. CONAR. Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária. Disponível em: http://www.conar.org.br. Acesso em: 21 abr. 2014. COURTINE, Jean-Jacques. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos: Edufscar, 2009. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 15. ed. São Paulo: Editoras Loyola, 2008. _______. Microfísica do poder. 13. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal,1998. GREGOLIN, Maria do Rosário Valencise. Discurso, história e a produção de identidades na mídia. In: FONSECA-SILVA, Maria da Conceição; POSSENTI, Sírio (orgs.). Mídia, rede e memória. Vitória da Conquista/BA: Editora UESB, 2007. _______ O enunciado e o arquivo: Foucault (entre)vistas. In: SARGENTINI, Vanice; NAVARRO-BARBOSA, Pedro (Org.). Foucault e os domínios da linguagem: Discurso, poder e subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004. p. 23-44. Navarro, Barbosa Pedro L. O acontecimento discursivo e a construção da identidade na Historia. In: SARGENTINI, Vanice; NAVARRO-BARBOSA, Pedro. Foucault e os
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domínios da linguagem: discurso, poder, subjetividade /São Paulo: Claraluz, 2004. P.97-132. SILVA, Francisco Paulo. Articulações entre poder e discurso em Michel Foucault. In: SARGENTINI, Vanice; NAVARRO-BARBOSA, Pedro. Foucault e os domínios da linguagem: discurso, poder, subjetividade /São Paulo: Claraluz, 2004. p. 159-182.
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ICONICIDADE LEXICAL NA ANÁLISE DE TEXTOS: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA AULAS DE PORTUGUÊS Maria Noêmi Freire da Costa Freitas (UERJ/SELEPROT)
Introdução Interpretar textos na ótica do discurso é investigar a iconicidade dos signos que os constituem. Nessa perspectiva, signos linguísticos são todos os elementos e arranjos capazes de produzir uma semiose a partir da relação imediata emergente da sua participação nos textos. (cf. SIMÕES, 2009, p.73). O texto é uma ‘peça’ de linguagem que representa uma unidade significativa, uma “unidade de análise”, segundo Orlandi: Para o leitor, é a unidade empírica que ele tem diante de si, feita de som, letra, imagem, sequências com uma extensão, (imaginariamente) com começo, meio e fim e que tem um autor que se representa em sua unidade, na origem do texto, ‘dando’-lhe coerência, progressão e finalidade. (ORLANDI, 2001, p. 64.)
A linguagem é um modo simbólico de mediação entre o homem e a sua realidade natural
e/ou
social,
num
só
tempo
significando
e
produzindo
o
social.
Nessa circunstância, a materialidade do simbólico é o discurso (cf. ORLANDI, 2001, p.63) e a iconicidade é a instância do signo de onde se depreendem os mecanismos e relações que vão servir de base para o construto teórico na interpretação dos textos (cf. SIMÕES, 2009: p. 62). Como lidar com isso no ensino da língua materna? De que modo esses conceitos e essa visão podem ser úteis ao professor de Língua Portuguesa em sua prática de sala de aula? De que modo podem servir à leitura de textos? Eco explica que: A semiótica ocupa-se indubitavelmente dos signos como sua matériaprima, mas vê-os em relação a códigos e inseridos em unidades mais vastas como o enunciado, a figura retórica, a função narrativa, etc. A semiótica é a disciplina que estuda as relações entre código e mensagem e entre signo e discurso. (ECO, 2004 [1973], p. 23)
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Desse modo, o método semiótico parece fazer cumprir os objetivos didáticos almejados na análise de textos: de compreender a semiose (o processo de produção de significados), comunicar, interpretar e, a partir disso, interagir socialmente. É por isso que este trabalho tem como proposta apresentar uma sugestão didática de análise semiótica de texto, com foco na iconicidade lexical como constituinte do engendramento discursivo, a partir da observação dos substantivos e expressões substantivas presentes, tendo em vista instruir para a produção de sentidos na interpretação e contribuir para o ensino da leitura. Objetivo didático e justificativas A intenção desse tipo de análise é desenvolver nos alunos a habilidade de observar a iconicidade dos constituintes textuais para uma interpretação eficiente de textos. Para tanto, selecionamos um texto e sugerimos a análise da iconicidade dos substantivos (e das expressões substantivas) nele presentes, com foco no valor instrutivo dessa análise para a interpretação, já que, no ensino da língua materna, o tratamento convencional dado a essa classe dos nomes, como “classe objetiva”, desvinculada da interação e das circunstâncias que envolvem o evento social em que se dá o ato linguístico, tem sugerido uma noção de signo (e de substantivo) na qual a relação entre significante e significado é estreita, como se nomear fosse um mero modo de etiquetar as coisas, e como se a escolha de um substantivo por parte de um enunciador nada tivesse a acrescentar ao sentido dos textos. A análise da iconicidade fundamentada em Peirce Em Peirce, as relações de iconicidade do signo com o mundo não-linguístico contrapõem-se à arbitrariedade do signo, em Saussure. No modelo triádico (imagético) peirceano, a abertura da base do triângulo que representa o signo dá espaço ao caráter dinâmico do significado. Assim, o que fundamenta a presente análise da iconicidade do substantivo é a ideia de que a escolha de um nome, no discurso, é um modo de representar a ideia que temos de alguma coisa, com base numa similaridade/identidade entre o significado do representante (o nome) e o do representado (o objeto), numa situação específica de comunicação.
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Esse modo de compreender a relação entre o signo linguístico e o seu objeto (o referente) põe em relevo: o caráter metafórico da linguagem, as potencialidades semânticas do signo linguístico e o contexto (incluídos neste, os interlocutores, a intersubjetividade), que são aspectos dinâmicos da significação. A escolha de um nome (e não outro) decorre do confronto das potencialidades semânticas dos signos disponíveis e da sua capacidade de atender ao projeto do texto. Mas os significados também atualizam-se no texto: o significado de um nome em dada situação é resultante da luta entre os múltiplos interpretantes (as suas próprias potencialidades semânticas), no processo de atualização do significado, tendo em vista o(s) sentido(s) a construir. Além disso, realizada a referência, estabelece-se uma relação de verificação empírica entre signo e circunstância concreta. Essa relação funciona porque o objeto de referência se reintroduz no processo semiótico (cf. Eco, p. 153-154), reconstituindo-se e ressignificando-se. A contribuição do modelo peirceano no âmbito linguístico tem sido subsidiar e reeducar os mecanismos de percepção dos signos. Com fundamento nesse modelo e seguindo a orientação de Simões (2009, p. 61-62), procuramos recortar o objeto-texto sob várias perspectivas, verificando o quanto dialogam os processos cognitivos e a estruturação textual e até que ponto é possível identificar no vocabulário do texto marcas discursivas que permitam, de alguma forma, inferir o(s) projeto(s) comunicativo(s) subjacente(s). Iconicidade lexical Para Simões, o projeto comunicativo que subjaz a qualquer interação produz uma energia mental capaz de ativar signos que possam representar (ícones) ideias ou conduzir (índices) o interlocutor à mensagem básica da comunicação. (...) A comunicação será tão mais icônica quanto mais proficiente for o enunciador; da mesma forma que a comunicação será mais efetiva quanto mais proficientes forem os interlocutores. (...) é possível pensar-se em uma iconicidade intersubjetiva presente no léxico das línguas, uma vez que essa porção lexical se faz icônica por pertencer à maioria dos falantes da língua em foco. (SIMÕES, 2009, p. 86-88)
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No plano da iconicidade lexical, Simões (2009, p. 87) propõe que se persigam os elementos contidos no léxico que representem, mediante um tipo de “imagem”, o conteúdo da mensagem ou alguns aspectos desse conteúdo. Nessa perspectiva, a semiótica “vai tratar do processo de produção de sentido a partir da análise das funçõesvalores que os signos eleitos pelo produtor do texto adquirem na trama textual” (SIMÕES, 2009, p. 59). A iconicidade do substantivo Investigar a iconicidade do substantivo no texto é tentar captar esses processos de representação, ou seja, os processos de discursivização, na escolha dos nomes, com vistas à depreensão da carga semântica que determina a escolha desta ou daquela palavra (ou expressão), por parte do falante, e dos efeitos que essa escolha produz na comunicação. Texto para análise: Destacamos no texto os substantivos (em negrito) e as expressões substantivas (em negrito e sublinhadas) que serviram de objetos da análise. Cigarra, Formiga & CIA. (José Paulo Paes. Socráticas: poemas, ‘Duas refábulas’, 2001: p. 63) Cansadas dos seus papéis fabulares, a cigarra e a formiga resolveram associar-se para reagir contra a estereotipia a que haviam sido condenadas. Deixando de parte atividades mais lucrativas, a formiga empresou a cigarra. Gravou-lhe o canto em discos e saiu a vendê-los de porta em porta. A aura de mecenas a redimiu para sempre do antigo labéu de utilitarista sem entranhas. Graças ao mecenato da formiga, a cigarra passou a ter comida e moradia no inverno. Já ninguém a poderia acusar de imprevidência boêmia. O desfecho desta refábula não é róseo. A formiga foi expulsa do formigueiro por haver traído as tradições de pragmatismo à outrance e a cigarra teve de suportar os olhares de desprezo
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com que o comum das cigarras costuma fulminar a comercialização da arte. Levantamento de significados dos substantivos destacados no texto Boêmia: “roda de intelectuais, artistas, etc. que leva a vida de modo hedonista e livre, bebendo e divertindo-se. (Pej.) procedimento de quem é vadio e pândego. (Houaiss) – aqui, empregado como adjetivo. Estereotipia: (Tip.) processo pelo qual se duplica uma composição tipográfica (...) (Aurélio) Levantamento de termos relacionados: Estereótipo: forma, clichê (Aurélio) Clichê: (Est.) frase freq. rebuscada que se banaliza por ser muito repetida, transformando-se em unidade linguística estereotipada, de fácil emprego pelo emissor e fácil compreensão pelo receptor, lugarcomum, chavão. (Houaiss) Imprevidência: ausência de previsão, de previdência; descuido, desprevenção, incúria. Labéu: mancha infamante na reputação de alguém; desdouro, desonra. (Houaiss) Mecenas: indivíduo rico que protege artistas, homens de letras ou de ciências, proporcionando recursos financeiros, ou que patrocina, de modo geral, um campo de saber ou das artes; patrocinador. (“Antr. Lat. Maecenas,átis ‘Caio Cilino Mecenas – 60 a. C. – 8 d. C., estadista romano), protetor dos artistas, esp. dos escritores Vergílio e de Horácio”, tornado subst. com.” (Houaiss) – Mecenato é o substantivo que indica a qualidade ou condição de mecenas ou esse patrocínio. (cf. Houaiss) Utilitarista: relativo ou próprio do utilitarismo; adepto do utilitarismo, utilitário. (Houaiss) Pragmatismo: (Fil.): ênfase do pensamento filosófico na aplicação das ideias e nas consequências práticas de conceitos e conhecimentos; filosofia utilitária. Análise O texto demanda especial atenção ao seu vocabulário. O vocabulário rebuscado distancia o texto do gênero popular original, com o qual se relaciona intertextualmente,
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e produz um efeito de estranhamento imediato, investindo-o de outro discurso - o capitalista, por meio das seguintes palavras: lucrativas (adj.), empresou (v.), vendê-los (v.), mecenas (subst.) e comercialização (subst.). A expressão “ter comida e moradia”, típica do discurso neoliberal assistencialista do capitalismo, é legitimada no texto: os substantivos comida e moradia são usados, demagogicamente, nesse tipo de discurso, como condições essenciais de cidadania. O título contém índices de intertextualidade. Os substantivos cigarra e formiga carregam consigo a estereotipia adquirida pelas personagens na fábula original, ou seja, as marcas do utilitarismo (a formiga) e da imprevidência (a cigarra), e as transferem para o texto atual. Nota-se aí, claramente, o aspecto polifônico como fator da iconicidade do substantivo. Podemos dizer que esses substantivos já são ícones por excelência, pois, mesmo fora da fábula, são reconhecidos pelas marcas ideológicas dos personagens a que se referem. Essa iconicidade é sinalizada pelo substantivo estereotipia, presente no texto. Uma segunda definição de pragmatismo no Dicionário Eletrônico Houaiss (uma já foi dada em “Vocabulário do texto”), útil desta vez ao nosso propósito, aplica-se a essa constituição polifônica (portanto, icônica) do substantivo: “dentro do pensamento de Charles S. Peirce, afirmação de que o conceito que temos de um objeto é a soma dos conceitos de todos os efeitos decorrentes das implicações práticas que podemos conceber para o referido objeto”. Na nossa perspectiva, os nomes são investidos desse conceito e dessa polifonia atribuídos aos seus referentes, pois que representam esses referentes e contribuem para o seu reconhecimento e a sua ‘identidade’ social, na realidade extralinguística. Os ‘nomes’ utilitarista e mecenas são empregados como substantivos atributivos pejorativos - são classificações, portanto, são avaliativos: está embutido neles um juízo de valor decorrente do discurso social. Esse juízo de valor está implícito na constituição histórico-ideológica e etimológica desses substantivos, por meio do interdiscurso, e é reafirmado no texto. (Cf.: “Vocabulário do texto”.) Em “A aura de mecenas a redimiu para sempre do antigo labéu de utilitarista sem entranhas” e em “Já ninguém a poderia acusar de imprevidência boêmia”, há duas pressuposições, segundo as quais, em enunciados anteriores, a cigarra e a formiga
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já teriam sido acusadas, respectivamente, de imprevidência e utilitarismo. Estes substantivos contêm traços avaliativos negativos, o primeiro (imprevidência) reforçado por outro substantivo avaliativo negativo (pejorativo): labéu e pelo adjetivo “boêmia” que, diga-se de passagem, não é reconhecido como adjetivo nem no dicionário Houaiss nem no VOLP, mas é com essa função que aparece no texto. O segundo (utilitarismo) também sugere avaliação negativa. Essa avaliação é também reforçada pelo elemento intensificador na expressão utilitarista sem entranhas. A intertextualidade coloca os discursos em luta através dos sintagmas nominais: os papéis fabulares, da cigarra e da formiga – a estereotipia –, dos quais essas personagens foram redimidas na versão atual da fábula, pelo discurso capitalista, entram em luta contra a comercialização da arte, do discurso dos defensores da arte e do pragmatismo, que se opõe, no texto, ao outro, e representa – está nele implícita, iconicizada – a ideologia do texto original. A
conclusão
contém
avaliação:
no
substantivo
refábula,
de
efeito
metalinguístico, porque observa o próprio fazer narrativo como uma reescritura da fábula original; no comentário de que o desfecho não é róseo, de certo modo irônico, pois aponta para a maldade social; e no substantivo comercialização, empregado criticamente nesse contexto. A iconicidade revela-se, no texto analisado, especialmente nas diversas formas de polifonia (o interdiscurso, a intertextualidade, a ironia e a pressuposição), e no juízo de valor (a crítica e a maldade social), que certamente contribuíram para a seleção dos substantivos nessa “prosa poética” de José Paulo Paes. Reflexões adicionais De acordo com Simões,
Para Searle,
Um ensino voltado para a eficiência comunicativa tem de pautar-se na relatividade dos signos e significados, ao mesmo tempo que precisa propiciar a percepção/interpretação da conexão entre aqueles na dinâmica da produção de sentidos. Nesse plano atua a teoria semiótica, uma vez que gerencia as oposições e correlações construídas na superfície dos textos e viabiliza a produção de interpretações plausíveis, ainda que não únicas. (SIMÕES, 2004: p.3)
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ignorar o emprego ‘comprometido’ das palavras significa, em última análise, ignorar a própria linguagem, pois falar uma língua (...) consiste na realização de actos de fala, de acordo com regras, e nada há que separe esses actos de fala dos compromissos a que dão origem e que são o seu elemento essencial. (SEARLE, 1981: p.261)
Conclusões Com a análise, foi possível observar que o narrador, em discurso indireto, simula uma objetividade na narração, mas deixa marcas suspeitas de subjetividade na escolha das palavras, cuja interpretação depende, basicamente, da percepção do leitor. Essa percepção pode ser exercitada em atividades de análise da iconicidade dos elementos textuais, especialmente dos itens lexicais. Analisar a iconicidade é investigar os processos de discursivização na linguagem, considerada como um modo de mediação entre o homem e a sua realidade. A análise da iconicidade dos substantivos tem valor instrutivo na interpretação dos textos. A leitura de textos pautada na iconicidade dos signos linguísticos é um meio de preparar o educando para lidar com os textos e os significados que a ele se apresentem, compreendendo e dialogando com o discurso alheio de forma reflexiva e competente, e conscientizando-se do poder de ação e transformação da realidade por meio das palavras. O tipo de análise apresentado atenua uma angústia antiga do professor de língua materna, ao associar o ensino dos elementos gramaticais à investigação dos constituintes textuais para a interpretação de textos, e pode ser aplicado a outros elementos textuais, não só aos substantivos, desde que sejam observadas as especificidades dos objetos selecionados para a análise. Referências ACADEMIA Brasileira de letras. Vocabulário ortográfico da língua portuguesa. Disponível na Internet: (Acesso em agosto de 2014.) http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=23 ECO, Umberto. O Signo. Trad.: Maria de Fátima Marinho. Rev. do texto: Wanda Ramos. Barcarena: Editorial Presença, 2004 [1973].
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FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 1. ed. 14. impr. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d. FREITAS, Maria Noêmi F. da C. Cigarras, Formigas, Severinos & Cia.: um olhar atento para a iconicidade do substantivo. Dissertação de mestrado (2vol.), orientada pela Profa. Dra. Darcilia Marindir Pinto Simões, defendida em março de 2008, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, RJ, BR, catalogado na fonte: UERJ/REDE SIRIUS/CEHB. Cód. CDU801.2.22/F866, 2008. HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.05. Instituto Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2004. ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e Texto: formação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001. PAES, José Paul. Socráticas: poemas. São Paulo: Companhia das letras, 2001. SEARLE, John R.. Os Actos de Fala: um ensaio de filosofia da linguagem. Coimbra: Livraria Almedina, 1981. SIMÕES, Darcilia M. P.. Subsídios para a Análise dos Conteúdos Textuais. In Matraga – v. 16. Rio de Janeiro, 2004 (p.101-124). __________________ Iconicidade Verbal: teoria e prática. Rio de janeiro: Dialogarts, 2009.
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A PRODUÇÃO DE EFEITO DE SENTIDOS NO ESPELHO DE TELEJORNAL Maria Rachel Fiúza Moreira (UFAL)
Neste artigo, buscaremos levar o olhar do leitor para os chamados espelhos dos telejornais, para a ordem em que as reportagens são exibidas – uma arrumação, na qual, aparentemente, são expostas apenas motivações temáticas ou editoriais, mas que, se vista através do olhar do analista de discurso, aparecem também, variados e reveladores sentidos. Vamos situar nosso estudo pelos pressupostos teórico-metodológicos da Análise do Discurso (AD), na linha de seu fundador Michel Pêcheux. Distanciando-nos do que estabelece o modelo básico da comunicação: emissor – mensagem – receptor, como simples troca de informações, partimos da compreensão de que o telejornal é um espaço diário de construção de sentidos, negando o entendimento de um discurso jornalístico imparcial e transparente, pensando o discurso como efeito de sentidos entre locutores (ORLANDI, 2000). Um espelho de notícias Segundo Cotta (2005, p. 32), “notícia é uma informação de impacto sobre fato, declaração ou acontecimento impactante, de interesse ou que desperta a curiosidade do maior número possível de pessoas”. Já para o Manual da Redação do Jornal Folha de S. Paulo, (2001, p.88), notícia é o “puro registro dos fatos, sem opinião. A exatidão é o elemento-chave da notícia, mas vários fatos descritos com exatidão podem ser justapostos de maneira tendenciosa”. Erbolato (1985, p.49) complementa e diz que “não obstante a importância da notícia no chamado império do jornalismo, ninguém conseguiu defini-la satisfatoriamente. Os teóricos dizem como ela deve ser, mas não como realmente é”. As definições são muitas e muitas vezes, contraditórias, e tem ainda quem defina notícia como aquilo que “os jornalistas escolhem para oferecer ao público” (NOBLAT, 2003, p.31), ou seja, uma decisão do jornalista-editor, a partir de interesses editoriais ou mesmo empresariais – não se pode esquecer que os meios de comunicação de massa, em uma sociedade capitalista, são empresas. E “nas regras do capitalismo, as mídias atendem a interesses hegemônicos, mascaram o caráter classista da informação e sua
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função ideológica a serviço da manutenção do sistema” (BOLAÑO apud GAIA, 2011, p.45). É nesse processo de decisão, de escolha, que os espelhos dos telejornais são estruturados. “O espelho tem esse nome porque reflete uma filosofia editorial, um plano de voo, uma intenção (...) montar um espelho é tomar decisões” (BONNER, 2009, p.82). E, pelo que entendemos, tomar decisões é escolher, é produzir sentidos. Na análise apontamos para a impossibilidade do discurso neutro – ainda mitificado nos manuais de telejornalismo, que produzem sentido a partir daquilo que os telejornais apresentam e que ao mesmo tempo, silenciam (ORLANDI, 2002). Nos espelhos podemos observar, através de uma análise mais detalhada, o que foi posto em circulação (exibido) e aquilo que foi silenciado e fazer alguns questionamentos: Por que determinados assuntos ficaram de fora de uma edição? Por que outros ganharam destaque e outros foram diluídos, passando quase despercebidos? Por que tal reportagem abriu o telejornal? Por que uma determinada reportagem e não outra encerrou a edição? Por que determinado assunto recebeu mais tempo de exposição? São questões que podem desvelar sentidos na produção de um espelho e identificar os sujeitos e suas diferentes posições no discurso jornalístico. São inúmeras indagações que nos farão avançar na análise para “percorrer a via pela qual a ordem do discurso se materializa na estrutura do texto” (ORLANDI, 2004). O espaço do Telejornal e o discurso jornalístico na TV Compartilharmos com Becker, a ideia de que os “os telejornais são produtos de informação de maior impacto na sociedade contemporânea e as principais fontes de informação para a maioria da população brasileira” (2005, p. 9). O laço acadêmicoprofissional que possuímos com o jornalismo configura-se como mais um dos fatores de nosso interesse em estudar e desvelar seu funcionamento discursivo. Desde setembro de 1969 que o Jornal Nacional (JN) faz parte da programação da Rede Globo de Televisão, sendo este, o telejornal de caráter nacional há mais tempo em exibição na televisão brasileira. Seu lugar na grade1 de programação da emissora fica estrategicamente posicionado entre duas telenovelas – gênero televisivo que atrai 1
Grade de programação é a sequência de todos os programas e chamadas comerciais exibidas, diariamente, em uma emissora de televisão. A grade é estruturada por horário de exbição durante vinte e quatro horas.
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grande audiência – e se destaca como o produto jornalístico de maior audiência da emissora. Há de se considerar, também, que o horário em que o Jornal Nacional é exibido é considerado nobre na televisão brasileira, pois, é exatamente nessa faixa horária que se tem um número maior de televisores ligados, critério usado pelos institutos que medem a audiência no país. No final da década de 1970, e durante os anos de 1980, o “Jornal Nacional alcançava a prodigiosa marca de 79,9% da audiência nacional” (REZENDE, 2000, p.117), um feito inédito se comparado a outras televisões do mundo, cuja a audiência dos programas televisivos costuma ser pulverizada em diversos canais. Atualmente, os números do JN não atingem esses patamares, mas ainda é considerado o telejornal de maior audiência no país. Logo após a última entrevista concedida ao Jornal Nacional, o então candidato à Presidência da República, Eduardo Campos, teria afirmado que a campanha presidencial começaria naquele momento, ou seja, a partir da aparição dele no chamado horário nobre da televisão brasileira. Isso é apenas um exemplo de como o poder de produzir consensos e trabalhar na estabilização de sentidos é, sem dúvida, relevante pelo que é mostrado na mídia televisiva. A televisão tornou-se o maior símbolo da mídia de massa, sendo um dos veículos de comunicação de maior influência no país. Segundo dados do IBGE, a televisão está presente em 90% das residências brasileiras. Utilizando dados do Ibope, Bistane (2005, p.9) faz uma comparação entre a tiragem diária de um grande jornal impresso com a audiência de um telejornal: Só na grande São Paulo, o telejornal com maior audiência foi visto por mais de três milhões de pessoas. No mesmo período, a tiragem diária da Folha de S. Paulo, o jornal impresso de maior circulação do país, foi, em média, de 307 mil exemplares. Daí a grande preocupação e os animados debates em torno do conteúdo e das mensagens veiculadas na telinha.
Considerando a televisão como principal meio de informação da população brasileira, a responsabilidade de quem escreve e produz conteúdo para esse veículo é de extrema importância e está sujeita a diversas interpretações. Para Orlandi (2012, p.180), “a Tevê é um lugar de interpretação extremamente eficaz. Porque anula a memória, a reduz a uma sucessão de fatos com sentidos (dados) quando, na realidade, o que se tem são fatos que reclamam sentidos”.
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De uma maneira geral, podemos afirmar que o telejornalismo (jornalismo de TV) utiliza as técnicas gerais do próprio jornalismo, mas também considera as características próprias da televisão. Tais características são resumidas por Paternostro (2006,
p.75)
como:
“imediatismo,
instantaneidade,
alcance,
envolvimento,
superficialidade, audiência e informação visual”. É a partir dessas características que o jornalista televisivo, seja ele na função de produtor, repórter, editor ou apresentador, constrói o texto que será exibido nas edições dos telejornais. Mas, não podemos esquecer que, na produção de programas televisivos, inclusive de telejornais, há diversos interesses ali embutidos: econômicos, políticos, ideológicos, estéticos etc. Nesse sentido, engendra-se uma relação de poder entre os envolvidos na produção dos programas (seus idealizadores, colaboradores, patrocinadores e proprietários das emissoras).(ALFERES in SILVA, 2012, p.152)
Esses interesses vão refletir no que é mostrado diariamente nos telejornais e é no sequenciamento (espelho) das notícias e na exibição das reportagens que compreendemos haver sentidos variados e reveladores, que identificam os sujeitos, suas argumentações, subjetivações, etc, que nos conduzem a uma investigação inquiridora. O jornalista lida, diariamente, com o inesperado e com assuntos que vão compor uma agenda de acontecimentos que poderão ser ou não veiculados como notícia. O que caracteriza a informação jornalística são a narração e a descrição dos fatos, sempre respaldada pela argumentação de especialistas ou de testemunhas que são ouvidas a respeito do assunto em pauta. Acidentes, tragédias, movimentos sociais, saúde, segurança, economia, educação, ecologia, cultura, tudo isso pode ser assunto abordado pela imprensa diária. “O que caracteriza o texto jornalístico é o volume de informação factual” (LAGE, 2005, p.73). Aquilo que, do ponto de vista jornalístico, merece ser reportado. Segundo o Manual de Redação do Jornal da Folha de S. Paulo (2001), existem alguns critérios elementares para definir a importância de uma notícia: ineditismo, improbabilidade, interesse, apelo, empatia e proximidade. Esses critérios são utilizados na maioria das mídias jornalísticas – seja impressa ou eletrônica. A informação jornalística não existe sem as chamadas fontes. Para que determinado texto seja considerado um texto jornalístico, alguém fala sobre alguma
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coisa, sempre. Mariani (1998, p.60, grifo do autor) considera “o discurso jornalístico como um discurso sobre. Um efeito imediato do falar sobre é tornar objeto aquilo sobre o que se fala”. O jornalista vai aparecer como um observador imparcial, um sujeito que não se envolve com as questões abordadas, essa tentativa de imparcialidade vai acontecer quando o texto em questão está na vertente da informação, porque vai existir também a vertente da opinião (COTTA,2005). Apesar de nosso interesse estar voltado, prioritariamente, para a primeira vertente, já que o texto televisivo procura mostrar-se efetivamente um texto informativo, não podemos perder de vista o que Dela-Silva (2011, p.16) afirma quando diz que: enquanto linguagem, o dizer jornalístico não traz consigo o fato, mas um gesto de interpretação do mesmo. A imprensa, mais que simplesmente narrar acontecimentos e servir de suporte para tais narrações, produz sentidos para os acontecimentos que elege como de destaque em um momento dado.
O discurso televisivo vai sendo construído e passando a impressão de que estamos diante do mundo real, provocando assim um efeito de evidência, de naturalidade. Entretanto, é preciso compreender “porque os telejornais nos fazem acreditar, sem dificuldade nenhuma e tranquilamente, que o mundo que eles nos mostram é o mundo real” (BECKER, 2005, p.26). De acordo com Mariani (1998, p.61), “a imprensa não é o mundo, mas deve falar sobre esse mundo, retratá-lo, torná-lo compreensível para os leitores”. Para a autora, “o discurso jornalístico tem como característica atuar na institucionalização de sentidos” (Idem). A estruturação dos telejornais e a AD Os telejornais se estruturam de forma muito parecida, apesar das particularidades de cada emissora, do horário de exibição, da linha editorial ou dos recursos técnicos disponíveis. Mas, de maneira geral, eles “têm regularidades, marcas enunciativas constantes que são preenchidas pela trama factual do mundo. Todos os noticiários seguem a mesma lógica de produção” (BECKER, 2005, p.26). Eles são apresentados em blocos, separados por intervalos comerciais, existe sempre um ou dois apresentadores, além de uma equipe de jornalistas – repórteres, editores, produtores – que vão imprimir sentido nas construções discursivas. “Os sentidos são criados durante
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toda a produção dos acontecimentos – na escolha da pauta, na produção, na apuração, na reportagem, na edição e na transmissão” (Idem). Um acontecimento em si não é notícia. Será preciso o olhar do jornalista, do observador que seleciona, faz o recorte na realidade, e pesca, no turbilhão de fatos, aquele que supõe ser do interesse para o telejornal. Nesse caminho, vários profissionais estão envolvidos e muitos procedimentos são adotados. Nesse processo de construção dos telejornais, não podemos perder de vista uma questão colocada por Gregolin (2003, p. 95) quando afirma: “o que os textos da mídia oferecem não é a realidade, mas uma construção que permite ao leitor [telespectador] produzir formas simbólicas de representação de sua relação com a realidade concreta”. E nesse processo vários sujeitos vão estar presentes. Na perspectiva da Análise do Discurso (AD), esses sujeitos se constituem nas práticas sócio-históricas e são afetados pelo inconsciente e pela ideologia, sendo “sempre o sujeito de seu tempo e de sua sociabilidade” (FLORÊNCIO et al, 2009, p.43). E na análise da construção dos espelhos, o olhar do analista não se volta para o sujeito-jornalista-enunciador pois, como afirma Pêcheux (1988, p.171), a tomada de posição não é de modo algum concebível como um “ato originário” do sujeito falante: ela deve, ao contrário, ser compreendida como efeito da forma-sujeito, da determinação do interdiscurso com discurso-transverso, isto é o efeito da “exterioridade” do real ideológico-discursivo, na medida em que ela “se volta sobre si mesma” para se atravessar.
O sujeito-jornalista que escreve os textos e estrutura os espelhos pensa que é dono do seu dizer, mas “o dizer não é propriedade particular. As palavras não são só nossas. Elas significam pela história e pela língua (...) o sujeito diz, pensa que sabe o que diz, mas não tem acesso ou controle sobre o modo pelo qual os sentidos se constituem nele” (ORLANDI, 2000, p. 32). Na estruturação das reportagens, na montagem dos espelhos, pode-se recorrer a uma categoria preciosa na AD, trabalhada por M. Pêcheux, que vai estruturar os discursos. O chamado esquecimento nº 1, ou esquecimento ideológico, que é da instância do inconsciente. Por ele “temos a ilusão de ser a origem do que dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos pré-existentes” (ORLANDI, 2000, p. 35).
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Ainda na categoria desenvolvida por M. Pêcheux, temos o esquecimento nº2, aquele da ordem da enunciação, que “trabalha o desejo/possibilidade de a subjetividade controlar o sentido do discurso” (CAVALCANTE, 1997, p.138) e que é bem característico da linguagem midiática. “Ao falarmos, o fazemos de uma maneira e não de outra, e, ao longo do nosso dizer, formam-se famílias parafrásticas que indicam que o dizer sempre podia ser outro” (ORLANDI, 2000, p.35).
Considerações finais Mais do que ter respostas e conclusões acabadas, nossas inquietações estão apenas começando, pois, como os discursos são sempre atravessados por outros discursos, que já circulam e são constantemente re-significados, analisar o discurso jornalístico é sempre se deslocar em terrenos movediços, cuja a estrutura é constantemente atropelada pelos acontecimentos discursivos postos a todo momento em circulação. Nossos estudos ainda buscam uma solidez na compreensão teórica para fundamentar nossas reflexões sobre o estabelecimento, exposição e compreensão dos telejornais a partir de uma perspectiva discursiva. Sem perder de vista aquilo que Orlandi diz: “a mídia é lugar de interpretação, ela rege a interpretação para mobilizá-la” (2012, p.16), o nosso olhar para espelho do Jornal Nacional, nos faz refletir sobre como essa interpretação é regida, como é possível controlá-la, mas que pode escapar através dos diferentes gestos de leitura dos sujeitos-telespectadores.
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O CRITÉRIO DE PLAUSIBILIDADE NA IDENTIFICAÇÃO DE RELAÇÕES RETÓRICAS NA MACROESTRUTURA TEXTUAL, A PARTIR DA RST: DIFERENTES POSSIBILIDADES DE LEITURA, DIFERENTES POSSIBILIDADES DE ANÁLISE. Maria Risolina de Fátima Ribeiro Correia (UFMG) Angela Maria Alves Lemos Jamal (UFMG)
Abrimos um espaço, neste artigo, para discutir a respeito das seguintes questões: Em que se funda o critério da plausibilidade? Ao se analisar um texto, quando se fala que tal relação é plausível em detrimento de outra, que fatores norteiam a escolha do analista? Em princípio, chegamos até a formular uma hipótese de que seria possível a cada leitor, empregando o critério de plausibilidade, proceder a uma análise bastante diferenciada de um mesmo texto. Porém, entendemos, que nesse caso, poderíamos correr o risco de estar frente a uma teoria por demais aberta, em que qualquer análise fosse permitida. Depois, pensamos que tal ideia não se sustentava na medida em que um julgamento de plausibilidade não pressupunha uma análise baseada em uma terra sem lei. Algo plausível seria algo possível. Resolvemos, então, para efeito de esclarecimento e, ainda em busca de alguma resposta a nossas indagações, revisitar ideias sobre plausibilidade, na visão de alguns estudiosos que adotam o modelo da RST. Relemos e procedemos a análises de algumas considerações de Mann, Matthiessen e Thompson (1989, p. 15); de Antonio (2009, p. 77), de Giering (2009, p. 62) e passamos a transcrevê-las a seguir. Cada campo de definição de uma relação especifica juízos particulares que o analista do texto deve fazer na construção da estrutura da RST. Uma vez que o analista tem acesso ao texto, tem conhecimento do contexto em que foi escrito, e compartilha convenções culturais do escritor e dos leitores esperados, mas não tem acesso direto ao produtor do texto, nem dos leitores, deve prevalecer o julgamento da plausibilidade em vez de juízos de valor (MANN, MATTHIESSEN E THOMPSON, 1989, p. 15). (Tradução feita pelas pesquisadoras.)
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A identificação das relações pelo analista se baseia em julgamentos funcionais e semânticos, que buscam identificar a função de cada porção de texto e verificar como o texto produz o efeito desejado em seu possível receptor. Esses julgamentos são de plausibilidade (...) (ANTONIO, 2009, p. 77). O analista pressupõe esse efeito [efeito que as relações produzem] a partir das considerações sobre as possíveis finalidades do produtor textual, sobre as plausíveis suposições do produtor a respeito do leitor, e sobre o seu conhecimento de determinados padrões proposicionais em relação ao conteúdo do texto. (FUCHS e GIERING, 2008, p. 228). A RST atribui papel e intenção a cada unidade de informação do texto, tendo em vista o que o leitor julgar verdadeiro, a fim de estabelecer relações entre unidades textuais (GIERING, 2009, p. 62).
Ampliando o recorte proposto nesta parte do trabalho, e sem perder de vista o nosso foco, comprovamos que as afirmativas apresentadas concentraram suas explicações no fato de que cabe ao leitor/analista/anotador a tarefa de determinar se uma relação é plausível ou não. Antonio (2009) apresenta, conforme proposto pela RST, que os julgamentos têm como base os critérios funcionais e semânticos. Pelos dizeres de Giering (2009), o leitor lança mão da intenção do autor para determinar que um tipo de relação tem estatuto de verdade, enquanto outro não pode ser aceito. Ressalta-se, pois, nesse caso, como na citação de Antonio, a importância da função, o que retoma a ideia defendida por nós de que língua só se concretiza em situações de atuação social e através de práticas sociais. Ainda, ressaltamos as colocações Fuchs e Giering (2009) que inserem em suas explicações a importância do conhecimento de determinados padrões proposicionais que é esperado do leitor, a fim de que ele possa nomear adequadamente determinada relação de um texto. Entendemos que padrões proposicionais equivalem ao que Bakhtin (1979) chama de construção composicional própria dos textos pertencentes a determinado gênero, quando comenta sobre as três dimensões indissociáveis a que os gêneros do discurso estão submetidos: (i) conteúdos ideológicos que se tornam dizíveis por meio do gênero (ii) a construção composicional, elementos das estruturas comunicativas e semióticas próprias dos textos pertencentes ao gênero (iii) o estilo verbal, escolha,
nunca neutra,
de recursos lexicais, fraseológicos e
gramaticais pelos quais o discurso se materializa.
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Segundo a base teórica sobre a qual assentamos o nosso trabalho, cada esfera da atividade humana elabora seus “tipos relativamente estáveis de enunciados”, os chamados gêneros “gêneros do discurso” (BAKHTIN, 1979, p. 279). Entretanto, optamos por utilizar gêneros textuais, conforme Marcuschi (2010), por entendermos que não se trata de questionar se uma nomenclatura é mais pertinente que outra. No nosso caso, trata-se apenas de definir uma posição de análise. Acreditamos, ainda, conforme Marcuschi (2010, p. 154) que essas expressões podem ser “intercambiadas”, exceto quando se objetiva identificar dado fenômeno específico. Ainda a respeito das citações, o destaque, evidentemente, fica por conta de Mann, Matthiessen e Thompson, (1989), autores da teoria, que nos apresentam pontos esclarecedores a respeito da plausibilidade. Ou seja, há índices que podem sinalizar para o analista possibilidades de relação, caso ele leve em conta o contexto, aspectos culturais e o público a que se destina o texto. A propósito, vale a pena lembrar, que ao falarmos nos fundamentos e práticas da análise de textos, referimo-nos à leitura, à produção de sentido. Embora se pareça óbvio, talvez nem seja tanto, consideramos importante (re) lembrar aspectos concernentes à leitura quando dizemos de plausibilidade, de juízo e de intencionalidade. Esses pontos fazem-nos considerar que um texto não é um conjunto de frases, por essa razão, nos dizeres de Antunes (2010), ele exige um estudo específico. Poderíamos começar lembrando, conforme já sinalizado anteriormente, que todo texto é uma atividade social, e como tal é uma proposta de comunicação sob a qual estão envolvidas ações linguísticas, sociais e cognitivas. Destacando a importância do contexto e entendendo a sua relação com aspectos culturais, ainda é Antunes (2011) que nos convoca a deixar de lado a prática tão comum de analisar “frases soltas, inventadas, frases artificiais, sem contextos reais (...)” A autora justifica suas colocações afirmando que embora possa parecer que ela esteja trazendo à discussão uma espécie de “chuva molhada”, quer dizer, um assunto que é do domínio de todos, “parece apenas”, pois há muitas propostas vistas por ela nesse sentido. Referindo-se à leitura na concepção interacional (dialógica), Koch também tece considerações importantes ao trazermos em cena uma melhor compreensão do critério
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de plausibilidade. Segundo ela, há em um texto variedade de implícitos dos mais variados tipos. Esses só podem ser percebidos “quando se tem, como pano de fundo, o contexto sociocognitivo dos participantes da interação” (KOCH, 2008, p. 11). A teórica define contexto como „tudo aquilo que, de uma forma ou de outra, contribui para ou determina o contexto” (KOCH, 2008, p. 59). É fato que nenhum texto acontece no vazio, sem uma finalidade, sem que se tenha um objetivo. Assim, considerar a figura do possível leitor, ao se analisar um texto, conforme sinalizam Mann, Matthiessen e Thompson (1989), é importante. Isso, porque, ao escolher uma relação em detrimento da outra, deve-se levar em conta a figura do autor, seus propósitos, que podem ser os mais variados, como convencer, relatar, expor, explicar, dentre outros, atentando, inclusive para o fato de que esses propósitos “não são excludentes”, a ressalva vem de Antunes (2011, p. 70), ao explicar que podemos relatar um fato com o objetivo de convencer alguém. Nunca é demais lembrar que sem destinatário não há escrita, bem como sem produtor não há leitura. Portanto, escrever [e ler], “na perspectiva da interação, só pode ser uma atividade cooperativa” (ANTUNES, 2005, p. 29). A esse respeito recordamos as palavras de Eco que define o texto como uma máquina preguiçosa, que exige do leitor um renhido trabalho cooperativo, consciente e ativo para preencher espaços de não-dito, ou seja, o que não foi manifestado na superfície do texto, ou já-dito. (ECO, 1988) Se há, pois, uma proposta de parceria entre autor e leitor mediados pelo texto, a leitura é uma proposta de produção/construção de sentidos. Entram em jogo nessa operação, por parte do leitor, o conhecimento linguístico, o conhecimento de mundo, o conhecimento referente aos modelos globais dos textos (regularidades da construção dos gêneros e tipos textuais - sequências linguísticas – conforme Marcuschi (2010) e o conhecimento sócio-interacional. E, nesse caso da leitura, recorremos novamente a Koch (2008) para lembrar ser possível a pluralidade de leituras e sentidos em relação a um mesmo texto. Se destacada a concepção de leitura como atividade, tendo por base a interação autor-texto-leitor, é possível considerar o estabelecimento da interação, com maior ou menor intensidade, durabilidade, qualidade, pela razão de que leitores podem possuir diferentes graus de conhecimentos, diferentes vivências, diferentes competências textuais ao lidar com a
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materialidade linguística do texto. Por essa razão, a teórica fala da produção de sentido para “um texto”, e não “do” texto. Assim, para produzir um sentido para o texto, é preciso compreendê-lo. A noção de compreensão com a qual trabalhamos se distancia da que a considera como decodificação, uma vez que demarcamos o lugar de onde falamos como sendo aquele que entende a língua como atividade. Marcuschi (2010) abordando o assunto “Processo de compreensão”, apresenta a inferência como uma das noções centrais numa teoria de compreensão. Para defender a sua posição, o pesquisador explica que as inferências funcionam como “provedoras de contexto integrador para as informações e estabelecimento de continuidade do próprio texto, dando-lhe coerência” (MARCUSCHI (2010, p. 248), e acrescenta que elas agem “como estratégias embutidas no processo.” Referindo-se a uma definição de inferência, o autor cita Riuckheint, Schnotz & Strohner (1985) que a entendem como “geração de informação semântica nova a partir de informação semântica velha num dado contexto” (RIUCKHEINT, SCHNOTZ & STROHNER (1985, p. 8). Em outras palavras, o leitor/ouvinte/falante, a partir de uma informação textual e considerando determinado contexto, constrói uma nova representação semântica. Em decorrência dessas considerações, ainda pareceu-nos razoável consultar no dicionário o significado dos verbetes inferência e plausibilidade. Isso, porque, pretendíamos verificar traços que pudessem aproximar os dois conceitos, por entendermos que o critério da plausibilidade, empregado na identificação das proposições relacionais, pode estar ancorado na capacidade que o leitor tem de fazer inferências. 1. Plausibilidade s.f. Característica de plausível; qualidade daquilo que se considera aceitável ou admissível. (Etm. plausível - vel + bil(i) + dade) (Dicionário online de língua portuguesa). 2. Inferência Tirar conclusão; deduzir pelo raciocínio. Inferir. Admissão da verdade de uma proposição, que não é conhecida diretamente, em virtude da ligação dela com outras proposições já admitidas como verdadeiras. (Dicionário informal).
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Percebemos pelos significados dos verbetes, que antes de considerar se uma relação é plausível ou não, o analista deverá realizar algumas ações como deduzir pelo raciocínio, inferir, admitir uma verdade e tirar conclusões. O que comprova ser a inferência uma aliada à compreensão textual. Acatando um dos pressupostos da RST, de que a definição de uma relação retórica acha-se calcada em julgamentos de plausibilidade, pois o analista não tem acesso ao produtor do texto nem ao seu interlocutor, entendemos que o leitor, como um dos sujeitos da interação, participa ativamente, no dizer de Antunes (2003) “buscando recuperar, buscando interpretar e compreender o conteúdo e as intenções pretendidos pelo autor” (ANTUNES, 2003, p. 67), apontar uma relação, inferir, tirar conclusões, até chegar a uma definição que possa ser considerada plausível, aceita. Em decorrência dessa postura, não podemos considerar que toda e qualquer relação retórica se encaixe a partir de uma análise textual. Admitimos com Possenti (1990 - 1991), que a leitura errada existe, apesar de não podermos determinar, conforme Marcuschi (2010), o número possível de compreensões de determinado texto. Mas há, sim, leituras impossíveis e que não são respaldadas pelo texto. Nesse caso, aquela nossa hipótese de que toda e qualquer relação pudesse ser aceita, bastando apenas que o leitor a determinasse, realmente não procede. Considerando o texto como via de acesso à materialidade linguística para leitura, “sobre o qual e a partir do qual se constitui a interação” (KOCH, 2008, p. 19), a leitura como uma proposta de produção de sentido, “de modo que as compreensões daí decorrentes são fruto do trabalho conjunto entre os produtores e receptores em situações reais de uso da língua”, conforme pontua (MARCUSCHI, 2010, p. 242), afirmamos que há limites para a compreensão textual. Fica evidente, pois, a importância do critério de plausibilidade associado ao conceito de leitura, de produção de sentido/compreensão, quando se determina um tipo de relação presente em um texto, a partir dos pressupostos da RST. Na verdade, nós que lidamos com essa teoria, sabemos que nomear uma relação não se trata de expediente tão fácil. Vez por outra, vemo-nos diante de determinadas análises que exigem de nós cuidado e reflexões. A esse respeito, consideramos pertinentes as observações de Zanini; Nilsson e Giering (2004), no artigo As vias de
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continuidade em artigos de opinião autorais e os comentários de Fuchs e Giering (2008), no artigo A importância da consideração de aspectos funcionais do texto para a eficiência de análises RST, as quais transcrevemos a seguir. As observações feitas sobre os textos apresentaram, na maioria das vezes, coincidências no que diz respeito à possível escolha das relações feita pelo produtor, não havendo, então, discrepâncias. Por vezes, ocorreu de um observador optar pela relação de Justificativa e outro pela de Evidência, ambas relações de via Apresentativa. Os dois, portanto, chegaram à conclusão de que o produtor precisou expor argumentos concretos para sustentar a sua posição, característica comum das relações. (ZANINI; NILSSON E GIERING, 2004, p. 2). O fator que mais gerou discussão entre os anotadores foi a escolha de relações. Conforme Mann e Thompson (1998), pode haver mais de uma alternativa de análise para um texto. Afinal, o papel do analista é fundamental em todas as etapas da análise, e envolve mais do que o conhecimento das categorias de análise (relações e processos de segmentação de estruturação) (...) (FUCHS, GIERING, 2008, p. 231).
Fica evidente, a partir dos trechos analisados, que os pontos levantados até aqui, dão conta de que o analista precisa ampliar as suas capacidades de compreensão textual, no sentido de saber o que faz quando se dispõe a processar as informações do que lê, como no caso das análises do texto escrito, a fim de se estabelecer a proposições relacionais em uma dada análise textual, à luz da Teoria da Estrutura Retórica. Essa ressalva, acerca da ampliação das capacidades de compreensão textual do leitor, vem de Antunes (2011). Ainda é a autora que arremata dizendo: Em síntese, com a análise de textos, pretendemos desenvolver nossa capacidade de perceber as propriedades, as estratégias, os meios, os efeitos, enfim, as regularidades implicadas no funcionamento da língua em processos comunicativos de sociedades concretas, o que envolve a produção e a circulação de todos os tipos de textos-emfunção. (ANTUNES, 2011, p. 51). (Destaque da autora)
Assim, a partir dessas reflexões, é possível dizer que as questões implicadas no estabelecimento da plausibilidade, ultrapassam, conforme pontuado, ao conhecimento das categorias de análise. Orientam-se, sim, para capacidades de compreensão textual do analista, que incluem, entre outras, à sua capacidade de fazer inferências, uma das noções centrais numa teoria de compreensão, conforme apontado no decorrer da discussão.
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A seguir, apresentamos por meio da análise de um texto pertencente ao gênero artigo de opinião, a partir dos pressupostos teóricos da RST, as possíveis leituras e as possíveis identificações das proposições relacionais que um analista pode fazer, de um mesmo texto, empregando o critério de plausibilidade. Para proceder à análise da macroestrutura retórica do texto, foram identificadas as porções textuais, denominadas spans, por Mann e Thompson (1987), que as consideram como um intervalo linear ininterrupto de texto. Para proceder à análise foram considerados todos os elementos que compõem o texto, ou seja, o título, o autor, o conteúdo e a fonte. Já os diagramas foram elaborados através da ferramenta RST Tool, proposta por Michael O`Donnell, disponível no site www.wagsoft. Visto que este artigo tem o objetivo de discutir o critério de plausibilidade, conforme pontuado anteriormente, não apresentamos a discussão de todas as porções que compõem o texto. Priorizamos aquelas em que identificamos mais de uma possibilidade de analise da relação retórica que emerge entre as porções em destaque. Considerando,
pois,
o
critério
da
plausibilidade,
apresentamos
nos
DIAGRAMAS 1 e 2, mais de uma proposta de análise plausível de duas porções do texto pertencente ao gênero artigo de opinião Construtivismo e destrutivismo de Cláudio de Moura Castro, publicado na Revista Veja de 21/04/2010, p. 24. Ressaltamos que em cada diagrama, apresentamos possíveis leituras referentes ao texto analisado.
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DIAGRAMA 1: Construtivismo e destrutivismo – Cláudio de Moura Castro - Primeira proposta de análise 1-14 Capacitação 1-13
Revista Veja, 17 de abril de 2010
Preparação 1-2
3-13 Atribuição
Construtivismo e destrutivismo
Cláudio de Moura Castro
Conclusão 3-12 Motivação "O construtivismo é uma hipótese teórica atraente e que pode ser útil na sala de aula. Mas, nos seus desdobramentos espúrios, vira uma cruzada religiosa, claramente nefasta ao ensino".
4-12 Elaboração T inha missão é árdua: quero desvencilhar o construtivismo dos seus discípulos mais exaltados, culpados de transformar uma ideia interessante em seita fundamentalista. O construtivismo busca explicar como as pessoas aprendem. Prega que o processo educativo não é uma sequência de pílulas que os alunos engolem e decoram. É necessário que eles construam em suas mentes os arcabouços mentais que permitem entender o assunto em pauta. Essa visão leva à preocupação legítima de criar os contextos, metáforas, histórias e situações que facilitem aos alunos "construir" seu conhecimento. Infelizmente, o construtivismo borbulha com interpretações variadas, algumas espúrias e grosseiras. Vejo quatro tipos de equívoco:
5-12 O primeiro engano é pensar que teria o monopólio da verdade - aliás, qual das versões do construtivismo? As hipóteses de Piaget e Vigotsky coexistem com o pensamento criativo de muitos outros educadores e psicólogos. Dividir o mundo entre os iluminados e os infiéis jamais é uma boa ideia
. O segundo erro é achar que todo o aprendizado requer os andaimes mentais descritos pelo construtivismo. Sem maiores elaborações intelectuais, aprendemos ortografia, tabuadas e o significado de palavras.
Lista 7-8
9-12 Evidência
O terceiro é Não obstante, O quarto erro, de aceitar uma muitos graves teoria científica construtivistas consequências, como verdadeiraacham que a teoria é supor que, por conta da se basta em si. De como cada um palavra de fato, não a aprende do seu algum guru. Em defendem com jeito, os materiais toda ciência números. de ensino respeitável, as Obviamente, nem precisam se teorias são tudo se mede com moldar apenas um pontonúmeros. Mas, infinitamente, de partida, uma como na educação segundo cada explicação temos boas aluno e o seu possível para medidas do que os mundinho. algum fenômeno alunos aprenderam,Portanto, o do mundo real. não há desculpas professor deve Só passam a serpara poupar essa criar seus aceitas quando, teoria da tortura do materiais, sendo ao cabo de teste empírico, rejeitados os observações imposto às demais. livros e manuais rigorosas, Por isso, temos o padronizados e encontram direito de duvidar que explicam, correspondência do construtivismo, passo a passo, o com os fatos. quando fica só na que aluno deve Einstein disse teoria. Mas o que é fazer. que a luz fazia pior: outros curva. Bela e testaram as ideias ambiciosa construtivistas, não hipótese! Mas só encontrando uma virou teoria correspondência aceita quando robusta com os um eclipse em fatos. Por exemplo, Sobral, no Ceará,orientações permitiu observarconstrutivistas de a curvatura de alfabetizar não um facho obtiveram bons luminoso. O resultados em construtivismo pesquisas não escapa metodologicamente dessa sina. Ou à prova de bala. passa no teste empírico ou vai para o cemitério da ciência - de resto, lotado de teorias lindas.
Evidência 10-12 Desde a Revolução Industrial, sabemos que cada tarefa deve ser distribuída a quem a pode fazer melhor. Assim é feito um automóvel e tudo o mais que sai das fábricas. Na educação, também é assim. Os materiais detalhados são amplamente superiores às improvisações de professores sem tempo e sem preparo.
Lista De fato, centenas de pesquisas rigorosas mostram as vantagens dos materiais estruturados ou planificados no detalhe. Seus supostos males são pura invencionice de seitas locais. Quem nega essas conclusões precisa mostrar erros metodológicos nas pesquisas. Ou admitir que não acredita em ciência.
Aliás, nada há no construtivismo que se oponha a materiais detalhados. Entre os construtivistas americanos, muitos acreditam ser impossível aplicar o método sem manuais passo a passo.
Em suma, o construtivismo é uma hipótese teórica atraente e que pode ser útil na sala de aula. Mas, nos seus desdobramentos espúrios, vira uma cruzada religiosa, claramente nefasta ao ensino.
Fonte: Diagrama elaborado pelas pesquisadoras
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DIAGRAMA 2: Construtivismo e destrutivismo – Cláudio de Moura Castro Segunda proposta de análise 1-14 Capacitação 1-13
Revista Veja, 17 de abril de 2010
Preparação 1-2
3-13 Atribuição
Construtivismo e destrutivismo
Cláudio de Moura Castro
Conclusão 3-12 Resumo "O construtivismo é uma hipótese teórica atraente e que pode ser útil na sala de aula. Mas, nos seus desdobramentos espúrios, vira uma cruzada religiosa, claramente nefasta ao ensino".
4-12 Elaboração T inha missão é árdua: quero desvencilhar o construtivismo dos seus discípulos mais exaltados, culpados de transformar uma ideia interessante em seita fundamentalista. O construtivismo busca explicar como as pessoas aprendem. Prega que o processo educativo não é uma sequência de pílulas que os alunos engolem e decoram. É necessário que eles construam em suas mentes os arcabouços mentais que permitem entender o assunto em pauta. Essa visão leva à preocupação legítima de criar os contextos, metáforas, histórias e situações que facilitem aos alunos "construir" seu conhecimento. Infelizmente, o construtivismo borbulha com interpretações variadas, algumas espúrias e grosseiras. Vejo quatro tipos de equívoco:
5-12 O primeiro engano é pensar que teria o monopólio da verdade - aliás, qual das versões do construtivismo? As hipóteses de Piaget e Vigotsky coexistem com o pensamento criativo de muitos outros educadores e psicólogos. Dividir o mundo entre os iluminados e os infiéis jamais é uma boa ideia
. O segundo erro é achar que todo o aprendizado requer os andaimes mentais descritos pelo construtivismo. Sem maiores elaborações intelectuais, aprendemos ortografia, tabuadas e o significado de palavras.
Lista 7-8
9-12 Elaboração
O terceiro é Não obstante, O quarto erro, de aceitar uma muitos graves teoria científica construtivistas consequências, como verdadeiraacham que a teoria é supor que, por conta da se basta em si. De como cada um palavra de fato, não a aprende do seu algum guru. Em defendem com jeito, os materiais toda ciência números. de ensino respeitável, as Obviamente, nem precisam se teorias são tudo se mede com moldar apenas um pontonúmeros. Mas, infinitamente, de partida, uma como na educação segundo cada explicação temos boas aluno e o seu possível para medidas do que os mundinho. algum fenômeno alunos aprenderam,Portanto, o do mundo real. não há desculpas professor deve Só passam a serpara poupar essa criar seus aceitas quando, teoria da tortura do materiais, sendo ao cabo de teste empírico, rejeitados os observações imposto às demais. livros e manuais rigorosas, Por isso, temos o padronizados e encontram direito de duvidar que explicam, correspondência do construtivismo, passo a passo, o com os fatos. quando fica só na que aluno deve Einstein disse teoria. Mas o que é fazer. que a luz fazia pior: outros curva. Bela e testaram as ideias ambiciosa construtivistas, não hipótese! Mas só encontrando uma virou teoria correspondência aceita quando robusta com os um eclipse em fatos. Por exemplo, Sobral, no Ceará,orientações permitiu observarconstrutivistas de a curvatura de alfabetizar não um facho obtiveram bons luminoso. O resultados em construtivismo pesquisas não escapa metodologicamente dessa sina. Ou à prova de bala. passa no teste empírico ou vai para o cemitério da ciência - de resto, lotado de teorias lindas.
Elaboração 10-12 Desde a Revolução Industrial, sabemos que cada tarefa deve ser distribuída a quem a pode fazer melhor. Assim é feito um automóvel e tudo o mais que sai das fábricas. Na educação, também é assim. Os materiais detalhados são amplamente superiores às improvisações de professores sem tempo e sem preparo.
Lista De fato, centenas de pesquisas rigorosas mostram as vantagens dos materiais estruturados ou planificados no detalhe. Seus supostos males são pura invencionice de seitas locais. Quem nega essas conclusões precisa mostrar erros metodológicos nas pesquisas. Ou admitir que não acredita em ciência.
Aliás, nada há no construtivismo que se oponha a materiais detalhados. Entre os construtivistas americanos, muitos acreditam ser impossível aplicar o método sem manuais passo a passo.
Em suma, o construtivismo é uma hipótese teórica atraente e que pode ser útil na sala de aula. Mas, nos seus desdobramentos espúrios, vira uma cruzada religiosa, claramente nefasta ao ensino.
Fonte: Diagrama elaborado pelas pesquisadoras
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Conforme descrito no DIAGRAMA 1, o texto Construtivismo e destrutivismo de Cláudio de Moura Castro foi segmentado em 14 unidades de informação. Defendemos duas propostas de análises plausíveis para as porções (3 – 12) e (7 – 12). A porção (3 – 12) foi segmentada nas Unidades de informação (UIs) (3) e (4 – 12), sendo possível identificar entre elas uma relação de motivação, visto que a UI (3), segundo Mann & Thompson (1988), faz com que a vontade do leitor (L) para executar a ação presente no núcleo (N) aumente, ou seja, L se sente motivado a ler o conteúdo do texto. Porém, conforme demonstrado no DIAGRAMA 2, é plausível identificar para essa porção uma relação também de resumo, já que a UI (3) possibilita ao leitor reconhecer o conteúdo do satélite (S) como uma reafirmação mais curta de N, ou seja, essa UI encerra o que será discutido no conteúdo do texto, que são considerações sobre o mal entendimento do Construtivismo. Ainda no DIAGRAMA 1, registramos uma análise plausível para as porções (7 – 8) e (9 – 12), que fazem parte da lista (5 – 12). Com relação à análise da porção (7 – 8), é plausível identificar a relação de evidência, uma vez que a UI (8) proporciona ao leitor maior confiança em N, pois mostra dados que comprovam e ineficiência da teoria mediante dados obtidos em avaliações que levam a duvidar do Construtivismo. Entre as UIs (9) e (10 – 12) também emerge a relação de evidência, pois a porção (10 - 12) demonstra, em uma relação multinuclear de lista, fatos que levam L a aumentar a confiança em N, uma vez que descreve três provas que comprovam o quarto erro com relação ao Construtivismo. Para as mesmas porções (7 – 8) e (9 – 12), conforme demonstrado no DIAGRAMA 2, é plausível a relação núcleo-satélite de elaboração que emerge entre as UIs (7 – 8), tendo em vista que a UI (7), núcleo, cita o terceiro equívoco, cuja ideia central é aceitar o construtivismo como uma teoria científica verdadeira por ser defendida por algum guru. Já a UI (8), satélite de (7) apresenta dados adicionais sobre a situação apresentada em N, que são críticas relativas à teoria do Construtivismo. A porção (9 – 12) trata do quarto equívoco oriundo do erro de interpretação do Construtivismo. A UI (9), núcleo do satélite (10 – 12), expõe a ideia de que, por entender que cada um aprende do seu jeito, exige dos profissionais uma infindável elaboração de material, além de desconsiderar os já existentes, o que traz consequências
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graves. A porção (10 – 12) assume a função de satélite da UI (9), e traz fatos adicionais que corroboram a ideia das consequências graves do mau entendimento da teoria. Esses argumentos são elaborados na forma multinuclear de lista discutindo a confecção de materiais, em que o autor do texto adiciona, na UI (10), a importância de algo ser feito por quem sabe fazer melhor; na UI (11) as pesquisas mostram as vantagens dos profissionais terem à sua disposição bons materiais e, na UI (12), é acrescentando o argumento de que, no Construtivismo, não há nada que se oponha a materiais detalhados. Considerações finais Após nossas discussões e análise da estrutura retórica, a partir da RST, considerando, principalmente o critério de plausibilidade, verificamos que a compreensão leitora do texto, bem como a habilidade de fazer inferências, proporcionam aspectos relevantes, no que diz respeito à compreensão da leitura, tais como: i) a possibilidade de diferentes leituras, levando à identificação de diferentes relações retóricas em um mesmo texto; ii) o conhecimento prévio e, principalmente, o contexto podem influenciar na identificação das relações retóricas em texto; iii) a plausibilidade é um critério que facilita a análise de texto à luz da RST, uma vez que possibilita análises diferentes para as mesmas porções textuais. Referências ANTONIO, J. D. O texto como objeto de estudo na lingüística textual. In: ANTONIO, J. D e NAVARRO, P. (orgs.) O texto como objeto de ensino, de descrição lingüística e de análise textual e discursiva. Maringá: UEM, 2009. ANTUNES, I. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola, 2005. ANTUNES. I. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola, 2003. ANTUNES, I. Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola Editorial, 2011. BAKTHIN, M. Os gêneros do discurso. IN: M. Bakthin. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1979.
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CASTRO, C. M. Construtivismo e destrutivismo. Revista Veja, n° 16, p. 24, 21 de abril de 2010. ECO, Umberto. Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 1988. FUCKS, J. T; GIERING, M. E. Reflexões para a análise RST de textos, UNISINOS, 2008. GIERING, M. E. A RST e os fatores ascendentes e descendentes de organização dos textos: o caso dos artigos de divulgação científica midiáticos, UNISINOS, 2009. KOCH, I. G. V. Argumentação e linguagem. São Paulo: Cortez, 2008. MANN, W. C.; MATTHIESSEN, C. M. I. M.; THOMPSON, S. A. Rhetorical Structure Theory and text analysis. USC/Information Sciences Institute, RR-89-242, November 1989. MANN, W; THOMPSON, S.A. Rhetorical Structure Theory: A Theory of Text Organization, ISI: Information Sciences Institute, Los Angeles, CA, ISI/RS-87-190, 181, 1987. MANN, W.C.; THOMPSON, S.A. Rhetorical Structure Theory: toward a functional theory of text organization. Text, 8 (3), p. 243-281, 1988. MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2010. ZANINI, T; NILSSON, B; GIERING, M.E. As vias de continuidade em artigos de opinião autorais. Anais do 6º Encontro Celsul – Círculo de Estudos Linguísticos do Sul (2004).
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PRÁTICAS INOVADORAS NA FORMAÇÃO CONTINUADA: AS NTIC E A RESSIGINIFICAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE.
Mariana Furio da COSTA (UEL/CAPES)
1 INTRODUÇÃO O tema das (Novas) Tecnologias da Informação e Comunicação na Educação acaba por levantar diferentes pontos de vista nas pesquisas e produções acadêmicas (SIEMENS, 2006; PRENSKY, 2001; e ALONSO, 2008). Nas mídias, impressa ou digital, o tema é frequentemente relacionado à ideia de inovação, evolução e mudança. A velocidade em que a sociedade adere aos lançamentos de dispositivos e ferramentas tecnológicas não é a mesma daquela em que acontecem as transformações no âmbito educacional. Da mesma forma, a constante renovação das tecnologias, com a produção de novos gadgets, softwares e aplicativos torna quase obsoleto o esforço de encontrar uma nomenclatura que represente e categorize a totalidade dos dispositivos que hoje fazemos uso. Para o presente trabalho referir-me-ei, portanto, ao termo Novas Tecnologias da Informação (doravante NTIC) por considerar, não somente aos dispositivos físico e materiais, mas à característica de conectividade que eles então permitem. Tal diferenciação se faz necessária, pois pretendo denotar as consequências imediatas da utilização destes aparatos conectados à Internet na Escola. O presente texto parte da curiosidade em entender os meandros da inserção das NTIC na vida escolar, tomando como amostra o texto 1 de um grupo de professores em momentos de formação continuada. O objetivo consiste em, a partir da articulação da Análise Crítica do Discurso (FAIRCLOUGHT, 2003; GEE, 2011; ROGERS, 2004), da Teoria da Argumentação (LIBERALI, 2013) e pressupostos acerca da Formação Crítica 1
Considero “texto” assim como em Fairclough (2003): produções enunciativas faladas ou escritas. Assim, utilizo o termo “textos” para referir-me aos enunciados dos professores, resultado das transcrições das falas nas gravações feitas nos encontros.
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de Professores (LIBERALI, 2010), tentar demonstrar como o momento de Formação Continuada com vistas às NTIC constitui-se como processo de ressignificação do trabalho docente. Espera-se, assim, ser possível discutir sobre e de que forma iniciativas tais como o Projeto Life/UEL motivam novas experiências para os professores no que tange ao uso de ferramentas tecnológicas para fins pedagógicos. Este trabalho surge como um recorte da pesquisa em andamento que pretende concluir o texto de dissertação, em nível de mestrado em Estudos da Linguagem (UEL/Londrina, PR), sobre representações discursivas feitas por professores acerca das NTIC em momento de Formação Continuada do Life/UEL. A escolha pelo Projeto Life/UEL como espaço de coleta de dados deve-se à sua proposta de formação continuada com vistas às NTIC. Além disto, o formato do projeto, enquanto espaço que propõe a formação continuada, permitiu presenciar professores da rede pública debatendo e discutindo acerca de suas experiências com as NTIC. O Life/UEL consiste em um projeto de investigação, aprovado pelo Programa de Apoio Life da Capes (BRASIL/MEC, 2012) 2 que, para tanto, sugere a criação de um ambiente físico para a articulação de: formação continuada; a formação inicial; ensino sobre ferramentas digitais; e a coleta de dados para investigação. O espaço Life/UEL encontra-se no Colégio de Aplicação da UEL (Londrina/PR) e, com trinta notebooks, rede wi-fi e lousa digital, a sala recebe professores da rede pública de Londrina e Região, os alunos e os professores do Colégio de Aplicação para livre utilização dos equipamentos (UEL, 2013). Além da criação do espaço físico, o propósito do Life/UEL é oferecer oficinas temáticas mensais a professores da Escola Pública de Londrina e Região utilizando os dispositivos ali disponíveis. O grupo de trabalho durante os encontros estava composto por: duas professoras coordenadoras do departamento de Educação da UEL; uma pesquisadora; uma estagiária bolsista; duas estagiárias do programa de Iniciação Científica Júnior. As oficinas um tema diferente a cada mês, entre eles: “Movie Maker”, “Power Point”, “Prezi” e “Ferramentas de compartilhamento on-line”. O recorte, de
2
Disponível em: . Acesso em 15 de Outubro de 2014
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onde são retirados os excertos nas análises, refere-se à primeira e última oficinas ministradas (doravante “oficina 1” e “oficina 2”, respectivamente). 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO MEDOTODOLÓGICA A Análise Crítica do Discurso é um emaranhado de teorias transdisciplinares e, portanto, permite o diálogo com diferentes áreas do conhecimento que nos permite, então considerar como pressupostos: I.
Práticas educacionais são eventos comunicativos;
II.
Estudos discursivos são uma forma de olhar para a pesquisa em Educação de forma conceitual e ainda sob uma perspectiva sócio cultural;
III.
Estudos discursivos e pesquisa em educação são ambos os paradigmas sociais transdisciplinares. (ROGERS; 2011:1) A abordagem da ACD permite, assim, maior aproximação dos sentidos
construídos em momentos de enunciação por considerar ambivalentes os potenciais linguístico e social de momentos enunciativos (FAIRCLOUGH, 2003: 2). Esta é uma forma de expressar linguagem constrói e é construída pela sua prática. Tem-se a definição de Rogers (2011: 5)3 de que sentidos são criados por sistemas de representação – linguagem sendo um sistema de signos que as pessoas usam para criar sentidos. Sentidos estão sempre inseridos em contexto social, histórico, político e ideológico. E, sentidos são motivados (...) – eles pretendem realizar algo (ROGERS, 2011)
O campo da educação é um campo frutífero para a abordagem discursiva de estudos, podendo despertar questionamentos nos mais variados níveis de complexidade.
Uma abordagem crítica, como proposta pela ACD, implica pensar questões como poder, ideologia, hegemonia, globalização, mercantilização, desigualdade, etc. De forma complementar, o presente trabalho compartilha da concepção de que a Argumentação consiste em uma prática democrática onde se torna possível a construção de pensamento crítico frente questões sociais, políticas, econômicas e culturais. O exercício argumentativo prevê o conflito entre pontos de vista diferentes envolvendo questões de valor (LIBERALI, 2013: 10). Ou seja, durante o momento de Formação 3
Tradução livre: “Thus, meanings are made through representational systems – language being just one of the sign system people use to create meanings. Meanings are always embedded within social, historical, political, and ideological contexts. And meanings are motivated (…) – they intend to accomplish something –” (ROGERS, 2011:5)”
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Continuada, em que os professores estão em exercício argumentativo, tem-se a possibilidade de debruçar-se para o exercício da reflexão, transformação e da formulação de sentidos. O exercício argumentativo é um momento dialógico em que diferentes pontos de vista levam a ressignificação (LIBERALI, 2013: 44). No âmbito da formação de professores sob a luz da Teoria Argumentação permite revelar papéis intercambiáveis e interdependentes entre si, uma vez que: o papel preponderante da argumentação se firma como propiciadora de um constante movimento de produção do novo na medida em que pressuponho um outro como capaz de se posicionar em relação ao eu (LIBERALI, 2013: 48).
Neste ínterim, as discussões acerca da inclusão das NTIC no contexto escolar, em momentos de formação, não se limitam à díade proibição e/ou inclusão de dispositivos. Pelo contrário, ela é complexa e propõe repensar questões de fundo, como: a identidade do professor, concepções de ensino, de aprendizagem, currículo dos cursos de licenciatura, currículo escolar e formação continuada. Assim como aponta Alonso (2008: 754-5): A incorporação de tecnologias nesse âmbito contribui, no mais das vezes, para acelerar a crise de identidade dos professores. Quando são integradas ao fazer pedagógico, necessitam ser significadas. O sentido do objeto técnico na prática escolar termina por definir não somente determinado uso, mas a sedimentação de culturas. A história da educação e da pedagogia ensina pensar sobre tais processos. Se, com[5] a aparição dos livros, houve questionamentos sobre a legitimidade do professor como “depositário” do saber, o caso das TIC traz à tona a discussão sobre o papel profissional dos professores nos processos de ensino/aprendizagem (ALONSO, 2008)
A seguir, traço uma breve análise tentando demonstrar traços discursivos que revelam o processo que pode levar à ressignificação do trabalho docente, no momento de formação continuada. 3 ANÁLISE Considerando os excertos que seguem, busco demonstrar como o exercício argumentativo utilizado nos textos serve como mecanismo para construção de novos sentidos, reavaliação de posicionamentos e reflexão sobre ideais, conceitos e ideologias próprios e dos outros. Para tal, utilizo as definições e características epistemológicas que
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caracterizam tipos de Argumentação (LIBERALI, 2013: 13) eles estão resumidos no Quadro 1. Argumentação como Debate
Argumentação como Argumentação como Diálogo Discussão
Conceitual. Une partes lógicas Colaborativa: múltiplos pontos de vista (com o outro). trabalham a favor de uma compreensão Combativa. Aumenta a compartilhada. Age a partir das falhas compreensão. Ouve-se para compreender, fazer sentidos e do outro. Impessoal. encontrar pontos em comum. Reafirma pontos de Contribuições Alarga e transforma a visão dos participantes. vista. individuais. A experiência pessoal é o principal caminho Não é pessoal. Toda contribuição é para conscientização pessoal e compreensão Toma pressupostos válida, se colabora política. como verdades. com a resolução do Revela pressupostos para serem reavaliados. Defende o próprio problema. Provoca reflexão e introspecção sobre os posicionamento. Indiferente às próprios posicionamentos. Atitude restritiva – divergências de pontos Cria atitudes de mente aberta para rever pontos busca ‘estar certo’. de vista. de vista e transformá-los. Busca por pontos fracos Busca por pontos Busca os pontos fortes em todas as posições. do outro. fortes. Respeita todos/as os/as participantes e busca Rebate e desqualifica o Presume igualdade. não alienar ou ofender. outro. Pouca articulação entre Pressupõe que muitas pessoas têm parte de Supõe única perspectivas. respostas e que juntas podem chegar a verdade/certeza. Demanda soluções. Demanda conclusões concordância (da Mantém-se aberta. maioria) para conclusões. Quadro 1 - Tipos epistemológicos de Argumentação com base em Liberali (2013).
Desta forma, seguem os textos em que tentarei demonstrar de que forma o exercício argumentativo propiciou espaços de diálogo em que é possível perceber as características descritas no Quadro 1. A necessidade de trazer as características da Argumentação como Debate e Discussão deve-se a tentativa de criar contraste. Excerto 1: Durante a oficina 2 os professores participaram de um exercício de grupo focal, dirigido pela Coordenadora [Co] e pela Pesquisadora [Pe], neste momento quatro professores conversavam. No trecho em questão (contendo as falas de dois dos quatro professores) estava sendo discutido acerca do uso de salas ou laboratórios de
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informática na escola e foi comentado sobre a participação de P2 no Projeto Obeduc 4 que aproximou P2 do uso das NTIC. É importante entender que o trecho traz dois assuntos complementares. Co – Depois, ó, depois que ela começou o Obeduc ela usa mais, por quê? P2 – Porque eu consegui fazer, acho que, transforma minhas aulas, fazer uma busca com eles, é, eu acho que fica interessante, mesmo usando só o (?) que eu vou fazer um trabalho com o (?) amanhã usando pesquisa da Internet também, coisa que eu não fazia, eu acabava levando algum tipo de trabalho escrito e passava. Agora, eu passo pra eles irem, buscarem a cada dois, três por computador. E tão indo, eles fazem coisas assim!! P1 – Se levar, sai, acontece.
Vemos, por exemplo, que a pergunta feita por Co leva P2 a reavaliar sua
perspectiva de formação continuada, no referido Obeduc, pois “transforma minhas aulas” releva que P2 reconhece uma determinada mudança sobre sua maneira de perceber sua prática. A pergunta também provoca reflexão sobre seu posicionamento em relação ao uso das NTIC em contexto escolar: “Agora, eu passo pra eles irem, buscarem”, neste momento P2 descreve um deslocamento em que o professor não é o agente da ação “ir”, “buscar”. Além disto, ente P2 e P1 há a concomitância de opiniões sobre a prática de levar os alunos para a sala de informática da escola, como em “Se levar, sai, acontece”. Esta união de perspectivas é característica de um processo colaborativo de Argumentação em que “múltiplos pontos de vista trabalham a favor de uma compreensão compartilhada” (c.f. Quadro 1) (LIBERALI, 2013). Excerto 2: O trecho a seguir refere-se a sequencia do tema sobre levar os alunos até a sala de informática na escola. A professora, P2, previamente, descrevia sua prática acerca do uso da sala de informática, para ela depende do comportamento dos alunos durante as aulas a ida ao laboratório. Neste trecho, Co transcreve esta descrição para o termo “ameaça”. Co – Ah, tem que trabalhar na ameaça sempre? P2 – Muitas vezes sim. 4
Durante as oficinas os professores que participavam do projeto Obeduc integravam o projeto Life/UEL, pois compartilhavam da mesma coordenadora. Neste caso, ambos são propostas de formação de professores que abordam as NTIC.
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Co – Sempre? P2 – Sim.
Chamo a atenção neste trecho para a dinâmica de pergunta e resposta que se coloca. No breve diálogo, P2 confrontou seu próprio posicionamento e reavaliou sua concepção da prática anteriormente citada da “ameaça”. Ainda que o termo tenha sido usado por Co em particular interpretação, P2 aceita a denominação e reflete sobre a prática que ela representa. Os trechos apresentados acima são exemplos dos textos de professores que, em momentos de formação continuada, fazem uso da Argumentação para dialogar e ressignificar sua prática com vistas às NTIC. Espera-se com isto reforçar a ideia de que a inclusão das NTIC no contexto escolar é complexa e não se limita à simples aquisição e instalação de aparelhos em salas escolares, como aconteceu com as Tv-Pendrive ou Laboratórios de Informática. As discussões acerca da inclusão das NTIC no contexto escolar não se limitam à díade proibição e/ou inclusão, pelo contrário complexa e invoca questões de fundo, como: a identidade do professor, concepções de ensino, de aprendizagem, currículo dos cursos de licenciatura, currículo escolar e formação continuada. Assim como aponta Alonso (2008: 754-5): A incorporação de tecnologias nesse âmbito contribui, no mais das vezes, para acelerar a crise de identidade dos professores. Quando são integradas ao fazer pedagógico, necessitam ser significadas. O sentido do objeto técnico na prática escolar termina por definir não somente determinado uso, mas a sedimentação de culturas. A história da educação e da pedagogia ensina pensar sobre tais processos. Se, com[5] a aparição dos livros, houve questionamentos sobre a legitimidade do professor como “depositário” do saber, o caso das TIC traz à tona a discussão sobre o papel profissional dos professores nos processos de ensino/aprendizagem (ALONSO, 2008)
Como destaca Siemens (2005) o aprender, quando permeado pelas NTIC, permite que os alunos selecionem, busquem e armazenem conhecimento de forma autônoma. É comum que as escolas adotem uma política de proibição de celulares, porém esta pode ser um paliativo na tentativa de lidar com uma questão muito maior.
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Tem-se em Marc Prensky (2001)5, por sua vez, outro posicionamento, ele propõe a diferenciação entre nativos digitais e imigrantes digitais ilustrando este processo de adaptação e transformação promovido pela inserção das NTIC na Escola. Nas palavras do autor: “É muito sério, porque o único e maior problema que a educação enfrenta hoje é que nossos instrutores Imigrantes Digitais, que falam uma linguagem desatualizada (aquela anterior à era digital), se esforçam para ensinar uma população que fala uma linguagem inteiramente nova” (PRENSKY, 2001:2). 4 CONCLUSÃO A partir da articulação dos dados e conceitos vistos acima, resta então reforçar que as propostas que reforcem as práticas de formação continuada que primem pelo diálogo e reflexão. A popularização das NTIC na sociedade serve aqui como gatilho para pensar a tradição escolar. Medidas paliativas de proibição e regulação de uso de dispositivos (como tantas outras) não asseguram a qualidade do ensino. Da mesma forma que a simples aquisição de aparelhos para escolas não garante a inserção das NTIC na vida escolar. Existe, no entanto, a necessidade de inserir a prática docente em sua totalidade, isto implica revistar conceitos e ideias inerentes ao fazer escolar. Esperase neste presente artigo que a articulação de conceitos, da ACD, Teoria da Argumentação e dos estudos acerca das NTIC na Escola, possam demonstrar um caminho para amenizar polaridades neste tema criando devidamente um espaço de desenvolvimento e melhoria do ensino em tempos digitais. REFERÊNCIAS ALONSO, Kátia Morosov. Tecnologias da informação e comunicação e formação de professores: sobre escolas e redes. Educação e Sociedade, Campinas, v. 29, n.104 – Especial, p. 747- 768, Out 2008. Disponível em ˂http://www.cedes.unicamp.br˃. Acesso em 29 de Setembro de 2014. BRASIL/CAPES. Programa de Apoio a Laboratórios Interdisciplinares de Formação de Educadores. 2012. Disponível em: . Acesso em 22 de Setembro de 2014. 5
Tradução livre: “It’s very serious, because the single biggest problem facing education today is that our Digital Immigrant instructors, who speak an outdated language (that of the pre-digital age), are struggling to teach a population that speaks an entirely new language.” (PRENSKY, 2001, p. 2)
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FAIRCLOUGH, Norman. Analysing Discourse: Textual analysis for social research.1st ed. New York: Routledge, 2003. GEE, James Paul. Discourse Analysis: What Makes It Critical. In: ROGERS, Rebecca(Org.). An Introduction to Critical Discourse Analysis in Education. 2nd ed. New York: Routledge, 2011. p. 23-45. LIBERALI, Fernanda Coelho. Argumentação em Contexto Escolar. 1ª ed. Campinas: Pontes Editores, 2013. PRENSKY, M. Digital Natives Digital Immigrants, Part II: Do they really Think Differently? In: PRENSKY, Marc. On the Horizon. NCB University Press, Vol. 9 No. 5, December (2001b). Disponível em . Accesso em 18 de Maio de 2014 PRENSKY, M. Digital Natives Digital Immigrants. In: PRENSKY, Marc. On the Horizon. NCB University Press, Vol. 9 No. 5, October (2001a). Disponível em . Acesso em 18 de Maio de 2014 ROGERS, Rebecca (Org.). An Introduction to Critical Discourse Analysis in Education. 2nd ed. New York: Routledge, 2011. ROGERS, Rebecca. Critical Approach to Discourse Analysis in Educational Research. In: ROGERS, Rebecca (Org.). An Introduction to Critical Discourse Analysis in Education. 2nd ed. New York: Routledge, 2011. p. 01-20. SIMENS, G. Connectvism: A learning theory for the Digital Age. In: International Journal of instructional Technology and distance learning. Vol. 2 No. 1, January (2006). Disponível em: < http://www.itdl.org/>. Acesso em 10 de Maio de 2014 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA. Formação de Professores e TIC: O impacto do Life na prática docente. 2013.
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TERMINOLOGIA DO COMÉRCIO INTERNACIONAL NO MERCOSUL: COMPILAÇÃO E ANÁLISE DE UM CORPUS BILÍNGUE Mariana Francis (UNIOESTE / PG-UFSC) Introdução O presente trabalho é decorrente de uma pesquisa, breve e experimental, realizada como atividade avaliativa para a disciplina ‘Estudos de Corpora e Tradução’, do Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução da UFSC, em nível de doutorado. Nesse caso em particular, trata-se de uma primeira aproximação às teorias da Linguística de Corpus e à prática da compilação e análise de textos eletrônicos bilíngues. Para o desenvolvimento dessa atividade foram considerados, além dos conteúdos teóricos, as orientações recebidas no que concerne: à prática laboratorial durante as aulas presencias; e aos parâmetros estabelecidos como condicionantes para o estudo. Nesse último quesito estabeleceu-se:
a coleta ou acesso a um corpus bilíngue de 200.000 ocorrências;
a análise de algum elemento linguístico representativo desse corpus
(acima de 100 ocorrências). Houve liberdade de escolha quanto ao tema e aos textos a serem utilizados na pesquisa e, na medida em que surgiam dificuldades decorrentes da inexperiência ou inabilidade no tratamento das informações, as mesmas eram discutidas durante as aulas presenciais à procura de soluções. Antes de adentrar na descrição do experimento e seus resultados, elementos centrais desse artigo, é necessária a explicitação de algumas considerações inicias, a modo de esclarecimento. Algumas considerações iniciais
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Nesse trabalho, a noção de ‘corpus’ adotada, em consonância com os objetivos do estudo, se aproxima da definição expressa por Estela Maria Faustino Carvalho, ou seja, a de “uma amostra dos discursos especializados que se deseja analisar para extrair materiais terminológicos” (CARVALHO, 2007, p. 16). Por se tratar de um corpus bilíngue, o intuito da pesquisa é, também, o de levantar a possibilidade de construir uma ferramenta que ofereça auxílio aos tradutores, no
eixo
português-espanhol,
ao
se
depararem
com
textos
especializados,
especificamente, na área do Comércio Internacional. A esse respeito, é relevante destacar o posicionamento de Tagnin (2002) quanto à possibilidade do tradutor desconhecer o uso de algumas colocações e fórmulas das línguas (dentre as quais, também as línguas de especialidade), o que ela chama de “ingenuidade do tradutor”. Nas palavras dessa autora, “a ingenuidade do tradutor se configura numa compreensão composicional do significado e numa falta de consciência do quanto uma língua é constituída dessas partes pré-fabricadas” (TAGNIN, 2002, p. 193). Assumindo esses conceitos, o foco do presente estudo é a análise de coocorrências em termos do Comercio Internacional (no Mercosul), em português, e de suas traduções ao espanhol, a partir da coleta de textos e do processamento das informações no programa AntConc. Contexto Segundo Maluf (2000, p. 23), o Comercio Internacional pode ser definido como a troca de bens e serviços entre nações. Na região do Mercosul, essa é uma das principais atividades, alavancada desde a criação do bloco e proposta como um dos princípios1 que sustentam o acordo internacional. A integração regional que deu origem ao Mercosul, teve seus primórdios no ano de 1991, obtendo visibilidade em diversos meios de divulgação, dentre eles, a “Revista do Mercosul”.
1
A lista dos princípios que norteiam as ações do Mercosul pode ser consultada no site: < http://www.mercosul.gov.br/dados-gerais>
1307
Descrição da fonte e seleção e preparação do corpus A “Revista do Mercosul” consiste numa publicação mensal, bilíngue, direcionada ao público empresarial, editada entre os anos de 1992 e 2004. A coleção completa, impressa, consta nos arquivos da Biblioteca do Congresso Nacional2 e algumas edições estão disponibilizadas, em formato digital, na internet3. Apesar de se tratar de uma edição brasileira, alavancada pelos serviços informativos de agências de notícias regionais, e haverem diversos indícios de ser o português a língua originaria dos textos de notícias (alguns artigos assinados pelos seus autores; presença de pequenos erros na tradução ao espanhol; ausência da tradução ao espanhol de trechos em algumas matérias), não é possível afirmar que todos os artigos têm, como língua de origem, o português. Por um lado, embora exista essa incerteza, a escolha dessa fonte se justifica por constituir uma considerável quantidade de informação (digitalizada e disponível) dentro do âmbito em estudo. E, por outro lado, considerou-se que, para os objetivos do trabalho, era pouco relevante distinguir o texto de origem do texto traduzido. Dessa forma, assumindo uma postura de ‘percas e ganhos’ para a qual são maiores os ganhos, foi realizada a coleta dos textos extraídos das edições publicadas nos anos de 2000 e 2001. Foram compilados 206 textos em cada uma das línguas (412 no total), extraídos de 21 edições (da nº. 57 à nº. 77), salvos em 2 arquivos (um com os textos em português e o outro com os textos em espanhol) em formato .txt. A coleta demandou de bastante atenção, por se tratarem de línguas próximas e pela grande quantidade de textos, e foram aproveitados apenas os arquivo nos quais era possível acessar as versões nas duas línguas. Nesse processo, e devido a falhas no carregamento correto dos textos correspondentes a cada link, foram descartados oito textos: sete em português e um em espanhol. 2
A ‘Rede Virtual de Bibliotecas – Congresso Nacional’ pode ser consultada no site: 3 Site: .
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O levantamento dos dados do corpus Para obter os dados iniciais (número de palavras –types- e de ocorrências – tokens- de cada texto) foi utilizada a ferramenta Word List do programa AntConc, versão 3.2.4w. Esse programa, de acesso gratuito4, foi desenvolvido por Laurence Anthony, e disponibiliza diversas ferramentas, das quais, utilizaram-se nesse estudo, além da Word List: Collocates; Concordance; e File View. Como resultado da aplicação da Word List, com os textos em separado, obtiveram-se os seguintes dados:
Types Tokens
Textos em Português 13.368 106.391
Textos em espanhol 13.611 107.617
Tabela 1. Número de types e tokens em cada arquivo
Após, foi aplicada a Word List para ambos os textos, dessa vez no mesmo corpus. A seleção dos termos para análise Em vista dos objetivos do trabalho, explicitados anteriormente, a escolha dos termos a serem analisados obedeceu aos critérios estabelecidos para a proposta, ou seja, o estudo de um caso que possua acima de 100 ocorrências. Ao consultar a Word List, verificou-se que os termos ‘serviços’ e ‘servicios’, além de conformar elementos chaves dentro do Comercio Internacional, vista sua definição (‘troca de bens e serviços entre nações’), eram os primeiros a se enquadrarem, minimamente e em ambas as línguas, nos critérios exigidos. Para maior clareza, apresentam-se esses dados na imagem da ‘Ilustração 1’.
4
Disponível em:
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Ilustração 1. Termos selecionados da Word List
Além desses critérios, foi levada em consideração a brevidade e agilidade que demandou a pesquisa, motivos que reafirmaram a escolha dos termos para as análises. Apesar dos dados lançados pela Word List, observou-se, na triagem completa da lista, que os casos em que ‘Serviços’ e ‘Servicios’ estavam grafados com a inicial em caixa alta, não haviam sido contabilizados junto com as ocorrências expostas acima. Sendo assim, foram incluídos nas análises, como poderá ser observado nos passos seguintes. O alinhamento sentencial Uma das grandes dificuldades para realizar o alinhamento sentencial foi encontrar ferramentas eletrônicas disponíveis, e gratuitas, que dessem conta da extensão do corpus ou, ainda, que possibilitassem extrair os dados num documento com extensão .txt. Foram feitas várias tentativas com o programa AntPConc sem resultados e, ao solicitar auxílio nas aulas presencias, na impossibilidade da instituição disponibilizar
1310
programas pagos, foi sugerida uma solução alternativa, porém viável: o alinhamento manual das sentenças relativas aos termos selecionados para as análises. Para o desenvolvimento dessa tarefa, foram utilizadas duas janelas do programa AntConc, abertas de forma a serem consultadas simultaneamente, nas quais foi acionada a ferramenta Concordance e, por vezes, a File View, para extrair as sentenças em português e em espanhol alinhando-as. Veja-se a ilustração abaixo para maior clareza.
Ilustração 2. Alinhamento manual com o AntConc em duas janelas simultâneas
Como resultado obtiveram-se 120 pares de sentenças, alinhadas segundo a ordem em que apareciam na lista da Concordance em português, e salvas num único arquivo com extensão .txt. Concluída essa fase do processamento dos dados, o arquivo resultante foi aberto no programa AntConc à procura das colocações mais frequentes. A lista de colocações e a análise colocacional O procedimento de aplicação da ferramenta Collocates apontou 96 diferentes colocações que aparecem junto ao termo em português ‘serviços’, sendo que, a mais frequente é a preposição ‘de’, com 48 ocorrências. Desse total, ‘de’ aparece anteposta ao termo 30 vezes, e posposta 18, segundo pode ser conferido na ‘Ilustração 3’.
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Ilustração 3. Colocações para o termo ‘serviços’
Para esse estudo, a modo de breve amostra, delimitou-se a análise do termo ‘serviços’, e seu correspondente ‘servicios’, apenas nas ocorrências em que a preposição ‘de’ aparecesse posposta (17 casos), opção que facilita a organização numa lista alfabética. Utilizando as ferramentas Concordance (para ‘serviços de’) e File View, foram observadas as ocorrências uma a uma e percebeu-se que, com base na afirmação de Tagnin (ibid), as “partes pré-fabricadas” dessa língua de especialidade foram se manifestando além dos limites do termo, aparentemente isolado. Percebeu-se, dessa forma, a relação de equivalência de casos como ‘serviços de agenciamento marítimo e portuário’ e ‘servicios de dirección marítima y portuaria’ atuando em contextos de uso reais, como no exemplificado na ‘Ilustração 4’.
Ilustração 4. Fragmento de textos alinhados.
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Como passo final, foi elaborada uma lista das “partes pré-fabricadas”, as quais denominaremos aqui de ‘unidades terminológicas’, encontradas em textos do Comércio Internacional em português, e suas equivalências em espanhol. Essa lista, em anexo ao presente estudo, objetiva atiçar a curiosidade para um aprofundamento dos estudos com base em corpus, para desvendar aspectos opacos das línguas de especialidade e de sua tradução. Algumas considerações finais Após a realização do estudo é possível tecer alguns breves comentários quanto às percepções e ‘achados’ decorrentes da experiência realizada. Percebe-se a importância de uma escolha criteriosa do corpus nas pesquisas dessa natureza, assim como, também, procurar indícios certeiros que apontem o texto original e o traduzido; infelizmente isso não foi possível nesse estudo, motivo pelo qual não se falou em textos paralelos, mas, apenas, bilíngues. Por outro lado, o grande ‘achado’ decorrente da pesquisa é a confirmação, na prática, da possibilidade de unidades terminológicas que ultrapassam os limites das convencionadas em glossários e dicionários, e que também são, sem dúvidas, de grande ajuda na solução de problemas de tradução em áreas especializadas. Há 12 anos, Berber Sardinha (2002) alertava sobre a complexidade que pressupõe realizar tarefas em base a corpora, ao constatar que: O pesquisador ou tradutor que deseje fazer incursões na exploração de corpora para a investigação da tradução enfrentará o problema da maior escassez de recursos para sua área, da necessidade de aprender a utilizar software especializados, além de necessitar executar tarefas comuns da Linguística de Corpus, como a organização, formatação e exploração de corpus (BERBER SARDINHA, 2002, p. 21).
Tarefa que foi enfrentada como um desafio, com suas vitórias e derrotas (provavelmente temporárias), nessa proposta. Porém, o que caracteriza a evolução da humanidade é, justamente, vencer desafios.
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Referências BERBER SARDINHA, Tony. Corpora eletrônicos na pesquisa em tradução. Cadernos de tradução. Florianópolis, n. 9, vol. 1, 2002. p. 15-59. CARVALHO, Estela Maria Faustino. Metodologia de construção de um glossário bilíngue com base em um corpus de domínio técnico. 2007. 80f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Tradução). Centro de Comunicação e Expressão. UFSC, Florianópolis, 2007.
Disponível
em:
https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/90029/241755.pdf?sequence=1. Acesso em: jul. 2014. MALUF, Sâmia Nagib Maluf. Administrando o comércio exterior do Brasil. São Paulo: Aduaneiras, 2000. TAGNIN, Stella E. O. Os corpora: instrumentos de auto-ajuda para tradutores. Cadernos de tradução. Florianópolis, n. 9, vol. 1, 2002. p. 191-219. Anexo Lista bilíngue de unidades terminológicas 1.
serviços de agenciamento marítimo e portuário: servicios de dirección marítima y portuaria
2.
serviços de alta tecnologia: servicios de alta tecnología
3.
serviços de call center: servicios de call center
4.
serviços de carga aérea: servicios de carga aérea
5.
serviços de comunicação corporativa: servicios de comunicación corporativa
6.
serviços de comércio internacional: servicios de comercio internacional
7.
serviços de desembaraço aduaneiro: servicios de liberación aduanera
8.
serviços de envio de carta: servicios de envío de carta
1314
9.
serviços de inspeção: servicios de inspección
10. serviços de madrugada: servicios por la madrugada 11. serviços de mais elevado conteúdo tecnológico: servicios de mayor contenido tecnológico 12. serviços de malote: servicios de equipaje
1315
A ABORDAGEM DO CICLO DE POLÍTICAS E O ENSINO DE LÍNGUA INGLESA NA EDUCAÇÃO INFANTIL BRASILEIRA Mariana Guedes Seccato (UEL) Introdução O ensino de Língua Inglesa para crianças (LIC) se expande cada vez mais no Brasil (RAJAGOPALAN, 2005). Como consequência, existem vários pontos de vista sobre metodologias de ensino sem embasamento político que encontram apoio em reflexões leigas, como no caso de pais que acreditam que a aprendizagem de uma língua estrangeira pode somente fazer com que seu filho seja profissionalmente bem sucedido, ou em instituições que lidam com a Língua Inglesa (LI) como passatempo, acreditando que na Educação Infantil o ensino de uma Língua Estrangeira (LE) é simples e não requer qualquer tipo de formação e contextos adequados. A abordagem no presente artigo é voltada a uma concepção de aprendizagem que vai além de discursos capitalistas e contra ideais centralizadores. Pensamos na educação de língua dentro de uma visão dialógica bakhtiniana, através de práticas que permitam os indivíduos a serem autônomos e críticos (Moita Lopes e Rojo, 2004). Dessa forma enquadraremos os letramentos múltiplos e críticos, também nominados como multiletramentos (COMBER; NIXON, 2005; COPE, KALANTZIS, 2000, 2009; MONTE MÓR, 2009; ROJO, 2012) no processo de aprendizagem de LIC. Em uma sociedade considerada globalizada, composta por indivíduos pertencentes a culturas, estruturas sociais, econômicas e políticas diferentes, nós educadores nos deparamos ao mesmo tempo com a proximidade entre a diversidade e a heterogeneidade, que deve ser levada em consideração durante o processo de ensino e aprendizagem (ASSIS-PETERSON, 2008; KUBOTA, 2001; KUMARAVADIVELU, 2006; LACOSTE,Y, RAJAGOPALAN, 2005; LEFFA, 1999; MATSUDA, 2003; MOITA LOPES, 1996; MONTE MÓR, 2009; PENNYCOOK,1994). Uma maneira de elucidar as diversidades no LIC é pensar na abordagem bakhtiniana (ROCHA, 2010), onde se pensa na constituição da consciência do individuo
1316
através do seu contato com o outro. Dessa forma, através das relações sociais, o sujeito se constitui através da linguagem, e o enunciado, com seu caráter singular e único representa as diversidades dos indivíduos em cada ato de fala e relação comunicacional. (BAKTHIN, 2003). A fim levar em consideração as ideias acima mencionadas proponho algumas reflexões sobre os conceitos de Pedagogia do Multiletramento, Dialogismo e Plurilinguismo bakhtinianos no ensino de LIC. São conceitos que nos ajudam a compreender algumas questões de diversidade no processo de ensino-aprendizagem de LI. O principal objetivo do presente artigo é refletir sobre algumas políticas linguísticas no que diz respeito o ensino de LIC. Faço uma breve exposição da legislação vigente em alguns países. Posteriormente, reflito sobre a situação brasileira no que diz respeito o ensino de LIC, pensando ao mesmo tempo em alguns aspectos pertinentes para a implantação de uma política linguística nacional através dos contextos abordados no Ciclo de Políticas de Ball e através da utilização da teoria dos gêneros discursivos bakhtinianos. 1. Dialogismo, Multiletramento e Plurilinguismo no Ensino de Língua Inglesa para Crianças O pensamento dialógico bakhtiniano contribui à formação da concepção do multiletramento, já que a mesma se baseia em uma busca de ver o mundo e o outro em suas multiplicidades de sentidos (ROJO, 2012). Vertente
que privilegia o
reconhecimento da diversidade étnica, linguística, identitária e cultural, assim como das múltiplas maneiras de se (re) construir sentidos pelas igualmente diversas formas e meios de comunicação, ao mesmo tempo em que se refuta qualquer tipo de relação autoritária e monolítica (ROCHA, 2010). Nas práticas linguísticas, a Pedagogia dos Multiletramentos (COMBER, 2005; COPE, KALANTZIS, 2000, 2009; MONTE MÓR, 2009; ROJO, 2012) permite abordar a natureza discursiva da linguagem, favorecendo a construção de conhecimentos através das relações humanas.
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O plurilinguismo bakhtiniano dá continuidade às reflexões anteriores, na medida em que reformula a ideia de um sistema linguístico, fixo, estruturado e imutável, considerando a concepção de transformação linguística, difusa e apreendida através das relações dialógicas, onde diferentes línguas, gírias, dialetos são criados, reformulados e trocados entre os indivíduos. Dessa forma, o ensino de LI plurilíngue promove o contanto entre línguas diversas através das variações existentes nas linguagens sociais, permitindo a construção de conhecimentos da língua por meio das várias formas de construir linguagens. Assim, professores, alunos e todos que fazem parte do ensino aprendizagem podem expor suas identidades e estar aberto a receber outras informações que contribuirão para a formação de um cidadão reflexivo, autônomo e capaz de atuar como protagonista de sua própria história. O ensino contextualizado e integrado às tendências da modernidade pode ser instrumento direto de motivação e entendimento durante o processo de ensinoaprendizagem. Por isso, a abordagem bakhtiniana dos gêneros discursos no ensino de LIC por permitirem que as diversas vozes circulem dentro do processo de aprendizagem, valorizando a intenção e contexto dos interlocutores (ROCHA, 2010). Bakhtin (2004) aborda o conceito de gênero definindo as diferentes situações de comunicação social nas diversas atividades humanas. Assim, os gêneros discursivos representam o uso contextualizado da linguagem, no dia a dia, representando as ações das pessoas e a comunicação entre elas. Segundo Rojo (2012) os gêneros discursivos relacionados ao ensino de língua estrangeira podem ser reflexo das relações dos indivíduos em nível pedagógico, criando vínculo entre as relações. No ensino de LIC os gêneros discursivos podem representar a prática da vivência das crianças, através da utilização de brincadeiras, jogos, músicas, parlendas, contos e tudo aquilo que pode fazer parte da vida das crianças e de seus relacionamentos. 2. Pensando em uma Política de Ensino de Língua Inglesa para crianças e na Educação Infantil Rajagopalan no livro Políticas Linguísticas (NICOLAIDES; SILVA; TILIO; ROCHA, 2013) elucida o termo política no sentido aristotélico do termo: "a política é
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uma continuação, um desdobramento, da ética." Mesmo levando em consideração que Aristóteles pensava em uma política estruturada de cima para baixo, seu intuito era a constituição de uma política para o bem.
Na sociedade contemporânea a política
linguística, pensada de baixo para cima, onde as vozes dos atuantes são escutadas, talvez esta se caracterizaria como ética. No ensino de LIC a ética política poderia se pronunciar através de medidas que estabelecessem diretrizes para o ensino de LI na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental I, onde é oferecido de acordo com suas possibilidades, improvisando cargas horárias reduzidas, professores que não têm a formação pedagógica ou linguística adequadas e materiais didáticos pouco profícuos, criando um ciclo vicioso, que não forma bons professores, que, por sua vez não têm competência para ensinar a língua e o ensino básico não oferece ensino de LI de qualidade. (ROCHA, 2010). A implantação de um política de ensino de LIC no Brasil poderia tornar a LI um instrumento de (trans) formação dos indivíduos como pessoas atuantes na sociedade e que saibam utilizar sua própria língua e a LI como possíveis ferramentas de conhecimento da própria cultura e abertura à culturas diversas, mas que se tornam compreensíveis e admiráveis através da utilização de uma língua entendida e admirada, ao contrário de uma língua dominada ou dominante. (MOITA LOPES, 2007) Levando em consideração a Legislação Brasileira em relação ao conceito de criança, me remeto em um primeiro momento às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2010), que apresentam na seguinte concepção de criança: "Sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva (...) " Os PCNs da Educação Infantil tratam como eixos da educação abordagens em movimento, música, artes visuais, linguagem oral e escrita, natureza e sociedade e matemática, mas não trazem referência alguma ao ensino de língua estrangeira, tratada aqui como Língua Inglesa já que este é o foco do presente trabalho. Sendo a criança sujeito histórico e de direitos, como ignorar sua inserção no mundo contemporâneo, definido e vivenciado como globalizado? Como não apresentálas a uma maneira de comunicação e expressão que as insira nesta sociedade?
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Seria inevitável pensar em uma política de inserção de documentos que levassem em consideração a necessidade de aprendizagem das crianças e as práxis do professor. Ou seja, que se elaborassem documentos pautados nas vozes dos verdadeiros envolvidos na empreitada de ensino e aprendizagem de LI. Por outro lado, políticas de ensino de língua inglesa na educação infantil já estão sendo implementadas no Brasil que em outros países. Apresento algumas características e diferenças entre elas. A cidade italiana de Reggio Emilia é referencia mundial em Educação Infantil, por enfatizar uma educação globalizada capaz de levar em consideração as pluralidades culturais, assim explícitas nos documentos 'Indicazioni nazionali per il curricolo della scuola dell’infanzia e del primo ciclo d’istruzione'1: "Inoltre l’orizzonte territoriale della scuola si allarga. Ogni specifico territorio possiede legami con le varie aree del mondo e con ciò stesso costituisce un microcosmo che su scala locale riproduce opportunità, interazioni, tensioni, convivenze globali. Anche ogni singola persona, nella sua esperienza quotidiana, deve tener conto di informazioni sempre più numerose ed eterogenee e si confronta con la pluralità delle culture." (p. 13) 2
No documento italiano são explicitados conceitos e ideais relativos à interação, convivência global, à tensão, aos conflitos essenciais em qualquer tipo de aprendizagem, à experiência cotidiana. Todos instrumentos de promoção de interação, dialogismo e a aprendizagem de uma língua estrangeira que transgrida qualquer regra ou modelo imposto, que transforme o indivíduo através do conhecimento da própria cultura para então, se 'abrir' e conhecer o outro. Importante relevar que o documento exemplifica a preocupação com a glocalidade do inglês do mundo, que, segundo Pennyccok (2014) existe a adaptação do inglês com as diferentes partes do mundo onde é adaptado, dentro das características de cada povo ou localidade. 1
'Indicações Nacionais para o currículo da escola da infância e do primeiro ciclo de instrução' Tradução minha. 2 Os horizontes territoriais da escola se expandem. Cada território específico tem relações com várias áreas do mundo e com o próprio mundo constituem um microcosmo que na escala local reproduz oportunidade, interação, tensão, convivências globais. Até a própria pessoa, na sua experiência cotidiana, deve considerar as informações cada vez mais numerosas e heterogêneas e si confrontam com as pluralidades das culturas.' Tradução minha.
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O conceito de pluralidade aparece atrelado à cultura e à língua implementando ações plurilinguísticas já determinadas no Quadro Comum Europeu de Referências para as Línguas (2001): A abordagem plurilinguística (...) acentua o facto de que, à medida que a experiência pessoal de um indivíduo no seu contexto cultural se expande, da língua falada em casa para a da sociedade em geral e, depois, para as línguas de outros povos (aprendidas na escola, na universidade ou por experiência directa), essas línguas e culturas não ficam armazenadas em compartimentos mentais rigorosamente separados; pelo contrário, constrói-se uma competência comunicativa, para a qual contribuem todo o conhecimento e toda a experiência das línguas e na qual as línguas se inter-relacionam e interagem. (p.23)
A noção de transculturalidade fica evidente no documento, onde pensa-se em transitar por entre espaços, transgredir fronteiras e promover transformações (ASSISPETERSON, 2008). No Brasil, já temos algumas situações de sucesso, porém diferentes abordagens adotadas nos documentos europeus. Em Londrina, um projeto intitulado Londrina Global, consiste em uma iniciativa que tem como vantagem principal a articulação entre escola e universidade. Dessa maneira, alunos do curso de Letras de uma faculdade pública expoente da região se envolvem em um projeto onde se formam, ensinam e passam por todos os processos do âmbito de LEC, desde a elaboração do material até sistemas de avaliação. As aulas são ministradas para crianças de creches e escolas públicas da cidade. Porém aparecem discursos mercadológicos como objetivo do ensino da LI: "A implantação do ensino de Inglês nas séries iniciais possibilita graus de proficiência semelhantes aos alcançados em outras partes do mundo, viabiliza Londrina como local de referência para investimentos e, consequentemente, de empregos dependentes deste conhecimento." (Secretaria de Educação de Londrina). Maringá é outro município empenhado na implantação do LIC. A partir do ano de 2014 professores concursados, passam a dar aulas de Língua Inglesa no ensino fundamental (Secretaria de Comunicação). Os professores recebam capacitação e material didático adquirido pela prefeitura. Porém, no site da prefeitura encontramos foco em aspectos neurolinguísticos da aprendizagem de LI.
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Para tentar contextualizar o ensino de LIC no Brasil, tratarei de nossas políticas educacionais dentro da perspectiva do ciclo das políticas de BALL (1994), estudioso que discute a política apartada de interesses restritos e voltada a virtudes cívicas e ética social. 3. O Ensino de Língua Inglesa na Educação Infantil à luz do ciclo de políticas de Ball A abordagem do ciclo de políticas de Stephen Ball tem sido cada vez mais mencionada em explicações referentes às decisões educacionais em todo o mundo (MAINARDES, 2006), permitindo uma análise pertinente das decisões referentes à educação e sociedade. A abordagem pauta-se em cinco contextos 1) Contexto de Influência; 2) Contexto de Produção de Texto; 3) Contexto de Prática. O objetivo desta seção é o de elucidar as questões referentes ao ensino de Língua Inglesa na Educação infantil dentro dos contextos do ciclo de políticas. O contexto de influência considera os diferentes discursos políticos que servem de base para a constituição de determinada política, é onde as políticas públicas são iniciadas e os discursos são construídos. É nesse contexto que os grupos de interesse influenciam a definição das finalidades sociais das políticas de educação e do que significa ser educado em determinado contexto social, político e econômico. Participam desse contexto as redes sociais dentro e em torno de partidos políticos, do governo (MEC) e do processo legislativo. Há uma imigração de políticas internacionais, e/ou migração entre políticas nacionais que são recontextualizadas em cada cidade, estado ou nação. Na educação infantil brasileira aspectos da formação do individuo, seja do ponto de vista, intelectual, sociológico e mercadológico são abordados nos documentos legais. Por outro lado, as vozes que clamam pela aprendizagem de uma língua estrangeira na educação infantil são ignoradas ou silenciadas, mostrando a vertente excludente e limitadora da educação. Porém, de acordo com exemplos citados acima, como a cidade de Reggio Emilia, se ouvidas, estas vozes podem se transformar no estágio mais mágico e promissor da formação humana.
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O Contexto de Produção de Texto é onde os textos políticos são realizados e articulados com a linguagem do interesse público mais geral. Eles representam a política materializada e são resultado de disputas e acordos entre políticos. Nesse contexto, temos como arena, os textos legais, oficiais e políticos, comentários formais ou informais como pronunciamentos, vídeos, panfletos e revistas. Os grupos de interesses são: políticos que desejam controlar a representação política. No caso do ensino de língua inglesa na educação infantil brasileira, podemos encontrar estudos publicados em artigos, vídeos instrumentais, sites específicos, porém, não existe esta materialidade da política em si, ou seja, não existe um texto que regulamente legalmente as práticas, conteúdos e segmentos deste aspecto da educação brasileira. Portanto, não existe um interesse por parte dos políticos em representar esta vertente da educação brasileira. O contexto da prática é também onde encontramos como consequência, os contextos de resultados e efeitos e o de estratégias políticas. Quando o currículo chega na escola, a política sujeita à interpretação e recriação. Os campos de atuação são as escolas e onde se encontram os profissionais da educação. Os grupos de interesse são professores e demais profissionais que tem papel ativo na aplicação das políticas. Ou seja, é a própria prática que ocorre nas escolas. A política chega à escola e é recontextualizada pelo professor que trabalha com ela, que tem a liberdade de recriá-la e reinventá-la. Essa política curricular será interpretada de diferentes formas, uma vez que experiências, valores e interesses são diversos. No que diz respeito ao ensino de língua inglesa na educação infantil este contexto é o mais sólido e movimentado. Sólido porque a prática realmente existe em muitos contextos educacionais e movimentado porque aborda a fase de formação mais heterogênea do ser humano: a infância. Pode-se dizer que este contexto é aquele que traz à tona as consequências visíveis e sensíveis da falta de uma legislação. É aqui onde se revelam aspectos que espelham todo o ciclo: onde surgem as falhas, a má formação dos professores, o material didático inadequado, a exclusão, o desperdício e a falta de vontade. Mas também é onde surgem possibilidades de ações libertadoras que onde realmente podem ocorrer ações de trans (formação) cidadã, através do conhecimento da própria cultura através da cultura do outro.
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A pertinência do ciclo de políticas de Ball (1994) reside no fato de ressaltar a característica instável das políticas, considerando que seus fatores e as relações existentes entre eles podem variar, sendo multifacetado, ou melhor, é um ciclo onde os contextos podem se apoiar sem uma sequência sistematizada. Dessa forma o ciclo de políticas é utilizado para analisar e questionar qualquer esfera de atuação da educação. A reflexão dos questionamentos levantados pode fazer com que pudéssemos ir de encontro à formulação de uma base para a instauração de um sistema de ensino verdadeiramente pautado em aspectos dialógicos e multiletrados. Ou melhor, no Brasil o contexto propulsor de uma consolidação legislativa é o contexto da prática. 4. O contexto da prática como mola propulsora da existência legislativa Como visto, o contexto de prática na política de ensino de língua inglesa na educação infantil, dentro do ciclo é aquele que pode nos oferecer embasamentos sólidos quanto suas características e necessidades. Partindo da prática para pensar em um contexto de Produção de Texto, seria importante considerar as bases para uma organização curricular sob perspectivas plurilíngues através do uso de gêneros discursivos. "O ensino de inglês sob estas perspectivas faz-se um objeto híbrido, fronteiriço, capaz de promover transletramentos no campo educacional" (ROCHA, 2012, p.196). Dessa forma a utilização dos gêneros discursivos no ensino de LI na educação infantil pode fazer com que o contexto de prática seja construída dentro de uma formação plurilíngue, avessa à uma educação linguística tradicional, muito bem representado neste quadro elaborado por ROCHA (2010): Assim, os gêneros discursivos podem ser ferramentas válidas que podem ajudar a professores e educadores a estabelecerem os domínios de uma prática inovadora, que contribua para a formação crítica e transformadora dos indivíduos. Como consequência, dentro do ciclo de políticas de Ball (1994) estas práticas plurilíngues poderiam dar vida a uma política de ensino pautada em um currículo transversal que considere a vida cultural, produtiva e pública dos indivíduos em todas as suas esferas e âmbitos de atividade.
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Portanto, o contexto da prática, dentro do ciclo de Ball, representaria a base da formação de uma diretriz ou política norteadora do ensino de LIC no Brasil, pois o contexto da prática é o que representa este ensino em nosso país. E a prática pode ser ancorada na visão bakhtiniana dos gêneros textuais, pois eles podem dar acesso ao mundo natural das crianças para efetuar a aprendizagem da LI. Assim, a LI é vivenciada por meio das brincadeiras, falas e interações entre as crianças, não se transformando em pura aprendizagem sistematizada e descontextualizada. 5. Considerações Finais O presente trabalho tem como objetivo reunir questões sobre o ensino de língua inglesa na educação infantil dentro das reflexões do dialogismo, plurilinguismo bakhtinianos e da Pedagogia do Multiletramento associadas ao ciclo de políticas de Ball como ponto norteador da formação de diretrizes para o ensino de LIC no Brasil através do contexto de prática. Através destas perspectiva viu-se que a necessidade de considerar o indivíduo como ser capaz de se transformar tendo como base um ensino contextualizado, que faça da língua estrangeira um instrumento de verdadeira compreensão e interação entre os mundos. (ROJO, 2012) Abordou-se o ciclo de políticas para enquadrar a situação deste segmento de ensino da educação brasileira, órfão de um texto legitimizador. Tal silenciamento traz significações e conclusões para este ensino, que, por outro lado apresenta vozes heterogêneas que deveriam ser escutadas, mas são caladas diante do fingir ser surdo. O fingimento esconde questões riquíssimas oriundas da prática docente que reflete a necessidade e a maravilha da diversidade apresenta deste contexto de ensino. Revela também a contradição existente em uma legislação "maior" que diz ser obrigatória a educação de qualidade para TODOS. (ênfase minha) O contexto de Prática elaborado por Ball, e presente no contexto de ensino de LIC no Brasil, pode encontrar seu foco na teoria dos gêneros discursos de Bakhtin. Assim a LI poderia ser ensinada de forma a encontrar o verdadeiro sentido de aprendizagem para as crianças, que vivenciariam a língua estrangeira dentro de suas
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ações reais.
O contexto de Prática é colocado como um possível iniciador de
reflexões na construção de políticas contextualizadas e refletoras de uma realidade verdadeira, não camuflada em leis incontestáveis. Assim, a prática poderia ser tomada como ponto de partida para a realização de um texto político que ouvisse as vozes daqueles que estão diretamente envolvidos no processo de ensino de língua inglesa para crianças. Considerando os problemas, as riquezas e transformando-os em identidades culturais que se multiplicam e transformam o mundo. Referências ASSIS-PETERSON,A.A. Como ser feliz no meio de anglicismos: processos transglóssicos e transculturais. Trabalhos em Linguística Aplicada, v.47, p. 323-340, 2008. BALL, S.J. Big policies/small world: an introduction to international perspectives in education policy. __________Comparative Education, Penn State, v. 34, n. 2, pp. 119130. 1998a.Educational reform: a critical and post-structural approach. Buckingham:Open University Press, 1994. BRASIL . Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira. Brasília, 1998. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/ BAKHTIN,M.M./Volochínov, V.N. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004 [1929]. COMBER,B.; NIXON, 2005.Children reread and rewrite their local neighborhoods: critical literacies and identity work. In: EVANS, J. (Eds.). Literacy moves on. Portmouth: Heinemann, 2005.p.127-148. CONSELHO DA EUROPA. Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas: Aprendizagem, Ensino, Avaliação.Edições ASA, 2001. COPE,B; KALANTZIS,M.(Eds.). Multiliteracies: Literacy Learning and the Design of Social Futures. London: Routledge, 2000. ITALIA: Ministero dell' istruzione, dell' università e della ricerca. Indicazioni nazionali per il curricolo della scuola dell’infanzia e del primo ciclo d’istruzione. Le Monnier, 2012. KUBOTA, R. Learning Diversity form World Englishes. Social Studies. Michigan: Gale Group 2001.
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AS OCORRÊNCIAS DA EXPRESSÃO DAÍ: COMPARAÇÃO ENTRE CIDADES DO INTERIOR DE SANTA CATARINA E PARANÁ E SUAS RESPECTIVAS CAPITAIS. Mariana Spagnolo Martins (UEL) As mudanças linguísticas no Português Brasileiro têm sido foco de muitas pesquisas nas últimas décadas, abrangendo vertentes teóricas diversas, como o funcionalismo, a sociolinguística e a gramaticalização. A gramaticalização é considerada, segundo Gonçalves et al (2007), um dos processos mais comuns para observar as mudanças na língua. Este estudo, que visa estabelecer uma análise comparativa entre o uso do daí no interior de Santa Catarina e do Paraná, a partir das entrevistas do Projeto ALiB, tem como objetivos: (i) analisar as ocorrências do item segundo as variáveis extralinguísticas sexo, escolaridade e idade; (ii) observar o processo da gramaticalização de daí na fala dos informantes do interior de Santa Catarina e Paraná e (iii) verificar se há fatores linguísticos intervindo no uso da expressão. Aspectos da gramaticalização Segundo o percurso histórico delineado por Gonçalves et al (2007), os primeiros vestígios de estudos sobre gramaticalização ocorreram no século X, na China e se desenvolveram até o século XVII, na França, com Condillac e Rosseau e na Inglaterra, com Tooke. No século XVIII, o tema continua a ser desenvolvido e no século XX, por volta de 1912, o linguista francês Antoine Meillet emprega o termo gramaticalização pela primeira vez. Meillet foi a figura central dos estudos aprofundados em gramaticalização e citados por diversos linguistas, que passaram a desenvolver pesquisas sobre gramaticalização na Alemanha e na Costa Oeste Americana. Novamente, com base nas afirmações de Gonçalves et al (2007), podemos traçar uma escala evolutiva dos estudos de gramaticalização. Primeiro com Meillet, que
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concebe a gramaticalização como passagem do lexical para o gramatical; posteriormente, Kurilowicz, que completa Meillet, sugerindo a passagem do gramatical para o gramatical. Para concluir o conceito e os processos evolutivos da gramaticalização, temos as versões dos estudos atuais que defendem que qualquer material linguístico pode passar para o gramatical. Deste modo, o item daí, foco deste estudo, sofreu um processo de gramaticalização. O daí pode ser caracterizado no microdomínio da sequenciação, em que desempenha várias funções dentro do discurso das falas curitibana e florianopolense. Como mostram os resultados da pesquisa anterior, feita a partir dos dados de Curitiba (MARTINS, 2013), esse item pode servir para identificar marcas da fala feminina, principalmente de mulheres com 50 a 65 anos de idade e com o ensino superior. Discutindo os resultados Para constituir o corpus desta pesquisa, foram selecionadas, do banco de dados do Atlas Linguístico do Brasil – ALiB - as entrevistas realizadas em quatro cidades do interior de Santa Catarina (Porto União, São Francisco do Sul, São Miguel do Oeste e Concórdia) e em quatro do interior do Paraná (Londrina, Campo Mourão, Toledo e Guarapuava). No Projeto ALiB, os informantes são distribuídos equitativamente por duas faixas etárias – de 18 a 30 anos e de 50 a 65 anos – sendo eles homens e mulheres, alfabetizados e que cursaram, no máximo, o nível Fundamental de ensino. Os dados foram tratados estatisticamente e dispostos no Gráfico 1.
OCORRÊNCIAS DO DAÍ 241
Paraná Santa Catarina
500
Gráfico 1: Número de ocorrências do daí na fala de homens e de mulheres do interior de SC e PR. Fonte: Banco de dados do ALiB – Interior de Santa Catarina e Paraná.
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De acordo com os dados do Gráfico 1, o item daí é mais frequente entre os falantes do interior de Santa Catarina (68.8%), lembrando que os informantes possuem apenas com o nível fundamental de ensino ao passo que, na capital Florianópolis, dentre os informantes desse nível de escolaridade (MARTINS, 2013), obtivemos apenas 18 ocorrências (8.7%). No interior do Paraná, de acordo com o Gráfico 1, foram obtidos 241 registros (31.2%), ao passo que, na capital Curitiba (MARTINS, 2013), comparando com os dados florianopolenses, o daí corresponde a 91.3% do total. Os dados indicam, pois, que, no interior de Santa Catarina, a ocorrência de daí é muito mais expressiva do que na capital, enquanto, no Paraná, observamos o contrário, isto é, no interior o daí é menos produtivo do que na Capital. Analisamos, na sequência, o percentual de daí na fala de homens e mulheres do interior de Santa Catarina e Paraná.
Gráfico 2: Percentual de ocorrências do daí na fala de homens e de mulheres. Fonte: Banco de dados do ALiB – Interior de Santa Catarina e Paraná.
No gráfico 2, temos o percentual de ocorrências do item na fala de homens e mulheres do interior de Santa Catarina e Paraná. No interior do Paraná, as mulheres apresentam 122 ocorrências do daí (50.6%) e os homens 119 (49.3%), demonstrando que não há influência da variável sexo sobre a maior ou menor freqüência de uso do item. Já no interior catarinense, as mulheres registraram o item 272 vezes (54.4%) e os homens, 228 (45.6%). É possível afirmar que há uma pequena diferença na fala feminina e na masculina nos dados catarinenses, embora represente menos de 10% em favor das mulheres.
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Cruzando os dados de homens e mulheres catarinenses e paranaenses distribuídos pelas faixas etárias I e II, elaboramos o gráfico 3. 200
172 143
150
Homens - Paraná 100
100
72
79
85 50
40
50
Homens - Santa Catarina
Mulheres - Paraná Mulheres - Santa Catarina
0
18 a 30 anos
50 a 65 anos
Gráfico 3: Percentual de ocorrências do daí nas faixas etárias I e II. Fonte: Banco de dados do ALiB - Interior de SC e PR.
Com base nos dados do Gráfico 3, verificamos que o daí, na fala paranaense, é mais frequente entre os homens da faixa etária II com 66.39%. Ao contrário, na fala catarinense, são os homens jovens que produzem o daí com mais frequência (62.7%). Quanto às mulheres jovens paranaenses, obtivemos 59% dos registros de daí em relação às da faixa II, ao passo que, na fala catarinense, são as mulheres faixa II que registram o maior número de daí (63.23%). Considerações finais O estudo demonstrou que o item daí é registrado tanto no interior como na capital de Santa Catarina e do Paraná, mas de modo inverso: predomina no interior catarinense com 68.8% e na capital Curitiba com 91.3%. Esses resultados merecem uma reflexão mais profunda em futuros trabalhos. Referências COMITÊ,Nacional do Projeto ALiB. Atlas Linguístico do Brasil: questionários. Londrina: Ed. UEL, 2001. GONÇALVES, Sebastião, Lima-Hernandes, Maria (org); Angélica Terezinha Carmo Rodrigues... [et al]. Introdução à gramaticalização: princípios teóricos e aplicação, São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
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O PADRÃO DISCURSIVO SLOGAN EMPRESARIAL Marília Campos Sabino (UFRN) Introdução O slogan é um texto verbal curto e incisivo, que condensa as qualidades de um produto e/ou de seu fabricante, ou de um serviço e/ou de seu prestador. O termo provém do gaélico (língua do povo celta), da expressão sluagh-ghairm, que significava “grito de guerra de um clã” (IASBECK, 2002). Assim, a origem da palavra é bélica. “Suas marcas características já estariam inscritas na etimologia, como concisão, eufonia e sentido de elevação, para incentivar os guerreiros a atacar seus inimigos”, informa Duarte (2009, p. 02). Quanto à natureza linguística, defendemos que os slogans configuram-se como construções com conteúdo inseparável da forma. Os trabalhos encontrados até o momento indicam que a Análise do Discurso é a área que mais tem se pronunciado a respeito dos slogans (slogans de produtos, e não de empresas, vale salientar), considerando-os, por meio de análises apenas formais ou funcionais, como um gênero textual intrínseco à ideologia e à subjetividade. Pretendemos, com base na Linguística Cognitivo-Funcional, tratar o slogan como um padrão discursivo capaz de aglutinar as noções de tipo textual e gênero textual. Utilizamos, ainda, contribuições da Análise do Discurso (AD), a exemplo das ideias de Benveniste (1976) sobre a subjetividade na linguagem, dentre outros. Dessa forma, examinamos 100 slogans de empresas comerciais e de prestadoras de serviços da área metropolitana de Natal/RN. Objetivamos, especificamente, analisar as propriedades formais (fonéticas1, morfológicas e sintáticas) e funcionais (semânticas, pragmáticas e discursivas) desses textos, bem como verificar e quantificar aspectos recorrentes envolvidos em sua construção, com vistas a captar padrões configuracionais subjacentes à sua formação. Adotamos, nesta pesquisa, a terminologia slogan empresarial para referir-nos aos textos referidos. Vale salientar que este trabalho, de natureza 1
Os aspectos fonéticos ainda não foram analisados.
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quali-quantitativa, está inserido em um pesquisa de mestrado e o posicionamento aqui exposto só será melhor defendido no decorrer de tal pesquisa. Referencial Teórico O trabalho está situado no âmbito da Linguística Cognitivo-Funcional, conforme Tomasello (1998). Nessa vertente, a linguagem é analisada como uma estrutura maleável, sendo forma e função, ao mesmo tempo. Por isso, sintaxe, semântica e pragmática se relacionam e são interdependentes (FURTADO DA CUNHA et al., 2003). A gramática é, então, codificada com base em princípios e categorias de natureza cognitiva e comunicativa que interagem e atuam na distribuição das informações no texto, facilitando o processamento delas. Neste trabalho, utilizaremos noções relacionadas à construção, padrão discursivo, frame, iconicidade, marcação, informatividade, plano discursivo, perspectivação, viés discursivo e atos de fala. Segundo o modelo da Gramática de Construções, a língua é um sistema simbólico configurado em uma rede de construções, estas entendidas como o pareamento de forma (fonética, morfologia e sintaxe) e função (semântica, pragmática e discurso) (GOLDBERG, 2006). Tal pareamento é básico e inerente a qualquer descrição gramatical (ÖSTMAN; FRIED 2005). As construções podem ser fundidas de forma: (i) inteiramente inovadora, dando origem a construções abertas; (ii) lexicalizada em alguma medida, produzindo as construções parcialmente especificadas e (iii) totalmente idiomática, resultando nas construções inteiramente especificadas. Östman e Fried (2005) entendem padrão discursivo como uma entidade esquemática abstrata composta do pareamento entre forma e função ou, em outras palavras, como uma associação convencionalizada entre gênero discursivo e tipo textual. Tais noções têm um sentido semelhante ao de forma e função. O polo da forma (tipo) associa-se às relações internas de um texto (características linguísticas que marcam a organização textual) e o da função (gênero), às relações externas que um discurso exibe em relação aos contextos sociais e comunicativos. Os padrões discursivos funcionam como frames para o entendimento (ÖSTMAN, 2005), ou seja, como estruturas cognitivas ou conhecimentos pressupostos que atuam na organização do
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conhecimento e são por ele organizadas(os). Para compreender o significado do material linguístico de um slogan, por exemplo, é necessário dominar a experiência social convencionalizada prototipicamente associada a ele. De acordo com o princípio da iconicidade, há correlação natural, moderada e motivada entre forma e função, expressão e conteúdo. Tal princípio se manifesta em três subprincípios, dentre os quais vale mencionar o da quantidade, segundo o qual maior quantia de informação implica maior quantia de forma. Givón (apud FURTADO DA CUNHA et al., 2003) explica a codificação dos referentes de acordo com esse subprincípio: quanto mais previsível uma informação, menor quantidade de forma é utilizada. Quanto ao princípio da marcação, dois elementos de uma categoria se opõem, de forma que um deles é marcado quando exibe uma propriedade ausente no outro, dito não-marcado. São estabelecidos três critérios principais para diferenciar categorias marcadas de não-marcadas, conforme Givón (apud SILVA, 2000): complexidade estrutural, distribuição de frequência e complexidade cognitiva. Para Furtado da Cunha et al. (2003), a informatividade diz respeito ao que os interlocutores compartilham, ou supõem que compartilham, na interação. A autora (2008) classifica as entidades em dadas (apareceram no texto ou estão disponíveis em uma situação de fala), novas (introduzidas pela primeira vez no discurso), disponíveis (únicas em um contexto) e inferíveis (identificadas por inferência). Nos slogans, espera-se que haja equilíbrio entre informações velhas e novas, haja vista a necessidade de atrair a atenção dos interlocutores sem tornar os textos muito complexos. Os textos apresentam diversos planos discursivos, nos quais a divisão entre o que é central e o que é periférico equivale à distinção entre as dimensões figura e fundo. A categoria plano discursivo deve ser vista como um continuum entre as informações de maior/menor destaque, cujos pólos seriam a superfigura (+figura) e o superfundo (+fundo), havendo ainda o nível intermediário -figura/+fundo (SILVA, 2000). Assim, uma cena pode ser construída tendo uma de suas facetas salientadas (figura) e outra(s) colocada(s) em plano secundário (fundo). Esse direcionamento da atenção sobre um evento/cena referencial está relacionado com a perspectivação (TOMASELLO, 1998), que também envolve o grau de especificidade ou de esquematicidade. A especificidade
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tem a ver com o nível de precisão e detalhamento em que uma situação é caracterizada (LANGACKER, 2008), sendo a esquematicidade o oposto. Em se tratando dos slogans, a atenção pode recair sobre o produto/serviço, a empresa ou o interlocutor, o que dependerá da maneira como a cena foi mentalmente construída e do viés discursivo. Traugott (2010) adota a proposta de Lyons (1982), que entende subjetividade como a maneira com que as línguas naturais proporcionam, ao locutor, a expressão de si e de suas atitudes e opiniões. A autora caracteriza intersubjetividade como a forma com que as línguas naturais proporcionam ao locutor expressar sua consciência sobre as ações, crenças e, particularmente, a “face” do interlocutor. O ponto de vista objetivo, por outro lado, é aquele no qual o falante pretende (ou finge) descrever as situações como elas se apresentam na “realidade”. Para Benveniste (1976), a categoria dos pronomes é a primeira a estabelecer e revelar a subjetividade no discurso. Apenas na primeira e na segunda pessoas, eu e tu, há uma correlação de subjetividade envolvida. De acordo com o referido autor, uma das formas de se mascarar a subjetividade é o uso do nós, que pode ser inclusivo (inclui o locutor e o interlocutor) ou exclusivo (abarca o locutor e eles - a não-pessoa quantificada - excluindo o tu). Há ainda um recurso chamado plural majestático, que consiste em atenuar a afirmação muito marcada de eu, que é amplificado para uma pessoa mais ampla e menos definida. Somente eles indica um plural verdadeiro. Em sua teoria dos Atos de Fala, Austin (1990) argumenta que as palavras realizam ações, os atos de fala. Para ele, em qualquer enunciado, coexistem os atos de fala locucionário (ato de dizer algo com sentido e referência, conforme as regras da língua), ilocucionário (ato que se realiza no enunciado e atribui a este uma determinada força, chamada de força ilocucionária, revelando a intenção de quem diz) e perlocucionário (produção, sobre o interlocutor, de um efeito exercido pelo ato ilocucionário. Além disso, Austin diferenciou os atos de fala diretos dos indiretos. O ato de fala é direto quando realizado por formas linguísticas especializadas para esse fim. É indireto quando realizado por recursos de outro ato, de forma que o significado é a soma de informações linguísticas e extralinguísticas (BARBOSA, 2010). O slogan empresarial como padrão discursivo
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A partir dos resultados obtidos, que não serão detalhadamente apresentados neste trabalho devido às limitações de espaço, analisamos o slogan empresarial na perspectiva da noção de padrão discursivo, conforme Östman e Fried (2005). Para tanto, tratamos as propriedades da função e da forma de maneira integrada. Verificamos que os slogans estão ancorados na situação comunicativa na qual estão inseridos. Martelotta (2011) defende que formar uma frase implica adaptá-la ao contexto em que ela será usada. Sobre isso, vejamos o dado a seguir: 1. “Gente da terra da gente” (supermercado Nordestão) Nesse slogan, a repetição do termo gente não é aleatória e destaca a ideia de que esse supermercado é o único verdadeiramente "natural" da região Nordeste. O slogan sugere uma igualdade entre o supermercado e os consumidores, que devem valorizar o que é próprio da sua região. Vale salientar ainda que tal supermercado surgiu em um período em que só existiam, no Nordeste, supermercados como o Carrefour e o Pão de Açúcar, oriundos de outras regiões brasileiras. Com relação ao produto/serviço oferecido, na maioria dos slogans, essa informação só pode ser recuperada com dados extralinguísticos, sendo impossível perceber o que é ofertado a partir do próprio texto. É o caso do seguinte exemplar: 2. “De tudo, um muito” (Sacolão) A mensagem desse slogan pode se referir a qualquer produto, uma vez que foram usados termos que revelam pouco ou nenhum grau de especificidade. Ao interagir, o indivíduo provoca efeitos sobre o seu interlocutor e, no caso dos slogans, tal ato perlocucionário se relaciona com o efeito de compra imediata de um produto ou contratação de um serviço, o que pressupõe compreensão e aceitação do texto, principalmente por meio da persuasão (vale lembrar que os meios de persuadir são irracionais e agem sobre a vontade e a emoção). Isso explica porque mais de 80% desses textos visam persuadir e evitar o pensamento reflexivo sobre o que é afirmado anonimamente, segundo Iasbeck (2002). O objetivo dos slogans não é convencer, mas
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atender, por meio de estratégias de sedução, a seu intento de “grito de guerra”, que é trazer as pessoas para uma causa já considerada certa e justa, induzi-las a associarem uma empresa/produto a coisas boas, levando-as à compra do produto (HAUPTMANN, 2012) ou à contratação do serviço. O apelo à emoção é explícito no dado 3, em que se apela para a emoção do futuro consumidor, indo além do produto e relacionando a imagem deste à satisfação e à felicidade de se obter algo amado: 3. “A carne que você ama” (Du Beef churrascaria) As formas no imperativo foram raras, o que demonstra “que a persuasão nos slogans advém de comandos velados construídos mais por asserções positivas sobre as qualidades relacionadas à marca ou ao produto, do que por construções imperativas” (BARBOSA, 2006, p. 82). No entanto, algumas sentenças declarativas podem ser reinterpretadas como imperativas, como é o caso de: 4. “Sua pesquisa acaba aqui!” (Óticas Novo Rumo) Por meio de um ato de fala indireto, esse slogan transmite um “comando” em um contexto em que é necessário um certo nível de polidez e aproximação com o interlocutor, o qual deve acionar seu conhecimento de mundo para perceber a ordem implícita. Nos slogans, ideias são compactadas, informações são suprimidas e o leitor é convidado a preencher lacunas informacionais. Assim, nos dados analisados, as informações são distribuídas buscando-se um equilíbrio. Em geral, a necessidade atribuída ao consumidor, que supostamente não deve ser questionada, é apresentada como informação dada ou pressuposta como conhecimento comum, ao passo que o produto/serviço oferecido, tido como a solução, é apresentado como informação nova (RAMALHO, 2010), destacada como +figura (SILVA, 2000). No slogan a seguir, por exemplo, não se questiona o fato de o indivíduo apresentar necessidades, tidas como informações já conhecidas, o que é comprovado pelo uso do artigo definido “as”:
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5. “Soluções de acordo com as necessidades” (Retífica Fran) A informação nova, por sua vez, corresponde às soluções oferecidas pela empresa, por meio da aquisição dos produtos/serviços disponibilizados. A perspectiva predominante dos slogans nas lojas/prestadoras de serviços nos levaria a pensar que a maioria desses textos seria explicitamente subjetiva, o que não ocorre, visto que a subjetividade encontra-se “mascarada”. Por meio de uma varredura em busca de pronomes de primeira, segunda e terceira pessoas em suas formas singular e plural, vimos que a primeira pessoa, quando ocorre no plural, conforme Benveniste (1976), sugere uma tentativa de mascaramento do sujeito-escrevente. Nos slogans, todas as ocorrências desse tipo (um caso de pronome pessoal e três de pronomes possessivos) representam o plural majestático. Eis um caso: 6. “Nosso papel é fazer a melhor impressão.” (Topgráfica & copiadora). Nessa e nas demais ocorrências, as empresas tentam, por meio de uma referência indeterminada e genérica, atenuar a informação muito marcada de si e passar a imagem de grupo unido que trabalha pela satisfação dos clientes. É como se esse plural representasse todos os que participam do contexto da empresa. Assim, a mesma forma nós/nosso permite várias leituras, se estendendo desde uma determinação precisa até um índice máximo de indeterminação e generalidade (PIRES; BARBOZA, 2008). Entretanto, mesmo quando se utiliza a primeira pessoa do plural para mascarar a subjetividade, o eu se sobressai (BENVENISTE, 1976). A segunda pessoa apareceu, de forma predominante, representada pelo pronome de tratamento você (10 casos). Os possessivos seu(s)/sua (40 casos), apesar de pertencerem a terceira pessoa, referem-se à segunda pessoa, como exemplificado a seguir: 7. “A sua melhor alternativa!” (Gráfica Alternativa)
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Conforme Duarte (1999 apud ALVES-SILVA, 2009), é típico do português brasileiro coloquial o uso do pronome de segunda pessoa tu com a forma você. O mesmo pode ser aplicado aos possessivos. Por pressupor interlocutores, com a função de convencê-los/persuadi-los, o slogan apresenta esse uso acentuado da segunda pessoa, a qual implica, necessariamente, a primeira. Dessa forma, constatamos o esforço das empresas em objetivar sua escrita, frente à inevitável influência da subjetividade na organização do discurso. Os slogans são predominantemente (inter)subjetivos, em virtude do intento de transmitir boa impressão (o que implica uma visão de mundo e um teor de envolvimento da parte do sujeito-locutor) e de vender algo por meio de convencimento/persuasão. Com base nos dados, concluímos que, em média, os slogans apresentam entre quatro e seis palavras, o que é explicado por seu objetivo de serem mnemônicos e persuadirem o interlocutor. O subprincípio da quantidade também justifica o fato de a maioria dos slogans ser formada por poucas palavras: as informações são previsíveis e, portanto, é utilizada menor quantidade de forma. Essa economia, segundo Rey (1996 apud BARBOSA, 2006), leva a uma preferência por palavras com maior conteúdo semântico e maior autonomia significativa, chamadas, por Reboul (1986), de palavras plenas, como substantivos, verbos ou adjetivos. De fato, há uma tendência para a constituição do slogan pela via nominal, dada a considerável quantidade de substantivos, preposições, pronomes, adjetivos e artigos encontrados. No caso dos adjetivos, os qualificadores2 estão presentes em 80% dos slogans que contém adjetivos, o que comprova a natureza mais subjetiva desses textos. Também impulsiona o uso dos qualificadores a grande quantidade de informação velha. É estratégica essa presença de avaliações, que revelam perspectivas e compreensões e destacam as qualidades do produto/serviço oferecido (RAMALHO, 2010). A distribuição por classes de palavras abordada gera consequências sintáticas: 52 slogans são compostos de frases nominais, ao passo que 48 consistem em frases verbais. Dentre as frases verbais, 41 são períodos simples e apenas 7 são compostos. Conforme o 2
Adotamos a divisão dos adjetivos nas macrocategorias qualificadores e classificadores. Um adjetivo é dito classificador quando delimita conceitualmente o substantivo, colocando-o em uma subcategoria. Por sua vez, o adjetivo qualificador apenas qualifica o referente, atribuindo-lhe características sem acrescentar subclassificações.
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subprincípio icônico da quantidade, ao qual se vincula a complexidade semântica, vemos que, quanto mais conteúdo informacional um slogan apresenta, por meio de maior quantidade de forma linguística, mais traços semânticos são acrescentados a ele. Isso pode ser percebido por meio das frases verbais e dos períodos compostos, que, por serem construções mais complexas estrutural e cognitivamente e menos frequentes no corpus, são marcadas em relação às frases nominais e aos períodos simples, elementos não-marcados. Além disso, conforme Bybee (2010), em casos em que há conhecimento compartilhado, os enunciados podem ter mais uso de pronomes ou omissão de SN, poucas orações subordinadas e seus marcadores. Por isso que encontramos construções parcialmente especificadas, a exemplo de Tudo para o seu/sua X , O seu/a sua X em boas mãos: 8. “Tudo para a saúde do seu possante” (Geral do carro oficina) 9. “Seu carro em boas mãos” (Promopeças) 10. “Tudo para sua reforma e construção” (Ponto da construção) 11. “A sua visão em boas mãos” (Ótica Jefter) Considerações finais Foi possível comprovar que os slogans devem ser analisados para além da sua espessura textual, de modo que as formas linguísticas sejam explicadas a partir das funções por elas desempenhadas na comunicação. Assim, conforme o que foi discutido, corroboramos a hipótese inicial de que os slogans empresariais são padrões discursivos. Ratificamos ainda a relevância da interface entre os aspectos formais e funcionais na análise dos usos linguísticos. Referências ALVES-SILVA, J. J. Os pronomes pessoais em português: uma análise à luz da Linguística sistêmico-funcional. In: Domínios de Lingu@gem. Uberlândia: Ano 3, n° 1, 1°
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PROFESSOR: AGENTE OU ATOR DE SUAS AÇÕES? DOS DOCUMENTOS ÀS AÇÕES PEDAGÓGICAS Marilúcia dos Santos Domingos Striquer (UENP-CJ) Este artigo tem o objetivo de analisar o trabalho do professor em uma perspectiva discursiva, enfoque, conforme Machado et al (2009), que leva em consideração as relações entre a linguagem, que é o que constitui o homem como ser humano, e o trabalho, “eixo central para a compreensão da sociedade atual” (ABREUTARDELLI, 2004, p. 9). Ou seja, analisa a linguagem produzida sobre o trabalho, no trabalho e como trabalho, por isso centra-se em de textos produzidos antes, durante e depois de tarefas do professor, contribuindo para desvendar “algumas das representações sociais que se constroem –nessas produções textuais – sobre o trabalhador envolvido na situação de trabalho analisada assim como sobre seu agir concreto” (ABREU-TARDELLI, 2004, p. 170). Assim, de forma mais específica, meu objetivo é investigar qual a representação social que o Programa de Desenvolvimento Educacional - PDE tem do professor da rede pública de ensino do Estado do Paraná, e qual a representação social que o professor participante deste Programa tem de si mesmo. Isto é, quem é este trabalhador para o responsável por sua formação continuada e para o próprio trabalhador? O Programa de Desenvolvimento Educacional - PDE é o atual e maior programa de formação continuada docente oferecido pela Secretaria de Educação do Estado do Paraná (SEED), e em uma conceitualização, o Programa declara que compreende os profissionais da educação como “sujeitos epistêmicos” (PARANÁ, 2007, p. 15). Portanto, teoricamente, a representação social que o PDE tem do professor em processo de formação é a de um sujeito crítico, que não aceita o que lhe é imposto. Pensado a luz de Vygotsky (2007) e de Leontiev (2004), esse sujeito é o homem em seu sentido pleno, aquele que se constitui por sua própria ação, que age sobre o meio o transformando, buscando satisfazer suas necessidades e seus desejos.
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O aporte teórico-metodológico que sustenta toda pesquisa é constituído pelos preceitos do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) (BRONCKART, 2006, 2008, [1999] 2009). O ISD me fornece subsídios necessários para a análise dos textos e dos discursos produzidos pelo PDE, qual prescreve o trabalho do professor; e para análise dos textos e dos discursos produzidos pelos professores em formação, considerando que a formação continuada é parte integrante e constitutiva do trabalho docente. Fundamentação teórica A partir da tese de que as condutas humanas são resultados de processos históricos de interações sociais mediadas pelo uso da linguagem, o ISD centraliza seu interesse na linguagem como instrumento mediador, pois é a linguagem (ou os signos linguageiros) que funda a constituição do pensamento consciente humano, e é na prática linguageira situada (ou nos textos e nos discursos produzidos pelos homens) que o agir humano se realiza. A linguagem é, portanto, conforme palavras de Hila (2011, p. 73), “um verdadeiro instrumento semiótico, ou a grande ferramenta simbólica a gerar desenvolvimento, dá ao homem a oportunidade de agir e de existir, no interior de atividades socialmente contextualizadas”. Assim, é por meio da linguagem que se interpretam as condutas ativas ou o agir dos agentes produtores das práticas linguageiras situadas, foco de interesse do ISD, que visa, então, segundo Lousada (2011, p. 61), “investigar a problemática do agir humano tendo como base a linguagem”. Ou seja, conforme defende Bronckart (2008), o agir humano só pode ser analisado a partir dos textos que comentam o agir, e nunca somente pela simples observação das condutas humanas. Em decorrência, o ISD estabelece algumas definições ad hoc para alguns termos: Agir – é um termo neutro, pois corresponde a qualquer comportamento ativo de um organismo, mas se divide em: agir geral/praxiológico: utilizado para designar as formas de intervenção orientadas por um ou por vários seres humanos no mundo; e agir de linguagem: que é o agir verbal restrito aos seres humanos (MACHADO et al., 2009).
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Apenas depois do agir ser interpretado, ele é (re)configurado como “atividade”: quando o agir ou as formas de organização dos humanos estiverem implicadas em dimensões motivacionais (razões de agir) e intencionais ou os “efeitos que se espera obter com esse agir” (MACHADO et al., 2009, p. 23), que relacionados a um agir coletivo são chamadas de finalidades do agir. Então, dimensões envolvidas sob um ponto de vista sociológico. Mas quando o agir for constituído de dimensões psicológicas, ou seja, de ações imputáveis a um indivíduo singular que também está dotado de motivo (ou razão de agir), de intenção (ou querer-fazer individual) e que conhece e assume a sua responsabilidade frente ao acontecimento (ou um provável poder-fazer), o termo é “ação” (BRONCKART, 2006). A ação, portanto, conforme Bronckart ([1999] 2009, p. 40), “constitui, de fato, essa unidade de análise reivindicada para a psicologia por Vygotsky, dado que mobiliza e coloca em interação as dimensões físicas (ou comportamentais) e psíquicas (ou mentais) das condutas humanas”. A ação é compreendida como um recorte da atividade, um agir singular que é isolado da atividade coletiva, e é o grande foco de atenção dos estudos e pesquisas do ISD, pois é por meio da ação realizada por um indivíduo singular que a atividade coletiva pode ser observada, analisada e compreendida. Ator – o responsável pela realização do agir, por assumir razões e intenções internas (pessoais, singulares) para seu agir, recebe a denominação de “ator”. Mas, aquele que age sem configurar-se como responsável por seu agir, ou seja, se as razões e as intenções que conduziram seu agir foram apenas de caráter coletivo, ele é considerado apenas um “agente” (BRONCKART; MACHADO, 2004). A partir destas definições faz-se fundamental ressaltar que sendo os textos os correspondentes empírico-linguísticos das atividades de linguagem de um coletivo de trabalho e de um indivíduo singular, eles são concebidos como os principais instrumentos do desenvolvimento humano. E apesar das ações de linguagem serem, segundo Machado (2005, p. 250), a unidade de análise privilegiada e objeto maior dos estudos do ISD e não os textos, são os textos que permitem “que o indivíduo aja sobre a natureza e sobre o outro”. Assim, os textos são considerados construtos históricos que materializam “ações de linguagem, participando das atividades sociais de linguagem”
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(p. 251), e é, então, por meio dos textos e dos discursos que as condutas ativas ou o agir são interpretados, ou seja, que os papéis de ator ou de agente que assumem os actantes podem ser apreendidos. E é nesse sentido, que os textos produzidos pelos responsáveis pela formação continuada no PDE e pelos professores em formação são as ferramentas que possibilitam a interpretação das representações sociais do PDE sobre os professores e as que os próprios professores têm de si mesmo. Análises da linguagem sobre o trabalho: o documento síntese do PDE Para análises dos textos, o procedimento adotado foi o método de análise desenvolvido por Bronckart ([1999] 2009) e Bronckart e Machado. O primeiro texto analisado foi o Documento Síntese (DS), que é o documento que expõe os fundamentos políticos-pedagógicos do PDE; seus elementos constituintes: abrangência, programa curricular, conteúdos das áreas curriculares; metodologia. De modo geral, o documento pretende
apresentar
a
organização,
a
regulamentação
do
Programa,
e
as
responsabilidades e tarefas de cada um dos envolvidos. O DS analisado foi o publicado em 2007, para a primeira turma do Programa, mas considerei também as alterações realizadas no DS de 20091. Os resultados das análises demonstram que os principais actantes postos em cena pelo documento são: o Programa propriamente dito e os professores PDE. Para apreender quais papéis semântico-sintáticos esses actantes desempenham nos enunciados do DS, pautei-me nas classificações de Fillmore (1975) (BRONCKART; MACHADO, 2004), centrando-me na detecção dos constituintes referentes aos principais actantes, apresentados em Bronckart e Machado (2004, p. 152):
- Agentivo, o ser animado responsável por um processo dinâmico [...]. - Instrumental, o ser inanimado que é a causa imediata de um evento ou que contribui para a realização de um processo dinâmico [...]. - Atributivo (ou Experenciador), a entidade a quem é atribuído uma determinada sensação ou um determinado estado [...]. 1
Cada uma das versões do DS está publicada no site oficial da SEED, http://www.educacao.pr.gov.br/, e encontra-se disponível, em ordem de acesso, pelos links: “programas e projetos”; “estaduais”; “PDE”.
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- Objetivo, a entidade que sofre um processo dinâmico [...]. - Beneficiário, o destinatário animado de um processo dinâmico [...]. - Factivo, que indica o estado ou o resultado final de uma ação [...].
O Programa propriamente dito ocupa nas orações, em uma adaptação da classificação de Fillmore, a função sintático-semântica agentiva. O Programa é personificado pelo documento, é o Programa que propõe, que tem intenções, objetivos. É ele quem contribui efetivamente para a formação continuada dos professores e para a melhoria da qualidade da educação. Exemplos: “O PDE „propõe‟ a reversão desse quadro...” (PARANÁ, 2007, p. 14); “O PDE „objetiva‟ levar o professor a reconhecer...” (p. 16). Já o professor tem papel semântico-sintático de beneficiário. É ele quem será o primeiro beneficiário das propostas do Programa, exemplo: “O PDE objetiva levar „o professor‟ a „reconhecer‟ as diferentes correntes pedagógicas em suas diversas formas de pensar o conhecimento e a aprendizagem...” (p 16); Outro exemplo: “..., „visto que, ao dominarem‟ as razões pelas quais tantas correntes pedagógicas se distanciam, se aproximam e se opõem entre si, os professores „poderão responder‟ em sua prática cotidiana, com mais propriedade às demandas da educação pública.” (p. 17). Por esta configuração, é ao Programa e não ao professor PDE que é atribuído o papel de ator. É o PDE que produz a progressão na carreira e melhoria na qualidade da educação básica (EB); que “demonstra justa preocupação com a formação permanente dos educadores” (PARANÁ, 2007, p. 7); que cria novas condições (p. 7); que propõe reversão do quadro educacional atual (p. 14). E ainda, analisando os elementos motivacionais, intencionais e os recursos para agir, a constatação é a de que em nenhum lugar o DS apresenta as razões e intenções do professor PDE, esses elementos estão vinculados a SEED e ao Programa. Exemplo (PARANÁ, 2007): O PDE foi elaborado como um conjunto de atividades organicamente articuladas, definidas a partir das necessidades da Educação Básica „(origem motivacional externa e coletiva)‟, e que busca no Ensino Superior a contribuição solidária e compatível „(recurso para agir – instrumentos)‟ com o nível de qualidade desejado „(finalidade de origem coletiva)‟ para a educação pública no Estado do Paraná (p. 7minhas inserções).
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Análise da linguagem no trabalho: os textos produzidos pelas professoras PDE Na busca de responder a pergunta: as professoras PDE, no início da participação delas no PDE, se concebem como atores ou como agentes de suas ações? analisei os textos-respostas de um questionário oferecido às professoras no início da participação delas no Programa. A constatação é a de que uma delas, ficticiamente chamada de Ana, ocupa o papel sintático-semântico de agentivo (BRONCKART; MACHADO, 2004) em seus textos-resposta. Ela é quem “sente a necessidade” de propor mudanças; “espera” no sentido de propõe ações para mudanças. Ana apresenta motivos internos e razões para agir que lhe são próprias, pois ao ser questionada sobre qual o motivo de ter escolhido a teoria dos gêneros como princípio organizador de seu projeto de trabalho, a resposta foi a de que: “Ao longo de todos esses anos trabalhando com gramática normativa e produção textual, percebo que meus alunos não apresentam crescimento com relação ao conteúdo do texto e à revisão gramatical. Antes da implementação deste projeto, jamais havia trabalhado com o mesmo tema por tanto tempo. Isto se constitui num desafio para mim e para meus alunos. A cada dia surgem novas ideias a respeito da implementação, as quais não haviam sido previstas no planejamento. Disto se conclui sobre a riqueza da teoria dos gêneros. Também senti a necessidade de implementar um trabalho voltado aos gêneros, à medida que fui realizando as leituras indicadas sobretudo nos Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa”.
Portanto, há uma preocupação particularizada com seus alunos, e uma necessidade que lhe é própria, ou seja, motivos e razões internas, que não partem por uma imposição externa, do PDE, por exemplo. E com relação à intencionalidade, ou os efeitos que se espera obter com o agir (MACHADO et al., 2009), o pessoal (interno) também é mencionado. Ao ser questionada sobre o que esperava como resultado da transposição de seu projeto em relação aos alunos participantes, a resposta: “Espero que eles sejam capazes de produzir textos com mais desenvoltura, principalmente textos do gênero opinião e que também entendam que a gramática não se constitui num obstáculo para a produção, mas num poderoso aliado para a escrita clara, coesa e coerente”.
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Ana espera que seus alunos desenvolvam a prática da escrita com maior competência, assim a intencionalidade é algo que parte de sua experiência em sala de aula, do que vivenciou até aquele momento e o que espera vivenciar no futuro próximo. Entretanto ao interpretar as capacidades para agir, a constatação foi de Ana se concebe como agente e não como ator de suas ações: ela questiona sua própria capacidade, o que está subentendido na primeira declaração reproduzida de que o novo trabalho é um “desafio” para ela, há aí uma insegurança revelada. E, sobretudo, desse trabalho ser visto apenas como um método de trabalho e não um encaminhamento que se realiza a partir de concepções de língua e do ensino da língua, como demonstra um texto-repostas a outra pergunta: “Se um determinado „método‟ não mais resulta em resultados positivos, é porque chegou a hora de procurar novas alternativas” (grifo meu). Já no caso da segunda professora, ficticiamente chamada de Paula, em seus textos-respostas ao questionário ela assume um papel sintático-semântico agentivo, e logo nos primeiros momentos do processo de formação continuada, ela já se assumia como ator de seu agir. Em resposta ao por que elegeu os gêneros como eixo condutor na intervenção a ser realizada na EB, seus motivos internos são: “Trabalhar com gêneros do discurso favorece o estudo/ensino de muitos conteúdos que podem ser desenvolvidos de maneira contextualizada e como as Diretrizes Curriculares Estaduais de Língua Portuguesa são embasadas na teoria de Bakhtin, optei pelos gêneros. Quando participei do SóLetras, na UENP de Jacarezinho, tive a certeza de que o que queria era isto: conhecer melhor os gêneros do discurso e desenvolver meu projeto de acordo com os mesmos”.
Ao participar do Soletras, a razão para agir é reafirmada, ela teve a “certeza” que o que queria era “conhecer melhor” os gêneros e desenvolver seu projeto tendo os gêneros como norte. Com relação à intencionalidade interna: O que você espera como resultado da transposição de seu projeto em relação aos alunos participantes? A resposta é: “eu espero que meus alunos desenvolvam a prática da escrita com maior competência, apresentando textos consistentes, coerentes”. A utilização do pronome de primeira pessoa do singular define o que para ela, internamente, é esperado, e esperado para seus alunos em particular, com destaque ao uso do possessivo “meus”.
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Sobre suas capacidades para o agir, ela dá indicações claras de que acredita em suas capacidades: embora aponte a necessidade que tem em conhecer melhor os gêneros, ou seja, que ainda não os conhece, explicita uma certeza do que quer trabalhar com os gêneros, e ainda ela declara ter “alavancado”, melhorado, aprofundado, seus conhecimentos sobre a teoria bakhtiniana (aporte teórico da teoria dos gêneros textuais) a partir de sua participação no PDE. Então, ao iniciarem o processo de formação continuada no PDE, a representação que Paula tem de si é o papel de ator do processo de trabalho com os gêneros; e a de Ana é a de agente. Em um segundo momento do processo de pesquisa, analisei os textos planificadores produzidos pelas professoras, no caso os Projetos de Intervenção Pedagógica. A produção do Projeto é uma ação obrigatória a ser executada pelo professor durante sua participação no PDE. É onde o professor apresenta o conjunto de ações a serem realizadas em sala de aula, a fim de alcançar um objetivo primeiro, estabelecido pelo Programa, que é o de melhorar a qualidade da educação básica no estado do Paraná. Ao mesmo tempo, cada professor delimita um objetivo, a partir dos problemas vivenciados por ele, para que então alcance o objetivo primeiro. O principal actante posto em cena no Projeto é Ana, a qual ocupa o papel sintático-semântico agentivo (BRONCKART; MACHADO, 2004). Ela é a responsável pelo processo dinâmico de intervir e melhorar a produção de textos de opinião pelos alunos do 9º ano. Contudo, a representação que ela tem de si mesma é a de agente de seu agir, visto que apresenta razões e motivos internos (pessoais, singulares) para agir, exemplo: “É muito comum ao professor de Língua Portuguesa, quando da correção das produções dos alunos especialmente em textos de opinião, deparar-se com problemas de ortografia, pontuação, acentuação, concordância, regência...”. Mas, assim como faz no questionário, como mencionado, continua questionando sua própria capacidade de agir ao se referir ao trabalho com os gêneros, os recursos linguísticos empregados são constantemente ligados à insegurança: “Trabalhar sequências discursivas com marcas de opinião „não se constitui tarefa fácil‟...”; “Pode ser simples ensinar as características formais de um artigo de opinião, por exemplo, mas ensinar o uso social deste artigo „é muito mais desafiador‟”; “Ninguém discorda tratar-se de „um
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trabalho árduo para o professor‟ aliar o estudo gramatical à leitura, escrita e produção textual” (grifos meus). Para Ana, o seu agir não será “fácil”, será “desafiador”, “árduo”, um “dilema”. A insegurança em agir está marcada nos adjetivos empregados. Portanto, a concepção que Ana tem de si mesma é a de agente de seu agir, não de ator. No caso de Paula, ela é a principal actante posta em cena em seu Projeto, e ocupa o papel sintático-semântico agentivo (BRONCKART; MACHADO, 2004). Ela é a responsável pelo processo dinâmico de intervir e melhorar a produção de textos dos alunos e a representação que ela tem de si mesma é a de ator responsável por seu agir. Em seu Projeto apresenta razões pessoais, singulares para agir: “Analisando as produções dos educandos do Ensino Médio, percebe-se que muitos deles apresentam sérias dificuldades em colocar no papel suas ideias de maneira adequada e com argumentação consistente”.
E consciente de que lhe faltava capacidades para agir, no caso, que não teria capacidades necessárias para utilizar-se do computador como uma ferramenta de veiculação dos textos dos alunos, solicitou a ajuda de professores especialistas na área: “É importante considerar que para a execução deste projeto, será estabelecida uma parceria com os professores do Curso de Informática do Colégio Estadual Rio Branco, o que enriquecerá a prática pedagógica, pois os mesmos possuem o domínio das potencialidades do computador”.
Ou seja, a capacidade que não tinha, buscou conseguir por meio de parceria. Portanto, a representação que Paula tem dela no momento da elaboração de sua intervenção é de ator de seu agir. Em um terceiro momento, analisei os artigos finais produzidos pelas professoras PDE. Também uma exigência do Programa, o professor após ter produzido e implementado seu Projeto de Intervenção, produz um artigo relatando sua experiência durante o processo de formação continuada do PDE. Em seu artigo final, Ana demonstrou razões, intenções e capacidades que foram se estabelecendo como próprias durante sua participação no Programa. Ela iniciou o processo como agente, e continuou assim se vendo durante a elaboração de seu Projeto, mas em sua prática de sala de aula, transforma seu papel de agente para ator. Isto pode
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ser confirmado pelo texto da seção Considerações finais de seu Artigo final, onde ela mesma expõe: “No entanto, não é isso o que se verifica nas produções dos alunos, ao chegarem à oitava série, tempo em que se preparam para ingressar no ensino médio. Isso sempre „me angustiou‟ profundamente, por isso me questiono com frequência sobre o que realmente é importante ensinar” (grifo meu).
Ou seja, Ana assumiu que seus sentimentos pessoais constituíram suas razões e intenções para agir e que seu agir trouxe alguns resultados pretendidos, inclusive para ela mesma: “... não foram somente os alunos que progrediram na aprendizagem, mas „eu‟ também, ao me desapegar de alguns hábitos cristalizados, os quais resistia em abandonar, não por comodismo, mas talvez pelo “frio no estômago” que costuma acompanhar as novidades” (grifo meu).
Já Paula, ela assumiu-se como ator de suas ações desde o início de sua participação no Programa. Assim como acontece com ela, e com todos os demais professores participantes do PDE, as razões e os motivos para agir na EB são provenientes primeiro do externo, mas, especificamente, na eleição do gênero textual como eixo condutor de sua ação pedagógica na intervenção a ser realizada na EB, os motivos de Paula se mostraram internos. E sobre sua capacidade, ao interpretar que não teria capacidades necessárias para utilizar-se do computador como uma ferramenta de veiculação dos textos, solicitou a ajuda de professores especialistas na área. Ou seja, a capacidade que não tinha, buscou conseguir. Assim, em seu Artigo Final, Paula relata os temores que teve frente à nova proposta de ensino e aprendizagem, mas o principal foi o seu reconhecimento de que é um posicionamento, uma concepção que exige muito do professor, que deve estar devidamente preparado: “Percebeu-se também que trabalhar com gêneros textuais demanda tempo, planejamento constante e dedicação”. Que exige muito do professor, que precisa ser perspicaz, estudar bastante para estar preparado para os diversos questionamentos dos educandos durante a escrita.
Considerações finais
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Os textos e os discursos sobre o trabalho do professor PDE demonstram que para o Documento Síntese ele é apenas um agente, um simples participante do processo formativo oferecido pelo Programa, cabendo ao PDE o papel de ator responsável pelo desenvolvimento do professor. Representação completamente contrária à teoria anunciada. Em relação aos textos e discursos proferidos pelos dois professores participantes do Programa, os quais configuraram como sujeitos da pesquisa, revelam que uma das professoras, Ana, inicia sua formação do PDE se caracteriza como agente de seu agir, duvida da sua própria capacidade. Mas ao final de todo o processo, declara-se ator, sujeito responsável por suas ações, ela faz referência ao seu próprio desenvolvimento, não mais apenas de seus alunos; e a sua transformação no desapego a hábitos cristalizados. No que se refere à Paula, desde início do processo, seus textos revelam que ela concebe-se como responsável pelas suas ações. Reconhece os desafios de sua profissão, mas coloca-se como responsável em enfrentá-los. Enfim, o Documento regulamentador e orientador do trabalho (formação continuada), dos professores participantes do PDE, caracteriza o professor como um executor de tarefas, pois a ele não é atribuído papel central na atividade educacional. Contudo, o professor PDE, ao final de sua formação em serviço, demonstra-se reconhecer sua responsabilidade frente a sua própria profissão: o de ser ele o responsável pela melhoria da educação básica. Referências ABREU-TARDELLI, L.S. [email protected]: aportes para compreender o trabalho do professor iniciante em EAD. 2006. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), São Paulo/SP, 2004. BRONCKART, J. Atividade de linguagem, discurso e desenvolvimento humano. Tradução Anna Rachel Machado, Maria de Lourdes Meirelles Matencio. Campinas/SP: Mercado das Letras: 2006. _______. O agir nos discursos: das concepções teóricas às concepções dos trabalhadores. Tradução Anna Rachel Machado e Maria de Lourdes Meirelles Matencio. Campinas/SP: Mercado de Letras, 2008.
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_______. [1999] Atividade de linguagem, textos e discurso: por um interacionismo sociodiscursivo. Tradução Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. 2. ed. São Paulo: EDUC, 2009. _______; MACHADO, A.R. Procedimentos de análise de textos sobre o trabalho educacional. In: MACHADO, A.R. (org.). O ensino como trabalho: uma abordagem discursiva. Londrina/PR: Eduel, 2004, p. 131-163. HILA, C.V.D. Ferramentas curso de formação e sequência didática: contribuições para o processo de internalização no estágio de docência de Língua Portuguesa. 2011. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) - Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina/Pr, 2011. LEONTIEV, A.N. O desenvolvimento do psiquismo. 2.ed. São Paulo: Centauro, 2004 LOUSADA, E.G. A emergência da voz do métier em textos sobre o trabalho do professor. In: _______; MACHADO, A.R.; FERREIRA, A.O.. (orgs.). O professor e seu trabalho: a linguagem revelando práticas docentes. Campinas/SP: Mercado de Letras, 2011, p. 61-96. MACHADO, A.R. A perspectiva interacionista sociodiscursiva de Bronckart. In: MEURER, J.L.; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. (org.). Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola, 2005. _______. et al. Relações entre linguagem e trabalho educacional: novas perspectivas e métodos no quadro do Interacionismo Sociodiscurdivo. In: _______. Linguagem e educação: o trabalho do professor em uma nova perspectiva. Organização Vera Lúcia Lopes Cristóvão e Lilia Santos Abreu-Tardelli. Campinas/SP: Mercado de Letras, 2009, p. 15-29. PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Documento Síntese. Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE, 2007. VYGOTSKY, L.S. Pensamento e linguagem. Tradução Jefferson Luiz Camargo. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007
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O PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO DE “BRASIGUAIOS” NO PANORAMA FRONTEIRIÇO E A REPRESENTAÇÃO DE SUAS IDENTIDADES Marlene Niehues Gasparin (UNIOESTE) Izabel da Silva (UNIOESTE) Introdução Os cenários fronteiriços são comumente conhecidos pela demarcação geográfica dos Estados nacionais, no entanto, tal denominação já se torna obsoleta na contemporaneidade, onde “cada vez mais o mundo torna-se uma realidade de fronteiras múltiplas, internas ou externas” (ABDALA JUNIOR, 2002, p. 125), a fronteira passa a adquirir um caráter simbólico e a representar muitas e diferentes coisas: fronteira da civilização; fronteira de culturas e visões de mundo; fronteira de etnias; fronteira da história e da historicidade do homem; entre outras, mas, sobretudo, fronteira do humano, pois segundo Martins (2009, p. 133) “fronteira é essencialmente o lugar da alteridade”. O trânsito linguístico e cultural que caracteriza a pluralidade linguístico/cultural da fronteira trinacional - Brasil, Paraguai e Argentina - não é recente, e tem tanto configurado a região como lugar de integração e de encontros, como também de tensões e conflitos com relação ao Outro. Estas relações conflituosas podem ser percebidas no cenário escolar da região, onde vale ressaltar a importância dos estudos já realizados por Pires-Santos (2004) sobre a escolarização de alunos "brasiguaios" em escolas brasileiras. No entanto, na fronteira paraguaia, mais especificamente no Departamento de Ca’azapá1, no qual também é forte a presença de estrangeiros, inclusive, de brasileiros, ainda faltam pesquisas que tentem compreender as relações identitárias, linguísticas e culturais e as relações de poder entre os sujeitos que participam do ambiente escolar. A partir destas reflexões, este artigo pretende analisar como são construídas e representadas as identidades de alunos “brasiguaios” por meio do contato 1
Localizada na região sul do Paraguai.
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entre a língua portuguesa, espanhola e guarani, a fim de compreender como tais identidades são cultural e historicamente construídas em meio a relações de poder no processo de escolarização neste panorama fronteiriço específico. Para melhor discorrermos sobre o objetivo proposto, primeiro, expomos uma breve discussão e contextualização no que diz respeito às teorias acerca da fronteira. Na próxima seção, apresentamos as relações entre as diferentes línguas no contexto escolar estudado e suas intersecções no ambiente familiar. No último tópico tentamos observar como são construídas e representadas as identidades linguísticas e culturais entre os alunos brasiguaios e paraguaios. 1.
Para além de uma delimitação fronteiriça geográfica Tentar conceituar fronteira nos parece um trabalho um tanto complexo,
entretanto, partimos do entendimento de que defini-la, especificamente, como um marco entre as nações ou uma divisão geográfica, também nos parece um tanto limitado, cabe então, pensar a fronteira a partir de uma perspectiva simbólica, em face às delimitações que são marcadas nas esferas sociais e humanas. Mesmo porque, segundo Albuquerque (2010, p. 224), a fronteira nacional compreende um fator artificial, pois são "criações humanas, delimitadas e marcadas sucessivamente de acordo com os processos de ocupação militar, demográfica, econômica, política e cultural (...)”, ou seja, “son entidades mentales, no físicas2”. É importante pensar em fronteiras simbólicas e humanas, principalmente, porque nelas residem os conflitos que permeiam o imaginário da construção de uma identidade nacional homogênea e, por conseguinte, na crença de uma ideologia da homogeneidade linguística, como se apresenta no processo de escolarização de alunos brasiguaios e paraguaios em Ca’azapá, onde o confronto linguístico e cultural é bastante evidente e segundo Martins (2009, p. 218) “os processos migratórios rompem com as fantasias das culturas nacionais homogêneas e das identidades fixas e consolidadas”. Existem vários fatores que determinam as tensões nas relações entre os diferentes sujeitos nesse espaço, 2
“São entidades mentais, não físicas” (tradução nossa) (MACCLANCY, 1994 apud ALBUQUERQUE, 2010, p. 224).
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entre eles, a imigração brasileira no território paraguaio, na qual os imigrantes brasileiros são considerados intrusos e são vistos como “invasores do território nacional” (MARTINS, 2009 p. 157), o que acaba refletindo em conflitos culturais e linguísticos, principalmente, nas escolas da região, onde às línguas nacionais funcionam como fronteiras à escolarização. O que se percebeu na pesquisa realizada com alunos brasiguaios e paraguaios dos 6° e 9° anos do Ensino Fundamental e 1° e 2° anos do Ensino Médio, foi que a escola não possui um sistema de adequação para alunos estrangeiros, assim, os alunos iniciantes que tem como língua materna a língua portuguesa, encontram dificuldades em desenvolver as atividades escolares e, até mesmo, de se relacionarem com os colegas e professores no espaço escolar. No espaço familiar dos alunos brasiguaios, a comunicação é feita somente em português, o que dificulta também, o contato e a socialização com os demais moradores da comunidade local e o acesso às demais organizações sociais como o comércio, o trabalho, os espaços de lazer, etc. É neste sentido, que percebemos que a fronteira transpassa o geográfico e nos permite pensar na fluidez de significados do termo, pois consoante a Albuquerque (2010): As fronteiras são fluxos, mas também obstáculos, misturas e separações, integrações e conflitos, domínios e subordinações. Elas representam espaços de poder e de conflitos variados. Há uma disputa e confluência de nacionalidades nesse espaço social singular em que se configuram as fronteiras dos meios de comunicação, da escola, da cidadania e das línguas nacionais (p. 235).
Neste caso, em qualquer atividade ou relação social, o indivíduo está em uma situação de confronto, ao relacionar-se com o Outro, esse outro diferente, que pensa, age e pertence a outra categoria social, identitária, cultural e nacional, aonde a fronteira “obedece à lógica do mais-que-um (...), ela envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas, a produção de “efeitos de fronteiras” (HALL, 2000, p. 106). Os conflitos estão inseridos num tempo-espaço onde existe a representação ou uma identidade de um passado marcado do qual nunca se desprende, ou seja, todas as atividades e tensões sociais são construídas pelos próprios seres humanos durante todo seu processo histórico. As identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual elas continuariam a manter certa correspondência. Elas tem a ver, entretanto, com a questão da utilização dos
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recursos da historia, a linguagem e da cultura para a produção não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos (HALL, 2000). E esse passado histórico construído parece estar sempre impregnado no convívio entre brasiguaios e paraguaios, pois apesar deles compartilharem ou não de suas diferenças, existe sempre um fundamento histórico onde há uma explicação para a aceitação ou não, dependendo do ponto de vista e do contexto. A língua é um fator crucial onde aparecem essas marcas, ela é utilizada e muitas vezes negociada, pois representa uma nacionalidade, um símbolo patriótico e político. Os brasiguaios a manifestam de acordo com o contexto, pois nem sempre a língua portuguesa é bem representada ou bem vista pelos olhares da população paraguaia, por ter um grande significado de identidade nacional, entretanto, estes brasiguaios precisam se adequar ao mesmo sistema, principalmente no âmbito escolar para que, dessa maneira, possam ser mais sociabilizados e participantes do mesmo sistema social. As identidades paraguaias dos imigrantes brasileiros só passam a ser reconhecida se eles já falarem fluentemente o guarani. Geralmente não é a cidadania o critério para o reconhecimento social, mas o domínio desse idioma nacional (...) caso não se expressem nesse idioma, as classificações “raciais” e linguísticas marcarão as fronteiras entre “nós” e “eles” (ALBUQUERQUE, 2010, p. 224).
O que esses indivíduos constroem são representações e convicção de que tanto a língua portuguesa quanto a língua guarani e espanhol figuram relações de poder entre as nações e entre os próprios falantes; de que o papel dessas línguas tem maior relevância uma sobre a outra, formando assim, uma barreira entre eles, como aponta Albuquerque, (2010, p. 227) “numa fronteira onde estão presentes três línguas nacionais, o nacionalismo linguístico aflora e delimita fronteiras entre “nós” e “eles”. 2. A língua entre limites e estranhamento A língua portuguesa dos alunos brasiguaios é somente utilizada dentro do espaço familiar, as crianças nascem e crescem adquirindo e aprendendo a língua dos pais que é o idioma português. Os pais dificilmente se comunicam com o idioma local, principalmente com o idioma guarani, o que mais eles tentam articular é espanhol, por
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ser considerado de mais fácil entendimento, sendo assim, as crianças ao saírem em contato com as pessoas do seu ambiente exterior, já seja, nas escolas, comércios, igrejas, eles se deparam com essas barreiras produzidas pela língua, encontram muita dificuldade de se comunicar com os demais indivíduos da sociedade. Uma questão interessante a respeito levantada por Albuquerque (2010, p. 224) é de que as crianças, filhos de brasileiros, tendo a língua portuguesa como língua materna ao entrarem na escola e tendo o contato com os outros idiomas, eles tendem a uma não aceitação e encontram muita dificuldade em aprender, uma vez que, não faz parte de suas vidas, não tem para eles um “significado prático”, ou seja, veem a outra língua como um idioma estrangeiro. É importante destacar também, apesar de que não é uma atitude de todos os brasiguaios, muitos pais não aceitam que os filhos aprendam o idioma guarani, por ser considerado muito difícil e de pouco prestígio, e que irá afetar o desempenho de sua língua materna, essa conduta acarreta muitas dificuldades de relacionamentos, principalmente se esses indivíduos estão localizados numa região rural, no interior do país, pois é nesse espaço que a língua guarani é mais intensificada no uso cotidiano da população em geral, mas, caso contrário, como coloca Pires-Santos (2004, p. 179) ocorre de certa forma, “a não integração no país receptor”. Quando não existe uma unificação do uso real entre diferentes línguas em contato, há sempre um conflito marcado, Hamel (2002, p. 52) chama a essa ocorrência de “conflitos linguísticos” por tanto, ele não se refere a uma disputa entre línguas, mas sim, a uma luta entre diferentes grupos marcados por fatores socioeconômicos, étnicos e socioculturais diferentes que implicam em um desacordo de relacionamento. Nos exemplos abaixo, observaremos que os alunos ao iniciarem a alfabetização em escolas paraguaias, tendem a mesclar a língua materna com a língua que esta sendo aprendida, de certa forma, é inevitável que aconteça uma mistura entre ambas, pois no dia-a-dia destas pessoas estas ações acontecem comum e constantemente. Excerto 1 Marlene: e assim ocorre também vezes que vocês misturam a língua.. falam o português e o espanhol junto? Márcia: sim.
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João: bastante ainda (risos) Marlene: E os professores e os colegas entendem vocês? João: sim, a eles entendem sim. José: a gente repete de novo as coisas que eles pedem Marlene: e em casa com o português? Carla: o português também, ontem mesmo eu tava fazendo janta ca mãe pos pião, aií em vez de pedir pra ela me passar o garfo eu falei, me passa o tenedor, daí ela ficou sem entender neh (risos), também eu me confundi, a gente não acostuma nem lembra, ai tive que repetir pra ela “garfo”. Nestas respostas dadas, percebemos o quão dificultoso se torna o ambiente de relacionamento, quando está em questão o embate entre línguas diferentes, como mostra a resposta dada pelo aluno João de que a mistura ocorre bastante. Observemos na resposta da aluna Carla que estava falando com a mãe em português, porém, ao invés de pedir um garfo pediu ‘tenedor’ que é da língua espanhola, há uma troca de palavras que, de certa forma, provoca certa dificuldade de relacionamento. Estas práticas e realidades são bastante vivenciadas por estes indivíduos neste contexto. A seguir, no excerto seguinte temos uma realidade que implica em que onde há uma diferente língua e cultura, há também, diferentes faces, ou seja, a linguagem dá ao individuo certa característica identitária, essa identidade muitas vezes é vista ou praticada em diferentes maneiras de acordo com o contexto em que o indivíduo está inserido: “esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento-descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo” (HALL, 2006, p. 13).
Como observa Bauman, (2005, p. 17) as identidades nem sempre têm uma forma sólida e imutável, elas são ‘bastante negociáveis e renováveis’ e agem de acordo com a situação em determinados contextos. Hall (2000, p. 108) defende o conceito de identidade não ‘essencialista’, e sim, um ‘conceito estratégico e posicional’ ou seja, não
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considera ‘aquele segmento do eu que permanece, sempre e já, “o mesmo” idêntico a si mesmo ao longo do tempo’, portanto, “as identidades não são nunca unificadas; que elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser contraditórias. As identidades estão sujeitas a tempo histórico radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação. Excerto 2 Marlene: Eu queria que vocês me falassem um pouco sobre como vocês se relacionam com a língua dentro da escola? Marcia: a..nos damos bem neh, no começo eu não sabia falar em guarani, eu não entendia também então ficava quieta só escutando o que eles falava. Carla: E eu, a professora falava que era a mais boazinha da sala, eu não falava, ficava bem quietinha no canto, a.. mais quando tava em casa era bem safadinha, papuda..(risos) José: e eu me chamavam de burrim, pois não falava nem entendia o guarani Marlene: mais vocês conseguiam acompanhar a aula, escrever assim... As: Simm.. Marlene: e vocês acham que isso atrapalhou bastante no aprendizado de vocês? José: a..um pouco sim, pois a gente não sabia escrever e entender o que eles falavam. Carla: tanto que agora a gente aprendeu escrever bem mais. Antonio: (risos) a.. eu parei, não entendo nada mesmo e depois ter que aturar esses chirus ainda (risos). Neste contexto, os alunos ao silenciarem diante da professora e dos colegas, são reconhecidos por traços diferentes, negando o que realmente eles são pela maneira deles se comportarem. Na fala da aluna Carla percebe-se que há essa crise de representação real da sua identidade, pois ela sendo bastante alegre e ‘ousada’ em casa com a família, sendo um lugar onde se sente mais livre, na escola ela encontra uma trave, não consegue manifestar esse mesmo comportamento, por não poder se relacionar com facilidade, e no entanto, é considerada pela professor e os colegas como ‘a mais boazinha da sala’,
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ou seja, negocia sua identidade estando no espaço público, na escola, e no privado, sendo este na família. Com o aluno José ocorre este mesmo caso, ele é considerado ‘burrinho’ por não participar efetivamente da aula, por ter dificuldade de se comunicar no idioma guarani. Na fala do aluno Antonio, portanto, percebe-se que há certa marca de preconceitos diante dos colegas paraguaios, e que ele desistiu por não poder acompanhar as aulas devidamente por não entender a língua local. Desta maneira, criam-se estereótipos a respeito desses indivíduos por apresentarem comportamentos diferenciados. A língua como expressão cultural não é, por tanto, o único elemento definidor de uma nacionalidade, mas continua sendo percebida pela maioria dos habitantes de um país como um forte elemento de identificação nacional e um demarcador de fronteiras culturais e simbólicas (ALBUQUERQUE, 2010, p. 219).
Por não partilharem da mesma realidade linguística e cultural são denominados e considerados como pertencentes a outra esfera social e outra nacionalidade, marcando assim, um sentimento de limites e de desavenças entre os indivíduos em contato. Na sequência analisa-se essa demarcação de fronteira subjetiva diante das diferentes culturas envolvidas num mesmo tempo-espaço. 3. Marcação e demarcação de culturas em contato A globalização e o capitalismo nos introduziram uma nova forma de sociedade, uma nova e diferente realidade na qual precisamos nos adequar. É necessário enfrentar esse fenômeno que se expande gradativamente fazendo modificações acentuadas alterando as relações entre indivíduos, entre sociedade e países, “o nosso mundo e a nossa vida têm vindo a serem moldados pelas tendências em conflito da globalização e da identidade” (CASTELL, 2003, p. 2). E essas mudanças, consequentemente, fez com que não mais existisse uma sociedade homogênea e estável, uma sociedade sem influências de outras culturas, outras identidades e outras línguas; na atualidade torna-se difícil consolidar e definir, por exemplo, que uma língua representa uma nação. A partir desta perspectiva, cultura abarca o conjunto de processos sociais de significação ou, de
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um modo mais complexo, a cultura abarca o conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida social (CANCLINI, 2004), neste sentido, “as nações modernas são, todas, híbridas culturais” (HALL, 2006, p. 62). Assim, essas multiplicidades de fatores envolvidos, trazem grandes conflitos sociais, políticos, econômicos, etc. que repercutem na vida de cada ser humano em sociedade. Esses apontamentos são bastante visíveis na realidade dos indivíduos brasiguaios, que a princípio representam uma identidade nacional diferente da identidade local e, ao mesmo tempo, esse repertório de diferenças faz com que esses indivíduos se desencadeiem de seus ambientes para que ocorra uma melhor estabilidade de relacionamento social. É importante destacar que, em muitas localidades, dependendo do fluxo de estrangeiros, a realidade é um pouco diferente do que está posto acima, visto que, onde há uma maior população sempre há a tendência de maior dominância, por exemplo, de acordo com Albuquerque (2010) em determinadas localidades onde há maior aglomeração de brasileiros, há também uma maior representatividade de seus costumes, no qual são os paraguaios, em muitas situações que necessitam se adequar ao sistema. O que acontece na prática cotidiana é uma complexa mistura de situações de domínio econômico e político dos brasileiros, de conflitos, de integração e de assimilação de valores culturais que variam muito conforme a localidade e as mudanças que tem ocorrido no desenvolvimento das cidades colonizadas pelos imigrantes (ALBUQUERQUE, 2010, p. 203).
Entretanto, neste artigo a análise é o inverso, parte da outra realidade social, onde são os estrangeiros que necessitam aderir aos sistemas da população local, por estarem num patamar mais submerso. Neste excerto abaixo, nas palavras dos entrevistados aparecem essa relação e distanciamento dos diferentes costumes em contato. Excerto 3 Marlene: e assim, como vocês lidam com os costumes daqui, pois aqui a população tem alguns costumes diferentes dos de vocês neh?, com a comida, músicas.. Márcia: vich !!!!... nós faz mistura, nós come de tudo, arroz, feijão, minestra, puchero.
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João: mandioca que é dos paraguaios... Márcia: mbeju, sopa paraguaia, música a gente curte de tudo, cachaka, música brasileira. Marlene: e com eles vocês veem que acontece o mesmo também? João: sim, aqui meus vizinhos todos sabem comer feijão. Claramente, se percebe que entre eles mesmos, carregam essa visão do diferente, dos traços que pertencem a eles, sendo filhos de brasileiros e traços dos paraguaios. Márcia, em seu primeiro depoimento relata que fazem uma mescla com os costumes culinários característicos dos dois países, arroz e feijão que são práticos típicos dos brasileiros e o ‘puchero’ característico do Paraguai. João deixa bastante explícito ao dizer que a ‘mandioca’ é da população paraguaia e não deles. A aluna Márcia, na segunda colocação fala também das músicas que escutam, as brasileiras e ‘cachakas’ que são bem marcantes na região. O aluno João coloca o ‘feijão’ como um alimento característico do Brasil. E assim vão ocorrendo essas trocas de hábitos culinários, gostos musicais, entre outros. Cabe pensarmos então, até que ponto ocorre um intercâmbio de cultura significativamente, percebemos que existe um ou outro diferente, que o que é de um, não pertence ao outro, podem até compartilhá-los, mas, isso não fará com que pertença à mesma identidade nacional. Existem os traços culturais diferenciados em um mesmo espaço e, nesse mesmo espaço há fronteira ou divisa entre elas próprias. É bastante complexo e difícil de encontrar uma definição exata que explique estas relações de conflitos sociais determinados por vários fatores, sejam políticos, socioculturais, econômicos, porém, sabe-se que sempre há um fundamento envolvendo qualquer atividade social praticada pelos seres humanos. Considerações finais A partir das contribuições dadas pelas entrevistas e pelos aportes teóricos compreendem-se as questões relacionadas às fronteiras simbólicas presentes nas sociedades entre indivíduos de diferentes posicionamentos e comportamentos. Dentro de uma sociedade heterogênea limitada por imigrantes brasileiros, submetidos aos
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novos aspectos vindos de forças externas eles têm a necessidade de aderir aos novos sistemas lançados pelos outros, para que possam se relacionar de maneira mais eficiente, e essa mudança de comportamento acarreta em mudanças culturais e identitárias. Observou-se que já não é possível falar em identidades unas, homogêneas, intactas, de qualquer indivíduo, seja ele estrangeiro; ou não, pois estão em permanente fluxo em sua complexidade, o que nos faz refletir conforme aponta Rushdie (2007, p. 339), que “em nossa natureza mais profunda, somos seres que atravessam fronteiras (...) A jornada nos cria. Nós nos transformamos na fronteira que atravessamos”. Percebe-se que estes alunos se encontram em um espaço no qual eles tendem a se comportar e se habituar ao que lhes é exigido para que sejam partícipes das ações e costumes da sociedade em que estão inseridos. Eles aprendem a falar a mesma língua dos pais, neste caso a língua portuguesa, porém, ao sair de seu lar para se integrar nos laços sociais, se deparam com inúmeras dificuldades, medos e incertezas. Como precisam matricular-se nas escolas, participar de eventos, dos cultos, eles veem a necessidade de se aproximar da outra cultura, principalmente da linguagem. Essa fronteira humana, esta sempre impregnada onde existem as diferenças entre indivíduos que compartilham o mesmo espaço concreto ou subjetivo, onde há situações conflitantes, onde sempre há o Outro, onde há alteridade. Referências Bibliográficas ABDALA JUNIOR, Benjamin. Fronteiras múltiplas, identidades plurais: um ensaio sobre mestiçagem e hibridismo cultural. São Paulo: Ed. SENAC, 2002. ALBUQUERQUE, José Lindomar C. A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios na fronteira entre o Brasil e o Paraguai. São Paulo: Annablume, 2010. BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Gorge Zahor, 2005. CANCLINI, N.G. Culturas híbridas. São Paulo: EDUSP, 2011.
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O CORPO SOB CONTROLE – ANÁLISE DISCURSIVA DOS EPISÓDIOS DE NÃO CONTRATAÇÃO DE PROFESSORES “OBESOS” NO ESTADO DE SÃO PAULO
Michelle Aparecida Pereira Lopes1 (UFSCar) Introdução Professor é impedido de assumir cargo público por ser considerado obeso2. Essa é uma das várias manchetes que compuseram os noticiários nos primeiros meses de 2014, quando o governo do Estado de São Paulo optou por não contratar sujeitos considerados obesos, ainda que esses sujeitos tivessem sido aprovados em concurso público para professor. Três professores, sendo duas mulheres e um homem, não foram aceitos pelo Estado sob a alegação de serem obesos. Segundo o Departamento de Perícias Médicas do Estado de São Paulo (DPME), órgão consultado pelas reportagens acerca do assunto, a não efetivação dos professores obesos é respaldada por critérios técnicos e científicos previstos no Estatuto dos Funcionários Públicos3, que inviabiliza a contratação de sujeitos considerados incapazes de executarem todas as funções que seus cargos exigem por não gozarem de boa saúde. Ainda, conforme o DPME, a obesidade mórbida é uma doença tida e vista como inibidora da capacidade laboral, sendo, portanto, viável e legal não contratar funcionários que sofram desse mal.
Doutoranda em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos, UFSCar, sob orientação da professora Dra. Vanice Sargentini. Mestra em Linguística pela Universidade de Franca, UNIFRAN (2013). Docente dos cursos de pós-graduação em Ciências da Linguagem e graduação em Letras na Fundação de Ensino Superior de Passos, FESP/UEMG. 1
Manchete do site UOL em 15 de abril de 2014. Disponível em: < http://tnh1.ne10.uol.com.br/noticia/brasil/2014/04/15/296267/professor-e-impedido-de-assumir-cargopublico-por-ser-considerado-obeso>. Acesso em 25 setembro. 2014.
2
3
Lei N. 10.261, de 28 de outubro de 1968. Disponível em: < www.funap.sp.gov.br/legislacao/estatuto/estatuto_func_public_esp.pdf> Acesso em 25 de setembro de 2014.
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Esses episódios suscitam questões como: o Estado pode controlar os corpos? Seríamos ingênuos se respondêssemos que não, afinal, a história nos mostra que o Estado não só visa controlar os corpos, como efetivamente os controla, à medida que lança políticas nas quais o cerne é a saúde do corpo-social, por exemplo. Em situações como essas, conforme Fernandes (2012, p. 53), “o poder vinculado ao Estado ignora os indivíduos, pois deve voltar-se para os interesses da totalidade”. O corpo, para Análise do Discurso (AD), é uma superfície impregnada pela história, marcada pelas relações de saber/poder, na qual se inscrevem discursos originários dos mais diferentes campos. Da medicina à educação, da moda à etiqueta, do esporte à busca pelo condicionamento físico, o corpo é tachado por estigmas, nomeado, moldado na tentativa de ser disciplinado. Um gama de práticas discursivas e não discursivas que estabelecem padrões de comportamento, de beleza, de peso, para o corpo com vistas a encaixá-lo em formatos mais aceitos, mais legitimados pela sociedade de seu tempo. Nesse sentido, podemos dizer que há uma trama discursiva que nos ensina a olhar para o corpo e a dizer sobre ele. Buscamos, neste artigo, através da teoria da AD e das contribuições da genealogia foucaultiana, para qual o corpo é uma preocupação central, refletir sobre os episódios ocorridos no Estado de São Paulo, entre março e abril de 2014, acima descritos. Para tanto, partimos do pressuposto de que o corpo “obeso” é uma construção histórico-social, arraigada nos discursos que assim nos fizeram nomeá-lo. Buscamos também desenvolver uma reflexão sobre os conceitos de ‘biopoder’ e ‘biopolítica’ que sustentam o controle dos corpos pelo Estado. Que corpo é esse, o “obeso”? A humanidade já passou, em um tempo remoto, por episódios de escassez de alimentos. Naqueles tempos, exibir um corpo rechonchudo e gordo era, então, sinônimo de fartura. O corpo ‘grande’ era símbolo de uma vida abastada, sem necessidade de trabalho braçal que garantisse o sustento. A gordura corporal era tida e vista como status. “As anatomias maciças poderiam ser apreciadas como sinal de poderio, ascendência” (VIGARELLO, 2012, p. 09).
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A partir do século XVIII, a maneira de se perceber o corpo gordo começou a mudar e a gordura passou de “mocinha” a “vilã”, num lento movimento sociocultural que trouxe à tona novos discursos sobre o corpo ‘grande’. A “comilança sem fim” projetava uma sociedade insaciável, fora de controle. Assim, o acúmulo físico deixou de ser sinal de poderio para exprimir o descuido, o desmazelo e até mesmo a grosseria. O corpo ‘grande’ passou a associar-se à preguiça, à falta de controle da gula, ou ainda à usura. As duras críticas ao gordo, no entanto, ainda voltavam-se muito mais à ineficiência de seus gestos, à vagareza de seus atos, à sua inércia, que à estética de seu corpo. A associação entre peso e beleza ganharam força a partir do desenvolvimento das sociedades ocidentais que promoveram (...) o afinamento do corpo, a vigilância mais cerrada da silhueta, a rejeição do peso de maneira mais alarmada. O que transforma o registro da gordura, denegrindo-a, aumentando o seu descrédito e privilegiando insensivelmente a leveza. A amplitude de volume afasta-se cada vez mais do refinamento, enquanto a beleza se aproxima mais e mais do que é magro, esguio. (VIGARELLO, 2012, p. 10-11).
À medida que os estudos médicos evoluíam, aumentava também a preocupação com o peso dos corpos. Na tentativa de controlar o acúmulo de gordura, aparecem os tratamentos para emagrecimento: os regimes. Esses, pensados através das lentes foucaultianas, nada mais são que uma das muitas práticas da antiga “tarefa disciplinar dos corpos em uma miríade de instituições curativas, educativas e reeducativas” (COURTINE, 2013, p. 12). As práticas e discursos do século XIX só fizeram legitimar a preocupação com o corpo. Naquele século estabeleceu-se o cálculo sistemático do peso corporal em tabelas como a do Índice de Massa Corpórea (IMC), por exemplo. A indicação do peso torna-se evidência. O tema banaliza-se, penetra os espíritos, impõe-se como visão implícita e segura. Ainda pela mesma referência, a Manufatura de Armas de Saint-Étienne só vendia bicicletas, na década de 1890, fazendo relação entre o peso do veículo e o do usuário: a bicicleta devia pesar entre 14 e 15 kg “no mínimo”, contanto que o “velocipedista” não pesasse mais de 70 kg. O universo técnico transforma a avaliação do peso corporal numa coisa cada vez mais corriqueira. Outras práticas geram distinções nunca vistas. Os corpos desnudam-se mais no sinal do século XIX, o que aumenta a vigilância sobre o obeso: do lazer à intimidade, da moda
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ao comportamento. A gordura é denunciada de modo mais precoce, designando de cara o desagradável ou o feio. A pressão sobre o gordo ganha intensidade (VIGARELLO, 2012, p. 245). Grifo nosso.
Não acumular gordura passou a ser regra, premissa para que o sujeito pudesse galgar qualidades físicas que permitissem à sociedade enxergá-lo como bonito. Pesar-se tornou-se um hábito estabelecendo-se, assim, o veredito da balança e a ditadura do número. O século XX reforçou práticas dos anos finais do século anterior e, desse modo, fortaleceu o discurso da depreciação da gordura e da supervalorização da magreza. A preocupação excessiva com o peso emergiu como fruto das exigências com os cuidados pessoais e, sendo assim, cuidar do peso tornou-se sinônimo de zelar pela própria saúde. A ideia de que um corpo gordo é também um corpo patológico, não saudável, foi reforçado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), quando em 1975 essa organização inseriu a obesidade no rol de doenças. Segundo a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia 4, para diagnosticar a obesidade, em adultos, o padrão adotado pela OMS é o IMC5. Quando o índice é superior a 30, o corpo possui gordura em excesso, fator que agrava sua situação física. O olhar sobre o corpo muda fazendo mudar também o título que o nomeia. O corpo com excesso de peso agora é chamado de “obeso”. O corpo obeso é tido e visto como um corpo doente, muitas vezes considerado como incapaz de executar ações simples e corriqueiras do cotidiano o que acarretaria, inclusive, problemas para o exercício de algumas profissões. Mais do que nunca, controlar o peso tornou-se uma obrigação, uma responsabilidade do sujeito que queira inserir-se em um padrão para só então poder ser considerado bonito, manter-se saudável, possuir força produtiva e se inserir no mercado de trabalho. Assim, o corpo que hoje tachamos de “obeso” é o resultado das práticas e dos discursos do ontem e do hoje, perpassados por outros como o da medicina, que impõe números para a salubridade. 4 5
< http://www.endocrino.org.br/o-que-e-obesidade/> Acesso em: 26 de set. de 2014. O Índice de Massa Corporal é calculado pela divisão do peso pela altura ao quadrado.
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O peso do corpo sob controle Conforme Foucault (2012 [1988]), o poder sobre a vida, substituto do poder sobre a morte, desenvolveu-se a partir do século XVII, de dois modos intrinsecamente relacionados, sendo um centrado na ideia de “corpo-máquina” e outro na ideia de “corpo-espécie”. O primeiro intencionava o adestramento e a ampliação das aptidões com vistas à docilidade e à integração em sistemas de controle eficazes e econômicos. O segundo, formado doravante o século XVIII, baseando-se nos processos biológicos que mantêm a vida, possibilita ao Estado criar uma série de intervenções e controles reguladores, uma biopolítica da população. A velha potência da morte em que simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. Desenvolvimento rápido, no decorrer da época clássica, das disciplinas diversas – escolas, colégios, casernas, ateliês; aparecimento, também, no terreno das práticas políticas e observações econômicas, dos problemas de natalidade, longevidade, saúde pública, habitação e migração; explosão, portanto, de técnicas diversas e numerosas para obterem a sujeição dos corpos e o controle das populações. Abre-se, assim, a era de um “bio-poder”. (...) Este bio-poder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos. (...) o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornados possíveis pelo exercício do bio-poder com suas formas e procedimentos múltiplos. O investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram indispensáveis naquele momento (FOUCAULT, 2012[1988], p. 152-154). Grifo nosso.
Assim, podemos compreender por biopolítica aquela que coloca “a vida e seus mecanismos no domínio dos cálculos explícitos” lançando mão do poder-saber como um agente de transformação aliado a técnicas que possam controlar e gerir os corpos, sempre respaldadas por aspectos positivos. Analisando as últimas décadas do século XX, veremos que a humanidade tem visto os ponteiros da balança subirem. Se por um lado a tecnologia trouxe avanços que facilitaram a vida, por outro, fez diminuir os esforços e os gastos calóricos do sujeito. As propagandas da mídia impulsionam o consumismo desenfreado das novidades da
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indústria alimentícia: comidas congeladas, gorduras transgênicas de sabor acentuado, sal e açúcares em excesso. A agilidade dos fast food e a oferta exagerada dos self services tornaram-se a opção para quem precisa fazer as refeições fora de casa. Instalaram-se novas tecnologias na arte de cozinhar que deixou a comida mais atraente/ irresistível que fez com que as pessoas não se contivessem diante da oferta? A população mundial aumentou seu peso progressivamente. No Brasil não foi diferente. Em 2013, conforme o Portal Brasil 6, o percentual de sujeitos com excesso de peso ultrapassou mais da metade da população brasileira. A obesidade tornou-se uma questão de saúde pública, em nosso país e no mundo. Num quadro de taxas de obesidade elevadas, a biopolítica encontrou um terreno fértil para entrar em cena. À medida que aumenta o peso da população, aumentam também os riscos de desenvolvimento de diversas doenças desencadeadas pela obesidade, consequentemente, elevar-se-ão também os gastos com a saúde pública. Além disso, acredita-se que sujeitos obesos possuam uma capacidade produtiva menor, o que comprometeria a força de trabalho do Estado como um todo. Dessa forma, o peso do sujeito tornou-se relevante para o Estado e, assim sendo, o corpo precisa, mais do que nunca ser controlado, disciplinado para não se tornar obeso, incapaz de produzir e fonte de futuros gastos dos recursos públicos. O biológico reflete-se no político, fazendo com que o Estado interesse-se em controlar o peso do corpo, não de um único indivíduo, mas de toda massa deles. Para tanto, lança mão de seu poder, criando campanhas baseadas no ideal de salubridade. O controle social passa não somente pela justiça, mas por uma série de outros poderes laterais (as instituições psicológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas, pedagógicas; a gestão dos corpos e a instituição de uma política da saúde; os mecanismos de assistência, as associações filantrópicas e os patrocinadores etc.) que se articulam em dois tempos: trata-se, de um lado, de constituir populações nas quais os indivíduos serão inseridos – o controle é essencialmente uma economia do poder que gerencia a sociedade em função de modelos normativos globais integrados num aparelho de Estado centralizado -; mas, de outro, trata-se igualmente de tornar o poder capilar, isto é, de instalar um sistema de individualização que se destina a modelar
< http://www.brasil.gov.br/saude/2013/08/obesidade-atinge-mais-da-metade-da-populacao-brasileiraaponta-estudo> Acesso em: 27 de set. de 2014.
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cada indivíduo e a gerir sua existência” (REVEL, 2005, p. 29-30). Grifo nosso.
Assim ganha força o discurso da necessidade de gerir os corpos, justificado pelo argumento de que a obesidade é tida e vista como uma ameaça epidêmica, possivelmente comprometedora não somente da saúde futura dos adultos, como também do futuro da sociedade, quiçá de nossa espécie. Nossa sociedade vem legitimando os discursos do controle do peso, das dietas, dos regimes, do “perca três quilos em uma semana”, como se não ser obeso dependesse unicamente do esforço do sujeito, de sua disposição em controlar sua própria gula. Uma série de técnicas de cuidado do próprio corpo que visam encaixá-lo em um padrão que a sociedade passou a considerar como o único. Para sustentar esse discurso, pululam artigos e reportagens na imprensa sobre os melhores alimentos e os melhores exercícios. Apenas para ilustrarmos a situação, citamos, como exemplo, os programas de canais de televisão aberta, “Bem Estar” e “Medida Certa”. Ambos veiculados pela Rede Globo, o primeiro é diário e debate, entre outros, o tema da obesidade com bastante frequência. O segundo, da mesma emissora, propôs a artistas famosos que se submetessem a um programa de reeducação alimentar e exercícios físicos. Após os primeiros episódios, algumas capitais brasileiras foram convocadas para caminhadas a favor da saúde, como forma de incentivar o(s) sujeito(s) a cuidarem melhor de si mesmo(s). Uma existência racional não pode desenrolar-se sem uma “prática de saúde” (...) a armadura permanente da vida cotidiana, permitindo a cada instante saber o que e como fazer. Ela implica uma percepção, de certa forma médica, do mundo, ou pelo menos, do espaço e das circunstâncias em que se vive. Os elementos do meio são percebidos como portadores de efeitos positivos ou negativos para a saúde; entre o indivíduo e o que o envolve, supõe-se toda uma trama de interferências que fazem tal disposição, tal acontecimento, tal mudança nas coisas, irão induzir efeitos mórbidos no corpo; e que, inversamente, tal constituição frágil do corpo em relação àquilo que o circunda (FOUCAULT, 2011[1985], p. 107).
De um lado, medicina e mídia aliam-se na sustentação do discurso de controle do peso do corpo – a primeira dita o padrão, legitimando-o pelo seu discurso científico; a outra, divulga, ensina técnicas para que o padrão seja atingido. Do outro lado, o
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Estado, institucionalizando o discurso das tabelas médicas como a única possibilidade de se manter o organismo público produtivo. No centro disso tudo, o sujeito, pressionado por uma multidão de enunciados alinhados ao controle do peso, sentindo a necessidade de aprender a controlar-se individualmente, controlar seus prazeres e seus exageros na alimentação, ideia cada vez mais instaurada pelo controle do Estado sob a massa. O controle do corpo pelo Estado de São Paulo A partir deste trecho apresentaremos as análises discursivas dos episódios descritos no início deste artigo. Serão analisadas as seguintes notícias: (N1) Reportagem da Folha de São Paulo, caderno Cotidiano, edição de 02 de fev. de 2011, reproduzido pelo blog “Em defesa da educação pública” na mesma data; (N2) Reportagem do Site UOL, de 15 de abr. de 2014; (N3) Reportagem do Site UOL, de 26 de abr. de 2014. De ambas foram recortados enunciados do título, do subtítulo e do corpo da matéria. De (N1), recortamos os seguintes enunciados: 1) (...) governo enfatiza que obesidade é doença; 2) A Secretaria de Gestão Pública, que responde pelo Departamento de Perícias Médicas de São Paulo, disse que o estatuto dos funcionários públicos determina que um dos requisitos para o ingresso no serviço público é que o candidato goze de boa saúde(...). A análise dos enunciados de (N1) permite-nos perceber a presença do discurso legitimado pela medicina e que circula na sociedade, de forma recorrente e estabilizada que aceita uma única possibilidade: a obesidade é uma doença, devendo ser, portanto, reprimida. O repúdio pelo excesso de peso e pelo corpo que o carrega está marcado pela presença do verbo enfatizar, ou seja, o governo não só defende essa determinação como a única verdade, como precisa fazer com que todos a aceitem, por isso usa esse verbo, afinal, enfatizar é dar destaque. Podemos apontar ainda a delegação de vozes – o enunciador diz que outro enunciador disse – sendo esse enunciador protegido por uma opacidade referencial, afinal, quem é o enunciador do estatuto dos funcionários públicos? Todos os funcionários públicos? O governo? Novamente, a “língua de madeira” que caracteriza os discursos burocráticos, administrativos. A instituição, ainda
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que não saibamos exatamente o seu enunciador, determina e, por determinar, faz ser lei que deve ser acatada. De (N2), analisamos os seguintes enunciados: 1) (...) o candidato apresenta doença grave (obesidade mórbida), o que o considera inapto para ingresso no Estado; 2) Dou 30 aulas semanais como temporário. É incrível que, para ser professor temporário, não há problema no meu peso. Mas, para assumir um cargo como efetivo, com dez aulas, eles criam problemas. Podemos perceber aqui que o sujeito não aceito como professor efetivo foi objetivado pelo Estado como doente, conforme a definição da ciência médica, no entanto, para si mesmo, o sujeito não está doente, ou seja, ele subjetiva-se como portador de um corpo saudável e isso é definido e legitimado pelas suas próprias ações, dou trinta aulas semanais. Aqui também podemos perceber a opacidade do referencial. Quando o professor diz eles criam problemas, percebemos que o pronome no plural refere-se ao Estado, no singular. A figura do Estado é tão inapreensível para o enunciador que este prefere colocar o pronome no plural, pois há uma inexatidão sobre quem se está falando. Ainda podemos elencar a contradição estabelecida pela palavra problema, no enunciado “2”. Para que o professor atue como temporário, o peso não é problema, mas para se tornar um professor efetivo, o peso torna-se o problema que impede a contratação. Há um deslizamento de “problema é o peso” para “problema é a contratação”. Os enunciados recortados de (N3) são: 1) O DPME informou que Marcondelli tem IMC (Índice de Massa Corporal) de 43, o que a qualifica como obesa mórbida. O limite para a classificação é 40; 2) Eu sempre fui gordinha e, desde a minha adolescência, brigo com meu peso. Mas me cuido e não vou ficar obcecada em emagrecer por causa do cargo, porque o Estado está mandando. (...)eu já trabalho para o Estado, subo escadas, dou aula, enfim, estou na ativa e o principal eu tenho, que é o diploma’, afirmou ela.
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Nesses enunciados, há uma questão que envolve a subjetivação e a objetivação 7 dos sujeitos. Enquanto a sociedade a objetivou gorda e a DPME a objetivou obesa mórbida, ela subjetiva-se como “gordinha”, um diminutivo que minimiza a questão do peso corporal. Por outro lado, quando o enunciador afirma brigo com meu peso, na verdade responde mais pelo lugar no qual foi objetivada, que pelo lugar em que se subjetivou, já que como “gordinha”, não precisaria brigar com o peso. O emprego do verbo no presente também marca essa continuidade (desde a adolescência até essa data) – confronto sempre presente Mais uma vez, podemos perceber que o Estado respalda-se no discurso da medicina para objetivar o sujeito com excesso de peso como doente inviabilizando sua efetivação. Esse enunciador também reforça o poder do Estado de controlar o corpo, pois afirma porque o Estado está mandando, mas se nega a submeter-se a tal controle. Ao dizer que não vai ficar obcecada em emagrecer por causa do cargo, deixa marcado o discurso em oposição: a obsessão pelo baixo peso, a ditadura da magreza. Além disso, os dizeres finais de seu enunciado estou na ativa, confronta o discurso médico que afirma que o obeso não consegue exercer bem a maioria das funções a que se propõe, mas ela sobe escadas, dá aulas e por isso, não é incapaz. Para esse enunciador, ainda, a contratação deveria efetivar-se porque ela possui o diploma, fator que deveria ser reconhecido como preponderante, mas não é. No geral, podemos constatar o exercício do biopoder pelo Estado de São Paulo, já que este pode ter um funcionário obeso contratado, mas não pode efetivá-lo. Isso porque o obeso contratado não possui cobertura de saúde pelo Estado, mas o obeso efetivo sim, podendo onerar os gastos públicos caso precise cuidar de sua saúde. Como a obesidade é doença, conforme enfatiza o próprio governo, funcionário doente não deve ser efetivado. Se o Estado está dizendo que os obesos não podem ser aceitos como funcionários efetivos, então, como a fala da professora reforça, praticamente ele está condicionando, ou, de forma mais direta, “mandando” que o sujeito emagreça. Podemos O termo “subjetivação” designa, para Foucault, um processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito. Os modos de subjetivação correspondem, na realidade, a dois tipos de análise: de um lado, os modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos – o que significa que há somente sujeitos objetivados e que os modos de subjetivação são, nesse sentido, práticas de objetivação; de outro lado, a maneira pela qual a relação consigo, por meio de um certo número de técnicas, permite constituirse como sujeito de sua própria existência. (REVEL, 2005, p. 82) 7
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entender isso como “O Estado controla o peso do servidor”. Dessa forma, podemos deduzir que o Estado de São Paulo tem visado ao controle do corpo da massa de seus indivíduos. Considerações finais Neste breve estudo buscamos evidenciar como se constituiu a noção de corpo “obeso” que adotamos hoje para nomear o corpo que possui excesso de peso. Mostramos que o discurso, aliado à história e às práticas sociais, tem o poder de estabelecer padrões de conduta, inclusive para os corpos. Sendo assim, o corpo nomeado de “obeso”, neste século XXI, emergiu da regulamentação de tabelas e índices médicos que consideram o acúmulo de peso uma patologia e, portanto, o corpo “obeso” é um corpo doente. Preso à história, esse corpo carrega todos os estigmas que antes recaíam sobre o “corpo grande” e, mais tarde, sobre o “corpo gordo”: o desleixo, a falta de cuidado de si, a feiura, a desproporção, a morbidez, entre tantos outros. Visamos também fazer uma reflexão sobre os conceitos de biopoder e biopolítica, dos quais o Estado se serve para garantir a produção e a ascensão, por meio de políticas e estratégias que se pautam na manutenção da saúde e da vida. Assim, ao analisarmos as manchetes sobre a não contratação de professores obesos pelo Estado de São Paulo, procuramos mostrar como esse Estado lança mão da biopolítica e exerce um biopoder, pautado na construção discursiva da medicina de que a obesidade é doença. Essa construção discursiva forneceu argumentos para que o Estado não aceitasse efetivar três professores “obesos”, ainda que esses tenham sido aprovados em concurso público. Ainda que a não contratação baseie-se em aspectos legais, sustentados por fatores positivos, a favor da saúde, por exemplo, visamos apresentar que, talvez, o Estado pretenda “controlar” o corpo da massa de funcionários, “obrigando” o sujeito a ter um corpo “mais apto para o trabalho”. Ter um corpo apto para o trabalho, pode significar “aquele que produz uma força de trabalho mais potente, portanto, mais lucrativa”, ou ainda, “aquele que não ficará doente e não gastará o dinheiro do Estado”. Referências
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COURTINE, J.J. Decifrar o corpo: pensar com Foucault. Tradução de Francisco Morás. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. FERNANDES, C.A. Discurso e sujeito em Michel Foucault. São Paulo: Entremeios, 2012. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. ______. História da Sexualidade, I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2012 [1988]. ______. História da Sexualidade, 3: O cuidado de si. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque; revisão técnica de José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2011 [1985]. GADET, F. & PÊCHEUX, M. A língua inatingível. Trad. Betânia Mariani e Maria Elizabeth Chaves de Mello. Campinas: Pontes, 2004. REVEL, J. Foucault: conceitos essenciais. Tradução de Maria do Rosário Gregolin, Nilton Milanez, Carlos Piovezani. São Carlos: Claraluz, 2005 VIGARELLO, G. As metamorfoses do gordo: história da obesidade no Ocidente: Da Idade Média ao século XX. Tradução de Marcus Penchel. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
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PROSTITUIÇÃO EM 140 CARACTERES: A VENDA DE SEXO NO TWITTER
Mirielly Ferraça1 (UENP)
A partir dos diversos gêneros discursivos utilizados no meio digital, novos, híbridos ou (re)significados, o sujeito pode, nesses lugares discursivos, movimentar sentidos, contribuir para fixá-los ou ainda inscrever suas marcas. A intenção deste artigo é justamente perceber e analisar os sentidos que o sujeito coloca em circulação em ambientes colaborativos online, especificamente no microblog Twitter. Considera-se, para tanto, as condições de produção dessa nova discursividade afetada e mediada pela tecnologia, ou seja, como as próprias marcas do gênero influenciam, interferem na constituição do enunciado. Assim, a partir de tweets retirados dos twitters: @acompanhantesbr, @garotasprograma e @GarotasDoRioRJ, @prostitwittess tenciona-se refletir sobre os efeitos de sentido que ecoam na materialidade linguística, relacionando-os com a memória sobre a prostituição e observando sentidos outros sobre a prática. Utiliza-se como aporte teórico para refletir sobre esses enunciados a Análise de Discurso de orientação francesa, pautando-se, principalmente, nos dizeres de Michel Pêcheux (1997, 1999, 2008). Palavras-chave: Twitter, prostituição, discurso.
Introdução
A venda de serviços sexuais vem de longa data. Há teorias (ROBERTS, 1998) que relatam a existência de ritos sexuais já no período Paleolítico e que preanunciam o prelúdio da prostituição. Era o caso de mulheres que realizavam sexo livre, cujos rituais eram tomados como culto à fertilidade e como forma ritualística de adoração à Grande Deusa, já que nesse período o homem ainda ignorava sua participação na procriação e, assim, o processo místico e inexplicável da gravidez culminou numa espécie, ainda que breve, de matriarcalismo. Mais tarde, ainda em nome da divindade, as sacerdotisas saem dos templos e praticam sexo em troca de oferendas: ―É aqui que começa a verdadeira história da prostituição; com as sacerdotisas do templo, que eram ao mesmo tempo
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Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste, campus Cascavel. Docente do Curso de Letras da Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP, campus Jacarezinho.
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mulheres sagradas e prostitutas, as primeiras prostitutas da história‖ (ROBERTS, 1998, p. 22). E os trajetos de sentido não param aí. O sexo sagrado foi, com o decorrer do tempo, perdendo forças, dando espaço a novas formas de encarar a prostituição. Na Grécia e em Roma, por exemplo, as prostitutas tinham status elevado, eram livres e podiam seguir caminho artístico, como a dança e o teatro, numa via diferente das esposas, que não podiam sair de casa sem seus maridos e viviam às sombras do cônjuge, pais e irmãos. A prostituição, nesse período, era vista como sinônimo de liberdade e também estava relacionada à cultura, visto que as meretrizes estavam diretamente ligadas à arte. Após a queda do Império Romano, no qual o foco urbano passou a ser rural, o cristianismo reagiu com força contra a ―falta de moral‖, opondo-se à liberdade sexual dos homens e das meretrizes. As prostitutas passaram a ser encaradas como um mal e como ameaça de corrupção da sociedade, mas, ao mesmo tempo, sabia-se, davam o equilíbrio necessário aos ―bons costumes‖. E a história da prostituição se segue, adentrando lugarejos, instalando-se em cidades; depois o inverso, saindo desses lugarejos e cidades, ocupando seu entorno, para a manutenção dos valores sociais e para cuidar da imagem das ―respeitáveis senhoras e moças‖: À medida que os papéis sexuais iam sendo reformulados e as mulheres da elite (ainda dentro do permitido e determinado pelas regras morais criadas pelos homens) iam ganhando as ruas, tornou-se mais complicado a presença das prostitutas nestas mesmas vias; principalmente a partir do momento em que os setores públicos passaram a empenhar-se mais em realizar um maior esquadrinhamento geográfico-social das ruas, para que 'damas' e 'vagabundas' não se misturassem (PEREIRA, 2004, p. 117 - Grifos meus). Inicialmente, as autoridades tentaram desencorajar a prostituição, recusando-se a deixar as prostitutas trabalhar na cidade; as mulheres simplesmente estabeleceram suas casas e bordéis à beira dos portões da cidade – bastante próximos para os clientes urbanos que desejassem ‘saciar sua sede’ sem ter de sair muito do seu caminho (ROBERTS, 1998, p. 94 - Grifos meus).
É no entremeio desse emaranhado de interdiscursos que a memória sobre a prostituição se constitui, numa teia complexa de efeitos de sentido que ecoam e significam continuamente. Em diversas épocas e lugares, as mulheres utilizaram diferentes formas para realizar a venda de sexo: em templos, nos teatros, nas ruas, bordéis, casas de banho, casas de massagem, anúncios em jornais e atualmente adentrou o universo digital, em que se pode encontrar anúncios em sites ou redes sociais, ou
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mesmo o próprio sexo virtual. Se antes as instituições religiosa, jurídica, familiar e o Estado ainda conseguiam exercer um certo ―controle‖ sobre a prática e a exposição da venda de sexo, cerceando linguagens a própria imagem da prostituta, com a internet essas fronteiras se diluem, tanto que é possível acessar sexo pago com poucos cliques, sem sair de casa. Para este artigo, parte-se de tweets2 selecionados a partir dos twitters @acompanhantesbr, @garotasprograma, @prostitwittess e @GarotasDoRioRJ3 com a intenção de perceber como se dá o uso desse ambiente colaborativo online para a venda de sexo, aproximando os tweets aos anúncios de jornais, já que a função exercida por ambos os gêneros é a mesma. Tenciona-se, ainda, refletir sobre os efeitos de sentido que ecoam na materialidade linguística, relacionando-os com a memória sobre a prostituição e observando sentidos outros sobre a prática. Utiliza-se como aporte teórico para refletir sobre esses enunciados a Análise de Discurso de orientação francesa, pautando-se, principalmente, nos dizeres de Michel Pêcheux (1997, 1999, 2008).
Anúncios de jornais e tweets: uma possível transposição do gênero @harrylacerda Aqui @garotasprograma vc encontra GRANDES MASSAGISTAS FEMININAS DA ESTÓRIA. No "quê" depende da sua carteira e de você...
Se a prostituição é de fato a profissão mais antiga do mundo, a própria prática teve que se adaptar às múltiplas linguagens. No tweet usado como epígrafe, nota-se a reverberação de ser esta uma prática milenar, inserida hoje também no meio digital. Por ser justamente uma prática social, a venda de sexo e os sentidos sobre se constituem em meio às paráfrases, na repetição do mesmo, mas também em meio à polissemia, na produção de sentidos outros. A partir da submissão à língua, da interpelação ideológica e da divisão entre consciente e inconsciente, o sujeito constitui-se imerso na repetição de sentidos de uma voz sem nome, histórica, e nas condições de produção atuais, em que sentidos diferentes emergem. O discurso está sempre se (re)fazendo, num trabalho contínuo, movimentando constantemente o simbólico e a história; assim, sujeitos e
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Tweet é o termo usado para se referir a mensagem posta no twitter em até 140 caracteres. A escolha foi aleatória e somente selecionou-se tweets de prostituição feminina por uma questão metodológica. 3
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sentidos se constituem na relação entre o novo e o diferente, entre a tensa relação da paráfrase e da polissemia. É no intradiscurso, que o interdiscurso irrompe: Um sujeito descentrado, cindido, interpelado pelas condições de produção discursiva, dinâmico e interativo, constituído na interação social, situando seus dizeres em relação aos dizeres do outro. Esse outro envolve tanto o interlocutor da mensagem como também a relação com outros discursos já existentes e constituídos historicamente, que permeiam a fala do sujeito enunciador, ou seja, o nível interdiscursivo (FERREIRA, 2012).
A venda de sexo encontra(va) espaço nos jornais, inclusive para além das páginas de anúncio, o sexo pago adentra as páginas de esporte, caderno que possui maior número de leitores do sexo masculino, sendo divulgado propagandas de boates e casas noturnas da cidade local4. Os anúncios de garotas de programa nos classificados diminuíram, mas a prática e a venda não. Percebe-se que suportes digitais propiciaram a transposição desse gênero para o uso no twitter. Segundo Payer (2005), dominar essa linguagem multifacetada e encenada, que, dentre outros aspectos, faz parte do virtual e da tecnologia, criando uma enorme diversidade de situações discursivas, constitui-se condição necessária para a inserção do sujeito no mercado. É o caso dessas garotas que passam a vender sexo na internet, com todas as possibilidades que esse suporte oferece, adaptando-se às condições de produção. Para Bakhtin (1992), os gêneros discursivos são considerados tipos relativamente estáveis de estruturação e constituição de enunciados e estão presentes nas mais variadas formas de interação social: ―fruto de trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia a dia. São entidades sociodiscursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa‖ (MARCUSCHI, 2010, p. 19). Não são, assim, estanques nem rígidos, são dinâmicos e suas demarcações e limites se tornam bem fluídos. Dessa forma, vale considerar que com o desenvolvimento tecnológico vários gêneros discursivos surgem no meio digital e/ou sofrem constantemente modificações, basta considerar os gêneros existentes hoje em relação a sociedades anteriores à comunicação escrita: ―Hoje, em plena fase da denominada cultura eletrônica, com o telefone, o gravador, o rádio, a tv e, 4
Em conversa informal com o proprietário de uma casa noturna de Cascavel-PR, o mesmo relata que tal prática é exercida até hoje.
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particularmente o computador pessoal e sua aplicação mais notável, a internet, presenciamos uma explosão de novos gêneros e novas formas de comunicação, tanto na oralidade como na escrita‖ (MARCUSCHI, 2010, p. 20). São a intensidade do uso dessas tecnologias e suas interferências nas atividades comunicativas diárias que contribuem para a ampliação dos gêneros discursivos. Vale ressaltar, como coloca Bakhtin (1992), que os gêneros que surgem não são absolutamente novos, mas possuem ancoragem com formas discursivas já existentes. Marcuschi (2010) cita como exemplo disso o e-mail, que, apesar de apresentar uma nova identidade e características próprias, tem nas cartas e nos bilhetes seus antecessores. Neste artigo, especificamente, considera-se que os anúncios de jornais antecedem os tweets de garotas de programa, já que a função é a mesma em ambos os gêneros. Os gêneros, segundo Bakhtin (1992), são definidos por sua composição, conteúdo temático e estilo. A composição está relacionada com a estrutura e com o aspecto formal do gênero, por isso dizer que o anúncio de jornal e os tweets em muito se assemelham, já que a estrutura é basicamente formatada por um anunciante que se autodescreve, divulgando ao final a forma de contato. Devido ao suporte, os tweets ampliam as possibilidades em relação ao próprio uso da linguagem, enquanto o anúncio de jornal se restringe ao número de caracteres (dado o espaço disponibilizado pelo veículo e o preço que se paga por ele), utilizando somente a linguagem escrita, o código linguístico, o twitter, apesar de também ter um espaço reduzido, 140 caracteres no máximo, permite ao internauta uma mesclar código mais links para fotos, sites, usar hashtags, etc., além de toda a interação que a ferramenta proporciona, já que se pode twittar (postar algo), follow (seguir usuários e suas publicações), unfollow (deixar de seguir), reply (responder alguém; postagem relacionada como resposta em relação a algum tweet), RT (Retweet – replicar uma mensagem que alguém postou para sua rede de amigos), DM (Direct menssage – enviar uma mensagem privada), entre outras possibilidades. Já o conteúdo temático não é definido pelo tema ou pelo assunto, mas diz respeito às escolhas e propósitos comunicativos do autor em relação ao que se é abordado. Relacionando anúncio de jornal e os tweets de prostituição, pode-se dizer que o conteúdo temático se mantém, dado que a intenção nas duas materialidades é a venda do sexo e o conteúdo gira em torno de descrições físicas e competências. O estilo referese ao modo de apresentação do conteúdo, podendo ser formal ou informal, compreende: ―recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua‖ (BAKHTIN, 1992, p. 261)
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empregados na elaboração dos dizeres discursivos. Nos tweets é possível observar uma mudança em relação ao estilo, dado que a linguagem deixa de sofrer a censura do próprio veículo e, muitas vezes, modalização pelo anunciante que precisa, ainda que via telefone, identificar-se. Assim, dado que o suporte twitter e o meio digital permitem o anonimato5, não há cerceamento em relação ao que se pode dizer, por isso a venda de sexo no twitter diferencia-se sobremaneira da venda de sexo nos periódicos impressos. Marcuschi (2010) alerta para o fato de alguns gêneros serem definidos não só de acordo com sua estrutura e sua função, mas também a partir de qual suporte ou ambiente se utiliza como veículo. Dessa forma, os tweets, nesse caso, passam a ser definidos também em virtude do suporte que utilizam. A amplitude dos recursos utilizados no twitter também influencia na composição do estilo do gênero. Diante do corpus selecionado, tem-se que o possível anonimato amplia a liberdade de expressão, possibilitando que se diga o que era censurado pelos impressos que publicava os anúncios de venda de sexo: ―@prostitwittess BONECA SOPHIA 19a de puro prazer. Venha Sentir meu belo dot 23x6, c/ ducha erótica. Consolação F: (11) 6103-6724‖, podendo fazer descrições sobre o órgão sexual, como é o caso do exemplo citado, sem que isso sofra nenhum tipo de censura. Em uma conversa informal, uma jornalista que trabalha há oito anos em jornal do interior do Paraná, a título de exemplo, afirma que no veículo em que ela trabalha os anúncios para acompanhantes foram proibidos há 7 anos pela direção do veículo. Entretanto, ainda vende-se espaço no periódico se o anúncio for sobre massagens. Falar de sexo pago é perceber que os sentidos sobre o repúdio a prostituição de outras épocas se reverberam nessa impossibilidade de anunciar a venda de sexo de forma explícita, mas de maneira ―camuflada‖ pode, desde que se pague pelo espaço, claro. Já no Twitter, não há interferência em relação ao conteúdo, em sua política de uso, a rede social claramente não se responsabiliza pelo o que é postado, direcionando a responsabilidade ao usuário:
Todo o Conteúdo, disponibilizado publicamente ou transmitido de forma privada, é da exclusiva responsabilidade da pessoa que o originou. O Twitter não controla ou monitora o Conteúdo disponibilizado ou publicado através dos Serviços, não assumindo qualquer responsabilidade em relação àquele. A utilização de qualquer Conteúdo ou materiais disponibilizados ou publicados 5
É claro que, para fins jurídicos, esse anônimo pode ser revelado, considerando a origem do post. O que se quer enfatizar é que perfis falsos assumem o anonimato como forma de liberdade, de poder dizer o que deseja sem sofrer com a censura, com a coerção social.
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através dos Serviços ou obtidos por você através destes, assim como qualquer decisão tomada por você com base nesses, serão de sua exclusiva responsabilidade6. (grifos meus)
Ou seja, se a intenção é vender sexo na web e para isso usar termos que o jornal impresso não publicaria, segundo a política de uso não haveria qualquer ação por parte do twitter em coibir a prática. A única restrição encontrada e que poderia suscitar no encerramento da conta do usuário diz respeito ao uso de imagens pornográficas: ―Pornografia: você não pode usar imagens obscenas ou pornográficas em sua foto do perfil, sua foto de capa ou como segundo plano‖. Entretanto, muitas vezes, por meio da linguagem pode-se sugerir sexo explícito, mas isso não é considerado pela rede, não que se esteja cobrando tal postura, contata-se, apenas, que o fato de a rede não interferir nas publicações proporciona maior liberdade de expressão dos desejos: pode-se vender, dizer que gosta de sexo pago, dizer que paga por sexo, sem sofrer danos morais ao expressar-se. Quer dizer, não sofre danos morais o sujeito anônimo, pois quem assume que realiza a prática ou paga por ela, é ―condenado‖ socialmente. Recentemente, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, foi bombardeado pelos sites de notícias por seguir, segundo ele acidentalmente, a conta de uma agência de acompanhantes no Twitter. O primeiro-ministro e o governo negaram: ―‗Antes era utilizado um processo automático para seguir outras contas e, por isso, que @Number10gov (a conta oficial de Cameron) seguia automaticamente todos seus seguidores‘, explicou o governo à emissora pública britânica‖7. Só existe coerção do conteúdo enquanto incentivo à prática sexual quando esta estiver associada ao sexo infantil. Neste caso, por ser proibido por Lei, a instituição se manifesta contrária em sua política de uso: O Twitter remove qualquer conteúdo que promova a exploração sexual de menores: a exploração sexual de menores não é tolerada no Twitter. Quando tomarmos conhecimento de links para imagens ou conteúdos que promovam a exploração sexual de menores, eles serão removidos do site sem nenhum aviso e denunciados ao National Center for Missing and Exploited Children ("NCMEC"); as contas que promovem ou contêm atualizações com links para conteúdo com exploração sexual de menores são permanentemente suspensas8. 6
https://twitter.com/tos acesso: 05/06/2014. http://exame.abril.com.br/mundo/noticias/cameron-diz-que-seguia-prostitutas-no-twitter-acidentalmente Acesso: 10/10/2014 8 https://twitter.com/tos acesso: 05/06/2014 7
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Não há artigos em nossa jurisdição que proíba a prostituição, mas há, no Código Penal, a descrição da pena a quem incentiva a prostituição. Analisando os tweets de páginas que promovem a prostituição, notou-se que quem atualiza o perfil age como uma espécie de agenciador, o famoso ―cafetão‖ das boates: ―@acompanhantesbr Novidades no PIMP. acompanhante Emanuelly: http://is.gd/b9Zyr morena 1,70, olhos verdes e 100 de quadril‖, ―@acompanhantesbr e não esqueçam.... está sozinho? querendo
alguma
companhia?
www.pimp.com.br
e
boa
diversão!!!‖
e
―@garotasprograma Bem vindo novos seguidores, esperamos que gostem das novidades do site, e caso tenham alguma dúvida é só perguntar! Equipe PIMP!‖. Em alguns tweets, esses mesmos agenciadores pedem para que as pessoas não denunciem a página, pois elas poderão ser encerradas pelo twitter em virtude do conteúdo divulgado, embora sua política de uso não faça nenhuma menção a isso. Segundo o Código Penal, é crime mediar, incentivar ou valer-se da venda de sexo: Mediação para servir a lascívia de outrem Art. 227 - Induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem: Pena - reclusão, de um a três anos. o § 1 Se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa. Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual. Art. 228. Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém a abandone: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Rufianismo Art. 230 - Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Nesse caso, mesmo se tratando da internet, seria considerado crime o papel desse ―mediador‖ nas páginas do twitter, visto que ele oferece a venda de serviços sexuais de outra pessoa e que, muito provavelmente, algo se ganha com o trabalho que se tem em divulgar, atualizar, movimentar e interagir com quem procura sexo pago. Tanto que algumas garotas de programa preferem não utilizar a ferramenta porque a interatividade demanda tempo (e tempo é dinheiro). Para citar um exemplo de como a ação desse ―mediador‖ poderia ser punida, observa-se, no site Jusbrasil um processo
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envolvendo o aliciamento de mulheres por meio do site de uma boate, sendo tal crime condenado: TRF-5 - ACR - Apelação Criminal: APR 200581000038136 PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES CONTRA OS COSTUMES PRATICADOS NO BRASIL. FAVORECIMENTO À PROSTITUIÇÃO, RUFIANISMO, TRÁFICO DE MULHERES E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. ARTS. ARTS. 228, 230, 231 PARÁGRAFO 3º E 288, DO CÓDIGO PENAL. AGENTES QUE ALICIAVAM E ENVIAVAM MULHERES PARA EXERCEREM A PROSTITUIÇÃO NA EUROPA ATRAVÉS DE SÍTIO NA INTERNET DE BOATE QUE MANTINHAM NO BRASIL. USO DE FOTOGRAFIAS DE MULHERES EM POSES ERÓTICAS PARA COLOCAR NO SÍTIO DA BOATE. AUTORIA E MATERIALIDADE COMPROVADAS9.
Comprova-se que mesmo se tratando do meio digital, há punições legais para quem comete tal crime.
Mais do mesmo: sentidos que ecoam
Percebe-se na materialidade selecionada sentidos que ecoam sobre a prostituição
através dos séculos. Renegadas às sombras e às margens, tais sentido negativos se materializam
nas
Sequências
Discursivas
(SD)
selecionadas,
significando
e
significando-as. As próprias garotas de programa reproduzem determinados dizeres jáditos sobre elas mesmas. É o interdiscurso e a memória discursiva que vêm à tona por meio do pré-construído, num constante apagamento, silenciamento de alguns sentidos e reforço de outros: É com base nos preceitos de Pêcheux (1997, 1998 e 2008) que se busca tecer algumas considerações sobre o corpus selecionado. Em relação à linguagem, nota-se que por possuir liberdade de expressão, não havendo censura do que se pode ou não dizer sobre sexo10, e também pela meio digital possibilitar o anonimato, os tweets apresentam, muitas vezes, descrições de partes
9
http://trf-5.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/24911306/acr-apelacao-criminal-apr-200581000038136-trf5 acesso: 25/07/2014 10 Com exceção de sexo infantil e veicular imagens pornográficas, como já mostrado anteriormente.
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físicas íntimas, o que talvez não pudesse ser publicado em um anúncio de jornal, por exemplo. (SD 01) Santa Prostituta @SantaProsti · 13 de nov de 2011 x² + y +8 [(x + 2y² = a-z)] + 2x³ + (- 2z = 2. 4) + 5y -(-12y).Pra que matematica se você tem bunda? Retweetado por Garotas de Programa
Trata-se de uma espécie de anúncio sobre si mesmo, já que as descrições são feitas de modo a seduzir o cliente a experimentar o produto. Se as mulheres que se prostituem na rua ou mesmo as que se prostituem em boates precisam expor e vender a sua imagem, no meio digital isso não é diferente. O Twitter permite, por meio do uso de links, direcionar o internauta cliente para uma página que contém a fotografia da anunciante, diferenciando-se, nesse ponto, dos anúncios de jornais. Na SD 01, nota-se que o twitter retweetado é denominado Santa Prostituta, remetendo aos sentidos inversos que se tem da prostituição. Há uma divisão constituída no e pelo social e pelas instituições ideológicas entre o sagrado e profano, o que cabe a uma mulher tida como correta e que práticas a colocariam no limbo da marginalidade. Colocar-se discursivamente em outro lugar, no lugar de Santa, parece romper com a moral cristã pré-estabelecida, ocupando um lugar considerado inocupável
pela
prostituta. Alguns efeitos de sentido estão significando nessa associação: a) pela constituição dos sentidos que se tem ao usar Santa, a prostituta seria então aquela que não é pecadora, não é imoral, não é incorreta, não faz o mau; b) ou ainda, sendo Santa associado com algo bom, poder-se-ia pensar que ela é uma ―boa prostituta‖, mas sabe-se que o adjetivo ―boa‖, pelo efeitos construídos no social, poderia significar que ela é boa de sexo, boa no que faz (ou ainda, seria a ―boazuda‖?). Além disso, ainda na SD 01, parece haver a reverberação de que usar o corpo não requer inteligência e que intelecto não combina com forma física. Dizer isso combina com os dizeres repetidos no senso comum da ―loira burra‖, por exemplo, que por ser bonita é incapaz de pensar. Esses sentidos vão ao encontro de outros que dizem que só é prostituta por falta de opção ou por não ter condições intelectuais de realizar outras atividades. E isso se estende a outros lugares sociais, sendo beleza e inteligência predicativos que não servem para uma mesma pessoa e se servem, causam espanto. O imaginário sobre a prostituta perpetua-se. Sentidos negativos sobre a venda do corpos constituem quem é a garota de programa: promíscua, má, pecadora, imoral. chamar alguém de puta revela-se na maior das ofensas:
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(SD 02) ProstiTwittess @prostitwittess · 6 de jul de 2010 Ola pode me indiar a melhor puta — Depende... sua mãe ainda está no mercado? Ela era ó-ti-ma! http://4ms.me/by7W7P
Colocar a mãe do outro nesse lugar é associá-la a todos os sentidos negativos construídos para a garota de programa e ainda chamar o filho de ―filho da puta‖. Além de mexer com a ―moral‖ da família, com a ―honra‖ da mãe, ainda tais sentidos recaem sobre o filho. Numa partida de futebol, por exemplo, prática predominantemente masculina, é comum ouvir o árbitro ser chamado de ―filho da puta‖, termo comumente utilizado de forma ofensiva quando se equivoca, quando realiza um julgamento ambíguo ou de difícil constatação ou simplesmente quando a penalidade aplicada favorece o time adversário. A ofensa, nesse caso, constitui-se a partir de uma prática estigmatizada por valores e normas sociais que condena quem pratica sexo por dinheiro, por exemplo. Ser chamado de ―filho da puta‖ denigre a reputação do ofendido, por meio do comportamento sexual da mãe, já que a honra, nesse caso, relaciona-se com a sexualidade feminina familiar. Além disso, a imagem materna é delineada como ―santa‖ e ―sagrada‖ e, nessa linha, ela é ―incapaz‖ de se corromper sexualmente com outros homens. Observe-se que essa relação não é feita para o pai; não existe o ―filho do puto‖; mesmo que o pai seja um homem que saia com várias mulheres diferentes, esse estigma não existe; pelo contrário, a partir do imaginário até se exaltaria o pai como ―garanhão‖: um ―Don Juan‖. Na última SD destacada para este artigo, percebe-se não só a liberdade de expressão da qual já se falou e com ela o cruzamento de algumas fronteiras jamais permitidas pela moral social e pelas instituições conservadoras desta. (SD 03) ProstiTwittess @prostitwittess · 14 de mar de 2012 Mãe e filha Vc já experimentou? estamos te esperando em dose dupla Afoso Celso 244 5084-4392 #SP
Pelos valores sociais, relação sexual entre mãe e filha é considerado incesto, ferindo o código cível e penal apenas quando este estiver relacionado com o abuso de menores, fora isso, não é considerado crime. Entretanto, não é uma prática tolerada pela sociedade. Tal descrição coloca (já é) a prostituição no campo da libertinagem, em que tudo é permitido e possível. Colocar a figura materna nesse lugar que é a prostituição é deslizar discursivamente para outros sentidos, é colocar no mesmo lado os lados opostos
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de uma moeda que, mesmo coexistindo, não poderiam ser ocupados simultaneamente. A posição materna é descrita como o ideal a ser seguido, imaculada, pura, associada a Virgem Maria, já a garota de programa se constitui exatamente na oposição desses sentidos.
Considerações finais Ao aproximar anúncio de jornal e tweets, percebe-se uma possível transposição de um gênero a outro, mas que, justamente por considerar o suporte, com algumas mudanças, reafirmando que os gêneros discursivos não fixados e fechados, mas, assim como a linguagem se movimenta no social, eles possuem uma certa maleabilidade que permite alterações, transmutações, hibridizações. Nota-se no twitter, por justamente o ambiente colaborativo permitir, uma outra forma de prostituição, em que o ―cafetão‖ torna-se uma figura virtual, a alteração da liberdade para dizer o que se quer e não o que se pode e deve, diluindo as fronteiras da coerção sexual.
Referências bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal (trad. M.E.G. Gomes). São Paulo: Martins fontes, 1992. BRASIL. Código Penal Brasileiro. (1940). Disponível em: acesso: 10/09/2014 FERREIRA, Ismael. Por um percurso epistemológico da noção de sujeito na linguística. Revista Fórum Linguístico, vol. 9, nº 1, 2012. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais como práticas sócio-históricas. In: Gêneros textuais e ensino. Org. Angela Paiva Dionisio, Anna Rachel Machado, Maria Auxiliadora Bezerra. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. PAYER, O. M. Linguagem e sociedade contemporânea: Sujeito, mídia e mercado. Revista Rua, nº 11. Campinas, Editora da Unicamp, 2005. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3. ed. trad. Eni Puccinelli Orlandi. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. . Papel da Memória. In: ACHARD, Pierre (org.) Papel da Memória. trad. José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999. . O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução Eni Puccinelli Orlandi. – 2ª edição – Campinas, SP: pontes, 2008. PEREIRA, Ivonete. As decaídas: prostituição em Florianópolis (1900-1940). Florianópolis: Ed.da UFSC, 2004. ROBERTS, Nickie. As prostitutas na História. trad. Magna Lopes. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1998.
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A RELAÇÃO RETÓRICA DE FUNDO SINALIZADA EM INSERÇÕES PARENTÉTICAS EM LÍNGUA FALADA Monique Bisconsim Ganasin (UEM) Introdução Para cumprir seus objetivos e transpor corretamente o conteúdo aos alunos, nas aulas de ensino superior – elocuções formais – o professor utiliza várias estratégias de construção do texto, dentre elas as inserções parentéticas. Essas aulas possuem os papéis e a posse do turno fixados previamente, havendo poucas marcas de interação. Além disso, esses textos também têm um início bem marcado com a apresentação dos objetivos da aula ou do trabalho, bem como um encerramento no qual os objetivos da aula seguinte são antecipados. A concepção de língua falada que embasa o trabalho não concebe fala e escrita como modalidades, antagônicas, mas em um contínuo tipológico. O planejamento do discurso mostra que a fala e a escrita podem representar um contínuo, sendo que há quatro níveis de planejamento: discurso falado não planejado, discurso falado planejado, discurso escrito não planejado e discurso escrito planejado. Além disso, a modalidade oral e a modalidade escrita utilizam um mesmo sistema, mas diferem no que diz respeito aos métodos de produção, transmissão, recepção e de estruturas de organização. Na fala não planejada previamente, a produção em se fazendo do texto oral leva à fragmentação (CHAFE, 1985) e a descontinuidades no fluxo discursivo (KOCH, 2006), motivo pelo qual essa modalidade é muitas vezes vista de forma estigmatizada quando analisada à luz da teoria gramatical que se desenvolveu a partir da escrita. Ainda, pressões de ordem pragmática levam o falante, na fala não planejada previamente, a “sacrificar a sintaxe em prol das necessidades de interação” (p. 46). Em decorrência disso, encontram-se no texto falado falsos começos, truncamentos, correções, hesitações, inserções parentéticas, repetições e paráfrases, que funcionam, na maioria das vezes, como estratégias de construção do texto falado, “servindo a funções cognitivo-textuais de grande relevância” (KOCH, 2006, p. 46).
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O objetivo deste trabalho é analisar a relação retórica de fundo que emerge em inserções parentéticas na língua falada. Para isso, a pesquisa utilizará o corpus de pesquisa do Funcpar (Grupo de Pesquisas Funcionalistas do Norte/Noroeste do Paraná), que são transcrições de aulas acadêmicas (elocuções formais), as quais já possuem papéis e posse de turno previamente fixados, sem muitas marcas de interação. Adotou-se, no trabalho, a teoria da RST (Rethorical Structure Theory), na qual parte-se da ideia de que, no texto, há relações que se estabelecem por meio de suas partes, além das que são identificadas pelo seu conteúdo explícito. A relação retórica de fundo tem por finalidade ampliar a compreensão do leitor sobre algo dito anteriormente, sendo encontrada nas inserções parentéticas, que são estratégias de construção do texto, que também podem ser utilizadas com o mesmo objetivo. A partir da análise do corpus, pretende-se apontar em quais tipos de inserções parentéticas sinalizam-se a relação de fundo e descrever os meios linguísticos utilizados pelos interlocutores para evidenciar essa relação, quando marcadas formalmente. 1. A língua falada A concepção de língua falada que embasa a pesquisa não concebe fala e escrita como modalidades estanques, mas em um contínuo tipológico. O planejamento do discurso mostra que a fala e a escrita podem representar um contínuo, sendo que há quatro níveis de planejamento: discurso falado não planejado, discurso falado planejado, discurso escrito não planejado e discurso escrito planejado. Um equívoco cometido por muitos pesquisadores a respeito dessa relação é analisar textos de tipos diferentes e atribuir as diferenças encontradas à modalidade de língua. Escolhe-se um texto oral de um determinado tipo e um texto escrito de um tipo diferente e muitas das diferenças que surgem, nesse caso, são originadas pelas diferenças nos tipos de texto. Neste trabalho, para evitar esse problema, são utilizados textos de um mesmo tipo, mas nas modalidades oral e escrita. A modalidade oral e a modalidade escrita utilizam um mesmo sistema, mas diferem no que diz respeito aos métodos de produção, transmissão, recepção e de estruturas de organização. Na fala não planejada previamente, a produção em se fazendo do texto oral leva à fragmentação (CHAFE, 1985) e a descontinuidades no fluxo discursivo (KOCH,
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2006), motivo pelo qual essa modalidade é muitas vezes vista de forma estigmatizada quando analisada à luz da teoria gramatical que se desenvolveu a partir da escrita. Ainda, pressões de ordem pragmática levam o falante, na fala não planejada previamente, a “sacrificar a sintaxe em prol das necessidades de interação” (p. 46). Em decorrência disso, encontram-se no texto falado falsos começos, truncamentos, correções, hesitações, inserções parentéticas, repetições e paráfrases, que funcionam, na maioria das vezes, como estratégias de construção do texto falado, “servindo a funções cognitivo-textuais de grande relevância” (KOCH, 2006, p. 46). 2. Inserções parentéticas Jubran (2006) afirma que “[...] os parênteses têm sido definidos como frases independentes (frases hóspedes), que interrompem a relação sintática da frase na qual estão encaixadas e não apresentam, em relação a ela, uma conexão formal nitidamente estabelecida [...]”, ou seja, é uma estratégia de inserção de informações ao assunto em relevância naquele momento do texto, promovendo um desvio tópico discursivo, no qual se encaixam, podendo inserir referências à atividade reformulativa, alusões ao papel discurso e interacional do locutor e do interlocutor, bem como comentários e avaliações sobre o ato verbal em curso. Além disso, Jubran (2006) afirma que os parênteses podem ser utilizados para realizar uma retomada de ideias. A autora ainda reconhece que o grau de variações do desvio de tópico ocorre em diversas escalas e, também, classifica os parênteses que abrangem as relações parentéticas por diferentes funções textuais exercidas. Tal classificação se dá observando os graus de aproximamento ou afastamento do tópico frasal, sendo um com o conteúdo voltado para o enunciado, dois níveis intermediário, e o último nível com maior grau de afastamento do tópico, com o conteúdo parentético totalmente voltado para o ato interacional. O uso da inserção parentética mostra-se muito eficaz quando se necessita esclarecer ou explicitar informações mais sintetizadas, sendo assim, essa estratégia vai muito além de um desvio de tópico, sendo de total utilidade e com funções específicas e, muitas vezes, necessária para a compreensão do conteúdo tópico. Portanto, a parentetização constitui um dos recursos de evidente entrada de fatores pragmáticos no texto.
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3. A Teoria da Estrutura Retórica e a relação de fundo Na visão da Linguística Funcional, a língua é como “um instrumento de comunicação cuja estrutura depende da situação interacional e de fatores como a cognição e a comunicação, processamento mental, interação social e cultural, mudança e variação, aquisição e evolução”. (NEVES, 2000, p. 03) O funcionalismo, então, de acordo com Dik (1989), privilegia a função que as formas linguísticas desempenham na linguagem, levando sempre em conta o contexto e a função discursiva, a interação social e competência comunicativa do falante, propósito, participantes e contexto de comunicação e situação interacional. Dentre as teorias funcionalistas, há a Teoria da Estrutura Retórica (Rethorical Structure Theory, RST) um método que estuda as relações que se estabelecem entre partes do texto, e não trabalha com estruturas e categorizações mecânicas ou estruturais. Como afirmam Mann & Thompson (1987), os textos não devem ser considerados como sistemas com estruturas já previstas pelas normas sintáticas, mas sim como cláusulas hierarquicamente organizadas. Assim, a Teoria da Estrutura Retórica utiliza uma análise calcada no uso e na intenção do falante num processo comunicativo e, dessa forma, estuda a combinação de orações e a coerência textual a partir do estudo da organização de textos. Muitos estudos utilizam a RST como um quadro de investigação para questões linguísticas. De acordo com Mann & Thompson (1988), o uso bem sucedido da RST valida seus pressupostos, já que a teoria fornece uma maneira geral para descrever relações entre cláusulas num texto, estando elas marcadas ou não. Ou seja, as relações que se estabelecem entre os textos são implícitas, pois podem ou não ser marcadas por indicadores claros. Essas relações implícitas - identificadas pelo conteúdo semântico e pragmático das orações - recebem o nome de proposições relacionais. Para a RST, a informação semântica contida nas proposições relacionais é sempre indispensável. Dessa forma, “importa o tipo de proposição relacional que emerge da articulação de cláusulas, e não a marca lexical dessa relação” (DECAT, 2001). Mann & Thompson (1987a) afirmam que as proposições relacionais estão em todo o texto, independente da extensão das orações, e são responsáveis pela coerência textual, assim, é possível perceber que as relações estabelecidas pela RST podem estar presentes
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tanto na microestrutura do texto (entre orações ou cláusulas) quanto na macroestrutura do texto (porções maiores de texto). De acordo com Van Dijk (1992), a macroestrutura fornece a informação semântica global de um discurso, enquanto a microestrutura abarca conexões em sentenças lineares. É fundamental entender que as relações estabelecidas pela RST se dão através da ligação entre um núcleo e um satélite. De acordo com Taboada & Mann (2005), o núcleo é a porção que detém a informação mais importante do texto e que contém as informações essenciais para que o autor atinja seu objetivo, já os satélites oferecem informações adicionais sobre o núcleo e representam as informações secundárias. Portanto, existem esquemas padronizados da RST que indicam os tipos de relação núcleo-satélite e especificam as relações retóricas que ocorrem no texto exprimindo as intenções do produtor por meio de suas escolhas. Quando a relação se estabelece entre um núcleo e um satélite, ela é denominada mononuclear, por conter uma porção de texto mais central para os propósitos do produtor e que se liga a outra porção de texto, o satélite. Já quando uma relação se estabelece entre dois segmentos de estatuto semelhante, ela é chamada de multinuclear. Uma lista de aproximadamente vinte e cinco relações foi estabelecida por Mann e Thompson (1987) após a análise de centenas de textos por meio da RST. A definição dessas relações consiste em quatro campos: restrições sobre o núcleo, restrições sobre o satélite, restrições sobre a combinação entre núcleo e satélite e sobre o efeito pretendido. De
acordo
com
os
autores
e
disponível
no
site
http://www.sfu.ca/rst/07portuguese/definitions.html, a relação retórica de fundo é colocada como: em N: L não compreende Fundo integralmente N antes de ler o texto de S
S aumenta a capacidade de A capacidade de L para L compreender um compreender N elemento em N aumenta
O leitor não entende integralmente o núcleo antes de ler o texto do satélite; dessa forma, o satélite aumenta a capacidade do leitor compreender um elemento do núcleo.
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Assim, ao se utilizar a relação de fundo, o leitor consegue compreender melhor o núcleo. Os trechos a seguir mostram as inserções parentéticas (em negrito) inseridas em porções de texto que compõem a relação retórica de fundo, ou seja, porções de texto que contêm informações fundamentais para o entendimento do leitor sobre o que virá posteriormente. (1) ... hoje .. nós vamos mudar um POUco, .. nós vamos/ ver OUtros tipos de dispersões. ... vocês se lembram .. daquelas primeiras aulas nossas, .. onde nós vimos os tipos de dispersões que/ .. [tosse] .. a solução verdadeira é uma dispersão? Nesse primeiro trecho, o parênteses é inserido a fim de retomar e ratificar aos alunos que tal conteúdo já foi iniciado em outra aula e que será continuado nessa. Esse tipo de discurso é muito comum no início das aulas, pois busca, além de deter a atenção do público, traçar um roteiro de como a aula seguirá. (2) .. aí ele fez o famo::so experimento do pescoço de cisne. .. já ouviram falar desse experimento .. de Louis Pasteur? ... Louis Pasteur é um gra::nde laboratorista eu digo, .. tem um monte de/de instrumentos de/de laboratório que tem o nome dele, .. pipeta de Pasteur, .. não sei o quê, .. são várias coisas. .. então ele sabia domina::r essa técnica de vidrari::a, .. que que ele fez? Em (2), a inserção parentética é utilizada para expandir o conteúdo que está sendo exposto. O professor, ao citar o experimento, infere que talvez nem todos do seu público conheçam-no, então insere uma explicação sobre isso para que posteriormente ninguém tenha alguma dúvida.
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(3) ... esse primeiros seres .. eles eram autotróficos ou heterotróficos? .. paRÊNteses .. vamos lembrar dos te::rmos? .. que que é um organismo autotrófico? ... aque::le que produz o seu próprio alimento. .. plantas .. realizam fotossíntese, .. e o organismo heterotrófico .. não produz seu próprio alimento, .. tem que obter esse alimento do meio. .. bom. .. beleza? .. então vamo lá, Por fim, no exemplo (3), há explicitamente uma inserção parentética utilizada para retomar conteúdos já expostos, mas que são fundamentais para a compreensão do tópico em questão. Provavelmente, o conteúdo da inserção parentética foi fundamental para o entendimento do conteúdo exposto posteriormente. Isso ainda confirma a importância das inserções parentéticas como estratégia de construção do texto falada, ainda mais quando inseridas em porções de texto que sinalizam uma relação retórica de fundo. Considerações finais Este trabalho pôde mostrar que as inserções parentéticas mostram-se muito recorrentes em porções de texto que compõem a relação retórica de fundo. Principalmente ao analisar elocuções formais – aulas de ensino superior – pôde-se notar que essas construções são utilizadas pelos professores a fim de preparar os alunos para o será exposto a seguir. Ainda que não seja muito recorrente nas inserções parentéticas, a relação retórica de fundo mostra-se como uma importante parte das porções de texto que englobam relações maiores a fim de melhorar a transposição do conteúdo a ser passado pelo professor nas aulas de ensino superior, principalmente para dar suporte/esclarecer aos alunos sobre o que será tratado na aula, como um todo, ou em algum conteúdo posterior.
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Referências DECAT, M.B.N. Aspectos da gramática do português: uma abordagem funcionalista. Campinas/SP: Mercado de Letras, 2001. DIK, C. S. The Theory of Functional Grammar. Dorderecht-Holland/Providence RIEUA: Foris Publications, 1989. JUBRAN, C.C.A.S. A perspectiva textual-interativa. In: JUBRAN, C.C.A.S.; KOCH, I.V. (orgs.) Gramática do Português Culto Falado no Brasil. v.1, Campinas/São Paulo: Ed. da Unicamp, 2006. p.27-38. KOCH, I.G.V. Especificidade do texto falado. In: ______ (Org.) Gramática do Português Culto Falado no Brasil: Construção do Texto Falado. Campinas: Ed. da Unicamp, 2006. p. 39-46. MANN, W.C. & THOMPSON, S. A. Rhetorical Structure Theory: a theory of text organization. ISI/RS-87-190,1987. ______. Rhetorical Structure Theory: toward a functional theory of text organization. Text 8(3): 243-281, 1988 NEVES, M. H. M. Reflexões sobre a investigação gramatical. In: ______. A gramática: história, teoria e análise, ensino. S. Paulo: Ed. Unesp, 2001. p. 79-89 ______. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora UNESP, 2000. TABOADA, M.; MANN, W. Rhetorical Structure Theory: Looking back and moving ahead. Discourse Studies, 8(3):423-459, 2005.
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O MITO SOBRE A COLUNA PRESTES: RELAÇÕES DE PODER ENTRE A HISTÓRIA TRADICIONAL E O RELATO JORNALÍSTICO Morgani Guzzo (UNICENTRO) O fato e os olhares sobre o acontecimento: Coluna Prestes Todo discurso é uma construção de sentidos que parte de um contexto de produção. O relato histórico ou jornalístico de qualquer acontecimento, por exemplo, jamais dá a dimensão total da realidade, pois é constituído por escolhas, seleções e olhares sobre a totalidade, muitas vezes a partir de um recorte subjetivo. Qualquer acontecimento, portanto, pode ser disperso por várias tramas, sendo passível de ser construído de inúmeras maneiras, produzindo relações de sentido diversas. A construção de sentidos a respeito da Coluna Prestes, comandada pelo capitão Luiz Carlos Prestes na década de 1920, foi sendo feita pela história ancorada, principalmente, por documentos, principalmente, cartas e correspondências oficiais. De acordo om Jacques Le Goff (2013), embora a história tenha surgido com o relato, a narração daquele que diz “Eu vi, senti”, os documentos foram, por muito tempo, as fontes históricas por excelência. O relato historiográfico sobre a Coluna Prestes influenciou a constituição da memória coletiva sobre o acontecimento: uma teia de sentidos que se construíram a partir de uma “história oficial”, cujos discursos reverberaram a imagem de uma tentativa de revolução idealizada por um herói e seus bravos seguidores na luta por justiça e melhores condições à população. Esse discurso que, sendo da ordem do acontecimento, é histórico, evidencia principalmente os fatores positivos sobre a Coluna Prestes. No entanto, o mesmo acontecimento pode desencadear novas construções simbólicas, dependendo do recorte e do ângulo em que é abordado por diferentes discursos. De acordo com Foucault (1995), um enunciado é um acontecimento, pois ao mesmo tempo em que este “está ligado a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra”, ele abre para si uma “existência remanescente no campo de uma memória” (FOUCAULT, 1995, p. 32). Assim, apesar de ser único como acontecimento, ele está
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aberto à repetição, transformação, reativação, está ligado às situações que o provocam, às consequências por ele ocasionadas e aos enunciados que o precedem e o seguem. Ao buscar as histórias por trás do mito da Coluna Prestes, o livro-reportagem de Eliane Brum (1994) possibilita que se analise a emergência de séries enunciativas que, ao virem à tona, evidenciam uma relação de poder estabelecida entre discursos divergentes sobre o mesmo fato – o discurso “oficial” em contraposição aos depoimentos recolhidos anos depois. Baseado nos estudos de Michel Foucault é possível compreender os acontecimentos discursivos que propiciaram a cristalização e o estabelecimento de certos objetos em nossa cultura a partir da relação entre discurso e poderes. Foucault (2004) postula que a materialidade discursiva nos coloca diante de enunciados que provocam a abertura e se ligam à memória coletiva. O acontecimento ganha sentido dentro de uma série e só se torna histórico por meio do discurso. Considerando que há uma memória histórica favorável ao mito de Prestes, admite-se que as relações de poder entre o discurso “oficial” e as séries enunciativas do livroreportagem são evidenciadas dentro da “ordem do discurso”, que determina procedimentos de controle, que provocam a emergência de uns e o silenciamento de outros. A memória sobre a Coluna Prestes é tanto histórica quanto coletiva. De acordo com Maurice Halbwachs (2004), a memória coletiva é subjetiva, individual e compartilhada, desencadeada por emoções – estreitamente ligadas à relação de pertencimento entre membros do mesmo grupo. Enquanto a memória histórica (sequência de acontecimentos dos quais a história nacional conserva lembrança) é territorial, de um povo ou de várias classes sociais, um conjunto onde todos os grupos pertencem. A “história oficial” sobre a Coluna Prestes constitui uma memória histórica, enquanto os relatos coletados pela jornalista Eliane Brum (1994) formam, em seu conjunto, uma memória coletiva, isto é, composta pelo grupo de indivíduos que ficaram “pelo caminho”. O contexto histórico por trás do surgimento da Coluna Prestes é o Brasil difuso e decadente da década de 1920, que se delineia, entre outros aspectos, com a revolta contra a farsa na eleição do novo presidente, Arthur Bernardes, a insatisfação com o
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novo Governo, as péssimas condições de vida população, a crise econômica, as greves operárias, as revoltas de uma parcela de militares etc. No estado do Rio Grande do Sul, o entusiasmo do jovem capitão de 26 anos, Luiz Carlos Prestes, mobilizava outros oficiais a lutar pela queda do governo de Arthur Bernardes, por mudanças e por justiça para o povo brasileiro. Em seu plano idealista, a revolta começaria no Sul e alcançaria vários Estados brasileiros, levantando cada vez mais adeptos a lutar pela revolução. O ideal de Prestes e sua coragem reverberam ao longo de quase 70 anos, transformando esse acontecimento em uma lenda. Até que, em 1993, a curiosidade de uma repórter de Ijuí-RS, começa a colocar em xeque o mito, iniciando um processo de questionamento sobre a “história oficial” desse acontecimento. Ao ouvir testemunhas, entre elas ex-combatentes e moradores da cidade onde a Coluna passou, a jornalista Eliane Brum evidencia novas possibilidades de discurso sobre o movimento dos revoltosos pelos 15 Estados brasileiros. Ao percorrer mais de 50 cidades e entrevistar mais de cem pessoas, Brum (1994) reconhece uma “outra verdade” por trás do mito, os discursos interditos, aquilo que não se pode dizer, o que é silenciado dos livros, mas reverbera nos confins dos sertões e nas memórias das testemunhas dos anos 1924 e 1927. O relato “oficial” sobre a Coluna Prestes foi construído a partir de diários, cartas e telegramas dos combatentes do primeiro escalão e mostra a história de um movimento revolucionário que se desenvolveu para libertar o País que vivia preso nas amarras da mais absoluta miséria, falta de possibilidades de ascensão e de liberdade. Vista a partir desses documentos e testemunhos oficiais, a Coluna constituía-se como o processo de mobilização para a libertação do País e a luta, portanto, não poderia ser mais justa. Este olhar sobre o acontecimento constitui uma “vontade de verdade”, que segundo Foucault (2004), é um dos procedimentos de controle do discurso e surge por meio de relações de poder entre os discursos: enquanto os relatos considerados oficiais tornam-se inquestionáveis ao longo dos anos e solidificam uma versão heroica sobre a Coluna Prestes - a qual é historicamente aceita e reproduzida -, a resistência a essa versão, despertada a partir dos depoimentos colhidos pela repórter Eliane Brum, foi alvo de descrédito, silenciamento e, por fim, sepultamento para que não ameaçasse o mito.
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No entanto, a relação de poder entre os discursos sofre influências e ameaças ao longo do tempo, de acordo com o desenvolvimento das sociedades. A vontade de verdade é passível de transformação, o que torna suscetível a inversão entre o discurso “verdadeiro” – aquele historicamente aceito - e o discurso silenciado. A vontade de verdade e a relação de poder do discurso O perigo de confrontar uma “unanimidade de sete décadas” (BRUM, 1994, p. 07) é o mesmo perigo com o qual Michel Foucault se depara ao assumir a cadeira do professor Hyppolite no Collège de France, sobre o qual fala em sua aula inaugural 1. Qualquer discurso obedece a uma ordem e é interdito por diversos procedimentos que regulamentam o que é dito e tornam um discurso possível de ser dito ou não, dependendo do local que se ocupa, de quem o faz e do que se diz. Em uma sociedade como a nossa, conhecemos, é certo, procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, a interdição. Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa (FOUCAULT, 2004, p. 09).
De acordo com Foucault (2004), o discurso é controlado por relações de poder em processos que ocorrem dentro de uma microfísica do poder - relações de poder que existem nas micro lutas cotidianas. É por se localizar dentro de uma relação de poder, que a publicação dos depoimentos das testemunhas ouvidas pela repórter do jornal Zero Hora, Eliane Brum, se torna tão arriscada e contestada por uma vontade de verdade que já é aceita historicamente. Foucault (2004) aborda os procedimentos de controle do discurso – o que faz com que haja uma ordem do discurso – e reconhece, entre os procedimentos externos, a vontade de verdade como uma das mais importantes formas de controle do que é dito (todos os demais sistemas de exclusão são atravessados pela vontade de verdade). De acordo com ele, essa vontade de verdade constituída historicamente é acompanhada por um ritual e por um sujeito que detém o poder de dizê-la. Ao analisar qual é, dentro dos 1
O texto da aula inaugural pronunciada por Michel Foucault, no Collège de France, em 02 de dezembro de 1970, ao assumir a cadeira do professor Hyppolite, foi chamado “A Ordem do Discurso” e publicado em livro.
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discursos, a vontade de verdade que atravessa a sua história e que tipo de separação rege sua vontade de saber, percebe-se que há um sistema de exclusão, uma separação historicamente constituída, que coloca o “discurso verdadeiro”, - “[...] aquele ao qual era preciso submeter-se, porque ele reinava, era o discurso pronunciado por quem de direito e conforme o ritual requerido” (Foucault, 2004, p. 15) - em oposição ao discurso silenciado. Como todos os sistemas de interdição e como a própria história, a vontade de verdade se apoia em um suporte institucional, em um conjunto de práticas que sofrem alterações através dos tempos. Segundo Foucault (2004), essa vontade de verdade “[...] apoiada sobre um suporte e uma distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos – estou sempre falando de nossa sociedade – uma espécie de pressão e como que um poder de coerção” (FOUCAULT, 2004, p. 18). É na relação que se estabelece com a vontade de verdade sobre a Coluna Prestes – aquilo que historicamente se constituiu como verdade sobre a marcha dos rebeldes contra o governo de Bernardes – que os testemunhos recolhidos pela repórter Eliane Brum (1994) ganham conotação perigosa, criam um embate entre o novo discurso que surge e a vontade de verdade da “história oficial”. A relação de poder que se estabelece entre os discursos – o mito e os testemunhos do livro-reportagem – é reconhecida na medida em que se entende qual é o poder que cada um dos discursos detém no momento em que surgem e se deparam. A repórter Eliane Brum inicia o trajeto percorrido pela Coluna Prestes em janeiro de 1993, munida apenas do mito. No entanto, segundo a apresentação de seu livro, já nas primeiras entrevistas, histórias muito diferentes da conhecida lenda foram surgindo nas lembranças das testemunhas; histórias que não foram sequer cogitadas ou admitidas até aquele momento. Saí de Porto Alegre imaginando encontrar causos mais pitorescos e menos trágicos. Mas logo que deixamos o Rio Grande do Sul para trás, lembranças amargas foram delineando uma outra história, traçando uma trilha obscura. Nos vilarejos nordestinos, tão abandonados como no tempo dos rebeldes, o caráter mítico da Coluna nunca aportou e as recordações são cruas como o foram na época. Eu, que tinha partido tão impregnada de mito, fiquei perplexa. E, aos poucos, a cada conversa ao pé do ouvido, fui juntando o quebra-cabeça das lembranças dos que não
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eram nem rebeldes nem legalistas. A memória dos que estavam no caminho. (BRUM, 1994, p. 06)
Ainda na apresentação do livro, a repórter nos dá evidências de uma relação de poder entre a vontade de verdade sobre a Coluna Prestes e os demais discursos, formados pelos testemunhos. A reportagem, resultado de 44 dias de viajem, foi publicada em seis cadernos no jornal Zero Hora, de 30 de janeiro a 04 de fevereiro de 1994, e gerou inúmeras controvérsias. “Como se pode imaginar num mito de 70 anos – uma unanimidade de sete décadas – a polêmica foi grande e as críticas vorazes. Este livro é a reportagem completa, que não caberia num jornal” (BRUM, 1994, p. 07). Segundo Edvaldo Pereira Lima (1998), quando acontecimentos importantes não têm nos veículos periódicos a atenção que merecem, uma alternativa é o aprofundamento do caso e o seu relato em meios não periódicos, como o livroreportagem. A inversão do jogo de poder: o “avesso” adquire caráter de “verdade” A procura por testemunhas (fontes) que vivenciaram a passagem da Coluna Prestes é um procedimento comum ao repórter que tenta construir o “outro lado” do acontecimento. Ouvir e considerar o relato das pessoas comuns é uma metodologia reconhecida e aplicada também pela nova história e pela Escola dos Annales, principalmente a partir da segunda metade do século XX, quando os testemunhos oculares e auriculares foram considerados fontes tanto quanto os documentos pelo método historiográfico (LE GOFF, 2013). De acordo com Peter Burke (1992), segundo o paradigma tradicional, a história deveria ser baseada em documentos escritos oficiais, pois, durante muito tempo foi desconsiderada qualquer fonte oral ou relato de pessoas comuns. “[...] a história tradicional oferece uma visão de cima, no sentido de que tem sempre se concentrado nos grandes feitos dos grandes homens, estadistas, generais ou ocasionalmente eclesiásticos”. (BURKE, 1992, p.12-13). A partir da nova história e dos Annales, historiadores defendem um novo método, no qual a preocupação está em construir uma “história vista de baixo”, ou seja, baseada nas palavras, costumes e cultura das pessoas
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comuns. É o que Lucien Febvre, um dos fundadores da Escola dos Annales, exprime no trecho: A história fez-se, sem dúvida, com documentos escritos. Quando há. Mas pode e deve fazer-se sem documentos escritos, se não existirem [...] Faz-se com tudo o que a engenhosidade do historiador permite utilizar para fabricar o seu mel, quando faltam as flores habituais, com palavras, sinais, paisagens e telhas; com formas de campo e com más ervas; com eclipses da lua e arreios; com peritagens de pedras, feitas por geólogos, e análises de espadas de metal, feitas por químicos. Em suma, com tudo o que, sendo próprio do homem, dele depende, lhe serve, o exprime, torna significante a sua presença, atividade, gostos e maneiras de ser. (FEBVRE apud LE GOFF, 2013, p. 105).
O método historiográfico da nova história, ao utilizar como fonte as testemunhas oculares, ouvindo e considerando relatos e as memórias “dos que ficam no caminho”, assemelha-se com o trabalho jornalístico realizado por Brum (1994). No entanto, devido à perspectiva da história tradicional e da vontade de verdade construída historicamente em torno dos revoltosos da Coluna Prestes, a publicação dos depoimentos recolhidos pela jornalista gerou uma onda de críticas que tentaram desconstruir e diminuir a credibilidade das testemunhas. A relação de poder que se estabelecia entre o “discurso oficial” a respeito de Prestes e da sua coluna e as novas verdades que surgiam pelas bocas de miseráveis sertanejos e moradores de povoados perdidos no interior do Brasil, revelava, ao final do embate, que a maior força (poder) se encontrava no lado da história construída pelas “fontes oficias” – documentos, cartas, telegramas etc. -, e que ao discurso da repórter cabia uma tentativa de silenciamento. A pesquisa de Brum (1994), ao reconhecer que as verdades são historicamente construídas e que o que move o jornalista é ouvir vários lados sobre determinado acontecimento, acaba por revelar brechas no “mito” da Coluna Prestes que evidenciam, se não a inexistência do heroísmo daquela marcha, a falta de humanidade e decência que acompanhavam aqueles mil e quinhentos homens pelos interiores do Brasil. Através do relato das testemunhas fica evidente que, até mesmo a decisão ideológica de entrar na “campanha” de Prestes, era questionável.
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João Martins Fuíza, mais conhecido como Serapião ou João do Mato, é um dos últimos combatentes vivos da Coluna Prestes. Não por convicção, “mas por fuzil”, como ele costuma dizer. No agonizar do ano de 1924, Serapião foi capturado por soldados rebeldes no interior do município de Ijuí e obrigado a seguir viagem com as forças revoltosas. [...] Há alguns anos, o velho Serapião recebeu a visita da filha de Luiz Carlos Prestes, Anita Leocárdia, que recolhia depoimentos para o seu livro, e vexou-a com uma resposta. Indagado sobre os ideais que o teriam levado a engrossar os hostes rebeldes, Serapião respondeu com a mesma fala mansa de sempre: “Dona, se lhe tivessem botado um fuzil na cabeça, a senhora não ia pra qualquer lugar desse mundo?” (BRUM, 1994, p. 31-32).
Os depoimentos colhidos pela jornalista convergem em vários pontos, outra razão pela qual fica difícil não crer na consistência dessa memória. A convicção dos meninos que queriam lutar pelo Brasil, a postura e o caráter dos rebeldes que chegavam famintos, sedentos, sujos e cansados em cada uma das cidades, a coerência e a estratégia da marcha, tudo foi questionado a partir dos relatos das testemunhas. Mas Brum (1994) também faz uso dos documentos oficiais. Seja para enriquecer as histórias, ou para garantir credibilidade, em O Avesso da Lenda, a jornalista transcreve recortes de cartas do diário do Capitão do 6º Corpo Auxiliar da Brigada Militar Pedro Salles de Oliveira Mesquita. Nos trechos do relato sobre os caminhos que os legalistas faziam para capturar os rebeldes – uma perseguição que durou todo o período da Coluna e terminou com o exílio dos seguidores de Prestes e o fracasso governista -, o ódio do Capitão crescia na medida em que os legalistas se deparavam com o que restava dos povoados por onde os revoltosos passavam. Nos relatos, os moradores das cidadezinhas e povoados por onde a Coluna passou lembram-se do medo que brotava quando eram informados de que a Coluna se aproximava. Buscando refúgio no mato para salvar, ao menos, a vida, o sentimento de desespero chegava muito antes dos revoltosos. Estes deixavam a cidade em chamas, ensanguentada e apodrecida pelos animais mortos nas fazendas e pequenas propriedades. Não sobrava nada. Aliás, só sobrava o ódio, alimentado por todo o período de vida miserável que teriam dali para frente e carregado com eles até o túmulo. Pobres ou ricos, os rebeldes invadiam as casas, roubavam e matavam toda a criação e, não raro, colocavam fogo em tudo. O estupro, além dos saques e da destruição, era prática constante.
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Apesar do caráter negativo das lembranças sobre a Coluna, a imagem de Prestes como um homem educado permanece entre as famílias que tiveram contato com o líder da Coluna – todas poderosas antes da passagem dos rebeldes. “O povo do Estado-Maior da Coluna era educado, não fazia nada de mal. Mas tinha o pessoal da rabeira que fazia o serviço sujo pra eles” – Domingos José Valente – 91 anos, Goiás (BRUM, 1994, p. 66). “O Estado-Maior tinha um povo bom, mas a rabeira era feita de bandidos. Pra piorar, os ladrões iam se juntando à Coluna pra poder roubar à vontade” – Josias Vieira de Melo, guia do Estado-Maior, 85 anos, Goiás (BRUM, 1994, p. 68).
O retrato da destruição deixada pela Coluna nas cidades em que passou se repete em vários testemunhos. Como, ao longo de tanto tempo, essas histórias permaneceram caladas? O testemunho de Lila, de Sacarão/Iguatemi, no Mato Grosso do Sul, dá uma ideia: “Já me entrevistaram, mas como não é a favor, não sai nada”, reclama. “Foi só destruição. O povo passou anos difíceis até se recuperar, naquele tempo isso aqui era o fim do mundo. Mas não se entregou. Pode botar aí: aqui, Prestes e sua Coluna não deixaram saudades”. (BRUM, 1994, p. 55)
Apesar das memórias silenciadas por tantos anos, um episódio quase abalou a convicção sobre o heroísmo da Coluna Prestes. Relatada no capítulo treze, a história sobre a morte de um padre em Piancó-PB repercutiu, rendeu muita polêmica e algumas linhas também nas memórias do próprio Prestes. A percepção do ocorrido, no entanto, diverge entre o líder da Coluna e o povo de Piancó; e a verdade do líder sobre o fato, como não poderia deixar de ser, prevaleceu. A vontade de verdade de que a Coluna Prestes e o próprio Luiz Carlos Prestes se constituam na história brasileira como heróis na década de 1920, é desconstruída pelo relato dos micro acontecimentos envolvendo testemunhas do local onde a Coluna passou. Eliane Brum (1994) escuta pessoas comuns, que sofreram a intervenção da Coluna em suas cidades e, por meio dessas “histórias de baixo”, consegue formular outra versão, outro olhar sobre a Coluna Prestes: as histórias dos estupros, saques e
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violências cometidas por aqueles que estão consagrados na memória e na história oficial como heróis. Ao publicar essas histórias no Jornal Zero Hora, em 1994, a repórter recebeu críticas das mais diversas formas; a revelação de uma história que não via Prestes como herói foi uma ofensa ao povo brasileiro e principalmente ao gaúcho. Porém, de acordo com Foucault (2004), as relações de poder existem em todos os âmbitos e a vontade de verdade – uma interdição externa do discurso, historicamente construída – pode ser invertida a qualquer momento. Foi o que ocorreu em 1998, quando o Centro de pesquisa e Documentação (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas abriu um conjunto de 28 mil cartas, manuscritos e fotos de Juarez Távora, um dos membros da cúpula da Coluna, juntamente com Miguel Costa e Prestes. Entre esses documentos, cartas escritas e recebidas por estes líderes revelavam que o grupo realmente não era recebido com festas por onde passava. Relatos dos saques, estupros, assassinatos e outras atrocidades que aterrorizavam a população foram trazidos à tona e deram caráter fidedigno à reportagem de Eliane Brum, publicada em 1994. A inversão da vontade de verdade sobre o mito ocorreu, porém, sem que se alterasse a relação de poder entre os discursos. A necessidade dos documentos para comprovar a outra visão sobre a Coluna não permitiu que o relato jornalístico, com base nas testemunhas oculares, invertesse essa relação de poder. Apesar das tentativas, a metodologia da história tradicional, que tem a base nos documentos escritos, continuou sendo mais forte, permanecendo como a fonte com maior caráter de verdade no momento em que se constroem novos olhares sobre os acontecimentos. Apesar disso, o relato d’O Avesso da Lenda, publicado quatro anos antes, confrontou o mito e acabou com um silêncio de sete décadas. O fato de não ter sido ouvido é o que determina, de acordo com os estudos de Foucault (2004), o poder das interdições desse discurso, o poder que um discurso deixa de exercer por não pertencer ou obedecer à ordem do discurso.
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Referências BRUM, Eliane. Coluna Prestes - o avesso da lenda. Porto Alegre, RS: Artes e Ofícios, 1994. BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 1992. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. ___________________A Ordem do Discurso. 10ed. São Paulo: Loyola, 2004. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Laís Teles Benoir. São Paulo: Centauro, 2004. LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão... [et al]. 7ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013. LIMA, Edvaldo Pereira. O que é Livro-Reportagem. São Paulo: Brasiliense, 1998.
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PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA DE RIBEIRINHOS ACRIANOS: UM ESTUDO SOBRE A PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE MENSAGENS RADIOFÔNICAS Nagila Maria Silva Oliveira (UFAC) Elisabete Carvalho de Melo (UFAC) Introdução Este artigo trata sobre a produção e circulação do gênero discursivo mensagem radiofônica, muito utilizado por comunidades ribeirinhas de Cruzeiro do Sul, no interior do Estado do Acre.
Configura-se em um estudo de caso, desenvolvido em uma
abordagem qualitativa, que teve como corpus, textos escritos por ribeirinhos, transmitidos pela emissora de rádio Verdes Florestas. Objetivamos com essa pesquisa fazer o registro dessa prática de escrita bastante peculiar nessa região, procurando compreender o que caracteriza esse gênero discursivo, mediante os processos de sua produção, circulação e materialização.
Para tanto,
procuramos identificar o suporte utilizado, aspectos linguísticos e estilísticos que caracterizam o referido tipo de texto, que tem sua esfera de circulação pública. O uso dessas mensagens radiofônicas por essas comunidades ribeirinhas dar-se em decorrência da ausência de energia elétrica em suas localidades. Suas comunidades e seringais são geograficamente muito afastados dos centros urbanos, e, por isso esses sujeitos possuem como único meio de comunicação o rádio, mantido a pilhas e baterias recarregáveis. A vinda dos ribeirinhos aos centros urbanos são frequentes em decorrência do comercio de produtos agrícolas, tratamentos de saúde, questões jurídicas e bancárias. Quando se encontram na cidade, esses homens e mulheres têm como única possibilidade de comunicação com os parentes que ficaram nos seringais, os programas de mensagens oferecidos por duas emissoras da região, Rádio Integração e Rádio Verdes Florestas.
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Os textos são escritos pelos próprios ribeirinhos, ou, por alguns funcionários das rádios que fazem o papel de escriba. São transmitidos duas vezes, por dia, pela manhã e noite, nas duas emissoras, que cobram R$ 6,00 por cada transmissão das mensagens, que pode ser transmitida quantas vezes o cliente desejar. As mensagens que compõem o corpus de análise foram cedidas pela emissora Verdes Florestas, a mais próxima do principal porto de embarque e desembarque dos ribeirinhos, por isso a mais procurada para prestar esse serviço de comunicação. A referida emissora transmite a leitura desses textos duas vezes por dia, no programa Correio do Vale, que vai ao ar as 07: 00 h da manhã e as 19: 00 h da noite. As análises foram feitas a partir de uma amostra de 50 mensagens, coletadas em 2012. Os critérios analíticos dialogam com a teoria do suporte apresentada por Roger Chartier ( 1999, 2003, 2011), conceito de linguagem e gênero discursivo apresentado por Bakhtin (1929, 1992) e ainda os estudos sobre a materialidade e controle dos discursos abordados por Foucault (1987, 1970, 2004, 2011). Apontamentos teóricos Partimos do pressuposto que, a linguagem é uma produção social e que todos nós falamos a partir de um gênero discursivo, ainda que não tenhamos ciência disso. E nesse caso, os discursos apresentam formas relativamente estáveis de estruturação, que são definidas pelo conteúdo, ou seja, o “querer dizer do enunciador, o suporte e a esfera de circulação”. Existe uma diversidade de gêneros discursivos e suas utilizações segundo Bakhtin (1992) são variadas e concretizadas a partir das relações norteadas nos diferentes grupos sociais: A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. (BAKHTIN, 1992, p. 280).
Dentro dessa diversidade de gêneros do discurso, este autor destaca duas classificações, os gêneros primários, que são os mais informais, próximos da conversação, comum nas esferas familiares, e os secundários que apresentam maior complexidade, de caráter mais formal, como os artigos científicos, por exemplo.
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Porém, tanto os secundários quanto os primários possuem questões estilísticas, com formas mais ou menos estáveis. Segundo Bakhtin (1992) a estruturação do texto está relacionada com três aspectos: o “tratamento exaustivo” dos dizeres, “o querer dizer” do enunciador e as “formas típicas de estruturação” dos textos. O autor enfatiza a importância dos estudos sobre estilo considerarem esses três aspectos, partindo do principio de que o locutor que pretende enunciar precisa estruturar o seu dizer. Essa estruturação sofre influência das condições de produção e de sua esfera de utilização, de modo que, alguns textos serão mais passíveis de criatividade que outros. Esses três aspectos mencionados pelo autor em questão, o “tratamento exaustivo” o “querer dizer” e “as formas típicas de estruturação”, estão intimamente relacionados com o conceito de linguagem enquanto um processo “criativo ininterrupto”, que se materializa pela fala e que permite a interação verbal a partir da enunciação, ou seja, um produto de ordem social e não apenas linguístico, haja vista que, sua produção é determinada também por elementos não verbais da situação comunicativa. Esses elementos não verbais estão relacionados aquilo que Chartier (1994), chama condições de produção, esfera de circulação e suporte, que variam de comunidade pra comunidade. Cada grupo social tem determinadas condições de produção e necessidades específicas de enunciação. Neste trabalho propõem-se uma descrição e caracterização desse gênero mensagem radiofônica a partir da identificação do suporte, e da análise da esfera de circulação e processos de materialização, enfatizando as questões estilísticas, aspectos linguísticos e discursivos que se manifestam nos referidos textos. Descrição do gênero Sob essa ótica, que considera a linguagem uma produção social, compreendemos que, ao se propor analisar aspectos linguísticos e estilísticos de ‘tipos’ enunciativos, fazse necessário identificarmos as formas e os tipos de interação verbal em relação as condições concretas em que estes se realizam, assim como, também, outras formas de
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enunciações, atos de fala isolados que são determinados pela interação verbal, para que depois se examine as “formas da língua na sua interpretação linguística habitual. Pensando o gênero como essa produção social, podemos dizer que, este não é uma camisa de força, entretanto, possuem formas relativamente estáveis para atender uma necessidade comunicativa. No caso dos textos analisados, nesse trabalho, verificase que essa estruturação mais ou menos estável, que se desdobra em regularidades e irregularidades em seus elementos de abertura e fechamento, é determinado pelas condições de produção e pela sua esfera de circulação. Sobre as condições de produção, podemos dizer que esses sujeitos usuários e enunciadores das mensagens radiofônicas tomam como norte para estruturação de seus textos, a fala, o contato com outros gêneros radiofônicos e outros tipos de textos como cartas, bilhetes e avisos. Tais aspectos serão melhores evidenciados no decorrer do trabalho. No que concerne à esfera de circulação desses textos, trata-se de uma esfera pública, que transmite o áudio da leitura desses textos, e, por serem divulgadas publicamente por uma emissora de rádio apresentam questões estilísticas peculiares a comunicação radiofônica, como o uso de vocativos e uma linguagem coloquial. Para além das condições de produção e esfera de circulação, existe outro fator determinante na estruturação dessas mensagens: a temática, que está relacionada ao querer dizer do enunciador. Segundo Bakhtin (1992) a composição e até mesmo a escolha do gênero discursivo passa antes de tudo pelo querer dizer do enunciador. Preciso falar e para tanto penso em como dizer, escolhendo, ainda que, de modo inconsciente um gênero discursivo. Há de se considerar, neste trabalho que, os sujeitos que utilizam esse gênero, têm apenas os gêneros radiofônicos como possibilidade de concretização enunciativa destinada aos seringais dos afluentes do Rio Juruá, diferente de outros grupos urbanizados que possuem as redes sociais virtuais, com um leque de gênero discursivos, tais como os e-mails, os correios, telefones, etc. Os gêneros radiofônicos segundo Barbosa Filho (2009) possuem características próprias de um texto para ser falado, quase sempre iniciados com vocativos para
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interpelar os locutores ouvintes. Tais vocativos aparecem nos textos analisados como regularidades nos elementos de abertura. A mensagem a seguir possuem os elementos de abertura mais regulares nesse gênero:
Usa-se o votactivo – atenção- para interpelar o destinatário, em seguida o nome desse destinatário seguido do seu seringal e comunidade. Estes são os elementos de abertura mais evidenciados no corpus da pesquisa. No que conserne ao “querer dizer” estes são diversos, abordam diferentes temáticas. Uma mesma mensagem pode ter mais de um “querer dizer” e isso interfere na quandidade de linhas que os textos apresentam, se “o querer dizer” é curto, sucinto, logo o texto não será tão longo, como fica evidente na mensagem a seguir:
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Pode-se verificar que o “querer dizer” desta mensagem é a notícia de um falecimento, não é algo agradável de dizer, as poucas linhas grafadas revelam a rudeza e dureza de ser um enunciador de um nota de falecimento, e neste caso o locutor foi bem direto, não usou vocativo, apenas identificou o destinátário e em seguida trouxe a informação- querer dizer. Esta outra mensagem a seguir, apresenta mais de um “querer dizer” e também mais de um destinatério e por isso seu texto é mais longo:
De modo geral, esse tipo de texto possue entre 3 a 16 linhas. No que se refere aos elementos de fechamento, como regularidades usa-se: assina:, com a identificação do emissor. Entretanto, também existem muitas outras formas utilizadas para a finalização dessas mensagens, que revelam questões afetivas, laços familiares, que transmitem sentimentos de saudades, preocupação e cuidado, como podemos ver na proxima mensagem:
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A semelhança dessas mensagens com outros tipos de textos, também foi um aspecto observado durante as análises, embora seu estilo seja prioritariamente de um gênero radiofônico, com a utilização de vocativos e uma linguagem coloquial, verificase que algumas das mensagens são intituladas de comunicado, cartas, bilhetes, pelos ribeirinhos, e para além disso, nota-se alguns empréstimos estilísticos desses outros tipos de textos. Cursino (2006) menciona em sua tese de doutorado, a existência de um hibridismo entre os gêneros textuais, em que alguns textos realizam “empréstimos” de outros tipos de textos, a isso a autora designa de gêneros “mistos”. Esse hibridismo acaba por revelar marcas de leituras que são “projetadas” na construção de outros tipos de textos. No caso dos ribeirinhos, o fato de alguns identificarem seus textos como cartas, bilhetes e comunicados, é possível que esses outros tipos de textos sejam conhecidos e já utilizados por esses sujeitos e servem como obra prima para a produção das mensagens radiofônicas. Entretanto, esses empréstimos são mais visíveis em mensagens enviadas por instituições sociais, como podemos verificar nessa mensagem:
Geralmente os comunicados oficiais usam apenas a escrita e o papel como suportes, utilizando a esfera de circulação virtual ou os correios, mas em se tratando de gêneros oficiais de instituições sociais para comunidades ribeirinhas essas formas tradicionais de circulação e materialização não são viáveis.
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Isso faz com que, os discursos oficiais dirigidos a essas comunidades sejam materializados por meio das mensagens radiofônicas, e nesse caso um comunicado, um ofício jurídico, convocação de concurso, comunicados de secretarias públicas tomam emprestados elementos do gênero radiofônico, em sua estruturação, de modo que, os empréstimos estilísticos ocorram de um texto para o outro. Essa solicitação de um abaixo assinado, enviado pela Secretária de Agricultura e Desenvolvimento Agrário, utiliza o uso de um vocativo, elemento de abertura comum na comunicação radiofonica, identifica a quantidade de vezes que deverá ser transmitida, e finaliza o texto com rubrica e carimbo, um elemento de fechamento muito presente nos generos secundários, especificamente nos proferidos por instituições sociais. Para Rojo (2004) essa prescrição está intimamente ligada a uma unidade de conteúdo temático, composição e estilo, de forma que a escolha de um gênero se determina pela esfera e a necessidade da temática. A depender da esfera de circulação, um gênero discursivo pode trazer em sua estrutura composicional mais de um tipo de texto, como por exemplo, as cartas, que possuem dentro de sua estrutura, narrativas. As características de outros tipos de textos incorporadas às mensagens, não são suficientes para considerá-las como tal, sejam bilhetes, cartas, avisos, comunicados ou documentos oficiais. No caso das mensagens radiofônicas, a espontaneidade apresenta-se como um elemento presente nesse gênero, como nas cartas, bilhetes, avisos etc., no entanto, se considerarmos os elementos de abertura e fechamento, pode-se dizer que há, sobretudo, uma semelhança com as cartas, especificamente nos elementos de fechamento que quase sempre tem um caráter afetivo de despedida, mas apesar dessa semelhança, esses dados não são indícios suficientes para caracterizar as mensagens como cartas, posto que, fazem parte do estilo do gênero carta, cabeçalho com data e local, saudação, nome do destinatário e despedida com nome do remetente, que não compõem os textos dos ribeirinhos. Muito embora os textos analisados apresentem locais, destinatário e remetente, os mesmos não se constituem em cartas, posto que possuem um texto mais curto, nem todos apresentam datas, existindo irregularidades no uso de saudações. Além disso, a
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circulação das mensagens é vinculada a outro meio de comunicação, emissoras de rádio, que fazem a leitura dos textos para que cheguem aos destinatários, diferentemente das cartas que após serem escritas são enviadas via correio. De acordo com Chartier (2011) a produção de um tipo de texto tem como princípio outros tipos de textos, no entanto, as esferas de circulação e materialização nem sempre serão as mesmas, pois são alteradas de acordo as condições de produção e os tipos de suportes, e nesse sentido, possuem características próprias. Os textos analisados possuem como suporte no primeiro momento a escrita/ papel, diferentes tipos de papéis, desde papel de embrulho, versos de prontuários médicos, de notas fiscais, o que denota uma dificuldade de acesso ao papel.
Verso da mensagem “folha de revita”
Mesnagem radiofônica
No segundo momento, para ser materializado esses enunciados precisam das emissoras de rádio, da leitura, ou seja, sua materialização funda-se em um movimento específico: oralidade-escrita-oralidade, sua característica principal é ser por excelência um texto para ser falado. Dada essas condições de produção, a esfera de circulação exerce conjunções e coerções sobre os dizeres desses ribeirinhos, fazendo com que eles digam de um jeito e não de outro. Haja vista que, as informações de seus textos não são enviadas apenas para seu efetivo destinatário, pois todos os ribeirinhos que estiverem à escuta do programa Correio do Vale, terão/têm acesso aos seus enunciados. Na tentativa de linguisticamente assegurar o fio de discurso, alguns desses ribeirinhos usam expressões como: “o que vim resolver tudo resolvido”, “sobre o que
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conversamos nada resolvido” “sobre o que conversamos tudo positivo”, a mensagem a seguir evidencia essas estratégias de escrita:
As estratégias de escrita selecionam os destinatários, privando os demais ouvintes do programa Correio do Vale de compreenderem os enunciados na íntegra, de ter acesso a informações confidenciais. Nesse sentido, pode-se dizer que essa estrutura regular dos textos é resultado das regras de enunciação composta de semelhanças com outros textos e gêneros radiofônicos, e também por interdições exercidas pela instituição Rádio. Os textos são marcados ainda por um hibridismo entre fala e escrita, um linguagem bem coloquial, com acrescimos e retiradas de letras no inicio ou fim das palavras. No entanto, essa mesclagem entre oralidade e escrita, quase que uma transcrição fonética não compromete a compreenção dos textos, haja vista que, segundo Marcuschi (2010) fala e escrita são duas modalidades de uso da língua e não duas dicotomias, e por isso algumas falas podem está bem proximas de um texto escrito e um texto escrito muito semelhante a uma fala. Considerações finais Considerando as analises apresentadas, no que se referes aos elementos de abertura e fechamento, a linguagem utilizada, as estratégias de escrita e o suporte desses textos, pode-se fazer algumas afirmações que direcionam uma possivél classificaçãoe caracterização de gênero: são textos curtos, proximos de uma conversação, portanto
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primários, com alguns emprestimos de outros tipos de textos, porém com características peculiares aos gêneros radiofônicos e midiáticos, como o suo de vocativos. Sua esfera de circulação é pública, materializada mediante a escrita e a leitura, transmitida por emissoras de rádio, e isso manifesta um certo controle dos dizeres, fazendo com que informações íntimas e confidenciais sejam ditas de um jeito e não de outro. A existência dessas mensagens radiofônicas em pleno século XXI, justifica-se em razão do isolamento geográfico em que vivem esses ribeirinhos, desprovidos de eletricidade. A construção e circulação desse gênero é datada dos anos 1940, sua manutenção é uma necessidade social, desses sjueitos, que usaram suas experiências com a escrita para produzir um gênero discursivo viável em detrimento de duas localizações geográficas. A manutenção dos programas de mensagens em duas emissoras da cidade, não são meramente de interesse das rádios, são prioritariamente de interesse dos ribeirinhos. Por meio da escrita e das emissoras de rádio essas comudidades consolidaram uma rede de comunicação entre os centros urbanos e os seringais, em que se notificam nascimento, falecimento, compras e vendas, assunto jurídicos e bancários. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. (1929) Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986. _______. Mikhailovitch. Estética da criação verbal. Martins Fontes. São Paulo: 1992. BARBOSA FILHO, André. Gêneros Radiofônicos: os formatos e os programas em áudio. 2 Ed. São Paulo: Paulinas, 2009. CHARTIER, Roger de. 1970. A ordem dos Livros: Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Tradução de Mary Del Piori. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1994.
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JAULA DE ORO: (RE)AFIRMAÇÃO E (RE)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL POR MEIO DA ESTRANGEIRA
Introdução
Natália Araújo da Fonseca (UEL) Denise de Andrade Santos Oliveira (UEL)
O contexto de ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras (LE) nos proporciona um ambiente fascinante e mágico, repleto de indagações e reflexões as quais modificam constantemente a nossa confortável ideia de que a identidade é permanente e imutável. O fragmento supracitado revela o nosso pensamento sobre como acreditamos que deva ser o espaço em que alunos e professores compartilham conhecimento e dialogam sobre outras línguas e culturas, onde estes participantes descobrem mundos, pessoas, valores e costumes que, a nosso ver, são essenciais para o desenvolvimento do aprendiz como ser humano e sujeito que participa ativamente na sociedade. Contudo, esta perspectiva não é compartilhada e/ou colocada em prática por muitos docentes da área de LE. Conforme assinala Visioli (2004), existe uma grande parcela de professores que ainda demonstram estarem presos a antigas concepções de ensino, apresentando, em suas aulas, conteúdos puramente linguísticos, esquecendo-se, portanto, que a língua não é apenas composta por estruturas rígidas, mas também por elementos extralinguísticos que a constituem e que a fazem assumir um caráter inquestionavelmente revolucionário. Deste modo, tendo em vista a deficiência observada neste cenário, objetivamos, neste trabalho, evidenciar a importância que o ensino e aprendizagem de línguas assume na (re)construção da identidade do discente. Neste sentido, elucidaremos, à luz de teóricos como Revuz (1992) e Moita Lopes (1998, 2003) o poder que a LE exerce na (re)significação e reformulação da identidade do aprendiz, uma vez que a língua está imbuída de ideologia e cultura e nós somos sujeitos constituídos pela linguagem. Portanto, esperamos que os docentes possam observar que um dos papéis do ensino de uma LE é abrir oportunidades para o novo, é possibilitar ao aprendiz o contato com a alteridade, concedendo-lhe espaço para reflexão sobre si, sobre sua
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identidade e, principalmente, fazê-lo compreender que ele é constituído por meio do Outro. Isso será possível através do confronto, da relação e do diálogo estabelecido com a língua e cultura estrangeiras. Desta forma, o aluno/indivíduo terá a oportunidade de (re)pensar sua própria identidade nacional e pessoal, passando, assim, a enxergar as diversas vozes que o habitam. O processo de ensino e aprendizagem de LE e a (re)construção identitária do aluno Quando estudamos uma LE, é fundamental refletir sobre o sujeito e a(s) identidade(s) que o constituem, pois, embora o indivíduo possua sua identidade cultural, isso não o impede de conhecer e conviver com outras culturas. É inegável que a identidade é composta por meio da heterogeneidade e o contexto de ensino de línguas é propício para ampliar essa relação que estabelecemos com a alteridade. Ao definir este vocábulo a enciclopédia Larrouse Cultural (1998, p. 220), apresentou duas definições que se complementam. A primeira como “Estado, qualidade daquilo que é outro, distinto (antônimo de identidade)” enquanto a segunda define alteridade como “relação de oposição entre o sujeito pensante (o eu) e o objeto pensado (o não eu)”. Nesse viés, segundo Bakhtin “A alteridade é o fundamento da identidade. Eu apenas existo a partir do Outro. Tudo tem que ser encarado a partir de suas relações” (2002, p. 13-14). Nesse segmento, o mesmo autor complementa a frase anterior afirmando que: “[...] é na relação de alteridade que os indivíduos se constituem. O ser se reflete no outro. A partir do momento que o indivíduo se constitui, ele também se altera, constantemente. [...] constituímo-nos e nos transformamos sempre através do outro” (2002, p. 13). Coracini (2003, p.153) elucida o poder transformador que o aprendizado de línguas exerce na formação do aluno como indivíduo ao postular que: Inscrever-se numa segunda língua é re- significar e re- significar-se, [...] é compreender que a inscrição do sujeito numa língua estrangeira o fará portador de novas vozes, novos confrontos, novos questionamentos, alterando, inevitavelmente, a constituição da
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subjetividade, identificações.
modificando
o
sujeito,
trazendo-lhe
novas
Nessa perspectiva, para que exista algum tipo de transformação no aprendiz, tanto ele quanto o professor precisam ser cônscios de que as identidades são móveis, que estão em constante (re)configuração, pois, segundo a autora sobredita, “Não podemos acreditar na possibilidade de uma identidade acabada, descritível; só podemos postular momentos de ‘identificação’ em movimento constante e constante modificação” (CORACINI, 2003, p. 151, grifo do autor). Rajagopalan (1998, p. 26) igualmente compartilha a ideia de transitoriedade acerca da identidade e sublinha a flexibilidade que a caracteriza segundo as situações que nos são apresentadas, salientando que, “As identidades estão todas elas, em permanente estado de transformação, ebulição. Elas estão sendo constantemente construídas. Em qualquer momento dado, as identidades estão sendo adaptadas e adequadas as novas circunstâncias que vão surgindo.” Ademais, o mesmo teórico menciona que o motivo que leva a identidade de um indivíduo a passar por diversos avatares é o fato de que ela se constrói por meio da língua e essa também sofre alterações. Deste modo, Rajagopalan (1998, p. 41-42) assevera que “a construção da identidade de um indivíduo na língua é através dela depende do fato de a própria língua em si ser uma atividade em evolução e vice-versa.” Moita Lopes (1998, p. 304) também deslinda sobre o poder da linguagem na construção da nossa identidade. Para ele, “É através do processo de construção do significado, no qual o interlocutor é crucial, que as pessoas se tornam conscientes de quem são construindo suas identidades sociais ao agir no mundo através da linguagem.” Assim, é nesse processo de relações com o nosso interlocutor, “no esforço de entender a vida à nossa volta” (MOITA LOPES, 2003, p. 23) que “Aprendemos a ser quem somos nos encontros interacionais de todos os dias” (MOITA LOPES, 2003, p. 27). Nesse sentido, se relacionarmos estas afirmações ao processo de ensino e aprendizagem de LE, observaremos que torna-se mister que nós, professores, convertamos a sala de aula em um ambiente essencialmente revolucionário para as (re)construções identitárias do aprendiz.
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Além disto, nesse contexto de (re)construções identitárias, Serrani – Infante (1998b, p. 163) postula que “o encontro com segundas línguas talvez seja umas das experiências mais visivelmente mobilizadoras de questões identitárias no sujeito”. Kramsch (2000, p. 133) 1 também compartilha as ideias aqui arroladas ao afirmar que o ensino e a aprendizagem de uma língua podem ser considerados “um processo dialógico de significação, troca e interpretação que constrói o indivíduo assim como constrói o outro” Ainda no tocante ao ensino e aprendizagem de LE e o impacto deste processo na identidade do discente, cabe ressaltar que, na medida em que vamos conhecendo a língua estrangeira e nos comunicando por meio dela, essa língua vai se ‘desestrangeirizando’; quanto mais nos aproximamos, mais ela vai se tornando familiar (ALMEIDA FILHO, 1993). Igualmente, Revuz (1992, p. 227) reforça a ideia sobredita e destaca que “Quanto melhor se fala uma língua, mais se desenvolve o sentimento de pertencer à cultura, à comunidade de acolhida, e mais se experimenta um sentimento de deslocamento em relação à comunidade de origem” Assim, mediante essas considerações, podemos observar que quanto mais estabelecemos laços com a língua e cultura estrangeira e quanto melhor nos expressamos nesse novo idioma, mais nos identificamos com o Outro, desejando pertencer àquela realidade. Muitas vezes, há alguns alunos que quando passam a aprender uma nova língua apresentam o seguinte discurso: “acho que nasci no país errado”. Geralmente, nessa fala, estão implícitos diversos aspectos como os gostos e preferências por música, gastronomia, indumentária, artes e uma infinidade de outros elementos que compõe a cultura estrangeira e caracterizam a identidade do Outro e que, ao entrar em contato, o aprendiz acaba desejando obtê-los e/ou vivenciá-los, incorporando-os para si, (re)significando e (re)constuindo, portanto, a sua identidade. Essa análise nos permite corroborar o postulado a seguir: “Aprender uma outra língua é fazer a experiência de seu próprio estranhamento no mesmo momento em que nos familiarizamos com o estranho da língua e da comunidade que a faz viver” 1
No original: “[...] a dialogic process of sign making, exchanging, and interpreting that constructs the self as it constructs the other” (KRAMSCH, 2000, p. 133).
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(REVUZ, 1992, p. 229). Em suma, o ato de aprender uma língua implica transformações profundas que, muitas vezes, despertam no aprendiz uma inexplicável estranheza com sua própria língua e cultura e, ao mesmo tempo, provoca neste indivíduo uma forte atração por pertencer à comunidade referente à língua e cultura estrangeira, vivendo, constantemente, uma eterna ambivalência. Após tecer todas essas considerações sobre o ensino e aprendizagem de LE e a inexorável relação que este processo estabelece com a identidade, evidenciaremos, a seguir, de que maneira o professor pode explorar a questão da identidade do aprendiz ao abordar um tema relacionado à imigração e a influência desta nas identidades nacionais. Imigração e identidade nacional Conforme mencionamos no intróito deste artigo, a identidade do aluno de LE é um processo que passa por constantes transformações e, continuamente, vai sendo (re)construída e (re)significada na medida em que os aprendizes começam a ter contato com outras vozes e vão absorvendo para si outras culturas e, assim, (re)formulando, reiteradamente, a sua identidade pessoal e nacional. Neste trabalho, iremos nos centralizar na identidade nacional do aluno de LE explorando as questões concernentes à imigração, para que, por meio da música proposta, os estudantes possam refletir e discutir sobre as questões provenientes desse processo imigratório, ao comparar a realidade estrangeira com a brasileira, a fim de que vejam que nosso país também é composto por uma infinidade de nacionalidades que acabam por influenciar a nossa identidade ao trazer de fora outros costumes, culturas e visões. Assim, segundo Uyeno (2003, p. 45) “O estrangeiro, (o imigrante), é o hóspede, a quem se deve a delicadeza da acolhida, mas, é, também, o outro da família, do clã, da tribo, confundindo-se com o inimigo” Por meio dessa afirmativa, podemos observar que, de acordo com a situação vivenciada pelos imigrantes, existe uma ambivalência que caracteriza os “anfitriões” que recebem esses imigrantes/estrangeiros, uma vez que a recepção ora é educada, acolhedora e hospitaleira, ora se torna grosseira, descortês e indelicada.
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Poderíamos fazer uma analogia desta situação com uma visita que recebemos em nossa casa; a princípio, sua presença é bem vinda, agradável e aprazível, no entanto, se essa visita resolve estender sua estadia por muito mais tempo, sua presença acaba tornando-se inoportuna, incômoda e desagradável. Essa comparação ilustra a mesma situação que passam os que recebem os estrangeiros em seu país, pois, estes imigrantes, após se estabelecerem por um longo período de tempo, representam para os “anfitriões” uma ameaça para a sua cultura, língua e identidade nacional, como se a presença destes imigrantes fosse romper todo o legado construído ao longo do tempo pelos seus antepassados. Entretanto, não são somente os “anfitriões” que vivem essa ambiguidade de sentimentos, os “hóspedes”, igualmente, vivenciam situações ambivalentes sobre seu “novo e antigo lar”. De acordo com Uyeno (2003, p. 42, grifo do autor) “o imigrante se ‘histeriza’ por se ressentir da falta, e, por isso, desejar o que ele mesmo renunciou para agradar ao novo pai, ao país que o acolhe.” Nesse sentido, observamos que o imigrante também passa a conviver com diversas contradições dentro de si, pois, embora ele sintase feliz com a concretização de seu sonho de morar em outro país mais desenvolvido ele também se sente triste por ter deixado sua terra, sua cultura, seus hábitos, parte que constitui sua identidade nacional. Ademais, em meio a todas essas situações, um dos que mais sofre a conseqüência da imigração é o filho do imigrante que nasce na terra que o hospeda, posto que, conforme apregoa Uyeno (2003, p. 45) “se, por um lado, seus concidadãos lhe cobram o domínio da língua da terra onde nasceu, por outro lado, seus pais lhe exigem que saiba a língua de sua herança racial.” É nesse ambiente de infinitas ambivalências que o filho do imigrante entra em um constante e eterno conflito identitário. Deste modo, tendo em vista a imigração e o impacto que esta causa na sociedade que o acolhe, podemos então destacar a ideia de hibridização. Como acentua Canclini (1998), a hibridização não significa a ruptura dos hábitos referentes às identidades locais/regionais, mas sim um diálogo entre o novo e a tradição, entre desterritorialização e transnacionalização, um encontro de tudo o que é novo com toda a herança que trazemos dentro de nós.
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Sob essa perspectiva, são as questões relacionadas à colonização e imigração que fazem das identidades cada vez mais híbridas, heterogêneas e plurais, o que, segundo Hall (1997), Featherstone (1997) e Grant (1997) faz com que a noção de identidade nacional fixa e bem localizada seja substituída por noções de identidade móveis, transitórias e em contínua transformação. Nessa perspectiva, Hall (1997) rompe com a noção de uma unidade identitária apregoada pelo iluminismo elucidando a descentração do sujeito, o reconhecimento de sua identidade plural e, por sua vez, a impossibilidade de termos apenas uma única identidade. Além do mais, Hall sublinha que as identidades nacionais “não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação” (1997, p. 53, grifo do autor). Já Grant (1997) assinala que a terceira geração de imigrantes dificilmente se identifica com o país de nascimento e tampouco possui os mesmos laços identitários com o país de origem e seus antepassados. Sobre esse grupo específico Featherstone (1997) classifica essa categoria como “terceiras culturas”, sendo essas resultantes da hibridização e do cruzamento de culturas. Em síntese, podemos considerar que a nossa identidade nacional está em constante modificação, tendo em vista a hibridização que o processo de imigração causou em muitos países em decorrência da miscigenação de etnias. Desta forma, rompem-se as fronteiras e a ideia de nacionalidade pura e estática se extingue. Dizer que somos brasileiros, por exemplo, é afirmar que somos um encontro de vários povos provenientes de diversas partes do mundo e, esse diálogo que estabelecemos com o Outro, é o que nos constitui como sujeito. Aumenta o som: propostas de atividades para explorar a identidade nacional Conforme assevera Moita Lopes (2004, p. 30-31) vivemos num mundo semiótico, “um mundo de cores, sons, imagens e design que constroem significados em textos orais/escritos.” Sob esta ótica, tendo em vista nossa atual realidade, torna-se cada vez mais necessário que nós, professores de LE, incorporemos em nossas aulas recursos
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didático-pedagógicos que sejam atrativos aos olhos dos alunos que nasceram no berço na tecnologia. Nesse sentido, a fim de transformar a sala de aula em um espaço dinâmico, optamos pelo uso de uma manifestação artística que faz parte da lista de preferência dos jovens: a música. Assim, a fim de potencializar as reflexões e debates sobre a temática imigração e identidade nacional, sugeriremos aqui duas propostas para que os docentes possam utilizar o recurso musical como propulsor de profícuas discussões acerca da temática contemplada. Com relação a esse componente, Souza sublinha que utilizar a música como ferramenta de ensino pode ser muito proveitoso, pois, “por meio de um único instrumento didático, o aluno pode ter acesso a conteúdos dos mais variados possíveis o que termina por propiciar um trabalho interdisciplinar” (2013, p.7). Do mesmo modo, Santos e Pauluk (2013, p.8) advogam pela inserção da música ao assinalarem que “A música motiva as pessoas a aprender e proporciona um elo entre a linguagem da escola e a do mundo”. Vele destacar que o professor cumpre um importante papel nestas atividades exercendo a função de mediador, incitando perguntas e curiosidades sobre as temáticas a serem arroladas. No transcorrer das aulas são os aprendizes que precisam assumir protagonismo, participando ativamente das discussões, emitindo suas opiniões e debatendo, juntamente como o docente, os temas abordados, uma vez que o professor precisa atuar como agente facilitador da aprendizagem. Como já explicitamos, as propostas a seguir consistem na utilização do recurso musical como ferramenta de ensino. Elas são direcionadas aos alunos do ensino médio e ou níveis intermediário/avançado. Aconselhamos desmembrá-las e trabalhá-las em duas aulas de no mínimo 50 minutos para que haja uma boa exploração das atividades. Se necessário, as propostas podem ser aplicadas em mais de duas aulas, adequando-as de acordo com o tempo disponível. Salientamos que as sugestões didáticas se dão de maneira sequencial e metódica. Aula 1 – Jaula de Oro: a narrativa de um imigrante. Objetivo (s): Fazer com que os aprendizes: (1) saibam diferir o significado entre os termos emigração, imigração e migração; (2) encontrem informações pontuais na canção; (3) conheçam a realidade de um imigrante; (4) pratiquem a Expressão Oral (EO) na língua meta. Materiais necessários: rádio, CD, letras da música impressas.
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Atividade 1: Essa primeira atividade tem como intuito iniciar a aula de uma forma dinâmica. Deste modo, diga aos alunos que eles irão ouvir a música Jaula de Oro2, pertencente ao grupo mexicano Los Tigres Del Norte para que, após a audição, possam discutir sobre alguns aspectos contidos na canção. Antes que os estudantes ouçam a música, é interessante entregar a cada um a música impressa para que, anterior a audição, todos leiam a letra a fim de sanar possíveis dúvidas lexicais. Atividade 2: Depois que os discentes leram a letra e o docente tenha esclarecido as dúvidas relacionadas ao vocabulário desconhecido, coloque a música para que os alunos possam ouvi-la, acompanhando-a com sua respectiva letra. Atividade 3: Após os aprendizes lerem e ouvirem a canção inicie a terceira atividade com algumas perguntas pontuais sobre o conteúdo da música para que eles possam refletir sobre a imigração e, ao mesmo tempo, praticar a EO na língua espanhola por meio das discussões: Perguntas: - Como poderíamos caracterizar o eu lírico da canção? - Você sabe explicar qual é a diferença entre imigração, emigração e migração? - De que maneira a imigração aos EUA afetou a vida das personagens da música? - Quais são os motivos que levam o eu lírico a ter medo de sair às ruas? - O eu lírico demonstra estar arrependido de ter se mudado com sua família aos EUA? Se sim, qual é o fragmento que ilustra essa situação? Aula 2– Identidade nacional: Nós somos um pouco deles e eles são um pouco de nós. Objetivo (s): Fazer com que os aprendizes: (1) contrastem aspectos relacionados ao seu país com o país do Outro; (2) (re)conheçam e (re)construam a sua própria identidade nacional mediante o confronto com a estrangeira; (3) desenvolvam suas habilidades orais e argumentativas através das reflexões sobre o tema. Materiais necessários: Nessa aula, o professor não precisa valer-se de nenhum material em específico, a não ser que queira acrescentar algo a mais. Atividade 1: Inicie esta aula com um feedback das temáticas contempladas nos encontros anteriores a fim de que os aprendizes resgatem os assuntos já discutidos. Após a retroalimentação, lance aos discentes as seguintes perguntas: Perguntas: - O Brasil, assim como os EUA, é também um país que recebe milhares de imigrantes todos os anos. Qual seria a influência dessa imigração na nossa identidade brasileira? - Quais são os elementos relacionados à gastronomia, indumentária e a música que você acredita que representa fortemente a identidade brasileira e quais são os outros elementos que foram sendo introduzidos de diferentes países e hoje estão presentes no nosso país? - Como você definiria sua identidade brasileira? - Você pensa que aprender uma língua estrangeira é algo que pode (re)significar e transformar a nossa identidade? Em que sentido? Considerações finais
Encerramos aqui este trabalho com esperança de abrir janelas que nos permitam poder vislumbrar novas paisagens, aonde professores e alunos compreendam que “Aprender uma língua estrangeira é sempre, um pouco, tornar-se outro” (REVUZ, 1992, p. 227). Imaginemos que somos como uma colcha de retalhos; em cada encontro e diálogo que estabelecemos com o Outro re(construímos), (res)significamos e (trans)formamos nosso Eu. O contato com diferentes vozes e a vivencia de diversas 2
Letra da música disponível em: .
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experiências nos constitui como pessoas. Somos seres tecidos por diferentes retalhos, somos, a todo o momento, atravessados e perpassados por pensamentos, histórias, ideologias, valores e culturas que, continuamente, (re)definem a nossa identidade.
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O USO DE ELEMENTOS VISUAIS EM TRADUÇÕES DE CANÇÕES PARA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS Natália Schleder Rigo (UFSC) Introdução O campo de atuação do tradutor-intérprete de língua de sinais se expande consideravelmente por inúmeras razões, sobretudo, pelo fato de a necessidade de mediadores linguísticos que intermediam a comunicação de pessoas usuárias da língua brasileira de sinais (libras) e de pessoas usuárias da língua portuguesa ser cada vez maior e, ao mesmo tempo, mais urgente nos diferentes contextos comunitários da sociedade brasileira. O trabalho de tradução e interpretação, envolvendo o par linguístico que compreende a língua de sinais especificamente, é um ofício já realizado desde a década de 80 no Brasil, porém reconhecido recentemente. De forma geral, a prática pode ser compreendida da mesma maneira que a prática de tradução e interpretação de línguas orais estrangeiras (inglês, francês, etc.); as diferenças encontram-se, contudo, em alguns aspectos pontuais como, por exemplo, o fato de o público alvo dessas traduções e interpretações não serem pessoas estrangeiras, mas sim brasileiros usuários de uma língua minoritária do Brasil (reconhecida legalmente); também pela questão de diferença de modalidade linguística de uma das línguas envolvidas no par linguístico do trabalho de mediação, no caso as línguas de sinais que são línguas naturais espaço-visuais e as línguas faladas que são oral-auditivas. O trabalho de tradução e interpretação envolvendo a língua de sinais abrange vários contextos de atuação, bem como diferentes tipos de textos. O estudo compartilhado aqui com o leitor, foca na prática que envolve textos de conteúdo sonoro, ou seja, canções. O trabalho de tradução de canções para língua de sinais já pode ser considerado uma prática recorrente, uma vez que esse tipo de manifestação artísticacultural está presente nas mais diversas esferas e, também, dentro dos mais diferentes grupos de pessoas. Essa prática, contudo, pode ser considerada como peculiar por envolver um tipo de texto original que abrange elementos verbais e não verbais. Os
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elementos verbais podem ser entendidos resumidamente como a língua em si (o que a letra da canção compreende), e os elementos não verbais o conteúdo sonoro, ou seja, os elementos semióticos da música. Justamente por compreender conteúdos de características diferentes é que esse trabalho merece atenção e pode ser considerado não tão simples assim de ser realizado. Outro fator importante a ser destacado nesse tipo de prática é o público alvo dessas traduções de canções, ou seja, o público usuário da língua de sinais que não ouve e, portanto, não compartilha das mesmas experiências auditivas que o tradutor-intérprete e que o autor do texto original. Essa simples questão já implica em inúmeras discussões que perpassam reflexões e posicionamentos diversos que vão desde perspectivas mais prescritivas e generalistas que desconsideram esse tipo de texto possível para esse público alvo em especial até perspectivas mais abrangentes que consideram a possibilidade sim de uma tradução, uma vez que o texto original é possível de ser produzido. Entre essas questões e inúmeras outras, há de se considerar que um fator essencial e necessário a ser pensado nesse tipo de tradução, naturalmente, corresponde aos elementos semióticos do texto original possíveis de serem traduzidos para a visualidade inerente da língua de sinais. É nessa visualidade que se inserem os elementos visuais possíveis de serem empregados como recursos tradutórios nessa prática. Esse estudo visa compartilhar, nesse contexto, um pequeno recorte da pesquisa da autora que compreende uma análise de recursos tradutórios empregados em canções traduzidas para língua de sinais constituídos por elementos visuais de tradução. O objetivo desse trabalho pautou-se em identificar esses elementos, quantifica-los e estabelecer um comparativo entre o uso dos mesmos por parte de tradutores ouvintes e surdos sinalizantes. Tradução de Canções e o Público Alvo Wolney Unes, em seu livro “Entre Músicos e Tradutores: a figura do intérprete” faz uma analogia interessante entre o intérprete musical, aquele que traduz os signos gráficos da partitura em signos sonoros, e o tradutor, aquele que traduz signos idiomáticos desconhecidos em signos compreensíveis. Conforme o autor (1998, p. 15),
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a interpretação musical é “um processo tradutório no seu sentido mais amplo: para indivíduos não treinados, o significado dos signos gráficos (da partitura) permanece indecifrável. Para a tradução desses signos gráficos em signos acústicos, faz-se necessário um tradutor”. Conforme Unes, “há áreas do conhecimento humano em que um intérprete é imprescindível. Este deve aqui ser entendido como aquele que torna possível ao leitor comum o acesso a uma determinada obra que se encontra codificada num sistema cujas regras, cujos símbolos são desconhecidos pelo leigo” (UNES, 1998, p. 14). Cabe destacar que o tradutor do processo tradutório em discussão é aqui definido como tradutor-intérprete, uma vez que traduz e interpreta o texto (canção) de uma língua para a outra (QUADROS, 2007, p. 11). A denominação tradutor-intérprete é empregada nesse estudo a partir da concepção de Quadros (Ibid., p. 11) e, ainda que se refira a duas práticas distintas num mesmo ofício, compartilham de elementos em comuns na prática e podem constituir-se justapostas na medida em que o tradutorintérprete passa a ser entendido como um profissional que desempenha as duas atividades e as realiza em momentos e circunstâncias diferentes. O trabalho de tradução de canções se diferencia da maioria dos outros trabalhos em vários aspectos conforme Napier, et. al. (2006, p.130), sobretudo porque normalmente é necessário um tempo maior para a preparação da tradução do texto de partida. As autoras consideram que, embora a tradução e a interpretação sejam vistas como processos distintos, realizados em momentos separados, o que acontece é um trabalho híbrido, uma vez que os profissionais realizam seus trabalhos a partir de uma preparação da tradução e, ao mesmo tempo, da realização da interpretação em si, que ocorre em tempo real, Como mencionado, um fator importante a ser considerado nesse tipo de prática é o público alvo ao qual o texto traduzido é destinado. Falar do público alvo de traduções de canções significa falar do leitor-espectador surdo e falar desse sujeito implica considerar questões culturais e linguísticas. Um fator complicador do trabalho de tradução de canções que reforça o desafio da prática é justamente o vasto público alvo e suas diferentes particularidades, uma vez que o tema que esse tipo de tradução se inscreve, além de ser um tabu social (“música para surdos”) divide posicionamentos e
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comportamentos “contra” e “a favor” desse tipo de prática e os desdobramentos que a permeiam. Nesse sentido, faz-se necessário que o tradutor-intérprete ouvinte saiba (ou pelo menos procure saber) para qual tipo de público alvo seu trabalho está sendo destinado, isso porque esse público pode se constituir de diferentes perfis, isto é, de pessoas surdas que possuem diferentes relações com o tipo de texto (canção) a ser traduzido. Cabe mencionar que as experiências dos surdos em relação ao som podem ser inúmeras e bastante variáveis, porém, as experiências visuais são inegáveis e fazem intimamente parte da essência desses sujeitos. Sobre essa experiência visual é possível trazer algumas considerações de Campello (2008, p. 150) que afirma, por exemplo, que “experiências da visualidade produzem subjetividades marcadas pela presença da imagem e pelos discursos viso-espaciais provocando novas formas de ação” no aparato sensorial dos surdos, uma vez que a imagem não é somente uma forma de ilustrar um discurso oral. Segundo Campello, o que os surdos percebem sensorialmente pelos olhos é diferente, as interpretações daquilo que veem lhes fazem sentido diferente, por isso “as formas de pensamento são complexas e necessitam a interpretação da imagemdiscurso” (CAMPELLO, 2008, p. 11). Como criança surda, relata a autora, o som não lhe pertencia e, assim, tudo passava a ser visualmente identificado e expressado de “sinais visuais” ou “signos visuais” (Ibid., p. 17). Ainda para Campello, os surdos “usam a língua de sinais brasileira envolvendo o corpo todo, no ato da comunicação”. Sua comunicação envolve a visualidade e produz “inúmeras formas de apreensão, interpretação e narração do mundo a partir de uma cultura visual” (Ibid., p. 70). Uma vez apresentadas essas considerações é possível descrever a metodologia desse estudo. Metodologia Procurando identificar os recursos de tradução empregados em traduções de canções sinalizadas para língua brasileira de sinais – nesse recorte apresentando um enfoque nos recursos que compreendem elementos visuais – o estudo configurou-se como um trabalho de caráter descritivo sendo elaborado a partir de etapas, a saber: sondagem inicial; construção do corpus; extração e tratamento dos dados e análise e discussão dos resultados.
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Na sondagem inicial foi realizado um mapeamento de recursos partindo da visualização de vários vídeos com traduções de canções entre diferentes pares linguísticos. O registro desses registros encontrados nessa sondagem inicial contribuiu para uma classificação posterior que facilitou na identificação dos recursos dos vídeos especialmente selecionados para comporem o corpus de análise. A fonte de coleta dos vídeos foi a plataforma Youtube. Para a seleção dos vídeos, com base nos objetivos da pesquisa, convencionaram-se como critério de escolha três aspectos: grupos de sinalizantes; conjuntos de canções e situações de atuação. O primeiro critério valeu-se de dois grupos de tradutores: sinalizantes surdos e sinalizantes ouvintes. A explicitação dos demais critérios pode ser vista com maior detalhamento na dissertação da autora (RIGO, 2013). O enfoque do presente trabalho se dará nos aspectos que englobam os recursos de elementos visuais de tradução, ou seja, os Aspectos Audiovisuais e os Aspectos Cenográficos. Vale lembrar que por se tratar de uma pesquisa cujo objeto de estudo corresponde a traduções e essas traduções implicam num par linguístico que compreende a língua de sinais – essa, por sua vez, de natureza espaço-visual –, os elementos linguísticos e extralinguísticos de análise são, portanto, também naturalmente visuais. Além disso, a produção das traduções se dá por meio dessa língua visual, implicando em recursos tradutórios (procedimentos de tradução) que também podem ser entendidos em sua produção e concretização como recursos visuais. Esse enfoque, contudo, é importante que se ressalte, irá se limitar aos elementos visuais empregados como ferramentas dos tradutores que estão além do seu corpo e da língua enquanto instrumentos de comunicação visual; recursos ligados à linguagem audiovisual e cenográfica implicando mídias e instrumentos que estão além do tradutor em si. Para uma visão geral dos recursos identificados na pesquisa da autora, tem-se o seguinte mapeamento resumido:
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CATEGORIAS
RECURSOS
Ação Construída; Classificadores; Descrição de Instrumentos Musicais; Direcionamento de Cabeça; Direcionamento de Tronco; Espaço de Sinalização; Expressões Faciais; Morfismo; Aspectos Linguísticos Movimento Rítmico; Repetições Simétricas; Soletração Manual; Soletração de Vocalizações. Agachamento; Balanço; Batidas de Pé; Deslocamento; Giros; Aspectos Extralinguísticos Movimento de Cabeça; Movimento do Tronco; Palmas e Saltos/Pulos. Acréscimo; Adaptação; Contextualização; Erros; Explicação; Explicitação; Instrumental; Omissão; Repetição de Aspectos Tradutórios Refrão; Retomada; Simultaneidade; Tradução Livre/Literal; Variação Equivalente e Variação de Tema. Cortes; Créditos; Efeitos; Imagens; Legenda; Planos; Vídeos e Aspectos Audiovisuais Videoclipes. Adereços; Cenário; Figurino; Iluminação; Maquiagem e Plano Aspectos Cenográficos de Fundo. Quadro 01: Mapeamento Resumido de Recursos de Tradução (RIGO, 2013).
A categoria dos Aspectos Audiovisuais envolve os recursos visuais que são entendidos na pesquisa como elementos semióticos empregados na composição do vídeo que possuem um determinado desempenho. Em função de a forma de registro das traduções serem feitas a partir do vídeo, é possível analisar alguns itens de recursos utilizados que podem contribuir para a tradução de canções, uma vez que a atividade esteja voltada para um determinado fim que possibilite esse tipo de registro. Os recursos nessa categoria definidos foram: cortes, créditos, efeitos, imagens, legenda, planos e vídeos. Há ainda o recurso de videoclipe, ou seja, a utilização do videoclipe original nas traduções. Essa composição aparece em algumas traduções vistas, mas não nas analisadas no corpus, assim esse recurso não será, por hora, detalhado. A categoria dos Aspectos Cenográficos envolve os recursos empregados nas traduções que correspondem aos elementos externos ao tradutor, ou seja, que estão além de sua sinalização envolvendo materiais e lugares físicos. Assim como os recursos audiovisuais empregados no registro da tradução, os recursos cenográficos envolvem suportes e ferramentas diversas que o tradutor pode se valer, elementos de composição visual e cênica do espaço onde a sinalização é realizada. Essa preocupação cênica pode ser necessária para a elaboração de uma tradução de canção e/ou produção sinalizada qualquer, uma vez que envolve elementos visuais que podem ser entendidos como não verbais e, portanto, compartilham da tradução intersemiótica (JAKOBSON, 2010, p.
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81). Os recursos cenográficos podem falar por si só ou dialogarem com os recursos linguísticos, extralinguísticos e audiovisuais, uma vez que carregam consigo sentidos e efeitos independentes. Nessa pesquisa os recursos cenográficos identificados envolveram adereços, cenários, figurino, iluminação, maquiagem e plano de fundo. Com exceção do recurso iluminação, todos os demais serão descritos nessa seção visto que foram tomados como base para as observações dos vídeos selecionados para análise. Resultados e Considerações Os resultados dos recursos da categoria dos Aspectos Audiovisuais foram significativos. A expressividade no emprego de grande parte dos recursos concentrou-se nas traduções do grupo de sinalizantes surdos, com a ressalva de um conjunto de canção em específico (Canções Religiosas) em que os resultados também foram significativos nas traduções realizadas pelos sinalizantes ouvintes. Os gráficos abaixo ilustram esses resultados:
Gráfico 01 - Sinalizantes Ouvintes
Gráfico 02 - Sinalizantes Surdos
Legenda: COR: Cortes, CR: Créditos, EFE: Efeitos, IM: Imagens, LE: Legenda, PL: Planos, VI: Vídeos.
Os recursos que não foram empregados variaram entre os conjuntos de canções, sobretudo em traduções realizadas pelo grupo de sinalizantes ouvintes. Nas Canções Populares não houve ocorrências de Legenda nem de Vídeos por parte dos sinalizantes ouvintes. Já nas traduções do Hino Nacional esse mesmo grupo de sinalizantes não fez uso de Cortes, Imagens, Planos e Vídeos. No grupo de sinalizantes surdos apenas dois recursos não foram empregados, e no mesmo conjunto de canções (Canções Populares),
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são eles: Imagens e Vídeos. Os demais recursos foram empregados pelos dois grupos de sinalizantes em maior e menor ocorrência. A categoria de Aspectos Audiovisuais compreendeu sete diferentes recursos audiovisuais. Nas Canções Religiosas o emprego de maior parte dos tipos de recursos foi feito por ouvintes, sendo utilizados quatro tipos de recursos distintos mais expressivamente, enquanto que os sinalizantes surdos fizeram uso de apenas dois dos recursos de forma mais expressiva. Um dos recursos apenas, o de Legenda, foi empregado nesse conjunto de canção da mesma forma nas traduções de ambos os grupos de sinalizantes. Apenas um tipo de recurso foi empregado mais expressivamente pelos sinalizantes ouvintes nas traduções das Canções Populares, o recurso de Imagens. Com exceção do uso de Vídeos não empregado por nenhum dos grupos de sinalizantes nesse conjunto, todos os demais recursos foram usados de forma mais expressiva por parte de sinalizantes surdos. Já nas traduções do Hino Nacional todos os recursos definidos nessa categoria foram empregados mais expressivamente por parte de sinalizantes surdos. Conforme esse comparativo, conclui-se que foi nas traduções realizadas por sinalizantes surdos que o número de tipos de recursos audiovisuais empregados de forma mais expressiva foi maior. O uso de determinados recursos em maior expressividade por parte dos sinalizantes surdos implica inferir numa preocupação mais atenta com esses recursos por parte desses sinalizantes. O uso de Créditos e informações sobre o texto original também foi mais empregado por sinalizantes surdos. Houve uma preocupação com esses recursos por parte dos ouvintes nas suas traduções, mas não uma preocupação significativa. O uso desse recurso não se trata de algo complexo sendo perfeitamente possível de ser empregado em vídeos que não sejam produzidos com caráter profissional e recursos profissionais. Os Créditos são entendidos aqui como um recurso único que envolve informações importantes acerca do texto original, como autor, compositor, etc. Essas informações estão mais presentes nas sinalizações produções dos surdos e não há uma preocupação com essas informações adicionais nos Hinos traduzidos por ouvintes como foi possível perceber. A “falta de informação” sempre foi uma problemática para as pessoas que não compartilham da língua oral majoritária e que vivem e frequentam espaços onde não há
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uma acessibilidade comunicacional mínima. É sabido que a história dos surdos foi construída a partir de muitas limitações comunicacionais e falta de informação, bem como por meio de uma educação defasada e uma grave deficiência do sistema e organização social em possibilitar o acesso pleno das informações para minorias linguísticas. A falta de uso de Créditos, ou seja, informação diversa talvez possa ser entendida como um reflexo disso que, por sua vez, acaba gerando mais uma vez barreiras e falta de informação que seria, por outro lado, perfeitamente viável e possível numa tradução. Isso não significa dizer, entretanto, que toda a tradução de canção precisa vir com uma ficha corrente do nome do autor, compositor, gênero, estilo, título da letra, etc., mas que o sinalizante tenha ao menos consciência da possibilidade desse recurso uma vez que pode ser empregado de diferentes formas dependendo da situação e necessidade. A função da canção em determinado contexto é que irá determinar o sinalizante empregar esse recurso ou não. Numa tradução gravada em vídeo pode ser interessante e viável, pois há recursos que permitem isso, recursos inclusive que podem ser criativamente explorados. Porém, num contexto de tradução simultânea, ou seja, interpretação, os recursos poderão ser mais limitados e o sinalizante terá que saber perceber o momento de adequação e de trazer essas informações antes (ou depois) de iniciar a interpretação propriamente dita; ou ainda se essas informações podem chegar ao público alvo por outras vias, por exemplo, dependendo do contexto de atuação e da função da música no momento. Além dos Créditos outros recursos empregados nessa categoria foram bastante interessantes, porém, por hora, não serão mencionados uma vez que as considerações concentram-se nos dados mais proeminentes. Mesmo assim, esses dados merecerão um olhar mais atento em desdobramentos futuros. Dessa forma, é possível considerar por fim que os resultados dos recursos audiovisuais foram os mais notáveis no sentido de diferenças claras entre traduções de surdos e ouvintes. O uso desses recursos foi bem maior por parte de sinalizações de surdos, com exceção das traduções das Canções Religiosas em que os sinalizantes ouvintes fizeram o uso significativo dos recursos. Há de se considerar ainda sobre o arsenal de possibilidades de tradução intersemiótica através de recursos possíveis serem empregados criativamente, como é o
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caso dos inúmeros vídeos com traduções em ASL vistos na etapa de sondagem da pesquisa. É preciso considerar, por outro lado, o uso desses elementos em excesso o que pode gerar o efeito contrário do que se deseja numa tradução de canção, isto é, a sinalização perder seu caráter estético e de efeito artístico e acabar provocando interferências e poluição visual prejudicando a visualização do leitor-espectador da sinalização e seu interesse pelo vídeo. Nesse ponto, é possível considerar que há, portanto conhecimentos específicos necessários para o sinalizante que pretende registrar sua tradução em vídeo. Conforme é possível observar nos gráficos abaixo os recursos da categoria dos Aspectos Cenográficos foram menos expressivos. Muitos dos recursos cenográficos não foram empregados nas traduções, tanto por parte dos sinalizantes surdos como por parte dos sinalizantes ouvintes.
Gráfico 03 - Sinalizantes Ouvintes
Gráfico 04 - Sinalizantes Surdos
Legenda: AD: Adereços, CE: Cenário, FI: Figurino, MA: Maquiagem, PF: Plano de Fundo.
Dentre os três conjuntos de canções e os dois grupos de sinalizantes o recurso que houve maior ocorrência foi o Plano de Fundo, sobretudo nas traduções do Hino Nacional. Os outros dois recursos que obtiveram ocorrências foram: o Figurino (mais presente nas traduções de Canções Populares) e os Adereços (mais presentes nas traduções de Canções Religiosas). O uso de Cenário foi empregado duas vezes e o emprego de Maquiagem apenas uma vez dentre todos os conjuntos de canções por parte de ambos os grupos de sinalizantes.
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Foram cinco os recursos definidos na categoria de Aspectos Cenográficos. Nas traduções das Canções Religiosas o recurso de Plano de Fundo foi empregado da mesma forma por parte dos dois grupos de sinalizantes. Além desse recurso os sinalizantes ouvintes fizeram uso de outros dois recursos em maior número de ocorrência (Cenário e Maquiagem), enquanto que os sinalizantes surdos fizeram uso apenas de Adereços nesse mesmo conjunto de canções. O conjunto de Canções Populares foi o que menor registrou ocorrências de recursos cenográficos. Nesse conjunto, o uso de Figurino foi usado em maior ocorrência por parte dos sinalizantes surdos e o Plano de Fundo por parte dos sinalizantes ouvintes. Os demais recursos referentes às traduções desse conjunto não foram registrados. O conjunto de canções do Hino Nacional foi o que registrou maior ocorrência de recursos, sendo as traduções realizadas pelos sinalizantes surdos as que mais empregaram elementos cenográficos (três dos cinco recursos: Cenário, Figurino e Plano de Fundo). A ocorrência do recurso de Adereços ainda nesse conjunto de canções foi o mesmo por parte de ambos os grupos de sinalizantes. É interessante observar que as traduções do gênero musical popular, cujos vídeos analisados nessa pesquisa compreendem o conjunto de Canções Populares, há uma inexpressividade de recursos cenográficos, ao contrário dos vídeos observados com traduções desse mesmo gênero musical realizadas em ASL. Em muitos, são observadas traduções com riquíssimo emprego de elementos cenográficos com o uso expressivo de adereços, figurinos diferenciados, maquiagens bem elaboradas, usos de diferentes cenários e planos de fundo para a composição cenográfica, estética e performática das traduções. Diante desses indícios talvez se possa considerar que ainda não há no Brasil um interesse por parte dos sinalizantes, tanto surdos como ouvintes, de elaboração de traduções de vídeos com caráter desse tipo com a preocupação do uso expressivo desses recursos. Isso não significa dizer que não há produções nesse estilo publicadas, pelo contrário, há algumas produções elaboradas nesse sentido, sobretudo por parte dos ouvintes em libras, porém as publicações no canal Youtube parecem ser poucas e ainda se concentram no trabalho de poucos sinalizantes. Diante desses resultados e das breves considerações tecidas a respeito dos mesmos, pode-se por hora considerar que elementos visuais empregados como recursos
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em traduções de canções para língua de sinais são expressivos, sobretudo, por parte de sinalizantes surdos. Entende-se que isso seja, justamente, em função do sentido visual e da visualidade necessária na língua de chegada que se destina ao público alvo que, por sua vez, compartilha essencialmente de uma mesma experiência visual. Embora essa expressividade tenha sido mais evidente em traduções realizadas por sinalizantes surdos, não se pode desconsiderar a expressividade também presente e significativa em vários recursos empregados por parte dos sinalizantes ouvintes, uma vez que muitos já trazem consigo e em suas traduções inferências e preocupações atentas a esses aspectos. Referências CAMPELLO, A. R. S. Pedagogia visual na educação dos surdos-mudos. Tese (doutorado em Educação). Florianópolis: UFSC, 2008. HUMPHREY, J.; ALCORN, B. So You Want To Be An Interpreter? An Introduction to Sign Language Interpreting. 4th Ed. Seattle, WA: H & H Publishing Co., 2007. JAKOBSON, R. Linguística e comunicação. [Tradução: Izidoro Blikstein e José Paulo Paes]. 22ª ed. São Paulo: Cultrix, 2010. QUADROS, R. M. O Tradutor e Intérprete de Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa. Secretaria de Educação Especial; Brasília: MEC/SEESP, 2007. RIGO, N. S. Tradução de Canções de LP para LSB: identificando e comparando recursos tradutórios empregados por sinalizantes surdos e ouvintes. Florianópolis: UFSC, 2013. Dissertação (Mestrado em Estudos da Tradução) Pós-Graduação em Estudos da Tradução, Universidade Federal de Santa Catarina, 2013. NAPIER, J.; MCKEE, R.; GOSWELL, D. Sign Language Interpreting: theory & practice in Australia and New Zealand. Sydney: The Federation Press, 2006. UNES, W. Entre músicos e tradutores: a figura do intérprete. Goiânia: Editora UFG, 1998.
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LEITURA LITERÁRIA COMO RECURSO PARA ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUA INGLESA ATRAVÉS DE HIPO E INTERTEXTOS: A EXPERIÊNCIA DO ESTÁGIO Naylane Araújo Matos (UNEB)
Resumo: Este trabalho se propõe a apresentar os resultados de um estágio de observação que buscou encontrar respostas para questionamentos como – Os professores de língua inglesa utilizam a literatura em suas aulas? Se sim, de que forma? Se não, por quais motivos? Como isto influencia no ensino-aprendizado? Os alunos sentem-se mais motivados quando trabalham a língua dentro do contexto literário? Como a literatura contribui para o processo de aquisição de segunda língua? – bem como apresentar de que forma esta área de conhecimento foi trabalhada no estágio de regência pela mesma estagiária observadora, visto que a intervenção foi realizada em uma das turmas observadas. Considerando as dificuldades e os desafios que o professor de língua inglesa enfrenta, tais como salas superlotadas, falta de material de apoio, pouco tempo de aula semanal, etc. é coerente prever que dificilmente seria possível trabalhar com os alunos textos literários longos e complexos, por isso as aulas do estágio de regência foram realizadas com apoio de textos de vocabulário simples e curtos (poesia e excertos de obras literárias), se valendo de adaptações e recursos visuais e seus vários intertextos (músicas, imagens, vídeos, etc.) que, na maioria das vezes, é de conhecimento dos aprendizes e que melhor auxiliam na sua compreensão.
Palavras-chave: Ensino. Inglês. Literatura. Intertextos.
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1. O uso de literatura nas aulas de língua inglesa A dificuldade de ensinar e aprender inglês nas escolas públicas tem se tornado um objeto de estudo cada vez mais frequente e muito se pesquisa sobre os métodos adequados para o ensino de língua estrangeira. No entanto, pouco se fala sobre o uso da leitura literária como recurso para o ensino-aprendizado de língua inglesa e suas múltiplas possibilidades. Esta inquietação conduz-me aos seguintes questionamentos: Os professores de língua inglesa da rede pública utilizam a literatura em suas aulas? Se sim, de que forma? Como isto influencia no ensino-aprendizado? Os alunos sentem-se mais motivados quando trabalham a língua dentro do contexto literário? Como a literatura contribui para o processo de aquisição de segunda língua? Desse modo, o estágio de observação almejou investigar como a literatura tem sido utilizada nas aulas de língua inglesa; como esta área de conhecimento auxilia no trabalho do professor; avaliar se há melhoria no nível de inglês onde o trabalho de língua é comungado com a literatura; e compreender os motivos de sua não utilização nas aulas de língua inglesa, no caso desta área não estar presente no ensino das turmas observadas. As observações foram realizadas nas escolas públicas Deocleciano Barbosa de Castro e Padre Alfredo Haasler, ambas situadas na cidade de Jacobina - Bahia, com uma turma de 7° ano no ensino fundamental e duas do 3° ano do ensino médio, no primeiro semestre de 2013. Foram dedicadas 20 horas totais ao período de observação, das quais 15 foram para as aulas de língua inglesa e 5 para o espaço físico das escolas, planejamento, entrevistas e análise de documentos. A regência aconteceu com duas (2) turmas de 9º ano, do ensino fundamental 2, sendo uma matutina e uma vespertina, da Escola Padre Alfredo Haasler (mesma escola onde foi realizado o estágio de observação), apresentando como tema “Leitura de texto literário como auxílio para aprendizado de língua inglesa” no primeiro período de 2014. O objetivo foi promover conhecimento de língua inglesa através de leituras de textos literários (poesia e short stories), a fim de possibilitar ao aprendiz a compreensão da língua alvo de forma contextualizada, ajudando-o a pensar sua língua materna. Além de despertar nos alunos o interesse pelo aprendizado de língua inglesa através de aulas dinâmicas e descontraídas; possibilitar o conhecimento de autores e obras literárias; e provocar nos aprendizes senso crítico através da leitura.
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2. Leitura literária e aula de língua inglesa combinam? Aprender uma nova língua não é apenas saber falar, ler ou escrever. Segundo Brown (1941, p. 1), trata-se de um processo longo e complexo, no qual o aprendiz precisa envolver-se com uma nova cultura, experimentando uma nova maneira de pensar, sentir e agir; “Literatura é linguagem e a linguagem expressa realidade cultural” (KRAMSCH, 1998, p. 3). Esta área de conhecimento permite que o indivíduo seja capaz de imergir-se na cultura de um povo, compreendendo melhor a sua cultura, história, costumes, comportamentos e consequentemente as estruturas linguísticas. Tudo isso porque a mesma se apresenta dentro de um contexto, não sendo apenas um turbilhão de palavras soltas que o aluno não consegue assimilar à sua realidade de mundo Ademais, a leitura do texto literário possibilita aos alunos o conhecimento de grandes obras e autores, além de ajudá-los a adquirir vocabulário, compreender estruturas gramaticais, melhorar a escrita e desenvolver a habilidade da fala; a compreensão da língua alvo, leva o aprendiz a pensar melhor a sua própria língua, como propõe o PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) de língua estrangeira; e proporciona ao professor novas possibilidades de desenvolver seu trabalho, não se restringindo a apenas questões gramaticais ou estruturais, construindo nos alunos uma visão crítica do mundo em que vivem. Colasante (2005) conforme citada por Lasaro et al. afirma que as literaturas em língua inglesa, quando inseridas no processo educacional do aluno na disciplina de língua podem contribuir muito para que o aluno desenvolva interações comunicativas reais, indo muito além da aquisição de um conjunto de habilidades linguísticas, da estrutura da língua, da sintaxe e do léxico. Além de melhorar o nível de ensino, ela é capaz de despertar no sujeito uma consciência crítica, a qual permitirá que ele avalie e julgue o mundo e os acontecimentos reais, e de desenvolver nele um espírito questionador, que permitirá que ele reflita, opine e proponha mudanças para a ordem das coisas. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) para o ensino de língua estrangeira no ensino fundamental ressaltam a importância de trabalhar com leitura, argumentando que a compreensão de textos é a habilidade mais requerida nas provas de vestibulares, além de tal prática ajudar o aluno com a leitura na sua língua materna (p. 20). Também é afirmado na p. 19 que pela aprendizagem de uma língua estrangeira, o aluno aprende mais sobre si mesmo e sobre um mundo plural. Considerando que a literatura também
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proporciona tal conhecimento de mundo (como afirmam os teóricos acima citados), o professor de língua pode se valer de textos literários para trabalhar com a leitura na língua alvo, visto que esta habilidade pode ser o eixo para o professor trabalhar as demais áreas de conhecimento como argumenta Marta Morais da Costa (2009, p. 96) quando defende que a leitura deve ser trabalhada de maneira transdisciplinar. 3. A vivência dos estágios 3.1.
As observações e a ênfase dada à literatura
No Centro Educacional Deocleciano Barbosa de Castro foram observadas 6 horas/aula matutinas, sendo 2 no 3° ano médio C e 4 no 3° ano médio B, ministradas por um professor formado em Letras – Língua Portuguesa com habilitação em Língua Inglesa, que mostrou pulso com as turmas e segurança quanto ao domínio da língua alvo e trabalhou-a de forma expositiva, fazendo uso de atividades gramaticais complementares e do livro didático disponibilizado aos alunos. O material didático continha muitas imagens e textos literários, abordava a cultura estrangeira, bem como a brasileira, tratando de autores como Jorge Amado e Vinicius de Moraes – com suas obras traduzidas para o inglês –, filmes, leis brasileiras, etc., permitindo aos alunos maior intimidade com o conteúdo. Além de discutir temas atuais e reflexivos como cidadania, obesidade, violência, bullying, tipos de profissões, notícias estrangeiras, entre outros. Durante o período de observação das aulas não foi possível comprovar a existência de textos literários como recurso para o ensino-aprendizado da língua, mas em entrevista com o professor ele afirmou que esta área de conhecimento seria trabalhada na segunda unidade com autores como William Shakespeare, Milton e Lord Byron, defendendo a ideia de que “a literatura é uma forma de representação da língua”. Os alunos, em geral, apresentaram um bom comportamento, sendo a turma B mais agitada que a C, mas ambas com boa participação e aproveitamento satisfatório do tempo. No entanto, foi relatada em entrevistas a insatisfação relativa às aulas de inglês, argumentando serem chatas e monótonas, o que os levam a acreditar não ser possível o aprendizado da língua na sala de aula. Também relataram que gostariam de ver, durante as aulas, slides, letras de músicas, textos e vídeos, algo que os fizessem aprender mais, deixando nítidas as suas expectativas de verem a língua de forma mais contextualizada, o que permitiria ao professor o uso de textos literários, que não proporcionariam apenas um melhor entendimento do contexto linguístico, mas também o conhecimento de obras
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e autores e de novos vocábulos, além de construir nos aprendizes uma visão crítica de mundo (vide item 2). O professor queixou-se do pouco material disponibilizado e do pouco número de computadores na escola. De fato, em nenhum dos dias observados o laboratório de informática estava funcionando, assim como a biblioteca. Em análise ao Projeto Político Pedagógico (PPP) da instituição escolar, foi possível constatar “Laboratório de informática obsoleto” e “Biblioteca inoperante” como problemas a serem solucionados e também outros que comprometem na dinamicidade das aulas de inglês, como material de apoio pedagógico insuficiente e limitação ao acesso à sala de multimídia. Na Escola Padre Alfredo Haasler as observações totalizaram 9 horas/aula, também no período matutino, com uma turma do 6° ano fundamental, que apresentou um perfil difícil pela existência da diversidade de faixa etária, fato este que ocorria por conta do grande número de repetentes. Era uma turma demasiadamente agitada, e portanto, as atividades não eram concluídas ou realizadas com êxito e muito tempo era perdido na tentativa de acalmá-los. O horário da aula também era desfavorável, pois, segundo a professora, os estudantes apresentam maior desconcentração nos horários após o intervalo e muitos precisavam sair mais cedo para pegar o transporte de volta para casa. A professora – também formada em Licenciatura em Letras com habilitação em Língua Inglesa, tem especialização em planejamento educacional e leciona há 13 anos – afirma que, apesar de já ter trabalhado com literatura nas aulas de inglês, esta área de conhecimento não estava mais inclusa no seu planejamento escolar, mas que a vê como um recurso a mais para que as estruturas da língua possam ser percebidas e analisadas pelos alunos. Realmente não foi possível detectar o seu uso durante as aulas, mas a professora reflete sobre sua importância e diz que voltará a usá-la como auxílio “Através de pequenos textos como: poesias e contos de fadas, adequando à faixa etária dos alunos; possibilitando o reconhecimento de outras tipologias textuais; analisando as estruturas da língua; e explorando a parte artística (dramatização de contos ou poesia)”. Esta seria uma maneira de trabalhar a língua de uma forma mais atrativa, permitindo maior interação por parte dos alunos, visto que grande parte da turma tem dificuldade de concentração. Mesmo porque há falta de material adequado e o livro didático possui uma linguagem e temas que fogem totalmente da realidade dos aprendizes. Nesta escola há problemas com o laboratório de informática, por ser uma sala pequena e principalmente por ter apenas quatro computadores funcionando
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normalmente, o que torna praticamente impossível o seu uso, ainda mais quando se trata de uma turma grande. A biblioteca também é sobejamente limitada e, apesar de conter livros de autores ingleses não possui acervo em inglês. 3.2.
Intervindo nas aulas de língua inglesa com auxílio da literatura
Considerando as dificuldades e os desafios observados e mencionados no próprio PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) que o professor de língua inglesa enfrenta, tais como salas superlotadas, falta de material de apoio, pouco tempo de aula semanal, etc. e a situação do ensino de língua estrangeira no Brasil, é coerente prever que dificilmente se é possível trabalhar com os alunos textos literários longos e complexos em inglês, por isso no estágio de regência foram utilizados textos de vocabulário simples e curtos (poesia e excertos de obras literárias), se valendo de adaptações e recursos visuais que auxiliassem na compreensão dos aprendizes. A língua alvo foi apresentada com auxílio da língua materna para que os participantes não ficassem chocados e/ou incomodados, permitindo maior clareza e desenvolvimento do aprendizado, e para que as leituras fossem realizadas com mais facilidade, a princípio, foram trabalhadas estratégias introdutórias de leitura. Os aprendizes puderam fazer uso da língua alvo quando se sentiam confortáveis e motivados e momentos de leitura em inglês ao longo das aulas propiciaram este ato. As aulas foram expositivas, com auxílio do livro didático, juntamente com outras atividades impressas e explicações dos conteúdos propostos no quadro branco, além do uso de um projetor e som para as atividades visuais e auditivas. Os alunos estiveram livres para interagir e participar de forma ativa, tornando-se autores do seu próprio aprendizado. Além da importância de trabalhar estratégias de leitura para facilitar no processo da proposta, também foi relevante discutir com os alunos o que eles entendiam por literatura, como tinham acesso à ela, se gostavam, de que forma essas obras chegavam ao conhecimento deles e as diferenças de alguns dos gêneros literários. Para tanto, utilizou-se o livro didático – que abordava o tema em questão – e os alunos deveriam fazer, individualmente e em casa, um trabalho, no qual era preciso citar exemplos de obras para cada um dos gêneros trabalhados em sala (poesia, romance, biografia, ficção, conto de fadas e peça teatral) bem como seus respectivos autores e ano de publicação da obra. O objetivo da atividade foi fazer com que os alunos conhecessem e distinguissem esses gêneros.
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Os textos literários clássicos e suas diversas adaptações utilizados nas aulas foram: The Selfish Giant (O gigante egoísta) de Oscar Wild; Alice’s adventures in Wonderland (Alice no país das Maravilhas) de Lewis Carroll; Romeo and Juliet (Romeu e Julieta) de William Shakespeare; Pride and Prejudice (Orgulho e Preconceito) de Jane Austen; e o poema A child’s thought (Pensamento de criança) de Robert Louis Stevenson. Excertos dos textos eram projetados – a escola possui um projetor que foi reservado para as aulas de estágio com antecedência – e a leitura era realizada em conjunto, com auxílio de imagens e dicas de leitura, tais como cognatos e falsos cognatos, dicas tipográficas, skimming e scanning. Contudo, o foco maior eram nas adaptações (músicas, vídeos e filmes) das respectivas obras, estas, por sua vez, prendiam a atenção dos alunos e provocavam neles maior participação e envolvimento na aula, além de fazê-los entender melhor as histórias. Sessões comentadas dos filmes – adaptados das obras literárias – Alice no país da Maravilhas (2010), Romeu e Julieta (1996) e Orgulho e preconceito (2005), foram realizadas em três encontros, nos quais foram discutidos temas como o Nonsense (excesso de sentido), teatro elisabetano, e gênero e sexualidade, respectivamente. Para dialogar com os filmes outros intertextos como vídeos, imagens e músicas foram utilizados. A cada sessão os alunos deveriam responder um questionário avaliativo relativo à obra literária, às respectivas adaptações fílmicas e discussões abordadas em sala. No qual, era necessário que os aprendizes dedicassem tempo para pesquisar, utilizando a internet, livros ou entrevistas com pessoas que apresentam domínio do conteúdo, e dicionários para compreender as questões aplicadas na língua alvo. Todavia, as respostas poderiam ser em português. O questionário era levado impresso (estrategicamente, pois se fosse pra copiar do quadro demandaria bastante tempo), entregue aos alunos ao final de cada sessão e eles deveriam devolver em forma de trabalho na aula seguinte. Na turma vespertina foi desafiador conduzir as propostas, pois, de modo geral, os alunos mostraram-se desinteressados, especialmente no início do estágio, e foi preciso bastante domínio de classe para conduzir as aulas. As conversas paralelas eram muitas e alguns dos alunos dormiam durante as sessões de filmes. Não obstante, com o passar do tempo, a participação foi melhorando e os trabalhos para casa eram feitos com muito capricho, embora apenas uma pequena parte dos alunos os entregassem. A turma matutina era uma turma mais madura e participava melhor das aulas, fazendo
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inferências positivas e comentários relevantes, porém não apresentaram bons resultados quanto à entrega dos trabalhos. Quanto ao processo avaliativo, os alunos foram avaliados de acordo com a realização das atividades propostas, continuadamente e tiveram notas somatórias de atividades em classe, para casa, em grupo e uma prova escrita. Também, avaliou-se o funcionamento e a condução do tema proposto, bem como as atividades elaboradas. Apoiando-se no PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) quando menciona que “a função da avaliação é alimentar, sustentar e orientar a ação pedagógica e não apenas constatar um certo nível do aluno” (p. 79). E que a avaliação também precisa estar coerente com o foco do ensino e não se destinar apenas aos alunos, ou seja, o professor precisa manter uma prática reflexiva e avaliar o seu próprio trabalho, bem como o funcionamento e a relevância da sua proposta. A cada aula era necessário esclarecer aos alunos de que forma eles seriam avaliados e essa tornou-se uma preocupação constante – visto que a instituição escolar exige que uma nota seja atribuída ao aluno pela realização de atividades concretas –, pois constatou-se uma falta de interesse e descaso grande com as atividades de inglês. Grande parte dos alunos, em ambas turmas, não entregavam os trabalhos e na turma matutina, constava nitidamente, a presença de respostas plagiadas da internet. Em um dos trabalhos foram entregues 4 (quatro) idênticos, inclusive a fonte do texto, o que os anulava completamente, considerando que as questões eram de cunho pessoal. Nesses casos específicos os alunos foram chamados pessoalmente e explicados quanto à gravidade do plágio. Haviam palavras em suas respostas que eles sequer conheciam e ficavam desapontados quando perguntados sobre seus significados. Na turma matutina, especificamente, foram necessários que ao final da unidade as atividades avaliativas somassem 12 (doze) pontos, ao contrário, os alunos não atingiriam a média (5,0) exigida pela escola. Ainda assim, poucos alcançaram a nota mínina. Na aula de poesia, primeiramente, os alunos participaram definindo o que eles entendiam sobre o gênero e logo após trabalhamos suas características e estruturas, utilizando exemplos do livro didático para ilustrar. Como produto final, os alunos deveriam se dividir em grupos e montar um poema (A child’s thought) que haviam recebido embaralhado (com os versus cortado em tirinhas). A proposta não era fazer com que os aprendizes montassem o texto tal como é, mas que conseguissem montá-lo de modo a significá-lo. Eles utilizaram dicionários físicos e online para traduzir e o montaram numa folha de papel ofício, construindo assim, cada grupo, o seu próprio
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poema, visto que eles não conheciam a ordem para a versão original. A relevância da atividade foi conspícua, pois, de modo geral, todos os alunos se empenharam e puderam trabalhar e desenvolver a proposta com autonomia. 4. Considerações finais Ficou nítido o não uso da literatura nas aulas de língua inglesa nas turmas observadas, embora não se compreenda exatamente os motivos, considerando que os dois professores possuem Licenciatura em Letras e Literaturas com habilitação em Língua Inglesa e reconhecem a importância desta área de conhecimento para o ensinoaprendizado da língua. Pode-se justificar esta ausência pelas crenças e desafios que ser professor de língua apresenta, pois, apesar de alguns considerarem relevante o uso de literatura na aula de inglês, sentem-se inseguros em aplicá-los, além de grande parte não conhecerem, de fato, o conceito deste tipo textual. Acreditam que os textos literários apresentam uma linguagem difícil para a compreensão dos alunos, que, em geral, sentem-se desmotivados – isto se comprova na fala de um dos alunos observados: “Eu não vou fazer a atividade porque eu não quero passar de ano” – e ainda, que o tempo é curto para utilizar este tipo de recurso. Uma entrevista realizada com professores de uma escola pública por Ibrahim Alisson Yamakawa (UEM), em Maringá – PR confirma que os mitos podem prejudicar no processo de ensino, visto que muitos desses professores entrevistados não utilizam a literatura nas aulas de língua inglesa, pois consideraram que “o texto literário exige do professor
muito
conhecimento
sobre
a
cultura
apresentada
e/ou
formação
especializada”; e outros que “o texto literário é impossível de ser levado à sala de aula por conta do tempo”. De fato, são apenas duas aulas de inglês semanais nas escolas públicas brasileiras e no caso da Escola Padre Alfredo Haasler, estas ainda aconteciam em dias alternados. Muitas dessas crenças levam os professores de língua inglesa a não utilizarem a literatura, e embora isto não comprometa no ensino-aprendizado, perde-se a oportunidade de contextualização e de promover ao aluno conhecimento de mundo, senso crítico e sua interação com outras culturas, hábitos e costumes de povos que falam a língua que se pretende ensinar, como propõe Colasante (2005) (vide item 2). Os desafios e dificuldades em trabalhar com língua inglesa nas escolas públicas são inegáveis. No entanto, inovar, experimentar e ousar se tornam indispensáveis para
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que o ensino dessa língua faça sentido para o aprendiz. Se essa disciplina é vista com indiferença, é necessário buscar mecanismos que possibilitem a esse aluno o despertar pelo gosto de conhecer e dominar uma língua global, ainda que minimamente. Expô-lo à estruturas gramaticais e conteúdos apresentados pelos materiais didáticos não é o bastante para trabalhar o ensino de língua de modo eficiente. Ao contrário, os professores de inglês não ouviriam tantas perguntas do tipo: “Pra que serve essa aula?”, “Que diferença isso faz na minha vida?”. E/ou afirmações como: “Eu odeio inglês”, “Inglês é chato”, “Eu não entendo nada”. A literatura é um dos meios de fazer com que a aula de língua inglesa faça algum sentido, não apenas para os aprendizes, mas também para o professor que pode explorar as múltiplas possibilidades desta área. Vários recursos e adaptações das obras podem ser utilizadas e a partir delas pode-se trabalhar diversos temas ligados à vida dos sujeitos em questão – isto é transdiciplinaridade –, sem ter que necessariamente ficar ensinando o mesmo conteúdo gramatical no quadro, que nunca é aprendido. Levar o texto literário vai possibilitar ao aluno o contato com a língua de modo contextualizado, senso assim, as questões estruturais farão mais sentido, sem que elas sejam o foco. Os filmes, vídeos e músicas, além de chamar mais atenção dos alunos, permitem também, as atividades de listenning (habilidade significativa para o domínio de língua). Isso não significa dizer que os resultados serão sempre positivos, mas em algum momento os alunos perceberão que aquilo se relaciona com o seu dia-a-dia. Os resultados obtidos no estágio de regência refletiram muito negativamente nas notas dos alunos. Contudo, a sua participação em sala, comentários, inferências e conexões foram bastante positivos, numas aulas mais, noutras menos. Como mencionado no que diz respeito à avaliação, o objetivo não era constatar o nível do aluno, embora essa seja uma exigência da instituição escolar, mas avaliar como a proposta impactaria nas aulas, como ela se diferenciaria. Nunca é fácil trabalhar com língua inglesa em sala, independente dos recursos utilizados, ainda é uma tarefa difícil e lenta. É preciso investigar mais a fundo a falta de interesse e comprometimento desses alunos, mas a relevância se faz justamente na experiência de descobrir que a literatura pode sim ser levada para as aulas e que isso reflete no modo como os aprendizes participam, sugerem e constroem seu conhecimento.
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5. Referências BROWN, H. Douglas. Principles of Language Learning and Teaching. 5thed, 1941. COSTA, Marta Morais da. Sempreviva, a leitura. Curitiba: Aymará, 2009. KRAMSCH, Claire. Language and culture. Oxford University Press, 1998. LARSEN-FREEMAN, Diane. Techniques and principles in language teaching. Second edition. Oxford University Press, 2000. LASARO, Flavia Aparecida. LOPES, Gabriele. TONIZER, Maria Elvira. COLOSANTE, Renata. O ensino da literatura em aulas de língua inglesa: desafios e vantagens. UNIMEP. Disponível em: Acesso em: 19 de abril de 2013. LUCKESI, Cipriano C. A avaliação da aprendizagem escolar. 15ª edição. SP, 2003. PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira / Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998. YAMAKAWA, Ibrahim Alisson & SANTOS, Célia Regina dos. A literatura em aulas de língua inglesa: expectativas, mitos e contratempos. UEM. Disponível em: http://anais2012.cielli.com.br/pdf_trabalhos/399_arq_1.pdf. Acesso em: 09 de junho de 2013.
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SEMÂNTICA DE FRAMES E SUA CONTRIBUIÇÃO NA ANÁLISE DA AUTOIMAGEM DO ALUNO DE LÍNGUA PORTUGUESA Luciene Fernandes Loures ( PPG Linguística/UFJF) Ágata Jéssica Avelar de Oliveira (Bolsista BIC/UFJF) Thalita de Almeida Bessa (Bolsista BIC/ UFJF) Neusa Salim Miranda (orientadora- UFJF/PPGLinguística/FAPEMIG)
Palavras-chave: Autoimagem do aluno, Língua Portuguesa, Semântica de Frames. Este trabalho propõe-se a apresentar os resultados obtidos pelos estudos de Loures (2013), que estão vinculados ao macroprojeto Ensino de Língua Portuguesa: da formação docente à sala de aula” (FAPEMIG - CHE-APQ-01864-12), integrado à linha de pesquisa Linguística e Ensino de Língua do Programa de Pós Graduação da UFJF, e ao grupo de pesquisa Framenet Brasil, em sua linha de pesquisa Frames e Cidadania. Este macroprojeto vem buscando, por meio de estudos de caso, respostas para a nomeada “crise da sala de aula”, configurada pelo alto índice de desinteresse e fracasso de seus alunos e de adoecimento e igual desinteresse por parte dos professores 1 (MIRANDA, 2007 ; LIMA, 2009; BERNARDO, 2011). Nessa direção, investigam-se (i) os indicadores das práticas pedagógicas de sucesso e fracasso no Ensino de Língua Portuguesa, buscando equacionar a relação entre Clima Escolar e (ii) o processo de profissionalização de docentes de Língua Portuguesa. Para tanto, recorta m-se, como objeto investigativo, os discursos discentes e docentes sobre as experiências vividas nestas cenas educacionais. O trabalho dissertativo de Loures (2013) tem como objetivo retratar a imagem que os alunos constroem sobre si mesmos a partir de suas vivências positivas e negativas nas aulas de Língua Portuguesa. Trata-se de um estudo de caso de caráter híbrido – linguístico e educacional, desenvolvido em sete escolas da rede estadual de ensino da cidade de Juiz de Fora – MG (LOURES, 2013). Como instrumento investigativo foram utilizados 188 relatos escritos de alunos do nono ano do ensino fundamental e do segundo ano do ensino médio, de sete escolas da rede Estadua l de Ensino da cidade. Os procedimentos de análise linguísticos são, fundamentalmente, semânticos e baseiam-se no aporte teórico da Linguística Cognitiva (LAKOFF, 1987, 1
Tal crise foi amplamente delineada pelo macroprojeto Práticas de Oralidade e Cidadania desenvolvido pelo mesmo GP e que deu origem ao macroprojeto Ensino de Língua Portuguesa: da formação docente à sala de aula” em foco neste trabalho.
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1989, 1980, 1999; LAKOFF e JOHNSON, 1999, 2002; FILLMORE, 1982, 1987) e, em especial, da Semântica de Frames (FILMORE, 1982) e do projeto lexicográfico FrameNet (www.framenet.icsi.berkeley.edu). A Semântica de Frames, um dos modelos teóricos mais relevantes da Linguística Cognitiva, propõe uma maneira particular de estudar os significados das palavras. É herdeira da tradição de uma semântica empírica, isto é, de uma semântica que enfatiza a vinculação entre língua e experiência. Segundo Fillmore (1982), as palavras representam a categorização de nossas experiências, de modo que cada categoria se realiza por uma motivação situacional fundamentada em nossos conhecimentos enciclopédicos ou em nossas experiências prévias. Em suas palavras, “Particularmente, pensou-se que cada caso de frame seria uma ‘cena abstrata’, uma ‘situação’ abstrata; assim, para entender a estrutura semântica de um verbo, é preciso entender as propriedades de cada cena esquematizada” (FILLMORE, 1982: 112). Conclui- se daí que, além de os significados serem relativizados às cenas, subjazem às regras gramaticais e sintáticas certas motivações situacionais para que algumas formas linguísticas sejam escolhidas em detrimento de outras. Partindo da categoria analítica central, o frame, que define, de um modo geral, um cenário
2
, promoveu-se a análise da autoimagem discente, seguindo-se os
procedimentos analíticos que vêm sendo desenvolvidos pelo conjunto de estudos de caso do macroprojeto acima referido (MIRANDA, 2013) e que implicam uma análise do discurso, de caráter reconhecidamente inédito, baseada na Semântica de Frames e segundo os procedimentos descritos da Framenet. Tais procedimentos envolvem a identificação de Unidades Lexicais (ULs) no discurso; os frames, com seus elementos (Elementos de Frames –EFs) evocados pelas ULs e, a constituição de redes semânticas hierárquicas de frames. Em seguida, e dada a natureza híbrida deste estudo, procedeu-se à interpretação dos resultados semânticos à luz de uma moldura teórica multidisciplinar (BAUMAN, 2001, 2005, 2007, 2008, 2011; FAUCONNIER e TURNER, 2002; TOMASELLO, 2003; GNERRE, 1985, 1991; BOURDIEU, 1983; OLIVEIRA, 2000 e MIRANDA, 2005, 2012, dentre outros). Os procedimentos metodológicos adotados neste estudo de caso definem-se pelo caráter misto – quantitativo e qualitativo (TASHAKKORI e TEDDLIE ,1998). O uso da frequência (frequência de types e tokens) neste estudo se sustenta a partir dos 2
O termo “frame” é definido como uma estrutura conceptual complexa, organizada de tal modo que, para compreender uma de suas partes, é imprescindível o conhecimento do todo.
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fundamentos dos Modelos de Linguagem baseados no Uso (GOLDBERG, 2006) que afirmam o caráter central da reiteração dos usos na arquitetura de nossos sistemas conceptuais, de nosso léxico e gramática. Outro aporte metodológico usado é narrativa
de
experiência
como
forma
de
construção
da
base
de
a
dados
(THORNBORROW e COATES (2005), REGO (2003) e FABRÍCIO E BASTOS (2009). De acordo com Thornborrow e Coates (2005), o ato de narrar representa uma capacidade fundamental da cognição humana e, ainda segundo os autores, algo crucial para nossa sobrevivência. Dessa maneira, tem-se, como principal papel da narrativa, contar quem realmente somos, sendo estas categorias centrais à construção de nossa identidade social e cultural. Segundo Labov e Waletsky (1967, apud FABRÍCIO e BASTOS 2009), autores que, de maneira pioneira, criaram um método de análise de narrações orais de experiências pessoais, o processo de contar uma história deve partir de um motivo, ou seja, de algo que motiva o narrador a compartilhar sua experiência. Segundo Rego (2003) as narrativas sobre si mesmo podem expressar um conjunto de significados que foram construídos culturalmente pelo sujeito. Por conseguinte, identificamos traços históricos e culturais internalizados de uma determinada época ou sociedade. Sendo assim, tal aporte teórico é de suma importância para entendermos a imagem que o aluno de Língua Portuguesa tece a respeito de si neste papel social que assume. A análise de dados foi feita através da descrição de uma rede de quatro superframes
evocados
Autoavaliação_Desempenho
pelo
discurso
Escolar,
discente:
Foco_no_Experienciador,
Autoavaliação_Comportamento
Escolar
e
Experiência_Escolar. A interpretação dos frames de Autoavaliação permitiu- nos observar uma identidade escolar profundamente negativa, marcada pelo sentimento de dificuldade, de incapacidade, de tentativa e fracasso e de um decorr ente afastamento e mesmo rejeição (60,5% - ULs como não gosto, detesto, odeio, não sou chegado) em relação à disciplina de Língua Portuguesa. Mitos e preconceitos acerca dos usos da língua sustentam tal imagem. Além disso, os discentes não reconhecem a língua como marca positiva de uma identidade cultural. Apesar de todo o desinteresse e rejeição, os alunos têm consciência de que seus comportamentos negativos (hostilidade) não favorecem seu aprendizado. Por outro lado, o destaque dado a experiências positivas (86,5% das cenas de Experiência_Escolar) lança luz sobre o caminho desejado para as práticas de Ensino de Língua Portuguesa e demarca a grande rejeição ao papel de meros expectadores que, via de regra, os alunos ocupam no processo de ensino-aprendizagem.
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Os discentes anseiam por uma renovação das práticas vigentes e desejam, cada vez mais, um maior protagonismo no ambiente de aprendizagem. Além dos resultados analíticos apresentados, este estudo, assim como os demais estudos de caso que integram o macroprojeto “Ensino de Língua Portuguesa: da formação docente à sala de aula”, apresenta um resultado distinto e relevante que consiste na integração dos alunos de graduação, bolsistas de Iniciação Científica, em sua agenda de trabalho. Daí, a coautoria de Bessa e Oliveira neste estudo.
Referências: BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno - tradução Vera Pereira Rio deJaneiro: Zahar, 2011 BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi/ trad.Carlos Alberto Medeiros - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. BAUMAN, Zygmunt. Los retos de La educación em lamodernidad líquida. Barcelona: Gedisa, 2005. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2001. BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. - tradução Carlos Alberto Medeiros- Rio de Janeiro: Zahar, 2007. BERNARDO, F.C. Vida escolar - o mapa da crise sob a perspectiva discente. 138f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Programa de Pós-Graduação em Linguística Faculdade de Letras, Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2011 BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas linguísticas IN: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983 FAUCONNIER, G.; TURNER, M. The way we think : conceptual blending and the mind's hidden complexities. Nova York: Basic Books, 2002.
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FILLMORE, C. J. Frame semantics. In: The linguistic society of Korea. Linguistics in the morning calm. Korea: Hanshin Publishing Company, 1982. GNERRE, Maurizio. Linguagem, escrita e poder. 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1998. LAKOFF, George. Philosophy in the flesh : the embodied mind and its challenge to western thought. New York: Basic Books, 1999 LAKOFF, George. Women, Fire, and Dangerous Things.The University of Chicago Press.1987 LAKOFF, George; JOHNSON, Mark.Metaphorsweliveby. ed. revista e acrescentada de pósfacio. Chicago, Londres: The Universityof Chicago Press, 2003 [1980]. LIMA, F.R.O. A perspectiva discente do frame aula. 2009, 144 f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Programa de Pós-Graduação em Linguística - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2009. LOURES, L. F. A autoimagem do aluno de Língua Portuguesa à luz da Semântica de Frames. 2013, v. 1. Mestrado. Faculdade de Letras - Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora. MIRANDA, N. S. Educação da oralidade ou Cala a boca não morreu. Revista da ANPOLL, IEL/UNICAMP-CAMPINAS, v. 18, p. 159-182, 2005 MIRANDA, N. S. Projeto Práticas de Oralidade e Cidadania-3 - 3ª etapa. EDITAL UNIVERSAL - FAPEMIG /2011 OLIVEIRA, Gilvan. Brasileiro fala português: monolingüismo e preconceito lingüístico. IN: REGO, Teresa Cristina. Memórias de escola: Cultura escolar e constituição de singularidades. Petrópolis, RJ: Vozes. 2003 SILVA, Fábio e MOURA, Heronides (org). O direito à fala: a questão do preconceito lingüístico. Florianópolis: Insular, 2000 (p. 83-92) TOMASELLO, Michael. Origens Culturais da Aquisição do Conhecimento Humano. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
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LÍNGUAS EM CONTATO Nilse Dockhorn Hitz (UNIOESTE) Resumo: A pesquisa Línguas em Contato no Contexto Sociolinguístico de Nova Santa Rosa é de caráter etnográfico interacionista com base nos princípios da sociolinguística com o intuito de fazer um estudo da situação de Línguas em Contato, Alemão/Português no município de Nova Santa Rosa – PR. O corpus é composto de narrativas de cinco adolescentes selecionados de um questionário prévio para identificar falantes da Língua Alemã (LA). Segundo Heye (1986), a situação de línguas em contato originou o Brasildeutsch, uma variedade “B” “B”, que tem como superposta a variedade “A” o alemão padrão da Alemanha. Para o autor o Brasildeutsch é uma variedade composta de elementos do português e de vários dialetos alemães (pomerano e outras formas de platt) que se formou através de vários processos de mistura e nivelamento desses dialetos. No falar da variedade Brasildeutsch os informantes são protagonistas da história, revelam suas relações com o meio e organização comunitária. A linguagem local, LA (Língua Alemã) e LP (Língua Portuguesa), de forma simbólica são o resultado de ações na organização histórica de ocupação do espaço geográfico no passado, 1950, por gaúchos e catarinenses descendentes de imigrantes alemães do século XIX. A ação da colonizadora Maripá no Oeste do Paraná em vender pequenos lotes para ocupação rápida dos vazios geográficos estimulou a agricultura familiar; organização de núcleos religiosos; de conhecidos e formação de grupos com alto grau de parentesco e antiguidade. Esta estratégia de organização econômica e social propiciou aos falantes redes de comunicação com o uso da LA e da LP na microrregião de Toledo – PR. Palavras - Chave: Línguas em contato. Sociolinguística. Rede de comunicação. Abstract: Languages in Contact sociolinguistic research in the Context of New Santa Rosa is interactions ethnographic based on the principles of sociolinguistics in order to
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make a study of the situation of Languages in Contact, German / Portuguese in Nova Santa Rosa - PR. The corpus consists of selected narratives of five teenagers from a previous survey to identify speakers for the German Language (LA). According to Heye (1986), the situation of languages in contact originated the Brasildeutsch, a variety "B", which is superimposed the range "A" standard Deutsch. To the author Brasildeutsch is composed of a variety of Portuguese and elements of several Deutsch dialects (Pomeranian and other forms of Platt) who graduated through various processes of mixing and leveling of these dialects. In speaking of the variety Brasildeusch informants are protagonists of the story, reveal their relationships with the environment and community organization. The local language, Deutsch and Portuguese, in symbolic form are the result of actions in the historical organization of geographical space occupation in the past, 1950, Santa Catarina and Rio Grande do Sul by descendants of German immigrants in the nineteenth century. The action of colonizing Maripá in western Paraná sell in small lots for rapid occupation of geographic empty encouraged the family farm; organization of religious centers; known and formation of groups with a high degree of kinship and seniority. This strategy of economic and social organization led to the speaker communication networks with the use of LA and LP in the micro region of Toledo - PR. Key-Words: Languages in Contact. Sociolinguistics. Communication networks Introdução Este é um recorte da pesquisa de línguas em contato no contexto sociolinguísico de Nova Santa Rosa – PR. O município localiza-se na microrregião de Toledo, região do Oeste do estado que tem um número expressivo de municípios colonizados por descentes de imigrantes alemães que vieram para esta localidade a partir de 1950 de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Com base na sociolingüística descrevemos o contexto sociolinguístico santarosense a partir de relatos de cinco informantes adolescentes, pais e avós, obedecendo à lei das três gerações, ou geracional.
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A ocupação da região por grupos étnicos homogêneos e o uso de duas línguas, a LP, Língua Nacional e LA, Língua Materna, não coincidem por se tratar de línguas materialmente diferentes, por outro lado elas não coincidem também porque têm estatutos, lugares e funcionamento diferentes, ambas fazem parte da memória discursiva dos falantes. O precursor dos estudos de línguas em contato e bilinguísmo foi Uriel Weinreich (1953), para o autor, duas ou mais línguas estão em contato e são usadas alternadamente pelas mesmas pessoas, caracterizando um falante bilíngue. O contexto sociolinguísto de línguas em contato é confirmado nas narrativas de dos cinco adolescentes na variedade Brasildeutsch (LA), sua manutenção está acoplada ao uso da LP, pois se entende que a LA não teria força para manter-se durante séculos longe de território de origem. Mas no ato de falar o falante se encontra com seu grupo, se descobre como pessoa e constrói sua identidade linguística de pares. Natureza dinâmica da língua A língua não permanece a mesma porque está associada de forma permanente à dinamicidade das relações históricas e sociais do homem, tem caráter funcional está à serviço do falante.
O falante faz uso de estratégias comunicativas nos diferentes
eventos de uso, portanto, a língua não tem finalidade em si mesma, não é um sistema abstrato, um construto, mas está a serviço de infinitas situações e intenções comunicativas das pessoas. Para a sociolinguístia o objeto de estudo é a língua falada, o vernáculo, observada, descrita e analisada em seu contexto social, em situações reais de uso. O ponto de partida de estudo da língua é a comunidade linguística. Por comunidade linguística se entende: grupos de pessoas que interagem verbalmente e que compartilham um conjunto de normas linguísticas (FISHIMAN, 1968). Não são falantes que se assemelham no modo de fala, mas que seguem um conjunto de redes comunicativas diversas que orientam o comportamento verbal, por um mesmo conjunto de regras partilhadas.
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O estudo de uma comunidade linguística, impreterivelmente, confirma a existência da diversidade ou variação linguística, ou seja, apresenta diferentes modos de falar, um repertório linguístico e variedades linguísticas, mas neste estudo não é possível se ater as variedades linguísticas da comunidade santa-rosense, o foco é fazer um estudo do contexto de línguas em contato: LA e LP e transcrever a fala da LA dos informantes para situar a discursividade dos falantes bilíngues desta comunidade. Contexto social da comunidade A vida social de Nova Santa Rosa se assemelha, em alguns aspectos, à descrição do povoado industrial descrito por Norbert Elias e John Scotson (2000) que se subdividia em um grupo que se autopercebia e se reconhecia como uma boa sociedade, ou seja, os established, e o outro, o grupo que não era membro dessa boa sociedade, os outsiders. Os descendentes de alemães, e alguns italianos, têm uma boa estabilidade econômica e social caracterizando o grupo majoritário, são os established. Enquanto que os descendentes de outras etnias formam a minoria, estes são migrantes vindos do norte do Paraná, Santa Catarina e São Paulo, os outsiders. Os outsiders, geralmente, são trabalhadores urbanos, funcionários públicos, pedreiros, diaristas rurais, empregadas domésticas e funcionários da indústria. O grupo minoritário também declara que gostar de morar nesta localidade, sentem-se orgulhosos quando são requisitados para algum trabalho, fazem questão de serem reconhecidos pelos seus dons serviçais, eles têm entre si um alto grau de solidariedade, já os mais jovens não se “ligam” muito nas relações de antiguidade, preferem estar de bem com o seu grupo de amigos, isso lhes basta. No entanto, uma moradora, mãe de onze filhos, do grupo minoritário, ou seja, dos outsiders, diz que os jovens têm encontrado dificuldade em mudar suas relações com o trabalho, pois os moradores mais antigos que fazem os trabalhos mais pesados têm filhos que querem mudar sua perspectiva de trabalho então se deparam com o obstáculo da língua alemã, segundo ela: ... “Não é aceito na loja agora que ta aparecendo... mais pode olha aí em loja eles só pegam se fala alemão isso ali eu acho assim É TRISTE.” 1 2
Metodologia 1 2
As transcrições são realizadas de acordo com o Projeto NURC/SP, Pretti (1999) Entrevista realizada em 10/06/2003.
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Pesquisa com base teórica na sociolinguística, de cunho etnográfico e interacionista.
O corpus é formado de entrevistas narrativas baseado em Bauer e
Gaskell (2002). Inicialmente, foi aplicado um questionário dirigido, adaptado de Damke (1997) a alunos do Ensino Fundamental e Médio do Colégio Estadual Marechal Gaspar Dutra para identificar os falantes bilíngues, dos 349 questionários aplicados, em 320 constatou-se a presença de falantes em LA na família. O questionário obteve informações consideradas relevantes para a pesquisa de línguas em contato, como: endereço (zona rural ou urbana); relação de vizinhança; há quanto tempo moravam neste endereço, de quem haviam adquirido a propriedade rural, ou residência, de onde tinham vindo os antepassados, círculo de parentesco e a qual comunidade religiosa pertencia. Pelos questionários respondidos se constatou um número elevado de alunos que poderiam fornecer os dados, mas outro requisito limitou bastante a escolha dos informantes: ser falante de LA; ter nascido em Nova Santa Rosa; morar com os pais; ter avós e ter o consentimento da família para ser entrevistado. Também foi critério de seleção a religião, o informante devia pertencer a qualquer uma dessas comunidades religiosas, porque estas mantinham cultos em LA: Igreja de Confissão Luterana no Brasil; Comunidade Evangélica Congregacional; Primeira Igreja Batista, Igreja Batista Independente e Comunidade Evangélica Luterana São Mateus. Estas comunidades religiosas, devido à ascendência étnica de seus membros, têm atividades litúrgicas como cultos e cantos em língua alemã. Isso leva a concluir que, se há celebrações religiosas em LA é porque os paroquianos, ou membros das comunidades falam a LA, além disso, a instituição religiosa não se mantém sozinha, mas através da atividade discursiva de seus membros, são as falas dos membros que dão significado para que a instituição religiosa mantenha uma evangelização bilíngue. Com base na observação participante e análise das narrativas de cincos informantes, descreve-se a socialização e atuação dos falantes bilíngues desta comunidade que pela rede de comunicação entre parentes e conhecidos mantém o contexto de bilinguismo.
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A entrevista narrativa dos cinco informantes relata as experiências vividas em uma sequência, revelam acontecimentos da vida individual e social. As narrativas são ricas colocações indexadas, se referem à experiência pessoal e tendem a ser detalhadas com um enfoque nos acontecimentos e ações. As vozes dos falantes mostram o contexto étnico, as estratégias de manutenção deste contexto bilíngue da região e expõe a subjetividade dos falantes, suas crenças e atitudes em relação à bilingualidade (atuação do falante bilíngue). A dignidade e os direitos dos informantes foram assegurados, portanto como pesquisador foi necessário garantir total confiabilidade, no sentido de assegurar que as informações coletadas sobre eles sejam utilizadas somente de modo que impossibilite sua identificação, foram denominados como: AU17; AB14; JS11; KZ11 e JZ14. Narrativas em língua materna A família de AU17 mora na zona urbana, pai é funcionário público e a mãe é doméstica. O informante tem uma atitude positiva em relação à língua ensinada pela família, a avó relatou que “Wia hamma e dacht wir wen na miti ha Deustch sprechen und Brasilianisch kendoch na her lern...” 3. Para o pai: “Die müssem Deutsche lernen” 4 Os enunciados da avó e do pai confirmam o processo da primeira socialização. O informante AU17 relata um pequeno acontecimento para demonstrar sua habilidade linguística: “ Ich hot so fünf Jahr wia ham in die Kolonie e woht und es a mal fria uns a Ochs auseressen und:: den sind Wie allle hinta e gansuchen… und eina nach Jede Said … du geh nach da… geh nach hier… und ich so ein klaiana muhl…”5
Fatores sociais, culturais foram socializados pela família do informante, que também no passado passou por este processo, em rede de comunicação mais restrita, fechada. 3
Nós achamos que devíamos falar em alemão com ele e brasileiro eles podem aprender depois... Eles precisam aprender alemão. 5 “Eu tinha cinco anos morava na colônia e naquele tempo fugiu nosso boi e… então todos fomos atrás procurar... um para cada lado... você vai pra lá... vai por aqui... e eu um pequeno asno…” 4
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No primeiro relato do informante AB14, pode-se perceber que a fala parecia mais truncada, mas o ato enunciativo o reconduz ao passado que transcorreu na língua alemã. É um reviver através da narração, as relações de trabalho rural estão citadas: “Hat die mae emilcht.” 6. e “we auch runtafah nah opa” 7·, são falas que indicam a vivência familiar, práticas cotidianas de trabalho. Na narrativa do informante aparece o contexto de vizinhança da família, situação que resultou num contexto familiar coeso, propício para a continuidade da prática discursiva bilíngue. Isto fica evidente fala da mãe: “Outro dia na OASE8 fui apresentá meus parentes daí fui falando essa é minha prima... Essa é cunhada. Essa é tia e assim foi... Ela (a pastora) riu disse que vocês são todos parentes... Sobraram umas seis pessoas que não eram parentes” O depoimento da mãe revela o contexto étnico nova-santa-rosense organizado no passado pela Colonizadora Maripá que demarcou as terras em pequenos lotes, a pequena propriedade9, ao vendê-los motivou os compradores pela organização de vizinhança, parentesco, etnia e credo religioso. A informante JS11 apresenta uma rede familiar fechada, moram no mesmo pátio os avós maternos e o irmão recém-casado, todos se comunicam em LA, inclusive a nora que tinha praticamente deixado de falar, retomou a língua devido ao contato com os sogros e avós. Quando se agendou a entrevista com a família, se questionou o informante de como ele iria dizer para a mãe que a professora pretendia visitá-los naquela tarde: “Ich sage de Mama das die Lehren kommt bei us hait”.10 Segundo o avô: “Die müssem Daitsch lern... die derfen di Muttersprach nich verlen.” 11 O mesmo afirma a mãe do informante quando perguntado se a neta que acaba de nascer falaria também a língua alemã, ela prontamente diz: “Die mus!” 12 6 7 8 9
A mãe tirou leite,
... íamos até lá embaixo na casa do avô…
Senhoras da Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas.
A pequena propriedade rural, em torno de 15 a 25 hectares, é mantedora de práticas camponesas de economia, cultura, religião, reproduz uma conduta pré-estabelecida de vizinhança, de grupo de origem, de trabalho e solidariedade. 10 Vou dizer que a professora vem aqui em casa hoje. 11 Eles precisam aprender a língua alemã... a língua materna não deve ser esquecida...
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Informante KA11 mora na zona urbana, rede uniplex, menos densa, o fator de bilinguismo é a proximidade com os avós paternos. Quando narra “Ich wa a mal espielem den hat rum bocken un do fenn mal bin ich hanefang imma mehr rum bocken... undo fein ma bin ich ause rutsch und caí de boca no chão...” 13 Para Weinrich (1953) a alternância de código é a prova de que há um contexto de línguas em contato. O falante demonstra habilidade linguística quando consegue produzir sentido ao alternar o código, realiza uma ação bilíngue coordenada. O informante JZ14, morador da zona rural, membro da Igreja Batista Independente, de tradição agrária, mora na propriedade herdada do avô. Através de fotos mostra a herança étnica, organização familiar, eventos de casamento com parentes e convidados, diz: “Der Onkel ((aponta na foto)) tu so ... er will a bessel Brasillianisch sprechen... so ... aber sprecht so a bessel zaram Deutsch mit Brasilianisch ... alles so was kommt so ganz verdreht und denn fang an zu lachen... de Problen… ”14
As imagens revelam uma família grande, com avós, tios e primos que falam duas línguas, a materna herdada dos ancestrais que permeia as relações familiares e a portuguesa, oficial, ocupada nas atividades sociais. O pai comenta a bilingualidade dos irmãos; “ Die andere ier. Sind junger die erstehen schona ier. esse… aber so wie der hier. (aponta na foto)… uns der iriei prechem nich ritischt portuguesish…”15 Com o registro dos falantes, principalmente bilíngues, tentamos, pela voz dos informantes, fazer do homem anônimo um sujeito visível. O narrar delimita o contexto, principalmente agrícola, de uso de redes multiplex. Já no contexto urbano, três dos participantes, rede uniplex, é mais aberta, o que torna a fala alemã menos intensa. Ela deve. Eu estava brincando correndo em volta comecei a correr cada vez mais de repente eu escorreguei e caí de boca no chão... 14 Este tio... ele quer falar melhor o brasileiro... então... mas ele fala um pouco de alemão com brasileiro... tudo o que vem... tudo sai meio virado e então começamos a rir... isto é um problema… problema… 15 Estes outros eles são mais jovens e entendem melhor um pouco o português... mas como este aqui... e este aqui fala ruim o português... 12 13
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Considerações finais As transcrições dos informantes em LA e LP confirmam um perfil de línguas em contato nesta comunidade, são herdeiros das ações de organização agrária no passado pela Colonizadora Maripá que acentuou um grau de encontro de colonos gaúchos e catarinenses descendentes de imigrantes alemães no município de Nova santa Rosa. A manutenção da LA ocorre pela interação familiar, esta é a grande responsável pela atuação linguística bilíngue, mas deve-se considerar que a atitude de falar em LA está respaldada pelo grupo étnico local, um sentimento compartilhado por alguns membros da comunidade, diferenciando-os dos demais falantes de LP. A língua não é neutra, traz em seu bojo nuances da vida e preferências do seu usuário, de forma subjetiva quando faz uso de uma língua em detrimento de outra se identifica com o grupo étnico, volta ao lar, ao seu heimat.16 Referências BAUER, Martin W; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes, 2002. BAZILLI, Chirley... ET al. Interacionismo Simbólico e a Teoria dos Papeis: Uma Aproximação Para a Psicologia Social. São Paulo: EDUC, 1998. BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade. Petrópolis: Vozes, 2000. BLUMER, H. Social Psychology. In: FLICK, Uwe. Introdução à Pesquisa Qualitativa. 3ed. Porto Alegre: Artmed, 2009. BORTONI, Stella Maris; GUIMARÃES, Lytton Leite. Mudança Linguística e Redes Sociais; Um Estudo Exploratório de Migrantes Rurais em Brasília. Universidade Nacional Autônoma de México, 1988. BRIGHT, William; HJELMSLEV, Louis; TRUDGILL, Peter. In MONTEIRO, José Lemos. Para Compreender Labov. 2 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. 16
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A UTILIZAÇÃO DAS TICS NA FORMAÇÃO DE FUTUROS DOCENTES Profa. Dra. Odete Burgeile (GELLSO/UNIR) Profa. Me. Renata Aparecida Ianesko (GELLSO/UNIR) Introdução Os avanços na utilização das novas tecnologias na vida moderna são notáveis, em especial, no processo de ensino aprendizagem. No caso da educação brasileira, a utilização das TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação) tem sido essencial para a educação em todos os níveis, especialmente para que haja um avanço e melhoria dos indicadores educacionais. Entretanto, os ritmos atuais de constante inovação tecnológica parecem não ser compatíveis com o contexto da educação, apesar das pressões que as instituições de ensino têm passado no sentido de se adequarem à sociedade da informação (CASTELLS, 1999). Com base nessa reflexão, nossa pesquisa objetiva investigar as concepções dos oito alunos que estão realizando o estágio curricular de Letras Inglês da Universidade Federal de Rondônia, sobre essas novas possibilidades de utilização da tecnologia em sala de aula e se eles, enquanto futuros professores, utilizam essas novas ferramentas e como tal processo ocorre. A metodologia utilizada foi a pesquisa qualitativa com aplicação de questionários semiestruturados de perguntas abertas e fechadas para os acadêmicos em questão, no primeiro semestre do ano de 2014. As hipóteses previamente aventadas são de que os alunos, apesar de utilizarem as tecnologias com frequência e domínio em casa e em dispositivos móveis como, por exemplo, celulares, muitas vezes, utilizam-nas apenas para o seu entretenimento e não como aprimoramento em seu processo de aprendizagem de línguas e, possivelmente, não estejam conscientes de que essas tecnologias podem contribuir como aliadas no processo de ensino-aprendizagem nas escolas onde os estágios foram realizados. Assim sendo, apresentamos neste artigo um breve histórico sobre o desenvolvimento das novas tecnologias com relação ao seu uso para fins educacionais para, em seguida, encaminharmos nossa análise com relação aos questionários
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aplicados, observando o perfil dos discentes para melhor compreendermos o seu contexto. Finalizamos nosso trabalho com considerações acerca dos pontos favoráveis e desfavoráveis levantados nos questionários com relação às TICs no processo de ensinoaprendizagem de Língua Inglesa. TICs: breve histórico As tecnologias (hoje denominadas "novas") datam da época da invenção da imprensa, em 1442 e, segundo R. M. Gonçalves (2010), representam um grande avanço da tecnologia humana. Pelos registros que temos atualmente, os primeiros livros utilizados por professores para o ensino de novas línguas, ou melhor, para a aprendizagem de línguas estrangeiras/adicionais, foram utilizados durante a Idade Média, o que representou um salto na evolução tecnológica para a época. A seguir surgiu o gramofone como nova tecnologia nos anos 1870 por ser capaz de reproduzir o som. No entanto, a grande inovação da tecnologia para fins educacionais foi o computador no momento em que começaram a ser colocados e instalados em muitas escolas de alguns países, nos anos de 1970. Com a disponibilização de computadores nas escolas, tivemos também a inclusão de outros equipamentos conjuntamente, que é o caso de drives externos, scanners, impressoras e máquinas fotográficas digitais que já eram conhecidas na época como "tecnologia da informação", e que tinha como objetivo, entre outros fatores, a organização de pastas e informações no ambiente escolar. Segundo J. Anderson (2010), as diversas formas de benefício a partir das novas tecnologias ocorrem pela possibilidade de criar, interpretar, capturar, armazenar, transmitir e receber informações e, por isso, essas tecnologias foram nomeadas TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação). Assim, com a utilização da internet nas escolas, essas possibilidades de troca de informações com outros computadores foram ampliadas, beneficiando e renovando a forma de ensinar e aprender dos alunos. Com a inclusão das TICs na educação surgiu, também, a necessidade dos alunos saberem utilizar essa nova ferramenta, o que segundo J. P. da Ponte (2000), o processo de apropriação de conhecimentos acerca das TICs envolve duas formas: a tecnológica e
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a pedagógica. Centramos nossa atenção à última forma porque analisaremos como elas são utilizadas hoje em dia, com maior ênfase, no ambiente escolar. As Tics na Educaçao A maioria dos alunos (7) quando perguntados se trabalham e qual a função exercida, afirmou serem professores ou funcionários públicos. Apenas um deles respondeu que trabalha em uma função diferente da sua área de estudo; uma das entrevistadas estava sem trabalho naquele momento. Os alunos pesquisados estavam divididos entre quatro do sexo masculino e quatro do sexo feminino. As idades são bastante diversificadas, variando de 22 até 44 anos de idade. Com relação à renda total da família, a metade (04) informou que recebe entre três e cinco salários mínimos ao mês; dois responderam que recebem de dois a três salários e um informou que recebe mais de um salário mínimo. Este foi o perfil apresentado pelos alunos participantes da pesquisa, o que torna possível observar que são alunos com renda baixa e que, na sua maioria, trabalha, o que impossibilita a dedicação exclusiva ao curso na universidade. Quando perguntados sobre o grau de interesse pelas TICs, todos responderam positivamente, informando que têm grande interesse. Como exemplo, citamos um trecho da entrevista realizada com o aluno 1, que inclusive cita um exemplo de como utiliza as TICs. Importantes, pois facilita bastante as tarefas do dia a dia como envio de e-mails.
Em seguida, perguntamos se fazem uso das TICs no cotidiano e quais seriam essas TICs. Todos responderam positivamente, variando apenas o tipo de dispositivo, e a maioria (06) citou nos seus exemplos o notebook e o celular; os outros citados foram data-show, internet, tabletes. Perguntamos o que os alunos entendiam como sendo Tecnologia na Educação e obtivemos a maioria das respostas (06) informando que consideram a tecnologia na educação como algo que auxilia na educação, como é o caso do aluno 4:
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É um recurso que serve para auxiliar na interação dos alunos com o conteúdo.
Com relação às aulas dos alunos no estágio, foi perguntado se eles já utilizaram o computador como apoio no processo de ensino-aprendizagem nas aulas ministradas no Estágio Curricular. A maioria dos alunos (07) respondeu que já utilizou e apenas um (01) informou que não as empregou. Para aqueles alunos que fizeram uso do computador em suas aulas, foi perguntado sobre a reação dos alunos diante da utilização da informática no processo ensino-aprendizagem e todos responderam que a reação foi positiva. Em seguida, foi perguntado se, no planejamento das aulas, os alunos costumavam inserir as TICs como apoio pedagógico e com qual frequência. Todos responderam afirmativamente e um dado muito relevante foi o fato de três (3) alunos afirmarem que dependeria da escola em que as aulas eram ministradas, pois nem sempre a escola dispunha dessas ferramentas pedagógicas, como cita o aluno 1: Sempre que a escola dispõe dessas ferramentas tecnológicas, costumo usar pois no ensino de língua inglesa acho necessário usá-las com frequência.
Entendemos com essa afirmação que os alunos, por mais que procurem utilizar as TICs em suas aulas de Estágio Curricular, sempre esbarravam na problemática da estrutura da escola em que ministravam as aulas, pois nem sempre possuíam um espaço adequado ou não possuíam ferramentas tecnológicas adequadas para a utilização das TICs nas aulas de Língua Inglesa, dificultando o uso contínuo das mesmas. Em seguida, perguntamos se os estagiários acreditavam que seus alunos aprenderiam melhor utilizando as TICs em suas aulas. Recebemos a maior parte das respostas afirmativas. No entanto, duas das respostas se referem a como o professor utiliza as TICs, ou seja, eles acreditam que os alunos podiam aprender melhor, mas isso dependeria da forma como o professor utiliza essas tecnologias. Em outra questão foi perguntado se os alunos acreditam que a utilização das TICs em sala de aula contribuía para a compreensão, socialização, autonomia e fixação do conteúdo, ou seja, se contribuiria para formar um cidadão mais crítico e criativo inserido na sociedade da informação. Todos os entrevistados afirmaram acreditar que as TICs contribuam de alguma forma, como é o caso do aluno 6:
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Sim, além de permitir ao professor se renovar, mantém a conexão entre aluno-professor, permite que o aluno tenha contato com o conteúdo de forma mais natural e aplicada ao cotidiano (considerando que este aluno possui acesso as TICs), e resulta na fixação do conteúdo, contribuindo sim para a formação crítica e criativa do aluno, possibilitando ao mesmo desvendar as ferramentas tecnológicas em busca da aprendizagem.
Dessa forma, podemos afirmar que os alunos participantes da pesquisa corroboram a proposição de P. Lévy (1999), quando diz que o aluno quando busca informação na internet, por exemplo, fica estimulado, pois pode acessar de forma nãolinear, o que possibilita novas formas de envio e recepção de mensagem além de motivar a interatividade. Em continuidade ao questionário, perguntamos como eles avaliam o uso das TICs para a prática pedagógica e em todas as respostas pudemos perceber que os alunos avaliam de forma positiva o uso das TICs para a prática escolar, como exemplo, exporemos o excerto do aluno 5: Sim. A utilização de ferramentas e materiais autênticos e atualizados põe os alunos em contato com a realidade.
Para entendermos a realidade do aluno no ambiente escolar em que ministra as aulas da disciplina de Estágio Curricular, perguntamos com que frequência eles utilizam o laboratório de informática em suas aulas do estágio. Obtivemos, desta forma, a maior parte das respostas informando que poucas vezes ou que nunca utilizaram e talvez um dos principais motivos para que isso ocorra com os alunos que realizaram estágio nas escolas esteja exemplificado na resposta do aluno 1: Poucas vezes, pois a escola dá prioridade aos professores do quadro da escola.
Assim, para pensarmos em possíveis soluções para o pouco uso de TICs na escola, perguntamos para os alunos o que deve ser feito para tornar mais presente o uso das novas tecnologias nas suas aulas de Estágio Curricular. Obtivemos respostas variadas, algumas incentivando o treinamento de professores, outras esperando maior apoio do governo para a compra de equipamentos e outros apenas sugerindo como usar as novas tecnologias em sala de aula, como é o caso do aluno 6:
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Obter mais materiais pedagógicos, além de conteúdos que se encaixem com o assunto proposto, fazendo com que haja total interação dos alunos através da presente tecnologia de hoje, por exemplo, nos celulares e etc.
Ainda com relação às aulas ministradas pelos alunos do estágio, perguntamos quais os recursos tecnológicos que eles utilizam em sala de aula. Como resposta eles citaram vários recursos, mas a maioria (7 alunos) citaram, entre outros recursos, o datashow, o que torna possível interpretar que o recurso mais utilizado ainda seja o mencionado. Quando perguntados se eles veem seus alunos utilizando recursos tecnológicos pessoais nas suas aulas de estágio curricular, e se acham que isso facilita na aprendizagem, a maioria respondeu que sim, eles veem os alunos utilizando celulares, smartphones, mas que esses equipamentos prejudicam no ensino-aprendizagem como cita o aluno 7: Sim. Percebo certa dependência dessa parte, pois, acredito não ser benéfica utilizar nos momentos da aula a não ser que seja solicitado, porque prende a atenção ao objeto e desprende da aula em ação.
Para finalizar o questionário, perguntamos se eles têm interesse em participar de uma formação em informática como apoio ao processo de ensino-aprendizagem. Obtivemos, desta maneira, a maioria das respostas positivas (7) nesse questionamento, apenas um respondeu negativamente e o motivo foi porque possui um conhecimento aceitável sobre o tema. No entanto, os que responderam positivamente consideram que precisam dessa formação, para principalmente, se atualizarem. A partir dessas respostas Moran (2007, p. 08) afirma que: a cada ano, a sensação de incongruência, de distanciamento entre a educação desejada e a real aumenta. A sociedade evolui mais do que a escola e, sem mudanças profundas, consistentes e constantes, não avançaremos rapidamente como nação.(...) A educação precisa de mudanças estruturais. A inadequação é de tal ordem que não bastam aperfeiçoamentos, ajustes, remendos.
Por isso entendemos que alguns alunos percebem essa distância entre a educação desejada e a real, pois concordamos que a educação não avança na mesma velocidade da tecnologia e isso pode prejudicar esse processo de ensino-aprendizagem. A respeito dessa tecnologia, Moran (2004) afirma que, com o advento da internet, das redes de
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comunicação em tempo real, da TV digital e do celular, surgem novas possibilidades no processo de ensino e aprendizagem, que transformam e ampliam a prática pedagógica. Assim, utilizamos o excerto do aluno 6, quando informa sua opinião e ao mesmo tempo sugere algumas alternativas quando questionado sobre a utilização por parte dos alunos de recursos como celulares em sala de aula: Sim, os alunos utilizam com frequência tablets, celulares, fones de ouvidos. Eu acredito que o uso de tais eletrônicos podem desviar a atenção do aluno, então, uma forma de reverter essa atenção para a aula seria incluir tais eletrônicos na proposta de aula, por exemplo, pedir que o aluno pesquise determinado assunto, verifique a pronúncia de determinada palavra, enfim, o professor pode mediar a busca de conhecimento e transformar o “inimigo digital” em ferramenta de ensino, somente assim facilita na aprendizagem.
Acreditamos que a maior parte dos alunos pesquisados concorda com Rodriguez Gonçalves (2002), quando afirma que com o computador surgiram novas maneiras de aprendizagem e de ensino que desafiam a aula tradicional, não para substituí-la, mas para proporcionar maneiras alternativas e complementares de ampliar as oportunidades educacionais, ou seja, o aluno que pensa em se atualizar está realmente preocupado em proporcionar maneiras que melhorem a educação de alguma forma. De acordo com Pretto (2000), as máquinas e os seres humanos têm uma relação cada vez mais íntima, o que faz com que a importância de se pensar em uma educação adequada a realidade vigente, seja refletida. Conclusão Refletimos, com o trabalho apresentado, que há o uso constante das TICs fora e dentro da sala de aula, e que conviver com essas tecnologias seja uma tarefa primordial na vida e no trabalho dos professores e não só conviver, mas saber inseri-las na realidade escolar e acadêmica dos futuros professores pesquisados, para que o conteúdo ensinado se aproxime mais do contexto do aluno e promova, dessa forma, uma educação de maior qualidade. Percebemos com as informações coletadas, que ainda existem problemas a enfrentar pelos novos professores para que incluam as TICs em suas aulas de forma satisfatória, no entanto, acreditamos que é possível uma mudança positiva em longo
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prazo. Podemos perceber isso quando os alunos entrevistados, mesmo identificando problemas nas escolas, afirmam que as TICs são aliadas (e não distratores) dos docentes em sala de aula para melhorar o processo de ensino-aprendizagem. Concordamos com Marcuschi (2004), quando afirma que provavelmente a escola não poderá passar à margem dessas inovações sob a consequência de não se situar mais na nova realidade das formas e usos linguísticos, o que tornaria o trabalho de lecionar cada vez mais desafiador. Assim, acreditamos que as TICs podem trazer benefícios para a escola e para seu papel na sociedade. E o professor tem condições de ser um fator determinante nesse processo de mudança e melhoria, sendo considerado como aquele que envolve os alunos, aprende com eles e media a aprendizagem de forma integrada. Referências ANDERSON, J. (2010). ICT Transforming Education: a Regional Guide. Bangkok: UNESCO. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/ images/0018/001892/189216e.pdf Acesso: 13 jul. 2014. BLAKE, R. J. Brave new digital classroom: technology and foreign language learning. Washington D.C.: Georgetown University Press, 2008. BLUMER, H.: Symbolic interactionism: Perspective and method. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1969.
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A RETÓRICA NA ORALIDADE FORMAL: INTERFACE ENTRE COMUNICAÇÃO SOCIAL E LINGUÍSTICA Paloma Sabata Lopes da Silva (UFPE) Introdução O estudo da oralidade é, ainda muitas vezes, adotado pela perspectiva do funcionamento da fala espontânea, o que nos fez refletir sobre a compreensão do conceito de oralidade formal e o desenvolvimento dessa linha de estudos na Linguística. De maneira geral, percebemos que a compreensão da oralidade pelos estudantes de língua e de comunicação social tem sido confundida: ora tratada na perspectiva da oralização de textos, ora como técnica de oratória. A fim de esclarecer em que consiste o estudo da oralidade em Linguística, nosso objetivo consiste em, apoiados nos conceitos da Retórica, propor uma interface entre as teorias da Linguística, da Comunicação Social e da Antropologia Linguística a fim de definir gêneros da oralidade formal para além das instruções e dicas de “Como falar em público?” ou “Como tornar sua apresentação irresistível?” sugerida em manuais de oratória. De modo específico, buscamos subsídios teóricos para estabelecer a relação entre as teorias da Linguística e da Antropologia Linguística no que tange aos fatos da oralidade e propor uma descrição da retoricidade presente na oralidade no que se refere à execução de gêneros essencialmente argumentativos, a exemplo da palestra. Para tanto, esta pesquisa constitui-se a partir um procedimento técnico bibliográfico de natureza Aplicada, ancorada na proposta de relacionar os estudos da Retórica, de Aristóteles (2005; 2011), à sua abordagem na teoria de gêneros de Miller (2006) e Bazerman (2011), às técnicas de comunicação, de Blinkstein (2003) e à etnografia e funcionamento de gênero, de Gumperz (1991; 1998) e de Goffman (1998), dentre outros. No item que segue adotamos a perspectiva da oralidade formal para situar o funcionamento da linguagem a partir das teorias lançadas por antropólogos, linguistas e comunicadores, ao passo que no item posterior inserimos a palestra como exemplo de
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investigação e funcionamento das estratégias utilizadas no planejamento e produção de textos formais. O funcionamento da linguagem: fatos da oralidade formal Os linguistas e os antropólogos têm um objetivo em comum no que se refere ao estudo da linguagem nas ações humanas, qual seja: a observação da linguagem em toda a sua complexidade, abarcando as relações entre a linguagem e a cultura, pois a linguagem deve ser concebida como parte integrante da vida social. Nesse sentido, institui-se nos estudos linguísticos a perspectiva da Antropologia Linguística, baseada no princípio estabelecido pela Antropologia cultural. A noção de cultura instaurada nessa teoria trás consigo a relação entre as práticas realizadas em determinados grupos e a ação verbal dos falantes que se inserem em comunidades distintas. Nesse sentido, Duranti (2001, p. 06) afirma que A ideia de cultura como um sistema de participação é relacionada à cultura como um sistema de práticas e é baseada na pressuposição de que qualquer ação no mundo, incluindo a comunicação verbal, tem uma qualidade inerentemente social, coletiva e partícipe.
Tomando como base a afirmativa de Duranti, podemos associá-la à participação dos interactantes envolvidos em situações de comunicação que se utilizam da oralidade formal como meio de transmitir ideias e modificar realidades. Palestrantes e conferencistas, por exemplo, revelam através da oralidade planejada seu papel inerentemente social. A linguagem formal ou espontânea mobiliza em si um conjunto de práticas que implicam não somente um sistema particular de palavras e regras gramaticais, mas também uma luta frequentemente esquecida ou escondida sobre o poder simbólico de uma maneira particular de comunicar (DURANTI, 2001, p. 06). Roman Jakobson (2011, p. 18) defende a ligação das duas ciências (Linguística e Antropologia), apontando para o fato de que “o instrumento principal da comunicação informativa é a linguagem”, e que “a língua é uma instituição social” (p.102). Assim, concordamos com o autor quando afirma que falar implica a seleção de certas entidades
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linguísticas e sua combinação em unidades linguísticas de mais alto grau de complexidade. Isto se evidencia imediatamente ao nível lexical: quem fala seleciona palavras e as combina em frases, de acordo com o sistema sintático da língua que utiliza; as frases, por sua vez, são combinadas em enunciados. Para o linguista russo, a seleção das palavras é realizada, pelo orador, a partir do repertório lexical que ele próprio e o destinatário da mensagem possuem em comum. Além de forma de ação social, a linguagem é adotada como interação e por ser dialógica, Bakhtin (1997, p. 113) propõe que “na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte.” Na perspectiva de Bakhtin (1997), a interação é tida como encontro em que os participantes, por estarem na presença imediata uns dos outros, sofrem influência recíproca, daí negociarem e construírem significados dia a dia, momento a momento. Nas palavras do autor, “a interação verbal constitui, assim, a realidade fundamental da língua” (p. 123). Nesse mesmo sentido, Gumperz (1991) afirma que o próprio processo interativo é constitutivo da realidade social e, portanto, as ações não estão predeterminadas, pois os participantes organizam o discurso de modo que permitem atribuição de significado. É por isto que, na interação, há que se considerar a criação conjunta (comunicação cooperativa) de todos os presentes no encontro, quais sejam: os participantes – quem fala para quem; os tópicos – sobre o quê; o espaço – em que lugar; o tempo – em que momento; a forma como os participantes sinalizam – os enquadres, conceituados enquanto esquemas ou estruturas que formamos para compreender as elocuções. O jogo de pressuposições linguísticas contextuais e sociais que interagem na criação das condições de produção do discurso se materializa nas convenções de contextualização conceituadas por Gumperz (1998, p. 98) como pistas de natureza sociolinguística que utilizamos para sinalizar as nossas intenções comunicativas ou para inferir as intenções conversacionais do interlocutor, que podem se apresentar através de pistas linguísticas (alternância de código, dialeto ou estilo), pistas paralinguísticas (o valor das pausas, o tempo da fala, as hesitações) e/ ou pistas prosódicas (a entonação, o
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acento, o tem); além das pistas não-vocais, como postura, gestos, direcionamento do olhar, distanciamento entre os interlocutores etc. No próximo item do texto retomaremos essas noções para pensar como elas se processam na oralidade formal no gênero palestra. Ao passo que essas pistas de contextualização são definidas enquanto traços linguísticos que contribuem para as sinalizações que conduzem a uma interpretação, podendo aparecer sob diversas formas de manifestações linguísticas dependente do repertório linguístico e da historicidade de cada participante da interação. Por outro lado, ao discutir essa complexidade das relações discursivas presentes na estrutura de produção e na estrutura de participação da interação, Goffman (1998) introduz nos estudos da linguagem a noção de footing para representar “o alinhamento, a postura, a posição, a projeção do ‘eu’ de um participante na sua relação com o outro, consigo próprio e com o discurso em construção” (p. 70). Para o autor, a mudança de footing implica, pois, uma mudança de enquadre ou alinhamento, isso ocorre devido a mudanças de posicionamentos, alterações no tom de voz, no ritmo frasal, inerentes à comunicação humana e à fala natural. Sendo assim, a língua não é apenas um fato social, mas, principalmente, constitutiva de interação verbal e produtora de significados, principalmente em situações de fala planejada e direcionada a um fim persuasivo, como é o caso da palestra. Em situação de fala por um único expositor (palestrante ou conferencista) a uma plateia, as respostas desta última aparecem, segundo Goffman (1998), por meio de “sinais de retroalimentação”, ou seja, com o papel de apreciar as observações feitas e não o de responder de forma direta. No entanto, considera-se que essas “testemunhas ao vivo são co-participantes numa mesma ocasião, suscetíveis a toda estimulação mútua que a ocasião oferece”, assim, “caso um membro da plateia tente reagir verbalmente a alguma coisa que o orador diz no meio de um discurso, este pode decidir responder e, caso saiba o que está fazendo, sustentar a realidade com a qual está comprometido” (GOFFMAN, 1998, p. 83). Essas decisões tomadas em momentos de produção da oralidade formal levamnos a considerar o posicionamento de Dell Hymes, antropólogo de formação, acerca da
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dimensão
social
do
conceito
de
competência,
denominando-a
competência
comunicativa, para tratar da necessidade do falante de entender e usar as variedades de acordo com um contexto linguístico e social específicos (cf. HYMES, 1972). Em síntese, a competência comunicativa envolve tudo que diz respeito ao uso da linguagem e outras dimensões comunicativas em contextos sociais particulares. Uma vez adquirida pelo falante, a competência comunicativa está presente em toda interação. No caso da exposição de um falante para uma audiência, a competência comunicativa apresentada deve se manifestar no tratamento formal dado tanto à linguagem verbal quanto não-verbal, como os gestos e a postura. A respeito da relação entre o sistema linguístico e o sistema comunicativo em uso, especialmente em termos de antropologia cultural, Hymes (1972) propôs quatro questões, considerando: o que é formalmente possível na comunicação (o que pode ser dito no sistema linguístico); o que é viável ao contexto (o que pode ser dito em relação aos recursos e meios de fato disponíveis na situação); o que é apropriado para ser dito (no contexto específico) e; o que é dito efetivamente pelos falantes. Ressalta Hymes, entretanto, que os quatro níveis propostos não devem ser vistos independentes um do outro, mas como esferas que se entrelaçam. Essa flexibilidade na utilização da comunicação (HYMES, 1972; GUMPERZ, 1982) é o elemento chave no sucesso do processo interacional, pois possibilita aos falantes oportunidades de uso criativo e autêntico da língua, centrando-se no significado (mensagem) ao invés da forma (própria linguagem). A retoricidade em gêneros da oralidade formal Aristóteles propôs a teoria Retórica a fim de que esta se tornasse a sustentação de argumentos de princípios e valores que se nutrem em um raciocínio crítico válido e eficaz, caracterizando-a pela relação entre ciência e arte, heurística e hermenêutica, por meio de um saber interdisciplinar. De acordo com o filósofo da linguagem, a “Retórica é, pois, uma forma de comunicação, uma ciência que se ocupa dos princípios e das técnicas de comunicação. Não de toda a comunicação, obviamente, mas daquela que tem fins persuasivos.” (ARISTÓTELES, 2005, p. 24)
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O fim persuasivo é localizado especialmente tratando-se do discurso feito em público, pois é o momento em que o argumento lógico é o elemento central na arte da persuasão. Ainda segundo Aristóteles, a comunicação persuasiva, tomada como arte do bem falar, envolve, em seu princípio, uma abordagem verdadeiramente interacional. Ainda porque para falar bem é necessário pensar bem. Mas, para que a mensagem siga seu objetivo, é preciso considerar alguns elementos relacionados, tais como: o método, o propósito, o objeto e o conteúdo ético. Além disso, a emoção e o caráter do orador são tomados também como meios para a persuasão. Desta feita, Aristóteles (2005, p. 41) mostra como os elementos de argumentação psicológica também podem ser usados como parte integrante da argumentação entimemática, ao passo que o orador controla as paixões pelo raciocínio que desenvolve com os ouvintes. No que se refere às técnicas de comunicação utilizadas em uma palestra, por exemplo, devem ser utilizados tópicos a exemplo de estratégias lógicas de argumentação, como o argumento pelo exemplo e o uso de máximas na argumentação. Além disso, estilo e composição do discurso são essenciais para que a comunicação flua adequadamente. A pronunciação do discurso deve atender a alguns cuidados com o movimento, a expressão e a modulação da voz em função da qualidade, do volume, da altura e do ritmo, a correção gramatical e a adequação da expressão ao conteúdo. É importante destacar que a retórica é utilizada tanto para produzir textos como para analisá-los. Aristóteles frisa que a persuasão acontece pela disposição dos ouvintes, quando são levados a sentir emoção por meio do discurso, quando mostramos a verdade ou o que parece a verdade: “... os juízos que emitimos variam conforme sentimos tristeza ou alegria, amor ou ódio. É desta espécie de prova e só desta que, dizíamos, se tentam ocupar os autores atuais de artes retóricas. E a ela daremos especial atenção quando falarmos das paixões.” (ARISTÓTELES, 2005, p. 97) A partir do gancho de Aristóteles (2005, p. 104), ao dizer que “a retórica não é ciência de definição de um assunto específico, mas mera faculdade de proporcionar razões para os argumentos”, as abordagens atuais tratam da retórica, em especial nas teorias linguísticas, sob a perspectiva da associação entre a arte de argumentar e a teoria de gêneros, principalmente escritos. Nesse sentido, este estudo vem contribuir para o olhar também direcionado a gêneros da oralidade formal, haja vista a sua função no
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cotidiano do comunicador e da audiência que sempre acompanha esses eventos de produção do texto oral. Nas teorias de gênero, Miller e Bazerman caracterizam-no como uma ação retórica. Miller (2006, p. 41) adota o conceito de gênero baseado na “prática retórica, nas convenções de discurso que uma sociedade estabelece como maneiras de ‘agir junto’.” Ao tomar o gênero como um “artefato cultural”, Miller enfatiza uma noção retórica de gênero mais útil, baseada nas convenções de discurso que uma sociedade estabelece como formas de “agir conjuntamente”. Para ela, “... os gêneros servem como chave para entender como participar das ações de uma comunidade.” (MILLER, 2006, p. 48). Caracterizado dessa forma, a autora afirma que essa definição tende a se concentrar mais na produção da pessoa que desenvolve a ação do que na recepção do texto. Bazerman (2011) aborda a associação entre crítica retórica e gênero, firmando o gênero como componente da construção retórica da sociedade, cuja utilidade fica perceptível nas formas de reconhecer e de compreender enunciados altamente individuais e estratégicos produzidos em formas distintivas e reconhecíveis. Nesse sentido, em texto divulgado no bate-papo acadêmico (2011) organizado por Dionísio, Miller, Bazerman e Hoffnagel, o próprio Bazeman (p. 66) diz que: “Retórica tem a ver com a compreensão refletida e estratégica dos meios de comunicação do ponto de vista dos usuários, com o fim de incrementar a habilidade de uso tanto de produtores como de receptores da linguagem.” (grifo nosso) Miller (2006, p. 67) completa, na mesma entrevista, que há duas maneiras de entender a retórica contemporânea: uma pela distinção entre retórica antiga e nova retórica, “rejeitando a ideia de que retórica é comunicação necessariamente deliberada, ou estratégica, que efetivamente apresenta propósitos ostensivos sobre as pessoas e, portanto, é entendida como manipuladora.” E passa a considerar uma nova retórica, que diz que as nossas intenções retóricas podem ser subconscientes ou até mesmo inconscientes e a comunicação pode não estar inteiramente sob nosso controle. A outra maneira trazida pela estudiosa é a de que a nova retórica, em oposição à antiga, tenta distinguir a inclusão de formas de comunicação que vão além do falante público prototípico, pois engloba a multimodalidade e a possibilidade do entendimento
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de uma comunicação simbólica, voltada para o uso deliberado, consciente ou estratégico da linguagem. Na palestra, por exemplo, essa atividade acontece quando o orador (palestrante) modela e projeta sua fala para seu público alvo, direcionado pelo uso de estratégias que antecedem a exposição e das que acontecem no momento de fala, tais como: planejamento e ensaio do texto, constituindo o domínio do conteúdo de sua fala e adotando
um
objetivo;
no
momento
da
exposição,
demonstrando
atitude,
posicionamento, conteúdo e performance de palco. Tudo isso, geralmente em função da meta de ajudar as pessoas. Vejamos alguns trechos de fala proferida por um palestrante renomado do Brasil, extraída de um vídeo postado em site de domínio público. O tema do texto é a qualidade de vida no século XXI (CURY, 2014): Trecho 1: “Muitos se dobram aos pés de reis devido a sua força... outros se curvam diante de generais devido ao seu poder... mas, nesta manhã, com muita humildade, eu quero me curvra diante de uma plateia tão sensível e inteligente como vocês ((curvandose)) obrigado pela sua presença” ((aplausos)) Trecho 2: (...) “A maioria das pessoas na atualidade vivem/vive na superfície elas não são profundas elas não sabem se interiorizar... e não estimulam as pessoas a seu redor se interiorizar... para ter qualidade de vida no século vinte e um nós temos que primeiramente aprender a fazer essa viagem interior... conhecer um pouco do que somos para estimular as pessoas que nós amamos também a conhecer o seu mundo” (...)
Nos trechos 1 e 2, essas atitudes se processam como atitudes retóricas, envolvendo acordo e desacordo, compreensões partilhadas e novidades, premissas entimemáticas e afirmações contestadas, identificação e divisão e essas forças se encontram, constituindo de uma comunidade retórica que incluía o outro (lugar de disputa, debates). O trecho 1 evidencia a característica da projeção da fala para atingir a
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simpatia da audiência, já o trecho 2, proferido a uma certa altura da exposição que durou cerca de 1 hora e 10 minutos, demonstra a atitude aconselhadora do palestrante, ao tratar de fatos do cotidiano das pessoas. As forças que são retoricamente disponibilizadas a uma comunidade são o gênero – estrutura ações partilhadas –, a metáfora – riqueza de modos de criar similaridade da diferença, extrair identificação – e a narrativa – função unificadora, construtora de comunidade (ARISTÓTELES, 2005). No sentido de que a retórica oferece poderosos recursos de estruturação para a manutenção da ordem social, da continuidade e da significância, uma palestra apresenta essas características quando, por exemplo, o orador apresenta um início marcante, produzindo uma frase de efeito para atrair a plateia a acompanhar a palestra, no decorrer do discurso convida a audiência, em alguns casos, a participar do texto, ao fazer perguntas “fáceis” e de respostas “simples” ou perguntas retóricas, provocando o riso e/ou pedindo para que a plateia repita frases impactantes, como nos trechos 3 e 4 (CURY, 2014) que seguem. Trecho 3: “A beleza está nos olhos de quem vê! Repita, por favor: A beleza está nos olhos de quem vê! ((a audiência repete)) Trecho 4: “Repitam comigo para encerrar minha conferência... levantese... abrace a pessoa ao seu lado e fale ‘você é especial... tenha um caso de amor com a sua vida!’” ((as pessoas se abraçam e repetem os dizeres))
Essas atitudes linguísticas evidenciadas nos trechos 3 e 4 acontecem a fim de ganhar o favor do público, cativá-lo pela simpatia e demonstrar domínio e confiança no conteúdo, para movimentar a apresentação e manter o interlocutor atento.
Estas
características são adotadas com base na perspectiva de que falar bem não é propriamente um dom, mas uma habilidade que se aprende a desenvolver com o conhecimento e a prática de técnicas de comunicação oral.
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Segundo Xavier (2006, p. 28), representar os anseios quotidianos da audiência manifesta-se nos recursos linguísticos utilizados pelo comunicador, pois “é fundamental saber utilizar com perspicácia e competência as vantagens práticas da harmonização entre texto e contexto nessa situação de relação interpessoal.” Por isso, é importante notarmos que há, permeando o dizer do comunicador, todo um fazer linguístico-interativo privilegiando determinados elementos-âncoras do seu discurso (repetições, marcadores conversacionais e marcas de envolvimento), que segundo Gumperz e Goffman representam a competência comunicativa do orador, a utilização de uma alinhamento adequado e a estruturação do tema. Confirmando, assim, o que Aristóteles chama de esforços nos quais a persuasão se apóia completamente em favor da prova de alegações, da obtenção do apoio de dos ouvintes e o estímulo de seus sentimentos para qualquer direção que o caso exija. Blinkstein (2006), especialista em estudos linguísticos relacionados à comunicação oral e escrita, aponta que a estrutura de comunicação é constituída por remetente – mensagem – destinatário: função decisiva para a eficácia da comunicação. É preciso que remetente e destinatários estejam atentos às suas respectivas funções, pois os ruídos externos, a exemplo de barulhos (conversas, sons externos ao ambiente, celulares tocando), falha em equipamentos, ruído mental (quando o destinatário não está atento à fala do remetente), podem deixar a comunicação vulnerável. Para o linguista, “não basta ser uma boa ideia... tem de ser uma boa mensagem!” (BLINKSTEIN, Op. Cit., p. 29), este é o princípio de uma comunicação eficiente, haja vista a mensagem ser composta por signos, unidades menores que resultam de uma associação entre um estímulo físico (a palavra falada ou escrita) e uma ideia. Para que a mensagem se complete para o destinatário, é preciso, ainda, considerar o repertório linguístico e cultural deste. Assim, o repertório tem influência direta na descodificação dos signos e da mensagem. Conforme o repertório, o mesmo signo pode ter descodificações completamente diferentes. Por isso, é preciso que alguns critérios sejam seguidos, tais como: o conhecimento do código; o conhecimento do repertório do destinatário; o conhecimento do repertório do contexto cultural ou profissional do destinatário.
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Blikstein chama a atenção para o fato de que, mesmo com o repertório elaborado adequando-se ao destinatário, a comunicação não está completa, pois o orador está exposto à observação, avaliação e julgamento de vários ouvintes. Para tanto, faz-se necessário seguir alguns passos, constituídos da fase de planejamento e ensaio, na fase que antecede ao evento e durante o evento, tais como o uso da persuasão, a fim de atrair a atenção do ouvinte e conduzi-lo à produção da resposta esperada. Considerações finais A Retórica está ligada às técnicas de comunicação estratégica, pois os comunicadores especializados do presente são retores por excelência: constroem argumentos em prol de sua causa, empresa ou missão, a fim de persuadir uma audiência, apelando para mensagens que exercem influência pelo compartilhamento de significados, apoiadas pela lógica, pelas emoções e pela credibilidade. Agir retoricamente é "apresentar razões para", através de argumentos explícitos e implícitos. A comunicação organizacional é um conjunto de atos retóricos cuja argumentação evoca o passado, justifica o presente e prepara o futuro. Nesse sentido, três conceitos de retórica são atrelados à noção de uso da oralidade formal: performance, audiência e interação. Desta feita, o estudo da oralidade de comunicadores possibilita a identificação de estratégias linguísticas e retóricas melhores aceitas pelo público-alvo (chamado de audiência) presente no evento de produção de gênero oral formal. O conceito de gênero ligado às ações retóricas que exercemos no dia-a-dia e atrelado aos estudos antropológicos, reveste-se do estudo da linguagem ocorrendo a partir da interação. Assim, quanto mais domínio possuímos da língua e quanto maior a nossa reflexão acerca das problemáticas que nos envolvem, maior será, também, nosso poder de retoricidade, pois será possível, a partir desses recursos, questionar posturas de modo a modificar condutas ou situações. Percebe-se, com a abordagem adotada neste estudo, que há uma relação intrínseca e necessária, dentro dos estudos da linguagem, entre gênero, competência comunicativa e retoricidade, haja vista a tomada de um mesmo objeto de estudo.
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A POLÊMICA EM TORNO DA DISLEXIA E SUA DIVULGAÇÃO NOS JORNAIS DE MAIOR CIRCULAÇÃO NO PAÍS
Patrícia Aparecida de Aquino (IEL/Unicamp – Projeto Fapesp: 2013/09985-0) Introdução O objetivo deste trabalho é analisar como a polêmica em torno da dislexia tem sido divulgada nos jornais impressos no Brasil. Essa análise é parte da nossa tese de doutorado sobre a polêmica em torno da dislexia, na qual propusemos a semântica global provisória1 de dois posicionamentos discursivos em confronto. Nossa análise não pretende entender se existe ou não dislexia, pois não é “a coisa” que nos interessa, mas as relações interdiscursivas estabelecidas no e pelo discurso. Partimos do pressuposto de que é necessário definir objetos sem referência ao fundo das coisas, mas relacionando-os ao conjunto de regras que permitem formá-los como objetos de um discurso e que constituem, assim, suas condições de aparecimento histórico; fazer uma história dos objetos discursivos que não os enterre na profundidade comum de um solo originário, mas que desenvolva o nexo das regularidades que regem sua dispersão. (FOUCAULT, [1969] 2008, p. 54)
Nossas análises partem da teoria proposta por Maingueneau (1984), que prediz que, no interior do interdiscurso, cada posicionamento é constituído por uma semântica global própria – constituída por semas “positivos”, aqueles reivindicados, e por semas “negativos”, os rejeitados, negados pelos seus enunciadores. Tomamos como base, conforme propõe Maingueneau (op. cit.), o conceito de “competência interdiscursiva” – um sistema de restrições que permite a um enunciador reconhecer a incompatibilidade semântica de enunciados do espaço discursivo de seu Outro e que o leva a interpretar os enunciados desse Outro nas categorias de seu próprio sistema, interpretação essa que consiste,
inevitavelmente,
em
simulacros,
em
um
“diálogo
de
surdos”
(MAINGUENEAU, 1984, p. 104). Essa semântica global ainda pode ser complementada ou revista com base nas análises posteriores do corpus, em fase final de construção.
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Antes de apresentar os resultados das análises específicas que resultaram neste trabalho, resumimos a semântica global que propusemos na tese, pois é a partir dela que as análises farão sentido. A polêmica em torno da dislexia e sua semântica global No doutorado, estamos analisando o espaço discursivo da aprendizagem da escrita – um espaço discursivo polêmico, que envolve dois posicionamentos discursivos: de um lado, o posicionamento aqui denominado de E (Educação) e, de outro, o posicionamento aqui denominado M (Medicina), em torno daquilo que alguns nomeiam “dislexia”: as dificuldades de crianças em fase de aquisição da escrita. Por um lado, há o discurso E, no qual se insere predominantemente parte dos educadores e dos linguistas, que encaram os erros como constitutivos do processo de aquisição da escrita e, por outro, o discurso M, de parte de psicopedagogos, neuropsicólogos e médicos, que veem os erros como distúrbios ou transtornos de aprendizagem. Os sujeitos de ambos os posicionamentos assumem, com frequência, que se trata de um tema polêmico e recorrem a argumentos que, em geral, dialogam não com o Outro, mas com seus simulacros – característica do diálogo dos discursos polêmicos – e que, outras vezes, desconsideram o Outro, em uma espécie de apagamento, de um não diálogo. Essa polêmica existe há mais de um século e tem sido recentemente acirrada no Brasil com o lançamento, por parte do Conselho Federal de Psicologia, de uma campanha contra o uso excessivo de medicamentos cuja finalidade seria melhorar o desempenho escolar de crianças e adolescentes, e com a tramitação do projeto de lei 7081 2010, que dispõe sobre o diagnóstico e tratamento da dislexia e do transtorno de déficit de atenção com hiperatividade na Educação Básica. Como unidade de análise, consideramos o espaço de trocas de E e M, e o corpus da nossa pesquisa é formado por textos de diferentes gêneros e suportes. A análise nos levou a propor como principal sema2 de E /Diferença/, que se opõe ao sema /Padrão/ do posicionamento M; é essa oposição que estaria na base do sistema de restrições semânticas (Maingueneau, 1985, p. 49) do discurso E, responsável pelos enunciados Os semas, ou operadores de individuação, correspondem a um filtro que fixa os critérios em virtude dos quais certos textos se distinguem do conjunto dos textos possíveis como pertencendo a uma formação discursiva determinada. (MAINGUENEAU, op. cit., p. 49)
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possíveis para E, por exemplo o de que as ocorrências durante a aquisição da escrita e da ortografia não devem ser vistas como erros, mas como indícios, como pistas do funcionamento inteligente do cérebro de um sujeito singular. Esse mesmo sistema de restrições é também o responsável pelo fato de os enunciadores de E necessariamente interpretarem, traduzirem os enunciados produzidos a partir de /Padrão/ nas categorias do seu sistema, por exemplo, em “patologização”, “biologização”, “reducionismo biológico”, “medicalização”, “culpabilização da vítima”, ou seja, em simulacros – jamais enunciados pelos atores de M e não reconhecidos por esses como seus. Associados ao par /Diferença/ e /Padrão/, propusemos outro par de semas em oposição: /Educação/ e /Tratamento/. É com base em /Educação/ que os sujeitos de E dizem, por exemplo, que cada criança tem o seu processo próprio, singular de aprendizagem/aprendizagens ou que é necessário investir na formação de professores alfabetizadores, para que estes compreendam que as dúvidas e as hipóteses das crianças sobre o sistema de escrita são inerentes ao processo de aquisição desse sistema e que, portanto, dislexia não existe, a menos que seja provocada por uma lesão. Em M, é a partir de /Tratamento/ que são possíveis os enunciados que reforçam a importância de um diagnóstico, de preferência a ser realizado o mais cedo possível, e também os enunciados que denotam preocupação com o futuro escolar da criança não devidamente diagnosticada, acompanhada e medicada. O campo semântico do /Tratamento/ obriga que expressões como “o tempo de aprendizagem de cada criança” sejam sempre negadas, não reconhecidas; ao contrário, enunciados desse tipo são traduzidos por enunciados como “crianças disléxicas têm sido abandonadas ‘ao Deus dará’” em nome de uma – equivocada (desse ponto de vista) – tentativa de evitar o diagnóstico e a possibilidade de amenizar, tratar o problema. Diagnósticos e tratamentos esses traduzidos por E, em forma de simulacros, como “medicalização ou biologização de questões educacionais”. Em suma, ao tomarmos como unidade de análise o espaço de trocas, o interdiscurso, pudemos, assim como propõe Maingueneau (op. cit., p. 22), “fazer aparecer a interação semântica entre os discursos como processo de tradução, de interincompreensão regrada”.
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A divulgação da polêmica em torno da dislexia Uma parte da nossa tese consiste em analisar se (e como) essa polêmica tem sido noticiada em veículos não especializados, isto é, em veículos que não correspondam a revistas ou sites sobre educação, linguagem ou saúde. Para isso, pesquisamos notícias de jornais veiculadas na internet, no período de janeiro de 2012 a julho de 2014, e buscamos especificamente notícias com os itens lexicais “dislexia”, “disléxica” e “disléxico” e sua reformulação, em geral presente no lide dessas notícias, com função explicativa, isto é, aquelas que participam da “didaticidade das produções enunciativas” (Charaudeau e Maingueneau, 2014, p. 421).Nosso objetivo foi analisar o percurso dessas unidades de forma a relacioná-lo a uma fonte enunciativa, a fim de compreender como os principais jornais do país têm divulgado o tema polêmico da dislexia, isto é, se e como têm dado voz aos dois posicionamentos discursivos, o “E” e o “M”. Para isso, pesquisamos no Google as entradas “dislexia”, “disléxica” e “disléxico” somadas ao nome de cada um dos 20 jornais de maior circulação no Brasil (segundo a ANJ – Associação Nacional de Jornais), no período de janeiro de 2012 a abril de 2014. Em cada uma das notícias exibidas a partir dessa busca, analisamos as reformulações da palavra-chave. Sobre as buscas Depois de realizar as buscas em alguns dos jornais, ficou evidente que estávamos efetuando buscas desnecessárias. O uso do adjetivo feminino “disléxica” nos conduziu a um único texto que ainda não havíamos encontrado com o substantivo “dislexia”, e esse texto não correspondia a uma notícia sobre o tema que nos interessava, mas a uma notícia sobre Roberto Baggio, com o seguinte título: “Disléxico, hiperativo, gigante e manjado: a fábula de ser um ser digital”. O uso do adjetivo masculino “disléxico” também nos levou a esse texto já indicado pelo adjetivo feminino e a nenhum outro texto diferente dos que já havíamos encontrado. Ou seja, a busca pelo substantivo teria sido suficiente para nossa pesquisa. Por outro lado, uma busca prevista se mostrou insuficiente: não bastou digitar “dislexia” + “nome do jornal”, pois alguns nomes de jornais correspondem a palavras de alta frequência utilizadas em diferentes contextos, por exemplo: “Daqui”, “O
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Tempo” ou “Meia Hora”. Nesses casos, foi necessário acrescentar a palavra “jornal” à busca. Ainda assim, muitas vezes o resultado das buscas não nos levava a nenhuma notícia e, para conferir se não havia mesmo notícia sobre dislexia no jornal pesquisado, íamos diretamente ao site do jornal e repetíamos a busca por “dislexia”, “disléxica” e disléxico”. Essas conferências confirmaram os resultados das buscas, pois em nenhum caso chegamos a uma notícia não encontrada previamente. Resultados obtidos Pudemos observar que o discurso polêmico em torno da dislexia não tem sido objeto de interesse jornalístico com frequência; houve, no período pesquisado, poucas notícias sobre o tema nos jornais brasileiros de maior circulação: 28. Foram encontradas 32, mas quatro estavam duplicadas: haviam sido produzidas por agências de notícias e veiculadas em dois jornais cada uma. Ainda que não sejam jornais especializados em educação, linguagem ou saúde, vale a pena considerar que alguns deles têm cadernos específicos dessas áreas e, ainda assim, identificamos um número pequeno de textos noticiando alguma questão relacionada à dislexia. Dos 20 jornais analisados, apenas em 11 havia alguma notícia sobre o tema e, dentre eles, apenas cinco jornais noticiaram o tema três vezes ou mais, conforme vemos no quadro a seguir:
Quadro 1 – número de notícias sobre dislexia veiculadas nos 20 jornais de maior circulação no Brasil e disponíveis na Internet, publicadas no período de janeiro de 2012 a junho de 2014
A análise de cada notícia evidenciou que os jornais não especializados que abordam o tema em questão enunciam com base na semântica global de um dos posicionamentos discursivos: o M; 26 das 28 notícias assumem a existência da dislexia sem qualquer distanciamento ou questionamento. Uma única notícia encontrada enuncia do interior de E, a notícia do “O Globo”, a seguir, em que “dislexia” não vem reformulada, mas aparece negada, ou explicitamente, como no trecho em que o
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entrevistado afirma: “a definição de dislexia é tão ampla que torna impossível...”, ou indiretamente, na sua tradução pela palavra “rótulo”:
Figura 1 – trecho da notícia que enuncia do interior de E, disponível em http://oglobo. globo. com/ sociedade/educacao/para-pesquisador-rotulo-de-dislexia-usado-como-desculpa-pel os-pais-11718288, acesso em 15 de agosto de 2014, destaques nossos.
Uma única notícia apresenta o tema como polêmico, indicando que não há diálogo possível entre os dois posicionamentos discursivos:
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Figura 2 – trechos da notícia que apresenta o tema como polêmico, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/71459-entidade-cobra-politica-para-dislexia.shtml, acesso em 25 de junho de 2014
A notícia apresenta o tema como polêmico: no subtítulo fica claro que se trata de uma polêmica que envolve, de um lado, um instituto e, de outro, o governo. No primeiro parágrafo, o jornalista afirma que há um “debate educacional”; nos dois parágrafos seguintes, apresenta um dos pontos de vista (do aqui chamado M) e nos dois últimos parágrafos apresenta o outro ponto de vista (do aqui chamado E). Não podemos afirmar, porém, que se trata de uma notícia neutra, sem tomada de posição, pois há dois indícios que nos levam a associar esse texto à fonte enunciativa M: o primeiro deles é o título, que evidencia um dos posicionamentos: “Entidade cobra política para dislexia”; ao mesmo tempo em que toma a dislexia – palavra negada por E – como um dado, destaca o fato de que há uma entidade (que será especificada no segundo parágrafo) que “cobra política” de um governo que, por algum motivo – só explicado no último parágrafo –, não estaria tomando as providências necessárias. O segundo indício corresponde ao uso das aspas nas duas ocorrências da palavra “rotular”: no subtítulo e no último parágrafo. O jornalista, que, como vimos, assume, sem nenhuma tomada de distância (conforme AUTHIER-REVUZ, 2004), a palavra “dislexia”, introduz (ou mantém) as aspas em uma das palavras negadas pelos enunciadores de M.
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Essa notícia foi alvo de críticas de Masini, uma fonoaudióloga que enuncia do interior de E. A principal razão dessas críticas está justamente no fato de a palavra “rotular” ter sido grafada entre aspas, o que foi interpretado como uma tomada de posição do jornalista. A fonoaudióloga afirma: “E no meio disso está a ação do Ministério da Educação que, pela reportagem, resume-se a não rotular entre aspas o aprendiz para que não perca sua autoestima” (MASINI, s/d). É interessante observar que, ao reproduzir o texto do jornalista, ela retira as aspas da palavra reivindicada pelo seu posicionamento e, ao lado, acrescenta, em negrito, o sintagma “entre aspas”, como manifestação de indignação decorrente do fato de o tema ganhar espaço na mídia, em suas palavras: “sem que haja, no entanto, o cuidado adequado com as informações veiculadas” (MASINI, op.cit.). Cabe observar que os sujeitos envolvidos na polêmica têm interesse pela divulgação de seus argumentos. Até mesmo os enunciadores de E, que, como veremos, não parecem se preocupar em divulgar seu ponto de vista, manifestam-se. Dentre as notícias que enunciam do interior de M, a maior parte recorre a reformulações, às vezes na legenda de uma fotografia (como no exemplo a seguir), às vezes no lide ou mesmo em algum outro parágrafo do texto; nessas reformulações, encontramos palavras como “transtorno”, “distúrbio”, “déficit”, “doença” – palavras que apenas ocorrem nos enunciados de M, como vimos anteriormente. Um exemplo de notícia cujos enunciados são característicos de M é o do jornal Zero Hora:
Figura 3 – trecho de notícia que enuncia do interior de M, disponível em http://zh. clicrbs.com.br /rs/noticias/planeta-ciencia/noticia/2013/07/tecnologia-de-us-100-podeauxiliar-e specialistas-notratamento-de-dislexia-4203301.html, acesso em 14/08/2014, destaques nossos.
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O fato de recorrer a uma reformulação indica que o enunciador pressupõe que o leitor não tenha familiaridade com a palavra e, portanto, é necessário explicá-la. Isso é coerente com o fato de haver poucas notícias sobre o tema; como o tema “dislexia” é pouco noticiado, é necessário que se explicite do que se trata. No caso de haver uma notícia, faz sentido que ela seja enunciada do interior de M e não de E por diferentes razões: primeiramente, a análise de cada notícia nos permite entender uma razão para sua “difusão”: trata-se, em sua maioria, de notícias dos cadernos de ciência e/ou tecnologia que apresentam uma nova tecnologia para lidar com a dislexia ou uma nova descoberta sobre sua causa; são, portanto, divulgação de novidades desenvolvidas por enunciadores de M. Uma outra razão, porém, está relacionada à própria semântica global dos discursos E e M: justamente por recusar a palavra “dislexia”, os enunciados do discurso E não são encontrados, por exemplo, quando se faz uma busca com o item lexical “dislexia”. Nas primeiras páginas do resultado da pesquisa, só se depara com textos que enunciam do interior de M, o discurso que reivindica a palavra a todo momento, propondo causas, tratamento, cura e, sobretudo, eventos como cursos, congressos e fóruns, bastante divulgados na internet. Em uma busca realizada em 16 de setembro de 2014, a primeira ocorrência de um texto enunciado do interior de E apareceu na 9ª página, como vemos a seguir:
Figura 4 – resultado parcial da busca, no Google, da entrada “dislexia”, realizada em 04/08/2014.
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Qualquer pessoa que não saiba previamente que existe uma polêmica em torno da dislexia e que faça uma busca no Google chegará, inevitavelmente, a enunciados proferidos unicamente por enunciadores de M. Mesmo digitando como entrada no Google “dislexia não existe”, chega-se não a enunciados de E, mas a enunciados de M, que rebatem a frase proferida por E, como podemos ver na figura a seguir, em que vemos a imagem da primeira página resultante da busca:
Figura 5 – primeiros resultados da busca, no Google, do enunciado “dislexia não existe”, realizada em 05 de agosto de 2014.
Podemos ver que dos sete trechos da primeira lista, em três se atribui a afirmação “dislexia não existe” a uma atitude reducionista, em um deles a afirmação é traduzida por “mito”, em outro é tomada por “velha noção (que precisa ser “tirada da frente”)”; no primeiro, aparece como uma interrogação, que será respondida da seguinte
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maneira: “sim, ela é uma doença catalogada”; apenas o terceiro trecho da lista não traz elementos suficientes para identificarmos, sem ir à página em que ele está publicado, o posicionamento do qual se enuncia; ao analisarmos o texto na íntegra, porém, também identificamos o posicionamento M: trata-se de uma seção sobre educação de um portal de assuntos genéricos, em que há cinco textos sobre dislexia, escritos por uma mãe de uma criança disléxica, por fonoaudiólogas e psicopedagogas, em que todas enunciam do interior de M. E isso não parece ser fruto do acaso, mas aponta para uma possível terceira razão para a predominância do posicionamento M nos noticiários, razão que pretendemos analisar com mais cuidado e atenção ao longo da tese, e que se relaciona à análise realizada por Foucault (1971[2000]) sobre o discurso médico: estaríamos diante de um exemplo de uma forma de controle exercida pela Medicina na nossa sociedade. Essa hipótese, a nosso ver, pode ser relacionada à semântica global dos discursos analisados em relação, agora, a uma característica da prática discursiva de cada posicionamento: enquanto os enunciadores de M estão a todo momento na mídia (ainda que não nos jornais escritos, como vimos neste trabalho), como revistas especializadas e sobretudo na Internet, divulgando, por exemplo, fóruns, congressos (que englobam as três diferentes áreas envolvidas) e criando sites e blogues sobre dislexia e demais distúrbios de aprendizagem, os enunciadores de E tendem a apresentar sua teoria, resultados de suas pesquisas e a divulgar seus argumentos em disciplinas de cursos universitários e congressos específicos da área da linguagem e, apenas em momentos pontuais, se manifestam por meio de “cartas abertas” ou campanhas produzidas por determinados grupos, como o “Não à medicalização da vida”, do Conselho Federal de Psicologia.
Considerações finais Apesar de haver um grande número de resultados para a busca da palavra “dislexia” no Google (“aproximadamente 876.000”, conforme registrado em 16 de setembro de 2014), as análises indicam que se trata de um tema de interesse restrito, afinal, no período considerado (de janeiro de 2012 a julho de 2014), poucas vezes foi objeto de reportagens e notícias em jornais não especializados.
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Além disso, ele não é tomado (e portanto, não é noticiado) como um tema polêmico, o que indica que a abrangência de um dos posicionamentos discursivos – o E – é ainda menor do que a do tema “dislexia”. Embora esse fato possa estar relacionado a um tipo de mecanismo de controle exercido pela Medicina, ele é coerente com a semântica global dos posicionamentos analisados.
Referências ANJ – Associação Nacional de Jornais. Disponível em http://www.anj.org.br/, acesso em 07 de agosto de 2014 AUTHIER-REVUZ, J. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. CHARAUDEAU, P; MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2006. COUDRY, M. I. H. & FREIRE, M. F. P. O trabalho do cérebro e da linguagem: a vida e a sala de aula. Linguagem e Letramento em foco. Cefiel/IEL/Unicamp, 2005 – 2010 FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 7. Ed. 3ª reimpressão. Rio de Janeiro: Forense Universitária, [1969] 2008. ______. Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. MANOEL DE BARROS MOTTA (Org.). Tradução Elisa Monteiro. 2. Ed. 1ª reimpressão. Rio de Janeiro: Forense Universitária, [1964] 2008. MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, [1984] 2005. MASINI, L. Sobre a existência da dislexia. Fórum sobre medicalização da Educação e da Sociedade. Sem data, disponível em http://medicalizacao.org.br/documentos/sobre-aexistencia-da-dislexia/, acesso em 16 de setembro de 2014 POSSENTI, S. Simulacro e interdiscurso em slogans. In: Os limites do discurso. Curitiba: Criar Edições, 2002, p. 195-203. ______. Questões para analistas do discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
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PRÁTICAS DE ENSINO NA LÍNGUA PORTUGUESA: GÊNEROS DIGITAIS Patrícia Biondo Nicolli Soares (PIBIC-FA /UENP/CJ)
Resumo O presente trabalho objetiva expor, num primeiro momento, breves considerações sobre os gêneros presentes no domínio da mídia virtual e verificar de que modo têm sido utilizados como objetos de ensino da língua materna por mostrarem-se adequados como efetivas práticas comunicativas e sociais. Posteriormente, num segundo momento, será elaborada uma Sequência Didática (SD) com o gênero da internet HQ Digital, voltada para o Ensino Médio, visando ao desenvolvimento de atividades de leitura e escrita. Para tanto, destaca-se a importância da pesquisa frente às exigências de um repensar metodológico do professor de língua portuguesa, bem como de um ensino que valorize os gêneros presentes no contexto multimodal e proporcione novas formas de construção de sentido. Por esta razão, compomos a pesquisa, segundo o construto teórico proposto por Bakhtin (1997), Bronckart (1999), Marcuschi (2010), Dolz, Noverraz, Schneuwly (2004), entre outros, seguindo, assim, as orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998) que preconizam o ensino de Língua Portuguesa, tendo os gêneros como objeto de ensino. Palavras-chave: Gênero digital, práticas socais, sequência didática.
Introdução Este trabalho se perfaz sob a ótica do projeto de pesquisa aprovado no âmbito da proposta PIBIC-FA/2013, que se fundamenta em estudos realizados no campo da Linguística Aplicada, principalmente no contexto sociocomunicativo bem como em estudos voltados para as novas tecnologias computacionais e os gêneros digitais. Dessa forma, buscamos refletir sobre a relevância de se compreender o funcionamento sobre a organização/estruturação dos gêneros digitais, e de que forma eles têm se apresentado para o ensino/aprendizagem. Assim, as discussões em torno do referido tema justificamse pela possibilidade de trazer contribuições para a compreensão da mudança presente no contexto escolar. Hoje vivemos uma nova realidade social, na qual não basta sabermos ler e escrever. Precisamos saber, também, responder às exigências de leitura e
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de escrita impostas pela sociedade moderna e interagir com as novas formas de socialização, dentre elas a internet e as redes sociais. Nesse contexto, acreditamos ser necessário o desenvolvimento de atividades de leitura e escrita, utilizando gêneros textuais virtuais como objeto de ensino, pois a escola deve estar atenta e receptiva a essa revolução. Por conseguinte, deve o ambiente escolar proporcionar ao aluno, meios de uso da linguagem de modo eficaz e condizentes com as mais variadas situações de aprendizado e comunicação a que se apresentam. Deve, ainda, instigar, sobremaneira, a capacidade de raciocínio, o senso crítico e a escrita de forma clara e coerente. Pensando nisso, por meio desse projeto, buscamos apresentar uma proposta de aproximação entre o estudo da língua e sua aplicabilidade por meio de uma Sequência Didática, usando o gênero textual HG digital, na perspectiva do interacionismo sócio-discursivo, com desenvolvimento de atividades de leitura e produção textual voltada para alunos do ensino médio. Materiais e métodos A pesquisa foi realizada, primeiramente, com a elaboração de levantamento bibliográfico, leitura e fichamento das obra de Bakthin (1997) e de outros autores como Marcushi (2008, 2010), Bronckart (1999), Dolz, Noverraz, Schneuwly (2004). Também realizamos reuniões mensais de orientação para a discussão de questões como: a teoria do gênero textual; a possibilidade de uma proposta que pudesse transpor o estudo da língua em Sequencia Didática, na perspectiva do sócio-interacionismo; tecnologias na escola; aspectos em que ele pode ser útil à educação; se os professores estão preparados para essa nova realidade; entre outras. A partir das discussões, elencamos, nessas leituras, elementos que contribuíram para a análise dos textos com finalidades didáticas e formativas, por conseguinte, a elaboração da Sequência Didática da HQ Digital. Resultados e Discussões Com base na realidade observada, muitas são as perspectivas teóricas nos estudos dos gêneros. Em termos característicos, é possível verificar uma forma própria,
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bem como um suporte específico, que se perfaz por aquilo que os especialistas denominam de „características sociocomunicativas‟, definidas pela função, estilo, conteúdo, bem como pela composição do material a ser lido de acordo com os propósitos de leitura. E é essa correlação entre as características que define os mais variados gêneros. Assim, Bakhtin elucida que “[...] a riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporá um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa” (1997, p. 279). Por conseguinte, para Marcuschi (2010) os gêneros textuais se ancoram na sociedade e nos costumes, assim as atividades comunicativas respaldam a organização social e condicionam boa parte das demais ações praticadas socialmente. Em razão disso, o alto crescimento da tecnologia computacional permite o surgimento de novos gêneros textuais, a adaptação e/ou ainda, a evolução de inúmeros outros. Na chamada “Era Digital” a escrita e as leituras se apresentam de formas peculiares. Assim os atuais gêneros da internet podem ser verificados em blogs, chats, scraps, e-mail, facebook, entre outros, denominados por Marcushi (2010) de “gêneros emergentes”. Não obstante, os PCN (1998) dizem ser função da educação, o estimulo da capacidade reflexiva e crítica dos alunos para que tenham o discernimento a fim de que se transforme a informação em conhecimento, e avalia o computador como „instrumento de mediação‟, já que proporciona aos usuários estabelecer “novas relações para a construção do conhecimento e novas formas de atividade mental” (p.147). Nesse sentido, como já mencionado, tivemos por objetivo final, a construção de uma Sequência Didática, usando o gênero HG Digital, voltada para o Ensino Médio, com o intuito de que o aluno pudesse desenvolver habilidades de leitura, compreensão textual, bem como as formas coloquiais da linguagem de modo adequado, além de estimular sua criatividade por meio do lúdico, uma vez que, a HQ é constituída de no
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mínimo dois quadrinhos, sendo o segundo uma continuação do primeiro, contando uma história repleta de elementos gráficos. A partir da análise de alguns desses elementos composicionais, como balões, onomatopeias e outros recursos gráficos, foi possível sugerir, por exemplo, exercícios de linguagem escrita e oral como incentivo nas produções finais. Além disso, o referido gênero, por ser um recurso de entretenimento muito usado pelos alunos, nos permite abordar os mais diversos conteúdos. Finalmente, propusemos a transposição do gênero para o suporte digital. Elas podem ser produzidas individualmente ou em conjunto com outros usuários em sites e programas disponíveis na Internet.
Considerações finais Feitas as considerações acima, esperamos que os pontos elencados, tenham sido suficientes para evidenciar como podem ser vastos os campos a serem explorados no terreno da leitura e produção de texto no que concerne às novas tecnologias e o quão diversas pode ser as formas de abordagem, já que vieram trazer novos elementos para se pensar a questão do ensino. Assim, fazer uso do gênero HQ Digital como prática de ensino nas aulas de Língua Portuguesa, procura formar leitores e produtores de textos aptos a exercer seu senso crítico enquanto cidadãos. Agradecimentos Agradeço à Fundação Araucária pelo apoio financeiro por meio da bolsa de iniciação científica para o desenvolvimento desta pesquisa. Em especial, agradeço a Profa. Ms. Vera Maria Ramos Pinto pela paciência e total atenção durante as orientações para a produção deste trabalho. Aos membros do Grupo de Pesquisa Leitura e Ensino. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo. Martins Fontes, 1997.
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BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: introdução aos parâmetros curriculares nacionais / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília : MEC/SEF, 1998. BRONCKART, Jean Paul. Atividades de Linguagem, textos e discurso: por um interacionismo sociodiscursivo. São Paulo: EDUC, 1999. MARCUSHI, Luiz Antônio; Xavier, Antônio Carlos (orgs.). Hipertexto e gêneros digitais: novas formas de construção do sentido. Rio de Janeiro: Lucerna, 2010. SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução de Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2004.
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INSTITUCIONALIZAÇÃO DA LINGUÍSTICA NA REVISTA LETRAS DA UFPR: UM OLHAR ARQUEOGENEALÓGICO Patricia Cardoso (UNICENTRO)
Seguindo a consideração foucaultiana de que é preciso descer para subir de novo, ou melhor, é preciso conhecer o passado para compreender o presente, procuramos, neste trabalho, investigar a espessura histórica dos acontecimentos que contribuíram para algumas transformações nos regimes dos saberes sobre a língua(gem), a partir de um retorno ao arquivo da memória da linguística no Brasil e, particularmente, no Paraná. Para isso, mobilizamos os aportes teórico-metodológicos da Análise do Discurso (doravante AD) de linha francesa, mais precisamente aqueles estabelecidos a partir dos “diálogos” (GREGOLIN, 2006) entre Michel Foucault e Michel Pêcheux. Propomos investigar os saberes que alicerçavam os anos iniciais da disciplina da Linguística no Brasil e definiram as possibilidades de reinscrição e transcrição de certos dizeres. Assim, problematizamos aquilo que para nós, hoje, nos cursos de Letras parece apagado da memória: as discussões em torno do conceito de certo e errado. Desse modo, a partir de rastros de memória, reconstruímos um percurso temático produzido pela sequência discursiva do “Correto e Incorreto” na língua, instaurado pela repetibilidade do enunciado e reverberado em dois artigos nos anos de 1953 e 1968. A retomada insistente desse tema abre brechas para pensarmos sobre sua complexidade que determina a ordem dos enunciados atuais. Sobre a memória discursiva Ao fazer uma releitura da A Arqueologia do Saber (2013), mais especificamente dos pressupostos que tratam do campo associado, dos enunciados, Courtine (2009) formula o conceito de memória discursiva e dá voz à Michel Foucault na AD.
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Propõe, então, uma noção de memória discursiva distinguindo-a de uma memória psicologizante, que os indivíduos têm para se lembrar de algo, e começa a pensar numa memória sócio-histórica inserida em práticas discursivas por meio de lembrança, repetição e esquecimento de alguns elementos do saber. Os discursos, portanto, produzem uma memória tanto de anterioridade, ao buscar outros discursos “esquecidos, silenciados” no passado, quanto de ulterioridade quando rastreia discursos que, ao serem retomados, produzem novos e diferentes efeitos de sentidos. Assim, é nesse jogo da complexidade entre uma memória e irrupção na atualidade do acontecimento que se dá o que Courtine (2009, p. 106) chama de “efeitos de memória”, isto porque “os enunciados existem no tempo longo de uma memória, ao passo que as 'formulações' são tomadas no tempo curto da atualidade de uma enunciação”. Logo, a memória discursiva determina o que pode entrar ou não na ordem do enunciável e possui uma relação inextricável com a língua, a sociedade e a cultura. Em vista disso, vemos o caráter heterogêneo do discurso onde algumas memórias são reverberadas e outras são silenciadas e, consequentemente, não entram na ordem do discurso. São sentidos outros “que dividem em pedaços a lembrança dos eventos históricos, preenchidos na memória coletiva de certos enunciados, dos quais elas organizam a recorrência, enquanto consagram a outros a anulação ou a queda” (COURTINE, 1999, p.16). Em consonância com tais ideias, Pêcheux (2010, p.52) concebe a memória como: […] aquilo que, face de um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ (quer dizer, mais tecnicamente os préconstruídos, elementos citados e relatados, discursos transversos, etc) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível.
Nessa linha de raciocínio a memória interdita e tende a ruir sob o peso do acontecimento provocando uma interrupção, pode desmanchar a regularização,
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desmascarar o aparecimento de uma nova série que não estava constituída. Enfim, sob o choque do acontecimento há sempre um jogo de força na memória que pode manter uma regularização ou, ao contrário, desregular. Nesse sentido, cada enunciação reconstrói, ressignifica a memória que não deve ser tomada “como advinda do locutor, mas como operações que regulam o encargo, quer dizer, a retomada e a circulação do discurso” (ACHARD, 2010, p. 17). Assim, a construção dos sentidos pode se dar via estabilização ou, contrariamente, via a uma movência, no espaço de transformações de sentido. Por isso, é por meio do efeito da memória discursiva que acionamos outras vozes via interdiscurso - lugar de composição de singulares discursos, provindos de diferentes situações históricas e de diferentes lugares sociais, entrelaçados no interior de uma formação discursiva - e intradiscurso - dimensão horizontal, lugar de constituição do fio do discurso, para então, localizar os vestígios da memória que proporcionam a produção dos sentidos (Courtine, 2009). Com as noções de “deriva” de “desestruturação” das redes de memória e dos trajetos de sentido em que todo discurso é um índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas, Pêcheux (2006) apresenta, reflexões enfatizando a inescapável articulação entre língua, memória e história. Logo, a partir dessa articulação procuramos fazer um estudo focado no enunciado e no arquivo que torna possível refletir o papel da Revista Letras como um discurso acadêmico capaz de inscrever-se num lugar de memória e nos acontecimentos atuais. Do enunciado ao arquivo Ao lançar hipóteses sobre a questão de rastrear regularidades entre os discursos, Foucault analisa a constituição dos saberes enredada na dispersão dos enunciados. Desse modo, o enunciado, para o filósofo, é a parte elementar do discurso e possui uma relação de dependência e hierarquia com o arquivo. Para ele:
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[…] o enunciado não corresponde a estrutura linguística da frase, proposição ou ato de linguagem; não se apoia nos mesmos critérios [...] ele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço (FOUCAULT, 2013, p.104-105).
O autor é claro na diferenciação destas unidades - frase, proposição e ato de linguagem - que não sejam confundidas com o enunciado. Em face disso passa a considerar o enunciado não como uma unidade isolada em si mesma, mas como uma função enunciativa, a partir da qual se pode descrever as condições de existência, as regras de aparição e as transformações de saberes produzidas por um sujeito em um lugar legitimado e determinado por regras sócio-históricas, sendo possível “definir as condições nas quais se realizou o enunciado, e o fazem aparecer como um jogo de posições do sujeito, elemento em um campo […] da materialidade repetível” (GREGOLIN, 2004, p.32). Como função enunciativa, o enunciado requer, para se realizar, um referencial (não o fato em sim, mas um princípio de diferenciação entre esse fato e outro); um sujeito (que não é um sujeito empírico e fonte do dizer, mas um sujeito que ocupa um lugar, sob certas condições, para ser sujeito do que diz); um campo associado (que não é o contexto real que se realizou o enunciado, mas um domínio de coexistência para outros enunciados); uma materialidade (que não é somente um suporte ou substância, mas possibilidade de uso e repetição). Os sentidos do enunciado, considerando-o como função enunciativa, depende da relação com outros enunciados para construir a significação do que foi dito. Isso pressupõe pensar na historicidade como um lugar onde se encontra o processo discursivo no qual os enunciados produzidos convocam a memória, conectando-se ao passado e ligando-se ao futuro. Daí não haver “enunciado que não suponha outros; não há nenhum que não tenha em torno de si, um campo de coexistências” (FOUCAULT,
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2013, p.121). Portanto, um enunciado sempre pode se tornar outro, ainda que tenha a mesma materialidade repetível. Isso reafirma a importância de se pensar o papel da memória vinculado à produção de sentidos e a outros enunciados que podem, por vezes, repetir-se, modificarse ou adaptar-se, já que “não há enunciado que, de uma forma ou de outra, não reatualize outros enunciados” (FOUCAULT, 2013, p.119). Por isso, sob o crivo arqueológico foucaultiano, ele ocupa lugar de suma importância e é fundamental para a noção de arquivo. A palavra arquivo, num primeiro momento, pode suscitar alguns equívocos se olharmos para a sua etimologia. Derivada do latim archívum significa lugar onde se guardam documentos. Por anos se pensou no arquivo como um agrupamento de textos, papéis, documentos sobre determinado conteúdo, confundido-se como algo que preserva uma memória que guarda uma cultura e até mesmo mantém uma identidade. No entanto, para Foucault, o arquivo é o que pode ser efetivamente enunciado, dito ou escrito, no sentido de ser possível flagrar os sistemas da formação e transformação dos enunciados que se configuram por uma variedade de textos, de um trajeto temático ou ainda de um acontecimento. Ali é possível definir uma ordem das coisas que “aparecem graças a todo um jogo de relações que caracterizam particularmente o nível discursivo” (2013, p. 158). Segundo a proposta foucaultiana, o arquivo trata-se : […] da lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. […] O arquivo não é o que protege, apesar de sua fuga imediata, o acontecimento do enunciado e conserva, para as memórias futuras, seu estado civil de foragido; é o que na própria raiz do enunciado-acontecimento e no corpo em que se dá, define, desde o início, o sistema de sua enunciabilidade. (2013, p. 158).
Foucault atribui ao conceito de arquivo, num primeiro momento, a conexão imediata com o sistema de enunciabilidade. “Porém, ele não propõe uma análise
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aplainada dos textos para buscar as regularidades e as relações; ao contrário, considera o valor do arquivo não em sua unificação, mas na especificidade de cada texto” (SARGENTINI, 2004, p.88). O arquivo não é a representação de uma realidade material ou institucional. Não é, pois, o lugar onde se retiram fatos de maneira referencial, mas um processo de reatualização das configurações dos enunciados. “É o que na própria raiz do enunciadoacontecimento e no corpo em que se dá, define, desde o início, o sistema de sua enunciabilidade”. (FOUCAULT, 2013, p.158). Descrever o arquivo na sua emergência, compreender as regras, práticas, condições que constituem o saber de uma época e o funcionamento dos discursos era a proposta arqueológica de Michel Foucault. Em outras palavras, interroga o já-dito no nível de sua existência e da função enunciativa que nele exerce, da formação discursiva a que pertence e do arquivo que faz parte. Esse é o caminho que nos abre possibilidade para descrever analiticamente o objeto teórico. Desse modo, considerando a descontinuidade na história, podemos analisar os enunciados relacionados ao Correto e incorreto na língua e as condições de existência que formatam um campo de memórias discursivas sobre a disciplina da Linguística no Brasil. Sobre o correto e incorreto na língua Se, para Pêcheux (2010) a regularização pode ruir sob o peso de novos acontecimentos, produzindo uma nova série que pode perturbar ou mesmo apagar a antiga, isso porque “o acontecimento desloca, desregula os implícitos associados ao sistema anterior” (p.52) observamos que as questões, de certo modo antagônicas, entre o conceito de certo e errado na língua não estão apagadas. Prova disso são as discussões atuais entre Marcos Bagno e Pasquale Cipro Neto, José Luiz Fiorin e Sérgio Nogueira, nas quais estabelecem limites, de certa forma, bastante nítidos.
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Vejamos dois excertos extraídos de antigos artigos em que a questão do Correto e Incorreto irrompe preliminarmente na revista. O primeiro, intitulado Um inquérito linguístico por dentro foi publicado no ano de 1953 por Oswaldo Pinheiro Reis; o segundo texto Conceito do correto e incorreto na linguagem foi publicado em 1968 por Mansur Guérios. Excerto 1: A escola, como a temos, guardiã e defensora da língua literária que inculca através de regras gramaticais de nem sempre bem fundada dedução e com a férula (não era antigamente risonha e franca?) que lhe castiga os desvios, apodados do nome terrível de erros, contribui para criar um sentimento de desprêzo injustificável pelas formas populares. Aqui se fere o combate entre a gramática normativa no que ela tem de intransigente e retrógrado e os princípios elementares da lingüística que considera tôdas as manifestações da língua popular como material de primeira ordem, para averiguações e investigações de fenômenos sincrônicos e diacrônicos de uma língua. (…) De tudo o que se disse, decorrem problemas básicos do ensino da filologia, como entre outros: a) O conceito de correto e de incorreto deve ser fixado de um ponto de vista social. (REIS, 1953, p. 183-184).
Excerto 2:
Conceito do correto e do incorreto na linguagem Trata da correção da linguagem, das questões do que se deve ou não se deve dizer, não só a escola, mas ainda e principalmente os gramáticos e puristas, e, não poucas vêzes, através da imprensa, essas questões possam a ser discutidas com ênfase, com entusiasmo, e o que é de admirar, têm a simpatia do público em geral, principalmente no Brasil. Certas revistas de Filologia, principalmente as de outrora, reservavam uma secção para atender a consultas. - Mas qual é o critério de certeza na linguagem? O problema é complexo, e os lingüistas, que são os mais competentes para discuti-lo, em geral não lhe dão atenção; preferem outros problemas, muitas vêzes mais complicados, a tratar do assunto que, é evidente, não é tão só de natureza linguística. (…) Mas, na verdade, a língua não é expressão do pensamento lógico. (…) assim, o correto é o que, além de claro, está de conformidade com o meio social-geográfico culto da atualidade, e o incorreto é o
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contrário – o obscuro, o desvio ou o insulamento dentro dêsse meio na atualidade. (…) Enquanto na língua falada predomina o lado social ou da coletividade sôbre o individual, na linguagem literária há o predomínio, em regra, do individual sôbre o social. Por isto a linguagem literária é essencialmente pessoal, afetiva e estética. (GUÉRIOS, 1968, p. 3 - 4)
Observamos,
na
materialidade
desses
enunciados,
uma
tentativa
de
desestabilizar as certezas que alicerçavam a fase denominada Pré-Linguística, ou seja, aquela que legitima os falares eruditos em detrimento dos falares coloquiais. Trata-se de um contra discurso que quer perturbar ou mesmo reverter sentidos provenientes de estudos que insistem em pensar a escola, como guardiã e defensora da língua literária. O embate entre os novos saberes linguísticos e a disciplina filológica, notadamente no que diz respeito ao Correto e Incorreto na língua, começa timidamente a ganhar dizibilidade e visibilidade no espaço acadêmico na década de 1950. Irrompe, nesses excertos, discursos que vão de encontro com as práticas tradicionais cujo estatuto sócio-profissional e científico dedicado à Linguística era, exclusivamente, o trabalho dos pesquisadores/filólogos. Tais pesquisas voltam-se para composições de grande erudição sobre o português, confundido-se com estudos de cunho literário (ALTMAN, 2004). O discurso que cliva o Correto e o Incorreto abre “para si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória” (FOUCAULT, 2013, p. 31-32). Que memória? Aquela que arquiva enunciados formulados no cerne dos trabalhos filológicos realizados ao longo dos tempos. Se observamos as discussões em torno da linguagem e as tentativas de imposições de uma variedade linguística sobre a outra veremos que são fatores antigos. Não por acaso, a legitimidade de determinados saberes vão se constituindo historicamente por meio de exercícios de poder e de autoridade daqueles que se inscrevem num espaço privilegiado.
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Diante do que foi exposto, atentamo-nos pelo fato de que a formação da gramática sofreu (e sofre) forte influência dos estudos relacionados à Antiguidade, inculca[ndo] regras com a férula que lhe castiga os desvios, apodados do nome horrível de erros, contribui para criar um sentimento de desprêzo pelas formas populares. Esse enunciado retoma memórias que persistem em pensar na gramática, e por assim dizer, nos compêndios, manuais de ensino como veículos de explicações lógicas e filosóficas sobre a língua. Não raro, eles consideram algumas formas linguísticas, geralmente, aquela que imita os clássicos literários deixando de lado os outros falares. A gramática normativa combatida nos excertos resgatam memórias que tomam a língua como expressão do pensamento, isto é, quem se expressa bem, pensa bem. Essa visão tão vivamente combatida nos fragmentos leva em consideração um procedimento dogmático e prescritivo onde não prevê a língua como um fator social e, muito menos, considera todas as manifestações da língua popular como material de primeira ordem. Examinando as condições de existências dos enunciados onde a Linguística era um campo que ainda estava surgindo, notamos discursos que tentam romper com os estudos arraigados em saberes puristas. Flagramos, assim, pelas redes de memória, um sistema de formação que quer reconstruir o critério de certeza da linguagem e não mais pensar na língua como expressão do pensamento, mas pensá-lá também no âmbito social. Partindo do princípio de que a memória é saturada e lacunar e que é possível sempre repetir, lembrar e esquecer (Courtine, 1999) vejamos o trecho abaixo: Inguinorança Não, leitor, o título acima não está errado, segundo os padrões educacionais agora adotados pelo mal chamado Ministério de Educação. Você pode ter visto que o MEC deu aval a um livro que se diz didático no qual se ensina que falar “os livro” pode. Não pode, não, está errado, é ignorância, pura ignorância, má formação educacional, preguiça do educador em corrigir erros. Afinal,
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é muito mais difícil ensinar o certo do que aceitar o errado com o qual o aluno chega à escola. (ROSSI. Folha de S. Paulo, 15 mai 2011).
O enunciado denominado Inguinorança surge num momento de grande discussão sobre um livro didático de Língua Portuguesa destinado à educação de jovens e adultos que autorizava o uso de formas supostamente erradas. Tal fato foi suficiente para que se deflagrasse uma onda de protestos por parte daqueles que mantêm a ideia de uma única língua correta. Desconsiderando as discussões e polêmicas, ressaltamos a repetição na atualidade da noção do que é Correto e Incorreto na língua e a incessante retomada de valores filológicos. Embora se tenha passado por um longo processo de legitimação da Linguística, ainda existem, na atualidade, embates discursivos que insistem em privilegiar a língua padrão culta em detrimento das outras variedades.
Diante dessa breve análise, importa dizer que o arquivo tratado aqui não está fechado, muito pelo contrário, está sempre em construção com possibilidades de novas outras ocorrências. Nosso trajeto temático não pôde ser explorado com profundidade, todavia, com os levantamentos reverberados acreditamos que foi possível flagrar um sistema de alta enunciabilidade do termo do Correto e Incorreto na língua portuguesa. Por fim, ao (re)visitarmos o passado, pudemos olhar a relação do discurso acadêmico com a construção da memória em que a retomada insistente da expressão Correto e Incorreto abre brechas para pensarmos sobre a complexidade do tema produzido por uma memória que determina a ordem dos enunciados. Essa constante circulação possibilita refletir sobre as amplas séries enunciativas entrecruzadas, contraditórias, que propiciaram a emergência de alguns discursos que definiram as condições de existências dos enunciados antigos e atuais. Referências ACHARD, P. et al. Papel da memória. 2. ed. Campinas, SP: Pontes, 2007. COURTINE, Jean Jacques. O chapéu de Clementis: observações sobre a memória e o esquecimento na enunciação do discurso político. Tradução de Marne Rodrigues de
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Rodrigues. In: INDURSKY, Freda; FERREIRA, Maria Cristina Leandro. (Org.). Os múltiplos territórios da Analise do Discurso. Porto Alegre: Asgra Luzzatto, 1999. p. 15 – 22. ______. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos: EdUFSCar, 2009. GREGOLIN, Maria do Rosário. O enunciado e o arquivo: Foucault (entre)vistas. In: SARGENTINI, Vanice.; NAVARRO-BARBOSA, Pedro.M. Foucault e os domínios da linguagem: discurso, poder, subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004, p.23-44.
______. Foucault e Pêcheux na Análise do Discurso: diálogos e duelos. 2. ed. São Carlos: Claraluz, 2006. GUÉRIOS, R.F.M. Conceito de correto e do incorreto na linguagem. Revista Letras. [on
line].
Curitiba,
v16,
n
16,
p.3
–
16,
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Disponível
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http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/letras/article/view/19806 . Acesso em: 27 fev. 2014. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,2013. PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. 4. ed. Campinas, SP: Pontes, 2006. ______. Papel da Memória. In: ACHARD, P.et al. Papel da memória. 2. ed. Campinas, SP: Pontes, 2010.
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REIS, O. P. Um inquérito linguístico por dentro. Revista Letras. [on line]. Curitiba, v.1,
n1,
p.183
-
189,
1953.
Disponível
em:
http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/letras/article/view/20086 . Acesso em: 27 fev 2014. ROSSI, Clóvis. Inguinorança. Folha de S.Paulo, São Paulo, 15 mai. 2011. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1505201103.htm. Acesso em: 27 fev 2014. SARGENTINI, Vanice Maria Oliveira. A descontinuidade da história: a emergência dos sujeitos no arquivo. In: SARGENTINI, V.; NAVARRO-BARBOSA, P.M. Foucault e os domínios da linguagem: discurso, poder, subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004, p.77-96.
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POLÍTICAS EDUCACIONAIS DA DÉCADA DE 1990: AVANÇO OU ESTAGNAÇÃO? TIUMAN, Patrícia Elisabel Bento UEM / IFPR – Irati/PR Resumo: A Literatura Brasileira, durante muito tempo, foi vítima de preconceito. Os textos literários que circulavam no sistema de ensino brasileiro eram os europeus, a literatura nacional somente foi incluída nos conteúdos curriculares a partir de 1850. Serão analisados os documentos oficiais que regulamentam o ensino de língua portuguesa e literatura no Brasil na década de 1990, período de significativas mudanças nas políticas públicas educacionais brasileiras. Serão consultados leis, decretos, pareceres e resoluções que orientaram as alterações sucedidas na Educação Básica brasileira tais como a promulgação da lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira LDB 9394/96, as Diretrizes Curriculares Nacionais Para o Ensino Médio com ênfase nas mudanças ocorridas no Ensino Médio. Pretende-se verificar se os programas e exames implementados durante essa década contribuíram para a melhoria na qualidade da educação brasileira. Assim como, compreender se o ensino de literatura tem sido contemplado nos documentos oficiais. Palavras chave: Políticas públicas educacionais, ensino de literatura, ensino médio. Introdução Na década de 1990 houve o aumento da demanda de alunos para o ensino médio impulsionado por vários motivos, tais como: o aumento populacional, a correção da distorção idade/série e a necessidade de formação imposta pelo mercado de trabalho. Assim tornou-se necessário que se tomassem decisões importantes para se reestruturar o ensino médio no Brasil. O objetivo desse artigo é apresentar um panorama das mudanças que ocorreram na década de 1990 com relação ao ensino médio, portanto serão analisados a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, doravante LDBEN 9394/96 (BRASIL, 1996a), o Parecer nº 15/98 da Câmara da Educação Básica e do Conselho Nacional da Educação referente à implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 1998), e as orientações para a implementação do Exame Nacional do Ensino Médio, doravante ENEM.
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Acredita-se que este tenha sido um período emblemático para o ensino médio brasileiro, pois, como afirma o Parecer CEB/CNE 15/98: Dessa dinâmica entre transição e ruptura vai surgir a aprendizagem com os acertos e erros do passado e a incorporação dessa aprendizagem para construir modelos, práticas e alternativas curriculares novas, mais adequadas à uma população que pela primeira vez chegará ao ensino médio. Esse processo que se inicia formalmente, neste final de milênio, com a homologação e publicação destas Diretrizes Curriculares Para O Ensino Médio, não tem data marcada para terminar. Como toda reforma educacional terá etapas de desequilíbrios seguidas por ajustes e reequilíbrios. (BRASIL, 1998, p. 68)
A implementação das DCNEM e demais políticas públicas educacionais é ao mesmo tempo um processo de ruptura e de transição com momentos de avanços e outros de retrocessos. “Ruptura porque sinaliza para um ensino médio significativamente diferente do atual, cuja construção vai requerer mudanças de concepções, valores e práticas, mas cuja concepção fundante está na LDB” (BRASIL, 1998, p.67). Dessa maneira, torna-se necessário compreender algumas especificidades do ensino médio e das políticas públicas educacionais implementadas no período ora em estudo.
1. O Estado, o Governo, as Políticas Públicas Educacionais e suas intervenções na Educação Básica Com o intuito de compilar as políticas públicas educacionais ocorridas durante a década de 1990 apresentam-se alguns conceitos teóricos dentre os quais destaca-se: Estado, Governo, Políticas Públicas Sociais e Políticas Públicas Educacionais. Segundo Höfling, Estado é “o conjunto de instituições permanentes – como órgãos legislativos, tribunais, exército e outras que não formam um bloco monolítico necessariamente – que possibilitam a ação do governo” (2001, p. 31). Apresenta, também, a definição de Governo que é “o conjunto de programas e projetos que parte da sociedade (políticos, técnicos, organismos da sociedade civil e outros) propõe para a sociedade como um todo, configurando-se a orientação política de um determinado governo que assume e desempenha as funções de Estado por um determinado período” (HÖFLING, 2001, p. 31).
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As políticas públicas não devem ser entendidas apenas como políticas estatais, cabe ao Estado a responsabilidade de implementação e manutenção das ações, no entanto, as políticas públicas são mais abrangentes, pois agregam órgãos públicos, organismos e agentes dos setores sociais envolvidos. Sendo assim, ultrapassam os limites do Estado em si e adentram o campo da sociedade civil. As políticas públicas educacionais pertencem às políticas sociais que “se referem a ações que determinam o padrão de proteção social implementado pelo Estado, voltadas, em princípio, para a redistribuição dos benefícios sociais visando a diminuição das desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento socioeconômico” (HÖFLING, 2001, p. 31). Dessa maneira, a educação pertence à política pública social que é pensada e implementada pelo governo e que sofre influências de outros setores sociais. O presente estudo é prelimitar e pretende apresentar quais foram as ações estatais que ocorreram durante a década de 1990 e que interferiram diretamente na legislação do Ensino Médio. Apresentam-se os conceitos de Estado e Governo com o intuito de apontar que as intervenções ora estudadas ultrapassam o campo das políticas governamentais e partidárias e adentram a esfera de governo, à medida que muitas dessas ações permanecem ativas atualmente. O Estado pode controlar o desenvolvimento da sociedade por meio da qualificação da mão-de-obra. Assim, ao legislar sobre a educação, a sua qualidade e a parcela da sociedade que terá direito a determinada educação ou a determinado nível de educação, a saber: básico, profissionalizante ou superior. Controla-se também o desenvolvimento de uma sociedade por meio de quem é produtivo, quem terá acesso à educação acadêmica e quem terá acesso ao ensino técnico. Isso pode ser percebido pela formação diferente que é direcionada para cada parcela da sociedade. Fato evidenciado por meio do Decreto nº 2.208 de 17 de abril de 1997 (revogado pelo Decreto 1 nº 5.154 de 2004) que regulamenta a educação profissional que deverá ocorrer em três níveis: básico, técnico e/ou tecnólogo.
1
É fato que o Decreto nº 5.104 de 2004 altera consideravelmente o Decreto nº 2.208/97 ora citado e analisado, entretanto o presente estudo utiliza um recorte temporal e estudará apenas as legislações datadas da década de 1990. O referido decreto e demais legislações posteriores serão objeto de análise em estudos futuros.
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Na década de 1990, houve uma transferência da responsabilidade do Estado com relação à educação para o setor privado. Isso ocorreu por diversos motivos dentre os quais destacamos: a manutenção da qualidade da educação ofertada no mercado, uma maneira de ampliar a eficiência administrativa e de reduzir os custos com a educação. De acordo com Höfling, “o processo de definição de políticas públicas para uma sociedade reflete os conflitos de interesses, os arranjos feitos nas esferas de poder que perpassam as instituições do Estado e da sociedade como um todo” (2001, p. 38). Segundo Shiroma, “a reforma dos anos de 1990 também envolveu e comprometeu intelectuais em comissões de especialistas, análise de parâmetros curriculares, elaboração de referenciais e pareceres” (2007, p. 73). Entretanto a ênfase era a de assegurar o acesso e a permanência dos alunos na escola e isso nem sempre esteve associado ao êxito escolar. Durante esse período, houve a implementação de vários programas e exames. Dentre os programas destacamos: Dinheiro Direto na Escola, Programa Renda Mínima, Fundo de Fortalecimento da Escola (FUNDESCOLA), Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), Programa de Expansão da Educação Profissional (PROEP), TV Escola, Programa Nacional de Informática na Educação (PROINFO), Programa de Apoio à Pesquisa em Educação à Distância (PAPED), Programa de Modernização e Qualificação do Ensino Superior, Programa de Atualização, Capacitação e Desenvolvimento de Servidores do MEC e Programa de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental. Foram implantadas, também, intervenções de natureza avaliativa tais como: o Censo Escolar, o Sistema de avaliação da Educação Básica (SAEB), o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o Exame Nacional de Cursos. Sendo assim inicia-se o estudo do Parecer CEB/CNE 15/98 sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. 2. Políticas públicas educacionais para o ensino médio O Parecer nº 15/98 da Câmara de Educação Básica e do Conselho Nacional de Educação, doravante Parecer CEB/CNE nº 15/98, reflete sobre a elaboração das
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Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio2. Apresenta o caráter propedêutico que esta modalidade de ensino possui desde sua origem “até o presente, a organização curricular do ensino médio brasileira teve como referência mais importante os requerimentos do exame de ingresso à educação superior” (BRASIL, 1998, p. 7). Dessa maneira, essa modalidade de ensino assume um caráter de porto de passagem entre o ensino fundamental e o superior. Isso pode ser observado também por meio da discrepância entre o número de alunos que concluem o ensino fundamental e os que ingressam no ensino médio. No Brasil, durante a década de 1990, apenas 25% da população com idade entre 15 a 18 anos estava cursando ou havia concluído o ensino médio. Até meados da década de 1980 o ensino médio era destinado à educação das elites e apenas como via de acesso ao ensino superior. Ainda analisando este parecer encontram-se informações sobre os motivos que desencadeavam o não acesso ao ensino médio: Até meados deste século o ponto de ruptura do sistema educacional brasileiro situou-se, na zona rural, no acesso à escola obrigatória e, nas zonas urbanas, na passagem entre o antigo primário e o secundário, ritualizada pelo exame de admissão. Com a quase universalização do ensino fundamental de oito anos, a ruptura passou a expressar-se de outras formas: por diferenciação de qualidade, dentro do ensino fundamental, atestada pelas altíssimas taxas de repetência e evasão; e, mais recentemente, pela existência de uma nova barreira de acesso, agora ano limiar e dentro do ensino médio. (BRASIL, 1998, p. 10-11)
O referido parecer afirma que está ocorrendo uma ampliação da demanda para o ensino médio e que a tendência é que aumente gradativamente a procura por essa modalidade de ensino, sobretudo por trabalhadores que necessitam voltar a estudar para poderem ascender em seus empregos ou procurar novos empregos que exigem qualificação profissional. Esse aumento da demanda implica, também, em desafios para o sistema de ensino, tais como:
2
“Em 1998, o CNE estabeleceu, por força de lei, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Resolução CEB/CNE nº 03/98, baseadas por sua vez, no parecer CEB/CNE nº 15/98). Nessas diretrizes baseiam-se os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio, documento de caráter orientador de conteúdos básicos para as disciplinas escolares. Os PCN são uma referência comum para todo o país, mas podem ser adaptados às características de cada região” (CASTRO; TEZZI, 2005, p.126).
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A falta de vagas no ensino médio público; a segmentação por qualidade, aguda no setor privado, mas presente também no público; o aumento da repetência e da evasão que estão acompanhando o crescimento da matrícula gratuita do ensino médio alertam para o fato de que a extensão desse ensino a um número maior e muito mais diversificado de alunos será uma tarefa tecnicamente complexa e politicamente conflitiva. (BRASIL, 1998, p. 11)
Todos esses fatores justificam as mudanças nas políticas públicas educacionais da década em estudo. As orientações para o novo formato do ensino médio a ser implantado são propostas pela LDBEN 9394/96 ao destacar o seu caráter de educação geral integrando-o à educação básica. Como explicitado no artigo 21 “a educação escolar compõem-se de: I. educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; II. educação superior” (BRASIL, 1996a). Dessa forma, ao inclui-lo na educação básica legaliza o que preconiza a Constituição de 1988 no artigo 208, inciso II, de que é dever do Estado a “progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio” (BRASIL, 1988). O referido inciso foi alterado em 1996 pela emenda Constitucional nº 14/96 (BRASIL, 1996b) com a seguinte redação: “progressiva universalização do ensino médio gratuito” o que não altera a função do ensino médio como educação básica e direito de todo cidadão, sendo, portanto, como assevera o parecer CEB/CNE 15/98, alicerce “para o exercício da cidadania, base para o acesso às atividades produtivas, inclusive para o prosseguimento nos níveis mais elevados e complexos de educação, e para o desenvolvimento pessoal” (BRASIL, 1998, p.13). Assim, essa etapa da educação escolar assume caráter de educação geral e não apenas propedêutico. O aluno que frequentar o ensino médio poderá utilizá-lo como via de acesso ao ensino superior, mas também poderá encerrar a sua escolaridade nessa etapa ou fazer outros cursos de caráter profissionalizante pós-médio ou concomitante ao ensino médio. A LDBEN 9394/96 estabelece as diretrizes gerais para a organização curricular do ensino médio e delibera sobre sua finalidade ao definir o que o educando deveria saber ao concluir essa etapa da educação básica: Artigo 35 – O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades:
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I. a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; II. a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores; [...] Artigo 36 – O currículo do ensino médio observará o disposto na Seção I deste Capítulo e as seguintes diretrizes: I. destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência, das letras e das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; a língua portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania; [...] Parágrafo primeiro – Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao final do ensino médio o educando demonstre: I. domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna; II. conhecimento das formas contemporâneas de linguagem; III. domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Parágrafo segundo – O ensino médio, atendida a formação geral do educando, poderá prepará-lo para o exercício de profissões técnicas. Parágrafo terceiro – Os cursos de ensino médio terão equivalência legal e habilitarão ao prosseguimento de estudos. [...] (BRASIL, 1996a grifou-se)
Considerando a gênese do ensino médio como preparatório para o ingresso no ensino superior e seu caráter propedêutico, as alterações propostas pela Constituição Federal de 1988 e pela LDBEN 9394/96 caracterizam uma mudança de paradigmas. Amplia-se a função de ensino preparatório para a de formação básica e geral expressa como a “consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos”, mas também como “a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando” e, dentre outras, “a compreensão do significado da ciência, das letras e das artes”. Nessa perspectiva, a disciplina de língua portuguesa (na qual a literatura está implícita) é entendida como “instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania”, assim como o “conhecimento das formas contemporâneas de linguagem”. Outra especificidade do ensino médio é a de preparar o educando “para o exercício de
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profissões técnicas”. Sendo assim, “os cursos de ensino médio terão equivalência legal e habilitarão ao prosseguimento de estudos” (BRASIL, 1996a). Ao ser incluído na educação básica e passar a ter o caráter de educação geral podendo ser também profissionalizante e sendo universalizado, ou seja, tornando-se direito de todo cidadão instaura-se um desafio para os sistemas de ensino que receberão alunos com objetivos distintos para a sua formação. Dessa forma, a partir das mudanças propostas, percebe-se que a essa modalidade de ensino instaura-se como premissa a continuação dos estudos, o desenvolvimento da capacidade de aprender a aprender e não o mero acúmulo de conhecimentos próprios da educação de caráter conteudista. Espera-se que o aluno seja capaz de interagir com os conteúdos curriculares de maneira a prosseguir estudando e aprendendo mesmo que opte por não ingressar no ensino superior. O ensino médio é concebido como consolidação dos conteúdos estudados e aprendidos no ensino fundamental e o seu aprofundamento. Historicamente o ensino médio não tem identidade social devido a seu caráter propedêutico e pela falta de oferta do curso, assim a partir das diretrizes implantadas em 1999 ele tem a possibilidade de ressurgir e adquirir sua identidade e autonomia. Embora a afirmação da Câmara da Educação Básica e do Conselho Nacional da Educação seja a de que “o significado de educação geral no nível médio, segundo o espírito da LDB, nada tem a ver com o ensino enciclopedista e academicista dos currículos de ensino médio tradicionais, reféns do exame vestibular” (BRASIL, 1998) percebe-se que o ensino de literatura e, principalmente, a escolha dos livros que serão lidos durante o ensino médio estão intimamente vinculados às listas de livros exigidos pelos vestibulares das universidades em que os alunos pretendem cursar o ensino superior. Sendo assim, tornase necessário um estudo sobre o Exame Nacional do Ensino Médio com ênfase em seus objetivos, uma vez que foi criado como mecanismo de avaliação dos egressos do ensino médio com o intuito de verificar se os princípios e as diretrizes propostas foram alcançados. 3. Exame Nacional do Ensino Médio: objetivos e estrutura
Durante década de 1990 ocorre o início de um novo ciclo na educação brasileira. Há a democratização de acesso ao ensino fundamental e uma grande expansão do
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ensino médio. Contudo, para verificar se os egressos desta etapa da escolarização haviam adquirido as competências necessárias foi implantado em 1998 o Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM. De acordo com o Parecer CEB/CNE 15/98 o objetivo deste exame é a análise dos resultados das avaliações e dos indicadores de desempenho [que] deverá permitir às escolas, com apoio das demais instâncias dos sistemas de ensino, avaliar seus processos, verificar suas debilidades e qualidades, e planejar a melhoria do processo educativo. Da mesma forma deverá permitir aos organismos responsáveis pela política educacional desenvolver mecanismos de compensação que superem gradativamente as desigualdades educacionais. (BRASIL, 1998, p. 30)
Portanto, caracteriza-se como parte das políticas públicas educacionais da década de 1990. Antes da implantação deste exame não havia informações oficiais sobre o aprendizado dos alunos que muitas vezes eram medidos pelos exames vestibulares das universidades. A partir deste momento são instauradas também as avaliações do SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica), o Censo Escolar e o Exame Nacional de Cursos. Neste ensaio abordaremos especificamente o ENEM. O ENEM surge com o compromisso de avaliar o desempenho individual dos alunos do ensino médio e de disponibilizar esses resultados o que tem se intensificado a cada nova edição. Enfatiza-se a diferença entre as avaliações do SAEB (Prova Brasil, Provinha Brasil ou Censo Escolar) e o ENEM. Este “produz um amplo diagnóstico do perfil dos alunos, o SAEB produz um profundo diagnóstico dos sistemas de ensino, da matriz organizacional da escola e um perfil detalhado dos professores e diretores do sistema” (CASTRO; TEZZI, 2005, p. 132). Sendo assim, por meio dos resultados obtidos pelos alunos no ENEM possibilita ao poder público “dimensionar e localizar as lacunas que debilitam o processo de produção da sociedade. De outro lado, como instrumento de política pública, busca diretamente em seu público alvo subsídios para avaliação das orientações a serem seguidas” (CASTRO; TEZZI, 2005, p. 132). Ponderando a importância do ENEM, insistentemente reiterada neste estudo, recorre-se ao texto oficial que apresenta as competências que devem ser adquiridas por meio dos conteúdos ministrados na área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias na qual se inserem a língua portuguesa e a literatura:
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Na área de LINGUAGENS E CÓDIGOS estão destacadas as competências que dizem respeito à constituição de significados que serão de grande valia para a aquisição e formalização de todos os conteúdos curriculares, para a constituição da identidade e o exercício da cidadania. As escolas certamente identificarão nesta área as disciplinas, atividades e conteúdos relacionados às diferentes formas de expressão das quais a língua portuguesa é imprescindível. Mas é importante destacar que o agrupamento das linguagens busca estabelecer correspondência não apenas entre as formas de comunicação – das quais as artes, as atividades físicas e a informática fazem parte inseparável – como evidenciar a importância de todas as linguagens enquanto constituintes dos conhecimentos e das identidades dos alunos, de modo a contemplar as possibilidades artísticas, lúdicas e motoras de conhecer o mundo. A utilização dos códigos que dão suporte às linguagens não visa apenas o domínio técnico, mas principalmente a competência de desempenho, o saber usar as linguagens em diferentes situações ou contextos, considerando inclusive os interlocutores ou públicos. (BRASIL, 1998, p. 60-61 grifou-se)
Transferindo essa afirmação para o campo da literatura questiona-se: E a literatura? Qual é o real espaço da literatura dentro da língua portuguesa? Essa incerteza aumenta ao analisar o caráter pragmático que é atribuído à língua portuguesa que deve ser vista como forma de acessar os conhecimentos e exercer a cidadania, assim como forma de acessar as linguagens contemporâneas e adquirir conhecimentos sobre as tecnologias e não apenas como expressão e comunicação. Analisando a quantidade de aulas destinada a essa disciplina e a exigência expressa na lei, seria possível haver um estudo consistente das obras literárias ou haveria apenas um percurso sobre as escolas literárias e a leitura de excertos literários fragmentados e descontextualizados? Apesar da proposta de mudança, a literatura continua perdendo espaço nos documentos oficiais que orientam o ensino e consequentemente nas salas de aula. Neste excerto, por exemplo, ela nem sequer é citada. A literatura estaria implícita nos termos língua portuguesa e possibilidades artísticas? Em consonância o mesmo documento apresenta os objetivos da área Linguagem Códigos e suas Tecnologias dos quais se destaca: Compreender e usar os sistemas simbólicos das diferentes linguagens como meios de: organização cognitiva da realidade pela constituição de significados, expressão, comunicação e informação.
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Confrontar opiniões e pontos de vista sobre as diferentes linguagens e suas manifestações específicas. Analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos das linguagens, relacionando textos com seus contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura das manifestações, de acordo com as condições de produção e recepção. (BRASIL, 1998, p. 63-4)
Novamente percebe-se a ausência do termo literatura, entretanto pode-se ampliar alguns termos como “recursos expressivos das linguagens” às especificidades da literatura. 4. Considerações finais: A década de 1990 caracteriza-se como momento de transição, de ruptura e de muitas esperanças quanto ao futuro da educação básica brasileira, principalmente no que se refere ao ensino médio. Salienta-se que mais importante do que a implementação de políticas públicas educacionais compostas por programas e intervenções de natureza avaliativa, assim como a elaboração de diretrizes curriculares nacionais para o ensino médio por si só não serão responsáveis pela possível melhoria na qualidade da educação. Como está explícito no Parecer CEB/CNE nº 15/98 “o produto mais importante de um processo de mudança curricular não é um novo currículo materializado em papel, tabelas ou gráficos. O currículo não se traduz em uma realidade pronta e tangível, mas na aprendizagem permanente de seus agentes que leva a um aperfeiçoamento contínuo da ação educativa” (BRASIL, 1998, p. 68). Nessa perspectiva, seria prematuro afirmar se essas mudanças provocaram ou não melhorias na qualidade da educação básica brasileira, principalmente com relação ao ensino de literatura.
5. Referências: BRASIL. Casa Civil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível em: Acesso em 10 mar 2014. BRASIL. Casa Civil. Decreto nº 2.208, de 17 de abril de 1997. Brasília, DF: Senado, 1997. Regulamenta o § 2º do art. 36 e os arts. 39 a 42 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Revogado
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pelo Decreto nº 5.154, de 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D2208.htmimpressa.htm. Acesso em 05 de ago. 2014. BRASIL. Casa Civil. Emenda Constitucional nº 14, de 12 de setembro de 1996. Brasília, DF: Senado, 1996b. Modifica os artigos 34, 208, 211 e 212 da Constituição Federal e dá nova redação ao artigo 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/e1496.pdf. Acesso em 05 ago. 2014. BRASIL. Casa Civil. Decreto nº 5.154, de 23 de julho de 2004. Brasília, DF: Senado, 1997. Regulamenta o § 2º do art. 36 e os arts. 39 a 42 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2004/Decreto/D5154.htm#art9. Acesso em 05 ago. 2014. BRASIL. Ministério da Educação. Lei nº 9394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF, 1996a. Disponível em: . Acesso em 07 mar. 2014. BRASIL. Ministério da Educação. Parecer CEB/CNE nº 15/98 aprovado em 01 de junho de 1998. Homologa as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: MEC/SEESP, 1998. Disponível em http://portalsme.prefeitura.sp.gov.br/Documentos/BibliPed/TextosLegais/LegislacaoEd ucacional/Parecer_CNB_CEB_15_98_InstituiDiretrizesCurricularesNacionaisEnsinoM edio.pdf. Acesso em 6 mar. 2014. CASTRO, M. H. C; TEZZI, S. A reforma do Ensino Médio no Brasil e a implantação do Enem. In: SCHWARTZMAN, S.M.C. Os desafios da educação no Brasil. RJ. Ed. Nova Fronteira, 2005. Disponível em: http://www.schwartzman.org.br/simon/desafios/4ensinomedio.pdf. Acesso em 15 de ago. de 2014. HÖFLING, Eloisa de Mattos. Estado e políticas (públicas) sociais. In: Cadernos Cedes, ano XXI, nº 55, novembro/2001. SHIROMA. E. O. A reforma como política educacional dos anos 1990. In: SHIROMA. E. O.; MORAES, M. C. M. Política Educacional. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007, 4ª ed.
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A EXPRESSÃO DA PROPORCIONALIDADE EM PORTUGUÊS NA ABORDAGEM FUNCIONALISTA Patrick Corrêa dos Santos Ferreira (UFRJ) Introdução No âmbito da tradição gramatical posterior à entrada em vigor da Nomenclatura Gramatical Brasileira (doravante NGB), a expressão da proporcionalidade é alocada dentro da subordinação adverbial. Segundo Rocha Lima (1999) representante dessa abordagem tradicional, a subordinação se caracteriza “por uma oração principal que traz presa a si, como dependente, outra ou outras”, mas não fica evidente nessa definição a natureza dessa dependência, se semântica ou sintática. Outros gramáticos exibem a mesma falta de clareza na delimitação do nível em que se verifica a dependência entre a oração subordinada e sua principal. Para além da insuficiência da definição tradicional, um exame cuidadoso do comportamento dessas estruturas tradicionalmente classificadas como subordinadas adverbiais permite refutar a concepção de que constituem um grupo homogêneo, e o mesmo pode ser verificado inclusive quando apenas o subgrupo das proporcionais é considerado. Para uma análise mais abrangente de tais estruturas, que leve em conta suas diferentes possibilidades de configuração, é preciso resgatar a proposta de gramáticos que publicaram seus compêndios antes do estabelecimento da NGB, sobretudo Oiticica (1942). Segundo o autor, existem quatro e não apenas dois procedimentos sintáticos para a estruturação do período composto. Além da subordinação e da coordenação, o período composto pode ser estruturado pelos processos de justaposição e correlação. Somente admitindo a correlação como procedimento sintático distinto da subordinação e da coordenação para organizar o período composto será possível entender e descrever as manifestações linguísticas da noção de proporcionalidade no português brasileiro, um dos objetivos do presente estudo, que se vale dos pressupostos teóricos da corrente funcionalista da costa oeste norte-americana para fundamentá-lo. Essa vertente da linguística tem entre seus expoentes autores como Hopper & Traugott (1997) e toma por base a língua em uso para a descrição e a análise de fenômenos linguísticos.
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O segundo objetivo deste trabalho é rastrear e apresentar que itens, de fato, têm sido recrutados pelos falantes de português para a expressão da proporcionalidade. Serão os mesmos previstos pelos gramáticos tradicionais em seus compêndios ou alguns deles já não vem sendo acionados em situações reais de comunicação? Haveria outros itens que podem veicular tal noção? Tentaremos responder a essas e outras perguntas que possam surgir no decorrer deste texto, que se estrutura da seguinte maneira: a primeira parte, a tradição gramatical pós-NBG é revisitada, a fim de se observar o que se diz a respeito das chamadas orações subordinadas adverbiais proporcionais; a segunda parte apresenta as propostas de outros autores para a análise do fenômeno da proporcionalidade, incluindo a de Oiticica (1942); na terceira parte, discorremos a respeito do funcionalismo, indicando seus principais pressupostos; na quarta parte, apresentamos o corpus que serviu de fonte de ocorrências da manifestação da relação proporcional, bem como oferecemos uma análise funcionalista dessas ocorrências; finalmente, na quinta parte, trazemos algumas considerações sobre a importância de rever a proposta tradicional pós-NGB para o tratamento da proporcionalidade e a necessidade de um ensino de gramática pautado em situações de comunicação efetivas. A proporcionalidade na tradição gramatical pós-NGB Na abordagem dos gramáticos tradicionais pós-NGB, como Bechara (1999), a proporcionalidade é uma noção expressa sintaticamente através do período composto por subordinação, e as ditas orações proporcionais são alocadas no subgrupo das adverbiais, que exercem função análoga à de um advérbio ou adjunto adverbial segundo esses autores. Bechara (1999, p. 207) apresenta uma definição eminentemente semântica para as orações proporcionais, caracterizando-as da seguinte maneira: quando iniciam oração que exprime um fato que ocorre, aumenta ou diminui na mesma proporção daquilo que se declara na oração principal: à medida que, à proporção que, ao passo que, (tanto mais) ... quanto mais, (tanto mais) ... quanto menos, (tanto menos) ... quanto mais, (tanto mais) ... menos, etc. (BECHARA, 1999, p. 207)
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Entretanto, a melhor definição de orações proporcionais entre os gramáticos considerados tradicionais se encontra em Said Ali (1969, p. 146), segundo o qual tais estruturas “denotam aumento ou diminuição que se faz no mesmo sentido ou em sentido contrário a outro aumento ou diminuição”. De fato, a proporcionalidade tende a implicar reciprocidade, como aponta a definição desse gramático, além de conter dentro de si uma concomitância temporal, o que revela uma nuance de tempo. É o que se pode constatar no exemplo a seguir: (1) À medida que essas necessidades são satisfeitas as pessoas erguem os olhos para horizontes mais amplos e tentam suprir necessidades sociais, de estima e de posição na sociedade. (Roteiro de Cinema, Quanto vale ou é por quilo?) Introduzida pela locução conjuntiva à medida que, a oração subordinada expressa uma relação proporcional entre três fatos, a saber: a satisfação de determinadas necessidades, o erguer dos olhos para horizontes mais amplos e a tentativa de suprir necessidades de várias ordens. Em geral, essa locução indica a simultaneidade de dois ou mais eventos, que podem ou não estar em dependência recíproca para que se desenvolvam. No exemplo destacado, existe tal reciprocidade, o que demonstra o quanto o nível semântico pesa na leitura e na definição de uma oração proporcional. A subordinação reside sobretudo nesse nível, e o exemplo se configura como um típico caso de subordinação adverbial. Há casos, porém, nos quais a proporcionalidade é expressa por meio de outro mecanismo sintático, a mencionada correlação. Os gramáticos posteriores à implementação da NGB, contudo, limitam-se a fazer breve menções à correlação e não chegam a admiti-la como procedimento sintático distinto da subordinação e da coordenação. Herdeiros do paradigma estruturalista, no qual cabem somente as dicotomias, tais autores diluem a correlação no âmbito da coordenação, expediente que revela a insuficiência dessa abordagem, pelo que a correlação apresenta características suficientemente distintivas dos demais procedimentos sintáticos de estruturação do período composto, conforme será visto adiante. Rocha Lima (1998, p. 259-84), ao discutir a respeito da correlação, menciona apenas
as
expressões
“fórmulas
correlativas” e “expressões
correlativas”, prevendo tais possibilidades para as orações proporcionais. Tratarse-ia de casos em que cada membro do período contém uma parte de uma locução
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conjuntiva, assim como ilustrado em (2), onde se verifica uma interdependência semântica entre as orações. O gramático, porém, refere-se à correlação como um mero artifício formal, e não como outro procedimento para a organização do período composto. (2) CLÁUDIO: Helena, não insiste, que coisa! Não fica bem. Além do mais, quanto mais você insistir, mais vai se sentir rejeitada. Eu sei. (Roteiro de Cinema, Se eu fosse você) O referido exemplo apresenta algumas diferenças com relação ao anterior. Não se verifica a existência de uma oração principal e outra subordinada: ambas formam uma estrutura de correlação, explicitada pelo par quanto mais... mais, ilustrativo desse arranjo sintático. A eliminação de um dos membros desse par, bem como a inversão da ordem do período, gera estruturas agramaticais, conforme se observa em (2') e (2''): (2') *Além do mais, quanto mais você insistir, vai se sentir rejeitada. Eu sei. (2'') * Mais vai se sentir rejeitada quanto mais você insistir. Conforme será exposto na seção seguinte, as orações correlatas não apresentam a mobilidade posicional típica das subordinadas adverbiais, e são introduzidas por pares correlativos que contribuem de maneira igualitária para o significado das orações.
Outras propostas de tratamento da proporcionalidade
Os critérios apresentados na seção anterior podem ser acionados para a delimitação da correlação, defendida por Oiticica (1942). No início de seu compêndio gramatical, o autor deixa clara a necessidade de se empreender estudos mais aprofundados a respeito desse procedimento sintático, convidando outros gramáticos e/ou pesquisadores a explorá-lo em sua vastidão: (Quanto ao estudo da correlação), faço-o agora o mais completo que posso. Outros, futuramente, com mais lazer, alargarão as pesquisas, pois, neste assunto, deparam-nos os autores, floresta inexplorada. (OITICICA, 1952, p. 2) Em sua proposta de análise do período composto, o referido gramático considera a correlação como um procedimento sintático que apresenta
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características suficientemente distintivas da subordinação e da coordenação, mencionando o que chama de pares correlativos. Oiticica (1942) considera ainda que a proporcionalidade pode ser expressa por meio da correlação, e não utiliza a nomenclatura oração proporcional para esses casos. Sua opção é pelo termo correlata quantitativa progressiva, que se materializa linguisticamente por pares correlativos do tipo “quanto mais... tanto mais”, em que se verificam tempos simultâneos, havendo uma dependência no nível semântico. Chama a atenção tal abordagem porque leva em conta o componente funcional da língua, o que permite considerar Oiticica como um funcionalista avant la lettre, segundo Módolo (1999). Sem dispor de um arsenal teórico consistente, como os que viriam a surgir décadas mais tarde que sua proposta, o autor já incorporava o nível semântico-pragmático à sua análise, um aspecto também destacado por Módolo (1999), outro teórico que acolhe a correlação entre os mecanismos sintáticos de estruturação do período composto. Módolo (1999) se posiciona a favor da proposta de Oiticica (1942), sendo um representante da corrente funcionalista. Nas palavras desse autor, a linha mestra para entender a correlação é perceber que, em primeiro lugar, as orações se correlacionam funcionalmente, resultando depois uma disposição sintática, em que um termo da primeira oração encadeia-se com outro termo da segunda oração. Essa parece ser a posição de Oiticica. (MÓDOLO, 1999, p. 7)
Na proposta desse teórico, a noção de proporcionalidade também não se limita ao âmbito da subordinação adverbial, podendo ser expressa por meio de orações correlatas. Quando se manifestam através de orações correlatas, acumulam a ideia de conformidade: “sobrepondo-se à noção de proporção, está a noção conformativa, implicando um acordo entre as asserções das duas orações correlacionadas” (MÓDOLO, 1999, p. 14), e podem ser ilustradas pelo exemplo (3): (3) A vida na Cidade de Deus virou um filme de bangue-bangue. E por incrível que pareça, quanto mais se matava, mais maluco aparecia pra entrar na
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guerra. (Roteiro de Cinema, Cidade de Deus) Claramente,
as
assertivas
encontram-se
em
um
relação
de
interdependência sintática e semântica, exibindo um acordo entre os dois eventos que expressam. Na fala do personagem Buscapé, que constitui o fragmento citado, o aparecimento de pessoas dispostas a entrar na tal guerra se deve ao número crescente de mortes, e a recíproca é verdadeira. Azeredo (2003, p. 96) se vale prioritariamente do critério semântico em sua proposta de classificação das orações adverbiais. Assim, existiriam cinco grandes grupos semânticos caracterizados por um sentido genérico fundamental. Em sua proposta, as orações proporcionais, assim como as temporais e as locativas, seriam incluídas no grupo que o autor denomina situação/movimento, que indicam “circunstâncias de tempo e espaço referidas ao conteúdo da oração base” (AZEREDO, 2003. p. 96). O teórico afirma que nenhum gramático tradicional considerou somente o aspecto semântico no quadro de distrubuição da subordinação adverbial, argumento que utiliza para referendar sua abordagem. Entretanto, Azeredo (2003) não se dedica a contemplar a possibilidade de as orações proporcionais serem introduzidas por pares correlativos, deixando uma lacuna nos estudos relativos às orações que veiculam essa noção. Rodrigues (2007, p. 231), a exemplo de Oiticica (1952) e Módolo (1999), admite a correlação como procedimento sintático de organização do período composto, e recorre a três critérios para a caracterização desse mecanismo. Segundo a autora, que também se vale de pressupostos teóricos funcionalistas, são características da correlação: 1º apresenta conjunções em pares, ficando cada elemento do par em uma oração; 2º as orações não podem ter sua ordem invertida, ou seja, não apresentam a mobilidade posicional própria das subordinadas adverbiais; 3º não se pode considerar as correlatas como parte constituinte de outra, como ocorre com as substantivas e as adjetivas restritivas. A mesma autora indica que a correlação pode ser definida como um processo em que “duas orações são formalmente interdependentes, relação materializada por meio de expressões correlatas” (RODRIGUES, 2007, p. 231).
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Os critérios de que se vale Rodrigues (2007) para a caracterização da correlação como procedimento sintático são adotados neste estudo tanto para corroborar sua abordagem quanto para demonstrar que as orações proporcionais podem ser estruturadas através do mecanismo da correlação, fato que será discutido na seção dedicada à apresentação de alguns resultados colhidos do corpus selecionado para a realização da presente pesquisa. Funcionalismo: um aparato teórico fundamentado no uso Surgido como uma reação ao modelo gerativista de concepção da língua, o funcionalismo apresenta alguns pressupostos que lhes são caros e serão brevemente discutidos neste trabalho. O mais importante deles é o de que toda análise linguística deve ser pautada por usos reais. Em outras palavras, é a partir de situações reais de comunicação que emergem as formas linguísticas, que nada mais são do que a língua se moldando às necessidades de seus usuários. Um dos conceitos mais caros ao funcionalismo é o de protótipo. Através desse conceito, os teóricos do funcionalismo postulam que as categorias gramaticais possuem limites imprecisos entre si, e um item não depende necessariamente de apresentar todas as traços característicos de uma categoria para garantir o seu pertencimento a ela. Por outro lado, o item que reúne todas as características observáveis de uma determinada classe tende a ser reconhecido pelos falantes como o seu representante prototípico, sendo apontado quando se é preciso exemplificar um componente de uma categoria gramatical. Da noção de prototipia, emerge o conceito de continuum, uma opção divergente da dicotomia que subjaz à exposição dos gramáticos tradicionais. De acordo com Hopper & Traugott (1997), tal dicotomia deve ceder lugar a uma outra perspectiva, a partir da qual os períodos complexos podem ser organizados através dos seguintes dos seguintes processos: - parataxe, em que ocorre independência relativa e equivale às coordenadas assindéticas e sindéticas das gramáticas tradicionais; - hipotaxe, onde se verifica uma cláusula núcleo e uma ou mais cláusulas que não funcionam isoladamente como comunicação e, portanto, apresentam
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dependência relativa, correspondendo às subordinadas adverbiais e adjetivas explicativas da tradição gramatical; - subordinação, em que, de fato, uma oração é constituinte da outra, havendo, assim, completa dependência e equiparando-se às subordinadas substantivas e adjetivas explicativas da tradição gramatical. A proposta de Hopper & Traugott, porém, não abarca a correlação, tal como pode acontecer em português. Nesse sentido, deixam de abordar estruturas em que se verifica interdependência, seja no nível sintático, seja no nível semântico. Por apresentarem características próprias, as orações correlatas não podem ser diluídas em um ou mais dos demais processos de hierarquização dos períodos complexos. Dentre os teóricos funcionalistas, Lehmann (1988, p. 183-184) é o único a oferecer um esquema no qual a correlação encontra abrigo. Segundo este autor, a hierarquia de integração das orações pode ser esquematizada atrabés do seguinte continuum: PARATAXE → DÍPTICO CORRELATIVO → HIPOTAXE → COSUBORDINAÇÃO → ENCAIXAMENTO
De acordo com o esquema proposto por Lehmann (1998), as orações correlatas se localizam entre os processos de parataxe e hipotaxe, e chama a atenção a nomenclatura adotada pelo autor: díptico correlativo, que indica a bipartição que tipifica esse procedimento sintático de estruturação do período composto. Entretanto, o teórico não se aprofunda em observações relativas a tal fenômeno, o que reitera a necessidade de se produzir mais estudos que levem em consideração tal fenômeno.
Metodologia
O roteiro é um texto originalmente escrito, mas que incorpora elementos da fala, pois visa à encenação de atores, que deverão dar a devida entonação aos diálogos, conforme indicam as rubricas do roteirista. Trata-se de um gênero textual híbrido entre a fala a escrita, como atesta Marcuschi (2004) em sua proposta de continuum que inclui ambas as modalidades.
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Para este trabalho, foram analisados 17 roteiros, disponíveis no site Roteiro de Cinema, do qual consta um total de 102 roteiros de longas-metragens filmados ou inéditos. Os roteiros analisados foram os seguintes: O ano em que meus pais saíram de férias (2006), Antes que o mundo acabe (2009), O bandido da luz vermelha (1968), Bendito fruto (2003), O caminho das nuvens, (2003), O céu de Suely (2006), Chega de saudade (2007), Cidade de Deus (2002), O circo das qualidades humanas (1998), Durval discos (2002), É proibido fumar (2009), Feliz Natal (2008), O homem que copiava (2003), Memórias póstumas (2001), Não por acaso (2007), Se eu fosse você (2005), Zuzu Angel (2006). A metodologia consistiu na leitura desses roteiros seguida da seleção de estruturas oracionais que contivessem a noção de proporcionalidade expressa não somente pelas conjunções e locuções conjuntivas previstas pelos gramáticos tradicionais, mas também por outros itens em que se verificasse essa mesma noção sendo veiculada. Trata-se de uma análise quantitativa e qualitativa. O corpus apresentou um total de 91 ocorrências de estruturas em que se manifesta
a
noção
de
proporcionalidade.
Encontramos
apenas
quatro
possibilidades de introdutores de cláusulas proporcionais, a saber: à medida que, quanto mais... mais, enquanto e conforme. A julgar pela análise empreendida até aqui, a lista de itens recrutados pelos usuários do português contemporâneo é menos ampla do que as indicadas pelos gramáticos tradicionais. Desses quatro introdutores, um deles é um par correlativo (quanto mais... mais), o que corrobora nossa hipótese de que a proporcionalidade é uma noção que pode ser expressa linguisticamente através do processo sintático de correlação. Entretanto, o item mais frequente para expressar tal relação foi enquanto, presente em 84 das 91 estruturas identificadas, seguido por à medida que, introdutor de 9 estruturas. O par correlativo quanto mais... mais foi encontrado em 6 estruturas, e houve 2 ocorrências de cláusulas proporcionais encabeçadas por conforme, um item prototipicamente conformativo e não previsto como introdutor de cláusulas proporcionais. De qualquer maneira, em ambas as ocorrências a leitura proporcional se soma à conformativa, o que nos parece um indicador, ainda que discreto, de que esse item pode estar apresentando comportamento multifuncional. O mesmo pode ser dito a respeito de enquanto. Foram localizados outros usos para esse item que não o de introdutor de cláusulas proporcionais, não
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selecionados para este trabalho, que enfoca exclusivamente cláusulas com a referida semântica. A título de exemplificação da ocorrência de cada um desses itens, observem-se os fragmentos a seguir:
(3) Marici vira-se de costas e olha para a lua e a noite na cidade. Vemos da rua seu corpo emoldurado na janela do velho predinho. Num plano mais fechado, vemos que Marici chora enquanto ouve a música. (Roteiro de Cinema, Chega de saudade) (4) À medida que aumenta a intensidade das carícias de Maria Germana, aumenta também a excitação de Ulysses. (Roteiro de Cinema, O circo das qualidades humanas) (5) A vida na Cidade de Deus virou um filme de bangue-bangue. E por incrível que pareça, quanto mais se matava, mais maluco aparecia pra entrar na guerra. (Roteiro de Cinema, Cidade de Deus) (6) Sorrisos e gargalhadas pipocam em todo canto. Contudo, conforme a noite vai avançando, novos contornos da existência vão se revelando, (Roteiro de Cinema, Chega de saudade)
Os excertos destacados acima são bastante representativos da realidade linguística do português contemporâneo no que tange à expressão da proporcionalidade. Em (4) e (5), verificam-se estruturas semanticamente dependentes de uma oração matriz e, portanto, não subsistem isoladas. São casos legítimos de subordinação adverbial nos termos da tradição gramatical. Na abordagem funcionalista, podem ser analisadas como casos de hipotaxe adverbial, porquanto manifestam relação circunstancial em relação ao conteúdo da oração matriz. Os introdutores enquanto em (4) e à medida que em (5) revelam a simultaneidade dos eventos de ouvir a música e chorar e de aumentar as carícias e aumentar a excitação, respectivamente. O exemplo (5) contém um caso representativo de período composto por correlação. Cada uma das cláusulas que o formam apresentam membros de um par correlativo, e atendem aos critérios apresentados por Rodrigues (2007) para a caracterização da correlação, aqui retomados. A conjunção vem aos pares, cada
1546
uma delas introduzindo uma das cláusulas; o par correlativo quanto mais... mais se divide entre as duas cláusulas. A mobilidade posicional típica das subordinadas adverbiais não se verifica em (5), uma vez que a inversão das cláusulas geraria uma estrutura agramatical. Por fim, não é possível considerar as correlatas como parte constituinte da outra, o que as diferencia das substantivas e das adjetivas restritivas. Por fim, o exemplo (6) apresenta uma cláusula proporcional introduzida por conforme, um item não previsto pelos gramáticos tradicionais para a veiculação de tal noção, o que revela um uso inovador desse item. Ainda que a noção conformativa esteja presente, a leitura proporcional também é válida, uma vez que se verifica a concomitância dos eventos, um ponto pacífico entre os gramáticos tradicionais na caracterização de cláusulas com tal leitura. Ademais, os estados de coisas contidos na cláusula matriz e na subordinada dependem um do outro para se desenvolver. É o avançar da noite que permite a revelação de novos contornos, segundo narra o roteirista no trecho selecionado. Trata-se de um uso que merece ser contemplado em estudos que se propõem a descrever atualizadamente os itens recrutados pelos falantes do português. Considerações finais Através desse artigo, buscamos evidenciar as inconsistências da abordagem tradicional para a descrição e a análise da noção de proporcionalidade, indicando que é preciso deixar clara a natureza da dependência existente entre uma oração subordinada adverbial e sua matriz, bem como a necessidade de incluir a correlação entre os procedimentos sintáticos possíveis para a organização do período composto. Como um trabalho de orientação funcionalista, advogamos em favor de um ensino pautado em situações reais de comunicação, que demonstrem para o aluno como a língua pode se moldar às suas necessidades comunicativas, fazendoo, portanto, entender que é a língua que está a seu serviço, e não o contrário. Acreditamos que esse é o caminho para um ensino mais produtivo, com alunos qu refletem sobre as escolhas conscientes ou não que realizam o tempo todo. Essa concepção de ensino se aplica não somente à abordagem da ideia de proporcionalidade, mas também de outros fenômenos linguísticos.
1547
6. Referências AZEREDO, José Carlos. Iniciação à sintaxe do português. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. HOPPER, Paul & TRAUGOTT, Elizabeth. Grammaticalization. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. LEHMANN, Christian. “Towards a typology of clause linkage”. In: HAIMAN, Johm & THOMPSON, Sandra. Clause combining in grammar and discourse. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing, 1988. MÓDOLO, Marcelo. Correlacionando orações na língua portuguesa. Disponível em http://estacaodaluz.org.br/files/mlp/texto_6.pdf, acesso em 16 de setembro de 2014. MOURA NEVES, Maria Helena de. Gramática de usos do português. São Paulo: UNESP, 2000. OITICICA, José. Teoria da correlação. Rio de Janeiro: Organizações Simões, 1952. ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática normativa da língua portuguesa. Rio de Janeiro, José Olympio, 1999. RODRIGUES, Violeta Virginia. “Correlação”. In: VIEIRA, Silvia Rodrigues & BRANDÃO, Sílvia Figueiredo. (orgs.). Ensino de Gramática: descrição e uso. São Paulo, Editora Contexto, 2007. SAID ALI, Manuel. Gramática secundária da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1969.
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SÂNDI EXTERNO: UMA ANÁLISE DE DADOS DE AQUISIÇÃO DE LÍNGUA ESPANHOLA POR BRASILEIROS EM SALA DE AULA DE LÍNGUA ESTRANGEIRA
Paula Penteado De David (UFPel) Orientadora: Profª. Dr. Cíntia da Costa Alcântara (UFPel)
Os fenômenos de sândi externo no português brasileiro são tema de importantes estudos na área de fonologia e variação linguística. Tais fenômenos em contexto frasal são em número de três ― ditongação, degeminação e elisão. Considerando a relevância de estudos dessa ordem para a compreensão de processos fonológicos variáveis, este trabalho tem por objetivo descrever e analisar os processos de sândi externo que ocorrem na fala de brasileiros, durante o processo de aquisição do espanhol como língua segunda. Estudos apontam que há semelhanças e dessemelhanças entre o que ocorre em português e espanhol. A partir do estabelecimento de como funciona cada uma das línguas, da comparação de seus sistemas, bem como da análise do corpus de falantes nativos do PB adquirindo espanhol em contexto formal de aprendizagem, que a presente proposta busca descrever e analisar os processo de sândi externo que aparecem na aquisição do espanhol. O corpus constitui-se de dados de fala espontânea, coletados junto a informantes de diferentes níveis de espanhol como L2, graduandos em Licenciatura em Letras habilitação Português-Espanhol da Universidade Federal de Pelotas ― UFPel.
Introdução
Os fenômenos de sândi externo no português brasileiro são tema de importantes estudos na área de fonologia e de variação linguística. Tais fenômenos, em contexto
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frasal, são em número de três – ditongação, degeminação e elisão. Enquanto os dois primeiros têm um contexto mais amplo de aplicação, o terceiro – a elisão – apresenta um contexto bastante restrito, no qual necessariamente há uma vogal átona, /a/, que deve sofrer apagamento. Da mesma forma, a literatura aponta a ditongação como sendo de grande índice de aplicação,
comparativamente aos dois outros processos.
Considerando, pois, a relevância de estudos dessa ordem para a compreensão de processos fonológicos variáveis, este trabalho tem por objetivo descrever e analisar os processos de sândi externo que ocorrem na fala de brasileiros, durante o processo de aquisição do espanhol como segunda língua. Relativamente ao espanhol, os processos de juntura externa também são registrados; contudo, ainda que haja alternância entre o uso de vogais e o de ditongos em contexto de fronteira de palavras, destaca-se a ditongação como o processo mais recorrente nessa língua, igualmente ao que se dá no português. Estudos apontam que há semelhanças e dessemelhanças entre o que ocorre em português e em espanhol. Isso posto, é a partir do estabelecimento de como funciona cada um desses sistemas, da comparação entre eles, bem como da análise do corpus de falantes nativos do PB adquirindo espanhol em contexto formal de aprendizagem que o presente trabalho busca descrever os processos linguísticos de sândi externo, detectados na fala de informantes brasileiros aprendizes de espanhol como L2, verificar qual(is) é(são) o(s) processo(s) mais recorrente(s) na fala dos aprendizes de espanhol como L2, bem como comparar os processos de sândi externo encontrados nos dados dos aprendizes brasileiros com os que ocorrem na língua alvo – o espanhol. O presente trabalho se justifica pela necessidade de se efetuarem mais estudos que versem sobre os processos de sândi externo no espanhol, trazendo assim contribuições para os estudos já propostos sobre o assunto. Além disso, visa ampliar os conhecimentos sobre o tema, a partir de uma língua românica que tem muitas similaridades com o português, como é o caso do espanhol,
podendo
contribuir para a área de ensino-aprendizagem de línguas.
1550
Revisão bibliográfica
A sílaba no português e no espanhol
Não é possível falar sobre o fenômeno que buscamos investigar – o sândi externo – sem mencionar o principal constituinte prosódico em que é passível de ser detectado, a sílaba. De acordo com Bisol (2002, p. 53)
“A sílaba, menor unidade prosódica, cujos constituintes são o ataque e a rima, compreendendo essa, por sua vez, o núcleo e a coda.”
Assim sendo, segundo Bisol (2002), toda sílaba carrega obrigatoriamente um núcleo silábico. Por exemplo, na palavra ca-sa (CV) há duas sílabas, com padrão universal – consoante e vogal. A vogal, em núcleo, se faz acompanhar, à borda esquerda, de uma consoante. Os dois “a” constituem picos silábicos de sonoridade. O núcleo pode, ainda, ser seguido ou não de uma coda, à borda direita, a exemplo da palavra cor-da (CVC-CV). Pode-se perceber que o “r” final da penúltima sílaba exerce tal função dentro desta. Tal consoante em coda e a vogal em núcleo, que se lhe precede, constituem, portanto, uma rima, neste caso complexa em virtude da posição de coda estar preenchida. Relativamente à posição inicial de uma sílaba, denominada ataque ou onset, essa pode ser ocupada por qualquer consoante em português. Em se tratando de um onset complexo, tem-se duas consoantes em sequência, a segunda das quais será /r/ ou /l/e a primeira uma plosiva ou fricativa, a saber, pra-to, em que “pr” é um onset complexo. Masip (1998, p. 16) conceitua a sílaba de acordo com Trubetzkoy, como:
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“[...]
do
ponto
de vista puramente
fonético, é uma combinação de vogais, consoantes
e
de
elementos
rítmico-
melódicos de caráter prosódico; do ponto de vista fonológico, é uma unidade composta de centro, que normalmente é constituído por uma vogal, e margens.” Como já mencionado, considerando a estrutura silábica como a base para o estudo referente aos processos de sândi externo, vejamos como esses processos se apresentam de acordo com as estruturas silábicas pertencentes à língua espanhola. Ambos os idiomas permitem tipos silábicos mais simples (V) e mais complexos (CCVV), assim, a partir dos diferentes padrões silábicos já apresentados pela literatura da área, pretende-se investigar como ocorre a ressilabificação no processo de sândi externo no espanhol em dados de fala de aprendizes dessa língua.
Os processos de sândi externo na língua portuguesa
Levando em consideração a estrutura básica de uma sílaba, é possível afirmar que alguns fenômenos são capazes de modificá-las em um contexto frasal, dentre os quais estão os fenômenos de sândi externo. O sândi é referido, de modo geral, como um fenômeno de fonética sintática que registra alterações fonéticas ocasionadas por contatos de formas livres, transformado-as em formas presas. Esses fenômenos no português brasileiro são em número de três – ditongação, degeminação e elisão. (BISOL, 2003, p. 232). A partir da concepção apresentada por Bisol (2003), vejamos os contextos
desencadeadores,
bem como
os
exemplos
de
cada
processo
de
ressilabificação. Conforme já referido, subdividem-se em três processos de juntura externa: ditongação, degeminação e elisão. O processo de degeminação, segundo Bisol (2002),
1552
consiste na fusão de duas vogais adjacentes idênticas, pertencentes a palavras distintas, do que resulta o desaparecimento de uma delas. Vejamos os contextos que favorecem à aplicação do mencionado processo e os que não o favorecem, a partir de exemplos fornecidos por Bisol (2002, p.66). Os contextos favoráveis à aplicação são os seguintes: a primeira vogal tônica – V1, como em: “fica (r) amontuados” - fi[kA]montuados; e quando ambas as vogais átonas, como, por exemplo: “frutas que eu nunca havia visto” – nun[ka]via visto. Já, os contextos que não são favoráveis à aplicação são: quando ambas as vogais são tônicas – V1 e V2, como em: “araçá ácido” – *ara[sá]cido; e a segunda vogal tônica: “imensa área” – *imen[sá]rea. De acordo com Bisol (2002), o processo denominado elisão está centrado à supressão de /a/ em final de palavra, quando seguido de uma vogal diferente no contexto seguinte, neste caso, em início de palavra. Vejamos os exemplos apresentados por Bisol (2002, p. 62), que são favoráveis à aplicação, bem como os que não favorecem. O processo ocorrerá quando ambas as vogais forem átonas, sendo esse o contexto mais favorável para a aplicação da regra, exemplo: “Eu estava hospitalizado” – esta[vos]pitalizado; quando a segunda vogal
for acentuada, sem choque acentual:
“Ele não tinha outra solução” – ti[-o]tra solução. Já os contextos que não favorecem a aplicação da regra são os seguintes: a segunda vogal portadora de acento, com choque acentual, como em: “Recebia hóspede todos os dias” – *receb[íO]spede todos os dias; e quando a segunda vogal for acentuada, sem choque acentual: “Plácida orla” – *pláci[d Or]la. No que concerne à ditongação, diferentemente dos outros dois processos mencionados, essa não resulta da perda de um segmento, mas, ao contrário, de sua preservação. Segundo Bisol (2002, p. 60), a ditongação é caracterizada pela ressilabificação de dois segmentos, V1 e V2. Isso se dá entre vogais adjacentes, mas pertencentes a diferentes palavras.Os contextos favoráveis à aplicação desse processo são: quando ambas as vogais da sequência V1 e V2 são átonas, como, por exemplo: “Verde amarelo” – ver[dja]marelo;
uma das vogais alta e átona, como em: “está
estranho” – es[tajs]tranho, aqui, nesse caso, a vogal média-alta anterior, quando seguida de sibilante na mesma sílaba, sofre elevação para vogal alta anterior, /i/, e como última
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regra de aplicação, a segunda vogal não porta o acento principal, como em : “Camisa usada” – cami[zaw]sada. Vale ressaltar que esses processos são recorrentes somente na fala, não na escrita.
Os processos de sândi externo na língua espanhola
Com respeito aos fenômenos de sândi externo no espanhol, esses não são tão divergentes comparados ao português. Alguns autores, como Brisolara (2004) e Penny (1986), já apresentaram estudos nesta área de concentração que mostram os processos de sândi externo no espanhol, os quais também se apresentam em número de três: degeminação, elisão e ditongação. De acordo com Penny (op. cit), vejamos alguns fonemas que constituem a ditongação e como esses se comportam: Os fonemas i e na posição de final de morfema,
,
é excluído e o morfema i é limitado a um número
restrito de ocorrências, mas mantendo-se como pronome possessivo, mi, “meu” em português. O fonema /i/, em posição tônica, se manifesta como [i], mas em posição átona apresenta as seguintes realizaç e s.
egundo Penny 1 ,
p.
,
alguns
contextos e exemplos em que esses fonemas podem se manifestar são: entre vogais e consoantes,[i], como, por exemplo: “tu y Maria” – “Me irrita” - 'Tu e Maria' – 'Me irrita'; entre consoante e vogal, [ ], como em: “Juan y Antonio” – “mi amigo” - João e Antônio – Meu amigo; entre vogais, [ ], a exemplo: “calla y escucha”, “ hay uno” – Cala e escuta , Há um. Quanto ao fonema /u/, sua realização pode ocorrer em posição de final de morfema em um número reduzido de palavras, como, por exemplo, nos pronomes tu e su, no português – “teu” e “seu”; também apresentando variaç e s dependendo da posição em que se encontram. Os exemplos a seguir foram retirados de PENNY (1986, pp. 499-500): [w] antes de uma vogal, como em: “su amigo” – seu amigo; em início de morfema e dentro de um domínio constituído pela frase fonológica, /# u / obrigatoriamente apresenta variantes fonéticas, tais como: átona, entre vogal e consoante, [u], como em: la universidad - 'A universidade'; átona, na sequência de / # u # /, [w], exemplo: uno u otro - 'Um ou outro'.
1554
Já a degeminação, de acordo com Penny (1986, p. 500-1), ocorre quando um limite de morfema acontece entre duas vogais idênticas, sendo essas realizadas por meio de uma única vogal de comprimento normal, ou seja, cuja extensão não sofre alteração. Exemplo: /'kuatRo#'oxos/ ['kwa'troxos]. Nesse caso, podemos observar que a juntura de ambas as vogais em fronteira de palavra – V1 e V2 – propiciou o desaparecimento de V1, em ‟kuatRo/. Referente ao processo de elisão, Contreras (1966) apresenta-o como um processo que requer vogais átonas e que a segunda vogal seja mais alta que a primeira. No entanto, a elisão também ocorre quando as duas vogais adjacentes são idênticas em traços segmentais, contanto que a segunda vogal seja átona. Vejamos alguns exemplos em que esse processo é fomentado, a saber, “casi imposible” – [kàsimposíble] e “comí y dormi” – [komídormì]. A formação que não propiciará a elisão será quando a V2 for mais alta que a V1, bloqueando o processo, como em: “mi hilo” – [mílo].
O processo de sândi externo: Português X Espanhol
A partir da bibliografia apresentada anteriormente, juntamente com os dados coletados, foi possível observar que os informantes que utilizam a língua espanhola como L1 apresentam apenas uma divergência, comparados aos aprendizes de língua espanhola como
L2.
O fenômeno que se diferencia entre os processos de
ressilabificação em ambas as línguas é o de degeminação. Na língua espanhola, é aceitável como
processo
de degeminação
a seguinte estrutura: /kuatRo#‟oxos/
[„kwa‟troxos], mostrando que a V2, neste caso „oxos, é portadora do acento,o que diverge das regras de ressilabificação apresentadas em português. Na língua portuguesa, o processo supracitado não aceitaria tal juntura, como por exemplo em: “fruta+ácida” - *frut[á]cida
ou, também, o seguinte exemplo apresentado por Bisol (2003):
“Como+uvas” - *com[u]vas, visto que a V2 não pode ser portadora de acento.
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Metodologia
No que cerne à metodologia empregada, a realização deste trabalho foi feita a partir da metodologia laboviana de entrevistas sociolinguistas. Os dados de fala espontânea foram coletados junto a doze informantes brasileiros, graduandos em Letras (hab. port./esp.) de diferentes níveis de espanhol como LE, 3º, 5º e 8º semestres da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Após, esses dados foram transcritos e catalogados, segundo o tipo de processo encontrado – ditongação, degeminação ou elisão, resultando no corpus apresentado nessa pesquisa. Salienta-se que se trata de um projeto piloto para estudos vindouros na área da fonologia. Nas tabelas a seguir vejamos alguns exemplos dos processos de sândi externo encontrados nos dados dos informantes, bem como o índice de ocorrência por semestre e a totalidade de cada processo.
Análise dos dados
No quadro a seguir, é possível observar que os alunos do 3º semestre tiveram um número maior de ocorrências de ditongação, totalizando 74 em um total de 125 casos em que a regra poderia ser aplicada. Quanto à ocorrência dos processos de degeminação e elisão, esses tiveram um índice reduzido. Nota-se, também, uma maior frequência de ocorrências de degeminação do que de elisão. Tabela 1:
1556
Vejamos alguns exemplos de ocorrência dos processos de sândi externo apresentados pelos alunos do terceiro semestre.
Tabela 2
Assim como os alunos do terceiro semestre, os do quinto apresentaram um número alto de ocorrências de ditongação, em relação aos outros dois processos de ressilabificação, conforme apresentado em 2. Pode-se notar, contudo, que a ocorrência de degeminação no semestre em pauta é mais frequente do que o processo de elisão, tal como se dá no terceiro semestre.
Tabela 3
Vejamos exemplos de algumas ocorrências dos processos de sândi externo apresentados pelos alunos do quinto semestre.
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Tabela 4
No que diz respeito aos alunos do oitavo semestre, a ditongação se sobressai entre os três processos de ressilabificação, mas é possível observar um equilíbrio entre o número de ocorrências de degeminação e elisão. Cabe destacar que, em todos os casos em que fosse possível a ocorrência do processo de degeminação, a regra foi aplicada.
Tabela 5
A seguir alguns exemplos da ocorrência dos processos de sândi externo apresentados pelos alunos do oitavo semestre.
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Tabela 6
Na tabela abaixo, podemos observar o total de eventos de cada processo de sândi externo, nos dados coletados.
Tabela 7
Resultados preliminares
Tendo em vista que o presente trabalho trata-se de um projeto piloto, este estudo inicial permite tecer alguns comentários acerca de aspectos linguísticos relativos aos processos de sândi externo, empregados por falantes nativos do português como aprendizes de espanhol como L2. O processo de ditongação foi o mais recorrente dos três, nos dados analisados – totalizando 205 ocorrências de um total de 293 possibilidades de aplicação da regra. Na sequência, vem o processo de degeminação, com 123 ocorrências, de um total de 139 contextos de aplicação do processo. E, por fim, aparece o processo de elisão, o qual obteve o índice menor de aplicação, perfazendo 81
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ocorrências, de 128 possibilidades de aplicação. Também foi possível observar que o espanhol apresenta pelo menos um caso de degeminação que não ocorre em português – com V1 átona, recaindo, porém, sobre V2 o acento frasal (cf. Bisol, 2002, 2003).
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Referências
BISOL, Leda. Sândi externo: o processo e a variação. In: Kato, M . A. (org.) Gramática do português falado: Convergências. Editora da Unicamp, 2002, p. 5395. v. V.
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_____. Sandhi in Brazilian Portuguese. Probus 15, 2003, p. 177-200.
BRISOLARA, Luciene; MATZENAUER, Carmen. O comportamento da vogal átona /e/ de clíticos e os processos de sândi. Anais do 6º Encontro Celsul - Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul. Florianópolis: UFSC, 2004.
CONTRERAS, Heles. Spanish Sandhi and binary features. Edrs price, New York, 1966.
MASIP, Vicente. Fonética espanhola para brasileiros. Recife, Sociedade Cultural Brasil – Espanha, 1998.
1561
PENNY, Ralph. Sandhi phenomena in Castilian and related dialects. In: Henning, Andersen (ed.). Sandhi Phenomena in the Languages of Europe. Berlin: Mouton de Gruyter, 1986, p. 489-504.
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REPETIÇÕES DE PALAVRAS: ESTUDO CONTRASTIVO ENTRE O PORTUGUÊS E O INGLÊS VIA LINGUÍSTICA DE CÓRPUS Paulo Roberto Kloeppel (UFSC) Introdução A questão das repetições lexicais merece grande cautela por parte de falantes nativos do português, seja no campo da tradução ou no da aprendizagem do inglês como língua estrangeira, visto os dois sistemas linguísticos darem tratos diferenciados à questão. Conforme afirmou a Dr. Doutora Lourdes Bernardes Gonçalves, em palestra por ela ministrada na Universidade Federal de Santa Catarina, ...o português não gosta de repetir palavras enquanto que o inglês não tem esta preocupação exagerada como nós... nós temos... nós achamos mais ou menos que é um pecado mortal ficar repetindo palavras... (GONÇALVES, 2010 informação verbal)1 .
Nesta asserção, Gonçalves parece delinear duas dimensões para a questão das repetições de vocábulos: uma intrínseca aos sistemas linguísticos, i.e., “o português não gosta” e “o inglês não tem esta preocupação exagerada”, e outra que aponta para construtos sociais, pois “nós achamos”. Destas duas dimensões, quanto à social, tomouse como pressuposto o mote de que em inglês a repetição de vocábulos não seja igualmente problemática como ela é no português, o que, por consequência, se confirmado o pressuposto, pode acarretar numa maior ocorrência de repetições lexicais em inglês. No que se refere aos sistemas linguísticos, levantou-se hipóteses relativas à existência de relações intrassistêmicas inerentes ao sistema linguístico do inglês, às quais cumpriria explicar os comportamentos discrepantes das repetições de vocábulos nas duas línguas. Levantou-se, também, hipóteses relativas ao processamento e armazenamento de homonímias e polissemias, as quais seriam impactantes na recepção das repetições lexicais por falantes do inglês. Diante desta conjuntura de investigação científica, a Linguística de Córpus se apresentou como a abordagem que melhor atendia 1
Citação extraída da palestra intitulada Linguística de Corpus e Tradução Literária: Uma parceira viável, ministrada pela Doutora Lourdes Bernardes Gonçalves, no dia 30 de novembro de 2010, na Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível na página da PGET da UFSC.
1563
à função heurística (BARDIN, 2011, p.35) da pesquisa, pois por um lado ela permite quantificações de frequências de ocorrências de repetições de vocábulos, necessárias à averiguação do pressuposto de pesquisa, por outro, permite alinhamentos (aposições) de amostras de línguas, que viabilizam contrastes entre os sistemas linguísticos, fundamentais na averiguação das hipóteses da pesquisa. Sobretudo, a abordagem via córpus eletrônico permite o alinhamento de segmentos frásicos e parágrafos de textos fonte e alvo, com certo grau de acuidade, e como asserem McEnery e Xiao, “um córpus paralelo bidirecional bem ajustado pode ser a ponte que aproxima a tradução e os estudos linguísticos contrastivos” (MCENERY e XIAO, 2007, p.6, tradução nossa). Isto posto, arquitetou-se um córpus bidirecional paralelo, composto por 782.175 palavras de textos fonte e seus respectivos textos alvo em português e inglês. Com a decisão por construir um córpus bidirecional procurou-se neutralizar os efeitos do tradutês, pois “estudos mostram que a língua traduzida é tradutês”, visto que “os efeitos das línguas fonte na tradução são fortes o suficiente para que as línguas de textos traduzidos sejam diferentes das línguas alvo” (Ibid.), mas estes efeitos podem ser minimizados com a composição de um “córpus paralelo, bidirecional, com as mesmas proporções, gêneros, domínios e período de amostragem” (Ibid.). Acredita-se, assim, que, com esta arquitetura, o córpus em questão contém uma porção de língua de grandeza suficiente para servir de base para se checar o pressuposto e hipóteses da pesquisa. Isto posto, discute-se, a seguir, o pressuposto e as hipóteses da pesquisa, bem como se apresenta alguns dados obtidos na abordagem ao córpus da pesquisa. Cabe salientar que os dados apresentados neste artigo representam uma parcela significativa da pesquisa, mas não sua totalidade, visto que, por questões de adequação às normas de publicação, os dados obtidos que demandam extensas considerações mais aprofundadas não são apresentados. 1. Pressuposto e hipóteses: detalhame nto e abordagens ao córpus 1.1 Pressuposto de pesquisa A título de checagem do pressuposto de pesquisa, contrastou-se as frequências de ocorrências de repetições lexicais nas duas línguas, via quantificações destas com o auxílio do software WordSmith Tools 6 (SCOTT, 2010). Primeiramente, quantificou-se
1564
as referidas frequências nos quatro subcorpora, i.e., subcorpora com os textos fontes em português e em inglês e subcorpora com as respectivas traduções daqueles. A ferramenta utilizada para as quantificações foi a WordList, a qual fornece, entre outras informações, a Type/Token Ratio (TTR) e a Standardised Type/Token (STTR)1 . Ambas as taxas, basicamente, indicam, diretamente ou inversamente, a diversidade lexical de textos ou córpus linguísticos, como afirma Berber Sardinha, Na prática, a razão vocábulo / ocorrência indica a riqueza lexical do texto. Quanto maior o seu valor, mais palavras diferentes o texto conterá. Em contraposição, um valor baixo indicará um número alto de repetições, o que pode indicar um texto menos rico, ou variado, do ponto de vista de seu vocabulário. (BERBER SARDINHA, 2004, p.94)
O quadro 01 apresenta estas relações, sendo que, TTRs mais elevadas indicam menores frequências de ocorrências de repetições de vocábulos e STTRs mais elevadas indicam maiores diversidades lexicais. No quadro ST refere-se aos textos fonte, e TT aos alvo. E, tokens corresponde ao total de vocábulos dos subcorpora e types ao total de vocábulos excluindo-se suas repetições. Subcorpora ST em português TT em inglês TT em português ST em inglês
Tokens
Types
TTR
STTR
211.925
21.931
10,36
45,43
242.943
15.453
6,37
40,30
159.738
18.641
11,70
50,19
167.569
11.751
7,02
43,44
Quadro 01 O gráfico 01 fornece uma melhor visualização do contraste entre as TTRs dos quatro subcórpus da pesquisa. Percebe-se que a curva do gráfico se eleva na direção correspondente aos textos em português, o que indica menos ocorrências de repetições lexicais nos subcorpora em português e, por sua vez, maiores ocorrências de repetições de palavras nos subcorpora em inglês, correspondentes aos pontos mais baixos da curva. 1
Para obter detalhes dos cálculos da TTR e STTR, ou obter informações sobre o software WordSmith tools 6 acesse o site http://www.lexically.net/wordsmith/.
1565
20
0 TTR
Gráfico 01 Entretanto, como estas taxas são medidas bastante rudimentares (SCOTT, 2010), efetuou-se procedimento homólogo, individualmente, com todos os textos que compõem o córpus da pesquisa para checar-se se as repetições de vocábulos não se concentravam nestes ou naqueles textos. Constatou-se que todos os textos apresentam TTRs e STTRs com tendências compatíveis com as apresentadas no quadro 01. Portanto, a tendência de maior repetição de vocábulos em inglês não pôde ser atribuída a particularidades de determinados textos, nem atrelada a contextos históricos e socioculturais, nem a estilos pessoais de escritura, etc. 1.2 Hipóteses levantadas Com base nos dados apresentados no subitem 1.1, considerou-se como validável o pressuposto de pesquisa, e levantou-se três hipóteses como diretrizes para a pesquisa:
As relações de coesão que se estabelecem em inglês, em muitos casos, demandam a repetição de vocábulos;
A polissemia e a ambiguidade lexical são mais comuns em inglês do que no português;
Falantes nativos do inglês e não nativos fluentes não processam repetições de vocábulos da mesma forma que falantes nativos do português o fazem.
1.2.1 Questão da coesão textual Dentre as metas funções da língua desenvolvidas por Halliday e Hassan (1989), a função textual, que envolve as relações gramaticais que estruturam enunciações, está relacionada a aspectos de coerência e coesão (HALLIDAY e HASSAN, 1976), sendo
1566
que a última tanto participa na construção de significados, quanto, garante a continuidade no fluxo discursivo. Como Halliday e Matthiessen destacam, A gramática fornece outros recursos, não estruturais para a gestão do fluxo do discurso: para a criação de ligações semânticas entre frases ou melhor, as ligações semânticas que funcionam igualmente dentro ou entre frases. Estas últimas são referidas coletivamente sob o nome de coesão (HALLIDAY & MATTHIESSEN, 2004, p. 87, tradução nossa).
Assim, as relações coesivas estabelecem vínculos gramaticais ou semânticos, entre itens lexicais, os quais garantem a dupla participação delas na funcionalidade da língua. Isto posto, em relação ao contraste entre os dois sistemas linguísticos, proposto pela pesquisa, dois fatos linguísticos da língua inglesa, e outros não abordados aqui, evidenciam discrepâncias entre os sistemas linguísticos quanto à questão da repetição de vocábulos:
Em inglês há um número bastante inferior, comparativamente ao português, de desinências verbais (RUBBA, 2004);
Os substantivos ingleses (contáveis), no singular, não podem figurar em sentenças, sem um determiner que os anteceda (HUDSON, 2004). A sentença “I was afraid of running my hand across my lips and finding traces,
traduzida de “tinha medo de passar a mão pelos lábios e perceber vestígios”, extraída de Paixão segundo GH, de Clarice Lispector, quando submetida a uma análise quanto à coesão, destaca estes dois aspectos do inglês, pois o pronome pessoal I e o adjetivo possessivo my, não diretamente correspondentes a itens lexicais do original, foram incluídos na tradução em função destes fatos linguísticos. A inclusão de I na tradução se deu em função de a forma verbal do passado do verbo be, was, poder se referir à 1ª e à 3as pessoas do singular e, sendo hand um substantivo contável e estando no singular, fez-se necessária a inclusão de um determiner na tradução, no caso my, em função da referência anafórica (HALLIDAY e HASSAN, 1976) com I. Desta forma, considerando-se que os demais verbos ingleses não têm desinências que distingam as pessoas à que se referem, - com exceção do acréscimo de ‘s’, ‘es’ ou ‘ies’ nos verbos no Simple Present para as 3as pessoas do singular
1567
(MURPHY, 1994, p. 280) -, pode-se inferir que há uma necessidade maior de se incluir pronomes pessoais na construção de segmentos frásicos em inglês do que em português. O gráfico 02, obtido nas abordagens aos subcorpora nos dois sentidos portuguêsinglês e inglês-português, destaca as diferenças nas frequências de ocorrências de alguns pronomes pessoais nas duas línguas. 6.000 5.000 4.000 3.000
Freq. Port.
2.000
Freq. Ingl.
1.000 0
Gráfico 02 1.2.2 Questão da polissemia e a ambiguidade lexical Cumpre-se de
imediato
distinguir
estes dois
fenômenos
linguísticos
fundamentais à significação. Bakhtin (2003) ao ser assertivo enunciando que os significados de palavras não podem ser tomados, Ipsis litteris, tal como estão dicionarizados, visto as palavras serem empregadas em diferentes enunciações produzidas em diferentes contextos e por uma gama diversa de emissores, aponta para o caráter polissêmico das palavras. Bakhtin parece tangenciar tanto a multiplicidade funcional, quanto a fertilidade semântica das palavras, sendo que a última evidência o aspecto polissêmico das palavras, o qual se assume como positivo para o funcionamento das línguas. Porém, a múltipla funcionalidade e a fertilidade semântica das palavras configuram também um aspecto negativo, no caso, a geração de ambiguidades lexicais, as quais, sem a efetiva desambiguação no nível da cognição, podem incorrer em imprecisões na significação. Retomando, por exemplo, a questão da inferioridade numérica de desinências verbais em inglês, o fato de todas as formas verbais do Simple Past e Past Participle dos verbos regulares ingleses serem construídas com o acréscimo do mesmo sufixo -ed e o fato deste sufixo, também, participar em derivações deverbais para a formação de adjetivos, evidencia possibilidades de surgimento de ambiguidades,
1568
respectivamente: quanto ao tempo-aspecto (HENRIQUES, 2007) e concordâncias verbais, e quanto às categorizações morfossintáticas de vocábulos. Assim, para a melhor compreensão de enunciações, faz-se necessária a ativação de mecanismos cognitivos de desambiguação, geralmente, ativados por vocábulos próximos que antecedem ou precedem (HOEY, 2005, p.9) a um gerador de ambiguidade. Do contrário, tornar-se- iam problemáticos à significação. A relação entre a múltipla funcionalidade, a fertilidade semântica e a desambiguação lexical é bastante perceptível ao se pensar, por exemplo, no vocábulo tired. Este vocábulo, quando empregado numa oração no Simple Past, indica um estado de fadiga ocorrido e findado num determinado tempo no passado (MURPHY, 1994, p.10), mas o mesmo, numa oração no Present Perfect, pode indicar uma fadiga repetida no passado e/ou relativa, ou atrelada, ao tempo real no presente (Ibid. p. 14), como em “Audiences have tired of Danish and German bands, though only three years ago they accepted them with open arms”, extraído do Córpus COMPARA. Como Klein coloca, “embora em inglês, não só o Simple Past possa, mas também o Present Perfect, ser usado para referir-se a acontecimentos passados, em inglês o Present Perfect é gramaticalmente uma construção do presente”, (KLEIN, 1992, apud. LEE, 2007, p. 155). Em se tratando da semântica, se tired for precedido pela preposição of pode indicar ‘estar aborrecido’ (COLLINS), ou seja, a alternância na classificação morfossintática do vocábulo evidencia o caráter polissêmico de tired. Se comparada ao português, a ambiguidade gerada pelo sufixo -ed mostra-se bastante superior às geradas por desinências verbais do português, visto que, por exemplo, enquanto o verbo ‘amar’ desdobra-se em 21 formas verbais nas conjugações dos Pretéritos Imperfeitos (indicativo e subjuntivo), do Pretérito Perfeito, e do Pretérito Mais-que-perfeito (HOUAISS, 2009), o
verbo love, cujo significado central
corresponde ao central de ‘amar’, recebe somente o sufixo -ed para expressar ações homólogas àquelas expressadas pelas 21 formas verbais de ‘amar’. Esta dicotomia polissemia/ambiguidade se intensifica quando se considera o morfema ing, pois, segundo a Dr. Laura Siegel da University of Pennsylvania, “há uma ampla discussão na literatura sobre quantos ‘ings’ diferentes existem. Pesquisas anteriores já tentaram responder à pergunta quanto a quais dos ‘ings’ podem ser agrupados e analisados do mesmo modo, e quais são realmente distintos uns dos outros”
1569
(SIEGEL, 1998). Numa abordagem ao subcórpus com os textos alvo, encontrou-se, com a aplicação ferramenta Concord do Software WordSmith Tools, por exemplo, 16 ocorrências de loving, entre elas este vocábulo é empregado como adjetivo, ‘a loving look’, como forma nominal infinitivo, ‘manner of loving’, e no gerúndio ‘I am only loving’, sendo que as construções originais são, respectivamente, “olhar de carinho”, substantivo, “um modo muito mais profundo de amar”, forma nominal infinitivo, e “Estou somente amando”, gerúndio. Em outras análises contrastivas constatou-se que nos textos originais em português as formas verbais no gerúndio totalizam 1.898 ocorrências, ou seja, 1,17% dos vocábulos do subcórpus. Em contrapartida, vocábulos sufixados por -ing totalizam 6.987 ocorrências, totalizando 2,88% dos vocábulos do subcórpus em inglês. Considerando-se que todas as formas verbais no gerúndio tivessem1 sido traduzidas por Progressive Forms do inglês, 5.089 vocábulos sufixados por -ing não corresponderiam a ações contínuas. Neste sentido, infere-se que os verbos acrescidos de -ing são semanticamente e morfossintaticamente mais produtivos que verbos acrescidos de -ndo no português, mesmo estes podendo atuar como adjetivo como em ‘a mão no ombro do rapaz, e sorrindo enquanto falava.’, extraído do córpus da pesquisa. Por exemplo, o adjetivo loving, segundo o Collins dictionary, tem como sinônimos sugeridos, affectionate, kind, warm, dear, friendly, devoted, tender, fond, ardent, cordial, doting, amorous, demonstrative, warm-hearted, tender, caring, sympathetic, considerate, no entanto,
‘amando’,
funcionando
como
adjetivo,
como
em
‘um
moço
-
grave, amando seriamente, era para ela, uma porcaria!’ (BNC), não admite tantas nuances de sinonímia. Assim, tomando-se por base a questão da sufixação com -ed e -ing, infere-se que há uma tendência maior à polissemia e à ambiguidade lexical em inglês, tendência esta que se reflete em repetições lexicais. Cabe, então, discutir-se um pouco sobre a questão de como estes dois fenômenos são processados na cognição e quais são os efeitos destes na recepção de repetições de vocábulos. 1.2.3 Processamento de repetições de vocábulos Esta dimensão da pesquisa, que visa à aproximação entre Linguística de Córpus
1570
1
Constatou-se, por exemp lo, que duas formas verbais de gerúndio, v inculativas de períodos, não foram traduzidas para formas progressivas em inglês: (1) “tendo publicado o seu primeiro” foi tradu zido para “he had published his first”; (2) “tendo sido eu, eu soube” foi traduzido por “since it was me, I knew”.
e a Psicolinguística, adentra o campo das teorias de cognição e demanda estudos futuros, especialmente no que ela se refere a alguns experimentos laboratoriais
envolvendo procedimentos comuns à Psicolinguística. Entretanto, alguns estudos quanto ao priming lexical de Hoey (2005), ao processamento e o armazenamento de homonímias e vocábulos polissêmicos efetuados por Klein e Murphy (2011), a framing analysis de Goffman (1974) aplicada na linguística textual de Marcuschi (1983), e os estudos de Pace-Sigge (2013) permitem trilhar alguns caminhos que vislumbram uma melhor compreensão dos efeitos das repetições lexicais na cognição de falantes fluentes de inglês. Uma vez que os dados preliminares obtidos nas investigações verticais e horizontais do córpus da pesquisa, - alguns citados neste artigo -, confirmam o pressuposto e as duas outras hipóteses da pesquisa, esta breve discussão quanto ao processamento das repetições de vocábulos ingleses vale-se de alguns excertos de textos para analisá-los à luz das teorias acima mencionadas. Analisemos então o seguinte pareamento de sentenças extraídas de um texto fonte em português e de um texto alvo em inglês do córpus da pesquisa. “E não espancara mais nenhum, evitava as brigas e se não evitava...” “And he didn’t hit anyone anymore, avoided fights, and if he didn’t avoid...” O fato de as formas verbais avoided e avoid estabelecerem correspondência semântica e gramatical com a mesma forma ‘evitava’ do original revela uma distinção morfossintática, entre formas verbais nas duas línguas, causada pela existência de verbos auxiliares em inglês, cujas ocorrências por si só apontam para uma maior frequência de repetições lexicais em inglês. Mas, para a pesquisa, sobretudo ele evidência um fato linguístico muito relevante: o fato de na cognição ambas as formas serem processadas como idênticas, apesar de avoid, formalmente, não indicar o tempoaspecto verbal (HENRIQUES, 2007), no caso, indicado pelo auxiliar did. Assim, didn’t e avoid mantêm uma estreita relação entre si, qual se manterá a cada coocorrência destes dois vocábulos, bem como, relações similares se manterão em coocorrências de verbos auxiliares com outros verbos. Na linguística de Córpus coocorrências como estas são chamadas de colocados (FIRTH, 1951, HALLIDAY e HASAN, 1976, SINCLAIR,
1571
1991 apud HOYE, 2005). Segundo Hoey (2005) os colocados estão intimamente ligados ao priming lexical, que é um fenômeno psicológico relacionado ao processamento e armazenamento lexical (MEYER e SCHVANEVELDT, 1971 apud. PACE-SIGGE, 2013). Marcuschi (1983), por sua vez, valendo-se da Frame Theory de Goffman (1974) afirma que à medida que o cérebro processa itens lexicais, estes ativam frames, espécies de imagens mentais armazenadas no cérebro. Neste sentido, did, então, ativa um frame relativo ao tempo-aspecto verbal, entretanto, semanticamente, o colocado se realiza no segundo frame ativado por avoid. Esta dinâmica coaduna com a afirmação de Hoey de que “priming é uma força motriz presente no uso, estrutura e mudanças na língua” (HOEY, 2005, p. 12). A realização semântica do colocado em se dando desta forma, segundo Pace-Sigge (2013), com base em testes psicolinguísticos realizados por Meyer e Schvaneveldt, tem efeitos no processamento dos significantes fonologia das palavras, e suas representações gráficas -, pois, a despeito de avoid e avoided terem significantes distintos, são processados como idênticos. Por outro lado, apesar de avoid ser ortograficamente idêntico à sua base verbal, a qual atua em outros tempos verbais, como Simple Present e Future with will, ele é desambiguado na busca pela significação, através da prévia ativação do frame de did. Relações similares podem explicar também a desambiguação de derivações deverbais terminadas em -ing, como nestes destaques nos excertos extraídos do córpus: “…imagined me missing running my tongue around her wet nipples…” e “But Don’Aninha was well worth running a risk for…”, respectivamente traduzidos a partir de ‘roçar’ e ‘merecia’, onde o priming de worth atua na significação de running modificando-a. E, como Hoey (2005) afirma, o priming se renova e se fortalece a cada coocorrência de itens lexicais na língua em uso. Quanto a este fortalecimento, experimentos conduzidos por Klein e Murphy (2011) atestam que vocábulos polissêmicos, como nestes dois usos de running, são processados e armazenados no cérebro como distintos. Com isto, parece ser razoável a asserção de que os mecanismos cognitivos, no processamento lexical na busca pela significação, atenuem os efeitos dos significantes dos signos linguísticos em prol de seus significados, o que se alinha com a não dissociabilidade dos signos defendida por Barthes (1979) e Bakhtin (2003). 2 Conclusão
1572
Considerando-se que os dados empíricos previamente obtidos apontam para que, em função de relações intrassistêmicas, as frequências de ocorrências de repetições lexicais em inglês sejam consideravelmente mais elevadas, em relação ao português. E, levando-se em conta que estas repetições estabelecem diferentes colocados, os quais desencadeiam os mecanismos cognitivos acima descritos, é possível acreditar-se que haja certa modulação da cognição de falantes de inglês no sentido de atenuar os efeitos das repetições lexicais. E, a internalização desta noção por parte de tradutores e aprendizes do inglês como língua estrangeira, pode auxiliá-los nas decisões por repetir ou não itens lexicais em suas produções em inglês. Referências BAKHTIN, M; Estética da criação verbal. Tradução do russo Paulo Bezerra, 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Trad. Luiz Antero Reto, Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70, 2011. BARTHES, R. Ele mentos da semiologia. Tradução Izidoro Blikstein, 3ª ed. São Paulo: Cultrix, 1979. BERBER, SARDINHA, A. P. Lingüística de Corpus. São Paulo: Manole, 2004. COLLINS
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1574
UM ESTUDO SOBRE ALÇAMENTOS VOCÁLICOS EM MANUSCRITOS DOS SÉCULOS XVIII E XIX
Priscila Ceballos Vasques (UEL) Vanderci de Andrade Aguilera (orientadora – UEL) Considerações iniciais A influência da oralidade na escrita pode ser observada desde séculos passados e é tema para muitas pesquisas que desejam descrever e analisar os processos pelos quais nossa língua está sujeita a passar. Neste estudo, trataremos a respeito das marcas de alçamento da vogal média-alta /e/ para a vogal alta /i/ encontradas no corpus que se constitui por cerca de 60 facsímiles da antiga vila de Curitiba. Emanados das antigas vilas do Paraná, esses documentos pertencem ao banco de dados do Projeto Para uma História do Português Brasileiro – regional Paraná – e na delimitação que fizemos, pudemos notar várias marcas dessa possível transposição da fala para o texto escrito em palavras como disgosto, milhor e sirvir e buscamos mostrar em que consistem essas alternâncias vocálicas.
Aportes teóricos O sistema vocálico do Português Brasileiro (PB), desenvolvido por Câmara Jr. (1970), forneceu subsídios no que diz respeito aos estudos da nossa língua materna, e demostrou a complexidade da língua oral pelos usos das vogais do PB na escrita. Vogal
Anterior
Alta
/i/
/u/
Média-alta
/e/
/o/
Média-baixa
/é/
/ó/
Baixa
Central
Posterior
/a/ Quadro das vogais do PB, segundo Câmara Jr. (1970).
1575
O quadro esquematizado acima mostra que o sistema vocálico do PB é composto por sete fonemas que, segundo pesquisadores, foram herdados do latim e são encontrados no português brasileiro atual. Uma das distinções entre o português brasileiro e o europeu é, para Viegas (1987), a variação das vogais na posição pretônica e, desse modo, a variação deve ser estudada por meio da estrutura da palavra, ou seja, com relação aos ambientes favorecedores (Rezende; Magalhaes, 2010). Uma das variantes é a chamada alçamento vocálico e ao analisar os possíveis motivos que acarretam essa transformação, Viegas (1987) verificou que é um processo que eleva a vogal média na posição pretónica em razão da presença de uma vogal alta na sílaba tônica, como, por exemplo, em servir > s[i]rvir. Além desse, outros pesquisadores constataram que existem outros processos envolvidos no fenômeno de alçamento vocálico. Em síntese, há, segundo Bisol (1992), a harmonização vocálica em que a vogal média pretônica /e/ assimila o traço de altura da vogal alta /i/. A assimilação vocálica, de acordo com a autora, é quando um segmento assume um ou mais traços de um segmento vizinho; especificação da vogal tônica como sugere a pesquisadora, as vogais altas /i/ e /u/, em posição tônica, influenciam o alçamento da pretônica, ou seja, elas atuam na elevação dessas vogais ou, também nas demais além das pretônicas. Portanto, o alçamento vocálico, tema desta pesquisa, analisado em corpus setecentista e oitocentista, pode ser entendido seguindo os princípios de (Bisol, 1992 apud Aguiar; Castro, 2007), expondo que as vogais médias pretônicas /e/ e /o/ desencadeiam um mecanismo de assimilação do traço de altura das vogais /i/ e /u/, respectivamente, a fim de que se estabeleça uma “harmonia” entre os traços das vogais. Com base nos pressupostos de Câmara Jr. (1970), Viegas (1987) e Bisol (1992), realizamos as análises sobre o alçamento vocálico da vogal média /e/ para a vogal alta /i/ na seleção das 20 palavras pertencentes aos documentos oficiais da antiga vila de Curitiba. Apreciação da análise
1576
Selecionamos, no corpus paranaense transcrito e revisado, 20 lexias, buscando verificar as possíveis motivações que resultaram no alçamento vocálico da vogal médiaalta /e/ para a vogal alçada /i/, utilizando das considerações já apresentadas em Câmara Junior (1970), Viegas (1987) e Bisol (1992). A título de exemplificação, consideramos as lexias juntamente com a datação e número de documento correspondente de acordo com os fac-símiles da antiga vila de Curitiba. Apresentação das unidades léxicas selecionadas Documento Ano Documento disgosto 154 1791 ligetimamente 33 milhor 07 1764 requirimento 10 sirvir 29 1791 intregou 71 desimpenho 151 SD dispezas 88 filiçidade 108 1817 dispotismos 733 veriadores 10 1764 impregados 135 affiriçam 22 1764 friguezia 99 filizes 110 1820 imviamos 101 si 04 1764 iscolhidos 151 quasi 139 1820 defirir 116
Ano 1797 1764 1798 1799 1802 1819 1805 1810 SD SD
Tabela 1: lista das unidades léxicas que apresentaram alçamentos vocálicos
Observamos em: disgosto, dispezas, dispotismos e iscolhidos, casos em que o alçamento vocálico ocorreu em contextos semelhantes, ou seja, naquelas em que a vogal média-alta /e/ é seguida pela consoante /s/, como despesas > dispezas, houve a elevação vocálica. Em intregou, impregados e imviamos, por sua vez, são vocábulos iniciados por en ou em que resultam no processo de nasalização da vogal precedente e, consequentemente, apresentam-se como vogais alçadas entregou > intregou, empregados > impregados e enviamos > imviamos. Ao retomar um dos conceitos dados por Bisol (1992) em que um segmento assume o traço de uma silaba seguinte e resulta na assimilação vocálica, notamos que este princípio ocorreu em alguns vocábulos no corpus paranaense de duas formas: a primeira, quando a vogal /e/ assume o traço da sílaba tônica que segue: milhor, sirvir, desimpenho, veriadores e defirir; a segunda é quando ocorre a influência, na sílaba que contém a vogal /e/, da vogal alta /i/ da sílaba seguinte: filiçidade, affiriçam, filizes e requirimento.
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Observamos em si e quasi, novamente, a influência da consoante fricativa /s/, possibilitando o alçamento vocálico. O alçamento da lexia ligetimamente, com base no que estudamos, pode estar relacionada à vogal alta i na sílaba que segue, mesmo não sendo a seguinte, pois seu traço irá condicionar a anterior. Conclusão O alçamento vocálico evidenciado da vogal média-alta /e/ para a vogal alta /i/ é recorrente na fala de muitas pessoas e, neste estudo, procuramos mostrar sua transposição que é feita, muitas vezes, pela influência da fala sobre a escrita. Manuscritos dos séculos XVIII e XIX já apresentavam esse fenômeno, portanto, com base em alguns teóricos como Câmara Junior (1970) e Bisol (1992), buscamos analisar os possíveis motivos para a elevação da vogal média /e/ dentro do contexto da própria unidade léxica. Referências BISOL, Leda. O acento: duas alternativas de análise. Porto Alegre: PUCRS, 1992. CÂMARA JR, Joaquim Mattoso. Estrutura da Língua Portuguesa. Ed. Petrópolis: Vozes, 1970. CASTRO, Maria Célia Dias de; AGUIAR, Maria Sueli de. O alçamento e abaixamento vocálicos no dialeto do Gerais de Balsas. Signótica. Universidade Federal de Goiás, v. 19, n. 2, 2007. REZENDE, Fernanda Alvarenga; MAGALHÃES, José Sueli de. Alçamento da vogal pretônica /e/ na fala dos habitantes de Coromandel-MG e Monte Carmelo-MG. Linguagem - estudos e pesquisas. Universidade Federal de Goiás, v. 14, n. 2, 2010. VIEGAS, Maria do Carmo. Alçamento de vogais médias pretônicas: uma abordagem sociolinguística. 1987. Universidade Federal de Minas Gerais, 1987.
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PARTICIPAÇÃO E APRENDIZAGEM EM OFICINAS DE APRENDIZAGEM NO ENSINO MÉDIO: REFLEXÕES INICIAIS Rafael Petermann (PG-UEM) O conhecimento tornou-se multifacetado e fugaz. A informação se altera continuamente, e o que era inédito pela manhã pode se tornar obsoleto à noite. Rigon (2010) afirma que a escola tradicional deixou de preparar seus alunos para este novo mundo, este novo mercado de trabalho, que exige pessoas e profissionais comprometidos com seu desempenho pessoal, com seu trabalho, com autonomia e iniciativa para a tomada de decisões e atuação nos contextos em que estão inseridos. Segundo ela, essa nova configuração do mundo exige dos indivíduos espírito empreendedor, habilidade para trabalhar em equipe, cooperar, criar, negociar e ser crítico, enfim, a autora declara que a escola tradicional “esqueceu de dar asas aos seus alunos, para que ousem, inovem, empreendam.” (RIGON, 2010, p.15). A partir dessa concepção de aprendizagem, Rigon propôs em 1991, uma nova metodologia de ensino e aprendizagem, as Oficinas de Aprendizagem. Essa metodologia foi inspirada em uma experiência da professora Márcia C. Rigon com uma turma de ensino médio em uma escola pública de Montenegro-RS, em uma aula de Literatura Brasileira, em 1977. Durante a aula, os alunos fizeram uma análise crítica de alguns poetas do Romantismo, estabelecendo relações com os do Realismo e do Parnasianismo. Segundo Rigon (2010), essa análise teve caráter interdisciplinar, pois os estudantes envolveram vários campos do conhecimento nas relações que estabeleceram, o que levou a professora a idealizar uma escola ‘diferente’ daquela em que trabalhava. Em 1991, pela necessidade de um empresário de Montenegro em manter seus funcionários, sobretudo gerentes, nessa cidade, a professora Márcia Rigon e este empresário estabeleceram parceria para a implantação de uma escola com perspectiva diferenciada da escola tradicional. Em 1992, foi fundado o Colégio Montenegro, cuja ideia principal era formar “empreendedores, com forte visão de mercado de trabalho, baseado nas ciências das relações (Filosofia, Sociologia e Psicologia), buscando um
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trabalho forte em equipe” (RIGON, 2010, p.13). Para cumprir com essa ideia principal, a escola organizava seu trabalho com alunos dispostos constantemente em equipes e desenvolvia projetos em parceria com o SEBRAE e a Junior Achievement, visando o desenvolvimento do empreendedorismo juvenil. Em 2004, a metodologia foi apresentada a um grupo de executivos do Serviço Social da Indústria (SESI), que acolheu a ideia, implantando a metodologia na rede de Colégios Sesi no Paraná a partir de 2005, tendo em vista a necessidade de formar indivíduos empreendedores e líderes para a nova demanda de mão de obra da indústria paranaense. A metodologia de Oficinas de Aprendizagem , definida por Rigon e adotada pelo Colégio Sesi no Paraná, assim como o extinto Colégio Montenegro, apresenta algumas especificidades em seu trabalho pedagógico: i) trabalho constante em equipe; ii) educação pela pesquisa; iii) interseriação; e iv) flexibilidade de currículo. Essas especificidades constituem a organização das salas de aula dos colégios da rede. Ou seja, alunos de diferentes séries sentados continuamente em equipes com cinco ou seis membros, valendo-se de diversas fontes de pesquisa para responderem a desafios de aprendizagem que lhes são propostos. A imagem a seguir mostra alunos das três séries do Ensino Médio engajados em resolver o seguinte desafio proposta no terceiro bimestre de 2013 na Oficina de Aprendizagem “O que se põe à mesa”: “O ordinário que se faz extraordinário. Pequenos detalhes do cotidiano deflagram o entrechoque de mundos e fronteiras, que se tornam fluidos e erradios. Em poucas linhas o leitor de Clarice Lispector é posto em contato com um mundo em que o insólito acontece e invade o cotidiano. A epifania – compreensão súbita de uma verdade – é sempre capaz de inverter a história e oferecer novos rumos e sentidos. O cotidiano é, assim, o palco de toda e qualquer trama social. Nesse sentido, o que há de extraordinário na ordem do dia?”
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IMAGEM 1 - MODELO DE ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO FÍSICO DE UMA OFICINA DE APRENDIZAGEM
Esses desafios configuram-se como elementos essenciais para o trabalho nas oficinas de aprendizagem, pois respondê-los deve ser a meta-fim das equipes, e não somente do professor (GARCEZ, 2006), e os procedimentos necessários para se chegar a uma resposta devem ser tomados conjuntamente. Garcez (2006) parte dos pressupostos teórico-metodológicos da Análise da Conversa Etnometodológica (ACE) para afirmar que instituições, tal qual a escola, não estão dadas em elementos preexistentes, mas no “fazer conjunto das pessoas a cada dado momento em que se encontram para fazer o que precisam e desejam fazer” (GARCEZ, 2006, p.67). É preciso, assim, considerar que o que configura uma sala de aula tradicional ou uma Oficina de Aprendizagem é o que e como os participantes desse evento fazem suas atividades interacionais. Nesse sentido, este trabalho objetiva uma reflexão inicial sobre o conceito de produção conjunta de conhecimento (ABELEDO, 2008) a partir de uma aproximação de resultados de pesquisas recentes que mostram que o conhecimento é produzido em conjunto (KANITZ, FRANK, 2014; KANITZ, 2013) e que os participantes produzem conhecimento conjuntamente conforme surgem problemas ou tarefas a serem resolvidos, com a proposta do trabalho em equipe, do aprender em equipe e dos desafios presentes na proposta pedagógica das Oficinas de Aprendizagem do Colégio Sesi Paraná. Reitera-se que o objetivo do trabalho não é apresentar juízos que atestem se a forma de organização da Oficina de Aprendizagem é
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sinônima de construção conjunta de conhecimento, mas sim tecer reflexões iniciais a partir da aproximação de pesquisas desenvolvidas sobre o conceito de construção conjunta de conhecimento e alguns pressupostos da proposta pedagógica das Oficinas de Aprendizagem do Colégio Sesi Paraná. Construção conjunta de conhecimento e Oficinas de Aprendizagem Pesquisas têm sido realizadas, visando compreender e interpretar a participação em sala de aula, enfatizando quais modelos interacionais contribuem para uma participação mais igualitária, efetiva e conjunta em sala de aula. A preocupação, nesse caso, é aprendizagem, procurando compreendê-la em termos de participação, distanciando esse conceito de termos cognitivistas, como habilidades e competências. Garcez (2006), ao abordar a fala-em-interação institucional de sala de aula fazendo contrapontos com a organização da conversa cotidiana, tece críticas a uma dessas formas de organização: o padrão Iniciação-Resposta-Avaliação (IRA). Segundo o pesquisador, tal padrão não favorece a construção conjunta de conhecimento, inferindose que este modelo de organização está ligado àquilo que Rigon (2010) chama de escola tradicional. A crítica do autor sobre essa organização recai, portanto, no fato de que a sua função seria a de meramente reproduzir conhecimento e servir como um instrumento de controle do próprio professor. [...] também é verdade que se trata de um modo eficaz e econômico de reproduzir conhecimento, não exigindo necessariamente um engajamento dos participantes que produzem os turnos em segunda posição na efetiva construção do conhecimento em pauta, ao menos não no sentido de torná-lo seu. (GARCEZ, 2006, p. 69)
Outra forma de organização interacional de sala de aula canônica é o revozeamento, uma prática que consiste em colocar os alunos na posição de reflexão e interação acerca de determinados conteúdos. O professor, nesse caso, tem o papel de ‘revozear’ a fala do aluno com o objetivo de legitimar a sua fala e possibilitar que os demais participantes também possam discutir as contribuições dos colegas. Plantas e Morera (2011) apresentam um estudo sobre o revozeamento em uma prática com argumentação e discussão coletiva em Matemática, e descrevem, de acordo com
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O'Connor e Michaels (1996 apud Plantas e Morera 2011), alguns usos principais do revozeamento por professores, como possibilitar ao aluno participar e construir coletivamente o conhecimento, discutir suas hipóteses, significar o seu aprendizado. Na sala de aula contemporânea, conforme descrição de Rampton (2006), a participação nem sempre acontece seguindo uma organização canônica. Segundo o autor, nessa sala de aula moderna o aluno também pode fazer a iniciação e passar o turno para o professor ou para um colega, avaliar o professor etc. Nessa perspectiva, vale considerar Clark (2000) que afirma ser necessário analisar o uso da linguagem como ação social e conjunta; por meio da linguagem, as pessoas praticam ações sociais e fazem coisas, como, na escola, participar de uma aula, ensinar e aprender. Pesquisas recentes do Grupo de Pesquisa Interação Social e Etnografia (Grupo ISE), ancorados na ideia de que por meio da linguagem/interação as pessoas fazem coisas como aprender, têm observado cenários escolares diversos em diferentes formas de organização, em que os participantes demonstram e refletem a ideia de que a aprendizagem não é um processo individual, mas uma produção conjunta de conhecimento que é tornada pública. No bojo desses trabalhos, Abeledo (2008), mediante observação de interações entre participantes de uma sala de aula de espanhol como língua adicional, formulou um entendimento de aprendizagem como: (a) uma realização pública, intersubjetiva, emergente e contingente, produzida para os fins práticos das atividades desenvolvidas em cada interação; (b) observável nos métodos que constituem o trabalho dos participantes para produzir realização, que não são generalizáveis, mas adequados a um contexto e a identidades que eles reflexivamente instauram - institucionais ou não - , e a objetos de aprendizagem que eles definem e tornam relevantes; e (c) que produz relações de participação e pertencimento, já que implica a produção pública e intersubjetiva de competência para participar em atividades levadas a cabo em uma comunidade. (ABELEDO, 2008, p. 162)
Tomando esse mesmo entendimento de aprendizagem, Schulz (2007) e Bulla (2007) investigaram e descreveram como os participantes se organizavam para aprender em cenários escolares diversos. Nesse conjunto de descrições, pontuam Kanitz e Frank (2014), evidencia-se que as atividades voltadas para construção do conhecimento que
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ocorrem em sala de aula se organizam em torno do que é proposto por um dos integrantes que sempre é o professor, aquele que é ratificado pelos demais como detentor de um status de conhecimento superior e por isso os alunos tendem a orientarse para ele. Kanitz (2013), partindo da ideia de aprendizagem como produção conjunta de conhecimento que é tornada pública na medida em que participantes dão conta de um objeto de aprendizagem emergente de suas atividades (ver ABELEDO, 2008, p.162), analisa dados gerados em um cenário distinto da sala de aula, um laboratório voltado à produção de materiais biomédicos, destacando que, na atividade de resolução de problemas enquanto instância interacional, ora não há ninguém que detém de antemão a resolução para a questão que precisa, assim, ser conjuntamente buscada e negociada; ora essa instância não representa obstáculo para todos os participantes, assim a resolução é alcançada com a ajuda fornecida por outro participante. Kanitz (2013, p. 6) conclui que é “envidando esforços para a resolução dos problemas que os participantes constroem conhecimento com o outro”. Vale ressaltar que, embora Kanitz (2013) tenha desenvolvido sua pesquisa em um cenário diferente de sala de aula, seu trabalho oferece contribuições valiosas para se pensar em formas alternativas de organização da sala de aula e dos participantes para a construção do conhecimento. Segundo Kanitz e Frank (2014, p. 118): [...] é necessário que os participantes desse cenário (sala de aula) sejam colocados em situações que os tornem capazes de levantar dados relevantes sobre a realidade, organizá-los e, sobretudo, inovar no modo de interpretá-los e de usá-los criativamente. Além disso, como participantes de uma sociedade complexa e multifacetada, os próprios alunos que estão hoje nas escolas relacionam-se de modo diferente com a informação e o conhecimento, mas a sala de aula, e o modo como ela disponibiliza o conhecimento, muitas vezes não comporta significado atual, presente para eles, o que dificulta a realização do que é solicitado em sala de aula somente pela consciência de suas consequências futuras (até porque isso é algo difícil de ser entendido por uma criança ou até por um adolescente). (KANITZ; FRANK, 2014, p. 118)
Na linha de Kanitz e Frank (2014), a metodologia das Oficinas de Aprendizagem prevê a existência de um desafio que, conforme mencionado na introdução desse texto,
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é parte essencial, pois é a partir dele e a fim de respondê-lo que o trabalho pedagógico se organiza. Dessa forma, toda oficina preconiza, segundo a Proposta Pedagógica do Colégio Sesi (2011), um fechamento do trabalho, no qual os alunos devem explicitar o desafio lançado e elaborar as possíveis respostas, conclusões ou soluções. Ainda de acordo
com
a
Proposta
Pedagógica,
essas
possíveis
soluções
representam
“principalmente a competência em definir estratégias, planejar processos, aprender com os erros, construir conhecimento de forma global e significativa” (SESI, 2011, p. 56). No trabalho de sala de aula nas Oficinas de Aprendizagem, a Proposta Pedagógica do Colégio Sesi (2011), com base em Rigon (2010), salienta que a construção da resposta aos desafios lançados se dá no trabalho e interação das equipes por meio de pesquisa, planejamentos, levantamento de hipóteses, experimentos etc. Assim, a organização da sala de aula possibilita o trabalho em conjunto, o que, conforme salienta Demo (2010, p. 44), é desafiador, uma vez que isso significa, “desde logo, não privilegiar o professor, mas o aluno [...] este deve poder se movimentar, comunicar-se, organizar seu trabalho, buscar formas diferentes de participação”. Vale ainda destacar que no arcabouço teórico da metodologia das Oficinas de Aprendizagem na Proposta Pedagógica do Colégio Sesi (2011), concebe-se, com base em Vygotsky (1991; 2007), que sendo o homem um ser social, vive em pares e em um ambiente impregnado de cultura, e é exatamente nesse ambiente que as aprendizagens acontecem. Com base nesses pressupostos, reforça-se a ideia do constante trabalho em equipe nas Oficinas de Aprendizagem. Considerações finais Neste trabalho, pretendeu-se aproximar o conceito de construção conjunta de conhecimento (Abeledo, 2008) e resultados de pesquisas recentes que mostram que o conhecimento é produzido em conjunto (KANITZ, FRANK, 2014; KANITZ, 2013) com alguns procedimentos pedagógicos que constam na Proposta Pedagógica do Colégio Sesi (2011). Shulz (2007) e Garcez (2006) ressaltaram a importância da presença de processos participativos no projeto político-pedagógico e na prática de sala de aula, associando a isso a construção conjunta de conhecimento. Kanitz e Frank (2014), a
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partir de pesquisa realizada em um centro de desenvolvimento tecnológico ofereceram contribuições significativas para se pensar a organização da sala de aula e dos participantes para a construção do conhecimento, ressaltando a importância de que os alunos sejam colocados em situações que os tornem capazes de levantar dados relevantes sobre a realidade, organizá-los e inovar no modo de interpretá-los e de usálos criativamente. A partir das reflexões apresentadas nessas pesquisas, buscamos mostrar como a Proposta Pedagógica para o Ensino Médio no Colégio Sesi do Paraná trabalha com procedimentos pedagógicos que pretendem facilitar a participação/engajamento na execução de tarefas em sala de aula, a partir da proposta de desafios que devem ser respondidos por meio do trabalho constante em equipes interseriadas, traçando planos, estratégias, levantando hipóteses, fazendo experimentos etc. Referências ABELEDO, M. de la O L. Uma compreensão etnográfica da aprendizagem de língua estrangeira na fala-em-interação de sala de aula. 2008. 217f. Tese (Doutorado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. BARTON, D.; HAMILTON, M. La literacidad entendida como practica social. In: ZAVALA, V.; NIÑO-MURCIA, M.; AMES, P. (Eds) Escritura y sociedade: nuevas perspectivas teóricas e etnográficas. Lima: Red para Desarrollo de lãs CienciasSociales em El Perú, 2004, p.109-139. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília: MEC, 2001. CERUTI-RIZZATTI, M.E. Ensino de Língua Portuguesa e inquietações teóricometodológicas: os gêneros discursivos na aula de a aula (de Português) como gênero discursivo. In: Alfa. São Paulo, 2012.p. 249-269. COLÉGIO SESI ENSINO MÉDIO. Colégio Sesi Ensino Médio: Proposta Pedagógica. Curitiba: SESI/PR, 2011. CONCEIÇÃO, L.E. Estruturas de participação e construção conjunta de conhecimento na fala-em-interação de sala de aula de Língua Inglesa em uma escola pública
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IDENTIDADE E PRÁTICAS DE LETRAMENTO: REFLEXÕES ACERCA DE UMA ESCOLA MULTISSERIADA DO CAMPO
Raimunda Santos Moreira de Oliveira (UEPG) Aparecida de Jesus Ferreira (UEPG) Introdução Este artigo procura discutir dados de uma pesquisa de mestrado em andamento a respeito das percepções de um aluno e uma professora sobre identidade social do campo e práticas de letramento em uma escola multisseriada do campo. O delineamento do contexto da pesquisa se deu a partir do contato com Observatório da Educação 1 e em contato com os materiais sobre educação do campo, materiais os quais indicam que há um grande número de escolas multisseriadas na região metropolitana de Curitiba. Para isso, assumimos a proposta teórica de Bauman (2005) e de Hall (2011), cujos autores têm destacado, cada vez mais, aspectos relacionados às identidades dos sujeitos numa perspectiva social. Para nos orientarmos sobre letramento, assumimos aqui a discussão acerca do modelo de letramento ideológico em oposição ao modelo de letramento autônomo (STREET, 2014), aliada a autores como Kleiman (2008), que têm trazido importantes contribuições para práticas escolares. A metodologia que orientou essa pesquisa está no campo da Linguística Aplicada e na abordagem qualitativa, considerando a pesquisa do tipo etnográfica, por meio de entrevista, com a professora e o aluno. As perguntas a que respondemos neste artigo são: ─Como a professora constrói uma identidade social do campo em uma escola multisseriada nas aulas de 1
O projeto iniciou em fevereiro de 2011 e encontra-se em andamento, tem o título “Realidade das escolas do campo na região sul do Brasil: diagnóstico e intervenção pedagógica com ênfase na alfabetização, letramento e formação de professores”, aprovado pelo edital 038/2010 da CAPES/INEP – Observatório da Educação núcleo em rede com UFSC, UTP e UFPel. Para este projeto, cada Universidade selecionou algumas escolas da sua região com baixo IDEB, dentre as quais está a escola onde realizamos a pesquisa.
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Língua Portuguesa? ─Como o aluno de uma escola multisseriada constrói uma identidade do campo? Para tanto, o artigo está organizado em quatro seções, sendo a primeira destinada à politicas de educação do campo e a classes multisseriadas; a segunda seção propõe situar nosso trabalho na perspectiva da Linguística Aplicada como campo de pesquisa; na terceira parte abordamos práticas de letramentos imbricadas com o conceito de identidade como pressuposto para problematizar o sentido de ser professor no espaço do campo; na quarta seção discutimos alguns dados gerados na pesquisa com um aluno e uma professora de uma escola multisseriada no campo da região metropolitana de Curitiba. Na conclusão teceremos algumas considerações finais. Politicas de educação do campo e classes multisseriadas Segundo Caldart (2004), a educação do campo com objetivo de repensar o campo de ensino tem conquistado espaço político, na conjuntura atual, em função da atuação dos movimentos sociais e das iniciativas governamentais que foram impulsionadas pela sociedade civil organizada para se pensar uma educação do campo com os sujeitos que habitam esse espaço. Freitas (2011) explica que, historicamente, o ensino escolar para o meio rural brasileiro não teve os sujeitos do campo como protagonistas do processo educativo: “[...] a visão estereotipada do atraso [...] sempre impediram que se construíssem propostas de educação focadas no sujeito, nas suas necessidades educativas e nas suas realidades socioeconômica e cultural” (FREITAS, 2011, p. 246). No Brasil, a temática da educação do campo tem ganhando espaço desde o final dos anos 1990. Pensada em uma ação conjunta entre governo e sociedade civil organizada, a educação do campo tem se caracterizando como um resgate de uma dívida histórica do Estado para com os sujeitos do campo, que tiveram negado o direito a uma educação de qualidade. Esse direito negado ocorreu historicamente porque os modelos pedagógicos implantados ora marginalizaram os sujeitos do campo (com políticas pedagógicas que, predominante, não contemplam o sujeito que mora no campo), ora
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vinculando-se ao modelo urbano, ignorando a diversidade sociocultural presente no campo (BRASIL, 2007). Assim, olhar para a educação do campo como um fator que marca a identidade dos povos do campo tem um desdobramento importante se pensarmos também em identidade e práticas de letramento nesse espaço. Ainda segundo Caldart (2004), o que marca a identidade desse movimento é justamente a luta por políticas públicas que garantam não só a luta pela terra, mas por uma educação que seja “do” campo 2. Isso significa que, na proposta da educação do campo, os sujeitos são essenciais para a construção de políticas educacionais pensadas “para” e “com” eles, pois, muito mais do que ter a escola no campo, é preciso conhecer essa realidade. Linguística Aplicada como campo de pesquisa Umas séries de mudanças que ocorreram na contemporaneidade modificaram a maneira como vivemos, como vemos as coisas e o modo como nos relacionamos com os que estão à nossa volta. Desse modo, é importante pensar que a dinâmica que envolve essas mudanças está também batendo à porta das nossas escolas, uma vez que somos sujeitos socialmente construídos e estamos em permanente estado de ebulição. E, nesse estado de ebulição ou, como sugere Moita Lopes (2006), na configuração desse “mosaico”, é que a Linguística Aplicada (doravante LA) ou LA Indisciplinar3 denominada pelo autor, tem como objetivo fundamental a problematização da vida social, na intenção de compreender as práticas sociais nas quais a linguagem tem papel crucial. Isso vale dizer que, na LA, as questões identitárias têm interessado a pesquisadores exatamente por problematizarem a importância de pensar outras sociabilidades para a vida social. O interesse por esse tipo de estudo se justifica pelo fato de que “[...] todo conhecimento em ciências sociais e humanas é uma forma de 2
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Para melhor entendimento sobre uma educação que seja “do” campo, Souza M. A. (2011, p. 32) caracteriza-a em três aspectos: 1) diz respeito à identidade construída no contexto das lutas; 2) trata da organização do trabalho pedagógico que valoriza o trabalho, a identidade e a cultura dos povos do campo; 3) participação da comunidade na gestão da escola. Conforme explica Moita Lopes (2006), o conceito de LA Indisciplinar pode ser entendido a partir de duas perspectivas: primeiramente, ela é indisciplinar no sentido de que é contrária à disciplinarização buscando se caracterizar como uma área mestiça e nômade. Em segundo lugar, a LA Indisciplinar está engajada em pensar diferente, ousando ir além de padrões já consagrados.
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conhecer a nós mesmos e de criar possibilidades para compreender a vida social e outras alternativas sociais” (MOITA LOPES, 2006, p. 104). Podemos, a partir dessa ideia, pensar nossa existência sempre em movimento entre continuidades e rupturas, e de como a ideia de trânsito afeta as teorizações acerca de nossas práticas linguísticas numa perspectiva “indisciplinar” (MOITA LOPES, 2006). O que ocorre é que, como uma área de investigação, a LA tem muito mais o que dizer sobre a linguagem no mundo contemporâneo do que outras teorias linguísticas concebidas de forma abstrata, que não consideram ou consideravam a linguagem como prática social imbricada a outros fatores contextuais. Tal perspectiva tem possibilitado a fuga de visões preestabelecidas e produzido novas formas de pensar/transgredir. E produzir outras formas de pensar a contemporaneidade é justamente o que propõe Moita Lopes (2006, p. 86): “[...] criar inteligibilidades sobre a vida contemporânea ao produzir conhecimento e, ao mesmo tempo, colaborar para que se abram alternativas sociais com base nas e com as vozes dos que estão à margem”. Dessa forma, entendemos que a problematização da complexidade da vida social passa também pela escola, cabendo ao professor construir outros discursos que colaborem para a desmitificação do que está posto como regra geral. O papel do professor, nesse embate, é importante, pois essa discussão tem relação direta com outras estruturas de poder, que se materializam na linguagem, já que esta nunca é neutra, ingênua nem desprovida de significados. Identidade e letramento Identidade quem tem uma? Responder quem somos vai muito além do que está posto na carteira de identidade, pois esta diz pouco ou quase nada sobre nós, como afirma Ortiz (2004, p. 119): “[...] não deveríamos ter nenhuma carteira de identidade, ela diz pouco sobre nossa individualidade, mas uma carteira de diferenças, rica, complexa, indefinida, reveladora da diversidade de nossos itinerários ao longo da vida [...]”. É sobre questões como essa que estudos, pesquisas e debates sobre identidade e diferença têm sido um campo fecundo e instigante na perspectiva dos estudos culturais e tem caminhado em direção às características próprias da modernidade tardia, pois a ideia de uma identidade fixa, estável e estanque não se sustenta mais, como bem
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observou Hall (2011). Segundo Hall (2011), identidade não é algo que encontramos pronta e acabada, ou que tenhamos de uma vez e para sempre. Identidade ou identidade social é entendida, pelo autor, como um processo contínuo e multifacetário que, por meio dos muitos discursos da vida, as pessoas vão construindo à medida que se posicionam no mundo. É no contexto de espaço/tempo que os sujeitos vão formando e transformando as suas identidades. Se estamos entendendo que nossas identidades são construídas socialmente e que se modificam nas várias práticas discursivas em que atuamos, daí a importância de analisarmos as linguagens no espaço da sala de aula. Moita Lopes (2006) tem evidenciado que, no contexto escolar, o caráter social e discursivo das nossas identidades, bem como o das nossas diferenças, é geralmente ignorado, ou seja, a identidade social muitas vezes é vista como sendo inerente às pessoas e não como emergindo de práticas discursivas nas quais as pessoas se constroem a si mesmas e aos outros. Podemos, a partir desse entendimento, relacionar identidade com práticas de sociais de letramento4 uma vez que “[...] a socialização profissional são elementos centrais na construção de identidades” (KLEIMAN, 2006, p. 79). Como já dito anteriormente, a perspectiva teórica que assumimos para este trabalho tem a ver com os estudos de letramento de Kleiman (2008) que passam a contribuir com trabalhos que analisam as práticas sociais do uso da linguagem escrita em determinados contextos sociais e demandas que tais práticas propõem aos sujeitos. Esse recorte é feito a partir das perspectivas de letramento que Street (2014) faz, a saber: Letramento Autônomo e Letramento Ideológico. Se, inicialmente, o letramento oscilava entre a capacidade de codificação e decodificação (alfabetismo) e as práticas sociais (referido sempre no singular ─ letramento), o termo passou a ser designado no plural ─ letramentos ─ por entender que os letramentos são múltiplos e capazes de variar no tempo, no espaço, nas situações e no contexto e quase sempre determinado por relações de poder. 4
Desde o início da década de 1980, nas universidades do Brasil, o termo “letramento” tem motivado discussões sobre o ensino nas escolas, na tentativa de melhorar a qualidade da educação no país. Pesquisadores como Soares (2010) passaram a entender que o domínio de leitura e escrita delimitado apenas no uso do código já não daria conta do exercício da cidadania em tempos atuais. Explica essa educadora, nessa referida obra, que, no Brasil, era considerado alfabetizado aquele que fosse apenas capaz de escrever seu próprio nome; mais tarde esse conceito foi minimamente ampliado para a capacidade de ler e escrever um bilhete simples. Aos poucos, os estudos foram ficando mais amplos nessa área da educação, pressupondo quais efeitos estariam relacionados às práticas sociais e culturais da escrita (KLEIMAN, 2008).
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Ao usar a expressão Modelo Autônomo de Letramento, Street (2014) entende que o letramento independe do contexto social e que a autonomia está apenas na escrita, que é completa em si mesma, ou seja, toda produção de leitura e escrita é concebida como algo transparente, é como se o texto em si só bastasse e os sujeitos não precisassem lidar com as linguagens, ideologias, efeitos e consequências implicadas em ler e escrever. Se, nessa concepção, a leitura e a escrita são produtos completos em si mesmos, o eventual fracasso escolar do aluno é atribuído apenas a ele próprio (JUNG, 2007),pois o entendimento é que a escola ensina e que é o indivíduo que não aprende, que não consegue dar conta. Nesse contexto não há espaço para o questionamento, muito menos para problematizar os motivos pelos quais o aluno não consegue dar conta e ainda ser considerado incapaz de aprender. Em oposição ao Modelo Autônomo de Letramento, Street (2014) propõe o Modelo Ideológico de Letramento, que tem a prática de letramento como um processo de socialização do indivíduo que acontece não apenas na escola, mas em todo e qualquer contexto de interação. Metodologia do trabalho Trata-se de uma pesquisa na perspectiva da linguística aplicada (MOITA LOPES 2006), acreditando que essa visão pode trazer reflexões para o entendimento das relações entre professores e alunos a partir das inúmeras possibilidades que se encontram no espaço da sala de aula. A pesquisa está também na perspectiva da abordagem qualitativa (ANDRÉ, 1995). E, por fim, a pesquisa do tipo etnográfica, por nos permitir criar, segundo Moita Lopes (2006), alternativas de inteligibilidades para tais contextos de usos da linguagem na sala de aula, ou seja, os significados construídos em sala de aula são fundamentalmente definitivos para construção de nossas identidades sociais. Para este artigo trazemos excertos da professora e de um aluno, de modo que os instrumentos utilizados foram entrevista individual, entrevista grupo focal e diário de campo.
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Identidades sociais do campo da professora e de um aluno: análise preliminar dos dados. Conforme abordamos no inicio deste trabalho, adotamos a concepção de identidade como uma produção em constante movimento, produção com a qual alguém se quer identificar ou não. Esse processo envolve também o que se vê de si no olhar do outro. Assim, a identidade (ou as identidades) é um constructo de natureza social (HALL, 2011). Diante disso, selecionamos alguns excertos de discursos gerados com um aluno e uma professora de uma escola multisseriada no campo, com o propósito de compreender as percepções que ambos têm sobre identidade do campo e como ela reivindica para si uma identidade social do campo positiva. Professora - Os pais vieram reclamar sobre o muro. A Secretaria disse que faria a parte da frente. Eu fiquei contente achando que o muro iria sair, mas eles irão trazer o alambrado que não serve para a escola que está na cidade. O parquinho daqui foi pra reforma e até agora não trouxeram. Agora eles estão falando que tem um parquinho que não é novo, foi uma escola que doou... ou seja, vão mandar o parquinho velho pra nós porque o novo foi para outra escola. Então são coisas assim que desanima.... alguém disse [que] “deveria ficar feliz porque vão cercar a escola”. Eu fico feliz, mas, puxa.... coisa velha de outra escola. A outra escola está ficando a coisa mais linda e a nossa?(Entrevista/Áudio em 28/05/2014). A fala da professora parece ecoar as evidências sobre o que propõe o documento Panorama da Educação do Campo, ao mencionar que o espaço do campo possui vida própria e tem as suas necessidades como parte do mundo e não aquilo que “sobra além da cidade” (BRASIL, 2007). O contexto de desvalorização do lugar onde a professora e os alunos atuam nos é útil a fim de refletirmos sobre os processos de identidade, uma vez que a construção identitária não é independente das relações de poder tecidas em determinado contexto (KLEIMAN, 2006). E, nesse caso, parece haver um descontentamento da professora com alguém que exerce o poder, neste caso, a Secretaria, que dará a eles um alambrado que não serve para a escola de lá e um parquinho velho [...], porque o novo foi para outra escola. Quanto a esse discurso, Woodward (2011) traz um sentido interessante ao dizer que uma das formas de se ver a identidade é através daquilo que possuímos ou não, e o quanto isso nos faz diferente
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daquele que possui. Nesse sentido, uma identidade negativa parece ter sido disparada quando a professora compara sua realidade em detrimento do que lhe foi negado. Na interação, o encontro e o confronto de necessidades minhas e do outro parece sugerir um movimento de significações que dá um novo sentido à sua identidade do campo. É o que ela tenta evidenciar quando alguém diz “deveria ficar feliz porque vão cercar a escola”, eu fico feliz, mas, puxa [...] coisa velha de outra escola. A outra escola está ficando a coisa mais linda e a nossa? Tal prática tem semelhança com as pesquisas sobre a realidade das escolas multisseriadas no Pará, realizada pelo “Grupo de Estudo e Pesquisas em Educação do Campo na Amazônia ─ GEPERUAZ”, onde o grupo tem perguntado ─ a educadores e educadoras, estudantes, gestores, pais, mães e lideranças das comunidades rurais ─ o que pensam sobre as escolas multisseriadas. Em geral, as respostas estabelecem comparações entre as turmas seriadas, revelando que os sujeitos do campo acreditam que o modelo de escola seriada urbana seja a referência de uma educação de qualidade. A questão é que “[...] o espaço urbano tem sido apresentado como o lugar das possibilidades, da modernização e do desenvolvimento, do acesso à tecnologia [...] ao passo que o meio rural tem sido apontado como o lugar do atraso, da não-modernidade, da ignorância e do não-desenvolvimento” (HAGE, 2011, p. 131). Segundo o autor, esse discurso tem relação com o “paradigma de racionalidade e de sociabilidade urbanocêntrico”. Isso quer dizer que as escolas consideradas de boa qualidade são aquelas que estão na cidade e são seriadas, e esse modelo exerce influência sobre os sujeitos do campo, “[...] levando-os a estabelecer muitas comparações entre os modos de vida urbano e rural, entre as escolas da cidade e do campo” (HAGE, 2011, p. 131). No que se refere à dicotomia entre o campo e cidade, Cândido (2009) aponta que não há um vislumbre maior ─ dos professores, dos pais e dos alunos ─ em relação ao lugar (campo) em que vivem, o futuro e as melhores condições. Tais fatores positivos, segundo eles, estão sempre na zona urbana. Decorrente da dicotomia “campo e cidade”, o aluno Gugu fala da importância do trabalho do campo. Se, no início, os alunos tinham vergonha de se assumirem como identificados com o campo, parece ter havido um ganho identitário quanto a isso. Antes, porém, vai a fala da professora:
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Professora - No início eles tinham vergonha deles mesmos por serem do campo, eles tinham vergonha deles mesmo aqui na escola já. Então comecei a trabalhar a importância do campo, eu mostro a eles e digo que, se “o campo não planta, a cidade não janta”. Então eles já começaram a se sentirem importantes. (Professora/Entrevista/Áudio em 25/05/2014). Quando a professora diz que começou a trabalhar a importância do campo, mostrando para os alunos que, “se o campo não planta, a cidade não janta”, parece sugerir uma construção identitária positiva a partir do campo. Esse encorajamento, de alguma maneira, aparece na fala do aluno: Gugu - Aqui nós pescamos, e lá eles compram o peixe. Aqui nós plantamos, e lá eles compram. E eles dependem da nossa terra aqui. Porque a gente planta e alguém leva para eles lá no mercado. (Grupo Focal/Áudio 23/04/2014). Na sua fala, Gugu parece posicionar-se muito em função do que nos disse a professora, de que, “se o campo não planta, a cidade não janta”. A representação que está em questão é que agora ele se sente importante. Gugu parece estar construindo uma identidade positiva para si, posicionando-se criticamente contra as vozes daqueles que ele chama de “eles”. A construção dessa identidade positiva é reforçada pelo uso recorrente dos pronomes pessoais “eles e nós” (nós pescamos, eles compram; nós plantamos, eles compram). A fazer isso, ele está mostrando a importância de um “nós”. Esse pronome pessoal de autorreferência nos imprime um caráter coletivo de pertencimento para a construção de identidade. Como argumenta Bauman (2005), tornase cada vez mais importante para o indivíduo a busca por um “nós” a que possa pedir acesso. Em seu pertencimento, Gugu se posiciona como alguém que, em conjunto com outros, age (pesca, planta), assumindo um protagonismo de pertencer “ao” e trabalhar “no” campo. Ao considerarmos a voz de Gugu, percebemos como é importante o diálogo com os discursos legitimados na escola com a vida do aluno. Sobre isso, Celani (2003) aponta que “[...] os professores precisam discutir e refletir sobre a cultura de seus alunos para que assim seja possível promover um conhecimento mútuo sobre o conhecimento dos alunos e da sociedade em geral. E, dessa forma, fazer conexões [...]”. A discussão
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sobre formação de docente nesse contexto nos é útil para refletir sobre os processos de identificação que os professores têm com esse espaço. Em consonância com a noção de formação de professor, Ferreira (2006) aponta que “[...] o professor que pensa reflexivamente sobre seu próprio papel como professor, está sempre preocupado em entender a realidade de seu trabalho” (FERREIRA, 2006, p. 36). Um exemplo que nos ajuda a compreender como tais questões podem ser construídas na escola está na tese de Campos (2003), intitulada “Práticas de Letramento no Meio Rural Brasileiro: a influência do Movimento Sem Terra em escola pública de assentamento de reforma agrária”. O estudo foi realizado no contexto de uma escola pública de assentamento de reforma agrária e analisa redações produzidas por alunos de uma escola municipal, cuja professora não é militante e, também por alunos de outra escola, cuja professora está no processo de militância do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). As análises comparativas mostraram que os alunos da professora militante mobilizam o tempo todo o discurso do MST, “[...] bem como as práticas de leituras apreendidas em seus processos de ocupação, acampamento e assentamento de reforma agrária, e também em seus processos de escolarização, permeados por textos voltados para a formação política” (CAMPOS, 2003, p. 144). É possível inferir que a professora militante tem conseguido construir uma identidade do campo ao fazer relações com o ensino e o cotidiano dos alunos. Considerações finais Após as análises feitas e conforme mencionamos na introdução deste trabalho, propomo-nos agora a responder às perguntas que nortearam a discussão deste artigo, que foram: ‒Como a professora constrói uma identidade social do campo em uma escola multisseriada nas aulas de Língua Portuguesa? –Como o aluno de uma escola multisseriada constrói uma identidade social do campo? Pelas análises feitas é possível fazer relação com o sentido que Caldart (2004) dá ao território como triunfo dos que têm na terra um fator determinante e que marca a identidade do ser do campo. Exemplo disso é o aluno, que parece estabelecer relação identitária com o lugar e com um “fazer” (plantar, colher) coletivo.
Os dados
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preliminares apontaram que, tanto para o discurso da professora quanto para o do aluno, prevaleceu o movimento da autolegitimação a favor do espaço em que estão. Tanto a professora como o aluno, ambos se posicionaram como sujeitos na produção de seus discursos, reivindicando para si uma identidade positiva do campo. A discussão de temas como identidade e práticas de letramento no contexto da educação do campo tem possibilitado verificar que professores e alunos estão retomando uma identidade positiva do campo, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido. Referências ANDRÉ, M. E. Etnografia da prática escolar. Campinas, SP: Papirus, 1995. BAUMAN, Z. Identidade - Entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BRASIL. Panorama da educação do campo. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Brasília. 2007. CALDART, R. Elementos para a construção do projeto político-pedagógico da educação do campo. In: MOLINA, M. C.; JESUS, S. (Org.). Coleção por uma educação do campo, nº 5: contribuições para a construção de um projeto de educação no campo. Brasília, DF: Articulação Nacional "Por Uma Educação do Campo”, 2004, p. 10-31. CAMPOS, S. P. Práticas de letramento no meio rural brasileiro: a influência do Movimento Sem Terra em escola pública de assentamento de reforma agrária. 2003. 160f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada)-Universidade Estadual de Campinas. UNICAMP, 2003. CÂNDIDO, R. R. Alunos de uma escola em um bairro rural: identidades e representações em jogo. 2009. 92 f. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009. CELANI, M. A. Um programa de formação contínua. In: CELANI, M. A. (Ed.). Professores e formadores em mudança. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003, p. 19-35.
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ANÁLISE DE NECESSIDADES: DELINEANDO O CONTEXTO DE APLICAÇÃO DE UM CURSO PARA ALUNOS EM SITUAÇÃO DE VULNERABILIDADE SOCIAL Rayane Isadora Lenharo (UEL) Introdução O efeito da globalização no mundo produziu – e ainda produz – profundas mudanças em todos os setores de atividade do mundo de hoje, porém, é no campo da educação que ele se expressa de forma mais abundante (KUMARAVADIVELU, 2013). As novas tecnologias e as novas formas de pensar que surgem a partir destas mudanças provocam a constante necessidade de se repensar nossas atitudes e nosso papel no mundo. No âmbito da educação e das práticas escolares, faz-se imprescindível perceber e identificar as transformações provocadas pelo impacto das forças econômicas nas nossas práticas em contextos específicos, bem como reconceituar o que se entende por “motivação”, “participação”, “autonomia”, e outros conceitos-chave que guiam as ações de educadores de modo geral. Este artigo é um recorte de uma pesquisa de mestrado em andamento, intitulada “Das palavras aos sons: a música como ponte entre o aluno e a aprendizagem de língua inglesa em contextos de vulnerabilidade social”.1 Tal pesquisa tem como foco investigar a participação social de alunos de uma escola pública em um projeto no contra turno envolvendo gêneros textuais, língua inglesa e música, em um contexto de vulnerabilidade social. Entende-se por “vulnerabilidade” a condição de crianças e jovens expostos a comportamentos de risco, como uso e tráfico de drogas, prostituição e crime.
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Tal pesquisa se insere em um projeto mais amplo, chamado “Linguagem e sociedade: possibilidade de participação social de grupos socialmente vulneráveis por meio da língua inglesa”, coordenado pela prof.ª Dr.ª Vera Lúcia Lopes Cristovão (UEL) e que busca investigar as possibilidades de participação social por meio da língua inglesa de grupos socialmente vulneráveis no município de Londrina.
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Tendo em mente a noção de língua como prática social (BAKHTIN, 1992), acredita-se que a língua estrangeira assume papel decisivo na compreensão dos diferentes sistemas de atividades que envolvem as ações da contemporaneidade. Corrobora-se a visão de que a língua estrangeira é um “espaço para ampliar o contato com outras formas de conhecer, com outros procedimentos interpretativos de construção da realidade” (PARANÁ, 2008, p. 53). Na tentativa de facilitar o acesso e o aprendizado de línguas, procuram-se cada vez mais técnicas ou intervenções que aproximem os alunos do idioma. Em minha experiência como aluna – e posteriormente como professora – pude constatar a importância da música nesse aprendizado, como elemento motivador e capaz de potencializar a atribuição de novos significados pelos alunos. Aliado a isso, está o fato de os alunos estarem em constante contato com os mais diversos tipos de música em língua estrangeira, sobretudo com a língua inglesa. Justifica-se, deste modo, a opção por se utilizar música no ensino da língua inglesa, com vistas a suscitar nos indivíduos a consciência do papel que exercem em sua comunidade e no mundo, especialmente na condição em que se encontram. Considerando o contexto de vulnerabilidade citado, e tendo em vista a necessidade de mapear os perfis dos participantes antes de iniciar uma possível intervenção, foi necessário aplicar na turma um questionário de análise de necessidades. Esse artigo objetiva, portanto, analisar as respostas dadas a esse questionário, delineando os perfis dos alunos envolvidos na intervenção. Inicialmente, há uma descrição detalhada do contexto em que a pesquisa foi desenvolvida, com informações sobre o curso e o questionário produzido. Na sequência, apresento brevemente as categorias de tipos de discurso de Bronckart (2012), as quais foram utilizadas para analisar os questionários. Finalmente, há uma análise das respostas provenientes dos dados coletados e uma discussão acerca dos resultados obtidos. Contexto A análise de necessidades é um tipo de coleta de dados muito utilizada em pesquisa qualitativa (SEEDHOUSE, 1995; RAMOS, 2004; LABELLA-SANCHÉZ,
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2014). Há casos em que o pesquisador coleta dados por meio de uma só fonte, como um questionário aberto ou fechado (DÖRNYEI e TAGUCHI, 2010; FODDY, 1994), porém há pesquisas que coletam os dados de mais de uma forma, e fazem uma triangulação dos dados obtidos (NUNES, ALMEIDA, 2012). Em todo caso, o foco dessa abordagem é o de mapear as identidades, crenças, conhecimentos e vivências daqueles envolvidos na pesquisa ou em uma intervenção. O questionário de análise de necessidades foi elaborado levando em conta o seguinte contexto: foi ofertado um curso de língua inglesa para os alunos do Colégio Estadual Professora Cléia Godoy Fabrini Silva, da cidade de Londrina-PR, membros do projeto BCA (Basquete e Cidadania em Ação). Nesse projeto, coordenado por uma professora de inglês e ex-atleta, os alunos praticam basquete não só como um esporte, mas como uma prática cidadã. O objetivo do BCA é o de aproximar os alunos da escola e evitar que eles se envolvam em comportamentos de risco, já que, pela própria região onde os alunos habitam, estão mais suscetíveis a esses tipos de comportamentos. O curso é ministrado as terças e quintas-feiras, com encontros de uma hora cada, e a proposta é de ensinar inglês por meio de músicas. Para que o curso fosse planejado, os alunos responderam a um questionário composto por 14 perguntas que envolveram desde a importância da escola para os alunos até seu gosto pelo idioma e pela música, de modo a delinear os perfis dos participantes do curso. O questionário foi elaborado pela professora-pesquisadora, ministrante do curso. Os alunos responderam as perguntas durante a primeira aula do curso, que ocorreu no dia 25 de março de 2014, para que posteriormente as respostas fossem levadas em consideração na hora do preparo das aulas e do projeto como um todo. O questionário foi respondido por dezessete alunos na faixa etária de 12 a 20 anos, em situação de vulnerabilidade social e membros do projeto de cidadania supracitado, que envolve ensino de basquete e ensino de língua inglesa. Por meio do questionário desejou-se observar os anseios e expectativas dos participantes através das respostas às questões. Os textos foram produzidos com a finalidade de mapear os perfis dos participantes, levando em consideração seu contexto sócio-histórico, sendo que os participantes foram informados da finalidade do questionário.
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As respostas dadas ao questionário foram separadas entre “meninas” e “meninos” como forma de facilitar a tabulação, já que as únicas informações pessoais pedidas no questionário foram: idade, a série/ano em que o aluno estava matriculado e sexo. Cada respondente foi identificado com uma letra do alfabeto e um número, correspondente à sua idade. Sendo assim, temos as respondentes A-12, B-13, C-14, D14, E-15, F-16, G-18, H-13 (meninas) e os respondentes M-12, N-12, O-13, P13, Q-13, R-14, S-14, T-15, U-20 (meninos). A seguir, apresento uma conceituação teórica acerca dos tipos de discurso, utilizados para analisar as respostas ao questionário. Tipos de discurso Bronckart (2012, p. 152) estabelece quatro tipos de discurso, situados em mundos de dois tipos de ordem: a ordem do narrar e a ordem do expor. Um texto é classificado como da ordem do narrar quando “as coordenadas gerais que organizam o conteúdo temático mobilizado” nesse texto são “disjuntas das coordenadas do mundo ordinário da ação de linguagem;” já um texto da ordem do expor estabelece que as coordenadas do conteúdo temático sejam conjuntas às do mundo ordinário. Os textos inseridos em tais mundos podem ainda ser subdivididos em dois tipos: implicado e autônomo. Um texto é implicado quando mobiliza os parâmetros de ação linguageira, referindo-se a, por exemplo, o agente-produtor e o interlocutor da ação. Desse modo, é necessário conhecer o contexto de produção desse texto para interpretálo corretamente. No caso do texto autônomo, não há necessidade de possuir tais informações prévias, já que o texto estabelece uma relação de autonomia com os parâmetros da ação de linguagem. Cada um desses tipos de discurso recebe um nome específico. Sendo assim, temos que o mundo do EXPOR implicado é chamado de discurso interativo; o mundo do EXPOR autônomo é conhecido como discurso teórico; o mundo do NARRAR implicado é o relato interativo; o mundo do NARRAR autônomo é chamado de narração. Essa classificação dos tipos de discurso foi levada em conta na análise das respostadas dadas ao questionário, como forma de identificar como os alunos se
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colocavam em relação aos temas que estavam respondendo. Na sequência, passo à descrição das perguntas contidas no questionário. Questionário O questionário foi composto pelas seguintes perguntas: 1) A escola é importante para você? Justifique. 2) E para as pessoas do seu bairro, da sua rua, pais e familiares, etc, eles consideram frequentar a escola importante para a vida delas? Explique. 3) Você acredita que a educação oferecida pela escola pode contribuir para um futuro melhor? Se sim, de que maneira? 4) E a língua inglesa? Você acredita que ela pode contribuir para um futuro melhor? De que forma? 5) Você já estudou (ou estuda) língua inglesa fora da escola? (ex.: instituto de idiomas, centro comunitário, etc). 6) Você gosta da língua inglesa? Por quê? 7) Você tem contato com a língua inglesa fora da escola? Se sim, de que forma? Cite as principais. (ex.: música, filmes, livros, televisão, internet). 8) Por quê você decidiu participar desse curso? Assinale uma ou mais razões com a(s) qual(is) você se identifique: (OPÇÕES: gosto pelo idioma; desejo aprimorar os conhecimentos na língua; meus amigos decidiram fazer, então me inscrevi; considero importante para minha vida pessoal; quero tirar notas melhores na matéria; saber inglês é importante para conseguir trabalho; para me preparar para o vestibular; outro). 9) O que você espera aprender no curso? (OPÇÕES: vocabulário; entender letras de músicas que eu já conheço/ouço; gramática; conhecer músicas novas em inglês; discutir assuntos em inglês; aprender a se comunicar em inglês; outro). 10) Você gosta de ouvir música? Se sim, qual(is) estilo(s) você ouve com maior frequência? (OPÇÕES: Sim/ Não e estilos: axé, funk, hip hop, jazz, pagode, rap, rock, sertanejo, outro.) 11) Você prefere músicas nacionais ou estrangeiras? Por quê?
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12) Você acredita que é capaz de aprender inglês através de músicas? 13) Você acha que ouvir músicas em inglês ajuda no aprendizado do idioma? Por quê? 14) Você toca algum instrumento musical? Qual? Se não, você gostaria de aprender? Qual? Em geral, as perguntas são fechadas, com as respostas seguindo um mesmo padrão: o respondente deve selecionar entre “sim” ou “não”, e posteriormente justificar sua escolha. Dessa forma, as respostas se caracterizam, em sua maioria, por um marcador de afirmação ou negação, seguido por um segmento justificativo introduzido pelo organizador “porque”, “pois” ou “para que”. Tal situação acontece em metade das perguntas, sendo que as outras sete ou apenas perguntam “sim” ou “não”, sem pedido de justificativa, ou apresentam opções pré-determinadas a serem assinaladas (caso das perguntas 8, 9, e 10). Em seguida, passa-se à análise das respostas dos alunos. Análise Em função do espaço, selecionei as três primeiras perguntas do questionário para serem analisadas com mais detalhe. Em termos de criticidade, o nível das respostas dos alunos foi baixo em todas as perguntas. Desse modo, acredito que as três perguntas selecionadas podem ser consideradas como representativas do questionário como um todo. Na primeira pergunta, “A escola é importante para você? Justifique”, todos os respondentes responderam que sim, tanto meninas quanto meninos. Em geral, as respostas seguem a tendência midiática de colocar a escola como a instituição social capaz de mudar a vida dos cidadãos, garantindo-lhes um futuro melhor; no entanto, as respostas parecem ser meras reproduções desse discurso do senso comum, sem haver criticidade na fala dos alunos. Pelo menos dez das dezessete respostas envolviam os termos “para ter um futuro melhor/promissor”, “para ser alguém na vida”, “escola é a base para meu futuro” sem, contudo, desenvolver o que significava para eles “um futuro melhor”. Tais expressões podem ser observadas nas respostas de B-13 e O-13:
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B-13: Sim. Porque eu aprendo as coisas para um futuro melhor. O-13: Sim. Porque com a escola temos a chance de nos formar e garantir um futuro melhor.
Na segunda pergunta, “E para as pessoas do seu bairro, da sua rua, pais e familiares, etc, eles consideram frequentar a escola importante para a vida delas? Explique”, todas as meninas com exceção de uma responderam que sim, enquanto que dentre os meninos, dois responderam que não, e sete responderam que sim. As opiniões das pessoas que fazem parte do mundo dos alunos são de extrema importância para a formação de seu pensamento e opinião, já que a maioria afirmou que os familiares e pessoas próximas consideram a escola “muito importante”, sem, contudo, justificar em que sentido a escola teria essa importância; apenas três alunos revelaram a displicência de colegas e familiares com relação à escola. Ambos os exemplos a seguir revelam a presença de expressões generalizadoras recorrentes como “a maioria”, “eles dizem/acreditam/sabem”, “todos”, que denotam uma aproximação feita pelos respondentes, segundo sua própria leitura de mundo. É possível também perceber expressões que caracterizam impessoalidade como “a gente”, ou que indiquem um conjunto, como “para que possamos” ao invés de usar o dêitico pessoal “eu”; isso pode indicar que os alunos pensaram não só em sua condição individual, mas na situação de seus colegas também.
T-15: Sim. A maioria sim porque muitos não puderam ter estudo igual a gente está tendo agora. R-14: Não. Maioria não está nem aí com o estudo.
Com relação aos tipos de discurso, na terceira pergunta, “Você acredita que a educação oferecida pela escola pode contribuir para um futuro melhor? Se sim, de que
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maneira?”, é possível notar uma predominância do discurso interativo, já que a maioria das respostas possuem unidades que remetem aos agentes da interação ou do espaço, além de serem da ordem do expor. Essa predominância se dá não somente na segunda questão, como também nas demais perguntas do questionário. As unidades que caracterizam esse tipo de discurso são: “Porque aprendemos”, “para me ajudar”, “o ensino público desse país”, “a gente”, presentes nas respostas que seguem:
A-12: Sim. Porque aprendemos para que na faculdade, nos já tenhamos aprendido pelo menos o básico. D-14: Sim. Porque aprendemos muitas coisas na escola. G-18: Não. Pois o ensino público desse país é uma m**** e não se aprende nada. Q-13: Sim. Porque tem coisas que a gente aprende agora que usa mais tarde.
Novamente, em termos de conteúdo, os alunos revelaram nas suas respostas a forte influência do discurso do senso comum, já que a maioria das respostas, apesar de serem positivas, não se preocupou em descrever “de que maneira” a escola pode contribuir para um futuro melhor, restringindo-se a generalizações vagas como “aprendemos muitas coisas”, “coisas que a gente aprende agora e usa mais tarde”, etc. Das duas respostas negativas, apenas uma justificou a escolha (G-18); no entanto, a justificativa apresentou um comentário crítico revelando a visão dessa aluna com relação à educação no país de forma generalizada, porém sem argumentação consistente. Essa crítica também pode ser vista como um discurso presente na mídia de que “não se aprende nada” – como a própria aluna verbaliza – internalizado na mente de muitos alunos, podendo levar à desmotivação e consequente evasão escolar.
Resultados
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A partir da análise das respostas, foi possível constatar que houve predominância do discurso interativo, com várias expressões do tipo “porque aprendemos”; “o ensino público desse país”; “a gente”, remetendo aos agentes da interação. Além disso, houve grande incidência de verbos, característica desse tipo de discurso. Isso pode indicar que os alunos se implicam no discurso que produzem, assim como relatam fatos que parecem não mudar no contexto da sala de aula, como se fossem verdades absolutas. Pode-se notar também, em linhas gerais, forte influência do discurso do senso comum, sem justificar de forma coerente as escolhas feitas nas respostas. Muitos alunos inclusive selecionavam apenas entre as opções “sim” ou “não” sem justificar sua escolha. Quando havia a justificativa, ou ela se limitava a reproduzir frases feitas provenientes do discurso do senso comum, ou não possuíam embasamento em termos de argumentos ou lógica. Tal constatação remete à necessidade de provocar uma consciência crítica nos alunos, para que eles consigam produzir uma argumentação coerente e bem estruturada. A necessidade de formar cidadãos críticos é fundamental, principalmente em um contexto de vulnerabilidade social, pois só através da consciência do papel que esses alunos desempenham hoje na sociedade (e que podem vir a desempenhar) é que eles podem se desvencilhar de preconceitos e barreiras impostas pelos grupos hegemônicos. Tendo em vista tal necessidade, foi possível determinar que o trabalho a ser realizado na intervenção precisaria, sobretudo, utilizar as músicas como forma de despertar a consciência crítica nesses alunos. Referências BAKHTIN. Os gêneros do discurso. In: ________. Estética da criação verbal. Trad. Por M. E. G. Gomes. São Paulo: Martins Fontes, 1992 [1953]. BRONCKART, J. P. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sociodiscursivo. São Paulo: EDUC. Tradução de Anna Rachel Machado e Péricles Cunha, 2ª ed. 2012.
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DÖRNYEI, Zoltán; TAGUCHI, Tatsuya. Questionnaires in second language research: Construction, administration, and processing. Routledge, 2010. FODDY, William H. Constructing questions for interviews and questionnaires: theory and practice in social research. Cambridge university press, 1994. KUMARAVADIVELU, B. English Language Teacher Education: Facing Challenges, forging connections. In: International
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Hyderabad, India. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-YrvW6p5uG0. Acesso em 25 de agosto, 2014. LABELLA-SÁNCHEZ, Natalia. Análise de necessidades com base em gênero para orientar a produção de material didático em espanhol: gêneros profissionais do ramo imobiliário1. Revista Brasileira de Lingüística Aplicada, v. 14, n. 3, 2014. NUNES, Tatianne Fernandes; ALMEIDA, Vania Hirle. Por uma pedagogia de pesquisa: análise de necessidades docentes. Revista Formadores, v. 5, n. 1, p. 49-74, 2012. PARANÁ. Diretrizes Curriculares da Educação Básica – Língua Estrangeira Moderna. Secretaria de Educação do Estado do Paraná. Paraná, 2008. RAMOS, Rosinda de Castro Guerra. Gêneros textuais: uma proposta de aplicação em cursos de inglês para fins específicos. The ESPecialist. Pesquisa em Línguas para Fins Específicos. Descrição, Ensino e Aprendizagem. ISSN 2318-7115, v. 25, n. 2, 2004. SEEDHOUSE, Paul. Needs analysis and the general English classroom. ELT Journal, v. 49, n. 1, p. 59-65, 1995.
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A DIACRONIA DOS ESQUEMAS DE JUNÇÃO DA RELAÇÃO DE TEMPO EM TESTAMENTOS DO RIO GRANDE DO NORTE
Rayara Jayne Pereira de Souza (UFRN) 1.Introdução O presente trabalho busca contribuir com o projeto Para a História do Português Brasileiro (PHPB), trazendo em sua composição a análise das Tradições Discursivas (TDs) presentes em testamentos do Rio Grande do Norte dos séculos XVIII, XIX e XX. Neste trabalho, busca-se examinar os nexos coesivos da técnica de junção, entendida como o estabelecimento de relações semânticas. O principal objetivo deste trabalho é procurar determinar a relação dos juntores que se encontram em um determinado texto e a Tradição discursiva (TD) a qual pertence, analisando especificamente as relações de tempo. 2.Fundamentação Teórica 2.1 Tradições Discursivas A partir do postulado de Eugênio Coseriu de uma linguística própria que focalizava o nível do “texto/discurso” (KABATEK, 2006), surgiram outros inúmeros estudos relacionados a esses aspectos. Um dos principais foi o de Brigitte SchliebenLangue, em 1983, que foi colega de estudos de Eugênio Coseriu. No seu trabalho, Brigitte Schlieben-Langue propôs um estudo relacionando diferentes aspectos sociolinguísticos e pragmáticos com a teoria de Coseriu e, conforme esses estudos “apresentou a proposta de uma Pragmática histórica em um livro que relacionava a discussão sobre oralidade e “escrituralidade” com uma visão histórica e ofereceu assim o fundamento para o que mais adiante se chamaria o estudo das TD” (KABATEK, 2006, p. 507).
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Partindo desses estudos, Koch (1997) e Oesterreicher (1997) definiram mais coerentemente o conceito de Tradições Discursivas, reduplicando o nível histórico proposto por Eugênio Coseriu: o nível histórico se subdividiu em dois outros fatores que correspondem ao “domínio da língua histórica particular [os próprios aspectos linguísticos, fonológicos, sintáticos, morfológicos e lexicais de uma língua] e o domínio da tradição dos textos [corresponde a aspectos mais amplos de sentido, composicionalidade e estilo dos textos, como também a própria tradição cultural e histórica dos textos ou enunciados] ”. (LONGHIN, 2014, p. 17). Isso quer dizer que, a produção do sentido perpassa por esses dois “filtros”, simultaneamente, chegando a produção do enunciado. Um dos principais estudiosos das Tradições Discursivas na atualidade é Johannes Kabatek (2006) que oferece a seguinte definição das TD: Entendemos por Tradição Discursiva (TD) a repetição de um texto ou de uma forma textual ou de uma maneira particular de escrever ou falar que adquires valor de signo próprio (portanto é significável). Pode-se formar em relação a qualquer finalidade de expressão ou qualquer elemento de conteúdo, cuja repetição estabelece uma relação de união entre atualização e tradição; qualquer relação que se pode estabelecer semioticamente entre dois elementos de tradição (atos de enunciação ou elementos referenciais) que evocam uma determinada forma textual ou determinados elementos linguísticos empregados. (KABATEK, 2006, p. 512)
2.2 Junção Associado ao modelo teórico das Tradições Discursivas está a teoria proposta pelo linguista alemão Wolfgang Raible chamada de “Junktion” (junção). Nessa teoria, os diferentes elementos e técnicas linguísticos e a partir de uma sistematização dos mesmos, é possível “juntar ou combinar elementos proposicionais” (KABATEK, 2006, p. 517). Segundo Johannes Kabatek (2006) os falantes e ouvintes em geral, através da conjunção de diferentes elementos nominais e verbais, estabelecem diferentes relações que se classificam conforme o grau de complexidade. Dessa forma, essas relações podem ficar inexplícitas ou podem aparecer no texto por meio dos juntores: “elementos dêiticos, elementos de coordenação ou de subordinação (conjunções), [...] grupos
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preposicionais, simples preposições... O esquema de junção oferece uma ordem lógica a esses elementos.” (KABATEK, 2006, p. 518). O principal objetivo dos esquemas de junção é oferecer uma classificação lógica e organizada dos juntores em uma língua. Dessa maneira, os esquemas de junção que um texto apresenta, principalmente, a frequência com que aparecem e os tipos de juntores que aparecem, são de grande importância para determinar a que tradição discursiva o texto pertence. 3.Metodologia O corpus analisado é composto por testamentos do estado Rio Grande do Norte dos séculos XVIII, XIX e XX, especificamente da capital Natal e do município de São José de Mipibú. Compõe-se de quinze (15) testamentos, sendo eles divididos em cinco testamentos do século XVIII, cinco do século XIX e cinco do século XX, nos quais se pretende trabalhar o modelo teórico de Tradições Discursivas a partir das técnicas de junção. Trata-se, também, de uma análise não só quantitativa, mas também qualitativa. É importante salientar que esse corpus, por ser composto por um número insuficiente de testamentos, não é representativo. Porém, as observações iniciais acerca do mesmo podem ser entendidas como hipóteses a serem comprovadas por meio de futuras análises em um corpus representativo. 4. Análise, primeiros resultados e conclusões Na análise dos testamentos por meio da técnica de junção foram considerados, qualitativamente
e
quantitativamente,
os
advérbios
juntivos,
coordenações,
subordinações, construções gerundiais, grupos preposicionais e preposições simples, conforme a tabela abaixo:
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Tabela 1- Aspectos linguísticos analisados e porcentagem de ocorrências.
A partir dos aspectos linguísticos analisados, foi possível constatar que, dentro dos parâmetros de proximidade e distância comunicativa, assim como, no contínuo de oralidade e escrituralidade proposto por Koch (1997) e Oesterreicher (1997), os testamentos do século XVIII possuem uma ruptura maior relativamente aos dos séculos XIX e XX, principalmente, em relação às preposições. Isso pode ser um sintoma de que os testamentos dos séculos XIX e XX aproximaram-se mais da escrituralidade, ou seja, ficaram mais formais, enquanto que os do século XVIII estão mais próximos da oralidade, ou seja, mais informais. Contudo, essa é uma análise preliminar. No entanto, a partir de um resgate maior de corpus, poderá ser possível a conclusão desses primeiros resultados para, dessa forma, se chegar a uma possível definição e resultados coerentes dos dados aqui, inicialmente apresentados. 5. Referências KABATEK, Johannes. Tradições Discursivas e mudança linguística. In: LOBO, T.; RIBEIRO, I.; CARNEIRO, Z.; ALMEIDA, N. (Orgs.) Para a história do português brasileiro.Salvador: Edufba, 2006. KOCH, Peter; ÖESTERREICHER, Wulf. Lengua hablada em la Romania:Español, Francés, Italiano. Madrid: Editorial Gredos, 2007. In: LONGHIN, Sanderléia Roberta. Tradições Discursivas: conceito, história e aquisição. São Paulo: Cortez, 2014 (Coleção leituras introdutórias em linguagem; v. 4) LONGHIN, Sanderléia Roberta. Tradições Discursivas: conceito, história e aquisição. São Paulo: Cortez, 2014 (Coleção leituras introdutórias em linguagem; v. 4) RAIBLE,
Wolfgang.
Junktion:
eine
Dimension
der
Sprache
und
ihre
Realisierungsformen zwischen Aggregation und Integration. Heidelberg: Winter, 1992. In: KABATEK, Johannes. Tradições Discursivas e mudança linguística. In: LOBO, T.; RIBEIRO, I.; CARNEIRO, Z.; ALMEIDA, N. (Orgs.) Para a história do português brasileiro.Salvador: Edufba, 2006.
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UM ESTUDO DESCRITIVO DOS GÊNEROS DO PRIMEIRO CADERNO E DO CADERNO FOLHA 2 DA FOLHA DE LONDRINA
Rithielle Aparecida Castellani (UENP/CCP) Samandra de Andrade Correa (UENP/CCP) Introdução Atualmente o ensino da Língua Portuguesa tem se voltado consideravelmente para o trabalho com os gêneros do jornal. Entretanto, ainda há uma carência muito grande de pesquisas com essa temática, sobretudo, na área de Estudos da Linguagem (ver BONINI, 2003). Foi pensando nisso que decidimos estudar, a priori, teoricamente, a esfera jornalística. Nos propusemos a elaborar um modelo teórico (BARROS, 2012) do Primeiro Caderno e do caderno Folha 2 do Jornal Folha de Londrina. O Modelo teórico é uma adaptação do conceito de modelo didático do Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) – base teórica da nossa pesquisa. Para Barros (2012), o processo de modelização de objetos de ensino precisa descrevê-los teoricamente, tanto pelo viés bibliográfico como analítico, mas não necessita, a priori, adaptar essa descrição a um contexto específico de intervenção didática. Essa adaptação, segundo a autora, é feita somente quando esse modelo instrumentalizar, efetivamente, a elaboração de materiais didáticos. No caso da nossa pesquisa, a modelização não é de um gênero de texto, mas de um Caderno, que, na nossa pesquisa, estamos considerando um subsuporte do jornal, já que para nós o jornal é um suporte (MARCUSCHI, 2008) e não um hipergênero, como conceitua Bonini (2003). Ou seja, estamos fazendo uma adaptação na teoria do ISD. O objetivo é que o modelo teórico construído sirva de suporte não só para processos de transposição didática que serão desenvolvidos no projeto de pesquisa a que nos vinculamos, mas para qualquer um que tenha o Caderno analisado e/ou os gêneros inventariados como instrumentos/ objetos de ensino.
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Dados da pesquisa Como o nosso objetivo geral era elaborar um modelo teórico do Primeiro Caderno e da Folha 2 da Folha de Londrina – objetos de análise da pesquisa (análise documental) –, o primeiro procedimento metodológico foi selecionar um corpus de análise. Para tanto, foram selecionadas as edições de Março, Abril e Maio de 2013 – época de início da investigação. Além da seleção do corpus, a elaboração do modelo teórico comportou quatro etapas: 1) estudo bibliográfico da esfera jornalística e dos gêneros do jornal, a fim de subsidiar as análises dos Cadernos; 2) entrevista com a Folha de Londrina; 3) inventário dos gêneros do Primeiro Caderno e da Folha 2; 4) análise e interpretação do Caderno com base nas categorias do ISD – contexto de produção e plano global – e na adaptação feita da categorização de Bonini (2003): gêneros da atividade jornalística (suporte para o trabalho jornalístico) / do jornal (veiculados nele); gêneros centrais (voltados para os propósitos norteadores do jornalismo) / periféricos (com outros propósitos); gêneros autônomos (funcionam normalmente sozinhos) / conjugados (complementam a funcionalidade de outros gêneros); conceito de coluna como um espaço fixo do jornal e não como gênero de texto; para os gêneros do jornal. O Primeiro Caderno da Folha de Londrina O Primeiro Caderno é o principal e o maior caderno da Folha de Londrina, sendo o único fixo do jornal, ocorrendo todos os dias da semana. Ele possui o maior número de seções, que podem variar nos dias de publicação, mas que são próprias desse Caderno: Opinião, Política, Geral e Mundo. O Primeiro Caderno, em alguns dias, incorpora outros cadernos do jornal, os quais tornam-se seções: Economia, Esporte e Folha 2. O inventário desse Caderno revelou 14 gêneros: 1) Chamada de capa, central, 2) Editorial, central/autônomo, 3) Carta do Leitor, central/autônomo 4) Artigo de opinião, central/autônomo 5) Charge, central/autônomo; 6) Notícia, central/autônomo; 7) Reportagem, central/autônomo; 8) Nota (coluna “Informe Folha”), conjugado a uma coluna; 9) Nota comentada (coluna “Cláudio Humberto” e “Luiz Geraldo Mazza”),
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conjugado a uma coluna; 10) Ensaio (coluna “Dora Kramer”), conjugado a uma coluna ;11) Placar, autônomo; 12) Agenda Esportiva, autônomo; 13) Infográfico, conjugado; 14) Foto/legenda, conjugado Quanto ao contexto de produção, de uma forma breve, concluímos que o Primeiro Caderno é o mais acessado, ou seja, o de maior busca dentro do jornal, pois, de forma mais ampla, aborda as principais informações, além de contemplar a única seção destinada especificamente à veiculação de opinião (do jornal – editorial; dos leitores – carta do leitor e artigo de opinião; por meio do sincretismo de linguagens – charge), por isso, possui um público bastante heterogêneo. Além disso, é o caderno que mais possui contribuição de leitores, por ter gêneros com essas especificidades. Resultados do Caderno Folha 2 A Folha 2 é conhecida como caderno cultural, pois seu conteúdo está voltado para a arte, música, livro, cinema, novela, etc. A princípio pensávamos que o caderno se articulava apenas à esfera cultural, mas, no decorrer da pesquisa, percebemos que está voltado também para a esfera do entretenimento. Isso se justifica pelo fato de a Folha 2 veicular gêneros com a finalidade de entreter, como a tirinha e o sudoku. O Caderno pode variar de 4 a 8 páginas. Seu inventário revelou 18 gêneros: anúncio publicitário, comentário, crônicas, cruzadas, entrevista, ficha técnica, foto/legenda, horóscopo, notícia, notas sociais, reportagem, resenha descritiva de livros infanto-juvenis, resenha crítica de arte, roteiro, sinopse de filme comentada, sudoku, tirinhas e tira-dúvidas de Língua Portuguesa. Desses, alguns foram considerados periféricos, pois não estão centrados nos propósitos comunicativos norteadores do jornal, mas em outros, como o entretenimento, como é o caso das cruzadas, sodoku, tirinhas e horóscopo. Alguns desses gêneros só funcionam vinculados a outros, por isso, foram classificados como “conjugados” – como a foto/legenda que complementa a funcionalidade das reportagens e a ficha técnica que acompanha as resenhas –, em oposição aos gêneros autônomos, aqueles que têm independência discursiva. Quanto ao contexto de produção, destacamos aqui alguns pontos. O caderno Folha 2 é produzido no jornal Folha de Londrina e seu momento de produção, concretamente,
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é representado pelo dia anterior à sua publicação (data de fechamento da edição), porém, é evidente que a preparação das matérias demandam tempo, processos que envolvem vários “gêneros da atividade jornalística”, entre elas, a reunião de pauta e as entrevistas externas. O emissor principal é o jornalista que detém a editoria do Caderno: ele não escreve todos os textos (uns são escritos por leitores – as crônicas), mas é responsável pela edição final. Seu papel social é de um editor interessado em veicular textos que promovam entretenimento e enriqueçam o mundo cultural dos leitores – pessoas da região que pertencem, na sua maioria, à classe média-alta, com um bom grau de letramento, e que se interessam pelo conteúdo cultural do Caderno. Considerações finais Acreditamos que este trabalho pode contribuir com as pesquisas voltadas à transposição didática de gêneros do jornal, uma vez que ainda há poucos trabalhos que se dedicam a isso. E, de forma mais específica, auxiliar o trabalho dos professores com o Jornal Folha de Londrina, mais pontualmente com o Primeiro Caderno e a Folha 2, para que os gêneros desses Cadernos possam ser objetos de ensino, dando suporte, inclusive, ao Programa Folha Cidadania – Programa de incentivo ao letramento escolar do jornal. Referências BARROS, Eliana Merlin Deganutti. Gestos de ensinar e de aprender gêneros textuais: a sequência didática como instrumento de mediação. 2012, 366f. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2012. BONINI, Adair. Os gêneros do jornal: o que aponta a literatura da área de comunicação no Brasil?. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 4, n. 1, p. 205-231, jul./dez. 2003. BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. Trad. Anna Rachel Machado e Péricles Cunha. 2. reimpressão. São Paulo: EDUC, 2003. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008.
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A INTERTEXTUALIDADE COMO MECANISMO QUE ASSEGURA EFEITO DE REAL EM NOTÍCIAS FALSAS Ronaldo Nezo (UEM) Este artigo trata da intertextualidade como mecanismo que assegura efeito de real em notícias falsas. O conceito de intertextualidade, que surgiu a partir de estudos sobre o dialogismo de Mikhail Bakhtin, caracteriza-se pelo entendimento de que todo texto se constrói a partir de outros textos. Entretanto, a intertextualidade vai além da presença num texto de outros textos de forma explícita ou implícita; também se dá, por exemplo, pela repetição de uma estrutura conhecida, de um estilo etc. Para entendermos como isso se dá em notícias falsas, vamos analisar textos construídos usando a técnica jornalística, porém de fatos fictícios, que circularam, inicialmente, pela internet, mas que ganharam repercussão em diversas páginas da web e também em jornais, revistas, rádios e televisões como sendo notícias de fatos reais. O objetivo é mostrar que a intertextualidade contribui para assegurar efeito de real em notícias falsas. O efeito de real, como diz Roland Barthes, sustenta-se pela presença de determinadas marcas ou estruturas – no caso do nosso objeto de investigação e pesquisa, entendemos essas marcas como os intertextos. Desta forma, pretendemos conceituar a intertextualidade e também caracterizar outros tipos de intertextualidade, na perspectiva de Koch, Bentes e Cavalcante (2007). Veremos os tipos de intertextualidade estilística e tipológica e como elas estão presentes nos textos que serão analisados. O material de análise são dois textos que circularam na internet como sendo matérias jornalísticas e também ganharam repercussão noutros veículos de comunicação – foram reproduzidos em rádios, tevês, jornais e revistas. Foram escritos pelo humorista, professor e blogueiro Fábio Flores1, que inicialmente publicava no blog Tramado por mulheres2 e, até o final de 2013, era colaborador do blog Bobagento3. Embora tratem de fatos improváveis, foram interpretados como notícias reais. Entendemos que a intertextualidade contribuiu para a construção dessa aparência de 1
https://www.facebook.com/FabioFloresComedia http://www.tramadopormulheres.com.br/ 3 http://bobagento.com/ 2
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verdade. Por isso, além de tratar da intertextualidade, faz-se necessário descrever os elementos da estrutura do texto jornalístico e o conceito de objetividade, pois funcionam como intertextos que aparecem nas notícias falsas e que produzem sentidos. Intertextualidade e o texto jornalístico Para responder o problema proposto por esta pesquisa, entendemos ser fundamental resgatar alguns outros conceitos. Embora a intertextualidade seja um dos grandes temas estudados na Linguística, não é possível tratar deste assunto sem explicitar brevemente qual o entendimento adotado sobre o texto e de que forma o aplicaremos ao texto jornalístico. Fávero e Koch (1988, p.25) apontam que o [...] texto, em sentido lato, designa toda e qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano (quer se trate de um poema, quer de uma música, uma pintura, um filme, uma escultura etc.), isto é, qualquer tipo de comunicação realizado através de um sistema de signos. [..] o texto [em sentido estrito] consiste em qualquer passagem, falada ou escrita, que forma um todo significativo (FÁVERO; KOCH, 1988, p. 25).
Esta definição contribui para entender que ao falarmos do texto não estamos tratando de uma unidade linguística que se expresse apenas por meio da materialidade escrita. Uma imagem, por exemplo, é um texto. O mesmo vale para uma obra de arte, a fala de um jornalista etc. Ainda que nesta pesquisa tenhamos como objeto de análise o texto escrito, o conceito que adotamos vai para além da organização formal de palavras numa estrutura gramatical complexa. Ao entendermos o texto de maneira mais ampla, podemos compreendê-lo como parte de diferentes atividades de comunicação. Quanto ao texto jornalístico, embora se constitua num gênero específico, é antes de tudo um texto. E por isso também pode ser compreendido como [...] uma unidade linguística concreta, que é tomada pelos usuários da língua, em uma situação interação comunicativa específica, como uma unidade de sentido e como preenchendo uma função comunicativa reconhecível e reconhecida, independentemente de sua extensão (KOCH, TRAVAGLIA, 1989, p. 12).
O texto jornalístico se constitui numa unidade linguística que permite uma interação específica entre o repórter e o leitor. E a comunicação se efetiva justamente
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pelo reconhecimento desse tipo de texto; isso ocorre por haver uma memória social, uma retomada de textos, estruturas, características conhecidas. É importante considerar que um texto não existe sozinho; dialoga com outros textos. Segundo Koch, Bentes e Cavalcante (2007), de um texto fazem parte outros textos; há um diálogo, uma retomada – ainda que seja por oposição. Ou seja, ocorre um processo de interação que produz sentidos. Por isso, não pode ser avaliado ou compreendido de maneira isolada. Essa concepção de um texto que se constitui por outros textos é chamada de intertextualidade. Retomando o dialogismo de Bakthin, a pesquisadora francesa Julia Kristeva foi a responsável pela introdução do conceito nos anos 1960. A partir dela, o texto passou a ser melhor compreendido como um objeto heterogêneo que não significa por si só; os sentidos se constituem na relação com seu exterior. Outros textos fazem parte dele; dãolhe origem. Esses intertextos são parte da memória social, por isso são identificados pelos interlocutores e atravessam o texto produzindo sentidos. Entretanto, ao tratar da intertextualidade, Koch, Bentes e Cavalcante (2007) estendem o conceito para além do diálogo de um texto com outros textos. Como veremos adiante, as autoras caracterizam a existência de outros tipos de intertextualidade. Ao citarem Jenny (1979), abordam a intertextualidade como a presença de elementos anteriormente estruturados – ou seja, elementos sequenciais, estilísticos etc já existentes noutros textos. A identificação de um tipo ou de gênero, por exemplo, se dá pela presença desses intertextos. É o caso do texto jornalístico, que cumpre uma função informativa e é reconhecido como tal pelos leitores em virtude das marcas linguísticas que carrega. A presença do outro, por citação direta, é uma característica da matéria ou reportagem jornalística. Elementos como “segundo ele”, “de acordo com ele” são frequentes na estrutura desse texto. São característicos da técnica jornalística que, reconhecidos pelo leitor, asseguram a identificação desse tipo de texto como sendo noticioso. A intertextualidade surge, portanto, do reconhecimento de que [...] todo texto é um objeto heterogêneo, que revela uma relação radical de seu interior com seu exterior; e, desse exterior, evidentemente, fazem parte outros textos que lhe dão origem, que o predeterminam, com os quais dialogada, que retoma, a que alude, ou a que se opõe (KOCH, 2005, p, 59).
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Ao avançar nas discussões sobre a intertextualidade, Koch, Bentes e Cavalcante (2007) consideram-na como a relação de um texto com outros já existentes. Entretanto, ampliam essa noção ao apontar que existem diversos tipos de intertextualidade. Entre elas, a intertextualidade estilística e a tipológica, que são fundamentais para nossa pesquisa. A intertextualidade estilística ocorre, como o termo sugere, quando um estilo se repete. O interlocutor reconhece o intertexto pela forma que emoldura o conteúdo. Koch, Bentes e Cavalcante (2007, p. 19) afirmam que ela se dá “[...] quando o produtor do texto, com objetivos variados, repete, imita, parodia certos estilos ou variedades linguísticas”. No texto jornalístico, por exemplo, há uma estrutura que se repete. Também na narrativa do repórter televisivo, existe uma postura que é adotada independentemente de quem é o narrador. São marcas de um determinado estilo que podem ser identificadas pelo interlocutor e que produzem sentido. Características comuns que se repetem em vários textos resultam num tipo de texto. Podemos falar em intertextualidade tipológica ao nos referirmos ao texto jornalístico, pois possui determinadas sequências, “[...] um conjunto de características comuns, em termos de estruturação, seleção lexical, uso de tempos verbais [...] que permitem reconhecê-las como pertencentes a determinada classe” (KOCH, BENTES E CAVALCANTE, 2007, p.76-77). Apesar de as autoras não tratarem do texto jornalístico como exemplo de intertextualidade tipológica, semelhante a outros gêneros, o jornalismo tem suas sequências, formas próprias de contar um fato. Os jornalistas, no lugar de locutores, e os leitores, no lugar de interlocutores, possuem na memória representações das características estruturais. Objetividade jornalística Embora a história mostre que há mudanças na maneira de se construir um texto jornalístico, Nilson Lage (1987) aponta que a notícia possui uma estrutura relativamente estável, principalmente após ter se conformado aos padrões industriais através de técnicas específicas de produção. Sponholz (1992) ressalta que, no século XIX, os norte-americanos foram importantes no processo de profissionalização – ou, industrialização – do jornalismo. Ao introduzirem o conceito de objetividade jornalística, mudou a maneira de produzir notícia. A informação passou a ser construída a partir de um lead – no primeiro parágrafo, devem ser respondidas as perguntas o quê,
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quem, quando, onde, como e por quê. “Outras concepções de ou associações com objetividade, como neutralidade e imparcialidade, também são marcadas pela visão de mundo produzida na matriz norte-americana” (SPONHOLZ, 1992, p. 146). A partir dessa concepção, o texto jornalístico começou a respeitar determinadas técnicas. O texto jornalístico procurou manter uma espécie de distanciamento que garantisse o efeito de objetividade, em especial atendendo a tese da neutralidade e imparcialidade. Adjetivos testemunhais e aferições subjetivas foram eliminados. Lage (1997) afirma que a norma passou a ser a substituição dessas expressões por dados, pelo dito relatado de forma direta ou indireta que permitam ao leitor ou ouvinte (interlocutor) fazer sua própria avaliação. Neste modelo de jornalismo, uma determinada ideia de objetividade, a de mediar e transmitir a realidade através da observação desta, sem intervenção externa (por exemplo, do sujeito observador), ocupa um lugar central (SPONHOLZ, 1992, p. 147).
O jornalismo trabalha para criar a ilusão da objetividade. Tuchman (1972) explica que a objetividade se materializa também em orientações práticas. Há "rituais" da objetividade jornalística como ouvir os dois lados e usar criteriosamente as citações. Pelo uso da terceira pessoa, obrigatório nesse tipo de texto, o repórter apresenta-se apenas como mediador do fato. Busca-se a impessoalidade, o distanciamento. Trata-se, portanto, de uma ação que visa assegurar credibilidade ao conteúdo jornalístico. Ao utilizar esses mecanismos, e também as aspas, fontes oficiais ou conflitantes (ouvir os “dois lados”), organização da informação numa sequência padronizada, o que se pretende conquistar é a exatidão, a equidade e a verdade (KOVACH e ROSENTIEL, 2004, p. 62). Dessa forma, a ética profissional dominante sustenta que o fato e o relato jornalístico possuem uma nítida demarcação epistemológica. A credibilidade e a legitimidade da atuação dos jornalistas estão sedimentadas na crença de que as notícias retratam os fatos com objetividade e neutralidade. Por meio de técnica, o conteúdo jornalístico apresenta-se como um dispositivo de produção da realidade. Para o senso comum, as notícias são relatos verdadeiros de fatos significativos. Sendo assim, os jornalistas realizam seu trabalho de produzir as notícias, apresentando-se como simples mediadores que, no texto, reproduzem a realidade social (LAGE, 1997).
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Os padrões e rituais que denotam o cumprimento desse ideal normativo sustentam a credibilidade do jornalismo diante do público. Isso se dá porque jornalistas e público compartilham a compreensão de que o bom jornalismo é objetivo e imparcial. Ou seja, podemos entender que o texto jornalístico é construído a partir de um conjunto de procedimentos e regras históricas que o constitui como expressão da realidade. Essas marcas – que aqui apontamos como intertextos – levam o interlocutor a identificar o texto como digno de credibilidade. Roland Barthes, ao desenvolver o conceito do “efeito de real”, sustenta que este se constitui por estratégias textuais que produzem uma ilusão referencial. O efeito de real, segundo Mayra Rodrigues Gomes (2000, p.24), diz respeito a um sistemático esquecimento da ordem simbólica, e de si próprio como imerso nesta ordem, para “enaltecimento de um real como autossuficiente, como não mediatizado, na suposição de pura concretude”. Entendemos que as técnicas jornalísticas contribuem para a produção desse efeito. Essas estratégias textuais, que aqui apontamos como os diferentes tipos de intertextos, sustentam a ilusão referencial de realidade. “A apresentação do real é a condição necessária que justifica a existência do jornalismo” (DALMONTE, 2008, p. 41). Notícias falsas na internet É neste contexto que surge o problema de nossa pesquisa. Afinal, com o advento da internet, o processo de divulgação e compartilhamento de notícias foi significativamente alterado. Atualmente, qualquer pessoa com acesso à rede pode produzir, publicar e publicizar conteúdo. As formas de comunicação digital “[...] permitem a participação, a intervenção, a bidirecionalidade e a multiplicidade de conexões. [...] rompem com a linearidade e com a separação emissão/recepção” (TEIXEIRA; BRANDÃO, 2003, p. 4, apud CABESTRÉ; BELLUZZO, 2008, p. 149). Porém, ao mesmo tempo em que permitem uma suposta democratização do processo de consumo e produção de conteúdo, não há necessidade de identificação. O anonimato é frequente e até o uso de codinomes ou nomes falsos. E com o status de verdade, informações mentirosas circulam pela rede e são consumidas como notícias. Entendemos que, no caso dos falsos textos noticiosos que circulam pela rede, este quadro de referência é dado pela memória social construída historicamente na relação
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do interlocutor com as estruturas do texto jornalístico. E se o texto parece ser jornalístico, logo é compreendido como algo que representa o fato, o real. A facilidade de propagação de notícias falsas tem motivado, inclusive, a produção desses conteúdos até como forma de “testar” o público da rede. Um adepto dessa prática é o professor, humorista e blogueiro Fábio Flores, criador de notícias falsas para circulação na internet. Em entrevista à rádio CBN4, em 2012, ele enumerou algumas que produziu e que foram lidas como sendo verdadeiras. Embora relatem fatos absurdos, são consumidas como sendo sobre fatos concretos. Na ocasião, Flores contou que até mesmo profissionais do meio jornalístico foram enganados e as consideraram como sendo legítimas. O professor começou com a produção desse tipo de conteúdo em função das próprias aulas – uma tentativa de mostrar aos alunos que, na rede, o falso pode ser consumido como verdade. A iniciativa se mostrou tão eficaz que até sites internacionais reproduziram tais notícias como sendo verdadeiras e, algumas delas, por envolverem supostos temas do Direito, têm sido discutidas no meio jurídico e se tornaram temas de monografias nesse curso (CBN, 2012). Entre as notícias falsas que foram publicadas na rede por Fábio Flores estão as duas que pretendemos analisar. A primeira trata de um casamento em que o padre teria se recusado a celebrar porque a noiva estaria sem calcinha e, a segunda, de uma mulher com doença rara que teria ganhado na Justiça Trabalhista o direito de se masturbar durante o período de expediente. Apesar da natureza improvável dos fatos relatados, essas notícias foram tidas como verdadeiras por milhares de pessoas. Usando o buscador Google, e a frase “padre recusa celebrar casamento”, foi possível encontrar, em janeiro de 2014, 382 mil resultados. O mesmo procedimento, com os termos “mulher masturba no trabalho”, apresentou 1,53 milhão de ocorrências5. Entendemos que em certos casos, dentre os elementos que garantem autenticidade às notícias falsas, está a adoção de marcas textuais já reconhecidas pelo interlocutor. A intertextualidade estilística e a intertextualidade tipológica funcionam na produção de sentidos sustentando o efeito de real. A seguir, reproduzimos as duas notícias a fim de observarmos como os intertextos funcionam na produção do efeito de real. 4
Disponível em: . Acesso em 20.Jan.2014. 5 A pesquisa foi realizada no dia 22 de Janeiro de 2014.
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Padre se recusa a casar noiva sem calcinha em Alagoas O padre responsável pela paróquia Sagrada Família, localizada no bairro do Vergel, na periferia de Maceió, em Alagoas, se recusou a celebrar um casamento porque noiva estava sem roupa íntima. O religioso Jonas Mourinho, de 68 anos, já havia se chateado com o enorme decote do vestido nas costas da noiva, uma professora de 25 anos, e resolveu chamar a atenção dela quando chegou ao altar e ele suspeitou, ao ver o decote, que ela não usava calcinha. Com a suspeita o padre solicitou que a noiva acompanhasse uma ministra da eucaristia até a sala de sacristia para averiguação. A ministra averiguou e confirmou a suspeita do padre. Diante da constatação, Jonas Mourinho decidiu não realizar mais o casamento e comunicou a decisão primeiro aos pais dos noivos e, em seguida, aos 230 convidados presentes na igreja. Segundo ele, o casamento não seria realizado, pois a noiva "não estava respeitando o altar sagrado". O padre afirmou que "é uma profanação a pessoa subir ao altar sem vestimentas íntimas". A noiva, por sua vez, confirmou que estava sem calcinha e disse que se o padre notou este detalhe é porque "ao invés de celebrar ele estava pensando em taradice comigo"6. Mulher ganha na justiça o direito de se masturbar no trabalho Ana Catarina Bezerra Silvares, 36 anos, divorciada, mãe de 3 filhos, analista contábil, possui uma doença que a difere das demais mulheres de seu ambiente de trabalho. Ela possui compulsão orgástica que é fruto de uma alteração química em seu córtex cerebral. Esta alteração a leva a uma constante busca por orgasmos que aliviem sua ansiedade. Ana Catarina revela que ‘‘já teve dia de eu me masturbar 47 vezes. Foi neste momento que procurei ajuda. Comecei a suspeitar que isso poderia não ser normal”. Atualmente ela toma um coquetel de ansiolíticos que consegue frear a ansiedade, levando-a a se masturbar apenas 18 vezes por dia. O Dr. Carlos Howert Jr., especialista em Neurologia Sexual acompanha a paciente há três anos. Segundo seu relato, ela é a única brasileira diagnosticada com esta disfunção. No dia 08/04/11, Ana Catarina venceu uma batalha jurídica que perdurava dois anos. Finalmente o Ministério do Trabalho a concedeu o direito de intervalos de 15 minutos a cada duas horas trabalhadas para que possa realizar sua busca por prazer. Também está autorizada pelo Dr. Antonino Jurenski Garcia, Juiz do trabalho de Vila Velha, Espírito Santo, a utilizar o computador da empresa para acessar imagens eróticas que alimentem seu desejo7.
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Disponível em: . Acesso em 20.Jan.2014. 7 Disponível em: . Acesso em 22.Jan.2014. Esse jornal online apresenta o número atualizado de acessos à notícia. E até a data citada foram 271.346 acessos.
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É possível notar que os dois textos possuem estrutura de notícia. Relatam supostos acontecimentos e fazem isso respeitando a normatização técnica do texto jornalístico. O relato apresenta certo distanciamento, impessoalidade. A partir da observação dos títulos podemos afirmam o funcionamento da técnica de “manchete” (o título que visa atrair o leitor para o texto). Portanto, há uma semelhança estilística (intertextualidade). Embora as notícias falsas tragam elementos que podem ser considerados absurdos, são mostrados ao interlocutor com o mesmo estilo de relato de um fato verdadeiro. Observamos outros elementos que nos remetem à intertextualidade estilística. No primeiro parágrafo dos dois textos, os relatos são impessoais, há um distanciamento dos fatos ao se usar a terceira pessoa. Apresenta-se o que aconteceu, com quem aconteceu, como aconteceu, mas não há envolvimento do locutor com o fato nem algum tipo de avaliação. A intertextualidade estilística nessas notícias falsas também funciona na reprodução da técnica de aspeamento; ou seja, o uso do dito relatado. A técnica aparece nos dois textos. A presença de personagens, pessoas entrevistadas e dos ditos relatados de forma direta, com aspeamento, contribuem para sustentar a suposta veracidade dos fatos e garantem o efeito de real, pois os envolvidos aparecem no texto, contam suas histórias. O locutor se mantém apenas como quem apresenta os fatos. Ao relatar o dito dos personagens, nota-se que as falsas notícias imitam o estilo das citações aspeadas em textos jornalísticos. A relação intertextual estilística é evidenciada pela repetição de uma forma já convencionada como sendo desse tipo de texto. Expressões como “o padre afirmou”, “a noiva confirmou”, “Ana Catarina revela”, “segundo seu relato” produzem a ilusão da objetividade jornalística. Quem conta o que sente, o que acontece são sempre os personagens; não é o repórter que revela o suposto drama das masturbações diárias, são os personagens. Nos dois textos falsos, até mesmo os aspectos que sugerem se tratar de fatos improváveis (quantidade de masturbações por dia, ausência da calcinha como desrespeito ao altar e a crítica da noiva diante da posição do padre) são aspeados, como forma de dar autenticidade aos relatos. Entre as características técnicas do texto jornalístico está a apresentação dos personagens envolvidos no fato. São as chamadas fontes, pessoas que são ouvidas pelo repórter a fim de dar autenticidade ao relato jornalístico (LAGE, 2001). O tipo de texto jornalístico tem essa espécie de ritual: ouvir diferentes fontes, pessoas que possam embasar a narrativa. As notícias falsas analisadas repetem, imitam essa característica.
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No caso do primeiro texto, além do relato do suposto acontecimento, aparecem os envolvidos: o padre e a noiva. O padre tem nome, idade; a noiva tem nome, idade e profissão. O segundo texto identifica a personagem principal – nome, idade, estado civil, filhos, profissão. A suposta doença é citada e também o profissional que cuida da “paciente” – inclusive com o dito desse personagem. Seguindo a orientação da objetividade jornalística, também é citado o nome do juiz do trabalho, que teria concedido o benefício à mulher; apenas não aparece o dito desse personagem. A intertextualidade tipológica dessas falsas notícias se dá pela semelhança que possuem com o tipo de texto jornalístico. A estrutura de ambos reúne um conjunto de características comuns aos textos jornalísticos que permitem ao interlocutor, que possui uma memória social desse tipo de texto, reconhecê-los como sendo noticiosos, narrativas de uma possível realidade. Considerações finais Consideramos que a intertextualidade não foi o único fator que assegurou que essas notícias fossem entendidas pelos interlocutores como verdadeiras. Sob outras perspectivas teóricas, outras variáveis poderiam ser relacionadas, inclusive a perspectiva do leitor, do suporte (a internet) etc. Entretanto, tendo como objeto de investigação e pesquisa a intertextualidade estilística e a intertextualidade tipológica como fatores que contribuem para produzir efeito de real em notícias falsas, podemos identificar intertextos nas duas notícias analisadas. As marcas textuais de um texto jornalístico estão presentes nos textos falsos. Essas marcas são intertextos que produzem sentidos, pois remetem o interlocutor a uma memória de objetividade do texto jornalístico. Mesmo no relato de situações improváveis, os textos foram construídos de modo a gerar efeito de real pela sustentação do ideal de objetividade, em especial atendendo a tese da neutralidade e imparcialidade. Os adjetivos testemunhais e aferições subjetivas foram eliminados; não aparecem na narrativa do enunciador. As expressões conotativas, e que funcionam inclusive na produção do humor, aparecem no dito relatado de forma direta ou indireta. Os personagens falam, relatam, contam as histórias – como ocorre nas matérias e reportagens jornalísticas. Desta maneira, teríamos intertextualidade estilística e tipológica nessas falsas notícias. O interlocutor reconhece os textos como sendo jornalísticos pela forma que
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emoldura o conteúdo. Koch, Bentes e Cavalcante (2007, p. 19) afirmam que, quando o produtor do texto, repete, imita, parodia certos estilos ou variedades linguísticas temos a intertextualidade estilística. Nas falsas notícias, os textos repetem, imitam e parodiam o texto jornalístico. Podemos dizer que não se trata de uma intertextualidade explícita; não há a menção ao tipo de texto (jornalístico) para se sustentar como tal. A intertextualidade aparece de maneira implícita; ele se sustenta como de natureza jornalística por suas características, não existe a citação expressa, mas provoca a retomada de um conhecimento anterior do que é um texto jornalístico – suas características, estrutura, forma de narrativa etc - para construir o sentido do texto. Ou seja, pela memória, produz sentido de notícia e assegura o efeito de real. Referências AQUINO,
Ruth.
Sexo,
mentiras
e
internet.
Disponível
em:
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informações
da
internet.
Disponível
em:
. Acesso em: 08.Jan.2014. DALMONTE, Edson Fernando. Efeito de real e jornalismo: imagem, técnica e processos de significação. Sessões do imaginário, Porto Alegre: FAMECOS/PUCRS. n. 20, dez. 2008, p. 41-47. Disponível em: . Acesso: 24.Ago.2009. FAVERO, Leonor Lopes & KOCH, Ingedore Villaça. Linguística textual: introdução. São Paulo, Cortez, 1988.
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MULTIMODALIDADE E A ESTRUTURA RETÓRICA: UMA ASSOCIAÇÃO POSSÍVEL PARA A ANÁLISE DE ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS Rosane Cassia Santos e Campos (Centro Pedagógico – UFMG)
Introdução O anúncio publicitário, de uma maneira bastante objetiva, é um texto multimodal gerando, de uma forma diferenciada de qualquer outro gênero, o interesse do leitor pelo texto (aqui tomado em seu conceito mais amplo). A curiosidade e o consequente desejo propostos pela agência responsável pelo todo do anúncio publicitário constroem-se através da associação entre linguagem visual - cores, fotos, desenhos - e linguagem verbal. Os recursos visuais são coerentes com a mensagem, com o modo e com o estilo do que se pretende anunciar. Este artigo tem como objetivo apresentar como possível uma relação entre a Multimodalidade e a RST na análise do gênero Anúncio Publicitário. A Multimodalidade Para que se consiga explicar a composição de um determinado elemento visual para o texto do anúncio publicitário, busca-se o efeito de tais elementos e sua organização. Segundo Machin (2007), o que pode fazer de um anúncio publicitário algo tão sedutoramente agradável é a maneira particular de conversar com o leitor em um estilo próprio de construção. Esse “estilo próprio”, criado pelo produtor do anúncio, poderá proporcionar uma interação com o consumidor, fazendo-o desejar o produto. É certo que existe uma gramática (forma de construção) própria para o texto publicitário, assim como um léxico específico. Isso pode ser comprovado pela recorrente escolha do modo imperativo ou pelo uso constante do adjetivo. Adjetivos e o modo imperativo são usados amiúde e com objetivo claro: proporcionar ao texto interação com o leitor, criando o desejo pelo produto e sua consequente aquisição. Adjetivos valorizam o consumidor ou mesmo o produto a que o público-alvo visa; o uso do imperativo estabelece elo de proximidade uma vez que só se dá uma ordem ou se faz uma sugestão para quem se tem um grau de intimidade. Na contramão da criação desse processo de
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aproximação, acontece o uso do infinitivo impessoal, que torna o texto mais impessoal e, sendo assim, menos favorável em uma relação de interação. Um enunciado como “abra sua Manequim.”, texto sugerido pelo anúncio publicitário da revista Manequim, é muito mais próprio em uma relação de interação que o uso do “abrir sua Manequim”, que sugere distanciamento. Quando se busca o significado específico, como em um anúncio publicitário, são feitas escolhas de recursos que serão usados de acordo com a motivação de quem produz o texto, assim como a maneira que esse poderá chegar de forma mais instantânea ao consumidor. Portanto, fica ainda mais claro que escolhas (textuais ou extratextuais) são tipicamente intencionais e são feitas considerando-se o objetivo do anúncio publicitário. O tempo todo, nas mais diferentes situações sociais comunicativas, as pessoas, individualmente ou em grupos, fazem escolhas, definem caminhos, negociam o que usar, seja verbalmente ou não verbalmente, em seu benefício. Nada mais natural, então, que um anúncio publicitário, diretamente ligado ao comportamento social, represente essas escolhas, que apontariam para o leitor no sentido de mostrar-lhe que sua identidade individual e social é construída ao fazer a escolha por um ou por outro produto. É comum, em anúncios publicitários, por exemplo, o apelo ao comportamento solidário. O leitor recebe um convite para se mostrar e mostrar quem ele é, ou seja, ele deve ser um ser social solidário, atuante. O ‘produto’ anunciado passa a ser uma ideia, um valor moral. Quando esse ‘produto’ é vendido, o consumidor, então, é dono de comportamento social desejado e aprovado socialmente, sentindo-se importante e útil frente aos apelos feitos pelo anúncio publicitário. No gênero anúncio publicitário, existe uma diferença entre o uso simples de uma palavra e a combinação de vocábulos em enunciados, verbais ou não, para a produção de um sentido mais “misterioso”. Tal combinação é capaz de trazer um novo potencial comunicativo para o gênero. Uma análise multimodal considerará, então, o caminho que se usa na combinação, produzindo “sinais” para o leitor. Em um discurso multimodal, são analisadas as combinações entre o visual e a linguagem, especificamente em um texto de modalidade escrita. Essa combinação poderá determinar o efeito pretendido em um anúncio publicitário, por exemplo, em que
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a associação entre linguagem verbal e visual é fator definitivo para apresentação do produto e a possível sedução do consumidor para quem esse produto será oferecido. Segundo o sistema que diz respeito ao valor da informação, e considera cada um dos elementos contidos em uma imagem, e um em relação aos outros, os quais estão contidos em uma imagem de acordo com a posição que ocupam. Segundo Kress e Van Leeuwen (2001), a forma como os elementos apresentados em uma imagem estão integrados nos dá uma série de subsídios acerca do seu significado.O sistema que considera o valor da informação determina que os textos multimodais sejam analisados segundo os aspectos que dizem respeito aos conceitos relativos a ‘dado/novo’, ‘ideal/real’ ‘centro/margem’.
Dado/Novo. De acordo com esse fator, a demarcação textual acontecerá no
plano horizontal, considerando que, em uma sociedade ocidental, a leitura acontece da esquerda para a direita, tanto na leitura de informações verbais quanto na de não verbais. Assim, os elementos colocados à esquerda representam a informação dada, conhecida do leitor. Já os elementos colocados à direita representam o novo, aquilo que o leitor passará a saber, a ação será realizada a partir da informação dada.
Ideal/Real. Ao se determinar a leitura nesse plano, considera-se que a sociedade
ocidental faz uma leitura que acontece da esquerda para a direita e também em sentido descendente, ou seja, de cima para baixo. Dessa maneira, pode-se afirmar que à parte superior de um anúncio, por exemplo, pertencerá a idealização de algo, promessa de um produto, apresentação de algo que trará mais afinidade emotiva com o leitor, aquilo que pode vir a ser, o campo do sonho, o imaginário. A parte inferior tende a ser mais informativa e prática por ser a área mais ligada ao mundo real, concreto.
Centro/Margem – Segundo Kress e Van Leeuwen (2006), essa formação é muito
comum em jornais e revistas. As informações são confrontadas em elementos de maior importância e marginais. Torna-se fundamental dizer que muitos dos significados construídos a partir de uma análise que considere uma abordagem multimodal são baseados na associação de experiências sociais. O domínio do conhecimento de mundo e o domínio de objetos desse mundo remetem ao significado esperado na criação do anúncio publicitário. A significação de um enunciado é construída a partir da transposição da relação de um
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domínio para outro; uma cor pode ser associada a um determinado produto, por exemplo. A RST e seus princípios Outra concepção teórica que fundamenta este artigo foi a que se encontra na RST, que ganhou status na linguística ao ser usada para analisar o texto e as unidades que o constituem, pesquisa atribuída a Mann e Thompson (1988). A RST é uma teoria descritiva que tem como foco o estudo da organização dos textos, caracterizando as relações que se estabelecem entre suas partes. Para Mann e Thompson (1988), existem proposições implícitas que surgem dessas relações, além do conteúdo proposicional explicitado pelo produtor textual. A RST procura uma explicação para a coerência dos textos, alcançando-se a descrição do texto a partir da análise das estruturas apresentadas, já que as relações que se observam em um texto se explicitam através das definições das relações e outras estruturas retóricas do texto. Segundo Taboada (2009), a construção de um discurso é feita por partes de textos que são “costuradas”, como se fossem “peças” que se relacionam com outras peças. Se não houver uma “costura” bem feita, a coesão textual fica comprometida. Segundo Van Dijk (1992), as relações retóricas podem ser analisadas se consideradas tanto a macro como a micro estrutura textual que são, respectivamente, a informação semântica que fornece unidade global ao discurso, ou seja, segmentos maiores do discurso; e as relações entre sentenças ou proposições, pares, conexões lineares entre elementos em uma sequência – as porções menores do discurso. Reafirmando isso, Mann e Thompson (1993) esclarecem que o fenômeno das proposições relacionais é ‘combinacional’, definido no âmbito textual, ou seja, é resultante da combinação de partes do texto. As proposições relacionais surgem da combinação de orações e não precisam de um sinal específico – como uma conjunção, por exemplo, – para existir. Dessa forma, fica claro que não são necessárias marcas linguísticas para se estabelecerem as relações retóricas – conjunções, preposições, entre outras. Para Taboada (2009), há relações de sentido explícitas e relações de sentido implícitas. As relações explícitas são determinadas por sintagmas ou construções; as
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relações implícitas de sentido e a coerência são estabelecidas com base no conhecimento de mundo que o leitor tem. A RST objetiva descrever os textos não se preocupando com os processos de criação ou leitura e compreensão. É proposta para análise uma série de possibilidades de estruturas que seriam apresentadas como “blocos de construção” dos enunciados. Segundo essa teoria, é fundamental que as relações que emergem na análise levem em conta o fator da ‘plausibilidade’, ou seja, o que é plausível que seja percebido em uma análise semântica, a partir do contexto em que a análise foi feita. Já que não é possível que se tenha certeza da intenção do falante em seu momento de comunicação, trabalhase com o plausível, o possível. Sendo assim, o que é plausível para um leitor, pode não ter sido percebido por outro. Também é importante, para a RST, que se determine que, desde que haja elementos no texto em análise que possam indicar plausibilidade, uma análise não invalida outra, já que as escolhas feitas pelo enunciatário refletirão suas intenções. Assim, é comum que haja mais de uma estrutura retórica possível para um texto, fato afirmado por Mann e Thompson (1988). Deve-se estabelecer que aquilo que um leitor percebe, nota, nem sempre é o que o outro percebeu, interpretou. Dessa forma, é evidente que, desde que a relação estabelecida possa ser verificada no contexto em que se apresenta, a análise semântica passa a ser possível. Tais interpretações diferenciadas têm a ver com o nível de compreensão que o leitor/ouvinte tem do texto, considerando que muitos enunciados são ambíguos do ponto de vista de sua construção semântica e que o ato de interpretar é altamente subjetivo. Essa variedade só é possível graças à flexibilidade que a teoria apresenta em seu quadro de possibilidades. Segundo Mann e Thompson (1988), com tamanho leque de possíveis construções, podem-se estabelecer relações claras de coerência para os enunciados. O processo de análise da estrutura retórica de um texto parte do pressuposto da necessidade de identificar uma provável forma estruturada para a compreensão de um texto a partir da análise de suas partes. Tal procedimento facilitaria a compreensão do texto como um todo. Os textos passam a ser vistos em seus blocos de informação macroestrutural (como um todo), ou microestrutural (no nível da sentença). Nesse aspecto, a RST postula a análise das estruturas internas das frases, o que fornece uma base para o estudo das formas de
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articulações das orações, como também das relações entre os tipos de estrutura de discursos e outros elementos de coesão. Quanto à organização, as relações são divididas em dois grupos:
Relações núcleo-satélite: Nesse tipo de relação, uma porção do texto
denominada ‘Satélite’ é dependente de outra porção de texto denominada ‘Núcleo’, que por sua vez é a porção considerada de informação mais central para as intenções do produtor do texto. O Satélite acrescenta informações a respeito do Núcleo. O esquema dessa relação é representado na Figura 1.
FIGURA 1: Esquema das relações núcleo-satélite.
Relações multinucleares: Nesse tipo de relação, cada porção do texto é um
núcleo distinto, uma porção não serve de base para a outra porção, consoante ao que é representado pela Figura 2:
FIGURA 2: Esquema das relações multinucleares. Associação entre RST e multimodalidade Ao se propor uma análise que relacione os aspectos que envolvem a Multimodalidade e a estrutura retórica, percebe-se que tais aspectos podem ser combinados para que o anúncio publicitário atinja seus objetivos. A relação que se propõe entre essas duas teorias é perfeitamente adequada em se considerando a análise do multimodal em sua abrangência visual e verbal, assim como as relações que
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emergem em uma análise fundamentada na RST, também de abrangência visual e verbal. Dessa maneira, torna-se especialmente importante estabelecer uma relação entre os pressupostos apresentados pela RST para que se construa o sentido dos anúncios e a abordagem feita pela Multimodalidade, explicitada pela Gramática do Design Visual (GDV). A curiosidade e o consequente desejo propostos pela agência responsável pelo todo do anúncio publicitário constroem-se através da associação entre linguagem visual - cores, fotos, desenhos - e linguagem verbal. Os recursos visuais são coerentes com a mensagem, com o modo e com o estilo do que se pretende anunciar. Em um texto de anúncio publicitário do Guaraná Antarctica, DADO: Texto verbal: (Vai beber o quê?) Texto visual: O desenho da planta guaraná NOVO: Figura da jovem que segura o produto e a marca é visivelmente apresentada. MARGEM: Texto verbal: (A pedida natural) um aspecto multimodal é
evidente. Como o anúncio publicitário se apresenta no
sentido horizontal, o valor da informação aparece em uma estrutura Dado/ Novo. É lógico que a leitura do anúncio publicitário, nesse caso, ocorrerá da esquerda para a direita, como é costume na cultura ocidental. Assim, a informação trazida pela pergunta (Dado) – “Vai beber o quê?” e a figura que ilustra a planta guaraná – precedem o núcleo, que aparece como Novo: “Guaraná Antarctica”, evidenciada em primeiro elemento na latinha a qual está sendo carregada pela jovem e enriquecida pelo slogan da marca que está na margem inferior direita. Acontece, para finalizar o anúncio publicitário, a apresentação da marca e o slogan que a acompanha. E isso só se confirma devido à posição dos enunciados: da esquerda para direita, reforçando a posição Dado/Novo, e de Margem. É fundamental que se destaque que tanto texto verbal quanto visual se misturam na posição seja de Dado ou de Novo, reforçando a ideia de que no anúncio publicitário não há um espaço em que se configure apenas o visual ou apenas o verbal. Isso confirma o fato de que ao se considerarem aspectos da estrutura retórica, a pergunta feita pelo anúncio publicitário pode ser reconhecida em uma relação Núcleo-
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satélite de Preparação. O satélite “Vai beber o quê?”, enriquecido com a figura do guaraná, precede o núcleo “Guaraná Antarctica a pedida natural.”, preparando o consumidor para que o produto a ser vendido se evidencie em um segundo momento, despertando no leitor o interesse pelo que está por vir, ou seja, o produto em si. A relação retórica Núcleo-satélite de Preparação pode ser evidenciada com a pergunta: “Vai beber o quê?” que aparece na campanha da marca Guaraná Antarctica. Nesse contexto, é possível ver a associação entre as duas teorias. Nesse anúncio publicitário, um aspecto multimodal nos é evidente. Já que a campanha se apresenta no sentido horizontal, o valor da informação aparece em uma estrutura Dado/Novo. Em outra análise, em que se considere o Anúncio Publicitário da marca OBoticário, percebem-se diferentes modos semióticos. Ideal: A figura representa o que seria uma relação pai-filho. Real: Figura que representa o produto a ser vendido. Margem: As margens esquerda e direita apresentam, respectivamente, a marca do produto e o slogan que a acompanha (OBoticário. A vida é bonita, mas pode ser linda), assim como uma mensagem específica para a data para a qual o produto será comercializado (Você ensinou seu filho a falar. E, agora ele deixa você sem palavras.Faça o Dia dos Pais ficar bonzão. Dê duo Malbec). A margem direita traz a letra “B” que representa o produto e o apelo ao consumo do produto em forma de enunciado verbal. Centro: Está a letra “B” que representa a empresa e faz o elo entre os elementos do anúncio publicitário. Primeiro, é importante que a divisão do cartaz que veicula a campanha publicitária em duas partes esteja em foco. Em uma primeira análise, deve-se fazer uma leitura de cima para baixo, ou melhor, deve-se considerar a informação no sentido multimodal Ideal/Real. No plano do Ideal, temos a figura representando o que seria uma relação pai-filho. Já na porção do Real, está a figura que representa o produto a ser vendido. Todavia, a leitura desse anúncio deve ressaltar outros aspectos da multimodalidade que se somam e o tornam tão rico do ponto de vista da tentativa de persuasão: os elementos do anúncio publicitário são considerados também nas margens. Segundo os aspectos postulados por uma abordagem multimodal, o valor de uma
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informação também se localiza na posição Centro/Margem. No anúncio de oBoticário, a margem esquerda e a direita são fundamentais na análise já que apresentam, respectivamente, a marca do produto e o slogan que a acompanha (“oBoticário. A vida é bonita, mas pode ser linda.”), assim como uma mensagem específica dirigida à data para a qual o produto será comercializado (“Você ensinou seu filho a falar. E agora, ele deixa você sem palavras.”). A margem direita traz os seguintes elementos: a letra “B” que representa o produto e o apelo ao consumo do produto em forma de enunciado verbal (“Faça o Dia dos Pais ficar bonzão. Dê Duo Malbec”). Há algo interessante para se perceber nessa análise multimodal: a letra “B”, que representa o produto e tem tipografia característica. Segundo Kress e Van Leeuwen (2006), algo que esteja alinhado à esquerda teria um significado formal e organizado, e à direita, aparecem os elementos de significado mais livre e criativo. É importante chamar a atenção para o fato de que a letra “B” faz o elo, está em uma linha central que divide aquilo que está em posição Ideal e o que está em posição Real, ou seja, a parte superior em que se apresenta o produto e a figura pai e filho e a parte inferior que traz o produto e o apelo emocional para a compra. No Centro, à direita, portanto, aparece a letra “B”, que representa o produto e faz o elo entre os elementos do anúncio publicitário. Ao se partir para uma análise associada à RST, percebe-se uma relação núcleosatélite de Elaboração em que os Satélites (“Você ensinou seu filho a falar. E agora, ele deixa você sem palavras.”; “Faça o Dia dos Pais ficar bonzão. Dê Duo Malbec”) apresentam dados adicionais sobre a situação ou alguns elementos do assunto apresentados no Núcleo (“oBoticário. A vida é bonita, mas pode ser linda.”). Essa relação de Elaboração é reforçada pela apresentação visual, uma vez que a disposição dos elementos em um plano Ideal-Real, juntamente com a apresentação de elementos na Margem e a divisão feita pela tipografia característica da letra “B”, contribuem para a relação de Elaboração em que se apresenta o produto para a venda. Para que o produto seja valorizado, lança-se mão de uma relação afetuosa entre pai e filho que será valorizada pelo produto anunciado. Destaca-se também, dentro da perspectiva analisada pela GDV, associada à RST, uma relação de Saliência e uma relação núcleo-satélite de Evidência, respectivamente.
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Segundo a proposta da GDV, em uma relação de Saliência, considera-se que um elemento tem maior destaque que outros dentro de uma imagem. Assim, ele será destacado através do uso de cores, tamanhos e contrastes, independentemente de onde ele estiver colocado na imagem. Tanto a gravura que representa a relação pai-filho quanto a gravura que apresenta o produto estão em posição de Saliência no anúncio publicitário: uma na parte superior, o que lhe confere a posição de IDEAL; e outra na parte inferior, na posição de REAL. Ao criarmos um elo entre as duas teorias, é proposto que essa relação de Saliência entre os elementos visuais colabore para a emergência da relação núcleo-satélite de Evidência. Segundo os pressupostos dessa relação, a compreensão do Satélite em que o produto se evidencia para o leitor (foto da relação pai-filho) aumenta a crença do leitor no Núcleo. Considerações finais Baseando-se na RST, uma teoria de fundamentos funcionalistas, que procura descrever como se estabelecem as relações de coerência em porções textuais, e os postulados defendidos pela Multimodalidade, este artigo teve com objetivo analisar os procedimentos argumentativos de que se valem os anúncios publicitários para que se construa um texto forte do ponto de vista do convencimento. Para alinhavar a fundamentação deste trabalho, buscou-se apresentar que elementos reforçariam o valor do argumentar em que se baseiam os anúncios publicitários. Para tanto, foi fundamental identificar o anúncio publicitário como gênero textual, considerando-se sua importância sociointerativa para as relações entre quem produz e o público alvo a que se destina o anúncio. Em seguida, passou-se aos estudos da Teoria da Multimodalidade como fundamentais para que os elementos do texto verbal e não verbal do anúncio publicitário fossem ainda mais explorados, de maneira a produzir um gênero constituído por diversos aspectos no se refere ao uso de determinada tipografia de letra, ocupação do espaço com demarcação em posição horizontal ou vertical, descendente ou ascendente. Outra vertente de estudo para este trabalho levou em consideração a RST para que se analisassem as relações de sentido que emergem entre as porções textuais, nesse caso considerando a macroestrutura textual.
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Uma perspectiva nova apresentada por este trabalho está no estudo da associação entre RST e Multimodalidade. Durante este artigo consideram-se os elementos que servem à estrutura argumentativa dos anúncios publicitários. Percebe-se que a união dos postulados defendidos por uma e por outra teoria traz mais profundidade à análise e cria um clima de maior segurança ao se afirmar que uma relação de sentido entre um conteúdo proposicional elencado pela estrutura retórica pode ser reforçada pelos aspectos da multimodalidade que constituem os anúncios publicitários estudados. Este trabalho poderá vir a contribuir para que se percebam as muitas possibilidades de análise do gênero anúncio publicitário e que é possível que estudos ainda venham a considerar a relação que se estabelece entre as bases em que se constrói a RST e a Multimodalidade. É de suma importância que se note como é proveitosa, e linguisticamente saudável, a convivência entre essas teorias que muito têm a contribuir para que, no caso do gênero anúncio publicitário ou de outros quaisquer gêneros, se perceba que uma produção textual pode ser explorada de maneira profícua. Referências ANTONIO, J. D. Estrutura retórica do texto: uma proposta para a análiseda coerência. Revista Sinótica, v. 15, n. 2, p. 224-236, jul./dez. 2003. Disponível em: . Acesso em: 20 jul. 2012. ANTONIO, J. D. Estrutura retórica e articulação de orações em narrativas orais e em narrativas escritas do português. 2004. Tese (Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara, 2004. BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1979. p. 327-358. BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 277-326. CARVALHO, G. Gênero como Ação Social em Miller e Bazerman: O Conceito, uma Sugestão Metodológica e um Exemplo de Aplicação. In: MEUREE, J. L.; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. (Orgs). Gêneros teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola, 2005.
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JORNAL COMUNITÁRIO ONLINE: A VOZ DO BEIRU EM TEXTOS ESCRITOS, ORAIS E EM IMAGENS DIGITAIS Rosane Cristina Prudente Rose Thioune (UNEB)1 Introdução O Jornal do Beiru em sua versão online constou de blogs postados na rede social, inicialmente como um substitutivo das funções da home page: a de um catálogo ou de vitrine institucional que, posteriormente, foi adequado ao uso de sua escrita/redação eletrônica aos gêneros da mídia virtual e às demandas requeridas pela necessidade de simultaneidade e de compartilhamento de postagens desenhadas pelas novas tecnologias emergentes. A inserção do Jornal do Beiru em blogs fez com que esse migrasse dos sites de difícil e alto custo operacional (http://beiruonline.no.comunidades.net/index. php? pagina=1538088743 / www.jornaldobeiru.com.br) e priorizasse a sua instalação em blogs (Facebook dentre outros) pelos seus baixos custos operacionais e possibilidade massificante de acesso da Internet em computadores, telefones e smartphones. A configuração textual e discursiva nos blogs é nucleada na divulgação das ideias e textos elaborados nas suas edições impressas, 10 e 11, na interatividade de ações focadas nas ações afirmativas e memorialistas. O “letramento pedagógico” que alicerçou as atividades da Oficina Permanente de Jornalismo do Jornal do Beiru (OPJJB), em sua versão impressa, através das aulas de produção de textos jornalísticos, permitiu a transposição de gêneros textuais tradicionais da mídia impressa para gêneros digitais, como o editorial, por exemplo. Neste caso, o compartilhamento dinâmico da opinião de editores com o público define as suas características composicionais e de conteúdo. Assim como, outro exemplo, o ‘espaço do leitor’, que foi substituído nos blogs no jornal digital pelos comentários dos que acessam a publicação. Metodologia Pautadas nos recursos metodológicos da Sociolinguística Qualitativa, realizamos um estudo de caso de base etnográfica no bairro do Beiru, em Salvador. Para tanto, foram feitas visitas ao bairro para a realização de entrevistas temáticas com sujeitos que 1
Rosane C. Prudente Rose Thioune - E-mail [email protected] – graduanda de Habilitação e Licenciatura em Letras e Literaturas de LP – DCH1/UNEB. Palavra- Chaves: Multiletramentos; Multimídia; Jornal do Beiru. Pesquisa de Iniciação Científica apoiada pelo CNPq - programa PIBIC/AF, orientada pela profa. Dra Ligia Pellon De Lima Bulhoes, e-mail- [email protected].
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participam da construção da versão online do Jornal do Beiru, a fim de se obterem dados sobre eles, sobre o contexto social estudado, e sobre o histórico e funcionamento da publicação. As observações diretas feitas durante o trabalho de campo também foram consideradas dados de pesquisa, que foram analisados com base no campo conceitual da pesquisa. Foi realizada pesquisa diretamente em rede social da Internet para se coletarem textos digitais publicados no site do Jornal do Beiru, principalmente blogs e outros gêneros do discurso, considerando-se o multilinguismo constitutivo destas escritas e o seu compartilhamento entre os sujeitos. Foram investigados, portanto, textos escritos, fotos, grafites, ilustrações e vídeos. Ao delimitarmos o corpus da pesquisa, consideramos as publicações online das edições impressas dos números 10 e 11 do Jornal do Beiru, ocorridas entre os anos de
2011 e 2013, nos blogs
https://www.facebook.com/projetojornaldobeiru?ref=ts&fref=ts
e
http://jornaldobeiru.blogspot.com.br/. Fez-se revisão de literatura que contribuísse para a posterior análise dos dados obtidos. Essa se refere a textos multimidiáticos e ao seu caráter híbrido, multicultural e multilinguístico, próprio do chamado mundo virtual, tendo como base os conceitos de multiletramento, letramento digital e gêneros do discurso. Resultados e Discussão Os letramentos são práticas sociais, e nos permitem construir significados que nos ligam a uma rede de significações elaborada por outros a partir de meios e linguagens diversas. De acordo com Lemke, “todo letramento é letramento multimidiático” (LEMKE, p. 458). O acesso ilimitado ao jornal pelo suporte da Internet, em contexto virtual, possibilita a interatividade de diferentes sujeitos – dos que escrevem e postam os textos – a partir de compartilhamentos constantes. São práticas democratizadoras, multiculturais: no caso partem do ponto de vista de sujeitos de um bairro periférico que pretendem valorizar as ações culturais letradas de seus jovens, ao mesmo tempo em que interage com pessoas de diferentes orientações culturais ou experiências letradas, a maioria tendo em comum o interesse por questões de reafirmação e valorização sociocultural de pessoas de sua comunidade. Há, portanto, uma circularidade “dentro para fora” e vice-versa, que caracteriza o hibridismo dos textos postados em redes sociais, por exemplo. Os letramentos digitais são, neste sentido, letramentos críticos, já que aqui diferentes pessoas montam suas “coleções”, ou seja, fazem escolhas no contexto democrático da internet. (v. ROJO, 2012). Este hibridismo também se
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caracteriza pelas múltiplas linguagens e meios (oral e escrito): áudio, imagem, movimento e língua, o que permite a construção de novos textos e significados próprios dos gêneros digitais. Vide os blogs, comentários, dentre outros gêneros digitais nas redes sociais que veiculam o Jornal do Beiru. Conclusões A nossa pesquisa mostra a transformação das práticas convencionais de comunicação proposta pela Oficina (OPJJB), exemplo de atitude inovadora no Brasil pela utilização da mídia virtual para a edição de um jornal alternativo comunitário. Perante o desafio da dinâmica da Internet - a interatividade proposta pela simultaneidade temporal e a integração de recursos semiológicos - o Grupo (OPJJB) disponibilizou imagens da mostra Fotográfica a Céu Aberto do Beiru como uma alternativa criativa de hipertexto. Possibilitou a conexão com links institucionais e individuais comprometidos com textos escritos, orais e imagens digitais nucleados e/ou periféricos à ideologia e objetivos do Jornal do Beiru. O letramento digital, aliado à capacitação em comunicação comunitária realizada pela OPJJB aos jovens que prepararam as edições 10 e 11, foram fundamentais para que estes
participassem do chamado letramento multimidiático
(LEMKE, p. 463), uma forma de desmistificar a ideia difundida de que os adolescentes não leem. A representação virtual dos relacionamentos entre os seres humanos no seu mundo real em sua condição de representação encerra várias diferenças quanto às relações não virtuais humanas, gerando mudanças nos modos de interação através de textos e discursos (SHEPHERD; SALIÉS, 2013). Vimos quando os sujeitos que editavam o Jornal digital migraram a veiculação de suas matérias em outros blogs e ou sites. Documentos orais desvelam da memória social significados e representações de formações discursivas identitárias em usos de multimediação que transcendem a territorialidade da produção no Beiru para a interatividade de uma comunidade de práticas, onde os mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita que formaram os diferentes sujeitos resultam em eventos de letramento multimidiático do blog do Jornal do Beiru, dos sujeitos que o produzem e dos que interagem suas escritas e imagens. Enfim, tendo em vista os objetivos deste projeto sobre o estudo da circulação de escritas em uma comunidade virtual - o Jornal do Beiru em sua versão digital nos anos de 2011 à 2013, podemos afirmar que a pesquisa cumpriu a sua meta. A investigação da veiculação online do Jornal do Beiru comprovou que a utilização da Internet possibilitou uma diversidade de produção escrita dos seus membros, o que no
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caso do Jornal do Beiru diz respeito à prática de comunicação jornalística referente aos letramentos multimidiáticos. Evidenciamos, em suma, que as práticas culturais letradas da OPJJB, do Jornal Beiru, contribuíram para a reflexão sobre políticas linguísticas e educacionais no bairro pesquisado, já que a atuação online dos sujeitos possibilitou a diversificação de sua produção escrita. Logo, a produção e leitura de textos digitais revelou-se uma ferramenta pedagógica de sucesso. Objetivando não uma meta e sim um meio, o jornal digital atingiu o seu objetivo de construção e propagação do comprometimento de desenvolvimento da comunicação comunitária no Beiru. Referências BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes. Trad. Paulo Bezerra, 2003. DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História oral, memória, tempo e identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971. HALL, STUART. A identidade em questão. In: A identidade cultural na pósmodernidade. Trad. Tomás Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 6. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. HEIDE, Ann; STILBORE, Linda. Guia do professor para a internet. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. JORNAL DO BEIRU. Disponível em https://pt-br.facebook.com/projetojornaldobeiru? /http://jornaldobeiru.blogspot.com.br. Acesso em 01.07.13. LEMKE, Jay, L. Letramento Metamidiático: transformando significados e mídias. Linguística Aplicada, 2010, Vol.49, p.455-479. MARCUSCHI, L. A. & XAVIER, A C. Hipertexto e gêneros digitais. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. ROJO, Roxane. Multiletramentos na Escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012. SHEPERD, Tania G.; SALIÉS, Tânia. Linguística da internet. São Paulo. Contexto.2013.
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UMA PROPOSTA DIDÁTICO‐PEDAGÓGICA COM OS PROCESSOS DE ESCRITA E REESCRITA NO GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO Rosângela Fernandes de Oliveira (UEM) 1- Considerações iniciais Sabendo que a escrita é fruto do trabalho humano/social, tecnológico, histórico e ideológico, cujo domínio possibilita desenvolvimento ao homem e à sociedade, e que cabe à escola o seu ensino e aprendizagem, propomos uma práxis com os processos de escrita no gênero artigo de opinião; coerente à concepção interacionista de linguagem, de ensino produtivo, compreendendo que a escrita de gêneros discursivos passa por várias etapas de trabalho, exigindo do produtor do texto, um bom conhecimento sobre o funcionamento real da linguagem: dialógico, concretizado em gêneros do discurso, determinado pelas práticas sociais e pela história. Para isso, ancoramo-nos nas contribuições do Círculo de Bakhtin (2003, 2009, 2011) acerca do funcionamento da linguagem, dialogia e gêneros discursivos; nos estudos da Linguística Aplicada acerca da escrita, de autores como Antunes (2003), Fiad e Mayrink-Sabinson (2004) da escrita como trabalho, na concepção de ensino produtivo; em Geraldi (1997, 2002, 2004) que propõe a análise linguística no processo de reescrita do texto produzido pelo estudante; em Menegassi (1998), Serafini (2004) e Ruiz (2010), fundamentando as operações de revisão e reescrita; e, nos estudos de Koch (1990, 1995, 2008) e Marcuschi (2008), representantes da teoria da Linguística Textual. Em Rodrigues (2000) vemos que, As novas propostas teórico-metodológicas, centradas nas funções sociodiscursivas da escrita e nas condições de produção das diferentes interações verbais, redimensionam o processo de ensinoaprendizagem da produção escrita no contexto escolar. Assim, a consideração das diversas instituições sociais, dos diferentes gêneros do discurso com suas características constituintes e de funcionamento singulares, das funções sociais da escrita, entre outros aspectos, reorientam as atividades de produção escrita: o texto se torna a unidade de ensino e o gênero o objeto de ensino; a escola se abre para textos autênticos, exemplares de gêneros que circulam nas diferentes esferas sociais (RODRIGUES, 2000, p. 208).
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Nesse sentido, propomos um estudo dos aspectos sócio-históricos, ideológicos e linguístico/discursivos constituintes/característicos do gênero Artigo de Opinião, seu contexto: situações e condições de produção, circulação e recepção, conteúdo temático, estilo, construção composicional e sua função social; explorando artigos já produzidos e em circulação, com temáticas atuais e instigantes, de fontes e articulistas diversificados, culminando no planejamento, produção, revisão, correção e reescrita de artigos de opinião, propiciando ao estudante a concretização de uma prática de escrita congruente com o uso real da língua. 2- Estudo do gênero discursivo (textual): “artigo de opinião”
De acordo com os pressupostos teóricos do Círculo de Bakhtin, a interação é a
própria concepção de linguagem e constitui a realidade fundamental da língua, pois é por meio do fenômeno social de interação verbal é que se realiza a(s) enunciação(ões). Bakhtin afirma que todo discurso humano é uma rede complexa de inter-relações dialógicas com outros enunciados. Bakhtin (2009) observa que “a relação dialógica pressupõe uma língua, mas não existe no sistema da língua”. Bakhtin (2011) diz que, “os limites dialógicos entrecruzam-se por todo o campo do pensamento vivo do homem”, pois acredita ser o diálogo uma interação entre indivíduos que se influenciam mutuamente através da linguagem e ele parte do princípio de que é na minha relação com o outro que eu me constituo enquanto sujeito histórico e social. A caracterização apresentada por Bakhtin (2003) acerca dos enunciados, é a de gêneros do discurso, que se constituem e refletem as condições específicas e as finalidades das esferas das atividades humana por seu conteúdo temático, estilo e construção composicional, sendo portanto, formas de mediação entre o enunciador e o destinatário, que por sua vez adota uma atitude responsiva ativa diante da totalidade do enunciado/gênero. O discurso estabelece intercâmbios socioculturais, fruto de processos cognitivos e conhecimentos acumulados historicamente que atendem a essa atitude responsiva. 2.1 Reconhecimento do gênero “artigo de opinião” em circulação na sociedade Para dar início ao trabalho com esse gênero, selecionamos vários artigos, dentro os quais, elegemos dois para estudo dos aspectos discursivos, linguísticos e textuais.
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Um dos artigos é “A Formação de um povo”, da escritora e colunista, Lya Luft, publicado em 10 de abril de 2013, disponível no acervo digital de Veja. Esse artigo foi escolhido, porque para além das perspectivas de estudo do gênero, também discorre e argumenta sobre uma temática polêmica e instigante que vem ao encontro dos interesses de todos os brasileiros. Elaboramos um possível diagnóstico para sondar os conhecimentos prévios dos estudantes acerca do contexto de produção do artigo em estudo e das especificidades do gênero “Artigo de Opinião”, por meio dos seguintes questionamentos: a) Quem escreveu o texto? A autora representa uma voz de autoridade sobre o assunto? Por Quê? b) Quem e essa escritora Lya Luft? Vamos pesquisar e descobrir a trajetória de vida e o papel social dela na sociedade brasileira. Porque ela disse o que disse sobre essa temática, primando por uma postura diante do contexto atual? c) Sabemos que o gênero artigo de opinião é encontrado em suportes específicos e que nestes ainda são publicados “topograficamente” em espaços delimitados de um suporte. Pelas informações exteriores ao texto, de onde foi retirado esse artigo de opinião e em qual seção específica? d) Qual é a finalidade desse texto? e) Quem são os possíveis leitores desse artigo? f) Quando esse texto foi publicado? g) Que linguagem predomina (formal, informal, coloquial, etc.)? 1) O que é um artigo de opinião? Que características fazem com que reconheçamos um texto do gênero textual/discursivo como Artigo de Opinião e não de outro? 2) Quando e de onde surgiu essa forma de produção de gênero textual/discursivo denominada por artigo de opinião? 3) Quem escreve, escreve algo para alguém com algum objetivo. Em geral, quem produz o gênero Artigo de opinião? O produtor autor do gênero artigo de opinião tem uma denominação específica? Qual? 4) Quais são as condições e situações de produção do gênero Artigo de Opinião? 5) A qual campo da atividade humano/social pertencem os textos do gênero artigo de opinião? Onde circulam ou quais são os locais/suportes para a publicação desse gênero? 6) Quais temáticas são possíveis de veicularem em um artigo de opinião? 7) Qual é a finalidade de escrever um texto nesse gênero (para que se usa o gênero artigo de opinião) 8) A quem é endereçado? Que nome recebe o leitor de um artigo de opinião? Que importância tem o conhecimento desse gênero textual na vida de um leitor, enquanto ser social? 9) Como se lê um artigo de opinião? Quais são os conhecimentos acionados: conhecimentos externos e internos, ou seja, os conteúdos cognitivos, ideológicos, culturais, científicos, linguísticos, discursivos e pragmáticos entre outros são necessário no momento da leitura e da escrita desse gênero textual? 10) Que conhecimentos que são necessários para se produzir um artigo de opinião? O que se deve saber e dominar para desempenhar a escrita nesse gênero? 11) Qual é a organização estrutural geral para a apresentação do texto em um artigo de opinião? Existe apenas uma forma de organizar a arquitetura textual? 12) A organização estrutural do conteúdo que tenho para dizer em um artigo de opinião pode interferir nos efeitos de sentidos que pretendo atingir? 13 ) A partir das conclusões a que se chegou sobre esse gênero textual, descreva as características que se entende que constituem um Artigo de Opinião.
2.2- Contexto de produção Para Bakhtin (2003), o enunciado não existe fora de um contexto de produção específico e, embora ele não tenha tido preocupações de natureza didática, sua obra nos permite encontrar algumas categorias fundantes sobre as condições de produção de um enunciado. Para o autor, os signos (por natureza ideológicos) só emergem nos processos de interação entre uma consciência individual e outra, o que quer dizer que a
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formulação do discurso está relacionada às condições de produção engendradas por determinado contexto dialógico social (dizer algo, a alguém, em uma situação e com objetivos determinados). Nenhum ato humano pode ser compreendido, dessa maneira, fora do contexto dialógico de seu tempo e, por isso, a "interação verbal constitui assim, a realidade fundamental da língua" (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2003, p.123). A fim de visualizarmos e melhor esclarecermos os elementos constituintes e característicos relacionados à produção de um gênero discursivo/textual, elaboramos um gráfico de setas com os elementos específicos e necessários direcionando para as condições de produção.
Todo texto que lemos ou escrevemos tem um contexto de produção. Interessa saber quem é o autor do texto, que papel social desempenha, com que finalidade escreve, para quem o texto foi escrito, em que suporte circulará, em que momento histórico/social etc. Todos esses elementos interferem no sentido do conteúdo dos textos. Produzir bons textos significa considerar esses aspectos, e compreender
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efetivamente que um texto supõe, entre outros procedimentos, prestar atenção nesses elementos. Com base nos conceitos bakhtinianos, apresentamos em noções gerais os principais elementos do contexto de produção do gênero discursivo Artigo de Opinião, com breves esclarecimentos, seguidos de atividades: - Finalidade: provocar a discussão de um assunto atual, de diversas ordens, com temas gerais que refletem na vida da maioria dos leitores. Para tanto, o autor argumenta, expõe suas ideias e opiniões, justifica, exemplifica sustentando com provas, dados, evidências e outros fatores que darão suporte ao seu posicionamento, tendo em mente os seus interlocutores/destinatários, com o propósito de persuadi-los e convencê-los, almejando uma atitude responsiva ativa diante da lógica da leitura, interpretação e análise da realidade dialogada no texto escrito no gênero discursivo artigo de opinião. - Interlocutor/destinatário: a quem o produtor do texto se orienta e se direciona; com quem dialoga pela escrita sobre o tema eleito, com quem argumenta, comenta, critica sobre os pontos defendidos e que apresenta no texto. Coerente aos pressupostos do Círculo de Bakhtin, compreende-se o “outro” interlocutor sob três dimensões: real (imagem física presente, no caso da escola: o próprio aluno autor, o seu colega é o professor), ideal/virtual (imagem que o autor constrói e direciona a sua escrita) supraindividual/superior (representante oficial, que estabelece padrões a serem respeitados pelo grupo social, ao qual o produtor convive e se dirige). - Conteúdo Temático: discute questões polêmicas que podem incidir sobre variados temas: sociais, políticos, científicos e culturais, de interesse geral e atual, que afetam direta ou indiretamente um grande número de pessoas, a partir de um fato ocorrido e noticiado. - Articulista: trata-se do produtor com sua posição social de sujeito autor, portanto, é o profissional ou especialista que escreve matérias assinadas (autorais) sobre algum assunto, especialmente polêmico, que está sendo discutido na mídia impressa, internet ou televisão. A autoria não se refere à pessoa física (empírica), mas a uma posição de autoria inscrita no próprio gênero; refere-se a uma “postura de autor”, com sua responsabilidade discursiva. - Vozes que circulam no artigo de opinião: são outras “vozes” que não as do autor, mas que “falam” pelo autor, sustentando seu posicionamento, além de evidenciar o fa-
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to de que a comunicação humana é marcada pelo dialogismo. - Suporte: são os espaços sociais em que os textos do gênero discursivo artigo de opinião são publicados, quais sejam: em jornais, revistas, páginas
da internet e
comentados em jornais televisivos e, ou radiofônicos. - Circulação social: trata-se do espaço social e de como o gênero artigo de opinião circula, pois como o gênero produzido tem lugar social determinado para circulação, assim, definem-se por quais meios ele chegará ao seu interlocutor, isto é, o portador e o suporte do texto no qual o gênero circulará e a forma como chegará ao seu interlocutor. As atividades previstas, nesta fase, são pesquisas de artigos de opinião com temáticas diversificadas, em diferentes suportes para a leitura, discussão do conteúdo e reconhecimento dos elementos característicos desse gênero. Retomando ao texto do artigo “A formação de um povo”, de Lya Luft, propomos questões sobre a temática abordada, com esclarecimentos textuais necessários; estudo da argumentatividade presente no texto, evidenciando os tipos de argumentos; e questões relacionadas aos aspectos discursivos desse artigo. O outro artigo proposto possui uma temática semelhante ao primeiro, trata-se do artigo “A educação roubada”, da colunista Ruth de Aquino, publicado na revista Época, em 15 de agosto de 2013. Nesse momento, além das questões sobre o contexto de produção, recomendamos um estudo comparativo da argumentatividade presente nos dois artigos, por meio de questionamentos, notas explicativas sobre o recursos argumentativos, movimentação dos argumentos, concluindo com análises nos próprios textos com a mediação do professor, demonstrando o funcionamento discursivo. Proceder, também, à análise e reflexão dos aspectos linguísticos a partir dos elementos axiológicos presentes na materialidade textual que conduzem à argumentação e discursividade. Após essas atividades, reler os textos dos dois artigos, apresentar os tipos de movimentos argumentativos utilizados, identificando-os; produzir quatro sequências argumentativas a partir dos artigos lidos, duas com opinião favoráveis e duas desfavoráveis às teses dos artigos, concluindo-as com revisão e reescrita. 2.3 Abordagem sobre a estrutura do texto do “gênero artigo de opinião” Para organizar a estrutura de um artigo de opinião existem várias possibilidades, pois não há uma ordem específica para os elementos e nem todos precisam aparecer em
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um mesmo artigo de opinião, porque dependem da escolha das estratégias de apresentação que melhor evidenciem a abordagem do conteúdo/questão polêmica. De modo geral, os artigos de opinião apresentam: título e identificação do autor, contextualização e/ou apresentação da questão que está sendo discutida, explicitação do posicionamento assumido, utilização de argumentos para sustentar a posição assumida, consideração de posição contrária e antecipação de possíveis argumentos contrários à posição assumida, utilização de argumentos que refutam a posição contrária, retomada da posição assumida, possibilidades de negociação, e conclusão (ênfase ou retomada da tese ou posicionamento defendido). Após estudar as formas de arquitetura textual do gênero Artigo de Opinião, retornar aos dois textos dos artigos em estudo e examinar analisando a estrutura, fazendo o reconhecimento e a identificação das partes que os estruturam. Além das estratégias argumentativas utilizadas para envolver o interlocutor para impressioná-lo, para convencê-lo, para persuadi-lo mais facilmente e para gerar credibilidade; os operadores argumentativos são fundamentais na argumentação, pois estabelecem relações entre os seguimentos do texto: orações de um mesmo período, períodos, sequências textuais, parágrafos ou partes de um texto. Segundo Koch (2011, p.101-102), os operadores argumentativos servem para orientar a sequência do discurso, ou seja, para determinar os encadeamentos possíveis com outros enunciados capazes de continuá-lo. De acordo com a autora, funcionam como operadores argumentativos: as preposições, os advérbios, as conjunções, as locuções prepositivas, adverbiais e conjuntivas, e palavras que não se enquadram em nenhuma das dez classes gramaticais, como os denotadores de inclusão e de exclusão. Esses elementos apresentados inscrevem-se no discurso por meios de marcas linguísticas, fazendo apresentar-se como “retrato” de sua enunciação. Desse modo, sugerimos o estudo desses e de outros elementos articuladores de coesão e argumentação, como também, a análise das construções textuais elaboradas por meio dos operadores linguísticos realizadas no I e II artigos. 3- Últimos aquecimentos e a primeira produção escrita do artigo de opinião Para o encaminhamento da primeira produção textual escrita no gênero Artigo
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Opinião, propomos, além dos conhecimentos relacionados as especificidades do gênero, a execução de um outro gênero linguístico/discursivo, na modalidade oral, com o intuito de explorar e ampliar o conhecimento e o posicionamento dos alunos em relação ao conteúdo temático dos textos lidos. Para tanto, é necessário que oriente e estabeleça os as regras para a participação e avaliação do gênero Debate, antes de executá-lo. A fim de exercitar a escrita, recomendamos pesquisar sobre um tema de interesse pessoal e elaborar 5 sequências argumentativas (posicionando-se favorável ou desfavoráveis ao tema escolhido). E, também, ler os artigos: “ Escrita é tecnologia”, de Keila Grinberg (do departamento de história da UINIRIO), publicado em Ciência hoje, em 12/08/2011; “Cotas: o justo e o injusto”, de Lya Luft; publicado em Veja, em 06/02/2008, p.16; e “Lição de casa: um dever para todo dia”, de Marina Azaredo; publicado em Educar para crescer, em 04/05/2013, e se posicionar argumentando-os sobre o conteúdo temático abordado em cada texto. Avaliar as sequências produzidas (escolhas
léxico-semânticas,
estruturação
sintática
(coesão,
coerência),
força
argumentativa (fraca, média, boa - em razão do grau de conhecimento sobre a temática). De acordo com Antunes (2009, p. 167), a escrita é uma atividade processual, isto é, uma atividade durativa, um percurso que se vai fazendo pouco a pouco, ao longo de nossas leituras, de nossas reflexões, de nosso repertório de conhecimentos e, por isso mesmo, não podem ser improvisadas, não pode nascer inteiramente na hora em que a gente começa propriamente escrever. Nesse sentido, após uma revisão geral das características da composição do gênero artigo de opinião e de posse das leituras, estudos e atividades realizadas, solicitamos a escrita no gênero Artigo de Opinião, cuja temática pode abordar assuntos relacionados à educação. Segundo Fiad & Mayrink-Sabison (2004, p. 55), a modalidade escrita da linguagem envolve processos, ou seja, a produção escrita de um gênero envolve diferentes momentos: o planejamento, a própria escrita, a leitura avaliativa do próprio autor, o das modificações feitas nesse texto a partir dessas leituras. E, assim, considerando a situação e as condições de produção para esse artigo, solicitamos a elaboração de um planejamento para realização da escrita, para que esteja preparado e seguro quanto ao que se pretende dizer ao seu público (interlocutores/leitores); como também, ter domínio de suas ideias e intenções pretendidas.
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Posteriormente, a primeira escrita, o aluno autor fará a sua revisão, que também passará para que um colega também a faça, sempre mediados pelo professor. E, consequentemente, a revisão e a correção pelo professor; etapa que merecerá destaque, pois envolve a Análise Linguística. Com a AL, verificaremos aspectos que participam da materialidade linguística e que marcam o funcionamento discursivo do texto como gênero artigo de opinião: aspectos morfológicos, sintático-semânticos, estilísticos, pragmáticos, discursivos. Verificaremos a coesão e a coerência textuais, analisando os aspectos sintáticos (parágrafos, períodos, sintagmas, pontuação), escolhas lexicais (adequação vocabular, caráter funcional da classe, ortografia) e os essencialmente gramaticais (conjunções, preposições, as flexões, outros). Quanto à correção textual, Serafini propõe e sistematiza três alternativas: indicativa, resolutiva e classificatória. Com o intuito de aprimorar essa etapa da revisão e correção do texto do aluno, Ruiz (2010) propõe mais um modo de correção que pode contribuir para o processo de reescrita. A correção textual-interativa: na qual, o professor utiliza bilhetes–interativos que deve vir no final do texto para explicar a categoria de erros e fazer as orientações de como corrigi-los. Compreendendo que o modo como o professor corrige o texto do aluno pode determinar aspectos relevantes em sua reescrita. Como aponta Ruiz (2010), o professor tem grande responsabilidade como professor-corretor, pois a reescrita do aluno está intrinsecamente ligada à interpretação que ele faz da correção do professor. Deste modo, “toda e qualquer consideração que se faça a respeito do maior ou menor sucesso do aluno na tarefa de revisão (retextualização) deve, inalienavelmente, levar em conta a participação efetiva do mediador (o professor) no processo como um todo.” (RUIZ, 2010, p. 26). Nesta mesma perspectiva de correção e reescrita, Menegassi destaca que a revisão “é um produto que dá origem a um novo tipo de processo, permitindo uma nova fase na construção do texto.” (MENEGASSI, 1998, p. 32), pois é a partir de revisões efetuadas no texto que surge a reescrita. Portanto, a revisão é uma condição para a reescrita. Este pressuposto é básico à instauração do diálogo entre professor e aluno via texto deste. E assim, o estudante fará reescrita de seu artigo de opinião, após todo o trabalho de revisão e correção feitos com o texto dele.
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4- Encaminhamentos com outros artigos de opinião Prosseguindo aos estudos do gênero textual Artigo de Opinião apresentaremos outros Artigos. Nestes, é possível verificar as influências ideológicas marcadas pela textualidade e pelo posicionamento dos articulistas e pelas linhas editorais. Trata-se dos artigos: “Médicos brasileiros: sofrimento interminável”, de Miguel Srougi, da Folha de São Paulo, publicado na seção TENDÊNCIAS/DEBATES, em 15/09/2013; e “O Fantasma da proletarização atemoriza os médicos” escrito por Paulo de Tarso Soares, Ana Paula Paulino da Costa e José Guedes Pinto, publicado em Le Monde Diplomatique Brasil, em outubro (2013, p.19). Para esses artigos também propomos resolução de análises com questões acerca dos contextos de produção e dos aspectos discursivos, linguísticos e textuais específicos de cada texto. Para atividade de produção argumentativa escrita, sugerimos a leitura do artigo: “Bem-vindos médicos cubanos”, de Roberto Jaguaribe Trindade, médico brasileiro, formado em Cuba e que atua na periferia de São Paulo; publicado em setembro/2013, p. 21, na revista Caros Amigos. Como também, a pesquisa de outros artigos sobre esse assunto, cujos posicionamentos podem ser diferentes ideologicamente. Após a argumentação por escrito e o posicionamento defendido, proceder a revisão e reescrita. 5- Treino de leitura e produção da escrita argumentativa Ler textos de gêneros diversificados e elaborar sua tese/opinião posicionando-se por meio de argumentos de (autoridade, comparação/analogia, exemplificação, relação de causa e consequência, explicação, citação, enumeração, provas/evidências, de princípio, etc.) consistentes, convincentes, claros, coesos, coerentes, isto é, bem construídos e estruturados conforme os conteúdos estudados. Os textos sugeridos são: um fragmento das Conclusões da Conferência de Puebla, 1979, sobre a marginalização da mulher, nesse temática apontamos outro artigo “Anita, embranquecimento e elitização”, de Jaride Arraes, publicado na Folha Social, em 26 de agosto de 2013; uma adaptação do texto “Muito além do voto”, de André Forastieri, publicado em Época, em 06/05/2002; a pintura “Retirantes”, de Portinari; o poema “O bicho”, de Manuel Bandeira; um poema “Paródia: o político”, de autor desconhecido; uma foto “Marcas mundiais”, evidenciando o consumismo; o texto “Não se pode ser sem rebeldia”, de Paulo Freire, Pedagogia dos sonhos possíveis. Org. Ana M.A. Freire. Editora Unesp, 2001; um trecho do texto sobre o Ciberespaço, de P. Lévy. Cibercultura. São Paulo, Editora 34, 2001, sobre esse tema, também pode ler o artigo de opinião “A microfísica do espetáculo”, de André Sampaio; publicado em 26/02/2013 na edição 735 do Observatório da imprensa, na seção Jornal de Debates; e assistir ao Documentário sobre “Josué de Castro - Cidadão do Mundo (1994), disponível no You tube. Após as discussões e produções escritas, proceder às avaliações da argumentação, revisão e reescrita.
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6- Do planejamento à escrita do segundo artigo Além dos textos já trabalhados, sugerir e ouvir as sugestões dos alunos sobre outras temáticas de noticiários, reportagens e acontecimentos de destaque social e político do presente contexto e momento histórico de nossa sociedade (município, estado, país e do mundo). Após a escolha da temática, orientá-los para que pesquisem, planejem e produzam o segundo artigo de opinião. E, assim proceder a todas as etapas da produção textual, a partir do planejamento para a escrita, a escrita propriamente dita, a revisão (pelo aluno autor, colega e professor), sendo que nesse momento, cabe ao professor o trabalho de correção e ensino ao(s) aluno(s) das questões discursivas, linguísticas e textuais, principalmente, dos aspectos em que o(s) aluno(s) tenham dificuldades. Dificuldades, que dependendo da complexidade, poderão ser trabalhadas pelos bilhetes interativos, e ainda, no coletivo como conteúdos pontuais, e mais, se necessário, de forma individualizada, atendendo as necessidades de cada estudante. 7- Considerações finais De acordo com alguns teóricos, centrar o ensino na produção de textos é tomar a palavra do aluno como indicador dos caminhos que necessariamente deverão ser trilhados no aprofundamento quer da compreensão dos próprios fatos sobre os quais se fala, quer dos modos (estratégias) pelos quais se fala. Geraldi (1997), afirma que “conceber o texto como unidade de ensino/aprendizagem é entendê-lo como um lugar de entrada para este diálogo com outros textos, que remetem a textos passados e que farão surgir textos futuros”. E continua dizendo que “Conceber o aluno como produtor de textos é concebê-lo como participante ativo deste diálogo contínuo: com texto e com leitores”. Com esse propósito e fundamentado na importância e necessidade de trabalhar com gêneros que circulam socialmente, especialmente desses que estão fora do ambiente escolar, é que propusemos esse trabalho pedagógico no ensino da escrita de textos de gêneros da esfera jornalística, principalmente desses que possibilitam a reflexão, o debate, a construção discursiva, a tomada de posicionamento sociocultural, político ideológico, proporcionando ao estudante uma formação de sujeitos críticos e
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conscientes, sobretudo, por meio do trabalho com a escrita, partindo da realidade sóciohistórica, política e ideológica para a produção escrita do gênero “Artigo de Opinião”. Referências ANTUNES, I. Aula de Português: encontro e interação. São Paulo: Parábola, 2003. _______. Língua, texto e ensino: outra escolar possível. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [2011]. BAKHTIN, M.; VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. 6. ed. [13.ed], São Paulo: Hucitec, 1992 [2009]. GERALDI, J. W. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 2004. ______. Portos de passagem. 4 ed., São Paulo: Martins Fontes, 1997. KOCH, Ingedore G. V. Argumentação e linguagem. 13. Ed., São Paulo: Cortez, 2011. MARTINS, Maria Helena (org.). Questões de linguagem. São Paulo: Contexto, 2004. MENEGASSI, R. J. Da revisão à reescrita: operações e níveis linguísticos na construção do texto. (Tese) (Doutorado em Letras), Faculdade de Ciências e letras de Assis, Universidade Estadual Paulista, 1998. RODRIGUES, R. H. O artigo jornalístico e o ensino da produção escrita. In: ROJO, R. H. R. (Org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCNs. São Paulo: EDUC; Campinas: Mercado de Letras, 2000. p. 207- 220. RUIZ, E. D. Como corrigir redações na escola. São Paulo: Contexto, 2010. Obs.: As referências dos artigos de opinião e outros gêneros citados estão mencionadas no corpo desse artigo.
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A PRÁTICA DA LEITURA NA ESCOLA E A PERSPECTIVA BAKHTINIANA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL Rosemary de Oliveira Schoffen Turkiewicz (UNIOESTE) RESUMO: Este artigo pretende trazer uma reflexão sobre o trabalho com a linguagem na perspectiva interacionista, tomando como abordagem metodológica a prática da leitura a partir dos gêneros discursivos, com base nos estudos de Bakhtin/Volochinov (2004), com apoio de outros autores que dialogam com tais pressupostos teóricos, como Brait (2010), entre outros. Com base nesse aporte teórico, selecionamos um anúncio publicitário que constituirá o objeto de análise, a partir da orientação metodológica proposta por Bakhtin, procurando verificar e destacar o conteúdo temático, apreendido a partir da compreensão do contexto de produção, a construção composicional e o estilo. Para a análise, serão considerados também alguns aspectos sobre o gênero anúncio publicitário, para maior compreensão do conteúdo temático, além dos elementos discursivos e linguísticos que permitam perceber a linguagem em sua função real, num contexto de comunicação. Como estamos inseridas, como bolsista CAPES/INEP no Projeto de Pesquisa Formação Continuada para professores da educação básica nos anos iniciais: ações voltadas para a alfabetização em municípios com baixo IDEB da região Oeste do Paraná, nosso intuito é o de apontar caminhos aos docentes para o trabalho com a leitura, de forma a romper com atividades mecânicas ainda desenvolvidas no processo de formação do leitor durante a Educação Básica. PALAVRAS-CHAVE: gêneros discursivos, método sociológico, dialogismo. Introdução O ensino de Língua Portuguesa tem passado por grandes mudanças ao longo do tempo. As ideias do Círculo de Bakhtin1 contribuíram muito para essa transformação na forma de conceber o ensino da língua materna e, consequentemente, o processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita. Hoje, é inegável a importância de se trabalhar nas escolas com uma perspectiva de uso social da linguagem, tomando como meios para ensinar a leitura e a escrita os textos que circulam socialmente e que nascem 1
O Círculo de Bakhtin consistia em um grupo de intelectuais russos de diferentes áreas do conhecimento e formação que aproximadamente por uma década (1919-1929) se reuniam para discutir e estudar a linguagem, a literatura e a arte. Entre seus participantes temos o linguista Valentin Volochinov (18951936), o teórico literário Pavel Medvedev (1891-1938), Mikhail Bakhtin (1895-1975) dentre outros.
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de uma necessidade real de comunicação, com interlocutores reais, através dos gêneros do discurso, aqui entendidos como uma realização da língua, portanto um enunciado. Segundo Bakhtin (2003), “Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem” (Bakhtin, 2003, p.261). Assim, não podemos assumir uma concepção de língua que desconsidere a sua utilização pelo sujeito em suas relações históricas e sociais. Se nas atividades que exerce no dia a dia é que a língua se efetiva, se torna viva, jamais poderá ser encarada apenas como código. Acreditamos que essa concepção de linguagem pode gerar um impacto no ensino de Língua Materna, tornando-o verdadeiramente reflexivo. Contudo, vencer a artificialidade de uso da língua nas propostas de trabalho com as práticas linguísticas ainda é um desafio, pois o que se percebe é uma grande distância entre essa teoria e a prática presente nas salas de aula. As atividades desenvolvidas com a leitura e a compreensão, ainda se sustentam em uma garimpagem no texto para “respondê-lo” e não para interagir com ele como um sujeito leitor, capaz de preencher os vazios semânticos, ler as entrelinhas. Desse modo, propomos, neste texto, uma reflexão sobre as práticas de leitura na perspectiva dos estudos bakhtinianos. A primeira parte do texto consistirá de uma breve fundamentação teórica quanto aos conceitos que irão pautar a análise do gênero, tendo como foco a prática da leitura. A segunda trará uma proposta de análise dialógica discursiva a partir dos conceitos de estudo da linguagem apontados por Bakhtin em seu “método sociológico”, tendo como objeto de estudo um anúncio publicitário, tomando como norteadores, os elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional. 1. O gênero discursivo como instrumento de ensino Ao assumirmos os postulados do círculo de Bakhtin, concebemos a linguagem como ação de um sobre outrem, onde cada discurso retoma, refuta ou recria outro, numa polissemia de vozes, pois a nossa própria fala tem dois autores: um eu que enuncia e as vozes dos discursos que o embasam. Para Bakhtin (2004), a linguagem em sua expressão oral ou escrita, nasce na interação, na ação social entre interlocutores. Concebida como interação, a linguagem é
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viva, materializada não apenas em elementos linguísticos, mas nos extralinguísticos, perceptíveis e presentes através dos textos-enunciados. O autor, afirma que “a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros” (Bakhtin, 2004, p.113). É nessa interação entre um eu e o outro que ocorrem as relações dialógicas, que segundo o autor, “não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua como fenômeno integral concreto. A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam” (BAKHTIN, 2010, p. 209). O dialogismo constitui um princípio norteador, um eixo nos estudos bakhtinianos. Está presente nas vozes que atravessam nossos discursos, na forma como vemos o mundo, nos valores sociais dos grupos com os quais interagimos, nas palavras do outro que referendamos ou refutamos, já que em uma relação dialógica as vozes podem ser convergentes ou divergentes. Segundo Bakhtin (2003), o texto é um enunciado por possuir uma intenção (informar e levar à reflexão) e a realizar. Nasce de uma situação de interação, considera o extralinguístico e provoca uma atitude responsiva nos leitores. Assim, o texto não se esgota em si, mas pode gerar uma possibilidade para a palavra do outro, uma necessidade responsiva, apresentando um “acabamento” provisório. Para Bakhtin (2003), “cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo” (Bakhtin, 2003, p. 297). Os enunciados organizam os projetos de dizer nos diversos campos da atividade humana, conforme as necessidades de interação, o que acaba por configurar uma relativa estabilidade na forma de enunciar, realizada em um gênero discursivo. Bakhtin (2003) traz o conceito de gênero, antes muito restrito aos estudos literários, para o cotidiano, para as outras esferas de uso e estudos da linguagem. Ele assim o define: “cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso” (Bakhtin, 2003, p. 262). Conforme Costa Hübes (2014), “Os gêneros do discurso são construtos teóricos históricos e culturais que carregam em si a linguagem em toda sua plenitude de vida” (COSTA-HÜBES, 2014, p. 21). Assim, ao tomarmos estes conceitos como norteadores
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do ensino, assumimos os gêneros discursivos como uma possibilidade de reflexão sobre as práticas sociais de uso da linguagem. Para essa reflexão, tomaremos como objeto de estudo um anúncio publicitário a partir da ordem metodológica apreendida das produções do círculo de Bakhtin, nas quais percebemos o delinear de um método de análise da linguagem.
1.3. Conhecendo o Método Sociológico
O Círculo de Bakhtin não propôs um método de ensino, mas encontramos em Bakhtin/Voloshinov (2004), uma ordem metodológica para o estudo da língua, que contempla o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional. Essa possibilidade de estudo é conhecida como Método Sociológico e tem orientado o trabalho de alguns estudiosos voltados para uma análise dialógica do discurso. Para Bakhtin/Voloshinov (2004), o conteúdo temático está intimamente relacionado ao conceito de tema que jamais se esgota em um texto, pois contempla não apenas o assunto a ser abordado, mas abarca a situação de enunciação, na qual há possibilidades de diálogos entre visões de mundo, referindo-se às formas de compreensão da realidade. Assim, o tema é sempre reiterável. “Ele se apresenta como a expressão de uma situação histórica concreta que deu origem à enunciação” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006, p. 131). Quanto ao estilo, Brait (2010), alerta-nos para o fato de que, na perspectiva bakhtiniana, estilo não pode ser tomado como sinônimo de exclusivo, particular, individual como preconiza o senso comum. O conceito bakhtiniano de estilo pressupõe considerá-lo na relação que mantém com o conteúdo temático, com o extralinguístico e com as relações de interação entre os interlocutores, com o grupo social a qual pertencem, enfim, com a necessidade cultural e social de comunicação que leva à escolha de determinados gêneros, ideologias, valores, palavras. As escolhas verbo-visuais, do léxico, relações lógico discursivas, todo um projeto de dizer materializado no gênero tem a ver com estilo, pois, nas palavras do próprio Bakhtin (2003), nos enunciados as finalidades de cada referido campo são
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definidas também “pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua” (Bakhtin, 2003, p.261). O estilo não é estático. Está sempre em relação aos elementos para a interação. As questões gramaticais e de escrita estão para o estilo. Diante das possibilidades da linguagem e dos papéis sociais, a opção do autor para essa seleção, as “máscaras” que usa ao produzir um discurso acabam por constituir marcas do estilo. Às vezes, para se chamar a atenção do leitor, de forma ousada, se muda não o gênero, mas o estilo do gênero, o que pode constituir uma “assinatura”, uma marca de autoria que nos permite vislumbrar “traços” de um estilo individual. “Todo enunciado [...] é individual e por isso pode refletir a individualidade do falante (ou de quem escreve), isto é, pode ter estilo individual” (BAKHTIN, 2003, p. 265). O estilo está ligado ao conteúdo temático e, ao trazer traços de determinado gênero, une-se à construção composicional, podendo demonstrar seus aspectos mais “estáveis” ou mesmo subvertê-la, ressignificá-la ao trazer nuances de estilos de diferentes gêneros, como expressão da individualidade do enunciador. Entretanto, Bakhtin (2003), ressalta que “nem todos os gêneros são igualmente propícios a tal reflexo da individualidade do falante na linguagem do enunciado, ou seja, ao estilo individual” (BAKHTIN, 2003, p. 265). Assim, podemos perceber que a construção composicional está bastante ligada às marcas do estilo do gênero. Traz, em si, marcas da situação de um determinado campo da atividade humana, sendo que, dos três elementos do enunciado, é o que mais apresenta uma relativa “regularidade”, pois carrega a preocupação com os atos de fala, com a forma de materializar os gêneros, sem perder de vista o contexto. A opção por uma organização formal que contemple a paragrafação, as imagens, ilustrações, uso de determinados elementos linguísticos, lexicais, gramaticais, enfim, toda a “forma”, o “como dizer”, deve estar em consonância com o que é relevante para a interação, para evocar sentidos pretendidos, pois cada gênero tem uma forma distinta de organizar seus enunciados. Vejamos como se organiza o gênero anúncio publicitário. 2. Algumas artimanhas do anúncio publicitário
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O gênero Anúncio Publicitário traz como marcas do estilo do gênero o uso de recursos de estranhamento, obtidos, muitas vezes, pelo processo metafórico, com utilização de várias figuras de linguagem. Procura valer-se de recursos fonéticos e sonoros, como ritmo, rimas, aliterações, onomatopéias. Os aspectos semióticos constituem o “carro chefe”, explorando uso de linguagem simbólica, ícones, cores e recursos gráficos como disposição estratégica nas páginas, tamanho da fonte, etc. Apresenta subversões às normas da linguagem padrão, como neologismos, gírias, ausência de pontuação, aparentes “erros” ortográficos (desvios). O uso de tom coloquial na linguagem é recorrente, através de pronomes de tratamento não cerimoniosos. Há empréstimos linguísticos, estrangeirismos e uma simplicidade estrutural nos enunciados verbais. Esse gênero tem uma finalidade bem definida “gerar uma necessidade em seu público”. Para isso, recorre a uma espécie de simulação de diálogo, como se houvesse uma conversa face a face, uma cumplicidade e, nisso, pode residir a interação, gerando uma responsividade do leitor quanto ao texto e quanto ao papel de consumidor. Como destacou Sandmann (2010), os autores de anúncios publicitários, no intuito de os tornarem mais persuasivos e atrativos para o leitor, recorrem a algumas estratégias de uso da linguagem bastante peculiares. Um desses aspectos é incluir outros gêneros de circulação social em sua composição, gerando um dialogismo entre eles. Quanto maior o domínio que o locutor tem de um gênero, maior a possibilidade de criação, de romper com padrões de estilo do gênero e ousar quanto à construção composicional. O anúncio publicitário constitui um terreno fértil para essas ousadias. Bakhtin (2004), aponta que “para o locutor a forma linguística não tem importância enquanto sinal estável e sempre igual a si mesmo, mas somente enquanto signo sempre variável e flexível” (BAKHTIN, 2004, p. 93). Outros autores têm discutido esse fenômeno linguístico e denominado “mescla” de gêneros, mas em um ponto os estudos convergem: é um recurso de estilo que pode renovar o significado e chamar a atenção do leitor. A passagem do estilo de um gênero para o outro não só modifica o som do estilo nas condições do gênero que não lhe é próprio como destrói ou renova tal gênero (Bakhtin, 2003, p. 268).
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O anúncio publicitário, que passaremos agora a analisar, constituirá um bom exemplo dessas questões. 3. A leitura de um Anúncio publicitário numa perspectiva dialógica discursiva Buscamos, agora, proceder a uma Análise Dialógica Discursiva (ADD) de um anúncio publicitário veiculado no ano de 2005, no intuito de associar os conceitos bakhtinianos anteriormente explicitados às práticas de leitura e compreensão. Para fins desta análise, procuramos focar e exemplificar cada elemento: conteúdo temático, estilo e construção composicional, mas como os três ocorrem simultaneamente, em alguns pontos, estarão imbricados no processo de leitura. O primeiro passo, em uma ADD, é explorar o plano do conteúdo. Assim, é preciso recuperar as condições de enunciação, para se “caminhar” em direção ao conteúdo temático. Desse modo, os questionamentos iniciais devem incidir sobre a época de produção e sobre o suporte onde o texto/enunciado foi veiculado, no intuito de perceber a intencionalidade, público a que se destina, enfim, a situação para a qual surgiu como uma necessidade de dizer, de interagir com determinado interlocutor. O anúncio que ora analisamos integrou uma campanha publicitária produzida pela Alma BBDO, intitulada “Contos de Fadas” para a empresa de cosméticos “O Boticário”, veiculada nos meses de maio e junho de 2005, em outdoors e revistas voltadas ao público feminino (Claudia, Nova, Caras, Mari Claire), compreendendo duas páginas.
Disponível
em
campanha-contos-de-fadas-2 e
http://creativitate2013.wordpress.com/2013/03/03/o-boticariohttp://mundofabuloso.blogspot.com.br/2008/01/o-boticario-e-
suasprincesas.html. É composto pela linguagem não verbal e verbal, organizada em dois
planos: um imagético e um verbal o que constitui uma especificidade desse gênero discursivo. No plano visual traz, de forma centralizada, a imagem de uma bela e jovem mulher. Os lábios são bem vermelhos, a pele clara, os cabelos escuros, olhos azuis penetrantes e desafiadores. O foco incide sobre o rosto e o colo dessa jovem, contudo, deixa perceptível um voluptoso decote, além das alças e um acessório de cabelo, ambos na cor vermelha. Ainda em destaque, vislumbramos uma mão, também feminina, que
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oferece uma maçã vermelha, de aspecto saudável. A moça, porém, está com o olhar penetrante voltado à frente, como que encarando o leitor. No plano verbal, encontramos três seqüências: 1) “ERA UMA VEZ UMA GAROTA BRANCA /COMO A NEVE. QUE CAUSAVA MUITA INVEJA/ NÃO POR TER CONHECIDO SETE ANÕES. / MAS VÁRIOS MORENOS DE 1,80 M”. 2) O Boticário/VOCÊ PODE SER O QUE QUISER. 3) A de referência mais direta ao consumidor: MAIS DE 2.300 LOJAS/ ESPERANDO POR VOCÊ Neste breve texto, nos deteremos a uma análise apenas do plano visual e de uma das sequências verbais. Para a leitura desse anúncio, é necessário estabelecer um diálogo com a intencionalidade do texto, com as vozes de outros enunciados, com a linguagem multissemiótica presente.
Assim,
não
podemos desconsiderar
os traços da
multimodalidade, como as cores, formas, centralização da imagem, definição na página. Ao aliar a imagem retratada de uma jovem mulher ao suporte e veículo onde foi publicado (revistas femininas), ao conhecimento contextual de que a marca o Boticário oferece produtos de beleza e que as mulheres têm grande preocupação com a aparência, é possível inferir que o público feminino constitui o interlocutor do anúncio. Com a definição do interlocutor temos o início da exploração do conteúdo temático. Numa análise dialógica discursiva é imprescindível perceber o diálogo existente com os discursos sociais, com os valores atribuídos por um determinado grupo social do qual fazem parte os interlocutores deste enunciado. Sandmann (2010), aponta que alguns valores aceitos pela classe dominante encontram expressão na linguagem da propaganda e destaca, entre esses valores, a juventude e a beleza como qualidades que podem ser permanentes ou imutáveis. No texto em questão, o conteúdo temático incide exatamente sobre esses valores, ressaltando a ideia atual de mulher fatal, que exala sensualidade, atitude, confiança e é a esse tema, a essa sedução que o anúncio se propõe. Veicula a imagem da mulher atual, desejada por muitos homens: confiante, bela, irresistível. O enunciado sugere que as consumidoras dos produtos O Boticário alcançarão esse status.
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Além dessa leitura dialógica com o social, o conteúdo temático será ainda melhor compreendido em suas relações com outras vozes, com outros textos presentes. Neste caso, o conto infantil “A branca de neve e os sete anões”. Uma branca de neve moderna, não uma menina desprotegida, que precisa dos anões como seus guardiões, mas uma mulher forte, sensual, que foi capaz de atrair e conquistar vários homens de 1,80 M – aqui, a presença clara de um diálogo com aspectos valorativos da sociedade atual, sobre o padrão de beleza e virilidade masculina, atribuído aos homens altos, morenos. O anúncio traz uma “mescla” de gêneros com o conto ao dialogar com a personagem, mas num contexto totalmente novo, influenciado pela visão de mundo moderno, tanto sobre a beleza feminina quanto masculina, subvertendo a ideia do conto original de uma princesa que encontra um príncipe encantado para viverem felizes para sempre. Neste novo enunciado, a heroína perde esse ingênuo romantismo ao encontrar vários morenos de 1.80 M sem prender-se a nenhum deles. Ideal das mulheres modernas: viverem contos de fadas “eternos” enquanto durem. Ao trazer um aparente “hibridismo” com o conto de fadas, o enunciado “conversa” com esse gênero, subverte os elementos comuns em um anúncio, emprestando vários elementos do conto. Contudo, ao desmontar a figura da princesa casta em busca do príncipe encantado, desconstrói a estrutura clássica, ressignificando essa narrativa num novo enunciado. Torna-se um conto de fadas moderno, para as “princesinhas” atuais, ávidas de controle sobre as próprias vidas e cobradas pela necessidade de sedução, de sensualidade, tão imposta à figura feminina em nossos dias. Assim, temos neste anúncio a presença de marcas do estilo dos dois gêneros, sem apagar os traços de anúncio. Vejamos como isso ocorre, quanto ao elemento estilo, analisando também a sequência verbal principal, na qual há a relação com o conto de fadas, mas com o cuidado de não perder de vista a relação com os demais elementos. ERA UMA VEZ UMA GAROTA BRANCA COMO A NEVE. QUE CAUSAVA MUITA INVEJA NÃO POR TER CONHECIDO SETE ANÕES. MAS VÁRIOS MORENOS DE 1,80 M.
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Esta sequência está localizada do lado esquerdo, em destaque. A pontuação encontra-se rompendo com a norma padrão e, embora apresente uma tipologia narrativa, o formato está disposto como se o texto fosse organizado em versos. Há um ponto final após os anões, onde usualmente seria utilizada uma vírgula. Essa inversão do uso recorrente da vírgula acaba gerando uma parada na leitura um pouco maior e evidencia o trecho iniciado com o elemento coesivo “mas”, aqui funcionando como um operador argumentativo, pois mantém a ideia lógico-discursiva de oposição, própria desse conectivo, porém carregado de força persuasiva ao introduzir o paralelo entre anões x morenos altos, trazendo, por meio dessa oposição, os valores e padrões quanto à beleza masculina que estão presentes na sociedade - o estilo materializado através dos elementos linguísticos, conectando-se ao conteúdo temático. Neste ponto, o tema se vale de um traço comumente encontrado na esfera da publicidade, apontado por Sandmann (2010), “o êxito no relacionamento amoroso ou erótico como resultado do consumo de determinados produtos”, no caso, os cosméticos, perfumes e produtos para a pele do Boticário (SANDMANN, 2010, p.38). Essa sequência fraseológica passa uma sensação de conclusão na expressão “garota branca” ao mudar de linha, como se fosse o final de um verso. Ao nos determos mais nessa expressão, percebemos o uso do substantivo “garota” e do adjetivo “branca” como “pistas” para a compreensão: primeiro a referência à personagem Branca de Neve, uma jovem garota de pele clara, que remete também à imagem do anúncio; depois, à ideia de juventude que toda mulher almeja, usada como um recurso persuasivo, além da brancura da pele como referência de pele bem cuidada, o que reforça a aparência jovem e liga o anúncio à empresa de cosméticos. “Ser jovem e permanecer jovem é um desiderato com que se procura levar à ação principalmente a mulher.” (SANDMANN, 2010, p.36). A comparação “como a neve” é mais um recurso que evidencia a personagem do conto, também reforçada na referência aos anões. Algumas marcas presentes nesta sequência verbal afastam-se do estilo do gênero anúncio por serem próprias do gênero conto de fadas. É o que percebemos no início do texto com a expressão clássica “Era uma vez”, na presença da tipologia narrativa, com uma personagem protagonista e até mesmo o conflito, a inveja que sentem da heroína, além da presença dos verbos no tempo passado (pretérito) – era, causava, ter conhecido.
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Nesta subversão do estilo do gênero, acaba-se percebendo um rompimento com a construção composicional mais recorrente do anúncio publicitário, contudo, não há apagamento das características de anúncio e nem podemos dizer que foge totalmente da construção composicional uma vez que, segundo Sandmann (2010), esse recurso de “estranhamento” faz parte do estilo dos gêneros da esfera da publicidade. Assim, essa “mescla” de gêneros pode ser encarada como um traço desse estilo de estranhamento. Apesar de tomar como “empréstimo” elementos do gênero conto de fadas, o texto continua sendo um anúncio, pois sua função continua ligada à publicidade e não à esfera literária. Lembrando que a função social é relevante, pois é nela que um gênero nasce como tal, de uma necessidade de dizer, no caso, persuadir as consumidoras. Essa relação dialógica com o conto “Branca de neve e os sete anões”, destaca-se no plano da imagem (multimodalidade) na figura da jovem com as características físicas de Branca de Neve; na maçã, a qual, neste novo contexto, pode ser ligada ao símbolo que essa fruta representa, desde o texto bíblico, de tentação, sedução, sensualidade, o que ainda é reforçado pela predominância da cor vermelha nas roupas, acessório de cabelo e fruta, cor que, na contemporaneidade, está ligada ao erotismo, paixão. A desconstrução da figura feminina ingênua, esperando o príncipe encantado, é que dá o caráter argumentativo persuasivo para o público leitor ao qual se destina. Neste anúncio, reforça-se um estilo individual do locutor, a mescla com outro gênero, ou, como nos últimos tempos esse recurso vem sendo altamente explorado pela esfera da publicidade, podemos até considerar como uma marca da construção composicional, o uso de outros gêneros conforme o propósito, a finalidade do anúncio. CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise deste anúncio publicitário a partir dos pressupostos teóricos expostos proporcionou um referencial para subsidiar discussões sobre uma forma de transpor tais postulados para a prática pedagógica em sala de aula, no intuito de colaborar para o trabalho com a leitura e para a compreensão das concepções de linguagem presentes nos documentos oficiais que regem atualmente o ensino da disciplina de Língua Portuguesa. Em nossa análise, esperamos ter dado conta de demonstrar que, embora este anúncio publicitário seja um texto criativo e bem elaborado, tais aspectos não garantem
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êxito junto aos interlocutores. É necessário que o leitor estabeleça as relações de diálogo com a situação social, com outros textos, outras vozes e pontos de vista para que o texto cumpra seu papel e provoque novos enunciados responsivos. Assim, a análise dialógica discursiva que toma os elementos do enunciado: conteúdo temático, estilo e construção composicional, apresenta-se para o professor como uma sugestão, como uma ordem metodológica que pode orientar um encaminhamento de leitura dos discursos presentes nas práticas de uso da linguagem. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 4 ed. 2003. _____. Marxismo e filosofia da linguagem.10 ed. São Paulo: Hucitec, 2004. BRAIT, B. (Org) Bakhtin: conceitos –chave. São Paulo : Contexto, 2010. COSTA-HÜBES, T. C. Os gêneros discursivos como instrumentos para o ensino de Língua Portuguesa: perscrutando o método sociológico Bakhtiniano como ancoragem para um encaminhamento didático-pedagógico. Gêneros de Texto/Discurso e os desafios da contemporaneidade: São Paulo: Pontes Editora, 2014. SANDMANN, Antonio José. A linguagem da propaganda. São Paulo: Contexto, 2010. http://mundofabuloso.blogspot.com.br/2008/01/o-boticario-e-suas-princesas.html. Acesso em 10/out/2014. http://creativitate2013.wordpress.com/2013/03/03/o-boticario-campanha-contos-defadas-2/ . Acesso em 10/out/2014.
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O DIÁLOGO NO TEXTO DA CRIANÇA Rosyane Mayre Pimenta Natal (UFPR) Introdução Na aquisição da escrita, de modo semelhante ao que acontece na aquisição da oralidade, o diálogo também pode ser tomado como ponto fundamental das mudanças pelos quais a criança passa para se constituir como sujeito escrevente. O diálogo, neste caso, é visto enquanto relação intersubjetiva, como algo que possibilita a relação entre enunciados, a partilha de sentidos (relações semânticas) e as relações entre aspectos da própria língua (aspectos da segmentação de palavras, da ortografia, da composição morfológica, dentre outros). Neste sentido, assumo que o outro da aquisição da escrita pode ser os vários discursos orais e escritos, o próprio texto da criança ou a própria oralidade. Como fruto da ocorrência do diálogo temos os indícios do diálogo que são as marcas linguísticas que emergiram no texto da criança e que, por sua materialidade na superfície do texto, possibilitam a análise a que me proponho. Quando me proponho a analisar o diálogo presente na escrita da criança, noções como as de interação, subjetividade e heterogeneidade são acionadas. Deste modo, este trabalho teve o objetivo de conceber uma maneira de pensar o diálogo na escrita da criança em processo de aquisição. Conceber, aqui, ganha sentido de arquitetar um olhar sob os dados de escrita no intuito de apreender algo mais singular da relação sujeito/linguagem. Como objetivo específico, busco dar ênfase às relações com o outro instância da língua constituída que, no texto da criança, pode ser outros discursos orais ou escritos, o próprio texto e a própria oralidade. Aspectos metodológicos Para a realização desta pesquisa utilizo um conjunto de textos infantis cedidos por uma professora da rede pública do ensino fundamental em Curitiba, Paraná. Trata-se de textos do segundo, terceiro, quarto e quinto ano, totalizando 91 textos dos quais cinco apresento neste trabalho. Cada criança produziu um texto apenas. Os textos foram produzidos dentro da sala de aula mediante a solicitação da professora. Não foram feitas
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exigências quanto a forma dos textos, ou seja, as crianças estavam livres para produzir qualquer tipo de texto, de qualquer tamanho, acompanhados ou não de desenhos. A análise dos dados está pautada na identificação de possíveis pistas linguísticas e, posteriormente, na possibilidade de se pensar o diálogo para o fenômeno identificado. Vejo, sob a luz do Interacionismo, cada indício do diálogo como revelador do processo de aquisição da escrita e da relação do sujeito com a fala/escrita do outro, com a língua e com a própria fala/escrita. Para pesquisas, como esta, sob a luz do interacionismo em aquisição de linguagem a fala de crianças é indeterminada, ou seja, “não se pode prever, nem imaginar falas de crianças” (LIER-DE VITTO E ANDRADE, 2008, p.61). A indeterminação acontece porque fragmentos da fala do adulto retornam na fala da criança. Dito isto, assumo que fragmentos do discurso do outro retornam também na escrita da criança. Neste sentido, mesmo com as diferenças existentes entre fala e escrita, o interacionismo em aquisição de linguagem abarca essas duas modalidades. Análise Dizer que há um aspecto dialógico a ser visto no texto da criança em processo de aquisição da escrita significa, nesta pesquisa, assumir que ela está em constante interação com outros textos, da oralidade e da escrita, que circulam na sociedade. Esta interação aparece na materialidade dos textos, ou seja, algumas pistas linguísticas me permitem ver indícios do diálogo na escrita da criança. Neste sentido, sabemos de antemão que o diálogo está presente no texto da criança, mas não de forma explícita. Cabe, portanto, apontar quais são os lugares em que ele está presente ou quais e como as pistas linguísticas podem ser concebidas como resultado do diálogo. Para o interacionismo em aquisição de linguagem oral interessa olhar para o diálogo propriamente dito, diálogo este que se dá entre sujeitos, um deles sendo instância da língua constituída, numa situação de comunicação imediata ou não e que é composta por enunciados que se afetam. Na escrita da criança também há afetação entre enunciados. Outros textos podem funcionar como o outro instância da língua constituída. Neste sentido, os fatos sócio-históricos não ganham relevância neste
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trabalho, pois direciono meu olhar para o processo de constituição de um sujeito escrevente buscando me atentar para aspectos do funcionamento da linguagem. O texto a seguir foi produzido por um menino, J., que na época1 frequentava o 4° ano do ensino fundamental. Na sala de aula e sob a solicitação da professora J. produziu o seguinte texto: Texto 1:
O aspecto que quero destacar do texto de J. se refere à palavra barcaria. Há aí uma derivação morfológica (do nome barco para o nome barcaria) decorrente do diálogo com outros sentidos: o lugar para comprar pão chama-se padaria, o lugar para comprar livros chama-se livraria, o lugar para comprar relógio chama-se relojoaria, entre tantos outros exemplos. A palavra barcaria não consta nos dicionários de língua portuguesa, mas segue a estrutura morfológica da língua, ou seja, nas derivações morfológicas de N para N do português brasileiro o uso do sufixo aria está previsto. A emergência do sufixo aria só foi possível na escrita de J. devido o diálogo entre os sentidos de outras palavras e sua escrita. J. não está alheio aos fatos da língua. Vemos operar o simbólico dentro das possibilidades abertas pelo funcionamento linguísticodiscursivo. 1
Os textos foram coletados em 2012.
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O funcionamento da linguagem inclui as construções morfológicas. Estas, por sua vez, podem ser vistas em todas as formas flexionais, como nas concordâncias de gênero e plural, e derivacionais utilizadas pela criança demonstrando sua circulação por estes aspectos da língua constituída. No texto de J. vemos, por exemplo, a concordância de plural em “viverão felises para cempre”. Proponho, então, que a ocorrência de barcaria seja concebida como uma singularidade no texto de J. à medida que demonstra seu trânsito pelos sentidos e as fronteiras morfológicas das palavras. Neste sentido, o diálogo é gerador de efeitos na escrita infantil e um destes efeitos é a derivação morfológica. Outros discursos podem emergir no texto da criança, mas nem sempre emergem na forma de colagem. Observemos o texto 2: Texto 2:
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No caso do trecho “E no futuro quem sabe se cada mês pudesse cair dinheiro de máquinas de céu plantar e nascer dinheiro há! uma boa ideía” vemos que de “dinheiro não cai do céu” e “dinheiro não dá em árvore” houve uma transformação. A criança “rompe” com o enunciado do outro. Este caso nos permite conceber o diálogo no texto da criança como o resultado de uma operação simbólica, ou seja, outros textos podem sofrer mudanças antes de emergir efetivamente no texto da criança porque passam pelo registro do simbólico. O texto da criança em aquisição de escrita revela, portanto, a penetrância e a heterogeneidade deste processo. Por outro lado, também pode emergir no texto da criança uma colagem do discurso do outro. Observemos o texto 3, produzido por H., uma menina do 4° ano do ensino fundamental. Texto 3:
Chamo atenção para o fato de H. ter escrito que o Jardim Botânico é “um grande patrimônio histórico”. O discurso do outro emergiu em seu texto. Podemos pensar numa colagem das propagandas de televisão que divulgam patrimônios históricos ou até mesmo que “patrimônios históricos” tenha sido um conteúdo trabalhado em sala de
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aula, enfim, o fato é que o Jardim Botânico é um ponto turístico da cidade de Curitiba e não um patrimônio histórico. Vemos, neste caso, que o diálogo com outros discursos é constituinte do texto da criança e que, naquele momento, não foi possível a ela desprender-se do discurso do outro. De qualquer forma ela não deixa de ser afetada pelo registro do simbólico e sua colagem gera sentidos, bem como o texto como um todo. Destaco também a construção ADJETIVO + SUBSTANTIVO: “um grande patrimônio histórico”. A criança insere um adjetivo com sentido de valor ressaltando que o Jardim Botânico não é qualquer patrimônio. Poderíamos imaginar que H. teve intenção de ressaltar a importância do tema escolhido para sua redação. Neste ponto, faz-se necessário abrir um parêntese para explicar duas coisas importantes a respeito da intecionalidade. Em primeiro lugar, a intenção que a criança teve, ou até mesmo se houve intenção, não é um fato acessível ao leitor/pesquisador, mas o texto pode gerar um efeito de intencionalidade ou um efeito de leitura, como o que sugeri para o trecho “um grande patrimônio histórico” logo acima. Neste sentido, é preciso deixar claro que não estou atribuindo intenção à criança. Em segundo lugar, conhecer se houve ou não intenção por parte da criança não é relevante para o Interacionismo. Em outras palavras, desconhecer os motivos que levaram a criança a determinadas construções não se configura como um impasse metodológico à medida que o texto é gerador de efeitos e são estes efeitos que possibilitam a análise a que me proponho. Deste modo, restrinjome a dizer que o diálogo com outros discursos fez emergir o adjetivo “grande” na cadeia sintagmática demonstrando que a aquisição da linguagem escrita é um processo de idas e vindas pelos discursos outros e pela própria subjetividade. Ainda com respeito ao texto 3 gostaria de destacar a maneira como a criança grafa a palavra cuidado: em caixa alta. Trata-se de uma marca gráfica sobreposta. Acredito que estamos, novamente, diante de um indício do diálogo com outros discursos. Como pensar sobre este fenômeno? Primeiramente podemos pensar que o que emerge na escrita de H. está semanticamente relacionado a diversos outros discursos, por exemplo, letreiros diversos, especialmente os de caráter informativo de perigo, de atenção, entre outros. Nota-se, mais uma vez, a penetrância da escrita da criança a outros discursos. Em segundo lugar, o uso de uma marca gráfica sobreposta que distingue a escrita de cuidado do resto do texto representa, também, as relações
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estabelecidas entre o sentido da palavra e a forma como geralmente os avisos são grafados em diversos letreiros2. Não quero dizer que houve uma simples correspondência entre o campo visual e gestual, pois o simbólico está necessariamente provocando efeitos. A este respeito, Lemos (1998) explica que a grafia da palavra escrita passa sim pelo campo perceptual da visão, mas sempre está sujeita a se transformar ao ser atravessada pela linguagem. Neste sentido, “ela deixa de ser coisa para se transformar em objeto significante” (p. 19). A criança está submetida às leis da língua, mas isso não significa que ela não vai trabalhar sua escrita nos níveis gráficos e, por sinal, faz isso de forma singular. O que quero dizer é que a marca sobreposta não poderia ter sido prevista, mas emergiu no texto de H. como fruto de sua relação com a linguagem. Dito de outra forma, não se trata de uma atividade metalinguística, mas sim de um fazer linguístico-discursivo. Até agora as análises apontam para o fato de que o diálogo no texto da criança revela a penetrância e a heterogeneidade do processo de aquisição da linguagem escrita. Os sentidos podem se cruzar e penetrar na escrita da criança. Observemos o texto abaixo, produzido por I., aluno do 4° ano do ensino fundamental. Texto 4:
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De modo geral, os avisos espalhados por locais públicos (hospitais, escolas, estabelecimentos comerciais, ruas e etc.) são escritos em caixa alta.
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I. escreve que o museu “tem um formato de bailarina”. Na verdade, o Museu Oscar Niemeyer tem o desenho de uma bailarina em uma das suas faces e seu formato faz referência à árvore símbolo do Estado do Paraná, a Araucária. Mas o que faz com que I. utilize a palavra formato? A leitura de outros textos produzidos por crianças da mesma turma dá a entender que houve uma visita ao museu, portanto, a arquitetura do mesmo pode ter sido pauta de explicações da professora. Sendo assim, estamos diante de um indício do diálogo com o discurso do outro na escrita da criança. Acredito que este diálogo aponte para um fenômeno de cruzamento de significados, o significado da palavra formato e, possivelmente, o significado da palavra desenho. O cruzamento de sentidos só é possível devido a um fazer linguístico-discursivo e ao submetimento dos sujeitos a esse fazer. Não se trata de uma coincidência. O fazer linguístico da criança está sob o domínio do significante, tal como postulado por Lacan a partir de sua leitura de Saussure. Os enunciados de I. ganham sentido na relação entre os significantes, no entanto, a emergência inesperada de formato demonstra a alienação dos sujeitos ao enunciado do outro. A alienação que este episódio dialógico deixa ver diz da relação do sujeito com o registro do imaginário, aquele em que há identificação. Neste sentido, a emergência de formato pode ser uma pista do processo de identificação pelo qual a criança passa para constituir seu texto, identificação com o discurso do outro. Em outras palavras, da relação entre significantes emerge formato que, a partir da hipótese de ser uma palavra presente no discurso da professora, demonstra a identificação da criança com essa figura que é instância da língua constituída. Ao mesmo tempo, a relação entre os significantes no texto da criança leva a um sentido: o de que o Museu Oscar Niemeyer tem um formato. No entanto, este formato não é o de uma bailarina gerando, assim, o estranhamento. A não coincidência desta ocorrência se deve, portanto, ao desdobramento da relação S/s que diz da relação dos elementos na cadeia significante horizontal que é, por sua vez, atravessada verticalmente pelas estruturas fundamentais da metáfora e da metonímia, agindo sobre o significado. A este respeito, temos que a metáfora surge na substituição de um significante (desenho) pelo outro (formato), ou seja, o lugar ocupado por formato poderia ser ocupado por vários outros elementos devido às relações metafóricas.
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Chamo a atenção do leitor para a ocorrência de “ums raios”. Vemos que a criança reelabora sua escrita inserindo o s na palavra um. Estamos, mais uma vez, diante de um indício do diálogo na escrita da criança, mas dessa vez o outro do diálogo é o próprio texto. Isso quer dizer que a criança toma distância da sua própria escrita, o que possibilita uma mudança. A falta de concordância nominal gerou estranhamento, por isso o ajuste entre o artigo indefinido e o substantivo. Neste caso vale retomar que, conforme Lacan, para que haja simbolização é necessário que ocorra distanciação entre sujeito e objeto. Este indício de diálogo demonstra, portanto, a criança se movimentando pelo universo simbólico da escrita. Lemos (2002) comenta sobre as pausas e reformulações na fala infantil. É o momento em que a criança se divide entre aquele que fala e escuta a própria fala sendo capaz de modificá-la. Considero que a reelaboração feita por I. representa algo análogo ao que Lemos está descrevendo para a aquisição da fala. Este indício possibilita, portanto, ver algo a mais da relação sujeito/linguagem. A reelaboração do texto de I. demonstra que um aspecto da escrita convencional, o da concordância nominal, o afetou. Ainda que a grafia da palavra uns esteja incorreta vemos a criança sendo afetada pela língua e se constituindo como sujeito escrevente. Neste sentido, o erro na escrita de uns foi o que possibilitou a visualização do diálogo com o próprio texto, caso contrário, se tivesse sido grafada corretamente desde o primeiro momento ou se uma marca física não tivesse ficado na superfície do texto, o fenômeno não seria captável aos olhos do leitor. O equívoco, ou melhor, a escrita divergente da escrita do adulto é comum nos textos infantis. Por vezes, revelam o diálogo com outros discursos que, por sua vez e se concebidos como um fazer linguístico-discursivo, dizem do processo de constituição do sujeito como escrevente. Podem revelar, também, o diálogo com a própria língua, com a própria oralidade. O texto abaixo, produzido por C., permite a discussão sobre o diálogo visto na ortografia divergente. Vejamos: Texto 5:
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O que quero destacar do texto de C. é o uso recorrente de rr nos locais que correspondem, na oralidade, à pronúncia da fricativa velar [R]. Note que a criança grafa arrancaroão (utilização correta de rr), mas também grafa rreino, rrei, rrainha e rraio, sendo que rrei e rrainha aparecem duas e três vezes, respectivamente, incluindo-se a escrita do desenho. Proponho pensar estes episódios como indícios do diálogo com a oralidade, ou seja, de que a criança foi tocada pela relação entre fala e escrita, mas não simplesmente isso já que não há, no português brasileiro, uma relação um a um entre fonema e grafema. O fonema [R] é grafado de maneiras diferentes em meio e em início de palavra (R para início de palavra e RR para meio de palavra). Como dito anteriormente, o diálogo pode ser revelador de aspectos do processo de constituição do sujeito como escrevente e é para este fim que ele é concebido nesta pesquisa. Além de revelar o diálogo com a oralidade, tais episódios mostram o diálogo com a própria escrita, ou seja, a escrita da criança em movimento: ela transporta para o início da palavra (rrei, rrainha, rreino e rraio) um recurso gráfico próprio do meio da palavra, revelando que foi tocada por um aspecto ortográfico do português brasileiro. Neste momento, torna-se pertinente retomar o que Cláudia Lemos (1998) diz sobre a ortografia na escrita infantil. A visão e a percepção estão atuantes no momento da escrita, mas este fazer é atravessado pelos movimentos da linguagem e provoca mudanças das mais diversas ordens. O que emerge na escrita da criança por conta de seu diálogo com a oralidade gera, pois, um estranhamento não só devido à divergência na
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ortografia das palavras rreino, rrei, rrainha e rraio, mas também devido ao caráter de fixidez, de imobilidade que a escrita produz. Deste modo, acredito que o diálogo na escrita da criança deva ser concebido como um indício do submetimento da criança ao funcionamento linguístico-discursivo e também como evidência da maneira particular com que os sujeitos transitam pela ortografia. Particular no sentido de que, a fixidez não pode ser tomada como regra para todos os textos que apresentam indícios do diálogo com a oralidade. O texto de C. aponta para uma regularidade – a recorrência de um erro – e ao mesmo tempo aponta para a instabilidade do processo de aquisição da escrita. Acredito que a instabilidade ocorre devido às constantes rupturas com a escrita do adulto, já cristalizada e relativamente estável. Neste sentido, a ortografia na escrita da criança é muito menos incólume do que na escrita do adulto. A respeito da relação oralidade/escrita no texto de C. devo esclarecer que rreino, rrei, rrainha e rraio poderiam apontar para um simulacro: o de que a escrita é representação da oralidade. No entanto, assumo que a escrita da criança é geradora de efeitos e um deles pode ser justamente o efeito de representação. Neste sentido, tomar este dado como evidência de representação do oral no escrito seria deixar-se levar pelo efeito que ele gerou o que impossibilita o pesquisador de enxergar o processo de aquisição da escrita em sua ordem particular. Conclusão Os indícios do diálogo podem ser concebidos de modo a ressaltar aspectos da relação sujeito/linguagem. Aspectos como o da derivação morfológica divergente podem ser vistos como indício do diálogo com os sentidos de outras palavras e como reveladores de que a criança não está alheia aos fatos da língua, ou seja, há certa afetação no que se refere ao funcionamento da língua constituída. As marcas de reformulação foram consideradas nesta pesquisa como um indício do diálogo da criança com o próprio texto. Este indício foi concebido como revelador do momento em que a criança toma distância do próprio texto e é afetada por ele. O próprio texto funcionou como uma instância da língua constituída. Neste sentido, o indício do diálogo com o próprio texto pode ser lugar que demonstra uma mudança na
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posição da criança em relação ao funcionamento da escrita, em analogia ao que acontece com as três posições descritas por Lemos (2002) para a aquisição da oralidade, mudança esta que encaminha o sujeito para o funcionamento convencional. No caso dos indícios do diálogo com a oralidade também vimos que ele pode revelar aspectos do processo de constituição do sujeito como escrevente. Os indícios do diálogo com a oralidade foram concebidos como uma dentre as várias possibilidades de emergência abertas pelo funcionamento linguístico. Neste sentido, há um canal aberto para o funcionamento da fala na escrita e da escrita na fala, mas não é possível delimitar uma e outra coisa. A relação entre as duas modalidades de linguagem tem caráter de penetrância, de possibilidades de emergência sempre latentes. Referências LEMOS, C. T. G. Sobre a aquisição da escrita: algumas questões. In: ROJO, R. (org) Alfabetização e Letramento. Campinas: Mercado das Letras, p.13-31, 1998. __________ Das Vicissitudes da Fala da Criança e de sua Investigação. Cadernos de Estudos Lingüísticos, n.42, 2002, p. 41-69. LIER-DE VITTO, M. F. e ANDRADE, L. Considerações sobre a interpretação de escritas sintomáticas de crianças. Revista Estilos da Clínica (no prelo), 2008.
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OS NOVOS LET RAMENTOS NA FO RMA ÇÃO DE PROFESSORES DO CURSO DE LET RAS UNICE NTR O - GUARA PUAVA Roziane Keila Grando (UNICENTRO) 1 In tr odução
O Curso de Letras Português e suas Literaturas da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO)- Campus Santa Cruz- busca formar alunos capazes de utilizar de forma crítica as diversas linguagens, especialmente a verbal, em situações oral e escrita; assim como, pretende formar um profissional capaz de refletir teoricamente sobre a linguagem, acompanhar o emprego das novas tecnologias compreendendo sua formação profissional como um processo contínuo e permanente1. Para tanto, é necessário pensar em novas estratégias metodológicas para que haja de fato estas outras possibilidades de aprendizagem. A partir da implantação do currículo de 2010, é possível a utilização no ensino presencial de 20% de aulas da disciplina a distância, nas quais o apoio é feito por meio do ambiente virtual de ensino e aprendizagem (AVEA2). Além disso, a partir da implantação do currículo 2010, a disciplina intitulada “Laboratório de leitura e produção de textos” faz parte da grade curricular do curso. Tal disciplina tem por objetivo a prática de leitura e escrita de textos acadêmicos e não acadêmicos. Diante do cenário apresentado, percebemos a possibilidade de ofertar a referida disciplina com a disponibilidade dos 20% a distância, no sentido de desenvolver metodologias que permitam aos alunos envolvidos o contato com as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Tendo em vista estes espaços de interação, neste caso o moodle (ambiente virtual de ensino aprendizagem), este trabalho teve como objetivo desenvolver metodologias que possibilitassem aos alunos envolvidos na disciplina de Laboratório de leitura e produção de textos, do curso de Letras Português e Literaturas de Língua 1
Informações obtidas por meio do Projeto Político Pedagógico do curso de letras UNICENTRO Guarapuava, 2010, p. 35 e 36; doravante denominado PPP –DELET-Guarapuava, 2010. 2 A Unicentro utiliza o Moodle (Modular Object-Oriented Dynamic Lear ning Environment) como Ambiente virtual de Ensino- Aprendizagem.
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Portuguesa - UNICENTRO, o contato com as TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação), em especial, com a linguagem hipertextual. Para tanto, a pesquisa foi ancorada em autores da teoria do letramento e da linguística textual, tais como: Street (1999), Kress (1997; 2003), Signorini (2012); Marcushi e Xavier (2004) e Koch (2009). A organização deste artigo está na seguinte forma: na seção 2 apresentaremos algumas discussões acerca do letramento digital e da questão da multimodalidade; na seção seguinte explanaremos sobre o planejamento e a criação da disciplina on-line e, em seguida, apresentaremos uma análise interpretativa dos das atividades e participações dos alunos no ambiente virtual de Ensino- aprendizagem (AVEA). 2 O letr amento digital e a mult imodalid ade no amb iente digital Signorini (2012) discute a questão dos letramentos próprios de ambientes multi e hipermidiáticos, os chamados de novos letramentos. A autora ressalta dois aspectos importantes: o caráter disruptivo das práticas de uso da língua envolvidas nesses ambientes, e também, das necessidades e oportunidades criadas simultaneamente para tais práticas sem que, se possa separar uma coisa da outra. Para a autora os letramentos multi-hipermidiáticos são compreendidos como “conjuntos de práticas socioculturais caracterizadas pelo uso de linguagens multimodais (verbais, visuais, sonoras) associadas à hipermodalidade, ou mídia, aos recursos de design e navegação próprios dos ambientes de hipermídia, plugados ou não às redes computacionais” (SIGNORINI, 2012, p. 283). Falar dos multiletramentos, na esteira com Signiorini (2012), significa compreender que, além de plurais, essas práticas são contextualmente variáveis, envolvem mídia eletrônica e as chamadas TIC, que dão à hipermídia um caráter híbrido interativo, não linear e metamórfico, isto é, linguagens multimidiáticas em arquiteturas hipertextuais. Estas, portanto, são práticas em transformação acelerada, não podendo ser entendidas como “práticas reduzidas a um conjunto específico e acabado de conteúdos, saberes ou habilidades, nos moldes das práticas escolares estabelecidas”. (SIGNORINI, 2012, p. 284)
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Conforme Kress (1997) citado por Street (2012), não estamos mais falando da linguagem no sentido bem tradicional de gramática, mas sim de práticas sociais ligadas à construção, aos usos e aos significados do letramento no contexto virtual. Por isso, ao se desenvolver uma abordagem de multiletramentos é importante evitar o determinismo do canal ou da tecnologia, em que se considera o letramento visual por si mesmo. Para Street (2012) devemos entender que as práticas sociais atribuem significados e conduzem os efeitos e não o canal em si mesmo. O sentido de linguagem abarcado no que se entende pelos novos letramentos compreende um amplo sistema semiótico, no qual são combinados signos, símbolos, imagens, palavras e os sons. Kress (2003), inscrito na teoria da semiótica social, entende que com a era digital, a visão de letramento acerca da leitura e escrita estão mudando da página para a tela. Nesse sentido, Kress (2003) discute os efeitos das mudanças sociais, econômicas e tecnológicas para o futuro do letramento. Esses efeitos mostram a tela como o meio dominante de comunicação que produz mudanças nas relações de poder, não somente na esfera da comunicação. O autor ressalta que jornais, revistas, livros, cartazes publicitários, e sobretudo, as webpages, envolvem uma complexa inter-relação entre o texto escrito, imagens e outros elementos gráficos, que juntos, combinam um design visual, o chamado layout. Para tanto o autor traz o conceito da “multimodalidade” a qual é necessária para interpretar o significado construído por esses textos em sua totalidade, já que a diagramação de layouts reproduz um determinado sistema de convenções sociais, construindo, assim, significados específicos. 3 Cr iação e plan ejam ento da disciplin a par a o AVEA Nestes primeiros dias do projeto, fizemos uma matriz de como seria constituída a disciplina, em especial, focamos na produção de atividades e leituras para a ambientação do aluno com relação ao ambiente virtual, já que, muitas vezes trata-se de um primeiro contato com o AVEA. Nesta etapa também se compreendeu a produção do layout de apresentação da disciplina, conforme pode ser observado na figura (1):
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Figura (1)- Layout de apresentação e a apresentação da disciplina. Fonte: moodle disciplina laboratório de leitura e produção o textual. Disponível em: http://moodle.unicentro.br/moodle/course/view.php?id=21101. Acesso em 16 de março de 2013.
Observando a figura (1), na apresentação da disciplina, escolhemos abrir um fórum tira-dúvidas para que os alunos interagissem uns com os outros e também com o professor a fim de entender o funcionamento da disciplina on-line. Num primeiro momento fizemos um teste de funcionamento do fórum. É interessante destacar que todos os alunos participaram e inclusive, para as atividades seguintes, já utilizaram esta ferramenta para sanar as dúvidas com relação à postagem das atividades no AVEA. É o que podemos perceber com a figura (2).
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Figura (2) : testando o fórum tira dúvidas. Fonte: AVEA disciplina de laboratório. Disponível em: http://moodle.unicentro.br/moodle/mod/forum/view.php?id=131171. Acesso em: 16 de março de 2014.
Com relação a este contato com a linguagem hipertextual, recorremos a Koch (2009) a qual explicita sobre a interação que acontece no momento da leitura: [...] os parceiros da comunicação possuem saberes acumulados quanto aos diversos tipos de atividades da vida social, têm conhecimentos representados na memória que necessitam ser ativados para que sua atividade seja coroada de sucesso. Assim, eles já trazem para a situação comunicativa determinadas expectativas e ativam dados conhecimentos e experiências quando da motivação e do estabelecimento de metas, em todas as fases preparatórias da construção textual, não apenas na tentativa de traduzir seu projeto em signos verbais [...], mas certamente também por ocasião da atividade da compreensão de textos.” (KOCH, 2009, p.21)
Neste momento de levar o aluno a compreender o funcionamento da linguagem hipertextual, percebemos que eles recorreram aos conhecimentos que já tinham – linguísticos e de mundo- para interagir com os textos no ambiente virtual. Outras formas de contato com a linguagem hipertextual que propomos, por meio do ambiente, foi o envio de mensagem para os participantes (interação entre os participantes da disciplina, inclusive o professor), bem como, o preenchimento do perfil do usuário.
3.1 O Pré -test e da disciplin a Para levar o aluno a compreender como a disciplina está constituída no AVEA e como funciona o mecanismo de postagem de atividades no ambiente, desenvolvemos para o pré-teste o fórum tira-dúvidas- já representado pela figura (2). Na sequência, sentimos a necessidade de aliar o conteúdo programático da disciplina aos primeiros dias de aula, os quais envolvem a adaptação da turma em si, entre os colegas, assim como com o próprio ambiente virtual. Para tanto, recorremos à disponibilização de links ao material de apoio do conteúdo ministrado, assim como, aos textos multimodais que em sua estrutura trabalham com a construção do sentido verbal e não verbal.
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Figura (3) : as atividades em contato com a linguagem hipertextual e os textos multimodais. Fonte: Disponível em: http://moodle.unicentro.br/moodle/course/view.php?id=21101. Acesso em 15 de março de 2014.
A escrita hipertextual situada no ciberespaço, ou seja, num ambiente virtual em rede está interligada mundialmente pela internet. Essa espacialidade topográfica segundo Koch (2009) compreende um espaço de escrita e leitura sem limites definidos, não hierárquico, nem tópico. O que não ocorre no impresso onde seus limites são definidos por páginas, capítulos, tópicos.
O ciberespaço permite a utilização de
recursos hipermidiáticos como imagens, vídeos e outros, tornando a leitura do aluno mais dinâmica e atrativa ao mesmo tempo em que exige da figura do leitor uma mudança na condição passiva, pois é necessário “clicar” para, de forma dialógica, mergulhar na trama do hipertexto. É neste momento da escolha dos clicks que o aluno tem a possibilidade de entrar em contato com a linguagem hipertextual no ambiente, pois tem a opção clicar em um dos links disponíveis na plataforma, conforme percebese na figura (3). Outro momento para o pré-teste da disciplina foi colocar os alunos em contato com o fórum de discussão referente à uma atividade da disciplina. A escolha por esta ferramenta se deu, porque conforme Grassi e Silva (2010), nos fóruns de discussão todos os participantes possuem acesso às mensagens trocadas pelo grande grupo. Dessa forma, os interlocutores podem assumir posturas ativas no processo de interação. Como podemos observar na figura (4) o processo de interação entre os participantes do curso
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está acontecendo e com isso, o aluno está aprendendo a interagir por meio da linguagem hipertextual.
Figura (4) : Fórum de discussão – linguagem verbal x não verbal. Fonte: Disponível em << http://moodle.unicentro.br/moodle/mod/forum/view.php?id=131181> acesso em 14 de março de 2014.
Por último, como teste para adaptação dos alunos ao ambiente, propomos uma atividade que consistiu na apresentação do aluno no formato do power point, intitulada “conheça-me”. Nesta atividade os alunos responderam a algumas perguntas por meio de imagens. Perguntas como: fulano(a) mora em?; fulano(a) adora?; Como aluno (a), seu tópico predileto é ?; Sua relação com as TIC é?. Nesta atividade, buscamos fazer com que o aluno produzisse um texto não-verbal na sua apresentação. Esta atividade permitiu ao aluno a produção de uma texto que o coloca em contato com as múltiplas formas de letramento, as quais estão associadas a canais ou modos de com o computador e o letramento visual. Conforme Kress (1997), o letramento visual, entendido como multiletramento, sinaliza um novo mundo, em que as práticas de letramento envolvendo leitura e escrita são apenas partes do que as pessoas terão de aprender a fim de serem “letradas”. Observemos a figura (5):
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Figura (5) – postagem dos alunos da atividade “conheça-me”. Fonte: Disponível em << http://moodle.unicentro.br/moodle/mod/assignment/submissions.php?id=131182>> acesso em 14 de março de 2014.
Com base na figura (5) podemos verificar que a experiência em ensinar os alunos a carregar os arquivos no ambiente virtual, para o envio das atividades, foi bastante produtiva, pois também, os inseriu num contato com o que Kress (1997) chama de letramento visual. Isso porque eles tiveram que aprender a entender sobre a extensão dos arquivos e o que o moodle aceita enquanto capacidade de upload. Para Kress (1997) os alunos, nesses contatos, aprendem a lidar com ícones e símbolos, como o pacote word for windows com todas as suas combinações de signos, símbolos, limites, fotos, palavras, textos, imagens, etc. Consideraç ões finai s Considerando a questão dos novos letramentos e a questão da multimodalidade, fica nítida a necessidade de uma inserção mais esclarecida dos formadores e formandos em letras a fim de contribuir para uma melhor qualificação desses futuros profissionais que enfrentarão (ou já enfrentam enquanto educadores) o desafio de levar seus alunos a se apropriarem desses letramentos enquanto cidadãos. Por fim, com estes resultados, ainda que parciais, evidenciamos que a escolha de trabalhar com a linguagem hipertextual na disciplina de laboratório de leitura e
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produção textual, como se pode perceber, permite(irá) a estes alunos, enquanto indivíduos e grupos a capacidade de fazer ligações mais proveitosas entre linguagem, saber e poder, não sendo apenas meros consumidores de produtos tecnológicos. Refer ências GRASSI1, Daiane; SILVA, Janile Moiano. A mediação pedagógica em fóruns de discussão nos cursos virtuais. In: CINTED-UFRGS: Novas Tecnologias na Educação, V. 8 Nº 1, EAD, 2010. GIL, A. C. Como Elabor ar Projetos de Pesquisa. São Paulo: Atlas, 2010. KRESS, G. Before writing: rethinking the paths to literacy. Londres: Routledge, 1997. ______. Litera cy in the new media age. Londres/Nova York: Routledge, 2003. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Introdução à lingüística textual: trajetória e grandes temas, 2ª. ed. – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2009. MARCUSCHI, L. A. & XAVIER, A C., Hipertexto e gêneros digitais. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. SIGNORINI, Inês. Letramentos multi-hipermidiáticos e formação de professores de língua. In: Ensino de Língua: das reformas, das inquietações e dos desafios. Inês Signorini e Raquel Salek Fiad (orgs) . Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. STREET, Brian. Eventos de letramento e práticas de letramento: teoria e prática nos Novos estudos do Letramento. In: Discursos e práticas de letramento: pesquisa etnográficae formação de professores. Izabel Magalhães (org). Campinas, SP: Mercado das letras, 2012.
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ESCOLA INCLUSIVA: NA TEORIA E/OU NA PRÁTICA OLIVEIRA, Ruth dos Santos Barros de 1 [email protected]
INTRODUÇÃO Este artigo centra-se na discussão sobre o tema inclusão escolar, enfatizando, essencialmente, os discentes com surdez: “a perda bilateral, parcial ou total” ou surdez, pois foi a temática que nos despertou interesse devido à inquietude gerada após presenciar e observar situações não condizentes com o pleno exercício e processo inclusivo, visando tecer contribuições discursivas e práticas enriquecedoras no âmbito da educação inclusiva. Algumas metas foram inseridas neste artigo com o intuito de: propor sugestões que resultem no aprimoramento do processo de inclusão educacional; endossar as teorias propostas por diversos pesquisadores deste tema; ativar a “memória discursiva e social”; requerer urgência na implementação e vigência do Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002 lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, também nos níveis da Educação Infantil e da Educação Básica nas instituições estaduais de ensino. Desse modo, este artigo justifica-se por sua relevância sociocultural, pois acreditamos que práticas discursivas, como discursos oficiais, geram possibilidades de inibição de práticas socioculturais excludentes, inseridas em ambientes denominados inclusivos. Em outras palavras, a partir do momento em que se “integram” estudantes surdos em um ambiente projetado para ensinar estudantes ouvintes, sem que haja “adaptações” necessárias para que seja possível estabelecer um proveitoso processo de ensino e de aprendizagem, esse ambiente acaba gerando conflitos recíprocos tanto do/no estudante, quanto dos/nos participantes da unidade escolar. Desse modo, foi elaborado um questionário (pesquisa de campo) contendo vinte interrogativas relacionadas ao processo de inclusão escolar, o qual foi entregue a todos os profissionais da educação: diretores; coordenadores; inspetores; professores; intérpretes e administrativos; pois, todos estes mantém contato direta ou indiretamente com os alunos(as) inclusos. Dessa maneira, foi efetuada uma pesquisa de campo, que foi transformada em números para que pudéssemos quantificar percentualmente, em termos locais, a opinião dos profissionais 1
Pós-Graduada em Educação Especial e Educação Inclusiva FACINTER. Artigo apresentado como Trabalho de Conclusão de Curso, no Curso de Educação Especial e Educação Inclusiva da Faculdade Internacional de Curitiba. FACINTER, 6 – 2013.
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da educação sobre a implantação da disciplina de Libras no Referencial Curricular e sobre o processo de “integração” no setor educacional, evidenciando algumas situações-problema manifestadas por intermédio do questionário aplicado.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Este trabalho, fruto de pesquisas, leituras e análises calcadas no legado teórico de Michel Foucault, tem como meta principal “desvendar” interpretações a partir das reflexões foucautianas, numa contribuição aos estudos linguísticos, essencialmente na direção da Análise de Discurso de linha francesa (AD). Ancoramos nossas análises definindo discurso como “um conjunto de enunciados que tem seus princípios de regularidade em uma mesma formação discursiva”, Foucault (1971, p. 122) considera que essa formação discursiva consiste na descrição dos enunciados que a compõem, historicamente determinados. Articulamos a noção de acontecimento, isto é, o ponto de convergência entre uma atualidade e uma memória, (Pêcheux, 1997), e limite por observar algumas mudanças: o acontecimento. Em A ordem do discurso, Foucault (1971, p. 9) desenvolve a ideia de que nossa civilização, apesar de venerar o discurso, tem por ele certo temor, de que derivam os sistemas de controle, para dominar-lhe a proliferação. Desse modo, a produção do discurso é, ao mesmo tempo “controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”,
todos esses entremeios do discurso são
notórios, na sociedade, nos
procedimentos de exclusão e da proibição de certos direitos. Para analisar o processo discursivo instaurado, baseamo-nos também nos seguintes conceitos: memória discursiva, formulada por Foucault (1971) e acontecimento linguístico, estabelecido por Possenti (1993). Sobre o conceito de memória discursiva Foucault expõe que pode suspeita-se que há nas sociedades, de um modo muito regular, uma espécie de desnível entre os discursos; os discursos que “se dizem” ao correr dos dias e das relações, discursos que se esquecem no próprio ato que lhes deu origem; e os discursos que estão na origem de um certo número de novos atos de fala, atos que retomam, os transformam ou falam deles, numa palavra, os discursos que, indefinidamente, e para além da sua formulação, são ditos, ficam ditos, e estão ainda por dizer (1971:24).
Esse conceito nos faz refletir sobre a necessidade de ter sempre que reivindicar os direitos por meio de novos atos de fala para que tais direitos não sejam esquecidos ou deletados da
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memória social, pois, dessa forma, pode-se romper o espaço social da memória, que é tão implacável com o que não lhe convém ou com o que não lhe faz severas e incansáveis requisições. Assim, as instituições sociais que lutam por defender e aplicar os direitos inclusivos das pessoas com surdez precisam, sempre que possível, retomar, transforma, citar, isto é, trazer esses discursos à tona, até que incomodem a sociedade a ponto de fazê-los agir e, mais do que isso, incluir este “acontecimento” no rol dos temas que têm duração permanente no espaço da “memória histórica”. Já sobre o conceito de acontecimento linguístico, Possenti (1993:201) observa que “o discurso é um acontecimento, ou seja, não é previsível nem necessário. Não é da ordem da estrutura, mas da materialidade, é um fato que acontece”. Em outro discurso, é a ocorrência de um fato que por um período de curto, médio ou longo, impactou toda uma sociedade, que por sua vez, o transformou em discurso escrito para que, quando necessário, seja ativado. Foi exatamente o que fizemos, ativamos o discurso oficial, evocamos
vozes
de
autores
conceituados
no
paradigma dos estudos linguísticos e consultamos os profissionais da educação, no intuito de construir o perfil educacional e social da Escola Estadual Afonso Pena, que também não deixa de transparecer o reflexo do perfil da nação brasileira.
MEMÓRIA HISTÓRICA Sobre o aparato histórico que remonta a este tema, torna-se necessário um breve histórico sobre o atendimento educacional dispensado às pessoas consideradas “diferentes” das demais, isto é, da relação sociedade e deficiência. É de conhecimento geral, dos estudiosos deste assunto que, para que a sociedade alcançasse o “status” de sociedade inclusiva alguns acontecimentos marcaram a história desse progresso. De acordo com os pesquisadores (Brasil, 2000; Bueno, 1993 apud Fernandes), é possível classificar quatro períodos evolutivos quanto à inclusão social, sendo eles: extermínio; segregação/institucionalização; integração e inclusão. O período de extermínio teve início na Antiguidade, associado as mais antigas civilizações e se estendeu até a queda do Império Romano do Ocidente, no século V. Neste período as pessoas portadoras de deficiência eram condenadas à morte, Engels, citado por Fernandes (2011). As mudanças ocorridas nas estruturas e relações sociais na Idade Média ocasionou o surgimento de questões relacionadas ao tratamento dispensado às pessoas portadoras de deficiências. Nesse contexto, ancorada nos preceitos cristãos surge, em meados do século XVI, "as
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primeiras iniciativas de proteção com a criação de asilos e abrigos de assistência a pessoas com deficiência". Esse movimento histórico foi denominado de período de segregação, "que tinha o objetivo de enclausurar aqueles que não se encaixavam nos padrões de normalidade". Neste período foram criadas instituições especializadas que se responsabilizavam em adequá-los aos padrões da sociedade. A partir da década de 1960, vários movimentos sociais emergentes calcados nos direitos humanos reservados a grupos minoritários e segregados historicamente, influenciaram o surgimento do terceiro período que visava o processo inclusivo, sendo ele, o processo de integração, no qual "caracterizava os movimentos de defesa de direitos de pessoas com deficiência na ocupação de diferentes espaços na vida social". O destaque neste período deve ao fato de que, inúmeras práticas terapêuticas foram aplicadas em pessoas com deficiência auditiva ou surdez, ao "tentar" fazerem-nos falar e ouvir, isto é, o uso do método oral. O processo de integração mostrou que, naquela época, eram poucos os recursos destinados para auxiliar pessoas com deficiência. Dessa maneira, sem alcançar um de seus objetivos que era fazer pessoas surdas, falar e ouvir, concluíram que incluir essas pessoas no ensino regular era uma medida que exigiria muito empenho por parte da sociedade, mas que não deixaria de ser uma forma de adequá-los aos padrões sociais; e assim o fizeram. Nas décadas de 1960 e 1970, surgiu o quarto período, classificado como movimento de inclusão. Seus defensores apoiavam-se nos princípios de igualdade e equiparação de oportunidades de educação. Isto posto é possível inferir que destes quatro períodos citados, o movimento de inclusão é, sem dúvida, o mais almejado e o que “vigora” na sociedade do século XXI; mas ainda necessita de alguns ajustes, porém, é o período que melhor atende às normas prescritas pela sociedade vigente. Nesse contexto, analisaremos, inicialmente, a posição dos discursos oficiais e, posteriormente, o parecer dos Profissionais de Educação, da Escola Estadual Afonso Pena, situada na cidade de Três Lagoas/MS, a respeito da evolução do processo inclusivo neste ambiente.
DISCUSSÃO E ANÁLISE DOS DADOS Elegemos o conceito de surdez definido pelo Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, por estar mais adequado à nossa pesquisa. Para os fins deste Decreto, “considera-se pessoa surda àquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais – Libras”. O capítulo II do Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005 trata, resumidamente,
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sobre a inclusão de Libras como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior; nos cursos de Fonoaudiologia, Pedagogia, Educação Especial, e sobre a inclusão desta disciplina de forma optativa nos cursos de educação superior e na educação profissional. O capítulo subsequente dispõe, em síntese, sobre a formação do professor de Libras e do instrutor de Libras e esclarece que essa formação de docentes para o ensino de Libras deve ser realizada em nível superior em curso de graduação de licenciatura plena em Letras/Libras ou em Libras/Língua Portuguesa. O assunto que se destaca no capítulo III é o § 2º, no qual é exposto que a partir de um ano da publicação deste Decreto, “os sistemas e as instituições de ensino da educação básica e as de educação superior devem incluir o professor de Libras em seu quadro do magistério”. Já o capítulo IV afirma que As instituições federais de ensino devem garantir, obrigatoriamente, às pessoas surdas acesso à comunicação, à informação e à educação nos processos seletivos, nas atividades e nos conteúdos curriculares desenvolvidos em todos os níveis, etapas e modalidades de educação, desde a educação infantil até à superior.
Ainda neste capítulo, notamos mais benefícios ainda pendentes no ambiente escolar em questão, e que o § 3º, foi aqui mencionado porque embasa fortemente o nosso intento ao propor que: As instituições privadas e as públicas dos sistemas de ensino federal, estadual, municipal e do Distrito Federal buscarão implementar as medidas referidas neste artigo como meio de assegurar atendimento educacional especializado aos alunos surdos ou com deficiência auditiva. (grifo nosso)
Como podemos observar, todos esses benefícios concedidos aos alunos com surdez, aplicados nas instituições federais, ainda não vigoram nas instituições estaduais de ensino; não alcançaram a nossa realidade escolar inclusiva, ocasionando dissabores no processo de aprendizagem dos alunos surdos. Sobre o título deste artigo "Escola inclusiva: na teoria e/ou na prática", de acordo com o dicionário “Houaiss” a conjunção aditiva e, “é utilizada para unir palavras ou orações de mesmo valor sintático como, por exemplo, João e Maria” porém, pode também, enquanto conjunção adversativa, opor uma situação a outra, por exemplo, Ia sair e choveu”; ou, ainda, indicar movimento para fora, por exemplo, emigrar”. Com base no exposto, é possível analisar que em “na teoria e na prática”, o uso da conjunção aditiva e seria adequado se todas as teorias que tratam sobre o tema inclusão procedessem, também, na prática. Já, a utilização da quinta letra do alfabeto, também pode ser impressa como conjunção adversativa, para “opor uma situação a outra”, ou seja, opor teoria e
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prática, inferindo o “sentido” de que a inclusão é eficaz na teoria, mas não na prática. Da análise destas três supostas adequações para a utilização da vogal e, a que mais causou impacto foi a suposição de que esta vogal pode assumir o papel de exclusão, de “movimento para fora”, isto é, que algumas teorias discursivas podem, muita das vezes, não serem correspondentes com as práticas pedagógicas. Assim, o conectivo e que supõe a ideia de soma, inclusão, não pode, ainda, ser utilizado isoladamente, sem o auxílio do ou, “e/ou” porque, na prática, esta equivalência linguística ainda não está embutida no processo escolar inclusivo. Neste contexto, faremos nos parágrafos seguintes uma análise minuciosa de alguns dados fornecidos pelos profissionais para que pudéssemos “construir” ou “desconstruir” para “reconstruir” o perfil da Escola Estadual Afonso Pena (E.E.A.P) no que se refere ao processo inclusivo. Analisando essas e outras “materialidades discursivas”, nos propusemos a efetuar uma coleta de dados, que foi aplicada em quarenta (40) profissionais atuantes na escola pesquisada, a fim de construirmos o “perfil” da (E.E.A.P). Todavia, já era esperada a ausência de veracidade nas respostas atribuídas para algumas questões, haja vista que nem todos são/estão preparados para “assumir posições” como, por exemplo, admitir que não sabem Libras e que não se comunicam com os alunos(as) surdos. Por isso, nesta pesquisa, a opção “mais ou menos, referente à pergunta: “Você sabe Libras?”, foi acrescentada justamente para amenizar o “não” para esta mesma interrogativa. Assim, o “mais ou menos” adquiriu equivalência de “não”. Dessa forma, foi possível distinguir o “todo” em dois grupos, sendo eles: os que afirmaram saber Libras (grupo A - 20%); e os que afirmaram saber Libras “mais ou menos”, isto é, não saber Libras (grupo B). No que se refere sobre o grupo A, que marcaram a opção “sim” para a questão citada acima foi, coincidentemente, os profissionais que atuam como intérprete de Libras, mais uma integrante que, atualmente, participa de curso de Libras. Já sobre o grupo B, formado por profissionais que, na prática, não sabem Libras somaram 80% dos pesquisados. Sendo que, a justificativa para este quesito foi, em geral, a “falta de tempo”, devido a carga horária de trabalho ser, na maioria, quarenta horas-aulas mensais. Coube o total de 78,12% aos pesquisados do grupo B que nunca participaram de Curso de Libras e 21,88% o total de profissionais que já participaram de curso de Libras. Uma característica marcante é que, “quando é necessário estabelecer comunicação com os alunos(as) surdos” este grupo precisa da participação de intérprete de Libras. É importante salientar que, esse baixo percentual de profissionais que já participaram de curso de Libras afirmaram interagir com os alunos(as), mas que, também, necessitam de intérprete de Libras para auxiliá-los porque a falta de atuação na área de Libras os fizeram esquecer de muitos sinais, o que acaba bloqueando sua
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comunicação direta com os estudantes com surdez. A pergunta destinada sobre o processo de comunicação entre os alunos(as) surdos e os alunos(as) ouvintes foi, de forma geral, que alguns ouvintes sabem outros tentam, mesmo que por meio de “mímicas”, se comunicar com o surdo. Desse modo, entendemos que uma pequena parte dos discentes ouvintes querem aprender a se comunicar, em Libras, com os surdos. É neste ponto que esta pesquisa parte do princípio de que, a inserção da disciplina de Libras no Referencial Curricular também nas redes estaduais de ensino causará, em sua plenitude, a vigência do processo inclusivo nesta instituição de ensino. Quanto à questão “O que acontece na ausência do intérprete em sala de aula?”, houve, como em outras vezes, uma unificação do grupo A com grupo B, pois alguns professores, assim como alguns intérpretes, exatamente 12,5% afirmaram, categoricamente, que nesse intervalo “o aluno surdo apenas copia matéria da lousa/livro até o/a intérprete chegar”. Apesar de ser uma pequena porcentagem, é possível inferir que em algumas salas/aulas o aluno surdo é excluído do processo interpessoal e do processo de aprendizagem, tanto na presença do intérprete, pois ocorre comunicação apenas e exclusivamente entre ambos; quanto na ausência deste profissional, sem que haja o auxílio nem por parte dos professores, tampouco por parte dos demais alunos(as). Entretanto, observou-se também que nas demais salas/aulas, na ausência do intermediador, o aluno surdo recebe auxílio tanto dos professores quanto
dos demais alunos(as),
proporcionando um espaço em que o processo inclusivo deixe de ser um “processo”, algo que está em desenvolvimento, e configure-se em vigência inclusiva. O “sim” foi uníssono quanto à questão: “Você considera esta escola inclusiva?”. No entanto, foi detectado que os léxicos “integrar” e “incluir”, para os pesquisados, são tidos como “sinônimos”, de mesmo valor semântico. De acordo com Fernandes apud Mantoan (2004, p. 39) há uma distinção relevante entre ambos. Para esta autora A inclusão é produto de uma educação plural, democrática e transgressora. Ela provoca uma crise escolar, ou melhor, uma crise de identidade institucional que, por sua vez, abala a identidade dos professores e faz com que a identidade do aluno se revista de novo significado. O aluno da escola inclusiva é outro sujeito, sem identidade fixada em modelos ideais, permanente, essenciais.
A nossa objeção quanto a citação: “o aluno da escola inclusiva é outro sujeito, sem identidade fixada em modelos ideais, permanentes, essenciais”, incidiu porque
esse “outro
sujeito/aluno” só apresenta essas características, ou melhor, só não apresentam essas características, essa identidade sólida porque este mesmo aluno não pertence a uma escola
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inclusiva, mas, em contraposição, participa de uma escola integrativa, onde “a escola não muda como um todo, mas os alunos inclusos têm que se adequarem ao sistema de ensino vigente, projetada para o “oralismo”. Das vinte questões elaboradas apenas sete nos despertaram interesse, pois estas foram suficientes para a elaboração do “perfil” escolar relacionado ao processo de educação inclusiva. As demais interrogativas serviram como pano de fundo para a nossa pesquisa. Cabe esclarecer que 14 discentes surdos estão matriculados na Escola Estadual Afonso Pena, e que desde o ano de 2002, essa escola é referência, também, por “integrar” discentes com Necessidades Educacionais Especiais. Nosso objetivo é, também, contribuir para que este processo de “integração” seja transformado em um processo plenamente inclusivo. Outro percentual que nos chamou a atenção para os fatos, foi a soma total dos pesquisados que têm opiniões relativamente iguais quando a questão abordou sobre “a quantidade de alunos(as) ouvintes que sabem ou tentam se comunicar com os alunos surdos, referindo-se aos 840 estudantes matriculados, somando os períodos matutino e vespertino”. O percentual de 75% apontado pela pesquisa mostrou que dentre os 840 discentes matriculados, a quantidade de alunos(as) ouvintes que tentam ou participam ativamente deste processo inclusivo é variável entre 1-65. Pontuamos, também, que 25% acreditam que essa quantidade é bem maior, variante entre 100-299.
NA CERTEZA DE QUE SURJAM “NOVOS” DISCURSOS... A Declaração de Jomtien (Unesco, 1990) – proclamado na Conferência Mundial de Educação para Todos, na Tailândia, o documento reafirma a educação como um direito de todos, destacando-se como elemento determinante no desenvolvimento social, econômico e cultural, contribuindo para a tolerância e a cooperação internacional. A Declaração de Salamanca (Brasil, 1994) – Documento oriundo da Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais Especiais, realizada na Espanha, no qual se acordou a união de esforços em defesa de uma escola única para todas as crianças, independentemente de suas diferenças individuais. A Convenção de Guatemala – transformada no Decreto nº 3.956/2001, o documento reafirma os direitos humanos e as liberdades fundamentais de pessoas com deficiência, sobretudo o direito de não serem submetidas à discriminação com base na sua deficiência. O Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que dispõe sobre a Língua
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Brasileira de Sinais – Libras, todos esses e outros documentos históricos fizeram grandes contribuições ao elucidar e priorizar o tema “inclusão social”. Todos esses “acontecimentos históricos” impactaram a sociedade com tamanha dimensão e importância que penetraram o núcleo da “memória social” e deve lá permanecer até que todos tenham direito à igualdade e à diferença. Para isso, é necessária uma mudança de paradigmas nas atitudes, nas abordagens e nas práticas pedagógicas relacionadas às pessoas com deficiência. É imprescindível, também, que eles sejam vistos como sujeitos de direitos, capazes não só de exigir esses direitos, mas de tomas decisões como membros ativos na sociedade. É necessário esclarecer que não se pretendeu neste trabalho encontrar os “desníveis” do discurso a fim de elencar características negativas ou construir um perfil “deformado”. O que se pretendeu aqui foi analisar as “materialidades discursivas” à vista, com o intuito de “desvendar os segredos do texto”, pois só assim é que, consequentemente, pudemos desvendar a riqueza de informações articulada nesse discurso oficial, que é assegurar e fazer cumprir todos os direitos referentes ao processo de inclusão social. Neste contexto, avaliamos que os profissionais atuantes na escola em questão, acreditam trabalhar em uma escola inclusiva, porque esta unidade escolar efetua matriculas para os discentes que apresentem ou não necessidades educacionais especiais. Na visão desse grupo, essa escola cumpre, a rigor, os métodos requisitados para transformar uma escola integradora em uma escola inclusiva. Mediante aos fatos, os dados revelam que há, ainda, um extenso rol de adaptações que necessitam ser implementadas no processo de ensino e aprendizagem dos alunos com necessidades educacionais especiais, dentre elas: incluir a disciplina de Língua Brasileira de Sinais – Libras no Referencial Curricular, desde a educação infantil até o nível de ensino em que haja necessidade do uso e do ensino de Libras; difundir o uso e o ensino de Libras nas instituições federais e estaduais de ensino; tornar obrigatório o uso e o ensino de Libras, já que esta é a nossa, oficialmente, segunda língua pátria. Dessa forma, acreditamos que, se a disciplina de Libras for inserida nesses contextos haverá um altíssimo percentual positivo a fim de que práticas excludentes sejam sanadas nesses e, consequentemente, em todos os ambientes sociais. Em outras palavras, implementar as medidas referidas no Decreto nº 5.626/2005 como meio de assegurar atendimento educacional especializado aos alunos surdos transformará todas as instituições de ensino classificadas como “integradoras” em instituições de ensino “inclusivas”. Notamos por meio das porcentagens apresentadas a necessidade de que haja certa urgência quanto a implementação das disposições do Decreto em questão nas instituições
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estaduais de ensino, para que a escola em análise continue evoluindo quanto ao movimento inclusivo e atinja, de fato, a denominação a ela já atribuída, de ser considerada uma “escola inclusiva”. Para isso, deve-se ainda apagar todos os vestígios apresentados por instituições consideradas integradoras. Portanto, as dificuldades inclusivas apresentadas na escola analisada, nos impelem a requerer que estas regras sejam estendidas, também, às instituições estaduais de ensino para que esse enriquecimento educacional atinja a nossa realidade escolar. Assim entendido, o poder público abre as portas do “novo mundo”, incentiva e posiciona-se favorável ao processo de inclusão social, ou seja, a garantir os direitos sociais de pessoas com deficiência e, para isso, disponibiliza recursos para a aplicação da lei nas instituições de ensino. Cremos que a implementação desses objetivos propostos pelo discurso oficial conseguirá persuadir a “memória social”, por meio das “práticas pedagógicas”, e sobrepujar a “memória histórica” quanto ao espaço temporal em que práticas inclusivas não eram amparadas pela lei. Propusemo-nos explorar a relevante e ampla contribuição do Decreto nº 5.626/2005 como fundamentação e sustentação dos direitos dispensados às pessoas com deficiência em seu conflituoso processo de inclusão social. E é nesse sentido que se justifica termos optado por leituras como Michel Foucault, Sírio Possenti e Sueli Fernandes: entender e ressaltar a continuidade das propostas e posições da Análise do Discurso frente a este “belo, forte e impávido colosso” movimento social: a inclusão. Nesses últimos meses, a imprensa oficial atualizou a memória discursiva ao veicular todo o processo de adaptações que estão sendo implementadas por serem indispensáveis para receber, no Brasil, pessoas estrangeiras à nossa língua e à nossa cultura. Preocupou-se em contratar pessoas que sabem se comunicar em outros idiomas para que o visitante estrangeiro não se sinta excluído das diversas atividades que serão apresentadas em diferentes estados brasileiros. Notamos, em contrapartida, que nem todos os estados contrataram profissionais qualificados ou se prepararam para receber e estabelecer comunicação com as pessoas surdas. Isso posto, verificamos um constante conflito instaurado entre diferentes formações discursivas e entre determinados momentos da História. Destacamos também que esta pesquisa foi estendida e transformada em um projeto intitulado “Escola inclusiva”, em formato de vídeo, no qual os componentes dessa unidade escolar interpretaram em Libras a música “We are the world”, regravada por músicos brasilienses. O vídeo foi elaborado em homenagem às pessoas com surdez e apresentado na escola no dia 26 de setembro, data em que se comemora o “Dia do surdo”. O vídeo foi postado no
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“Youtube”, no “Facebook”, editado pelo “Jornal do Povo” e pela “TV Concórdia”, com o intuito de difundir a Língua Brasileira de Sinais. Postas em ressalvas essas considerações, algumas questões emergem de nossas reflexões. O que ainda é necessário para que a inclusão deixe de ser um processo em desenvolvimento e passe a ser um processo concluído? Ocupamo-nos, neste artigo, sobre a inclusão educacional, mas, é possível a plena inclusão de pessoas com deficiência em todos os ambientes sociais? Quando a sociedade, em geral, estará instruída e preparada para atendê-los? É em razão dessa investida que este trabalho procurou ser aduzido. Aguardamos outros que tragam luz às nossas reflexões e indagações
REFERÊNCIAS BRASIL. Decreto n.3.956, de 8 de outubro de 2001. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 out. 2001 a. BRASIL. Ministério da Educação. Avaliação para identificação das necessidades educacionais especiais. Brasília: MEC; Seesp, 2002. 103 p. . Declaração de Salamanca. Brasília, 1994. Disponível . Acesso em: 3 mai. 2013.
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BRASIL. Projeto escola viva: garantindo o acesso e permanência de todos os alunos na escola – alunos com necessidades educacionais especiais. Brasília, 2000. v. 1. BUENO, J. G. S. A educação especial na sociedade segregação do aluno diferente. São Paulo: Educ, 1993.
moderna:
integração,
CHARAUDEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004. FERNANDES, Sueli. Fundamentos para educação especial. 2. ed rev. e atual. - Curitiba: Ibpex, 2011. FOUCAULT, Michel. A ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1971. HOUAISS, Antonio. Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Organizado pelo Instituto Houaiss de Lexicografia e Banco de dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. - 2. ed. rev. e aum. - Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. MANTOAN, M. T. E. O direito de ser, sendo diferente, na escola. Ciências e Letras, Porto Alegre, n. 36, p. 47 – 62, dez. 2004. PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento? Campinas: Pontes, 1997. POSSENTI, Sírio. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1993. UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
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Declaração de Jomtien. Tailândia, 1990. Disponível . Acesso em 3 mai. 2013.
em
http://www.youtube.com/watch?v=oalte03vgSQ postado em 26/09/2013 às 10:25. http://www.youtube.com/watch?v=tYnUPcms2iM acesso em 20/10/2013 às 14:35. http://www.jptl.com.br/?pag=ver_noticia&id=62239 acesso em 10/10/2013 às 19:30. https://www.facebook.com/ruth.oliveira.5686322 postado 26/09/13 às 10:40.
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UMA DESCRIÇÃO GEOSSOCIOLINGUÍSTICA DAS VARIANTES PARA A VIBRANTE ALVEOLAR EM CODA SILÁBICA NO OESTE DO PARANÁ Sanimar Busse (UNIOESTE)
Considerações iniciais Este trabalho tem como objetivo, a partir dos princípios teórico-metodológicos da Dialetologia Pluridimensional, realizar a descrição das variantes para a vibrante alveolar, em coda silábica final e no interior da palavra, em dados coletados para a pesquisa sobre o estudo geossociolinguístico da fala do Oeste paranaense. A descrição das variantes e sua distribuição diatópica e sociocultural busca identificar áreas que possam ser caracterizadas por sua relativa homogeneidade e/ou heterogeneidade com relação aos registros dos fenômenos de inovação e conservação linguística. A pesquisa geossociolinguística sobre a fala do Oeste do Paraná foi delineada a partir dos dados da região observados no Atlas Linguísticos do Paraná/ALPR (AGUILERA, 1994), no Atlas Linguístico-etnográfico da Região Sul do Brasil/ALERS (KOCH; KLASSMAN; ALTENHOFEN, 2002) e no Atlas Linguístico do Paraná/ALPR II (ALTINO, 2007). Nesses trabalhos, é possível encontrar registros das variantes para a vibrante alveolar em coda silábica (vibrante múltipla, tepe e retroflexa) que revelam uma segmentação da região em duas áreas, uma de transição linguística, onde formas inovadoras coocorrem com as variantes dos falantes sulistas, e outra de conservação/manutenção dos traços dos grupos de origem. Para a identificação e descrição das variantes, utilizamos os princípios da Dialetologia Pluridimensional, no que tange à escolha da rede de pontos (nove localidades que registram em sua história a presença de colonos sulistas e grupos oriundos do sudeste e do nordeste do Brasil, com relativa mobilidade), à seleção dos informantes, com o desdobramento da dimensão sociocultural nas dimensões diassexual, diageracional e diastrática, e à cartografia, cartas e gráficos que registram a produtividades das variantes e retratam a dinamicidade e complexidade da fala. Além da dimensão geográfica, em que se pode identificar as áreas de maior atuação da retroflexa, e da dimensão social, com o registro da variante por determinados grupos de uma localidade, a retroflexa pode ser caracterizada pela sua produção no interior da dimensão linguística, a partir do ambiente fonológico. Os dados permitem descrever a variante retroflexa e o tepe como variantes diatópicas, nas nove localidades investigadas para a pesquisa. A comparação entre os dados do ALPR, do ALERS e deste estudo
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indica uma mudança linguística em curso, pois a variante retroflexa está presente em todos os pontos e vem demonstrando grande vitalidade entre os informantes. Os dados coletados nas entrevistas realizadas para o estudo da fala da região Oeste do Paraná, considerando as dimensões diassexual, diagenérica e sociocultural indicam uma mudança em progresso, tendo os jovens como responsáveis pela implementação da variante retroflexa. Podemos apontar algumas condições que julgamos estarem atuando favoravelmente para esse quadro: (i) a disseminação da retroflexa; (ii) o crescimento urbano e a migração de pessoas de todas as regiões do Paraná e do Brasil para a região Oeste do estado, mesmo nas localidades mais homogêneas, pelo crescimento do agronegócio; (iii) o comércio e o turismo na região de fronteira com o Paraguai e Argentina, tanto em Foz do Iguaçu como em Guaíra, cujos efeitos se alastram pelos municípios vizinhos. O fenômeno de disseminação da variante linguística inovadora em comunidades mais tradicionais também está relacionada às crenças e atitudes linguísticas dos falantes. As reflexões tomam a fala como pertencente à ordem do social, ou seja, é elemento que reporta ao modo de viver das pessoas, dos grupos e das sociedades, que, por meio de redes sociais e de seus entrelaçamentos retratam o dinâmico e complexo jogo de relações sociais. Tomada da sua realização mais viva, a fala é o eixo ao qual se unem, para estabelecer diversas conexões, diferentes instâncias da sociedade. Essa potencialização da requer um olhar meticuloso para sua realização enquanto representação do trajeto dos falantes e dos grupos na história. O princípio de que a língua “é um objeto constituído de heterogeneidade ordenada” impõe esferas de análise em que se possa reconhecer o locus das realizações linguísticas e buscar caminhos teóricos no sentido de “harmonizar os fatos da heterogeneidade (a língua como uma realidade inerentemente variável) com a abordagem estrutural (a língua como uma realidade inerentemente ordenada)” (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006, p. 13). Entendemos a dimensão do desafio que se coloca diante da proposta, porém o que se quer aqui é apontar alguns dos condicionadores sócio-culturais que orientam a produção da fala no interior dos grupos, principalmente com relação à identificação dos fenômenos de variação linguística diante do contexto cultural em que os falantes estão inseridos. Segundo Busse (2010), o estudo da fala e as análises sobre a variação têm como índice condutor a história e a cultura do povo, pois tomada enquanto representação do comportamento do falante, em que os fenômenos linguísticos são moldados à luz das complexas relações sociais, pode-se perceber que a língua em seus traços mais particulares reflete as condições pelas quais os grupos vêm se constituindo. A partir de estudos sobre o português brasileiro no Estado do Paraná, os quais apontam para áreas linguísticas marcadas pelo conservadorismo com relação a determinados traços, buscamos apresentar dados documentados em estudos realizados sobre a fala no Estado do Paraná e na região Sul do Brasil (ALPR, 1994; ALERS, 2002;
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ALPR II, 2007), traçando uma leitura que toma os aspectos sócio-culturais e históricos como roteiro que orienta a fala. A formação do Oeste paranaense Grande parte da região Sul e do Oeste paranaense foram formados a partir de uma homogeneidade étnica e cultural. São imigrantes europeus que, fugindo dos problemas da Europa, partiram para a América com o sonho do recomeço, transferindo para cá sua cultura e seu modo de viver. Esse sentimento de continuidade se fortaleceu nas colônias e nas cidades, onde se preservou a língua, as diferentes manifestações e a religião. Diegues Júnior (1960) destaca que a colonização na Região Sul por parte dos europeus teve como principal motivação a concessão de terras e a possibilidade de formação dos núcleos coloniais. Segundo Gregory (2005, p. 40), “foi a tentativa de recompor o modo de ser camponês” arruinado pela situação econômica da Europa, além das promessas de terras produtivas e a liberdade para reconstruir seu modo de vida, que fez com que os imigrantes se arriscassem pelas terras tropicais. A colonização do Oeste paranaense foi identificada de forma emblemática como “Marcha para o Oeste”, pois estava assentada nas ações oficiais do governo do Período Vargas, de nacionalismo exacerbado e de busca de um Estado fortalecido e centralizador. As terras da fronteira, habitadas por índios, paraguaios e argentinos, deveriam ser colonizadas por uma gente bravia que se dispusesse a lutar por ela e a transformá-la em espaço produtivo. Diante desse quadro, Gregory (2005, p. 93) destaca que os planos de ação do governo, executados pelas companhias madeireiras e pelas colonizadoras, eram implementados por meio da seleção de colonos que se adaptassem à região, “o elemento humano eurobrasileiro do sul do Brasil, ou seja, descendentes de alemães, italianos e de outros imigrantes acostumados com a lida agrícola colonial na pequena propriedade”. A colonização moderna do Oeste paranaense (CARDOSO; WESTPHALEN, 1986) aliada aos movimentos de períodos anteriores (Guaíra, 1610; Região Noroeste, 1888; Foz do Iguaçu, 1889) resultou na mistura de culturas, línguas e etnias. Esse ambiente cultural pode ser responsável pela criação de áreas linguísticas mais conservadoras, áreas inovadoras e de transição, em que as diferentes culturas e etnias acentuam o polimorfismo na fala. Em torno dos núcleos de colonização (Marechal Cândido Rondon, Toledo e Medianeira), formaram-se outras localidades, como no caso dos municípios mais ao leste da região (Cascavel e Guaraniaçu), que podem der descritos pela heterogeneidade étnico-cultural com a presença de paranaenses, paulistas, mineiros e nordestinos. Assim, embora as áreas de conservação se destaquem, há zonas de transição em que os elementos convivem, estabelecendo trocas e esboçando o quadro linguístico e cultural da região.
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A língua e a formação de identidades no Oeste As representações de uma identidade evocam imagens que se agregam a determinados valores. Segundo Alvar (1996, p. 04), as palavras são uma vestidura do ‘espírito’, são elas que nos oferecem a essência daquilo que se impõe às condições materiais e estreitam os laços sociais. Sob uma língua abrigam-se aspectos que atuam e atuaram para a formação identitária dos grupos, insinuando, inclusive, a maneira como essa identidade tomou forma. A coexistência de traços linguísticos, a assimilação de alguns e a conservação de outros reproduz o cenário em que a fala/identidade se constituiu. A região Oeste tem um cenário histórico marcado por períodos de povoamento com a presença de espanhóis, nas Reduções Jesuíticas, de portugueses, nas Entradas e Bandeiras e nas Reduções Jesuíticas, e de argentinos e paraguaios, nas Obrages (propriedades com uma forma de exploração típica das regiões cobertas de matas subtropicais e que teve como objetivo a extração da erva-mate e da madeira em toras). Nas décadas de 1950 e 1960 ocorre a terceira onda colonizadora do Estado (CARDOSO & WESTPHALEN, 1986), com a ocupação do Oeste e Sudoeste paranaense por colonos gaúchos e catarinenses, voltados à policultura e à pecuária suína, de estrutura fundiária, marcada pela presença da pequena propriedade familiar. A partir de informações coletadas nos Relatórios de Empresas Colonizadoras da década de 1960, Gregory (2005, p. 96) apresenta um quadro com informações sobre a origem étnico-racial dos habitantes das colônias já formadas na Região. Esses registros dão conta do cenário cultural em que se encontrava a região, apontando para áreas de maior homogeneidade cultural, como as colônias Medianeira, Gaúcha (Município de São Miguel do Iguaçu) e Criciúma (Município de Santa Terezinha de Itaipu), e áreas mais heterogêneas, com a presença de paulistas e mineiros, entre outros, com destaque para Porto Mendes. Para formar os núcleos de povoamento, as colonizadoras empreenderam esforços dando preferência ao agricultor nacional, do Sul do Brasil, evitando assim a presença de paraguaios e argentinos, que estavam em vias de expulsão das áreas da região de Guaíra, e cuidando com a propaganda sobre as terras para não chamar atenção de “elementos aventureiros”, que segundo Gregory (2005) só foram solicitados quando as terras já estavam ocupadas para nelas trabalhar como empregados. Logo, tem-se uma delimitação dos espaços sociais de cada elemento na sociedade que se formava: o colono sulista como proprietário das terras e dos meios de produção, e os demais, paranaenses, paulistas, mineiros, baianos, paraibanos, pernambucanos, cearenses, entre outros, empregados e subordinados. O resultado desse conjunto de relações que surgia entre os habitantes pode ser ter levado alguns grupos à resistência com relação à cultura do ‘outro’, e outros, à
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assimilação e acomodação, e no final dessa ‘serpentina cultural’ a trocas e interações culturais, cenário que hoje se revela na cultura, na língua e nos hábitos da população. A descrição e documentação da língua e do contexto de realização podem levar à identificação e à definição de áreas linguísticas cujos traços comuns fornecem elementos para a compreensão do comportamento da fala em determinados e espaços e sob diferentes condições. Altenhofen (2005), considerando o contexto histórico brasileiro quanto à presença de diferentes grupos étnicos e de sua mobilidade pelo território, destaca a necessidade de descrever a língua ao lado do trajeto dos falantes no espaço e no tempo. A identificação das áreas dialetais do português brasileiro ora tomou a região Sul com relação à sua posição geográfica, ora com relação às suas particularidades linguísticas. Nascentes (1953), ao propor as áreas dialetais do Brasil, reconheceu o “falar sulista” e nele incluiu os estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul, sul de Goiás, sul de Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Garcia (1915) (apud MENDONÇA, 1936, p. 199/200) traça a zona Meridional, com São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Mendonça (1936, p. 210-211) aponta para áreas de transição nos estados do Maranhão e do Paraná, embora, considere o território paranaense e a região que compreende o norte de Santa Catarina (transição sul), com uma notável presença de termos da língua guarani relativos principalmente à indústria do mate. Se no território paranaense as áreas linguísticas foram definidas pelas ‘ondas colonizadoras’, podemos encontrar no Oeste alguns espaços que também esboçam um quadro linguístico representativo da formação histórico-cultural das localidades. As informações dos atlas ALPR (AGUILERA, 1994), ALERS (KOCH; KLASSMANN, ALTENHOFEN, 2002) e ALPR II (ALTINO, 2007) apontam para subáreas no oeste, as quais se manifestam pelo conservadorismo com relação a alguns traços linguísticos. A vibrante alveolar em coda silábica Com a descrição das variantes para a vibrante em coda silábica, no interior da palavra, objetiva-se contribuir para a identificação do perfil cultural e linguístico do morador da região Oeste, especialmente de Cascavel. Segundo Callou, Moraes e Leite (2002, p. 465), a variabilidade da vibrante “difere da de outras consoantes, antes de mais nada, pelo maior número de realizações fonéticas identificadas.” Os autores destacam ainda, que as possíveis realizações se modificam de acordo com a região de origem dos falantes. Na região Oeste, conforme estudos realizados por Aguilera (1994), Koch; Klassman e Altenhofen (2002) e Altino (2007), no Oeste do Paraná alternam-se o tepe, a vibrante múltipla e o retroflexo. O tepe e a vibrante múltipla foram trazidos para a região pelos colonos sulistas e o retroflexo, pelos grupos vindos do norte do Paraná e de São Paulo.
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Na sequência, no tabela 05, apresentamos os registros das variantes para a vibrante em coda silábica em: gordura, tarde e torneira, colhidas entre os informantes desta pesquisa. Com relação ao contexto linguístico, as variantes retroflexa, tepe, vibrante alveolar, fricativa velar e fricativa glotal ocorrem em contextos fonológicos distintos: a) quanto à tonicidade, em sílaba pretônica gordura e torneira, em sílaba tônica tarde; b) quanto à extensão da palavra, três sílabas gordura e torneira, e duas sílabas tarde. TABELA 01 – Variantes para a vibrante em coda silábica PALAVRA GORDURA
CONTEXTO FONOLÓGICO Coda silábica
TARDE
Coda silábica
TORNEIRA
Coda silábica TOTAL
44% 72% 42% 49%
REALIZAÇÕES 0% 48% 7% 19% 17% 39% 7% 40%
8% 2% 2% 4%
Head (1987), após discutir cada uma das hipóteses da presença do retroflexo no português brasileiro e apontar os seus problemas, levanta a hipótese de que a origem da vibrante retroflexa esteja nas propriedades da língua portuguesa, como o ponto e o modo de articulação, e na influência de outros traços que foram incorporados ao português falado no Brasil. Além da dimensão geográfica, em que se podem identificar as áreas de maior atuação da retroflexa, e da dimensão social, com o registro da variante por determinados grupos de uma localidade, a retroflexa pode ser caracterizada pela sua produção no interior da dimensão linguística, a partir do ambiente fonológico. Segundo Busse (2010), além da dimensão geográfica, em que se podem identificar as áreas de maior atuação da retroflexa, e da dimensão social, com o registro da variante por determinados grupos de uma localidade, a retroflexa pode ser caracterizada pela sua produção no interior da dimensão linguística, a partir do ambiente fonológico. Na figura 01, carta linguística 83 – Torneira, do Estudo Geossociolinguístico da Fala do Oeste do Paraná (BUSSE, 2010), podemos observar os pontos de predominância da variante retroflexa, em coda silábica no interior da palavra. No ponto 08 – Cascavel, localidade a ser estudada aqui, a variante retroflexa e o tepe são registrados, praticamente com a mesma incidência.
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FIGURA 01 – Carta Linguística 83 – Torneira Um Estudo Geossociolinguístico da fala do Oeste do Paraná
Na carta 84 – Tarde, figura 02, podemos observar que o retroflexo é registrado com maior incidência em todos os pontos investigados. Assis Chateaubriand, ponto 02, Cascavel, ponto 08, e Guaraniaçu, ponto 03, formam uma faixa em que a variante predomina. As três localidades apresentam características semelhantes quanto ao povoamento, como a presença de grupos originários de São Paulo, Minas Gerais, Bahia e norte do Paraná. Geograficamente, são rotas de passagem de viajantes, turistas, entre outros. Cascavel destaca-se pelo desenvolvimento econômico, figurando como pólo na área da saúde, da educação e na agroindústria.
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FIGURA 02 – Carta Linguística 84 – Tarde Um Estudo Geossociolinguístico da fala do Oeste do Paraná
Na carta linguística 85 – Gordura, figura 03, em Cascavel, há um recuo no registro da variante retroflexa, prevalecendo o tepe. O fato pode ser um indicador de que a retroflexa ainda se encontra em processo de implementação, condicionada, principalmente, por fatores linguísticos. Pois em tarde, a vibrante encontra-se em palavra dissílaba, na sílaba tônica, enquanto em gordura, há três sílabas, e o fonema, na sílaba átona.
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FIGURA 03 – Carta Linguística 85 – Gordura Um Estudo Geossociolinguístico da fala do Oeste do Paraná
Nos gráficos 01, 02 e 03, está registrada a distribuição sociocultural das variantes nas dimensões diassexual, diagenérica e distrática. Os gráficos reúnem os registros dos informantes para as três palavras: torneira, tarde e gordura. Segundo as pesquisas sociolinguísticas, as mulheres apresentam na fala uma atitude mais conservadora, registrando as formas identificadas pelo grupo como prestigiosa. O que, dependendo do grupo, não corresponde à forma escolarizada. Nas variantes para a vibrante em coda silábica, no interior da palavra, não há uma diferença considerável entre a retroflexa e o tepe. O fato pode indicar que não há uma variante estigmatizada no grupo.
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GRÁFICO 01 – Distribuição diassexual das variantes para a vibrante em coda silábica
Na dimensão diagenérica, a realidade apresenta-se muito semelhante com algum registro maior da retroflexa entre os mais jovens. Por representar a segunda ou terceira geração dos grupos sulistas que migraram para a região, provavelmente os jovens apresentem uma atitude mais receptiva à variante.
GRÁFICO 02 – Distribuição diageracional das variantes para a vibrante em coda silábica
Os registros no interior da dimensão diastrática são idênticos à dimensão diassexual. Ou seja, nenhuma das variantes, a retroflexa e o tepe, correspondem a formas estigmatizadas. Os fonemas parecem que se alternam na fala, indicando a convivência entre grupos de diferentes culturas e diferentes regiões do Brasil.
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GRÁFICO 03 – Distribuição diastrática das variantes para a vibrante em coda silábica
O estudo da vibrante em coda silábica, no interior da palavra, no falar cascavelense, considerando-se a formação histórica da região e a realidade específica da localidade, é necessário para contribuir para a descrição de aspectos linguísticos do português brasileiro e para identificar formas estigmatizadas entre os grupos. Algumas considerações finais As realizações do fonema aqui descritas foram em respostas diretas dos informantes, em que pode ocorrer um monitoramento da fala. Em nossa pesquisa, pretendemos descrever as variantes para a vibrante em coda silábica, no interior da palavra, na fala espontânea, ou seja, na elocução livre e na elaboração das respostas. Os dados também revelam que há pontos de alternância entre o retroflexo e o tepe. Diante desse contexto, a pesquisa que realizamos poderá contribuir para verificação da atuação de variáveis linguísticas e sociais sobre a realização das variantes. Espera-se que os dados possam auxiliar na avaliação da língua em relação à dinâmica dos grupos sociais, considerando o perfil socioeconômico e cultural de Cascavel, propiciando a identificação dos grupos que atuam na manutenção e/ou inovação linguística, bem como no reconhecimento dos estágios da mudança linguística, com implementação da variante inovadora. Referências
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WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin L. (1968). Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança lingüística. São Paulo: Parábola, 2006.
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COMPOSICIONALIDADE LINGUÍSTICA E A REFERENCIAÇÃO NAS RELAÇÕES LEXICAIS: A SIGNIFICAÇÃO E O HUMOR Sayonara Abrantes de Oliveira Uchoa (IFPB) Fabiana Ferreira de Queiroga (GEP)
1 Introdução Discutir como ocorrem as relações lexicais envolvidas na construção do significado, em qualquer gênero textual, condiz a uma tarefa de extrema complexidade, haja vista que esses mecanismos, embora demonstrem certa regularidade de como se apresentam, carregam consigo a capacidade criadora que permeia a linguagem e “se estruturam logicamente” (OLIVEIRA, 2004, p, 19), ou seja, ao produzir um texto o falante tem em mãos uma ferramenta extremamente complexa, constituída de infinitos elementos que se inter-relacionam de diferentes maneiras para estabelecer a relação entre o material linguístico e um referente. Conforme Chierchia (2003, p. 47), o que chamamos de significado de uma sentença corresponde às condições em que ela pode ser considerada verdadeira que, por sua vez, depende da referência dos termos de que a sentença é constituída. No momento em que nos colocamos como leitores, passamos a depender da compreensão dessa característica composicional da língua, de ter a capacidade de mobilizar determinadas competências voltadas ao reconhecimento do material linguístico impresso de forma lógica, como também da relação desses com os fatos do mundo, com uma referência. A partir da hipótese inicial de que a construção do significado ocorre pela relação entre sentido e referência, admitindo que “dar o significado de uma sentença é estipular em que condições ela é verdadeira” (OLIVEIRA, 2001) buscaremos, neste trabalho, apresentar reflexões sobre como as características da língua mencionadas são observáveis nas relações lexicais em textos de humor. Por acreditarmos que a leitura efetiva-se a partir do momento em que o leitor é capaz de perceber tais relações, apresentaremos análises de textos de humor, por
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considerarmos ferramentas importantes para essa tarefa, devido à riqueza de relações lexicais envolvidas em sua construção.
2 Composicionalidade linguística e a referenciação nas relações lexicais: a significação e o humor
2.1 Sentido e referência nas relações lexicais: bases teóricas
Partindo de uma abordagem denotacional, a língua, segundo Chierchia (2003, p. 45), “é constituída por um conjunto de palavras e de regras para combiná-las”, ou seja, as palavras são associadas aos objetos por convenção, por denotá-los. Neste sentido, é através dessa capacidade associativa que o falante da língua é capaz de empregar sequencias de elementos lexicais para codificar
situações em que os objetos se
encontram. (CHIERCHIA, 2003) A partir dos preceitos da Semântica formal, uma das três formas mestras de fazer Semântica, segundo Oliveira (2001),
embasamos nossa discussão no conceito de
significado como “termo complexo que se compõe de duas partes, o sentido e a referência”, retomando a importância da relação da linguagem com o mundo. Conforme explicita Basso (2013, p. 135) “... há três ideias principais por trás das reflexões em Semântica Formal: (a) a língua é um sistema regrado; (b) a interpretação das mensagens linguísticas é referencial; (c) o sistema linguístico é composicional”. Do primeiro aspecto apresentado, consideramos que os elementos lexicais se combinam para a construção do significado através de um sistema próprio de regras que promovem a condição de construção do sentido ao material linguístico. A adequação a esse sistema de regras é que confere a ideia de que “a língua tem uma estrutura própria, inclusive uma estrutura semântica” (BASSO, 2013, p. 137). Já a relação entre esse material linguístico com o extralinguístico é que estabelece o caráter referencial à língua. No entanto, não se pode confundir a ideia de referencia com limitação, haja vista que, para os semanticistas formais, a língua não
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pode ser um sistema fechado, visto que as estruturas linguísticas estabelecem relação com as estruturas extralinguísticas, de forma referencial (BASSO, 2013). Também não se pode confundir o caráter referencial com limitação de construção de significados, visto que “Se o sentido é o caminho que nos permite alcançar a referência, quando descobrimos que dois caminhos levam à mesma referência, aprendemos algo sobre esse objeto, sobre o mundo”. (OLIVEIRA, 2004, p. 21). Para melhor explicitar a concepção de ‘mundo’ aqui exposto, Muller (2008) explicita que: A referencialidade é tomada como uma de suas propriedades fundamentais. Por esta razão, na Semântica Formal, o significado é entendido como uma relação entre a linguagem por um lado, e, por outro, aquilo sobre o qual a linguagem fala. Este 'mundo' sobre o qual falamos quando usamos a linguagem pode ser tomado como o mundo real, parte dele, ou mesmo outros mundos ficcionais ou hipotéticos. (MULLER, 2008, p. 12)
Pelo exposto, concebemos a língua como um sistema dinâmico e, desta forma, um mesmo material linguístico pode referir-se a mais um referente o que, em uma situação de comunicação, conferirá ao significado um valor ou não de verdade. É importante deixar claro que quando uma sentença não possui referente, não é possível estabelecer seu valor de verdade, mas isso não implica dizer que a mesma é verdadeira ou falsa, ou seja, “saber as condições de verdade de uma sentença não é igual a saber se a sentença é verdadeira ou falsa” (BORGES NETO, 2003, p. 17). Ainda neste contexto, Basso (2003) chama a atenção para o fato de que “... a estrutura linguística é potencialmente infinita, no sentido de que sempre podemos modificar uma sentença ou estrutura existente”, aspecto que nos leva a refletir sobre o princípio de composicionalidade, ou seja, em que “o significado de uma expressão complexa depende de modo regular do significado das expressões que a compõem e do modo como elas são combinadas sintaticamente” (CHIERCHIA, 2003, p. 39). Para Marcuschi (2004) muitas são as discussões com relação à relação entre sentido e referência, o que , para o autor, não condiz a uma relação “meramente biunívoca”. Assim, ressalta que “O problema do significado não é resolver se às
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palavras corresponde algo no mundo externo e sim o que fazemos do ponto de vista semântico quando usamos as palavras para dizer algo” (MARCUSCHI, 2004, p. 32). A esse respeito, Borges Neto (2003, p. 9-10) esclarece que “o significado não é uma entidade” e sim “uma relação” e não somente do que diz respeito a uma relação de um item lexical e um objeto do mundo, mas, conforme já explicitamos, de uma expressão linguística e algo não-linguístico. Quanto ao material não-linguístico, Marcuschi (2004) esclarece que este referese a “um objeto do mundo, passando por um objeto do discurso, até um ser mitológico ou um elemento abstrato” enquanto Chierchia (2003, p. 36) assevera “ser a referência aquilo que o signo se refere no contexto de emissão”. Diante de tudo que foi exposto, nos surge uma reflexão: qual a relação entre as ideias expressas para definir a percepção de como se dá o significado e os estudos lexicais Antunes (2012, p. 27) define o léxico como “um amplo repertório de palavras de uma língua, ou o conjunto de itens à disposição dos falantes para atender às suas necessidades de comunicação”, ou seja, as palavras são a “matéria – prima” para a construção das ações de linguagem que, por sua vez, “intermedeiam nossa relação com o mundo”. Assim, as palavras concretizam a representação do material linguístico que, na comunicação, estabelecem relação com o material extra-linguístico, na constituição do significado. A esse respeito é relevante destacar que, embora o léxico caracterize-se como instável e em constante processo de renovação, assim como o mundo, ocorre o surgimento de novas palavras, assim como outras assumem novos significados o que, para Antunes (2012) não significa dizer que são totalmente desprovidas de sentido ou que surgem sempre de um “estado cognitivo zero”. Na verdade, “às palavras são associados significados básicos, que constituem, isso mesmo, a base para a derivação de outros significados, próximos, associados, afins”. Por esse limiar, não é possível conceber o processo de referenciação, ou seja, a relação entre sentido e referência como um pacote estanque, algo pronto no léxico a ser somente acessado pelos falantes no momento da comunicação. Essa relação lógica se dá na comunicação, da língua como entidade social e interativa, cuja referência a um
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sentido depende da forma que esses elementos se estabeleceram e, sua compreensão, da capacidade do leitor em acessar o seu repertório de “matrizes cognitivas”. No entanto, nem sequer essas “matrizes cognitivas” são imutáveis ou estanques, esse repertório sofre, constantemente, alterações de modo que um único sentido pode remeter-se para diferentes referentes, ou seja, concebendo essa referência, na percepção de Ilari (2012, p. 176) como uma “operação linguística por meio da qual selecionamos, no mundo que nos cerca, um ou mais objetos (isto é, pessoas, coisas, acontecimentos) específicos, tornando-os como assunto de nossas falas”. Tais operações são estabelecidas de diferentes maneiras, cabendo ao leitor percebê-las visando compreender os aspectos apresentados pelo material linguístico. Sob esse aspecto, Lyons (1996) apud Oliveira (2008, p. 43) promove uma reflexão acerca da visão de alguns semanticistas em considerarem ‘denotação’ e ‘referência como sinônimos. Para Lyons (1996), trata-se de duas coisas totalmente distintas, haja vista que a denotação consiste em uma expressão invariável e independente no enunciado, ou seja, “é parte do significado que a expressão tem no sistema da língua” (OLIVEIRA, 2008, p. 43); enquanto que o referente é variável e dependente do enunciado. Para finalizar esse embasamento teórico, retomados uma visão bem interessante sobre a referenciação em Marcuschi (2004, p. 268), sobre o que o mesmo explicita ser um “contorno mais preciso na análise da relação entre linguagem e mundo” (p. 261) ao definir que: ... não há algo assim como uma língua pronta de um lado, podendo ser usada para espelhar e representar o mundo; e o mundo já discretizado em todos os seus elementos, de outro lado, à espera de que se os nomeie. Por isso, torna-se necessário indagar quais os processos usados para a discretização (...) essa discretização é feita no diálogo e no comum acordo entre os interlocutores e não unilateralmente. A referenciação é um fato social... (MARCUSCHI, 2004, p. 261)
Por tudo aqui expresso, passaremos a discutir a importância da compreensão desses processos, de como ocorre a construção dos significados nos textos e sua importância para a compreensão, dado o fato de que “a instabilidade e a mudança são uma dimensão intrínseca do discurso e da cognição e não uma exceção ou um defeito” (MARCUSCHI, 2004, p. 269).
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Por esse aspecto, fenômenos como ambiguidade e polissemia, dentre outros, representam “estados normais da língua” e, a compreensão de seus comportamentos, consiste em uma tarefa relevante à condição de leitor capaz de chegar a identificar significados favoráveis à comunicação efetiva entre os falantes de uma mesma língua. 2.2 Relações lexicais mobilizadas na construção da significação em textos de humor: terreno propício à formação da competência leitora
Para iniciar a discussão sobre a importância da compreensão dos itens lexicais e de como eles relacionam-se para promover o significado e estabelecer valor de verdade, retomaremos o princípio de composicionalidade, já apresentado na sessão anterior. Segundo Liberato e Fulgêncio (2010), teóricos que se debruçam nos estudos voltados ao ensino de leitura, “Se uma palavra é desconhecida, não somente ela própria não pode ser prevista, mas também, as próximas não poderão ser antecipadas” (p. 108) Em pesquisa em sala de Ensino Médio (2013), foram desenvolvidas oficinas de leitura buscando comprovar a hipótese de que os alunos, ao desenvolverem a capacidade de mobilizar conhecimentos de forma lógica, estabelecendo relações necessárias à compreensão do material linguístico presente nos textos e de remeter-se aos seus referentes, em cada contexto, seriam capazes de ascenderem a leitores proficientes. Após o desenvolvimento de todo um arcabouço metodológico, partindo do estudo didatizado de aspectos semânticos, considerados fundamentais à compreensão de textos, foi possível identificar um avanço significativo na forma como esses alunos passaram a perceber os sentidos no material linguístico e relacioná-los a um referente e, sobretudo, de perceberem que nem todas as interpretações são aceitáveis, mas somente aquelas que conferem um significado verdadeiro a cada contexto. Passaremos, então, a delinear alguns momentos desse processo para demonstrar os aspectos ora apontados. Acerca da percepção sobre a importância do sentido que denotam cada item lexical, como base para compreensão de expressões mais complexas, apresentamos aos alunos a seguinte tirinha:
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Figura 1: Tirinhas de Adão Iturrugarai
Disponível em: CEREJA, Willian; COCHAR, Thereza. Gramática Reflexiva. São Paulo: Atual, 2009.p.46.
Ao observarmos a tirinha 1, é notório que a construção do humor se faz por uma relação intertextual com uma história infantil bastante conhecida “Chapeuzinho Vermelho”. No entanto, o que nos chamou a atenção durante a análise dos dados, que partiu de dois questionamentos iniciais: 1. Se o aluno compreendeu o humor da tira; 2. Se não compreendeu, a que ele atribuiria essa dificuldade. Num universo de 37 alunos participantes da pesquisa, 19 afirmaram não haver compreendido e suas justificativas convergiam para o mesmo aspecto, para o qual destacamos as contribuições como forma de exemplificá-las: Não entendi porque não sei o que é serial killer. (ALUNO O Não entendi porque eu não sei o que é serial killer e porque o ultimo quadrinho se refere a um freezer e o que tem a ver com o primeiro quadrinho e o segundo que se refere a uma história infantil. (ALUNO A)1
De acordo com as afirmações dos alunos O e A, ficou evidente que eles não foram capazes de compreender a tira por não haverem realizado as inferências 1
Dados oriundos de pesquisa-ação desenvolvida em turmas do terceiro ano do Ensino Médio, cujas análises resultaram em dissertação de Mestrado do Curso de Pós-Graduação em Linguística, devidamente registrada no Conselho de Ética.
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necessárias, visto que desconheciam aspectos do léxico, ou seja, a referência necessária para gerar um valor de valor ao enunciado e torná-lo compreensível, ou seja, dotá-lo de significado. Outro aspecto a ser apontado nas justificativas apresentadas pelos alunos é a própria consciência expressa de que o significado do texto, ou seja, de um enunciado complexo, depende da compreensão das partes que o compõem. Também, o não estabelecimento de um referencial, de um ser no mundo cujas características seriam necessárias para preencher as lacunas deixadas, intencionalmente, pelas expressões postas demonstra a necessidade de que o leitor, além de conhecer os itens lexicais, seja capaz de estabelecer relações lógicas durante o processo de leitura. Além dos aspectos apresentados, também podemos deixar marcada a identificação do aluno do pressuposto de existência ao afirmar “não sei o que é serial killer”, pois, não se sabe o que é, ou seja, não há para o aluno uma relação entre sentido e referente, sabe-se que “existe um ser no mundo, real ou imaginário, denominado “serial killer”. A respeito da relação entre os elementos aqui abordados e seus propósitos, Kleiman (1998, p. 65-66) defende que “O leitor proficiente é capaz de reconstruir quadros complexos envolvendo personagens, eventos, ações, intenções para, assim, chegar à compreensão do texto, utilizando para tal muitas operações”. Não consistiu nosso propósito a inserção da base teoria da semântica formal para ser ensinada aos alunos, na escola, sobretudo, de vislumbrar situações de ensinoaprendizagem nas quais os educadores produzam momentos de contato, análise, uso da lógica, enfim, que os alunos aprendam a reconhecer esses elementos e deem um sentido mais próprio à linguagem em seu uso. Outro exemplo do trabalho desenvolvido partiu da proposta metodológica envolvendo a tirinha abaixo:
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Figura 2: Tirinhas da Mafalda Tirinhas 2 :
Disponível em: http://www.nanoverso.com/search?updated-min=2010-01-01T00:00:00-02:00&update Acesso em: 15/05/2012
Partimos do pressuposto de que a compreensão da tirinha depende da capacidade de o aluno estabelecer relações lógicas e, desta maneira, verificar que o material linguístico “campo”, enquanto sentido remetia-se a dois referentes, ou seja, seria necessário que o aluno estabelecesse a relação direta entre o sentido a dois mundo diferenciados para, somente então, perceber que o gatilho que gerava o humor na tirinha depende, exatamente, da existência de dois referentes para um mesmo sentido expresso pelo item lexical. A esse respeito Possenti (1998) apud Marcuschi (2004, p. 271) deixa claro o fazer humor, as manobras linguísticas estabelecidas em prol da construção humorística representa como o léxico é manipulado na produção de sentido, sendo, pois, a ambiguidade e a polissemia estados normais da própria língua. Embora não sejam estudiosos profundos da teoria semântica, fazendo uso da lógica e da própria compreensão dos mecanismos da língua, os alunos apresentaram as seguintes reflexões: No primeiro quadrinho ela pergunta sobre pessoas que se forma, estudantes, aí no segundo o homem explica de uma forma diferente em vez de dizer não tem emprego no luga aí vai em busca dum emprego fora, em vez dele falar dessa forma ele acrescenta o nome campo, aí ela pergunta sobre as vacas. (ALUNO I) Comparou profissionais que vão a procura de vagas de trabalho no estrangeiro, com vacas que são exportadas através de comércio. (ALUNO K)
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Por que Mafalda não entende o que o homem quiz dizer com campo, no segundo quadrinho, ou seja, ele confunde a palavra campo que quer dizer lugar de trabalho suficiente, pelo significado da palavra campo que pra ele, quiz dizer parto, ou seja, onde as vacas ficam. (ALUNO L)
A identificação dos referentes necessários ao significado, nessa atividade, foi possível devido ao conhecimento partilhado existente entre os falantes da língua, ou seja, pelo “conjunto de proposições que são aceitas tanto pelo falante quando pelo ouvinte” (MOURA, 2006, P. 17) de uma mesma língua. Através desse conhecimento de mundo, foi possível identificar uma ambiguidade, visto que “a ordem de aplicação de cada uma das operações possíveis promove um resultado distinto” (OLIVEIRA, 2001). Ilari (2012, p. 176) deixa claro que a referência, usada com condições normais, permite a identificação do chamado “campo visual próximo aos interlocutores”. Assim, numa abordagem mais didática, Ilari (2012) ressalta a importância de levar os leitores a praticarem os mecanismos linguísticos capazes de levá-los a vivenciar atos de referência. A esse propósito, Martins (1997), quando afirma: Quando começamos a organizar os conhecimentos adquiridos, a partir das situações que a realidade impõe e da nossa atuação nela; quando começamos a estabelecer relações entre as experiências e a tentar resolver os problemas que se nos apresentam – aí então estamos procedendo leituras, as quais nos habilitam basicamente a ler tudo e qualquer coisa. (MARTINS, 1997, p. 17),
Diante do exposto, reiteramos a ideia apresentada pelo princípio de composicionalidade, no qual os sentidos das partes são premissa para o de expressão mais complexas. Assim, o léxico, as relações gramaticalmente estabelecidas e como esses elementos estabelecem relação a um referente condiz a elemento chama na construção da capacidade de ler, haja vista que o jogo linguístico é estabelecido para o direcionamento do leitor à formação de juízos de valor de verdade, do sentido a referencia e deles à significação.
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Reafirmamos, pois, a importância da compreensão destes mecanismos lógicos da língua, reincidentes nos textos de humor e limitadamente apesentados, como princípio norteador para o desenvolvimento da competência leitora. 3 Palavras finais
Consideramos atingidos os objetivos a que nos propusemos. Discutir a compreensão, à luz de fenômenos semânticos, consiste em um tarefa difícil. No entanto, fica clara a importância da compreensão destas manifestações dos sentidos, compreendidas por intermédio de bases teóricas e da concepção de referenciação e composicionalidade da língua. Acreditamos que o aprofundamento acerca da temática é fundamental, sobretudo para o desenvolvimento de estratégias aplicáveis ao ensino, por compreendermos que a aprendizagem no âmbito da leitura e escrita só ocorre a partir do momento em que o falante começa a compreender os mecanismos constitutivos do sentido, ou seja, as nuances de sua própria língua. Cabe, pois, aos educadores, promoverem tais estratégias, pautando-se nos conhecimentos teóricos aos quais se apropriaram, de modo a levar os educandos a desenvolver a competência leitora, de forma efetiva, por meio da leitura de textos ricos em aspectos linguísticos, a exemplos das tirinhas.
Referências
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O QUERER DIZER DOS DISCENTES ACERCA DA DISCIPLINA DE LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS NOS CURSOS DE FORMAÇÃO DOCENTE Sérgio Pereira Maiolini (UFMT/ICNHS) Considerações Iniciais O presente estudo tem como objetivo apresentar dados preliminares sobre uma pesquisa realizada, durante a disciplina de Língua Brasileira de Sinais, no ano letivo de 2013/2 com os discentes dos cursos de Licenciatura, notadamente, Física, Química e Matemática da Faculdade de Ciências Naturais e Matemática da Universidade Federal de Mato Grosso, Campus Sinop. Para coleta dos dados, elaboramos um questionário aberto com 12 questões, indagando os entrevistados acerca da Libras como disciplina obrigatória — a relevância da referida disciplina na grade curricular e sua carga horária — e as possíveis implicações na Educação Básica. Além disso, perguntamos, ainda, sobre o que significa Libras e ser surdo, enfatizando se há diferença entre deficiente auditivo e surdo. Entendemos que a discussão acerca de tais questões é relevante porque, atualmente, em sala de aula, há um percentual, ainda que irrisório, de alunos surdos cuja língua materna é a Libras. É imprescindível, portanto, que o professor dialogue com esses alunos em sua língua materna, visto que esta os constitui social e historicamente. Pretendemos, assim, analisar os enunciados desses futuros professores sobre a surdez, o surdo e a Libras, para assim, desvelarmos, em seu querer dizer, as imagens criadas e assumidas por esses sujeitos para o ensino de Libras e para os alunos-surdos. A perspectiva assumida para análise é o viés enunciativo-discursivo de Mikhail Bakhtin e o Círculo, cujas categorias de análise usadas para compreensão do querer dizer dos discentes são: signo ideológico (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009[1929]), enunciado concreto e relações dialógicas (BAKHTIN, 1952-1953). A trajetória do surdo na história: uma breve apresentação
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Ao estudarmos a história dos surdos, percebemos nela registros que marcaram conflitos e, mais recentemente, algumas conquistas, que vai desde o reconhecimento destes como ser humano até o direito de ingressar na escola básica normal. Estudos de Lane (1984), Sanches (1990), Skliar (1997a), Rée (1999), Moura (2000), Perlin (2003) e Strobel (2008) apresentam em suas pesquisas fatos importantes a este respeito. A comunidade surda, por muitos séculos não fez parte da escrita da História da humanidade e, portanto, estiveram à margem da sociedade dita como ouvinte. De acordo com os referidos autores, até o século XV, o sujeito surdo era visto como não possuidor de uma capacidade intelectual, tampouco habilidades emotivas, fisiológicas, etc. Ou seja, era um sujeito incapaz por não se expressar pela fala, visto que essa era entendida como ‘expressão do pensamento’. Conforme Lodi (2004), foi a partir de trabalhos do monge Beneditino Pedro Ponce de León, em meados do século XVI, que a educação dos surdos obteve suas primeiras linhas registradas, dando início a uma longa jornada a qual não se finda até hoje. Tais pesquisas do consagrado monge influenciou a metodologia utilizada no ensino dos surdos, assim como contra argumentou discursos filosóficos, religiosos e da medicina a respeito da incapacidade dos surdos no aprendizado e desenvolvimento cognitivo da linguagem. Por mais que o trabalho do Beneditino fosse focado no ensino e na fala, o fator preponderante era a linguagem escrita para a educação dos surdos, uma vez que a escrita no século XVI era tomada como um signo de poder. Ou seja, a igreja através de seus sacerdotes, possuía acesso privilegiado aos textos sagrados e esta era uma das formas para nomear as pessoas importantes na sociedade. No Monastério de Oña, na Espanha, a mesma ordem em que de León fazia parte, todos os monges tinham que fazer o voto de silêncio e, por viverem desta forma, desenvolveram um sistema manual de comunicação própria. Com isso, de León estava acostumado com uma comunicação não-verbal. Assim sendo, àqueles que viviam nos mosteiros eram os responsáveis para a produção - através de cópias - dos livros clássicos e das escrituras sagradas. De forma que o único meio de comunicação eram os sinais, eles acabavam desenvolvendo a soletração manual conforme a escrita. Assim, facilitaria a conferência das cópias pelos
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escribas. Reily (2007, p. 309-310), argumenta que é daí que surge “a importância de compreender a dimensão histórica da origem dos sinais monásticos e dos esforços empreendidos historicamente para apropriar-se desse recurso essencial à educação do aluno surdo” (REILY, 2007, p.309-310). A partir do século XVI, a sociedade passa a reconhecer o surdo como um sujeito capaz de aprender a linguagem, de desenvolver-se intelectualmente e, por conseguinte, a pensar, a expressar seus sentimentos e anseios. O surdo, assim, não é mais tomado como um ser selvagem, animalesco. Consoante Costa (2010) isso é resultado de um deslocamento de concepção ideológica da sociedade vigente perante o sujeito surdo que era marcada pela sua incapacidade e não-humanidade. Ou seja, essa nova percepção ideológica acerca deste sujeito “leva a sociedade a ter novas concepções sobre antigas questões que sempre foram postas à humanidade, a presença do sujeito surdo” (COSTA, 2010, p.21). Outro fato importante na história dos surdos ocorreu em 1750, no século XVIII, com a inauguração do Instituto de Surdos e Mudos de Paris, cujo fundador Chales Michel L’Epée tinha como metodologia de ensino o método manual que incorporava a fala. Tal método gerou os “Sinais Metódicos” que, segundo Costa (2010), denominou-se de abordagem gestualista. Segundo Lacerda (1998), os surdos1 que não tiveram a oportunidade de serem alfabetizados desenvolveram algum tipo de linguagem de sinais. Assim, no final do século XVIII, o gestualismo passou a ser a principal abordagem metodológica utilizada na educação para surdos, visto que tal método valorizava bastante a fala, surgindo, então, a oralização, cujo precursor principal foi o abade L’Epée. No ano de 1880, na Itália, foi assediado o Congresso de Milão, onde diversos professores e profissionais da área de educação se reuniram e por algum motivo, professores e alunos surdos não participaram deste evento. Segundo Lima (2004), apenas um professor surdo entre 174 congressistas fez parte do referido congresso. Um dos pontos discutidos e firmado no evento foi a proibição da linguagem de sinais e qualquer forma de comunicação corporal e a erradicação do professor surdo nas escolas.
A educação nessa época não era para todos os surdos, mas sim apenas para os nobres e influentes da sociedade, uma vez que o principal objetivo era o “aprendizado da fala” e para assegurar os direitos legais.
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O método oral, assim, tornou-se oficialmente a única abordagem metodológica que os professores poderiam utilizar na educação de surdos. Desta forma, observamos que no decorrer de toda a história o sujeito surdo em nenhum momento é protagonista de sua própria história, por assim dizer, não lhe é permitido participação social e política. Em contexto brasileiro, em 1856, o Imperador D. Pedro II convida um professor surdo Ernest Huet do “Instituto de Surdo e Mudo de Paris” para fundar o Imperial Instituto de Surdos-Mudos porque era seu desejo. Segundo Ramos (s/d, p.6) “o interesse do imperador D. Pedro II em educação de surdos viria do fato de ser a princesa Isabel mãe de um filho surdo e casada com o Conde D’Eu, parcialmente surdo. Sabe-se que, realmente, houve empenho especial por parte de D. Pedro II quanto à fundação de uma escola para surdos” (RAMOS, s/d, p.6). No ano de 1960, nos Estados Unidos, o pesquisador Willian Stokoe desenvolveu pesquisas no campo da Língua Americana de Sinais - ASL. Com isso, os estudos nessa área tomou um novo rumo no campo da linguística, visto que em suas pesquisas ele estruturou gramaticalmente a referida língua, provando que essa possui as mesmas características linguísticas de uma língua oral. E que, portanto, pode expressar tanto conceitos abstratos quanto concretos, possibilitando uma discussão científica ou um diálogo entre sujeitos. No século XXI, a discussão a respeito dos direitos do sujeito-surdo e de sua educação básica e superior tem se voltado com bastante relevância em contexto brasileiro. Temos percebido, por exemplo, um avanço significativo de pesquisas de mestrado e teses no que tange ao ensino-aprendizagem da disciplina de Língua Brasileira de Sinais (doravante Libras) tanto para surdos quanto para ouvintes – LODI (2004); FARIA-DO-NASCIMENTO (2009); DUARTE (2011), apenas para citar alguns. Isso se deve, provavelmente, pelo fato de que tal língua foi oficializada e regulamentada, em âmbito nacional, em 2002 – Lei 10.432/02 e Decreto 5.626/05 – e; por conseguinte, a criação do Curso de Letras Libras, na Universidade Federal de Santa Catarina, em 2005, bem como nas Universidades Federal de Goiás, Paraíba e atualmente na Universidade Federal de Mato Grosso, em 2014.
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Sabemos, entretanto, que desde meados de 1980 Lucinda Ferreira Brito (1984, 1990, 1993, 1995) já vinha pesquisando sobre os aspectos linguísticos da Libras; também, porém, na década de 90, houve várias produções acadêmicas pontuais em diferentes estados do país, quais sejam: Felipe (1998), Karnopp (1994, 1999) e Quadros (1997, 1999). Em decorrência disso, tem havido uma demanda recorrente por profissionais e especialistas da Libras qualificados, de modo que novas metodologias de ensino e novos conceitos de como ensinar-aprender Libras para surdos e ouvintes tem ganhado espaço em âmbito escolar e acadêmico. Assim, a obrigatoriedade da disciplina de Libras nos cursos de Licenciaturas veio na tentativa de formar professores proficientes em Libras que consigam, portanto, suprir tal demanda. Contudo, algumas pesquisas, inclusive essa, têm mostrado que a formação inicial e continuada desses profissionais ainda não tem sido profícua. Os motivos de tais questões são diversos, como: a carga horária insuficiente, a ausência de profissionais capacitados (professores e intérpretes), visões pré-concebidas sobre o sujeito surdo e a surdez, a grande incidência de sujeitos surdos analfabetos em Libras e na escrita da língua portuguesa etc. Sendo assim, esse trabalho se volta para refletir sobre as imagens construídas pelos futuros professores acerca do sujeito surdo e da surdez. Para tanto, serão tecidas discussões à luz da teoria de Bakhtin e o Círculo, a fim de pensarmos tais questões a partir dos conceitos de signo ideológico, enunciado concreto e relações dialógicas. O surdo, a surdez e a linguagem O corpus analisado corresponde a 16 questionários aplicados a alunos da disciplina de Libras I dos cursos de Licenciaturas em Física, Química e Matemática da Universidade Federal de Mato Grosso Campus Sinop. Neste trabalho, discutiremos sobre duas questões das doze respondidas pelos alunos entrevistados, notadamente: i) O que significa ser surdo? ii) O que significa Língua Brasileira de Sinais (Libras)?
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No que se refere a primeira questão, 56,25% dos prováveis professores, como podemos observar no gráfico abaixo, concebem o sujeito surdo como um deficiente, ou seja, aquele que “necessita de cuidados e de atenção por parte dos familiares”, como disse um aluno entrevistado.
Gráfico 1 – O olhar do aluno acerca do sujeito surdo Nesse sentido, a imagem ideológica construída acerca do sujeito surdo está alicerçada no discurso médico, no pensamento clínico que toma o ouvinte como modelo de normalidade. Bakhtin/Volochínov (2010 [1929], p. 140) assevera que toda enunciação carrega um tom apreciativo-valorativo acerca do objeto contemplado, visto que “não se pode construir uma enunciação sem modalidade apreciativa. Toda enunciação
compreende
antes
de
mais
nada
uma
orientação
apreciativa”
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010 [1929], p. 140 ênfase do autor). Tal imagem corrobora a ideia de diminuição, de inferioridade cognitiva e linguística do sujeito surdo no decorrer da história da humanidade. Segundo Costa (2010, p.17) “a posição-sujeito surdo patológico é proveniente do discurso médico, e torna o aluno um paciente a ser diagnosticado. A posição-sujeito surdo anormal é aquela que mostra o surdo que não é segundo a norma, exatamente por não ser ouvinte” (COSTA, 2010, p.17). Assim, o surdo participante de uma comunidade linguística e culturalmente organizada, não se vê como “deficiente auditivo” ou com algum déficit no aparelho
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fonador ou auditivo, isto é, para a comunidade surda a questão da falta/deficiência da audição não é o ponto mais importante a ser considerado. O surdo, portanto, define-se como sujeito situado sócio-historicamente com sua cultura e língua (SÁ, 2006). Já 18,75% argumentam que ser surdo é não conseguir interagir com o mundo externo, com as pessoas e, por conseguinte, possui “dificuldades de comunicação”. Talvez isso seja pelo fato de que a Língua Brasileira de Sinais é uma língua que se realiza por meio, principalmente, das mãos, do corpo, de expressões faciais, como toda língua de sinais; ou seja, é uma língua espaço-visual. Além disso, há muitos mitos2 acerca das línguas de sinais, como: alguns pensam que tais línguas são universais, que não há uma estrutura linguística, que são mímicas, desenhos, gestos aleatórios. Ou seja, é uma língua simples e “pobre” linguisticamente, pois não se consegue transmitir determinados conceitos abstratos, por exemplo. A este respeito muitas pesquisas já demonstraram que as línguas de sinais são consideradas línguas naturais pela linguística, visto que, conforme as pesquisadoras Quadros & Karnopp (2004, p. 30), compartilham uma série de características que lhes atribui caráter específico e as distingue dos demais sistemas de comunicação [...] Stokoe, em 1960, percebeu e comprovou que a língua de sinais atendia a todos os critérios linguísticos de uma língua genuína, no léxico, na sintaxe e na capacidade de gerar uma quantidade infinita de sentenças (QUADROS & KARNOPP, 2004, p. 30).
Por outro lado, os dados apontam um percentual de 25% de alunos entrevistados que entendem o sujeito surdo como uma pessoa comum, um cidadão igual a qualquer outro com direitos e responsabilidades. Estes entendem que o sujeito surdo utiliza outra modalidade para se comunicar e se expressar, ou seja, a Libras é compreendida como uma língua que dá conta de promover a interação verbal entre os surdos e entre surdo e ouvintes. Portanto, a referida língua é tomada como um signo ideológico, conforme nos lembra Bakhtin/Volochínov (2010 [1929], p. 36) “A palavra é o fenômeno ideológico por excelência [...] A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010 [1929], p. 36 ênfase do autor).
Cf. a este respeito a obra “Língua de sinais brasileira – estudos linguísticos” das pesquisadoras Ronice Quadros e Lodenir Karnopp, de 2004.
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No atinente a questão “O que significa Língua Brasileira de Sinais (Libras)?”, os dados revelaram que a concepção de sujeito está intrinsicamente ligada a concepção de linguagem, visto que é na e pela linguagem que os sujeitos se constituem. Como podemos observar no gráfico 2 abaixo:
Gráfico 2 – A concepção do aluno sobre a Língua Brasileira de Sinais No gráfico 2, observamos que a maioria dos discentes entrevistados (62,50%) responderam que a Libras é a língua que o surdo-mudo, os deficientes e as pessoas que têm problemas especiais utilizam para se comunicarem na sociedade, como podemos ver nas falas de alguns: A53: “Método para aprendizar a Língua de Sinais no país, e então facilitar a comunicação e a acessibilidade.” (sic) A7: “Um modo de linguagem criado para que os surdos-mudo pudessem se comunicar ou entre eles e com pessoas que se dispõe a aprender.” (sic) A10: “Comunicação com quem tem problemas especiais.” (sic) A12: “Uma forma de se comunicar em sinais, utilizados por pessoas surda-muda e não surdo-mudo, essa forma de se comunicar é considerado uma lingua mundialmente conhecida, porque essa linguagem não é simplesmente gestos, ela segue uma série de regras.” (sic) A16: “é uma forma de se conversar com uma pessoa com deficiência auditiva, através de movimento das mãos”.
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“A” corresponde ao aluno.
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Aqui percebemos que embora a Libras tenha sido regulamentada, em 20054, como a segunda língua oficial da nação brasileira, há ainda uma forte presença, nas falas dos discentes, do discurso médico, clínico que, por sua vez, se alicerçar no da deficiência, da anormalidade. A Libras é tomada como um código linguístico inferior, simplista e, em boa medida, uma língua primitiva. As expressões utilizadas (acessibilidade, surdo-mudo, problemas especiais, dificuldades auditivas, deficiência) pelos discentes, para definir a Libras, são prenhes de ecos e nuanças valorativas que refratam a condição do sujeito surdo na sociedade como um ser inferior intelectual e culturalmente. Segundo Costa (2010, p. 62) “[...] ao pensarmos a expressão surdo-mudo relacionada a libras como primeira língua do surdo, podemos afirmar que ao ter a língua de sinais recebido o status de língua, o surdo não deveria ser visto como mudo”, isso porque, segundo a mesma autora, o sujeito surdo passa a ganhar fala e, portanto, sai do silêncio da comunicação, passando, assim, a interagir socialmente com o Outro. Esse dado revela que, boa parte dos estudantes das licenciaturas, ainda concebem o surdo como um “surdo-mudo”, uma vez que a Libras – língua pela qual o sujeito surdo se constitui, se faz ser na existência – é tomada como uma língua inferior, desprestigiada sócio-historicamente. Além disso, a apreciação - valorativa da expressão “surdo-mudo” dada pelos entrevistados é carregada de ecos e ressonâncias ideológicas e culturais. A este respeito, Bakhtin/Volochínov, (2009 [1929], p. 99) pontua que “[...] não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas
ou más, importantes ou triviais,
agradáveis
ou desagradáveis,
etc.”
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, (2009 [1929], p. 99). Apenas 12,50% disseram que a Libras é a língua materna do surdo e a segunda língua oficial do Brasil. A6: É a segunda língua oficial do Brasil, uma conquista enorme para a comunidade surda e um avanço para que ocorra a inclusão no país - falta sua inclusão no currículo escolar. (sic.) A11: Ao meu ver: Uma das duas linguas oficiais Brasileiras. Através de sinais e gestos. (sic.)
A Libras foi oficializada em 2002 (Lei Federal nº 10.436/02) e regulamentada em 2005, conforme o Decreto 5.626/05.
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Tal incidência parece demonstrar que os (futuros) professores não compreendem a Libras como uma língua natural, uma língua semelhante a língua portuguesa, por exemplo. Isso é bastante preocupante, uma vez que os entrevistados (provavelmente) serão professores de alunos surdos cuja língua materna é a Libras. Outros 25% deram respostas diversas que não se relacionavam, propriamente, com o que foi perguntado. Considerações Finais Destacamos, portanto, que nos enunciados/enunciações analisados por esta pesquisa, encontramos falas relevantes para pensarmos a condição do sujeito surdo e da Libras na sociedade; porém houve muitas outras retrógradas ou equivocadas que, de certa maneira, ainda sustentam o discurso patológico, médico acerca do surdo, da surdez e da Libras. Sendo assim, as reflexões aqui feitas a partir das análises não têm a pretensão de apesentar todas a respostas para a problemática levantada, mas sim de suscitar novas pesquisas e abrir caminhos para novas indagações e ressignificações. Referências Bibliográficas BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2009. _________. [1952-1953] Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da Criação Verbal. Trad. de Paulo Bezerra, São Paulo: Martins Fontes, 2010. COSTA, J. P. B. A educação do surdo ontem e hoje: posição sujeito e identidade. Campinas-SP: Mercado de Letras, 2010. LACERDA, C. B. F. A prática fonoaudiológica frente às diferentes concepções de linguagem. Espaço, Rio de Janeiro, nº 10, p. 30-40, dez./1998.
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LIMA, M. S. Surdez, bilinguismo e inclusão. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Estadual de Campinas, 2004. LODI, A. C. B. A leitura como espaço discursivo de construção: uma oficina com surdos. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL) da PUC-SP, 2004. QUADROS, Ronice Muller de. Educação de Surdos: a aquisição da linguagem. Porto Alegre: Artmed, 1997. ________________________; KARNOPP, Lodenir Becker. Língua Brasileira de Sinais – Estudos Linguísticos. Porto Alegre: Artmed, 2004. RAMOS, C. R. LIBRAS: A Língua de Sinais dos Surdos Brasileiros. Petrópolis-RJ: Editora
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n.
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Disponível
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AS RELAÇÕES RETÓRICAS DOS TÓPICOS DISCURSIVOS NAS SUBDIVISÕES DO SERMÃO BÍBLICO
Simone Maria Barbosa Nery Nascimento (UEM)
Introdução Neste trabalho, com o objetivo de descrever a organização textual de sermões bíblicos, adotamos como fundamento teórico a Teoria da Estrutura Retórica (RST), e como categoria de análise, selecionamos o tópico discursivo, tal como postulado nos estudos de textos falados sob a orientação do Grupo de Organização Textual-Interativa. A RST contribui no sentido de descrever as relações estabelecidas entre porções do texto. Nesse sentido, a organização acontece pela constituição dessas partes em relação, formando as partes maiores, compreendendo o texto todo (MATTHIESSEN; THOMPSON, 1988). Com o intuito de demonstrar as relações existentes na macroestrutura textual que contribuem também para a organização temática do texto, foram analisados três sermões bíblicos, tendo cada um uma estrutura diferente. O corpus foi coletado em uma igreja evangélica na cidade de Maringá-PR. Verificou-se que a identificação das relações retóricas dos tópicos discursivos favorece a visualização do tema e das suas divisões. Dessa forma, acredita-se que, por se tratar de organização textual, a articulação proposta entre a teoria (RST) e a categoria de análise (tópicos discursivos) possa contribuir na produção, não somente de sermões, mas de outros gêneros falados que requerem um planejamento prévio, como, por exemplo, aulas, palestras, ou até mesmo gêneros da modalidade escrita.
Fundamentação Teórica A Teoria da Estrutura Retórica (Rhetorical Structure Theory-RST) é uma teoria descritiva de origem norte-americana e que tem como objeto o estudo da organização do
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texto, caracterizando as relações que emergem entre porções do texto (MANN & THOMPSON, 1988). Mann e Thompson (1987) estabeleceram uma lista de vinte e cinco relações. Segundo os autores, essa lista não representa um rol fechado, eles destacam que outras relações podem surgir, no entanto, a lista estabelecida inclui as relações que afirmam ser suficientes para a análise dos textos que têm examinado. Os autores ressaltam que o quadro fornecido para a investigação das relações definem não relações sinalizadas, ou seja, as relações podem não apresentar uma marca formal. Uma relação de condição, por exemplo, pode não estar marcada pela conjunção “se”. Assim, o reconhecimento de uma relação não depende da presença de aspectos morfológicos ou sintáticos, mas repousa nos julgamentos semântico e funcional. Dessa forma, além do conteúdo proposicional explícito veiculado pelas orações, há proposições implícitas que permeiam todo o texto. Essas proposições são inferidas da estrutura do texto e são fundamentais para o estabelecimento de sua coerência. Segundo Mann e Thompson (1987), as relações estabelecidas pela RST podem estar presentes tanto na microestrutura (entre orações) quanto na macroestrutura do texto (entre porções maiores). A macroestrutura fornece a informação global de um texto enquanto a microestrutura abarca as sentenças adjacentes. Algumas relações são identificadas na microestrutura textual, outras na macroestrutura, e existem aquelas que aparecem tanto na macroestrutura quanto na microestrutura do texto. As funções das relações podem ser apresentadas em dois grupos: a) funções que dizem respeito ao assunto, que têm como efeito levar o destinatário reconhecer a relação em questão. Fazem parte desse grupo as seguintes relações: elaboração, circunstância, solução, causa volitiva, resultado volitivo, causa não-volitiva, resultado não-volitivo, propósito, condição, interpretação, meio, avaliação, reafirmação, resumo, sequência e contraste;
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b) funções que dizem respeito à apresentação da relação, que têm como efeito aumentar a inclinação do enunciatário a agir de acordo com o conteúdo do núcleo, concordar com o conteúdo do núcleo, acreditar no conteúdo do núcleo ou aceitar o conteúdo do núcleo. Fazem parte desse grupo as relações a seguir: motivação, antítese, fundo, competência, evidência, justificativa, concessão e preparação. As relações, em sua maioria, são do tipo núcleo-satélite. Dessa forma, em uma relação, uma extensão de texto é considerada como sendo a parte principal, e a outra, a parte que oferece subsídio, respectivamente. Nesse caso, têm um grau de dependência semelhante às orações hipotáticas. Algumas relações são paratáticas, consistem de dois ou mais núcleos. Nesse sentido, as relações se organizam de duas formas e podem se apresentar em dois grupos: 1) Relações núcleo-satélite: uma porção do texto (satélite) é ancilar da outra (núcleo). Figura 01- Esquema de relação núcleo-satélite
2) Relações multinucleares: uma porção do texto não é ancilar, mas cada porção constitui um núcleo distinto, conforme esquema representado pela Figura 02.
Figura 02 – Esquema de relação multinuclear
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A estrutura retórica de um texto, representada por um diagrama arbóreo, é definida pelas redes de relações que se estabelecem entre as porções desse texto. Em uma análise, o primeiro passo é segmentar o texto em unidades. O tamanho da unidade é arbitrária, ou seja, não existe tamanho estabelecido, mas essa divisão em unidades deve ser baseada em alguma classificação teórica. Em estudos orientados pela perspectiva textual-interativa, a unidade de análise, de estatuto discursivo, considerada pertinente aos fundamentos teóricos estabelecidos foi o tópico discursivo. Conforme Jubran (2006), o Grupo de Organização Textual-Interativa, ao estudar a macroestrutura textual, verificou que o processo básico de construção textual é o da topicalidade: quando, em um evento comunicativo, os interlocutores centram sua atenção sobre determinados temas, que se constituem como foco da interação verbal. Estabeleceu-se, portanto, a categoria de tópico discursivo para operar recortes de segmentos textuais, que se constituem como unidades de análise para o estudo do texto. No Brasil, conforme Jubran (2006, p.33), a noção de tópico surge com as pesquisas do Grupo de Organização Textual-Interativa do PGPF e, fortemente, em análises de discurso dialogado. O tópico discursivo, então, passa a ser entendido como o elemento que compõe, organiza e fundamenta o texto falado. A categoria analítica de tópico discursivo surge para operar recortes de segmentos textuais, de forma que o analista seja capaz de identificar o que se fala e como isso é organizado no texto. Para Fávero (2001, p.39), “A noção de tópico é de fundamental importância para o entendimento da organização conversacional e é consenso entre os estudiosos que os usuários da língua têm noção de quando estão discorrendo sobre o mesmo tópico, de quando mudam, cortam, criam digressões, retomam, etc”. Nessa perspectiva, o tópico abrange as propriedades de centração e organicidade. A centração diz respeito ao conteúdo, e a organicidade se manifesta por relações de interdependências entre os tópicos que se estabelecem nos planos hierárquico e sequencial.
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A centração destaca a referencialidade textual: o tópico é tomado no sentido de “acerca de que se fala”, implicando a utilização de referentes explícitos ou inferíveis e cumprindo a função representativo-informacional da linguagem. A centração, primeira propriedade definidora do tópico discursivo, então, aponta para o direcionamento dos diversos enunciados formadores de um tópico para o desenvolvimento de um mesmo tema e abrange os traços de concernência, relevância e pontualização:
a) a concernência - relação de interdependência entre elementos textuais, firmada por mecanismos coesivos de sequenciação e referenciação, que promovem a integração desses elementos em um conjunto referencial, instaurado no texto como alvo da interação verbal; b) a relevância – proeminência de elementos textuais na constituição desse conjunto referencial, que são projetados como focais, tendo em vista o processo interativo; c) a pontualização – localização desse conjunto em determinado ponto do texto, fundamentada na integração (concernência) e na proeminência (relevância) de seus elementos, instituidas com finalidades interacionais (JUBRAN, 2006, p. 35).
De acordo com Jubran (2006), os traços de concernência, relevância e pontualização devem ser observados em uma perspectiva referencial e interacional. Da mesma forma, Galembeck (2005, p.279) expõe que “o tópico discursivo só pode ser compreendido dentro do processo interacional, já que a interação interfere diretamente na seqüência tópica”. Para Fávero (2001, p.40) “a centração norteia o tópico de tal forma que, quando se tem uma nova centração, tem-se um novo tópico”. A centração está relacionada, portanto, ao conceito de conteúdo e, a partir de suas propriedades, pode-se delinear o que se compreendia por assunto ou tema.
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Segundo Maynard (1990 apud JUBRAN et al, 2002), os estudos mais recentes demonstram que o tópico não é mais visto apenas como uma noção de conteúdo, visto que “aquilo de que se fala” não pode ser desvinculado do “como se fala” (MAYNARD, 1980 apud JUBRAN et al, 2002). A partir dessa característica de elemento organizador que o tópico tem no texto, postula-se a sua segunda propriedade. A organicidade, o segundo traço definidor de tópicos,
...é manifesta por relações de interdependência que se estabelecem simultaneamente em dois planos: no plano hierárquico, conforme as dependências de superordenação e subordenação entre tópicos que se implicam pelo grau de abrangência do assunto; no plano seqüencial, de acordo com as articulações intertópicas em termos de adjacências ou interposições na linha discursiva (JUBRAN et al, 2002, p. 345).
Segundo os autores, as relações de interdependências estabelecidas entre os tópicos, de acordo com o grau de abrangência do assunto, levam-nos a postular a existência de níveis de hierarquização na estruturação tópica. Assim, é possível verificar camadas de organização, que vão desde um tópico suficientemente amplo, passando por tópicos particularizadores, até se alcançarem constituintes tópicos mínimos. Em decorrência disso, denominações como supertópico e subtópico, embora deixem transparecer a noção de hierarquia, não definem nenhum desses tópicos, pois um subtópico pode passar a funcionar como supertópico em outro nível da organização. Galembeck (2005) salienta que a organicidade pode ser observada em dois planos, o linear ou horizontal e o vertical. O linear indica a relação entre os tópicos em sua linearidade, noção pela qual compreendemos o fenômeno de continuidade, quando há organização sequencial dos tópicos e o fenômeno de descontinuidade, marcada pela perturbação na sequencialidade. O plano vertical refere-se às relações de interdependência existentes entre um determinado tópico e suas subdivisões.
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Conforme Fávero (2001), é no plano linear que se encontra a introdução de informações novas, e, ainda, nesse âmbito da progressão temática que se encontram os fenômenos básicos que caracterizam a distribuição dos tópicos na linearidade discursiva e apontam para articulação intertópica: a continuidade e a descontinuidade. As inserções constituem as digressões. Jubran et al consideram dois tipos de digressões:
a) digressões baseadas no enunciado: que ocorrem quando o segmento inserido constitui um tópico que se relaciona, de algum modo, a outro (s) tópico (s) da conversação, por se subordinar a algum tópico hierarquicamente superior a que esse (s) outro (s) tópico (s) também se submete (m); b) digressões baseadas na interação, que não apresentam relações de conteúdo com outro (s) tópico (s), justificando-se por contingências interacionais (JUBRAN et al, 2002, p. 349).
De acordo com Jubran (2006), inserções parentéticas são desvios do tópico. Elas trazem informação paralela sobre o conteúdo, sobre a expressão linguística ou sobre o contexto comunicativo. Embora as inserções possam parecer desviantes, elas estão amarradas ao tópico por trazerem informação considerada importante pelo falante.
Metodologia Com o objetivo de investigar a constituição do sermão e como as relações retóricas contribuem para a sua organização textual, foi analisada a macroestrutura de três sermões, sendo um de cada tipo: textual, temático e expositivo. Neste trabalho, portanto, realizou-se um recorte da macroestrutura para apresentar as relações que emergem das principais divisões dos sermões (entre as subdivisões). Os dados foram coletados em uma igreja evangélica na cidade de Maringá-PR. Após transcritos,
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procedeu à segmentação dos textos em tópicos discursivos para, posteriormente, verificar as relações retóricas entre essas porções tópicas segmentadas.
Análise e discussão dos resultados O sermão é um discurso religioso que, nos dias de hoje, segue os princípios da Homilética. A Homilética é uma disciplina que surgiu com a retórica grega e a oratória romana. Existem basicamente três métodos de constituição do sermão: temático, textual e expositivo. De forma geral, na macroestrutura dos sermões, apresentam-se a leitura bíblica, a introdução, as divisões (desenvolvimento) e a conclusão. Neste trabalho, essas divisões foram consideradas tópicos discursivos, entre as quais foram analisadas as relações existentes. Serão apresentadas neste trabalho, portanto, as relações encontradas entre as subdivisões do desenvolvimento dos sermões. Sermão expositivo No sermão expositivo, as divisões principais se derivam do texto, e consistem em ideias progressivas que giram em torno de uma ideia principal. O tema é extraído de vários versículos em vez de um único, baseia-se em uma porção extensa das Escrituras, alguns versículos, capítulo inteiro, ou até mesmo um livro. Na macroestrutura do sermão expositivo, foram encontrados oito tópicos: texto bíblico, oração, introdução, tópico de transição, três subdivisões do tema e conclusão. Neste trabalho, serão apresentadas as relações que se diferem dos outros dois tipos de sermão na macroestrutura, ou seja, as relações retóricas entre as subdivisões temáticas. Como no sermão expositivo há maior compromisso com a sequencialidade do texto bíblico do que nos outros tipos de sermão, nas principais divisões, foram identificadas relações de sequência. Segue a definição da relação.
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QUADRO 01:
No sermão analisado, a sequência das subdivisões rotuladas promessa, provação e provisão retratam as fases pelas quais Abraão - com base no livro de Gênesis, capítulos 21 e 22 - passou e que os servos de Deus também passam nos dias atuais.
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Sermão temático O sermão temático é determinado pelo assunto. Esse tipo de sermão é o mais utilizado em ocasiões específicas por possibilitar, tendo em vista a ocasião, a escolha do tema. Uma vez escolhido o tema, buscam-se os textos bíblicos para formar as divisões principais. Essa ordem não é uma regra, no entanto, ressalta-se que o tema é o que determina o sermão. No sermão temático, portanto, o pregador tem a liberdade para escolher as divisões e retirá-las de qualquer parte recorrendo a toda extensão bíblica. Como dito, no sermão temático, o pregador tem liberdade para trabalhar com o tema. No sermão analisado, o tema se justifica tendo em vista as suas condições de produção, ou seja, foi produzido em uma situação de encontro de líderes e pastores, onde o pregador expõe – com base no livro de Atos dos Apóstolos – uma sequência possível na vida da pessoa que exerce uma função no apostolado. O tema “chamado de Deus” tem as seguintes subdivisões: chamado a Cristo, chamado à consagração, chamado à frutificação. Cada uma das divisões foi retirada de livros e capítulos bíblicos diversos.
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Sermão Textual No sermão textual, as divisões principais derivam de um texto bíblico mais ou menos breve. As divisões principais devem desenvolver a ideia, as próprias palavras do texto podem formar as divisões principais do sermão. No sermão textual analisado, apesar de o pregador ter retirado as divisões da sequência do texto, não há uma sequência cronológica entre as divisões. As relações estabelecidas entre as principais divisões foram a de lista. Segue a definição da relação.
QUADRO 02:
As divisões do sermão aparecem, portanto, em um lista, conforme seguem os rótulos do tópico e dos subtópicos:
Características do discípulo do senhor: paz
incondicional, comunhão indispensável, missão intransferível e unção imensurável (Jo, 20:19-22).
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Considerações finais Como visto, há uma sequência lógica (progressão temática) em alguns casos e uma sequência lógica e cronológica em outros casos, o que depende do texto bíblico, mas mais ainda da intenção do locutor. O texto bíblico escrito serve de base para o sermão. Dele, o pregador extrai os tópicos para a elaboração do esboço e o desenvolve, orientando a organização da exposição oral. Por se tratar de um gênero em que o tema geral e as divisões temáticas são bem marcados, com a categoria analítica dos tópicos, foi possível identificar melhor
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a organização temática do texto. A RST possibilitou o exame das relações no sentido de verificar a coerência dentro dessa organização temática. Os estudos relacionados à RST permitem verificar, por meio de relações implícitas entre porções de texto, como é produzida a organização dinâmica e coerente do texto. Além do conteúdo proposicional explícito veiculado pelas orações, as análises com base na RST dão conta de identificar as relações implícitas entre as porções do texto postuladas como proposições relacionais. Como os tópicos discursivos também sugerem a reafirmação da existência de organização do/no texto falado, foi possível integrar essa categoria de análise ao presente trabalho. A topicalidade instaurada como o princípio organizador do discurso contribui para a identificação das relações retóricas, da mesma maneira que as relações retóricas sugeriram uma análise mais completa para o estudo dos tópicos discursivos. Dessa forma, o presente trabalho pôde contribuir para a descrição do gênero sermão a fim de apreender suas características básicas.
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JUBRAN, C.C.A.S. et al. Organização tópica da conversação. In: ILARI, Rodolfo (Org.). Gramática do Português Falado. Volume II. Níveis de análise linguística. 4.ed.rev. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2002, pp.341-377. ________ A Perspectiva textual-interativa. In: Gramática do português culto falado no Brasil. Campinas: UNICAMP, 2006a. ________ Tópico Discursivo. In: Gramática do português culto falado no Brasil. Campinas: UNICAMP, 2006. KOCH, I. V. Lingüística do Discurso: o salto qualitativo. Anais do II Seminário do Centro deEstudos Lingüísticos e Literários do Paraná, UEL, Londrina, p. 200-212, 1988. KOCH, I. V. et al. Aspectos do Processamento do Fluxo de Informação no Discurso oral Dialogado. In: CASTILHO, A. T. (org). Gramática do Português Falado. Campinas: Editora da Unicamp, Vol. I, 1990. MANN, W.C.; TABOADA, M. RST Web Site. 2010. Disponível em . Acesso em 20/07/2014 MANN, W. C.; THOMPSON, S. A. Rhetorical Structure Theory: a framework for the analysis of texts. ISI/RS-87-185, 1987. MANN, W.C.; THOMPSON, S.A. Rhetorical Structure Theory: toward a functional theory of text organization. Text, New Work, v. 8 (3):243-271, 1988.
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O GÊNERO DISCURSIVO CARTA DO LEITOR E POSSIBILIDADES DE TRABALHO COM A LEITURA E A ESCRITA Simone Silvia Bedin COELHO1 (PG – PROFLETRAS /UNIOESTE/CAPES) 1. Introdução A partir da década de 1980, os estudos que envolvem a Língua Portuguesa pautam-se no texto como unidade fundamental de ensino, já que é nele que se revela o real uso da língua. Logo, ao ensinar a língua “só o texto pode ser ponto de partida” (BAKHTIN, 2003, p. 308), ou, como afirma Geraldi, o texto deve ser tomado como “ponto de partida (e de chegada) de todo o processo de ensino aprendizagem da língua” (GERALDI, 2013, p. 135). Ao tomar o texto como instrumento de ensino e a linguagem como elemento concreto de uso, partimos de um “contexto social, histórico e ideológico que envolve sujeitos os quais sustentam seus discursos” (GEDOZ e COSTA-HÜBES, 2014, p. 14). Uma vez situados esses discursos sócio-historicamente, é preciso reconhecer, de acordo com Bakhtin (2003), os seus elementos constituintes “o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional” (BAKHTIN, 2003, p.262) que, pela indissolubilidade do enunciado, determinam e são determinados pelo campo de comunicação, uma vez que “cada enunciado é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominam gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2003, p.262). Assim, ao compreender que há um contexto que envolve toda a situação enunciativa, compreendemos, também, que é no processo de interação que os discursos se constroem e adquirem sentidos. A partir deste pensamento, fazemos uma abordagem sobre o gênero discursivo como instrumento de ensino, pautada nos estudos do Círculo de Bakhtin, e na concepção sócio-histórica e dialógica de linguagem para o ensino de Língua Portuguesa, que aponta para o ensino da língua em situação de uso concreto. Essa concepção também é adotada pelas Diretrizes Curriculares Estaduais (DCE) de Língua Portuguesa, 1
Professora veiculada ao Programa do Observatório Social UNIOESTE/ CASACAVEL, como voluntária.
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no Estado do Paraná (2008), que sustentam a proposta de ensino nos pressupostos bakhtinianos e compreendem, então, o texto como discurso e o “discurso enquanto prática social” é apontado como conteúdo estruturante da disciplina, por ser compreendido como prática para investigação, associado às condições de produção dos enunciados, isto é, dos textos/discursos. Para tanto, adotamos os encaminhamentos propostos pela Sequência Didática (SD), porque “é um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito” (DOLZ, NOVERRAZ e SCHNEUWLY, 2004, p. 97- 98) e, assim, permite planejar todo o percurso para se atingir a aprendizagem dos estudantes. Todavia, para esta proposta, recorreremos às adaptações da proposta genebrina, organizada por Costa-Hübes (2008) por entender que esta atende, com mais especificidade, à realidade do ensino brasileiro e por contemplar, em seus encaminhamentos, os preceitos bakhtinianos de estudo dos gêneros. E, pelo fato de partirmos de uma situação real de uso de linguagem, uma vez que estamos inseridas no cotidiano escolar, esta pesquisa volta-se para o campo da Linguística Aplicada. 2. Linguagem e língua; enunciado e interação Reconhecer que a linguagem é fundamental para o desenvolvimento dos seres humanos significa dar a ela a real importância, já que é por meio da linguagem que assumimos atitudes responsivas e que colocamos em pauta nossas ideias. A escrita e a fala são, nesse contexto, formas de linguagem, por meio das quais podemos exercer nossa interação na sociedade. Todavia, ao conceituar a linguagem, conceitua-se também a língua e o enunciado, uma vez que ela se constitui também por meio desses elementos que, por sua vez, promovem a interação. Sendo assim, linguagem, língua, enunciado e interação são conceitos que se imbricam e, portanto, não há como tratá-los separadamente. Partindo dessa compreensão, destacamos o caráter dialógico da linguagem, de sua concepção do ponto de vista histórico, cultural e social. O dialogismo “é um conceito que desempenha papel fundamental no conjunto de obras de Bakhtin, funcionando como célula geradora dos diversos aspectos que singularizam e mantêm
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vivo o pensamento desse produtivo teórico” (BRAIT, 1994, p. 11, apud BRAIT, 2005, p. 92). Tomando como base essa compreensão, admitimos que tudo o que dizemos ou escrevemos advém de outros enunciados, de um diálogo constante com os já-ditos, reorganizando-os e direcionando-os para um novo projeto discursivo e dirigidos a interlocutores concretos, em uma situação efetiva de comunicação veiculada a um contexto de produção. A partir daí somos capazes de compreender a amplitude e a “assimilação ideal de uma língua dá-se quando o sinal é completamente absorvido pelo signo e reconhecido pela compreensão” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1995, p. 94). Por isso, não basta apenas reconhecer a língua enquanto sinal, símbolos (letras, fonemas, morfemas, palavras etc.), mas é preciso ir além da simples decodificação desses sinais para interpretar seus elementos constituintes nem sempre visíveis, porém, determinados pelo contexto. Logo, é preciso traçar um percurso, o qual considera que as diversas formas
de
linguagem
resultam
das
experiências
sociais
e
dos
elementos
extralinguísticos ligados à comunicação verbal, “o texto é sempre uma atitude responsiva a outros textos, desse modo, estabelece relações dialógicas” (PARANÁ, 2008, p. 51). Cada texto corresponde a um enunciado e representa uma situação única de uso da linguagem e é aí que reside a importância do trabalho com os gêneros discursivos em sala de aula. 3. Gêneros discursivos e seus elementos constituintes A concepção da natureza social e o caráter dialógico e interacional da língua que trata da linguagem ligada aos diversos campos da atividade humana, permite compreender a diversidade de enunciados que emanam das situações sociais de interação, os quais determinam e permitem a construção de enunciados que, por sua vez, se configuram em um gênero discursivo. Os gêneros discursivos representados por textos, referências para leitura e produção, possibilitam a ampliação do domínio discursivo na formação do sujeito, uma vez que se revelam em amplas possibilidades discursivas, haja vista que “A riqueza e a diversidade dos gêneros discursivos são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana. [...], a heterogeneidade dos gêneros
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discursivos é tão grande que não há e nem pode haver um plano único para o seu estudo [...]” (BAKHTIN, 2003, p. 262). Tal riqueza e diversidade revelam sua heterogeneidade discursiva que contemplam a função social e comunicativa de diferentes esferas da sociedade. A compreensão de que dentro do processo de leitura e de produção escrita cada produção é única, uma vez que se constituem em enunciados; e que a sua reprodução é um novo acontecimento; logo, requer nova compreensão e atitude responsiva tanto por parte do sujeito-leitor quanto do sujeito-autor que produz o texto, seja ele oral ou escrito. Dessa forma, o trabalho com os gêneros na sala de aula, deve pautar-se em objetivos específicos para o desenvolvimento da linguagem de maneira que possibilite o encontro desses sujeitos com as várias esferas sociais de circulação, possibilitando a compreensão da constituição dos gêneros, conforme reflexões a seguir. Bakhtin/Volochinov (1995), ao efetivar os estudos sobre a linguagem na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, publicada primeiramente em 1929, defendendo-a na perspectiva da interação, embora não a tenha tratado na perspectiva do ensino, apresentou uma ordem metodológica para estudos da língua que, segundo os autores, contemplariam estes três elementos: 1. As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza. 2. As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos, isto é, as categorias de ato e de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal. 3. A partir daí, exames das formas da língua na sua interpretação linguística habitual (BAKHTIN, 1995, p. 124).
Conforme esse percurso metodológico, ao analisar o texto, lugar onde a língua se revela em toda a sua integridade, devemos levar em consideração as “formas e os tipos de interação verbal” em condições sociais concretas de uso. Por “formas” interpretam-se as diferentes situações de uso da linguagem, materializadas nos gêneros discursivos que configuram “os tipos de interação”, ou seja, o querer-dizer do autor. Esse conteúdo temático deve ser relacionado ao seu contexto de produção, isto é, “condições concretas em que se realiza” e, para recuperar essas condições, ao ler um texto, por exemplo, devemos proceder a alguns questionamentos como: quem produziu, para quem, por que, quando, em que suporte, para qual veículo, etc.. Tais
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questionamentos permitem uma compreensão mais ampla por contemplarem aspectos que extrapolam o texto propriamente dito, estendendo-o ao seu contexto de produção. A análise das “distintas formas de enunciações”, o segundo item da proposta metodológica, consiste em verificar como as formas dos diferentes enunciados, definem a construção composicional do gênero, já que a finalidade do gênero determina a forma como este será organizado, contribuindo, assim para sua compreensão. Por isso, vê-se a importância do estudo da construção composicional e a sua contribuição para a organização de outros textos do gênero e como a língua se realiza nesta organização para a produção de sentidos do texto. E por fim, o último passo da ordem metodológica aponta para a necessidade de estudar “as formas da língua na sua interpretação linguística habitual”, ou seja, o modo como a língua se organiza para cumprir a função comunicativa no processo de interação e como esses recursos estilísticos refletem no processo de evolução e constituição da língua. A Carta do Leitor O gênero carta do leitor é um subgênero da carta, segundo Bezerra (2003), devido a suas semelhanças na estrutura básica, mas com diferentes classificações. O estudo que aqui realizamos está alicerçado no método sociológico da linguagem do Círculo de Bakhtin. Assim, “a leitura é vista como um ato dialógico, interlocutivo. O leitor, nesse contexto, tem um papel ativo no processo da leitura” (PARANÁ, 2008, p. 71) e “a escrita, na diversidade de seus usos, cumpre funções comunicativas socialmente específicas e relevantes” (ANTUNES, 2003, p. 47). Bezerra (2003), ao considerar a perspectiva funcional-interativa da carta do leitor, afirma que “é um gênero que circula no contexto jornalístico, em seção fixa de jornais e revistas, reservada à correspondência dos leitores [...]” (BEZERRA, 2003, p. 210) e que pode atender a diversas finalidades comunicativas. Ao discorrer sobre a carta do leitor, Fontanini (2002) explica que “Cartas ao editor, um gênero da mídia impressa, são espaços destinados, em revistas ou jornais, aos leitores para que possam expressar pareceres pessoais, favoráveis ou não, sobre matérias publicadas” (FONTANINI, 2002, p. 227). Logo, é um gênero que promove a interação por meio da escrita, mesmo que indiretamente, como uma atitude responsiva com o(s)
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autor(es) de outros textos: reportagem, artigo de opinião, editorial entre outros gêneros que circulam nas diferentes esferas, tornando-se, assim, coautores neste processo de interação, uma vez que permite posicionar-se emitindo sua opinião. Logo, é um gênero que pertence à ordem do argumentar, de acordo com as capacidades da linguagem dominante, estabelecida por Dolz e Schneuwly (2004), já que este gênero sustenta, refuta e negocia tomada de posições. A carta do leitor é um gênero da esfera jornalística, na qual se discutem problemas sociais controversos e serve como “termômetro que afere o grau de sucesso dos artigos publicados nos jornais ou revistas, pois os autores escrevem reagindo, positiva ou negativamente ao que leram” (COSTA, 2005, p.28). Sendo um gênero que pode circular tanto em jornais ou revistas, impressos ou online, o suporte torna-se um fato que interfere decisivamente em constituição, pois “o suporte não é neutro e o gênero não fica indiferente a ele” (MARCUSCHI, 2008, p. 174), já que estes são selecionados a partir de certas preferências e com finalidades específicas, as quais não podem ser negligenciadas no processo da escrita e, principalmente de análise. Sua dinamicidade faz com que estejamos sempre “atualizados” em relação aos assuntos de circulação diária e consequentemente tenhamos uma resposta rápida e objetiva sobre assuntos que afetam nosso cotidiano. a) Apresentação da proposta As atividades são direcionadas à abordagem dos elementos constituintes dos gêneros (conteúdo temático, estilo e construção composicional) como forma de conhecimento e interação entre sujeito e texto. Para tanto, busca-se proporcionar uma leitura crítica e reflexiva sobre os textos do gênero, bem como a sua produção como forma efetiva e concreta de interação por meio da língua. Pela dinamicidade que a carta do leitor exige, a produção das cartas será realizada para serem publicadas em um blog, a fim de que essas produções façam sentidos aos estudantes. A sua publicação em revistas demandaria outra dinâmica de trabalho, devido o tempo imediato para sua produção e publicação (geralmente dentro de uma semana) e porque o objetivo é que, a partir do conhecimento e domínio do gênero, os estudantes tornem-se leitores e também autores de cartas e, posteriormente, venham a desenvolver o gosto por manifestar-se diante de alguma matéria que lerem e
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sentirem essa necessidade. Então, com a disponibilização no blog há a promoção da interação entre os estudantes da turma, do colégio e também e de toda comunidade escolar. b) Reconhecimento do gênero A fim de instigar o reconhecimento da carta do leitor, é importante disponibilizar materiais que tragam este gênero para que os alunos possam folheá-los, para, em seguida, fazer-se os seguintes questionamentos: Você sabe identificar o gênero carta do leitor? Onde podemos encontrar este gênero? Em que veículos circulam? Você costuma ler textos desse gênero? Em quais meio de comunicação? Qual a função social da carta do leitor? Quem, em geral, produz o gênero carta do leitor? Em que situação? Quem são os leitores destas revistas? Pesquisa e leitura de textos do gênero carta do leitor Realizado o primeiro contato com material, é o momento de os alunos pesquisarem textos do gênero carta do leitor. Para tanto, é necessário que localizem a seção destinada ao gênero. A partir de então é possível indagar: Como é denominada esta seção em sua revista? Em que parte está localizada (início, meio ou final da revista)? Foi fácil localizar a seção? E as cartas dos leitores? Após a localização das cartas, é momento de realizar a leitura desse gênero, para, em seguida, realizar atividades que tenham por objetivo abordar o conteúdo temático e o contexto de produção, bem como a construção composicional do gênero e como isso contribui para a produção dos sentidos do texto. Vejamos:
FONTE: IstoÉ13AGO/2014- ANO 38 Nº 2333 - reorganizado pela pesquisadora
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Para atender ao proposto na atividade de reconhecimento do gênero, sugerimos os seguintes questionamentos: Quadro 01:
a) De que tratam as cartas? b) É possível identificar quando foram escritas? c) Quem as escreveu? De onde são as pessoas que escreveram? d) A quem são dirigidas as cartas? e) Em que esfera os textos foram publicados? E onde podem circular? f) Será que as cartas foram publicadas na íntegra? Por quê? g) A organização textual contribui para a identificação do gênero? j) Quanto à estrutura, as cartas que enviamos à revista costumam apresentar os mesmos elementos da carta pessoal: local, data, vocativo, saudações e despedidas. Por que motivo, nas cartas publicadas, não há esses elementos? k) Qual é a reportagem que motivou a produção destas cartas? Como é possível identificá-la? FONTE: organizado pela pesquisadora
Para Compreender
A fim de compreender a organização da carta do leitor, apresentamos uma carta enviada2 para publicação e a mesma carta publicada após sua edição. Quadro 02:
Foz do Iguaçu, 10 de agosto de 2014 Ao Diretor de Redação Revista IstoÉ Senhor Diretor: Miami representa para os brasileiros aquilo que gostaríamos que houvesse no Brasil. O fenômeno apontado por IstoÉ na matéria "Viver em Miami" (IstoÉ 2333) está bem mais presente na vida de pessoas próximas a nós. Conheço um empresário do interior do meu estado que comprou apartamento naquela cidade. O que é preocupante é que capital nacional está sendo encaminhado para fora do país. E o que nos deixa tristes é que dificilmente teremos aqui a mesma qualidade de vida encontrada na Flórida, pelo menos em curto espaço de tempo. Competir com Miami é muito difícil, principalmente com o direcionamento que nosso país vem tendo nos anos recentes. José Elias Aiex Neto RG xxxxxxxxx Rua xxxxxxxx Cidade xxxxxxxxxx Fonexxxxxxxx
FONTE: IstoÉ20AGO/2014- ANO 38 Nº 2334 - reorganizado pela pesquisadora
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Esta carta e todos os direitos para uso de fins pedagógicos foram cedidos à autora por José Elias Aiex Neto.
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Alguns questionamentos sobre a organização das cartas que podem ser realizados: Qual a diferença entre a estrutura da carta enviada por José Elias Aiex Neto e a carta publicada na revista? Por que há essa diferença? O que foi suprimido altera o sentido da carta original? Foi acrescentada alguma informação diferente do que foi produzido inicialmente? Isso interferiu no sentido da carta? Comente. A partir da leitura e do reconhecimento de textos do gênero, apresentamos primeiramente, atividades que contemplam os aspectos discursivos do texto. Essas questões estão voltadas para o conteúdo temático, contexto de produção e estrutura composicional. Antes de realizar estas atividades, sugerimos a leitura da reportagem “A guerra dos remédios para emagrecer”3 que motivou a produção das cartas. A mesma foi publicada na revista ISTOÉ, 2332 (p. 58 a 63), de 06 de agosto de 2014. Quadro 03:
Questões que abordam o contexto de produção e funcionalidade do gênero: 1- Leia atentamente as cartas, publicadas na edição 2333, e depois responda às seguintes questões: a) Onde essas cartas foram publicadas (veículo de circulação, suporte)? O que se sabe sobre esse veículo de circulação? A que imprensa pertence? Qual o papel desse veículo em nossa sociedade? b) Quando e por quem as cartas foram produzidas? Como esses dados afetam o sentido do texto? c) Em que esfera social essa revista circula? Como esse meio social afeta a organização do texto? e) É possível perceber seu público alvo? Por meio de que evidências? Comprove com uma passagem. f) Qual é o objetivo dos autores ao enviá-las para as revistas: criticar, elogiar, questionar, concordar ou discordar? g) Que ponto de vista há em comum entre os autores das cartas analisadas ao abordarem o mesmo tema? Questões organizadas para atender ao conteúdo temático: 2- Qual o posicionamento dos autores diante do assunto? Eles concordam com a volta de remédios, à base de anfetaminas, para emagrecimento? Que palavras comprovam o posicionamento dos autores? 3- Um dos autores apresenta uma alternativa para emagrecer sem tomar remédios? Quem é o autor e qual a sua sugestão? 5- Na terceira carta, percebemos que não há referência direta ao uso de remédios para emagrecimento, mas mesmo assim ela foi publicada juntamente com as outras porque se estabelece uma relação. Que relação é essa? Questões que atendem à construção composicional: 6- A organização textual contribui para a identificação do gênero carta? Demonstre com passagem do texto. 7- Qual das três cartas apresenta argumentos mais convincentes? Por quê? Questões relacionadas à análise linguística, ao estilo: 8- No que diz á linguagem: a) Que palavras e/ou expressões marcam a voz do autor? Qual a função dessas palavras na língua? c) Que variedade linguística foi utilizada nas cartas: padrão ou coloquial? Por quê? 9-Qual é o tempo verbal que predomina nas cartas do leitor analisadas? Esse tempo verbal indica o quê? 3
Disponível em: http://www.istoe.com.br/reportagens/375682_A+GUERRA+DOS+REMEDIOS+PARA+EMAGRECER – acessado em 20AGO/2014
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10-Na passagem: “Utilizar remédios como o único método de emagrecimento pode ser um equívoco fantasioso”, a expressão sublinhada revela uma afirmação precisa do autor sobre o uso de remédios para emagrecimento? Por quê? 11- Que palavra(s) da segunda carta identifica(m) a profissão do autor? Isso lhe dá credibilidade no assunto? Por quê? FONTE: organizado pela pesquisadora Nas questões que tratam do estilo, nos ater à relação existente entre os
interlocutores no processo de interação. Nessas atividades, é possível demonstrar que a língua só faz sentido em um contexto social e que ela se adapta a circunstâncias mais ou menos previsíveis no processo de compreensão. Atividades de produção Quando escrevemos temos um objetivo concreto e próprio e esperamos que o texto que produzimos atinja a sua finalidade. Por isso, deve-se levar em conta quem será o interlocutor desses textos e onde este circulará. Nesse sentido, apresentamos a seguinte proposta: Quadro 04:
A sua produção deverá atender à seguinte proposta: 1.Em grupo (4 alunos), selecione um artigo ou uma reportagem para leitura e discussão sobre o tema abordado no texto; 2.Pensando na sua produção individual da carta do leitor, defina se você vai criticar, elogiar, parabenizar, questionar, concordar, discordar, sugerir, etc., ou seja, qual será a finalidade de sua carta. 3.Cada aluno da equipe escreverá a sua carta do leitor que será publicada no blog, portanto seu interlocutor será toda a comunidade escolar. Fique atento à linguagem que será utilizada e cuide também com a estrutura composicional do gênero, assim como dos argumentos que sustentam o seu posicionamento. FONTE: organizado pela pesquisadora
Como forma de auxiliar os estudantes na organização de seus textos, apresentamos a seguinte sugestão: Quadro 05:
Questões Sim Sintetizei as ideias na equipe? Utilizei uma linguagem clara e objetiva, levando em consideração o meu interlocutor? Coloquei os dados que indicam sobre qual artigo estou falando, e sobre quando ele foi publicado? Identifiquei-me, colocando a saudação, a despedida, a minha assinatura e meu endereço? As ideias discutidas no grupo estão expressas no corpo da carta de forma clara? Cuidei de pontuar e escrever ortograficamente, de acordo com a norma padrão da língua? Usei argumentos que sustentam o meu posicionamento frente ao tema? FONTE: Adaptado de Sequência Didática (Caderno Pedagógico 1) (AMOP, 2007,p. 159)
Não
O processo da reescrita do texto requer uma leitura atenta em um momento distante do momento da produção, para que se verifique o que é preciso ser retomado para que se atinja a proposta de produção. Assim, após escrever a primeira versão,
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sugerimos que deixe seu texto para ser retomado na próxima aula para a uma nova leitura, orientada pelos passos indicados na tabela acima, após a releitura, reescreva-o fazendo as alterações necessárias para ser que o professor faça as devidas correções e posterior devolução para a escrita final e publicação no blog, juntamente com os textos que originaram a produção das cartas. 4. Considerações Finais Inserida no cotidiano escolar, e sabedora de que há necessidade de desenvolver atividades práticas para a sala de aula, esta proposta buscou atender ao desenvolvimento da capacidade leitora e de produção de textos, bem como a construção dos sentidos estabelecidos e produzidos e, assim, contribuir para com o processo ensino aprendizagem voltado à concepção de ensino sócio-dialógica e discursiva ao contemplar os elementos constituintes do gênero. Trabalhar com os gêneros significa trabalhar com o todo, ou seja, abordar o conteúdo temático, a construção composicional e o estilo uma vez que esses elementos estão imbricados, e juntos, são responsáveis para a organização e construção dos sentidos atribuídos a eles e por eles e o fato de serem textos que circulam em nosso cotidiano nas diversas esferas, estes se tornam excelentes instrumentos para o trabalho em sala de aula. Ressaltamos que pelo fato de se tratar de uma proposta de trabalho, ela poderá ser adaptada, uma vez que ainda está em andamento, de acordo com as necessidades dos estudantes e objetivos pretendidos pelo professor. 5. Referências ANTUNES, I. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola, 2003. BAKTHIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ________. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1995 [1929]. BRAIT, B. Bakhtin e a natureza constitutivamente dialógica da linguagem. In.: _______. (Org.). Bakhtin: dialogismo e construção do sentido. 2.ed.rev. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2005.
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BEZERRA, M. A. Por que cartas do leitor na sala de aula. In: Gêneros textuais & ensino. Org. DIONÍSIO, A. P., MACHADO, A. R., BEZERRA, M.A. São Paulo, Parábola Editorial, 2010. COSTA, S.G. da. Cartas de leitores: gênero discursivo porta-voz de queixa, crítica e denúncia no jornal O Dia. Soletras – Revista do Departamento de Letras da UERJ- n 10, 2005, p. 28-41. Disponível http://www.filologia.org.br/soletras/10/03.pdf. Acesso em 26 jun 2014. DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Sequências Didáticas para o Oral e a Escrita: Apresentação de um Procedimento. In: DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros orais e escritos na escola. Trad. Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas, SP. Mercados das Letras, 2004. FONTANINI, I. Cartas ao editor: a linguagem como forma de identificação social e ideológica. In: Gêneros textuais e práticas discursivas: subsídios para o ensino da linguagem. Org. Meurer, J.L, Motta-Roth, D. Bauru, SP: EDUSC, 2002. GEDOZ, S.; COSTA-HÜBES, T. C. Uma análise do gênero discursivo causo na perspectiva bakhtiniana. Travessias, Cascavel/PR, v. 5, n.1, p. 1-18, 2011. Disponível em: http://e-revista.unioeste.br/index.php/travessias/article/view/4353/4058>. Acesso em: 10 jun 2014. GERALDI, J. W. Portos de Passagem. 5 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes Ltda, 2013. ISTOÉ, revista semanal. São Paulo: Editora Três, ano 38, ed.2333 e 2334- ago/2014. MARCUSCHI, L. A. A Produção textual, análise de gêneros e compreensão. 3. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. PARANÁ, Secretaria de Estado da Educação do - Diretrizes Curriculares da Rede Pública do Estado do Paraná – Língua Portuguesa – Curitiba: SEED, 2008.
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GÊNERO DISCURSIVO: RELATÓRIO DESCRITIVO DE AVALIAÇÃO
Soeli Aparecida Rossi (CEFAPRO/CÁCERES-MT)1 RESUMO: A metodologia utilizada neste trabalho é a qualitativa interpretativa, com vistas à análise de relatórios descritivos de avaliação individual de alunos da III fase do I Ciclo e II fase do III Ciclo, estes produzidos por professores de Língua Portuguesa, regentes de turma de quatro escolas estaduais do polo de Cáceres. Nossos objetivos são apresentar o relatório descritivo de avaliação, gênero discursivo que circula na esfera escolar e se destina a um determinado público: pais, professores, alunos, coordenadores pedagógicos e técnicos da Superintendência do Ensino Básico – SUEB e Secretaria Estadual de Educação – SEDUC/MT; destacar as características específicas que compõem o relatório descritivo de avaliação quanto ao conteúdo, forma composicional e estilo. Compreendemos que os registros avaliativos devem refletir a aprendizagem, o desenvolvimento individual do aluno, a maneira como o professor ensina e como o aluno aprende. Portanto, é um instrumento que possibilita mostrar a prática do professor, seus objetivos e, acima de tudo, sua forma de avaliar. Para tanto, dialogamos com Bakhtin (]1952-53/1979] 2003), Marcuschi (2008), Geraldi (2003) e Lopes-Rossi (2006), na perspectiva enunciativa discursiva; também com autores da educação que tratam da avaliação escolar como Freitas (2003), Hoffmann (2005), Esteban (2003), Oliveira & Bossa (2005), Amaral (2006). Palavras-Chave: Discurso. Diálogo. Escrita. I.
Introdução O relatório descritivo de avaliação é um gênero discursivo específico da esfera
escolar, com vistas à concepção bakhtiniana do conceito, por meio do qual o professor dialoga com os pais dos educandos, coordenadores e outros profissionais da educação, num diálogo permanente sobre o processo de ensino e aprendizagem, num dado período de tempo. Trata-se de um gênero discursivo presente na esfera escolar capaz de simbolizar e de produzir sentido sobre os aspectos cognitivo, sócio-afetivo, evolutivo e individualizado do aprendiz, bem como, o caráter mediador do professor quando há necessidade de realizar outras tentativas de ensino áquele aluno com dificuldades de aprendizagem. Diante da preocupação dos coordenadores e diretores das escolas públicas do polo de Cáceres-MT quanto a produção dos relatórios descritivos de avaliação pelos 1
Professora Mestre em Estudos Lingüísticos - MeEL/UFMT. Atua como formadora no Cefapro/Cáceres, na área de Linguagens; docente na Faculdade do Pantanal – FAPAN e Ensino à Distância/UAB/UNEMAT. E-mail: [email protected]
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professores, fomos convidadas a trabalhar com a Produção de Relatórios (Individuais e Coletivos) com professores de diferentes áreas de conhecimento em várias escolas públicas no polo de Cáceres-MT, das quais selecionamos para análise quatro relatórios de diferentes escolas. Na preparação do trabalho com a temática, percebemos que há necessidade de um olhar crítico para as produções desse gênero, pois,
o processo de construção e reconstrução de uma nova forma de avaliar nas escolas públicas estaduais de Mato Grosso, tem provocado um esforço coletivo nos profissionais da educação, que vêm realizando reflexões, estudos e pesquisas para concretizar os pressupostos de uma proposta de avaliação que contemple e corresponda aos anseios da comunidade escolar (MATO GROSSO, 2001, p.176).
Portanto, este estudo fundamenta-se em Bakhtin ([1952-53/1979] 2003) e seu círculo, na sua compreensão da linguagem como essencialmente dialógica, polifônica e interacional, bem como, em Marcuschi (2008), Geraldi (2003) e Lopes-Rossi (2006), na perspectiva enunciativa discursiva. Assim, definimos o relatório descritivo de avaliação como um gênero discursivo, a ser compreendido também a partir das contribuições de teóricos da educação, como Freitas (2003), Esteban (2003), Hoffmann (2005), Oliveira & Bossa (2005) e Silva (2008), cujas discussões centram-se num mesmo foco: o relatório descritivo de avaliação individual do aluno. Esse instrumento de registro avaliativo do processo de ensino e aprendizagem tem como referência os ciclos de formação humana e a interação entre as disciplinas que compõem as áreas do conhecimento: Linguagens; Ciências da Natureza e Matemática; Ciências Humanas e Sociais. II.
Ciclo de Formação Humana e Relatório Descritivo de Avaliação O Estado de Mato Grosso, em função de um alarmante quadro de analfabetismo
e, em consequência de uma cultura escolar fragmentada, com altos índices de repetência, por meio de sua Secretaria de Educação implanta, em 1996, o Projeto Terra e, em 1998, o Ciclo Básico de Aprendizagem (CBA) em algumas escolas-piloto. Esses projetos trazem em suas bases teórico-metodológicas um novo olhar para os tempos e espaços de aprendizagem. Nesse processo, em 2000, o estado substitui o sistema seriado de ensino para a organização em Ciclos de Formação Humana (FARIA, 2008).
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Assim, os professores se depararam com novos desafios, dentre eles, a necessidade de produzir o relatório descritivo individual de avaliação do aluno. Este se referindo à interpretação e à análise das anotações diárias sobre os resultados do processo de ensino e aprendizagem desenvolvido com cada educando ou turma. Para Amaral (2006, p. 58), “[...] nos ciclos, os critérios de avaliação deverão respeitar as características individuais dos educandos, levando em conta seus limites, suas potencialidades e heterogeneidade da turma”. O relatório descritivo de avaliação é um gênero discursivo que permite ao educador descrever objetivamente os avanços e as dificuldades encontradas durante o processo de ensino e de aprendizagem, considerando a fase, o ciclo de formação e as características individuais de cada educando. Nesse sentido, entendemos que cada gênero efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo de atividade humana. Segundo Bakhtin, esses enunciados refletem as condições específicas, as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade do campo da comunicação (IDEM, 2003, p. 261-262).
Para o teórico russo, uma forma de discurso se materializa em um gênero discursivo específico, composto por três elementos indissociáveis nos quais o gênero se fundamenta: estilo verbal, conteúdo temático e estrutura composicional. Estas três características fundem-se no todo de um enunciado e nos permitem definir o relatório descritivo de avaliação como um gênero do discurso determinado pelas especificidades da esfera escolar e da intenção comunicativa que é a avaliação do aluno: O querer-dizer do locutor se realiza acima de tudo na escolha de um gênero do discurso. Essa escolha é determinada em função da especificidade de uma dada esfera da comunicação verbal, das necessidades de uma temática (do objeto do sentido), do conjunto constituído dos parceiros, etc. (BAKHTIN, [1952-53/1979] 2003, p.301).
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Desta maneira, o conteúdo temático tem relação direta com o que pode ser dizível para os possíveis interlocutores como, no caso do relatório descritivo de avaliação, familiares de alunos, professores, coordenadores de escola, entre outros; o estilo se realiza através da seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua: pronomes, formas pessoais dos verbos e modificadores das orações (Arruda, 2010). Por sua vez, a construção composicional é o formato do texto como um todo, ou seja, a estruturação do texto que variará conforme o conteúdo temático e o estilo de um gênero discursivo. III.
Composição dos Relatórios Descritivos de Avaliação
Os relatórios descritivos de avaliação selecionados foram cedidos por quatro escolas públicas do polo de Cáceres, estes foram lidos e analisados enquanto corpus que nos permitem compreender as características deste gênero discursivo presente na esfera escolar. Assim, apresentamos, a seguir, alguns relatórios produzidos por professores de Língua Portuguesa: Relatório I: O ALUNO FREQUENTA REGULARMENTE AS AULAS, SEMPRE PROCURANDO DESENVOLVER TODAS AS ATIVIDADES PROPOSTAS. TEM BOA LEITURA ORAL MAS TEM UM POUCO DE DIFICULDADES NA INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS LIDOS (L1).
Relatório II: O ALUNO DEMONSTROU COMPREENSÃO DOS TEXTOS ORAIS E ESCRITOS TRABALHADOS NO BIMESTRE, CONSEGUINDO ATRIBUIR SENTIDOS E SE POSICIONAR CRITICAMENTE DIANTE DELES. LÊ ADEQUADAMENTE, ATENDENDO AS DIFERENTES CARACTERÍSTICAS DE CADA TEXTO. REDIGI COM COERÊNCIA, MAS POSSUI ALGUMAS DIFICULDADES COM ELEMENTOS DE COESÃO TEXTUAL E NO EMPREGO DE SINAIS GRÁFICOS E NA ORTOGRAFIA. A FACILIDADE COM QUE SE DISPERSA ATRAPALHA SEU RENDIMENTO (L2).
Relatório III: O ALUNO LÊ COM MUITA DIFICULDADE, PRODUZ TEXTOS POUCO COERENTES E APRESENTA GRANDES DIFICULDADES DE ORTOGRAFIA E CONCORDÂNCIA VERBAL (L3).
Relatório IV:
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APRESENTA DIFICULDADES SIGNIFICATIVAS DE ATENÇÃO E CONCENTRAÇÃO DURANTE AS EXPLICAÇÕES NAS AULAS E REALIZAÇÃO DAS ATIVIDADES O QUE CAUSA PROBLEMAS NA APRENDIZAGEM. DEIXA DE REALIZAR ALGUMAS TAREFAS E DEMONSTRA CERTO DESANIMO E CANSAÇO PARA PARTICIPAR ATIVAMENTE DAS ATIVIDADES PROPOSTAS. TEM BOM RELACIONAMENTO COMO OS COLEGAS. ASSIMILA COM CERTAS DIFICULDADES OS CONTEÚDOS APLICADOS NO 1º SEMESTRE TAIS COMO: DÍGRAFOS, ENCONTROS VOCÁLICOS E CONSONANTAIS. RECONHECE COM DIFICULDADES OS SINONIMOS E ANTONIMOS, DIFERENCIA OS ARTIGOS DEFINIDOS E INDEFINIDOS, RECONHECE OS ADJETIVOS COM DIFICULDADES. ENTENDE E CLASSIFICA OS NUMERAIS. TEM DIFICULDADES EM COMPREENDER A CLASSIFICAÇÃO DOS SUBSTANTIVOS E EMPREGAR CONCEITOS DE ORTOGRAFIA, MESMO COM ATIVIDADES E AULAS EXTRACLASSE. LÊ, INTERPRETA E PRODUZ TEXTOS PREVISTOS PARA A FASE AINDA COM CERTA DIFICULDADE. [...] AINDA NÃO ASSIMILA AS REGRAS GRAMATICAIS E ISTO DIFICULTA A EXECUÇAO DAS ATIVIDADES ORAIS E ESCRITAS NECESSITANDO SEMPRE DO AUXÍLIO DA PROFESSORA. [...] CONSEGUE COM MUITO ESFORÇO IDENTIFICAR TIPOS DE LETRAS, BASTÃO MAIÚSCULAS E MINÚSCULAS, ALÉM DE FAZER ILUSTRAÇÕES DE NÚMEROS E PALAVRAS (L4).
A temática dos relatórios descritivos de avaliação I, II, III e IV deveria referir-se aos Conteúdos de Natureza Cognitiva, Desenvolvimento Sócio-afetivo, Caráter Mediador, Caráter Evolutivo e Individualizado de cada aluno. Trata-se de conhecimentos que podem variar em decorrência da experiência vivida por cada professor, de conhecimentos prévios de mundo e de concepção de ensino e aprendizagem. No entanto, há uma variação quanto ao foco avaliado por cada professor e consequente dificuldade para definir o caráter genérico do enunciado que marca o processo de ensino e aprendizagem de Língua Portuguesa na interação entre professor e aluno; aluno, alunos e professor. Segundo as orientações da SEDUC/MT (2010), o relatório descritivo de avaliação deve conter evidências e interrelações entre as capacidades desenvolvidas pelo educando e os objetivos do ensino, considerando-se os seguintes critérios: a) Conteúdos de Natureza Cognitiva: conceitos e conhecimentos construídos pelo aluno nas áreas do conhecimento – recorrer à pasta avaliativa e caderno de campo.
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b) Desenvolvimento Socio-afetivo: relação afetiva com o conhecimento e a aprendizagem (se necessita mais estímulos para despertar mais interesse); se demonstra prazer no que faz, relação com os colegas, trabalhos em grupos. c) Caráter Mediador: refere-se ao papel do professor na avaliação, tornando-se um observador e mediador do processo de desenvolvimento de cada aluno, fazendo as intervenções pedagógicas sempre que necessárias, instigando o aluno a perceber que ele é o principal sujeito desse processo. d) Caráter Evolutivo: perceber o aluno como um ser inacabado, ou seja, um sujeito em construção, levando em consideração a estrutura mental já construída pela criança e as condições concretas de sua existência. e) Caráter Individualizado: acompanhamento efetivo do professor através de anotações diárias e registros significativos sobre a aprendizagem, que deve confiar no educando.
Nesse sentido, observamos a falta de uma orientação precisa sobre o conteúdo temático do gênero discursivo relatório descritivo de avaliação e, consequentemente, dos princípios esperados no gênero, conforme a orientação das Diretrizes Curriculares da Escola Ciclada de Mato Grosso. Assim, é preciso relativizar o processo de ensino e aprendizagem por meio deste gênero discursivo, o que implica: a) Ter o que dizer; b) Ter razões para dizer o que se tem a dizer; c) Ter para quem dizer o que se tem a dizer; d) Assumir a posição de locutor que tem o que dizer para quem diz (o que implica em responsabilizar-se, no processo, por sua produção verbal); e) Escolher estratégias para dizer o que se tem a dizer. A escolha da forma discursiva do gênero pelo professor caracteriza uma intenção comunicativa de locutor, portanto, requer uma atitude ativa responsiva dos seus interlocutores: pais, professores, alunos, coordenadores pedagógicos e técnicos da Superintendência do Ensino Básico – SUEB/SEDUC/MT, pois estes também fazem uma valoração do trabalho do professor, ou seja, do enunciado do relatório descritivo de avaliação. Afinal, “ninguém se assume como locutor a não ser numa relação interlocutiva, onde se constitui como tal: assumir-se como locutor implica estar numa relação interlocutiva” (GERALDI, 2003, p. 160).
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Em nossa interpretação, a maioria dos relatórios descritivos de avaliação analisados não apresenta as metodologias utilizadas pelo professor para contribuir com os avanços de aprendizagem do aluno avaliado (caráter mediador), apenas no relatório IV há uma tentativa explícita quando a professora escreve “atividades e aulas extraclasse”, porém sem expor de que maneira estas aconteceram. Desta maneira, as informações não esclarecem ao leitor o trabalho realizado pelo professor, especialmente aquele que envolveu o aluno no processo de ensino e aprendizagem (caráter evolutivo da aprendizagem); as informações de caráter individual que caracterizam a identidade do sujeito aprendiz pouco aparecem (caráter individual); há registro dos conteúdos, mas não há indicação de como esses conteúdos foram trabalhados, por exemplo, se houve desenvolvimento de projetos de ensino ou de sequência didática, no sentido de informar as atitudes tomadas pelo professor e a metodologia utilizada que mais envolveu o aluno no processo pedagógico. Dentre os objetivos do relatório descritivo, também, deve-se indicar caminhos para a continuidade do trabalho pedagógico de outro professor, porque é preciso sequencia no processo formativo do aluno, isso exige da parte de quem avalia indicar caminhos às novas mediações entre o sujeito que aprende e o sujeito que ensina, ou seja, “[...] que cada vez mais sejam criados artifícios didáticos para que se realizem cada vez melhor aprendizagens espontâneas” ao aluno avaliado ou da aluna avaliada (qualidade das informações) etc. (MEIRIEU, 1998, p. 64). Na análise dos relatórios I, II e III (III fase do I Ciclo), apresentados acima, observamos que a forma composicional varia entre duas a seis linhas, as letras utilizadas são de formato maiúsculas. O relatório IV (II fase do III Ciclo) apresenta maior número de caracteres que os outros, apesar de referir-se à avaliação de Língua Portuguesa, será composto ao registro avaliativo de outros professores da área da linguagem que ministram aulas na mesma sala de aula, ou seja, a este aluno. No suporte desses relatórios, no ano de 2013, houve uma mudança em relação aos de 2011 e 2012, pois os registros deixaram de ser por disciplina e passaram a ser efetuados por área do conhecimento, possibilitando ao professor um espaço ampliado para a escrita do relatório descritivo de avaliação. As características dos quatro relatórios de avaliação em análise representam muitas das fragilidades presentes nas produções escritas de professores, considerando-se que há problemas linguísticos quanto à concordância nominal e verbal, uso inadequado de pontuações, entre outros fatores, talvez devido ao uso de “CTRL C e CTRL V”, sem
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passar por correção antes de postar no sistema online da SEDUC. Também se constatou problemas conceituais, em alguns relatórios como de L4, quando afirma que, “[...] AINDA NÃO ASSIMILA AS REGRAS GRAMATICAIS E ISTO DIFICULTA A EXECUÇAO DAS ATIVIDADES ORAIS E ESCRITAS NECESSITANDO SEMPRE DO AUXÍLIO DA PROFESSORA” (sic), posição discursiva que fragiliza a avaliação realizada, especialmente por considerar que o ensino de Língua Materna está embasado apenas na gramática normativa que objetiva fixar um padrão de língua; por isso, considera apenas as normas ou regras gramaticais como verdadeiras, atuando como "uma espécie de lei que regula o uso da língua em sociedade" (TRAVAGLIA, 2000, p. 31). Desta maneira, é preciso reflexão no momento de escrever os relatórios descritivos, pois, ao avaliar o aluno, o professor também avalia seu trabalho ou reafirma sua concepção de ensino, no caso apresentado no parágrafo acima, segundo orientam os PCNs: As situações de comunicação diferenciam-se conforme o grau de formalidade que exigem. E isso é algo que depende do assunto tratado, da relação entre os interlocutores e da intenção comunicativa. A capacidade de uso da língua oral que as crianças possuem ao ingressar na escola foi adquirida no espaço privado: contextos comunicativos informais, coloquiais, familiares. Ainda que, de certa forma, boa parte dessas situações também tenha espaço escolar, não se trata de reproduzi-las para ensinar aos alunos o que já sabem. Considerar objeto de ensino escolar a língua que elas já falam requer, portanto, a explicitação do que se deve ensinar e de como fazê-lo (BRASIL, 2000, p. 49).
Portanto, em sua maioria, os problemas visualizados são comuns na maioria dos relatórios apresentados no Sistema Integrado e Gestão de Aprendizagem – SIGA/SEDUC/MT. Na definição de Marcuschi (2008), o suporte de um gênero é um lócus físico ou virtual com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação do gênero materializado como texto. Portanto, não podemos ignorar que a escolha de um suporte poderá determinar as características de um gênero discursivo, numa dada esfera de comunicação humana. Em relação aos quatro relatórios em análise, observou-se que ao considerar o interlocutor pai ou outro responsável pelo aluno, seria interessante o questionamento: será que os mesmos gostariam de se deparar primeiramente com considerações negativas a respeito do filho ou filha? A este respeito seria interessante definir uma
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sequência para a elaboração dos relatórios, considerando primeiramente os pontos positivos, como o sócio-afetivo, seguidos das aprendizagens alcançadas para depois tratar dos conteúdos que o aluno ou aluna ainda precisa aprender, seguido da mediação do professor sobre como trabalhou as atividades junto ao mesmo, também, finalizando o relatório descritivo com indicação de metodologias que funcionaram com este aluno, visando que outro professor possa dar continuidade ao processo de ensino e de aprendizagem. A forma composicional responde pela organização e pela estruturação do gênero. Ela leva em conta os modelos de gêneros discursivos da esfera e as possibilidades de comunicação. Assim, permite não só o reconhecimento do gênero, mas também, segundo Bakhtin (2003, p. 261), “a assimilação das condições e da finalidade de cada campo da atividade humana e dos enunciados que ali circulam”. Para identificar a forma composicional, é preciso observar todos os elementos verbais ou não verbais que compõem um gênero do discurso: título, subtítulo, ilustração, gráfico, tabela, indicação de alguma informação nas margens da folha, tipos e tamanhos das letras, cores, recursos gráficos em geral, posição das palavras (centralizada, recuada à direita ou à esquerda). Além desses, qualquer outro elemento que chame a atenção, como “as características do suporte possível ou adequado para aquele gênero também devem ser consideradas” (LOPES-ROSSI, 2006, p. 05). Os relatórios I, II e III apresentam estilos semelhantes, contém verbos com predomínio do tempo presente como frequenta, tem, redigi (sic), lê, produz, apresenta, assimila etc. No entanto, esta não é a única marca lingüística de estilo do gênero, pois “a escolha de todos os recursos linguísticos é feita pelo falante sob maior ou menor influência do destinatário e da sua resposta antecipada” (BAKHTIN [1952-53/1979] 2003, p. 306). Segundo Silva (2008, p. 106): A escrita de um relatório exige que o professor saiba para quem está escrevendo. Ao se considerar o destinatário para tal mensagem, ou seja, quem vai ler as informações registradas deve estar atento à adequação da linguagem. Não adianta escrever para os pais com linguagem estritamente pedagógica, rebuscada por termos próprios da psicologia e da pedagogia, ou ainda, tecer críticas severas e pessoais aos alunos. O indispensável é escrever de forma clara, dialogando com as informações, demonstrando que o processo foi acompanhado, permitindo ao destinatário conhecer o aluno que está sendo avaliado.
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Nesse sentido, a escolha dos recursos disponibilizados pela língua deve refletir o acompanhamento do aluno pelo professor nos aspectos cognitivo, sócio-afetivo, mediador, evolutivo e individualizado durante o processo de ensino e aprendizagem. O importante é fazer uma escolha não aleatória de palavras, pois estas visam antecipar a compreensão responsiva ativa do outro, o interlocutor, portanto, são determinantes do estilo aquelas competências que o aluno ainda precisa desenvolver, as quais são apresentadas com verbos no gerúndio, ou seja, caracterizam uma ação contínua, inacabada, como procurando, conseguindo, atendendo etc. No conceito de Bakhtin ([1952-53/1979] 2003, p. 265), todo estilo é “individual e por isso pode refletir a individualidade do falante (ou de quem escreve)”. Portanto, o estilo se constitui a depender do modo como o locutor percebe e compreende o seu destinatário, conforme a intenção, a valoração expressiva e a intenção da produção oral ou escrita. IV.
Considerações Finais O relatório descritivo de avaliação se constitui em um gênero discursivo da
esfera escolar que contém o processo vivido pelo aluno na construção dos conhecimentos e da mediação do professor no decorrer do processo de ensino e aprendizagem, num determinado tempo escolar, além de marcar a concepção de ensino do professor. Também possibilita o diálogo entre locutor (professor) e interlocutores (pais, alunos, coordenadores pedagógicos, técnicos da Superintendência do Ensino Básico – SUEB/SEDUC/MT). No entanto, queremos esclarecer que este gênero discursivo é novo, está em processo de construção, mas se materializa por meio de elementos linguísticos e discursivos que correspondem ao tripé indissolúvel do gênero: conteúdo temático, forma composicional e estilo. Todo enunciado é produzido em função do interlocutor, das condições contextuais de sua produção, sendo o significado construído durante a interação, por isso o professor enquanto sujeito ativo responsivo ao produzir o relatório descritivo de avaliação deve planejar a sua escrita com base nos seguintes questionamentos: Quem escreve esse gênero discursivo? Onde? Quando? Com base em que informações? Como obteve as informações? Quem lerá esse gênero? Por que o fará? (com que objetivos o interlocutor o lerá?) Em qual esfera de comunicação humana circulará esse gênero? Retomando Geraldi (2003), todas essas considerações mostram a necessidade de transformar a sala de aula em um tempo de reflexão sobre o já conhecido para aprender
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o desconhecido e produzir o novo gênero discursivo presente na esfera escolar – o relatório descritivo de avaliação. E, o professor, neste contexto, precisa estar em constante reflexão sobre sua profissão, sobre a capacidade de ensinar e de aprender; de ler e de escrever, pois quem avalia também é avaliado. Enfim, a formação continuada em serviço é destinada às necessidades formativas dos educadores e o gênero discursivo relatório descritivo de avaliação deve fazer parte do estudo. V.
Referências
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SOBREASSEVERAÇÕES NA MÍDIA ONLINE: ARTICULAÇÃO DE CONCEITOS EMERGENTES E ESTABILIZADOS
Sônia Aparecida Lopes Benites (UEM) André William Alves de Assis (UFMG)
Uma contínua retomada de dizeres é característica do funcionamento de grande número de notícias que atribuem uma fala a outrem. Compreender essas retomadas implica considerar uma sofisticada maquinaria midiático-discursiva em cujo funcionamento intervêm fatores e atores diversos, sistemicamente inter-relacionados e envolvidos na obtenção, triagem, interpretação e circulação das informações. Produto dessa maquinaria, as notícias calcadas em relatos de fala fazem emergir antigas questões que se problematizam em torno de citações1, heterogeneidade constitutiva e mostrada, tópicos já há certo tempo abordados por diversos pesquisadores, dentre os quais destacamos Authier-Revuz (1982, 1990, 2004), que ancora seus estudos na concepção do duplo dialogismo bakhtiniano e na abordagem psicanalítica do sujeito. Essa maquinaria também faz emergir problemáticas não abordadas nas primeiras fases da Análise do Discurso. Exemplo disso são as sobreasseverações, as cenas da enunciação, o ethos discursivo, as aforizações e as pequenas frases, conceitos desenvolvidos e articulados por Dominique Maingueneau, nas três últimas décadas, com o objetivo de compor um corpo teórico que permita abordar o aparecimento e a circulação de uma grande diversidade de materiais linguísticos, dentre os quais destacamos a notícia online, objeto deste artigo. Com o objetivo de observar o funcionamento da maquinaria discursiva que produz notícias online baseadas em relatos de fala, abordamos os enunciados destacados, focalizando as noções de sobreasseveração e aforização. Em um primeiro momento, aproximamos essas noções das de heterogeneidade constitutiva e mostrada, enfatizando as não-coincidências do dizer; em seguida, aproximamos citações e sobreasseverações da questão do silenciamento, que, ao lado da inclusão de informações, funciona como manobra discursiva da referida maquinaria midiática. Ao final, apresentamos nossas considerações finais.
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Neste artigo, utilizamos o termo “citação” como sinônimo do fenômeno de retomada de enunciados sobreasseverados.
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Sobreasseverações e aforizações: o percurso das citações Uma das temáticas recorrentes na obra recente de Maingueneau tem sido a questão da destacabilidade enunciativa de algumas frases, propiciada por características formais da enunciação: “são curtas, bem estruturadas, de modo a impressionar, a serem facilmente memorizáveis e reutilizáveis”; são, além disso, “pronunciadas com o ethos enfático conveniente” e generalizações “que enunciam um sentido completo”. (2008, pp. 74-77). Para tratar convenientemente da destacabilidade e de suas interfaces, aí incluída a sobreasseveração, é necessário evocar os regimes enunciativos propostos por Maingueneau (2010, p. 13), apresentados no esquema abaixo:
Figura 1. Enunciações aforizante e textualizante.
De acordo com a fig. 1, são dois os regimes enunciativos: o aforizante e o textualizante. No regime aforizante inserem-se os enunciados naturalmente destacados (slogans, ditados e provérbios, por exemplo) e os enunciados retirados de textos e utilizados sob a forma de citação (os destacados de um texto). A enunciação aforizante caracteriza-se por pretender “exprimir o pensamento de seu locutor, aquém de qualquer jogo de linguagem: nem resposta, nem argumentação, nem narração, mas pensamento, dito, tese, proposição, afirmação soberana...” (MAINGUENEAU, 2010, p. 14). No procedimento de retomada de enunciados, o discurso direto é bastante empregado. Contudo, ele não é uma transcrição autêntica, mas consiste tão somente em uma simulação, em um diálogo construído a partir de um registro. Nesse processo de retomada de falas, pode acontecer de o lugar de sobreasseverador ser imputado ao locutor do texto-fonte, à sua revelia, conforme esclarece Maingueneau (2012), em uma obra ainda inédita no Brasil: Como nada impede que se destaque de um texto uma sequência que não foi sobreasseverada, os locutores dos textos-fonte se encontram frequentemente como sobreasseveradores involuntários de enunciados
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que não proferiram como tal (MAINGUENEAU, 2012, p. 19, tradução nossa2)
O fenômeno da citação que emerge desse processo de retomada das sobreasseverações já foi tratado, de maneiras variadas, por consagrados estudos que versam sobre discurso relatado, discurso direto, entre outros. Por isso, com o intuito de dar algum tipo de contribuição, propomo-nos pensar a configuração discursiva da retomada da sobreasseveração, a partir dos desdobramentos da Análise do Discurso.
A citação: um caso de heterogeneidade mostrada Authier-Revuz (1982) fundamenta seu conceito de heterogeneidade discursiva nos estudos de Bakhtin sobre o dialogismo e na abordagem psicanalítica do sujeito. Para a autora, o discurso é heterogêneo uma vez que é “constitutivamente atravessado pelos 'outros discursos' e pelo 'discurso do Outro'. O outro não é um objeto (exterior; do qual se fala) mas uma condição (constitutiva, pela qual se fala)” (AUTHIER-REVUZ, 1982, p. 140). A heterogeneidade constitutiva deve-se ao fato de que o outro “é sempre onipresente e está em toda a parte” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 21). Nesse sentido, o discurso é sempre heterogêneo porque comporta, constitutivamente no seu interior, outros discursos. Graças à ilusão que o caracteriza, o sujeito discursivo julga-se fonte primeira de seu discurso. Ele tem a ilusão de que seu discurso é homogêneo, não identificando a presença do “discurso do Outro” e dos “outros discursos” na construção do “seu”. Embora a percepção da heterogeneidade constitutiva seja ignorada pelo sujeito, que não tem consciência dessa alteridade, há situações em que esta é percebida e dada a perceber. Nesses casos, por meio de marcas da presença do outro no discurso, opera-se a separação entre o que o sujeito diz e o que o outro diz. Trata-se dos casos de heterogeneidade mostrada, que pode ser: i.) marcada, isto é, visível na materialidade linguística, como acontece com o uso das aspas nas notícias online, em que “o locutor dá lugar explicitamente ao discurso de um outro em seu próprio discurso” (AUTHIERREVUZ, 2004, p. 12), instituindo, ao mesmo tempo, todo o restante do discurso como emanando dele próprio; ii.) não marcada, ou seja, não evidenciada na ordem do discurso, como nas situações de ironia e de discurso indireto livre.
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“Dès lors que rien n’empêche de détacher d’un texte une séquence qui n’a pas été surassertée, les locuteurs des textes sources se retrouvent constamment surasserteurs involontaires d’énoncés qu’ils n’ont pas posés comme tels. Une responsabilité d’autant plus problématique que l’examen le plus superficiel montre que l’énoncé détaché est rarement identique à la séquence à laquelle il est censé correspondre dans le texte source.”.
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Percebemos, dessa forma, que as situações em que o sujeito constata a presença do outro em seu discurso e, mais que isso, deseja dar a conhecê-la, como nos casos de heterogeneidade mostrada, servem para confirmar mais a ilusão de que todo o restante do discurso emana dele próprio. Em outras palavras, ao mostrar que a presença do outro está em um trecho, o locutor "afirma" que os lugares não mostrados lhe pertencem. Uma das formas de mostrar (e marcar) a presença do outro em um discurso é atribuir a fala a outrem. Há notícias que são quase inteiramente construídas por relatos de fala. No processo de seleção, recorte, produção e circulação da notícia, o discurso direto é um recurso bastante utilizado, uma vez que seu uso está relacionado a três necessidades da maquinaria midiática: i.) criar autenticidade, o efeito de sentido de que aquela é a exata transcrição da fala do outro; ii.) distanciar-se ou aproximar-se, na medida em que pode evidenciar uma aceitação ou recusa em relação ao dizer; iii.) mostrar-se objetivo, isento (MAINGUENEAU, 2011, p.142). Em decorrência disso, o aspeamento que acompanha o discurso direto [...] nunca é neutro, mas implica uma tomada estratégica de posição face ao discurso relatado, resultante na aprovação do dito, na sua ridicularizarão ou na sua negação; [permite ao locutor que cita...] resguardar-se, protegendo de polêmicas porque ‘foi o outro quem disse’, [ou ...] expor-se a elas, pelo enquadramento do pronunciamento alheio numa sequência textual-argumentativa que lhe é sutil ou declaradamente divergente ou convergente. (BENITES, 2002, p. 61, inserção nossa)
Os três aspectos levantados por Maingueneau (2011) permitem-nos observar o recurso de utilização das aspas como manobra relacionada ao uso do discurso direto, que opera “um distanciamento muito variável entre o locutor citante o locutor citado” (BENITES, 2002, p. 57). O uso do discurso direto é uma maneira hábil de dizer o que se pensa sem necessariamente se responsabilizar pelo dizer. A utilização das aspas é a forma de inserção do discurso direto mais frequente na mídia e nas notícias online, mas o recorte de um discurso pode também ser marcado pelo uso de itálico e travessão.
A sobreasseveração em circulação: heterogeneidade constitutiva com ares de mostrada Os conceitos de sobreasseveração e aforização, brevemente expostos anteriormente, começaram ser delineados por Maingueneau (2008) na obra “Cenas da Enunciação”, em um texto em que o autor parece estar construindo o raciocínio, elaborando a “teoria”. No último parágrafo do texto, ele chama a atenção para a distinção entre a lógica da sobreasseveração e a lógica da aforização:
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Parece-nos preferível não confundir uma lógica de sobreasseveração que faz aparecer uma sequência sobre um fundo textual - e uma lógica de aforização (para ser exato, um destaque aforizante), que implica um tipo de enunciação totalmente diferente, uma outra figura do enunciador e do coenunciador, do estatuto pragmático do enunciado. (MAINGUENEAU, 2008, p. 92, grifos do autor)
Segundo o autor, a sobreasseveração decorre do destacamento realizado pelo próprio locutor do texto-fonte, por meio de recursos coesivos, posicionais, sintetizadores ou reformuladores. Dependendo de sua circulação, esse elemento destacável pode tornar-se, posteriormente, destacado, isto é, um trecho destacado pelo autor de determinado texto pode vir a se tornar um dito ou uma frase feita. Tomemos um exemplo de nosso corpus. Em um debate com seu adversário, José Serra, ao responder uma pergunta sobre a descriminalização do aborto, a candidata Dilma Rousseff afirmou ao final de sua argumentação: “Entre prender e atender, eu fico com atender”. Como locutora do texto-fonte, a debatedora marcou esse trecho como destacável (por seu caráter generalizante e sintetizador de uma posição, e pela posição final no texto). Ao cunhar essa “pequena frase”, um enunciado de fácil circulação, ela antecipou um destacamento, e, assim, produziu uma sobreasseveração. A circulação dessa sobreasseveração traz à tona outras questões discursivas: a) em um posicionamento (aqui entendido como sinônimo de formação discursiva) ligado aos direitos das mulheres, a sobreasseveradora Dilma (não o sujeito empírico) da frase “Entre prender e atender, eu fico com atender” apresenta-se como alguém favorável à vida. Dessa forma, essa sobreasseveração pode ter como paráfrases: “Não se deve colocar em risco a vida da mulher”; “A mulher tem direito de optar entre ter filhos ou não e escolher o melhor momento para fazê-lo”; “O fato de o aborto ser considerado crime marginaliza a mulher, levando-a a praticar o ato sem as mínimas condições de higiene e sem assistência, o que resulta em morte”, etc.; b) em um posicionamento discursivo ligado ao campo religioso, a sobreasseveradora será vista como alguém que atenta contra a vida, pois serão evocadas questões de outro caráter, como: “Onde fica o direito à vida do bebê?”; “Quem é essa mulher desumana que não reconhece os direitos do feto, que ignora que a vida tem início na concepção?”. Maingueneau (2008, p. 83) assevera que a sobreasseveração é “muito presente nas mídias contemporâneas”, e relaciona-a ao fenômeno das pequenas frases, que ele define como “enunciados curtos que, durante um curto período de tempo, vão ser intensamente retomados nos programas de informação”. Conforme o autor, não é possível definir se essas 'pequenas frases' são assim porque os locutores dos textos de origem as quiseram assim, isto é, destacáveis, destinadas à retomada pelas mídias, ou se são os jornalistas que as dizem dessa forma para legitimar seu dizer. Sobre o processo de produção de uma notícia que relata falas incidem diversas ações empíricas que modificam e afastam o recorte de fala de sua fonte. Porém, na circulação discursiva das notícias, o sobreasseverador é posto assinando a fala que se
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destacou do texto. É bastante comum que a autonomização da sobreasseveração frente ao texto de origem promova “uma transformação do enunciado, ou de um ou de outro de seus parâmetros enunciativos, quando ele passa ao paratexto” (MAINGUENEAU, 2008, p. 83). Mesmo nos casos em que os enunciados “mantêm um elo com um texto de origem” (os chamados destacamentos fracos), não existe, necessariamente, fidelidade do texto relatado com o discurso de origem, o que confirma os resultados dos numerosos estudos sobre o discurso direto, que mostram seu caráter de simulação e a intervenção da máquina midiático-discursiva. Essas transformações devem-se ao posicionamento do veículo e consistem, muitas vezes, em manobras de eliminação de modulações, que reforçam “a autonomia e o caráter lapidar do enunciado”, possibilitando sua sobreasseveração (MAINGUENEAU, 2008, p. 86), por isso essas manobras discursivas não podem ser atribuídas a um agente específico, uma vez que a produção da notícia é uma atividade conjunta. Trata-se de uma elaboração da maquinaria midiático-discursiva, grande organismo que envolve diferentes atores e processos, peças constitutivas de uma engrenagem, cada qual com uma finalidade específica na manutenção e propagação de práticas discursivas. Dessa forma, a circulação da sobreasseveração constitui um caso de heterogeneidade constitutiva que se apresenta como heterogeneidade mostrada.
Sobreasseverações, citações e silenciamento No funcionamento de sobreasseverações e citações, observamos que a maquinaria midiática, em suas práticas discursivas, realiza opções que ora envolvem o silenciamento de enunciados, ora submetem as sobreasseverações a manobras diversas, como inclusão, modificação, exclusão e/ou apagamento de partes do enunciado. Neste artigo, trataremos com mais vagar das manobras de apagamento e de inclusões justificadas pelas coerções da maquinaria e indiciadoras do posicionamento do veículo de comunicação. Partimos do princípio de que o silêncio é fundador, ou seja, que o silêncio é aquele que “existe nas palavras, que significa o não-dito e que dá espaço de recuo significante, produzindo as condições para significar” (ORLANDI, 2010, p. 24), portanto mesmo em inclusões, alterações/modificações e exclusões podemos falar em silenciamentos, manobras que são atreladas às retomadas de fala. É importante ressaltar que “sem considerar a historicidade do texto, os processos de construção dos efeitos de sentidos, é impossível compreender o silêncio” (ORLANDI, 2010, p. 45); só é possível observá-lo pelos efeitos que ele produz, e pelos diferentes modos de significar nesses textos, pelas falhas que ele apresenta, pelos traços e pistas deixados ao longo dos discursos. Nessa linha de raciocínio, “[...] o sentido é sempre produzido de um lugar, a partir de uma posição do sujeito – ao dizer, ele estará, necessariamente, não dizendo ‘outros’ sentidos. Isso produz um recorte necessário no
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sentido” (ORLANDI, 2010, p. 53), recorte que observamos como operado por uma tomada de posição, um posicionamento pelo produtor da notícia, que se apresenta em forma de retomadas de sobreasseverações nas notícias geralmente publicadas em veículos impressos e digitais. Descontextualizados, os recortes de falas que compreendem as notícias online podem assumir sentidos diferentes, ser utilizados como mecanismos de produção de sentidos. Alguns mecanismos frasais são lembrados por Orlandi (2010) como os responsáveis por atribuir ao silêncio uma identidade positiva. A autora elenca a elipse, a reticência, a descontinuidade temática, a subdeterminação semântica e a preterição. Acrescentamos a essa lista aqueles que se relacionam de perto à retomada das sobreasseverações, com destaque ao aspeamento que produz no texto um efeito de verdade nas sobreasseverações fortes, em que o leitor não tem acesso ao texto fonte. O uso das aspas em textos sobreasseverados atribui pelo menos dois sentidos diferentes: o efeito de recorte literal de um texto fonte e o de distanciamento em torno do que é dito. Maingueneau (2008, p. 91) reforça essa ideia ao afirmar que a sobreasseveração, qualquer que seja a modalidade, implica uma figura de enunciador que não apenas diz, mas que mostra que diz o que diz, e presume-se que o que ele diz condensa uma mensagem forte, induz a uma tomada de posição exemplar. A sobreasseveração estabelece uma asserção que leva a uma responsabilidade diante do mundo.
A utilização das aspas que proporciona o silenciamento e a produção de sentidos se apresenta como mecanismo que afasta o apagamento de imparcialidade em relação à notícia veiculada. Atribuir o dizer ao outro é um procedimento muito recorrente em textos da maquinaria midiática, como podemos perceber nas notícias online de nosso corpus e na maior parte de revistas e jornais em circulação. A sobreasseveração vinculada à maquinaria de produção de notícia online manifesta/operacionaliza mecanismos de silenciamento, o que evidencia a incompletude constitutiva da linguagem. Por isso, para se compreender o funcionamento das sobreasseverações retomadas em citações nas notícias online, também é necessário compreender o silêncio, atribuindo-lhe estatuto de sentido, presente tanto na ausência quanto na presença de palavras, no distanciamento de sua fonte de origem, no dito e no não-dito dos discursos, o que nos permite observar a sobreasseveração também em seu caráter histórico.
Manobras da maquinaria midiática na produção de notícias online a) Silenciamento: omissão/exclusão de sentidos
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Para que um jornal selecione um recorte do debate televisivo e o coloque em evidência nas notícias, deve operar um movimento pragmático de escolha daquilo que convém ao jornal ser evidenciado, são as coerções da máquina midiática. Uma das características bastante recorrentes no processo que compreende a saída da sobreasseveração para figurar na composição de notícias online em forma de citação se dá pela omissão ou exclusão de palavras. A própria seleção de uma porção da fala de atores políticos no debate político-televisivo já opera o apagamento de um contexto maior, de uma porção maior de texto, de um sentido mais amplo. Essas ações cumprem um papel pragmático-discursivo de adequação ao posicionamento, de escolha, de recorte, de por em evidência um e não outro enunciado. Vejamos alguns exemplos em que esses apagamentos se processam: (1) JOSÉ SERRA: você disse com clareza no debate na FOLHA, na UOL, que era a favor da liberação do aborto, depois diz o contrário. (BAND) UOL: Na questão do aborto, você disse isso no debate da Folha, no UOL, que era a favor do aborto.
(2) DILMA ROUSSEFF: E aí o que aconteceu, há hoje uma denúncia em que você, o Juiz te denunciou e você hoje é réu por calúnia, pelo crime de calúnia e difamação. (BAND) VEJA: “Você precisa ter cuidado para não ter mil caras, está sendo processado por calúnia.”
No exemplo da retomada da fala elaborada por UOL, em (1), podemos observar que há o apagamento da sequência “depois diz o contrário”, que se refere a Dilma, em forma de crítica, por ela não se posicionar claramente em relação ao aborto. Reconhecemos que as notícias sofrem coerções de conteúdos, muitas vezes devido à velocidade entre o acontecimento e sua publicização na web, que pode acabar impondo cortes a fim de, rapidamente, por a notícia em circulação. Contudo, é difícil acreditar que esse apagamento ocorra por acaso ou se deva às coerções do gênero relacionadas ao trabalho do jornalista propriamente dito. Quando o site retoma a fala de Serra, ao dizer que Dilma Rousseff é a favor do aborto, e omite “depois diz o contrário”, parece-nos que esse apagamento deixa de comprometer a candidata como uma pessoa que se diz a favor em um momento e contra em outro. Assim, não caracteriza Dilma como contraditória, sentido produzido pela fala de José Serra. Para todo político, é muito importante ter uma posição que não evidencie
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desvios de conduta, de moral; o ethos de “virtude”3 seria abalado se a candidata se posicionasse de formas diferentes, em momentos diferentes. Em (2), também se opera um apagamento quando VEJA exclui da lista de crimes de Serra, levantados por Dilma, a “difamação”. Em termos jurídicos há diferença entre calúnia e difamação. Embora ambas estejam muito próximas, de acordo com Gonçalves (1999), a calúnia consiste em atribuir, falsamente, a uma pessoa a prática de um ato criminoso. Já a difamação consiste em atribuir a alguém um fato que seja desonroso, que ofenda a reputação de alguém. Nesse sentido, os apagamentos de “difamação” e do autor da denúncia, o Juiz, provocam relevantes efeitos de sentido, por dois motivos: porque “difamação” e “calúnia” são termos jurídicos que não representam um único tipo de crime; porque ser acusado por calúnia e difamação por seu oponente político poderia ser, de certa forma, aceitável dentro de uma disputa política. Mas, ser acusado por um Juiz tem um peso maior, em termos de argumentação, se pensarmos que o Juiz, autoridade em direito, conhecedor das leis, é quem irá julgar o candidato que teria caluniado e difamado outrem. Aparentemente, ser denunciado por um Juiz implica estar direcionado à condenação. Esses sentidos, apagados pelos recortes operados por VEJA, parecem coadunar-se com a posição política da revista. O apagamento que levantamos neste tópico não diz respeito somente a exclusões de trechos ou palavras. As retomadas das sobreasseverações, em forma de citações, em si já são evidências de silenciamentos que produzem sentidos. O processo de destextualização já é, em parte, responsável por esse apagamento, pois quem seleciona um texto o faz de um lugar discursivo, para expor aquilo que convém a seu posicionamento. A manobra de apagamento operacionaliza, ainda, outros mecanismos de silenciamento, como podemos observar nos exemplos (1) e (2), em que há o apagamento de trechos ou de palavras, o que nos permite compreender que o silêncio funciona de maneiras diferentes nos diferentes processos de recorte, seleção e circulação de discursos. b)Ampliação ou inclusão de informações Por ampliação compreendemos uma ação metadiscursiva que resulta em amplificação de sentido, isto é, o dizer é intensificado a ponto de alterar o sentido do discurso. Essa é uma manobra que tem a intenção de chamar a atenção ou direcionar a compreensão do interlocutor, o leitor. Vejamos o exemplo a seguir: (3) DILMA ROUSSEFF: Você [Serra] regulamentou, até eu concordo com a regulamentação, porque eu sou contra tratar a questão das mulheres, das duas mulheres que morrem por dia, ou um dia sim 3
A expressão é de Charaudeau (2006, p. 122).
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um dia não, por aborto, como uma questão de polícia. (BAND, grifos nossos) CARTA CAPITAL: Desde o início da polêmica, Serra vem dizendo que Dilma defende o aborto, mas a candidata insistiu e mostrou que ela defende é que ele deixe de ser considerado crime, pois coloca milhares de mulheres pobres sob risco de morte. “Concordo com a regulamentação (feita por Serra, em 1988). São milhares de mulheres que praticam aborto em condições precárias (a cada ano).” (grifos nossos)
Em relação aos grifos, no exemplo (3) podemos observar que a fala de Dilma Rousseff no debate da BAND traz à luz a discussão em torno das mulheres que morrem por praticarem abortos. Em seu discurso, a candidata afirma que são “duas mulheres que morrem por dia” em consequência do aborto. Em seguida, especifica que essas mortes ocorrem “um dia sim um dia não”. Mesmo parecendo contraditório, ela menciona em sua fala que são duas mulheres que morrem por dia ou ainda que duas mulheres morrem em um dia e no outro não morre nenhuma, e assim sucessivamente. Na notícia online, CARTA CAPITAL informa ao leitor que são “milhares de mulheres que praticam aborto”. Nessa alteração enunciativa, ocorre uma ampliação de uma ou duas “mulheres que morrem por dia”, na fala de Dilma, para “milhares” no relato de CARTA CAPITAL. O referente também é modificado, deixando de ser “mulheres que morrem” e passando a ser “mulheres que praticam aborto”, mudança que certamente resulta em um número bem maior. Essa mudança de sujeitos dá maior amplitude ao problema do aborto porque evidencia outros índices, altera a informação apresentada pela candidata, sem deixar de responsabilizá-la pela fala. As aspas atribuem a Dilma o dizer. A ampliação aí ocorrida é notável. Se fizermos um cálculo da quantidade de mulheres a que Dilma se refere, duas, não chegaremos ao total de “milhares” de CARTA CAPITAL. Ainda que considerássemos duas mulheres, dia sim e dia não, ou mesmo duas diariamente não chegaríamos sequer a um milhar, quantidade distante da apresentada pela revista. Há neste exemplo pelo menos três manobras discursivas, funcionando simultaneamente: i) a de ampliação do referente, uma vez que há uma diferença quantitativa em relação aos referentes dos dois discursos; ii) a de alteração da mensagem informada, que pode remeter a um outro dado estatístico, uma vez que CARTA CAPITAL não traz a quantidade de mulheres que morrem por causa do aborto, e sim a quantidade de mulheres que praticam o aborto; iii) o uso das aspas para marcar o discurso direto, isentando a revista da responsabilidade sobre o que é dito. O emprego do verbo “praticar” denota certa recorrência e liberdade em relação à escolha de abortar ou não, ao mesmo tempo em que evidencia uma repetição dessa prática na sociedade. Durante toda sua campanha, Dilma sofreu muitas críticas relacionadas a essa temática. Por esse motivo, o verbo “praticar”, de certa forma, retoma o sentido de facilitação ao procedimento de aborto que faz parte da memória do eleitorado, assim como o sentido envolto ao discurso de aceitação por parte da candidata
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que se mostra, na fala, favorável à regulamentação dessa prática. “Praticar” é um verbo de ação e, inserido dentro do discurso de Dilma, como foi possível observar em (3), evidencia em CARTA CAPITAL um sujeito que deixa de ser passivo, alguém que sofre por causa do aborto, e passa a ser ativo, que “pratica” a ação. Transforma-se numa relação de causa (apontada por Carta Capital) a consequência (apresentada por Dilma Rousseff), evidenciada, respectivamente, por uma contradição entre um sofrer (a morte) e um agir em relação ao aborto. A fala de Dilma possibilita a interpretação de que a mulher sofre por consequência do aborto; já em CARTA CAPITAL a mulher é a responsável pelo aborto porque é ela quem o pratica. A amplificação dos dados dá outra dimensão ao problema, intensifica-o de tal modo que a situação sai de duas por ano, como exposto na fala de Dilma, para milhares ao ano, na notícia da revista. Da mesma forma que ampliaram o referente em (3), também os veículos inserem informações que vão além de adequação entre as modalidades falada e escrita. No mesmo exemplo, podemos observar na fala da candidata que as mulheres que morrem por aborto não são especificadas, (trata-se simplesmente “das mulheres que morrem”). CARTA CAPITAL inclui o adjetivo "pobres" à informação, afastando a possibilidade de mulheres ricas ou mulheres de outra classe social também correrem esse risco. O sentido da fala de Dilma é alterado por essa informação que delimita e especifica quem são as mulheres que morrem por consequência do aborto. No decorrer da pesquisa, percebemos diversos indícios de que CARTA CAPITAL tendeu em favor da eleição de Dilma Rousseff. Nesse sentido, vemos que a especificação das mulheres por CARTA CAPITAL está relacionada ao discurso do PT, voltado aos mais pobres, ou seja, ao posicionamento político do jornal.
Considerações finais Foi possível observar no decorrer das reflexões aqui empreendidas que a retomada de enunciados sobreasseverados é parte do mecanismo de uma sofisticada, complexa e heterogênea maquinaria midiático-discursiva, que produz e põe em circulação notícias online. Ocorre, nesse processo, a articulação do conceito de sobreasseveração com novas e antigas problemáticas, tais como a heterogeneidade constitutiva e a heterogeneidade mostrada, o discurso relatado, o silenciamento e as aforizações. Todos esses elementos estão envolvidos no processo de seleção, recorte, produção e circulação da notícia, e exercem um importante papel no efeito de autenticidade, distanciamento ou aproximação do dizer e na objetividade pretendida pela maquinaria midiática. Observamos que tanto manobras que silenciam e excluem quanto manobras que ampliam o dizer sobreasseverado pelos candidatos são comuns e recorrentes na composição das notícias e indispensáveis para compreender o funcionamento das
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notícias online construídas sobre relatos de fala. Acreditamos ter deixado claro que as manobras discursivas que incidem sobre a construção da notícia online estão ancoradas na contínua retomada de dizeres que envolve as heterogeneidades constitutiva e mostrada. As alterações nas retomadas de sobreasseverações que compõem as notícias online se manifestam como manobras discursivas dessa sofisticada maquinaria midiática que envolve o complexo processo de produção onde intervêm fatores e atores diversos.
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REPRESENTAÇÕES DA FRANCOFONIA: UMA ABORDAGEM CRITICA SOBRE LIVROS DIDÁTICOS UTILIZADOS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE FLE Suzana Darlen dos Santos Santaroni (UFF) Introdução O presente trabalho de pesquisa, que está em andamento, trata das representações sociais e linguísticas no âmbito da francofonia, na perspectiva da Teoria das Representações Sociais, em manuais didáticos utilizados por cursos de licenciatura. Os métodos são os seguintes: Alter Ego + 1, Version Originale 1 e os materiais elaborados pelos professores da UERJ e UFRJ. A pesquisa enquadra-se na área de Linguística Aplicada e está centrada em questões de políticas linguísticas em livros didáticos de Francês Língua Estrangeira (FLE)1. Logo, ela se enquadra no campo de estudos da Política Linguística. De acordo com Cunha, Costa e Martelotta (2011, p. 27), “a Linguística Aplicada tem sua origem alicerçada nos estudos sobre o ensino de línguas, sobretudo o de línguas estrangeiras”. Embora, segundo Moita Lopes (1996), essa teoria também tenha foco em problemas de uso da linguagem fora do meio de ensino/aprendizagem. A Linguística Aplicada enquadra-se na área de Linguística por se tratar de uma disciplina voltada para os estudos da linguagem, porém não tem como objetivo a descrição da língua em si mesma. Por esse motivo, procura subsídios em outras ciências sociais (antropologia, teoria educacional, psicologia e sociologia, sociologia da aprendizagem, sociologia da informação, sociologia do conhecimento, etc.), sendo considerada uma área temática interdisciplinar. Assim, a Linguística Aplicada oferece suporte para a presente pesquisa, que se concentra no ensino de língua francesa (LE) 2.
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A partir desse momento, a sigla FLE será utilizada no lugar de Francês Língua Estrangeira. A partir desse momento, a sigla LE será utilizada no lugar de Língua Estrangeira.
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Segundo Calvet (2007, p. 11), a Política Linguística pode ser definida como a “determinação das grandes decisões referentes às relações entre as línguas e a sociedade”, ou seja, esse campo se concentra em estudos voltados para a linguagem. “O interesse pelas questões que dizem respeito às políticas linguísticas está no centro de numerosas pesquisas situadas no âmbito não apenas da Sociolinguística e da Etnolinguística ou da Antropologia Linguística, mas também (e sobretudo) da Linguística Aplicada” (SAVEDRA e LAGARES, 2012, p. 16). A Política Linguística oferece subsídios para essa pesquisa, pois apresenta estudos relevantes na área de investigação das representações sociais e linguísticas, visto seu grau de importância dentro dessa área. Pereira e Costa (2012, p. 172) afirmam que “uma representação favorável a respeito de uma determinada língua pode [...] interferir em uma dada política linguística”. O termo “francofonia” surgiu em 1880, e é aplicado à realidade geográfica, linguística e cultural que reúne todos os indivíduos que fazem o uso da língua francesa enquanto língua materna, segunda língua, língua de comunicação ou de cultura. Segundo Calvet (2007, p. 136), podemos considerar a francofonia como “uma realidade sociolinguística, produto da história – particularmente da história colonial – e um conceito geopolítico recente”. Isto é, a expressão francofonia está relacionada ao conjunto de diferentes povos que utilizam a língua francesa, por influência colonial, social ou política. De acordo com Moscovici (1978, p. 26), a representação social é uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos. Portanto, as representações são os meios pelos quais estabelecemos conceitos, e tais conceitos influenciam os nossos comportamentos, e a forma como nos relacionamos com os outros. Devemos ressaltar que as representações linguísticas são consideradas como um conjunto de conhecimentos sociais compartilhados e elaborados relativos à língua. Segundo Petitjean, (2009, p. 44) “a representação linguística aparece como uma representação social verbalizada [...] ela se organiza de maneira coerente em torno de um princípio comum que aparece na característica fundamentalmente interativa da
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representação linguística”3, ou seja, ela é a representação social da língua, partilhada através da fala e de atitudes. A representação linguística é organizada através de ideias comuns entre indivíduos de uma sociedade. Sobre o livro didático é importante dizer que, de acordo com Bergmann (2009, p. 49), esse material “pode apresentar um papel ideal de simples orientador e guia do processo de ensino/aprendizagem da língua, mas que também ocupa frequentemente uma posição central na aula de língua estrangeira”4. O método Alter Ego + 1 foi editado pela Hachette: Français Langue Étrangère e elaborado por Annie Berthet, Emmanuelle Daill, Catherine Hugot, Véronique M. Kizirian e Monique Waendendries, no ano de 2012. Esse manual é direcionado a jovens/adolescentes e a adultos. O método é usado nos períodos iniciais da graduação de Letras – português/francês da Universidade Federal Fluminense (UFF). A edição do manual didático Version Originale 1 pertence à editora Maison des Langues, e foi elaborado por Monique Denyer, Agustín Garmendia e Marie-Laure Lions-Olivieri, no ano de 2004. Ele também é destinado a jovens/adolescentes e a adultos. Esse método é utilizado pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) nos dois primeiros períodos da graduação de Letras – português/francês. Os cursos de licenciatura em Letras, Português-Francês, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) não adotam livro didático. É utilizado material elaborado pelo professor, de acordo com seus objetivos, necessidades e interesses. De acordo com Sá (1998, p. 15), “O campo de estudo das representações sociais se encontra em franca expansão no Brasil não apenas no âmbito da psicologia social, mas também nos de disciplinas aplicadas, como educação, enfermagem e serviço social”. É importante dizer que a noção de representação social tem sido privilegiada no campo da educação, e podemos citar Michel Gilly (1989) com seu trabalho sobre as representações do aluno pelo professor. Sá também diz que “no Brasil a instituição educacional – da escola pública primaria (Sá, Moller e Medeiros, 1990) à universidade (Souto, 1993) – tem sido investigada em termos das representações de seus profissionais 3 4
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e usuários”. No âmbito da francofonia temos o trabalho de Li Hongfeng (2010) com o título “Ensinar a Francofonia com que Manual?” 5, na China. Consideramos que os materiais didáticos (livros e conteúdos organizados por professores) para o ensino de LE são um meio passível de constituir representações e um veículo importante para transmissões de representações sociais e linguísticas. Porém, não são muitas as pesquisas sobre a questão da francofonia em livros didáticos utilizados na formação de professores de FLE, o que nos estimula a modificar esse estado, transformando métodos didáticos de FLE em objeto de análise. Sabendo que a língua francesa constitui o vínculo entre os sessenta e três países que fazem parte da Organização Internacional da Francofonia e que os métodos de ensino de FLE se atêm a abordar um panorama sobre a cultura unicamente francesa, consideramos as representações dos professores sobre a língua francesa e suas sociedades elementos fundamentais para uma postura de educadores conscientes da realidade e das diversidades francófonas. Cabe-nos, então, investigar se os professores são preparados e capacitados para uma abordagem da diversidade linguística e cultural da francofonia e de que maneira, considerando as contribuições da adoção e da inadmissão de métodos didáticos. O objetivo geral do trabalho é analisar a representação da francofonia em materiais didáticos direcionados para o ensino de FLE e avaliar as contribuições do uso e do desuso desses materiais, em cursos de formação de professores de instituições de ensino superior do Rio de Janeiro e de Sergipe, para o conhecimento e reconhecimento da francofonia de forma plural. Com essa análise, queremos verificar de que forma é construída a noção de francofonia em livros didáticos e como isso contribui para a formação de representações criticas ou acríticas através da constatação da presença ou ausência de variedades linguísticas. Queremos analisar, também, as ideologias que promovem o aparecimento dessas variedades. Na universidade em que são utilizados materiais próprios, ou seja, elaborados pelos professores da instituição, iremos verificar de que forma a francofonia é abordada e se ela está presente nesses materiais. E a partir dessas observações queremos refletir sobre a importância da adoção ou da inadmissão de métodos, 5
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constatando a eficiência de cada escolha para um processo de formação de profissionais conscientes da realidade heterogênea da francofonia nos âmbitos social e linguístico. Além disso, investigaremos os fatores que levam ao desuso de livros didáticos por essa instituição. Objetivamos verificar as políticas linguísticas que englobam e promovem a formação de representações através de manuais didáticos produzidos na França e utilizados no Brasil, e analisar se essas políticas estão envolvidas com a preocupação de transmitir uma francofonia que vai além do território Francês. Queremos analisar os efeitos das representações sociais e linguísticas da francofonia construídas durante o processo de formação desses futuros professores, ou seja, além de observarmos a forma com que essas representações são elaboradas, verificaremos também de que maneira elas colaboram para a formação e capacitação dos licenciandos de língua francesa. Por fim, desejamos ensejar o desenvolvimento de pesquisas voltadas para o livro didático no campo da língua francesa com foco na formação de professores. É importante dizer que propomos, aos professores formadores de formadores, uma reflexão quanto ao uso e desuso de livros didáticos e sua eficácia como ferramenta para o conhecimento, aceitação, reconhecimento e transmissão do pluralismo cultural e linguístico da francofonia. Por isso, acreditamos que o projeto possui relevância social no que tange a contribuição para o processo de formação de professores e suas práticas de ensino, tendo como alvo sujeitos sociais integrados ao ensino de FLE do ensino superior. Construção da representação da francofonia e o livro didático: formação de professores de FLE. A teoria das Representações Sociais se desenvolveu no âmbito da psicologia social. Essa abordagem teórica está situada na interface entre o psicológico e o social. Nessa teoria, aspectos relacionados ao afeto, à linguagem e a interação social devem ser articulados, pois nas interações sociais as representações são valorizadas, silenciadas, afirmadas, recusadas. Tal propriedade das Representações Sociais permite a indagação de como determinados espaços institucionalizados validam ou desautorizam diferentes
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modalidades de pensamento social (BLANCO, 2010). Serge Moscovici é um dos principais precursores da teoria das Representações Sociais. Segundo Moscovici (1978, p. 41), podemos caracterizar as representações sociais como “entidades quase tangíveis. “Elas circulam, cruzam - se e se cristalizam incessantemente através de uma fala, um gesto, um encontro, em nosso universo cotidiano”. Portanto, podemos dizer que o “universo cotidiano” de um formando FLE está repleto de representações, e que o livro didático, sendo considerado uma ferramenta pedagógica que faz parte desse universo, deve ser analisado a partir desses preceitos. Para Spolsky (apud Silva, 2013, p. 311), “a política lingüística pode aparecer explicitamente em um documento especifico ou de forma difusa em vários documentos”. Tais documentos são denominados por ele como “mecanismos”, que funcionam como canais para a disseminação e/ou reprodução de políticas linguísticas. O autor considera o livro didático um desses mecanismos, Silva (2013) afirma que: A política linguística oficial expressa em um texto legislativo, seria um exemplo de mecanismo explícito, enquanto os materiais didáticos, os exames de línguas, os sinais de trânsito, os nomes próprios (de pessoas, lojas e objetos), o vestuário, entre outros, seriam mecanismos implícitos. (SILVA, 2013, p. 314) Os mecanismos de política linguística, em última instância, determinam a forma como a população percebe uma língua específica (suas representações) e, consequentemente, influenciam suas atitudes relativamente a essa língua. (SILVA, 2013, p. 315)
Entendemos, então, que o livro didático é um mecanismo capaz de funcionar como auxilio para expansão de determinadas políticas linguísticas e formação de práticas e atitudes linguísticas. Celso P. de Sá (1998) afirma que dentre os fatores para a difusão das representações estão os valores, contexto ideológico e histórico, por isso acreditamos que esses são os fatores para a presença das representações sociais nos manuais, tais fatores transmitem uma imagem francófona singular, nas quais podemos constatar a França como única representante da sociedade francófona. Voltada para a questão da representação cultural, Peruchi (2004, p. 9) diz que um conjunto de fatores é responsável pela apresentação de um estereótipo cultural positivo nos manuais de
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ensino de língua francesa. Dentre eles está o medo de perder a identidade, construída ao longo dos séculos como um exemplo de potência cultural. A partir dessa afirmativa podemos pensar também no medo de perder a identidade de potência política, econômica e turística. Ademais, podemos observar a presença de apenas uma variante linguística, a francesa. Isso pode levar os futuros professores a um “reducionismo” no conhecimento sobre as variantes francófonas. Esse reducionismo pode acarretar em uma deficiência no ensino da francofonia no momento em que os formandos em docência colocarem em prática seus conhecimentos em um processo de ensino / aprendizagem. Neste trabalho, ao fazer menção às representações da francofonia, estamos tratando do modelo ideológico das imagens social (nos âmbitos de economia, política, cultura e desenvolvimento social) e linguística (no âmbito das variantes linguísticas). Ou seja, no estereótipo da cultura e da língua francesa. Por isso buscaremos investigar as ocorrências dessas representações apontando suas limitações em suas apresentações, observando se elas ocorrem de forma singular ou plural, delimitando o conhecimento e reconhecimento de outras sociedades e variantes linguísticas, fazendo com que os formandos em docência não tenham uma formação enriquecida no que tange a francofonia. A França possui uma política que defende a expansão da língua francesa pelo mundo. Em Novembro de 2001 o governo francês transformou a Delegação Geral da Língua Francesa (DGLF) em Delegação Geral da Língua Francesa e das Línguas da França (DGLFLF), que tem como uma de suas missões favorecer a utilização da língua francesa como língua de comunicação internacional, desenvolver o plurilinguismo, e garantir a diversidade cultural. Através da disseminação da cultura, da ciência e da língua, a França segue com sua política de propagação da língua francesa. Calvet (2007, p. 132) afirma que “[...] a frança é o país no mundo que mais envia professores ao exterior: sua política cultural externa é antes de tudo uma política de difusão da língua francesa”. Ou seja, esse país possui uma política linguística composta por uma legislação consistente e destinada a assegurar a manutenção do francês no mundo contribuindo para a defesa do seu status internacional. De acordo com Cuq e Gruca:
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em situação de aprendizagem de uma segunda língua, os professores têm suas próprias representações mais ou menos positivas sobre a língua que eles ensinam, e devem levar em conta as de seus alunos. [...] Em conclusão, podemos dizer que, mais do que a qualidade de nativo ou não-nativo, é a natureza das representações, o nível sócioeconômico, o grau de segurança linguística e cultural e a qualidade da formação inicial e continuada que determinam a qualidade da postura no ensinamento. (CUQ, 2002, p. 144)
Cuq e Gruca afirmam que os professores, quando estão em momento de prática de ensino, possuem suas representações formadas sobre a língua que está ensinando, ou seja, o professor deixa o processo de formação docente consciente de suas ideias e pensamentos sobre o objeto de ensino (a língua) e a sociedade, além disso, Cuq e Gruca afirmam que a qualidade da formação inicial e continuada dos professores é determinante para a qualidade da postura do professor no ensino. Para complementar as ideias de Cuq e Gruca é importante dizer que de acordo com as OCEM (Orientações Currículares para o Ensino Médio), o professor tem o dever de conscientizar os aprendizes da existência de outras variantes além da que é utilizada por ele em sala de aula: É claro que o fato de o professor empregar uma variedade qualquer não o exime de dever de mostrar aos alunos que existem outras, tão ricas e válidas quanto a usada por ele, e, dentro do possível, criar oportunidades de aproximação a elas, derrubando estereótipos e preconceitos. Nesse sentido, o papel de professores passa a ser quase o de articuladores de muitas vozes. (OCEM, 2006, p. 136)
Ou seja, deve ser exigido do professor um poder de “articulador de muitas vozes”, em que ele seja capaz de orientar seus alunos na existência e no uso dessas variantes linguísticas pertencentes à língua de ensino, nesse caso o francês. As OCEM afirmam também que: O fundamental, portanto, em que pese a impossibilidade de abarcar toda a riqueza linguística e cultural do idioma, é que, a partir do contato com algumas das suas variedades, sejam elas de natureza regional, social, cultural ou mesmo de gêneros, leve-se o estudante a entender a heterogeneidade que marca todas as culturas, povos, línguas e linguagens. (OCEM, 2006, p. 137)
1800
Entendemos que o professor deva levar o estudante a compreender a heterogeneidade que marca as sociedades tanto no eixo regional, quanto nos eixos social e cultural. Assim podemos concluir que o processo de formação de professores constitui um papel fundamental, para o desenvolvimento de profissionais qualificados no que tange a capacidade, que vai além de ensinar uma estrutura linguística, mas que envolve funções, que exigem o conhecimento e a aceitação da heterogeneidade cultural, social e linguística da francofonia. Este trabalho consiste em uma pesquisa voltada para a análise de corpus, que são os manuais didáticos (utilizados pelos alunos/ formandos em docência): Alter Ego +,Version Originale e os materiais adotados pela UERJ e UFRJ. O processo de investigação se dará através de observações das representações da francofonia presentes nos manuais que estão vinculados ao nosso objeto de pesquisa. Relataremos o desencadeamento da análise de acordo com as teorias que embasam a proposta de pesquisa e também com outras leituras. Os manuais que serão analisados estão sendo utilizados em instituições de ensino superior no Brasil. Por isso, será relevante elaborar um questionário (para os aprendizes e para os mestres) com perguntas que nos permitirão avaliar práticas, contribuições, e eficácia da utilização de tais materiais, observando pontos negativos e positivos, de acordo com os objetivos deste projeto. Dado o crescente interesse da comunidade científica em estudos voltados para o livro didático, oferecemos avanços nesse campo, trazendo, para a área dos estudos de língua francesa contribuições que favorecem a reflexão dos profissionais de ensino de Francês Língua Estrangeira sobre um dos principais instrumentos utilizados na formação de professores de FLE. É nesse sentido que propomos a análise do estereótipo da francofonia nos manuais didáticos de francês para falantes nativos do português tendo em vista as políticas e as ideologias que norteiam as ocorrências das representações desses estereótipos e o uso desses manuais. Ofereceremos, pois, uma análise que permite detectar o aparecimento de representações da francofonia (social e linguística) e fatores que as norteiam, tal análise possibilita observar, com base nos estudos da teoria da Representação Social e da
1801
Linguística Aplicada, a existência ou a ausência do pluralismo francófono, no âmbito da sociedade e linguagem. Considerações finais
Este estudo concentra-se em assuntos que abranjam questões de representações sociais e linguísticas ligadas à formação de representações ideológicas da francofonia através de manuais de FLE. E tem como foco a reflexão sobre o funcionamento do uso de livro didático ou da elaboração de materiais próprios para a formação de docentes de FLE conscientes da realidade sociolinguística que engloba a francofonia. Por se deter nas ocorrências de políticas e representações no âmbito dos manuais didáticos utilizados em universidades para cursos de licenciatura, podemos oferecer contribuições para a área de formação de professores de FLE.
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ROTACISMO NO FALAR LONDRINENSE E CURITIBANO Tamires Alves Sanchez (PG/UEL-CAPES) 1.
Introdução
Sabe-se que a língua possui natureza dinâmica e, por isso, apresenta constante processo de mudança. Este processo é o resultado da variação linguística, que pode ocorrer em qualquer nível de análise da língua: fonético, fonológico, morfossintático, semântico ou discursivo. Pretende-se, neste artigo, entender a diversidade linguística do português brasileiro, por meio da análise de um processo fonológico recorrente na língua portuguesa e caracterizado pela alternância entre as consoantes líquidas /l/ e /r/: o rotacismo. De acordo com Câmara Jr (1972), a incidência deste fenômeno é favorecida a partir da possibilidade de ocorrência de apenas laterais e vibrantes no segundo elemento de um grupo consonantal de uma palavra do português brasileiro, como, por exemplo, as palavras fluir e fruir. O presente trabalho objetiva contribuir para a descrição do português brasileiro e investigar, a partir da Sociolinguística variacionista, os contextos favorecedores da alternância entre as consoantes líquidas nos municípios de Londrina e Curitiba. A principal hipótese norteadora deste trabalho concentra-se na possibilidade de extinção dessa variante, que por ser um fenômeno fortemente estigmatizado e influenciado pela pressão normatizadora da sociedade, pode passar por um processo mais rápido de mudança que outros fenômenos. Este artigo é resultado da investigação e análise do fenômeno do rotacismo em uma amostra de dados de fala. Essa amostra é originária dos municípios de Londrina e Curitiba, pertencentes ao estado do Paraná, e faz parte do banco de dados do Atlas Linguístico do Brasil (AliB). Tenciona-se avaliar, além da ocorrência do rotacismo, a interferência de fatores sociais e fatores linguísticos nesse fenômeno. Os dados de fala foram
analisados
a
partir
dos
pressupostos
teórico-metodológicos
da
1805
Geossociolinguística e tratados matematicamente com o auxílio do programa Goldvarb 2001. 2.
Metodologia
Os dados que compõem a amostra analisada fazem parte do banco de dados do Atlas Linguístico do Brasil (ALiB) e foram coletados nos municípios de Londrina e Curitiba. A escolha dos municípios levou em consideração o fato dos dados sonoros já estarem gravados e transcritos e, além disso, por pretendermos trabalhar com municípios do Paraná, sendo um da capital e o outro do interior. Considerando que o corpus utilizado faz parte do banco de dados do Projeto ALiB, a seleção de informantes observou alguns critérios: a divisão dos informantes em duas faixas etárias (faixa I – 18 a 30 anos e faixa II – 50 a 65 anos) e distribuídos igualmente entre os dois sexos. Em relação à escolaridade, de acordo com os critérios do AliB, as capitais apresentam quatro informantes a mais do que as outras cidades, sendo todos com ensino superior completo. Os demais informantes são alfabetizados, tendo cursado, no máximo, até a quarta série do ensino fundamental. Para não comprometer os resultados da pesquisa e atender às questões espaciais, os informantes e seus pais devem ter nascido na localidade pesquisada. Neste trabalho, consideramos apenas as respostas referentes ao Questionário Fonético-Fonológico (QFF), que inclui questões para investigação de diferenças prosódicas e o Questionário Semântico-Lexical (QSL). Os dados foram transcritos grafemática e foneticamente, porém, neste trabalho, utilizaremos apenas a transcrição grafemática. Em relação aos fatores linguísticos relevantes para o estudo do rotacismo, consideramos a extensão silábica, a posição da consoante líquida lateral, o modo de articulação precedente e seguinte, o ponto de articulação precedente e seguinte, o acento e a posição da consoante líquida lateral (coda silábica ou ataque complexo). É preciso ressaltar que as palavras em coda silábica e em ataque complexo foram analisadas separadamente. Dos fatores sociais, consideramos a escolaridade, faixa etária, sexo e localidade.
1806
3.
Referencial teórico
3.1 Preconceito linguístico: português padrão e não padrão Na sociedade brasileira, sabe-se que a língua padrão é considerada por muitos falantes a única representação da língua portuguesa, pois possui alto prestígio social. Por outro lado, as outras variedades recorrentes na língua são consideradas “erradas” e inadequadas, embora sejam utilizadas diariamente por falantes escolarizados e não escolarizados. Segundo Bagno (2005), o português padrão, aquele ensinado e normatizado no ambiente escolar, caracteriza-se pelo alto prestígio social e, desta forma, possibilita a ascensão social de seus falantes. De acordo com o autor, os falantes do português padrão utilizam a variedade como forma de poder e controle, o que favorece a existência do preconceito linguístico entre os usuários da língua. De forma geral, essa variedade faz parte do uso de pessoas marginalizadas, com pouca escolarização e classe social baixa e, por isso, pode ser comparada ao latim vulgar, como Bagno (2006) afirma: Um romano de alta linhagem certamente achava que o latim vulgar era “latim falado errado”, exatamente o que muitas pessoas pensam do português não-padrão. No entanto, se desse “latim errado”, desse “latim em pó” (como disse Caetano Veloso numa canção sobre a língua portuguesa) surgiram línguas que se tornaram tão importantes na história da humanidade, línguas em que foram produzidas obrasprimas inigualáveis da literatura mundial, como Os Lusíadas, o Quixote, a Divina Comédia, é provável que, daqui a alguns séculos, o português não-padrão brasileiro também venha a ter uma importância tão grande que nada mais o poderá reprimir. (BAGNO, 2006, p. 41).
Segundo esta afirmação de Bagno (2006), as variedades consideradas cultas têm constantemente apresentado características do português não padrão, o que confirma que, por mais que haja uma negação em relação a essa variedade e ocorram tentativas de não reconhecê-la, a língua continua em constante processo de mudança. Desta forma, entende-se que existe uma tendência em relação ao processo de variação. Em relação ao processo de mudança da língua, a Sociolinguística reconhece a existência da variação linguística a partir de uma estruturação e ordenação, ou seja, a partir de regras e fatores sociais em uma comunidade de fala. De acordo com as teorias sociolinguísticas, os
1807
falantes são ativos e toda mudança linguística deve considerar a vida social da comunidade na qual eles se inserem. 3.2 O Rotacismo A alternância ou substituição de um som por outro é um fenômeno muito constante nas línguas. O rotacismo, segundo Câmara Jr. (1970), consiste na troca de um som lateral por um som vibrante: “Nos grupos de líquida como segundo elemento consonântico, há nos dialetos sociais populares o rotacismo do /l/ que o muda em /r/” (CÂMARA JR, 1970, p. 40-41), ou seja, a realização de um rótico por uma lateral. O fenômeno é considerado antigo e, embora estigmatizado, continua persistente e produtivo nas línguas. Em relação ao português do Brasil, o rotacismo faz parte da formação da língua portuguesa, pois “a passagem de /l/ a /r/ começou, com efeito, na formação do português: platu(m) > prato; nobile (m) > nobre; blandu(m) >brando; regula(m) > regra; clavum> cravo [...]” (MARROQUIM, 1996, p. 29). O fenômeno não é considerado novo e apresenta caráter persistente em diversas regiões brasileiras, como em evidências apresentadas em gramáticas históricas e em textos do português arcaico. Uma das obras que mais consideram a ocorrência do rotacismo na língua é o Dialeto Caipira, de Amadeu Amaral, no qual afirma que o fenômeno “é um dos vícios de pronúncia mais radicados no falar dos paulistas, sendo mesmo frequente entre muitos dos que se acham, por educação; ou posição social, menos em contacto com o povo rude.” (AMARAL, 1955, p. 82). No decorrer da obra, Amaral destaca o caráter dominador e influente do fenômeno na época, que era visto com prestígio pela minoria culta, e também declara que o fenômeno estava “condenado a desaparecer em prazo mais ou menos breve.” (AMARAL, 1955, p. 42). A previsão do autor não se concretizou e, atualmente, tornouse assunto recorrente em estudos investigativos, como em atlas linguísticos e análises variacionistas a respeitoda resistência do fenômeno. De acordo com Antenor Nascentes (1953), no livro O linguajar carioca, no tópico Consoante seguida de l muda em r, dentre todas as consoantes, “tal como na passagem do latim para o português. Cfr, lat. blandu – brando, clavicula – cravelha [...] A consoante mais vizinha da vibrante l é a vibrante r” (NASCENTES, 1953, p. 53). O
1808
autor também afirma que o rotacismo passou por grande influência do tupi, “O tupi não tinha o som lê, mas possuía o rê (r brando)” (NASCENTES, 1953, p. 53). Desta forma, segundo o autor, era natural trocar o “lê” pelo “rê”. Em relação às características fonéticas e fonológicas do fenômeno, as consoantes /l/ e /r/ são muitos parecidas no ponto de vista articulatório, o que pode favorecer e justificar a troca de uma consoante pela outra. No ponto de vista articulatório, os dois segmentos apresentam diferenças apenas em relação ao modo de articulação, pois o /l/ é lateral e o /r/ é vibrante (tepe). Ao tratarmos do rotacismo e da influência dos fatores extralinguísticos (sociais) na ocorrência do fenômeno, Labov trata diretamente das pressões sociais presentes em uma comunidade de fala e a sua influência no uso de uma variável: [...] a mudança linguística, advinda da variabilidade inerente a qualquer sistema linguístico, pode ser diretamente observada. Isto pode ser conseguido através de amostras da fala de uma comunidade, na qual se analisam as pressões estruturais e sociais que atuam no uso de determinada variável naquela comunidade. É aceito que a língua é afetada por fatores sociais, como, por exemplo, a etnia, a escolaridade e a faixa etária, porque a mudança linguística não ocorre no vácuo social [...] (LABOV apud COSTA, 2006, p. 77). Segundo Mollica (1998), em relação ao uso do português padrão, o sexo feminino, por ser mais conservador e atento às instruções da escola, preocupa-se mais com o uso da forma de prestígio. Desta forma, esperamos, na análise, confirmar poucas ocorrências do fenômeno entre os falantes do sexo feminino. Para Câmara Jr (1972), o fenômeno do rotacismo está presente “nos dialetos sociais inferiores e mesmo num registro muito familiar” (CÂMARA JR, 1972, P. 57), ou seja, o fenômeno ocorre em situações familiares ou informais e entre a forma de baixo prestígio. Outro fator influenciador da ocorrência do rotacismo na língua portuguesa pode ser a escolaridade, pois segundo Castilho (2006), em sua descrição a respeito dos sujeitos não escolarizados, a troca entre as líquidas é uma característica comum entre eles.
1809
4.
Apresentação dos dados
4.1
Tratamento estatístico dos dados - Goldvarb 2001
Nesta pesquisa, utilizamos o Goldvarb 2001, que é uma versão para ambiente Windows, do pacote de programas VarbRul (VariableRulesAnalysis). O Goldvarb foi desenvolvido na Universidade de York, através de um projeto colaborativo entre o Departamento de Língua e Linguística e o Departamento de Ciências da Computação (ROBINSON, LAWRENCE E TAGLIAMONTE, 2001). De acordo com Guy e Zilles (2007), o Goldvarb é considerado um “conjunto de programas computacionais de análise multivariada, especificamente estruturada para acomodar dados de variação sociolinguística” (GUY e ZILLES, 2007, p. 105). Desta forma, os resultados da análise obtidos através do Goldvarb 2001 são evidências que vão ajudar o pesquisador a comprovar ou rejeitar sua hipótese inicial. 4.2
Descrição das comunidades de fala
4.2.1 Londrina Londrina é um município brasileiro localizado no estado do Paraná, na região sul do Brasil, distante 380 km da capital do estado, Curitiba. De acordo com o IBGE (2010), o município de Londrina compreende uma área de 1.650,809 Km², possuindo aproximadamente 537.566 mil habitantes, sendo a segunda cidade mais populosa do estado e a quarta da região sul. Londrina é a sede da região metropolitana de Londrina (RML), sendo considerada o segundo maior aglomerado urbano do estado e, por isso, exerce um alto nível de influência econômica, comercial e política no Paraná e na região sul. Antes da sua fundação, a região de Londrina possuía uma terra muito fértil, o que atraiu diversos imigrantes para as imensas plantações de café. A partir da década de 20, o governo estadual concedeu terras a empresas privadas de colonização, o que atraiu investidores estrangeiros, principalmente ingleses. Em 1924, inicia-se a história da Companhia de Terras Norte do Paraná, que deu um grande impulso ao processo de desenvolvimento dessa área. Em decorrência dos atrativos que a Companhia de Terras
1810
usava para vender as terras da região, a colonização de Londrina foi feita a partir de uma mistura de povos, como ingleses, alemães, italianos e japoneses, o que reflete na população atual de Londrina. Em 10 de dezembro de 1934, Londrina foi oficialmente fundada. 4.2.2 Curitiba Curitiba é um município brasileiro, capital do estado do Paraná. De acordo com o IBGE (2010), é a oitava cidade mais populosa do Brasil, com uma população de 1 848 946 habitantes. É considerada a principal cidade da Região Metropolitana de Curitiba, que é formada por 29 municípios, sendo a oitava região metropolitana mais populosa do Brasil. Nos últimos anos, a cidade de Curitiba tem sido considerada a cidade mais rica do sul do país e a quarta em nível nacional. A cidade foi originada através de um pequeno povoado iniciado por portugueses, denominado de Vilinha. No ano de 1693, foi instalada a Vila de Nossa Senhora da Luz, que, posteriormente, tornou-se Curitiba. Em 1842, Curitiba foi oficialmente fundada como município. A partir de sua fundação, Curitiba passou por um grande desenvolvimento e tornou-se capital do estado em 1854. No final do século XIX, diversos imigrantes, como poloneses, italianos, ucranianos, alemães e orientais, chegaram à Curitiba em busca de erva-mate e madeira, o que impulsionou ainda mais o crescimento dessa região. 4.3 O grupo de falantes Os informantes desta pesquisa, como já foram mencionados, são moradores de duas localidades – Londrina e Curitiba – estratificados quanto ao sexo (masculino e feminino), à faixa etária (18 a 35 anos e 50 a 65 anos) e à escolaridade (ensino fundamental incompleto e ensino superior completo). Em Londrina, foram analisados dois falantes de sexo masculino e dois falantes do sexo feminino, sendo todos eles alfabetizados, tendo cursado, no máximo, até a quarta série do ensino fundamental. Em Curitiba, foram analisados quatro falantes do sexo masculino e quatro falantes do sexo feminino, sendo quatro alfabetizados, tendo cursado, no máximo, até a quarta série do
1811
ensino fundamental e quatro com ensino superior completo. Todos os falantes foram selecionados a partir dos critérios de escolha do Atlas Linguístico do Brasil (AliB). 5. Análise dos dados Nesta seção, apresentaremos os resultados da análise estatística do rotacismo, realizada através do pacote de programas Goldvarb. As tabelas mostram frequências de aplicação para os fatores condicionadores apontados pelo programa para a realização do fenômeno na amostra de Londrina e Curitiba. Os resultados foram analisados separadamente para os ambientes de ataque complexo e coda silábica. 5.1
Rodada geral
Devido ao baixo número de dados, optamos por apresentar os resultados apenas em percentual, pois consideramos que os resultados em peso relativo poderiam não ser confiáveis. O programa nos indicou que, em ataque complexo, ocorreu um percentual de aplicação de 9% em 54 dados (5/54) e em coda silábica, 3% em 148 dados (5/148). A partir destes resultados podemos afirmar que a posição do segmento líquido na sílaba é relevante tanto em coda silábica, quanto em ataque complexo, pois o número de ocorrências é semelhante. O programa não selecionou para a análise binominal, que fornece resultados em peso relativo, ou seja, probabilísticos, nenhuma variável favorecedora à realização do rotacismo e acreditamos que isso tenha acontecido pelo número reduzido de dados. Por isso, temos clareza de que é preciso ampliar a nossa amostra, estendendo a pesquisa a mais localidades e contextos, como a leitura e o relato dos entrevistados. Contudo, para esta análise, consideramos importante apresentar em tabelas os percentuais referentes aos contextos extralinguísticos, pois segundo Mollica (1998), Câmara Jr (1972) e Castilho (2006), os contextos linguísticos não são tão relevantes quanto a escolaridade, a idade, o sexo e a localidade. Desta forma, discutiremos a influência que esses contextos extralinguísticos apresentaram na incidência do rotacismo nesta amostra. 5.2
Rotacismo versus sexo
1812
Nesta rodada, as mulheres realizam mais o fenômeno nos dois ambientes (ataque complexo e coda silábica), conforme mostra a Tabela 1 e a Tabela 2. Sexo Apl./Total % Feminino 4/54 16 Masculino 1/54 3 Tabela 1: variável sexo/ataque complexo
Sexo Apl./Total % Feminino 4/148 5% Masculino 1/148 1% Tabela 2: variável sexo/codasilábica
Este resultado contradiz as nossas previsões para essa variável, pois de acordo com alguns estudos variacionistas tradicionais, como Mollica (1998), o sexo feminino tem maior tendência em seguir as variáveis de prestígio, por ser mais cuidadoso e conservador. Neste sentido, esperávamos que o sexo masculino liderasse o uso do rotacismo, o que não ocorreu, conforme apontam os resultados apresentados na Tabela 1 e 2. 5.3
Rotacismo versus escolaridade
Nesta rodada, constatou-se o que era esperado em relação ao fator extralinguístico escolaridade: os falantes menos escolarizados têm maior tendência em usar a variável mais estigmatizada. De acordo com os dados, os falantes com menos escolaridade apresentaram maior ocorrência de uso do rotacismo do que os falantes com ensino superior nos dois ambientes (ataque complexo e coda silábica), como pode ser visto nas Tabelas 3 e 4. Apl./Total % Escolaridade Fundamental incompleto 3/54 8 Superior completo 2/54 10 Tabela 3: variável escolaridade/ataque complexo
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Escolaridade Apl./Total % Fundamental incompleto 5/148 5 Superior completo 0/148 0 Tabela 4: variável escolaridade/coda silábica
Este resultado corrobora com o estudo de Castilho (2006), em que traça o perfil dos falantes não escolarizados e constata a constante realização das variáveis desprestigiadas entre eles. Vale ressaltar que no ambiente coda silábica tivemos um knockout entre os falantes com ensino superior completo, ou seja, não houve nenhuma ocorrência de rotacismo neste caso. Esta não ocorrência do fenômeno entre os falantes com ensino superior ratifica ainda mais a constatação de que quanto maior a escolaridade, maior o uso de variáveis prestigiadas pela sociedade. 5.4
Rotacismo versus faixa etária
Conforme pode ser observado nas Tabelas 5 e 6, o fenômeno do rotacismo pode ser visto como uma variável estável nas comunidades de Londrina e Curitiba, pois há ocorrência desta variável entre os jovens e os idosos. Faixa etária Apl./Total % 18 – 30 anos 5/54 18 50 – 65 anos 0/54 0 Tabela 5: variável faixa etária/ataque complexo
Faixa etária Apl./Total % 2/148 2 18 – 30 anos 50 – 65 anos 3/148 3 Tabela 6: variável faixa etária/coda silábica
No ambiente de ataque complexo, há predominância da realização do fenômeno entre os jovens e no ambiente de coda silábica, há um equilíbrio entre eles. Desta forma, não podemos afirmar que há maior realização entre alguma das faixas etárias. Ressaltamos, também, a ocorrência de um knockout entre os falantes de 50-65 anos no ambiente de ataque complexo.
1814
5.5
Rotacismo versus localidade
Em relação ao fator localidade, como pode ser observado nas Tabelas 7 e 8, constatou-se um equilíbrio da realização do fenômeno entre Londrina e Curitiba. Localidade Londrina Curitiba
Apl./Total 2/54 3/54
% 11 8
Tabela 7: variável localidade/ataque complexo
Localidade Londrina Curitiba
Apl./Total 2/148 3/148
% 4 3
Tabela 8: variável faixa etária/ataque complexo
6.
Considerações finais
Do total de informantes que compõem a amostra analisada – 12 (doze) -, 50% (6/12) realizaram o fenômeno do rotacismo em, pelo menos, uma das realizações, sendo quatro informantes de Curitiba e dois de Londrina. Nesta amostra, consideramos relevante o fator linguístico selecionado para a análise – a posição do segmento líquido na sílaba – com cinco ocorrências em coda silábica e cinco ocorrências em ataque complexo e os fatores extralinguísticos (localidade, escolaridade, sexo e faixa etária), baseado em estudos que afirmam a sua relevância. Conforme os resultados estatísticos fornecidos pelo programa Goldvarb, constatamos que é preciso ampliar a nossa amostra, estendendo a pesquisa ao relato e a leitura dos informantes e também acrescentando mais localidades. Desta forma, os resultados serão mais significativos e possibilitarão uma contribuição efetiva para o conhecimento do português falado nas cidades do Estado do Paraná. Ressaltamos, por fim, que esse é um trabalho preliminar pertencente ao projeto de Variação fonética e fonológica nas regiões Sul, Centro-Oeste e Norte do Brasil. Referências AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. São Paulo: Anhembi, 1955.
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GÊNEROS DA ESFERA JORNALÍSTICA NO LIVRO DIDÁTICO1 Tatiana Fasolo Bilhar de Souza (UNIOESTE – bolsista CAPES/INEP) Introdução Desde a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (doravante PCN), em 1998, o ensino de Língua Portuguesa (LP) no Brasil tem implicado o trabalho com os gêneros discursivos/textuais2, com o objetivo de possibilitar aos alunos o domínio de gêneros diversos, de modo que pudessem se comunicar, compreender e participar socialmente de maneira efetiva. Na esteira dos PCN, o Currículo Básico para as Escolas Públicas Municipais da Região Oeste (AMOP, 2007), no Paraná, também adotou tal perspectiva. Na disciplina de LP, o Currículo da Amop aponta como objetivo “garantir ao aluno o domínio efetivo sobre a língua, a fim de que possa utilizá-la, de forma oral ou escrita, com propriedade, adequando-a as diferentes situações de uso” (AMOP, 2007, p.147). Pautando-se na concepção interacionista de linguagem, o documento determina que “uma das possibilidades de se atingir esse objetivo é por meio do reconhecimento dos gêneros textuais como objeto de ensino” (AMOP, 2007, p.147). Dentre tais gêneros estão os da esfera jornalística (objeto de estudo da pesquisadora, que é também jornalista) – cuja função é informar e comentar acontecimentos sociais diversos. O Currículo da Amop relaciona os gêneros reportagem, notícia, carta ao leitor, artigo de opinião e entrevista entre aqueles que devem ser trabalhados nos anos iniciais da educação básica. Partindo desse contexto, esta pesquisa procurou verificar os gêneros da esfera jornalística no livro didático (LD) do 5º ano da Coleção Projeto Buriti (SANCHES, 1
Este trabalho se insere no Programa Observatório da Educação – CAPES/INEP – no projeto intitulado Formação continuada para professores da Educação Básica nos anos iniciais: ações voltadas para a alfabetização em municípios com baixo IDEB na região oeste do Paraná, no qual a pesquisadora atua como bolsista CAPES/INEP sob orientação da Profa. Dra. Terezinha da Conceição Costa-Hübes. 2 Empregaremos, neste texto, a expressão “gêneros discursivos/textuais” porque os documentos pedagógicos ora recorrem à teoria dos “gêneros discursivos” proposta pelos estudos bakhtinianos, ora recorrem aos “gêneros textuais” numa perspectiva bronckartiana.
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2011), listado no Guia PNLD 2013, e adotado pelo município de Diamante do Sul/PR. Para isso, traçamos, como objetivos: a) realizar breve revisão de literatura a respeito da concepção interacionista de linguagem, do conceito de gêneros discursivos e de gêneros da esfera jornalística; b) quantificar e identificar os gêneros da esfera jornalística apresentados no livro didático do 5º ano da Coleção Projeto Buriti; c) analisar as atividades propostas no livro didático para o gênero reportagem, que se destacou em quantidade em relação aos demais da esfera jornalística, no sentido de averiguar se dialogam com a proposta interacionista de ensino de LP. Desenvolvimento A concepção de linguagem adotada, hoje, pelos documentos pedagógicos oficiais para orientar o ensino de LP em nosso país é a interacionista. Para essa concepção, a língua “constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza através da interação verbal social dos locutores” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2006, p.130). Segundo Perfeito (2005), ao conceber a linguagem como forma de interação, passa-se a considerar também sua natureza sócio-histórica. “A linguagem, sob esse enfoque, é o local das relações sociais em que os falantes atuam como sujeitos” (PERFEITO, 2005, p.47). O homem, nessa perspectiva, interage e modifica o mundo a sua volta por meio da linguagem. Toda a comunicação verbal que produz é feita com algum objetivo e sempre levando em conta o contexto histórico-social em que está inserido. Considerase, assim, o interlocutor e o contexto de produção dos textos. O currículo da AMOP (2007) fundamenta-se nesta concepção. Apoiando-se em autores como Bakhtin (1997) e Geraldi (1984, 1997), afirma que “os modos de dizer do homem são realizados a partir das possiblidades oferecidas pela língua numa determinada situação ou contexto de produção, e só podem concretizar-se por meio dos gêneros discursivos ou gêneros textuais” (AMOP, 2007, p.145). Para dar conta do proposto, as aulas de LP, portanto, devem voltar-se aos gêneros: seu reconhecimento, identificação de sua finalidade, análise de seu conteúdo temático, de seu estilo e de sua construção composicional para, finalmente, propiciar situações de produção, reescrita e circulação de textos de diferentes gêneros.
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Todavia, como estão organizados os LD, tendo em vista essa proposta curricular? De alguma forma, contemplam uma proposta de ensino de língua pautada nos gêneros discursivos/textuais? É o que pretendemos verificar a seguir, ao procedermos a análise do LD do 5º ano da Coleção Projeto Buriti (SANCHES, 2011). Análise do livro didático A concepção de linguagem adotada pelos livros da Coleção Projeto Buriti, conforme explicitado nas 'orientações e subsídios ao professor' é da “linguagem entendida como sistema de comunicação complexo, que permite a interação entre as pessoas de determinado meio social” (SANCHES, 2011, p.3). Assim, o livro parece seguir as orientações dos documentos pedagógicos oficiais, apontando a linguagem como meio de interação, portanto, dotando-se da concepção interacionista. O livro do 5º ano está dividido em nove unidades. Ao todo, quatro gêneros da esfera jornalística se fazem presentes: duas reportagens (recorte de reportagens, nas unidades 2 e 9), notícia (unidade 4), artigo de opinião (unidade 4) e entrevista (unidade 3). O gênero reportagem é o único que aparece mais de uma vez. Em cada uma delas, o texto é seguido por breve explicação do gênero e atividades. Há diferentes atividades, algumas com foco na capacidade leitora de resumir, uma em cada unidade que se volta para a construção composicional do gênero, mas nenhuma que retome o contexto de produção do texto, seu suporte e circulação (uma das reportagens foi publicada na Folha de São Paulo e a outra no site de uma ONG): quem o escreve, o estilo de escrita ou sua função social. Não há, no LD, ênfase ou distinção entre a função social dos gêneros notícia e reportagem. A explicação do livro sobre o gênero reportagem trata-o como uma notícia mais aprofundada, que, inclusive, possuiria lide3 - uma das atividades da unidade 2 pede que os alunos localizem o lide da reportagem (mas o texto, nesse caso, não apresenta lide). 3 O primeiro parágrafo de uma notícia, que já apresenta o que há de mais importante no texto, respondendo questões como “O quê?”, “Como?”, “Quando?”, “Onde?”, “Por que?” e “Para quem?”. Conforme Lage (2000), o estilo da reportagem, uma vez que sua função não é anunciar o novo, é menos rígido que o da notícia. As informações podem ser dispostas por ordem decrescente de importância, mas também é possível narrar a história, como um conto ou fragmento de romance. O lide, portanto, não é regra nas reportagens.
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No subsídio ao professor, também aparece algo característico de outra concepção, a de linguagem como instrumento de comunicação. Ao explicar sobre a linguagem da reportagem, o livro didático afirma: “predomina a função informativa, o que não exclui as funções emotiva e poética” (SANCHES, 2011, p.42) Conclusão Embora o livro didático procure atender a uma concepção de linguagem interacionista e estruture seu conteúdo a partir do trabalho com diferentes gêneros, no que diz respeito às atividades propostas para o gênero reportagem, há muitas cujo enfoque é a capacidade leitora de resumir ideias ou localizar informações, mas nenhuma que retome o contexto de produção e a função social do gênero – atividades fundamentais à concepção interacionista. Referências AMOP. Associação dos Municípios do Oeste do Paraná. Currículo Básico para a Escola Pública Municipal: Educação Infantil e Ensino Fundamental – anos iniciais. Cascavel: ASSOESTE, 2007. BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ______ . VOLOCHINOV. Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental, 1998. GERALDI, J. W. O texto na sala de aula: Leitura & Produção. Cascavel-PR: Assoeste, 1984. _______. Portos de Passagem. 4. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. LAGE, N. A estrutura da notícia. São Paulo: Ática, 2000. PERFEITO, A. M. Concepções de linguagem, teorias subjacentes e ensino de língua portuguesa. IN: Concepções de linguagem e ensino de língua portuguesa (Formação de professores EAD 18). v.1. ed1. Maringá: EDUEM, 2005. p 27-79 SANCHEZ, M. M. (Ed. Responsável). Projeto Buriti: Português 5º ano. 2. Ed. São Paulo: Moderna, 2011.
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OS GÊNEROS DISCURSIVOS NA SALA DE AULA: PROPOSIÇÕES DIDÁTICAS
Terezinha da Conceição Costa-Hübes (UNIOESTE / CAPES) Introdução
Adotar os gêneros discursivos como o eixo articulador para os estudos da língua significa orientar-se a partir de uma concepção interacionista, a qual compreende as práticas discursivas como propulsoras de reflexões sobre os diferentes usos da linguagem, configurados nos mais variados gêneros que circulam na sociedade. Essa premissa sustenta-se nos estudos bakhtinianos que foram, de certa forma, transladados para o campo didático por meio de reflexões propostas inicialmente por Geraldi (1984, 1997), quando apresenta uma concepção de linguagem como forma de interação. Corroborando esses preceitos teóricos, nosso propósito neste texto é socializar um projeto de pesquisa e extensão desenvolvido com o apoio do Observatório da Educação – CAPES/INEP – entre os anos de 2011 e 2014, no âmbito do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Tal projeto, inscrito sob o título de Formação Continuada para professores da educação básica nos anos iniciais: ações voltadas para a alfabetização em municípios com baixo IDEB da região Oeste do Paraná (doravante, Projeto Obeduc), focalizou, em suas ações, além de temáticas específicas voltadas à leitura, reflexões sobre o trabalho com os gêneros na sala de aula, compreendendo-o como um instrumento favorável à alfabetização, à leitura e à apropriação da linguagem escrita. Assim, neste espaço, o objetivo é apresentar alguns posicionamentos teóricos assumidos pelos pesquisadores no âmbito do projeto de pesquisa e extensão, durante as ações de formação continuada e de pesquisa. Os resultados obtidos pelo projeto revelam um comprometimento maior do professor em relação ao trabalho com gêneros na sala de aula, embora denunciem, por outro lado, a necessidade de maior investimento na formação do docente, de modo que amplie seus conhecimentos sobre as práticas discursivas e sua relação com o ensino de língua portuguesa.
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Contextualizando a proposta de formação continuada A proposta de formação de um Núcleo de Pesquisa despontou com a necessidade de promover maior articulação entre a Universidade e a Educação Básica, a partir da temática formação continuada de professores, focalizando, especificamente, municípios que apresentaram índices abaixo de 5,0 na avaliação do IDEB/Prova Brasil em 2009. Sustentamos nosso interesse pela formação continuada de professores na premissa de que é imprescindível investir no desenvolvimento social, cultural e cognitivo dos alunos, principalmente nos anos iniciais, pois resulta dessa fase de ensino o sucesso (ou não) de sua aprendizagem em fases posteriores. Para isso, torna-se fundamental contar com professores bem preparados, capazes de mediar situações de aprendizagem que estimulem o desenvolvimento dessas capacidades em seus alunos. Se a sociedade exige, do professor, postura de profissional crítico, criativo, produtor de inovações e ideias, instaurador de práticas qualitativas, pesquisador de sua própria prática, enfim, um agente de mudanças, é preciso investir nesse profissional, garantindo-lhe condições de estudo (COSTA-HÜBES, 2013, p. 504).
Justificar que tais investimentos já acontecem via oferta de cursos pontuais, direcionados a diferentes áreas do conhecimento, já não é suficiente, tendo em vista sua efemeridade comprovada. É preciso acreditar que “[...] a formação do professor não se concretiza de uma só vez, é um processo. Não se produz apenas no interior de um grupo, nem se faz através de um curso, é o resultado de condições históricas” (FÁVERO, 1981, p. 17). E, para isso, é preciso maior investimento na formação continuada, envolvendo os professores em momentos de estudos que contribuam decisivamente com o seu fazer pedagógico. Por outro lado, nosso interesse pela temática se sustentaram, inicialmente, em resultados de pesquisas externas, as quais revelam um déficit na educação brasileira, principalmente no que se refere às áreas de Língua Portuguesa. O Programa Internacional de Avaliação de Aluno – PISA – segundo dados do INEP (BRASIL,
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2012), por exemplo, diagnosticou, em 2009, “a capacidade de um indivíduo de entender, empregar e refletir sobre textos escritos, para alcançar objetivos, desenvolver conhecimentos e participar da sociedade” (BRASIL, 2012, p. 19). Os resultados revelaram que, embora tenham apresentados alguns avanços em relação às avaliações anteriores, os alunos das escolas brasileiras ainda demonstram grandes dificuldades em leitura. Dentre os 65 países avaliados, somos o 53º colocado. Enquanto os países desenvolvidos obtiveram 496 pontos, o Brasil alcançou 412 pontos em leitura. No Brasil, temos o Sistema de Avaliação da Educação Básica – SAEB/Prova Brasil – que se trata de uma avaliação externa em larga escala, aplicada desde 1990, a cada dois anos, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP. Seu objetivo é realizar um diagnóstico dos sistemas educacionais brasileiros, com o propósito de “subsidiar a formulação, a reformulação e o monitoramento das políticas públicas educacionais nas esferas municipal, estadual e federal, contribuindo para a melhoria da qualidade, equidade e eficiência do ensino” (BRASIL, 2012)1. Ao apresentar a média de desempenho dos alunos entre os anos de 1995 até 2005, os resultados não foram diferentes daqueles já identificados no PISA. Em relação ao desempenho dos alunos da 4ª série/5º ano, os dados dessa avaliação demonstraram que, se comparados ao desempenho verificado no primeiro exame, realizado em 1995, ao longo desses 10 anos houve um decréscimo da capacidade interpretativa dos estudantes. A média de Proficiência em Língua Portuguesa de alunos de 4ª série/5º ano do Ensino Fundamental caiu de 1.6 para 1.0, apresentando um déficit geral de 2.9. Diante dessa realidade um tanto assustadora, como a Universidade poderia contribuir? Entendemos que com investimentos em pesquisas que valorizassem a alfabetização como um processo essencial ao exercício das práticas sociais de leitura e escrita, levantando dados e promovendo ações que contribuissem para o sucesso escolar das crianças brasileiras. Para efetivar essa intenção, lançamos nosso olhar para a região Oeste do Paraná, onde o Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras – UNIOESTE – está Disponível em: http://download.inep.gov.br/educacao_basica/prova_brasil_saeb/resultados/2012/Saeb_2011_primeiros_r esultados_site_Inep.pdf 1
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sediado. Tendo em vista seu perfil de promover ações educativas que deem visibilidade à situação de fronteira, sem, contudo, desconsiderar a produção de conhecimento e temas de âmbito universal, entendemos que, com a organização do núcleo de pesquisa, poderíamos estimular ações que aproximassem, ainda mais, a universidade (com seus pesquisadores) do campo da pesquisa (escola, alunos e professores da Educação Básica), visualizando, nesse espaço, a possibilidade de novas percepções e organizações das experiências pedagógicas. Foi assim que estabelecemos, como campo de pesquisa, municípios da região que em 2009 apresentaram um índice abaixo de 5.0 na avaliação do SAEB/Prova Brasil. Eram municípios de pequeno porte que careciam de maior apoio político, econômico e educacional. Podiam ser considerados, assim, recorrendo às palavras de Fabrício (2006), como “espaços marginais”, com os quais poderíamos aprender a “ver com outros olhos” (FABRÍCIO, 2006, p. 52). Priorizamos, em nossa proposta, a área da alfabetização, relacionando-a com as práticas sociais de leitura e escrita, com vistas à ampliação do conhecimento
dos
professores
dos
anos
iniciais
da
Educação
Básica
e,
consequentemente, o desenvolvimento da qualidade na educação escolar. Uma vez definido o Núcleo de Pesquisa e seus pesquisadores, iniciamos as atividades concernentes aos propósitos estabelecidos. Para isso, primeiramente promovemos parcerias entre a UNIOESTE, por meio do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Letras, e Prefeituras Municipais juntamente com as Secretarias Municipais de Educação dos municípios envolvidos. Na ocasião, apresentamos a amplitude do Projeto de Pesquisa aos municípios, definindo como ações: a)
Elaboração de simulados da Prova Brasil, focados no eixo Leitura, para serem aplicados a alunos dos 3º e 5º anos2. Esses simulados foram elaborados por integrantes do Núcleo de Pesquisa, sustentados no propósito de levantar as maiores dificuldades dos alunos em relação aos descritores da Prova Brasil para, a partir dessa geração de dados, planejar efetivamente as ações de formação continuada.
2
Os simulados foram organizados com 15 questões, cada uma focalizando um descritor em específico. Para isso, abordamos, em média, 4 textos, em torno de cada qual 4 a 5 questões foram elaboradas. Além disso, solicitamos, na prova, uma produção escrita de texto, que foi tomado como parâmetro para as ações de formação continuada voltadas para a escrita do aluno.
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b) Aplicação de simulados da Prova Brasil aos alunos dos municípios investigados, quando um grupo de pesquisadores de deslocaram até os municípios e aplicaram as provas. c)
Análise e tabulação dos dados gerados por meio do simulado da Prova Brasil.
d) Planejamento de ações de formação continuada a partir dos dados gerados, enfocando as principais dificuldades dos alunos em leitura e em escrita; e)
Desenvolvimento de 80 horas de formação continuada em Língua Portuguesa nos municípios investigados, ações essas desenvolvidas pelos bolsistas da Pósgraduação, com o apoio dos bolsistas da Educação Básica e orientação da coordenadora do Núcleo de Pesquisa. Essas ações desencadearam outras pesquisas tanto na graduação como no mestrado;
f)
Aplicação de questionários aos professores e à equipe pedagógica dos municípios investigados, a fim de nos aproximar ainda mais da realidade docente, bem como das políticas educacionais de cada município. As ações de formação continuada em Língua Portuguesa foram subsidiadas pela
concepção de leitura e escrita que sustenta o Currículo Básico para a Escola Pública Municipal (AMOP, 2010), documento que orienta o ensino na região e que comunga com os pressupostos teóricos dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e das Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa do Estado do Paraná (DCE). É sobre essa base teórica que abordaremos na próxima seção, fazendo um recorte específico para a abordagem sobre os gêneros do discurso. A base teórica das ações de formação continuada O Currículo Básico para a Escola Pública Municipal (AMOP, 2010), documento que orienta o ensino da Educação Básica – anos iniciais – da região Oeste do Paraná, teve o início de sua produção em 2005 e a conclusão em 20073. Contou, durante o processo, com a participação direta de professores desse nível de ensino, com o envolvimento de profissionais, também professores em sua maioria, que compunham Esse documento passou por uma revisão em 2010, versão que estamos usando neste texto, e está passando por outra revisão e reestruturação em 2014.
3
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as equipes pedagógicas das secretarias municipais de educação, além de professores da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) que coordenaram a produção. Na disciplina de Língua Portuguesa, adotou-se como concepção teóricometodológica norteadora a linguagem como forma de interação, a qual reconhece que a língua, segundo Bakhtin/volochinov (2004), serve às nossas necessidades enunciativas concretas. Nesse sentido, o que importa, no estudo da língua, “é aquilo que permite que a forma linguística figure num dado contexto, aquilo que a torna um signo adequado às condições de uma situação concreta dada” (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2004, p.9293). Em termos de prática escolar, a língua passou a ser compreendida como forma de interação. Nessa perspectiva, tornou-se necessário elaborar estratégias de trabalho que considerassem os diversos contextos de uso da língua para que os alunos pudessem dela fazer uso em situações diversas, sejam formais, informais, orais ou escritas. Conforme os pressupostos que orientam o ensino da disciplina de Língua Portuguesa, as práticas pedagógicas devem respeitar o conhecimento prévio do aluno, porém ampliá-lo quanto ao uso social da linguagem, tanto no aspecto da oralidade, da escrita, como da leitura. Diante desse pressuposto, cabe à escola o ensino de práticas sociais de uso da linguagem, com a finalidade de garantir ao aluno “o domínio efetivo sobre a língua, a fim de que possa utilizá-la, de forma oral ou escrita, com propriedade, adequando-a às diferentes situações de uso” (AMOP, 2010, p. 142). Nesse sentido, [...] pensar o ensino de Língua Portuguesa implica pensar na realidade da linguagem como algo que permeia todo o nosso cotidiano, articulando nossas relações com o mundo e com o outro, e com os modos como entendemos e produzimos essas relações. A percepção da natureza histórica e social da linguagem, estabelecida nos meios de produção, conduz-nos a compreender seu caráter dialógico, no sentido de que tudo o que dizemos, fazemo-lo dirigido a alguém, a um interlocutor concreto, quer dizer, sóciohistoricamente situado (AMOP, 2010, p. 144).
Assim compreendida, essa concepção acena para um trabalho pautado na teoria dos gêneros discursivos, que se fundamenta nas ideias do filósofo russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), o qual considera que “só o texto pode ser o ponto de partida” (BAKHTIN, 2003, p. 308) das pesquisas e estudos sobre a língua. Ou, nas palavras de Geraldi: É no texto que a língua se revela em sua totalidade quer enquanto conjunto de formas e de seu reaparecimento, quer enquanto discurso
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que remete a uma relação intersubjetiva constituída no próprio processo de enunciação marcada pela temporalidade e suas dimensões (GERALDI, 1997, p. 118).
Sob essa égide, o texto é compreendido como enunciado que nas inter-relações dinâmicas entre sua ideia (intenção) e a realização dessa intenção, concretiza-se na interação com o(s) outro(s). Ao adotá-lo como centro organizador do trabalho com a língua, Geraldi (1997) elege o sujeito como autor de seus discursos concretizados em textos, por meio dos quais articula seu ponto de vista sobre o mundo, comprometido com sua palavra e com a formação discursiva da qual faz parte. O texto-enunciado, para se concretizar, se molda em algum gênero do discurso tendo em vista a esfera social de onde é proferido, a funcionalidade do gênero, os interlocutores, enfim, os elementos que determinam seu contexto de produção e de circulação. Conforme essa orientação teórica, organizamos nosso modo de dizer/escrever a partir das possibilidades de gêneros oferecidos por determinadas esferas sociais. Logo, “as formas de gênero, nas quais moldamos nosso discurso, diferem substancialmente, é claro, das formas da língua no sentido da sua estabilidade e da sua coerção (normatividade) para o falante” (BAKHTIN, 2003, p. 283). Nossos discursos, revelados por meio de textos-enunciados, refletem e refratam, conforme Bakhtin/volochinov (2004), os conhecimentos socialmente construídos. É “por meio dos gêneros discursivos, como enunciados relativamente estáveis que circulam nas diferentes áreas de atividade humana” (AMOP, 2010, p.145), que a língua se concretiza. Para orientar metodologicamente o ensino, o quadro de conteúdos de Língua Portuguesa no Currículo organiza-se da seguinte forma: na primeira parte estão listados os gêneros propostos como norteadores das ações com a linguagem nessa fase de ensino, distribuídos por ano de ensino e, na segunda parte, os conteúdos relativos ao trabalho com esses gêneros. Considerando
as
orientações
teóricas
curriculares
e
os
pressupostos
bakhtinianos, discorremos, a seguir, sobre os procedimentos de leitura, estudos e reflexões que orientaram as ações de formação continuada no âmbito do Projeto Obeduc.
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Os gêneros discursivos e o ensino da Língua Portuguesa: compreensões Ao efetivar as ações de formação tendo como parâmetro a concepção interacionista de linguagem e os gêneros como o eixo articulador para o ensino da língua, partimos da seguinte indagação: por que ensinamos a língua na escola? A resposta a essa indagação nos é dada pelo Currículo quando apresenta o objetivo que se pretende alcançar com o ensino da Língua Portuguesa nos anos iniciais: [...] que os alunos desenvolvam, de forma contínua, os conhecimentos em relação aos usos da linguagem, possibilitando-lhes interagir socialmente com o outro, ter acesso aos bens culturais e agir efetivamente no mundo letrado (AMOP, 2010, p. 141).
O que se pretende, então, com o ensino da Língua Portuguesa, é que os alunos (re)conheçam os usos da linguagem em diferentes situações para que, ao fazer uso da língua, o façam com propriedade, interagindo e agindo socialmente. Logo, ensinar a língua nessa perspectiva pressupõe considerá-la em situações reais de uso em que os textos-enunciados se revelem em toda a sua plenitude. Ao refletir, então, sobre o objetivo traçado para o ensino de Língua Portuguesa, no documento curricular (AMOP, 2010), desponta-nos outra indagação: de que forma a escola está garantindo que esse objetivo se cumpra? Para responder a essa indagação recorremos, mais uma vez, aos pressupostos teórico-metodológicos que orientam o ensino de Língua Portuguesa. Os gêneros discursivos são tomados como organizadores de todo processo reflexivo sobre os usos da linguagem, pois, conforme Bakhtin, “a vontade discursiva do falante se realiza, antes de tudo, na escolha de um certo gênero do discurso. Essa escolha é determinada pela especificidade de um dado campo da comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2003, p. 282, grifos do autor). E em torno desse eixo norteador, as demais práticas de uso da linguagem – oralidade, leitura, produção (oral e escrita) e análise linguística – poderão ser estudadas, compreendidas, em função do gênero selecionado. Essa orientação teórico-metodológica se encontra sintetizada na figura que segue:
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Figura 02 – Eixos de ensino de LP
Fonte: Organizada pela autora
Trata-se, assim, de um estudo que parte da dimensão social de uso da linguagem (esferas), estende-se para os gêneros e avança para os textos-enunciados, lugar a língua se concretiza e as ações de oralidade, leitura, análise linguística e produção (oral ou escrita) se realizam, sem dissociar o signo da comunicação social. Justificamos um estudo da língua a partir dos gêneros discursivos porque, conforme Bakhtin, Quanto melhor dominarmos os gêneros, tanto mais livremente os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade, refletimos de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso (BAKHTIN, 2003, p. 285).
Para que essa orientação teórico-metodológica se efetive na sala ao procedermos, por exemplo, o estudo da Língua Portuguesa, é importante que alguns passos sejam considerados no estudo de um texto-enunciado pertencente a determinado gênero do discurso. E quem nos aponta um possível caminho é Bakhtin/Volochinov (2004) quando apresentam uma ordem metodológica para estudo da língua, qual seja:
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a) As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza; b) As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constituem os elementos [...]. c) A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2004, p. 124).
Depreendemos das palavras dos autores que: a) na seleção de um texto-enunciado para estudo, o primeiro aspecto a ser considerado, ou, seu ponto de partida deve ser a dimensão social do gênero, isto é, reconhecer a esfera social que, em consonância com o projeto discursivo do autor, define o conteúdo temático abordado naquele projeto discursivo. Só é possível compreender o conteúdo temático de um texto-enunciado se for considerado seu contexto de produção, o que equivale a refletir sobre: o autor, o momento sóciohistórico e ideológico que envolve aquela situação de produção, sua finalidade discursiva, seu(s) interlocutores, o veículo/suporte de circulação e o gênero selecionado; b) no reconhecimento do gênero que molda o texto-enunciado em estudo, é importante compreender sua construção composicional, ou seja, sua forma organizacional que o define como tal. Nas palavras de Bakhtin, “os gêneros do discurso, comparados às formas da língua, são bem mais mutáveis, flexíveis e plásticos; entretanto, para o indivíduo falante eles têm significado normativos, não são criados por ele mas dados a ele” (BAKHTIN, 2003, p. 285). Isso equivale a dizer a configuração do gênero é socialmente definida e que os gêneros têm uma forma “relativamente estável” (BAKHTIN, 2003, p.262) que precisa ser considerada no estudo de um textoenunciado; c) por fim, é preciso dedicar-se às “formas da língua na sua interpretação linguística habitual” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2004, p. 124). Entendemos, dessa orientação, que a cada gênero em específico corresponde um estilo em específico. Esse estilo tanto pode estar relacionado ao gênero quanto ao autor e é revelado principalmente pelas escolhas verbais (e não verbais) que determinam o gênero. “O estilo está indissoluvelmente ligado ao enunciado e às formas típicas de enunciados, ou seja, aos gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2003, p. 265). Por isso, o estudo a língua a partir dos gêneros corresponde olhar para o estilo do gênero selecionado e do autor que
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produziu aquele texto-enunciado. Trata-se de refletir sobre as marcas linguísticas que o constituem (no caso de um texto verbal oral ou escrito) ou então sobre outras notações gráficas – cores, figuras, traços etc. (em se tratando de um texto não verbal). Ao estudo do “conteúdo temático, estilo e construção composicional” (BAKHTIN, 2003, p. 262) pode-se fazer corresponder as ações de leitura, oralidade, produção (oral e escrita) e análise linguística. Efetivar um estudo cujo eixo articulador sejam os gêneros discursivos, envolvendo essas ações a partir de um texto-enunciado, significa ampliar as possibilidade de reflexão e compreensão da Língua Portuguesa, haja vista a variedade de contextos em que a língua se realiza. Assim, é importante, ao selecionar um gênero para estudo, refletir, antes de tudo, sobre o lugar social no qual aquele gênero se insere. Com isso, é possível estabelecer relações mais viáveis entre o texto-enunciado que se estuda na escola e as práticas de uso da linguagem que desenvolvemos em nosso dia a dia, a partir dos diferentes lugares sociais de onde falamos/escrevemos, enfim, interagimos. Essa foi a base teórica sobre o estudo dos gêneros que circunscreveu as ações de formação continuada no âmbito do Projeto Obeduc e que direcionou as reflexões sobre o ensino da LP nos anos iniciais. Referências AMOP – Associação dos Municípios do Oeste do Paraná. Currículo Básico para a Escola Pública Municipal: Educação Infantil e Ensino Fundamental (anos iniciais). Cascavel: ASSOESTE, 2010. BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. _______; VOLOCHINOV. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
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BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Programa Internacionais de Avaliação de Alunos (PISA): resultados nacionais – Pisa 2009. Brasília: INEP, 2012. COSTA-HÜBES, Terezinha da Conceição. Formação continuada para professores da educação básica nos anos iniciais: ações voltadas para municípios com baixo IDEB. Rev. bras. Estud. pedagog. (online), Brasília, v. 94, n. 237, p. 501-523, maio/ago. 2013. FABRÍCIO, Branca Falabella. Linguística Aplicada como espaço de desaprendizagem: redescrições em curso. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Por uma Linguística Aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.p. 45-66 FÁVERO, Maria de L. Sobre a formação do educador. A formação do educador: desafios e perspectivas. Série estudos. Rio de Janeiro: PUC/RJ, 1981. GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ______. O texto na sala de aula. Cascavel – PR: Assoeste, 1984.
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SIGNIFICAÇÃO EM AVENIDA BRASIL: O PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO DE CARMINHA
Thaís Aparecida Zorzela (G-UEL)
Resumo Este trabalho está vinculado aos estudos desenvolvidos no projeto de pesquisa "Leitura semiótica da telenovela: tensão narrativa e suspense", da Universidade Estadual de Londrina. Tomando como base os pressupostos teóricos propostos por A. J. Greimas no livro Semântica estrutural e por Greimas & Courtés no Dicionário de semiótica, objetiva-se analisar, não pela relação existente entre os signos, mas por meio do processo de significação que os gera, o percurso gerativo de sentido da personagem Carminha, da telenovela Avenida Brasil (2012), escrita por João Emanuel Carneiro. A partir da descrição da performance, isto é, da mudança de estados da narrativa, bem como da análise de papéis narrativos, fases de manipulação e de competência do sujeito, e da observação de valores inscritos em objetos, da junção e disjunção, e da oposição de elementos das categorias semânticas eufóricas e disfóricas, presentes no nível fundamental do texto, pretende-se esclarecer como a semiótica de linha francesa concebe o processo de significação textual. Considerando aspectos relevantes para a recepção do texto teledramatúrgico e, também, a inserção de textos sincréticos e midiáticos no contexto de ensino-aprendizagem de língua portuguesa, busca-se viabilizar o trabalho com o gênero telenovela em sala de aula, em nível médio. Palavras-chave Percurso gerativo; Semiótica; Telenovela Introdução A telenovela, gênero midiático de forte influência no Brasil, busca tanto a caracterização espacial no plano visual quanto na elaboração figurativa dos sujeitos na aparência e na construção do ethos das personagens.
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Para iniciarmos a leitura e pensarmos na relevância deste trabalho, faz-se necessário destacar a circulação da telenovela: o gênero é o quarto maior produto de exportação brasileira. É válido, ainda, enfatizar que a telenovela cumpre sua função de agregação social ao trazer temáticas polêmicas e questionamentos importantes para o dia-a-dia da população. A recorrência de temáticas nos discursos que envolvem sujeitos dentro de uma narrativa como a telenovela gera possíveis construções de aspectos modais, tanto no conteúdo da mensagem, como, também, em sua forma de expressão. Inserido no percurso gerativo de uma narrativa, o sujeito, que tem competência para agir, sabe fazer e pode fazer. Nos percursos narrativos da semiótica, diferentes papéis actanciais são determinados, já que os sujeitos não são fixos: variam de acordo com a progressão narrativa, estabelecendo, assim, uma relação de dependência com os objetos-valor com que se relacionam. Insere-se, assim, o aspecto passional do sujeito. Nesse sentido, a competência modal descreve as condições que o levam a realizar alguma ação, revelando, dessa maneira, seus estados de alma. Veremos, a seguir, o percurso gerativo de sentido da personagem Caminha, da telenovela Avenida Brasil (2012). Referencial teórico A base teórica deste trabalho é a semiótica greimasiana ou de linha francesa, cujo precursor foi A. J. Greimas. Essa vertente teórica surgiu com base nos estudos sistêmicos de Ferdinand de Saussure (2006) e estruturalistas de Vladimir Propp (1928) e de Hjmeslev (1943). A semiótica proposta por Greimas (1990) concebe o texto a partir de preocupações verbais e não-verbais e de maneira imanente a partir de um percurso gerativo de sentido, como destaca Pietroforte (2010):
A semiótica proposta por Greimas concebe o sentido como um processo gerativo, em um percurso que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. Essa geração é formalizada no modelo
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teórico do percurso gerativo de sentido [...] O sentido é definido pela semiótica como uma rede de relações, o que quer dizer que os elementos do conteúdo só adquirem sentido por meio das relações estabelecidas entre eles. (PIETROFORTE, 2010, p.12-13)
Resultados, discussões e conclusões Nos enunciados de estado de uma narrativa, segundo Fiorin (2009), existe uma relação de junção entre um sujeito e determinado objeto. Na telenovela escolhida para análise, no que diz respeito à personagem Carminha, podemos classificar seu enunciado como de fazer, que mostra as transformações existentes de um estado a outro. Depois de aplicar um golpe em Tufão e casar-se com ele, Carminha passa a viver na mansão localizada no Divino e vive em conjunção com valores como o dinheiro e o poder. Com a chegada de Nina, sua enteada, porém, alguns crimes e seu caso com Max são revelados. A partir disso, a cozinheira começa a ameaçar a patroa, que passa ao estado de disjunção com os valores já inscritos. Esse enunciado de estado é chamado de narrativa mínima de privação, em que ocorre, primeiramente, um estado inicial conjunto ao objeto-valor e um final disjunto, como descreve o esquema abaixo: S1 ∩ Ov → S1 U Ov S1: sujeito do fazer (Carminha) ∩: conjunção Ov: objeto-valor (dinheiro e poder) →: transformação U: disjunção As categorias conjunção e disjunção podem ser aplicadas às categorias semânticas poder versus privação. Relacionadas às qualificações semânticas eufóricas e disfóricas, temos a seguinte disposição: Poder versus privação
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Euforia versus disforia. As narrativas, ainda de acordo com Fiorin (2009), estruturam-se a partir da sequência de quatro fases. São elas: a manipulação, a competência, a performance e a sanção. Na fase da performance, se dá a transformação central da narrativa. Nesse sentido, Carminha passar de um estado de conjunção ao de disjunção com os valores de poder é a performance de sua narrativa. A partir das descrições feitas acima, consideramos que o trabalho com textos sincréticos como a telenovela seria extremamente proveitoso na apreensão de diferentes discursos. Dessa forma, com as exigências de leituras críticas, esse trabalho sob o respaldo da teoria semiótica de linha francesa atenderia a necessidade da implantação de uma teoria capaz de englobar a integração de disciplinas, como, por exemplo, Língua Portuguesa e Artes. Esse processo de interdisciplinaridade ajudaria na formação do aluno crítico e possibilitaria, também, o reconhecimento das variadas formas de textos e manifestações, o que auxilia o processo de formação de uma leitura multiletrada no processo de ensino-aprendizagem de língua materna.
Referências BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. 4. ed. São Paulo: Ática, 2003.
CALZA, Rose. O que é telenovela. São Paulo: Brasiliense, 1996.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. 14. ed. São Paulo: Contexto, 2009.
PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiótica Visual: os percursos do olhar. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2010.
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APRENDIZADO DA LEITURA E DA ESCRITA EM AMBIENTE VIRTUAL E AMBIENTE NÃO VIRTUAL Thais Vargas dos Santos (PUCRS) Introdução As avaliações realizadas com o propósito de verificar o desempenho em leitura e escrita das crianças de diferentes níveis de ensino evidenciam as dificuldades dos alunos nas habilidades de ler e escrever. Considerando o atual contexto de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita, as dificuldades apresentadas e os caminhos propostos para alcançar mudanças, o presente artigo tem como objetivo apresentar os resultados decorrentes de um projeto desenvolvido na interface Psicolinguística, Linguística do texto e Computação. A pesquisa caracteriza-se pela realização em três importantes dimensões pesquisa, ensino e extensão -, envolvendo alunos de 5ª série com dificuldades em leitura e escrita e acadêmicos de Letras. A metodologia da pesquisa consistiu na elaboração de materiais de ensino e de instrumentos de pesquisa aplicados em situação de oficina, realizada com cada participante do projeto. De modo a socializar os dados alcançados, bem como o processo desenvolvido para alcançá-los, o artigo é constituído de: fundamentos teóricos; metodologia empregada; resultados alcançados; e por fim, considerações finais. 1. Fundamentos teóricos A pesquisa tem como eixo o aprendizado da leitura/escrita e situa-se, portanto, na área da Psicolingüística, apoiando-se teoricamente em estudos sobre processamento cognitivo da leitura e suas relações com a escrita (GOODMAN; 1991; KATO, 1987; LEFFA, 1996; SMITH, 1983). Essa relação é estabelecida com base nos elementos linguísticos de coesão e coerência do texto (HALLIDAY E HASAN, 1976), bem como nos benefícios dos diferentes ambientes de ensino e aprendizado da leitura (PEREIRA; ANTUNES, In: Bortolini; Souza, 2003) 1.1 Processamento cognitivo da leitura
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De acordo com o conceito de leitura adotado na pesquisa, ler consiste em um processo cognitivo realizado por meio de dois processamentos: bottom-up e top-down (KATO, 1987). O primeiro realiza-se na situação de leitura em que o leitor possui poucos conhecimentos prévios sobre o assunto do texto, apoiando predominantemente a sua leitura no conteúdo do texto; o segundo concretiza-se em situação oposta ao primeiro, quando o leitor possui maior domínio sobre o conteúdo do texto. De acordo com os estudos, o bom desempenho em leitura está relacionado ao uso dos dois processamentos durante o ato de ler, na medida em que o leitor deve estabelecer qual processamento é o mais adequado para a situação de leitura. Além dos processamentos, a leitura envolve o uso de estratégias de leitura, que podem ser de dois tipos: cognitivas e metacognitivas. Para Leffa (1996), as estratégias cognitivas são intuitivas e inconscientes; enquanto que as metacognitivas são conscientes, e dela fazem parte o automonitoramento, a auto-avaliação, a autocorreção e a predição. As estratégias de leitura se realizam através dos conhecimentos prévios do leitor e das pistas linguísticas do texto. Entre as estratégias metacognitivas mais importantes, destaca-se a de predição. Para Goodman (1991), a estratégia de predição consiste em um jogo psicolingüístico de adivinhação. Segundo o autor, predizer consiste em realizar e testar hipóteses sobre o conteúdo do texto a partir das informações disponíveis, que consistem nas pistas linguísticas. O uso das estratégias de leitura está associado a bom desempenho nas habilidades de ler e escrever, na medida em que seu uso é importante em situações de resolução de problemas durante o ato de ler. Elas auxiliam o leitor na busca e correção de possíveis problemas decorrentes de uma leitura inadequada. Nessa perspectiva, a pesquisa propõe desenvolver no aluno o conhecimento e o uso dessas estratégias nas atividades de compreensão leitora propostas. 1.2 Funcionamento linguístico do texto O trabalho com estratégias de leitura implica o desenvolvimento de uma metodologia com base nas regras de coesão e coerência textual (HALLIDAY e
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HASAN, 1976; CHAROLLES, 1978) que se realizam nos diversos tipos de texto de forma peculiar. No que tange à coerência textual, a pesquisa se apoia na concepção de Charolles (1978) e as suas quatro meta-regras: a) manutenção temática; b) progressão temática; ausência de contradição interna; c) relação com o mundo. Em relação à coesão, ela é dividida, de acordo com a concepção de Halliday e Hasan (1976), em lexical e gramatical. As regras de coesão lexical incluem: a) repetição de palavra; b) sinonímia; c) hiperonímia / hiponímia; d) associação por contiguidade. As regras de coesão gramatical envolvem: a) referência pessoal; b) referência demonstrativa; c) substituição; d) elipse; e) conjunção. As atividades propostas são constituídas de estratégias cognitivas e metacognitivas de leitura que se utilizam de regras de coerência e coesão em tipos de textos predominantemente narrativos ou descritivos. 1.3 Ambientes de aprendizado e ensino da leitura e da escrita Os estudos desenvolvidos sobre aprendizado da leitura através do uso do computador apontam a importância de associar o ensino com a Informática. De acordo com Pereira (1998) e Pereira; Antunes (In: Bortolini; Souza, 2003), é possível estabelecer semelhanças entre as redes cognitivas envolvidas no processamento da leitura e o sistema que constitui o computador. Segundo as autoras, o computador proporciona uma interação entre a atividade pedagógica e o aluno, tornando a tarefa mais interessante e produtiva. Nesse sentido, o uso do computador como ferramenta contribui para o processo de aprendizado, na medida em que está associado a um elevado grau de satisfação por parte das crianças, fato que acentua a autoestima dos alunos, contribuindo, consequentemente, para a superação das dificuldades. Em relação ao ambiente não virtual, é sabido que alunos e professores estão habituados ao uso de materiais pedagógicos concretos (livros, cadernos, etc.), e que, por isso, não apresentam resistência ou dificuldades em relação ao seu uso. Esse ambiente está associado ao conforto e ao bem-estar da criança e oportuniza, assim como a leitura em ambiente virtual, diferentes processamentos de leitura.
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Nessa perspectiva, é importante reconhecer as diferentes ferramentas pedagógicas disponíveis e utilizá-las no processo de ensino e aprendizado da leitura, na medida em que tanto a leitura impressa quanto à leitura através do computador oportunizarão benefícios ao leitor. Desse modo, a utilização diversificada de ambientes de ensino (virtual e não virtual) deve ser incentivada para o alcance de melhores desempenhos em leitura. 1.4 Relação entre leitura e escrita Os estudos Psicolinguísticos vêm apresentando contribuições relevantes sobre o aprendizado da escrita. Esses estudos apresentam reformulações sobre as convicções teórico-metodológicas sobre o ensino e aprendizado da escrita e apontam a leitura como um caminho para o desenvolvimento da competência em escrita. Nessa perspectiva, Orlandi (1983) compartilha dessa ideia ao conceber que o papel da leitura vai além da compreensão do conteúdo do texto. Para Smith (1983), a leitura oportuniza o reconhecimento do funcionamento linguístico do texto. Nessa concepção, ao ler o texto, o leitor deve reconstituir o texto em sua dimensão linguística, de modo a alcançar o sentido pretendido pelo autor. É como se o leitor, fosse o escritor do texto. Por essa razão a leitura beneficia também a escrita. Para Smith (1983), portanto, a escrita é um processo vinculado ao de leitura, de modo que o aprendizado da escrita está intrinsicamente relacionado ao processamento da leitura. Nesse sentido, aprender a escrever significa ler textos referentes ao tipo de textos que pretendemos escrever. Com base na leitura desses textos específicos, é possível perceber as peculiaridades de cada tipo ou gênero textual (suas convenções e seu estilo). Nessa perspectiva, Smith afirma que para aprender a escrever crônicas, por exemplo, é preciso ler crônicas. Assim, é possível desenvolver no aluno uma reflexão sobre o funcionamento linguístico do texto e, consequentemente, a habilidade da escrita. As atividades pedagógicas propostas caracterizam-se como de leitura, oportunizando o desenvolvimento linguístico dos alunos a partir do manejo das regras de coerência e coesão textuais. A escrita realiza-se como desdobramento do trabalho de leitura, uma vez que constituem processos associados.
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2. Metodologia empregada O projeto envolveu pesquisa, ensino e extensão, desenvolvendo um trabalho direcionado à comunidade acadêmica e escolar. Participaram da pesquisa 10 alunos da 5ª série do Ensino Fundamental e 14 acadêmicos de Letras de diferentes níveis do curso de graduação. O trabalho com as crianças e com os acadêmicos participantes foi desenvolvido por meio de oficinas planejadas e organizadas de modo a contribuir: a) para a melhoria do desempenho em leitura e escrita dos alunos de 5ª série do Ensino Fundamental; e b) para o aprimoramento dos conhecimentos linguístico-pedagógicos dos acadêmicos de Letras. As oficinas com os acadêmicos proporcionaram o desenvolvimento de conhecimentos linguístico-pedagógicos e também atividades de capacitação para monitoria com as crianças, uma vez que os acadêmicos acompanhariam as crianças durante as oficinas. Para isso, os acadêmicos responderam, antes e depois das oficinas destinadas a eles, ao Instrumento de investigação dos conhecimentos linguísticopedagógicos dos acadêmicos. Esse instrumento é constituído de questões sobre coesão e coerência textual e teve a finalidade de avaliar o crescimento desses sujeitos em relação à contribuição das oficinas para o aprimoramento dos seus conhecimentos teóricometodológicos. Além desse instrumento, os acadêmicos responderam ao Instrumento de percepção dos acadêmicos, aplicado ao final da última oficina com as crianças. Com as crianças, o trabalho foi desenvolvido através de uma metodologia de ensino com atividades virtuais e com atividades não virtuais com o intuito de oferecer aos sujeitos dois ambientes de leitura com diferentes propriedades. Em cada encontro foi trabalhado com as crianças um regra de coesão ou coerência em ambiente virtual e não virtual. De modo a verificar o desempenho dos alunos antes e depois das oficinas, foram elaborados e aplicados instrumentos de pesquisa. São eles: a) pré e pós-testes de leitura e escrita das crianças; b) instrumentos de investigação das percepções dos alunos. Os Instrumentos de investigação das condições de leitura das crianças investigaram o desempenho delas através do procedimento cloze, utilizando textos do tipo narrativo (fábulas) e descritivo (textos científicos). Ao total são quatro testes: a)
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Pré-teste de leitura 1 – narrativo; b) Pré-teste de leitura 2 – descritivo; c) Pós-teste de leitura 3 – narrativo; Pós-teste de leitura 4 – descritivo. Os Instrumentos de investigação das condições de escrita das crianças foram elaborados com o objetivo de investigar as condições das crianças com relação à escrita. O desempenho das mesmas foi testado através da produção de textos narrativos e descritivos antes e depois das oficinas. Ao total são quatro testes: a) pré-teste de escrita 1 – narrativo: é solicitado ao aluno que narre um fato importante que tenha vivido; préteste de escrita 2 – descritivo: é solicitado ao aluno que escreva um texto, tendo como título “Quem sou eu”; c) pré-teste de escrita 3 – narrativo: é solicitado ao aluno que narre o trabalho desenvolvido nas oficinas que acabou de participar; d) pré-teste de escrita 4 – descritivo: é solicitado ao aluno que escreva um texto, tendo como título “Meu melhor amigo”. O Instrumento de percepção das crianças investigou a opinião desses participantes quanto ao trabalho desenvolvido e à contribuição deste para a melhoria da leitura e da escrita. Os dados decorrentes da aplicação dos instrumentos foram organizados e são apresentados no item a seguir. 3. Resultados alcançados Os resultados dos pré e pós-teste de investigação dos conhecimentos linguísticopedagógicos aplicados aos acadêmicos revelam o desempenho dos sujeitos antes e depois da oficina realizada. No pré-teste os acadêmicos alcançaram um percentual de acerto de 65,3%, enquanto no pós-teste foi de 81,8%, evidenciando um crescimento de 16,5%. Esse desempenho evidencia que as oficinas contribuíram para o aprimoramento dos conhecimentos linguístico-pedagógicos dos acadêmicos de Letras, como é possível visualizar no gráfico abaixo.
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Observando o desempenho individual dos sujeitos, é possível perceber que houve evolução por parte de todos os acadêmicos participantes. Em relação aos dados do instrumento de percepção dos acadêmicos, os dados mostram que a realização desse projeto mostrou para muitos acadêmicos a importância da leitura na formação escolar dos educandos. De acordo com as palavras do S4, “... trabalhar com leitura é a melhor maneira de se ensinar; aqui eu vi isso na prática”. Os alunos de Letras, em sua maioria, apontaram os benefícios que a oficina trouxe para a formação profissional, especialmente no que se refere à possibilidade de aplicar os conhecimentos teóricos no ensino de crianças. Em relação ao desempenho dos alunos de 5ª série, na comparação entre pré e pós-testes de leitura, os resultados também evidenciam evolução no desempenho dos alunos. No que se refere ao desempenho dos alunos no texto narrativo, os resultados evidenciam: 54% no pré-teste e 62% no pós-teste, apresentando um crescimento de 8%. Quanto ao pré e pós-teste do texto descritivo, os dados alcançados apontam um percentual de acerto de 70% no pré e de 78,6 no pós-teste. Na comparação pré e pósteste, os resultados evidenciam evolução de 8,6%. Observando o desempenho dos sujeitos no pré e pós-teste de narração, é possível constatar que grande parte dos alunos evoluiu no pós-teste; aqueles que não alcançaram melhores resultados mantiveram o mesmo desempenho registrado no pré-teste. O mesmo fato ocorreu com o pré e pós-teste de descrição. O gráfico a seguir apresenta o desempenho individual dos sujeitos, a partir da análise dos resultados dos testes de
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leitura. Os dados são resultados da soma dos acertos do pré-teste do texto narrativo e dos acertos do pré-teste do texto descritivo.
No que se refere ao teste de escrita, a análise dos dados do pré e pós-teste dos alunos evidencia uma evolução no desempenho dos alunos após a realização das oficinas. Em relação à descrição, os alunos alcançaram 4,9 no pré-teste e 6,8 no pósteste. Quanto à narração, os alunos registraram no pré-teste 5,7 e 6,5 no pós-teste. Considerando o desempenho geral dos alunos (soma dos dados da descrição e da narração) no que se refere à escrita, observa-se, de maneira geral, evolução de 5,5 no pré-teste para 7,1 no pós-teste. Ou seja, após as oficinas, os alunos produziram textos mais bem elaborados, levando em conta as regras de coesão e coerência textual. Sobre o desempenho das crianças no teste de escrita do pós-teste em relação ao pré-teste observamos que as crianças evoluíram bastante. No gráfico a seguir, é possível visualizar o desempenho dos sujeitos nos testes. Os dados apresentados constitui a soma da média dos dois pré-testes de escrita – narração e descrição – dividido por dois. A média obtida do pós-teste é resultado da soma da média dos dois pós-testes de escrita – narração e descrição – igualmente dividido por dois.
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A partir dos valores obtidos com os resultados do pré-teste, na relação descrição e narração, observa-se que os alunos produziram textos narrativos mais bem elaborados do que textos descritivos, ocorrendo o inverso no pós-teste. No que tange à escrita de textos descritivos, houve apropriação de conhecimentos por parte das crianças em todas as regras de coesão e coerência. Dentre as regras de coerência a que mais se destaca é a evolução da primeira regra trabalhada que trata da manutenção temática: de uma média de 4,8 para média de 7,3. Ao observar as regras de coesão lexical, ainda no que se refere ao texto descritivo, a que mais chama a atenção é a regularidade na evolução: todas as regras tiveram escore de evolução na média de 1,9 a 2,2. Quanto às regras de coesão gramatical, ainda sob a perspectiva do texto descritivo, o destaque fica por conta da que trata da Referência Demonstrativa, de uma média de 4,6 para média de 7,9, evolução de 3,3. Analisando o desempenho das regras em relação ao texto narrativo, observamos que também houve apropriação de conhecimentos por parte dos sujeitos em todas as regras. Dentre as regras de coerência, o que mais chama a atenção são os dados da regra que trata da Relação com o Mundo: de média 7,8 no pré-teste para 8,8 no pós-teste. Sob a perspectiva do desempenho das crianças no teste de escrita podemos destacar a evolução dos sujeitos S3 e S5 que alcançaram acima de 3 pontos na média. No geral, houve um crescimento de 1,5 na média: de 5,5 para 7,0.
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O Instrumento de percepção dos participantes (alunos) mostrou que os sujeitos se reconheceram lendo e escrevendo melhor ao final das oficinas. Mostrou, ainda, que todos os alunos gostaram das atividades oferecidas. 4. Considerações finais Os resultados alcançados na pesquisa mostram que o trabalho desenvolvido contribuiu para o desenvolvimento da compreensão leitora e da escrita das crianças da 5ª série, na medida em que os alunos evoluíram na comparação pré e pós-teste. Além de melhorar o desempenho dos alunos, o trabalho também proporcionou benefícios para a formação dos acadêmicos de letras. Entre as razões para o alcance de melhores resultados no desempenho das crianças, deve-se dar destaque ao ensino da leitura com foco nas estratégias de leitura com base nas regras de coesão e coerência, oportunizando ao aluno o reconhecimento e a observação dos elementos linguísticos no texto para um bom desempenho em leitura e escrita. Além disso, a forma como as atividades são constituídas (ambiente virtual e ambiente não virtual) possibilitam uma dimensão interativa, movida pela ação desenvolvida pelo aluno e pelo monitor/professor, favorecendo um trabalho pedagógico produtivo, eficiente e, ao mesmo tempo, lúdico. Ainda pode ser apontado como benefício o processo de aplicação das atividades e as condições que propiciaram sua realização. O atendimento individualizado que as crianças receberam oferece a possibilidade de acompanhamento do processo de desenvolvimento das mesmas, bem como a realização de um trabalho com ênfase nas dificuldades surgidas ao longo das oficinas. Nesse sentido, ao final do trabalho, foi possível constatar que: a) os alunos de 5ª série apresentaram melhor desempenho na leitura e na escrita após a realização das oficinas; eles também se reconheceram lendo e escrevendo melhor ao final dos encontros; b) os acadêmicos de Letras ganharam conhecimentos linguísticos após a realização das oficinas, bem como de conhecimento pedagógico, na medida em que trabalharam diretamente com os alunos.
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Referências CHAROLLES, M. Introduction aux problèmes de la cohérence des textes. Langue Française. Paris: Larousse, n.38, p.7-41, mai 1978. GOODMAN, Kenneth S. Unidade na leitura – um modelo psicolinguístico transacional. In: Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 26, n. 4, p. 9-43, dez.1991. HALLIDAY, M. ª K. & HASAN, R. Cohesion in English. London: Longman, 1976. KATO, Mary. O aprendizado da leitura. São Paulo: Martins Fontes, 1987. LEFFA, Vilson. Aspectos da leitura: uma perspectiva psicolingüística. Porto Alegre: Sagra, 1996. ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento. São Paulo: Brasiliense, 1983. PEREIRA, Vera Wannmacher. Informática e leitura abraçadas. In: Mundo Jovem. Porto Alegre: Mundo Jovem, out. 1998 n.292, p.7. PEREIRA, Vera Wannmacher; ANTUNES, C. Novas linguagens em leitura. In: BORTOLINI, A.; SOUZA, V. Mediação tecnológica: construindo e inovando. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. p. 419-440. SMITH, F. Reading like a writer. Language Arts, Urbana, v. 60, p. 558-567, may 1983.
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VARIANTES LEXICAIS PARA SEMÁFORO: UMA ANÁLISE GEOLINGUÍSTICA NOS ESTADOS QUE COMPÕEM A REGIÃO SUL DO BRASIL Thiago Leonardo Ribeiro (UENP/CJ) Introdução Neste estudo objetivamos descrever e analisar as variantes lexicais obtidas em resposta para a pergunta nº 194 do Questionário Semântico Lexical (QSL) na área semântica “Vida Urbana” do Atlas Linguístico do Brasil (ALiB): “Na cidade, o que costuma ter em cruzamentos movimentados, com luz vermelha, verde e amarela?”. Entendemos que a Geolinguística, hoje um ramo da Dialetologia, consiste em um modo de estudar a diversidade da linguagem por meio de atlas linguísticos, uma série de mapas do mesmo território, sendo um mapa para cada conceito ou fonema (série de fonema), cuja existência tenha sido comprovada pelo investigador numa rede de pontos (localidades) previamente estabelecida (COSERIU, 1987, p. 82). Bassi & Margotti (2012, p. 50) corroboram o alegado, versando que A Geolinguística ou a Geografia Linguística, conforme Elizaincin (1992), foi o método mais calculadamente elaborado dentro da Dialetologia, já que se preocupava com a diatopia e com o resgate de antigos dialetos regionais. Desse modo, é bom não confundir Dialetologia e Geolinguística, pois esta é um método utilizado pela Dialetologia.
Na visão de Barbosa-Doiron (2010, p. 115), cabe à Dialetologia descrever, examinar e compreender de que forma elementos de ordem sócio-históricas operam nos falares regionais de uma língua. Já à Geolinguística, atrelada aos estudos dialetológicos, compete reproduzir e classificar, dentro de um espaço delimitado, por meio de mapas e cartas específicas, as variações dialetais registradas em dado grupo social.
Compartilhando ensinamentos de Ramos et al. (2013, p. 271-272), temos que Examinar o léxico, enquanto espaço privilegiado do processo de transformação dos sistemas de valores, visão de mundo e práticas sociais e culturais de um grupo humano, significa investigar a língua em sua relação com a história e a cultura, levando em conta que, sobre o desenvolvimento da língua, atuam fatores extralinguísticos, que nos
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oferecem subsídios para uma compreensão mais ampla da realidade da língua.
Assim, estudos dessa natureza, como nos trazem Razky et al. (2012, p.38) citando Alves e Barros (2009, p. 15), o conhecimento do léxico de determinada comunidade nos possibilita: i) observar a leitura que essa comunidade faz de seu universo linguístico-cultural e ii) preservar parte de sua memória sócio-histórica e linguístico-cultural, além de possibilitar o registro e a documentação da diversidade lexical. Projeto Atlas Linguístico do Brasil – ALiB O Projeto ALiB1, surgiu do compromisso de elaborar um atlas nacional, retomando a ideia dos linguistas brasileiros do início da segunda metade do século XX, durante o Seminário Caminhos e Perspectivas para a Geolinguística no Brasil, ocorrido em Salvador/BA, em novembro de 1996, assessorados pelo pesquisador francês Michel Contini (Universidade de Grenoble). Este atlas possuiria uma metodologia única e revelaria a realidade linguística brasileira (ROMANO, 2013, p. 218). Remetemo-nos, então, ao Decreto n. 30.643, de 20 de março de 1952, que incumbia a Comissão de Filologia da Casa de Rui Barbosa da elaboração do atlas linguístico do Brasil. É dirigido por um Comitê Nacional e por coordenadores regionais e objetiva descrever a língua portuguesa no Brasil, documentando as variações diatópicas, diastráticas, diageracionais e diagenéricas (diassexuais), sendo, portanto, um atlas pluridimensional. Conta com um questionário, para a constituição do corpus, que aborda aspectos fonético-fonológico, semântico-lexical, morfossintático, pragmático, semi-dirigido, metalinguístico e uma parábola (texto) para leitura. O questionário semântico-lexical (QSL) é formado por 202 perguntas dos tipos namming (onomasiológica), completing e inversing, pretendendo documentar os registros coloquiais do falante, as variantes mais usadas na localidade. Para tanto, está estruturado em 14 áreas semânticas, como alimentação e cozinha, religião e crenças, vida urbana, dentre outras (COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALIB, 2001). Este instrumento foi aplicado para a coleta de dados em 250 pontos (selecionados por critérios demográficos, históricos e culturais), em entrevistas com informantes de duas faixas etárias (de 18 a 30 e de 50 a 65 anos de idade), de ambos os sexos, por todo o país (interior e capital). Em cada localidade do interior quatro informantes de nível fundamental, e, nas capitais, além desses, mais quatro de nível superior. Os pressupostos metodológicos do ALiB (1996), um marco nos estudos dialetológicos, influenciaram sobremaneira a elaboração de atlas linguísticos de Mais informações no site Projeto Atlas Linguístico do Brasil – ALiB, disponível em: .
1
1849
pequeno domínio, e demais trabalhos científicos, como monografias, artigos, dissertações e teses. Assim, adiante mostramos como se comportam a forma básica semáforo e suas variantes lexicais dentro da região proposta, ao longo da rede de pontos estabelecida com seus informantes entrevistados. Semáforo: funções, histórico, dicionarização De acordo com a legislação de trânsito brasileira, o semáforo é tido como um sinal de trânsito, encaixando-se na categoria sinal luminoso. Sobre seu funcionamento, convém destacar que pode ter três funções: controlar o fluxo de pedestre, controlar o fluxo de veículos e controlar o fluxo de veículos e pedestres ao mesmo tempo. Ele pode ter de duas a três cores, sendo mais comum possuir três cores, a vermelha, a amarela e a verde (TRÂNSITOBR, online). Em pesquisa ao site Sinal de Trânsito, encontramos que o semáforo do tipo verde-amarelo-vermelho com quatro faces, surgiu em outubro de 1920, projetado pelo inspetor de polícia William L. Potts, instalado no cruzamento da Avenida Woodward com a Rua Fort, em Detroit, Michigan, EUA. Nos dados do ALiB, coletados na Região Sul, verificamos as seguintes variantes para este aparelho: semáforo, sinaleiro, sinaleira, farol, sinal e farolete. Posto isso, passamos a examinar o que traz o Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2009) sobre cada termo colhido:
Semáforo s.m. (1877) [...] 2 aparelho de sinalização urbana, rodoviária ou ferroviária que orienta o tráfego por meio de lanternas, luzes, bandeiras e/ou hastes móveis etc.; sinal de trânsito, sinal luminoso [...] ETIM fr. Sémaphore, comp. a partir dos voc. gregos sema, atos ‘sinal, caráter distintivo, marca’ + phorós, os, ón ‘que leva, carrega transporta’ SIN/VAR ver sinonímia de sinaleira (p. 1724). Sinaleiro adj. s.m. (1881) 1 que ou o que dá sinais 2 diz-se de ou indivíduo encarregado da sinalização nos diferentes meios de transportes s.m. B3 m.q. SEMÁFORO ETIM sinal + -eiro SIN/VAR ver sinonímia de sinaleira (p. 1747). Sinaleira s.f. (sXX) B N.E. m.q. SEMÁFORO ETIM sinal + -eira SIN/VAR farol, semáforo, sinal, sinaleiro (p. 1747). Farol s.m. (sXV) [...] 5 SP sinal de trânsito; sinaleira, semáforo [...] GRAM dim. Irreg.: farolim, farolete (p. 875). Sinal s.m. (1130) [...] s. aberto luz verde dos semáforos que indica permissão para avançar; sinal verde [...] s. de trânsito 1 símbolo que regula a circulação de veículos 2 m.q. SEMÁFORO (‘aparelho de sinalização urbana’) [...] s. fechado luz vermelha dos semáforos que indica proibição para avançar; sinal vermelho s. luminoso m.q. SEMÁFORO (‘aparelho de sinalização urbana’) s. verde 1 m.q. SINAL ABERTO 2 fig. m.q. LUZ VERDE s. vermelho m.q. SINAL FECHADO avançar o s. B1 não atender à luz vermelha do semáforo [...] (p. 1747).
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Farolete \ê\ s.m. (sXX) 1 farol de pequeno porte que se instala próximo à entrada de canais, portos e estreitos 2 cada um dos pequenos faróis, dianteiros e traseiros, que, num veículo, assinala sua presença em situações de pouca visibilidade GRAM dim. irreg. de farol ETIM farol + -ete \ê\ (p. 875).
Assim, depreendemos que cinco das variantes encontradas dizem respeito ao mesmo aparelho de trânsito (semáforo, sinaleiro, sinaleira, farol e sinal), exceto farolete, um farol pequeno, lanterna, não servindo para representar o aparato. Breve perfil da Região Sul É a menor região do país, composta pelos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, cujas capitais são, respectivamente, Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre. Faz fronteira com três países sul-americanos, a oeste com Paraguai e Argentina e ao sul com o Uruguai. No Almanaque Abril (2011, p. 663) consta que a população dessa área foi formada por imigrantes europeus que começaram a chegar no final do século XIX, contribuindo para o desenvolvimento da economia, baseada na pequena propriedade rural de policultura. Os índios ocupavam a região na época do descobrimento; espanhóis e portugueses chegam com as missões jesuíticas; e os negros são trazidos como escravos. Italianos, eslavos e alemães se fixam no Rio Grande do Sul. Em Santa Catarina, açorianos colonizam o litoral; alemães, a região norte; e italianos, o planalto e a porção oeste. No Paraná, fixam-se italianos, alemães e japoneses; mais recentemente, paraguaios na fronteira oeste. Entre 1920 e 1970 cai a imigração, mas melhora a qualidade de vida, o que aumenta a migração interna, sobretudo de paulistas e matogrossenses, para as lavouras do norte do Paraná. A partir dos anos 1970, com o êxodo rural, as famílias começam a voltar para São Paulo. No governo militar, há emigração para colonizar a Amazônia, principalmente paranaenses e gaúchos partem para Mato Grosso e Rondônia. Os brasileiros nessa região têm melhor condição de vida, refletindo em maior expectativa de vida ao nascer, configurando em SC 75,8, no RS 75,5, e 74,7 no PR. Ressaltando-se que as mulheres no Sul vivem 9,5% mais que os homens. Procedimentos metodológicos Os dados foram acessados junto ao banco de dados do Projeto ALiB, consubstanciando-se em respostas coletadas em entrevista com 64 falantes de 16 localidades do Paraná, 35 de nove pontos em Santa Catarina, e 54 em 14 pontos do Rio Grande do Sul, num total de 153 informantes distribuídos por 39 localidades no interior dos Estados da Região Sul do Brasil, divididos por gênero/sexo (homem/mulher) e por faixa etária (I – 18 a 30 anos /II – 50 a 65), conforme segue disposto no Quadro 1.
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Quadro 1 - Localidades e informantes divididos em sexo e faixa etária por Estado LOCALIDADES
INFORMANTES
64
PR 16 H 32 I 32
M 32 II 32
REGIÃO SUL SC 09 H M 17 18 35 I II 18 17
54
RS 14 H 27 I 28
39
M 27 II 26
153
Importante mencionar que, na análise dos dados, trabalhamos com as designações que apareceram como resposta à questão trabalhada (nº 194 do QSL), deixando de lado casos em que o informante não soube responder à questão (informante homem da primeira faixa etária do ponto 209-Terra Boa, do PR), assim como quando não se lembrou da resposta (informante homem da primeira faixa etária do ponto 210Umuarama, também do PR). Ressaltamos que, para este trabalho, lançamos mão dos dados do Projeto ALiB que se encontravam transcritos2. Análise das variantes lexicais encontradas Como podemos observar, foram registradas seis variantes lexicais em resposta à questão nº 194 do questionário semântico-lexical do ALiB, que distribuímos no Quadro 2, pelos pontos de inquérito do Paraná, para melhor visualização e análise.
1 1
FAROLETE
1
SINAL
3 3 2 2 3 2
FAROL
2 2 2 1 1 3
SINALEIRA
207 – Nova Londrina 208 – Londrina 209 – Terra Boa 210 – Umuarama 211 – Tomazina 212 – Campo Mourão
SINALEIRO
LOCALIDADES PR
SEMÁFORO
Quadro 2 – Variantes por localidade do Paraná VARIANTES
1
1
Cabe informar que não estavam disponíveis as informações referentes aos pontos 241-Santa Cruz do Sul e 244-Osório, do RS, a resposta do informante homem da segunda faixa etária do ponto 232-Tubarão, de SC, a resposta da informante mulher da segunda faixa etária do ponto 240-Flores da Cunha, do RS, e a resposta do informante homem da segunda faixa etária do ponto 249-São José do Norte, do RS. Como o estudo recai sobre as localidades do interior, os pontos 220 no PR, 230 em SC e 243 no RS, referentes às capitais dos respectivos Estados, não integram nossa análise.
2
1852
1 2 2 2 3 3 2 1 3 2 32
213 – Cândido de Abreu 214 – Piraí do Sul 215 – Toledo 216 – Adrianópolis 217 – São Miguel do Iguaçu 218 – Imbituva 219 – Guarapuava 221 – Morretes 222 – Lapa 223 – Barracão
4 3 2 3 2 4 3 4 4
1 1
1 1 1 1
4 7
44
1 6
3
O Quadro 2 mostra que a variante mais produtiva no Estado do Paraná é sinaleiro, como resposta dada pelos quatro informantes em quatro pontos. A segunda, semáforo, ocorre na fala de pelo menos um informante em todas as localidades que compõem a rede de pontos. O ponto que mais apresentou variantes foi o 208-Londrina, só não aparecendo a designação sinal e farolete. Destaque para o ponto 223-Barracão onde os quatro informantes deram como resposta a variante sinaleira, dentre outras, variante que, como veremos adiante, é mais frequente no Rio Grande do Sul. Considerando que 27 informantes deram mais de uma resposta, obtivemos 92 ocorrências lexicais de 64 informantes nos 16 pontos no interior do Paraná. Transformando essas ocorrências em porcentagens, comprovamos que a maioria dos informantes respondeu sinaleiro, com 48% das respostas, 35% para semáforo, seguidos de sinaleira com 8%, farol com 3%, sinal com 6% e nenhum registro de farolete.
224 – Porto União 225 – São Francisco do Sul 226 – São Miguel d’Oeste 227 – Blumenau 228 – Itajaí 229 – Concórdia 231 – Lajes 232 – Tubarão 233 – Criciúma
3 2 2 1 16
10
FAROLETE
SINAL
2 4 2 1 1
FAROL
3 2 2 1
SINALEIRA
SINALEIRO
LOCALIDADES SC
SEMÁFORO
Quadro 3 – Variantes por localidade de Santa Catarina VARIANTES
1 4 3 4 3 14
2 1 1 5
1 1
1853
No Quadro 3 verificamos que a variante mais frequente em Santa Catarina é semáforo, como resposta dada pelos informantes de quase todos os pontos, com exceção de Blumenau. A segunda mais produtiva, sinaleira, foi resposta quase unânime dos informantes de quatro pontos, não aparecendo nos outros cinco pontos da rede do Estado. Em seguida aparece a variante sinaleiro, registrada por todos os informantes do ponto 225-São Francisco do Sul. Considerando que 10 informantes deram mais de uma resposta, obtivemos 46 respostas de 35 informantes nos nove pontos no interior de Santa Catarina. Com as porcentagens das designações obtidas, confirmamos que a maioria dos informantes registrou semáforo, em 35% das respostas, 30% referentes a sinaleira, seguidos de sinaleiro com 22%, farol com 11%, sinal com 2% e nenhuma ocorrência de farolete.
234 – Três Passos 235 – Erechim 236 – Passo Fundo 237 – Vacaria 238 – Ijuí 239 – São Borja 240 – Flores da Cunha 242 – Santa Maria 245 – Uruguaiana 246 – Caçapava do Sul 247 – Santana do Livramento 248 – Bagé 249 – São José do Norte 250 – Chuí
2 2 1 2 2 3 21
3 3 1 1
1 11
2 4 1 3 1 2 2 3 2 4 3 2 2 2 33
FAROLETE
SINAL
2
FAROL
2 1 2 1 1 2
SINALEIRA
SINALEIRO
LOCALIDADES RS
SEMÁFORO
Quadro 4 – Variantes por localidade do Rio Grande do Sul VARIANTES
1 1 1 1 1 1 4
2 1 4
1
O Quadro 4 mostra que a variante com mais ocorrências no Rio Grande do Sul é sinaleira, resposta dada pelos informantes de todos os pontos, registrada, inclusive, pelos quatro informantes de dois pontos, 235-Erechim e 246-Caçapava do Sul. A segunda mais frequente, semáforo, só não foi encontrada em dois pontos, 240-Flores da Cunha e 249-São José do Norte. Outra que merece destaque é a variante sinaleiro, aparecendo em seis pontos. Vale mencionar que o único ponto em que aparece a variante farolete é 234-Três Passos, resposta dada por um informante homem da primeira faixa etária.
1854
Considerando que 19 informantes deram mais de uma resposta, obtivemos 74 ocorrências lexicais de 54 informantes nos 14 pontos no interior do Rio Grande do Sul. As ocorrências do Rio Grande do Sul, em porcentagens, comprovam que a resposta mais produtiva é sinaleira, perfazendo 45% das respostas, seguida de 28% para semáforo, sinaleiro com 15%, farol com 6%, sinal com 5% e ocorrência de farolete em 1%. Para termos uma visão geral das variantes sulistas, agrupamos as informações trazidas nos quadros anteriores no Gráfico 1 com as ocorrências por Estado.
Conforme podemos verificar até o momento, de 153 informantes dispostos por 39 localidades ao longo dos três Estados componentes da Região Sul do país, chegamos a 212 registros lexicais, uma vez que 56 informantes deram mais de uma resposta à questão nº 194 do QSL. O Gráfico 1 mostra o destaque de semáforo e sinaleiro no PR; semáforo e sinaleira em SC; e sinaleira e semáforo no RS. Fazendo uso do mapa da Região Sul encontrado no site do Projeto ALiB3, ilustramos a distribuição diatópica ocorrida com as designações colhidas e destacamos, em cada ponto da rede estabelecida, as variantes dadas como resposta.
Disponível em: . Acesso em: 28 mai. 2014. 3
1855
Quadro 5 – Variantes na visão diagenérica por Estados VARIANTES SEMÁFORO SINALEIRO SINALEIRA FAROL SINAL FAROLETE
REGIÃO SUL PR SC RS H M H M H M 21 11 11 05 13 08 19 25 07 03 05 06 03 04 06 08 18 15 03 02 03 03 01 03 03 01 01 03 01 46 46 26 20 41 33 92 46 74
OCORRÊNCIAS 69 65 54 12 11 01 212
De 212 ocorrências, 113 correspondem à fala dos homens e 99 à das mulheres. No Paraná, o número de registros masculinos e femininos é equivalente, ou seja, 46 para cada um deles; já em SC e no RS, temos mais respostas dos homens (26 e 41 respectivamente) do que das mulheres (20 e 33 respectivamente). Do total de registros paranaenses (92), semáforo corresponde a 22.8% do total na fala dos homens e 11.9% na das mulheres o que indica a maior familiaridade deles, em relação a elas, com o nome técnico, exigido nos exames para a carteira de habilitação. Por sua vez, sinaleiro é mais frequente na fala feminina (27.2%) do que na masculina (20.6%); sinaleira e sinal são praticamente equivalentes em ambos os grupos de falantes e farol foi registrado unicamente entre as mulheres (3.3%). Em Santa Catarina, obtivemos 46 registros, dos quais observamos que as respostas masculinas prevaleceram nas variantes semafóro (23.9%) e sinaleiro (15.2%), e ficaram um pouco abaixo das respostas das mulheres no uso das variantes sinaleira, 13% contra 17.3%, e farol, 4.3% contra 6.5%. Apenas uma informante mulher utilizou a variante sinal, figurando 2.2% das ocorrências. Verificamos nos 74 registros do Rio Grande do Sul que os homens fizeram uso das seis variantes, com os seguintes percentuais: sendo a maioria dos homens a proferir semáforo (17.6%), sinaleira (24.3%), e farol (4.1%), cabendo às mulheres a maioria das ocorrências de sinaleiro (8.1%), e sinal (4.1%), e o único informante a usar a designação farolete é do sexo masculino, representando 1,4% das respostas. Quadro 6 – Variantes na visão diageracional por Estados REGIÃO SUL PR SC RS VARIANTES OCORRÊNCIAS FAIXAS ETÁRIAS I II I II I II 13 19 10 6 10 11 69 SEMÁFORO 20 24 5 5 6 5 65 SINALEIRO 4 3 8 6 17 16 54 SINALEIRA
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FAROL SINAL FAROLETE
1 4 42
92
2 2 50
1 24
46
5 22
4 2 1 40
74
2 34
12 11 01 212
Das 212 ocorrências, 106 foram proferidas por pessoas da faixa etária I (de 18 a 30 anos de idade), enquanto que as outras 106 foram dadas por pessoas da faixa etária II (de 50 a 65 anos). No PR, o número de respostas dadas pelos informantes da segunda faixa é maior, 50, enquanto os da primeira faixa deram 42 respostas. Em SC e no RS, temos mais respostas dos informantes da primeira faixa etária, 24 e 40, respectivamente, posto que os da segunda faixa registraram 22 e 34, respectivamente. Na rede pontos do Paraná, com 92 registros, os informantes da segunda faixa etária foram os que mais responderam sinaleiro (26.1%), e, também, contribuiram mais para a ocorrência de semáforo (20.7%), assim como para farol (2.2%). Nas ocorrências de sinaleira e sinal, os informantes da primeira faixa etária saíram à frente com 4.3% em ambos os casos. Em Santa Catarina (46 registros), verificamos mais respostas da faixa etária I para semáforo (21.7%) e sinaleira (17.4%), e só uma resposta de informante da primeira faixa etária com a variante sinal (2.2%); mesmo número de respostas da faixa etária I e II para sinaleiro (10.9%); e apenas respostas da segunda faixa etária usando farol (10.9%). Por sua vez, no Rio Grande do Sul, com 74 registros, temos um número de respostas dadas pelos informantes das faixas etárias I e II bem próximo, em torno de 14.9% para semáforo, 8.1% sinaleiro e 23% sinaleira, sendo a diferença de apenas uma resposta para os mais velhos em semáforo, e depois, uma resposta para os mais novos em sinaleiro e sinaleira; registramos apenas respostas da primeira faixa etária usando farol (5.4%); mesmo número de respostas da faixa I e II com a variante sinal (2.7%); e apenas uma resposta de informante da faixa I com a variante farolete (1.4%). Assim, após estudo detalhado, averiguamos que a variante semáforo é a que mais aparece em SC, sustentada por 7 dos informantes homens da faixa etária I (15.2%), ficando em segundo lugar no PR e RS, registrada em 11 dos informantes homens da faixa etária II no PR (12%) e em 7 dos informantes homens da faixa I no RS (9.5%). A variante sinaleiro consta da maioria das respostas no PR, dadas por 13 paranaenses informantes mulheres da primeira faixa (14.1%), aparecendo em terceiro em SC e RS, destaque para os catarinenses informantes homens da faixa etária II com 4 ocorrências (8.7%), e gaúchos informantes homens da faixa etária I e mulheres da faixa II com 4 registros cada (5.4%). Outra variante produtiva é sinaleira, prevalecendo no RS, na fala de 10 dos informantes homens da faixa II (13.5%); em segundo em SC e em terceiro no PR, em respostas dadas por informantes mulheres da faixa I em ambos os Estados, incorrendo em 4 (8.7%) e 3 (3.3%) ocorrências.
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Conclusão Com a pesquisa, verificamos, que, em um universo de 153 informantes distribuídos por 39 localidades, obtivemos 212 ocorrências lexicais referentes às seis variantes levantadas em resposta para questão n. 194 do QSL do ALiB: semáforo (32.5%), sinaleiro (30.7%), sinaleira (25.5%), farol (5.7%), sinal (5.2%), farolete (0.5%). Observamos que a variante semáforo predomina em Santa Catarina, sinaleiro no Paraná e sinaleira no Rio Grande do Sul, analisando as variações diatópicas, diagenéricas e diageracionais. Nesse viés, Coseriu (1991, p. 129) esclarece que a forma cuja existência se comprova adquire especial significação em um mapa, posto que se vê em um conjunto: ao lado das formas que se está eliminando (se se trata de uma inovação) ou que substituiu (se se trata de uma conservação). [...] Ao mesmo tempo, se comprovam os limites, as áreas, dos fenômenos registrados. Os dados acerca da inserção de semáforo demonstram a utilização do nome técnico para o aparato em toda a área inquirida, devido ao elevado número de motoristas, que para obtenção da Carteira Nacional de Habilitação – CNH precisam passar pelas Autoescolas para serem aprovados nos testes, estudam as apostilas e apreendem o termo como lá especificado. E sinaleiro (PR) e sinaleira (RS e SC), representando a preferência pelo sufixo –eiro(a) acompanhando o substantivo sinal, sufixo frequentemente usado para designar aparelhos com determinada função, no caso a de controlar o fluxo de veículos e pedestres. Consiste, assim, este trabalho, em uma contribuição para a composição do herbário linguístico da Língua Portuguesa, nos moldes sugeridos por Gaston Paris acerca da Língua Francesa. Referências ALMANAQUE ABRIL. Ano 37. São Paulo: Editora Abril, 2011. BARBOSA-DOIRON, M. P.. Ocorrências Lexicais para Redemoinho no Falar Paulista: Um Estudo Dialetológico. In: SIGNUM: Estud. Ling., Londrina, n. 13/2, p. 113-130, dez. 2010. Disponível em: . Acesso em: 28 fev. 2014. BASSI, A.; MARGOTTI, F. W.. Um Estudo Geolinguístico nas Capitais Brasileiras das Variantes Lexicais para a Brincadeira Infantil Amarelinha. In: ALTINO, F. C. (org.). Múltiplos olhares sobre a diversidade linguística: uma homenagem à Vanderci de Andrade Aguilera. Londrina: Midiograf, 2012.
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COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALIB. Atlas Linguístico do Brasil: Questionários 2001. Londrina: EDUEL, 2001. COSERIU, E. A geografia linguística. In: El hombre y su lenguaje. Trad. Carlos A. da Fonseca; Mário Ferreira. Rio de Janeiro: Presença, 1987, p. 79-117. Educação – sinalização. Disponível em: . Acesso em: 21 abr. 2014. HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S.. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Elaborado pelo Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. La geografia linguística. In: COSERIU, E.. El hombre y su lenguaje: estudios de teoría y metodología linguística. 2 ed. Madrid: Editorial Gredos, 1991, p. 101-158. O primeiro semáforo - Sinal de trânsito: Curiosidades. Disponível em: . Acesso em: 20 mai. 2014. PROJETO ATLAS LINGUÍSTICO DO BRASIL–ALIB. Metodologia. Rede de pontos. Região Sul. Disponível em: . Acesso em: 28 mai. 2014. RAMOS, C. de M. de A.; et al. O Atlas Linguístico do Maranhão: Os Caminhos do Português Falado no Maranhão. In: AGUILERA, V. de A. A. (org.). A geolingüística no Brasil: trilhas seguidas, caminhos a percorrer [livro eletrônico] / Londrina: Eduel, 2013. RAZKY, A.; et al. Variação de Pessoa Sovina nos Dados do Atlas Geossociolinguístico do Pará. In: ALTINO, F. C. (org.). Múltiplos olhares sobre a diversidade linguística: uma homenagem à Vanderci de Andrade Aguilera. Londrina: Midiograf, 2012. ROMANO, V. P.. Balanço crítico da Geolinguística brasileira e a proposição de uma divisão. In: Entretextos, Londrina, v.13, nº 02, p. 203 - 242, jul./dez. 2013. Disponível em: . Acesso em: 28 fev. 2014.
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ACONTECIMENTO E MEMÓRIA DISCURSIVA EM TEMPOS CONTESTADOS Valéria Cristina de Oliveira (PG-UEM)
Introdução Nosso propósito neste simpósio é discutir a noção de acontecimento em Michel Foucault e de memória em autores como Le Goff (1990), Nora (1981) e Pollak (1989), entre outros, para tratar do discurso imagético, especificamente uma série de fotografias que registraram a Guerra do Contestado, as quais na atualidade são revisitadas para compor o documentário “Meninos do Contestado” (2012). Diante dessa materialidade consideramos que a união entre fotografia e documentário, produzem, nos sujeitos que as leem, efeitos de sentidos diferentes, num jogo entre documento e monumento, acontecimento e memória, que revela um paradoxo entre o movimento e o estático, retomando conceitos e discursos, que buscam no efeito do estático: o passado e, no efeito da movimentação: o liame com o presente. Assim, a fotografia ganha na efemeridade do documentário, condições de existência no presente, ressignificando seus discursos e suas possibilidades de leitura. Nessa direção, perguntarmos: De que modo a memória mobiliza, pela materialidade significativa da fotografia, ancorada na técnica do documentário, discursos do passado que emergem na contemporaneidade como pertencentes ao presente? Então, para tratarmos das formas de resgate do que consideramos memória discursiva nos propomos a apresentar, sempre orientados por Foucault, um breve panorama do que foi a Guerra do Contestado, trazendo na sequência as condições primeiras de emergência do vídeo, material desta discussão. Nossas discussões também avançam para tratar da imagem nas possibilidades de discursos sobre memória e acontecimento. Para além disso, falaremos ainda do documentário, buscando mostrar como as imagens moventes da fotografia mobilizam discursos e feitos outros. 1. O Contestado Entre os anos de 1912 e 1916, mais precisamente numa região de aproximadamente 40 quilômetros quadrados entre os Estados Brasileiros de Santa
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Catarina e Paraná, ocorreu a maior revolta civil armada do século vinte em nosso país, causada por diversos fatores, que segundo vários historiadores, como Paulo Pinheiro Machado (2004) e o geógrafo Nilson Fraga (2009), aqui apresentados, vitimaram aproximadamente 10.000 pessoas entre civis e militares. Ao final do século XIX a racionalidade e o positivismo políticos aparecem na cena brasileira com o advento da República (1889), que ainda distante da consolidação desse novo sistema político, tenta gerenciar uma nação cambiante entre a melancolia monarquista e a incerteza republicana. Nesse panorama, a República Brasileira enfrenta diversas revoltas sangrentas como Canudos, no interior da Bahia, ou a Revolta da Vacina, na cidade do Rio de Janeiro, movimentos de resistência à implantação quase improvisada do ideário republicano, o qual mesmo em uma nova ordem ainda segue antigas práticas de controle populacional. Dessa forma, muitas regiões num país tão grande quanto o Brasil teimavam em manter condutas monárquicas de vida, como as relações de coronelismo e de compadrio, aparentes “escapes” de um governo republicano. Dentre estes locais encontrava-se a região do Contestado; um espaço de atividade tropeira, onde havia os que não se fixavam à terra e outros que tentavam sobreviver do que produziam, sem muita interferência do Estado Moderno, entendido aqui como um Estado que faz da população um dado estatístico de consumo e de produção, que regula os modos de conduta na saúde e na educação, controlando por técnicas governamentais toda uma racionalidade do viver. (Foucault, 2006). Em quase três séculos o modo de vida das populações do Contestado pouco se modificou, remanescentes de diversos lugares e situações, com povos vindos da Revolução Farroupilha, da Republica Juliana, da Guerra do Paraguai, da Revolução Federalista, de quilombolas e caingangues (além de outras nações menores em número de indivíduos) e europeus que já estavam como imigrantes, tinham na prática da agricultura de subsistência e do trabalho dos tropeiros bens gerais, como alimentos, utensílios, medicamentos, etc, tinham, ainda, nas conversas dos tropeiros e dos poucos folhetins e jornais que chegavam, formas de comunicação com o Estado e as províncias vizinhas. Conforme Fraga (2009) essa região era o mundo da ignorância, local onde o Estado não chega, uma prova do Brasil atrasado e desinformado, sem escolas ou igrejas,
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portanto, nem cidades com instituições legalizadas do mundo moderno, como prefeituras, cartórios, polícia ou organizações de quaisquer ordens. Quanto à organização das comunidades, em geral, se estabeleciam a partir de um Senhor de Terras (fazenda), que para agregar propriedades e bens, aglomerava várias famílias ao redor, como forma de beneficiar sua propriedade. Assim às famílias eram oferecidas chances de trabalho pela oportunidade de morar, de ter um padrinho (o Senhor da Terra, o Compadre, o Coronel) para os filhos e de viver por muitos anos sob a proteção de um fazendeiro forte, o qual também participava ativamente das decisões políticas da região, e que em várias situações era ora delegado, ora prefeito, ora escrivão e até político influente na Capital. Diante desse quadro, a instalação de empresas estrangeiras de extração madeireira, especificamente a Southern Brazil Lumber and Colonization Company Inc. e a ferrovia SP/RS sob concessão da Brazil Raiwail Company, trouxeram mais problemas para a região, pois além da tomada de terras, com aproximadamente 15 Km de cada lado ao longo de todo o trajeto ferroviário, cerca de 1.000 trabalhadores contratados para a construção da ferrovia e da madeireira ficaram nos planaltos paranaenses e catarinenses sem emprego, aumentando o contingente de pessoas desprovidas de assistência do governo e o posterior número de revoltosos. Com as terras interditadas para moradia as relações de domínio tornaram-se cada vez mais visíveis, pois ter terra representava poder e controle, não tê-la ou ser espoliado no direito de posse era estar à margem de uma nova ordem de relações de poder e dessa forma, surge o conflito denominado pelo exército brasileiro de Guerra do Contestado, um confronto extremamente violento e repressivo, do ponto de vista dos atuais direitos civis e humanos. 2. Das condições do Vídeo Meninos do Contestado é um vídeo de 16:12 minutos, considerado, conforme a Lei 8.401 de 08 de janeiro de 1992, uma obra audiovisual de média metragem, realizada pelo O Estado de São Paulo, “TV Estadão”, e enviado para exibição no canal youtube em 13/02/2012. Sua circulação deu-se de duas formas: primeiro por uma reportagem divulgada textualmente e integralmente no Caderno Especial de domingo do jornal O Estado de São Paulo em 12 de fevereiro de 2012 e pela exibição do vídeo em salas de
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cinema da cidade de São Paulo, com a posterior inserção no youtube em data já mencionada. A reportagem e o documentário (texto e argumento) foram idealizados por Leonêncio Nossa, mas a produção ainda conta com a participação do repórter fotográfico Celso Júnior, que assim como o jornalista autor é também contratado pelo “O Estadão”. Na visibilidade da organização e exibição da produção fílmica o efeito que permanece é o de apresentar o evento factual aos que o conhecem e resgatar, nos sentidos possíveis das comemorações de um centenário, os cem anos da Guerra do Contestado, denunciando as condições ainda precárias na contemporaneidade e que na ocasião funcionaram como o propagado estopim para a eclosão do conflito armado. Assim, o argumento geral do documentário é embasado por uma série de linguagens (música, texto, iconografias diversas) que reforçam a suposta busca de uma memória para a denúncia do que os repórteres chamam de barbáries e crimes de guerra, (termos repetidos por diversas vezes ao longo da narrativa). Nesse sentido, as reportagens e entrevistas que formam o documentário caminham para apontar o que os repórteres chamam de “dificuldades dos tempos da guerra”, falam ainda do acreditam ser um descaso das autoridades que se prolongam até nossos tempos (governos Estaduais e Federal), dizem sobre os descendentes dos contestados, que com o fim das atividades da madeireira e da ferrovia, ocupam instalações abandonadas e “voltam para o lugar de onde foram tirados”, ou seja ocupam antigas instalações e casas habitam nesses lugares e gerando o efeito para quem assiste de um retorno ao que lhes foi outrora tirado. 3. Discursos e imagem Desnecessário dizer da influência das imagens em nosso cotidiano, pois estão em toda parte, povoam ruas e interiores de casas, de prédios públicos e comerciais, servem a várias ordens como a divulgação de bens contemporâneos ou às propagandas e seus produtos. Contudo temos muitas possibilidades de “ler” imagens, mas sua leitura é especial, precisa de vários outros elementos, elas, as imagens, exigem de nós às vezes conhecimentos históricos, sociais e políticos de certa estrutura de apresentação, nos interpelam a descrever, a falar sobre como se fôssemos todos especialistas em imagens. Além disso, nos mostra o poder da representação, da quase “troca” de algo por outro.
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Tasso (2005) ao discutir sobre o uso de imagens no ensino diz: Uma imagem, seja ela desenho, pintura, fotografia ou mesmo escultura é, segundo Manguel (2001), um palco para representação, pois a produção do artista e o que é visto pelo expectador confere à imagem um teor dramático, como que capaz de prolongar sua existência por meio de uma história cujo começo foi perdido pelo expectador e cujo final o artista não tem como conhecer. (TASSO, 2005, p.133) Consideramos também que os signos que nos rodeiam, os quais na contemporaneidade são apresentados pelas imagens, ao serem discursivizados passam a ter similaridades e proximidades com nossas práticas de tal forma que neles ou nelas, se pensarmos em imagens, encontramos um espaço para ser e pertencer. 3.1 Imagem e memória no acontecimento Para Coracini (2007, p. 16) não há como lembrar do que não tiver sido esquecido, porque lembrar é um ato interpretativo “[...] é sempre interpretação de algo que passou; passado que se faz presente; presente que, a todo momento, já é futuro”. Associando Davallon (2010, p. 25) aos dizeres anteriores entendemos que para que “[...] para que haja memória, é preciso que o acontecimento ou o saber registrado saia da indiferença, que ele deixe o domínio da insignificância.” Nessa direção os autores citados encontram no efeito do esquecimento a rememoração o lugar de se pensar sujeito do presente, que traz para este tempo o que antes era tido como insignificante. A memória vista por este ponto de vista reabilita aquele que foi marginalizado, esquecido ou silenciado, provoca uma revisão do que entendemos por coletivo e público, pois se dá ao saber de todos e mostra o fosso que separa a sociedade de sua história. O que no caso do Contestado acaba por solidificar uma memória solidificada e guardada nos trilhos da multinacional, nos semblantes dos caboclos e nos fuzis do Exército Nacional. Todos constitutivamente convocados pelo documentário a se ressignificarem no presente.
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O “movimento de lembrar” é, portanto, efeito comum no documentário e faz daqueles que o assistem “legitimados a conhecer e a discursivizar”, fazendo circular por meio de um lugar social, um lugar cidadão, a não ignorância de um fato tão importante, que embora esquecido, é, por isso também, retomado no presente pelo discurso do centenário (comemoração), no qual encontra existência e tem a possibilidade de se tornar “indissociavelmente documento histórico e monumento de recordação.” (DAVALLON, 2010, p.26-27) Rememorar e celebrar os centenários nos leva a observar Le Goff (1990, p. 464) quando fala sobre o reconhecimento das festas nacionais, das comemorações como uma forma social de manter-se a unidade, a soberania e, principalmente, a subjetivação às formas políticas de governo, pois para este autor “[...] a maré da comemoração é, sobretudo um apanágio dos conservadores e ainda mais dos nacionalistas, para quem a memória é um objetivo e um instrumento de governo.” Cabe ainda acrescentar que a cada época os efeitos de sentido que as comemorações mobilizam, acabam por apropriar-se e fazerem circular discursos, que tidos como mercadoria, movimentam e fazem movimentar instrumentos diversos, como é o caso da mídia e, especificamente, para nós, o documentário. 4. O documentário e o acontecimento Antes de falarmos sobre documentário, ressalvamos que a memória mobilizada nos documentários só pode existir porque o acontecimento factual é retomado e convocado
à
emergência
pelos
sentidos
atribuídos
pelo
centenário,
pelas
comemorações. Para Foucault (2011) o acontecimento deve pautar-se em uma materialidade que o gera e que o torna, ele mesmo, um efeito e talvez aqui o efeito da comemoração. Na esteira do acontecimento, entendemos o documentário a partir, inicialmente, de Teixeira (apud Mascarello, 2012, p.253) que nos mostra o nascimento de uma arte do documentário entre os anos 1920 e 1930, na contraposição de um cinema de aparente ficção ou já considerado como tal, propondo-se a ser naquele momento um cinema da realidade. Ele tem por característica, neste instante de sua história, ser “prova”, ou seja, nasce com a função de provar um fato, de ser um documento em movimento, ou para o próprio Teixeira “um conjunto de documentos com a consistência de ‘prova’ a respeito
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de uma época”. Ele está, nesta condição, como a materialização da realidade, da “revelação da verdade”. Para Gauthier (2011, p.26) podemos até recorrer às definições do dicionário Littré (= documentário “o que tem caráter de documento”); ou um que “filme documentário viria do conhecimento científico e de sua transmissão”. Contudo, Gauthier, pondera que mais apropriadamente ainda o documentário seja um efeito de real, uma ficção disfarçada que mexe com imaginários de uma época, e que precisa fundamentalmente do momento histórico-social ou de uma “verdade” dessa época para ser compreendido. Ele é “uma abordagem possível daquilo que chamamos de ‘o real’ (que se limita, evidentemente, ao que podemos perceber dele)” (GAUTHIER, 2011, p.27). Assim, atualmente, concorda-se em olhar para o documentário como uma possibilidade; não mais apenas a contraposição com os filmes de ficção, não mais apenas, também, como uma crônica visual, nem somente um registro instantâneo de imagens desconexas, que tentam fazer sentido e critica. A definição de “documentário” é sempre relativa ou comparativa. [...] O documentário define-se pelo contraste com filme de ficção ou filme experimental e de vanguarda. [...]. Mas ele não é uma reprodução da realidade, é uma representação do mundo em que vivemos. Representa uma determinada visão de mundo, [...]. (NICHOLS, 2012, p.47). (grifos do autor).
Ele se adjetiva na contemporaneidade pela flexibilidade e criatividade, como resistência ao específico de sua origem, o que para Nichols (2012, p.48) estabelece “[...] uma arena onde as coisas mudam. [...] Existe contestação.” 4.1 O recurso da fotografia em movimento Com os sentidos associados à ordem do estático, do que é congelado para permanecer e representar, a fotografia é ressignificada no documentário “Meninos do Contestado, que pelo recurso técnico gera outros efeitos de sentido para quem assiste ao vídeo. Em movimentos técnicos de zoom out e zoom in, a câmera controla efeitos de distanciamento e de aproximação da fotografia, nos move para o sentido do conhecido, como se ao aproximar tivéssemos o efeito inevitável da empatia. No enquadramento de
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um canto ou de um fragmento da fotografia, a técnica, tira do esquecimento os personagens que agora bem nítidos e em movimento voltam do passado. A ampliação de um rosto, antes borrado e manchado numa fotografia de mais de cem anos, leva nossos sentidos de encontro com os discursos anteriormente proferidos, mas nunca até então visualizados. É o que consideramos como o grande efeito apresentado no documentário “Meninos do Contestado”, o qual, diante da possibilidade de mexer na memória coletiva, convoca sentidos diversos como: a falta histórica de recursos sociais e de assistência estatal, a falta de cuidado com a educação básica em nosso país e o sentido de descaso de um Estado com seu povo. Consideramos, portanto, que os discursos que compuseram toda uma grade de acontecimentos em torno desse factual; gerou efeitos, regras, reações e toda uma “relação, coexistência, dispersão, recorte, acumulação, seleção”, ou seja, o “efeito de uma dispersão material” como nos sugere Foucault (2011, p. 58 ). Contudo, as condições de possibilidade dos efeitos só se concretizam quando as fotografias ganham movimento e entram num regime de visibilidades mascarados e permitidos pelo recurso técnico. Então recurso e discurso geram redes de significados, que combinados, mudam a especificação do objeto fotográfico e, o mais interessante, a especificação de sua leitura, favorecendo seu aparecimento na contemporaneidade no registro da ordem da iconografia fílmica. O documentário ao editar as fotografias, ao recuar e aproximar o objeto nos condena, parafraseando Orlandi (1997), não apenas a interpretar, mas a reinterpretar pela memória e pelo pesar, quase uma culpa pelo o que não foi feito. Mas Nora (1981) nos lembra: E se, em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória. É este vai-e-vem que os constitui: momentos de história arrancados do movimento da história, mas que lhe são devolvidos. (NORA, 1981, p.13).
5. Considerações finais Segundo Foucault, a verdade não é deste mundo; [...] Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos
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falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 1982, p. 12).
Para discutirmos as noções de memória e de acontecimento, pensamos nas fotografias que, antes, aparentemente, estáticas e relegadas ao registro documental da Guerra do Contestado, foram tratadas pelo documentário “Meninos do Contestado” como móveis e dinâmicas. Apresentam nesta forma incorporada ao efêmero do ato fílmico modos diferentes de se pensar sua especificidade e sua leitura, fazendo do recurso técnico de aproximação zoom in e de distanciamento zoom out, um meio de modificar seu funcionamento e significado para produzir efeitos de adesão ao projeto dos caboclos, vendo-os como vítimas de um Estatal desmedido e injustificado. Efeito este que acaba por não tirá-los da condição em que sempre estiveram e que reforça pela memória coletiva da possibilidade de violação de direitos civis, a noção de carência e de desamparo a que sempre se submeteram.
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GAUTHIER, G. O documentário: um outro cinema; Campinas, SP: Papirus, 2011. LE GOFF, J. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990. MACHADO, P.P. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das lideranças caboclas. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004. MASCARELLO, F (org.). História do cinema mundial. Campinas, SP: Papirus, 2012. MENINOS DO CONTESTADO. Direção e Produção: Leonêncio Nossa e Celso Júnior. São
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Disponível
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AS MANIFESTAÇÕES POPULARES E SEU REFLEXO NO DISCURSO EM CIRCULAÇÃO NAS PROPAGANDAS POLÍTICAS VEICULADAS NA TELEVISÃO EM 2013 Vanessa Amin (UFMS) Há 30 anos, o processo de abertura política e de redemocratização no Brasil atingia o seu ponto máximo, o movimento “Diretas Já”, mobilizando políticos, personalidades do mundo artístico e esportivo, representantes religiosos, cantores e, principalmente, o povo brasileiro que foi às ruas para reivindicar o direito de votar e escolher novamente o presidente da República. Para que isso voltasse a acontecer, era necessária a aprovação no Congresso de emenda proposta pelo deputado federal de Mato Grosso, Dante de Oliveira. A votação foi precedida por dois grandes comícios, um realizado no Rio de Janeiro, e o mais lembrado, realizado em São Paulo, na Praça da Sé, em abril de 1984. Porém, a emenda não obteve o número de votos necessários para a aprovação, sendo realizadas eleições indiretas para presidente. Em janeiro de 1985, o nome escolhido para governar o País e dar início às transformações políticas foi o de Tancredo Neves do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que faleceu antes sequer de assumir o cargo. Em seu lugar, o vice, José Sarney (Partido da Frente Liberal - PFL) torna-se o primeiro civil a ocupar a cadeira de presidente. Em 1989, finalmente, era concedido ao povo o direito ao voto e à escolha direta para presidente da República: é eleito Fernando Collor (do Partido da Reconstrução Nacional – PRN), que ficara conhecido como “Caçador de Marajás”. Passados dois anos, denúncias de corrupção e falhas nos planos de governo fizeram surgir o movimento “Caras-Pintadas”, quando milhões de jovens foram às ruas pedir o impeachment do então presidente. Collor sai, Itamar Franco assume. Mais uma vez, um vice-presidente volta a comandar o Brasil. Depois vieram mais cinco eleições: duas vencidas por Fernando Henrique Cardoso, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), duas por Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), e a eleição da atual presidente, Dilma Roussef, também do PT. Durante esse período, a população brasileira aplaudiu, mas,
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também, rejeitou muitos discursos políticos. Contratos foram realizados, contratos foram desfeitos. E, em 2013, a população voltou às ruas para protestar, em movimentos que superaram em muito o número de adesões das Diretas Já. Redução de tarifa para o transporte público, combate à corrupção, mais investimentos em educação e saúde, gastos excessivos com a realização da Copa do Mundo, transformações na política, foram alguns dos temas que permearam os gritos das multidões em manifestações apartidárias que tiveram seu ápice no mês de junho. Neste contexto, surgem alguns questionamentos. Quem vai mudar o Brasil? Quem terá condições, competência e poder para operar as mudanças apontadas pelas manifestações populares? A pouco menos de um ano do processo eleitoral, no segundo semestre de 2013, alianças políticas, inclusive, já começavam a ser desenhadas e possíveis candidatos passaram a ocupar espaço nos veículos de comunicação, por meio das propagandas político-partidárias. Assim, o objetivo principal da nossa pesquisa é investigar se os protestos populares que ocorreram no meio do ano de 2013 influenciaram os discursos em circulação nas propagandas político-partidárias veiculadas principalmente após as manifestações e de que forma isso aconteceu; procurando entender o que, como e porque os protagonistas das propagandas dizem tal coisa desta ou daquela forma. Para desenvolver este trabalho, apoiar-nos-emos em pressupostos da análise arqueológica e da genealogia de Michel Foucault. A arqueologia de Foucault analisa os processos de construção do discurso. O método arqueológico realiza um corte horizontal de mecanismos que irão articular acontecimentos discursivos diferentes ao poder. “Na ‘arqueologia’, reencontra-se, ao mesmo tempo, a ideia de arché, isto é, do começo, do princípio, da emergência dos objetos de conhecimento, e a ideia de arquivo – o registro desses objetos” (REVEL, 2005, p. 17). Já o enfoque genealógico ativa “saberes locais, descontínuos, desqualificados” (idem, p.52). Por meio da genealogia, deve-se direcionar a “leitura horizontal das discursividades para uma análise vertical – orientada para o presente – das determinações históricas do nosso próprio regime de discurso” (ibidem, p. 17). Esses pressupostos indicam que as nossas análises devem ir muito além da materialidade do discurso. Sem desprezar essa materialidade, temos que buscar no
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arquivo quais as regras, as práticas, as condições de produção e de funcionamento, as relações de saber-poder. O corpus desta pesquisa é constituído de reportagens veiculadas na Internet a respeito das manifestações populares e de vídeos cujo conteúdo contempla as propagandas político-partidárias dos seguintes partidos PT, PSDB, Partido Socialista Brasileiro (PSB) divulgadas na televisão durante o ano de 2013, especialmente, no segundo semestre. A partir daí, fizemos recortes intencionais no corpus, considerando aqueles que se mostraram mais relevantes para alcançar os objetivos do estudo e sobre o qual debruçaremos nossas análises, articulando as condições de produção à materialidade dos discursos, investigando os efeitos e os deslizamentos de sentidos. Fundamentação Teórica A Análise do Discurso (AD) de linha francesa preconiza um quadro teórico que alia o linguístico e o sócio-histórico. Surgiu em meados da década de 1960, porém foi consagrada em 1969, com a publicação do número intitulado A Análise do Discurso da revista Langages e, principalmente, com o livro Análise automática do discurso, de Michel Pêcheux. Em seu quadro epistemológico, articula três áreas do conhecimento científico: o materialismo histórico, a linguística e a psicanálise (GREGOLIN; BARONAS, 2003). Michel Pêcheux, considerado o seu autor mais representativo, elabora seus estudos influenciados pelos trabalhos de Louis Althusser sobre ideologia e de Michel Foucault sobre discurso. E o que é discurso? Foucault (2005) define discurso como um conjunto de enunciados que podem pertencer a campos diferentes, mas que obedecem a regras de funcionamento comuns, que pertençam a uma mesma formação discursiva. Ao utilizar a expressão formação discursiva, o autor a caracteriza como quando for possível a descrição de um “sistema de dispersão” entre enunciados e a definição de uma regularidade entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos ou as escolhas temáticas. Para ele, a análise da formação discursiva consiste na descrição dos enunciados que a compõem. Porém, Foucault não tinha como objetivo central enfocar o discurso enquanto problema linguístico, mesmo assim suas ideias foram importantes para a AD.
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Será Michel Pêcheux quem estabelecerá a relação entre língua, discurso e ideologia. A língua como condição material para existência do discurso e o discurso, por sua vez, como lugar em que se realiza a ideologia. Ele também vai reformular o conceito de formação discursiva e trazê-lo para o quadro da Análise do Discurso: [...] as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que vale dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas [...] nas quais essas posições se inscrevem. Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, [...] determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc.) (PÊCHEUX, 1988, p. 160)
Ao final dos anos de 1970, ele reformula o conceito de formação discursiva e acrescenta a noção de interdiscurso. De acordo com Denise Maldidier (2003), o interdiscurso já estava presente desde a AAD 69, quando Pêcheux relaciona o discurso ao “já dito”. Segundo ela, “o interdiscurso não é nem a designação banal dos discursos que já existiram antes nem a ideia de algo comum a todos os discursos” (idem, p. 51), mas que o interdiscurso é que designará “o espaço discursivo e ideológico no qual se desdobram as formações discursivas em relação com as formações de dominação, subordinação, contradição”. A autora reforça também que essa noção será decisiva no que se refere ao sujeito determinado pelo interdiscurso, lhe impondo dissimuladamente o seu assujeitamento em forma de autonomia. Assim, ao trabalhar com o discurso político o analista poderá constatar que o mesmo é atravessado pela interdiscursividade. Também é característica desse a heterogeneidade. O tema heterogeneidade se anuncia na obra de Pêcheux, principalmente no texto Remontemos de Foucault a Spinoza quando põe em evidência reflexão sobre a contradição entre as formações discursivas, operando um deslocamento da questão da identidade e a divisão de sentido. “Não mais do que a formação ideológica, a formação discursiva não pode ser pensada como um ‘bloco homogêneo’. Ela é ‘dividida’, não idêntica a si mesma” (MALDIDIER, 2003, p.65). Mas, será a linguista Jacqueline Authier (1998, 1990) quem introduz na Análise do Discurso uma distinção ao termo heterogeneidade, a partir da noção de dialogismo de Bakhtin. Ela especifica ainda que a presença localizada de outro discurso no fio do
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discurso será chamada de heterogeneidade mostrada, que pode ser ainda subdividida em marcada ou explícita, quando se encontra assinalada por meio do discurso direto ou indireto, do uso das aspas ou glosas; e a não-marcada por meio do discurso indireto livre, ironia, alusões. A autora remete ainda à heterogeneidade constitutiva, quando o discurso encontra-se dominado pelo interdiscurso. Ainda, Michel Pêcheux baseado na expressão marxista condições econômicas de produção, lança a hipótese de que nos discursos produzidos, invariantes semânticoretóricas corresponderiam a um estado determinado de condições de produção (discursivas). Ao substituir os dois polos do esquema de comunicação de Jakobson – emissor e receptor -, por um dispositivo em que as situações do locutor e seu interlocutor seriam desdobradas em representações imaginárias dos lugares que um atribuirá ao outro, Pêcheux estabelecerá que essas relações entre os “lugares” dependerão das estruturas das formações sociais, decorrentes das relações de classes, descritas pelo materialismo histórico. Um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas: por exemplo, o deputado pertence a um partido político que participa do governo ou a um partido de oposição; é porta-voz de tal ou tal grupo que representa tal ou tal interesse. [...] Ele está, pois, bem ou mal, situado no interior da relação de forças existentes entre os elementos antagonistas de um campo político (PÊCHEUX, 1990, p. 77)
Outra importante reflexão apontada pelos analistas é tratar o discurso como acontecimento. Foucault também contribui nesse sentido, pois já apontava o enunciado como algo além da estrutura linguística e que esse deveria ser pensado em sua irrupção histórica. Assim, o acontecimento discursivo, segundo a perspectiva histórica na AD, será definido em relação à inscrição do que é dito em um momento determinado, em configuração de enunciados (FOUCAULT, 2005). Pêcheux (2006), em sua obra O Discurso: estrutura ou acontecimento, percorre os caminhos do acontecimento, do discurso e da tensão entre a descrição e a interpretação na AD. A partir da cobertura da mídia francesa e do enunciado On a gagné (Ganhamos), que ecoou em Paris quando o presidente François Miterrand foi eleito, o autor discute como uma estrutura enunciativa típica do mundo esportivo aparece no cenário político francês. O acontecimento que retrata o resultado das
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eleições para presidência na França, segundo Pêcheux, ao mesmo tempo em que remete a um conteúdo sócio-político transparente, por meio das evidências dos números, mostra-se “profundamente opaco” por meio dos enunciados. Observamos então que, para os analistas do discurso, é insuficiente o recorte linguístico apenas dos enunciados. A relevância do trabalho está em analisar os significados construídos a partir do discurso, importando muito as suas condições de produção e o momento em que eles irromperam na história. Por isso, torna-se primordial a investigação das condições de produção do discurso político, a fim de se conhecer porque se diz determinada coisa de tal maneira e como o discurso está estruturado e se articula com as práticas sociais. Percebemos também que abordar essas condições de produção, as formações discursivas, a presença do interdiscurso, da heterogeneidade, torna-se fundamental para a pesquisa em Análise do Discurso, em especial, tratando-se do discurso político que se configura como um discurso complexo e multifacetado. Desenvolvimento Dia 20 de junho de 2013. Milhões de pessoas vão para as ruas em mais de cem cidades brasileiras para protestar e pedir por um Brasil mais justo. Adultos, jovens e crianças, pessoas das mais variadas profissões, estudantes, todos se juntaram para demonstrar sua insatisfação. A classe política foi sacudida pelos gritos que, inicialmente, eram alguns milhares, já que a origem das manifestações se deu no dia 6 de junho, em São Paulo, quando cerca de duas mil pessoas protestaram contra os preços das tarifas de ônibus em uma ação mobilizada pelo Movimento do Passe Livre. Convocadas pelas redes sociais, outro diferencial em relação aos movimentos do passado, mais e mais pessoas foram se juntando e os protestos continuaram pelos dias seguintes e se espalharam por outras capitais, culminando nas manifestações do dia 20. Dentre os enunciados utilizados pelos manifestantes durante os protestos, um conquistou a preferência e foi reproduzido em milhares de cartazes, ganhando destaque inclusive na imprensa: “Desculpe o transtorno, estamos mudando o Brasil”. Outras variações também surgiram como “desculpem o transtorno, estamos tentando mudar o país”, “desculpem o transtorno, estamos mudando o Brasil”, “desculpem o transtorno,
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estamos lutando pelos seus direitos” ou “desculpem-nos pelo transtorno, estamos consertando o Brasil”. Vemos no primeiro enunciado, assim como nas outras variações, percebemos a presença do interdiscurso por meio da heterogeneidade mostrada nãomarcada (AUTHIER-REVUZ, 1990), já que se trata de uma alusão ao enunciado “desculpem o transtorno, estamos em obra” ou, ainda, “desculpe o transtorno, estamos em reforma”, utilizado na sinalização para indicar locais onde há intervenção em infraestrutura. Alguns criticaram as manifestações, outros elogiaram, alguns aproveitaram para cometer atos de vandalismo, houve quem disse que os governos e a polícia reprimiram de forma violenta, enfim, nesta pesquisa, não temos como propósito analisar a origem das manifestações, bem como suas características, mas sim, se elas influenciaram de alguma forma os discursos veiculados nas propagandas político-partidárias que ocorreram a partir de julho de 2013. Independentemente das críticas, das análises dos sociólogos, jornalistas, cientistas políticos, uma coisa ficou muito clara: o povo saiu às ruas para pedir mudanças. Primeiramente, vamos tratar das propagandas do PSDB. Mas antes, é necessário lembrar que esse partido político está ligado a uma formação discursiva (FD) política de centro-esquerda e que, historicamente, tem se colocado como principal rival, do Partido dos Trabalhadores, haja vista as últimas cinco eleições para a Presidência da República, que registraram uma disputa polarizada entre os dois partidos. Temos aqui não apenas uma oposição entre partidos, mas um confronto entre duas formações discursivas – PSDB e PT. “Quem muda o Brasil é você”. Com essa construção discursiva terminam os vídeos das propagandas político-partidárias do PSDB, divulgadas no segundo semestre de 2013. Não podemos afirmar que foi pensada e inserida em decorrência das manifestações (já que não buscamos entrevistar os produtores das peças publicitárias), mas ao compararmos com os vídeos veiculados no primeiro semestre, surge esta primeira diferença, já que nesses, a finalização ocorre com a construção “Conversa com os brasileiros” que também dá título ao programa, tanto do primeiro como do segundo semestre.
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No segundo semestre as propagandas políticas do PSDB acompanharam o que já vinha sendo divulgado anteriormente, ou seja, o protagonista das peças é o seu presidente e senador por Minas Gerais, Aécio Neves, que também era apontado, na época, como candidato favorito do partido para a Presidência da República em 2014. As peças trazem cenas das viagens que o senador está fazendo pelo Brasil para estabelecer a sua “conversa com os brasileiros”. No primeiro recorte da propaganda veiculada após as manifestações e que trazemos para este trabalho, Aécio está em uma escadaria de concreto, na capital São Paulo, sentado em um dos degraus com vários jovens/estudantes que conversam com ele, estando alguns sentados, outros em pé. A atmosfera criada é de descontração. O primeiro assunto abordado por meio de uma pergunta de um dos estudantes (Arthur) refere-se à educação. O senador responde citando o que foi feito durante seu governo em Minas Gerais e que levou até a um reconhecimento atual do Ministério da Educação. Aqui, destacamos o enunciado usado por Aécio: “Deu um salto de qualidade na educação do Estado e hoje a gente pode dizer que nós temos a melhor educação do Brasil, segundo o MEC” (grifos nossos). Se nos ativéssemos apenas ao textual, seria difícil perceber o não-dito quando o senador pronuncia “segundo o MEC”. Pelo tom utilizado ao enunciar, Aécio, atribui um significado além das palavras, que pode ser interpretado como: segundo o próprio governo do PT (seu principal rival), ou seja, até o governo federal atual reconhece o trabalho realizado por ele na área de educação em Minas Gerais. Lembramos que melhorias na educação foram solicitadas durante as manifestações, pelos jovens que foram às ruas, assim entendemos que esse assunto não foi inserido de forma aleatória nesta cena. Inclusive, as manifestações são abordadas de forma direta na sequência discursiva que traz um questionamento de outra estudante e a resposta de Aécio. Vejamos: Aleska: Eu participei de algumas manifestações que teve aqui em São Paulo Aécio interrompe e pergunta: O que te levou pra rua? Aleska: Fiquei interessada, falei: ‘não eu também sou cidadã’, vou correr atrás dos meus direitos. Aécio: Eu falo que essas manifestações, essas movimentações todas, não foi para um partido, não foi para um governante, foi para todos nós que fazemos política; eu me incluso entre esses também. Está todo
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mundo cansado de enrolação, das mesmas promessas, do mesmo jeito. Chega e fala, papo reto. O que que é? Como é que dá pra fazer? O que dá pra fazer? E se isso não dá pra fazer, porque não dá pra fazer. A gente deixar de acreditar que existe caminho é um erro enorme. Aleska: Porque que nós devemos acreditar que com vocês vai ser diferente? Aécio: Eu tenho uma visão de país diferente um pouco daqueles que estão no governo hoje, que acham que o Estado faz tudo pra você. Nada. Eu acho que quem muda o Brasil é você, quem muda o Brasil é você que tá lá estudando, ralando. O Estado tem que dar condição. Tem que gastar menos com a sua estrutura, pra gastar mais com as pessoas. O governo não pode empatar a vida das pessoas, tem que ser o parceiro, mas quem vai mudar a vida de cada um de vocês, ou de cada um de nós, somos nós mesmos, é quem tiver disposição de ralar e de enfrentar.
Esta sequência discursiva é a que encerra a propaganda político-partidária de dez minutos que foi exibida no segundo semestre. Nela, vemos que Aécio constrói uma imagem de político diferenciado, que está mais próximo do povo, dos estudantes, dos brasileiros, que pode fazer diferente, pois tem uma visão que difere “daqueles que estão no governo hoje”. Essa proximidade é criada inclusive na opção por uma vestimenta mais casual como o uso de camisas (brancas e em tons de azul) com as mangas dobradas usadas por cima de calça comprida e sapato de uso diário. O senador incorpora em seu discurso a redução de gastos com a máquina administrativa e o investimento nas pessoas, ou seja, na qualidade de vida do povo, o que foi reivindicado pelas manifestações. Destacamos o efeito de sentido provocado pelos movimentos de aprovação com a cabeça dos estudantes que o ouvem atentamente em silêncio, colaborando para consolidar a imagem construída por ele. Lembramos que o governo Dilma não abriu diálogo, inicialmente, com os representantes dos movimentos que integraram os protestos, e isso também é explorado na construção da identidade de Aécio como aquele que vai até os brasileiros, que sai de sua posição enquanto senador para ouvi-los nas suas conquistas e angústias. Neste segundo momento do trabalho, trazemos para análise alguns recortes das propagandas político-partidárias do PSB, um partido que pertence a uma formação discursiva de esquerda, assim como o PT. Durante boa parte do governo Dilma e também do governo de Lula, ou seja, por praticamente dez anos, o PSB compôs a base aliada, inclusive, ocupando cargos. No final de 2012 e início de 2013, houve
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rompimento da aliança em alguns estados, culminando com a decisão de saída do governo e entrega dos cargos anunciada pelo presidente do partido e governador de Pernambuco Eduardo Campos no início do segundo semestre de 2013 e que, na época já aparecia como suposto candidato à Presidência pelo partido. Ao analisar a propaganda veiculada após às manifestações, percebemos uma menção às mesmas no vídeo em dois momentos. Na seguinte sequência discursiva temos a menção aos protestos, utilizada para contrapor com a imagem do PSB junto ao povo como partido que mais cresce e que possui lideranças com grande aceitação: No momento de grande insatisfação por todo o Brasil, o PSB mantém a sua marca de popularidade. Sabe quem é o prefeito mais bem avaliado do país? O prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda, do PSB. E sabe quem aparece em primeiro lugar como governador mais bem avaliado do país? Eduardo Campos do PSB. Não é por acaso que o Partido Socialista Brasileiro conseguiu reeleger 73,8% dos seus prefeitos. E foi, também, o que mais cresceu nas últimas eleições. E nesse sábado em Brasília, o PSB e a Rede Sustentabilidade fizeram uma aliança programática que une Marina e Eduardo Campos na construção de uma nova política e de um novo Brasil.
Destacamos o último enunciado que introduz as imagens da filiação da exsenadora Marina Silva ao PSB e do anúncio da parceria que pode ser interpretada como apoio dela à candidatura de Campos, figurando como vice em sua chapa. Essa parceria vem ao encontro do que foi solicitado pelo povo durante as manifestações de junho, de acordo com o que enuncia Campos: “E esse gesto, hoje, acende a esperança no coração de muitas pessoas. Quem entendeu o que aconteceu nas ruas no Brasil em junho, não tem nenhuma dificuldade de entender o que ocorre aqui hoje”. É do conhecimento de todos, que se trata de uma aliança mais do que estratégica, haja vista a votação expressiva obtida por Marina nas eleições anteriores, surpreendendo as expectativas. Partimos agora para as análises das propagandas veiculadas pelo Partido dos Trabalhadores durante o segundo semestre, ou seja, após a ocorrência dos protestos. Lembrando que o PT pertence a uma formação discursiva esquerdista, embora estando no governo tenha optado por ações que contrastam com as ideologias, como por exemplo, a privatização, fortalecimento das instituições bancárias, entre outras. Partindo agora para análise do que foi veiculado pelo PT no segundo semestre, em relação ao nosso objetivo neste trabalho, vamos observar um completo
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silenciamento no que se refere a abordar as manifestações nas propagandas políticopartidárias ao contrário do que foi observado anteriormente nas análises do PSDB e PSB. Mas, podemos entender que esse silêncio também significa. E significa o que? As críticas ao governo Dilma concordam em vários pontos e, principalmente, na falta de aproximação com os movimentos populares e isto é muito bem explorado pelos dois partidos que se colocam hoje como oposição ao governo do PT. Outro fator corrobora para o pensamento de que os protestos, apesar de os que ocorreram em junho não serem direcionados exclusivamente ao governo federal, servem para questionar as ações daqueles que estão no poder e o PT é o partido que está no comando da Presidência da República, ou seja, do cargo de maior importância e responsabilidade no país. Ainda, após as manifestações, a presidente Dilma viu sua aprovação cair nas pesquisas. Então, é compreensível que não haja menção aos protestos nas divulgações feitas posteriormente. Considerações finais A partir das análises apresentadas pudemos perceber o interdiscurso das manifestações aparece de forma diferenciada nas propagandas político-partidárias do PSDB, PSB e PT. No primeiro, temo-lo incorporado pelo presidente do partido a ponto de seu slogan final e de vários enunciados ditos por ele trazerem construções que concordam com o povo: quem tem o poder de mudar o país é o próprio povo que foi às ruas em junho, são as pessoas, os jovens, os trabalhadores, aqueles que empreendem, os cidadãos, e, de forma indireta, podemos interpretar também, porque não, os eleitores, que, por meio do seu voto, podem colocar o partido na Presidência da República. Já no material divulgado pelo PSB, o interdiscurso das manifestações aparece de forma mais tímida, mas é incorporado de forma estratégica pelo presidente do partido a fim de legitimar sua aliança com Marina Silva e seu saber-fazer por uma nova política, um novo Brasil. E vimos o PT, partido que ocupa o governo, permanecer em silêncio absoluto durante a veiculação da sua propaganda na televisão, silêncio esse que significa e muito, como pudemos ver acima. A partir de um breve levantamento das condições de produção desses discursos e sabendo o lugar de onde cada protagonista dos vídeos fala é possível entender porque cada um enuncia desta ou daquela maneira, incorporando ou até mesmo ficando alheio ao discurso das manifestações.
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Referências AUTHIER-REVUZ.
Heterogeneidade
enunciativa.
In:
Cadernos
de
Estudos
Linguísticos. Campinas: UNICAMP – IEL, jul./dez. 1990. ______. Palavras incertas – as não-coincidências do dizer. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. GREGOLIN, Maria do Rosário, BARONAS, Roberto (org). Análise do discurso: as materialidades do sentido. São Carlos: Claraluz, 2003. MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso: (re) ler Michel Pêcheux hoje. Campinas: Pontes, 2003. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. São Paulo: UNICAMP, 1988. ______. Análise Automática do Discurso. In HAK, T; GADET, Françoise. Por uma Análise Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Trad. Bethania Mariani [et al.].Campinas: UNICAMP, 1990, p. 61-87. ______. O Discurso: estrutura ou acontecimento. 4. ed. Campinas: Pontes, 2006. REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005.
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O TRABALHO COM GÊNEROS E A PRODUÇÃO ORAL EM INGLÊS EM UMA COLEÇÃO DIDÁTICA DO PNLD-2014 Vanessa Logue Dias (UNISINOS)1
Introdução
Por muitos anos, o professor de línguas estrangeiras (LEs) da escola pública não contou com o apoio eficaz de um livro didático (LD) que pudesse auxiliar no desenvolvimento das aulas, ficando a elaboração de materiais didáticos a cargo do próprio profissional. Entretanto, esta realidade começou a mudar com a inclusão das LEs no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) em 2011. Portanto, em 2011, pela primeira vez, os alunos de inglês e espanhol receberam LDs para serem utilizados sem precisar devolvê-los no final do ano, os chamados livros consumíveis. Todavia, apesar deste grande avanço, o Guia do PNLD-2014 mostra que as habilidades mais enfatizadas nos livros são a escrita e a leitura, enquanto que as habilidades de compreensão e produção oral são deixadas em segundo plano. Este fato chama a atenção para as discussões que vêm permeando o ensino de línguas no Brasil: muito se discute o porquê e as dificuldades de ensinar a oralidade nas escolas regulares, considerando o número de alunos por turma, a falta de recursos, carga-horária, etc. Entretanto, não desenvolver a produção oral na escola regular reforça a crença de que aprender a falar inglês é exclusividade de quem tem acesso a cursos livres. Além disso, deve-se levar em consideração que, com os recursos presentes atualmente, como a internet, os alunos são constantemente expostos à língua inglesa tendo de trabalhar todas as habilidades (compreensão escrita/oral e produção escrita/oral). Portanto, a escola, como instituição que prepara o aluno para agir no mundo como cidadão crítico e que deve promover a diversidade cultural, não pode negar o desenvolvimento da oralidade nas salas de aula de LE. Uma das maneiras de trabalhar a oralidade em LE nas escolas de uma maneira significativa e contextualizada é por meio de gêneros textuais: elementos que circulam 1
Mestranda em Linguística Aplicada com bolsa PROSUP/CAPES.
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na sociedade, que fazem parte da vida do educando e que moldam nossas ações no diaa-dia. Por esta razão, este trabalho pretende analisar as atividades de produção oral propostas pelo LD It Fits, levando em conta sua boa avaliação pelo PNLD-2014 nas atividades de speaking.
Pressupostos Teóricos
A visão do processo de ensino-aprendizagem adotada nesta análise é baseada na teoria sociocultural (VYGOTSKY, 2007), concebendo a aprendizagem como construção social. A teoria enfatiza que a interação do indivíduo com o mundo e com outros agentes sociais permite que ele internalize os conhecimentos existentes na cultura na qual está inserido. Vygotsky (2007) explica que a interação do homem com o mundo e outras pessoas não ocorre de forma direta, pois é mediada por artefatos culturalmente construídos. Esses instrumentos podem ser físicos (faca, martelo, enxada, etc) ou simbólicos (cultura, crenças, linguagem, etc). Neste sentido, grande ênfase é dada ao papel da linguagem nas relações sociais, pois ela permite que se estabeleça a relação entre a interação social (chamada de interpsicológica) e a interação cognitiva (chamada de intrapsicológica), por meio de sua apropriação, internalização e uso. Portanto, o que ocorre socialmente é, durante toda a vida do indivíduo, mediado pela linguagem e, posteriormente, internalizado, caracterizando o processo de aprendizagem. Para Vygotsky, este movimento que parte do plano interpsicológico para o intrapsicológico ocorre na Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), uma metáfora criada para explicar a diferença entre o que um indivíduo consegue fazer sozinho e o que este consegue realizar com o apoio de um interlocutor mais capaz. O diálogo de apoio gerado dentro da ZDP é chamado de andaimento (scaffolding). De acordo com Wood, Bruner e Ross (1976), o conceito pode ser definido como um processo de cooperação entre indivíduos que possibilita a resolução de problemas com a ajuda do outro, permitindo que o aprendiz internalize o conhecimento coconstruído em uma atividade compartilhada (WERTSCH, 1974a apud DONATO, 1994, p. 41).
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A teoria Vygotskiana enfatiza este processo colaborativo entre um indivíduo mais capaz com outro com menor conhecimento. Entretanto, estes conceitos também são utilizados para fundamentar estudos relacionados ao ensino-aprendizagem de LE e/ou segunda língua (L2) quando também entre alunos de mesma proficiência. Neste sentido, a noção de ZDP, neste contexto, pode ser entendida como uma construção colaborativa de oportunidades para que os indivíduos desenvolvam suas habilidades cognitivas (LANTOLF, 2000) e o processo de andaimento pode ser compartilhado entre os pares (DONATO, 1994). Esta colaboração, além de oportunizar apoio mútuo, propicia que a produção na língua alvo seja desenvolvida, permitindo que o uso co-ocorra com o aprendizado. É por esta razão que apenas o insumo na língua alvo não é suficiente, sendo necessária a produção para que o conhecimento seja internalizado. Essa ideia foi trazida por Swain (1985), denominada hipótese da produção compreensível, enfatizando que é necessário que o aprendiz produza na língua alvo, ou seja, realize o output compreensível. Assim, a fala é parte do processo de aprendizagem do aluno e, portanto, necessária para que haja a internalização do conhecimento. Swain (1985) salienta a importância da produção forçada, pois é somente por meio da produção que os aprendizes terão a oportunidade de perceber o que sabem e o que ainda precisam descobrir na língua que estão aprendendo, processo que apenas a exposição ao insumo não oferece. Para Swain (1995), a produção permite aos alunos ir além do campo da compreensão, pois produzir a língua tem um papel importante no desenvolvimento sintático e morfológico. Papel este que está por trás das três funções da produção, a saber: a) a função da percepção; b) a função da testagem de hipóteses; e c) a função metalinguística. Primeiramente, a função da percepção ocorre quando os alunos percebem que existe uma lacuna entre o que eles querem dizer e o que conseguem dizer de fato, desencadeando processos cognitivos que facilitam a aprendizagem da língua, gerando novos conhecimentos linguísticos e consolidando o conhecimento já existente. Por conseguinte, ao notarem lacunas em suas produções, os aprendizes exercem a função de testagem de hipóteses, pois testam a compreensão e a forma linguística correta a partir do retorno obtido pelos seus interlocutores, experimentando formas e estruturas linguísticas até atingirem seus objetivos. A percepção e a testagem de
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hipóteses levam o aprendiz a refletir sobre o uso e as formas da língua que está aprendendo, capacitando o aluno a verificar e internalizar o conhecimento linguístico, contribuindo para a sua conscientização quanto às regras e formas desta língua e as relações entre elas. Assim, os aprendizes podem perceber os problemas linguísticos que ocorrem nos diálogos. Mais tarde, em 2006, Swain parece ter encontrado a terminologia mais adequada para explicar o papel da produção no processo de aprendizagem de LE ou L2. A autora optou pelo termo languaging, traduzido no Brasil por Rejane Vidal (2010) como “lingualização”. Swain (2006, p. 98) definiu o termo explicando que “lingualização refere-se ao processo de produção de sentido, de conhecimento e de experiência através da linguagem”. Assim, o processo de co-ocorrência do aprendizado com o uso da língua alvo ganhou um novo significado, evidenciando que se trata de uma atividade cognitiva e social ao mesmo tempo, visto que os aprendizes trabalham em conjunto para atingir objetivos comuns de aprendizagem. Nesse sentido, ao pensarmos o ensino de língua na escola regular contemporânea, vemos que há poucas oportunidades para que os alunos se engajem em um ato de lingualização. Em outras palavras, os alunos não produzem de forma significativa na escola, especialmente quando se trata da produção oral. Sendo assim, perdem oportunidades de refletir e aprender sobre a língua. Uma das alternativas para o ensino significativo da produção oral em língua inglesa que permite ao aprendiz exercer as funções da produção (ou “lingualizar”) ocorre por meio do trabalho com gêneros discursivos orais, manifestações das práticas sociais presentes no cotidiano dos alunos. Os gêneros textuais são elementos orais e escritos que circulam na sociedade e as atividades que os envolvem implicam em produzir para um fim concreto e para interlocuções semelhantes às vivenciadas fora da sala de aula (DIAS, 2009). Outra vantagem do uso de gêneros na produção oral em LE é que o ensino da gramática é trabalhado de maneira contextualizada, tornando a aprendizagem dos aspectos formais mais significativa e interessante. Com isso, os estudantes, além de produzirem na língua alvo, tomam conhecimento sobre a estrutura das diversas manifestações de práticas sociais. Portanto, não se ensina somente a língua em si, mas se auxilia os aprendizes a se tornarem cidadãos e agirem criticamente no mundo.
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Metodologia
Levando em consideração os pressupostos teóricos acima apresentados e a boa avaliação nas atividades de produção oral que a coleção It Fits recebeu no Guia do PNLD 2014, objetiva-se analisar como estas atividades são propostas no material e verificar pontos a serem melhorados para, assim, trabalhar a produção oral na sala de aula regular.
O objeto de análise
A coleção intitulada It Fits, tendo como editor responsável Wilson Chequi, da editora SM (2014), é composta de quatro livros destinados aos anos finais do ensino fundamental (do sexto ao nono ano). Os quatro volumes da coleção possuem a mesma organização, sendo cada livro dividido em oito unidades. Todas as unidades giram em torno de um tema transversal, como meio ambiente, internet, culinária, etc, focalizando as estruturas e vocabulário específicos do tema nas quatro habilidades.
Os Critérios de Análise
Tendo como foco as atividades de produção oral do LD It Fits, este estudo tem como objetivo geral verificar como as atividades de produção oral são propostas na coleção, verificando se estas seguem o que é discutido atualmente na literatura sobre o processo de ensino-aprendizagem socialmente situado, principalmente, no que se refere ao uso de diversos gêneros textuais e como estes são trabalhados com os alunos. Para tanto, pretende-se fazer uma análise qualitativa com a utilização dos parâmetros de análise de atividades de produção oral adaptados de Dias (2009), bem como os critérios para atividades de produção oral do edital do PNLD 2014 (BRASIL, 2011), além de critérios elaborados pela autora tendo como base a teoria sociocultural. •
Visão de ensino-aprendizagem
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As tarefas estimulam a colaboração? As tarefas levam ao conhecimento sistêmico, de mundo e textual? •
Características gerais das atividades de produção oral
Há diversidade de temas? Há diversidade de gêneros orais? Há diversidade de registros (formais e informais)? As atividades de produção oral são compatíveis com a faixa etária dos alunos? •
Características específicas das atividades de produção oral
O ato de falar caracteriza-se como um processo interativo? O processo envolve etapas de pré-produção, produção oral e pós-produção? As atividades estão relacionadas com as demais habilidades trabalhadas na unidade? As atividades incentivam o uso do conhecimento prévio do aluno?
Os critérios para avaliação de Dias (2009) foram considerados por levarem em conta os pressupostos presentes nos PCNs (BRASIL, 1998) e o ensino de línguas por meio de gêneros, representando um importante recurso para que professores e pesquisadores avaliem LDs. Ademais, podem servir como forma de complementar os critérios previstos no PNLD 2014 (BRASIL, 2011), essenciais para a elaboração das tarefas de produção oral nos LDs, mas que são poucos e mais gerais. Pensando que, a partir da concepção teórica adotada neste estudo, a aprendizagem de línguas ocorre de maneira colaborativa e que, a partir da interação com o outro, é possível que haja a lingualização (SWAIN, 2006), optou-se por incluir, também, critérios que contemplem a teoria. Como já discutido, o ato de lingualizar possibilita que o aluno produza enquanto aprende a língua alvo, fazendo com que ele perceba lacunas em seu conhecimento linguístico e trabalhe na tentativa de solucionálas. Sendo assim, é necessário que, nas tarefas de produção oral, haja oportunidades para que o aprendiz se engaje no ato de lingualização. É preciso que haja uma diversidade de gêneros orais compatíveis com sua faixaetária, incentivando o conhecimento prévio para que sejam significativas. Entretanto, é
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importante que o gênero seja explorado e trabalhado em etapas de pré-produção, produção oral e pós-produção, pois assim o aluno não somente pode lingualizar, como entenderá a função social do gênero em foco. Deste modo, o aprendiz está inserido em uma prática social, ao mesmo tempo em que aprende a língua alvo.
Análise do material
Considerando os critérios relativos às características gerais das atividades de produção oral, pode-se dizer que, de forma geral, as atividades atendem satisfatoriamente à diversidade de temas. Percebe-se que há uma ampla variedade de temas que tratam de assuntos pertinentes à faixa-etária dos alunos em cada um dos livros, como já havia indicado o Guia do PNLD 2014. (BRASIL, 2013). O mesmo se refere à diversidade de gêneros orais, pois a coleção apresenta diferentes formas de expressão na língua alvo, incluindo formas de se apresentar, conversas cotidianas, apresentações, entre muitos outros, o que propicia interlocuções semelhantes às vivenciadas dentro e fora da sala de aula (DIAS, 2009), permitindo o desenvolvimento de cidadãos críticos. (BRASIL, 1998).
Análise de uma atividade
A atividade escolhida para a análise neste artigo é a primeira de produção oral com a qual o aluno que usa a coleção tem contato. Ela é parte da primeira unidade do livro, cujo tema é Identity, na qual os alunos aprendem a dar informações pessoais, formas do verbo to be e o alfabeto. Encontra-se ao final da unidade, após as práticas de leitura e escrita e antes da atividade de compreensão oral. Aqui os alunos têm contato com os sons das letras do alfabeto e os utilizam na prática de um diálogo em que alguém se apresenta a uma recepcionista e precisa soletrar o nome. Após, os estudantes devem alterar os nomes dos personagens e o contexto e ir praticando o diálogo em duplas.
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Fonte: Chequi (2012, p. 24).
A partir dos critérios adotados relativos à visão de ensino-aprendizagem e às características específicas das atividades de produção oral, como expostas na metodologia, a análise realizada revelou que, nesta atividade, parece não haver a possibilidade de construção conjunta da produção oral, pois, apesar de ser uma atividade em duplas, os alunos reproduzem um texto já elaborado e apenas trocam os nomes dos personagens. Ademais, como o estudante não produz efetivamente a partir de um gênero na língua-alvo, ele deixa de construir e ampliar o conhecimento sistêmico. A produção oral propriamente dita poderia ser realizada, já que os alunos, em atividades anteriores de escrita e leitura, já praticaram as formas de se apresentar e falar de si mesmo. No que
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concerne o contexto do diálogo da atividade pode-se dizer que, provavelmente, o aluno já teve contato (consultório médico, recepção de um clube etc.), o que ativa seu conhecimento de mundo. Porém, se trata de um texto artificial, em que os alunos apenas alteram o contexto e os nomes dos personagens, o conhecimento textual pode ficar prejudicado. Relativo às etapas da atividade, pode-se dizer que há a etapa de pré-produção, quando os alunos aprendem as letras do alfabeto, há a etapa de produção, quando observam o texto e o reproduzem e há a etapa de pós-produção quando os alunos são convidados a praticar o diálogo imaginando outros contextos. Entretanto, como o exercício da produção oral está mais na reprodução de um diálogo pronto do que na produção propriamente dita, esta atividade é válida como uma preparação para a produção dentro de um gênero oral que contemple uso de informações pessoais e um momento em que um dos interlocutores deve soletrar alguma palavra.
Sugestão para a atividade: Para o ensino da produção oral em LE, a presente atividade poderia ser realizada da seguinte maneira: a) Escolha da prática social: considerando que a seção de produção oral é a última ou penúltima da unidade, o gênero escolhido deve levar em conta os tópicos gramaticais e temas trabalhados durante toda a unidade. Assim sendo, uma sugestão de gênero a ser trabalhado é o preenchimento presencial de um cadastro que realizamos quando vamos pela primeira vez a algum estabelecimento. b) Pré-produção: pode-se usar a atividade do livro como preparatória para a produção oral. Os alunos seguem os passos do livro conforme os itens 1 e 2. Porém, ao invés de reproduzir o diálogo com outros nomes, como proposto pelo material, o professor pode ir até o item 4, fazendo com que os alunos percebam em que situações é possível que ocorra um diálogo semelhante. c) Produção oral: o professor pode guiar os alunos antes da construção do gênero, fazendo um warm-up, no qual os eles podem citar características do gênero, além das informações que nos são perguntadas e que devemos relatar dentro deste contexto (considerando o vocabulário aprendido na unidade), criando um guia para a
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elaboração do gênero: 1) Greetings; 2) Is this your first time here? I need some information; 3) Questions and answers about: a) name; b) last name (if the name is difficult, spelling may be necessary); c) age; d) birthplace; e) nationality; f) weight and height (if the place is a doctor’s office or a gym); 4) Thanks. You’re all set./ You’re welcome. Tomando como base o conhecimento construído durante a unidade e na atividade preparatória, os alunos realizam a produção, em duplas, selecionando o local em que a conversa ocorrerá, podendo utilizar as sugestões dadas pelo livro no item 3, considerando o gênero: preenchimento presencial de cadastro com uma recepcionista. f) Pós-produção: Após pronta a atividade (primeiramente, os alunos podem escrever os diálogos para um ensaio em pequenos grupos), os alunos podem fazer uma apresentação para a turma do que prepararam.
Considerações finais
A atividade aqui analisada apresenta muitos pontos positivos, como o uso de gênero significativo e adequado à faixa-etária dos alunos, além da relevância do tema. Entretanto, percebe-se que a atividade é marcada pela reprodução de um texto previamente elaborado, não se caracterizando como uma produção significativa. Ao ler um texto já pronto, o aluno perde a chance de produzir significativamente dentro de um gênero, não despertando nos alunos os conhecimentos de mundo e textual. (BRASIL, 1998). Ademais, há situações em que, por se tratar de uma reprodução de um texto trazido pelo livro, os alunos não produzem oralmente de fato. Como os alunos deixam de produzir, acabam por não lingualizar (SWAIN, 2006) e, assim, dificilmente perceberão lacunas na língua alvo, testarão hipóteses e ou refletirão sobre esta língua. Além disso, não conseguem produzir com seus pares, perdendo oportunidades de atuar em sua ZDP (LANTOLF, 2000) e de obter e fornecer andaimento (DONATO, 1994), deixando de contribuir para a sua aprendizagem e a dos colegas. Entretanto, de modo a aproveitar os bons aspectos do material e o insumo proporcionado por ele, as atividades podem servir como preparatórias para o uso de
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gêneros, como sugere Hadley (2002). Logo, o professor que utiliza o material pode aproveitar as sugestões, de modo a realizar o que Swain (1985) chamou de produção forçada, em que os alunos terão a oportunidade de perceber o que sabem e o que ainda precisam aprender e aperfeiçoar na língua que estão aprendendo.
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EDUCAÇÃO BILÍNGUE PARA SURDOS E O LETRAMENTO ESCOLAR NO ENSINO FUNDAMENTAL Vânia Elizabeth Chiella (Unisinos) Cátia de Azevedo Fronza (Unisinos)
Introdução
A educação bilíngue é, sem dúvida, uma das condições significativas para o letramento escolar para surdos, cuja identificação linguística e cultural se faz a partir da Língua Brasileira de Sinais (Libras), língua natural dos surdos brasileiros. Esses sujeitos são conceitualmente compreendidos como surdos, tanto numa perspectiva cultural do campo dos Estudos Surdos em Educação, em articulação com o campo da Linguística Aplicada, quanto pela legislação. O decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, no seu Art. 2, assim diz: “considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais – Libras”. O discurso político escolar sobre a educação bilíngue é pauta atual e, embora seja instrumento de renovação da luta surda, representa um complexo desafio político, institucional e teórico-metodológico na atualidade. Esse desafio contempla perspectivas de investigação que demandam atenção dos pesquisadores da área. O letramento em Libras e o letramento em português seguem como entrave para o desenvolvimento das condições do letramento escolar. Isso ocorre porque os princípios discursivos que se apoiam na oralidade são a principal estratégia ainda utilizada para apropriação da leitura e escrita nas práticas escolares. Nossa reflexão parte de contato recente em ambiente entendido como bilíngue e bicultural onde a língua brasileira de sinais (LIBRAS) é considerada a língua de conhecimento e a língua portuguesa escrita deve ser a segunda língua. Investigamos as
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práticas de letramento escolar e o acesso dos alunos surdos às línguas envolvidas nos anos iniciais do ensino fundamental em duas escolas públicas na região metropolitana do estado do Rio Grande do Sul. Nossa escolha foi posicionar o letramento de surdos nas discussões da educação contemporânea, que tem problematizado a educação bilíngue de surdos, a língua de sinais e a cultura surda, entre outros temas.
Contexto geral
A educação para surdos passou a ser um problema para a educação principalmente a partir do final do século XX, com o fortalecimento da democracia no Brasil na Constituição de 1988, que garante os direitos humanos no país. Nesse contexto, começam a emergir os movimentos de luta em prol da língua de sinais dos surdos brasileiros. O passo seguinte foi o da consolidação de leis que amparam os direitos linguísticos e culturais dos surdos, trazendo, na renovação da luta, questionamentos sobre o papel da educação especial na vida escolar de alunos surdos. Historicamente, os sujeitos surdos estavam fadados ao discurso da surdez ancorado na deficiência (incapacidade) e na educação especial, que por um longo período focou a reabilitação clínica como possibilidade. A norma exige, é preciso falar! As últimas décadas do final do século XX e o início do século XXI foram fundamentais para acelerar as mudanças nos discursos educacionais sobre os surdos. A ruptura com o discurso da deficiência e a aproximação com o discurso cultural têm mobilizado a luta social da comunidade surda brasileira, amparada por pesquisas acadêmicas sustentadas no discurso cultural e na compreensão da diferença surda. Tal concepção motiva um distanciamento tanto dos discursos de homogeneização das diferenças e/ou da padronização do movimento surdo quanto de estratégias educativas e corretivas que tendem a traduzir a diferença como sinônimo de diversidade ou como interdependente da identidade com face.
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Nesse pensamento, diferença está para a subjetividade, enquanto diversidade está para a visibilidade do corpo nomeável. Para Bhabha (2003), diferença e diversidade são coisas distintas. A diferença é intraduzível e vivida/constituída na relação com o outro. A diferença é parte da alteridade. A diversidade, por sua vez, está enlaçada naquilo que pode ser visto e identificado – cor dos olhos e do cabelo, a surdez em si, etc. Nas palavras de Schöpke (2004, p.193), a diferença, compreendida pelo pensamento de Deleuze, “não pode ser apreendida pela representação porque ela não é da esfera do sensível. Ela é antes de tudo o ser do sensível”. A diferença, nesse sentido, é “um acontecimento do próprio ser, é como ele se expressa, é como ele se diz. Cada ser é único” Veiga-Neto (2004), a diferença não se explica; a diferença exige reflexão. Pensar dessa forma exige um afastamento da busca pela essência. Compartilhamos desse entendimento, pois percebemos a importância da compreensão da diferença e da centralidade da cultura na constituição do sujeito.
O que se diz e o que se faz no contexto educacional bilíngue de surdos?
Historicamente, houve avanços, como, por exemplo, a legislação que dá lugar de destaque ao papel linguístico da língua dos surdos, o reconhecimento e a visibilidade dos movimentos surdos e o crescimento de pesquisas no campo da Linguística Aplicada e dos Estudos Surdos em Educação. Ainda assim, há distância entre o que é teorizado e vivido na militância surda e o que acontece na vida escolar e na educação de surdos. Em razão disso, colocamos neste artigo apontamentos sobre temas que julgamos relevantes, pois mobilizam e direcionam nosso olhar para as escolas que pretendemos investigar.
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Há conflitos e dúvidas entre, por um lado, a sinalização da comunidade surda e de pesquisadores surdos e ouvintes imbricados em estudos que dão lugar central à cultura e, por outro, as atuais políticas educacionais (MEC) para surdos em relação às diretrizes e ao modo como devem ser conduzidas as práticas de ensino/aprendizagem das línguas envolvidas no processo educacional de surdos – a língua brasileira de sinais (LIBRAS) e a língua escrita (língua portuguesa), no caso dos surdos brasileiros. Os surdos trilharam caminhos da “clínica para a escola”, embora ainda hoje muitos surdos vivenciem a “escola-clínica”, se considerarmos o Caderno do Coordenador e do Formador de Grupo nas recomendações para a Construção de Escolas Inclusivas do SEESP/MEC, “Saberes e práticas da inclusão: desenvolvendo competências para o atendimento às necessidades educacionais especiais de alunos surdos”. No seu conteúdo, traz orientações para que cada professor “conheça os dispositivos de amplificação sonora existentes, seu funcionamento, cuidados necessários, problemas mais comuns e providências emergenciais dos dispositivos de amplificação sonora”, aparelho de amplificação sonora individual (A.A.S.I.), sistema de frequência modulada (F.M.) e implante coclear, ou seja, em muitos casos, na educação, ainda prevalece o método clínico (reabilitação – fazer o surdo ouvir/falar). Em relação às políticas públicas, a crítica do movimento dos surdos às atuais propostas educacionais inclusivas para surdos do MEC, segundo o Movimento Surdo em favor da Educação e Cultura Surda, apoiado pela Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS), dirige-se à forma como as políticas se distanciam do desejo de uma educação bilíngue para surdos, pensadas pelo modo cultural surdo, uma vez que, de certa maneira, elas ignoram a condição linguística dos surdos ao proporem, por meio da “escola inclusiva”, atividades em LIBRAS somente no Atendimento Educacional Especializado (AEE), ignorando que a escolarização, no caso dos surdos, deve ser permeada pela LIBRAS em todos os espaços. Como pensar que língua pode ser usada com hora marcada? Contraditoriamente, o MEC reconhece em suas políticas que a LIBRAS é a língua oficial dos surdos brasileiros.
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Com isso, não pretendemos alçar um cenário negativo; muito pelo contrário, pretendemos provocar, com nossas reflexões, motivação para a continuidade de nossos estudos. Muitos são os desafios, os deslocamentos e as rupturas no processo educacional bilíngue e no letramento escolar dos surdos. Entre algumas das implicações do letramento escolar, que segundo Kleiman (2012) indica “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita”, e no caso específico da escola, “apenas um tipo de prática – de fato dominante – que desenvolve alguns tipos de habilidades mas não outros, e que determina uma forma de utilizar o conhecimento sobre a escrita”, está o processo bicultural e de bilinguismo presente na educação de surdos. Focaremos principalmente as ausências ou falta de sistematização de diretrizes e metodologias de ensino adequado e a falta de execução de currículo surdo e de um projeto de educação bilíngue nas escolas. Daremos atenção também à forte presença de avaliações gestadas em uma concepção monolíngue e centradas na concepção oralista. Evidenciando o contexto escolar, selecionamos uma amostra de imagem do material de pesquisa de atividade pedagógica desenvolvida em sala de aula de 3º ano. Nesse caso, a proposta da professora estava vinculada ao tema do meio ambiente. Observamos que, após conversa informal com os alunos do 3º ano do ensino fundamental, a professora questionou “se eles nadavam na água suja”, “se podiam beber água suja”, “quais tipos de animais que existiam na natureza”, “o lixo no chão” e as “implicações do descarte inadequado do lixo”, o que, segundo ela, “causa enchentes”. Os alunos, por fim, relataram acontecimentos de experiências que viram de enchentes e lixo nas ruas. Na sequência, a professora entregou a tarefa escrita aos alunos. Na atividade do quadro abaixo, primeiramente, foi perguntado o sinal das palavras, e todos responderam corretamente: homem, sol, água, planta, natureza, animais. A partir daí, a professora convidou os alunos para fazerem a separação das sílabas das palavras no quadro verde.
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O que evidenciamos nesse e em outros fragmentos do material de pesquisa observados é o distanciamento e o deslocamento entre o que é dito no discurso culturalista celebrado no discurso escolar da escola bilíngue de surdos e a prática pedagógica, que ainda prioriza e concentra-se na concepção monolíngue, com foco no formalismo da língua e no ensino tradicional.
Fonte: dados de pesquisa (folhas de atividades feitas pelos alunos) Seguimos questionando: por que a dificuldade da educação bilíngue de surdos em avançar na prática pedagógica? Importantes contribuições sobre a educação de surdos já foram estabelecidas em diferentes pesquisas, como, por exemplo, Stumpf (2005) e Lopes, (2002), entre outras, tanto no campo dos Estudos Surdos em educação quanto no campo da Linguística Aplicada. Já temos evidências da importância do currículo surdo como elemento constitutivo do processo de letramento entre surdos e da relevância da cultura visual. O que impede a escola bilíngue de surdos de avançar rumo ao letramento escolar? No momento, entendemos que é fundamental estabelecer uma política linguística na educação de surdos, uma política pautada primordialmente pela diferença surda. E aqui não trazemos nenhuma novidade, pois muitos estudos de pesquisadores surdos e ouvintes já estão disponíveis para serem sistematizados, porém é nesse ponto que se estabelece um nó. Celebramos a literatura surda, a cultura surda, o modo de viver surdo, a possibilidade do sistema SignWriting, entre outras possibilidades na contribuição para o letramento educacional positivo para alunos surdos, porém, a
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tradição educacional segue empoderando professores surdos e ouvintes nas suas práticas educacionais tradicionais e monolíngues. A condição da (in)existência de políticas linguísticas educacionais adequadas aos contextos bilíngues de minoria como uma diretriz é problematizado por vários autores
(CAVALCANTI,1999;
ALTENHOFEN,
2002;
MARCELINO,
FENNER E ROMAINE, 2001; FERRAZ, 2007; FARACO, 2002)
2009;
entre diversos
pesquisadores que priorizam o debate sobre os problemas linguísticos enfrentados em comunidades indígenas, de imigrantes (alemães, italianos, japoneses, poloneses, ucranianos, etc.) e de descendentes de imigrantes, em contextos de fronteiras e, mais recentemente, nas comunidades de surdos, em discussões que têm em comum os contextos de minorias. Nesse sentido, Cavalcanti (1999) aponta a recente visibilidade das comunidades surdas, com trajetórias e algumas necessidades semelhantes às das comunidades indígenas, como, por exemplo, a luta pela obtenção do reconhecimento político e legal do contexto bilíngue em que vivem e a necessidade de obterem o reconhecimento de uma política linguística que contemple a execução de um programa de educação bilíngue que atenda às diferenças. É com a bandeira (e a banalização) do discurso da inclusão e da igualdade de direitos que temos visto a presença da imposição linguística. Embora se celebrem os discursos da diferença vividos em tempos de globalização, há questionamentos nas escolas sobre a importância de aprender língua estrangeira ou segunda língua quando, segundo os professores, “os alunos mal sabem sua própria língua”. Tal fato é recorrente quando se fala de contextos de educação de surdos (ainda hoje, “tempos de inclusão”), vistos de modo geral como incapazes. Se, por um lado, há entre professores de contextos de surdos um discurso educacional “vibrante” que celebra os surdos quando nos referimos aos contextos de lutas por direitos, por outro lado, há um “marasmo” no discurso das escolas quando o assunto em pauta é o letramento como chave para a tão sonhada cidadania surda.
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Entre os professores, de modo geral, ainda é possível perceber que há dúvidas sobre a capacidade cultural e cognitiva dos alunos (caso dos surdos em relação à língua portuguesa). O discurso comum é o entendimento do aluno surdo como “deficiente linguístico”, supondo-se que “o surdo não domina a sua língua de sinais formal” e que “ele não tem língua quando chega à escola”. Desse modo, conforme os discursos dos professores, como o aluno vai aprender a escrita e a leitura de uma segunda língua formal, nesse caso, a língua portuguesa? A culpa recai sobre a (in)capacidade do sujeito surdo (“saído da clínica para a escola bilíngue de surdos”). Embora esse cenário seja pano de fundo da nossa realidade, em geral, podemos afirmar que os avanços nas discussões sobre a educação bilíngue são positivos se considerarmos a situação educacional dos surdos. Os caminhos seguem “desbravados”, levando-se em conta que, nas últimas décadas, houve mudanças significativas em forma de legislação e movimentos de lutas. Embora haja resistências em algumas questões, temos de reconhecer que muitas trilhas foram abertas, principalmente por pesquisadores militantes da área e pelas mãos surdas trabalhadoras, mãos que abrem os caminhos com suas bandeiras de luta surda. Contudo, não há como negar que a caminhada ainda é longa e que a mata por onde nos embrenhamos muitas vezes nos impede de ter clareza sobre o caminho que ainda teremos pela frente. Ao mesmo tempo em que vibramos com os avanços, tememos os retrocessos, como, por exemplo, o embate que vem sendo travado, desde 2011, pelos representantes da comunidade surda e do movimento em favor das escolas bilíngues para surdos por meio da Federação Nacional de Educação de Surdos (FENEIS). O clamor dessa comunidade pode ser traduzido por um dos últimos documentos elaborados pelos únicos sete doutores surdos brasileiros, atuantes na área da educação e da linguística, “Carta Aberta ao Ministro da Educação”. Nesse documento, encaminhado ao MEC em 8 de junho de 2012, eles argumentam e apelam em favor dos seus “compatriotas surdos” da comunidade surda brasileira, salientando o “direito de escolha da educação que melhor atende aos surdos brasileiros”, negando a “educação
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inclusiva” como um espaço escolar que propicie a convivência entre surdos e ouvintes e apelando por “uma escola que nos ensine”. O desejo dos surdos, representado nesse documento, é poder livremente compartilhar e conviver com os demais cidadãos na sociedade brasileira – a sua tão sonhada cidadania surda. Hoje, tanto no Brasil quanto em outros países, há pesquisas e experiências que confirmam a condição linguística diferenciada dos surdos usuários das línguas de sinais e a necessidade de valorizar um processo educacional que contemple os aspectos da educação bilíngue: cultura e identidade surdas pensadas num currículo apropriado à especificidade dos surdos, em ambiente de escolarização que valorize as marcas culturais dos sujeitos surdos.
Educação bilíngue e letramento escolar no ensino fundamental: é possível?
Compreender e reconhecer os sujeitos surdos como sujeitos culturais e como comunidade pertencente a contextos de minorias é atual e necessário. O movimento da comunidade surda mundial ganhou visibilidade com o advento do processo de globalização aliado ao cenário atual dos Direitos Humanos, onde está pautada a condição de igualdade como condição humana, igualdade compreendida neste texto pelo viés da diferença, que é, sem dúvida, uma das principais condições da compreensão humana. São, portanto, no nosso entendimento, as condições de possibilidade do momento histórico que vivemos que propiciam as discussões que estamos nos propondo a fazer. Embora haja avanços nas discussões sobre questões tão caras, como a língua de sinais e a educação bilíngue de surdos, esse processo ainda é frágil, não só no caso dos surdos, mas, de modo geral, quando falamos em situações de bilinguismo e dos diferentes contextos de minorias, em que diferentes línguas e diferentes domínios linguísticos estão em jogo.
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O que temos observado nos ambientes pesquisados é a contradição em seus documentos no que diz respeito ao discurso cultural e às práticas pedagógicas relacionadas com o processo de letramento e ao papel das línguas envolvidas no processo bilíngue. Compreendemos que as possibilidades de avanço dependem também da atitude e da simplificação dos processos burocráticos da escola – que por vezes prioriza a engrenagem do sistema educacional geral – em prol do desenvolvimento do processo educacional positivo. Embora a escola priorize o discurso cultural nos seus documentos e falas, na prática, o contexto cultural e linguístico dos surdos é permeado por limitações nas interações linguísticas, havendo ênfase na tradição do formalismo linguístico e na disciplina dos corpos surdos. Constatamos que grande parte das práticas pedagógicas contraria o desejo da pedagogia surda, em favor do modelo educacional baseado na tradição da escola. A sonhada escola bilíngue reproduz em suas práticas o modelo monolíngue e tradicional, desrespeitando, mesmo entre os professores surdos, as práticas educacionais que priorizam o modelo cultural. Em contrapartida, observamos diversas práticas pedagógicas que poderiam ser positivas no contexto bilíngue, mas que são interrompidas e não mais retomadas em virtude da ênfase nas práticas comportamentais, avaliativas, formais e estruturais. A negação e a persistência de práticas de apagamento da diferença surda têm minimizado a importância da língua de sinais na escola e, com isso, agravado os estigmas de que o surdo é deficiente linguístico. Nos últimos tempos, a escola de surdos está aderindo à bandeira de atribuir ao surdo o estigma de sindrômico, hiperativo e deficiente cognitivo, entre outros; dessa forma, apaga a necessidade de uma atitude de escolha política, linguística e cultural menor na escola. A grande questão que fica é que, se pretendemos construir bases para uma proposta de educação bilíngue para alunos surdos, então precisamos debater para
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estabelecer algumas diretrizes. Entre elas, há a necessidade de compreender os sujeitos surdos como minoria social, abandonando-se o estigma de incapacidade, atribuído historicamente a esses sujeitos, seja no sentido da compreensão da deficiência como um déficit, seja na (in)compreensão da sua condição de diferença linguística, pela possibilidade de o sujeito surdo comunicar-se mediante o uso de uma língua de modalidade diferente da língua oral majoritária – a língua de sinais, de modalidade visual-gestual. Enfim, acreditamos na força de mudanças pela execução de políticas educacionais bilíngues que priorizem a língua de sinais e a cultura dos surdos brasileiros. Além disso, acreditamos na força da atitude da escola em tomar a decisão acertada de escolha de uma política local linguística e cultural para além dos seus documentos, mas na prática pedagógica, implicando uma atitude pedagógica que priorize a pedagogia surda. Acreditamos que as forças das políticas surdas, das práticas linguísticas e culturais da escola bilíngue são instrumentos propositivos fundamentais para a sistematização de programas educacionais bilíngues como propostas oficiais para as comunidades de minorias sociais e linguísticas dos surdos brasileiros. Apesar de concordarmos com os avanços na produção de conhecimento e em políticas sobre questões tão caras aos surdos, como a valorização da língua de sinais, o reconhecimento cultural e a educação de surdos, os processos de escolarização na educação, de maneira geral, ainda são frágeis. A atitude de passividade na escolha da política menor da escola tem contribuído de modo significativo para retardar as mudanças linguísticas e culturais que são urgentes e inadiáveis na contemporaneidade. Ainda que um número crescente de instituições no nosso país esteja adotando uma abordagem bilíngue na educação de alunos surdos, há poucos estudos que tratem das condições de letramento positivas e de como o ensino e o aprendizado da língua brasileira de sinais e da língua portuguesa escrita para/por alunos surdos nos primeiros
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anos de escolaridade contribuem para o sucesso do contexto bilíngue. Além disso, Quadros (2005) critica o fato de que muitas das propostas bilíngues estejam estruturadas no sentido de garantir que o ensino do português se mantenha como a língua de acesso ao conhecimento. O ponto chave dessa questão está, a nosso ver, na mudança de concepção de surdez e de língua de sinais que vigora na sociedade e no meio escolar. Na escola, o movimento de ruptura com esses modos de pensar deve ser iniciado e/ou fortalecido, pois os alunos ouvintes só verão as potencialidades culturais dos surdos se forem ensinados a isso, se protagonizarem, nos contextos escolares, práticas bilíngues e biculturais e se partirem do reconhecimento da surdez como uma diferença cultural desses sujeitos (não como uma patologia a ser curada) e da língua de sinais como língua própria da comunidade surda. A LIBRAS precisa ter papel de destaque na educação de surdos, pois ela é fundamental na constituição da identidade desses sujeitos, permitindo-lhes reconhecerse como parte integrante de uma comunidade e de uma cultura; além disso, é um elemento mediador entre os surdos e o meio social em que vivem, por meio do qual demonstram suas capacidades de interpretação do mundo. A língua portuguesa, na modalidade escrita, deve ser inserida no currículo bilíngue como segunda língua dos surdos, incluindo, assim, métodos de ensino focados na sua característica visual e na sua cultura. Nesse sentido, o ideal seria que a escola, mudando a sua concepção de língua como código e partindo para uma visão sociointeracionista, proporcionasse aos surdos o acesso à leitura e à escrita como prática social e cultural de linguagem, criando condições reais para sua inserção nessas práticas, a partir de suas especificidades. Ainda, poderia redimensionar seu olhar sobre a escrita dos surdos, reconhecendo-a como uma escrita surda, que traduz a sua visão de mundo, o seu conhecimento de língua e o seu modo de ser e que, por isso, tem suas particularidades. Assumimos que, da mesma forma como deve ser para os alunos ouvintes, o objetivo do ensino da língua portuguesa escrita para os surdos deve promover a
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compreensão e a produção de textos, e não de palavras e frases isoladas. Por isso, é importante trabalhar muito bem o texto, inicialmente na língua brasileira de sinais. Essa prática serve como base para que os alunos formulem suas hipóteses sobre como funciona a língua portuguesa. A tarefa do professor é viabilizar o acesso do aluno surdo ao universo dos textos que circulam socialmente e ensinar a produzi-los. Com base nessas ideias, pretendemos conhecer e analisar as condições de letramento escolar das crianças surdas nos anos iniciais do Ensino Fundamental no contexto das escolas envolvidas, verificando em que medida a proposta escolar é condizente com a especificidade surda quanto ao ensino e ao aprendizado da LIBRAS e da língua portuguesa na modalidade escrita; se necessário for, intencionamos (re)pensar tal proposta, com a participação dos profissionais envolvidos, para que possa promover, de fato, a aquisição das duas línguas. Acreditamos que, partindo dos anos iniciais do Ensino Fundamental, poderemos acompanhar o processo de ensino e aprendizagem dos alunos surdos nas duas escolas, oferecendo subsídios para a implementação de ações direcionadas ao ensino/aprendizado da LIBRAS e da língua portuguesa na modalidade escrita. Estudos nessa direção, além de oportunizarem o acompanhamento do desempenho dos alunos surdos, possibilitam a (re)análise de práticas pedagógicas e, principalmente, a valorização das potencialidades dos alunos surdos nas suas práticas de letramento escolar. Há riqueza de possibilidades para a construção de práticas pedagógicas significativas. Pelo que temos observado, a grande maioria das práticas pedagógicas já significadas não respalda a educação bilíngue de surdos que defendemos. De maneira geral, as práticas pedagógicas e linguísticas, os currículos e a avaliação das nossas escolas de surdos foram gestados em uma concepção monolíngue. Tal fato agrava-se se pensarmos num contexto onde os sistemas inclusivos priorizam um contexto geral em
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detrimento da escolarização que leva em consideração as especificidades da diferença das minorias. Há indícios de que a escola de surdos não tem planos para construir um processo de ensino e de aprendizado significativo. Os surdos têm o desejo de debater, questionar, vivenciar o conhecimento como possibilidade de vida, algo que parece nem sempre acontecer em sala de aula. Muitas vezes, a troca significativa que ocorre na comunicação com os colegas surdos na escola é vista como “falta de disciplina” pelos professores. Ao defendermos a proposta bilíngue na educação de surdos, pretendemos verificar como ela se evidencia no âmbito das escolas em foco, unindo as pesquisas acadêmicas e comparando nossa realidade a programas bilíngues já executados em outros contextos educacionais. Referências Altenhofen, C. O conceito de Língua Materna e sua implicações para o estudo do Bilingüismo (Alemão-Português). In: Martius-Staden-Jahrbuch, São Paulo, n.49, 2002, p.141-161, disponível em http://www.ipol.org.br/imprimir.php?cod=94 Babha, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2ª Reimpressão, 2003. Brasil. Saberes e práticas da inclusão: desenvolvendo competências para o atendimento às necessidades educacionais especiais de alunos surdos. [2. ed.] / coordenação geral SEESP/MEC. - Brasília : MEC, Secretaria de Educação Especial, 2006. 116 p. (Série : Saberes e práticas da inclusão). Brasil. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005 - Disponível em:
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CRENÇAS E ATITUDES LINGUÍSTICAS DE FALANTES URBANOS DE FOZ DO IGUAÇU Vera Maria Ramos Pinto (UEL)
Desde a década de sessenta do século passado, em diversos países da América e da Europa, sobretudo na Espanha, sociolinguístas e estudiosos de disciplinas de áreas afins têm se preocupado com as crenças e atitudes linguísticas de falantes americanos e europeus. Assim, os estudos sociolinguísticos investigam a língua falada não só nos níveis fonético, fonológico, lexical, morfossintático e semântico, mas também no nível metalinguístico. Estes estudiosos, a exemplo de Moreno Fernández (1998), reconhecem a importância de analisar e discutir as atitudes linguísticas das pessoas, visto que podem fornecer informações de grande valia acerca do que pensam e falam. A esse respeito, Silva-Corvalán (1989, p.38) alega que essas informações podem revelar a posição do falante dentro de um grupo social, seus valores e pré-julgamentos, a classe de pessoas que são ou gostariam de ser. A autora afirma, ainda, que as atitudes positivas ou negativas dos falantes podem ser um indício do futuro de um fenômeno variável enquanto possibilidade de que alguma das variantes se converta em norma categórica. Desse modo, investigações sobre as crenças e atitudes linguísticas integram muitos Atlas europeus, particularmente os espanhois: Atlas Linguístico de Catalunya, Atlas Linguístico-Etnográfico de Andalucía, Atlas Linguístico-Etnográfico de las Islas Canarias e Atlas Linguístico de la Península Ibérica (AGUILERA, 2007). Entretanto, no Brasil, foi no início deste século que o estudo das crenças e atitudes linguísticas de falantes passou a ser visto com mais relevância. Depois disso, seis questões de natureza metalinguística que permitiram avaliar que língua os informantes de 25 capitais e 225 localidades do interior do país creem falar e como
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avaliam as diferenças linguísticas locais e regionais, foram acrescentadas ao Atlas Linguístico do Brasil (ALiB). A inclusão dessas questões metalinguísticas vai ao encontro dos propósitos do Projeto do Atlas Linguístico do Brasil que aponta ser necessário:
Identificar fenômenos linguísticos localizados e específicos de áreas, com vistas a estudar as suas repercussões no ensino-aprendizagem da língua materna; (...) e oferecer ao interessados nos estudos lingüísticos um imenso volume de dados que permita (...) aos autores de livros didáticos adequarem a sua produção à realidade cultural de cada região (ALiB, 1999, p. 9).
Isto posto, Aguilera (2007) pondera que, no caso da geolinguística brasileira, essa é a primeira vez que um Atlas se propõe investigar, mesmo que de modo menos complexo, o que pensam os brasileiros sobre a sua língua, sobre a língua dos que falam diferente em sua cidade, em outros lugares do país e em outras épocas. Desse modo, o Atlas Linguístico do Brasil - ALiB (projeto criado em 1996, na Universidade Federal da Bahia , coordenado por um Comitê Nacional, formado por uma equipe multi-institucional) concluiu a coleta de dados nas capitais brasileiras, e em mais da metade dos duzentos e cinquenta pontos previstos, contando, pois, com um farto material para estudos sob as mais diversas óticas, seja no âmbito da fonética e fonologia, do léxico, da semântica, da morfossintaxe, do discurso e da metalinguística, entre outros. Sendo assim, neste artigo, temos como objetivo descrever as crenças e atitudes linguísticas manifestadas na fala de informantes urbanos naturais da cidade de Foz do Iguaçu, Paraná. Para o presente estudo, serviram-nos de base as gravações e as transcrições grafemáticas das entrevistas que fazem parte da pesquisa qualitativa realizada em Foz do Iguaçu, pesquisa
que
integra o Projeto Crenças e atitudes
linguísticas: um estudo da relação do português com línguas de contato. Esse projeto tem como intuito maior fomentar a integração de grupos de pesquisas voltados para as questões de descrição e análise linguística do português
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falado no Paraná, tanto em comunidades de fronteira como em comunidades de imigração. Assim, a partir de dados coletados in loco, na cidade de Foz do Iguaçu por integrantes do projeto, o corpus desse estudo constitui-se de respostas de 36 informantes, que responderam a um questionário de 57 questões sobre a relação que os falantes de Foz do Iguaçu têm com pessoas que falam outras línguas, tendo em vista que, na população dessa cidade, estão presentes mais de 72 grupos étnicos, provenientes de diversos países a exemplo dos italianos, hispânicos (argentinos e paraguaios), chineses, japoneses, ucranianos e libaneses, além das comunidades indígenas, a maioria delas formadas por índios guaranis, que vivem num raio de 150 quilômetros ao redor de Foz do Iguaçu. Das 57 questões do questionário, selecionamos as respostas dadas às questões nº. 1,
nº.5, nº. 22, nº. 31 (32, 33,34,35 a propósito da questão nº 31) e nº 44
(45,46,47,48,49 a propósito da questão nº.44) para o nosso estudo, a fim de verificar crenças e atitudes linguísticas de falantes naturais de Foz do Iguaçu.
Crenças e atitudes linguísticas O estudo de crenças e atitudes linguísticas surgiu na década de 60 com Lambert (1966) e foi amplamente desenvolvido por sociolinguístas espanhois, a exemplo de López Morales (1979 e 1989); Gómez Molina (1987); Moreno Fernández (1998) e Blanco Canales (2004). Dentre os estudiosos brasileiros, citamos Aguilera (2007 e 2008), cujos trabalhos e pesquisas nortearam o desenvolvimento desse artigo. Para conceituarmos o que vem a ser atitude linguística, apresentamos a definição de Lambert e Lambert (1972, p.77) “ uma maneira organizada e coerente de pensar, sentir e reagir em relação a pessoas, grupos, questões sociais, ou mais genericamente, a qualquer acontecimento ocorrido em nosso meio circundante”. E a de Moreno Fernández (1998, p. 179): “a atitude linguística é a manifestação da atitude social dos indivíduos, identificada por centrar-se e referir-se tanto à língua como ao uso que dela se faz em sociedade”.
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Assim, a análise das crenças e atitudes linguísticas de falantes tem se demonstrado crucial para a investigação sociolinguística. A esse respeito, temos o posicionamento de Gómez Molina, citado por Aguilera (2008, p. 105), que menciona que a importância de que se reveste a atitude linguística de uma comunidade de fala, uma vez que atua de forma muito ativa nas mudanças de código ou alternância de línguas, constitui-se como fator decisivo, junto à consciência linguística, na explicação da competência dos falantes. Além disso, permite ao pesquisador aproximar-se do conhecimento das reações subjetivas diante da língua e/ou línguas que usam os falantes e das influências na aquisição de segundas línguas.Desse modo, as atitudes linguísticas podem ser definidas por meio de duas linhas de pesquisa: a dos mentalistas e a dos condutistas. Na perspectiva da linha mentalista, consoante Blanco Canales (2004), as atitudes podem ser consideradas um estado mental do indivíduo que é capaz de escolher as suas respostas de acordo com a situação a que está condicionado. Logo, o estado de relacionamento é que irá determinar as atitudes linguísticas do falante. Isso posto, três elementos são elencados na composição das crenças e das atitudes da linha mentalista, a saber: o componente cognitivo- que são conhecimentos, pré-julgamentos, crenças, estereótipos, características de personalidade; o componente afetivo- baseado nos juízos de valor acerca das características da fala; conativo- que é a intenção da conduta. É a tendência de reagir com o interlocutor. Já, na linha condutista, a atitude é definida como uma resposta, uma conduta diante de um estímulo, ou seja, a resposta ou comportamento de uma pessoa em uma situação social determinada. Portanto será o momento social que irá determinar o comportamento linguístico de um falante. Sob a perspectiva dessa linha, há dois tipos de análise: a indireta (técnica do matched-guise desenvolvida por Lambert (1966) e a direta. Por meio da análise indireta, o entrevistador escuta uma série de gravações e tenta, dessa forma, caracterizar o indivíduo por sua fala. Já, na análise direta, o entrevistado é exposto a entrevistas ou questionários. Essas questões podem ser abertas,
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com respostas livres ou fechadas, cujo informante adaptará as respostas de acordo com o que o investigador propõe. Como exemplo de questão aberta, podemos citar a seguinte pergunta: O que você pensa dos Argentinos? E, de questão fechada: Os argentinos são educados ou mal educados? Dessa forma, no que diz respeito à modalidade de coleta de dados acerca de crenças e atitudes, Aguilera (2008) menciona que há divergência entre os autores quanto ao instrumento a ser utilizado. Uns adotam a proposta de Lambert (1966), a técnica do matched-guise, e outros preferem desenvolver suas pesquisas por meio de questionários ou por meio de entrevistas. A pesquisa, realizada em Foz do Iguaçu, foi feita por meio de entrevista estruturada, visando à análise qualitativa dos dados. Os entrevistados responderam perguntas aplicadas pelos entrevistadores com base em um
questionário, que foi
adaptado à localidade investigada em conformidade com a composição étnica da comunidade. As entrevistas foram gravadas e, de todo o corpus oral coletado, foi feito transcrição grafemática.
Procedimentos metodológicos O município de Foz do Iguaçu situa-se no oeste do estado do Paraná, divisa com a Argentina e com o Paraguai.Tem população estimada em 263.647 habitantes, segundo dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2014). Nesta cidade, foram entrevistadas 36 pessoas, que responderam 57 questões de um questionário que abordou questões étnicas. Entretanto, tivemos acesso às respostas de 33 informantes, pois a gravação da entrevista de três
informantes
ficou
comprometida. As entrevistas com os três informantes foram realizadas novamente, mas não tivemos oportunidade de ouvi-las. Os 36 informantes foram estratificados socialmente, com base em três variáveis: a) variável diageracional (faixa etária)- contemplou-se três faixas etárias: 18-30; 31-50 anos; 51-70 anos, b) variável diastrática: nível de escolaridade, nível fundamental; nível médio e nível superior e c) variável diassexual: contemplando sujeitos do sexo
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masculino e feminino. Sempre dois informantes em cada célula: dois homens e duas mulheres. Das 57 questões do questionário, selecionamos para análise as respostas dadas às questões de nº. 1: Qual língua você fala; a de nº. 5: Em Foz do Iguaçu existem pessoas que falam diferente de você?; a de nº. 22: Que língua(s) os que alam diferente na cidade falam; às de nº. 31, 32, 33, 34, 35, que indagam, respectivamente: No caso de comprar uma casa, compraria essa casa num bairro onde só houvesse argentinos, paraguaios, chineses, falantes do jopará e do guarani? as de nº. 44, 45, 46, 47, 48 e 49, respectivamente, cujo entrevistador quer saber se o entrevistado (a) namoraria ou se casaria com um(a) argentina (o), um(a) paraguaia (o) ,um(a) guarani ,um(a) falante do jopará, um(a) árabe,um(a) chinês (a). As questões de nº. 31 ao nº. 49 pedem que o informante justifique as respostas. Assim, por meio das questões selecionadas, apresentamos descrição das respostas dos entrevistados a essas perguntas com o propósito de: a) descrever a crença e as atitudes linguísticas de falantes brasileiros naturais de comunidades fronteiriças e de imigração em relação à língua materna, à segunda língua e/ou à língua de contato; b) analisar dados sobre manifestações linguísticas indicativas da cultura da região de fronteira e de contato; c) identificar fatores decorrentes da crença linguística que conduzem a atitudes negativas em relação à língua e ao grupo do outro.
Análise das respostas Em relação à pergunta nº 1: Que língua você fala? A análise das respostas, ouvidas e transcritas, dos 33 informantes: 24 (72%) responderam que falavam o português; 7 (21% ) responderam que falavam português e outra língua estrangeira inglês ou alemão, ou espanhol ou italiano. Um (1) respondeu que falava o “portunhol”,mistura do português com o espanhol, comum em cidades fronteiriças como Foz do Iguaçu. E um (1) informante respondeu que falava em nível intermediário o inglês e o espanhol e mais nenhuma língua. Uma resposta que consideramos curiosa, pois quando a entrevistadora lhe perguntou se não falava mais nenhuma língua, respondeu
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categoricamente que não. Foi o único informante, falante do português, que não respondeu que falava a língua portuguesa. Atitude de desvaloração da língua portuguesa. No que diz respeito à pergunta nº. 5: Aqui em Foz do Iguaçu existem pessoas que falam diferente de você? Todos os informantes responderam que sim, que existiam pessoas que falavam diferente. E quando responderam à pergunta de nº. 6 “Que língua(s) eles fala(m) os que falam diferente aqui?” As línguas mais citadas pelos informantes foram o espanhol (23 informantes); árabe (19); chineses (15); guarani (14); inglês (9); italiano (6); francês (1), alemão (2), ucraniano(1), Indu (1), portunhol (2) e o japorá (1), mistura do espanhol com o guarani.Vale ressaltarmos, aqui, que cada informante, muitas vezes, citava mais de uma língua. Quanto à pergunta nº. 22: Falam melhor os que falam o português ou os que falam essas línguas de que falamos? Dos 33 entrevistados, 18 (54%) responderam que a nossa língua, o português é melhor com relação às outras. E 11 (33%) informantes consideram outras línguas melhores que a nossa, a exemplo do informante que declarou: “As outras línguas porque eu acho que ninguém consegue falar o português correto, né?”
E outro: “Eu acho que o estrangeiro fala melhor a língua deles. Apesar de que o nosso português ele é muito cheio de particularidades e as outras línguas parece que não são tão cheia de regras como o português é”.
Quatro (12 %) entrevistados mantiveram neutralidade na resposta, alegando não conhecer os outros idiomas, por isso não poderiam julgar se esses falantes falavam melhor que os falantes do português ou não. Em relação às perguntas nº. 31, 32, 33, 34 e 35, respectivamente: Se você fosse comprar uma casa num bairro onde só houvesse falantes argentinos, paraguaios, chineses, árabes, falantes do jopará, falantes do guarani, você compraria? Por quê? Apenas quatro (12%) informantes responderam que não comprariam casa onde morassem falantes argentinos, paraguaios, chineses, japorás e guaranis. As justificativas foram que não haveria interação entre vizinhos, por não entenderam a língua que eles falavam.
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Nove (27%) dos informantes responderam que comprariam casa onde residissem esses falantes. Disseram não ter problema algum com esses falantes. Um (1) informante, porém, apesar de dizer que compraria casa onde residissem esses falantes, alegou que compraria casa onde residissem só falantes argentinos com um pouco de tristeza, pois considera os argentinos soberbos demais. Os outros 19 (57%) informantes já mostraram contrariedade em comprar casa ora onde residissem falantes chineses, ora não comprariam onde residissem falantes árabes, falantes paraguaios, ou falantes do jopará
ou do guarani ou argentinos.
Mostraram alguma contrariedade mais específica com relação a um ou mais desses falantes. E, com relação às perguntas 44, 45, 46, 47, 48 e 49 questionam, respectivamente: Você namoraria ou se casaria com um (a) argentina (o)? Por quê? Você namoraria ou se casaria com um (a) paraguaia (o)? Por quê? Você namoraria ou se casaria com um(a) guarani? Por quê? Você namoraria ou se casaria com um (a) falante do jopará? Por quê? Você namoraria ou se casaria com um(a) árabe Por quê? Você namoraria ou se casaria com um (a) chinês (a)? Por quê? Das respostas analisadas, 11 (33%) dos informantes responderam que namorariam ou se casariam com um (a) argentino (a), ou um(a) paraguaio (a), ou um (a)falante do guarani, um (a) falante do jopará, um (a) árabe, ou um(a) chinês(a). Apenas quatro (12%) dos 33 informantes, declararam que não namorariam e não se casariam com um(a) argentina(a), ou um(a) paraguaio (a), ou um (a)falante do guarani, um (a) falante do jopará, um (a) árabe, ou um(a) chinês(a). Uma informante justificou: “Eu acho que a cultura é diferente, é muito difícil de conviver, eu sei por que eu tenho amigas casadas com estrangeiros e olha, é muito difícil, muito complicado”.
Os demais informantes, 17 (51%) manifestaram vontade de se casar com argentino (a) e paraguaio (a) e contrariedade em se casar com um (a) árabe, um (a)chinês (a), outros manifestaram vontade de se casar com um(a) chinês(a), um(a) árabe, um (a) guarani, um (a) falante de jopará, mas contrariedade em se casar com um(a) argentino (a) ou um (a) paraguaia(a). As justificativas de informantes que não namorariam e não se casariam com um (a) árabe: “Árabe não, né. Esse negócio de dividi o marido...”
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“Porque eles podem ter várias mulheres. Sem contá que ainda têm alguns que qué pegá a mulher e andá do jeito deles, né, então não, com árabe não casaria não”.
Considerações finais As crenças e atitudes dos falantes entrevistados em Foz do Iguaçu demonstram que, quanto à
língua que falam, dos 33 informantes,
somente dois informantes
declararam não falar o idioma português, 93 %, são falantes do português. A resposta precisa desses informantes que afirmaram falar o português pode ser devido a terem consciência de que moram em uma cidade fronteiriça, bastante miscigenada, conforme constatamos na resposta à pergunta de nº. 5, quando todos os entrevistados (100% ) responderam que existem pessoas que falam diferente na cidade e o espanhol foi a língua mais citada. Ademais, essas constatações permitiram-nos verificar que tal consciência linguística é independente do sexo, da faixa etária e do nível de escolaridade. No que diz respeito à língua que consideram a melhor: se a língua materna, se a segunda língua e/ou se a (s) língua (s) de contato, 54 % dos informantes responderam que o português é a melhor com relação às outras línguas, atitude linguística que demonstra valoração da língua materna, lealdade linguística da parte dos entrevistados. Já que é a língua que falam e entendem, não há porque de não ser melhor que as outras. Consideramos, também, a atitude dos falantes que não responderam se o português era melhor que as outras línguas ou não, como de valoração da língua materna, pois eles não fizeram nenhum comentário negativo com relação ao nosso idioma. Preferiram não julgar a melhor, pois não conheciam as outras. Os informantes que disseram que as outras são melhores, a mais citada foi o espanhol falado pelos argentinos. Eles demonstraram, de certo modo, preconceito linguístico quanto ao português falado pelos brasileiros, considerando que muitos falam “errado” e os argentinos, por exemplo, falam melhor o idioma oficial deles. Com relação às perguntas que questionaram se o entrevistado, caso fosse comprar uma casa, compraria em um bairro onde só morassem falantes argentinos, paraguaios, chineses, falantes do jopará, falantes do guarani, pelas respostas
e
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justificativas dadas, observamos que as pessoas que se negaram a morar nesses bairros, alegaram, a grande maioria, ser por considerarem a interação com os vizinhos falantes de outras línguas comprometida, pois eles não iriam se entender, já que falam línguas diferentes. Dos quatro informantes que declararam não comprar casa onde morassem falantes argentinos, paraguaios, chineses, joparás e guaranis, três são mulheres, cada uma de uma faixa etária, 18-30; 31-50; 51-70. Duas têm apenas o ensino fundamental (18-30; 51-70); a outra, o ensino médio. O quarto informante, do sexo masculino, pertence à faixa etária 31-50 e tem o ensino fundamental. Constatamos que as maiores rejeições foram com os falantes chineses e falantes do guarani , seguidas dos falantes do jopará, falantes paraguaios e falantes argentinos. A rejeição foi mais linguística mesmo. Ademais, foi-nos possível identificar algumas atitudes negativas com relação à língua e ao grupo do outro na fala de dois informantes. Um deles, disse que os paraguaios têm fama de traiçoeiros e outro, apesar de ter afirmado que moraria em bairro de argentinos, considera os argentinos soberbos. Ambos consideram os chineses pessoas recatadas e fechadas. Essas manifestações linguísticas apresentam julgamentos baseados na conduta e valores éticos e morais do outro. Já, na análise das respostas dadas às questões que indagaram se o informante namoraria ou se casaria com um (a) argentina (o); com um(a) paraguaia (o),com um(a) guarani, com um(a) falante do jopará, com um(a) árabe com um(a) chinês (a), manifestações linguísticas, indicativas da cultura da região de fronteira e de contato, foram mais explícitas. A resposta de um informante, sexo feminino, 50-70 anos, ensino médio completo, pessoa bastante experiente, exemplifica essa manifestação: “Eu acho que a cultura é diferente, é muito difícil de conviver, eu sei por que eu tenho amigas casadas com estrangeiros e olha ... é muito difícil, muito complicado”.
Ainda, por meio das justificativas, identificamos algumas crenças linguísticas que conduziram a atitudes negativas em relação à língua e ao grupo do outro, principalmente em relação aos árabes. A crença que levou a rejeição aos árabes foi
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manifestada, principalmente, por mulheres e foi, também, com relação à cultura, costumes e hábitos. Os árabes foram tachados de mulherengos. Isso porque, na cultura deles, um homem pode ter várias esposas e as brasileiras não aceitam a bigamia, a poligamia. Além do mais, os árabes são rudes com as pessoas e enérgicos com relação a seguir os costumes e as tradições do país. Muitos homens disseram que não se casariam com mulheres estrangeiras porque as acham feias. O fator aparência prevaleceu mais do que a personalidade, o caráter, a integridade da pessoa. Desse modo, constatamos que a maior rejeição, quanto a namorar ou a se casar, ficou com os chineses, seguida dos árabes, falantes do jopará, falantes do guarani, falantes paraguaios (as) e, o menos rejeitado, o foi (a) argentino (a). Dez informantes disseram não ter problemas em se casar com pessoas de outras etnias, estrangeiros. A maior aceitação em se casar com qualquer um desses falantes, independente da nacionalidade e da língua, foi a de cinco (5) informantes cujo nível de escolaridade é o superior: três homens e duas mulheres. A resposta de três informantes foi a de que o amor era base da relação e o suficiente para o namoro e o casamento. Diante do que foi exposto, observamos que as atitudes ou os posicionamentos que um indivíduo tem em relação a usuários de outras línguas pode ser um forte fator que irá refletir nas atitudes ou nos posicionamentos que ele terá com aqueles que falam outras línguas e pertencem a outras etnias.
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CONSCIÊNCIA TEXTUAL NAS RELAÇÕES ENTRE LEITURA E ESCRITA Vera Wannmacher Pereira (PUCRS) Introdução As dificuldades na compreensão da leitura e na produção escrita, evidenciadas nos resultados de provas oficiais de diversos âmbitos, podem estar relacionadas à perspectiva dos professores no que se refere a esses aspectos. No ensino da leitura e da escrita, com freqüência os aspectos temáticos preponderam sobre os lingüísticos. Isso faz com que os professores preocupem-se primeiramente em eleger um tema e em torno dele organizar atividades de leitura e de escrita, reservando os tópicos lingüísticos para uma posição secundária, de modo geral classificatória. Os estudos lingüísticos disponibilizam conhecimentos importantes para a modificação dessa perspectiva e, portanto da ação pedagógica. Entre eles, os estudos oriundos da Psicolinguística e dos Estudos do Texto, especialmente no âmbito da interface, têm importante contribuição para essa mudança por meio do tópico da consciência textual. Os estudos psicolingüísticos oferecem informações importantes sobre a compreensão leitora e o seu processamento cognitivo (GOODMAN, 1991) e sobre a consciência textual (GOMBERT, 1992); (DEHAENE, 2009), posicionando a leitura como paradigma para a escrita (SMITH, 1983). Os estudos de Ferreira & Spinillo (2003) contribuem para aprofundamento dessa perspectiva. Como decorrência, os professores têm a possibilidade de incluir em seus planos de aula atividades de compreensão de textos de gêneros diversos. Os Estudos do Texto disponibilizam importantes conhecimentos sobre gêneros textuais, no que se refere à função social do texto, à sua situação de uso e às marcas decorrentes da função e da situação (BAZERMAN, 2009) e às sequências dominantes (ADAM, 2008), o que disponibiliza ao professor uma possibilidade de caminho produtivo. Oferecem também conhecimentos sobre a organização lingüística textual, em relação à superestrutura e às relações de coerência (CHAROLLES, 1978) e de coesão lexical e gramatical (HALLIDAY & HASAN, 1976).
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No entanto, esses dois caminhos teóricos ainda não estão presentes no ensino de modo convergente, o que faz com que os professores não reconheçam que, embora a relevância temática, no ensino de língua a relevância sobre os processos lingüísticos e a consciência textual deve preponderar, conferindo à leitura o papel de paradigma para a escrita, do que decorre a necessidade de trabalho com o mesmo gênero textual nas atividades de compreensão leitora e de produção escrita e com o desenvolvimento da consciência textual (GOMBERT, 1992). Neste artigo, essa perspectiva é explicitada em seus fundamentos e em suas possibilidades de aplicação lingüístico-pedagógica. 1. Consciência O interesse pelo funcionamento da consciência humana vem de longe, atravessando os tempos, em diferentes perspectivas, se intensificando à medida que não são encontradas soluções para o aprendizado e para o ensino, especialmente da leitura e da escrita, e evoluem as tecnologias e os procedimentos para sua investigação. Em Platão, a consciência está ligada ao mito da caverna, abrangendo o domínio das coisas sensíveis (as sombras percebidas) e o domínio das idéias (as luzes da verdade), que se realiza na libertação do homem que vive a dialética desses mundos. Nas reflexões filosóficas, está vinculada à essência humana, àquilo que o distingue e o define. Nas análises psicológicas, está associada às relações com a cognição. Nos estudos neurocientíficos, os mais recentes, está presente nos processamentos cerebrais. Entre esses estudos, ganham relevância os desenvolvidos por Baars (1993), Bachler (2006) e Dehaene (2009). Conforme Baars (1993), há um espaço global que funciona como um processador central que recebe informações dos processadores especializados. Nesse espaço global, espécie de quadro comunitário, estão os conteúdos conscientes. De acordo com Bachler (2006), apoiado em Chafe, a consciência tem um foco circundado por informações que proporcionam um contexto, é dinâmica, tem um ponto de vista, necessita de uma orientação. Desse modo, é um traço central da mente, o que significa que ela é indispensável para compreender e para realizar qualquer processo cognitivo. Segundo Dehaene (2009), apenas a partir do tempo de 270-300 milissegundos, é possível ver diferença entre o processamento consciente e o inconsciente. Isso ocorre a partir do momento em que diferentes áreas do cérebro
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entram em sincronia. Desse modo, a consciência não é realizada por uma área sozinha do cérebro, mas pela sincronia entre muitas regiões, a partir de um tempo de trabalho, conforme indicado acima. 2. Consciência linguística Essas concepções de consciência, especialmente as de Dehaene (2001, 2007, 2009), são importantes para tratar especificamente da consciência lingüística. Pode ser então explicitada como apresentando as seguintes propriedades: ativa em sincronia diversas áreas do cérebro; tem um foco linguístico específico; utiliza informações periféricas a esse foco – o contexto; é intencional na busca da análise de algum ponto específico. A consciência linguística, que aqui interessa especialmente por seu vínculo com a compreensão do texto, pode estar voltada para o conhecimento da própria linguagem em todos os modos de constituição e organização, estando predominantemente associada à memória declarativa e pode estar direcionada para o manejo desses elementos linguísticos, associando-se especialmente à memória procedimental. Nesse entendimento, a consciência linguística pode focar determinado segmento linguístico, considerando sempre o contexto dos demais segmentos. Essa condição faz com que ela seja categorizada de acordo com cada um desses segmentos em foco, sendo importantes os estudos de Gombert (1992) e de Mota (2009). A consciência fonológica tem como foco os fonemas (consciência fonêmica) e as sílabas (consciência silábica) que constituem a estrutura da língua e as propriedades entonacionais e rítmicas da língua em uso. Pode voltar-se para o segmento inicial, para o segmento medial ou para o segmento final. Pode ainda ter em vista processos de supressão, inserção, substituição, comutação, separação e junção. A consciência morfológica tem como focos: o vocábulo – limites do seu começo e fim, a estrutura (constituintes lexicais e gramaticais), os processos flexionais (gênero, número, pessoa/número, tempo/modo) e os processos derivacionais. A consciência sintática direciona seu olhar para a frase internamente: seu limite (início e final da frase), estrutura da oração (constituintes e ordem), estrutura do período
(constituintes
e
ordem),
processos
de
construção
(coordenação/subordinação/misto, paralelismo, combinações entre as palavras) e
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pontuação. A consciência léxico-semântica abrange o léxico mental, o significado e o sentido. A consciência pragmática volta-se para a situação de uso da língua – o texto é considerado do ponto de vista do enunciador/receptor, do objetivo, do suporte comunicativo, do momento e espaço da comunicação. A consciência textual focaliza o texto em suas relações textuais internas e suas relações com o contexto. Sendo essa consciência um dos eixos deste artigo, está mais densamente desenvolvida a seguir. 3. Consciência textual Conforme Gombert (1992), a consciência textual focaliza a superestrutura, a coerência e a coesão do texto. A superestrutura envolve os traços que definem o texto como um determinado gênero, contribuindo para isso a situação comunicativa (autor, leitor, tempo, espaço, suporte) e o modo de organização - moldura, componentes constitutivos (unidades lingüísticas), sequências dominantes - narrativa, descritiva, argumentativa, injuntiva, expositiva (ADAM, 2008), traços linguístico-estruturais (próprios dos diversos planos linguísticos). A coerência se refere predominantemente ao conteúdo e suas relações internas e com o entorno, que podem ser explicitadas com base em Charolles (1978) – a manutenção do tema, indicando que o texto deve girar em torno de um eixo temático; a progressão do tema, indicando que o tema, embora precisando ser mantido, deve, ao mesmo tempo, progredir, avançar, se desenvolver; a ausência de contradição interna, indicando que não pode haver contradições temáticas ou linguísticas (emprego dos tempos e das pessoas verbais); a relação com o mundo, indicando que as afirmações têm que ter vínculo com a realidade – de verdade no caso do texto não ficcional e de verossimilhança no caso do texto ficcional. A coesão consiste nos liames linguísticos do texto que contribuem para sua amarração e, assim, para a construção de seus sentidos. Apresenta-se em duas dimensões – a coesão lexical e a coesão gramatical (HALLIDAY; HASAN, 1976). A coesão lexical realiza-se por meio de relações entre vocábulos lexicais – substantivos, adjetivos e verbos. Essas relações constituem-se em um conjunto de regras: repetição de palavra – com frequência ocorre com o substantivo quando se constitui em palavra-
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chave; sinonímia ou quase-sinonímia – consiste na substituição vocabular para o mesmo referente, evitando a repetição excessiva e favorecendo a evolução do conteúdo; superordenado – estabelece relação de inclusão entre hiperônimo e hipônimo; associação por contiguidade – consiste na aproximação de vocábulos de um mesmo campo semântico. A coesão gramatical ocorre por meio de relações entre vocábulos gramaticais – preposição, conjunção, advérbio, pronome, artigo, numeral. Essas relações se expressam em um conjunto de regras: referenciação – retomada de elemento linguístico (referente) por meio de pronomes (referência); elipse – retomada vazia de um referente, podendo ser de uma palavra, de um segmento, de uma frase, de um parágrafo...; conjunção – relação de conexão estabelecida por elementos gramaticais: de adição, de tempo, de causa, de oposição, de continuidade. Tendo a consciência textual como ponto de atenção o texto, é preciso ter presente que ele é organizado em planos linguísticos que se inter-relacionam e se amarram – o fônico, o morfológico, o sintático, o léxico-semântico, o pragmático e o textual. Desse modo, a observação da superestrutura, da coerência e da coesão implica a observação de todos esses planos e de todas as unidades lingüísticas constitutivas do texto. Isso significa que a consciência textual direciona sua atenção para a superestrutura, a coerência e a coesão, mas no trânsito por todos os planos lingüísticos e as unidades que os constituem. 4. Leitura e escrita: processamento Considerando a natureza da consciência textual, acima explicitada, e da leitura/escrita como processamento cognitivo, conforme exposição a seguir, evidenciam-se seus vínculos. Nessa acepção, a leitura/escrita é realizada fundamentalmente por meio de dois processamentos simultâneos – bottom-up e top-down (SCLIAR-CABRAL, 2008). O processamento bottom-up caracteriza-se como ascendente, fazendo o movimento do texto em direção à cognição. Constitui-se numa atividade, minuciosa, vagarosa, em que todas as pistas visuais são utilizadas. É um processo de análise e de síntese em que, após o reconhecimento/uso da palavra escrita, vão sendo construídos os
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sentidos, gradativamente, de palavras, frases, orações, até a macroestrutura, graças ao cruzamento com as informações oriundas do processamento top-down. Esse tipo de processamento caracteriza-se como um movimento que provém dos conhecimentos prévios armazenados nas várias memórias, sejam eles linguísticos ou extralinguísticos, baseando-se na concepção antecipatória da leitura/escrita, segundo a qual são utilizadas simultaneamente as informações linguísticas do texto e os conhecimentos prévios do leitor. Em ambos os tipos de processamento, mas especialmente no top-down, esses conhecimentos já armazenados assumem papel importante, na medida em que guiam os olhos do leitor/escritor na busca das pistas e encaminham as inferências durante o processo de leitura/escrita. Os conhecimentos prévios estão organizados em redes hierarquizadas que se conectam internamente e entre si – os esquemas cognitivos. São tais representações armazenadas na memória de longo prazo que interagem com o que está escrito no texto, permitindo ao leitor/escritor preencher os vazios que ali estão. Isso significa que a dificuldade de ler e escrever pode estar vinculada à ausência de esquemas cognitivos consistentes ou a dificuldades no uso de procedimentos para ativá-los. Esse fato pode afastar o aluno da leitura e da escrita, não gerando a construção de novos esquemas. Trata-se de uma situação circular que precisa ser rompida, sendo certamente o próprio processo de leitura, ao lado da diversidade de experiências, o caminho para o estabelecimento desses esquemas e, consequentemente, do desenvolvimento da compreensão leitora e da competência de escrita. O processo cognitivo de leitura/escrita se altera (GOODMAN, 1991) a partir de algumas variáveis: objetivo do ato, conhecimento prévio do conteúdo de leitura/escrita, situação de comunicação do texto, natureza do texto a ser lido/escrito e estilo cognitivo do leitor/escritor. Tais variáveis determinam o processo cognitivo – ascendente ou descendente. Smith (2003) considera que a informação não visual é de grande importância, uma vez que o significado, que é indispensável para o sujeito, está não só nas marcas deixadas pelo autor no texto, mas nos conhecimentos prévios sobre o assunto e sobre a linguagem que o leitor traz e que podem fazê-lo perceber
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determinados aspectos do texto. Essas marcas paradigmáticas, se conscientes, são transpostas para a sua escrita. Nesse sentido, os dois movimentos são utilizados pelo leitor/escritor, dependendo da situação que se apresenta durante a leitura/escrita. O sucesso do desempenho na compreensão da leitura e na produção escrita está na escolha do processo mais eficiente para dar conta dessa situação, em que variáveis se inter-relacionam e influenciam as decisões do leitor/escritor. O processamento cognitivo da leitura ocorre através de dois grupos básicos de estratégias: cognitivas e metacognitivas (PEREIRA, 2009). As cognitivas caracterizamse pelos traços intuitivo e inconsciente, enquanto as metacognitivas caracterizam-se pela consciência, pela intenção de monitoramento do próprio processo. Constituem-se em estratégias cognitivas pressuposições intuitivas do sujeito, como a de que a escrita, em nossa cultura, ocorre da esquerda para a direita. Constituem-se em estratégias metacognitivas situações de monitoramento do processo com o objetivo de garantir a compreensão e a eficiência da escrita. O exame dessas estratégias expõe os elementos que internamente as constituem e que estão distribuídos nos planos constitutivos da língua – fônico, mórfico, sintático, semântico e pragmático. A revisão de literatura sobre o assunto indica a existência de um conjunto de estratégias vinculadas aos processamentos (PEREIRA, 2006) do leitor/escritor, entre elas: skimming (percepção global do texto); scanning (busca de alguma informação específica); predição (antecipação do conteúdo); análise detalhada (observação linear, minuciosa); inferência (dedução com base em dados do texto, do contexto e dos conhecimentos prévios do leitor/escritor); automonitoramento (acompanhamento da própria leitura e da própria escrita), autoavaliação (verificação da produtividade da sua leitura e da sua escrita) e autocorreção (alteração dos seus procedimentos de leitura e escrita). Considerando os fundamentos aqui expostos, desenvolver a leitura e a escrita na sala de aula supõe assumi-las como processos cognitivos que utilizam estratégias cognitivas e metacognitivas, o que exige dar um lugar especial ao funcionamento linguístico do texto e à consciência do leitor/escritor sobre ele, isto é, à sua consciência
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textual. Esses processos e essas estratégias transitam na leitura e na escrita evidenciando vínculos que situam a primeira como paradigma para a escrita (SMITH, 1983). Nesse entendimento, são feitos encaminhamentos para o ensino no tópico a seguir. 5. O trabalho linguístico-pedagógico Os conhecimentos provenientes da Psicolinguística e dos Estudos do Texto fundamentam um ensino direcionado para o desenvolvimento da consciência textual que está na base das relações entre leitura e escrita, favorecendo o aprendizado dos alunos. Um trabalho lingüístico-pedagógico com essa perspectiva leva em consideração alguns princípios: - o processamento da leitura constitui-se em paradigma para o processamento da escrita; - a consciência textual consiste num processamento cognitivo com ativação de áreas cerebrais em sintonia em torno de um foco; - a consciência textual tem como eixos a superestrutura , a coerência e a coesão do texto; - a consciência textual tem vínculos com os diversos planos linguísticos, portanto com os diferentes níveis de consciência lingüística; - a consciência textual está na base das relações entre leitura e escrita, norteando seu aprendizado e seu ensino. Considerando esses princípios e tomando como referência um trabalho em turma de 4º ano, com uma cantiga, como a apresentada a seguir, o percurso lingüísticopedagógico para desenvolvimento da consciência textual pode ser o exposto logo após. O cravo e a rosa O cravo brigou com a rosa Debaixo de uma sacada. O cravo saiu ferido E a rosa despedaçada. O professor inicia o trabalho escrevendo a cantiga no quadro. Após, realiza sua leitura e canta-a com as crianças. Faz então perguntas aos alunos sobre a superestrutura do texto - o formato (título, distribuição em versos, número e extensão dos versos), a
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relação entre o texto escrito e o texto cantado, a estrutura de quadrinha cantada. A cada passo, cabe-lhe solicitar que expliquem suas respostas, de modo a favorecer o desenvolvimento da consciência textual. Nesse momento, pode estimular a memória dos alunos sobre conhecimentos prévios referentes a essa cantiga e a outras e provocar a observação dos traços pragmáticos – se as conhecem, de onde vêm esses conhecimentos, como se mantêm ao longo dos tempos, para que servem, em que situações são cantadas, se têm um autor identificado, se são escritas, em que suportes são veiculadas. Pede também que expliquem como chegaram a essas conclusões. Dando seguimento, propõe análise do plano léxico-semântico – as palavras da quadrinha e a coesão lexical que estabelecem – o significado de cada palavra, as possibilidades de significado de saiu, as palavras que se repetem (cravo, rosa), as associações em contigüidade (despedaçada/ferido, rosa/despedaçada, cravo/ferido, cravo/brigou/rosa/sacada). Estimula também a observação da coerência do texto - o tema da cantiga, sua evolução e as relações entre os tópicos de desenvolvimento. À medida que a análise é realizada solicita aos alunos que expliquem suas respostas, de modo que reflitam sobre os próprios processos desenvolvidos. Posteriormente, encaminha a análise do plano morfossintático em seus elementos de coesão gramatical, salientando: a ordem das palavras de cada verso, as palavras uma antes de sacada, o antes de cravo e a antes de rosa, a palavra e associando os dois últimos versos, a elipse de saiu no último verso. Como último ponto de análise, propõe aos alunos que observem a rima (plano fônico) sacada/despedaçada e o ritmo dos versos, salientando a importância na construção de um texto dessa natureza. Fechando as análises lingüísticas do texto, o professor propõe reflexões individuais e coletivas sobre o que aprenderam e como aprenderam, de modo a desenvolverem a consciência textual. Realizado o trabalho de leitura/análise da cantiga, está constituído o paradigma para o estudo e a produção de outras cantigas. Solicita então aos alunos que façam um álbum de cantigas, recolhendo-as em suportes diversos e por meio de entrevistas a
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familiares e produzindo-as com base nos conhecimentos construídos. Esses álbuns podem ser partilhados com os colegas da turma e de outras turmas da escola. Considerações finais No presente artigo, conforme seu título, o eixo é a consciência textual nas relações entre leitura e escrita. Para seu desenvolvimento são utilizados conhecimentos provenientes da interface Psicolinguística e Estudos do Texto. Tais conhecimentos, que se referem especificamente a consciência, consciência linguística, consciência textual e processamento da leitura e da escrita, dão sustentação teórica ao desenvolvimento do eixo estabelecido e aos encaminhamentos linguísticopedagógicos propostos. Nessa perspectiva, são definições teórico-metodológicas importantes para o aprendizado e o ensino da leitura e da escrita com base no desenvolvimento da consciência textual: - a consciência textual está vinculada ao processamento da leitura e da escrita; - a consciência textual abrange a consciência sobre a superestrutura, a coerência e a coesão do texto; - a consciência textual dirige-se para os planos constitutivos da língua, do que decorre sua interação com os diversos níveis de consciência linguística; - o desenvolvimento da compreensão leitura e da competência de escrita é favorecido pelo desenvolvimento da consciência textual; - as relações entre leitura e escritas são consistentes no que se refere ao aprendizado e ao ensino; - a leitura consiste em paradigma para a escrita. Por último, cabe salientar ainda a importância da interface Psicolinguísitca e Estudos do Texto para o desenvolvimento desses campos de estudo e para a construção de caminhos favorecedores do aprendizado e do ensino da leitura e da escrita.
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INCORPORANDO O OUTRO ATRAVÉS DOS ATOS SOCIAIS. Wagner Ferreira Lima (UEL) Não há dúvida de que as identidades são criações simbólicas. Elas se sustentam na base de um sistema de oposições distintivas que se definem na comunicação por meio dos atos de fala (“ser brasileiro”, p. ex., é o mesmo que “não ser americano, chinês, argentino etc.”; e as características positivas de “ser brasileiro” se estabelecem através do modo como os brasileiros falam de si mesmos e dos outros) (SILVA, 2000). Contudo, nenhuma forma de identidade/diferença é possível até que as condições básicas de interação social se consolidem (detectar dicas de movimentos biológicos para a interpretação de estados mentais e intenções). A condição para a emergência do símbolo significativo, mediante o que as formas evoluídas de identidade e diferença se estabelecem, é o mecanismo cognitivo da reflexividade. A reflexividade é o jeito pelo qual o eu incorpora o outro em atos sociais (MEAD, 1934; 2006; 2008). E estudos revelam que o mesmo faz parte da ontogenia da espécie desde muito cedo, sendo responsável pelas formas pré-conceituais e pré-simbólicas do eu-outro (NEISSER, 1988; ROCHAT, 1995; GRAZIANO; BOTVINICK, 2002). O objetivo aqui é esclarecer o seguinte raciocínio: identidade e diferença ocorrem a partir do símbolo significativo cuja condição é o mecanismo cognitivo da reflexividade. Assim se tal mecanismo é determinado biologicamente, logo a produção da identidade e da diferença é, ela mesma, em parte, também biológica. A fim de alcançar esse objetivo, a reflexividade será mostrada como um processo situado/corpóreo que está presente, desde o nascimento, nas formas mais elementares do eu. De um lado, será examinada a emergência daquilo que Neisser (1988) chamou de “self ecológico” e “self interpessoal” – os sentidos pré-conceituais e linguísticos do si mesmo. De outro, serão evidenciados os efeitos da corporeidade na cognição social, observando as anomalias neuronais presentes na desordem do espectro autista. O mecanismo cognitivo da reflexividade O mecanismo cognitivo por trás do nascimento da linguagem e do self pode ser explicado através do conceito de “reflexividade”, trazido à luz do dia por duas mentes ligadas o pragmatismo americano, G. Mead (2006; 2008) e N. Wiley (1996). Embora
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central para o pensamento de Mead, o conceito só adquiriu o status de objeto teórico na obra de Wiley, ao receber uma definição explícita como se segue: “reflexividade designa um circuito, uma ligação retroativa, circular ou recorrente. Algo é representado como se estivesse se movendo para longe de si mesmo, mas em algum momento inverte o movimento e se move em sua própria direção” (WILEY, 1996, p. 89. Grifo no original). Tal definição diagramática se aplica ao modo situado pelo qual Mead concebe o self e o símbolo significante, como emergindo em meio à “conversação de gestos” ou “ato social” (MEAD, 1934; 2006; 2008; ABIB, 2005). Para Mead (2006), os gestos não têm a função precípua de exprimir uma emoção isolada, como defendera outrora C. Darwin (MEAD, 2006, p. 132-133). Os gestos são vistos como fases do ato social que conduz a um ajuste da resposta do outro organismo. O gesto, no dizer dele, “é essa fase do ato individual que provoca, no interior do processo social, um ajuste dos outros indivíduos” (MEAD, 2006, p. 134). O significado dos gestos individuais são as consequências ou resultados do ato social. Entre os humanos, aquele que estimula é também o respondente de seu próprio gesto, tal que é capaz de antecipar as reações do outro. O gesto vocal é o mais efetivo nesse sentido, porquanto, diferente de outros gestos, o emissor consegue se perceber falando (MEAD, 2006, p. 146-152). O gesto vocal com essa propriedade é chamado por Mead (1934; 2006) de “símbolo significativo”. “O gesto vocal torna-se um símbolo significativo [...] quando ele produz o mesmo resultado sobre aquele que o executa e sobre aquele a quem ele é endereçado ou que responde a ele explicitamente” (MEAD, 2006, p. 134). O símbolo significativo é, assim, um produto da reflexividade. A pessoa que fala endereça seu gesto vocal ao outro e, retroativamente, a ela mesma; uma vez que ela também é respondente de sua própria voz. A resposta já está contida na estimulação. O mesmo vale para a emergência situada do eu, que, na concepção de Mead (1934; 2008), é desde o início social. Ele define o self como um diálogo interno entre o “eu” (“I”) e o “mim” (“me”), diálogo esse nascido no contexto da conversação de gestos significantes. O eu pode ser diretamente consciente de si na medida em que ele atua como “eu” e sofre os efeitos da ação como “me”. Essa condição é essencialmente social. O mecanismo para essa resposta à nossa própria estimulação social dos outros ocorre como resultado natural do fato de que os sons, gestos, especialmente gestos vocais, feitos pelo homem ao se dirigir aos outros, convoca ou tende a convocar respostas de si mesmo. Este si
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mesmo não pode se ouvir falar sem adotar, em certa medida, a atitude que adotaria se os outros lhe dirigissem as mesmas palavras (MEAD, 2008, p. 2).
Mead subordina assim o aparecimento do self ao uso de símbolos significativos, os quais dão lugar à conversação de gestos significantes. Logo, o próprio sentido de eu depende dessa classe de gestos. É graças à reflexividade contida no símbolo significativo que um agente é capaz de determinar o significado de sua ação e, por extensão, adquirir consciência. Mead define consciência como tornar outro para si mesmo: o eu já é outro a partir da perspectiva do outro dentro do ato social (GELLISPIE, 2005, p. 14). Assim, se ele assume a perspectiva do outro em relação a si, ele pode perceber a si próprio reflexivamente. A implicação disso para a questão da identidade e diferença é considerável. Uma pessoa só pode julga-se “brasileira” se ela fizer uso de símbolos significativos que indicam “brasilidade”, como p. ex. falar a língua portuguesa. O vocabulário da língua materna exprimem conceitos que ativam formas sui generis de conceptualização da realidade. Tais formas são especiais da cultura nacional e informam a identidade do povo brasileiro. Consequentemente, tudo quanto se desvia disso cai na categoria do diferente, estrangeiro, não-brasileiro. Mas não é só. Graças ao mecanismo reflexivo subjacente, a pessoa empregando esses símbolos dentro dos atos de fala passa a se ver a partir da perspectiva do outro. “Ser brasileiro” significa agir como brasileiro. Para tanto, a condição sine qua non é o eu adotar as atitudes dos “outros-brasileiros” em relação a si, e a partir disso dar sentido às suas ações. Só assim ela toma consciência de sua identidade nacional. Até chegar à fase de generalização de tais atitudes, a criança passa por uma fase de cultivo das ações do outro. Mead se refere a essas fases como jogo (game) e brincadeira (play), respectivamente (WILEY, 1996; GELLISPIE, 2005; MEAD, 2006). O jogo é uma classe de atos sociais onde as posições dos jogadores já estão estabelecidas e institucionalizadas (GELLISPIE, 2005, p. 16-17). Assim, aquele que joga conhece não apenas a sua posição, mas também a posição complementar de seus oponentes. Reflexivamente, ele age dentro do jogo sabendo os efeitos de seus atos para si e para os outros, porquanto reflexivamente ele adota a perspectiva dos outros jogadores em relação à sua jogada. Na brincadeira, tais papéis ainda não estão fixados e ocorrem de forma bastante subjetiva (MEAD, 2006, p. 219-220). Até as crianças se tornarem aptas a assumir posições complementares, elas apenas cultivam tais posições e fazem-no de forma livre.
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Por isso, a adoção das atitudes do outro é totalmente dependente da situação (GELLISPIE, 2005, p. 16). Mead parece ignorar a possibilidade de existir formas présimbólicas de reflexividade. Ele prefere abordar o tema nos contextos mais tardios da brincadeira e do jogo. É possível ainda identificar traços de reflexividade no comportamento de bebês. Alguns estudos (ROCHAT, 1995) sugerem o sentido de self é anterior às fases previstas por Mead. Esses dados apoiam a suposição de que a identidade e diferença dependem também da biologia da espécie. Diferentes formas de autoconhecimento Ao tratar da questão do self ou eu, Neisser (1988) prevê cinco tipos de autoconhecimento: informações acerca das relações percebidas entre o organismo e o meio (“self ecológico”); dos sinais emocionais e comunicativos (“self interpessoal”); das memórias e antecipações pessoais (“self estendido”); dos episódios introspectivos (“self privado”); e, por fim, das teorias que definem uma pessoa (“self conceptual” ou “autoconceito”). As diversas formas de identidade têm a ver com o autoconceito, pois a formação deste depende exclusivamente do conhecimento oriundo dos atos de fala. No dizer de Neisser (1988), cada indivíduo tem um conceito de si como uma pessoa particular num meio familiar. Esse conceito compreende uma rede de assunções e teorias que informam ao indivíduo quem ele é (NEISSER, 1988). Assim, é de esperar que a identidade seja tanto mais diversificada quanto mais ampla for essa rede de assunções. Porém, a pessoa não pode chegar a esse nível de amadurecimento até que os sentidos iniciais de eu e do outro ocorram e sejam cultivados. Estudos têm sugerido que o mecanismo pelo qual se adquire o conhecimento de si e do outro constitui um circuito retroativo (cf. infra). Esse circuito está presente desde o princípio durante o contato do neonato com o mundo. A partir da mais tenra idade, o organismo orienta suas ações para objetivos funcionais, e tais ações ocorrem na forma de experiências reflexivas. Esse tipo de comportamento dá lugar ao primeiro sentido de eu/outro e, uma vez que parece expressar uma dotação biológica, ele denota ademais a existência pré-simbólica da subjetividade. Um número de pesquisas tem revelado que, desde o nascimento, o bebê mostra uma atitude pró-ativa em relação ao meio. Elas respondem de forma seletiva aos estímulos ambientais e tendem a explorar os objetos encontrados. Essas ações se
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orientam por metas específicas de sobrevivência (p. ex., nutrição e amparo). Informações corporais oriundas dessas relações fornecem um primeiro tipo de autoconhecimento, o “self ecológico” (NEISSER, 1988). A jovem criança se percebe, assim, como uma entidade agentiva, situada e diferenciada das coisas ao redor. Essa classe de informações especifica o indivíduo como um agente no meio. Contudo, entre os humanos ela permite a objetificação inicial do organismo. Quando este interage com um objeto, ele percebe não apenas que está agindo sobre meio e modificando-o (percepção da “efetividade” corporal), mas também que faz isso de certa maneira (p. ex., com certa quantidade de força). Tal percepção especifica indiretamente a “vitalidade” da ação e o estado interior do agente. Esse acontecimento é mais evidente nos estados de alerta transitório (quando os bebês não estão nem dormindo, nem irrequietos, nem chorando). Nessa condição eles exploram os objetos ao redor e avaliam os efeitos de seus gestos (p. ex., brincando com os objetos pendurados sobre o berço com gestos repetitivos). A interação com os objetos funciona de forma reflexiva, fornecendo informações sobre o que se passa internamente. Absortos em sua atividade lúdica, as crianças examinam seu estado de ânimo à medida que exploram os objetos. Elas adquirem a partir disso um sentido básico de autoconsciência, a qual evolui para formas mais sofisticadas quando se consideram as relações do bebê com seus cuidadores. Parece que os bebês vêm ao mundo com um encontro marcado. Desde o nascimento, eles orientam suas ações para os gestos do outro. Uma prova disso é que eles respondem aos estímulos ambientais de forma seletiva. Eles preferem, por exemplo, a voz humana a outros sons, e, em relação aos primeiros, eles mostram predileção pela fala da mãe. Outra evidência é que os neonatos buscam naturalmente a face humana, como se soubessem que o rosto é o palco das emoções. Essa habilidade está ausente em crianças com autismo, as quais evitam fazer contato visual. A expressão do olhar é, como se sabe, uma importante fonte de informações emocionais. Essa habilidade corresponde ao “self interpessoal” (NEISSER, 1988). O self interpessoal é especificado por um conjunto de informações sobre a atividade intersubjetiva. Elas informam que o indivíduo está engajado numa interação social com o outro. Porém, além de sinalizarem a agência intersubjetiva, tais informações permitem a primeira objetificação do self no outro. Como no caso do self ecológico, isso acontece mediante um movimento reflexivo no qual o adulto funciona como um espelho social para o bebê. Pesquisas sugerem que as jovens crianças,
1937
interagindo com seus cuidadores, se notam como entidades dotadas de intenções e sentimentos. Um caso notável é aquele em que o infante passa a se perceber como um agente intencional entre outros, ao notar a intencionalidade em seus parceiros. Kaye (1982, apud ROCHAT, 1995) sugere que a autoconsciência corresponde à percepção pelo infante da agência intencional de outra pessoa (p. 65). Ele acrescenta ainda que os pais e cuidadores fazem uso de múltiplos comportamentos que edificam o autoconhecimento da jovem criança, em termos de uma experiência de ser uma entidade intencional. Antes mesmo de ser um agente intencional, o infante é tratado pelos parentes como se ele fosse um. Com efeito, os pais exageram os gestos de seu filhote, colocam palavras em sua boca, estimulam suas iniciativas etc. Isso acontece também em relação às emoções e os sentimentos. Os adultos são responsáveis por modular a expressão das emoções no infante. Um comportamento comum entre os pais, diante do mutismo do bebê, é comentar os gestos dele. Eles elaboram, orientam e nomeiam os estados emocionais dos filhos (BERTHOZ, 2007). O resultado é que a jovem criança torna-se consciente de si como uma entidade emocional e senciente. Falhas nesse processo podem afetar o aspecto cognitivo das emoções e dar origem à síndrome da alexitimia (a incapacidade de dar nome às emoções) (GILBERT, 2006; BERTHOZ, 2007). As formas de objetificação ora descritas são as bases daquilo que, mais tarde, com o advento da linguagem, vai dar lugar a tipos socialmente mais evoluídos de autoconhecimento, como o “self conceptual” de Neisser (1988), o self de Mead (1934; 2006; 2008), e as múltiplas formas de identidade-diferença de Silva (2000). O processo reflexivo está presente na formação do autoconhecimento desde o início. Primeiro, na relação do organismo com os objetos físicos ao redor; depois, na relação dele com outras pessoas. Os fundamentos corpóreos da percepção e cognição sociais O relato acima sugere que identidade e diferença assentam suas raízes na biologia da espécie. Dados fornecidos pelas neurociências e psicologia cognitiva sustentam essa suposição, especialmente os achados relativos à desordem do espectro autista (DEA). O autismo apresenta uma ampla gama de sintomas clínicos, mas o sinal mais comum é o prejuízo de interação social (GAZZANIGA; HEATHERTON, 2005; SAITOVITCH, 2012). Em geral, a DEA se caracteriza por déficits de comunicação
1938
verbal e não verbal
e por comportamentos compulsivos e estereotipados
(SAITOVITCH, 2012). O autismo compromete o desenvolvimento dos sentidos iniciais de self e, por extensão, a conversação de gestos significantes. Por isso, seu estudo é relevante para se esclarecer a gênese do símbolo significativo e das relações self-outro e identidadediferença. A teoria da cognição corpórea/situada tem-se mostrado bastante apropriada para se estudar a interdependência entre percepção e cognição sociais e os processos físico-fisiológicos do organismo. Aqui vão ser salientados especificamente os processos neurofisiológicos. Um dos relatos sobre cognição corpórea/situada focaliza o papel do corpo na cognição, baseado nas descobertas bastante difundidas de que estados corporais podem causar estados cognitivos e ser efeitos deles (LAKOFF; JOHNSON, 2002; NIEDENTHAL et al., 2005; BARSALOU, 2008). Por exemplo, bloquear mimetismo facial automático, uma consequência presumida da ativação do sistema de espelhamento, afeta a capacidade das pessoas de inferir com sucesso os estados emocionais dos outros a partir de expressões faciais (ENTICOTT et al., 2012). Considerando-se que a experiência envolve ativamente todo o organismo (DAMÁSIO, 2005, p. 254-275), a percepção e a cognição sociais supõe uma forma específica de o cérebro funcionar. Assim, qualquer disfunção nos circuitos neurais implicados nas tarefas sociais acarreta uma disfunção correspondente do mecanismo reflexivo. No dizer de Saitovitch et al. (2012, p. 2), a habilidade para reconhecer um indivíduo específico dentro de uma coletividade é a base da vida social. Assim, o cérebro tem de ter desenvolvido uma habilidade especializada para responder de forma acurada às disposições e intenções de outros indivíduos (BROTHERS et. al., 1990 apud SAITOVITCH, 2012, p. 2); em uma palavra, para exercer a reflexividade. Pesquisas
em
neurociências
revelaram
a
existência
de
um
sistema
neuroanatômico comprovadamente envolvido na percepção e cognição sociais. Alguns achados1 apontam especialmente para o “sulco temporal superior”, a “amigdala”, o “córtex frontal orbital”; e o “giro fusiforme” (SAITOVITCH et. al., 2012). Outros sinalizam ademais para o sistema dos neurônios-espelho frontoparietal (CAVANNA; TRIMBLE, 2006; MOLNAR-SZAKCS et.al.; 2006; ENTICOTT, 2012). A seguir,
1
Trata-se dos trabalhos mencionados na revisão crítica de Saitovitch et. al. (2012).
1939
descrever-se-ão tão-somente os efeitos corpóreos do sulco temporal superior (STS) sobre a percepção social, evidenciando a implicação dessa região cortical no autismo. Estudos neuropsicológicos revelam que o STS, especialmente o posterior direito, está implicado em vários comportamentos básicos de percepção social. Tem início próximo ao polo temporal e dirige-se para trás, em paralelo ao ramo posterior do sulco lateral, terminando no lobo temporal (para uma descrição mais completa, confira MACHADO, 1998). Estudos de células isoladas com seres humanos têm indicado a existência no STS de mecanismos visuais especializados, os quais produzem respostas neurais seletivas a coisas como o movimento de imagens naturais de faces e corpos (SAITOVITCH et al., 2012, p. 2). Com efeito, foram encontrados ativações do STS durante a percepção de olho, boca, mão, face e movimento do corpo. Considerados em conjunto, tais estudos apoiam a tese da implicação do STS humano e córtices adjacentes na percepção de movimentos biológicos. O STS se desponta, assim, como a chave da estrutura cortical para a reflexividade (ALISSON et. al., 2000 apud SAITOVITCH, 2012, p. 3). Dessa forma, a análise inicial das dicas visuais sociais, denominada percepção social, depende do funcionamento normal desse córtex. Considere-se, nesse sentido, a importância do contato visual para a interação social. Como já foi mencionado anteriormente, o neonato responde seletivamente às expressões faciais buscando fazer contato visual com seus cuidadores. Com isso, ele inicia uma conversação de gestos cuja consequência é a especificação dele como um ator social em relação a seu parceiro (NEISSER, 1988; ROCHAT, 1995). O olhar do outro funcionando como um espelho reflete, por assim dizer, a subjetividade do infante. Espera-se então que disfunções no STS comprometam a habilidade interpessoal do organismo humano. Estudos de monitoramento dos olhos em crianças com DEA mostram que este é o caso. Vendo filmes de situações sociais espontâneas (pessoas interagindo naturalmente), crianças e adultos com autismo mostraram preferência por informações não sociais (detalhes físicos do meio) mais que por informações sociais (faces e olhares dos personagens) (SAITOVITCH, 2012, p. 5). Esses resultados foram associados à hipoperfusão em ambos os lobos temporais (hipoperfusão temporal bilateral localizada). Estudos congêneres confirmaram a correlação entre DEA e hipoperfusão cerebral (para uma revisão, conferir SAITOVITCH et al., 2012). Com efeito, esses trabalhos encontraram uma
1940
correspondência de déficit de percepção social (preferência por detalhes físicos) com ativação anormal do STS (hipoperfusão temporal) em crianças em idade escolar com autismo. Esses dados sobre a DEA sugerem que o comportamento social supõe um componente biológico. A conversação de gestos que prenuncia formas mais desenvolvidas de interação social depende do funcionamento ótimo da circuitaria neural que representa o mecanismo reflexivo. Isso significa que tal mecanismo, subjacente ao símbolo significativo e à relação eu-outro, precisa ser corporificado através do aspecto anatomo-funcional da cognição social, a fim de produzir seus efeitos; especialmente este de permitir a tarefa de “assunção das atitudes do outro” (MEAD, 2006; 2008). O cérebro funcionando mal afeta a aptidão das pessoas para o relacionamento interpessoal. Como se viu, as crianças com autismo são incapazes de analisar corretamente as dicas de movimentos biológicos, como direção do olhar, movimentos corporais e expressões faciais, a fim de detectar, interpretar e predizer as ações e intenções do outro (SAITOVITCH et al., 2012). Ou seja, elas falham na percepção e cognição sociais, em grande parte porque seu cérebro não funciona como o cérebro de indivíduos tipicamente desenvolvidos. Por conseguinte, crianças com autismo são impedidas de sustentar alguma forma mais desenvolvida de identidade e diferença. Considerações finais Assim, além do componente simbólico, a dialética da identidade e da diferença inclui também um componente biológico. Através da reflexividade o organismo humano se torna outro sem deixar de ser ele mesmo. Essa dinâmica, em nível mais avançado do símbolo significativo, permite adotar as atitudes dos outros como se fossem as do si mesmo. Esse processo integra tanto quanto exclui tais atitudes. Cria-se, desse modo, a chamada fronteira da identidade e da diferença. Como se viu, esse mecanismo aparece muito cedo na ontogenia da espécie de maneira a pavimentar o caminho para a emergência do símbolo significativo, da relação self-outro e da identidade-diferença. Trata-se de um acontecimento natural e intuitivo, logo, de um mecanismo inato. Mas isso não exime o mesmo de falhas congênitas. É o que se verifica no comportamento de crianças e adultos com DEA. Falhas em comportamentos de percepção social, como a leitura acurada de movimentos biológicos (movimentos de olhos, boca, face e postura do corpo), são determinadas por anomalias no modo de o cérebro funcionar. A reflexividade é o efeito
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da corporeidade do cérebro e, como tal, supõe o funcionamento de um sistema neuroanatômico complexo. Dentro desse sistema destaca-se o STS, que é especialmente responsável pelo reconhecimento dos referidos movimentos do corpo. Na DEA verificase hipoperfusão nesse córtex. Assim, uma vez que o fundamento para a emergência do símbolo significativo está comprometido, a produção da identidade e da diferença também está. Referências ABIB, José Antônio Damásio. Teoria social e dialógica do sujeito. Rev. Psicologia, v. 7, n. 1, 2005, p. 97-106. Disponível em: Acesso em: 10 ago. 2014. BARSALOU, Lawrence W. Grounded cognition. Annual Review Phychology, p. 617645,
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A CONSTRUÇÃO DO ADJETIVO E DO ADVÉRBIO EM TEXTOS ARGUMENTATIVOS Waldiney Corrêa Martins (UEPG) Elódia Constantino Roman (UEPG) Introdução De acordo com Koch e Elias (2009, p.36), “a escrita é um trabalho no qual o sujeito tem algo a dizer e o faz sempre em relação a outro (o seu interlocutor) com um certo propósito”. Partindo disso, o objetivo deste trabalho é analisar o uso dos adjetivos, bem como dos advérbios modalizadores, os quais “têm como característica básica expressar alguma intervenção do falante na definição da validade e do valor de seu enunciado” (NEVES, 2000, p.244). Em se tratando especificamente do adjetivo, destaque especial é dado à sua posição, uma vez que, para Neves (2000, p.203), a posposição é mais frequente na linguagem comum e a anteposição dá o efeito de maior subjetividade. Inicialmente, tecemos algumas considerações sobre as características do adjetivo e do advérbio na visão de autores como Castilho (2010) e Neves (2000), entre outros que abordam o assunto. O corpus para análise consta de dois textos produzidos por aluno de escola pública do município de Cascavel/PR, durante intervenção dos projetos em sala se aula que originaram a pesquisa aqui relatada Os textos selecionados fazem parte do Projeto “Linguagem, sociedade, formação de professores: manifestação na diversidade”, vinculado ao Procad/Unioeste/UFSC, com financiamento CNPq/CAPES, e ainda aos projetos intitulados Aplicação e reflexão teórica na sala de aula: análise linguística como suporte para a produção de textos de uma escola pública do Estado do Paraná e Diagnósticos e aplicação teórica em sala de aula: verificação de rendimento e avaliação do ensino de análise linguística e produção textual de alunos do ensino médio de uma escola pública do Estado do Paraná. Essas pesquisas foram desenvolvidas na Escola Estadual São João, pertencente ao distrito de São João, cidade de Cascavel. O Projeto ART teve início em 2011 e terminou em 2012. O Projeto DAT
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teve início em 2012 e terminou em 2014. Os dois projetos foram desenvolvidos com apoio da Fundação Araucária, instituição de fomento à pesquisa do Estado do Paraná. Algumas considerações teóricas De acordo com Castilho (2010, p.511), a Gramática latina não distinguia adjetivos de substantivos, reunindo-os sob a denominação de nome. Destaca que “adjetivo e substantivo compartilham as propriedades morfológicas de gênero e número”. No entanto, “a partir do século XVIII os gramáticos das línguas românicas passaram a tratar o adjetivo separadamente do substantivo”, tendo em vista alguns argumentos. O primeiro argumento a favor da separação de substantivo e adjetivo, segundo Castilho (op. cit.), consiste no fato de que o adjetivo aceita flexão de grau, expressa por sufixos produtivos (como em branquíssimo), por terminações (como maior e pior) ou por especificadores e complementadores: [mais Adj do que X], [tão Adj como X], [o mais Adj dos X]. Considera, como Câmara Jr. (1970), que os substantivos, em vez de sufixos produtivos, têm sufixos derivacionais “que indicam o tamanho, como em mesona, mesinha, mas tamanho não é grau”. Outro argumento destacado por Castilho diz respeito ao fato de os adjetivos poderem ser criados por derivação de modo, expressa por {-vel}, como em amável. Por outro lado, substantivos não aceitam esse sufixo. O adjetivo também aceita a derivação por {-mente}, transformando-se em advérbio, como em facilmente; e a derivação por quantificação, expressa por {-oso, al}, como em estudioso e sensacional, o que não ocorre com os substantivos. O que até agora foi discutido se trata de critérios morfológicos propostos para distinguir adjetivos de substantivos. Passemos, agora, a alguns critérios sintáticos. Citando Quirk (1985), Castilho (2010, p.512) destaca que são adjetivos as expressões que (i) ocorrem na função atributiva, como constituintes de um sintagma nominal, como em [um livro caro]; (ii) ocorrem na função predicativa, como constituintes de sintagma verbal, como em [o livro é caro]; (iii) podem ser pré-modificados pelo intensificador muito, como em [um livro muito caro]; e finalmente, (iv) podem assumir formas comparativas e superlativas, como em [um livro mais caro que um caderno], [livro caríssimo].
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Com isso, elege-se a predicação, na literatura corrente, “como um traço relevante para a postulação do estatuto categorial dos adjetivos”. Nesse sentido, cita Bolinger (1967), o qual “mostrou que alguns adjetivos são ser-predicativos, enquanto outros, não”. Castilho (2010, p.513) distingue, portanto, adjetivos predicativos (os relativos) de adjetivos não predicativos (os absolutos, ou de verificação): “são predicativos os adjetivos que (i) predicam o substantivo ou toda uma sentença; (ii) exibem flexão de grau, concordando em gênero e número com o substantivo a que se aplicam”; “são não predicativos os adjetivos que classificam o referente dos substantivos”. Destaca, também, que os adjetivos predicativos derivam de uma transformação de apagamento da sentença relativa. Para isso, cita Casteleiro (1981), que exemplifica: (1a) as paisagens calmas
- as paisagens que são calmas
(2a) as flores campestres
- *as flores que são campestres
O item da classe (1a) corresponde a uma sentença relativa, o da classe (2a), não. Vejamos outras diferenciações, propostas por Casteleiro, entre adjetivos predicativos e não predicativos, e citadas por Castilho (2010): Propriedade de grau. Destaca que o item da classe (1b) admite a gradação, o que não ocorre com o da classe (2b): (1b) as paisagens muito calmas. (2b) *as flores muito campestres. O autor menciona que “calmas” (1b) é um adjetivo predicativo por aceitar um intensificador, enquanto “campestres” (2b), por não permitir gradação é considerado um não predicativo. Propriedade pós e pré-nominal. Ressalta que “os adjetivos predicativos podem antepor-se ou pospor-se ao substantivo, o que não acontece com
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os não predicativos, que ocupam geralmente uma posição pós-nominal” (CASTILHO, 2010, p.514): (1c) as calmas paisagens. (2c) *as campestres flores. “Os adjetivos predicativos são ligados ao substantivo pelos verbos copulativos ser e estar; os não predicativos rejeitam estar” (CASTILHO, 2010, p.514): (1d) as paisagens são/estão calmas. (2d) as flores são/* estão campestres. Várias outras diferenciações são feitas. No entanto não vamos nos ater a elas neste momento da pesquisa. Importa entender, segundo Castilho (2010, p.516), que os adjetivos predicativos são também chamados de verdadeiros adjetivos ou adjetivos atributivos, dentre outras denominações; e que os não predicativos são também nominados de adjetivos classificatórios. “A riqueza dessa terminologia mostra que é generalizada a percepção de que os adjetivos são uma classe heterogênea”. O autor comenta que o sintagma adjetival tem por núcleo o adjetivo, que é uma classe basicamente predicadora, funcionando como adjunto adnominal enquanto constituinte do sintagma nominal, ou como predicativo, enquanto constituinte do sintagma verbal.
Em nossa análise, vamos nos restringir ao adjetivo que atua no sintagma nominal. , O adjetivo no sintagma nominal Em se tratando da colocação do adjetivo, Castilho (2010, p.520) entende que há adjetivos de ordem livre (predicativos) e adjetivos de ordem presa (não predicativos).
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Destaca, também, que “apenas os adjetivos predicativos gozam de plena liberdade de colocação, enquanto os de verificação (= não predicativos) exibiriam uma regra categórica quanto a isso” (2010, p.520). Castilho referencia Kato (1981), a qual considera que apenas os “adjetivos de apreciação subjetiva (como em bom menino, bela casa, interessante história, fantástica notícia) podem ser pré-nominais”. Além desses adjetivos, citam-se “os adjetivos de intensificação, como em perfeito idiota, e os atitudinais, como em mero espectador”. Nos demais casos, o autor entende que “a ordem preferida é a pós-nominal, que se torna categórica quando o adjetivo é participial, como em casa refrigerada”. Em linhas gerais, compreende que o adjetivo posposto ao substantivo “exibe uma ordem menos marcada, no sentido de mais comum” (p.521). Nesse aspecto, o autor cita Câmara Jr. (1977, p. 252), que postula: a posposição é [...] a pauta fundamental, porque a função usual do adjetivo é acrescentar um dado de informação nova a respeito do substantivo; é essencialmente um elemento descritivo suplementar para a significação contida no substantivo [...] [E mais além] sobre essa [configuração não marcada] se imporá o princípio funcional que atribuirá colorações estilísticas diferenciadas aos enunciados, na medida em que a ordem básica é quebrada.
No que diz respeito às colorações estilísticas citadas por Câmara Jr. (1977), Castilho destaca “a quase modalização do substantivo pelo adjetivo anteposto [...], sendo que a anteposição assegura uma caracterização mais subjetiva [...]” (CASTILHO, 2010, p. 521). O autor entende que, no enunciado “a pessoa às vezes vai ser um péssimo médico, quando ela poderia ser um ótimo lixeiro.”, as “qualidades expressas pelos adjetivos correspondem a avaliações do falante”. Portanto, “quando se antepõem, os adjetivos favorecem uma predicação mais subjetiva do substantivo, ressaltando seus valores afetivos”. Por outro lado, “quando se pospõem, eles favorecem uma qualificação objetiva do substantivo”. Castilho (2010, p.523) passa a uma análise mais detalhada dos adjetivos. Os adjetivos predicativos subdividem-se em: adjetivos qualificadores, quantificadores e modalizadores. Para o autor, os adjetivos qualificadores “afetam as propriedades intencionais do substantivo”, como: alto, baixo, bom, mau, inteligente; os
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quantificadores “afetam a extensão do substantivo”, como: inúmeros, diversos; e os modalizadores “verbalizam um juízo emitido sobre o conteúdo do substantivo”. Por sua vez, os adjetivos não predicativos (de verificação) “desempenham, maiormente, um papel descritivo, integrando o substantivo em determinadas classes”. Subdividem-se em pátrios: brasileiro, paulista; gentílicos: indígena, branco, negro e de cor: queijo branco, casa amarela (CASTILHO, op.cit.). Vejamos, agora, mais detalhadamente, como o linguista considera os adjetivos modalizadores: predicam o sentido de um substantivo numa forma subjetiva, visto que eles verbalizam uma avaliação pessoal do falante sobre o conteúdo desse substantivo. O significado que resulta dessa operação realça a intervenção do locutor, razão por que parece adequado caracterizá-los como adjetivos orientados para o falante (CASTILHO, 2010, p.524).
Subdividem-se em epistêmicos, deônticos e discursivos (CASTILHO, 2010, p.524-525). Os adjetivos modalizadores epistêmicos “veiculam uma avaliação sobre o referente do substantivo” (p.524). Comenta que a avaliação pode gerar uma certeza no uso dos adjetivos epistêmicos asseverativos e exemplifica: Eu vejo a telenovela como um verdadeiro laboratório posto no ar; ou uma incerteza com os adjetivos epistêmicos quase asseverativos: A causa provável/possível/plausível da crise política são as elites. Os adjetivos modalizadores deônticos são usados “quando o falante considera o referente do substantivo como algo necessário” (p. 525). Exemplifica: Temos uma decisão obrigatória a tomar no caso da crise política. Por meio dos adjetivos modalizadores discursivos, o usuário emite “um juízo sobre o sentido do substantivo e sobre um participante”: Belo horizonte é uma cidade atrativa. Até aqui, vimos sobre os adjetivos predicativos e os não predicativos. Castilho (2010, p.534) refere-se, ainda, aos adjetivos dêiticos, que se subdividem em locativos e temporais. “São dêiticos locativos os adjetivos próximo, distante, fronteiriço etc. São dêiticos temporais os adjetivos atual, semanal, precedente, passado”. Para nossa análise, partimos das postulações, também, de Neves (2000, p.200). A autora entende que “a primeira observação quanto à posição que o adjetivo ocupa no
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sintagma nominal diz respeito ao fato de que existem diferenças no comportamento das duas grandes subclasses de adjetivos – os qualificadores e os classificadores”. Neves (2000, p.201) também trata da posição do adjetivo qualificador. Este, quando usado como adjunto do substantivo, pode ser posposto ou anteposto. A posposição, segundo a autora, “é a posição mais frequente na linguagem comum, a menos marcada”. Por sua vez, a anteposição “é a posição mais marcada [...]; dá o efeito de maior subjetividade”; “cria ou reforça o caráter avaliativo – mais subjetivo – da qualificação”; “marca a interveniência de uma avaliação subjetiva do falante na qualificação efetuada” (NEVES, 2000, p.203). Entendemos que os autores pesquisados partilham as mesmas ideias quanto à anteposição e à posposição dos adjetivos. Agora, o advérbio Como mencionamos anteriormente, vamos considerar, também, em nossa análise, o uso dos advérbios. De acordo com Castilho (2010, p.543), sintaticamente, “são palavras relacionadas ao verbo, ao adjetivo ou a outro advérbio”, embora também possam ser aplicados aos substantivos, como em “ele é muito homem”. Do ponto de vista semântico, Castilho (2010, p.551) destaca que “os advérbios são palavras predicativas, vale dizer, operadores que transferem para seu escopo propriedades semânticas de que elas não dispunham”. O autor postula que os advérbios compreendem três classes semânticas: os predicativos (modalizadores, qualificadores e quantificadores), os de verificação (focalização, inclusão/exclusão, afirmação e negação) e os dêiticos (locativos e temporais). Os advérbios predicativos modalizadores, segundo Castilho (p.553), são aqueles “suscetíveis de verbalizar a avaliação do falante sobre as significações contidas na proposição”. Neves (2000, p.244) também trata dos advérbios modalizadores. Estes compõem uma classe ampla de elementos adverbiais que têm como característica básica expressar alguma intervenção do falante na definição da validade e do valor de seu enunciado:
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modalizar quanto ao valor de verdade, modalizar quanto ao dever, restringir o domínio, definir a atitude e, até, avaliar a própria formulação linguística. Em outras palavras, Neves (2000, p.244) considera que o uso de advérbios modalizadores “constitui uma das estratégias para marcar essa atitude do falante em relação ao que ele próprio diz”. Especificando os advérbios modalizadores, Castilho (2010, p.555) trata dos modalizadores epistêmicos asseverativos, que “expressam uma avaliação sobre o valor de verdade da sentença, cujo conteúdo o falante apresenta como uma afirmação ou uma negação que não dão margem a dúvidas”. São asseverativos afirmativos: realmente, evidentemente, certamente, etc. e asseverativos negativos: de jeito nenhum, de maneira nenhuma, coisa nenhuma. Tem-se, também, segundo Castilho (2010, p.556), os modalizadores epistêmicos quase asseverativos, que “expressam uma avaliação sobre o conteúdo sentencial, dado pelo falante como quase certo, próximo à verdade, como uma hipótese que depende de confirmação”: talvez, possivelmente, provavelmente. Os modalizadores deônticos, por sua vez, “predicam o conteúdo sentencial, passando a ser entendido como um estado de coisas que precisa ocorrer obrigatoriamente”: necessariamente e obrigatoriamente. Os modalizadores discursivos “deixam o conteúdo sentencial num discreto segundo plano, tomando por escopo basicamente os participantes da interação, verbalizando as reações do locutor [...] com respeito ao conteúdo sentencial” (CASTILHO, 2010, p. 556). Subdivide- os em subjetivos e intersubjetivos. Os primeiros “põem em relevo os sentimentos que são despertados no locutor pelo conteúdo sentencial”: felizmente, infelizmente e lamentavelmente. Os segundos “põem em relevo os sentimentos do locutor diante do interlocutor, com respeito ao conteúdo sentencial”: sinceramente e francamente. Considera, ainda, os advérbios qualificadores e os quantificadores. Os qualificadores apresentam várias subdivisões. Entre elas, estão os qualificadores propriamente ditos, por exemplo, bom e mau e os qualificadores graduadores, habitualmente denominados intensificadores na literatura gramatical como: muito, mais e bastante.
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Quanto aos advérbios quantificadores, Castilho (2010, p.565) considera que “a predicação quantificadora é o processo pelo qual se modifica a extensão da classeescopo, ou seja, sua propriedade de designar um conjunto de indivíduos”. Exemplifica como: uma vez por semana, novamente e constantemente. Há uma variedade de subdivisões desses advérbios. No entanto não vamos nos ater a elas neste momento de nossa pesquisa. Queremos ressaltar que, à semelhança dos adjetivos, “também os advérbios operam no campo da dêixis”. Subdividem-se em dêiticos de lugar (Ex.: aqui, atrás, próximo) e dêiticos de tempo (Ex.: atualmente, antigamente, futuramente) (CASTILHO, 2010, p.578). O corpus em análise Reiteramos que o objetivo deste trabalho é analisar o uso dos adjetivos que atuam no interior de um sintagma nominal, seguindo postulações de Castilho (2010), bem como uso dos advérbios modalizadores, como discutidos por Neves (2000). Conforme já anunciado, a análise aqui desenvolvida enfoca dois textos argumentativos, ambos produzidos por aluno de escola pública do município de Cascavel/PR, em momentos diferentes. O primeiro, quando cursava o 9º ano do Ensino Fundamental e o segundo, quando estava no 2º ano do Ensino Médio1. Vejamos o primeiro texto, em que foi solicitada uma produção sobre “O dia mundial da água”. Meio ambiente Vários [1] estudos dizem: Preserve o meio ambiente ele não é eterno! E você acha que adianta ter propagandas, panfletos e uma semana para o meio ambiente? É se você pensou que não adianta, surpresa, estava certo, hoje em dia a mídia está em cima desse tema, até os políticos estão fazendo leis sobre isso. Mas vos questiono, porque todos estão sempre em cima precionando os agricultores, se são eles os que mais [2] preservam? E a cidade e industrializam não entra em leis, em projetos sobre o ambiente? 1
Os textos, em análise, foram digitados em conformidade com o original.
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Hoje em dia nas cidades as indústrias poluem muito [3], com o lansamento de coº na atmosfera e com isso irão destruir a camada de ozônio, isso na verdade já está acontecendo, mas se pensarmos poderemos reverter. E os rios lagos, nascentes arvores florestas o que está acontecendo com elas. Se você ligar a TV irá escutar notícias de: queimadas, desmatamento, erosão, tráfico de animais, desmoronamento, pessoas passando sede e rios que secam... O homem hoje não pensa que se ele continuar tendo essas atitudes o prejudicado será ele, Ele não pensa no futuro o que irá deixar para seus netos bisnetos. É, o futuro vem haí, e o homem cada vez mais [4] preocupado com a ganácia, esquece do mais [5] importante a natureza uma coisa que recebemos de graça, bela e deslumbrante. E para concluir fica a tese para se refletir: se pensar poderemos reverter todo esse Mau? Primeiramente em [1], observamos um adjetivo predicativo quantificador vários, anteposto ao substantivo “estudos”. Conforme destacado por Castilho (2010, p.512), os adjetivos podem assumir formas superlativas, observável na anteposição do advérbio predicativo qualificador graduador mais (também chamado de intensificador), em [4] e [5], em relação aos adjetivos “preocupado” e “importante”. No que diz respeito aos verbos, observamos, em [2], o advérbio predicativo qualificador graduador mais, intensificando “preservam”; e, em [3], o advérbio predicativo qualificador graduador muito, intensificando “poluem”. Por meio desses diversos advérbios predicativos qualificadores graduadores, podemos observar que há uma preocupação, por parte do aluno, de enfatizar suas ideias. Os agricultores são apresentados como os que “mais” preservam e as indústrias poluem muito (demasiadamente), por exemplo. Dessa forma, observamos presença de subjetividade, ou seja, a posição assumida em relação aos agricultores e às indústrias. Passemos, agora, ao segundo texto: Um bem precioso[1]
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O dia mundial[2] da água é comemorado no dia 22 de março, e essa data não é somente[3] uma data comemorativa[4] é um marco muito importante[5] na história mundial[6]. Porém nos dias de hoje, não estão dando o valor necessário[7] para o nosso bem natural[8] mais precioso[9]. e o objetivo deste dia é impor a consciência ecológica [10] em relação a este bem natural[11]. Conclui-se então que, a água deve ser, cuidada e tratada como o mais belo[12] e melhor bem natural mundial[13]. E por isso vos pergunto: Até quando vai nossa água? Predomina, no texto acima, o uso de adjetivos pospostos ao nome, em [1], [2], [4], [5], [6], [7], [8], [10] e [11]. Em [1], observamos um adjetivo predicativo modalizador discursivo: precioso. Em relação aos advérbios, observamos, em [3], somente, um advérbio de verificação; e, em [5], o advérbio predicativo modalizador graduador muito, seguido do adjetivo predicativo modalizador discursivo importante. Em [2], [4], [6], [8] e [10], encontramos adjetivos não predicativos. Em [7], vemos um adjetivo predicativo modalizador deôntico, necessário. O advérbio mais é utilizado duas vezes: seguido do adjetivo predicativo modalizador discursivo precioso (em [9]), e do adjetivo predicativo qualificador belo (em [12]). Em [13], observamos uma sequência de vários adjetivos para bem. Primeiramente, há o adjetivo modalizador melhor anteposto a bem. Depois, há os adjetivos não predicativos natural e mundial pospostos a bem, considerados de ordem presa. No entanto, mesmo se tratando de adjetivo predicativo (de ordem livre), que poderia ocorrer anteposto ao substantivo “valor”, como em [7], o aluno usa mais frequentemente a posição pós-nominal. Algumas considerações Pudemos observar que predomina o uso de adjetivos pospostos ao nome, como uma forma não marcada. No que diz respeito aos advérbios, os predicativos
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qualificadores graduadores (intensificadores) reforçam determinada posição defendida no texto, bem como os predicativos modalizadores, revelando subjetividade. No texto 1, observamos advérbios qualificadores graduadores (intensificadores); e, no texto 2, identificamos um uso mais corrente de diferentes categorias de adjetivos e advérbios. Entendemos que isso se deve ao grau de escolaridade do produtor do texto. Como o leitor pôde observar, analisamos os adjetivos e advérbios e os consideramos dentro de uma classificação. Dessa forma, diante de várias nomenclaturas, cabe aqui uma das considerações de Castilho: um mesmo item pode desencadear mais de uma significação, gerando outras tantas ambiguidades que fazem das línguas naturais objetos constitutivamente imprecisos. Com isso, o valor semântico apurado representa aquilo que corresponde no contexto à significação mais saliente, mais relevante para a interação em curso. (CASTILHO, 2010, p. 553).
Em outras palavras, “a língua é um sistema complexo, em que as categorias ocorrem simultaneamente e não linearmente” (CASTILHO, 2010, p.553). Referências CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis:Vozes, 1970. _____. Contribuição à estilística portuguesa. 3ª.ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1977. CASTILHO, Ataliba T. de. Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010. NEVES, Maria Helena de Moura. Gramátic a de usos do português. São Paulo: Editora UNESP, 2000. KOCH, Ingedore Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2009.
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Entre a mimese e o factual: características das tragédias gregas nas notícias sobre crimes passionais no Brasil Wellington Stefaniu (PG-UNICENTRO) Hertz Wendel de Camargo (Orientador) RESUMO: Em um jogo de cumplicidade, o jornalismo e a sociedade mantém relações mútuas de adaptação e singularidades. O primeiro mescla o real e o imaginário no espaço urbano, alimentando a cultura, ao compor a realidade de uma maneira particular. Enquanto isso, a sociedade recebe, com os noticiários, uma vasta cadeia de signos, que tem por objetivo manter um elo entre o real e o imaginário, principalmente, com acontecimentos relativos à morte e que suscitam comoção pública. Tendo em vista as características próprias da tragédia grega, que por vezes são usadas nos meios de comunicação em massa para causar, assim como no teatro grego, temor e compaixão em seus espectadores, o referido trabalho buscará aproximar aquilo proposto por Sócrates, no livro “A república”, de Platão, sobre a tragédia, com as notícias que foram veiculadas na mídia impressa, sobre alguns casos de crime passional no Brasil, mais especificamente nos casos sobre a morte da atriz Daniella Perez, em 1992, no Rio de Janeiro, e no caso Marcos Kitano, ocorrido em 2012 na cidade de São Paulo. Consideraremos, aqui, o fato de que, em ambos os crimes, seus executores primeiramente alegaram motivos passionais para explicar o ato criminal, entretanto, posteriormente, tais alegações foram contestadas pelas promotorias, que afirmavam que os assassinatos foram, antes, motivados por interesse estritamente financeiro. Assim, buscaremos fixar nossos pilares nos estudos sobre o discurso veiculado no noticiário sensacionalista, mesclado às propriedades ditas anteriormente sobre a tragédia grega, presentes nos casos aqui propostos, a fim de que possamos analisar o uso de tais características e seus efeitos na sociedade brasileira.
Palavras-chave; mimese; jornalismo; tragédia; objetividade subjetiva.
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Introdução: O jornalismo desempenha um papel de intermediador entre a sociedade e as organizações detentoras de poder, tomando, quase sempre para si, uma notícia factual, mesclando a ela, subjetivismos próprios de outras áreas, como a literatura. Assim, percebemos nessa maneira particular de compor o real, uma vasta cadeia de símbolos, que interagem com o imaginário do público, instigando suas emoções. Nessa linguagem, que habita a fronteira da objetividade e do subjetivismo, destacamos os vários elementos próprios do gênero literário da tragédia, usada como uma ferramenta capaz de gerar comoção pública ao comparar os sujeitos envolvidos em crimes considerados hediondos por vezes como heróis ou, como a própria tragédia grega se refere naquilo ensinado por Aristóteles, "homens maiores", os quais representam a fraqueza humana e servem como exemplo para a sociedade. Logo, para o nosso trabalho, recortamos algumas notícias sobre o crime passional no Brasil, mais restritamente com os casos sobre as mortes da atriz Daniella Perez, assassinada pelo seu colega de profissão, o também ator Guilherme de Pádua em 1992, e também do empresário Marcos Kitano Matsunaga, assassinado e esquartejado pela esposa Elize Kitano Matsunaga no ano de 2012. Assim, buscaremos evidenciar alguns elementos próprios do gênero trágico nas notícias que circularam em nosso país sobre tais assassinatos. Para isso, nos apoiaremos nos pressupostos teóricos sobre a teoria do jornalismo, propostos por Traquina (2012) e Camargo & Silva (n/d), assim como nos estudos feitos pelos críticos literários Yves Stalloni (2001) e Vitor Manuel de Aguiar Silva (1976) acerca da teoria literária condizente aos gêneros, mais especificamente com a tragédia. Com isso, traçaremos parâmetros comparativos entre o jornalismo e a literatura, tomando algumas notícias publicadas, inicialmente, em jornais e, posteriormente disponibilizadas na internet como nosso material de análise, destacando o fato de que ambos os crimes eram tomados inicialmente como passionais, ou seja, os assassinos foram impulsionados pela paixão, mas depois essa tese acabaria caindo por terra, quando as promotorias responsáveis nesses casos levantaram a hipótese, que em seguida
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seria comprovada, de que os acusados foram frios e calculistas, agindo por interesses particulares, como o temor de Guilherme de Pádua de ser desligado da telenovela, da qual a mãe de Daniella Perez escrevia os roteiros, e o medo que Elize Kitano sentia de não ser beneficiada em uma eventual separação com parte dos bens do empresário Marcos Kitano, ao descobrir a infidelidade do marido. Entre o jornalismo e a literatura: teorias divergentes que convergem para um único propósito O jornalismo desempenha um papel intermediador entre a opinião pública e as instituições governantes, proporcionando, aos cidadãos, ferramentas para o exercício de seus direitos, assim como a defesa de seus interesses. Com uma linguagem pautada na objetividade, que ainda assim não despreza o subjetivismo, a notícia jornalística expõe aos espectadores uma gama de símbolos fantásticos, os quais fazem parte do ethos de uma determinada comunidade, ao compor a realidade de uma maneira particular. Tal ethos é o resultado do acordo feito no imaginário coletivo da sociedade, englobando características míticas, fantásticas e simbólicas. Assim, podemos dizer que o jornalismo e o mito mantêm relações estreitas entre si. Na tentativa de compor um discurso objetivo, pautado no factual, o jornalista não consegue se desvencilhar de uma simbologia que permeia o imaginário urbano. Traquina (2012) afirma o seguinte: De fato o poder mítico tem envolvido a profissão de jornalismo de tal maneira que muitas vezes os jornalistas são apresentados como os Davis da sociedade matando os Golias. (TRAQUINA, 2012, p.176).
Assim, as notícias jornalísticas criam uma "nova realidade", a partir desse envolvimento entre o jornalista e o mito. Essa terceira versão resultou justamente da união do objetivo, ou seja, do factual, somado a algumas características subjetivas, visando atingir o público. Logo, nas notícias sobre crimes passionais, notamos algumas características encontradas na literatura, mais especificamente, no gênero trágico.
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Por ser a tragédia um gênero vindo da Grécia antiga, sabemos que ela está naturalmente impregnada de mitos e esses mitos foram outrora recebidos como verdades absolutas, tal como o jornalismo concebe suas informações atualmente, por meio de uma espécie de ritual antropofágico: o jornalista primeiramente entra em contato com um fato ocorrido, tomando-o para si e o adapta conforme a memória cultural da sociedade em que está inserido, "regurgitando" aquele acontecimento a sua maneira. Sobre isso nos ensinam Camargo e Silva (n/d): Assim, um tipo de notícia deixa transparecer essa relação entre o real e o imaginário: as tragédias que criam grande comoção pública. Considerando que os dramaturgos gregos tomavam seus temas da tradição mitológica, deve-se observar que tanto o mito, como a tragédia grega e as atuais reportagens da imprensa são produtos culturais disseminadores de formas de ser e estar na sociedade . (CAMARGO & SILVA, n/d, p.3).
Stalloni (2001) nos diz que a tragédia apresenta ações que despertam temor e compaixão nos espectadores. Na Grécia antiga, a tragédia trazia a história de "homens superiores", de acordo com o conceito aristotélico de imitação, a mimese. Tal imitação é definida por Aristóteles em sua obra conhecida como A Poética e sua definição nos mostra que ela não é uma cópia literal da realidade, mas antes representa de uma forma geral o comportamento do homem na sociedade. Ora, tal mimese não é a representação individual de uma pessoa específica, mas, antes disso, a personagem encarna em sua representação características de toda a humanidade, para que possa servir como exemplo ao público. Tal definição pode ser melhor compreendida com os conceitos abordados pelo crítico Vitor Manuel de Aguiar Silva, presente em seu livro Teoria da literatura (1976) na parte pertinente aos gêneros literários: A mímese poética, que não é uma literal e passiva cópia da realidade, uma vez que apreende o geral presente nos seres e nos eventos particulares - e, por isso mesmo, a poesia se aparenta com a filosofia -, incide sobre «os homens em ação», sobre os seus caracteres (ethe), as suas paixões (pathe) e as suas ações (praxeis). (SILVA, 1973, p.70).
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Com isso dizemos que na tragédia, imbricada no jornalismo referente às noticias sobre crimes passionais, os "homens em ação", ou seja, os personagens de tais notícias, agem conforme a seguinte tríade: ethe, que nada mais é que o caráter, por vezes também relacionado com o conjunto de comportamentos que definem um povo; pathe, ou seja, a paixão que o personagem sente a ponto de o fazer sofrer; e praxeis, suas ações. Também convém que citemos aqui outra característica da tragédia, conhecida como hybris. A hybris se caracteriza por ser o momento em que o herói rompe com a linearidade, quebrando leis e regras convencionais, violando o comum acordo entre os indivíduos. Nos casos aqui citados, podemos dizer que o momento da violação da hybris nas notícias que nos propomos a analisar, foi justamente quando os indiciados pelos crimes tentaram resolver seus dilemas com a morte de suas vítimas. Ainda ao que diz respeito a hybris, ressaltamos novamente as contribuições de Camargo & Silva (n/d):
É o sentimento que conduz os heróis da tragédia à violação da ordem estabelecida por meio de uma ação, atitude ou comportamento que desafia os poderes instituídos: as leis divinas, as leis da cidade, as leis da família ou as leis da natureza . (CAMARGO & SILVA, n/d, p.13).
Com essas definições, centraremos nossa análise relacionando elementos próprios do gênero literário da tragédia com o discurso presente nas notícias jornalísticas até aqui propostas, buscando evidenciar que, apesar de sempre considerar o factual como o cerne de sua linguagem, o jornalismo também pende para subjetividade, ao transformar os sujeitos de suas matérias em personagens típicos das tragédias gregas que, assim como elas, também procuram despertar o temor público, mesclando diegese com narrativas verídicas de fatos que ocorrem em nosso cotidiano.
Os casos Perez e Kitano: do medo à catástrofe
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Filha da autora de telenovelas, Glória Perez, Daniella Perez começou sua carreira ainda na adolescência, como bailarina. Mais tarde ingressou no teatro e, como consequência de seu trabalho que estava sendo gradativamente reconhecido, passaria a fazer parte do elenco da novela da extinta Rede Manchete, Kananga do Japão, exibida em 1989. No ano seguinte conseguiu outro papel, na novela transmitida pela Rede Globo Barriga de Aluguel, da qual sua mãe era uma das autoras. Entretanto, foi apenas no ano de 1992 que a atriz conseguiria reconhecimento como atriz, na telenovela De Corpo e Alma, também transmitida pela Globo e escrita por Glória Perez. As atuações de Daniella surpreenderam seus colegas de trabalho, com atuações que, mesmo não sendo uma das protagonistas viria a ofuscar, por vezes, o brilho de atrizes consagradas, que contracenavam com ela, como por exemplo, Cristiana Oliveira, atriz premiada internacionalmente graças ao sucesso de Pantanal, da Rede Manchete (1989), uma das únicas telenovelas a superar a audiência da Rede Globo na época. O sucesso de Daniella foi tanto que a atriz chegou a ser considerada a nova "namoradinha do Brasil" pela imprensa, alcunha essa que até então pertencia a Regina Duarte, que deslanchou em sua carreira com a novela Minha Doce Namorada, de 1971. Foi nesse cenário que a atriz emergiu de um status de "protegida", pela dona da telenovela, a uma personagem popular dentre os brasileiros. E nesse período de reconhecimento, em que atingiu o ápice da fama, Daniella Perez seria vítima de seu algoz e companheiro de trabalho, Guilherme de Pádua, que contou com a ajuda de sua esposa Paula Thomaz para apunhalar a atriz oito vezes no coração, segundo o laudo da pericia, que viria desmentir as notícias sobre a arma do crime ser uma tesoura. A notícia do assassinato gerou grande comoção e revolta na sociedade e mesmo morta, Daniella ofuscaria outra vez o brilho de outra celebridade, visto que o noticiário dava prioridade a ela: o Impeachment de Fernando Collor figurava como coadjuvante na calamitosa realidade brasileira do início dos anos 90. A morte da atriz ainda acarretaria uma alteração na Constituição Brasileira, fazendo com que os crimes hediondos no Brasil fossem punidos com mais severidade,
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graças à iniciativa de Glória Perez. Os motivos do crime, que primeiramente foi considerado um crime passional, viriam à tona pouco tempo depois. Pádua confessaria que temia pelo seu emprego, ao ver que as participações de seu personagem estavam sendo cada vez mais limitadas na telenovela, o que o levaria a assediar a colega que era filha da escritora, para que ela intercedesse pelo ator junto a sua mãe, para que o mesmo voltasse a trabalhar com a mesma frequência do início da trama. Quanto ao caso Kitano, destacamos a ciranda de interesses que o relacionamento com sua assassina e esposa, Elize, acabou tomando visibilidade nacional. Marcos Kitano conheceu Elize em um site de relacionamentos, no qual ela se apresentava como prostituta de luxo. Em pouco, o empresário faria dela sua amante e, logo em seguida, pediria o divórcio para se casar com ela. Entretanto, apesar de engrenar em um novo relacionamento, a fidelidade de Kitano mantinha-se a mesma. A traição foi comprovada graças aos serviços de um detetive particular, contratado pela nova esposa. Quando o empresário voltou da viagem em que se encontrara com a nova amante em Curitiba, para São Paulo, depois de uma calorosa discussão, em que Kitano afirma, segundo sua assassina, que "mandaria ela de volta ao lixo de onde veio" por se tratar de uma prostituta, Elize acaba matando Marcos com um tiro na cabeça, efetuado de uma pistola 380. Para se livrar do corpo e tentar ocultar o crime, Elize carrega o corpo do marido até o quarto da empregada, onde o desmembra e o coloca em três malas, que em seguida foram abandonadas nas margens de uma rodovia. Os crimes passionais na mídia: análise e comparações com a tragédia grega Selecionamos, para a nossa análise a seguir, um conjunto de reportagens extraídas dos jornais Folha de São Paulo e O Globo, disponibilizados on-line em seus acervos históricos digitais, seguidas por suas respectivas análises. Buscando um elo entre o jornalismo e a literatura, procuraremos evidenciar os possíveis usos de algumas características do gênero tragédia, por meio dos termos citados anteriormente, como a mimese, a hybris, o ethe, o pathe e a praxeis.
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Com os recortes feitos a seguir, reservamo-nos a fazer uma análise que não desmereça de forma alguma os autores de tais escritos jornalísticos. Pretendemos, antes, mostrar que algumas características de outras áreas do conhecimento, tais como a literatura, podem de fato contribuir como ferramentas capazes de unir aquilo descrito por Traquina (2012) que permeia o discurso em jornais: a fusão da objetividade com a subjetividade.
Recorte 1 - Roberto Ventura: Jornal Folha de São Paulo
Recorte 2 - Primeira página: Jornal O Globo
Na primeira matéria, de autoria de Roberto Ventura, publicada no jornal Folha de São Paulo em 1993, percebemos várias das características antes mencionadas.
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Primeiramente o fato do jornalista se referir a Daniella Perez como a personagem Yasmin nos revela que os limites entre a imitação, ou seja, a mimese e a realidade extrapolaram os planos entre o real e o ficcional. Logo, em suas primeiras palavras, Ventura comprova esse jogo entre mimese e realidade com a seguinte afirmação: "Daniella Perez foi enterrada sob a pele de Yasmin. - Tchau, Yasmin, gritou uma fã emocionada no enterro." Fica evidente aqui que, em uma tentativa de, assim como na tragédia grega, comover o seu público, o jornalista não diferencia a atriz da personagem, antes disso aproxima as duas a ponto de unir Daniella Perez e Yasmin em uma só. Essa fusão é uma marca não da imprensa, mas do público, que ainda nos dias de hoje prefere se referir aos atores pelo nome de seus personagens mais marcantes, e não pelos nomes verdadeiros. Assim, o autor dessa matéria aproxima também o jornal do público, deixando implícito que o Folha de São Paulo funcionaria como a voz do povo. Já, na segunda, destacamos o tom de indignação do jornal ao mostrar uma foto dos atores tirada pouco antes do assassinato se consumar. Percebe-se que nela, Guilherme de Pádua está com uma fisionomia muito alegre, enquanto Daniella mostrase preocupada, taciturna. Como dito anteriormente, Pádua estaria aflito e foi inclusive visto por outros colegas de trabalho chorando amargamente depois da gravação do episódio da novela em que a personagem Yasmin rompe o relacionamento com o seu personagem, Bira. Tais emoções se concentrariam no ethe do ator, o levando a uma praxeis que extrapola o mundo diegético da trama vivida na novela. Agora a diegese não se resumiria apenas ao ficcional. Com as hipóteses de que o seu pathos, movido por uma paixão não correspondida por Daniella e, principalmente, pelo temor de perder seu papel na telenovela, podem ser os motivos que avivaram sua hybris. A hybris, por sua vez, se interliga com a praxeis na consumação do crime, que, comparado a uma tragédia grega, serviria de exemplo para a sociedade de como um ser humano estaria sujeito a ser elevado a um pedestal de herói (pois seu personagem, assim como o de Perez, estava ganhando notório destaque dentre o público) e, em seguida, sucumbiria as imperfeições que distanciam os homens dos deuses, tal como acontece na obra Édipo Rei, de Sófocles.
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Recorte 3 - André Caramante/ Josmar Jozino: Jornal Folha de São Paulo
Nessa notícia, apesar de não existir aparentemente uma ambiguidade mimética (visto que ela está implícita), o simples fato do empresário ser descendente de japoneses que realmente imigraram do oriente, somado ao tom trágico da matéria, afirmando que ele poderia ter sido degolado vivo, já remonta uma ideia de heroísmo nipônico no inconsciente da sociedade: essa notícia traduz uma tradição vinda do campo de batalha, em que guerreiros samurais lutavam contra seus oponentes e, quase sempre, o derrotado acabava sendo decapitado pelo vencedor, pois o oponente vitorioso usaria sua cabeça como prova de que realmente venceu o rival. Algumas evidências históricas apontam, inclusive, que muitos samurais untavam seus elmos com perfumes e incensos para que aquele que o decapitasse se agradasse com a "oferenda". Logo, esta seria a maneira como a notícia do jornal Folha de São Paulo aproxima a mimese do factual. Elize vinha de uma vida de prostituição antes de se casar com Kitano. Seu ethe, nesse caso, seria a soma de toda a sua vida como meretriz em Curitiba, vivida no submundo da capital paranaense. O submundo geralmente se caracteriza por ser um fragmento da sociedade, vivido de uma maneira peculiar, longe dos olhos da sociedade convencional. Nele, predominam os vícios e todos os instintos animalescos do ser humano afloram.
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Entretanto, o que motivaria sua praxeis, ou seja, sua hybris¸ seria o temor de voltar para essa vida, tal como afirmou em depoimento ao dizer que, depois de cobrar explicações sobre a traição de Kitano, e ambos terem discutido fervorosamente, o empresário lhe diria que a mandaria de volta para o submundo curitibano, tirando tudo dela, inclusive a filha. Assim, ela fora acometida (segundo seu depoimento) de um sentimento que a cegou, a ponto de assassinar o marido. Tal sentimento pode ser equiparado ao pathos na tragédia. "Assustada" com o desenvolvimento da sua diegese, Elize ainda teria o sangue frio de arrastar o corpo de seu marido e o desmembrar, para que, posteriormente pudesse se livrar do cadáver. Com isso, diferentemente dos samurais que faziam questão de mostrar a cabeça de seus inimigos decapitada, Elize buscava esconder seu trunfo, visto que as leis da sociedade punem essa prática. Chamamos de trunfo, pois, com a morte de Kitano, a herdeira direta de toda a fortuna do empresário é a filha do casal. Quando Elize cumprir a sua pena, que deve cair para no máximo sete anos em regime fechado, com direito a cumprir o restante em regime aberto e semi-aberto, poderá administrar todo o império da família Matsunaga, mesmo porque, depois disso conseguirá a guarda da filha e estará a frente das decisões sobre o destino de seus bens. Considerações finais Nossa pesquisa se pautou, em todos os momentos nesse artigo, em suposições. Como pesquisadores, sabemos que acima de tudo encontramos nas hipóteses aqui trabalhadas uma nova forma de contribuição para os estudos da literatura e do discurso jornalístico, com fontes consideradas confiáveis tanto ao que se refere às teorias como nas matérias publicadas em dois dos maiores (senão os maiores) representantes da imprensa jornalística brasileira. Não cabe a nós concluirmos esse trabalho, mesmo porque ele continuará em constante evolução. Sabemos ainda que as teorias tomadas como verdades até aqui nasceram não apenas para explicar um determinado estudo, mas também para serem questionadas por novas teorias, que certamente surgirão tentando separar o "joio do trigo", ou seja, defenderão seus pontos de vista individuais.
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Na tentativa de contribuir para as pesquisas modernas sobre o tema aqui proposto e, acima de tudo, aprimorar o conhecimento quanto aos métodos utilizados por nossos jornais, na formulação de suas notícias, estudamos apenas uma parte, um fragmento sobre o discurso veiculado em jornais, que, como afirmamos no inicio, produzem discursos da/na/ para a cidade, prezando pelo factual, sem esquecer o subjetivismo. Caberiam, aqui, ainda inúmeras outras análises, mas nos detemos apenas naquilo que acreditamos ser fundamental para a nossa proposta. Talvez o único fato no jornalismo é que ele é capaz de dialogar com a sociedade de uma maneira mais íntima, revivendo no imaginário coletivo mitos antigos que até a modernidade eram tomados como verdadeiros e usados para explicar a origem de tudo. Essa função de intermediador, que, como nos ensina Traquina (2012), aproxima o público das instituições governantes, pode ser, inclusive, equiparada às funções de um xamã, que procura aproximar a sociedade dos deuses. Com isso, diríamos que o jornal atua como esse líder xamanico, enquanto que o seu público busca por esse elo com seus governantes, os deuses modernos. Referências: CAMARGO, Hertz Wendel de. SILVA, Daniela Silva da. Comunicación y memoria cultural: la estructura de lo trágico en la prensa latinoamericana. In: Revista de Investigación del Departamento de Humanidades y Ciencias Sociales Universidad Nacional de La Matanza. Ano 3. Número 5. p. 3-20. CARAMANTE, André. JOZINO, josmar. Polícia apura se executivo da Yoki foi degolado vivo. Folha de São Paulo, ano 92, p. c11, 15 de Junho de 2012. MARINHO, Roberto. Antes de matar, antes de morrer. O Globo, ano 63, p.1, 6 de janeiro de 1993. SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Gêneros literários. In: Teoria da literatura. 1 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1976. p. 67 – 85. STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Rio de Janeiro: Europa-America, 2001. TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo. vol. 1. Florianópolis: Insular, n/d. VENTURA, Roberto. Tchau, Yasmin. Folha de São Paulo, São Paulo, ano 72, p. 3, 3 de janeiro de 1993.
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COLUNAS FEMININAS UMA AMIZADE “ENTRE MULHERES”
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Willian Rolão Borges da Silva2 (NECC/ PPGMEL/UFMS) Edgar Cezar Nolasco3 (NECC/ UFMS – PACC/UFRJ)
O bibliófilo, ao adquirir um livro velho, assumia o poder de lhe dar nova vida. Na sua obra, Benjamin repete o processo revitalizador do bibliófilo, transformando-se em colecionador de citações, arrancando os fragmentos de seu contexto e os organizando numa forma nova, sempre arbitrária e nunca definitiva. Lê e coleciona, desloca a tradição, por um processo simultâneo de conservação e destruição. SOUZA, 2011, p. 44.
Tomando com base as colunas femininas publicadas em Correio feminino e Só para mulheres de Lispector torna-se produtivo discutir a amizade, bem como posso, a partir das colunas, traçar diversas amizades. A primeira poderia ser entre Clarice e os escritores que fazem parte de suas páginas femininas ou a serem apresentados às suas leitoras, temos assim as relações de Clarice e Lin Yutang, Katherine Mansfield, Simone de Beauvoir e Virginia Woolf. Nessa relação de Lispector e outros escritores pontuo também a relação dela enquanto colunista com uma Clarice Lispector contista, visto que textos das páginas femininas migraram para livros de contos, por isso entendo que Clarice apresentou seus próprios textos ficcionais à suas leitoras. Depois pode-se relacionar a ficcionista com seus pseudônimos, Ilka Soares, Helen Palmer e Tereza Quadros, a fim de se observar o que cada uma dessas personae modificou a escrita de Clarice, em se tratando de temas. Em seguida, há a amizade de Clarice com Aparecida Maria Nunes, organizadora dos livros que contem as colunas femininas. Essa amizade 1
O artigo faz parte de uma pesquisa maior que o autor desenvolve junto ao PPGMel/UFMS, intitulada “Entre bios e espectros: (des)arquivando as colunas femininas de Clarice Lispector”, sob orientação do Prof. Dr. Edgar Cézar Nolasco. 2 Graduado em Letras (português-inglês) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Mestrando em Estudos de Linguagens pela mesma instituição, bolsista CAPES e membro do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos Culturais Comparados (NECC). 3 Professor do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagens e do curso de Letras da Universidade Federal de Matogrosso do Sul. Coordenador do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos Culturais Comparados (NECC).
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parte mais de Nunes para Clarice, já que Nunes dispôs das colunas de Lispector como quis para montar Correio feminino e Só para mulheres. Minha amizade com Lispector também emergirá, muito parecida com essa amizade de Nunes. Para entender melhor essa amizade será necessária a retomada da noção de bibliófilo, apresentada por Souza, e de arquivo, apresentada por Derrida. Cabe a Nunes a ideia de colecionadora de citações, de responsável pelo (des)arquivamento das colunas, no meu caso caberia a ideia da abertura de um baú fronteiriço e um outro (des)arquivamento das colunas de Clarice. Aproximo ainda Clarice, Nunes e eu mesmo quando leio a seguinte pergunta de Eneida Maria de Souza: “Falar do outro, resgatar sua memória, não seria ainda distinta maneira de narrar a si próprio?” (SOUZA, 2011, p. 53.) Dessa forma, ao falar do outro, no momento em que Clarice menciona outros escritores, e Nunes e eu falamos de Clarice nossas vidas não ficam de fora das reflexões que propomos ao pegar emprestado a voz do outro. Outra relação de amizade mais evidente é a de Clarice com suas leitoras. É necessário mencionar que ainda continuo na esteira de Francisco Ortega e suas considerações sobre amizade. Os jornais em que Lispector escreveu suas colunas demandavam a criação de uma proximidade com suas leitoras, tanto que em Diário da noite, Clarice enquanto Ilka Soares recebia e tinha que responder cartas de suas leitoras, em uma delas Clarice escreve a seguinte devolutiva Não, G.B., você ainda não experimentou tudo o que a vida pode dar, como diz na carta. (...) Você espera que chamem você, que insistam, como se os outros fossem deuses dadivosos. Não se esqueça das inúmeras pessoas ainda mais tímidas e solitárias do que você, e que esperam um sorriso para se aproximarem. (LISPECTOR, 2008, p. 56.)
Em outra página ela trata exclusivamente da amizade, comentando que “Grande coisa, importante coisa é ter um amigo. Desses que têm serena autoridade de divergir da opinião emitida sem que haja choque, sem que haja orgulhos feridos.” (LISPECTOR, 2006, p. 67.) O que se entrevê a partir dos dois trechos é a ideia de amizade que muito se relaciona com a defendida por Ortega. Uma amizade que não se pauta apenas na noção fraternal, mas que tenha um caráter político mais evidente, ainda que nas colunas isso apareça de forma suavizada. No trecho em que há a resposta a uma carta da leitora, observa-se que Clarice está discordando das afirmações feitas por G. B. em sua carta, além de apresentar à leitora o problema da própria sobre outra perspectiva, possivelmente deslocando a visão que a própria leitora possuía de seu problema. Para
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Ortega, “A amizade representa uma relação com o outro que não tem a forma, nem a unanimidade consensual nem de violência direta. Trata-se de uma relação agonística, oposta a um antagonismo essencial”. (ORTEGA, 2000, p. 88-81.) A página feminina destacada exemplifica isso muito bem, quando se observa a leve discordância presente, assim não há nem uma unanimidade nem a violência direta mencionadas por Ortega. Quem apresenta outra ideia de amizade entre Clarice e suas leitoras é Nadia Battella Gotlib, para a estudiosa a Clarice colunista é a junção de outras Clarices, a ficcionista com seus pseudônimos. Ela pontua que ela é, sobretudo, o conjunto de todas estas, reunidas no papel da bruxa que se insinua sob a capa de boa e amiga conselheira às suas leitoras para por em prática a sua “poética”, ou seja, a sua estratégia narrativa embasada no procedimento de dissimulação. (GOTLIB, 2009, p. 343.)
Dessa consideração de Gotlib destaco a pluralidade de Clarices que se relacionam com as leitoras, justamente porque essa pluralidade está na noção de amizade de Ortega. De acordo com o autor a amizade exprime mais a humanidade do que a fraternidade, precisamente por estar voltada para o público. Ela é um fenômeno político, enquanto a fraternidade suprime a distância dos homens, transformando a diversidade em singularidade e anulando a pluralidade. (ORTEGA, 2000, p. 31.)
Assim é na pluralidade que a amizade se torna mais política e perde seu teor fraternal. Por isso ao pontuar a reunião de diversos papéis em Clarice colunista, Gotlib a põe sob a amizade de Ortega. Dessa forma, Clarice ao falar de mulher para mulher, recorre a diferentes máscaras, ora é mais ficcional, ora apresenta às donas de casa uma Clarice leitora, ora veste-se de Tereza Quadros, Helen Palmer, Ilka Soares e “obedece” os parâmetros de colunas femininas, contudo sempre mantém as leitoras sobre seu domínio, por isso Gotlib a chama de bruxa, por causa de todo esse jogo de dissimulação. Para Gotlib o que possibilita essa multiplicidade de máscaras é a ficcionalização das colunas. Contudo isso parece estar mais ligado ao espaço no qual se encontra Clarice. Ela ocupa o espaço das colunas femininas, nelas pode ser várias ao mesmo tempo, pode ser suas várias personae sem ser a famosa ficcionista Clarice Lispector, já que não assina tais colunas. Dessa forma é interessante estudar as relações de amizade nas colunas femininas, pois por intermédio delas pode-se observar as diferentes personae Clarice Lispector. Outra amizade possível de se estabelecer é a relação de Lispector e as figuras
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que seus pseudônimos evocam. Ao desarquivar as colunas femininas, desarquivo inevitavelmente também as personae Tereza Quadros, Helen Palmer e Ilka Soares, apesar de o desarquivamento desses espectros não ser meu objetivo, eles emergem no momento em que escrevo sobre as colunas, com Lispector não foi diferente. Ao escrever textos ficcionais ou ao preparar livros de contos a serem publicados, ou até mesmo ao ter que escrever outras páginas femininas os espectros reapareceram à Clarice. É o que acontece exemplarmente em “Só para mulheres”, coluna de Lispector em Diário da noite, nesta coluna há claramente uma volta à coluna “Entre mulheres” de Tereza Quadros. A página feminina “Meio cômico, mas eficaz” que aparece na coluna de Tereza Quadros, precisamente no dia 8 de agosto de 1952. Depois, reaparece na coluna de Ilka Soares, desta vez com outro título, “Receita de assassinato (de baratas)”, em 1962. Outro exemplo é a página feminina “Mistério em São Cristovão”, publicada em 08 de agosto de 1952, no semanário Comício, em seguida publicada como conto sem alteração do título no livro Alguns contos, de 1952, além de também figurar como conto em Laços de família, de 1960. Eneida Maria de Souza ao comentar sobre o livro Os três últimos dias de Fernando Pessoa, de Antonio Tabucchi, afirma que os heterônimos pessoanos se transformam em personagens, saem das páginas dos livros e dramatizam o encontro com Pessoa, ao ser hospitalizado. Atuam como parceiros e fantasmas da escrita de Tabucchi e recebem sobrevida ficcional ao serem convocados para se despedirem do autormoribundo. (SOUZA, 2011, p. 82.)
Paralelamente o mesmo ocorre com as personae de Lispector, que emergem das colunas femininas e fazem companhia à ficcionista em alguns momentos de sua produção. Eu também me encontro com tais espectros ao escrever, no processo de recortagem e de montagem das colunas femininas que me proponho a fazer, nesse processo de (des)arquivamento, Tereza, Helen e Ilka nele se infiltram. Ao retomar uma página feminina específica, não a retomo por meio de Lispector, mas sim por meio de suas outras personae, colado à página também está a persona a que ela pertence. Assim se torna difícil uma separação. É sobre isso que Coracini comenta em seu ensaio, com base em Derrida. Para ela a memória é constituída de um sem-número de espectros, de fantasmas, de espíritos se assim quisermos, de fragmentos de sujeitos que atravessa(ra)m nossa existência e que vão constituindo arquivos, ora mais, ora menos organizados, segundo a função que desempenha(ra)m na vida de cada um. Na maior parte das vezes, eles
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se misturam, se combinam, se confundem, constituem uma rede de fios emaranhados, cuja origem heterogênea e híbrida permanece, desconhecida, no inconsciente. (CORACINI, 2010, p. 129.)
Tomo a memória como arquivo nesse contexto. Assim observa-se a mistura e união desses fantasmas, no caso das colunas. Colunas femininas e espectros estão fundidos, assim no trabalho de escavação que desenvolvo à procura das colunas de Lispector escavo também essas outras Clarices, por serem inseparáveis. Atravessada tanto pelos textos das colunas como pelos espectros, monto minha Clarice Lispector, não outra que uma contaminada por Tereza Quadros, Helen Palmer e Ilka Soares. A partir disso ao ler “Uma escritora inglesa – Virgínia Woolf – querendo provar que mulher nenhuma, na época de Shakespeare, inventou, para este último, uma irmã que se chamaria Judith.” (LISPECTOR, 2006, p. 125.) E a narração da história de Judith, quem me conta é Tereza Quadros e não Lispector. Primeiro vejo a máscara, Tereza Quadros, depois por detrás dela é que entrevejo Clarice Lispector. Minha leitura também está atravessada por outras questões, destaco aqui o local fronteiriço que ocupo, assim o baú que abro é contaminado também por esse local, por isso o baú que abro é fronteiriço. A partir do não esquecimento, da retomada e da convivência de Clarice e suas personae, estabelece-se uma amizade. Amizade iluminada no momento da reutilização das páginas femininas, ao fazer isso Lispector equipara essas outras Clarices a Virgínia Woolf, Katherine Mansfield e Simone de Beauvoir, já que são elas as eleitas para de uma forma ou de outra fazerem parte de sua produção. Ao fazer isso, essas escritoras de páginas femininas são retiradas de seu lugar marginal para ganhar mais importância ao terem seus textos apropriados por uma escritora como Clarice Lispector. Por fim, faço uso do ensaio de Edgar Cézar Nolasco, “Políticas da crítica biográfica”, pois nele o autor relaciona a apropriação com a escolha de uma herança, ao discutir herança traz à discussão os apontamentos de Derrida. O autor aproxima essa apropriação de uma filiação, de uma plêiade de amigos, de uma cultura a serem escolhidos, e, por conseguinte, herdados. Não se trata somente de aceitar tal herança escolhida, mas de mantê-la viva no presente. (NOLASCO, 2010 , p. 36.)
Por meio do que afirma Nolasco, mais uma vez se enfatiza a eleição feita por Clarice ao retomar suas personae, ao fazer as mantém vivas. O que poderia ser entendido apenas como uma reutilização das colunas femininas de Lispector, ao transportá-las para outros lugares, pode-se ser observado também como manutenção da
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vida dos espectros, lança-se sobre eles uma sobre-vida. Uma vez que, como demonstrado, não há como separar as colunas das personae, nem o (des)arquivamento de um sem o (des)arquivamento do outro, visto que estão combinados, fundidos. Assim o que se buscou efetuar nesse ensaio foi uma genealogia da amizade, na qual fosse possível visualizar as diferentes amizades estabelecidas, tomando como ponto de partida as colunas femininas de Clarice. Dessa forma, foi demonstrado como as amizades estabelecidas iniciam-se no ato de escolher uma assinatura para as colunas, ocorre também na escrita, por meio dos amigos, ou melhor amigas, a quem a autora pede ajuda para montar as colunas. Há também uma amizade simulada com as leitoras e, por fim, uma amizade estabelecida do estudioso das colunas com a colunista Lispector, nessa amizade se ressaltou o papel de Aparecida Maria Nunes, bem como o meu papel de pesquisador. Metaforicamente Nunes e eu assumimos o papel de bibliófilo, uma vez que com nossos estudos lançamos sobre as colunas novos olhares, novos significados, além de dar a essas produções uma sobre-vida.
De mulher para mulher: genealogias de uma amizade
Nesse trabalho buscarei traçar a amizade entre Lispector e as escritoras que ela apresenta às suas leitoras. Assim Katherine Mansfield, Simone de Beauvoir, Virginia Woolf entre outras desfilam pelas colunas femininas de Lispector. Nota-se uma genealogia de leitura, visto que a primeira leitora é Lispector que lê as escritoras elencadas não satisfeita com isso também faz com que suas leitoras as leiam, por intermédio dessa vez da leitura que ela própria Lispector faz. Ainda é possível avançar um grau a mais nessa genealogia, isso ocorre quando observo que é a minha leitura enquanto estudioso que possibilita a construção dessa genealogia, desse modo sou tanto o responsável por inscrevê-la como um de seus itens relacionados. É no momento em que Clarice apresenta essas escritoras que tenho a oportunidade de enxergar a própria Lispector por detrás da máscara de Tereza Quadros, Helen Palmer ou Ilka Soares. É possivelmente nesse momento que Clarice se mostre mais. Para corroborar minha afirmação tomo como base Diana Klinger em seu livro Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica, a autora comenta que “a ficção seria superior ao discurso autobiográfico pois o escritor não tem
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como prioridade contar sua vida, mas elaborar um texto artístico, no qual sua vida é matéria contingente.” (KLINGER, 2007, p. 39.) Entendo aqui ficção como discurso inventado, por isso relaciono essa noção às colunas femininas, além disso vale lembrar que páginas femininas foram publicadas como contos posteriormente, fato que pode reforçar o entendimento das páginas femininas como ficção. Por meio da afirmação de Klinger compreendo que Clarice usa a matéria de sua vida, suas leituras como ferramenta para a produção das colunas femininas. É interessante observar que no momento em que aparentemente Clarice se afasta da autoria das colunas, quando traz uma citação de outro autor, deixando de dizer algo, cedendo sua voz a outro é que está sendo mais pessoal, pois nos mostra suas leituras. Dessa forma quando escreve a página “Liu Yutang escreveu" e convoca o autor chinês para dizer “Os trajes femininos são apenas meio-termo entre o confessado desejo das mulheres de vestir-se e o inconfessado desejo de despir-se.” (LISPECTOR, 2008, p. 111.) Clarice mostra sua leitura. Posso facilmente ver nessa página feminina um momento biográfico de que fala Leonor Arfuch. Momento em que entrevejo vestígios da vida de Lispector. No livro O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea de Arfuch, a autora comenta que (...) se a exaltação da individualidade tende a desarticular laços sociais, a consolidar o império do mercado — do desejo — e a utopia consumista, pode abrir caminho para uma nova intimidade, não apenas sob o primado pedagógico, mas também como terreno de manifestação de políticas da diferença, que rejeitam o modelo único das vidas felizes (o casamento heterossexual, as descendências, as linhagens...) (ARFUCH, 2012, p. 99.)
Nas colunas de Clarice ocorre essa política da diferença de que fala Arfuch, contudo não uma voltada à discutir o casamento heterossexual, Lispector aborda mais questões ligadas às mulheres e seus papéis sociais, fato que pode ser comprovado destacando a presença de Virgínia Woolf e Simone de Beauvoir nas colunas. É necessário pontuar que essas autoras só aparecem por duas vezes, entretanto há outras páginas femininas que estão contaminadas por essa discussão. Destaco que a política da diferença presente nas colunas é uma que se estabelece no conhecimento ocidental, ocorre quando um sistema "olha" a si mesmo, o que quero dizer é que esta diferença não é a diferença colonial. Uma das noções apresentadas por Mignolo demonstra que A diferença colonial é, finalmente, o local ao mesmo tempo físico e imaginário onde atua a colonialidade do poder, no confronto de duas
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espécies de histórias locais visíveis em diferentes espaços e tempos do planeta. (MIGNOLO, 2003, p. 10.)
Nos questionamentos propostos por Lispector o confronto que se estabelece tem histórias locais de um mesmo sistema, as duas advêm da modernidade. Não se tem nesse caso uma história local ligada à colonialidade. Apesar disso a discussão levantada por Lispector está dentro das duas possibilidades elencadas por Walter Mignolo como formas de se criticar a modernidade. Assim, para o estudioso argentino “há duas formas de criticar a modernidade: uma a partir das histórias e legados coloniais (póscolonialismo, pós-ocidentalismo e pós-orientalismo) e a outra, pós-moderna, a partir dos limites das narrativas hegemônicas da história ocidental.” (MIGNOLO, 2003, p. 140.) A partir disso, enquadro as esporádicas páginas femininas que abordam essa discussão nessa forma pós-moderna de se criticar a modernidade. É importante lembrar que essa “crítica” não era o foco das colunas femininas, até por isso sua presença é tímida nesses textos. É por intermédio de outras vozes que Clarice aborda essas questões, por isso retomo as reflexões sobre amizade de Francisco Ortega. Para avançar na discussão feita nesse ensaio é preciso seguir os passos de Ortega em Genealogias da amizade, visando visualizar que amizade emerge das colunas femininas de Lispector. Inicio essa breve trajetória no século XVIII, para o autor a amizade nesse século “será mais íntima, mais privada, mais afetiva e exclusiva, e, em consequência, menos política.” (ORTEGA, 2002, p. 139.) Já comentando especificamente sobre a amizade feminina no séc. XIX pontua que “As mulheres compartilhavam ansiedades, tristezas e alegrias num mundo feminino que deveria ser preservado.” (ORTEGA, 2002, p. 152.) Essas noções de amizade podem ser associadas às colunas de Lispector, e o seu relacionamento com as leitoras, apesar dessa relação não ser nada privada. Apenas por meio de alguns títulos de páginas femininas nota-se essas noções, “Bolo prende-marido”, “Beijo fatal”, “Segredos da cozinha”, “Rugas? Não”, “Sono pesado & peso”, “Problema: ‘Meu filho não quer comer!’”, “As brigas”, “Arranjar marido” e “O interior de sua bolsa”. Entre conselhos e receitas o mundo feminino se desvenda. Destaca-se assim uma amizade extremamente “íntima” nas colunas, na medida quanto mais íntima mais distante de uma amizade política. Corrobora isso a ideia de uma amizade familiar. Contudo no âmbito das amizades femininas houve um tempo no século XIX que essa relação não era bem vista, pois ameaçava a ordem social. Aparentemente as colunas femininas não seriam
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perigosas nesse sentido, bastaria lermos uma vez mais os títulos listados que essa ameaça se desvanece. O que Ortega aborda nesse traçado histórico é o enfraquecimento de um caráter político da amizade, Jacques Derrida corrobora esse enfraquecimento em Políticas da amizade. Na introdução do livro o autor discute a amizade fraterna e questiona-se se na confluência da amizade e do familiar a noção de política também se perderia. O autor se pergunta então, Porque seria o amigo como um irmão? Sonhamos, nós, com uma amizade que se eleva para além desta proximidade do duplo congênere. Para além do parentesco, tanto do mais como do menos natural, quando ele deixa a sua assinatura, desde a origem, tanto no nome como no duplo espelho de um tal par. Perguntemo-nos então o que seria a política de um tal para além do principio de fraternidade. Merecerá ela ainda o nome de política? (DERRIDA, 2003, p. 10.)
O que noto nas colunas femininas é exatamente a exacerbação da intimidade em detrimento de uma questão política A amizade agonística explicada por Ortega como uma amizade que se estabelece entre a unanimidade consensual e uma violência direta, não emerge da maior parte das páginas femininas. Contudo as vezes ela aparece. Aparece tendo como base um outro texto ou outra autora, como ocorre na página “Mulheres cansadas” que reproduzo em sua totalidade. Estou convencida de que a grande maioria dos mal-estares e doenças que afligem as mulheres têm causas psíquicas. E por causa da tensão moral de que falei, por causa de todas as tarefas que elas assumem, das contradições do ambiente no qual se debatem, que as mulheres estão constantemente cansadas, até o limite das forças. Isso não significa que seus males sejam imaginários: eles são reais e devorantes como a situação que exprimem. Mas a situação não depende do corpo, é este que depende dela. Assim, a saúde não prejudicará o trabalho da mulher quando esta tiver na sociedade o lugar de que precisa. Pelo contrário, o trabalho a ajudará poderosamente a obter um equilíbrio físico, não lhe permitindo que se preocupe com este sem cessar. Quem diz isso? Uma das mulheres que mais estudaram os problemas de outras mulheres: Simone de Beauvoir. Você concorda? (LISPECTOR, 2006, p. 59.)
Dessa vez é Simone de Beauvoir que aparece em Diário da noite em 29 de agosto de 1960. Lispector fora muito provavelmente levada a fazer uso de Beauvoir pois por volta- da data da publicação da página feminina a pensadora francesa estava chegando ao Brasil em companhia do esposo Jean-Paul Sartre. A discussão levantada a partir da página é sobre o cansaço das mulheres que trabalham fora de casa. O que se percebe é uma defesa dessa atividade. Além disso, ao saber que o trecho é creditado à
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Beauvoir posso adicionar à página feminina num discurso de resistência às ideias dos lugares sociais legados às mulheres, ideias construídas pela sociedade patriarcal. De acordo com Aparecida Maria Nunes Clarice Lispector soube manejar e misturar em seu caldeirão alquímico, dividindo com a leitora de jornal uma visão às vezes estereotipada mas, às vezes também, implodindo os próprios estereótipos, em busca de um rosto de mulher que não representasse o ideal masculino de feminilidade. (LISPECTOR, 2006, p. 59.)
Dessa forma a ideia que apresentei anteriormente, as colunas femininas como espaços de construção de uma amizade familiar começa a se desfazer. Se ao utilizar da pensadora francesa Clarice convoca para sua coluna um discurso que se preocupa com as questões femininas, não só isso como indaga que feminino seria esse, a partir disso se pode ver um uso mais político do espaço das colunas. Adicionado a isso, a própria Clarice cria e usa de suas “amigas” como bem entende nos três jornais em que trabalhou como forma de sobrevivência. Também as escritoras famosas Virginia Woolf, Katherine Mansfield, Clarice Lispector, entre outras mulheres, fizeram-se presentes nas três colunas, justificando, inclusive, o título desse tópico de meu ensaio de mulher para mulher. De Mansfield, Tereza Quadros traduz um trecho de um conto da escritora, que vem entre aspas, atestando a tradução. Se ali, no jornal, havia Tereza Quadros traduzindo Mansfield para suas leitoras. Vê-se que, por meio de suas personae, a escritora literalmente arruma pretexto para convocar seus amigos literários com os quais sua literatura nutria alguma afinidade. Nesse sentido, podemos dizer que se, por um lado, a escritora procurou a todo custo esconder suas possíveis amizades literárias, por outro, suas criaturas inventadas divulgavam pela mídia impressa os amigos mais admirados e lidos pela escritora/jornalista. Assim suas amizades não são importantes apenas por a ajudarem a refletirem sobre a sociedade em que vive, são usadas para o cumprimento de seu serviço como colunista. Por tudo isso, é possível observar o caráter político em que as colunas se envolvem, o que era familiar ganha traços políticos e por vezes até considerados perigosos. De acordo com Francisco Ortega A instituição familiar havia logrado integrar amor, amizade e sexualidade no casamento, uma estratégia que doravante define o código da intimidade nas sociedades ocidentais. Pode-se compreender como, ante essa situação, as amizades femininas apareçam como uma ameaça da ordem social, e que, portanto, devam ser abjurada. (ORTEGA, 2002, p. 154.)
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Para o estudioso uma vez que se busca fora das relações familiares algo que elas não oferecem a ordem social começa a ser ameaçada, é nesse lugar que ele situa a amizade entre mulheres no século XIX, no mesmo lugar posiciono a amizade construída no espaço das colunas femininas de Clarice Lispector. A partir da produção das colunas de Clarice constrói-se essa noção de amizade por meio da utilização de Tereza Quadros, Helen Palmer, Ilka Soares, Virginia Woolf, Katherine Mansfield, Simone de Beauvoir e a própria Clarice Lispector. Formulou-se assim uma breve genealogia da amizade da colunista Clarice Lispector. Em busca de uma conclusão para este ensaio, retorno ao seu início, à Derrida e sua noção de arquivo, visto que nada fiz além de (des)arquivar as colunas femininas de Clarice Lispector. O filósofo francês comenta que “Não haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical, sem a possibilidade de um esquecimento que não se limita ao recalcamento.” (DERRIDA, 2001, p. 32.) Assim esse (des)arquivamento é/foi necessário para que Tereza Quadros, Helen Palmer e Ilka Soares, para que Clarice Lispector se mantivessem vivas.
Referências
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução de Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. CORACINI, Maria José R. F.. “A memória em Derrida: uma questão de arquivo e de sobre-vida”. In: CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS: crítica biográfica. v. 2 n. 4 Campo Grande – MS: Ed. UFMS, 2010, 9-24 p.
DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. de Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Duramá, 2001.
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1980
Literatura
QUANDO AS MÁSCARAS CAEM EM O SOL SE PÕE EM SÃO PAULO, DE BERNARDO CARVALHO Adenize Aparecida Franco (UENP) […] a “identidade” só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto. Zygmunt Bauman
Num Japão pós-guerra, os escombros, os dejetos, as frentes de batalha e os traumas de guerra amontoam-se como ruínas para o cenário da história de Mishiyo/Setsuko, Jokichi, Masukichi e um narrador-escritor-yonsei, com tendências de investigador em O sol se põe em São Paulo. A partir do depoimento que Setsuko concede ao narrador-escritor, vão sendo dispostos os acontecimentos do passado da senhora, dona de um restaurante no bairro Liberdade, em São Paulo. A contextualização desse espaço, na visão do narrador, um publicitário desempregado com aspirações à escrita literária, dá-se da seguinte maneira, Liberdade é um desses bairros de São Paulo que, embora em menor escala do que nas regiões mais ricas, e por isso mesmo de um modo às vezes até simpático, ressalta no mau gosto da sua rala fantasia arquitetônica o que a cidade tem de mais pobre e paradoxalmente mais autêntico: a vontade de passar pelo que não é. O pôr-do-sol em São Paulo é reputado como um dos mais espetaculares, por causa da poluição, eu disse ao homem com lábio leporino. Só fui entender que São Paulo era uma cidade de monumentos – mas onde os monumentos não existiam; eram por assim dizer invisíveis – no dia em que sonhei que dirigia um carro, de monumento em monumento, pelas ruas vazias de uma tarde de domingo, no inverno, uma estação que aqui também não existe. Eram monumentos que eu nunca tinha visto antes, e que só existiam no meu sonho, em lugares onde na realidade se erguem os prédios mais decrépitos ou as fantasias arquitetônicas mais tolas e não menos pavorosas. São Paulo não se enxerga – ou não chamaria periferia de periferia. Não é só eufemismo. [… ] É uma cidade que quer estar em outro lugar e em outro tempo. E essa vontade só a faz ser cada vez mais o que é e o que não quer ser. As mansões mouriscas e ecléticas do começo do século XX (a maioria derrubada) e os prédios mediterrâneos, neoclássicos, florentinos e normandos construídos há poucas décadas revelam o atraso do presente. Cada imigrante, achando que transplantava o estilo da sua terra e dos antepassados, acabou contribuindo para a caricatura local. […] Não é só que tudo esteja fora do lugar. Está tudo fora do tempo também. […] é disso que as ruas de São Paulo tentam convencer quem passa por
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elas: que está em outro lugar, num esforço inútil de aliviar a tensão e o incômodo de estar aqui, o mal-estar de viver no presente e de ser o que é (CARVALHO, 2007, p.15). A extensa passagem acima evidencia questões levantadas por Andreas Huyssen, em sua obra Seduzidos pela memória (2000). Um deles diz respeito ao mascaramento que a cidade de São Paulo cria para si. Através da referência arquitetônica, é possível observar essa tentativa da cidade ser um espaço que não é. A afirmação não é deslocada da linha que circunda uma narrativa que tem como eixo motriz a falsidade. Falsidade dos fatos narrados, falsidade dos personagens e suas identidades, falsidade dos tempos e espaços. São Paulo definida como a cidade que quer estar em outro lugar e em outro tempo é a metáfora do labirinto que forma a narrativa de Bernardo Carvalho. Afinal, assinala A. Huyssen, “[…] as barreiras espaciais se enfraquecem e o próprio espaço é globalizado por um tempo cada vez mais comprimido, um novo tipo de incômodo está se enraizando no coração das metrópoles” (HUYSSEN, 2000, p.31). Incômodo expresso na relação que o personagem de O sol se põe em São Paulo desenvolve com as metrópoles que atravessa: os monumentos de São Paulo ou a necrópole do Monte Koya, em Osaka. Ao recorrer à ideia dos monumentos como imagem desse deslocamento1 espacial e temporal, o narrador enfatiza o mal-estar contemporâneo. A sensação de não se estar no presente sabendo que se está e se faz parte dele. Tal sensação, porquanto, dialoga com o fato de os limites da ficção, da referencialidade e da mobilidade das identidades serem questionadas. O paradoxo que a visão de São Paulo engendra no relato do narrador-escritor constitui-se como elemento, portanto, fundamental nesse romance. A começar pela condição falsa de um escritor que não é. O narrador assume esse papel no momento em que é contratado para, inclusive, a atuação de Setsuko/ Michiyo. Contar significava reconhecer um pesadelo, mas também lhe dar um fim. Era ao mesmo tempo a dor e o remédio. O que ela (Setsuko) escondia era também o que revelava. “O melhor escritor é sempre o que nunca escreveu nada”. Não se sentia à vontade para contar o próprio nome. E era natural que uma hora ou outra eu acabasse me sentindo enganado (CARVALHO, 2007, p. 33). 1
Conforme Z. Bauman, em sua entrevista a Benedetto Vecchi, “Ocorrem as mudanças e os deslocamentos aparentemente aleatórios, fortuitos e totalmente imprevisíveis daquilo que, por falta de um nome mais preciso, chamamos de “forças da globalização”, elas transformam a ponto de tornarem irreconhecíveis, e sem aviso, as paisagens e perfis urbanos a nós familiares em que costumávamos lançar as âncoras de uma segurança duradoura e confiável. Elas realocam as pessoas e destroem as suas identidades sociais. Podem transformar-nos, de um dia para o outro, em vagabundos sem teto, endereço fixo ou identidade” (BAUMAN, 2005, p.100).
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Até o capítulo 17, mais da metade do romance, temos um conglomerado de histórias envolvendo Michiyo, Jokichi e Masukichi, contadas, verbalmente, por Setsuko ao narradorescritor. Esses episódios, entremeados a várias referências da literatura japonesa, configuram-se a partir das máscaras que esses personagens vestem. O teatro kyogen, do qual o personagem Masukichi é ator, revela-se, também, como emblema da história que o romance O sol se põe em São Paulo narra. Considerado uma forma cômica do teatro japonês tradicional, o kyogen atravessa a narrativa de Bernardo Carvalho conduzido pelo ator Masukichi, ao mesmo tempo em que vigora como modelo de falsidade e atuação teatral. Assim como no teatro kyogen, a importância recai sobre os atores, daí a importância de se observar que a tríade de personagens (Setsuko/Michiyo, Masukichi e Jokichi) opera mais de uma identidade (ou máscara) dentro da história narrada (e depois revelada) por Setsuko, agindo, sobretudo, como atores do teatro kyogen, conquanto haja mais dramaticidade e tragédia em suas vidas do que comicidade, a característica principal dessa forma de teatro2. Michiyo não passava de uma atriz coadjuvante, um joguete, como um boneco de bunraku na mão dos verdadeiros atores, os marionetistas vestidos de preto que lhe insuflam vida com suas manipulações. Mais cedo ou mais tarde teria que se render ao fato de que os verdadeiros atores não são nada sem os seus joguetes e que já não podia se afastar de Michiyo, nem de Masukichi, seu papel dependia deles. Estavam todos ligados por contaminação (CARVALHO, 2007, p.59). Como pode ser observado, o excerto acima evidencia essa função de atriz coadjuvante que Michiyo desempenha e com a qual Setsuko irá contracenar. Referindo-se à outra modalidade do teatro tradicional japonês que é a arte das marionetes, o bunraku, Setsuko/Michiyo é ela própria um joguete, um embuste no propósito de narrar uma história em que se coloca como um outro personagem coadjuvante quando, na verdade, era a personagem principal. Um personagem que, na realidade da narrativa, nunca existiu e nunca teve o papel de observador, ou ouvinte das histórias de Michiyo. A revelação do falso, nessa passagem, é significativa dos papéis que os personagens desempenham. Ou escondidos atrás das máscaras de animais ou velhos do kyogen, ou títeres do bunraku, todos tomam identidades outras e atuam nos papéis necessários em cada ato.
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Sobre o Kyogen, além das explicações referidas no próprio romance, consultar a tese de doutoramento de Alice Kiyomi Yagyu, intitulada Do Kyogen ao Qioguem?!: um percurso Oriente-Ocidente na arte do ator (2009).
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Explícito em José Manuel de Oliveira Mendes, as “identidades narrativas” são compreendidas a partir da concepção de que a narrativa ao descrever, contar e prescrever, “[...] refigura o tempo e, partindo da memória construída na continuidade da vida, procura dar-lhe a forma de uma experiência humana” (MENDES, 2002, p.521). Partindo desse pressuposto, aliando à proposta de Paul Ricouer que sustenta o raciocínio do autor e da existência de uma dialética entre a mesmidade e a ispseidade (dimensão moral), é possível verificar nos romances que estamos analisando a presença da memória como elemento construtor das narrativas que, por sua vez, dentro do processo discursivo constroem as identidades dos personagens. Se, a narrativa ao refigurar o tempo, dá a este a forma de uma experiência humana, logo é plausível que em narrativas ficcionais vejamos representadas essa forma de reconfiguração. No caso em estudo, a morte aparece para preservar a vida e possibilitar que os personagens adquiram nova identidade. Quando o narrador-personagem está no Japão e decide, como turista, conhecer o Monte Koya. A visita é emblemática da frase que havia sido anunciada pelo sushiman do restaurante Seiyoken, na Liberdade, ao narrador-escritor: “Quem morre em Koyasan segue vivo”. É em consequência, portanto, desse passeio ao Monte Koya e à necrópole que ele abriga que o personagem percebe essa relação entre a morte e as identidades de seus personagens, “[…] A ideia de que no budismo as pessoas ganhassem novos nomes depois de mortas fazia todo o sentido naquela história em que eu tinha me envolvido. Fui atrás dos mortos. E não posso dizer que não tenha me espantado com o que encontrei” (CARVALHO, 2007, p.118). Tal passagem justifica o que compreenderemos somente no décimo sétimo capítulo, de que é preciso uma morte – ainda que simbólica – quando já há possiblidade de continuar vivendo para poder adquirir e/ou construir outra identidade. Assim, como na visão decantada que o narrador lança à cidade de São Paulo, mencionada no início, o cemitério visitado e seus mausoléus causam espanto ao demonstrar que os monumentos (“os estapafúrdios”) tinham sido construídos por grandes corporações (Matshushita, Nissan, Kubota) em homenagem aos funcionários mortos em serviço. O espanto, ao que parece, refere-se à discrepância entre os monumentos erguidos em homenagem aos diretores e aqueles erguidos para os subalternos – a ostentação simbólica para aqueles e estátuas de operários para esses. A visão expressa pelo narrador-escritor ilustra a constatação de Andreas Huyssen quanto ao mal-estar da civilização em relação às metrópoles. Para o teórico, esse nosso mal-estar “[…] parece fluir de uma sobrecarga informacional e percepcional combinada com uma aceleração cultural, com as quais nem a nossa psique nem os nossos sentidos estão bem equipados para lidar” (HUYSSEN, 2000, p.32).
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Além disso, a menção aos mausoléus, numa região afetada pelas atrocidades da 2ª Grande Guerra, evoca a VII tese de W. Benjamin, em texto já referido, na qual o crítico afirma que “[…] nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” (BENJAMIN, 1994, p.225). Os “estapafúrdios”, monumentos em homenagem aos trabalhadores mortos em suas atividades ecoam a barbárie da reprodutibilidade e da mercantilização, cujas corporações destacam-se sobre a dor dos operários e a musealização turística apaga ou, antes, revela, a inércia do “turista” diante disso. A declaração do pai americano sobre o Templo Kongobugi, ao final do capítulo, é significativa: “[…] Tudo é artificial, mas a marca do homem já não está mais aí. Ele desenhou o jardim, arou a areia e desapareceu sem deixar rastros, embora o próprio jardim já não seja outra coisa além do vestígio da sua passagem” (CARVALHO, 2007, p.119). A paradoxal enunciação, explorando dois dos elementos (rastros e vestígios) que abordamos anteriormente, destaca o monumento como “vestígio” do falso, já que a própria morte é uma encenação nesse romance. É a partir da morte de Seiji que Jokichi consegue continuar vivo e, depois de assassinar o primo do imperador como uma tentativa de vingança em relação a Seiji, consegue outra identidade agora, em outro espaço, no interior do Brasil. De Osaka à Promissão, o tempo e o espaço confluem para que Jokichi adquira outra identidade: passa a chamar-se Teruo, compra uma fazenda, casa-se e tem três filhos. A única coisa que perguntei, quando nos despedimos na estação de Lins, foi sobre o nome. E ele me respondeu que Teruo era o nome que ele quis adotar depois da guerra, antes de nos casarmos, quando tentou comprar uma nova identidade em Kamagasaki, quando acreditou que já não podia viver com o próprio nome, que já não podia se chamar Jokichi (CARVALHO, 2007, p. 153). A dança dos nomes é esclarecida no capítulo 17 em que, semelhante a um ápice de teatro kyogen, em que as máscaras caem, as identidades, portanto, são reveladas. Ressalte-se, quanto à questão do mascaramento, a relação, explorada no romance de Bernardo Carvalho, entre o Kyogen e a tradição milenar que essa peça teatral realça em contato com o personagem Masukichi. Conforme estudos, as máscaras do teatro kyogen são usadas como “disfarce” ou “reveladora de aspectos externos”. São usadas quando as personagens são não-humanas. No caso dos animais, a máscara referente à raposa (elemento que irá acompanhar Masukichi em sua formação no teatro kyogen) aparece na peça A raposa içada. Na primeira parte, a raposa está disfarçada de sacerdote eremita e, na segunda, reflete momentos ambivalentes entre a calma e a tensão. De acordo com Alice Kiyomi Yagyu, a máscara “[…] exerce um fascínio especial para o
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intérprete. Ele quer ser possuído por algo, quer ser levado por algo. Trata-se daquela condição em que o ator esquece totalmente que o teatro é um mundo ficcional, que está usando técnicas teatrais” (YAGIU, 2009, p. 42). A predileção de Bernardo Carvalho pelas aberrações encontra nessa relação um fio intermediário entre Masukichi e a raposa que, no capítulo 07 do romance, explica ser esse papel o de formação, de etapa final no aprendizado de um ator de Kyogen, no qual havia iniciado com a representação do macaco. Ainda, considerando os estudos de Alice K. Yagyu, esse percurso desenvolvido pelos atores de Kyogen revela que além de passarem por mais de uma centena de personagens “em mais de duzentos temas, formas, conflitos e ensinamentos”, significa que tal progressão “[…] animal-humano-animal revela que o ator deve progredir da inocência para o conhecimento, e deste para a inocência que transcende o conhecimento” (YAGYU, 2009, p.88). No caso da trama romanesca de O sol se põe…, o ator escolhe, como afirma no capítulo mencionado, manter-se nesse papel de raposa. Ao contrário do que deveria se dar conquanto seja compreendido como um papel de formação e, portanto, de passagem. Como afirma o narador do romance, “Ele (Masukichi) estava determinado a continuar interpretando a raposa até morrer. Por teimosia. Como uma forma de protesto” (CARVALHO, 2007, p.75). Ademais, recuperando a dança das cadeiras que serão preenchidas com os personagens e suas máscaras no capítulo fundamental (17), em que Setsuko/Michiyo escreve para Masukichi e revela toda a história que também o envolvia, percebemos que, apesar de ator de Kyogen e, quiçá, ser o personagem que mais máscaras iria sobrepor em si, é o que menos transgride sua identidade. Talvez, por isso, a carta endereçada a ele seja reveladora de que Seiji ocupou a identidade de Jokichi, lutando na guerra e que este, por sua vez, tenha vingado a morte daquele quando aderiu a uma nova identidade comoTeruo, em Promissão, no Brasil; enquanto Setsuko era Michiyo ao relatar sua história ao narrador-escritor – que nunca teve seu nome revelado. Essa carta, de extrema importância para o narrador-escritor-investigador, que será lida pelo homem do lábio leporino no Japão, é reveladora da história e da morte. Como a autora da carta revela, “Uma vez escrita, já não terei motivo para seguir vivendo. Ela também é minha morte” (CARVALHO, 2007, p. 134). W. Benjamin, em O narrador, assinala que é no momento da morte que a sabedoria e a existência vivida “[…] assumem pela primeira vez uma forma transmissível” (BENJAMIN, 1994, p.207). Essa transmissão é possível porque no momento da morte o indivíduo mostra a autoridade sobre a experiência que adquiriu em todos os anos de vida. A experiência como existência vivida (sofrida), que poderá ser passada aos demais porque deriva de sua história natural.
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O recurso ficcional da narrativa final de Setsuko-Michiyo demonstra o modelo de narrador tradicional que W. Benjamin expõe em seu estudo e semelhante àquele que ata as pontas da vida tentando restaurar na velhice a adolescência (parodiando Dom Casmurro) quando retomamos sua fala no início do romance, “Contar significava reconhecer um pesadelo, mas também lhe dar um fim. Era ao mesmo tempo a dor e o remédio. O que ela escondia era também o que revelava” (CARVALHO, 2007, p.33). E se boa parte do romance, as identidades são expostas e depois contrapostas na revelação final da contadora, o objetivo, entretanto, é o mesmo: narrar a experiência antes da morte. E a verdade, ou uma pretensa verdade, é dita apenas àqueles que fizeram parte dessa experiência, desse segredo. Por isso, o bosque Tadasu-no-mori, ou “onde as mentiras se revelam”, parece ser o cartão postal que acompanha a carta de Setsuko/Michiyo. Essa revelação esbarra no paradoxo da memória de Setsuko/Michiyo que não sabe tratar-se de memória ou imaginação. Nessa ambivalência, a autora da missiva revela outra atuação de Masukichi. Nesta o ator/soldado mostra sua face cruel e solitária ao ser responsável pelo assassinato de toda uma família. A imaginação de Setsuko justifica o ato como forma de vingança e ódio àqueles que não lutaram nas frentes de batalha como ele. O que é revelador dessa passagem é a frase de Setsuko/Michiyo: “Mas só vejo você. Em toda parte, interpretando todos os papéis” (CARVALHO, 2007, p.138). Como detentora do discurso, a narradora tenta convencer o próprio Masukichi, uma vez que a carta é endereçada a ele, de sua culpa. “Ninguém podia imaginar que havia mais de uma impostura” (CARVALHO, 2007, p.147). E o jogo de imposturas revela-se não somente nas máscaras ou identidades abandonadas, mas no próprio processo metalinguístico usado como recurso para essa revelação. A descoberta dos pais de Seiji, de que o filho usava outra identidade na guerra, ou que tinha ido lutar em função dessa identidade, foi possível a partir do romance publicado no jornal pelo escritor a quem Setsuko/Michiyo contou sua história: “Projetaram na ficção a vida que conheciam. Reconheceram no enredo do romance o caso do filho, a história que Jokichi lhes contara quando o rechaçaram pela primeira vez, em Ikuno” (CARVALHO, 2007, p.143/4). Esse primeiro reconhecimento permite a revelação de que Seiji havia assumido a identidade de Jokichi e a compreensão de que este falou a verdade quando havia encontrado com eles. A linha confusa, entretanto, continua pontilhando a história de Seiji. Confusa e, ao mesmo tempo, com tons da exclusão. Nesse emaranhado, descobre-se que Seiji ocupa a identidade de Jokichi não por livre e expontânea vontade, ou pela necessidade de dinheiro em tempos de escassez e crise econômica que a guerra causou. Seiji assume a identidade de Jokichi pela coação do pai deste.
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A revelação de que Seiji era um burakumin coloca mais uma peça no tabuleiro do jogo, nessa investigação das identidades trocadas, perdidas e subsumidas. A questão dos párias, das aberrações e das identidades cambiantes é uma obsessão para Bernardo Carvalho. Em entrevista concedida, o autor revela que as camadas narrativas que compõem seus romances são marcadas pela distorção. Incorporando a esse termo o conceito aberração que, em seu significado derivado da óptica, é definido a partir de A. Houaiss como “desvio dos raios luminosos que atravessam um sistema óptico, provocando uma distorção na imagem” (Dicionário Eletrônico Houaiss), podemos compreender que a distorção, em seus romances, aplica-se tanto ao formato discursivo-narrativo quanto às identidades dos personagens. Para o autor, Eu acho que tem a ver e aberração, a palavra […] quer dizer uma distorção. Também uma distorção astronômica, uma divisão dos astros. Se não me engano, aberração é um negócio técnico de ciência de astronomia que você vê errado, vê torto. Então isso tem a ver com os narradores, porque você tem um filtro que você não vê. O próprio narrador é uma camada, a visão de mundo dele é uma camada. Isso tem a ver com essa distorção e, por isso, tem tudo a ver com a questão das identidades, com o fato do monstro, com a impossibilidade de você não conseguir visualizar (Entrevista concedida pelo autor). Essa visão distorcida3, portanto, justifica a presença de Seiji como um burakumin, um pequeno monstro que precisa, antes de tudo, esconder sua identidade de pária, de excluído e impuro. Pertencente a uma casta inferior dentro da sociedade japonesa, a identidade de Seiji é o ponto para onde todas as identidades dos personagens do romance confluem. Aprendeu desde cedo a ser um burakumin, a se submeter à palavra dos outros, a fazer parte desta casta de párias à qual meu pai sempre chamou eta-hinin, gente impura, se é que os considerava gente, simplesmente porque num passado remoto os antepassados deles teriam feito o serviço “sujo”, como ele dizia, teriam cuidado da carne e dos mortos, matando os animais que nós comemos e executando os criminosos que nós condenamos à morte (CARVALHO, 2007, p.141). A descrição de Seiji e de sua condição de pária é descrita, por Setsuko em sua carta, como justificativa para Jokichi vingar a morte de Seiji. Uma vez que este perdera sua identidade de Seiji ao ocupar o lugar de Jokichi para lutar por um país que o rejeitava, a partir da 3
A respeito dessa visão distorcida, o artigo Refração e Iluminação (2004), da professora Yara Frateshi Vieira é bastante esclarecedor quanto à iluminação enviesada e a homossexualidade refratada que os romances Nove Noites e Mongólia suscitam.
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descoberta que o primo do imperador havia ocupado o lugar daquele e tinha vindo para o Brasil, decide simular o próprio suicídio. Ao tomar essa atitude e criar tal impostura, Jokichi, na verdade, representa mais uma camada no processo da simulação das identidades no romance. Simulando a própria morte, o personagem pode morrer nessa vida que o consome, na qual desde jovem conviveu com a vergonha e o embuste, para assumir outra identidade, também, no Brasil. Torna-se Teruo e, assim, detentor de outra vida, passa a construir/elaborar outra identidade. Importa salientar que o romance O sol se põe em São Paulo revela um processo de espelhamento entre o processo narrativo e as identidades dos personagens. À medida que a narrativa revela-se e despe-se de suas artimanhas, considerando que é impossível – e esse é o elemento paradoxal, enigmático e paranoico do romance – compreender uma verdade, já que a mentira é elogiada desde seu início, também as identidades dos personagens revelam-se. As camadas estão tanto nas ações narrativas quanto na configuração identitária de seus agentes. Essa configuração sinaliza a relação (não de forma realista ou retratista) com as construções identitárias da modernidade tardia ou da pós-modernidade ou dos tempos contemporâneos. De modo geral, a análise de O sol se põe em São Paulo confirma algumas das reflexões de Zygmunt Bauman acerca desse conceito amplamente discutido. Compreendendo a sociedade contemporânea em sua liquidez, o intelectual enfatiza que o mundo está fragmentado, formado em partes cujas peças não se encaixam, ao mesmo tempo em que as existências individuais “são fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente conectados”. Essa fragilidade, que a própria sociedade do consumo sustenta, corrobora para que identidade seja compreendida, estudada ou analisada em seu caráter ambivalente. Em nosso mundo de “individualização” em excesso, as identidades são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como dizer quando um se transforma no outro. […] Num ambiente de vida líquido-moderno, as identidades talvez sejam as encarnações mais aguçadas, mais profundamente sentidas e perturbadoras da ambivalência (BAUMAN, 2005, p.38). Pois, ao mesmo tempo em que se inscreve numa nostalgia do passado, concorda com essa liquidez da modernidade. Conforme Benedetto Vecchi, na introdução ao livro em que entrevista Zygmunt Bauman (Identidade: entrevista a Benetto Vecchi/Zygmunt Bauman), é um beco sem saída tentar “solidificar” o que se tornou líquido por meio de uma identidade, ainda mais quando a própria sociedade tornou essas identidades - sociais, culturais ou sexuais – incertas e transitórias (VECCHI, 2005, p.12).
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Assim, acreditando que a identidade como convenção é uma necessidade, os pólos de ambivalência são impostos à existência social, tais quais a opressão e a libertação. Estar total ou parcialmente “deslocado” em toda parte, não estar totalmente em lugar algum […], pode ser uma experiência desconfortável, por vezes perturbadora. Sempre há alguma coisa a explicar, desculpar, esconder, ou, pelo contrário, corajosamente ostentar, negociar, oferecer e barganhar. Há diferenças a serem atenuadas ou desculpadas ou, pelo contrário, ressaltadas e tornadas mais claras. As “identidades” flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em relação às últimas. Há uma ampla probabilidade de desentendimento, e o resultado da negociação permanece eternamente pendente. Quanto mais praticamos e dominamos as difíceis habilidades necessárias para enfrentar essa condição reconhecidamente ambivalente, menos agudas e dolorosas as arestas ásperas parecem, menos grandiosos os desafios e menos irritantes os efeitos. Pode-se até começar a sentir-se chez soi, “em casa”, em qualquer lugar – mas o preço a ser pago é a aceitação de que em lugar algum se vai estar total e plenamente em casa (BAUMAN, 2005, p.19-20). A afirmação de Z. Bauman encontra seu correspondente literário no narrador-escritor de O sol se põe em São Paulo. Embora desde o início do romance tenha deixado evidente sua márelação com a ascendência japonesa, quando decide ir ao Japão em procura não sabe exatamente do quê, percebe que mesmo nunca tendo pisado naquele lugar, sente o reconhecimento4, tal qual estivesse voltando para casa. Ilusão de estar em casa que será derrubada – como nos blocos de montar – nas primeiras dificuldades que se interpõem entre esse outsider ou estrangeiro que penetra uma sociedade da qual não faz parte. Se antes, o flâneur e os vagabundos ou trapeiros de C. Baudelaire e W. Benjamin mantinham uma relação com os sedentários e havia uma corporificação comunal da identidade, hoje, nossas identidades em movimento, tentam, numa luta, integrarmo-nos aos grupos também “[…] móveis e velozes que procuramos, construímos e tentamos manter vivos por um momento, mas não por muito tempo” (BAUMAN, 2005, p. 32). Entretanto, a fluidez que caracteriza a sociedade contemporânea não permite que se consiga manter a forma por muito tempo. Desse modo, há uma contínua mudança e, por isso, “[…] identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa resoluta a ser devorado” (Idem, p.84). Em O sol se põe em São Paulo há uma passagem significativa desse 4
“[…] Embora eu nunca tivesse pisado ali, tudo era reconhecimento, como se eu estivesse voltando para casa” (CARVALHO, 2007, p.122).
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processo identitário que converge para a própria fragmentação e dissolução do sujeito representado na personagem Setsuko/Michiyo. Na casa do Paraíso, antes de eu entender que ela e Michiyo eram a mesma pessoa, Setsuko havia falado de se sentir amputada desde que saíra do Japão, como uma perna ou um braço que não pertencesse a corpo nenhum. No palco, os personagens também pareciam amputados uns aos outros. Pareciam existir em dimensões paralelas. Mas essa era a visão de um espectador estrangeiro que não podia compreender o que diziam. O menino apertava o nariz do guerreiro sem que ele o visse, como um fantasma. Fazia o mesmo com a orelha do mago. O chapéu o tornava invisível. Eu podia me identificar tanto com o menino invisível como com um mago ou com o guerreiro cego. No Japão, eu não via, mas também não era visto. (CARVALHO, 2007, p. 124) Quando estava no Japão, o narrador-escritor, na tentativa de encontrar alguma pista sobre Masukichi, consegue assistir a uma peça de teatro Kyogen. Mesmo sem compreender a totalidade da peça, consegue apreender um determinado sentido da representação que, por sua vez, condiz com sua experiência e relação com a história de Setsuko/Michiyo. A invisibilidade e a amputação servem como exemplos dessas identidades cambiantes que tanto os estrangeiros (ela estrangeira no Brasil, ele estrangeiro no Japão) como os indivíduos comuns e pretensamente localizados sofrem. Como anteriormente sinalizou Z. Bauman, o “sentir-se em casa” tem um preço. Em entrevista, Bernardo Carvalho considera a dificuldade de “se sentir em casa” como “[…] um mal estar permanente em relação ao lar. Você nunca está bem em casa e os personagens nunca estão bem em casa, eles estão sempre procurando e, também, procuram a casa do lado de fora. Só que a casa é em lugar nenhum”. A contradição, portanto, é visível no fato de que o que move o indivíduo contemporâneo é a ânsia por querer sair de casa e, quando sai, ansia por retornar. É sintomático que a perda de valores éticos e morais esteja, portanto, associada às identidades fluídas que acabam por tentar se acomodar aos espaços em que estão colocadas que, também, constituem-se dentro dessas perdas. Embora isso – como a própria matéria do qual o fluído é feito – seja impossível. Talvez, por isso, a constatação de Z. Bauman, de a ambivalência contínua tem como resultado a “[…] dissonância cognitiva, estado mental notoriamente aviltante, incapacitante e difícil de aguentar” (BAUMAN, 2005, p.99). A potência do caleidoscópio identitário que Bernardo Carvalho explora em seu romance que, num processo de refração tem na composição narrativa da obra seu intermédio, revela-se, tragicamente ou melancolicamente, ao final da carta de Michiyo, “[…] Por mais longe que você
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vá, por mais que eles tentem confiná-lo a um papel e a um lugar que não são seus, você leva sempre as máscaras consigo. […] No fundo, todas as máscaras confirmam quem você é. Pois é você que as usa” (CARVALHO, 2007, p. 155-6). Além disso, se o espelho reflete as identidades múltiplas e transitórias desses personagens, o episódio final deslinda a relação de aprendizado que envolveu o percurso do narrador-escritor, para que esse, finalmente, também se reconhecesse como um outsider, um pária. Referências: BAUMAN, Zygmunt. De peregrino a turista, o una breve historia de la identidad. In: HALL, Stuart; Gay, Paul du. Cuestiones de identidad cultural. 1ed. Buenos Aires: Amorrortu, 2003. p. 40-68. ____. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. ____. Turistas e vagabundos. In: ____. O mal estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, Arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.v.1. CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. ____. O mundo fora dos eixos. São Paulo: Publifolha, 2005. HUYSSEN, A. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos e mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, MAM, UCAM, 2000. MENDES, J. M. O desafio das identidades. In: SANTOS, B. S. (org.) A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002, p. 503-40. TAILLE, Yves de la. Cultura do tédio. Disponível em: http://www.grupoa.com.br/revistapatio/artigo/5938/cultura-do-tedio.aspx, acesso em 05/06/2013, Revista Pátio, maio 2013, número 66. YAGYU, Alice Kiyomi. Do Kyogen ao Qioguem?!: um percurso Oriente-Ocidente na arte do ator. Tese de doutorado em Artes. ECA/USP, São Paulo, 2009.
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O CONCEITO BAKHTINIANO DE LEITURA E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES-MEDIADORES DE LEITURA LITERÁRIA PARA O ENSINO MÉDIO Adriana Demite Stephani (UnB/UFT) Robson Coelho Tinoco (UnB)
Palmilhando a trilha aberta por Mikhail Bakhtin, este trabalho procura avaliar o ensino de leitura literária no Ensino Médio tendo como perspectiva a interação dialógica entre autor e leitor, tornada possível pela atuação decisiva do professor mediador. Parte-se da perspectiva de língua como fenômeno que pressupõe parcerias para a comunicação e o sentido de tudo que se pode pensar e expressar. A situação da leitura literária em espaço escolar é vista aqui em seu âmbito próprio: não um ato solitário e independente, mas uma ação coletiva, em que as perspectivas que se abrem para o indivíduo leitor só podem ser devidamente encaradas como instaladas em uma dinâmica coletiva e social, na qual tanto a voz do professor como a voz que fala no texto, o autor, são decisivas. Defende-se aqui a visão do professor mediador como espécie de andaime, que dá ao aluno-leitor acesso ao texto, ou seja, à voz do autor. Apoiado sobre as bases oferecidas por tal professor, o aluno-leitor poderá preencher os vazios dos textos literários. O conceito bakhtiniano de interação verbal Em sua Estética da criação verbal, Mikhail Bakhtin afirma que concepções linguísticas do século XIX (Wihelm Humboldt; partidários de Vossler) negavam a função comunicativa da linguagem ou secundarizavam-na. Veja-se se há semelhança entre a visão de linguagem de tais linguistas, citados por Bakhtin e os procedimentos com atividades de leitura literária em sala de aula: Propunham-se e ainda se propõem variações um tanto diferentes das funções da linguagem, mas permanece característico, se não o pleno desconhecimento, ao menos a subestimação da função comunicativa da linguagem; a linguagem é considerada do ponto de vista do falante, como que de um falante sem a relação necessária com outros participantes da comunicação discursiva. Se era levado em conta o papel do outro, era apenas como papel de ouvinte que apenas compreende passivamente o
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falante. O enunciado satisfaz ao seu objeto (isto é, ao conteúdo do pensamento enunciado) e ao próprio enunciador. Em essência, a língua necessita apenas do falante – de um falante – e do objeto da sua fala, se neste caso a língua pode servir ainda como meio de comunicação, pois essa é a sua função secundária, que não afeta sua essência. (2003, p. 270, grifos do teórico). Segundo Bakhtin, dessa concepção de linguagem é que nascem aquilo que ele chama de ficções, como a do “„ouvinte‟ e o „entendedor‟ (parceiros do „falante‟, do „fluxo único da fala‟, etc.). Tais ficções dão uma noção absolutamente deturpada do processo complexo e amplamente ativo da comunicação discursiva” (2003, p. 271). O teórico se opõe a essa visão de língua marcada pela expectativa de passivação do ouvinte/leitor. Em sua posição, destaca-se a noção de comunicação como resposta do interlocutor/ouvinte ao falante/escritor, ou seja, “o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo etc.” (idem). Aqui não se tratam de momentos cronológicos estanques da comunicação, como se um emissor enviasse uma mensagem que será depois (ainda que logo depois) devolvida pelo receptor. Para Bakhtin, praticamente não há os lugares espaço-temporais do antes/emissor, depois/receptor, pois a interação é simultânea e cooperativa, em qualquer fase/tempo/lugar de sua efetivação. Assim, essa posição responsiva do ouvinte vai sendo formada “ao longo de todo o processo de audição e compreensão desde o seu início, às vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante” (idem). Assim, toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja bastante diverso); toda compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante. A compreensão passiva do significado do discurso ouvido é apenas um momento abstrato da compreensão ativamente responsiva real e plena, que se atualiza na subsequente resposta em voz real alta. [...] Portanto, toda compreensão plena real é ativamente responsiva e não é senão uma fase inicial preparatória da resposta (seja qual a forma em que ela se dê) (op. cit., p. 271-2, grifos nossos). Para defender a força ativa e responsiva do leitor/ouvinte, afastando as ficções calcadas na expectativa de sua passividade, Bakhtin faz um esforço teórico para redefinir o papel específico do emissor e do receptor na resposta comunicativa. Segundo ele, a natureza responsiva da língua não tem a ver com uma dicotomia ou alternância comunicativa, ou seja, a resposta não se dá apenas secundariamente e necessariamente após a pergunta/emissão. Vale repetir: não é que primeiro venha
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o falante e sua emissão, seguidos pelo ouvinte e sua resposta. A interação verbal é orgânica e interpenetrante. No próprio ato da emissão a resposta já está prevista e presente, assim como na resposta a contra-resposta já está inscrita e prevista, num processo contínuo e sinérgico, pois todos são emissores e receptores ao mesmo tempo, já que os enunciados antecedentes e procedentes estão inseridos/previstos/pressupostos em qualquer ato verbal. Essa natureza interativa da língua rejeita a noção de passividade e de mera recepção, uma vez que toda emissão pressupõe, considera, previne, enseja e espera pela resposta: o próprio falante está determinado precisamente a essa compreensão ativamente responsiva: ele não espera uma compreensão passiva, por assim dizer, que apenas duble o seu pensamento em voz alheia, mas uma resposta, uma concordância, uma participação, uma objeção, uma execução etc. (p. 272). Basta aceitar que as noções de “falante”/emissor podem ser estendidas a poema, crônica, romance e ver-se-á a implicação dessa pesquisa de Bakhtin para uma nova abordagem do texto literário em sala de aula: os textos literários como que “esperam” ser lidos de maneira responsiva e dialógica, eles preveem e se formatam segundo esse tipo de expectativa. Mas não há necessidade de pressa, é pertinente conferir mais um pouco dessa concepção de leitura como resposta. Bakhtin vê nessa relação “proposição/resposta” a verdadeira natureza da comunicação discursiva. Com isso, ele se afasta de uma visão fisiológica de língua (sinal, som, ortografia, fonética, sintaxe) e declara a natureza discursiva, ou melhor, interdiscursiva da linguagem, em que a ação verbal, o enunciado funcionando como ponte entre o eu e o outro – e não um fonema, palavra ou frase – se constitui na unidade mínima de significado. Os limites de cada enunciado concreto como unidade da comunicação discursiva são definidos pela alternância dos falantes. Todo enunciado – da réplica sucinta (monovocal) do diálogo cotidiano ao grande romance ou tratado científico – tem, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim absoluto: antes do seu início, os enunciados de outros; depois do seu término, os enunciados responsivos de outros (ou ao menos uma compreensão ativamente responsiva silenciosa do outro, ou, por último, uma ação responsiva baseada nessa compreensão). O falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente responsiva. (2003, p. 275). Assim sendo, todo o enunciado clama por resposta, sendo, ao mesmo tempo, resposta para um outro enunciado implicado. Portanto, as próprias distinções entre texto/pergunta e texto/resposta acabam sendo diluídas, assim como já havia acontecido com as distinções antes/emissor, depois/receptor. Essa é a essência dialógica da língua e dos textos concretos.
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Que espécie de resposta se quer? Uma vez compreendido e aceito que a língua se constitui num grande e ininterrupto diálogo, que ler é responder/perguntar a quem já nos perguntava/respondia, deve-se partir para o próximo passo do problema do ensino de leitura: que resposta se quer? Ora, viu-se que, de acordo com Bakhtin, a comunicação verbal se organiza e se realiza pela relação pergunta-e-resposta. Viu-se ainda que, segundo ele, as espécies de respostas podem variar, indo desde o silencio à emissão verbal em voz alta, desde a concordância à replica e assim por diante. Resta, portanto, avaliar que espécie de resposta nos diz interesse no afã de formar leitores. Ou seja: que noção de resposta convém ao ensino de literatura? Para responder, é necessário antes avaliar o modo como se parece conceber a leitura em ambiente escolar. Será que se pressupõe a resposta como momento da leitura, como constituindo a leitura em si ou como uma outra coisa, um outro fenômeno, secundário e derivado dela? Isso é importante, pois, se se considera que a resposta está dissociada da pergunta, pensa-se que pode haver leitura se contarmos apenas com a primeira. Como foi visto, para Bakhtin a comunicação apenas formalmente se dá em termos de alternância, mas interativamente a pergunta sempre leva consigo mesma e no interior de sua própria construção, a resposta. Isso significa que se não houver resposta, a pergunta perde o seu sentido: não há genuína interação e, portanto, não há genuína leitura. Nos muitos tipos de resposta possíveis (calar-se, retrucar, ignorar), somente nos interessam as que são, por assim dizer, explicitamente “responsivas”, pois não se contentaria em que os alunos se calassem plenamente diante dos poemas e contos, no sentido de serem totalmente indiferentes aos textos. Aqui entra também o problema da gratuidade ou não da literatura. Sabe-se que em ambiente escolar a literatura nunca poderá ser totalmente gratuita, mas que essa gratuidade, no entanto, deve continuar sendo vista como um ideal, e tanto a escola quanto o professor devem perseguir essa meta constantemente, como se ela fosse possível. Todo comodismo e pragmatismo aqui só levariam a literatura em ambiente escolar à ruína. Mas existem extremos, e é muito mais comum encontrar o texto-pretexto, de que fala Lajolo (1988), a serviço das atividades reducionistas, que contabilizam a leitura e fazem “render” pedagogicamente o luxo do contato com a literatura. A “resposta”, no sentido escolar tradicional, significa o resultado, o lucro pedagógico, que mostra que, afinal, não se perdeu tanto tempo assim e, por fim, literatura pode ensinar alguma coisa: regência verbal, ortografia, gêneros textuais e coisas dessa espécie. Responder, portanto, tem sido sinônimo, em ambiente escolar, de resolver atividades que sintetizam conteúdos de textos literários com o fito de demonstrar o aprendizado de recursos não-
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literários. As dimensões estéticas e humanizadoras (CANDIDO, 1972) da literatura não são contempladas nos exercícios de leitura. Assim, as atividades de ensino, transmissão e fomento de leitura revelam que se prevê e se enseja a “resposta passiva”, por assim dizer; ou seja, ela (resposta) é considerada automática, ponto pacífico, sendo desnecessária qualquer ação cognitiva profunda e, a rigor, verdadeiramente ativa, por parte do leitor/aluno. Não apenas se contenta em conceber resposta como resolução de atividade, como ainda se parte da concepção de leitura do texto literário como apreensão dos aspectos conteudísticos ou imediatos dos fragmentos de um romance ou da estrofe de um poema. Se assim não fosse, não se daria por satisfeito enquanto não se percebesse o prazer estético e o gosto dos leitores como réplicas ideais para os textos literários lidos, ou melhor, demandados em sala de aula. Poder-se-ia, então, mais honestamente, associar as concepções escolares de leitura a uma expectativa do ato de ler como sendo decodificar ou perceber. Nessas concepções, ler (no sentido individual de ouvir, receber uma informação) já seria toda a leitura, que aí já se completaria; a resposta é negada ou considerada totalmente posterior ao fenômeno da leitura em si. Pensa-se, ao contrário do que demonstrou Bakhtin, que é possível haver língua só com pergunta, ou com pergunta sem resposta. É preciso ressalvar que o problema não é que a resposta não seja considerada por parte da teoria escolar – ela o é, e muito (nos programas, nos eventos escolares, nos projetos de formação de leitores, nos “Dia da leitura”) –, o problema é a resposta ser vista como um momento outro, como uma coisa outra e não como a leitura em si. Essas afirmações podem soar como sutilezas sem maiores implicações. Diante dessa objeção, cabe, então, responder: de que forma esse equívoco apontado prejudicaria as atividades de leitura? Conceber a leitura como pergunta autossuficiente do falante/escritor, contentando-se com a condição básica para a resposta (ouvir claramente a pergunta e entendê-la) seria diferente de concebê-la como relação pergunta/resposta que só se concretiza, ou seja, só acontece realmente no momento e no ato da resposta? Se há diferenças significativas entre essas expectativas, em que situações concretas da prática escolar elas se mostram? Para tentar responder, imagine-se uma situação efetiva de sala de aula. Um professor que ministra sobre o Modernismo brasileiro (dividido em fases pelos compêndios) inicia o bimestre com a realização de um seminário sobre as vanguardas europeias. Em seguida, ele propõe, via livro didático, a leitura de trechos de Macunaíma. Logo após, como avaliação, o professor aplica uma atividade dissertativa em que os alunos deverão localizar, a partir de excertos do romance de Mário de Andrade, características de determinadas linhas vanguardistas. Os alunos que conseguem
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relacionar adequadamente os trechos com as vanguardas estudadas anteriormente tiram nota máxima. Como esse professor concebe, de fato, a resposta? Aliás, como ele concebe a pergunta feita pelo romance? O aluno está respondendo? Como? A quê? A quem? Seria essa a espécie de resposta que se busca? Será que ela forma leitores de literatura? Nesse exemplo não se esqueceu de que o professor pode considerar as espécies de leituras feitas e o grau de comprometimento e reflexão que cada uma revela. Não se ignorou também o fato de que, como lembrado anteriormente, em ambiente escolar, a literatura dificilmente poderá ser completamente gratuita e que, portanto, um aluno nunca responde apenas ao romance como grande pergunta, mas também à pergunta/avaliação do professor dentro da qual se insere a expectativa de resposta ao romance. Porém, o problema não é desconsiderar completamente a incontornável dinâmica pedagógica que a literatura, assim como tudo o mais, precisa sofrer para ser inserida em ambiente escolar. O problema é aceitar a restrição e a estreiteza com que a resposta é encarada em situações como a da hipótese, que, aliás, se concretizam de fato nas práticas das escolas de todo o país diariamente. Dificilmente os alunos do citado professor estarão dialogando com Mário de Andrade e seu romance. Na verdade, esses alunos estariam dialogando apenas com uma situação discursiva restrita, ou seja, esta avaliação deste professor visando a esta nota. Nessa sala de aula hipotética, não houve verdadeiro diálogo ou resposta: o romance ficou “falando sozinho”. Bakhtin mostra o erro de se conceber a enunciação linguística como autossuficiente. Para que a língua esteja pronta, não bastam unidades gramaticais, como palavra ou orações; é necessária uma unidade comunicativa. Ou seja, não basta haver o falante e seu texto, nem a palavra ou frase descontextualizadas: é necessária a resposta; é necessária a participação ativa e responsiva do outro. Para ele, “[t]odo enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação discursiva de um determinado campo” e “[o]s próprios limites do enunciado são determinados pela alternância dos sujeitos do discurso (BAKHTIN, 2003, p. 296). Assim, “[o]s enunciados não são indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mesmos; uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros. Esses reflexos mútuos lhes determinam o caráter” (idem). Isso ocorre porque “[c]ada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva” (ibidem), por não haver enunciado puro, sem ligação com ou contaminado de outros enunciados anteriores e dos que estão por vir. Isso porque todo enunciado é pergunta e resposta ao mesmo tempo:
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Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (aqui concebemos a palavra “resposta” no sentido mais amplo): ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subtende-os como conhecidos, de certo modo os leva em conta. Porque o enunciado ocupa uma posição definida em uma dada esfera da comunicação, em um dado assunto, etc. é impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras posições. Por isso, cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicação discursiva. (2003, p. 296-7, grifos do autor). A proposta de Bakhtin mostra a língua como um grande diálogo, no qual há um eterno apelo ao outro, que está sempre em perspectiva, eternamente presente. Se é assim, dever-se-ia levar os alunos a perceberem os textos literários como tais, como apelos que se dirigem a eles, leitores, esperando por sua resposta e inclusive considerando-a antecipadamente. O significado disso é que um poema e um conto só são o que são porque o leitor, cada leitor, de certa maneira, está previsto neles, e sua participação ativa já está inscrita nesse poema e nesse conto, cabendo, portanto, torná-la concreta, efetiva. Ao construir o meu enunciado, procuro defini-lo de maneira ativa; por outro lado, procuro antecipá-lo, e essa resposta antecipável exerce, por sua vez, uma ativa influência sobre o meu enunciado (dou resposta pronta as objeções que prevejo, apelo para toda sorte de subterfúgios, etc.). Ao falar, sempre levo em conta o fundo aperceptível da percepção do meu discurso pelo destinatário: até que ponto ele está a par da situação, dispõe de conhecimentos especiais de um dado campo cultural da comunicação; levo em conta suas concepções e convicções, os seus preconceitos (do meu ponto de vista), as suas simpatias e antipatias – tudo isso irá determinar a ativa compreensão responsiva do meu enunciado por ele. (op. cit., p. 301-2, grifos nossos). Portanto, segundo Bakhtin, ler é reconstituir essa situação comunicativa ideal, perceber-se na grande conversa instaurada pelo texto, para cuja construção de sentidos as concepções, convicções e preconceitos, simpatias e antipatias do leitor foram convocadas e utilizadas. No entanto, reconhece-se que essa reconstituição, ou reconstrução, como querem alguns, não é sempre fácil nem óbvia, pois a leitura consiste num fenômeno múltiplo e variado, que sofre alterações por toda a vida, se atualiza de modo singular em cada pessoa e mesmo em cada fase do percurso de um leitor. O tipo de relação com a leitura tem a ver com a singularidade da personalidade, com a configuração peculiar de cada experiência de vida ou do conjunto de cada vida inteira. Isso porque, a leitura envolve ainda todas as técnicas e as habilidades descritas nas diferentes concepções sobre o
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que seja ler, indo, portanto, do gesto mecânico de decifrar tamanho e significado alfabético de sinais gráficos até à espiritualidade profunda que comove em um poema ou metáfora. Para avaliar leitura, considere-se ainda que uns percebem melhor que outros essa construção e respondem melhor que outros à grande pergunta do texto. Porém, é mais correto ainda dizer que uns respondem muito bem a certos tipos de texto e outros menos. Em suma, essa resposta na qual consiste a leitura é uma função infinita de variações e singularidades. Não obstante, uma coisa é certa: todos podem aprender a responder à altura. Todos podem vir a ser leitores, ou responder à altura, no sentido bakhtiniano. Em ambiente escolar, é o professor o grande responsável por conduzir o leitor ao letramento literário ou a esse estágio contínuo pelo qual um sujeito se habilita a responder, de maneira ativa, cada vez mais e melhor. Elemento catalisador: o professor de língua portuguesa O que amplia a relevância do professor no processo comunicativo da leitura literária é o fato de a maior parte das famílias brasileiras não estarem inseridas no contexto do mundo escrito. Isso significa que, para muitas crianças e adolescentes, oriundos dessas famílias, o acesso à palavra escrita e à cultura letrada restringe-se, portanto, ao ambiente escolar e àquele que é propiciado pelo professor. Tais alunos não contam com uma tradição de leitura, sendo, como costuma ser boa parte deles, filhos de pais analfabetos, semianalfabetos e/ou que foram, eles próprios, privados dos livros em seu passado. Mas mesmo que os pais compreendessem a importância da leitura na vida dos filhos, estes ainda teriam que se ver com o fato de não disporem de condições financeiras para adquirirem livros, pois têm que fazer uma cruel opção: o supermercado ou a livraria. Diante desse quadro, resulta a convicção (nem sempre justiçada, é bom lembrar) de que a maioria dos alunos não lê apenas porque não dispõe de recursos materiais para fazê-lo. Para testar essa convicção arraigada, seria importante conferirmos dados de pesquisas sobre hábitos leitores em nosso país. O livro Retratos da leitura no Brasil 3 (FAILLA, 2012) apresenta resultados da pesquisa homônima que ensejaram discussões de diferentes autores sobre os dados coletados. Das considerações desses especialistas destacam-se dois aspectos: o primeiro é que, tendo em perspectiva levantamentos feitos em anos anteriores, a pesquisa não diagnosticou aumento do índice de leitura do brasileiro; o segundo, que pode, juntamente com alguns outros fatores, ser visto como causa do primeiro, é que os materiais/recursos de leitura estão chegando às escolas, mas não estão sendo suficientemente aproveitados.
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A pesquisa mostra ainda que aqueles que pertencem às classes sociais privilegiadas leem mais. Isso pode parecer óbvio, pois, quando se pensa nos motivos dessa disparidade, a primeira coisa que nos vem à cabeça é o maior acesso aos livros por parte dos que dispõem de recursos financeiros para adquiri-los. Mas esse senso comum não se justifica, pelo menos não nessa relação direta, pois, paradoxalmente, políticas públicas, como a da distribuição gratuita de livros às escolas e às bibliotecas, têm se mostrado até agora insuficientes para incidir significativamente sobre os números dessas estatísticas. É certo que uma das barreiras para a leitura das classes menos privilegiadas é o recurso para compra de livros e nesse sentido as campanhas governamentais de acessibilidade cultural ajudam. Mas não é suficiente para o aluno dispor de uma biblioteca com um bom acervo e ter a ele livre acesso, se esse aluno não puder contar com alguém preparado para fomentar e intermediar seu interesse e para dirimir seu embaraço e perplexidade diante dos livros. Assim, pelo que as pesquisas indicam, o tímido aumento da frequência e qualidade da leitura no Brasil deve-se mais a fatores humanos que a fatores materiais. Os dados apontam para a necessidade de uma mais completa formação para os mediadores, que são os professores de língua portuguesa, como destaca Cunha (2012, p. 88): Sabemos que há uma vigorosa e bem-sucedida política de distribuição de materiais de leitura, instituída pelo MEC, há pelo menos 15 anos, com livros de referência e de literatura, destinados aos alunos, e também ao professor. Mas conhecemos também o déficit de bibliotecas escolares e a insuficiente formação continuada do mestre, questões que começam a ser mais fortemente encaradas agora.
Silva (2012, p. 116) é ainda mais incisivo, ao criticar a multiplicação dos livros como suposta reversão imediata da crise da leitura. Segundo ele, “o „fazer ler‟, ou seja, „dar vida aos livros‟ através de práticas diversas de leitura vai muito além do abastecimento ou aparelhamento das escolas com obras diversas”. A respeito desse abastecimento ou aparelhamento, alguns números relacionados ao esforço governamental no sentido de suprir os alunos de material de leitura merecem ser considerados. Há uma distribuição de livros constante e de qualidade por parte do MEC1 e essa iniciativa do Governo tem se refletido claramente nos números do sistema literário brasileiro. Pesquisas apontam que nunca se 1
Segundo o MEC, as escolas recebem periodicamente livros para suas bibliotecas, via Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Informações disponíveis nos sites:, e . Acesso em: 30 de ago. de 2014.
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vendeu tantos livros no país, mas muitos deles são o que Lajolo (2012, p. 170) chamou de “chapa branca”, ou seja, livros adquiridos pelo Estado, que não necessariamente refletem um aumento na procura por literatura entre os jovens brasileiros. De fato, nos últimos anos, centenas de milhares de livros foram repassados à educação básica, o que não significa que se esteja experimentando um boom de leitura nas escolas brasileiras. Isso força a conclusão de que os recursos disponibilizados não estão sendo explorados adequadamente ou de maneira decisiva. Segundo Tânia Mariza Kuchenbecker Rösing (2012), as escolas e os materiais de leitura, inclusive os literários estão sendo disseminados pelo país. No entanto, lacunas na formação dos professores impedem que esses recursos se traduzam em uma mudança efetiva do cenário (RÖSING, 2012, 94-5). Rösing menciona a existência de programas de formação de mediadores, no entanto critica o formato “à distância”, algo um pouco complicado para um curso onde a presença e o contato são cruciais. Para ela, seria “necessário enfatizar que a aquisição de acervos literários, de publicações destinadas à formação dos professores resulta inócua se não forem criados programas presenciais de formação leitora dos professores.” (2012, p. 101, grifo nosso). A pesquisadora destaca ainda que a distribuição de materiais aquece o mercado editorial (“essa complexa cadeia”), que bibliotecas estão sendo “forçosamente” abertas e ampliadas (dentro e fora da escola), no entanto, isso não está se refletindo nos índices de leitura no país. Tem-se material, mas ele não está sendo utilizado como deveria. A pesquisadora faz um alerta: “Deve-se pensar na relação custo/benefício: investe-se em materiais de leitura que não são utilizados nem por professores, nem por alunos, muito menos pela comunidade escolar em seus mais variados segmentos” (RÖSING, 2012, 1056). Muitas obras de literatura que chegam à escola ficam guardadas em caixas ou depositadas em salas apertadas. Com involuntária auto-ironia, muitas vezes esses espaços são chamados de “biblioteca”. Dispor de livros para ficarem guardados ou entulhados em depósitos ou mesmo em salas sem nenhuma ambiência de biblioteca não contribuirá para fazer da escola um espaço de leitura. Isso porque o livro fechado/guardado/empilhado não
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chegará sozinho às mãos dos alunos, precisa ser apresentado, compartilhado, solicitado, fazer parte de uma verdadeira dinâmica no seio da qual a literatura é de fato contemplada. Há uma defesa unânime da necessidade de um trabalho conjunto para a resolução dos problemas em relação aos índices de leitura do Brasil. Isso implica, óbvio, um maior aporte de recursos financeiros e um melhor aparelhamento de escolas e bibliotecas. No entanto, usando aqui um termo de mercado, a logística por si mesma tem se mostrado ineficaz no combate à crise de formação de leitores no Brasil. Os livros estão chegando à vista dos alunos, mas não às suas mãos e muito menos ao seu espírito. Essa metáfora se traduz no fato de que são urgentes políticas públicas de formação inicial e continuada de profissionais que possam auxiliar os alunos na tarefa de não apenas acessar os livros, mas também descobrir o prazer de ler. Todavia, não estamos falando de qualquer formação, e sim, de uma na perspectiva da mediação em espaços escolares. Isso porque o professor não é apenas importante; é essencial, sobretudo por que ele insere o aluno num universo que este quase sempre desconhece e não experimenta com outra pessoa em outro lugar. O professor propicia ao aluno uma convivência com os textos, uma regularidade de leitura que constitui-se no verdadeiro aprendizado para a leitura. Nessa perspectiva é que se configura o conceito de professor-mediador visto como agente letrador, tal como defendido por Bortoni-Ricardo, Machado e Castanheira (2010). As autoras apresentam propostas de leitura mediada pelo professor, leitura essa concebida como tutorial. Apresentam ainda alguns protocolos de leitura realizados com alunos de diferentes séries/anos da educação básica com textos de diversos assuntos relacionados a várias disciplinas. Nesses protocolos fica claro o papel do mediador como aquele que vai auxiliando (guiando) os alunos a compreender e/ou aumentar a compreensão sobre o texto lido. Nos protocolos o professor faz um processo contínuo de verificação do conhecimento prévio do aluno, explicando informações novas e fazendo encaminhamentos para que os alunos possam fazer eles mesmos suas descobertas. Por essa proposta, ser um agente letrador é possibilitar aos alunos recursos para ampliarem sua própria compreensão leitora. Nessa perspectiva, o professor, ao mediar a relação leitor-texto, possibilita o letramento pelas inferências que faz e que propicia. Tais ações implicam na atribuição do
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papel de andaime ao texto. Isso significa que o professor dá assessoria ao aluno para possibilitar-lhe autonomia, fornecendo-lhe meios para a construção de cavaletes conceituais (esqueletos externos ao texto, mas que de certa maneira o sustentam). Apoiado sobre essas bases, o aluno/leitor poderá ir preenchendo os “buracos” ou vazios que ficam na compreensão dos textos, vazios esses decorrentes da carência de um conhecimento muitas vezes complexo, suposto e exigido por alguns textos (BORTONI-RICARDO; MACHADO; CASTANHEIRA, 2010). Referências BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 4. ed. Trad. do russo por Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BORTONI-RICARDO, Stella Maris; MACHADO, Veruska Ribeiro; CASTANHEIRA, Salete Flôres. Formação do professor como agente letrador. São Paulo: Contexto, 2010. CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In: Ciência e Cultura. 24 (9): 803-809, set, 1972. CUNHA, Maria Antonieta Antunes. O acesso à leitura no Brasil – os recados dos “retratos da leitura”. In: FAILLA, Zoara. (Org.) Retratos da leitura no Brasil 3. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Pró-Livro, 2012. p. 83-91 FAILLA, Zoara. (Org.) Retratos da leitura no Brasil 3. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Pró-Livro, 2012. LAJOLO, Marisa. Livros, leitura e literatura em oito Anotações. In: FAILLA, Zoara. (Org.) Retratos da leitura no Brasil 3. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Pró-Livro, 2012. p. 163- 181 ______. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, Regina. (Org.). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988, p. 107-131. RÖSING, Tânia Mariza Kuchenbecker. Esse Brasil que não lê. In: FAILLA, Zoara. (Org.). Retratos da leitura no Brasil 3. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Pró-Livro, 2012. p. 93- 106. SILVA, Ezequiel Theodoro da. A escola e a formação de leitores. In: FAILLA, Zoara. (Org.). Retratos da leitura no Brasil 3. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Pró-Livro, 2012. p. 107- 116
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UMA PROPOSTA DE LEITURA/ANÁLISE LINGUÍSTICA COM O CONTO A MOÇA TECELÃ, DE MARINA COLASANTI Adriana Gisele Estevão (PG-UEM) Patrícia Cristina de Oliveira Duarte (UENP/CJ – PG-UEL) Considerações Iniciais Para Bakhtin (2003), o dialogismo é um fenômeno natural de todo discurso vivo, o modo real de funcionamento da língua, pois todo discurso sempre responde a outro(s) e suscitará sempre uma resposta(s), dando continuidade à grande cadeia de comunicação discursiva. Assim como os enunciados constituem-se a partir de outros, novos gêneros também surgem a partir de outros já existentes, respondendo às necessidades enunciativas dos sujeitos da interação. Nessa direção, à busca de regularidades do gênero em estudo, focando o processo pedagógico de análise linguística, realizamos, de forma contextualizada, uma análise da dimensão estilo bakhtiniana, abordando atividades epilinguísticas, como fim, e metalinguísticas, como meio, além de outras dimensões bakhtinianas dos gêneros (conteúdo temático e construção composicional), considerando, no processo de leitura, sobretudo, a intenção discursiva e o contexto extraverbal da enunciação. Feito isso, elaboramos uma proposta de encaminhamento didático destinada ao 1º ano do Ensino Médio, pautada na teoria dos gêneros discursivos (Bakhtin, 2003), tomando a proposta metodológica de Gasparin (2009) como fio condutor do processo de transposição didática. Língua(gem), Dialogismo e Gêneros Discursivos De acordo com a concepção dialógica de linguagem proposta pelo Círculo de Bakhtin, não há como conceber a língua como um sistema fechado em si mesmo e dissociado das relações históricas e sociais, visto que a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992, p.123, destaques do original)
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Nessa perspectiva, a língua é muito mais que um simples processo de abstração linguística, a língua é social, é concreta, não é um produto acabado, pois se constitui a cada situação de enunciação, o que nos assegura que não há como estabelecer comunicação verbal fora de um contexto social. Além disso, ao afirmar que é no fenômeno da interação verbal que se constitui a língua, Bakhtin/Volochinov (1992) postulam que todo evento comunicativo pressupõe a figura do “outro”, o interlocutor, pois toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992, p. 113, grifos do autor). Entendemos, então, que, no momento da produção de um enunciado, o locutor já estabelece a figura do outro, ou seja, o seu interlocutor, do qual ele espera uma reação-resposta diante de tal enunciação. Segundo Bakhtin (2003), todo enunciado espera uma compreensão responsiva ativa, estabelecendo o diálogo entre os parceiros da interação. Entretanto, a propriedade dialógica da linguagem não é estabelecida, simplesmente, por esse “diálogo face a face”, mas pela interação que todo enunciado estabelece com enunciados já ditos e com suas réplicas. Sob tal enfoque, Bakhtin (2003) afirma que, sendo o enunciado uma totalidade discursiva, ele não será nem o primeiro e nem o último a ser dito, pois, conforme visto, ele se orienta para a constituição de novos enunciados, respondendo a enunciados anteriores. Nesse
sentido, ao entendermos o dialogismo como princípio fundante da linguagem, concordamos com Garcez (1998, p. 56), para quem a noção de discurso tem um princípio dialógico inerente a si mesmo de três ordens: a) é dialógico porque a enunciação tem uma orientação social, é orientada para o outro e é por ele determinada; b) é dialógico porque sua compreensão depende de formulação ativa de resposta, de contrapalavras; c) é dialógico porque é essencialmente polifônico.
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Em todas as situações enunciativas, portanto, não há um enunciado fundante, pois “todo discurso se mostra constitutivamente atravessado pelos ‘outros discursos’ e pelo ‘discurso do Outro’” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 69). Todo enunciado se constitui social e historicamente de acordo com as relações interacionais estabelecidas, o que faz com que os infinitos campos de atividades humanas (arte, ciência, religião, cotidiano etc.) apresentem uma variada gama de “formas de dizer” adequadas a cada situação específica. Tais formas, segundo Bakhtin (2003, p. 262) são “os tipos relativamente estáveis de enunciados”, denominados “gêneros discursivos”. Todo gênero, segundo Bakhtin, para atender a uma determinada finalidade interativa, apresenta três dimensões caracterizadoras: 1) o conteúdo temático, que não se resume ao assunto em si, mas aos diferentes recortes temáticos que podem ser discutidos em um determinado gênero; 2) a construção composicional, que diz respeito ao arranjo do texto; 3) o estilo que se caracteriza por ser a escolha das marcas linguístico-enunciativas necessárias para se produzir tal enunciado, responsável, também, por marcar a individualidade da cada locutor em sua enunciação. Esses três elementos, associados às condições de produção (quem fala, para quem fala, com que finalidade, em que época, local e suporte), formam o todo do enunciado/texto. Nessa perspectiva, ao atenderem às necessidades enunciativas de cada sociedade e época, os gêneros discursivos vão sofrendo transmutações, que possibilitam a criação de novos gêneros, como é caso do gênero abordado neste trabalho, surgido no século XX, para dar conta de um novo propósito interativo. Na sequência, apresentamos breves considerações acerca do gênero discursivo conto de fadas contemporâneo. O gênero conto de fadas contemporâneo Como vimos, o dialogismo é constitutivo de todo enunciado, propiciando a existência da responsividade. Dessa forma, entendemos que os contos de fadas contemporâneos surgiram como respostas aos contos de fadas tradicionais, possibilitando repensar conceitos/valores que permeiam a existência dos sujeitos. Para tanto, apropriam-se de algumas características dos tradicionais, funcionando como uma continuidade de tais contos. Em seu processo de constituição, o gênero sofreu diversas transmutações, tais como adaptações ao estilo e ao conteúdo temático, visto que o contexto social do conto contemporâneo é diferente dos contos compilados por Charles Perrault, Irmãos Grimm e Andersen, denominados tradicionais.
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Conforme exposto anteriormente, Bakhtin (2003) considera um fator extremamente importante a relação entre os gêneros e as necessidades sociais. Assim, as necessidades enunciativas dos contos tradicionais, escritos por Perrault, Irmãos Grimm e Andersen, são totalmente diferentes das necessidades encontradas hoje, pois aquelas apresentavam caráter extremamente educativo e moral, havendo, assim, a necessidade de se adaptar as obras à linguagem infantil. Já os contos contemporâneos não possuem a finalidade de apresentar uma moralidade, mas questionar valores/crenças disseminadas pelos contos tradicionais. Para exemplificar, citamos o conto de fadas tradicional A Cinderela, escrito pelos Irmãos Grimm, por volta de 1800. Nesse conto, por meio de uma linguagem educativa e moralizante, discute-se a questão da inveja, já que, por ser a mais bela, Cinderela desperta a inveja de suas irmãs e madrasta, que a transformam em uma escrava, obrigando-a a fazer todo o serviço doméstico. Todavia, ao final, ao se casar com o Príncipe Encantado, Cinderela tem sua recompensa. A moral implícita nessa história evidencia que a inveja das irmãs não as levou a lugar algum e tampouco impediu a felicidade de Cinderela, que foi ajudada pela Fada madrinha pelo fato de ser uma moça boa, que não guardava ressentimentos de quem a maltratou. Conforme se pode perceber, veicula-se nessa história a ideologia cristã de que os bons serão recompensados por todos os seus atos de bondade. Em outras palavras, vale a pena ser bom e não revidar as ofensas recebidas. Nessa perspectiva, o conto de fadas tradicional dialoga com as vozes presentes na sociedade da época em que foram escritos e também dialoga com seus interlocutores, tendo como objetivo promover uma reflexão e moralização, o que segundo Bakhtin vai gerar novos enunciados, pois as relações dialógicas tanto podem ser contratuais ou polêmicas, de divergência ou de convergência, de aceitação ou de recusa, de acordo ou de desacordo, de entendimento ou de desinteligência, de avença ou de desavença, de reconciliação ou de luta, de concerto ou de desconcerto. (FIORIN, 2006, p. 24)
Entendemos, então, que mesmo distantes, escritos em outra época, os contos de fadas tradicionais possibilitaram a criação de novos enunciados, os contos contemporâneos, os quais se constituem respostas às vozes presentes nos contos tradicionais, ou seja, representam a compreensão responsiva ativa de diferentes autores
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para os contos clássicos. Nesse constante diálogo entre os dois gêneros, há elementos de aproximação e de distanciamento. Nessa perspectiva, postulamos que enunciados concretos pertencentes ao gênero conto de fadas contemporâneo, possuem, em síntese, as seguintes características: Conteúdo temático Temáticas variadas e relacionadas à contemporaneidade, geralmente de cunho existencial. Construção Composicional Personagens ativos e próximos à realidade contemporânea; Espaços não determinados geograficamente; Tempo impreciso, configurado de forma vaga. Sequência narrativa, na maioria das vezes, não linear; Narrador atento a seu destinatário, geralmente, em 3ª pessoa; Intertextualidade e interdiscursividade com os contos de fadas tradicionais; Estilo Atualização da linguagem, podendo apresentar linguagem coloquial; Presença de adjetivação constante; Predomínio de verbos no pretérito perfeito e imperfeito (mundo narrado/plano ficcional); Uso de linguagem conotativa; Presença de figuras de linguagem, em especial, metáforas e comparações; Discurso com tom humorístico, irônico e satírico; Discurso parodiado. Trabalhando um enunciado concreto do gênero conto de fadas contemporâneo Os documentos oficiais que versam sobre o ensino de Língua Portuguesa em nosso país, tais como os PCNs (BRASIL, 1998) e as DCEs (PARANÁ, 2008) salientam a importância de se desenvolver um ensino gramatical articulado à leitura e à produção textual, isto é, um ensino capaz de formar leitores críticos/reflexivos e produtores de bons textos. Assim, pautamo-nos no trabalho com a Análise Linguística (AL), cujo foco é a observação e a análise da língua em uso, a partir do texto. Segundo esse documento,
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a análise linguística é uma prática didática complementar às práticas de leitura, oralidade e escrita, faz parte do letramento escolar, visto que possibilita a reflexão consciente sobre fenômenos gramaticais e textual-discursivo que perpassa os usos linguísticos [...] Essa prática abre espaço para as atividades de reflexão dos recursos linguísticos e seus efeitos de sentido no texto. (PARANÁ, 2008, p. 77)
Trabalhar sob o prisma da AL, portanto, é privilegiar o desenvolvimento de atividades
epilinguísticas
–
reflexões
sobre
os
usos
dos
elementos
gramaticais/estruturais dos textos, não deixando de desenvolver, também, atividades metalinguísticas – análise descritiva por meio de uma metalinguagem que permite falar sobre a língua. Dessa maneira, compete ao professor, mediador entre o aluno e o gênero discursivo, desenvolver atividades metodológicas que visem a um ensino mais produtivo da linguagem. Neste trabalho, postulamos um encaminhamento didático seguindo o Plano de Trabalho Docente (PTD), proposto por Gasparin (2009). O Plano de Trabalho Docente é uma proposta teórico-metodológica baseada na reflexão prática-teoria-prática, propondo a abordagem dos conteúdos a partir de sua finalidade social. A estrutura de base do PTD segue os passos discriminados no quadro por Gasparin (2009), transcrito na sequência e aplicados na seção seguinte ao gênero conto de fadas contemporâneo. PRÁTICA
TEORIA
PRÁTICA
Nível de desenvolvimento atual
Zona de desenvolvimento proximal
Novo nível de Desenvolvimento Atual
Prática Social Inicial do Conteúdo
Problematização
Instrumentalização
Catarse
Prática Social Final do Conteúdo
QUADRO 1: Estrutura do Plano de Trabalho Docente, p. 159
Plano de Trabalho Docente para o Conto A moça tecelã (Marina Colasanti) 1. Prática Social Inicial 1.1 – Anúncio dos conteúdos: - O gênero conto de fadas contemporâneo;
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- O contexto de produção; - O conteúdo temático; - A organização textual; - As marcas de linguagem (linguístico-enunciativas), que se constituem elementos cruciais para a construção de efeitos de sentido do texto; - O conto de fadas contemporâneo A moça tecelã, de Marina Colasanti. 1.2 – Vivência cotidiana dos conteúdos: Nota para o professor: As atividades apresentadas na sequência objetivam indicar ao professor o que os alunos já sabem com relação ao conteúdo. A fim de criar um clima mais descontraído e interativo, as questões devem ser projetadas em slides e discutidas coletivamente. a) Você sabe o que é conto? E um conto de fadas contemporâneo? b) Que diferenças há entre os contos de fadas tradicionais e os contos de fadas contemporâneos? d) Por que você acha que as pessoas começaram a escrever os contos de fadas contemporâneos? e) Quando essas histórias começaram a ser escritas? Elas ainda são escritas? f) Por que as pessoas leem histórias desse tipo? g) Onde essas histórias circulam? Nota para o professor: Agora, com o auxílio do data show, deve ser feita a exibição de trailers de filmes previamente selecionados, que tematizem os contos de fadas contemporâneos. Sugestão de filmes: A Nova Cinderela (2004), A Fera (2011), Malévola (2014). Na sequência, apresentar os questionamentos: h) A partir das histórias vistas, pudemos observar que, apesar de manterem forte ligação com os contos de fadas tradicionais, os contos contemporâneos apresentam temáticas voltadas à sociedade atual. Quais são os temas explorados nos filmes exibidos? Elas seguem a mesma temática do conto de origem? O que há de diferente de uma história para outra? i) Além dessas obras que foram adaptadas para filmes, encontramos também muitos outros exemplos de contos contemporâneos, que buscam inspiração nos clássicos contos
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de fadas, produzidos há séculos atrás, em outro contexto sociocultural. Você já leu alguma história assim, que lhe fez lembrar um conto de fadas tradicional por apresentar algum personagem ou elemento mágico? Quais? 2. Problematização (Para problematizar o conteúdo por meio de questões desafiadoras em diferentes dimensões) 2.1 Dimensão conceitual
a) O que um texto precisa ter para ser um conto de fadas contemporâneo? b) Como diferenciar um conto de fadas contemporâneo de um conto de fadas tradicional? Nota para o professor: Se possível, levar os alunos ao laboratório de informática. Caso não seja possível, pode sugerir como tarefa de casa. 2.2 Dimensão social a) Os contos de fadas contemporâneos, diferentemente dos tradicionais, não apresentam garotinhas indefesas fugindo de um lobo mal, nem jovens que esperam de braços cruzados o príncipe chegar montado em seu cavalo branco ou moças que adormecem por séculos à espera de um beijo que as despertem. As histórias modernas, apesar de ainda apresentarem, na maior parte dos casos, alguns elementos mágicos, possuem novas temáticas relacionadas ao mundo atual, aos problemas que a sociedade enfrenta hoje. Para isso, quase sempre, parodia ou satiriza os contos de fadas tradicionais. Nessa perspectiva, qual seria a importância social que justifica a criação dos contos de fadas contemporâneos? 2.3 Dimensão econômica a) Ganha-se dinheiro com os contos de fadas contemporâneos? 2.4 Dimensão escolar a) Por que é importante estudar os contos de fadas contemporâneos? 2.5 Dimensão estética a) Há diferenças nos contos de fadas contemporâneos produzidos por diferentes autores? 3 – Instrumentalização
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Nota para o professor: Neste momento, deve-se fazer a leitura do conto de fadas contemporâneo A moça tecelã, apresentando, na sequência, as perguntas elencadas abaixo, que devem ser respondidas por escrito, contando sempre com a sua mediação. 3.1 Atividades que abordam o contexto de produção: a) Quem é o produtor deste texto? b) Quem, provavelmente, são seus leitores? c) Qual sua finalidade social? d) Onde ele pode ser encontrado? e) Em qual momento, provavelmente, ele foi escrito? 3.2 Atividades que abordam o conteúdo temático: a) Ao ler o título A moça tecelã, naturalmente, você criou toda uma expectativa a respeito do assunto que ia ser narrado. No decorrer da história, esse assunto se confirmou? Você imaginou, pela leitura do título, a presença de algo mágico na história? b) Quem é a protagonista desta história? Em que ela difere das protagonistas dos contos de fadas tradicionais? c) Segundo o texto, por qual motivo a tecelã sentiu necessidade de se casar? d) Como você interpreta esse anseio da tecelã? e) Por que a história não terminou quando a tecelã encontrou seu príncipe encantado? f) Para você, o que o tear representa? 3.3 Atividades sobre a construção composicional (arranjo, organização textual) do gênero a) No conto A moça tecelã, que tipo de narrador conta a história? Justifique sua resposta, transcrevendo um fragmento do texto. b) Ao ler o conto A moça tecelã, você conseguiu encontrar indicação exata da época e do lugar onde a história ocorreu? Por que eles são apresentados dessa forma? c) Os contos de fadas contemporâneos, diferentemente dos tradicionais, não se iniciam com as clássicas expressões “Era uma vez” e tampouco se encerram com “e viveram felizes para sempre”. Considerando o conto em estudo e outros contemporâneos que
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você já leu, você notou se eles possuem expressões que, obrigatoriamente, devem iniciar e encerrar o texto? Por que esses textos são escritos assim? d) O conto A moça tecelã apresenta intertextualidade e interdiscursividade em sua construção
composicional.
Você
consegue
identificar
alguns
intertextos
e
interdiscursos presentes no texto? Quais? Como você conseguiu identificá-los? Nota para o professor: Este é o momento de relacionar o conto A moça tecelã com o conto tradicional A filha do Moleiro. Como este último não é um conto muito difundido pode ser que os alunos não o conheçam e não o citem como exemplo na atividade acima. É necessário, então, que o professor faça a mediação apresentando-lhes o conto, levando a história para realizar a leitura e motivando um debate entre as semelhanças e diferenças entre os dois. 3.4 Atividades que contemplam as marcas linguístico- enunciativas (dimensão verbal) a) O texto em estudo se inicia com um verbo. Os verbos, como já estudamos, são palavras usadas para indicar ações em um tempo passado, presente ou futuro, expressas por uma pessoa verbal. Eles também possuem modos, que demonstram dúvida, certeza ou ordem. Volte ao texto e identifique que tempo e modo verbal é predominante na narrativa. Por que os contos de fadas contemporâneos apresentam o emprego desse tempo e modo verbal? b) As conjunções são palavras invariáveis, ou seja, que não variam nem em gênero (masculino ou feminino), nem em número (singular ou plural), nem em grau (aumentativo ou diminutivo) e servem para conectar orações, termos da mesma função sintática e dar sentido a um texto. De acordo com o uso, em cada contexto, as conjunções estabelecem relações diferentes, por isso é muito arriscado decorar tabelas que classificam os tipos de conjunções. A conjunção mas exemplifica tal situação, uma vez que, comumente, encontramos tabelas que a classificam como adversativa, como, por exemplo, na frase “O brinquedo é novo, mas não funciona”, em que temos a oposição de ideias e, portanto, o sentido é adversativo. Entretanto, em outros casos, como, por exemplo, na frase “Foi à feira e não só comprou bananas, mas maçãs e peras também”, a conjunção apresenta valor aditivo, já que sua função é adicionar itens comprados. Na frase “Nossa, mas a prova estava tão difícil!”, o uso da conjunção
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tampouco é contrastivo, já que funciona apenas como recurso enfático. Além dos casos comentados, a referida conjunção apresenta muitos outros sentidos, assim como outras conjunções que, dependendo da situação em que estão empregadas, assumem outro valor semântico. No texto em estudo, encontramos um farto uso de conjunções. Sua tarefa será retirar dois trechos que possuem conjunções, grifá-las e explicar qual é o sentido apresentado por esse elemento gramatical. c) Você já estudou que os adjetivos existem para que possamos caracterizar os substantivos, atribuindo-lhes modos peculiares de ser. Quando usamos um adjetivo, intensificamos o sentido daquilo que objetivamos transmitir, pois não podemos afirmar que “uma princesa” tenha o mesmo sentido de “uma princesa linda e meiga”. No texto A moça tecelã, os adjetivos são muito usados, estando presentes em quase todas as frases. Volte ao texto, identifique e transcreva o parágrafo que descreve o marido “tecido pela tecelã.” Feito isso, identifique os adjetivos presentes e explique o efeito de sentido produzido por eles. d) Na vida real, não temos o poder de possuir um tear mágico que realize nossos desejos, mas temos a liberdade de escolher o que queremos e o que é melhor para nós, desde que não prejudiquemos outras pessoas. No conto, por meio da história da jovem tecelã, você conseguiu identificar a metáfora que vai sendo construída no tear? 4– Catarse Vamos, agora, sintetizar o que aprendemos a respeito dos contos de fadas contemporâneos, respondendo às questões abaixo: 1) Em que consiste o gênero conto de fadas contemporâneo? 2) Qual sua função social? 3) Quais as semelhanças e diferenças entre os contos de fadas contemporâneos e os tradicionais? 5 – Prática social final Esse é o momento em que o aluno demonstra, por meio de intenções e ações, que o conteúdo vivido, problematizado, teorizado e sintetizado é capaz de transformar a sua realidade social. O último estágio de aprendizado do aluno, portanto, não poderá ser aferido em sala de aula, mas, em suas práticas sociais de uso efetivo do gênero estudado. Assim, espera-se que ele tenha a intenção de ler outros contos de fadas
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contemporâneos, veiculados em diferentes suportes e mídias, compreendendo sua finalidade social e os valores que agora permeiam nossa existência. Considerações Finais Ao atuarmos no cenário educacional diariamente, estamos cientes da necessidade de se consolidar um ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa que, de fato, volte-se ao uso efetivo da linguagem. Para isso, entendemos ser necessário mobilizar, na prática da sala de aula, enunciados concretos de diferentes gêneros discursivos, analisando sua dimensão social e verbal, bem como seu caráter responsivo a outros gêneros. Sob tal enfoque, acreditamos que a proposta metodológica apresentada, neste trabalho, constitui-se uma das possibilidades de se empreender análise linguística contextualizada à prática de leitura, via texto-enunciado do gênero conto de fadas contemporâneo, no caso, o enunciado-concreto A moça tecelã. Referências AUTHIER-REVUZ, J. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Revisão técnica da tradução: Leci Borges Barbisan e Valdir do Nascimento Flores. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. BAKHTIN, M. M; VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Paulo Bezerra. 6 ed. São Paulo: Hucitec, 1992. ______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. COLASANTI, M. A moça tecelã. In: Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento. Rio de Janeiro: Global Editora, 2000. Disponível em: http://www.releituras.com/i_ana_mcolasanti.asp Acesso em 12/09/2013. FIORIN, J, L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008. GARCEZ, L.H.C. A escrita e o outro: os modos de participação na construção do texto. Brasília: UNB, 1998. PARANÁ, Secretaria de Estado de Educação. Diretrizes Curriculares da Educação Básica – Língua Portuguesa. Paraná, 2008.
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SEXUALIDADE, "NÁUSEA" E O “BAIXO”, NO CONTO “VIAGEM DE NÚPCIAS”, DE RUBEM FONSECA Adriano Rodrigues Alves (UNIOESTE) Introdução Este trabalho se atentará à analise sobre o conto “Viagem de Núpcias”, incluso na obra Histórias de Amor, do autor Rubem Fonseca, sendo sua primeira edição datada no ano de 1997, o referido autor já recebeu cinco vezes o prêmio Jabuti e, em 2003, os prêmios Juan Rulfo e Camões. Os contos de Rubem Fonseca, em sua maioria, abordam aspectos de violência urbana, os infortúnios do ser humano na coletividade e de si mesmo, sexualidade e a escatologia, mas uma escatologia no sentido de que determinado ato ou objeto tem em seu fim algo de revelador. Com isso, este estudo terá como enfoque três aspectos que serão discutidos em contraste a partir do conto “Viagem de Núpcias”, a saber, a relação social do homem perante a mulher e vice-versa no âmbito do matrimônio e da sexualidade e como se pode gerar um bloqueio de interação; a passagem do bloqueio para uma libertação através da náusea1 e a ascensão dessa libertação pelo “baixo” segundo a concepção bakhtiniana; O bloqueio Para elucidar o aspecto do bloqueio sexual no matrimônio é necessário uma abordagem de cunho social no que diz respeito à relação homem e mulher através dos tempos.
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Náusea em dois sentidos: de que determinada angústia gera um momento de reflexão que culmina numa epifania da atual situação; e de que determinada situação após provocar um asco induz no sujeito uma necessidade fisiológica;
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Foucault (2013) nos recorda que no tempo de Aristóteles já preconizava que o homem deveria tratar a sua esposa com reserva e delicadeza, com muita moderação e respeito. Assim Sêneca também alude: “Quer sob a forma de uma tese geral: comportarse muito ardentemente com a própria mulher é tratá-la como adúltera” (SÊNECA apud FOUCAULT, 2013, p.178). Além de o homem ocidental tratar a mulher com respeito, ela tem que ser reservada segundo as tradições judaico-cristã, restando à esposa o constrangimento de ficar em silêncio em público, e “também é característico do regime patriarcal o homem fazer da mulher uma criatura tão diferente dele quanto possível. Ele, o sexo forte, ela o fraco; ele o sexo nobre, ela o belo” (FREYRE, 2006, p.207). Podemos dizer que Perrot (2013) partilha um pouco desse pensamento da função binária da mulher em determinadas sociedades, em que ora deve fazer isso ora tem o direito àquilo, ou seja, uma vida de aparências no âmbito social: A mulher é, antes de tudo, uma imagem. Um rosto, um corpo, vestido ou nu. A mulher é feita de aparências. E isso se acentua mais porque, na cultura judaico-cristã, ela é constrangida ao silêncio em público. Ela deve ora se ocultar, ora se mostrar (PERROT, 2013, p.50).
Neste contexto, o “sexo das mulheres deve ser protegido, fechado e possuído. Daí a importância atribuída ao hímen e à virgindade. Principalmente pelo cristianismo, que faz da castidade e do celibato um estado superior” (PERROT, 2013, p.64). Com relação ao adultério, Perrot (2013) argumenta que ele é amplamente tolerado para os homens e é muito menos tolerado para as mulheres, cujo adultério pode ser levado aos tribunais, enquanto o dos maridos só pode ser condenado se flagrado no domicílio conjugal. Isso implica no “chamado padrão duplo de moralidade, dando ao homem todas as liberdades de gozo físico do amor e limitando o da mulher a ir para a cama com o marido, toda a santa noite que ele estiver disposto a procriar” (FREYRE, 2006, p.207208), além da possibilidade, também, de na ocorrência de frigidez da esposa o marido ir procurar saciar seus desejos em outras “fontes” e com isso aumentando o índice de traições.
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No início do conto em estudo, o narrador já faz a alusão de que o personagem, antes do casamento, é muito aventureiro no aspecto de procurar várias parceiras para saciar sua libido, assim, partindo do pouco que vimos até agora da teoria de matrimônio, já podemos deduzir de que no decorrer da narrativa o futuro casamento poderá sofrer alguns obstáculos de relacionamento: Nos meses que antecederam o casamento o apartamento de Maurício na cidade funcionou quase todas as noites. As mulheres proviam de várias fontes, algumas ele já conhecia, outras não; algumas tinham profissão, outras eram estudantes, outras não faziam coisa alguma, [...] (FONSECA, 2012, p.38-39)
Desta forma, temos o seguinte parecer: De modo geral, o homem foi, dentro do patriarcalismo brasileiro, o elemento móvel, militante e renovador; a mulher, o conservador, o estável, o de ordem. O homem, o elemento de imaginação mais criadora e de contatos mais diversos e, portanto, mais inventor, mais diferenciador, mais perturbador da rotina. A mulher, o elemento mais realista e mais integralizador. (FREYRE, 2006, p.217)
Com isso as doutrinas do patriarcalismo ainda estão enraizadas no âmago da sociedade brasileira. Perrot (2013) argumenta que a hierarquia dos sexos ainda não foi dissolvida, ainda há dependência da mulher em certos setores sociais, como também está emergindo à dependência do homem em outros setores, sendo assim esse fatores podem provocar: Efeitos perversos, inesperados, se produzem: solidão, confronto, violência, conjugal ou de outro tipo, talvez mais visível ou realmente agravada pela angústia identitária, marcam as relações entre os sexos, quase sempre tensas. (PERROT, 2013, p.169)
Assim, com toda essa sacralização e dependência feminina imposta no decorrer dos séculos, cabe ao marido concebido nesse antigo sistema (que por vezes ainda insiste habitar a sociedade com sua mentalidade retrógrada), o dever de tratar a esposa como sendo a “virgem”, ocorrendo, então, o bloqueio sexual em determinados esposos, os quais estavam acostumados a tratar as mulheres, que não eram ditas de “família”, de
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forma desrespeitosa, ou seja, ficam com receio de aplicar suas “experiências” com as mulheres de família e assim ocasionando certo desajuste sexual devido ao respeito que o marido tem que ter com a esposa. É desta forma que o personagem-protagonista do conto se sente na hora de consumar o casamento, como ele antes do casamento tinha uma vida regada em aventuras amorosas e a sua esposa, por sua vez, entra nos moldes que a sociedade ocidental preconiza através dos tempos como sendo de “família”, ou seja, ela é virgem e recatada, sendo assim, Maurício, o personagem-protagonista, não sabe como se comportar sexualmente com a sua esposa no leito nupcial: Adriana voltou depois, vestida com a camisola que escolhera ajudada pela mãe. Maurício nem notou a camisola. [...] No quarto tirou a roupa lentamente e pensou em Ludmila, uma das parceiras preferidas das suas noites lúbricas no apartamento da cidade. (FONSECA, 2012, p.40)
Por meio desta citação percebemos que Maurício estava tão preocupado com sua ereção que nem percebera a roupa que a esposa Adriana havia adquirido especialmente para a lua de mel. Ele estava tão preocupado e o bloqueio era tão grande que teve de usar da imaginação e relembrar de suas aventuras com outras mulheres para poder consumar o casamento: Novamente pensou ansioso em Ludmila e então o seu pênis afinal endureceu e ele deitou-se apressado sobre Adriana, separando abruptamente as suas pernas, temendo que a ereção cessasse. (FONSECA, 2012, p.41)
Percebemos que Maurício teve que ser rude com sua esposa, agindo com certa violência para consumar o casamento, até parece, no modo que em que o narrador nos relata, que a esposa é considerada quase como um objeto, uma boneca inflável com a qual pode agir de qualquer forma. Em determinado trecho o narrador ainda diz: Como é que ele não conseguia se excitar com Adriana, uma pessoa que adorava e que possuía um corpo e um rosto mais bonitos do que os de qualquer outra mulher que conhecesse? Assim que conseguiu uma ereção, pulou sobre Adriana e, ansioso, introduziu apressadamente o pênis na vagina dela. [...] Maurício, porém com a
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mente perturbada, não conseguiu dormir. Ele podia contar nos dedos as vezes em que conseguira fazer amor com Adriana. (FONSECA, 2012, p.48)
Até mesmo durante uma segunda viagem o narrador diz que Maurício ainda sente o bloqueio: O calor do corpo da mulher que ele amava e os seus carinhos recatados não lhe despertaram o menor desejo. Enquanto Adriana o acariciava ele imaginou, inutilmente, as mais ardentes cenas lascivas com Ludmila, com Cora, com Janete, com as mulheres despudoradas que frequentavam o seu apartamento no centro da cidade. (FONSECA, 2012, p.56)
Com isso podemos dizer que toda a história ocidental sobre os sexos que foram inculcadas no sujeito, personagem-protagonista, direta e indiretamente provocaram-lhe o bloqueio sexual perante a esposa. No livro Casa-grande senzala, Gilberto Freyre (2013) relata a seguinte história: [...] um jovem de conhecida família escravocrata do Sul [...] para excitar-se diante da noiva branca precisou, nas primeiras noites de casado, de levar para a alcova a camisa úmida de suor, impregnada de budum, da escrava negra sua amante (FREYRE, 2013, p.368).
A passagem - náusea Contudo, nesta parte vamos elucidar a náusea provocada pelo contato de algo que, por sua vez, nos proporciona uma epifania, a angústia de ter consigo a liberdade da existência, ou seja, a angústia leva o ser a refugiar-se no cotidiano e com isso não percebendo a infinitude da existência, passando a ver a vida de uma forma superficial. A angústia nos desnuda, reduzindo-nos àquilo que somos: consciências indigentes, com a maldição e o privilégio que a liberdade nos dá. No extremo de nossas possibilidades, ao qual esse sentimento nos transporta, ela intensifica a grandeza e a miséria do homem. (NUNES, 2009, p.94)
Desta forma:
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O significado da náusea, mais transtornante do que a angústia, não é a simples descoberta da existência, como fato irredutível, absoluto. E, também, a descoberta de que esse fato é contingente, totalmente gratuito, reduzindo-se ao Absurdo, que nenhuma razão, nenhum fundamento podem eliminar. A consciência, embebida no Absurdo, descobre-se supérflua, irrelevante. Sua liberdade paralisada apenas esboça, como nas emoções violentas, uma recusa, uma reação de fuga, que então se manifesta pelo desejo de vomitar: náusea. (NUNES, 2009, p.96)
É por toda essa angústia existencial que o personagem Maurício, no conto “Viagem de Núpcias”, é acometido, pela necessidade de se livrar do bloqueio sexual se angustia e somente através da náusea é que se revelará o absurdo, pois é preciso um sentido para qual a sua existência ainda não possui, essa liberdade que a angústia impõe e que a náusea propõe uma revelação do ser. Assim, a inexpressável realidade é revelada no aprofundamento da náusea, esse estado excepcional e passageiro que revela a essência do ser, o reverso da existência humana, o caótico, é isso que Maurício sente ao se confrontar com sua náusea existencial cuja reação foi encontrada ao avistar o excremento de sua esposa. Maurício foi até o vaso sanitário e antes de sentar olhou a camada de líquido anti-séptico azul-celeste transparente que enchia o receptáculo. E pôde ver com nítida clareza um enorme bolo fecal marrom-escuro submerso no fundo. [...] Lembrou-se que Suzete lhe dissera que o Boatman acabara de instalar o vaso sanitário, lembrou-se de Adriana conversando com Suzete e desaparecendo enquanto os demais ainda almoçavam. Aquela asquerosa, imensa massa excrementícia fora expelida por Adriana, e essa constatação o encheu de horror. (FONSECA, 2012, p.57-58)
Esse momento de horror emergiu no personagem-protagonista uma náusea não só existencial, mas fisiológica, provocando uma epifania, uma reflexão. Assim, ao vislumbrar tal excremento, Maurício humanizou a esposa perante seus ideais patriarcais de homem, livrando-se desta forma das amarras patriarcais e indo ao encontro de uma nova contemplação de mundo, um mundo mais respeitável e igualitário: “Maurício, sentado numa pedra, acompanhou pensativo os movimentos de Adriana, como se visse pela primeira vez” (FONSECA, 2012, p.58), assim, constatamos que realmente a náusea anteriormente provocada incitou-lhe uma nova concepção de mundo.
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Depois desta epifania, Maurício superou o bloqueio sexual que sentia anteriormente por sua esposa e embarcou numa nova fase de contemplação do amor para com sua mulher, que agora, era vista como um ser humano livre de todas as amarras impostas socialmente sobre os sexos. Naquela noite Maurício entrou na barraca antes de Adriana, ela ficou do lado de fora, olhando as estrelas. Maurício enfiou a cabeça para fora e perguntou, „você não vem deitar?‟ [...] Maurício tirou a roupa dela delicadamente, depois se desnudou também, feliz com sua virilidade latejante. [...] Depois possuiu-a com um ardor que nunca tivera, e esperou que os braços e as pernas da sua mulher se enlanguescessem no gozo para fruir aquela comunhão com um deleite que não imaginava pudesse existir (FONSECA, 2012, p.59).
O “baixo” para ascender o humano Os cinco primeiros limpa-cus – o cachecol, o chapéu, echarpe, as orelheiras, o boné de pajem – servem para cobrir o rosto a cabeça, ou o alto do corpo. O uso que se faz deles como limpa-cus, equivale a uma verdadeira permutação do alto e do baixo. O corpo faz piruetas. O corpo faz a roda. [...] O traseiro é o ‘inverso do rosto’, o ‘rosto às avessas’ (BAKHTIN, 2013, p.327, grifo do autor).
Entramos no mundo do “baixo” para elucidar a passagem a qual o personagem ao ver os excrementos da esposa, tem uma crise de náusea, libertando-se do bloqueio sexual. Daí a necessidade do ‘baixo’ material e corporal alegre que simultaneamente materializa e eleva, liberta as coisas da seriedade mentirosa, das submissões e ilusões inspiradas pelo medo. (BAKHTIN, 2013, p.330, grifo do autor)
É justamente isso que ocorre com Maurício, o “baixo” eleva a essência do ser humano. Desta forma: A negação remaneja a imagem do objeto denegrido, muda principalmente sua situação no espaço, tanto do objeto inteiro como de suas partes; transporta-o inteiro para os infernos, põe o baixo no lugar do alto, ou o traseiro no lugar do dianteiro, deforma as
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proporções espaciais do objeto, exagerando desmesuradamente um único de seus elementos em detrimento dos outros, etc. (BAKHTIN, 2013, p.360)
Então, a partir da negação, ao ver o excremento, a náusea que é involuntariamente provocada por meio da visualização do bolo fecal, induz ao personagem-protagonista uma deformação dos seus ideais. Assim, Maurício eleva o baixo no lugar do alto, o que fora nauseabundo agora é algo sublime, ou seja, ocorreu um detrimento de concepção ideológica favorecendo a ascensão de uma concepção mais humanitária das relações. Dessa forma, a negação e a aniquilação do objeto é sobretudo a sua permutação no espaço, o seu remanejamento. O nada do objeto é a sua outra face, o seu avesso. E esse avesso, ou esse baixo, tomam uma coloração temporal, são compreendidos como o passado, como o antigo, como o não-presente. O objeto aniquilado parece ter ficado no mundo, mas com uma nova forma de existência no espaço e no tempo: torna-se de alguma forma o avesso do novo objeto que veio para ocupar o seu lugar. (BAKHTIN, 2013, p.360)
Esse avesso é a nova forma de enxergar a esposa, a qual Maurício começa a identificar, após a náusea e a epifania provocada pela visualização do “baixo” de sua mulher, “[...] tudo desce par abaixo, para a terra e a sepultura corporal, a fim de aí morrer e renascer” (BAKHTIN, 2013, p.381), houve, então, um renascimento do amor: Todas as noites, Adriana e Maurício eram os primeiros a se recolher ao recesso na barraca. [...] O rio estava lá, fluindo sem parar, e as estrelas brilhavam na abóboda celeste, mas Adriana e Maurício só queriam saber das novas alegrias que o amor lhes propiciava (FONSECA, 2012, p.59-60).
CONCLUSÃO Podemos perceber no decorrer do estudo o enraizamento ainda nítido das ideologias do patriarcalismo, onde a mulher ainda é vista como dependente do homem, mesmo ela ainda buscando sua independência, percebemos, então, que a hierarquia sexual ainda não se dissolveu socialmente. Sendo assim, essa dependência provoca
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bloqueios, não só sexuais, mas de cunho político social também, tanto no homem quanto na mulher. Talvez, por meio da náusea, da ânsia de buscar a essência do ser e da angústia de contemplar a liberdade do ser, o homem poderá se libertar das amarras sociais e viver mais humanitariamente. Desta forma, com o “baixo” o homem tem a revelação do “alto”, assim, ele poderá descobrir a sua essência, pois através do reconhecimento de seu reverso o homem tem a possibilidade de denegrir as ideologias que o afastam de viver a vida de uma forma mais libertária e humana. Todavia, como argumenta Agamben (2012), que em nossa sociedade devido às várias formas de repressões e separações impostas, sendo uma delas é a defecação e suas séries de dispositivos e de proibições ao sujeito, provocam uma série de tensões polares entre natureza e cultura, privado e público. Com isso percebemos a necessidade de rever nossas prioridades e que devemos respeitar nossas necessidades fisiológicas. Neste âmbito sugerimos a leitura também do conto “Embargo”, da coletânea Objecto Quase, do autor José Saramago (2010), nesse caso a narrativa envolve as necessidades fisiológicas do sujeito e de suas prioridades induzidas pela “máquina” social. Referências AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2012. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Trad. Yara F. Vieira. 8. ed. São Paulo: HUCITEC, 2013. FONSECA, Rubem. 64 contos de Rubem Fonseca. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ______. Histórias de Amor. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 3: O cuidado de si. Trad. Maria T. C. Albuquerque. 12. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2013. FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos. 16. ed. São Paulo: Global, 2006. ______. Casa-grande & senzala. 51. ed. São Paulo: Global, 2013.
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NUNES, Benedito. O dorso do tigre. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2009. PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. Trad. Angela M. S. Côrrea. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2013. SARAMAGO, José. Objecto quase. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
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A REPRESENTAÇÃO DA SEXUALIDADE FEMININA EM ESTRELA NUA – AMOR E SEDUÇÃO, DE MARIA ADELAIDE AMARAL
Adrielle dos Santos Bergamasco (UEM)1
A r epr esentação tr ad icional da mulher na sociedad e e na Liter at ur a
Desde os primórdios da Humanidade vivemos em uma sociedade patriarcal, onde a voz masculina era e ainda hoje é dominante. Essa superioridade masculina é o que regia e rege, mesmo que em menor grau nos dias de hoje, todo o sistema organizacional político, cultural, familiar, de trabalho, dentre outros na sociedade. Assim, a mulher sempre foi vista como submissa e inferiorizada por esse domínio, além de ter sua imagem atrelada a estereótipos ancorados nesses moldes que, infelizmente, muitos perduram até hoje. Essa representação estereotipada da mulher começou ainda nos princípios do mundo, com o mito de Adão e Eva no paraíso, onde, segundo a Bíblia, a mulher é considerada pecaminosa e culpada por um ato que cometeu e que consequentemente acarretou nas mais diversas penalidades para seus descendentes. Essa representação com estereótipos também varia desde a mulher ser considerada como indefesa/incapaz, na imagem da “mulher-anjo”, até a mulher sensual/ sedutora/perigosa/imoral, como “mulher-demônio”, segundo os apontamentos de Zolin (2009). Ainda há as representações de “mulher-objeto”, “mulher macha e feia”, “mulher como megera”, dentre tantas outras que se pode elencar tendo visto a representação da imagem feminina nas relações de gênero nos mais diversos contextos sociais. Como dito, essa representação da mulher vem sendo feita tradicionalmente na sociedade e também na Literatura canônica. É comum lembrarmos de alguns desses estereótipos sendo representados por personagens da nossa literatura, como por 1
Graduada em Letras Português - hab. única UEM. Mestranda em Letras – Estudos Literários UEM.
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exemplo, o de mulher sensual/sedutora que se desenvolve nas performances da Capitu, de Dom Casmurro de Machado de Assis, Gabriela, e tantas outras das obras de Jorge Amado, Rita Baiana, d’O Cortiço, de Aluísio Azevedo, dentre várias outras que poderíamos citar como representantes desse modelo. Dessa forma, o que se percebe é que durante muito tempo essa imagem estereotipada da mulher vem sendo veiculada não só na sociedade, mas também na literatura, o que reforça ainda mais os moldes do sistema patriarcal de relação de poder entre homens e mulheres, além de promover uma forte generalização, porque não considera nem homens, nem mulheres em suas especificidades, em suas individualidades. Em vista disso, a Literatura de autoria feminina tem conseguido, dentre outras coisas, “combater” e desmistificar essa representação direcionada à mulher, como também inovar as problematizações nas relações de gênero com outros discursos, diferentemente do discurso patriarcal dominante. Nessa literatura, o que se percebe é que as mulheres possuem um espaço mais amplo e de maior importância nos enredos, como também ocorre com outras minorias, muitas vezes com posições protagonistas, que até então, eram quase nulas; os temas e contextos em que tais personagens estão inseridas são diversificados, não somente veiculando o discurso da “igualdade de direitos”, mas agora indo contra a “vitimização” da mulher pelo sistema patriarcal (Butler, 2003); as mulheres são, muitas vezes, atrizes da sua própria história (Touraine, 2007), tendo liberdade, autonomia e independência para tomar atitudes e agirem de acordo com seus desejos; as problematização que ocorrem nas narrativas são questões comuns aos gêneros, desconsiderando a polarização de “assuntos de homens” e “para mulheres” dentre outros. Assim, como afirma Butler (2003) “as mulheres que antes eram representadas (ou mal representadas) apenas pelo outro, passam agora a serem representadas por elas mesmas”, o que configura um processo de extrema importância nesse cenário literário e social, pois é a partir da visão e da perspectiva feminina, que as mulheres tem suas representações referidas nesses contextos. É dentro desse âmbito que este artigo está inserido, utilizando a obra Estrela nua – Amor e sedução (2003), de Maria Adelaide Amaral como o objeto de estudo para
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analisar de que forma ocorre a construção da identidade feminina, e mais especificamente, o que tange a representação da sua sexualidade. A r epr esentação da sexualidad e feminina em Estrela nua – Amor e sedução, de Mar ia Adelaide Amar al Estrela nua – Amor e sedução escrito pela jornalista, escritora e dramaturga Maria Adelaide Amaral e publicado em 2003 é um dos sete romances de autoras contemporâneas que integram a Coleção Amores extremos da Editora Record. O romance narra uma história de descobertas do jovem músico Carlos Eduardo e da protagonista, a experiente Hilde, uma estrela do bel-canto, que aos poucos vai seduzindo o rapaz, mais para a vida, do que para ela mesma. De repulsa que o jovem sente por ela, no início dos encontros musicais, até a entrega dele ao final do romance, os dois vão se conhecendo pouco a pouco e se descobrindo, pela música e pela sexualidade. Ainda no início da obra, Carlos Eduardo tem um grande estranhamento pelo comportamento da cantora nos ensaios, onde ele toca piano e ela canta: Toda vez que ela cruzava ou descruzava as pernas, deixava entrever as coxas brancas (...) talvez ela estivesse nua sob o penhoar, talvez fosse uma velha maluca ou esclerosada: como a minha avó paterna, que no fim da vida tirava a roupa na frente das visitas e dizia obscenidades. (AMARAL, p. 10)
O modo como o jovem descreve Hilde já denota o sentido que ele tem dela, comparando-a a avó, e visualizando-a apenas como uma velha louca ou gagá no fim da vida e livre de qualquer conotação sexual. Ela é para ele apenas uma senhora estranha e a postura com que ela se porta na frente dele o faz pensar apenas na degradação da sexualidade da mulher de terceira idade. É esse o significado da vida sexual da mulher idosa para Carlos Eduardo e para maioria das pessoas na sociedade, uma visão de deterioração, o que fica evidente quando o personagem da história remete a ideia da avó tirando a roupa e dizendo obscenidades no auge da velhice. Ainda nesse contexto, há outro excerto da obra que aborda esse pensamento:
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A estrela do bel-canto era uma velha, e me parecia que fora sempre assim. (...) Ficava difícil imaginá-la jovem e sedutora (...) isso era uma tolice construída a partir do fato de que nem minha mãe nem minha avó costumavam comentar sobre sua vida sentimental e sexual. Quando olhava para elas, via-as como funções, entidades, seres destituídos de vaginas, como as bonecas e os manequins (AMARAL, p. 23 - 24).
Nesse trecho, Hilde novamente é comparada a avó do jovem da história, mas também à mãe. Ele reflete uma outra concepção que geralmente é instituída pela sociedade, a de que mães e avós, dentre outras, são seres meramente reprodutores, que possuem um corpo destituído de prazer, que são desprovidas da mesma sexualidade que outras mulheres possuem. Assim, Carlos Eduardo representa o discurso de uma parcela bem significativa da sociedade, que ainda reproduz uma visão machista e preconceituosa sobre o papel da mulher na sociedade e como sua sexualidade é representada. Apesar desses questionamentos que o personagem tem mediante a sexualidade de Hilde e o modo com que ela se comporta na presença dele, aos poucos, o jovem se vê tentado pela curiosidade sobre essa sexualidade e pela sedução, ainda que mínima, que a cantora impera sobre o ele: “Olhei para Hilde e tentei imaginá-la sem o feixe de rugas no canto dos olhos, as linhas profundas na testa e as comissuras dos lábios.” (AMARAL, p. 23). Com o passar dos acontecimentos na história, a cantora do bel-canto começa a seduzir o rapaz, o qual não compreende as intenções que ela tem. Ao contrário, o rapaz só consegue visualizar uma imagem que soa entranho a ele: “Hilde era uma fantasmagórica aparição, uma personagem de filme antigo de terror. E me recebia com uma expressão coquete e uma garrafa de champanhe dentro de um balde de gelo”. (AMARAL, p. 37). Essa incompreensão que Carlos Eduardo sente e a sedução que Hilde aposta no jovem também são nítidas em um dos diálogos decorrentes dos dois personagens: - Não esperava trabalhar esta tarde – disse ela. (...) - Se a gente não vai trabalhar, não há razão para continuar gastando seu dinheiro comigo – respondi.
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- Eu determino a natureza dos serviços que você me presta – disse ela, abrindo a garrafa de champanhe. - Desculpe, mas só sei tocar piano. - Não seja tão modesto. (...) Envelhecer todo mundo envelhece, mas você não espera que uma pessoa daquela idade resolva fazer um joguinho de sedução. (AMARAL, p. 38-39)
Como se observa, no diálogo dos dois fica claro que Carlos Eduardo não aceita a sexualidade da mulher da terceira idade, que é muito estranho que ela faça um jogo de sedução com ele somente porque possui mais idade. Para ela, ao contrário, sua sexualidade é algo natural e sua idade não é empecilho para que, eventualmente, tenham qualquer tipo de relação, seja ela sexual, profissional ou outra. Abaixo, outro excerto da obra de Maria Adelaide Amaral também explicita essa dualidade de pensamentos entre os dois personagens: - Você é uma pessoa muito diferente das pessoas que eu conheço. [- disse ele] (...) - Não, você tem medo de mim. (...) e não gosta de arriscar (...) se não tem mais medo de mim, então posso ficar à vontade. E aí, imagina o que ela fez? Tirou o penhoar e ficou pelada. - Vamos trabalhar? – perguntou ela (...) Você acredita? Na hora em que eu pensei que ela fosse se jogar no sofá e me seduzir, ela fez o quê? Resolveu cantar. (AMARAL p. 42,46 e 47)
Ao se deparar com esse choque de realidade para o jovem músico, ele, aos poucos, vai internalizando uma reflexão acerca dos questionamentos da sexualidade de Hilde Brandão. Não aceita, de prontidão, mas permite que ela o induza com suas atitudes para fazê-lo entender a curiosidade e a atração pelo desconhecido que a cantora o proporciona, por meio de sua sexualidade: - Comece olhando para você e para mim. (...) O que você vê? - Um moço e uma velha – ousei. (...) Hilde me esmagava não porque fosse mais velha, mas porque revelava a todo momento o meu lado tolo, imaturo, convencional. (...) - Quando vou saber que estou pronto? - Quando você enxergar nesse espelho um homem e uma mulher. (AMARAL, p. 76, 77 e 78)
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Nesse trecho do romance, Carlos Eduardo começa então a compreender e aceitar as diferenças entre ele e Hilde. Isso fica claro no discurso do rapaz que percebe que a experiência de vida da cantora é mais importante do que o estranhamento que ele tinha para com ela. A partir desse momento, então, ele entende que começa a admirá-la porque somente ela consegue revelar esse lado imaturo, irracional que tinha, representando também o discurso machista e patriarcal que ainda impera na sociedade, essa visão preconceituosa perante a sexualidade da terceira idade. Assim, temos também o outro lado dessa duplicidade de pontos de vista. Quando Hilde diz que o jovem só estará pronto para ela quando ele enxergar um homem e uma mulher, não um moço e uma velha, como ele pensa, ela quer dizer que a sexualidade é algo extremamente natural, instintivo, que não depende da idade para que possam se relacionar. Essa sexualidade que ela vive sem problemas, é inerente a qualquer idade, e pode se manifestar independentemente da diferença de idade entre duas pessoas. Portanto, é extremamente relevante o modo como ocorre a construção da sexualidade feminina na obra em questão, e, respectivamente, a maneira como se da essa representação, por não somente incluir uma minoria que muitas vezes é esquecida pela sociedade, mas também por representá-la de forma tão natural, tão expressiva como ocorre no romance. Consider ações finais Tendo em vista a tradicional abordagem da representação da sexualidade feminina feita pela Literatura canônica com modelos estereotipados e quase sempre, pela visão de autores masculinos, a obra Estrela Nua – Amor e sedução, de Maria Adelaide Amaral compreende assim uma importante produção literária que veicula um discurso livre da visão machista e do sistema patriarcal dominante na maioria das relações de gênero. O romance inova também não só em representar a sexualidade feminina pela visão de uma autora contemporânea, mas também por representar a sexualidade da mulher da terceira idade, contribuindo em muito para a construção da sua identidade. Segundo Touraine (2007, p. 61) “(...) a sexualidade se constrói a partir do sexo através
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da relação com o outro e a partir da relação consigo mesmo”. Assim, essa construção da identidade da protagonista da obra pode ser compreendida a partir das relações que se estabelecem entre o jovem e a senhora e por meio das atitudes que se inserem nessas relações. Nesse sentido, pode-se dizer também que a sexualidade é construída a partir das relações que são estabelecidas na sociedade e, por elas também são representadas. A sexualidade feminina é vista como um tabu no início da obra, mas, aos poucos, vai se revelando como algo natural que contribui de forma imprescindível para construção da sua identidade. Além desse tabu da sexualidade da mulher da terceira idade que é quebrado ao longo da obra pelas performances dos personagens e principalmente pela protagonista, existe ainda um outro fator, que é anterior a esse, a dominação masculina sob a submissão feminina, que é exercida pela diferença entre os corpos do homem e da mulher, na relação sexual como aponta Bourdieu (2002) e, posteriormente se espalha pelos mais diversos contextos sociais: A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros (...) (BOURDIEU, 2002, p. 10)
Apesar dessa questão biológica, a representação que é feita da sexualidade feminina e masculina na obra de Maria Adelaide Amaral não impõe a representação de dominação masculina sob a submissão da mulher. Na verdade, pode-se dizer que, por meio da sua sexualidade, a protagonista possui um domínio ao sexo oposto e, utiliza das relações que envolvem sua sexualidade para reafirmar essa identidade feminina. Pode-se dizer também que a obra de Maria Adelaide Amaral confirma que a autoria feminina contemporânea vem contemplando cada vez mais as variadas representações da sexualidade feminina, e se preocupa também com a inclusão de minorias, neste caso, a sexualidade da melhor idade. Assim, Estrela nua – Amor e sedução pode ser considerado um romance que proporciona uma importante análise
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sobre a representação da sexualidade feminina e como as questões advindas dessa representação contribuem para construir essa identidade. Refer ências AMARAL, M. A. Estr ela nua – Amor e sedução. Rio de Janeiro: Record, 2003; BOURDIEU, P. A dominação masculina. Tradução: Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002; BUTLER, J. Pr oblemas de gêner o: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; TOURAINE, A. O mundo das mulher es. Petrópolis: Vozes, 2007; ZOLIN, L. O. Cr ítica feminista In: BONNICI, T. ; ZOLIN, L. (org.) Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3. Ed. Maringá: Eduem, 2009. Cap. 12, p. 217-242.
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RELAÇÕES DE FORÇA DO CAMPO LITERÁRIO: UM ESTUDO DAS CRÔNICAS DE MILTON HATOUM Aídes José Gremião Neto (UERJ) Grande parte das crônicas de Milton Hatoum, sobretudo as publicadas na revista Entrelivros, tratam de responder a pergunta inaugural que pode ser resumida nas palavras do narrador da crônica “„A parasita azul‟ e um professor cassado” (HATOUM, 2005a, p. 26): “De onde vem o desejo de escrever?”. Mas o foco de nossa investigação, que se segue a esta reflexão crucial, pode ser ainda resumido conforme as seguintes palavras deste mesmo narrador: “[...]. Para a maioria dos escritores, as fontes de suas narrativas giram na infância e juventude, cujo mundo é uma promessa de um futuro livro. A memória incerta do passado acende o fogo de uma ficção no tempo presente”. Há aí algumas chances de compreensão, não só do cronista e de suas crônicas, mas da própria poética do autor, a qual se estende para outras áreas de sua produção artística: infância e juventude; mundo real e mundo ficcional; memória sinuosa e representação ficcional; passado e presente, dentre outros aspectos. Neste sentido, buscamos adentrar o universo ficcional hatouniano para analisar os possíveis limites e alcances do jogo de representação em suas crônicas, que revelam um pouco da imagem do escritor engajado no que Pierre Bourdieu (1968) e, mais tarde, Dominique Maingueneau (2001) pensaram como campo intelectual e campo literário. Desta forma, vemos que, na crônica mencionada, ao pôr em cena um narrador-escritor, que vai narrar sua experiência de leitor, Hatoum constrói uma escrita que revela índices “bio/gráfico”, conforme o termo de Maingueneau (2001). Assim, esta narrativa sugere a imagem do Hatoum-leitor subscrita neste narrador leitor e, ao mesmo tempo, dissolve esta imagem através do dado ficcional. Embora saibamos que, assim como este narrador, Hatoum possa ter passado sua infância em Manaus e ter publicado um romance, não cabe afirmar que se trata meramente da figura do escritor Milton Hatoum. O que podemos inferir, principalmente através da observação da poética de Hatoum, é que suas crenças estéticas são elementos dinamizados no jogo de encenação, de modo que não podemos identificar onde se dá a interseção entre vida e escrita ou entre texto e contexto ou, ainda, entre ética e estética. Assim, trabalho com a escrita, leitura cerrada,
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análises de aspectos estéticos de outros escritores são alguns dos temas recorrentes dos narradores hatounianos. De modo geral, a compilação ficcional destes narradores nos possibilita refletir, via dialogismo (BAKHTIN, 2011), as noções de mercado, leitor, autoria, escrita e valor. Nas crônicas de Hatoum há uma recorrência, por exemplo, do trato intratextual com a imagem do escritor-narrador, o que ratifica os laços entre os campos intelectual e literário com a estrutura de encenação. A imagem que moldamos do próprio Hatoum é homóloga a este debate, uma vez que, por meio da observação do conjunto de produção do autor, podemos depreender seu posicionamento estético frente ao campo intelectual. Todavia, para produzirmos sentidos sobre a imagem do escritor, é preciso observar como ele articula sua escrita com o campo literário, nele assumindo, portanto, determinada posição. O discurso literário contemporâneo revela um multifacetamento, no qual a escrita deixa de assumir a concepção romântica de inspiração ou intenção do autor, passando a assumir formas cada vez mais dialógicas, interna e externamente, o que corresponde à intratextualidade e à intertextualidade. Parafraseando o título de uma das crônicas de Hatoum (2005b, p. 27), publicada na revista Entrelivros e cujo título Hatoum retirou de uma obra de Marcel Proust, é possível dizermos que o escritor vive incessantemente “em busca da inspiração perdida”. Para não negar tal noção, o narrador desta crônica trapaceia com a compreensão romântica de inspiração, buscando (re) contextualizá-la nos tempos e compreensões críticas hodiernas. Este narrador, então, afirma que a noção de „inspiração‟ só faz sentido “[...] com o esforço do pensamento e a convivência obstinada com a palavra”, o que, trocado em miúdos, pode significar que o autor necessita da técnica, do trabalho estético e da leitura cerrada, relações que mantêm com o campo intelectual e que resultam no material estético ao qual chamamos de literatura. Em respeito ao espaço, faremos a leitura da crônica “Um inseto sentimental” (HATOUM, 2013) e discorreremos um pouco mais sobre a narrativa já citada, “„A parasita azul‟, e um professor cassado” (HATOUM, 2005a). Acreditamos que essas duas crônicas amalgamam bem as questões até então debatidas, mais especificamente, questões acerca das relações literárias ou, ainda, da autopoiesis de Hatoum-escritor.
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Em “Um inseto sentimental” (HATOUM, 2013a), crônica que abre o volume Um solitário à espreita (HATOUM, 2013), temos um narrador-escritor que nos permite observar alguns ritos da relação de produção do objeto literário por parte do autor. Este narrador-escritor, também sem nome, ao escrever, é incomodado por um inseto que passa a ser designado como “monstro”. E, ao ser incomodado por “este monstro”, ele (narrador) perde a ideia da crônica e também a alegria de escrevê-la, mesmo que saiba que vai “[...] reescrevê-la quatro ou sete vezes” (HATOUM, 2013, p. 11). Por conseguinte, depois do incômodo de uma pausa na escrita que o fez (o narrador) dar “adeus à ideia da crônica e à leitura de Gógol” (HATOUM, 2013, p. 11), o inseto, ao pousar numa velha fotografia de sua mãe, o faz trilhar os caminhos da memória e, assim, acaba lhe concedendo outra ideia para a crônica, oriunda das lembranças de sua falecida mãe. É válido assinalar que, nesta crônica, início e fim são interligados por uma espécie de pacto com a escrita, ou melhor, com o trato esmerado que o escritor mantém com esta. E é justamente desta maneira que o escritor finaliza sua meta-crônica: resta “[...] pegar a caneta e escrever a primeira frase da crônica, quase sempre a mais difícil [...]” (HATOUM, 2013, p. 11). Outros temas se desdobram, como a relação da escrita com a memória ou das influências literárias tão presentes nas relações entre as obras. Já na crônica “„A parasita azul‟ e um professor cassado”, o que está em jogo é a importância da leitura crítica, não só para os leitores em geral, mas também para aqueles que podem vir a se tornar escritores. Nesta crônica, mais uma vez, estamos diante de um narrador-escritor que vai relatar as experiências de suas primeiras leituras. Por isso, o caráter intertextual já explícito no título da crônica, cuja “parasita azul” é uma referência a um conto de Machado de Assis. Segundo o narrador da crônica, que se confunde com seu autor, a leitura do romance Grande sertão: veredas e do conto “A parasita azul” foram fundamentais para o rumo de sua carreira como escritor. Nesta questão, está imbricada a relação paratópica do autor com o campo literário, já que, como não há um manual para se tornar escritor, tampouco há garantias outras, além da crença do autor, no caso Hatoum, em investir cegamente no “combate” com as palavras. Em seu tempo presente, sob o olhar amadurecido do escritor que parece consolidado na esfera intelectual, o narrador da crônica diz que, mesmo que tenha feito a leitura superficial dessas duas obras quando criança, elas foram essenciais para a internalização
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de estilos e usos variados da linguagem de ambos os escritores, Guimarães Rosa e Machado de Assis. Sua concepção de escrita, pois, está diretamente associada ao contato constante com a palavra escrita ou a ser escrita. De certa forma, podemos entender isto como uma crença estética de Hatoum, já que em muitas de suas crônicas há menções diretas a muitos escritores feitas através de narradores conscientes das relações existentes no campo literário. Como toda pesquisa requer, ficamos com o recorte dessas narrativas hatounianas, para não ultrapassarmos o espaço e o objetivo deste trabalho de comunicação. Assim, concluímos provisoriamente que o universo cronístico de Hatoum é rico em conhecimentos a serem explorados em releituras múltiplas. Um universo ficcional que, em sua maioria, compõe o que propomos chamar de autopoiesis do escritor. Referências: BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011. BOURDIEU, Pierre. Campo intelectual e projeto criador. In: POUILLON, Jean (Org.). Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, pp. 105 – 145. HATOUM, Milton. „A parasita azul‟ e um professor cassado. Entrelivros, São Paulo, ano 1, n. 1, maio 2005a, p. 26-27. ______. Em busca da inspiração perdida. Entrelivros, São Paulo, ano 1, n. 2, junho 2005b, p. 26-27. ______. Um inseto sentimental. In: ___. Um solitário à espreita. São Paulo: Companhia das Letras, 2013; pp. 11-12. ______. Um solitário à espreita. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária: enunciação, escritor, sociedade. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
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MARQUES DE CARVALHO NA HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA
Alan Victor Flor da Silva (UFPA)
RESUMO: O jornalista, político, diplomata e escritor paraense João Marques de Carvalho nasceu em Belém, no estado do Pará, no dia 6 de novembro de 1866, e faleceu em Nice, no sul da França, no dia 11 de abril de 1910, aos 43 anos. Dedicou ainda grande parte de sua vida ao jornalismo. Não apenas foi colaborador de alguns periódicos que fizeram parte da constituição da história da imprensa jornalística belenense, entre os quais mencionamos A Província do Pará, A República e o Diário de Belém, como também foi fundador de alguns periódicos de pequeno porte e vida efêmera, entre os quais citamos A Arena e o Comércio do Pará. Publicou diversas obras em livro, como Hortência (1888), Contos paraenses (1889), Entre ninfeias (1896) e Contos do Norte (1900), além de deixar diversas contribuições em periódicos, onde divulgou poemas, crônicas, contos, romances e ensaios críticos. Embora, atualmente, não desfrute de um estatuto canônico, já foi alvo da pena de alguns críticos e historiadores da literatura consagrados, como Sílvio Romero, José Veríssimo, Lúcia Miguel Pereira e Temístocles Linhares. Ao considerarmos que as histórias literárias desempenham um papel importante no processo de canonização de autores e obras, objetivamos, com este trabalho, analisar como as apreciações críticas desses autores influenciaram para que Marques de Carvalho encontre-se hoje à margem do cânone literário. PALAVRAS-CHAVE: Marques de Carvalho; História da Literatura Brasileira; crítica literária; instância de legitimação; cânone literário.
Para início de conversa... Sílvio Romero, José Veríssimo e Lúcia Miguel Pereira, assim como muitos outros intelectuais brasileiros e estrangeiros de diversas épocas, propuseram-se a contar uma história da literatura brasileira em compêndios de teor crítico, descritivo e narrativo. Esses manuais, de modo geral, admitem os mais diversos conceitos de literatura, analisam o fenômeno literário a partir dos mais distintos pontos de vista e elegem critérios de inclusão e exclusão para determinar os escritores e as obras que mereçam fazer parte da história da literatura brasileira.
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Os poucos escritores inseridos nesses compêndios alcançam um estatuto canônico e, por conseguinte, transformam-se em ícones da literatura brasileira, enquanto os muitos excluídos são socialmente estigmatizados e, com o passar do tempo, tornamse completamente esquecidos. Esse processo ocorre pelo fato de que os manuais de história da literatura brasileira são uma das mais importantes instâncias de legitimação e, consequentemente, escondem uma prática de seleção, cuja finalidade é separar algumas obras, escritas por determinados autores, do conjunto de textos em circulação, de tal modo que os selecionados são supervalorizados e os preteridos são desprestigiados pelas camadas sociais consideradas mais eruditas. Um escritor que atualmente se encontra à margem dos mais recentes compêndios de história da literatura brasileira, e por essa razão também do cânone literário nacional, é o paraense João Marques de Carvalho (1866-1910). Embora hoje seja pouco lembrado e lido, esse autor apresenta uma vasta produção literária, como lendas, peças de teatro, poemas, crônicas, romances e, sobretudo, contos.1 Esses gêneros de autoria do escritor paraense tanto podem ser encontrados hoje em páginas amareladas de livros considerados raros, quanto dispersos em páginas de periódicos que circularam por Belém nas duas últimas décadas do século XIX, disponíveis em rolos de microfilme. Nos textos de teor crítico que publicou na imprensa periódica belenense oitocentista e nos prefácios dos romances que assinou, Marques de Carvalho defendeu o movimento naturalista de Émile Zola com veemência e o elegeu como a mais nova e promissora orientação literária do final do período oitocentista. Além disso, criticou severamente os escritores conterrâneos que ainda se mantinham filiados ao
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Além do romance Hortência (1888), Marques de Carvalho publicou outros livros, como Contos paraenses (1889), Entre as ninfeias (1896), Contos do Norte (1900) e a obra de cunho autobiográfico A carteira de um diplomata (1889). Ele deixou ainda uma parte significativa de sua prosa de ficção dispersa pela imprensa belenense oitocentista. No jornal Diário de Belém, publicou um romance (“Ângela”), um conto (“O preço das pazes”) e um ensaio crítico (“Paulino de Brito”). No periódico A Arena, lançou três contos (“Ao soprar a vela”, “História incongruente” e “A medalha do soldado”) e um ensaio crítico (“Da crítica literária”). No jornal A República, divulgou apenas um romance (“O pajé”). No jornal A Província do Pará, por sua vez, divulgou um romance (“A leviana: história de um coração”), duas crônicas (“Gaivotas” e “Colisões”), duas lendas (“A fada malévola” e “A rocha do desespero”) e onze contos (“A cereja”, “A gruta do amor”, “A comédia do amor”, “Que bom marido!...”, “Ao despertar”, “No baile do comendador”, “Posições”, “Conto de Natal”, “Um como tantos”, “O fim do mundo” e “A neta da cabocla de Ourém”). Ao todo, somam-se três romances, duas crônicas, duas lendas, dois ensaios críticos e quinze contos.
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Romantismo, movimento estético-literário ao qual o escritor paraense se opunha radicalmente. Marques de Carvalho ainda foi um escritor que se demonstrou muito preocupado com a pouca visibilidade em nível nacional atribuída à produção literária na região amazônica e mais precisamente no estado do Pará, pois o escritor paraense, ao lado de outros autores conterrâneos, como Paulino de Brito, Pontes de Carvalho, Frederico Rhossard, Juvenal Tavares, Múcio Javrot2, Heliodoro de Brito e seu irmão Antônio Marques de Carvalho, empenhou-se em fundar agremiações literárias para promover o desenvolvimento da literatura na região amazônica, como a Mina Literária e a Academia Paraense de Letras.3 Se considerarmos o conceito de literatura enquanto sistema, proposto por Antonio Candido (2007), podemos afirmar que Marques de Carvalho, embora não desfrute atualmente de um estatuto canônico e seja um escritor nacionalmente pouco conhecido e lido, assim como muitos outros autores que se propuseram a seguir o movimento naturalista, representa um elemento significativo para a constituição do sistema literário nacional brasileiro e regional amazônico, visto que uma história da literatura propriamente dita não se constrói tomando como base apenas obras e escritores canonizados.4 2
Pseudônimo de Joaquim Francisco de Mendonça Júnior. A Mina Literária foi uma associação formada por homens de letras, fundada no estado do Pará, com o intuito de desenvolver a literatura em todo o território amazônico. Foi inaugurada no dia 1.º de janeiro de 1895, no salão do Theatro da Paz. Além de Marques de Carvalho, faziam parte dessa associação José Eustáquio de Azevedo, Antônio Marques de Carvalho, Paulino de Brito, Juvenal Tavares e Frederico Rhossard, para citar apenas alguns entre os mais de cinquenta associados. Depois de ter sido extinta a Mina Literária, a Academia Paraense de Letras, por sua vez, foi idealizada por João Marques de Carvalho, Antônio Marques de Carvalho, Paulino de Almeida Brito e Candido Costa Maia Filho. Numa reunião presidida por Marques de Carvalho, foi inaugurada no dia 24 de janeiro de 1900, na sede do Clube Euterpe, em Belém, onde foi eleita uma diretoria provisória e foram escolhidos os trinta primeiros membros. Esse primeiro esforço de implantar uma academia de letras no Pará, no entanto, não teve êxito. Esse projeto só veio a vigorar, de fato, treze anos depois, quando o poeta José da Rocha Moreira e o estudante de direito na época Martinho Pinto tomaram a iniciativa de fundar uma associação que reunisse diversos homens de letras que se identificassem com o estado e que se contrapusessem à situação marginal de que gozavam os escritores locais em âmbito nacional. 4 Os escritores naturalistas no Brasil, de modo geral, não chegaram a inscrever seus nomes na história da literatura brasileira ou ocupam um lugar periférico no grupo dos escritores célebres, como Horário de Carvalho (1857-1933), Júlio Ribeiro (1845-1890), Domingos Olímpio (1851-1906), Pardal Mallet (18641894) e Marques de Carvalho (1866-1910). Os únicos que se conseguiram um lugar de prestígio nesses compêndios foram Adolfo Caminha (1867-1897), Inglês de Sousa (1853-1918) e Aluísio de Azevedo (1857-1913), considerado pelos historiadores da literatura o precursor e o principal representante do movimento naturalista no Brasil. 3
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Para compreendermos por que Marques de Carvalho encontra-se hoje à margem do cânone, analisaremos alguns compêndios de história da literatura brasileira com o intuito de observarmos como a ausência ou a presença de seu nome nesses manuais contribuíram para que o escritor paraense não chegasse a gozar atualmente de um estatuto canônico. Para alcançar esse objetivo, selecionamos as histórias literárias de José Veríssimo (1988), Ronald de Carvalho (1984), Lúcia Miguel Pereira (1988), Antônio Soares Amora (1974), Nelson Werneck Sodré (2002), Temístocles Linhares (1987), Afrânio Coutinho (2004), Massaud Moisés (1985), Érico Veríssimo (1995), José Aderaldo Castello (2004), Luciana Stegagno Picchio (1997) e Alfredo Bosi (2006). Todos esses manuais de história da literatura brasileira foram publicados em períodos distintos, por razões diversas e a partir de perspectivas e abordagens diferentes.
Lançamento
Título
Autor
Edição
1916
História da literatura brasileira
José Veríssimo
1998
1919
Pequena história da literatura brasileira
Ronald de Carvalho
1984
1938
História da literatura brasileira
Nelson Werneck Sodré
2002
1950
História da literatura brasileira: prosa de ficção (de 1870 a 1920)
Lúcia Miguel Pereira
1988
1955
História da literatura brasileira
Antônio Soares Amora
1974
1955-1959
A Literatura no Brasil
Afrânio Coutinho
2004
1970
História concisa da literatura brasileira
Alfredo Bosi
2006
1984
História da literatura brasileira
Massaud Moisés
1989
1987
História crítica do romance brasileiro
Temístocles Linhares
1987
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1995
Breve história da literatura brasileira
Érico Veríssimo
1995
1997
História da literatura brasileira
Luciana Stegagno Picchio
1997
1999
A literatura brasileira
José Aderaldo Castello
2004
A partir dos doze compêndios de história da literatura brasileira escolhidos para compor o corpus deste trabalho, é possível verificarmos que 58% dos autores não mencionam em nenhum momento o nome de Marques de Carvalho e 42% restantes emitem algum juízo breve e desfavorável sobre o único romance que o escritor paraense publicou em livro. Os historiadores da literatura brasileira que não mencionam o nome de Marques de Carvalho são José Veríssimo (1998), Ronald de Carvalho (1984), Antônio Soares Amora (1974), Érico Veríssimo (1995), José Aderaldo Castello (2004), Luciana Stegagno Picchio (1997) e Alfredo Bosi (2006). Os que, por sua vez, fazem referência ao nome de Marques de Carvalho, ainda que seja pelo menos uma única vez, são Lúcia Miguel Pereira (1988), Nelson Werneck Sodré (2002), Temístocles Linhares (1987), Afrânio Coutinho (2004) e Massaud Moisés (1985). Esses autores, de modo geral, apresentam Marques de Carvalho como um representante menor do movimento naturalista no Brasil e como responsável pela autoria do romance Hortência, publicado pela primeira vez em 1888.
Marques de Carvalho na história literária de José Veríssimo A História da literatura brasileira, de José Veríssimo, foi publicada pela primeira vez em 1916 e, apesar da passagem dos anos, continua no centro da historiografia literária brasileira, mesmo com seus erros cada vez mais apontados e com seus julgamentos críticos cada vez mais superados, pois é fato que a história literária de Veríssimo influenciou de maneira significativa as obras do mesmo gênero que foram lançadas posteriormente.
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Nesse compêndio, podemos perceber que não há nenhuma menção ao nome de Marques de Carvalho, muito menos um juízo crítico que se debruce sobre sua produção literária. A ausência do escritor belenense na história literária de José Veríssimo é muito expressiva, pois ambos eram conterrâneos e tinham conhecimento a respeito do trabalho que cada um desenvolvia na imprensa periódica belenense oitocentista. Por que, então, o crítico obidense não incluiu Marques de Carvalho em sua história literária? Para chegarmos a alguma conclusão sobre esse assunto, é necessário sabermos o que José Veríssimo afirma sobre o romance Hortência, de Marques de Carvalho, no artigo “O romance naturalista no Brasil”, publicado originalmente no livro Estudos brasileiros (segunda série). Nesse artigo, José Veríssimo ressaltou, sem eufemismos ou cordialidades, que, embora seja conterrâneo de Marques de Carvalho, não reconheceu essa produção literária como uma obra que merecesse elogios. Além de esclarecer que seu julgamento não se prende a laços de camaradagem literária, o crítico paraense também não reconheceu a obra Hortência (1888) no mesmo nível de outras obras naturalistas, assim como O Homem (1887) e A Carne (1888), respectivamente romances de autoria de Aluísio de Azevedo e Júlio Ribeiro. As restrições de José Veríssimo à produção romanesca de Marques de Carvalho, porém, não se limitaram apenas a esse comentário. O crítico também afirmou que a obra Hortência é revestida de obscenidades e não passa de uma leitura equivocada do modelo naturalista de Émile Zola, um dos principais representantes do Naturalismo na França na segunda metade do século XIX. Outro aspecto da crítica de José Veríssimo sobre a obra de Marques de Carvalho põe em evidência a questão da verossimilhança. Segundo o crítico, é inadmissível que a Santa Casa de Misericórdia, hospital fundado em Belém em 1650, tenha admitido como enfermeira a protagonista do romance, uma rapariga mulata, de origem humilde, que apresentava à época apenas quinze anos. Além da heroína do romance, Veríssimo acredita que um personagem vadio e voluptuoso como Lourenço poderia muito bem chegar ao extremo de assassinar a própria irmã, se esse episódio tivesse ocorrido em Portugal. Contudo, no estado do Pará, esse mesmo caso não poderia se realizar, pois não condiz, segundo afirma o crítico, com o perfil do povo paraense. É por essa razão que Veríssimo acredita que, enquanto em solo europeu o desfecho do romance de Marques
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de Carvalho não é apenas semelhante à realidade, como também verdadeiro, na sociedade paraense torna-se ao menos inverossímil, pois um indivíduo da mesma natureza de Lourenço não seria capaz de pôr fim à vida da própria irmã, ainda mais por causa de uma quantia tão irrisória que Hortência pudesse lhe conferir. Prova disso é que, conforme defende Veríssimo, nunca houve um fato no estado do Pará que fosse idêntico ao que se passa no enredo do romance de Marques de Carvalho. Além da verossimilhança, Veríssimo assevera ainda que os personagens do romance Hortência são humildes, simples e vivem às margens do processo de desenvolvimento pelo qual a capital paraense estava passando, em razão do capital excedente da economia gomífera. É por esse motivo que o crítico afirma que os indivíduos representados na configuração da obra não podem interessar aos leitores cultos, uma vez que o meio por onde circulam os personagens do romance, como bordéis, botecos, pequenas habitações, barracos, quartos e casas de cortiço, é totalmente alheio ao ambiente no qual convivem as pessoas mais distintas e eruditas, que frequentam salões de festas, casas de diversões, clubes recreativos e o Theatro da Paz. Para encerrar sua apreciação ao romance de seu conterrâneo, Veríssimo afirma ainda que Marques de Carvalho não representou nessa obra o povo e a pátria, pois, assim como ocorreu a outros escritores brasileiros que adotaram a estética naturalista, se prendeu à total imitação das obras de Émile Zola e, por conseguinte, não privilegiou uma particularidade que lhe fosse considerada legitimamente nacional. A partir do artigo que escreveu sobre o romance naturalista brasileiro, podemos afirmar que José Veríssimo não incluiu o nome de Marques de Carvalho em sua história literária, pois não considerou Hortência como uma obra de qualidade. Considerando, portanto, que as histórias literárias sempre retomam as anteriores, é possível assegurarmos que José Veríssimo, sendo um dos primeiros historiadores da literatura brasileira de renome a elaborar um juízo crítico a respeito do romance de Marques de Carvalho, contribuiu para que o escritor paraense permanecesse através dos séculos à margem do cânone literário e para que historiadores, críticos e estudiosos da literatura brasileira não se debruçassem sobre sua produção ficcional.
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Marques de Carvalho em outras histórias literárias Embora José Veríssimo não tenha incluído Marques de Carvalho em sua história literária, outros historiadores da literatura brasileira, ainda que de maneira geral muito breve, fizeram apenas menção ao nome do escritor como representante menor do movimento naturalista no Brasil e restringiram-se somente a emitir algum juízo crítico a respeito do romance Hortência. De modo geral, os historiadores da literatura brasileira propuseram-se a proferir algum julgamento acerca de Marques de Carvalho a partir de uma perspectiva comparada, pois o autor paraense muitas vezes é comparado a outros escritores representantes do movimento naturalista no Brasil, como Júlio Ribeiro, Horário de Carvalho e Aluísio de Azevedo. Entre os historiadores da literatura brasileira, Lúcia Miguel Pereira (1988), por exemplo, declara que o romance Hortência é uma experiência sem sucesso, construída a partir de uma ideia equivocada a respeito do Naturalismo discutido e propagado na França, assim como ocorreu em outras obras publicadas no mesmo período, pertencentes ao mesmo movimento estético-literário. Conforme avalia Lúcia Miguel Pereira, os romancistas dessas narrativas acreditaram que a inserção de personagens movidas por seus instintos mais animalescos em seus romances era suficiente para que suas obras fossem condizentes com o movimento naturalista no Brasil. Outro crítico que chega a mencionar o nome de Marques de Carvalho como representante do Naturalismo no Brasil é Nelson Werneck Sodré (2002). Segundo o autor, o romance do escritor paraense apresenta um estudo de histeria, assim como ocorre em outras obras representantes do movimento naturalista brasileiro, como O Homem, de Aluísio de Azevedo; O Cromo, de Horácio de Carvalho, e A Carne, de Júlio Ribeiro. Além de Lúcia Miguel Pereira e Nelson Werneck Sodré, Temístocles Linhares (1987) também inclui Marques de Carvalho no grupo de escritores naturalistas brasileiros. De acordo com o autor, Hortência, protagonista do romance homônimo de Marques de Carvalho, assim como Lenita e Estér, respectivamente personagens femininas de A Carne e O Cromo, é a irmã gêmea de Magdá, protagonista de O
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Homem, publicado em 1887, antes do lançamento no ano seguinte dos outros três romances. Afrânio Coutinho (2004), por sua vez, menciona o nome do escritor paraense apenas uma única vez em meio ao de outros romancistas naturalistas brasileiros que, assim como Marques de Carvalho, não alcançaram um lugar de prestígio no cânone literário, como Rodolfo Teófico, Lúcio Mendonça, Pardal Mallet, Júlio Ribeiro, Horácio de Carvalho, Valentim Magalhães, entre outros. Outro nome da historiografia literária no Brasil que se propôs a escrever algumas linhas sobre a obra de Marques de Carvalho foi Massaud Moisés (1985). No compêndio de história da lieratura brasileira que escreveu, o autor não emite nenhum juízo crítico a respeito da produção literária de Marques de Carvalho e, em contrapartida, dedica-se apenas a expor um comentário de José Veríssimo em relação ao fato de que o escritor paraense não assimilou corretamente o Naturalismo proposto por Émile Zola.
Para encerrarmos o assunto?... Foi possível observarmos, com este trabalho, que os compêndios de história da literatura brasileira são instâncias de legitimação que contribuíram de maneira significativa para que Marques de Carvalho encontre-se hoje à margem do cânone literário nacional, pois os comentários desfavoráveis destinados ao escritor paraense em alguns desses manuais, diretamente, e a ausência total de seu nome em outros, indiretamente, desqualificam-no como um autor representativo da literatura brasileira e, por conseguinte, relegam-no a um lugar periférico no sistema literário do país. Além disso, percebemos que os críticos que se propuseram a julgá-lo detiveramse apenas a emitir algum juízo a respeito do romance Hortência e desconsideraram, portanto, uma parte considerável de sua produção literária, uma vez que Marques de Carvalho aventurou-se por diversos gêneros, como a poesia, o teatro, a crônica, o romance e, sobretudo, o conto.
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Notamos ainda que os poucos historiadores da literatura brasileira que avaliaram o romance naturalista do escritor paraense, assim como Lúcia Miguel Pereira, Massaud Moisés, Nelson Werneck Sodré, Afrânio Coutinho e Temístocles Linhares, escreveram críticas sucintas e ocasionalmente infundáveis, muitas vezes baseadas no discurso autorizado de algum crítico renomado, como José Veríssimo. Por não se debruçarem sobre a obra de Marques de Carvalho ou por emitirem um juízo mínimo e sem profundidade sobre o romance Hortência, os historiadores da literatura brasileira relegaram Marques de Carvalho à margem do cânone literário. Acreditamos, no entanto, que a produção ficcional do escritor paraense, sobretudo, é muito expressiva e eloquente e apresenta aspectos que merecem ser investigados. Hortência, em particular, obra de Marques de Carvalho que foi alvo das críticas severas lançadas pelos historiadores da literatura brasileira, é o primeiro romance a representar a paisagem urbana da cidade de Belém da segunda metade do século XIX. Nesse período, a capital paraense, em decorrência do capital excedente da economia gomífera, passou por um avançado processo de revitalização e, por conseguinte, sofreu diversas transformações na estrutura urbana. É por essa razão que passou a ser considerada a metrópole da Amazônia. O enredo dessa narrativa, no entanto, apresenta personagens que vivem às margens da capital paraense citadina, como mulatos, lavadeiras, prostitutas, vendedoras de açaí, sapateiros, aguadeiros e homens vadios. O espaço doméstico, por sua vez, é constituído por pequenas habitações, bordéis, barracos, quartos e casas de cortiço. Desse modo, o escritor paraense traça nesse romance um perfil de uma Belém mulata, periférica e marginalizada, que contrasta com a Belém urbanizada, desenvolvida e europeizada. A obra de Marques de Carvalho, de modo geral, tem como foco principal evidenciar a Amazônia em toda sua pluralidade. Por um lado, apresenta uma Amazônia urbana, citadina e desenvolvida, por onde caminham personagens que desfrutam de uma posição de prestígio na sociedade belenense oitocentista; por outro lado, uma Amazônia tradicional, construída ficcionalmente a partir da representação de costumes tradicionais, de personagens estereotipicamente amazônicos e de elementos tipicamente regionais (culinários, linguísticos, geográficos, históricos, entre outros).
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É possível percebermos que o espaço ficcional de suas narrativas, de modo geral, não é apenas um elemento acessório, ou seja, o lugar onde meramente se desenvolve a narrativa. Podemos observar que quase sempre o ambiente relaciona-se e combina-se com o enredo e as personagens, de tal modo que há uma impregnação do espaço amazônico na tessitura da narrativa, interferindo nas ações das personagens, no desenvolvimento do enredo e na demarcação do tempo. Acreditamos, portanto, que esses e outros aspectos que brevemente expusemos neste trabalho são suficientes para garantir a inserção do nome de Marques de Carvalho na história da literatura brasileira, pois esse escritor desempenhou um papel muito importante para desenvolver e promover a atividade literária na região amazônica durante o final do século XIX.
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LITERATURA E LINGUAGENS HÍBRIDAS: UMA ANÁLISE DO LIVRO “A INVENÇÃO DE HUGO CABRET” Alcioni Galdino Vieira (UTFPR) As linguagens contemporâneas são capazes de criar complexos acoplamentos estruturais entre o verbal e o visual, transformando a maneira como o significado é produzido. Tela e imagem influenciam o modo como as mensagens são transmitidas e estimulam a proliferação de textos com linguagens híbridas. A natureza da narrativa verbo-visual, dirigida a crianças e adolescentes, oferece espaço para inovações, pois possibilita aos autores e ilustradores selecionarem temas múltiplos. Para tanto, congregam-se elementos estruturais compostos por gêneros diversos, uma combinação que sugere multiplicação, pois o resultado não é fruto apenas da adição de contribuições variadas, independentes umas das outras, mas da inclusão dos efeitos de sua interação mútua. Ou seja, a contribuição individual de determinada modalidade textual contextualiza, especifica ou altera o significado de cada uma das demais modalidades. Esse tipo de texto híbrido não representa apenas um projeto visual estruturado, mas uma história narrada. Genette (1979) destaca que o discurso narrativo requer um estudo das relações: por um lado a relação entre um discurso e os acontecimentos que narra, por outro a relação entre o mesmo discurso e o ato que o produz. O autor fornece uma base útil para a abordagem das relações entre história, estilo e discurso e de como os textos visuais experimentam formas diferenciadas que seriam impossíveis em narrativas impressas convencionais. Hibridismo e novos gêneros A linguagem do livro híbrido é formada por códigos linguísticos, icônicos, cromáticos e gráficos. De acordo com Santos (2002), enquanto o código linguístico é interpretado como em qualquer outra narração, no código icônico a ilustração congrega
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uma série de convenções próprias, que servem para estabelecer significações profundas por intermédio de uma simples imagem. Os códigos gráficos são convenções formalizadas aceitas tacitamente pela comunidade que os utiliza e, assim, ao universalizá-los, possibilita-se uma leitura comum dos mesmos. Nesse sentido, o livro híbrido retoma técnicas e formas de outras artes como a fotografia, o cinema e a pintura e as transforma de acordo com suas necessidades, outorgando-lhes diversas dimensões semióticas. A linguagem desse tipo de produto editorial é o resultado da fusão do código verbal, isto é, dos grafemas, com o código imagético, especialmente o icônico, em que cada um complementa o outro de modo a formar um código de maior complexidade e universalidade. Assim, o formato do livro híbrido apresenta uma montagem de palavras e imagens e é requerido do leitor exercitar habilidades interpretativas tanto verbais como visuais. O regime artístico (perspectiva, simetria, linhas) e o regime literário (gramática, trama, sintaxe) sobrepõem-se mutuamente. A leitura de um livro impresso de linguagens híbridas é ao mesmo tempo um ato de percepção estética e uma perseguição intelectual (EISNER, 2013). Pode-se conceber esse tipo de produto editorial como uma forma particular de narrativa. Segundo Barthes (2008), tendo início com a própria história da humanidade, a narrativa está presente em todas as sociedades e é, inclusive, apreendida de forma comum por pessoas de cultura diversa e inclusive oposta. Para o autor: [...] a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura [...] no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no failt divers, na conversação (BARTHES, 2008, p. 19).
Desse modo, a narrativa não limita-se à palavra oral ou escrita e abarca uma ampla gama de manifestações, gêneros e modalidades. Livros compostos por linguagens híbridas ocupam cada vez mais espaço significativo nas prateleiras de livrarias e bibliotecas. Emergem como um formato
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popular entre adultos e jovens que já tenham desenvolvido um senso de narrativa, especialmente com base em produtos audiovisuais. Nesse âmbito, um dos gêneros contemporâneos em destaque, conhecido como graphic novel ou romance gráfico, emerge como uma oportunidade para escritores e ilustradores promoverem diferentes pontos de vista a partir do desenvolvimento de questões-chaves por intermédio da interação entre palavra e imagem, com a utilização de estruturas narrativas diversificadas. De acordo com Parry (2012), a graphic novel distingue-se dos quadrinhos principalmente por seu tamanho, ou seja, por ser uma espécie de história em quadrinhos maior, uma história independente em forma de quadrinhos, publicada como livro. Porém, enquanto alguns romances gráficos mantêm a forma de quadrinhos, com a utilização de uma série de painéis com textos embutidos, muitas publicações desse tipo apresentam variadas relações entre imagem e texto, usadas para transmitir significado. Assim, a ausência de características definitivas para esse tipo de livro reflete-se na constante emergência de novas formas híbridas no cenário da produção editorial. Apesar de um romance gráfico normalmente envolver a combinação de texto, painéis e imagens, em alguns casos a ausência de texto faz com que o intertexto torne-se significativo para a forma como o leitor reconhece imagens que lhes são familiares. Painéis, por exemplo, ilustram tanto uma passagem de tempo, como um único momento no tempo que detalha eventos da vida cotidiana das personagens. A seleção de diversas formas e tamanhos e largos espaços em branco permitem a cada painel possuir impacto próprio, seja para mostrar intensos momentos de emoção e memórias, expor mininarrativas ou registrar eventos tediosos, entre outros. Tal recurso controla o ritmo do livro e reflete o mundo dinâmico e a vida em constante movimento. Outro gênero destacado na literatura infanto-juvenil da atualidade é o álbum narrativo ilustrado ou livro-álbum, gênero conhecido como um híbrido por combinar linguagem verbal e visual. De acordo com Tabernero Sala (2005), o livro-álbum é concebido como uma unidade, uma totalidade que integra todas as suas partes designadas em uma sequência de interações. Difere-se do livro ilustrado, pois no primeiro o peso das ilustrações na narração em relação ao verbal é igual ou maior,
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enquanto no segundo as ilustrações acompanham um texto escrito capaz de sobreviver sem as mesmas. Rodrigues escreve: Preferencialmente destinado ao público mais novo [...] define-se pela capa dura, pelo formato de grandes dimensões ou diferentes, pelo seu papel de qualidade superior e de elevada gramagem, pelo reduzido número de páginas e pelo texto condensado (ou inexistente) com uma tipografia de tamanho superior e variável, pela abundância de ilustrações frequentemente impressas em policromia e, na maioria das vezes, de página inteira ou dupla página, e, ainda, pela qualidade e pelo cuidado com o design gráfico. Na verdade, o que distingue o álbum de outros gêneros literários, e que o converte num "processo de comunicação particular e relativamente invulgar no âmbito das técnicas literárias habituais ou canónicas" [...] está intimamente relacionado com o tratamento narrativo que induz (RODRIGUES, 2009).
Desse modo, os álbuns narrativos ilustrados caracterizam-se pela profusão de ilustrações – uma imagem ou mais por dupla página –, usualmente têm menos texto verbal do que um romance juvenil, além de sua tipografia ser na maioria das vezes de tamanho grande. Também costumam ser menores ou maiores do que um livro regular. Sua classificação depende, portanto, da aparência e do formato do impresso. Análise da obra Um exemplo recente de texto inovador é o livro A Invenção de Hugo Cabret, do escritor e ilustrador Brian Selznick. Um tipo de texto híbrido que resulta da diluição das fronteiras, considerando-se não apenas a importância do texto, mas recursos paratextuais que contribuem para o significado e a coerência estética, isto é, para a produção de sentidos. A obra é de difícil classificação em termos de gênero. Mesclam-se elementos de graphic novel, livro-álbum, história-ficção, cinema, entre outros, o que torna essa obra uma referência para quem pretende estudar as possibilidades de hibridização das linguagens contemporâneas. Ao contrário de muitos livros ilustrados, em que há o uso ostensivo da simultaneidade entre o visual e o verbal – um está intrinsecamente ligado
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ao outro – em A invenção de Hugo Cabret imagem e texto verbal alternam-se para avançar o enredo, como uma espécie de filme mudo no qual as imagens são intercaladas por cartões de título. Este dispositivo é particularmente adequado uma vez que a narrativa é inspirada na história do cineasta pioneiro e pai de efeitos especiais, Georges Méliès e o início da indústria do cinema mudo. Embora seja possível sugerir que a escrita não tenha a mesma profundidade e qualidade das imagens, o impacto global cria para o leitor a sensação de fazer parte da era do cinema mudo. O primeiro capítulo inicia-se com imagens em primeiro plano de um close-up da lua, imagem que gradualmente revela ao leitor tratar-se de cenas da lua sobre a cidade de Paris. Imediatamente, o leitor reconhece que técnicas cinematográficas estão sendo empregadas. Tal como a câmera usa tomada à distância ou close-up, tais efeitos são transmitidos por meio de meticulosos desenhos feitos a lápis, em preto e branco, os quais ocupam toda a página dupla de abertura, emoldurada por bordas pretas que lembram um quadro de filme. Para as primeiras vinte e duas páginas a história desenrola-se em silêncio. O leitor tem a sensação de assistir a um filme e, desse modo, é motivado a virar as páginas rapidamente para manter a continuidade da ação. Assim como um filme pode avançar a história sem texto, também Selznick utiliza uma série de aberturas de página dupla com imagens para apresentar eventos silenciosamente. Trinta e seis quadros, por exemplo, sequenciam o evento da estação de trem em que o inspetor persegue Hugo, o protagonista. De tempos em tempos, esse ritmo é interrompido pela mudança para o texto narrativo que ocupa a história. Frequentemente, o leitor percebe que a atenção é necessária, como, por exemplo, quando há a passagem de um elemento em câmera zoom in para um close-up de outro elemento, como um rosto ou um olho. Essa sensação de cinema faz referências intertextuais aos primórdios do cinema francês, incluindo a famosa produção cinematográfica de Georges Méliès intitulada Viagem à Lua, de 1902, além de esboços do cineasta para sets de filmagem e ainda referências ao histórico filme A chegada de um trem na estação, dos irmãos Lumiére, o qual deu início ao cinema mudo em 1895. Elementos da narrativa também são emprestados e moldados para fins de gêneros visuais emergentes. A história é transmitida por meio da seleção de
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determinado discurso narrativo, e conforme os estilos híbridos afetam esse discurso, torna-se evidente o quanto ideológica e narrativamente complexos são os livros desse tipo. Envolve uma jornada metafórica, adotando movimento sequencial circulatório de tempo, pois explora passado, presente e futuro. Temporalidade, espacialidade e elementos paratextuais são influências significativas na narrativa. Como ocorre em muitos livros para jovens, aborda temas relacionados com a idade, incluindo perda e redenção. A descoberta de Hugo do autômato (homem mecânico, robô) e seu desejo de fazê-lo funcionar novamente dão início a sua jornada de transformação. O livro começa com o segredo de Hugo e gradualmente revela como os segredos dos outros estão interligados aos seus nesse mistério desafiador. O tema central da trama é o da perda: Hugo e a perda dos pais, George e a perda de sua carreira. É o sentido de uma busca de propósito de vida que se torna central: é a constatação de que a magia restaura o equilíbrio. A ambiguidade do título sugere que a invenção de Hugo pode não ser a sua reconstrução do robô, mas o seu próprio crescimento por intermédio da exploração do propósito de vida que incide sobre sua invenção. Se um dos temas de A Invenção de Hugo Cabret é sobre mudança, também aborda a temática do tempo. O tempo é um significativo parâmetro por meio do qual a narrativa é organizada. Em textos verbo-visuais, padrões complexos de explorações paralelas e simultâneas de tempo podem transmitir uma sensação de movimento e duração. Sugere que a narrativa é uma sequência duplamente temporal. No visual, essa dualidade permite distorções temporais com pausas e descontinuidades que afetam o ritmo da narrativa. No entanto, o tempo é mais difícil de ser descrito em narrativas visuais. No caso da obra analisada, na representação do passado, a natureza mimética das imagens contém reprodução de temas temporais delimitados, ao usar sequências cronológicas, relógios ou representações de estações. Embora as imagens sejam todas sépias ou em tons de cinza, mudanças de luz e humor dão um sentido de tempo e lugar. Significa que o que está representado na imagem deve curvar-se à lógica do espaço, para a simultaneidade dos elementos em arranjos espaciais.
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Para Bakhtin, cronótopo refere-se a “uma conexão intrínseca das relações temporais e espaciais que são artisticamente expressas na literatura” (HOLQUIST, apud SILVA, 2005, p. 147). Este conceito ajuda a definir gênero e torna genéricas as distinções na narrativa. A categoria principal do cronótopo é o tempo. Cronótopos complexos surgem quando há duas conjunções diferentes de tempo e espaço para criar significado metafórico. A invenção de Hugo Cabret usa o tempo quase-realista do romance picaresco, aventuras interrompem o tempo linear. Enquanto o cronótopo principal envolve a história de Hugo Cabret, existem outros cronótopos que usam analepses (flashbacks) da vida de Georges Méliès e o pai de Hugo, que interagem. Ainda ocorre maior complexidade com o uso de uma grande quantidade de intertextualidade de stills de filmes antigos e esboços de Méliès. Embora o tempo seja pensado como sucessão, o leitor o experimenta como duração. Esse tipo de publicação evidencia a força experimental dos procedimentos formais, o plástico e o literário, mas também o desenho e a construção como objeto, já que provoca e transforma a leitura meramente temática e argumental em leitura ligada ao jogo das formas e da linguagem. Destaca a função estética e a inter-relação da imagem com a escrita, consequentemente as possibilidades próprias de um livro-objeto, de modo que, para a produção de sentidos, o leitor passa a articular tudo a partir da imaginação e interpretação dos elementos que conformam esse objeto. O que exige uma leitura complexa: as duas matrizes utilizadas, visual e verbal, requerem múltiplas formas de leitura, interpretação e relação. Trata-se de uma polifonia de significados. Estes carregam grande complexidade e diversidade criativa, pois a mescla de recursos visuais emprestados de outros campos expressivos como o cinema, a fotografia e o desenho gráfico resulta em novas linguagens visuais capazes de enriquecer o gênero. A utilização de imagens vai muito além da mera intenção de ilustrar ou adornar o texto, pois o autor faz uso de imagens complexas que dialogam entre si, contrapõem ou complementam o texto, o enriquecem a partir de um tipo diferenciado de leitura. A imagem amplia as possibilidades de construção de uma narrativa complexa, permite desdobrar o fio argumental incluindo uma história dentro da outra. Também comporta a quebra da linearidade do discurso. Nesse caso, em que a narrativa é criadas por meio da
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alternância entre texto e imagens, estas são muito potentes no momento de atribuir forma ao mundo ficcional, pois é por intermédio das imagens que ocorre a percepção do leitor em relação ao ambiente. As imagens desse tipo de livro híbrido desvelam emoções escondidas e levam o leitor para além dos arquétipos. O leitor torna-se dinâmico, é convidado a participar do movimento das imagens, atribuir-lhes significado e, inclusive, reelaborá-las a partir de suas próprias emoções. Merlo (1990) estabelece três níveis de interação na relação cooperante entre texto e imagem: o nível cooperante, no qual a imagem serve como apoio aos textos; o nível operante, em que há uma relação de interdependência entre texto e imagem; e o nível não operante, quando as imagens funcionam como estruturas independentes do discurso. No caso da obra aqui analisada, prevalece o terceiro nível de interação citado. Geralmente considera-se o texto escrito como uma forma progressiva e temporal, isto é, narrativa, e a imagem como uma forma simultânea e espacial, ou seja, descritiva, tal como explica Dondis (1997). No entanto, nesse tipo de livro híbrido, não se tratam de imagens isoladas, mas de um encadeamento de imagens, as quais, segundo esse autor, são denominadas de ilustrações. Enquanto a imagem é espacial, a ilustração introduz a temporalidade, propõe uma ideia de tempo por meio da sequência das imagens que sucedem-se no tempo, o que inclui o tempo de virar a página. O traço e alguns outros recursos refletem o passar do tempo. Devido à relação entre texto escrito e ilustrações, o verbal deixa de ser uma arte temporal e a ilustração deixa de ser uma arte espacial, pois os espaços visuais representados nas ilustrações implicam tempo e as sequências temporais descritas nas palavras implicam espaço. Tal como no cinema, as ilustrações precisam de planos ou enquadramentos para que a ação seja visualizada e crie-se a sensação de movimento. O plano nada mais é do que a distância com a qual se olha o objeto. É como se jogássemos com o enfoque de uma câmera dirigindo-a conforme queiramos que o leitor olhe, conforme explica McCloud (2008). Em A invenção de Hugo Cabret há uma grande variedade de planos, cada um com suas propriedades e emoções, o que inclui enquadramentos diversos, tais como: subjetivo, picado, contra-picado, americano, médio, geral, close up, detalhe etc. Nesse caso, os enquadramentos tanto sublinham o conjunto de uma situação ou são
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usados para mostrar um ambiente circundante, como aproximam o leitor-espectador dos detalhes relevantes, sejam de pessoas ou objetos. A técnica de perspectiva em ilustrações refere-se à profundidade e posição relativa dos objetos. Na imagem, a perspectiva simula a profundidade e os efeitos de redução, cria-se uma ilusão visual que permite ao observador determinar a profundidade e situação de objetos em diferentes distâncias. Eisner (2013) ressalta que a função primária da perspectiva é manipular a orientação do leitor com um propósito de acordo com os planos narrativos do autor. Outro uso da perspectiva seria sua utilização para produzir vários estados emocionais no leitor. A utilização de perspectiva tem um papel destacado na obra de Selznick, possibilitando a transferência de carga emocional às ilustrações. Muitas vezes há uso de perspectiva para sinalizar uma passagem de tempo por meio dos diversos espaços. Desse modo, os enquadramentos e as perspectivas são utilizados para provocar diferentes reações no leitor, ao manejar seu ponto de vista, pode-se jogar com seu envolvimento na história, bem como revelar-lhe ou ocultar-lhe detalhes do que está ocorrendo, o que pode oferecer uma sensação de segurança, temor ou simplesmente produzir um distanciamento (EISNER, 2013). Propostas de atividades em sala de aula Elencamos, a seguir, algumas sugestões de atividades que podem ser desenvolvidas em sala de aula, envolvendo o universo e as temáticas da obra aqui analisada: - Cada aluno deve pesquisar individualmente sobre a vida de Georges Méliès. Depois, em sala de aula, o professor promove um debate sobre a forma como esse cineasta é retratado no livro. - Grupos de alunos pesquisam sobre os primórdios do cinema, os trabalhos de Méliès, dos irmãos Lumière e de outros cineastas importantes daquele período. A partir da pesquisa, cada grupo apresenta uma encenação referente a um filme da era do cinema mudo.
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- O aluno faz uma análise comparativa entre o livro e sua adaptação para o cinema, descrevendo, por exemplo, a forma como as ilustrações foram adaptadas para a grande tela, quais as diferenças entre a história contada no livro e aquela exibida no cinema. - Autômatos: assim como os relógios, o autômato que Hugo reparou foi construído com o uso de engrenagens e rodas. Os alunos podem projetar (e possivelmente construir) seu próprio autômato. Como é que eles vão fazer o autômato se mover? O que o autômato vai fazer quando se mover, será que vai escrever, desenhar, falar? Que mensagem ele tentará comunicar? Pode-se construir um autômato com sucata, ou esboçar um projeto de autômato em um programa de computador, ou até mesmo desenhado à mão. - Inspirado em Georges Méliès, que além de cineasta também foi ilusionista, o aluno aprenderá a fazer um truque de mágica e depois escreverá instruções para que outra pessoa aprenda seu truque. Referências BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: Barthes, Roland (et al). Análise estrutural da narrativa. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. DONDIS, Donis A. Sintaxe da linguagem visual. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. EISNER, Will. Narrativas gráficas: princípios e práticas da lenda dos quadrinhos. 3ª ed. São Paulo: Devir, 2013. FRANCO, EDGAR SILVEIRA. Hqtronicas: do suporte papel a rede internet. São Paulo: Annablume, 2008. GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Lisboa: Arcádia, 1979.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Anais do III CIELLI (2014) - ISSN 2177-6350
MITO ANCESTRAIS EM ANJO NEGRO, DE NELSON RODRIGUES Alessandra Camila Santi Guarda (Orientação Prof. Dra. Lourdes Kaminski Alves) Universidade Estadual do Oeste do Paraná 087.469.929-01 Palavras-chave: Dramaturgia; Mitos e Arquétipos; Anjo Negro. Nelson Rodrigues é reconhecido pelo conjunto de sua obra como um dos grandes nomes do teatro moderno. Seu teatro, dado sua complexidade estética na elaboração de personagens, no tratamento do gênero e de temas, tem suscitado variadas pesquisas. Contudo, sua obra ainda não foi de todo esgotada, podendo motivar pesquisa qualitativas na área da crítica cultural, historiográfica e estudos comparados na área de Letras. Este texto tem como proposta, refletir sobre a tonalidade trágica e recontextualização dos mitos e arquétipos no texto dramatúrgico Anjo Negro (1946), contemplado na obra Teatro completo, (2003), de Nelson Rodrigues. De acordo com Magaldi (1992), a linguagem da composição trágica rodriguiniana traz à tona as máscaras e os coros, consubstanciando as históricas propriedades do gênero trágico, aclimatadas à cultura brasileira. Embora a dramaturgia de Nelson Rodrigues se religue em alguns traços com o teatro grego, na sua totalidade teatral se caracteriza como moderno. Como afirma Bornhein (1975), a essência do conflito trágico reside no embate entre o homem e o seu horizonte existencial ou, em termos hegelianos, na reconciliação com a unidade divina. Conforme já estudado, o herói trágico era um homem pertencente à aristocracia, que por conta de um erro cometido caía em desdita. O horizonte existencial com que o herói grego se defrontava era, por exemplo, o do conflito entre as leis divinas e as leis humanas. No drama contemporâneo, o conflito trágico não se dá mais entre o homem e os deuses ou o destino, mas na luta entre o herói e as vicissitudes impostas pelas relações sociais, familiares e econômicas. Segundo estudos desenvolvidos por Pedro Leite Junior (2011), o herói trágico no drama contemporâneo deixa de ser um homem pertencente à elite, passando a configurar-se como um homem do povo, ou seja, um homem em luta contra forças sociais que transcendem muitas vezes, as suas forças. Segundo Nietzsche (1985), no texto A origem da tragédia, é possível dizer que o homem contemporâneo é um ser regulado pelo princípio apolíneo, pelo cálculo, pela
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medida, pelo uso da razão, pois a sociedade de consumo exige o regramento dos indivíduos para a manutenção da sua ordem. O homem dionisíaco perdeu o seu espaço, pois até mesmo as poucas manifestações dionisíacas da nossa sociedade, como no caso brasileiro o carnaval e o futebol, passaram a ser orientadas para o acúmulo de capital e estruturadas segundo a ordem apolínea, conforme estudos de P. Leites Junior (2011). O herói rodriguiniano rompe a ordem e desta forma sofre o castigo pela sua desmedida. Essa ordem, que na tragédia grega representava a harmonia com os deuses e as leis do Estado, na peça Anjo Negro de Nelson Rodrigues se apresenta como a moral vigente na sociedade. As vozes da coletividade, que na tragédia clássica eram representadas pelo coro, serão representadas por personagens, que irão comentar e recriminar a desdita do herói. A peça Anjo Negro foi escrita em 1946 e, segundo Sábato Magaldi (1992), é a segunda peça do teatro do desagradável, depois de Álbum de Família, peça com a qual tem parentesco. Aguiar (2012) afirma que a peça só foi encenada em dois de abril de 1948, por causa da censura instalada no país. Assim como na primeira peça “desagradável”, há o envolvimento amoroso da personagem Senhorinha com os filhos homens e o ódio pela filha. Na peça, a personagem Virgínia odeia a filha, mas em Anjo Negro, o diferencial é a protagonista deseja ver seus filhos mortos e isso só ocorre devido à inserção de um novo elemento na trama: a cor negra, que aparece pela primeira vez problematizada no teatro de Nelson.
O dramaturgo buscou, conforme estudos de
Magaldi (1992), abrir coletivamente os abscessos sem simplismo e isso chocou o público. Nelson Rodrigues via as personagens e as situações vividas por estas, sob vários ângulos e, exposta à sua obra, a crítica se dividiu e a peça foi recebida entre aplausos e críticas amargas. Considerada obscena e um desrespeito à moral, a peça trata de temas proibidos e difíceis, como o incesto, o amor e o ódio, a repulsa ao sexo que disfarça atração obsessiva, além, é claro, do racismo na sociedade brasileira. Por tudo isso, havia a enorme dificuldade de recepção do público. O ambiente é descrito sem caráter realista, pois, a casa de Ismael não possui teto "para que a noite possa entrar e possuir os moradores" (RODRIGUES, 2012, p. 08). Observa-se aqui o caráter psicológico atribuído ao espaço, que longo da peça a casa é sempre caracterizada de modo simbolista e soturno. O pano de fundo em que se encenam os conflitos das personagens é o preconceito. Ismael sofre por ser negro em uma sociedade, em um país historicamente dominado pelo preconceito que afirma a inferioridade de sua raça, pois, como se sabe, até 1930 ainda prevalecia uma política
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escancarada de "branqueamento" da população, como reflete Aguiar (2012). O Negro se deixa levar pelo preconceito e de suas atitudes emanam um esforço desesperado para tornar-se, na expressão de Aguiar (2012), "um negro de alma branca", isto é, um negro que assimilou o "bom comportamento", a "educação" e as "boas maneiras" dos brancos ricos (AGUIAR, 2012, p.97). De acordo com estudos de Leites e Alves (2009), as personagens de Nelson Rodrigues debatem-se numa luta vã contra um processo de degenerescência das instituições humanas, sobretudo da família; elas vivem no palco uma luta em vão contra o destino, e, assim, o teatro de Nelson provoca de um lado, a compaixão e, de outro, o terror. Leites e Alves (2009) observam que ainda que a dramaturgia de Nelson Rodrigues se religue em alguns traços com o teatro grego, na sua totalidade teatral, ele é um teatro moderno. Todo o ciclo de ódio e de morte em Anjo Negro é marcado por maldições e elementos trágicos, no qual o homem é levado a seu destino de qualquer forma e sofre a queda pela má fortuna justamente quando acredita estar alcançando a salvação. Magaldi (2004) mostra como a maldição posta sobre Ismael pela mãe atinge sua descendência, ocasionando a morte de todos os seus filhos,o que pode ser visto quando Virgínia repele o marido, o que se estende em negar também os filhos. Ao matar os filhos, a esposa de Ismael evita a perpetuação da raça através de si, representando a sociedade branca que desejava sufocar a continuidade da raça negra, conforme análise de Aguiar (2012). Outro elemento característico do trágico, trazido por Nelson Rodrigues é o coro. Na peça em questão, ele é composto por senhoras pretas e descalças e tem por função enunciar um ponto de vista de fora da tragédia, para prestar informações à trama e, contrastando com a impetuosidade dos protagonistas, provoca um relaxamento em face da ação principal. É possível encontrar na peça um completo intrincado de redes mitológicas, demonstrando o aspecto eclético, tipicamente brasileiro. Virgínia resgata Medeia, que extermina a prole ao ser traída pelo esposo. O casal lembra Cronos, o titã senhor do tempo, que, temendo ser destronado devora os próprios filhos. Aqui, quem os mata é Virgínia, a emissária de Cronos, que, por sua vez, seria o próprio patriciado brasileiro. Ismael retoma o patriarca dos escravos, filho de Abraão e Agar, uma escrava que a esposa de Abraão lhe dá de presente. Como salienta Aguiar (2012), isso tudo não significa que Nelson Rodrigues queria fazer a releitura, mas que está consciente de que leva seu público a considerar uma região do espírito onde se movem arquétipos ancestrais, que agora estão miscigenados com o mundo moderno. O drama se desenha
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nessas regiões obscuras do espírito que parecem desafiar a suposta clareza da modernidade e esse mesmo drama impede o casal de se libertar de seu círculo vicioso. Magaldi (2004) identifica como norma no universo de Nelson Rodrigues a oposição mãe e filha e coloca as demais personagens da trama na categoria de apoio, dizendo que elas são colocadas de tal forma para salientar as protagonistas. Para finalizar a peça, Nelson precisaria enveredar para um lado tão grandioso quanto o resto dela. Para encaminhar a isso, foi importante o nascimento de um filho de Elias, que, se fosse homem, teria sido sacrificado, mas nasceu mulher e, apesar de levantar o ódio da mãe, não seria morta por ser branca. A solução encontrada pelo dramaturgo, para a peça, foi poética e não enfraqueceu nem um pouco a obra: restou e sempre restará o primitivo casal. O sacrifício de Ana Maria poderia significar novamente a redenção do casal, mas o ódio é tão germinado em suas almas que nem isso pode acabar com o círculo vicioso, tal como analisa Magaldi (2004). Observou-se que a peça traz um desfecho hermético com um encerramento ambíguo. O mergulho poético do autor traz à tona, perturbadoramente, temas muitas vezes adormecidos no inconsciente. Nelson Rodrigues chega ao universo profundo do espectador, chamandoo para a consciência dos mitos ancestrais, por meio da linguagem, do lirismo cego, das paixões desencadeadas e de outros estímulos, mesmo que a civilização, por conveniência, atenue na indiferença o comportamento dos indivíduos. REFERÊNCIAS Leites; Alves. O tetro de Nelson Rodrigues – a linguagem e a composição trágica em Anjo Negro. In: Travessias, vol. 03, n° 03, 2009, Edunioeste, Disponível em http://erevista.unioeste.br/index.php/travessias/issue/view/311. Acesso em 02 de junho de 2013. MAGALDI, Sábato. Aspectos da dramaturgia moderna. São Paulo, Cultrix, 1992. MAGALDI, Sábato. Moderna dramaturgia brasileira. São Paulo: Perspectiva, 1998. _____. Teatro da Obsessão: Nelson Rodrigues. São Paulo: Global, 2004. _____. Panorama do teatro Brasileiro. São Paulo: Global, 2001. NIETZSCHE. A origem da tragédia. Trad. Álvaro Ribeiro. São Paulo: Guimarães Editora,1985. RODRIGUES, Nelson. Teatro completo. (Org.) Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. _____. Anjo Negro: drama em três atos: peça mítica. [notas e roteiro de leitura de Flávio Aguiar (2012)]. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 2001.
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A RETÓRICA DA CAMINHADA NAS OBRAS DE ADRIANA LISBOA E ADRIANA LUNARDI Alessandra Valério (UNIOESTE) Regina Coeli Machado e Silva (UNIOESTE) RESUMO: Passageiros, viajantes, estrangeiros
são personagens abundantes na ficção brasileira recente, assim como também é frequente a opção por tramas que se desenvolvem em espaços públicos como ruas, rodoviárias, aeroportos, locais de passagem ou os chamados “nãolugares”, de acordo com Marc-Augé (2008). Presente nas obras de Adriana Lisboa e Adriana Lunardi essa condição de caminhante relaciona-se tanto a um processo de busca de redefinição identitária das personagens, de um lugar no mundo, como também pode ser lida como representação da procura de uma voz autoral, de uma assinatura das próprias autoras. Transitar pelos espaços urbanos é caminhar por meio de vestígios, pegadas, histórias de vida incrustradas nas paredes, muros e ruas (RICOUER, 1998), traçar uma trajetória sobre as marcas de outras trajetórias. Nesse sentido, nessas ficções, andar e escrever são atividades que se equivalem e se complementam, uma vez que o processo de escrita se apresenta como busca por um caminho entre os caminhos já percorridos por outras histórias, outros textos. Em virtude disso, este estudo objetiva expor como a retórica da caminhada, ao mesmo tempo em que é fundamental para a reconstituição identitária das personagens, aponta para a própria concepção de escrita posta em jogo pelas autoras.
PALAVRAS-CHAVE: Autoria, identidade, escrita.
“Essa história começa ao rés do chão, com passos” (DE CERTEAU, 2000, p.179).
Em seu texto “A fala dos passos perdidos” o teórico francês tece um
interessante paralelismo entre o ato de caminhar e o ato de enunciar: “Existe uma retórica da caminhada. A arte de moldar frases tem como equivalente uma arte de moldar percursos” (DE CERTEAU, 2000, 179). O ato de caminhar está para a cidade como a enunciação está para a língua. Ocorre um processo de apropriação do sistema topográfico pelo pedestre e a realização espacial do lugar, análogo ao processo de apropriação do código linguístico pelo falante ou a assimilação dos índices estéticos e da linguagem literária pelo escritor.
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Da mesma forma que a linguagem implica estilos e usos, possibilita singularizar os recursos, empregá-los conotativamente, também as práticas do espaço correspondem a manipulações de elementos de uma ordem construída. São como “desvios relativos a uma espécie de sentido literal definido pelo sistema urbanístico” (DE CERTEAU, 2000, p. 180). O espaço dos urbanistas e arquitetos, analogamente ao dos escritores, dispõe de um nível normal a partir do qual surgem desvios. Esta é uma ficção produzida no uso particular. Se há uma ordem espacial organizadora que engendra possibilidades e restrições, o caminhante, em seu uso, atualiza-as, confere-lhes visibilidade. Suas opções e improvisações podem modificar e subverter o protocolo de uso de alguns elementos espaciais. “O caminhante transforma em outra coisa cada significante espacial” (DE CERTEAU, 2000, p. 178), provocando, desse modo, descontinuidades nos modos habituais de interação com o espaço. O caminhante estabelece uma rede de relações com o lugar, apontando um cá e um lá, indicando uma apropriação do espaço por um “eu”, implantando um outro relativo ao “eu”. Assim, a caminhada cria uma organicidade, em que se pode analisar os tipos de relação que se mantém com os percursos. A caminhada, sob essa perspectiva, pode reafirmar, suspeitar, arriscar, transgredir, respeitar: são trajetórias que falam. Essa equivalência entre a ação de caminhar pela cidade e o ato de enunciar, conforme proposta por De Certeau (2000), é também uma metáfora bastante recorrente nas obras de autoria feminina, em especial, as de Adriana Lisboa e Adriana Lunardi. Em Raksushisha (2007) e A vendedora de fósforos (2012), as protagonistas alternam suas caminhadas pela cidade com a evocação das memórias e a respectiva escrita. Andar e escrever são gestos revestidos de um caráter político e que se relacionam para ambas as personagens com a busca de um lugar, com a ampliação de suas redes identitárias. “Caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio” (DE CERTEAU, 2000, 183), assim o deslocamento é fundamental para que as narradoras-autoras dos romances transgridam o confinamento do espaço doméstico e se lancem às ruas, buscando, de modo desdobrado, inscrever suas trajetórias seja no espaço social como no mundo literário.
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A multiplicação da presença dos chamados “não-lugares” (MARC-AUGÉ, 1994), como rodoviárias, aeroportos, metrôs na literatura contemporânea de autoria feminina pode funcionar como um indicativo desse abandono da esfera intimista e doméstica e a opção pelos espaços públicos tão caros ao universo masculino. Contudo, a necessidade de apropriar-se da “linguagem dos passos” corresponde também à procura de um espaço no universo literário, marcado pela dominante masculina e os imperativos do cânone e da tradição. Dessa forma, andar pelas ruas e sobre as marcas de outros passos é fundar o próprio percurso, tarefa hercúlea para as escritoras e escritores que procuram obter alguma visibilidade no cenário contemporâneo. Foi preciso reaprender a andar. Um dia Celina se deu conta de que o que mais lhe importava em seu corpo eram os pés. [...] Sua alma pisava o chão e morava no espaço de dois complexos anatômicos, um par de tornozelos, calcanhares, tarsos, metatarsos e duas dezenas de dedos. Acotovelava-se duas vezes 26 ossos. (LISBOA, 2007, p. 20).
Caminhar pela cidade é também um gesto de resistência das narradoras, a opção por tecer de modo lento e cuidadoso seu próprio itinerário e estabelecer uma rede de afeto que transforma o espaço em um lugar de memórias. “O senhor pode ir mais devagar, por favor? Gostaria de apreciar a cidade, expliquei, a fim de não ofendê-lo” (LUNARDI, 2011, p.126). É o desejo da narradora de A vendedora de fósforos, quando refaz o caminho de volta a uma cidade do Sul, que habitara na infância, a fim de visitar a irmã suicida. Desejo esse que coincide com a vontade de Celina, protagonista de Rakushisha (2007, p. 10): “Posso ir bem devagar, o meu devagar (...) posso escolher o ritmo da minha dificuldade de caminhar” e se traduz na necessidade de desacelerar o passo, ao mesmo tempo em que se descondiciona o olhar pelo espaço, procurando desrecalcar outra percepção do ambiente. Recuperar o “prazer de ver”, valorizando a minúcia, a sutileza, privilegiando o implícito e o silêncio são as características de uma “literatura da delicadeza”, termo atribuído por Luciene Azevedo (2004) para nomear as produções de Michel Laub e Adriana Lisboa ou a reatualização de uma “poética do cotidiano” na definição de Denilson Lopes (2007). Percebidas como uma contraface das narrativas que abordam o “peso” de um mundo regido pela lógica do consumo e voracidade informacional e imagética, essas obras constituiriam uma espécie de resistência e contrapelo da “estética
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do choque”, calcada na banalização da violência e no gosto pelo abjeto. Mesmo lidando com o trágico e o inexorável, não há espaço para o embrutecimento nem para alheamento das personagens, a estratégia é o desvio de foco que resulta num esvaziamento da angústia existencial, na desdramatização dos acontecimentos. A desaceleração do tempo e a reapropriação do espaço por meio dos próprios pés é um dos recursos empregados pelas obras para criar um hiato no fluxo alucinante alimentado pela urgência do presente. A diminuição do ritmo e a adoção de um olhar demorado sobre o entorno se juntam à reivindicação de um tempo para a reflexão, imprescindível para a reorientação das personagens em relação às fatalidades que marcaram suas trajetórias. Há sempre um imponderável a ser desnudado, a ser revelado no jogo dos passos das protagonistas, mesmo que apenas tangenciado como a culpa do marido de Celina em Rakushisha (2007) na morte de sua filha ou os remorsos sentidos pela protagonista de A vendedora de fósforos (2011) por ter roubado o sonho da irmã. Nesse gesto cognitivo de apreensão do mundo, o espaço adquire densidade e, aliado à memória, realiza um papel fundamental no curso das reflexões vivenciais das narradoras. O detalhe ou o banal, uma sucessão de gestos, quando decalcados do cenário urbano, podem se tornar objetos de conhecimento ontológico: Um túnel. Era mais longo e mais escuro em minha memória. Deve ser essa a impressão de quem o atravessa pela primeira vez, sem conhecer o tempo de duração do trajeto. Passados tantos anos e tantos túneis, tem agora o tamanho do seu tamanho: grande para abrigar muitos grafitos, pequeno para se ler o que está escrito, não à tinta, mas por dedos que extraem letras do leito de fumaça. Sei o que as palavras dizem por se tratar de um ardil do idioma, tão familiar que nem precisa ser decifrado. A deus amar é pecado. (LUNARDI, 2011, p.127).
A cidade como livro de pedra Se caminhar equivale a escrever e se inscrever no espaço, também remete a ler. A cidade surge, nesse sentido, como a metáfora plena dessa atividade palimséstica: quem se desloca pela cidade, move-se por entre signos do passado e do presente, forja sua trajetória em meio a outras trajetórias, caminha sobre os rastros de outros caminhantes.
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A cidade como um “livro de pedra”, na expressão de Benjamin (apud RICOUER, 1998), é o espaço em que se sobressaem os diálogos entre temporalidades disjuntivas (a igreja antiga envolvida por uma praça modernizada), em que ocorre a fusão de passado e presente (um velho prédio remodelado com materiais e formas modernas), que aponta para o futuro (um edifício provocador que marca a paisagem pela diferença). Desse modo: “Dotada de memória-palimpsesto, a cidade supõe a sobreposição de camadas do já vivido, sugerindo a ideia de que por detrás de uma cidade há sempre outra e mais outra, em um jogo de suplementos sem fim” (PORTO, 2010, p.72). Assim como fazer literatura, a andar pela cidade pressupõe o reconhecimento dessas marcas, dessas pegadas, dessas várias histórias que sobrepõem e se entrecruzam, formando uma densa rede de sentidos na qual nos inserimos e a partir da qual podemos inscrever a nossa trajetória. Celina, em Rakushisha, demonstra claramente a consciência e o reconhecimento desse caráter palimpséstico do espaço: “As pessoas que moraram antes neste apartamento deixaram coisas, e o pequeno espaço é uma pequena confluência do mundo também, um palimpsesto de gente que passou, mas quis afirmar o atestado de sua passagem numa ou noutra gentileza” (LISBOA, 2007, p. 81). Em Arquitetura e Narratividade, Paul Ricouer (1998) propõe uma analogia instigante entre as operações da construção e da narração. De acordo com o autor, a “arquitetura seria para o espaço, o que a narrativa é para o tempo” (RICOUER, 1998, p.44), no sentido de que ambas estão comprometidas com um procedimento de configuração de uma inteligibilidade a partir da ordenação de elementos desconexos e dispersivos. Trata-se de articular o espaço e o tempo por meio das ações de construir e contar, compreendendo como o espaço se torna um “lugar de vida” através das práticas de construir e habitar assim como o tempo se torna humano por meio da ação de “contar histórias”. Logo, as práticas de construir, habitar e caminhar pelo espaço promovem a síntese do heterogêneo, ordenando as concordâncias e discordâncias, a multiplicidade de referências que compõem uma cidade, tornando-a “narrável”, ou seja, promovendo inteligibilidade as suas conexões. Pode-se compreender habitar e construir como gestos relacionados que, conforme Ricouer (1998, p. 45) “implicam ritmos de paradas e de
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movimentos, de fixação e de deslocamentos. O lugar não é somente a cavidade onde se fixar, (...) mas também o intervalo a percorrer”. A forma como o espaço urbano articula as justaposições arquitetônicas de estilos, as distintas temporalidades, o modo como reorganiza o antigo em virtude da chegada do novo, como realiza a fusão entre o culturalmente familiar e o estrangeiro, entre a vida e a morte é muito semelhante ao modo como se conjugam os fatos em um eixo narrativo. Assim, a cidade “narrada”, o espaço humano como “livro de pedra” é polifônico, constituído por um emaranhado de histórias de vida que se materializam em paredes, ruas, avenidas, praças. É capaz de inscrever, de criar um “enredo” para todos esses elementos tão díspares entre si, criando formas de significação indispensáveis à compreensão do modo humano de estar no mundo. O espaço urbano se torna, por esse viés, um modelo cognitivo de apreensão da condição humana, uma forma de conhecimento do mundo, assim como a narrativa. Desse modo, deslocar-se pela cidade, ler essas histórias inscritas no asfalto e no concreto é um gesto que possibilita a reorientação de si, a compreensão de seu próprio modo de ocupar esse mundo e as alternativas que são oferecidas. A caminhada se oferece também como rica metáfora do próprio fazer literário que fundamenta nessa ação de reconhecer os passos já realizados e as trajetórias já legitimadas por outros, pela tradição, pelo cânone, em que se procura a partir delas, abrir brechas e fundar os próprios caminhos, esboçar a própria cartografia. Se for possível pensar nessa reversibilidade entre narrar (fazer literário) e construir/ habitar/ andar , como proposto por Ricoeur (1998), pode-se afirmar que, nos romances estudados, a proposta consiste em narrar o espaço para construir um tempo habitável. Tendo em vista que o maior desafio contemporâneo está em obter “uma ancoragem espacial e temporal em um mundo de fluxo crescente em redes cada vez mais densas de espaço e tempos comprimidos” (HUYSSEN, 2000, p.34), o ato de mover-se pelo espaço da cidade, para as narradoras, está relacionado à busca por garantir uma continuidade no tempo, um “núcleo de estabilidade” que permita a manutenção identitária, impeça a perda de referenciais.
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REFERÊNCIAS AZEVEDO, Luciene. Estratégias para enfrentar o presente: a performance, o segredo e a memória. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004. HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória: arquitetura, monumentos, mídia. Tradução de Sergio Alcides. Seleção de Heloisa Buarque de Hollanda. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. LISBOA, Adriana. Rakushisha. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. LUNARDI, Adriana. A vendedora de fósforos. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. RICOUER, Paul. Arquitetura e narratividade. in: Urbanisme, n.303, nov/dez 1998, pp. 44-51. PORTO, Maria Bernadette. Circulações urbanas. In: BERND, Zilá (Org.) Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos. Porto Alegre: Literalis, 2010. DE CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. 1. Artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. 5ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
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“UM ABRAÇO DO AMIGO E ADMIRADOR DE SEMPRE, FERNANDO PESSOA”: O ETHOS NAS CARTAS DE PESSOA A JOÃO GASPAR SIMÕES
Alex Neiva (USP) A correspondência de Fernando Pessoa evidencia a relação do poeta com seus
diversos destinatários, abrangendo um período de 30 anos (1905 – 1935). As cartas se destinam a familiares, a namorada Ophélia Queiróz, a editores e diretores de jornal, a poetas, críticos e intelectuais, dentre os quais João Gaspar Simões, Armando CôrtesRodrigues e Adolfo Casais Monteiro. Para os objetivos deste trabalho, procede-se ao estudo da correspondência de natureza cultural, notadamente aquela que se destina ao grupo de escritores, pois nesses textos a construção da imagem autoral se faz de uma maneira, não apenas mais ostensiva, mas, principalmente, orientada numa direção mais concernente aos objetivos desta pesquisa: os destinatários, afinal, partilham do mesmo campo de interesse do remetente. Todos se interessam por literatura e cultivam um ciclo de amizades que está para além do contato meramente pessoal. O estudo da correspondência deve considerar o destinatário porque é em função dele que o ethos se constrói, tendo por base um maior ou menor grau de distanciamento. A importância que a carta tem para a construção da imagem projetada está intimamente relacionada ao modo como o discurso é trabalhado. Sabe-se que, em Pessoa, como hábil missivista, essas questões são fundamentais e serão, portanto, o ponto de partida desta pesquisa. Optamos por analisar as cartas de Pessoa ao crítico presencista, e futuro biógrafo do poeta, João Gaspar Simões, pela sua exemplaridade. Essa correspondência representa, em síntese, uma amostra rica e diversificada da correspondência literária de Fernando Pessoa. A correspondência marca o período de seis anos de intenso contato entre Pessoa e Gaspar Simões. Esse período estende-se de 1929, com a publicação do livro Temas,
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no qual se incluía um estudo de Gaspar Simões sobre Pessoa, até 1935, ano da morte do poeta. Trata-se, ao todo, de 39 cartas, das quais apenas uma viera a público antes da publicação do conjunto da correspondência: aquela que saiu no número da Presença em memória de Pessoa e que anos mais tarde foi transcrita no livro de Gaspar Simões, Novos Temas. As cartas evidenciam a preocupação, nos últimos seis anos de vida do poeta, com reunir e organizar os papéis para a publicação de sua obra, bem como a organização e indicação para a publicação da obra do poeta e amigo Mário de Sá Carneiro. Dá noticias dos bastidores da Presença, relatando inclusive as divergências entre seus colaboradores. Gaspar Simões, diretor da revista, foi um dos correspondentes mais assíduos de Pessoa. O crítico não só admirava o poeta − chegando a considerá-lo mestre para os intelectuais da geração presencista − como foi um dos que contribuíram para a divulgação de sua obra, com a publicação de poemas ortônimos e heterônimos, a partir de 1927, e, em 1950, de um dos estudos fundadores da fortuna crítica pessoana, a Vida e Obra de Fernando Pessoa. Ao lado de Luis de Montalvor, Gaspar Simões foi, além disso, responsável pela catalogação e publicação dos volumes das Obras completas de Fernando Pessoa, pela Editora Ática, a partir de 1942. A afetividade e a admiração que o poeta tinha pelo crítico se antevêem nas saudações e despedidas das cartas, que funcionam como recursos de caracterização do ethos: “Meu querido Gaspar Simões”, “Meu querido Camarada:” “Abraça-o com grande afecto e grande apreço o sempre e muito seu, Fernando Pessoa” “Um abraço do amigo e admirador de sempre, Fernando Pessoa”. Na primeira carta, datada de 26 de junho de 1929, o poeta agradece a publicação de um estudo sobre ele no livro Temas. Nesta carta é flagrante o tom afetuoso, a partir da utilização do recurso retórico da captatio benevolentiae, expediente utilizado quando o autor se dirige ao leitor e quer ganhar a sua simpatia: Escreverei, por ora, só do coração, e para assinalar o quanto me comoveu o estudo em que me analisa. Sou, como é de ver, incompetente, pelo descontentamento intimo que cada um, por lúcido que seja, tem de si mesmo, para medir, com metro objetivo, qual seja a porção de justeza abstracta com o que conclui a meu respeito (PESSOA, 1999, p.155).
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Pessoa afirma que a carta é um “arremedo de carta” e que se trata de um prefácio incaracterístico a outra que ele escreveria tempos depois sobre o estudo de Gaspar Simões, porque o que prevalece nela são ainda os laços de amizade. Nesta carta vislumbra-se a manifestação do ethos, notadamente aquela que confere a Pessoa um lugar de sujeito cultural – que coincidentemente tem por base as características já formuladas por ele em seus textos estéticos e de auto-análise: “Comoveu-me, digo, o seu estudo porque me trata como realidade espiritual, e, por assim dizer, reconhece a minha existência como nação independente (PESSOA, 1999, p.155)”. Nos textos sobre a gênese e justificação da heteronímia há um aprofundamento da consciência da pluralidade, sintetizada pela fórmula: “Sê plural como o universo”. Pessoa não se reconhece como um único escritor, mas como toda uma literatura, em que o sonho e a loucura coexistem e se constroem a partir da tomada de consciência de sua missão. Com uma tal falta de literatura que há hoje, que pode um homem de gênio fazer senão converter-se, ele só, em uma literatura? Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de espírito? (PESSOA, 2005, p.83).
A exaltação do gênio se faz como construção da imagem autoral, e está posta como pano de fundo das cartas a Gaspar Simões. Essa concepção da imortalidade associada a uma atmosfera quase divina da literatura entra na composição do ethos do homem de gênio nas cartas a Gaspar Simões, por meio do registro de uma biografia artística e intelectual que tem por finalidade a apresentação de uma personalidade de escritor. Pode-se afirmar, por hipótese, que é como se o poeta entregasse justamente o que se espera dele, a exclusão de tudo que não diz respeito ao seu universo literário. O que é particularmente notável em se tratando de cartas que vão testemunhar não só os últimos anos de vida do poeta, com a crescente preocupação com a organização de sua obra, como também representam o intuito de dar a conhecer o seu nome à posteridade.
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É a partir disso que se vislumbra a instância do sujeito cultural, entidade que está comprometida com a ficcionalização de um eu artístico, que pode assumir diversas formas, e que, na tessitura das cartas, se mostra como mais uma das inquietações estético-literárias de um eu profundo pessoano, amplamente divulgado nos textos de estética e auto-análise. O sujeito cultural se nutre do recurso retórico do ethos para colocá-lo a serviço da afirmação de uma imagem literária, particularmente, de uma imagem de escritor. É na figuração textual das cartas que residem as máscaras pessoanas, como um caleidoscópio em que se apresentam diferentes faces de Fernando Pessoa. A questão da sinceridade só deve ser levada em conta se se pretende discutir como extensões temáticas de sua poética. Para Ricardo Reis a verdade se relaciona “ao fingir sem fingimento”, para o poeta de “Autopsicografia”, o poeta finge a dor verdadeiramente sentida. No poema Isto, nega-se o fingimento, a verdade estaria a cargo do imaginário, cabendo aos leitores sentir o que o poeta racionalmente concebeu como realidade estética. Assim, os discursos das cartas se nutrem do fingimento como possibilidade de recorrer à cena intertextual de seus heterônimos, incluindo as anedotas que os envolvem. Deve-se conceber o Eu da enunciação das cartas como aquilo que José Augusto Seabra chama de “um dramaturgo (oculto) e um personagem sem drama (disfarçado de pessoa viva) (SEABRA, 1988, p.67)”. Na carta de 30 de setembro de 1929, Pessoa afirma que ainda não comentaria o estudo de Gaspar Simões por não estar em condições psicológicas para tanto, porque, segundo ele, ainda estava sob o efeito de uma tempestade mental às voltas “com a miserável contemplação dos desvarios de Álvaro de Campos”. “[...] passado este incidente metafísico, terei, suponho, alma sobrante para falar por escrito. Não marco data, porque as datas são ficções do tempo falso; marco, porém, promessa. Não posso fazer mais por enquanto (Pessoa, 1999, pp. 167 -168)”. O que esta imagem suscita é que se está diante de um poeta tomado por tempestades mentais que lhe impedem de tecer quaisquer comentários de natureza crítica. Trata-se de uma personalidade vulnerável aos ímpetos criadores de seu heterônimo Álvaro de Campos, o que reafirma a idéia de nação independente, apresentada na carta anterior. Segundo esta visão, o domínio do ato da escrita está
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condicionado aos humores do trabalho artístico. A idéia de “falar por escrito” dimensiona o universo das cartas como lugar marcado pela coloquialidade e transitoriedade. Ora, se de fato a carta configura um meio de expressão mais intimista e possivelmente menos concentrado do que a obra literária, ele não é menos destituída de preocupações estéticas, já que o que se põe em jogo em sua escrita não é somente o aspecto informativo e cotidiano do poeta missivista, mas a projeção de uma personalidade cultural. E, neste sentido, o que é dito ali toma uma importância não só para a reconfiguração da história literária das relações de Pessoa com os companheiros de Presença, mas se evidencia como um testamento vivo das relações do poeta com a sua própria obra. As cartas cumprem um papel fundamental para compreensão dos processos de criação, notadamente os que põem em evidência uma personalidade biográfica, artística e estética. Segundo Marcos Moraes, a correspondência de escritores pode ter três tipos de recepção crítica: Pode-se, inicialmente, recuperar na carta a expressão testemunhal que define um perfil biográfico. Confidências e impressões espalhadas pela correspondência de um artista, contam a trajetória de uma vida, delineando uma psicologia singular que ajuda a compreender os meandros da criação da obra. A segunda possibilidade de exploração do gênero epistolar procura apreender a movimentação nos bastidores da vida artística de um determinado período. Nesse sentido, as estratégias de divulgação de um projeto estético, as dissensões nos grupos e os comentários acerca da produção contemporânea aos diálogos contribuem para que se possa compreender que a cena artística (livros e periódicos, exposições, audições, altercações públicas) tem raízes profundas nos "bastidores", onde, muitas vezes, situam-se as linhas de força do movimento. Um terceiro viés interpretativo vê o gênero epistolar como "arquivo da criação", espaço onde se encontram fixadas a gênese e as diversas etapas de elaboração de uma obra artística, desde o embrião do projeto até o debate sobre a recepção crítica favorecendo a sua eventual reelaboração. A carta, nesse sentido, ocupa o estatuto de crônica da obra de arte (MORAES, 2007, v.59, 1, Mar).
As cartas a Gaspar Simões fundamentam os três tipos de recepção, porque a caracterização do ethos não é de forma alguma estanque, mas pode englobar diferentes faces do eu discursivo que, progressivamente, vai moldando as imagens que são
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reivindicadas pelo enunciador. A carta tomada como expressão testemunhal, pode ser lida como uma narrativa que fornece vestígios para a caracterização de uma psicologia singular e para a especulação estética sobre determinados aspectos da obra. É essa vertente a que mais contribui para exaltação do mito. Outra possibilidade de exploração da carta diz respeito aos bastidores da Presença. O diálogo entre interlocutores permite comentários e discussões que evidenciam a crescente influência entre escritores, o que desmitifica a natureza da obra como algo fechado, e abre possibilidades para a criação socialmente partilhada, ou ao menos passível de considerar as opiniões de uma segunda voz. O ethos é aqui o do amigo, colaborador ativo e entusiasmado com as demandas de seu destinatário. Pessoa ao longo das cartas mostra-se profundamente solícito com Gaspar Simões, como fica evidente no trecho em que o aconselha quanto aos trâmites comerciais da editoração da obra de Mário de Sá-Carneiro. Na carta datada de 11 de Dezembro de 1931, torna-se evidente a postulação de uma imagem autoral que pode ser tomada como síntese do ethos na correspondência. Carta na qual Pessoa faz a anunciada crítica ao artigo de Gaspar Simões, publicado no livro O Mistério da Poesia. Nela pode-se dimensionar a projeção de um ethos do crítico escritor e do ficcionista. Por um lado, Pessoa se preocupa em contra-argumentar aspectos discordantes do estudo de Gaspar Simões, indicando-lhe as incoerências. Por outro, assume a postura de crítico de sua própria obra, fazendo uma reflexão autointerpretativa. Nos parágrafos iniciais desculpa-se por não trazer o livro do qual tratará em sua carta, ressaltando as condições de produção nas quais supostamente o sujeito da enunciação se encontra. Deve v. compreender, antes de mais nada, que vou fazer a crítica assim mesmo, escrevendo corrente e directamente à máquina a que estou sentado, sem procurar fazer literatura, ou frases, ou quanto não surja espontaneamente no decurso mecânico de escrever. Como não trouxe comigo o seu livro, terei que indicar em vez de citar, onde haja (se directamente houver) razão para isso. Aviso isto para que v. não veja um vago propósito onde há somente não ter trazido o livro (PESSOA, 1999, pp.248 – 249).
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Tornou-se expediente comum, nas cartas a Gaspar Simões, e na famosa carta sobre a gênese dos heterônimos, recorrer a comentários que apontam para o meio sobre o qual a escrita se dá, afirmando uma possível espontaneidade do processo, que se caracterizaria por abolir quaisquer resquícios de discurso elaborado (“sem procurar fazer literatura”). Ressalta-se daí o caráter de improvisação relativo ao fato de que Pessoa nem sequer tem em mãos o material para análise. Ora, se isto de fato se confirmasse não se estaria diante de uma carta cujo enunciador segue com desenvoltura as partes do discurso retórico bem como se utiliza de estratégias argumentativas. No exórdio, evidencia-se a finalidade da carta, que é fazer a crítica ao artigo de Gaspar Simões. Pessoa mostra ter ciência da ordenação do seu discurso: “Feitas estas considerações antepreliminares, e que são a resposta à sua carta, vou ver se consigo fazer a crítica ao seu livro Mistério da Poesia [...] O que porventura se manifeste de discordância no seguimento desta carta atinge tão somente os acidentes e os pormenores (PESSOA, 1999, p.249)”. Antes de entrar propriamente no assunto da carta, Pessoa escreve um longo parágrafo em que elogia o amigo, evidenciando a grande admiração que sente por ele. Trata-se da utilização de tópicos de refutação que se relacionam com o exórdio e cujo objetivo é eliminar eventuais atitudes desfavoráveis ao remetente suscitadas no destinatário. “De há muito que tenho uma alta opinião do seu talento em geral e das suas qualidades de crítico em particular. Quero que, antes de mais e acima de tudo, reconheça isto, e que isto é a minha opinião fundamental (PESSOA, 1999, p.249) Ao postular a espontaneidade do processo de escritura, Pessoa joga com o ethos da excelência. Na superfície de sua narrativa está a ideia de que por mais que lhe sejam desfavoráveis as condições de produção − visto que não dispõe de material para consulta e “escreve diretamente à máquina” ─ ele é capaz de desenvolver um discurso organizado, escrito com clareza, e que tem, diferentemente do que afirma, uma carga de ficcionalização que assume, por vezes, uma veia ensaística. O Mistério da Poesia é essencialmente ─ a meu ver, sempre um livro de estádio intermédio: é mais profundo e mais confuso que Temas. O Gaspar Simões cresceu mentalmente ─ cresce-se mentalmente até aos 45 anos ─ e está atravessando uma fase de uma doença do crescimento. Sente a necessidade de explicar mais, e mais
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profundamente, do que fez em Temas, mas, em parte, não atingiu ainda o comando dos meios de aprofundamento, e, em parte, busca aprofundar pontos da alma humana que não haverá nunca meios para aprofundar. De aí ─ sempre, a meu ver ─ o que de febril, de precipitado de ofegante estorva a lucidez substancial de certas observações, e priva outras, centralmente de lucidez (PESSOA, 1999, p.249).
Pessoa privilegia comentários de natureza epistemológica, ressaltando a influência que a psicanálise freudiana teve para a interpretação de Gaspar Simões. Segundo o poeta, o crítico parte de um pressuposto equivocado que seria tentar explicar a inexplicável profundidade da alma humana. Para destacar as incoerências do artigo, faz crítica ao sistema freudiano, sobretudo na tendência de dar excessivo relevo à sexualidade. O assunto obrigou-me a cair no sexual, mas foi para exemplificar, como v. compreende, e para lhe dizer quanto, criticando embora e divergindo, reconheço, o poder hipnótico dos freudismos sobre toda criatura inteligente, sobretudo se a sua inteligência tem a feição crítica. O que desejo agora acentuar é que me parece que esse sistema e os sistemas análogos ou derivados devem por nós ser empregados como estímulos da argúcia crítica, e não como dogmas científicos ou leis da natureza. Ora o que me parece é que v. se serviu deles um pouco neste último sentido [...] (PESSOA, 1999, pp. 252 - 253).
O diálogo se dá com a interpretação de tipo psicológico que vê num elemento poético, como o tema da infância, a possibilidade de deslindar os meandros de uma personalidade. Pessoa, no entanto, não faz uma crítica à exegese psicanalítica, mas àquela que se valendo deste campo do conhecimento, utiliza-a de maneira reducionista, tornando-se uma espécie de “paranóia de tipo interpretativo”. Em seguida, faz considerações sobre qual seria a função do crítico. Para ele, o crítico deve estudar o artista como artista, e não se pautar em explicações de natureza extra-literárias. Deve partir o seu estudo da constatação dos gêneros literários aos quais o artista se vincula (tipo lírico, tipo dramático, tipo dramático-poético), e ter em vista a essencial inexplicabilidade da alma humana (PESSOA, 1999, p.255). O ethos do ensaísta lança luzes à auto-análise explicativa, a partir da apresentação de sua personalidade como artista. Assume-se o ethos do escritor crítico como forma de semear aquilo que irá ser a principal chave de interpretação de sua obra,
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a ideia de poeta dramático, que está na base do fenômeno da despersonalização heteronímica. “O ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta dramático: tenho, continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Voo outro ─ eis tudo (PESSOA, 1999, p.255)”. Viagem especular que é ao mesmo tempo pessoal e coletiva por comportar uma série de outros Eu. Pessoa, tomado aqui como instância discursiva que se enuncia, fala de um drama sem poeta, no qual o que vale são as emoções verdadeiramente sentidas por uma pessoa outra, a partir do drama em gente heteronímico. Com a idéia de poetas em busca de um autor, à Pirandello, o poeta rompe com a noção fixa de autoria, concebendo uma realidade literária autônoma baseada na caracterização de universos e temas relativos a individualidades concebidas fora de si. A noção de ethos e, por extensão, a de sujeito cultural, se vinculam a uma realidade discursiva própria, na qual a linguagem embasará a faceta que o enunciador quer tornar pública. Assim, o ethos da correspondência não pode ser o mesmo dos poemas e nem tampouco o dos textos críticos. O ethos é variável conforme se diferenciam os interlocutores, a cena discursiva e a intencionalidade de quem enuncia. O ethos será aquilo que o enunciador quer mostrar de si a partir de pistas deixadas no discurso. É claro que no tocante às cartas a Gaspar Simões, como mostrado até aqui, há um ethos de escritor característico que dimensiona a natureza do fenômeno. Tendo terminado as principais considerações ao artigo de Gaspar Simões, Pessoa volta a fazer comentários que incidem sobre as condições de produção, recorrendo a um elemento literário que constrói a seguinte anedota: Agora vou parar. Vou reler, fazer quaisquer emendas que forem precisas, e enviar-lha. Além disso, sou instantemente solicitado a acabar de escrever à máquina por um amigo meu, ainda mais bêbedo do que eu, que acaba de chegar e não estima embebedar-se sozinho. [...] Não deverei fazer emendas, salvo as do que saiu errado entre mim e a máquina. Se v. achar qualquer ponto mal esclarecido, diga, que eu direi. E v. não esqueceu, é claro, que o que aí vai é feito sem preparação nenhuma ─ atirado pelas páginas fora com a rapidez com que a máquina pode ceder ao pensamento decorrente (PESSOA, 1999, p. 256).
A menção ao heterônimo Álvaro de Campos questiona as fronteiras entre ficção e realidade, de modo a apontar para múltiplos graus de ficção dentro da grande
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ficcionalização que é o próprio universo da correspondência. Na superfície da narrativa, está-se diante de um missivista bêbado que é interrompido por seu companheiro ainda mais bêbado que lhe exige a sua companhia. Se antes as tempestades mentais eram em parte atribuídas aos ímpetos criadores de Álvaro de Campos, agora o heterônimo surge como personagem, interagindo com o poeta e influenciando nos destinos da carta, o que dimensiona ainda mais o seu caráter ficcional. “E agora estou, definitivamente, cansado e sedento. Desculpe o em que as expressões tenham falhado às idéias e o que as ideias tenham roubado à mentira ou à indecisão (PESSOA, 1999, p.257)”. Trata-se do ethos do ficcionista que apresenta as ideias lançadas por ele como crítico de sua obra. Pessoa sistematicamente trabalha em suas cartas e em textos, como a Tábua Bibliográfica, a apresentação de narrativas que buscam fundamentar o fenômeno da despersonalização. Sabe-se que a criação de biografias dos heterônimos é posterior ao fazer poético, como uma espécie de justificativa perante o público. Na carta de 25 de fevereiro de 1933, ao comentar sobre o seu intuito de publicar os Poemas Completos de Alberto Caeiro na coleção da Presença, Pessoa ressalta a importância que o heterônimo tem na sua obra, e se justifica: De facto, e para dizer qualquer coisa parecida com a verdade, gostaria que vv. publicassem O Guardador de Rebanhos. Teria eu assim o prazer de serem vv. que apresentassem o melhor que eu tenho feito ─ obra que, ainda que eu escrevesse outra Ilíada, não poderia, num certo sentido, jamais igualar, porque procede de um grau e tipo de inspiração (passe a palavra, por ser aqui exacta) que excede o que eu racionalmente poderia gerar dentro de mim, o que nunca é verdade das Ilíadas (PESSOA, 1999, p.288).
Pessoa não teve nenhum livro publicado por essa coleção, que optou pelos poemas de Mário de Sá-Carneiro. Há aí uma clara defesa de seus poemas a partir da constatação de que é uma obra fruto de uma inspiração não-humana, pois nem mesmo o poeta poderia concebê-la racionalmente, ao contrário da Ilíada. Ao comparar O Guardador de Rebanhos com uma das mais importantes obras que a humanidade já viu, ressaltando o ineditismo da primeira, Pessoa super-valoriza a figura do gênio, antecipando a idéia do dia triunfal no que ele tem de mais peculiar, a ficcionalização de uma experiência do alumbramento.
2083
Nas cartas a Gaspar Simões a construção da imagem autoral se faz sob a égide do escritor, crítico e ensaísta que dá relevância a explicações de natureza literária. O ethos do homem de gênio torna-se uma necessidade não só advinda de interesses pessoais do poeta ─ como atesta sua biografia intelectual com o registro de suas leituras ─ como é uma forma de apresentar uma biografia artística que testemunha seus processos de criação. A exaltação do gênio se dá como mais uma das facetas do ethos de escritor que está empenhado na divulgação e explicação de sua obra, ainda que pela clara opção pelo mito. Estudando Pessoa, Octavio Paz afirma que os poetas não têm biografia. A falta de elementos biográficos privilegia o mito. Os estudiosos do poeta insistem em recorrer à obra para transpor essa dificuldade. A correspondência cumpre neste sentido a função de crônica da obra de arte em que lá são deixadas pistas que servirão para a reinvenção de uma personalidade e obra (MORAES, 2007, v.59, nº 1, Mar). Pessoa, como artisticamente se pautou pela ausência de si mesmo para dar vida ao espetáculo heteronímico, transforma as cartas a Gaspar Simões em uma espécie de micro-universo ficcional, em que são apresentadas diferentes facetas do sujeito da enunciação fixadas através do ethos. Nosso intuito com este trabalho não foi esgotar de modo algum esse tema, mas apresentar e aprofundar, baseados num recorte específico da epistolografia pessoana, uma discussão que servirá de base para posterior análise de um corpus mais amplo.
Referências
LIND, George Rudolf. “Fernando Pessoa e a loucura”. IN. Actas do I Congresso Internacional dos Estudos Pessoanos. Porto: Brasilía Editora, 1978. MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes, 1993. MORAES, Marcos Antonio de. Epistolografia e crítica genética. Cienc. Cult., São Paulo,
v.
59,
n.
1, Mar.
2007
Disponível
em:
2084
PESSOA, Fernando. Correspondência 1923 -1935 (Org., posf. e notas por Manuela Parreira da Silva). Lisboa: Assirio e Alvim, 1999. ______. Obra em Prosa. Fernando Pessoa. (Org., intro. e notas de Cleonice Berardinelli.) Rio de Janeiro: Ed. José Aguilar, 1974. SEABRA, José Augusto. O Heterotexto Pessoano. São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.
2085
A RETÓRICA DA POESIA DE DALTON TREVISAN NO CONTO “LINCHA TARADO, LINCHA” Alexandre Gaioto Martins (UEM) A discussão sobre os conceitos de gêneros, que vem desde a antiguidade greco-latina, é uma das mais antigas da teoria literária, ou “poética”. Complexa, rendeu divergências e oscilações com o passar dos anos e ainda desperta o interesse entre acadêmicos e críticos profissionais, principalmente. As mudanças concernentes aos gêneros tradicionais (lírico, épico, dramático). Sabemos que muitos refletiram sobre essas questões, com acordos e desacordos. Massaud Moisés (1968, p. 39), em um esquema simplificado, organiza, como outros críticos, os “gêneros” literários em poesia e prosa. As “espécies” seriam as configurações secundárias dos gêneros, suas divisões. Poesia, logo, divide-se em duas espécies: a lírica e a épica. O conceito da segunda categoria não se limita aos versos de
acontecimentos
históricos
de
relevância
nacional
e
universal;
compreende, também, poemas de Dante, Baudelaire e Fernando Pessoa, poetas que, na sua subjetividade, refletiam uma coletividade, as aspirações e ideias de um povo, uma raça. Por lírica – a poesia confessional – entende-se comumente os poemas que exploram os conflitos da individualidade, facilmente assimilados por adolescentes e adultos, com versos remoendo os sentimentos. Casimiro de Abreu, Garret e Lamartine são alguns exemplos de poetas líricos. As espécies do gênero poético, lírica e épica, estão organizadas em formas e moldes estruturais variados (métrica, rima, estrofe, entre outros). As formas da poesia lírica são, comumente, o soneto, a ode, o rondel, o triolé, o rondó, a balada, o vilancete. A poesia épica, para Moisés (1977: p. 40), está no poema, no poemeto e na epopeia. Quanto à prosa, é exemplificada com a novela, o conto e o romance. A origem dos gêneros literários aconteceu de uma forma natural, resultado da condição humana dos sujeitos. Afinal de contas,
2086
os conceitos de lírico, de épico e de dramático são termos da ciência literária para representar com eles possibilidades fundamentais da existência humana em geral, e há uma lírica, uma épica e uma dramática porque as esferas do emocional, do intuitivo e do lógico constituem a própria essência do homem, igual em sua unidade e em sua sucessão, tal como aparecem refletidas na infância, juventude e maturidade (STAIGER, 1993: p. 213).
Posicionando-se
contra
a
clássica
divisão
dos
gêneros
tradicionais,
Tomachesvsky (EIKEBAUM, 1975 apud TOFALINI, 2013: p. 70), entre outros, defende que não há uma classificação lógica dos gêneros, visto que estão interrelacionados e em constante processo de transformação. Para Staiger (1972), que também se posicionou contra os conceitos rígidos e normativos, as obras literárias não podem ser classificadas apenas em um único gênero, já que são compostas por outras essências. Para isso, retomou a tríade dos gêneros indicada por Aristóteles e propôs uma diferença entre o conceito substantivo e o
conceito
adjetivo.
Resumidamente, Lírica, Épica e Drama, na condição substantiva, referem-se ao padrão discursivo e estrutural dominante em que se classifica a obra, o que faculta sua categorização, de acordo, por exemplo, com certas características formais. Os poemas que expressam a alma do poeta e têm um tamanho normalmente pequeno pertencem à Lírica. A Épica será composta pelo relato predominante de ações, enquanto o Drama será constituído pela representação da ação, movida por um dinamismo de tensão. Os adjetivos lírico, épico e dramático identificam certa essência, certas marcas secundárias na obra, resultante do tratamento estilístico. Um quadro de Edvard Munch, um solo de sax de John Coltrane e um filme de Ingmar Bergman também são líricos, embora não sejam poemas líricos. As obras literárias, conforme Staiger, pertencem a uma determinada categoria, mas são compostas, também, pela “essência” de outros gêneros. Essa plasticidade conceitual explica, em parte, a crescente fusão de
substâncias
e formas
categoriais
(substantivas e adjetivas) a partir do Romantismo, principalmente. Dalton, tal como outros autores, parece querer subverter a noção tradicional da narrativa, já que alguns de seus contos são organizados em versos – com ou sem estrofes – e sua prosa, em alguns momentos, vem carregada de elementos poéticos,
2087
como veremos adiante no conto erótico “Lincha tarado, lincha”. Antes de partir para o conto, é preciso lembrar, rapidamente, que a origem etnológica de “erotismo” está em “eros”, palavra grega que significa amor. Em nossos dias, porém, o termo está mais relacionado à atividade sexual, física, resultante, ou não, do envolvimento amoroso, do que aos sentimentos emocionais e afetivos que compõem a relação. Baudrillard (2004: p. 28-29) defende que a sociedade está em meio a uma obscenidade radical, onde há “nada de sedução, nada de desejo, nada de gozo sequer, tudo está aí na repetição inumerável, numa acumulação em que a quantidade desconfia acima de tudo da qualidade”. Em seus estudos, o filósofo constatou a morte da sedução numa sociedade que é movida pelo consumo de mercadorias e pela instantaneidade do visual. Com o sexo, então, desvinculado da sedução, o corpo ganha o mesmo status de um fetiche de mercadoria e passa a compor a cultura da demonstração. Além de ser confundido frequentemente com o erótico, o pornográfico não pode ser tido como equivalente ao obsceno, visto que o tradicional conceito da obscenidade envolve questões como a provocação, a transgressão e a perversão, diferentemente do que acontece com o pornográfico. No pornográfico, há o excesso da realidade, uma hiper-realidade. É o sexo exibido no estado puro, sem vestígios de sedução e da própria virtualidade da imagem. Ao analisar as produções pornográficas, Baudrillard afirma que o excesso de exibição do real, nesse tipo de filme, visa a saciar o desejo do voyeurismo da exatidão, abusando de cenas microscópicas da nudez e da relação sexual. Os modelos eróticos ou os atores pornôs não têm rosto, não podem ser belos, feios ou expressivos; isso é incompatível, nudez funcional apaga tudo na espetacularidade única do sexo. Alguns filmes não são mais que ruído visceral num grande plano coital: até o corpo desaparece, disperso nos exorbitantes objetos parciais. Qualquer rosto é inconveniente, pois quebra a obscenidade e restitui sentido aí onde tudo visa a eliminá-lo no excesso de sexo e na vertigem da nulidade.
Além da espetacularização do sexo, como notou Baudrillard (1992), a pornografia tem outra característica que é decisiva para estabelecer o limite com o erótico. É comum nos filmes pornográficos o estereótipo do homem casado, um
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responsável pai de família, que acaba se metendo numa sigilosa aventura com uma mulher. Nos filmes, a personagem feminina é quase sempre submissa e o homem é autoritário, insaciável. O prazer, oferecido numa obra pornô, está relacionado à ideologia que predomina na sociedade e é pregada na obra. A partir dessa rápida retomada dos gêneros literários e do erotismo, podemos avançar ao conto “Lincha tarado, lincha”. Originalmente publicado no livro Lincha tarado ( 1980), o texto aborda o relacionamento de um homem (cujo nome não é revelado) com a prostituta Dorinha, que está grávida, e com a própria esposa, Maria. Narrado em terceira pessoa, o conto acompanha a noite do personagem, que se aproxima da prostituta no prostíbulo e, em seguida, segue à casa da moça, onde dorme, e termina com o seu regresso à própria morada, ao meio-dia, ainda de ressaca, tendo de lidar com as cobranças da esposa. “Lincha tarado, lincha” começa com uma pergunta: porquê ele bebe tanto álcool. Sarcástica, a resposta, na voz do narrador, anuncia como será a levada da história: “Burrinha demais para entender. Esteja sóbrio, com ela não fica” (TREVISAN, 1984: p. 80). Segue-se a caracterização grotesca: “No vestido preto de cetim, a múmia da eguinha do faraó na sua mortalha” (TREVISAN, 1984: p. 80). O único elogio é que Dorinha, pelo menos, deixa o cabelo penteado para trás, sem tampar a testa, saciando o desejo do homem – diferentemente da postura adotada pela esposa. Nas próximas páginas, o narrador aborda o envolvimento com a prostituta, comparando-a a Maria, sempre superior em todos os aspectos. Enquanto costura o texto com ironia, o autor não abre mão da retórica estrita da poesia. Incomodado com o nascer do sol, o personagem masculino sofre os efeitos da ressaca e tenta acordar da melhor forma possível na cama de Dorinha: “Se os malditos pardais não acendessem o sol. De manhã, ali na cama, é barata leprosa com caspa na sobrancelha” (TREVISAN, 1984: p. 82). Nas duas sentenças frasais, com a dupla ocorrência de prosopopéias, o som das palavras costuma encorpar o sentido do trecho, até pelo ritmo. Há, ao todo, 41 diminutivos ao longo do conto, indicando características psicológicas
e
comportamentais
dos
personagens
(“burrinha”,
“baixinha”,
“gordinha”, “gravata de bolinha”, “vozinha”, “putinha”, “quietinha”, “velhinho”),
2089
lugares
(“inferninho”,
“quartinho”,
“lampadazinha
vermelha”),
expressões
populares (“Jesus Cristinho”), além de termos como “bastardinho”, “quentinho”, “amorzinho”, “porrinho”, “dinheirinho”, “festinha” etc. Mais de 30 são utilizados para retratar a
relação do personagem masculino com a prostituta Dorinha,
apresentada como “lixo”,
“imprestável”,
“coitada”,
“baixinha”,
“gordinha”,
“putinha”, entre outros termos. Quando fala sobre Maria, a esposa do personagem, a ocorrência dos diminutivos diminui para sete casos. Então, surgem outros termos nobres para defini-la (“heroína”, “mártir”) e até mesmo palavras conjugadas no superlativo (“santíssima”), opondo a condição de Maria à de Dorinha. O contraste irônico (caso mais de humor negro) vale como um paradigma ético-linguístico: o “proibido” faz prosperar o verbo, e, com ele, a diminuição do sujeito. Isso vale para a figuração em si. A forma como Dalton articula a oposição entre termos no diminutivo com outras palavras, às vezes no aumentativo, é uma estratégia contrastiva que remete ao cômico (amarrado à ironia), como quando o personagem masculino se propõe a pagar a quantia à prostituta, prometendo “correntinha dourada para o tornozelo gorducho”. Conhece os quartos, todo iguais. O retrato colorido do galã de tevê. Na penteadeira, os elefantes de castigo, tromba na parede. A bendita lampadazinha vermelha. A velha Nossa Senhora de guerra. No limiar o fogoso dragão de língua bífida. Existe quartinho de virgem mais lindo? (TREVISAN, 1984: p. 82).
Em seguida, o narrador reflete, em forma de pergunta: “Uma pata choca, já imaginou, de sapatão e correntinha no pé de unha encravada?” (TREVISAN, 1984: p. 85, grifo nosso). As antíteses saltam aos olhos: “correntinha” versus “gorducho” e “sapatão”, “prostituta” versus “virgem”, o sagrado (Nossa Senhora) versus o profano (prostituição). E dão o tom de grotesco e irônico do conto. O contraste entre sagrado e profano marca as linhas do “Lincha tarado, lincha”. Quando o narrador pede a Dorinha que tire a calcinha, e ela nega, surge uma pergunta que o leitor não identifica a autoria, tamanha a proximidade entre o narrador e o personagem masculino. A pergunta é uma forma de tentar compreender a negação de Dorinha, que está grávida. “Será por que de sete meses?”.
2090
O número sete é considerado um dos números sagrados, devido à constante repetição no texto bíblico. É popularmente tido como o número da perfeição: a semana tem sete dias, o arco-íris tem sete cores, as maravilhas do mundo antigo são sete, as notas musicais são sete etc. A articulação irônica, nesse trecho, está centrada no numeral. Se Dorinha se recusa a tirar a calcinha porque está grávida de sete meses, o número da perfeição não representa plenitude alguma, pelo menos ao anti-herói do conto: - Amor, posso pedir mais um?
Vive de comissão, a coitada. - Antes tire a calcinha. Na suave penumbra do cinema poeira – há que de anos – os berros selvagens de Lincha tarado, lincha. Todos recolhem a mão, já vai acender a luz. -Tudo. Menos isso. Será por que de sete meses? (TREVISAN, 1984: p. 81).
O discurso bíblico é retomado quando o anti-herói prevê a recepção que terá em sua própria casa, imaginando a reação da esposa: “Mesmos gritos, mesmo choro, mesmo ranger de dentes” (TREVISAN, 1984: p. 82). A paródia ao texto religioso desloca o choro e o ranger de dentes da passagem do Apocalipse para marcar o fim do mundo conjugal do protagonista. Em outro momento de aproximação entre o sagrado e o profano, o narrador cita a imagem de Nossa Senhora no quarto da prostituta. E, antes de encerrar a descrição, opõe a condição de prostituta à de uma virgem, articulando sua ironia em Dorinha. “Conhece os quartos, todo iguais (...) A bendita lampadazinha vermelha. Existe quartinho de virgem mais lindo?” (TREVISAN, 1984: p. 82). Ironizado, o quarto de Dorinha tem, ainda, uma cama com um “travesseiro imundo” (TREVISAN, 1984: p. 82), enquanto a cama na casa do anti-herói, diferentemente, apresenta conforto e limpeza: “Ele se relaxa gostoso – ó fronha bordada, ó lençol imaculado” (TREVISAN, 1984: p. 86). A repetição do termo “ó”, retomada para louvar o cômodo, funciona como uma paródia dos poemas épicos ou dramáticos, em que os autores clássicos invocam suas musas, como, por exemplo, no conhecido trecho da Divina comédia, de Dante: “Ó musas, ó altos gênios, ajuda-me! Ó memória que aponta o que vi, agora se verá tu autêntica nobreza!”, além de remeter à oração, especialmente à virgem Maria. A paródia irônica nos textos clássicos também ocorre no
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momento em que o personagem acorda na casa de Dorinha. A noitada de farra, então, é metaforizada em uma espécie de odisseia proustiana: “Ó longa odisseia do boêmio em busca da casa perdida”. O papel do herói, que tradicionalmente marca as odisseias, é, portanto, ironizado, já que o conto apresenta o oposto, um anti-herói boêmio e canalha. É a deixa para o leitor se perguntar sobre a autoria dessas metáforas “eruditas”, desse jogo intertextual, por vezes simbólico. Os livros de Proust e os poemas clássicos não são literatura popular. Essa mesma voz que conhece Em busca do tempo perdido e ironiza a retórica clássica, vai ao vocabulário “erudito” e à metáfora menos popular ao descrever a performance do personagem masculino, que dança só de cueca e sapato no prostíbulo: um “velhinho audaz do teatro burlesco”. Novamente, aí está o criador, atrás das linhas, debochando de suas criaturas. Parece que o narrador não saberia tanto. Quem mais capaz de comparar uma prostituta à esposa, correlacionando-as à Valéria Messalina, imperatriz romana com fama de promíscua, e Cornélia Africana, matrona romana conhecida como “Mãe dos Gracos”, lembrada historicamente por suas virtudes e seu caráter? O autor, Dalton, implícito no texto. Por isso mesmo, o ficcionista isola o trecho em que insere os símbolos por meio de um hífen, encerrando a cena erótica que ele acabara de iniciar: “A camisola não tira, simplesmente ergue até a cintura – metade Messalina e metade mãe dos Gracos. Sempre aquém da Maria, essa mais Graco, mais Messalina” (TREVISAN, 1984: p. 84). Dalton tem uma forma peculiar de falar sobre sexo, sem se prender às simples descrições do fato, como geralmente acontece em filmes pornográficos, conforme notou Baudrillard (2004). O uso dos diminutivos, as situações contrastivas, as metáforas risíveis e os interdiscursos (bíblicos e literários, basicamente) servem para parodiar o discurso erótico. Com esta estratégia, o erótico é em parte enevoado, de acordo com uma manipulação retórica consciente, trabalhada, poética.
Referências BAUDRILLARD, Jean. Telemorfose. Rio de Janeiro: Mauad, 2004.
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MOISÉS, Massaud. A análise literária. 5. ed. São Paulo: Cultrix, 1977. ______. A criação literária: introdução à problemática da literatura. São Paulo: Melhoramentos, 1968. TOFALINI, Luzia A. Berloffa. Romance lírico: o processo de ‘liricização’ do romance de Raul Brandão. Maringá: EDUEM, 2013. TREVISAN, Dalton. Contos eróticos. Rio de Janeiro: Record, 1984. STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. 1993. 2ed. Tradução de Celeste Aida Galeão. Edições Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro.
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A REPRESENTAÇÃO DA PERSONAGEM NA PARÁBOLA JESUÂNICA “O BOM SAMARITANO” Ma. Aliana Georgia Carvalho Cerqueira (FCLA-UNESP) Dra. Vânia Lúcia Menezes Torga (UESC) Introdução No presente século, contar histórias é, em geral, um ato relacionado à didática: mediação da leitura ou ensino por meio da ludicidade. Esse recurso milenar de comunicação - que permitiu ao homem a preservação da sua cultura, da sua memória, antes do surgimento da escrita - é constituído através da representação. Em geral, civilizações da Antiguidade demonstraram uma cultura narrativa própria. Além da arte, suas histórias estavam relacionadas com crenças, valores, modos de conceber o mundo ou estratégias para manter o status quo político e social. Nesse sentido, Giordano (2007, p. 2) afirma que “não há país, crença ou etnia cuja tradição não tenha suas histórias e lendas. [...] As histórias desde há muito, são formas de confrontar, mostrar caminhos, ensinar e aprender com ideias infinitamente sábias”. Os povos antigos utilizavam-se de narrações alegóricas para persuadir, instruir ou corrigir, isto é, usavam a linguagem literária para possibilitar mudanças em seus ouvintes. Diversas culturas, como a judaica, tinham no ato de narrar, como ato da memória, uma estratégia para manutenção e/ou consolidação de sua fé. Assim, destacase a parábola jesuânica (ou de Jesus). Gênero que inspirou as parábolas modernas de Kierkegaard e Brecht, por exemplo, as parábolas possuem estrutura e construção do sentido interpretativo próprios. Elas sempre foram conhecidas como histórias que contêm como mote situações da vida cotidiana com o fim de ensinar verdades. No entanto, pouco se tem buscado conhecer a arte desses textos narrativos em um estudo filosófico, literário ou linguístico, principalmente no Brasil. Sabe-se que tais textos são metafóricos e mnemônicos, e, além do estudo desses textos serem complementares à Teologia, podem contribuir significativamente para a compreensão da cultura oriental
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(da cosmovisão que, de certo modo, influenciou o Ocidente, mesmo em contextos laicizados como o Direito) e do homem no uso da linguagem, de como ele constrói metaforicamente o sentido e alude à tradição judaico-cristã, como nas obras literárias em que a presença do texto bíblico é recorrente1. Etimologicamente, parábola (do grego parabolé) é uma narração criada com o fim de transmitir conhecimento. Sant’Anna (2010) esclarece que o sentido do termo corresponde a “comparar” ou “colocar lado a lado”, pois o termo parabolé deriva do verbo paraballo (pará=lado a lado e ballo=jogar, trazer, colocar). Não obstante, a parábola evidencia seu caráter literário especialmente na ênfase dada às categorias narrativas de espaço, tempo e personagem. Essa última pode contribuir na compreensão da literalidade da parábola. Se comparada a personagens clássicas, como heróis das tragédias gregas, pode-se notar que o modo de configuração da personagem da parábola é peculiar. De acordo com Sant’anna (2010), geralmente as personagens da parábola jesuânica apresentam-se como tipos, sem indicação de nomes próprios, nem especificações individualizantes; normalmente são identificadas como cobradores de impostos, comerciantes, devedores, empregados, fariseus, fazendeiros, filhos, juízes, lavradores, levitas, mulheres do lar, noivos, pais, reis, servos, sacerdotes, virgens, viúvas, e demais tipos sociais 2, possibilitando maior identificação com o público. Nesse sentido, a investigação tem como objetivo analisar a representação na parábola jesuânica, especificamente, sua personagem, considerando-a como categoria narrativa, na possibilidade de operacionalização (a)mimética nessa narrativa. Com descrições da personagem da tragédia de Sófocles – Édipo Rei, a pesquisa evidencia pequenas características das narrativas grega e judaico-cristã, ao apresentar suas
ASSIS, M de. Esaú e Jacó. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. DOURADO, Autran. O risco do bordado. 9 ed. Rio de Janeiro: Record, 1982. FAULKNER, William. Absalão, Absalão. Trad. de Sônia Régis. São Paulo: Círculo do Livro, s. d. GOETHE, J. W. Os sofrimentos do jovem Werther. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. MANN, Thomas. José e seus irmãos. Trad. Agenor Soares de Moura. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1947. ROSA, J. G. A volta do marido pródigo. In: Sagarana. 18.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1976, p. 69-118. SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. TOLKIEN, John R. R. O Senhor dos Anéis. 1.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, citando apenas alguns exemplos. 2 Como tipos sociais, nos referimos às diferentes classes sociais, os profissionais, personalidades religiosas, políticas, papel exercido na comunidade e outras categorizações pelas quais a sociedade palestinense da época de Cristo era composta. 1
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respectivas personagens com base em pressupostos sobre a mimese. A pesquisa tem caráter eminentemente bibliográfico, com fundamento na poética de Aristóteles e nos estudos de Costa (1992), Lopes (1987), Sant’anna (2010) e Spina (1967). A parábola “O bom samaritano”, escolhida para compor o corpus, foi selecionada por ser uma narrativa bíblica mais conhecida, inclusive por quem não domina o saber teológico. É comum encontrar instituições de caridade e hospitais, por exemplo, usando o nome “bom samaritano”. Não obstante, na escolha, buscou-se a coerência com a proposta de evidenciar os principais traços (a)miméticos que formam o gênero, posto que são narrativas do Novo Testamento bíblico, e, como esclarece Sant’anna (2010), nesse contexto o gênero da parábola mais se desenvolveu e constituiu sua forma literária com características bem definidas. A parábola “O bom samaritano” está incluída no livro (neotestamentário) de Lucas, capítulo 10, sendo utilizado o texto traduzido por Almeida (2010), versão revista e atualizada – RA (2009). A abordagem apresentada poderá contribuir para a compreensão do discurso da parábola mediado por suas estratégias literárias e, consequentemente, sua reafirmação enquanto gênero autêntico, cujas ideias estão presentes em grande parte do pensamento ocidental, em sua literatura e imaginário popular. Isso posto, do próprio funcionamento da linguagem, evidenciado nas parábolas, metafórico por natureza, a representação, ou mimese, é condicionada. E para compreender o processo criativo da parábola jesuânica, a próxima seção trata do conceito de representação, que se remonta à mimese, um dos termos mais lembrados nas discussões sobre a arte. 1. Representação: (a)mimetismo O sentido de representação remete-nos à mimese dos gregos, um conceito, quiçá, dos mais controversos, dentre os primeiros pressupostos sobre a arte, pensados por Sócrates, Platão e Aristóteles. A mimese, a qual os filósofos gregos do período clássico definiram como a essência da arte, é ainda passível de ser repensada. A definição de mimese não é explicitamente clara na Poética de Aristóteles, no entanto, Spina (1967) estabelece indícios do seu conceito através de algumas passagens do texto aristotélico. Segundo ele, o ato poético consiste em contar as coisas como
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poderiam ter acontecido ou desejaríamos que ocorressem, seguindo o princípio da verossimilhança3, isto é: “não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade” (ARISTÓTELES, 1973, p. 451). A verossimilhança, uma das categorias ligadas à mimese, diferente da noção de verdade e/ou verdadeiro, é entendida na ordem artística, narrativa, de tudo que se relaciona às possibilidades simbólicas ligadas ao ser humano e à História. Consequentemente, a mimese é considerada uma idealização da realidade, que, admitindo qualquer objeto como mote para a arte e o prazer estético, encontra-se no próprio processo artístico de estilização da realidade, na própria imitação. A mimese pode ser entendida como representação da natureza. O artista a idealiza, não a reproduz fotograficamente. Desse sentido advém o entendimento da mimese como representação, na acepção contida na versão francesa da Poética (de Dupont-Roc e Lallot) a qual aponta o caráter da polivalência semântica da mimese: a representação não privilegia nem o objeto-modelo (o empírico), nem o objeto produzido, mas contém a ambos simultaneamente, esclarece Costa (1992). Entendendo a mimese como até aqui se expôs, temos a parábola como uma narrativa mimética, posto que se trate de arte literária, a qual é também representação. Por isso, falar da parábola como narrativa amimética parece, a princípio, uma contradição. No entanto, a compreensão da parábola como narrativa amimética, trazida por Sant’Anna (2010), é imprescindível para o entendimento da constituição das categorias narrativas – personagem, espaço e tempo – da parábola jesuânica, isto é, sua forma composicional. A partir de longo estudo, ele trouxe grande contribuição para a formação genericista da parábola. Para esse autor, a parábola é amimética no sentido de oposição à mimese entendida por Anatol Rosenfeld na obra Texto/contexto (1976). Este último pensa a mimese como cópia, reprodução da realidade empírica. Dizer que a parábola é amimética, significa afirmar que ela não reproduz a realidade diretamente, porém está 3
Termo, definido por Aristóteles, que indica a qualidade do que é verossímil, do que é semelhante à verdade, que tem a aparência de verdadeiro, que não repugna à verdade provável. O caráter verossímil é um dos principais aspectos da mimese. Spina (1967) indica que, apesar de estabelecer-se na realidade, na “coisa” representada, a supera, magnífica e a “universalisa”. Desse modo, seguindo a interpretação do autor, podemos considerar a mimese como estilização, ou representação da realidade.
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mais para uma metaforização da realidade, ou ainda “uma modalidade em que a realidade é tratada mais à maneira do conto maravilhoso russo” (SANT’ANNA, 2010, p. 169). O conto russo, embora retire o eu material literário da realidade, o faz de maneira reduzida, indireta, submetendo-o às regras internas do conto em si, esclarece Sant’Anna. Destarte, essa oposição à mimese, por sua vez, não se contradiz com o que foi exposto, pois também se considera a mimese como uma produção muito além de uma cópia da realidade. Logo, as reflexões de Sant’Anna demonstram a recusa a expressões artísticas da mera reprodução ou cópia da realidade empírica. Com tais considerações, nota-se que a parábola jesuânica apresenta as personagens, o tempo e o espaço sem reproduzir ou copiar a realidade sensível. No presente trabalho enfoca-se as personagens. Estas são apresentadas sem nomes próprios, sem a individualidade marcada por essa distinção, o que gera maior identificação com o público. Em geral, são identificadas como lavradores, fazendeiros, juízes, reis, servos, pais, filhos e demais tipos sociais. É a escolha dos elementos composicionais do discurso – a presença do eu e do outro, a responsividade inerente ao gênero parábola, sua extensão e (in)acabamento – que delineiam, indiretamente, o perfil tipificado de cada uma. Assim, apresentam-se as características da personagem na seção seguinte, recorrendo, para um contraponto, ao modo que as personagens clássicas eram construídas. 1.1. A personagem clássica e a personagem jesuânicas Como o sentido de representação remete aos antigos gregos, para compreensão da personagem reporta-se aos clássicos da antiguidade, cuja abordagem fica por conta de Aristóteles em sua Poética. Na tragédia grega a personagem, o herói, tem toda sua vida guiada pela moira, pelo destino. Para Aristóteles (1973), a ação é o elemento fundamental na caracterização da personagem trágica, a qual sofre o efeito dessas ações, seja para a dita ou para a desdita. Do conflito entre sujeito e vontade, objeto e determinação, agente e paciente, o herói trágico, dono da ação, é vítima da fatalidade e decisão dos deuses e dos golpes do destino, que já estavam revelados por um oráculo, como se observa no neste trecho da tragédia Édipo Rei, de Sófocles:
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Sem o conhecimento de meus pais [adotivos], um dia fui ao oráculo de Delfos mas Apolo não se dignou de desfazer as minhas dúvidas; anunciou-me claramente, todavia, maiores infortúnios, trágicos, terríveis; eu me uniria um dia à minha própria mãe e mostraria aos homens descendência impura depois de assassinar o pai que me deu vida. (SÓFOCLES, 2001, p. 58).
Tentando fugir desse destino, a personagem age, em alguns momentos, impelido por sua vontade: Diante dessas predições [do oráculo] deixei Corinto guiando-me pelas estrelas, à procura de pouso bem distante, onde me exilaria e onde jamais se tornariam realidade – assim pensava eu – aquelas sordidezas prognosticadas pelo oráculo funesto. (SÓFOCLES, 2001, p. 59).
Embora suas ações o tenham levado à ruína, ele tem caráter superior. Pois, foi por tentar evitar tomar tais atitudes que ele, desafortunadamente, aproximou-se das ações que tanto abominava. Tudo foi descoberto quando buscando solucionar um problema de seu reino e ao buscar também suas origens, descobriu que ele era o pivô do mal que acometia seu povo. Mesmo sendo aclamado herói, após decifrar o enigma da esfinge e, por isso, tornar-se rei de Tebas, por ironia do destino, havia seguido o caminho que ele mesmo abominara, de matar o pai e casar-se com a própria mãe: Ai de mim! Ai de mim! As dúvidas desfazem-se! Ah! Luz do sol. Queiram os deuses que esta seja A derradeira vez que te contemplo! Hoje Tornou-se claro a todos que eu não poderia nascer de quem nasci, nem viver com quem vivo e, mais ainda, assassinei quem não devia! (SÓFOCLES, 2001, p. 82).
Como Édipo, a personagem heroica clássica é aclamada por suas qualidades e, mesmo em infortúnio, preserva caracteres de seres elevados, segundo a explicação aristotélica. Esse tipo de personagem é uma figura coerente, criada a partir da
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observação do real4. Distancia-se do homem comum, no sentido que atribui Aristóteles (1973), e constitui dinamizador sobre o qual se desenrola toda a ação. Enquanto nas obras clássicas as personagens protagonistas representam classes mais abastadas, isto é, os heróis são pessoas de prestígio social – reis, rainhas, sacerdotes, príncipes, princesas, guerreiros, a parábola jesuânica traz como personagem o camponês oriental e demais classes populares, na sua maioria excluídos, que abundavam o Oriente Próximo. Ademais, na parábola, a indeterminação da personagem serve ao caráter didático desse gênero, indiciando a moral e corroborando com o discurso veiculado pela narrativa literária. Dessa forma, diferente da tragédia grega, as personagens da parábola são construídas com a função primeira da parábola jesuânica: o ensino ou a persuasão. No entanto, o gênero é narrativa, arte literária. E a personagem, mais que um elemento dentro de um discurso, evidencia um sentido metafórico que alude a aspectos próprios da cultura judaica, temas do cotidiano do “Oriente judeu”. 2. A arte da parábola e a metáfora: “lado a lado” na representação O caráter literário das parábolas serve a fins específicos que não seriam alcançados sem o uso dele. O processo metafórico viabilizado pela parábola, produz uma compreensão dos leitores/ouvintes que, como conclui Sant’Anna (2010, p. 147148) “não poderia ser reduzidos para nossa maneira convencional analítica de comunicar”. Esse processo metafórico pode ser evidenciado na representação da personagem. A tipificação dessa categoria pode ser entendida como um caráter metafórico das classes sociais na constituição das representações no texto da parábola, os tipos sociais5, possibilitam maior identificação com o público e remetem ao sentido que é apreendido no escopo central de cada parábola. Nota-se que há uma relação entre metáfora e representação, entre essa primeira e o processo criativo. Sobre a mimese, Lima (2009, p. 37) relembra que “o sujeito cognoscente não só se imita como modifica e constrói esquemas através das suas ações 4
Seguindo o princípio da verossimilhança.
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Como tipos sociais, nos referimos às diferentes classes sociais, os profissionais, personalidades religiosas, políticas, papel exercido na comunidade e outras categorizações pelas quais a sociedade palestinense da época de Cristo era composta.
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interativas com o mundo concreto no qual é um sujeito ativo”. Logo, pode-se entender a representação também como um conceito vinculado ao processo metafórico. Na Poética, o filósofo de Estargira concebe a metáfora como uma transposição de sentido: “consiste no transportar para uma coisa o nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou da espécie de uma para a espécie de outra, ou por analogia” (ARISTÓTELES, 1973, p. 462). Essa ideia aristotélica pode, ademais, ser entendida mais além de uma “comparação abreviada” ou mera transposição de sentidos. Semioticistas, como Lopes (1987) não a consideram como um luxo, um procedimento redundante ou mero ornamento do discurso. Ele esclarece que sem ela, em certos discursos, haveria perdas no conjunto das informações transmitidas. Assim: “é o conjunto dos valores implicados na metáfora que faz dela um modo de dizer insubstituível por qualquer outro modo de expressão não figurada” (p. 102). De modo semelhante, a configuração da personagem na parábola indica um sentido que não seria possível comunicar se essa categoria narrativa fosse apresentada de outro modo que não o indeterminado. As construções metafóricas sugerem aspectos que as palavras ou expressões com sentido literal não poderiam apresentar, desse modo, seu campo de uso pode ser considerado o ambiente de formação de conceitos que de outra maneira não teriam condição de êxito na comunicação ou seriam impossíveis. A parábola pode ser considerada esse ambiente de formação conceitual. Como um símile ou uma metáfora, esse gênero retoma elementos já conhecidos e mostra sentidos outros. Como elementos diferentes, como as instâncias do natural para falar de assuntos espirituais ou morais, encontram-se as personagens da parábola, as quais retratam cenas cotidianas, todavia representam princípios que estão além do rotineiro. As personagens portam qualidades inesperadas aos tipos sociais que as caracterizam. De acordo com a discussão levantada, pode-se afirmar que a personagem da parábola indica a constituição da metáfora, que constrói o sentido pela diferença e, assim, possibilita o confronto entre o eu e o outro. A parábola é, sobretudo, a justaposição de duas coisas que divergem em quase todos os seus aspectos e são concordantes em alguns deles.
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2.1 Personagens: anonimato e metaforização da vida As personagens jesuânicas são construídas de tal modo a corresponder à função primeira desse gênero narrativo: o ensino. Diferente da tragédia, a parábola utiliza a linguagem artística com o objetivo moralizante, daí o anonimato das personagens, possibilitando identificação com ouvintes/leitores e atemporalidade, pode representar a mensagem moral implícita na história. A personagem da parábola, mais que um elemento dentro de um discurso, evidencia um sentido metafórico que remete a aspectos próprios da cultura judaica, do cotidiano do oriente judeu. Em “O bom samaritano” pode-se identificar um esquema de inversão na categoria das personagens. Os detalhes do enredo foram pensados no intento de confrontar a possível opinião que o doutor da lei defendia e que tinha interesse em discutir com Jesus. Esse mestre dirigiu-se a Jesus interrogando-o sobre algumas questões referentes à Lei Moral Judaica. Kistemaker (1992) assinala que o estudioso com essa indagação queria testar Jesus, ouvir sua explicação de como obter a vida perfeita em todos os sentidos, apesar de que, ele mesmo não era ignorante no tema. Havia uma intencionalidade não explícita em sua pergunta, ele queria, como outros religiosos da época, encontrar alguma controvérsia ou falha no discurso e na vida de Jesus. No entanto, não obteve uma resposta como esperava. É nessa tensão discursiva que Jesus utiliza a parábola no diálogo que se desenvolve, e, por conhecer o tom de seu interlocutor, ele responde com uma narrativa literária. Entretanto, ao invés de cair na armadilha de levantar uma controvérsia, o narrador de Nazaré suscitou a sua resposta vinda do próprio interrogador, utilizando o gênero dialético. Após perguntas e respostas, a tréplica de Jesus, por sua vez, advém através da contação da parábola e depois, uma pergunta com a qual ele indica a moral da história. Certo homem descia de Jerusalém para Jericó e veio a cair em mãos de salteadores, os quais, depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem muitos ferimentos, retiraram-se, deixando-o semimorto. Casualmente, descia um sacerdote por aquele mesmo caminho e, vendo-o, passou de largo. Semelhantemente, um levita descia por aquele lugar e, vendo-o, também passou de largo. Certo samaritano, que seguia o seu caminho, passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele. E, chegando-se,
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pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho; e, colocando-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele. No dia seguinte, tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: Cuida deste homem, e, se alguma coisa gastares a mais, eu to indenizarei quando voltar. Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? (Lucas 10. 3036).
As personagens da parábola “O bom samaritano”, foram, então, construídas para problematizar a questão do amor ao próximo, tanto o homem assaltado quanto o que o ajudou. Começando pela primeira personagem que aparece na história, apesar de não fugir à representação comum às outras parábolas, sua caracterização tem papel fundamental nessa parábola: o viajante que é assaltado. A condição em que esse homem se encontra após o assalto não é um incidente apenas curioso. Bailey (1985) indica que, como as marcas de cultura eram elementos de distinção social, Jesus utiliza-as como recurso suas parábolas para construir seu discurso, metaforizando os tipos sociais. Os sacerdotes e doutores da lei consideravam o “próximo” apenas seus iguais na religião e nacionalidade. Na época, a Palestina continha um grande número de comunidades étnico-religiosas que usavam diferentes línguas e dialetos e tinham costumes próprios. Para identificar um desconhecido, bastava ouvir sua maneira de falar ou seu modo de vestir. Como o homem representado na parábola ficou inconsciente “meio morto” após sofrer o assalto, não havia como um viajante identificá-lo como um compatriota judeu por sua fala, nem por suas roupas, pois os ladrões haviam “lhe tirado a roupa”. O ouvinte daquela parábola, então, pergunta-se se aquele desconhecido fosse alguém passível de receber sua ajuda, quem o ajudaria? Nesse momento, evidencia-se a assimetria entre “eu” e o “outro”: justamente um samaritano, um “diferente” é quem se compadece do assaltado. Os samaritanos eram odiados por quem pertencia ao grupo étnico judaico por não serem considerados “racialmente puros”, pois eram miscigenados. Por isso, houve quebra da expectativa. Além do mais, após terem passado duas figuras judaicas – sacerdote e o levita -, o público esperava o aparecimento de um judeu leigo. Era comum que essas três classes de pessoas que oficiavam no Templo em Jerusalém fizessem o trajeto descrito na parábola – descessem de Jerusalém para Jericó relativamente durante o mesmo período.
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Ademais, se a história fosse de um judeu nobre ajudando um samaritano teria sido absorvida com mais facilidade, não haveria a representação da problemática que aquele doutor da lei fazia parte e ao preconceito que defendia. Bailey (1985) acrescenta que para entendermos a coragem e ousadia dessa parábola basta imaginarmos alguém contando a história de um herói israelense aos palestinos árabes. A personagem do samaritano, que também seguia a Torá (a lei judaica), teve uma atitude moralmente superior aos líderes religiosos ouvintes. Dessa maneira, através da representação da personagem, “a parábola é um ataque mortal contra os preceitos comunais e raciais” (BAILEY, 1985, p. 101). Ela constitui justamente o elemento surpresa de que é formada a metáfora: uma figura abominável para os judeus ortodoxos, sendo herói da parábola, contraria as expectativas dos ouvintes e constitui o significado que seu autor pretendia arguir aos interlocutores. Dito de outro modo, a personagem metaforiza o sentido moral que o narrador pretendeu ensinar – o amor ao próximo, e este, não sendo restrito a determinados credo religioso, etnia, condição social etc. Diferente da tragédia, em que as ações da personagem corroboram com o efeito catártico pretendido na arte; na parábola essas ações evidenciam o objetivo de ensinar/persuadir. A personagem traz à tona indícios da moral que deve ser seguida, um confronto com atitudes que refletem/refratam as do próprio ouvinte. Nessa situação, o doutor da lei pode apenas dar uma resposta prevista pelo narrador da parábola e assimétrica para seus próprios conceitos, concluindo que o próximo do homem assaltado foi, justamente, a classe de pessoas que ele não considerava como próximo: “Aquele que teve misericórdia dele”. Ao que Jesus conclui seu discurso com a indicação: “Vá e faça o mesmo.” (LUCAS, 10: 37). Considerações finais A investigação realizada permitiu a percepção dos discursos introduzidos pela arte literária, via representação. Os conceitos clássicos podem ser (re)interpretados a outros gêneros, não apenas à tragédia grega. A parábola estudada demonstra que seu autor utilizou uma linguagem narrativa adequada aos seus interlocutores, com temas do cotidiano, e construiu, assim, a estratégia para atingir seus objetivos didáticos.
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A arte de narrar histórias, neste caso, a parábola jesuânica, indicia também o conhecimento moral, filosófico ou religioso, mas esse saber, em geral, desvela-se via representação, mimese. Na parábola, a personagem metaforiza o sentido moral que o narrador apontava, confrontando conceitos que seu ouvinte defendia, mostrando-lhe, com a própria configuração dos elementos narrativos, seu “equívoco” na interpretação da Lei. Referências ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre: Globo, 1973. BAILEY, K. E. A poesia e o camponês: uma análise literária-cultural das parábolas em Lucas. Trad. Adiel Almeida de Oliveira. São Paulo: Nova Vida, 1985. BÍBLIA SAGRADA. Tradução de João Ferreira de Almeida. Ed. revista e atualizada no Brasil. 2 ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. COSTA, L. M. A poetica de Aristoteles: mimese e verossimilhanca. São Paulo: Atica, 1992. FRYE, N. O Código dos códigos: a Bíblia e a literatura. Trad. de Flávio Aguiar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. GIORDANO, Alessandra. Contar histórias: um recurso arteterapêutico de transformação e cura. São Paulo: Artes Médicas, 2007. KISTEMAKER, Simon J. As parábolas de Jesus. Trad. Eunice Pereira de Souza. São Paulo: Presbiteriana, 1992. LIMA, Aldo de. Metáfora e cognição. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009. LIMA, L. C. Mímesis e modernidade: formas das sombras. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003. LOPES, Edward . Metáfora: da Retórica à Semiótica. São Paulo: Atual, 1987. SANT’ANNA, Marco Antonio. O gênero da parábola. São Paulo: UNESP, 2010. SPINA, S. Introdução à poética clássica. São Paulo: FTD, 1967. SÓFOCLES. A trilogia tebana. 9. ed. Trad. Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001.
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A REPRESENTAÇÃO DA IDENTIDADE JUVENIL E INSERÇÃO SOCIAL NA LITERATURA DE AUTORIA INDÍGENA: A NARRATIVA DE YAGUARÊ YAMÃ Alice Áurea Penteado Martha (UEM) Entrelugar, transculturalismo O mercado editorial brasileiro, no que se refere à literatura para crianças e jovens, tem publicado cada vez mais obras que refletem aspectos da cultura nacional, buscando, em fontes histórico-culturais diversas, motivos e temas para a renovação de sua produção. Não tem sido diferente o enfoque das questões relativas aos povos indígenas do país. Vistos, desde a Carta de Caminha, como elementos exóticos da terra, os índios, indivíduos passivamente convertidos ao pensamento religioso dos europeus, com o auxílio da íntima conexão entre o código linguístico e o código religioso, perdem sua individualidade linguística e suas convicções do sagrado, substituídas pela crença e pela língua europeias (SANTIAGO, 1978: 16). Nas origens e formação do sistema literário brasileiro, os indígenas, crianças ou adultos, exerceram a função de antagonistas, em prol da valorização do herói branco, compuseram a paisagem ou foram adjuvantes do conquistador de suas terras. As figuras indígenas, forjadas a partir de identidades europeias, por autores brancos, mostravam-se incapazes de relatar, com voz própria, suas crenças e costumes. No final do século XX e início do XXI, porém, observamos o surgimento de uma produção diferenciada, também voltada ao público infantil e juvenil, cuja autoria pretende assumir a construção da identidade social e cultural indígena. Como consciência coletiva, que determina e regula todas as atribuições do que significa ser ou não ser parte da comunidade indígena, buscando, inclusive, definir oposições e convergências em relação aos demais subsistemas literários, essa produção, ao apresentar fortes traços de resistência e de afirmação identitária, ocupa um lugar utópico, uma zona de confluência de vozes silenciadas durante os 500 anos de colonização do país.
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Nossa hipótese de trabalho, neste artigo, é a de que, embora tais objetivos sejam inerentes às criações de grupos minoritários, essas produções, ao tratarem preponderantemente dos mitos das diversas nações dos povos da floresta, não tematizam a inserção da criança indígena na sociedade brasileira contemporânea, o lugar por ela ocupado, tanto nas periferias de comunidades urbanas, para onde têm migrado índios em busca de estudo e de trabalho, como na aldeia, espaço porventura ainda habitado por ela. Assim, a partir de uma visão panorâmica sobre essa produção, refletimos, por um lado, sobre o conceito de entrelugar – tanto da literatura como do ambiente social ocupado pela criança indígena -, termo cunhado por Silviano Santiago, em Uma literatura nos trópicos (1978), Vale quanto pesa (1982) e Nas malhas da letra (1989); por outro, discutimos questões relativas à identidade, com fundamentos de Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade (2002) e Da diáspora – identidades e mediações culturais (2003), principalmente, bem como sobre noções referentes ao transculturalismo, entendido como entrelaçamento de culturas e da realidade social e individual, em leituras como La transculturación, concepto definitório (1982), de Fernando Ortiz, Itinerários transculturales (1999), de James Clifford e Americanité et mobilités transculturelles (2009), de Zilá Bernd, entre outras. Tais leituras levam-nos à conclusão que a infância construída por essa literatura não pode ainda representar o processo transcultural da criança, entendido em seus três momentos - aculturação, desaculturação parcial e neoaculturação -, que transita entre a cultura branca e a indígena, atravessando constantemente tais fronteiras, Para pensarmos sobre a questão do entrelugar da narrativa na literatura infantojuvenil brasileira bem como sobre o espaço dedicado à infância na sociedade, propósito deste texto, consideramos essa produção em relação a formas de inserção no quadro atual da literatura em pauta, enfrentando a realidade como se apresenta, com problemas e potencialidades, uma etapa de conquista de lugar no território ocupado, não de simples “inversão de posições”, nas palavras de Silviano Santiago (SANTIAGO, 1982: 19-20). Ao mesmo tempo, procuramos comparar a realidade experimentada pela criança nas comunidades indígenas à sua representação simbólica, a personagem infantil e sua atuação no mundo narrado.
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O conceito de entrelugar, cujas noções procuramos adaptar para explicar modos de inserção do discurso literário de autoria indígena no sistema consolidado da literatura brasileira, é de Silviano Santiago e foi cunhado no ensaio “O entrelugar do discurso latino-americano”, publicado em Uma literatura nos trópicos (SANTIAGO, 1978: 11 a 28), para definir o lugar intermediário ocupado pelo discurso literário latino-americano, em relação ao europeu. Vários termos têm sido empregados desde então para designar movimentos semelhantes: lugar intervalar, interstícios, lugar de fronteira, entre outros. Uma das explicações para o afastamento da cultura indígena da europeia e, por contiguidade, da brasileira branca, é a aquisição do código da linguagem escrita do conquistador: “os índios perdem sua língua e seu sistema do sagrado e recebem em troca o substituto europeu” (SANTIAGO, 1978: 16). Ainda segundo Santiago, “é preciso que aprenda(m) primeiro a falar a língua da metrópole para melhor combatê-la em seguida” (SANTIAGO, 1978: 22). A consideração do entrelugar como espaço a ser preenchido leva-nos a pensar em uma conquista de território e formas de pertencimento de que pode se valer a produção de literatura infantojuvenil de autoria indígena no sistema literário contemporâneo, a partir do diálogo entre culturas e linguagens, propiciando o jogo entre o particular e o universal. Esse pensamento pode ser completado pela visão de Nubia Jacques Hanciau: Quando a história da literatura das Américas for capaz de romper com a concepção do universalismo metropolitano centrado na Europa, quando forem valorizadas as variantes diferenciadoras de sua produção em função de uma literatura geral, a cultura intelectual poderá conquistar, de maneira endógena, seus espaço de enunciação na história da cultura, sem que isso seja uma concessão condescendente ao bom selvagem, que produz textos estranhos aceitos como curiosidade por aqueles que se consideram detentores do juízo internacional (HANCIAU, 2010: 127-128).
A discussão sobre o conceito de transculturação aponta a origem do termo no
antológico estudo de 1940, Contraponto cubano del tabaco y del ron, em que o escritor cubano, Fernando Ortiz, questiona a concepção de “aculturação”, a partir da qual a antropologia interpretava as perdas sofridas por determinadas culturas em contato com outras, como podemos ler na publicacão de 1983, Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 1983:86-90):
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Entendemos que o vocábulo transculturação expressa melhor as diferentes fases do processo de transição de uma cultura a outra, porque este não consiste somente em adquirir uma cultura, que é o que a rigor indica o termo anglo-saxão “acculturation”, senão que o processo implica também necessariamente a perda ou o desenraizamento de uma cultura precedente, o que se poderia chamar de uma parcial “desaculturação”, e, ademais, significa a consequente criação de novos fenômenos culturais que poderiam denominar-se “neoculturação”.
As concepções de Ortiz, bem como de outros estudiosos, embasam as
considerações de Ángel Rama sobre a narrativa latino-americana, a partir das quais o crítico uruguaio procura identificar traços particulares e o caráter problemático dessa produção, uma vez que resulta da dialética entre importação e adaptação de padrões estéticos impostos pela cultura dominante. No artigo “Los processos de transculturación em la narrativa em latinoamericana (1974), e no livro La transculturación narrativa em latinoamérica (1982), Rama, ao refletir sobre o conflito entre vanguardismo e regionalismo, trata do que denomina “literatura de transculturação”, apropriando-se do termo cunhado por Ortiz. Para um e para outro, a transculturação não pode ser a simples aquisição de uma determinda cultura; trata-se de processo complexo, dialético, constituído por aculturação, desaculturação parcial e neoaculturação. Embora o conceito de Rama tenha origem no pensamento de Ortiz, correções de rota possibilitam ao crítico uruguaio a compreensão de que a fase de remanejamento cultural, resultante de perdas, seleções, assimilações e redescobertas, é a de maior importância criativa no processo de transculturação. Para Rama, há três operações essenciais no processo de transculturação literária em narrativas (no conflito entre vanguardismo e regionalismo): a língua, a organização literária e a visão de mundo. No que se refere ao uso da língua, em um primeiro momento, os narradores procuravam alternar a norma culta da língua com a fala das personagens, valendo-se de recursos que apontassem as diferenças de linguagem: aspas, glossários e notas explicativas, por exemplo. Depois, os criadores deixam de marcar as diferenças entre norma culta e a oralidade, eliminam recursos anteriormente citados, propondo na prática a unificação linguística do texto, reintegrando-se à comunidade linguístico/cultural americana. Ao dar voz à diversidade cultural, o escritor propicia o diálogo entre tradição popular e produção erudita.
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Quanto à organização literária, ou a estruturação narrativa, Rama observa que, como “a distância entre as formas tradicionais (locais) e as modernas (européias) era muito maior” (RAMA, 1982ª, p.43), escritores como João Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas, Juan Rulfo, em Pedro Páramo, García Márquez, em Cem anos de solidão, buscaram “mecanismos literários próprios, adaptáveis às novas circunstâncias e suficientemente resistentes à erosão modernizadora. A singularidade das respostas corresponde a uma sutil oposição às propostas modernizadoras” (RAMA, 1982ª, p.44). Nesse nivel, a construção de mecanismos literários próprios adapata-os às circunstâncias contemporâneas. Rama aponta, por fim, a importância do terceiro mecanismo do processo de transculturação, a visão de mundo, espaço de consolidação de valores e ideologias, bem como de resistência às influências estrangeiras. Sob esse aspecto, produzem-se significados e estabelecem-se valores, que, por meio da recuperação de estruturas da herança cultural e da incorporação de elementos tranculturadores, propiciam a criação de novos relatos míticos. Zilá Bernd, retomando concepções de diversos teóricos, considera, no artigo “Deslocamentos conceituais da transculturação” (2002, p.1), a multiplicidade de conceitos. Para ela, a transculturação caracteriza-se pela transição entre culturas, propiciando a criação de novos produtos culturais e não perdas e apagamentos, como previa Ortiz. O prefixo trans, que comporta as noções de ultrapassagem, de passar além, de sair de si mesmo, gera novas formas de conhecimento e de relação com o mundo, sendo, portanto, mais performante, no incontornável contexto de mundialização no qual vivemos, do que inter(cultural), multi(cultural) ou re, como em reatualização, proposto por Jocelyn Létourneau, pois o processo de transculturação parece ser aquele que melhor se ajusta à realidade da condição pós-moderna onde há trocas, perdas e ganhos nas passagens de uma cultura à outra (BERND, 2005, p. 149-150).
A concepção de Zilá Bernd sobre transculturação aponta para a formação cultural como um produto híbrido, que resulta da mescla provocada pelo choque entre culturas ou da recuperação de elementos da herança cultural, respeitando, porém a diversidade e autonomia das formas culturais emergentes (americanas) em relação à tradição (européia).
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No que se refere aos estudos sobre a representação dos povos indígenas na literatura, no Brasil, destacamos o pensamento de Antonio Candido, que aponta a tendência de desvelamento da diversidade da literatura brasileira em relação à portuguesa, notadamente, pela afirmação do “ser brasileiro”, que enfatizava especificidades do país - o índio e a natureza - o que confere ao indianismo a possibilidade de representar a tradição, configurando o homem nativo como mito nacional. Candido enquadra essa particularidade em uma tendência mais ampla, a “genealógica”, cujo esforço concentrava-se na definição do “específico brasileiro”, especialmente, a partir de uma visão grandiosa e eufórica da natureza e do índio. Autores e obras constituem movimento coeso, valorizam a tradição local, a grandiosidade da terra e o heroísmo dos homens, “criando o mito da nobreza indígena, que redimiria a mancha da mestiçagem; e chamaram princesas às filhas dos caciques, incorporadas à família do branco a título de companheiras ou esposas [...]” (CANDIDO, 1976: 173). A construção da criança na literatura infantil e juvenil de autoria indígena Se a literatura infantojuvenil, até meados do século XX, não permitira ao índio o desempenho de papéis significativos e uniformes na construção do imaginário de crianças e jovens, no final desse século, surgem várias narrativas com personagens indígenas. Entretanto, na maioria dos casos, são antagonistas, obstáculos ao sucesso da empreitada branca de colonização, compõem o mundo natural que deve ser domado. Apenas Corumi, o menino selvagem (1956), de Jerônimo Monteiro, procura fugir das imagens estereotipadas com que os escritores inseriam tais elementos na literatura infantojuvenil brasileira, inclusive, As aventuras de Tibicuera (1937), narrativa de Érico Veríssimo que, apesar da voz narrativa indígena, mantém os estereótipos já apontados na representação literária dos povos da floresta. Essa produção começa a configurar-se como elemento do subsistema infantojuvenil no sistema literário nacional, no final do século XX, e já apresenta, no primeiro decênio do século XXI, quantidade significativa de autores e obras, público leitor, bem como grande número de pesquisas acadêmicas em andamento e eventos literários específicos. Graça Graúna, autora e pesquisadora da literatura indígena, considerando o lugar dessa produção, em sua tese de doutoramento, observa seu “lugar
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utópico (de sobrevivência), uma variante do épico tecido pela oralidade; um lugar de confluência de vozes silenciadas e exiladas (escritas) ao longo dos 500 anos de colonização” (GRAÚNA, 2003: 12). Para Graúna, a história de autores indígenas e a recepção de pequeno público, também diferenciado, responsabilizam-se pelo resgate e preservação da própria cultura. Para ela, Gerando a sua própria teoria, a literatura escrita dos povos indígenas no Brasil pede que se leiam as várias faces de sua transversalidade, a começar pela estreita relação que mantém com a literatura de tradição oral, com a história de outras nações excluídas (as nações africanas, por exemplo), com a mescla cultural e outros aspectos fronteiriços que se manifestam na literatura estrangeira e, acentuadamente, no cenário da literatura Nacional. Como distinguir as especificidades da literatura indígena em meio ao processo de transculturação? Como reconhecer a existência dessa literatura, em meio a tantos “apagamentos”? (GRAÚNA, 2003, p. 13)
O primeiro livro escrito e ilustrado por um autor indígena foi Antes o mundo não existia (Livraria Cultura Editora, 1980), de Umúsin Panlõn Kumu e Tolmãn Kenhíri, é bilíngue (português e desâna) e conta a história da criação do mundo, conforme o mito desâna, povo do Alto do Rio Negro, na Amazônia, abrindo o caminho para muitos outros. Hoje, podemos considerar a existência de uma produção diferenciada, voltada ao público infantil e juvenil, cuja voz autoral pretende assumir a construção da identidade indígena. O corpo de autores indígenas de obras destinadas à leitura de jovens ampliouse a partir do final dos anos 80 do século passado, quando surgem as primeiras produções no Brasil. Entre estes novos autores, anotamos Olivio Jekupé, Eliane Potiguara, Graça Graúna, Daniel Munduruku, Luiz Karai, Giselda Jera e Kerexu Mirim, Yaguarê Yamã, Kaká Werá Jecupé, Naÿ- Niná. Se o conjunto ainda não compõe uma tradição, caminha decididamente para isso, pois os escritores circulam pelos espaços do campo literário, com obras premiadas, e constam inclusive de catálogos de editoras, listas de prêmios, indicações de programas de leitura, trabalhos acadêmicos e da crítica especializada. Como toda produção literária em condição intervalar, a de autoria indígena, considerada entrelugar no subsistema da produção para crianças e jovens, tem apresentado temas sobre autoconhecimento, identidade indígena, história, recontos de mitos e lendas, além de ética, cidadania, ecologia e questões culturais. Neste texto,
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porém, dada a impossibilidade de tratar de todas as produções e temas levantados, consideramos o processo de transculturação em obras de Yaguarê Yamã, em razão especialmente do papel de ambos no cenário editorial brasileiro, recorte que não pretende desmerecer demais obras e autores mencionados. A leitura de obras como Sehaypóri, o livro sagrado do povo saterê-mawé (2007), Murugawa. Mitos, contos e fábulas do povo Maraguá (2007), Kurumi Guaré no coração da Amazônia (2007), Wirapurus e muirakitãs. Histórias mágicas dos amuletos amazônicos (2009) e Formigueir de Myrakãwéra, constata o importante papel que essa produção vem desempenhando no contexto literário brasileiro. Yamã: identidade indígena na produção contemporânea de literatura infantil e juvenil Yaguarê Yamã pertence ao povo Maraguá, do Amazonas; nasceu em Nova Olinda do Norte, na aldeia Yãbetue e, menino ainda, mudou-se para Parintins onde teve os primeiros contatos com a literatura. Em São Paulo fez o Curso de Graduação em Geografia, tornou-se escritor e, de volta a sua terra, leciona na escola pública. Como Daniel Munduruku, Yamã narra as memórias de sua nação como forma de preservação da cultura e do imaginário indígenas, em livros como Sehaypóri: o livro sagrado do povo saterê-mawé (2007); Murûgawa: mitos, contos e fábulas do povo maraguá (2007) e Wuirapurus e muirakitãs: histórias mágicas dos amuletos africanos (2009), entre outros; já em Kurumi Guaré no coração da Am azônia (2007) e As pegadas do kurupira (2008), narrativas que, embora constituídas pela visão de mundo, por personagens e pela ambientação do universo indígena e se identifiquem estreitamente com o real, buscam transfigurá-lo ficcionalmente. O primeiro grupo de obras incorpora mitos, lendas e histórias mágicas que recontam a origem dos elementos da natureza e o significado de amuletos que sustentam a crença dos diversos povos indígenas. Em Kurumi guaré no coração da Amazônia, é o relato, segundo o autor, “de uma parte da memória que guardo dos meus bons tempos de infância, do tempo em que vivi nesse lugar fantástico, cheio de aventuras, no coração da Amazônia” (Yamã, 2007: 07). A narrativa trata das aventuras da infância, das relações familiares e em comunidade, das experiências para a preservação da tradição, tanto culturais como de
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subsistência, da morte e ainda dos rituais de iniciação nas diversas etapas da vida na aldeia, como o da dança da tukãdera, ou waperiá, o rito que marca a passagem da infância para a fase adulta, no qual as mãos dos participantes recebem ferroadas das ferozes formigas gigantes da Amazônia, as tukãderas. Por fim, a mudança para o mundo dos brancos, a despedida do mundo de aventuras na floresta: “Estava indo morar e passar grande parte de minha juventude numa cidade, num mundo civilizado como dizem os brancos, onde a televisão impede a cultura tradicional de raciocinar” (Yamã, 2007: 76). Em As Pegadas do Kurupyra (2008), Yaguarê Yamã não se limita a recontar o mito do curupira nas tradições indígenas. A estranha criatura, com cabelos vermelhos, dentes verdes e pés virados para trás, protetor das florestas, mantém íntimo contato com o garoto Tuim, agindo em momentos importantes da narrativa. Ambos são solitários e se tornam companheiros de brincadeiras e aventuras, participando juntos do conflito narrativo, o momento em que encontram diversas espécies de animais aprisionadas em um acampamento de caçadores brancos; os meninos assustam os caçadores e libertam os bichos: “Com rapidez, os dois se aproximaram de mansinho e, sem fazer barulho, soltaram todos os bichos, que correram contentes, acordando aqueles homens maus que, atônitos com a algazarra, começaram a atirar para todos os lados” (YAMÃ, 2008: 34). A figura mítica, humanizada, apresenta sentimentos e emoções semelhantes ao do garoto, na medida em que revela, por exemplo, solidão, medo e apego à família. Quando ocorre o encontro entre Kurukawa (curupira) e Tuim, os meninos têm a mesma reação: “Amedrontado, o menino pulou dentro de uma moita ao lado do caminho. Ao vê-lo, Kurukawa arregalou os olhos e também pulou dentro de outra, em frente à que Tuim estava escondido. Os dois ficaram lá quietinhos” (YAMÃ, 2008: 20). A narrativa revela estrutura mais elaborada no que se refere, por exemplo, à posição do narrador que, embora conheça todos os pensamentos das personagens, permite que exponham com voz própria seus pontos-de-vista sobre o mundo em que se inserem - como comprovam os extensos diálogos entre os garotos -, vozes duplamente ameaçadas pelo mundo branco, adulto e civilizado, uma vez que são crianças indígenas. Há ainda preocupação em matizar a ambientação, de modo que tempo e espaço, com função determinada no mundo narrado, envolvam as personagens de maneira que a
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natureza também se torne personagem a ser defendida. Por vezes, porém, ao enfatizar a importância e o papel da natureza, o discurso do narrador descamba para o utilitário, aspecto ainda muito forte em narrativas de autoria indígena: “Tuim não sabia o nome daquele lago, mas não se importou, pois para a cultura indígena a natureza não tem dono e por isso as coisas não precisam ser nomeadas, a não ser que os espíritos mandem” (YAMÃ, 2008: 16). No que se refere ao processo de transculturação, primeiramente quanto ao uso da língua, Yaguarê Yamã, como os demais autores indígenas, mostra-se sujeito construído pela íntima conexão entre experiência primitiva e cultura dominante. Fruto da pósmodernidade, fragmentado culturalmente, resulta da integração e do diálogo entre a cultura “branca” e a ameríndia, revelando o domínio da “voz do senhor”, com o emprego de uma linguagem que valoriza e faz uso da norma culta, entremeada por raros termos indígenas, “tukãndera”, “pariká”, “çukuriju”, como vemos em Kurumi guaré no coração da Amazônia. Os vocábulos do idioma nhengatu aparecem em negrito no corpo do texto e são apresentados em glossário no final da obra: “Um exemplo do momento de ensinar era quando meu pai tecia algum yamaxy, com talas de warumã ou yasitara, e chamava os filhos para ensinar-lhes as técnicas de teçume (YAMÃ, 2007, p.28). Por vezes, o processo de construção linguística mostra-se diferente, como a inserção de diálogos entre personagens ou seres fantásticos, no dialeto nhengatu, do povo maraguara: Tão fatigadas, estavam para desfalecer quando ouviram vozes vindo de uma enseada: - Heirá e á... Typa’aneá... Ikatu! Heirá eá... Muirak ata eneá,... heiru! Ficaram em silêncio ouvindo aquelas palavras quase que cantadas: - Pia’ãk atoiá, erewá kiapoát, kawã! Pia’ãk atoá, erewá kiapoát, ka’hã! Era uma voz trêmula, parecia um lamento. Mas quem o entoava? (YAMÃ, 2009, p. 10-13).
Quanto à organização literária, há predominância das formas narrativas,
primordiais, resistentes às propostas modernizadoras, como em Kurumi guaré no coração da Amazônia. Trata-se de uma narrativa de memórias, gênero limítrofe, situado entre a autobiografia, o diário e as confissões, modalidades que propiciam, cada uma a seu modo, o transbordamento do “eu”. A diferença mais visível entre autobiografia e memórias é que a primeira tem como centro o relato objetivo e completo da existência
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do “eu” que narra; as memórias, por sua vez, permitem maior liberdade na organização dos acontecimentos e a inclusão de pessoas que podem ter participado dos fatos ao lado do autor. Nesse caso, além dos depoimentos pessoais, o relato pode conter registros históricos, que compreendem fatos políticos e sociais, costumes, ambientes e tendências artísticas. O narrador das memórias, protagonista que do interior do universo narrado relata suas aventuras e desventuras, é responsável, inclusive, pelo ponto de vista sobre o que narra. A compreensão desse aspecto considera, ainda, o posicionamento do narrador em relação à história, a chamada distância, não só temporal, mas afetiva, ideológica e ética. Naturalmente, pensamos que, em relação à distância temporal, o narrador se debruça sobre o passado e que, no momento da escritura, o “eu” que fala pode mostrarse diferente do “eu protagonista”, em razão das transformações impostas pela experiência, como no episódio em que o narrador relata a fuga de uma manada de porcos na infância: “Mas naquele momento passamos por um grande aperto, nossas mentes infantis é que não compreenderam o grau de perigo em que nos metemos. [...]. Nessas horas de perigo, não sei, não, ainda não éramos os heróis que queríamos parecer” (YAMÃ, 2007: 14). Por fim, no que tange à visão de mundo, apontado por Ángel Rama como espaço de consolidação de valores e ideologias, constatamos, em toda produção de Yaguarê Yamã e demais obras de autoria indígena, a predominância da recuperação das heranças culturais e a consequente ausência da incorporação de elementos transculturais, no caso, de sentimentos, emoções e experiências do mundo “branco”. A visão de mundo dos povos da floresta, nas obras em questão, permanece inalterada, sem trocas, perdas ou ganhos, no contato com a cultura. Não há produtos híbridos, que resultem do choque entre cosmovisões diferenciadas, mas narrativas que se fecham em seus mitos fundamentais. Em resumo, observamos que a produção literária de autoria indígena, representada neste texto por obras de Yamã, revela forte traço de resistência e valorização cultural, aspectos compreensíveis em momentos cruciais de afirmação identitária, aproximando-se do que Hall denomina “mercantilização da etnia e da alteridade”, para explicar o interesse pelo local em tempos de marcante homogeneização
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global (HALL, 2003: 77). Sob essa ótica, podemos compreender a ausência de histórias que tematizem, por exemplo, a inserção do jovem indígena na sociedade contemporânea brasileira, o lugar ocupado por eles nas regiões urbanas. São, porém, muito fortes e evidentes os sinais de que esse mergulho nas origens, como resistência a séculos de dissolução da identidade, pode propiciar a emergência de nova identidade, fragmentada pelo reconhecimento da alteridade, como convém ao homem pós-moderno, dinamizando o processo de enfrentamento e acomodação em que se encontram os criadores frente à construção do objeto artístico. Referências ACHUGAR, Hugo (2006). Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura. Trad. Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: Editora UFMG. CANDIDO, Antonio (1976). Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 5. ed. São Paulo: Editora Nacional. GRAÚNA, Graça (2003). Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Recife: UFPE. Tese de Doutorado. HALL, Stuart (2003). A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva & Guaracira Lopes Louro. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A. HANCIAU, Nubia (2010). “Entrelugar”. In: FIGUEIREDO, Eurídice (Org.) Conceitos de literatura e cultura. 2. ed. Niterói: EdUFF; Juiz de Fora: EdUFJF. SANTIAGO, Silviano (1978). Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva. SANTIAGO, Silviano (1982). Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. YAMÃ, Yaguarê (2007). Kurumi Guaré no coração da Amazônia. Ilustrações de Yaguarê Yamã. São Paulo: FTD. YAMÃ, Yaguarê (2008). As pegadas do Kurupyra. Ilustrações de Uziel Guaynê. São Paulo: Mercuryo Jovem.
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ENTRE A ILHA E O RIO, A MORTE E A VIDA: IMAGENS DO SAGRADO EM “UM RIO CHAMADO TEMPO, UMA CASA CHAMADA TERRA”, DE MIA COUTO Aline Camara Zampieri (PPGMEL/UFMS)1
Introdução Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra publicado em 2002 é sétima obra do escritor moçambicano Mia Couto. O romance dividido em vinte e dois capítulos, é narrado em primeira pessoa por Mariano, estudante universitário, que retorna a sua terra natal (depois de anos de ausência) para comandar as cerimônias fúnebres de seu avô Dito Mariano. O romance inicia-se a bordo do barco que levará o Mariano e seu tio Abstinêncio à Ilha de Luar-do-Chão, o lugar de origem do clã dos Malianes “ou, no aportuguesamento: os Marianos.” (COUTO, 2003, p.18). Aos poucos as personagens e suas histórias ainda carregadas de segredos vão sendo apresentadas como a do tio Abstinêncio, o mais velho dos filhos de Dito Mariano, magro e engomado, que um certo dia exilou-se dentro de casa pois constatou que “O mundo já não tem mais beleza” (COUTO, 2003, p.17). Ou da velha Miserinha, que não enxerga as cores. Chegando a ilha, Mariano reencontra a família: a avó Ducinelsa – que tinha os dedos deformados pelo trabalho de descascar o fruto de caju –, a bela e formosa tia Admirança, o tio mais novo e metido com a política Ultímio, o pai que tinha que aprender a ser pai Fulano Malta e um avô que está e não está morto, dado seu estado cataléptico pelo médico indiano Almícar Mascarenhas.
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Mestre em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-Graduação e Mestrado em Estudos de Linguagens pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Campo Grande.
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Em tom sempre poético, permeiam pela narrativa de Mia Couto tanto elementos da religiosidade dos bantos – grupos étnicos espalhadas pelo continente africano – quanto representações da religião cristã; ora em conflitos ora convivendo pacificamente, como se uma fizesse parte da outra. Apontar esses choques e desvendar algumas das imagens sagradas presentes na obra de Mia Couto é o objetivo deste artigo.
Entre a ilha e o rio, a morte e a vida Eliade (2012) define o sagrado em oposição ao profano pois, “o homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano” (ELIADE, 2012, p.17). Ou seja, quando nos deparamos com um fato misterioso, algo “de ordem diferente” que não pertence ao nosso mundo natural e/ou profano estamos diante de um acontecimento sagrado. É o que acontece no sétimo capítulo, quando é narrado o afogamento de Mariavilhosa. A moça fora violentada e em decorrência de indesejável gravidez fizera um aborto que lhe trouxe dificuldades de engravidar. Após várias tentativas e o nascimento de um filho morto, Mariavilhosa, certa tarde: [...] foi desatar a entrar pelo rio até desaparecer, engolida pela corrente. Morrera? Duvidava-se. Talvez se tivesse transformado nesses espíritos da água que, anos depois, reaparecem com poderes sobre os viventes. Até porque houve quem testemunhasse que, naquela derradeira tarde, à medida que ia submergindo, Mariavilhosa se ia convertendo em água. Meu pai ainda se lançou no Madzimi a procurar a sua amada. Mergulhava e nadava para trás e para frente como um golfinho enlouquecido. Mas sucedia algo extraordinário: assim que ele entrava na água perdia o sentido da visão. Nadava ao acaso, embatendo nos troncos e encalhando nas margens. Até que o fizeram desistir e aceitar a própria realidade (COUTO, 2003, p.105).
Destaca-se aqui que entre as etnias africanas a mulher que perde uma criança é contaminada pela impureza da morte. Segundo Junod (1974) a mulher deve enterrar a criança morta sem ajuda do marido. No dia seguinte, essa deve ir atrás da palhota, ajoelhar-se e escorrer o seu leite no chão, procedendo assim nos próximos dias até que o
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leite seque. Uma série de proibições, também, são impostas as mães de nato-mortos, entre elas a de pegar em comida ou a de falar em um tom que não fosse muito baixo. Punições que são aplicadas a personagem de Mia Couto e que, no desenrolar da narrativa a preenchem de uma tristeza tão profunda que a leva a lançar-se no rio Madzimi e transforma-se em água. “Morreu no rio que é um modo de não morrer.” (COUTO, 2003, p.196) A estas manifestações do sagrado o historiador Mircea Eliade (2012) propõe o termo hierofania e acrescenta que para manifestar o sagrado, um objeto qualquer tornase outra coisa e, ao mesmo tempo, continua a ser ele mesmo. “Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista profano) nada as distingue de todas as demais pedras. (ELIADE, 2012, p.18). Somente “para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuta-se numa realidade sobrenatural.” (ELIADE, 2012, p.18) Nesse sentido é o rio Madzimi, ao mesmo tempo rio que geograficamente cerca e separa a ilha de Luar-do-Chão da capital do país e; também, o curso que purifica homens e mulheres em seus rituais sagrados e que converte Mariavilhosa em água. Entre as considerações de Chevalier e Gheerbrant (1999) sobre o simbolismo do rio e do fluir de suas águas estão: o da fertilidade, o da morte, o da renovação, o da possibilidade universal e o da fluidez das formas. Ressaltam, ainda que “o curso das águas é a corrente da vida e da morte” (CHEVALIER, 1999, p.780). Não seria, então, o afogamento de Mariavilhosa ao mesmo tempo uma corrente que leva para morte (do corpo físico) para uma renovação/renascimento e transformação (em água)? Para Eliade (2012) as águas simbolizam a soma universal das virtudes e, sendo a origem de todas as coisas ou, nas palavras do historiador, “o reservatório de todas as possibilidades de existência” (ELIADE, 2012, p.18) as quais “precedem toda a forma e sustentam toda criação” (ELIADE, 2012, p.18). Acrescenta, também, que a imersão na água exprime a regressão ao pré-formal, ou seja; a reintegração ao modo indiferenciado da preexistência. Assim, o contato com a água comporta sempre uma regeneração: “por
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um lado porque a dissolução é seguida de um “novo nascimento”; por outro lado, porque a imersão fertiliza e multiplica o potencial da vida” (ELIADE, 2012, p.18). Nesse viés, pode-se afirmar que o simbolismo das águas e também do afogamento de Mariavilhosa implica tanto a morte quanto o renascimento. Pois, a personagem de Couto, considerada impura por não ser capaz de dar a luz a um filho vivo, ao mesmo em tempo que purifica, morre e ressurge em forma de água. Acrescente-se, ainda, que na narrativa de Couto, na ausência do corpo físico da personagem Mariavilhosa, fora enterrado um vaso com água do rio. Nas palavras de Dulcineusa, avó do narrador: “Água é o que ela era, um neto. Sua mãe é o rio, está correndo por aí, nessas ondas” (COUTO, 2003, p.105). Ondas que cercam e envolvem a ilha de Luar-do-Chão. Outra hierofania presente no texto de Couto (2003) se dá no décimo quarto capítulo do romance, intitulado “A Terra Fechada”. Nesse, o velho Mariano, mais velho de todos os Malianes, ainda está em estado cataléptico. Mas, como parte da família já se impacientava e necessitava retornar para suas casas, decidiram realizar, ainda que incompleta (sem o corpo do ancião), a cerimônia fúnebre do avô. O cemitério está cheio e, no momento em que o coveiro Curozero Muando (único coveiro de Luar-do-Chão) se prepara para abrir a cova: O coveiro levanta a pá com um gesto dolente. O metal rebrilha, fulgoroso, pelos ares, flecha rumo ao chão. Contudo, em lugar do golpe suave se escuta um sonoro clique, o rasposo ruído de metal contra metal. A pá relampeja, escoiceia como pé de cavalo e, veloz, lhe escapa da mão. Meu espanto se destamanha: seriam faíscas que saltaram? Ou fosse o pássaro ndlati despenhando-se no solo terrestre? Certo é que a pá tinha embatido em coisa dura, tanto que a lâmina vinha entortada (COUTO, 2003, p.178).
Curozeiro tenta inutilmente abrir uma segunda e uma terceira cova, mas “a pá raspa em superfície dura” (COUTO, 2003, p.178). Ultímio, também, tenta cavar em vão. E, novamente, o coveiro. Até que: De repente, meu pai, fora dos eixos, desata a vociferar: não se devia cavar com um instrumento de metal. Isso feria a terra. Dito isto, ele se
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ajoelha e desata a cavar com as mãos. Escava-se com desespero, babando-se com esforço. Em pouco tempo, seus dedos ficam em sangue. Meu pai se desespera no vivo da carne, gemendo e praguejando. A terra que se amontoa vem avermelhada de sangue (COUTO, 2003, p.179).
De acordo com Eliade (2012), na China Antiga, quando se coloca um recémnascido ou um moribundo sobre a terra, ela irá dizer se o nascimento ou a morte são válidos. Será, então, a morte de Dito Mariano sem valor para a terra de Luar-do-Chão? Será esta não aceitação (ainda que simbólica) devido ao seu estado cataléptico? O fato dá início a uma pequena discussão entre os irmãos Ultímio, Abstinêncio e Fulano Malta. Eles acreditam haver um feitiço contra eles, um feitiço da própria terra; pois, o irmão mais novo ocupado com os afazeres políticos na capital, esqueceu da família e “traiu os mandamentos da tradição” (COUTO, 2003, p.180). Porém, a razão para tal desforra da terra contra os homens era, segundo Curozeiro Muando, devido a toda imundície que “estavam enterrando aí pelos desamundos, sujando as entranhas, manchando as fontes. Dizem que até droga misturaram com os areais do campo” (COUTO, 2003, p.181-182). Para o coveiro a guerra tinha grande parte de culpa na vingança da terra. Afinal, muita gente baleada, cujo chumbo transvasava dos corpos, fora enterrada no chão. “Agora já não havia cova, nem fundo. Já nem terra poderíamos extrair da terra” (COUTO, 2003, p.182). Em várias partes do mundo a imagem da terra está associada à imagem da mãe. É símbolo de fecundidade e regeneração que “dá a luz a todos os seres, alimenta-os, depois recebe novamente deles o germe fecundo” (ÉSQUILO apud CHEVALIER, 1999, p.879). E, assim como as águas, a terra também carrega a ideia de renascimento, morrendo em uma forma de vida para renascer em outra. Entre os grupos étnicos, os rituais de morte e enterro representam, segundo Junod (1974), o caráter de ritos de passagem. De acordo com o missionário, a própria morte é uma passagem. Para o defunto, passagem do mundo dos vivos para o mundo dos mortos. Já para os parentes, a passagem de uma fase da vida para a outra.
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Para o narrador, a morte do avô e o retorno a Luar-do-chão o conduz a um processo de amadurecimento e crescimento interior que se dá por meio do contato com a família (ancestrais) e os costumes do seu povo (tradição). Nessa mesma perspectiva se dá a simbologia da ilha, que, segundo o Dicionário de Símbolos de Chevalier e Gheerbrant (1999) é o lugar onde se chega por meio da navegação ou de um vôo sendo símbolo de um centro espiritual primordial. No caso da narrativa de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra a volta a este pequeno espaço rural representa o retorno às origens/tradições do povo moçambicanos, muitas vezes já esquecidos após tantas décadas de colonização.
Imagens do pós-colonialismo Em Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais, Stuart Hall (2011) define o pós-colonialismo como o processo de descolonização que, assim como a colonização, marcou na mesma intensidade as sociedades colonizadoras e colonizadas, cada qual na sua maneira. Chama à atenção que entre os países que se envolveram em processos para a fundamentação de uma política anticolonial retornam a um conjunto alternativo de origens culturais que não tenham sidos contaminados pela experiência colonial. A ilha de Luar-do-Chão impregnada por suas tradições bantas seria uma dimensão literária desse projeto anticolonial? Moçambique é um país localizado no sudeste da África, cuja capital é Maputo. Colonizado pelos portugueses desde o século XV, o país se tornou independente em 1975. Após dois anos de independência, Moçambique mergulha numa guerra civil2 que dura entre 1977 e 1992; terminando com o Acordo Geral de Paz e as primeiras eleições multipartidárias em 1994.
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A Guerra Civil Moçambicana caracterizou-se, em linhas gerais, pelos conflitos entre o Governo socialista da FRELINO (Frente de Libertação de Moçambique), liderado por Samora Machel, e os rebeldes da oposição da RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana), liderada por Afonso Dhlakama. Os embates envolveram Moçambique, a Rodésia (atual Zimbabwe) e a África do Sul, deixando cerca de um milhão de mortos e outros tantos amputados pelas minas terrestres que continuam a assolar o país.
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Pelas histórias das personagens de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra atravessam também a guerra. Como a do médico Amílcar Mascarenhas que foi militante revolucionário, lutou contra o colonialismo e estive preso durante anos. Após a Independência lhe foi atribuído cargo de responsabilidade política. Contudo, “a revolução terminou e ele foi demovido de todos os cargos. Assistiu à morte dos ideais que lhe deram brilho ao viver” (COUTO, 2003, p. 116). Esse mesmo sentimento de tristeza e decepção em relação à Independência se manifesta na personagem de Fulano Malta. O pai do narrador Mariano “mal escutou que havia guerrilheiros lutando por acabar com o regime colonial, se lançou rio afora para se juntar aos independentistas” (COUTO, 2003, p. 72). Anos depois, após a queda do regime colonial, Fulano Malta retorna a ilha como heroi de muitas glórias. Porém, o guerrilheiro se recusa a participar dos festejos em comemoração pela Independência, anunciando que “aqueles que, naquela tarde, desfilavam bem na frente, esses nunca se tinham sacrificado na luta” (COUTO, 2003, p. 73). Desde então, Fulano Malta entregase a tristeza e ao desapontamento, agravado, também, pela morte de sua mulher Mariavilhosa. Fulano Malta passara por muito. Em moço se sentia estranho em sua própria terra. Acreditava que a razão desse sofrimento era uma única e exclusiva: o colonialismo. Mas depois veio a independência e muito de sua despertença se manteve. E hoje comprovava: não era de um país que ele era excluído. Era estrangeiro não numa nação, mas no mundo (COUTO, 2003, p. 74).
Estrangeiro ou mulungo (COUTO, 2003, p. 159) em sua própria casa é também Mariano. O narrador sai da ilha ainda criança e, na capital, estuda e adquire hábitos (cultura) de branco (português/colonizador). Regressar a Ilha de Luar-do-Chão, ao seu lugar de origem, ou ao primeiro lugar do clã dos Malianes, possibilita um (re)aprendizado das crenças e costumes do seu povo (bantos, moçambicanos e africanos). Por meio das enigmáticas cartas escritas supostamente por um avô – em estado cataléptico – e, por diálogos – ora com familiares próximos ora com habitantes da ilha – as memórias e/ou segredos familiares vão se revelando sempre envoltas por imagens místicas e sagradas, como as hierofanias da morte de Mariavilhosa e do enterro
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do avô, discutidas acima. Hierofanias que na obra de Couto surgem como representação da cultura (tradição) moçambicana. Nesse sentido, a obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra comunga com o “projeto anticolonial” não somente na medida em que ele retoma as tradições moçambicanas; mas também enquanto retrata personagens (Mariano e Fulano Malta, por exemplo) vivendo em conflito de (des)pertencimentos com sua própria cultura (africana/colonizado) e a cultura do Outro (português/colonizador). Stuart Hall sustenta que os momentos de independência e pós-colonial são tempos de luta cultural, revisão e reapropriação. E – retomando Chambers –, assegura que essa reconfiguração não pode ser representada apenas como “uma volta ao lugar onde estávamos antes”, já que “sempre existe algo no meio” e, este meio é para Hall o exemplo de uma diáspora moderna. Dessa diáspora moderna participam a personagens de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu “trabalho produtivo”. Depende de um conhecimento da tradição enquanto “o mesmo em mutação” e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse “desvio através de seus passados” faz é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. [...] A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar. (HALL, 2011, p. 43)
Considerações finais A viagem de volta a ilha, lugar onde Mariano reaproxima-se não só da sua família, mas também das tradições de seu povo, me remete ao conto “Nas águas do tempo” que abre Estórias Abensonhadas, obra de 2012, também de Mia Couto. O conto, também narrado pelo neto, descreve os passeios de canoa que o narrador fazia com o avô, a fim de visitar os espíritos que habitavam a outra margem. Iniciando-o, assim, nas crenças e costumes de seus ancestrais; já que:
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quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado pelos panos (COUTO, 2014, p.13).
Ambas as viagens reafirmam uma preocupação com o esquecimento da própria cultura, das crenças, das tradições. Uma apreensão com a própria identidade que vem sendo apagada em detrimento da cultura do Outro: o branco, o colonizador. Resgatar a religiosidade africana, moçambicana, banto é, na obra de Mia Couto, validar a própria identidade de seu povo, resistindo, ainda que literariamente, à colonização.
Referências
AQUINO, Rubim Santos Leão de. [et al]. História das sociedades modernas às sociedades atuais. 26 Ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1993. P.375-386.
BONNICI, Thomas. Teoria e crítica pós-colonialista. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (orgs.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3ª. Ed. Maringá: Eduem, 2009.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva [et al]. 17. Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.
COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Cia das Letras, 2003.
__________. Estórias Abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
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HALL. Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Trad. Adelaine La Guardia Resende... [et al.]. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
JUNOD, Henrique A. Usos e Costumes dos Bantos: A vida duma tribo no Sul da África. Versão da Edição Francesa. 2ª Ed. s.c.: Imprensa Nacional de Moçambique Lourenço Marques, 1974.
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(RE)PENSANDO O ESTUDO DAS PEÇAS VICENTINAS NO LIVRO DIDÁTICO DO INTERIOR DO ESTADO DE SÃO PAULO Aline Cristina Garcia (UFMS) Resumo: A proposta dessa pesquisa promove o estudo, a investigação e a reflexão crítica em torno do modo como o texto dramático está representado no Livro Didático da 1ª Série do Ensino Médio. Hipótese que será discutida à luz das peças do português e criador do teatro popular Gil Vicente (1465-1536), o corpus de análise se constitui de excertos dos textos (literários e teóricos) que foram inseridos nos livros “Língua Portuguesa: Linguagem e Interação” (2012-2014) e “Língua Portuguesa: Projeto Escola e Cidadania para todos” (2006-2008), coleções voltadas para o Ensino Médio e distribuídas pelo Plano Nacional do Livro Didático do Ensino Médio (PNLEM). Essas obras foram escolhidas pelos professores de Língua Portuguesa e coordenadores da escola estadual Dª Noêmia Dias Perotti da cidade de Mirandópolis, interior do estado de São Paulo. Levaremos em consideração os critérios de avaliação do PNLEM para a escolha desses livros didáticos e a situação da literatura enquanto disciplina escolar. Este estudo está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul ( CPTL/ Três Lagoas) e articula-se nas contribuições teóricas de Franchetti (2009), Sábato Magaldi (1998) e Sônia Pascolati (2009), dentre outros estudiosos da área do teatro e do ensino de literatura. PALAVRAS-CHAVE: Texto dramático; livro didático; Gil Vicente; Auto da Barca do Inferno; Ensino.
Introdução: O texto literário, independentemente do gênero a que corresponda, proporciona contribuições diversas para a formação do aluno, e os estudos de literatura orientam a leitura literária e a formação de leitores aptos em refletir sobre a própria vida e capacitados não só para “ler” o mundo, mas também para “ler” a si mesmos e aos outros. Nessa perspectiva, este estudo vai investigar a abordagem do gênero dramático pelo recorte da obra de Gil Vicente, o introdutor do teatro português, em dois livros didáticos de Português e Literatura - um compêndio e um manual -, adotados pela Escola Estadual Dª Noêmia Dias Perotti da cidade de Mirandópolis-SP e distribuídos pelo Plano Nacional do Livro Didático do Ensino Médio (PNLEM), em consonância com o principal órgão educacional, o Ministério da Educação e Cultura (MEC). Trata-se de coleções voltadas para as três últimas séries da Educação Básica, com triênios e classificatórias divergentes: um adotado entre 2006 e 2008, o outro, entre os anos letivos de 2012 e 2014 - este ainda em uso, portanto.
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Inicialmente, julga-se relevante e necessária a discussão acerca da materialidade do texto dramático, o que corresponde fazer um contraponto do ensino de literatura aos aspectos históricos e sociológicos ao que o gênero está articulado. Em seguida, prosseguiremos na análise propriamente dita da abordagem desse gênero nos livros didáticos em questão, na perspectiva de examinar as peças vicentinas. Em cena: o retrato da dramaturgia no livro didático de Português (LDP) Literatura nada mais é que uma arte, e os dois principais instrumentos dessa arte são a linguagem verbal e a leitura. Essa prática promove uma entrega por parte do leitor literário a tudo o que se move no texto, produzindo um deslocamento da perspectiva, e “esse deslocamento, esse mergulhar no texto, na vivência dos sentimentos e das paixões que ele expõe, faz da literatura uma forma eficaz de convencimento, de moldagem de opiniões” (FRANCHETTI, 2009, p. 3). Esse já seria um excelente motivo para se ensinar literatura na escola, entretanto ela é muito mais do que isso, uma vez que é um elemento formativo do cidadão e tem a capacidade de provocar e inquietar o leitor. Assim sendo, os gêneros literários assumem um papel importante no processo de formação e de humanização do ser humano. Nos outdoors deparamos com o anúncio do filme que está em cartaz no cinema; nas filas do banco encontramos senhoras que discutem o final da novela das oito; crianças e adolescentes carregam em suas mãos histórias em quadrinhos quando vão para o recreio lanchar. O que torna menos frequente e menos familiar nesse cenário é a leitura de uma peça teatral, já que o gênero dramático apresenta uma dupla dimensão: a literatura dramática e o fenômeno teatral, enquanto espetáculo e representação. Vamos nos ater à primeira “face da moeda” - já que “o texto pode atingir suas finalidades independente da representação cênica” (PASCOLATI, p. 94, 2009), levando em consideração que o suporte pedagógico que teremos em mãos será o livro didático. O estudo da dramaturgia torna-se indispensável em sala de aula, já que esse gênero traz em seu contexto aspectos importantíssimos para que o aluno entenda a formação da literatura brasileira e estrangeira - seus aspectos dinâmicos e interativos
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fazem com que o leitor compreenda a relação entre a arte e sociedade e a estética e história por meios de suas formas de materializar esses conceitos receptivos e artísticos. Mesmo que pareça remar contra a correnteza, quando mencionamos todos os aspectos positivos em contrapartida com a sociedade local, faz-se necessário estudar a história e evolução desse gênero, que do século XVI aos dias atuais, muitas coisas mudaram nesse plano: da rua para o palco, da oralidade para as páginas, do texto para o tablado, da autenticidade a adaptação, do perene ao efêmero, da busca da significação e do espaço na academia que sempre gera e gerou muita discussão. Considerado por grandes especialistas de Letras um gênero periférico, pouco se estuda sobre sua recepção e historiografia, nos cursos de graduação ou de pósgraduação dedica-se cursos extracurriculares, de poucas horas, passando por despercebido toda a sua funcionalidade devido à falta de hábito de leitura por parte dos professores e alunos. Visto que esse gênero como os demais: lírico e o narrativo são provocados por palavras, e palavras que ecoam para um destinatário, não há o porquê de ser ignorado. O diferencial é a sua estrutura textual, junto à forma pela qual cada gênero possa ser analisado e interpretado. No quadro abaixo, exposto pela professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Sônia Aparecida Vidal Pascolati (2009), podemos ver a distinção entre o gênero narrativo e o dramático no que tange aos operadores da narrativa: NARRATIVA Permite multiplicidade de núcleos narrativos. Pode-se desenvolver e se desdobrar em muitos episódios. Podem ser inumeráveis e apresentar múltiplas dimensões, sendo possível PERSONAGENS descrevê-las em pormenores e analisar seu íntimo cuidadosamente. Pode ser distendido indefinidamente, acolhendo antecipações ou flashback. TEMPO Possibilita grandes transformações das personagens. ENREDO
ESPAÇO
DRAMA Concentrado em uma ação nuclear. Circunscrito a poucos episódios. Em número reduzido e retratadas com pinceladas precisas. Traços essenciais, valores e formas de pensar são revelados por atitudes e pelo diálogo. Reduzido ao necessário para o desenlace do conflito, focalizando as personagens numa situação bastante específica.
Limitado ao essencial. Organizado em Múltiplo e variado. Pode ser descrito função das necessidades do desenrolar da minuciosamente. ação. Geralmente reduzido a um ou dois ambientes.
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RECEPÇÃO
Ritmo da leitura solitária
A leitura das indicações cênicas possibilita a construção imaginária de espaços, movimentos e caracteres. Prevê a recepção coletiva pelo público no teatro.
(PASCOLATI, p. 96, 2009)
Partindo desse pressuposto, entende-se que o texto literário independente do gênero, é um texto – sendo um texto aberto, que pede para ser lido e relido, analisado e reinterpretado em vários momentos de acordo com seus conhecimentos e experiências que vai adquirindo com o passar dos anos. A peça teatral, por mais que obedeça à estrutura do texto dramático, “ela pode possuir características de estilo ou linguagem que o aproximam do gênero lírico 1 ou narrativo” (PASCOLATI, p. 98, 2009) dessa forma “qualquer escrita pode tornar-se pretexto de representação, a mais resistente ou imprevista não sendo a menos procurada” (RYNGAERT, p. 23, 1995). Essa última informação dada só tem lógica quando pensamos no sistema mercadológico, já que não sendo procurada, não cabe ser encenada. Fica claro que cada gênero obedece a uma estrutura, e o diálogo para o drama é a base, “o discurso das personagens é fundamental para que a peça ganhe corpo, tenha movimento, enfim, exista” (PASCOLATI, p. 103, 2009) – exigindo um leitor atento a espontaneidade com que esse acontece. Na verdade, não devemos nos ater apenas ao diálogo, já que se tratando de um texto literário e dramático, todos os elementos da narrativa se entrelaçam conforme desenrola as ações, possibilitando fantasiar e criar expectativas, alimentando nossa ansiedade até o fim da trama. Segundo Renata Pallottini, doutora em Artes pela Universidade de São Paulo, em certa passagem de um dos seus trabalhos: A peça teatral é uma organização de seres e atos, e nada, nela, pode funcionar independentemente do conjunto. Os personagens levam à frente o enredo, que empurra, por sua vez, os personagens em direção
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Um exemplo é a peça de Fernando Pessoa, O marinheiro, cuja fabulação se dá pelos sentimentos e desejos, representando o estado de alma das personagens.
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ao seu final, enquanto personagem, dentro do universo da obra teatral. (p. 14, 1989)
Todos os signos conectados tornam-se um só na tentativa de entender tal obra a seu tempo – um exemplo, é o personagem, ser ficcional, cuja imagem e semelhança é espelhada no ser humano, “ele nada é por si; sua concretização total necessita de todos os outros recursos (signos, portadores de signos) do conjunto que faz a cena” (PALLOTTINI, p. 15, 1989) a partir desse nó, ele existirá, cumprindo seu papel literalmente. Lembrando que a verossimilhança está ligada à arte e não à realidade, ela nos permite sair do caos e viver no mundo da fantasia, da ilusão, características próprias de um texto literário. O drama utiliza a palavra, que para Hegel, “o mais nobre instrumento que se possa pôr a serviço do espírito, e une a objetividade da epopéia e a subjetividade da poesia lírica” (PALLOTTINI, p. 27, 1989) por meio da palavra estabelece a tensão, tanto pelo pathos (sofrimento, emoção, circunstâncias que provocam piedade ou tristeza) como pelo estilo problemático, o texto obedece a essas expressões, e por meio desta colisão que a ação é produzida faz o drama avançar. De um lado, a tragédia, do outro, a comédia, a tragicomédia, mistério ou milagres ou quiçá uma farsa, modalidades que se prestam ao drama e definidas no século XVII, já que a preocupação dos teóricos e estudiosos era em regulamentar a escrita e classificar esses gêneros, questionando “não apenas como o teatro fala, mas, sobretudo do que se permite falar, que temas aborda”. (RYNGAERT, p. 9, 1995), com esse olhar sobre as peças foram delineando esse tipo textual. Com as considerações feitas por Ryngaert (1995), podemos refletir sobre a recepção desse gênero e acompanhar de perto a sua historiografia. Durante muito tempo, a ausência de impressão e a tradição oral do texto fazem do autor uma entidade coletiva e indeterminada. Não sabemos de fonte segura quem são os autores dos mistérios medievais nem de muitas das farsas que chegaram até nós. (...) há nisso uma CRISE DE IDENTIDADE do dramaturgo. (...) Nos anos 30, tivemos o poeta assalariado, no qual, o autor trabalha em grande parte por encomenda e com exclusividade para
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uma companhia que paga por peça. Escreve diretamente para o palco e muitas vezes às pressas, o que lhe garante o fato de ser representado, mas não lhe dá muita autoridade sobre a duração e a pertinência das representações nem qualquer poder sobre a edição de sua obra. Os textos só eram impressos depois de a companhia ter obtido ganhos com as primeiras séries de representação, às vezes vários anos mais tarde. (...) A obra não dispunha portanto de muitas oportunidades para ser revelada independentemente de uma representação. O manuscrito era transmitido diretamente aos atores pelo autor. Compreende-se melhor por que floresceram na época as edições piratas, impressas no estrangeiro, e às vezes com erros, estabelecidas a partir do texto ouvido na representação. Ao menos as peças publicadas tinham leitores, as pessoas cultas da época que se regozijavam por ter acesso ao texto no caso de não terem podido ver o espetáculo. Esse desvio pela história levanta alguns problemas ainda atuais. Ainda se distingue o ato de escrever para o palco do ato de escrever simplesmente, como se o autor dramático tivesse um estatuto diferente. (pp. 23-24, 1995)
Com esses apontamentos pelo crítico, voltamos a questão mencionada anteriormente, há um preconceito com esse gênero, cuja divulgação ainda é irregular no mercado. A imprensa interessa-se pouco pela edição teatral e todo o conflito volta-se em torno do texto e do palco - não editam uma obra por nunca ter sido representada, outras não são editadas por estarem gastas nos espetáculos, então a relação paradoxal vivida pelos dramaturgos é de eterna angústia – já que seu reconhecimento nunca é satisfatório. É necessário entender que o gênero dramático não é inferior quando comparado aos gêneros lírico e narrativo, trata-se de uma classificação de conteúdo e estrutura, por isso não pode ser restrito e pouco mencionado, uma vez que seu valor perante a sociedade é grandioso como os demais; só para constar “a literatura pertence intrinsecamente à arte dramática” (MAGALDI, p. 118, 1998). E hoje, “através dos veículos de comunicação de massa, o drama transformou-se em um dos mais poderosos meios de comunicação entre os seres humanos” (PASCOLATI, p.93, 2009), por isso mais do que em outros tempos, nunca foram tão necessários e estimulantes o estudo das peças teatrais, seja por conta da abertura dos estudos transdisciplinares, em voga, seja por conta da crise contemporânea. O que sabemos é que agora é à hora de trabalhar esse gênero com mais autenticidade e fôlego, tanto no meio escolar como acadêmico.
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O professor e o aluno têm como subsídio o livro didático, independente, de esse ser alvo de muitas críticas e polêmicas 2. Como salientam Lajolo e Zilberman em A formação da leitura no Brasil (1996), o livro didático é considerado o primo pobre da literatura, de um lado e do outro o primo rico das editoras e as autoras também deixam explícito que o livro didático é uma das modalidades antiga de expressão escrita, sendo dependente de uma política educacional e de uma imprensa gráfica. Geralmente, esse suporte pedagógico traz uma seleção de obras literárias em forma de textos fragmentados, que não mostram a essência da literatura. Mas isso acaba não interferindo em seu consumo, o que envolve, além das indústrias e dos mercados, o Governo. No entanto, tais materiais não teriam força se não fosse o aval da escola, que os acolhe e a aceitação por parte dos professores quando o escolhem no Guia Didático, a cada três anos que FNDE fornece em parceira com o MEC, que dita as regras. Assim, o livro didático acaba sendo útil por ter nessa instituição sua utilidade reconhecida, garantindo o seu lugar na rede educacional. O livro didático de literatura (no caso língua portuguesa) deve ser acolhido e utilizado se atender ao Projeto Político Pedagógico da Escola e se os professores souberem fazer um bom uso dele, o que corresponde a formar leitores como trazidos pelas autoras abaixo: O livro didático interessa igualmente a uma história da leitura porque ele, talvez mais ostensivamente que outras formas escritas, forma o leitor. Pode não ser tão sedutor quanto às publicações destinadas à infância (livros e histórias em quadrinhos), mas sua influência é inevitável, sendo encontrado em todas as etapas da escolarização de um indivíduo; é cartilha quando da alfabetização; seleta quando da aprendizagem da tradição literária; manual quando do conhecimento das ciências ou da profissionalização adulta, na universidade. (Lajolo & Zilberman, 1996, p.121).
Não seria necessário usar livro didático para ensinar literatura, já que essa se faz por contato e leitura de obras literárias na íntegra. Mas, como a literatura está ligada aos
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A polêmica em torno dele é dada tanto nos domínios pedagógicos como na legislação educacional. (BENDER, 2007, p. 37)
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estudos de língua portuguesa e como cumpre com as exigências da realidade educacional não pode deixar de ser abordada no material didático. Para a análise foram selecionados dois livros didáticos de Português: Língua Portuguesa: Linguagem e Interação, volume 1 – Ensino Médio, primeira edição e primeira impressão ocorrida no ano de 2012, editora Ática, São Paulo, de autoria de Carlos Emílio Faraco, Francisco Marto de Moura e José Hamilton Maruxo Júnior, chamado neste trabalho de livro A. O motivo da utilização de dois exemplares deu-se por conta do desejo de entender o ensino de literatura por meio do gênero dramático e, mais especificamente, analisar como aparece Gil Vicente nos dois livros, tanto nos aspectos organizacionais como na apresentação do autor.
O segundo exemplar,
chamado de “livro B”, é o Língua Portuguesa, dos autores Harry Vieira Lopes, Jeosafá Fernandez Gonçalves, Simone Gonçalves da Silva e Zuleika de Felice Murrie, primeira edição e impressão, ano de 2004, Editora do Brasil. As duas coleções foram aprovadas pelo MEC e distribuídas pelo FNDE para a Escola Estadual Dª Noêmia Dias Perotti da cidade de Mirandópolis, interior do estado de São Paulo, escolhas do corpo docente de Língua Portuguesa e dos coordenadores pedagógicos do Ensino Médio. As peças vicentinas são trabalhadas na primeira série do Ensino Médio e constatamos que tanto o livro A quanto o B, trazem um excerto da peça Auto da Barca do Inferno (1517). As outras quarenta e três peças do dramaturgo não são exploradas com fragmentos, apenas mencionadas nos paratextos referentes à biografia do autor. Daí, a primeira indagação, o que fez os autores dos livros didáticos em questão, escolherem esse auto? O auto diferencia-se da farsa, por explorar um acabamento formal superior, seus personagens são complexos, embora, não justifica a escolha. O livro didático A abre o capítulo com o tema A novela, o qual está inserido as origens do teatro em Portugal, a história do Humanismo, o que é o teatro em seus dois aspectos: a representação e o texto dramático. A partir desses conceitos préestabelecidos apresentam Gil Vicente, como um transgressor do seu tempo. O fato de o livro didático ser resultado de escolhas, o ofício do mestre não pode e nem é dispensado. A passagem escolhida da peça Auto da Barca do Inferno, refere-se ao diálogo de Brizída Vaz (a cafetina), o Anjo e o Diabo e como proposta de ensino exploram as
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palavras arcaicas, um glossário ditando o significado das mesmas, como se a apreensão da ideia do texto estivesse necessariamente relacionado à mera decodificação de palavras. Para Bosi (1992) o aluno “pode tomar a nuvem por Juno, pode achar que aquele vocabulário é a essência mesma do conhecimento e pensar que toda análise crítica se resuma em aplicar aquele vocabulário, esquecendo seu objeto que é o texto” (BOSI, 1992, p. 101). Ainda afirma que tomar o vocabulário como meio de atingir a literariedade de um texto literário é um equívoco que vai de encontro a todos os princípios de formar leitores conscientes. Esboçar vocabulário é um meio e não um fim, descompasso que poderia ser evitado fazendo um diálogo entre as peças vicentinas e as peças do escritor contemporâneo Ariano Suassuna, visto que os dois autores trazem em suas obras traços da corte popular, a tradição oral e medieval, o que seria mais enriquecedor para o aluno. Além disso, Bosi (1992) acredita que a escolha de textos para adolescentes, cujo universo de experiências é mais restrito que o de um adulto, deva partir do conhecido para o desconhecido. Assim como nas peças vicentinas, que contêm uma crítica à sociedade portuguesa do século XVI, Suassuna traz uma crítica à sociedade nordestina do século XX, contexto histórico mais próximo da realidade do aluno, ainda que nele não esteja inserido. Verifica-se, pois, que os autores, mesmo distantes por cerca de quatro séculos, apresentam traços em comum e, para abrir o diálogo entre ambos, caberia a explanação sobre a Literatura de Cordel, cujos traços são marcantes nas obras desses autores. No livro A, os autores, interrogam os alunos com perguntas que nada contribuem para a formação do leitor, um exemplo: “Na época de Gil Vicente, a língua portuguesa era bem diferente da que falamos hoje?”. O aluno, não vai precisar pensar para responder, uma vez que as palavras de origem arcaicas são traduzidas. Isso não estimula o aluno a fazer a leitura da peça na íntegra, nem vai promover uma interação entre os mesmos – texto x leitor. Essa peça é riquíssima, atual, dinâmica, que independente dos seus aspectos arcaicos, trata, sobretudo, do elemento fundamental para a Catarse: a condição humana. Ainda no livro A, temos um paratexto que aborda o resumo da peça, os personagens envolvidos na trama e uma imagem da encenação do Auto da Índia ou
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Arabutã (1519), encenada pela atriz Adriana Schneider, no Rio de Janeiro, no ano de 2000, a atriz aparece segurando uma caravela. Ilustração, que nada acrescenta à peça Auto da Barca do Inferno (1517), a única semelhança é a caravela por remeter a imagem do barqueiro, que é a figura mitológica de Creonte. Já num outro paratexto, os autores exploram o período e o contexto histórico, assim, como trazem a biografia do autor e duas figuras, uma primeira do livro, Gil Vicente obras completas, e a outra, a fotografia do dramaturgo, com um ar de entediado. Essas ilustrações são sombreadas em tons de cinza, pouco atraentes e não chamam a atenção do aluno. Nesse livro A, há um paratexto bastante atraente aos olhos dos aprendizes, uma imagem contemporânea, no caso uma releitura da peça Auto da Barca do Inferno, bem lúdica, abarca texturas coloridas e geniais que faz o aluno se interessar pela peça, permitindo-o a imaginar e a fantasiar, cria-se expectativas mediante o texto e faz o mesmo viajar diante das formas. Pode-se até afirmar que essa imagem vem preencher as lacunas produzidas pela carência de informações nas poucas páginas que enfocam Gil Vicente e seu contexto histórico. Considerando ineficaz a abordagem do introdutor do teatro português no livro A, passou-se à análise dessa mesma temática no livro B e para a nossa surpresa, a organização é a mesma que acontece no livro A. O enfoque e a explanação dos autores sobre Gil Vicente no livro B não atende às expectativas. Gil Vicente aparece no capítulo 21, intitulado Quebre a perna! O teatro em cena, que vai da página 553 à 584, correspondente a 31 páginas de um total de 816, atribuídas às três séries do Ensino Médio, uma vez que se trata de volume único. Em duas laudas, os autores do livro B apresentam o grande nome da literatura portuguesa: de um lado da página, falam do estilo do escritor e, de outro, trazem uma passagem da peça Auto da Barca do Inferno, seguida pela explanação do vocabulário. O diálogo aqui para apresentar o Auto da Barca do Inferno se deu nos personagens, Fidalgo (D. Anrique, representando a nobreza da época,), o Anjo e o Diabo. Há poucas ocorrências de rubricas no fragmento, o personagem Anjo é uma metáfora da voz autoral de Gil Vicente no drama e por mais que haja uma crítica latente à Igreja, o texto mantém o fio ideológico de juízo final e recompensa apenas àqueles
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que agem de acordo com valores éticos e morais, podendo ser visto tanto no excerto do livro A como no B, independente. Considerações finais Os dois livros didáticos apresentados são de triênios diferentes, cada qual com sua classificação, contudo ambos apresentaram a mesma estrutura na organização do conteúdo e nenhum atendeu ao que se preconiza conforme os Parâmetros Curriculares: priorizar a interdisciplinaridade e a contextualização, cujas finalidades são: aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. Esta pesquisa elegeu o gênero dramático como um caminho para decodificar o ensino de literatura, na tentativa de identificar que leitores nós estamos formando, por meio da seleção de textos e atividades referentes à obra do dramaturgo português no âmbito do livro didático. Pode-se afirmar que o trabalho produtivo e eficiente para a formação de leitores de textos dramáticos vai depender do mediador, que deve planejar suas aulas, preocupando-se com todas as etapas que serão percorridas, desde a motivação até a avaliação. O livro didático é um guia, portanto não isenta o professor da responsabilidade de preparar suas aulas, pois, mesmo que esse instrumento fosse completo e realmente autossuficiente, jamais dispensaria o ofício do mestre. Na verdade, o livro didático, sozinho, é incapaz de formar leitores de texto literário; tomando-se como parâmetro os livros didáticos analisados, poder-se-ia dispensar sua utilização, já que estes fazem uso de textos literários para ensinar gramática, e o aluno é contemplado apenas com o esquema padronizado de informações sobre época, autor e obras, “as demais funções da literatura não são postas em evidência” (BOSI, 1992, p 100). Sendo assim, seria mais viável e enriquecedor realizar o trabalho de leitura com a utilização de obras literárias, em que o aluno, a partir da explanação, orientação e estímulo do professor, pudesse viver o texto, descobrir os sentidos implicados nas entrelinhas e, mais que isso, pudesse interromper a leitura caso ela não o provocasse, num exercício de ler por prazer e não por obrigação.
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Essa análise sobre a abordagem do gênero dramático no livro didático trouxenos a convicção de que o ensino da Literatura, ancorado na formação do leitor, ainda é muito vago, sem rumo, restrito a algumas informações teóricas, ineficazes para desenvolver a leitura literária. Referências: BENDER, Eliane Andréa. O livro didático de literatura para o Ensino Médio. Orientadora: Prof. Dr. Vera Teixeira de Aguiar, Dissertação defendida em 17/01/2007 pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre (RS), 2006. BOSI, Alfredo. Literatura e Ensino de Literatura. In: ______. ROCCO, Maria Thereza Fraga. Literatura/ Ensino: Uma Problemática. 2ªed. São Paulo: Ática, 1992 FARACO, Carlos Emílio. Língua Portuguesa: Linguagem e Interação/ Carlos Emílio Faraco, Francisco Marto de Moura, José Hamilton Maruxo Júnior. São Paulo: Ática, 2010. FRANCHETTI, Paulo. Ensinar literatura para quê?
Revista dEsEnrEdos, ano I,
número 3. Teresina, Piauí. Novembro/Dezembro de 2009. p. 1 – 10 LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1996. 374 p. (Série Temas, volume 38). LOPES, Harry Vieira. GONÇALVES, Jeosafá Fernandez. SILVA, Simone Gonçalves da. MURRIE, Zuleika de Felice. Língua Portuguesa: Projeto Escola e Cidadania para todos. 1ªed. São Paulo: Editora do Brasil, 2004 MAGALDI, Sábato. Iniciação ao teatro. 7.ed. São Paulo: Ática, 1998. PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia construção do personagem. São Paulo: Ática, 1989 PASCOLATI, Sônia Aparecida Vido. Operadores de leitura do texto dramático. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lucia Osana. Teoria Literária: abordagens e tendências contemporâneas. 21. ed. Maringá: Eduem, 2009. RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. Tradução Paulo Neves; revisão da tradução Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 1995. (Coleção Leitura e Crítica)
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POR UMA CRÍTICA ALTERNATIVA: UMA ANÁLISE DE A NEW LITERARY HISTORY OF AMERICA Aline de Almeida Moura (PUC-Rio/ CAPES) “Que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem com barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós” (BARROS, 2010, p. 407).
Manoel de Barros, como aparece na epígrafe, ensina-nos que a importância de uma coisa deve ser medida pelo encantamento que ela produza em nós. Tendo isso em mente, pode-se pensar que as histórias literárias conseguem manter o “encantamento” produzido através da literatura? A resposta provavelmente será negativa. Estamos acostumados a um tipo de historiografia literária em que o conhecimento sobre o sistema literário apenas enumera características estilísticas e/ou faz uma relação com o contexto de produção. E o encantamento que a literatura produz acaba por ser extinta. A historiografia literária acabou com o prazer e a força do texto literário, tornando-o meramente um pretexto para se decorar determinadas características tidas como importantes em contextos históricos específicos. Ao me aproximar da historiografia literária como campo de estudo, percebi que os seus pressupostos sustentadores ainda eram aqueles construídos no século XIX, pressupostos defasados em relação ao pensamento teórico corrente tanto na História quanto nos Estudos Literários. Esse fato é possível notar em títulos como: “Shall We Continue to Write Histories of Literature?” (2008) e “History of Literature, Fragment of a Vanished Totality?” (1985), de H. U. Gumbrecht; Is literary History Possible? (1992), de David Perkins, “História literária: um gênero em crise”, de Paulo Franchetti (2002); e o texto manifesto dessa crise, A história da literatura como provocação à teoria literária (1996), de H. R. Jauss. Mais que uma crise, a disciplina teve a sua função e a sua validade completamente questionados. Tal abandono foi decorrente, entre outros fatores, de questionamentos relativos aos aspectos teóricos, epistemológicos, metodológicos e analíticos norteadores dessa disciplina, criando-se um descompasso entre as posições teóricas – surgidas a partir de indagações presentes tanto da História quanto dos Estudos Literários – e a prática de escritas de histórias literárias. Ou seja, houve uma abertura tanto na História quanto nos Estudos Literários, enquanto a prática de historiografia literária continuava no mesmo
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modelo de escritura épico-narrativo em que se enumeravam os “heróis” das literaturas nacionais em busca de uma explicação evolucionista dos aspectos literários, sem incorporar as modificações ocorridas no campo das Humanidades. No âmbito dos Estudos Literários, houve um afastamento do condicionamento histórico em contraponto com a consolidação da Teoria da Literatura, uma vez que as proposições mais tradicionais não levaram em consideração as novas formas de se lidar com o sistema literário. Na História, o “despertar epistemológico” afetou a escolha de objetos a serem investigados, os métodos e formas de escrita. Remo Ceserani, em seu livro Raccontare la letteratura (1990), faz uma importante sistematização da longa crise pela qual a historiografia literária passou nas últimas décadas. Citando de T.S. Eliot a Benedetto Croce e René Wellek, ele demonstra como, no contexto atual, o retorno ao interesse sobre a história literária traz como marca a mudança de uma análise formal para o conteúdo social da literatura. Contudo, autores como Paulo Franchetti (2002) consideram que esse campo perdeu sua funcionalidade com a queda do “nós” nacional. Outros teóricos reafirmam a importância da historiografia literária, ressaltando apenas a necessidade de uma revisão de seus pressupostos e de suas análises, como é o caso de Jauss (1996) e a sua proposta de historiografia literária centrada no receptor. David Perkins (1992), nesse mesmo debate, argumenta que a função dessa disciplina é aumentar o prazer na leitura e evitar a cristalização do passado (PERKINS, 1992, p. 185). Nesse sentido, é importante assinalar a existência de uma historiografia literária tradicional, baseada em proposições novecentistas e que é a forma amplamente conhecida de organização em gêneros literários e/ou análise de autores canônicos. E, em contraponto aos questionamentos surgidos em meados do século XX, a emergência de historiografias literárias alternativas que tentam responder à crise pela qual a disciplina vinha passando. É na conjuntura de busca por uma inovação nessa área que analiso A New Literary History of America (2009) como um experimento que pode traçar um caminho interessante. Mas antes, é preciso entender algumas questões presentes nos estudos literários que promovem reflexões sobre a forma de se construir conhecimento nas histórias literárias. Remo Ceserani, diante dos debates existentes na historiografia literária, aponta como questão adequada ao se tratar do tema: “What is a literary history a history of?” (CESERANI, 2014). O teórico italiano responde a essa pergunta dizendo que há dois modos populares de se lidar com o sistema literário, mas que não se adéquam às perspectivas teóricas do presente momento. A primeira é ligada à história de uma
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consciência nacional ou de uma comunidade particular, muito associada ao modelo historiográfico do século XIX. O outro modelo é o que apresenta uma generalização em torno de uma série de estilos, em que são eleitas algumas características formais que definem a produção de determinado momento. Ambos se baseiam na organização narrativa, em que o desenvolvimento do sistema literário é progressivo e linear cujo objetivo da História literária é mostrar esse desenvolvimento. Algumas discussões se tornam pertinentes para pensar nos discursos ligados ao objeto de estudo da historiografia literária: o sistema literário. Na crítica brasileira, há a contribuição do teórico Antonio Candido, que em seu texto “Crítica e memória”, ressalta que “talvez devêssemos dar mais atenção aos arrabaldes do trabalho crítico. Sem prejuízo, é claro, do seu cerne, onde se localizam a análise objetiva do texto e a investigação histórica” (CANDIDO, 2010, p. 33). Candido chama a atenção para os problemas causados pelo afã de escapar do impressionismo, que em sua visão “não só tem seus encantos, mas a sua função legítima como etapa ou variante” (p. 33). O problema, em sua perspectiva, foi o exagero em certo puritanismo metodológico. Ele sugere então um “novo capítulo para a crítica”, que pudesse expressar a nossa experiência afetiva com as obras, mostrando porque determinados livros foram lidos, consultados, amados ou odiados a fim de reconhecer quais as obras que nos marcaram mais profundamente. Nesse artigo, Antonio Candido cita alguns dos textos que foram emblemáticos em sua formação. Através de sua narração apaixonada, o próprio leitor consegue pensar o porquê de estudar e de ler literatura – e não matemática, por exemplo – exercendo um novo tipo de crítica. Nesse sentido, também apontamos a contribuição de Susan Sontag. De acordo com a pensadora, “nós somos o que somos capazes de ver (ouvir, tocar, cheirar, sentir) inclusive mais forte e mais profundamente do que somos o conjunto de ideias que armazenamos em nossa cabeça” (SONTAG, 1987, p. 345). Assim, a função da arte é poder servir como “instrumento para modificar a consciência”, ratificando a necessidade de uma nova forma de crítica que não busca conceituar, nem analisar, mas experienciar, unindo a arte e a teoria em uma erótica do conhecimento. Pensando na experimentação da arte como encantamento, ela afirma que a interpretação exagera na ênfase do conteúdo da arte. Segundo Sontag, em “Contra a interpretação”, a interpretação pressupõe “uma discrepância entre o claro significado do texto e as exigências dos leitores (posteriores). Ela tenta solucionar essa discrepância” (SONTAG, 1987, p. 14). Contudo, ela demonstra que interpretar é domar a obra de arte (p. 16) e,
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nesse sentido, acredita ser mais interessante recuperar os nossos sentidos: “nossa tarefa não é descobrir o maior conteúdo possível numa obra de arte, muito menos extrair de uma obra de arte um conteúdo maior do que já possui. Nossa tarefa é reduzir o conteúdo para que possamos ver a coisa em si” (p. 23), mas ver de forma sensorial, de como a arte é e não o que significa. Segundo essa lógica e pensando no contexto brasileiro, em que poucos são os leitores efetivos, acredito que uma proposta que foque mais no sentir do que no explicar possa ser bastante eficaz para atingir um círculo maior do que o acadêmico especializado. Obviamente, o problema apontado por Culler (1993) sobre a avaliação das atividades do crítico é pertinente, mas em se tratando do crítico apenas em âmbito acadêmico, aquele que investiga as estratégias narrativas e desconsidera as questões do encantamento que a literatura produz. A pergunta que emerge após estas referências é como são gerados conhecimentos novos nos estudos literários? Como afirma Leslie Fiedler sobre a necessidade de se criar uma nova teorização condizente com o atual estado das coisas, “it is much simpler to say than do” (FIEDLER, 1984, p. 151). Os críticos mais tradicionais ainda veem com desconfiança algumas sugestões mais inovadoras e, mesmo algumas dessas sugestões ainda não conseguem lidar de forma eficiente com esse novo cenário de produção cultural-literário que vem se formando. E, falando em pensar e refletir sobre o sistema literário, como vemos em Leslie Fiedler, passamos de uma era em que a literatura estava preocupada com a autoanálise, a racionalidade e o academicismo, em que a sua recepção pela crítica era vista como algo natural e inevitável, para uma era antirracional, apocalíptica, romântica e sentimental. Assim, se a crítica quer se manter útil, viável e relevante, “it must be radically altered” (p. 152). Em sua leitura, uma crítica renovada não deve ser textual ou formalista, mas assumir que o trabalho de arte de fato existe em um contexto, necessitando da paixão e apreensão dos leitores. “Not words-on-the-page but words-in-the-world or rather words-in-the-head” (p. 152). Além do aspecto literário, ao se pensar na história literária, é importante refletir na escrita utilizada para se construir o conhecimento. Em relação à historiografia literária, “all most important literary histories in the nineteenth were narratives, and they traced the phases or sometimes the birth and/or death of a suprapersonal entity” (PERKINS, 1992, p. 2). O modelo narrativo era o principal utilizado na historiografia literária, mas, com os questionamentos, surge o que ele chama de modelo enciclopédico. Esta configuração se caracteriza por ser uma combinação de ensaios para fazer uma
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obra maior, sendo que “the essas may include narrative along with exposition and logical argument” (p. 53). O livro organizado no modelo enciclopédico é essencialmente “a series of separate essays on separate authors or works, arranged in chronological order” (p. 53). Ele afirma que o modelo enciclopédico era usado de forma ingênua, sem a devida reflexão sobre seus problemas e/ou vantagens (p. 53). Contudo, acredito que a sua própria configuração permite uma abertura maior, tanto para a leitura, quanto para as possíveis conexões que o leitor pode fazer entre os ensaios. Além disso, o modelo enciclopédico comporta uma visão mais complexa sobre a temporalidade, pois não se fecha apenas em uma concepção linear e progressivista. Para Gumbrecht, a escrita de História não deve ter uma finalidade no plano das funções sociais, mas deveria “significar um encantamento, geralmente vinculado à imersão no reino da ficção literária” (GUMBRECHT apud OLINTO, 2008, p. 38). Questões que ainda se encontram em aberto, mas que sinalizam uma função alternativa da historiografia literária, envolvendo o encantamento na produção de conhecimento, cuja proposta será bem melhor cumprida se forem discutidas as formas de escrita. As configurações escriturais mais tradicionais atualmente se mostram problemáticas devido aos novos questionamentos e necessidades. É nesse cenário que passaremos para a análise do experimento A New Literary History of America. Propondo uma visão mais complexa do conhecimento histórico literário, a coletânea analisada pretende “restaurar o acesso a dimensões invisíveis e silenciadas nos processos de produção literária e suas formas de teorização que sustentam a escrita de histórias de literatura tradicionais” (OLINTO, 2008, p. 2). Diante de novas concepções crítico-teóricas, as apreciações feitas em relação às histórias literárias tradicionais são justificadas por uma radicalização da historicidade da literatura, “enfatizada não só a partir de sua capacidade de testemunhar experiências humanas concretas, mas também em função de sua ressonância na vida dos próprios leitores” (p. 2). Nesse sentido, propõe-se uma epistemologia alternativa baseada também na produção de afetos através do exercício de uma nova sensibilidade que contraria a visão mais racionalista de produção de conhecimentos. A historiografia literária organizada por Greil Marcus & Werner Sollors, A New Literary History of America, foca na sua introdução, que é também o seu manifesto teórico, um combate à determinada visão de historiografia literária que se concebe como uma proposta natural e imutável, quando, por sua própria história recente, o conhecimento literário acerca desse contexto cultural só pode ser visto como uma
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construção artificial. Dessa forma, a historiografia literária da América reforça uma concepção mais ampla do sistema literário, que engloba textos e eventos que tradicionalmente não figurariam em uma obra desse porte. A New Literary History of America (2009) é bastante ousada no que concerne os diferentes objetos de análise, primando pela expansão do entendimento de literário ao incluir obras de artistas plásticos e mesmo eventos naturais catastróficos. Também primando pela heterogeneidade, há cerca de 200 ensaios sobre os mais variados temas, centrando-se em “tudo o que foi produzido na, para ou por causa da América”. Nesse sentido, aos colaboradores foi dada a possibilidade de articular seus próprios argumentos e pontos de vista a fim de surpreender não apenas aos leitores e aos editores, mas também a eles mesmos (MARCUS & SOLLORS, 2009, p. xxiv). Assim, há ensaios de historiadores como Richard Smith, Joyce Chaplin e Jonh Diggins; de autores como Steve Erickson e James Miller, entre outros. Nota-se que não existe uma predileção apenas por acadêmicos e/ou especialistas, mas a escolha dos ensaístas corresponde ao intuito de oferecer experiências prazerosas tanto para os leitores quanto, neste caso, para os próprios articulistas. Greil Marcus colaborou no ensaio “2003: Richard Powers, The Time of Our Singing” e Werner Sollors escreveu “1693–94, March 4: Edward Taylor”, “1928, April 8, Easter Sunday: Dilsey Gibson goes to church” e “1941: The word “multicultural”. E, como já sinaliza o título desse experimento, por ser uma história literária, há uma abertura bem maior em relação aos tópicos escolhidos, incluindo, por exemplo, um ensaio sobre o furacão Katrina, “2005: A great part of the city is below the level of the river during the high flood tides, which last for a few days each year, and is protect by levee or embankment”, escrito pelos organizadores do livro Greil Marcus e Werner Sollors. Em artigo publicado pelo The New York Times, a repórter Patricia Cohen chama esse livro de “the essence of America in 1.095 pages”1. Além disso, a historiografia da América procura fazer “a reexamination of the American experience as seen through a literary glass, where what is at issue is speech, in many forms” (MARCUS & SOLLORS, 2009, p. xxiv). Em síntese, a historiografia literária é entendida como exercendo funções mais complexas, sem se limitar apenas à organização de um conhecimento historicista relativo às produções artísticas, seja por questão de identidade nacional, seja por categorização das obras selecionadas. O foco é
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http://www.nytimes.com/2009/09/23/books/23harvard.html?_r=0. Acessado em 15/11/2012.
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construir uma forma alternativa de conhecimento em que os leitores desse volume não fiquem passivamente recebendo o conteúdo postulado. Pretende-se que eles, a partir de encontros fascinantes com os ensaios, possam elaborar concepções mais complexas sobre um autor, um período ou uma obra. Além disso, a própria visão acerca do literário é possível de ser modificada quando o leitor entra em contato com textos que tradicionalmente não fariam parte dessas seleções. Assim, a existência de uma seleção dos fenômenos literários é bem perceptível, cujas análises e ordenação poderiam ser outras caso fossem organizados por outros teóricos ou pelos mesmos em momento distinto. Outro fator interessante é que a tarefa ao qual se propõem é uma nova experiência de leitura e de construção de conhecimento que ultrapassem a perspectiva organizadora e ordenadora das historiografias literárias tradicionais. O objetivo é claramente de expandir o leitorado e atingir outras funções. Na proposta, “takes the reader through the matrix of American culture” (MARCUS & SOLLORS, 2009, p. xxv), apresentando-o a novas formas de se entender o sistema literário americano. Ou seja, percebe-se uma expansão das funções que não se limitam a responder apenas aos anseios dos leitores mais especializados, mas também conquistar leitores leigos. Para conseguir alcançar seus objetivos de aumentar o público leitor desse tipo de produção, além de possibilitar a construção de um conhecimento que alie cognição com afetividade, incluindo novas visões de Literatura, História e História Literária, os organizadores desse experimento se propuseram a estruturá-los de modo diverso do tradicional. A organização narrativa parecia muito tediosa quando o personagem principal não é tão emocionante como é o sistema literário domado pelas intervenções crítico-teóricas que o reduziam à representação do contexto de produção ou a técnicas de retórica através de análises formais. Assim, esse experimento se pauta em configuração escritural na qual the essays are arranged in a chronological order, for it is history that has given shape to these cultural creations, and the chronological also provides a first orientation to the reader, anchoring the many examples of creativity in time over the span of five centuries (MARCUS & SOLLORS, 2009, p. xxvi).
Contudo, o livro pode ser lido em diversas ordens, pois “the reader might select entries from the table of contents or from the headlines that appear in front of each essay, or
read all those together first that the index tells us mention, say, Lincoln or Whitman” (p. xxvi). Uma das tarefas a que se propõe é lembrar ao leitor que há aspectos apagados, esquecidos, não trabalhados que ele pode encontrar em outras fontes. Essa organização
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também possibilita o entendimento de um mesmo fenômeno literário por ele encontrados podem ser analisados de diferentes formas em vários ensaios. Os encontros são sempre variados e ricos, dependendo também da participação do leitor. Em suma, através de uma nova forma de escrita sugere-se uma nova função de para essa historiografia literária. Em vez da leitura fria, em que o leitor se deparava com uma visão unilateral das realidades literárias passadas, esse experimento pretende, através do encontro com esses ensaios, propor experiências fascinantes e inovadoras, em que o leitor toma papel ativo na construção do conhecimento. Examinarei o ensaio “2008, November 4: Barack Obama is elected 44th President of United States”, proposta interessante elaborada pela artista afro-americana Kara Walker. Ao ser solicitada a produzir algo sobre a eleição de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos, em vez de escrever um artigo, ela elabora imagens com as quais tenta lidar com a assunto. São ao todo seis gravuras, algumas com palavras, outras só as imagens, em que impera o jogo entre o claro-escuro, aludindo ao foto de Barack Obama ser o primeiro presidente negro dos Estados Unidos. O interessante dessa proposta é a surpresa que causa esse tipo de produção em uma historiografia literária. Mas, acredito, não deixa de ser uma surpresa estimulante, que em vez de propor uma leitura hermenêutica da eleição, abre para diversas leituras. Apesar de ser uma amostra superficial dessa proposta alternativa de historiografia literária, percebemos que a historicidade ultrapassa a ideia de contexto de produção, possibilitando novas formas de olhar cada contexto cultural. Da mesma forma, a História não é vista como uma enumeração de dados, mas argumentos interessantes sobre os temas abordados. Cada colaborador, de maneira criativa e atenta, fez conexões inovadoras que permitem um novo olhar sobre eventos que por sua canonicidade, por vezes perderam a sua força de comoção. Mas, também fica claro que elas são apenas mais uma das leituras possíveis para tais fenômenos, corroborando para uma percepção complexa do sistema literário, da História e da História Literária. Siegfried Schmidt afirma que a “sociedade parecia necessitar de novas histórias de literatura e, por conseguinte, as discussões sobre questões aparentemente sem resposta fossem subordinadas a um preenchimento imediato da necessidade social” (SCHMIDT, 1996, p. 102). Contudo, há uma série de questões quando se fala de literatura que tornam a escrita da história literária algo extremamente intricado, ressaltando também a complexidade que é tratar desses dois discursos: o histórico e o
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literário. Fica latente que alguns modelos presentes não fazem mais sentido, perderam sua funcionalidade. Acredito que Nietzsche (2012) tinha razão, é necessário um sopro de gaia ciência para revitalizar a historiografia literária. E como escrever histórias de literatura, cujo objeto lida diretamente com a afetividade e com a sensibilidade tentando enquadrá-la em um modelo hermenêutico? Como uma crítica hermenêutica, que propõe um distanciamento entre o sujeito pesquisador e o objeto analisado pode querer manter o encantamento existente no sistema literário? Em palestra proferida na Academia Brasileira de Letras, o professor João Cesar de Castro Rocha fez uma análise sobre as crises na crítica e na literatura. Ele falava sobre a perda da centralidade da literatura na transmissão de valores culturais, mas não considerava isso por um viés saudosista ou angustiado. Ao contrário, em sua visão, houve uma espécie de libertação da literatura do compromisso com o nacionalismo e de ter que ensinar algo. Nesse sentido, em vez de lastimar essa mudança, deveríamos pensar em formas alternativas de lidar com os textos literários. É essa a proposta de A New Literary History of America. Podemos até questionar se esse experimento consegue de fato cumprir a tarefa a qual se coloca. Mas não deixa de ser uma alternativa interessante diante dos debates analisados o esforço desse experimento em medir o sistema literário “pelo encantamento que ele produz em nós”. Referências: BARROS, Manoel de. Sobre Importâncias. In: Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010, p.407. CANDIDO, Antonio. “Crítica e memória”. In: O albatroz e o chinês. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2010, p. 33-42. CESERANI, Remo. Raccontare la letteratura. Torino: BollatiBoringueri, 1990. ------------------------. “Literary Histories in Portuguese”. In: ROCHA, João Cezar de Castro (org.). Portuguese literary & cultural studies 26. Massachussets: Tagus Press, 2014, p. 17-41. CULLER, Jonathan. “Em defesa da superinterpretação”. In: ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 53-77.
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Rocha.
2014.
Acesso
em
11/06/2014.
Disponível
em
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AUTORES E OBRAS DA LITERATURA PARANAENSE (1850 A 1900): VERBETES Aline Miyuke Miyamoto (UEM) Linguística, Letras e Artes; Literatura Brasileira. Palavras-chave: Literatura paranaense, Autores e obras, Verbetes. RESUMO “Autores e obras da literatura paranaense (1800 a 1900)”, projeto de cunho quantiqualitativo, pressupunha uma forma de ação planejada de caráter social, educacional e técnico e tinha como foco principal o levantamento exaustivo de informações acerca da produção literária do Paraná, no período compreendido entre 1850 e 1900, visando à reflexão sobre os momentos iniciais da escrita da história da literatura paranaense, na etapa denominada “Origens e primeiras manifestações literárias na província (1850 1900)”. Como resultados, a pesquisa previa a elaboração de verbetes sobre autores e obras, conforme proposta do projeto “Portal da Literatura Paranaense: formação e consolidação de um campo literário”, financiada pela Fundação Araucária, que, em síntese, pretende levantar e analisar momentos da formação e da consolidação do campo literário no Paraná (1850 – 2010), com o objetivo de contribuir para a compreensão do processo de escrita da história da literatura no Estado, no que se refere à produção de gêneros literários, dramático, narrativo e lírico, bem como propiciar a interrelação com o sistema cultural brasileiro, de modo a fomentar a divulgação da cultura paranaense em outras regiões do país, da qual este trabalho é um recorte. INTRODUÇÃO No contexto de constituição e consolidação daquilo que reconhecemos como “cultura brasileira”, as diferentes regiões do país surgem como espaços de criação e transformação. Entretanto, é preciso notar que alguns eixos em determinadas épocas assumem a hegemonia no que se refere à divulgação e validação de suas produções culturais, o que também significa sobrepor suas representações de mundo em termos nacionais e, por vezes, internacionais – concorrendo para que esta ou aquela forma de se enxergar a cultura brasileira seja considerada como “legítima”. Para o leitor ou pesquisador menos consciente da heterogeneidade da constituição do povo paranaense, restam, por vezes, poucos autores considerados mais representativos para o imaginário nacional. Se este processo é comum nas artes, sua constante revisão permite que diferentes manifestações culturais possam enriquecer o sistema cultural e, peculiarmente, o literário, implicando maior integração entre as diferentes regiões do
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Brasil, bem como maior e melhor correlação entre representações e, consequentemente, visões de mundo e discursos sobre si, sobre a região e sobre a nação. Materiais e métodos Pesquisa bibliográfica: leitura de jornais, revistas e obras de história do Paraná e de história da literatura que devem servir de subsídio para: Sistematização do campo literário no qual surgem as primeiras produções literárias no Paraná. Levantamento de autores e obras paranaenses do período entre 1850 a 1900. Leitura de obras específicas de teoria, história e crítica sobre literatura paranaense. Redação de verbetes sobre autores e obras levantados. Redação do Relatório Final. Realização de seminários e discussões com o professor-orientador para a sedimentação de conceitos obtidos através de leituras propostas para o embasamento histórico-teórico. Resultados e Discussão Levantamento de autores paranaenses: Andrade Muricy; Emiliano Perneta; Emílio de Meneses; Júlia da Costa; Nestor Vitor; Rocha Pombo; Tasso da Silveira. Redação de verbetes sobre os autores levantados, como exemplo, verbete da autor “Emílio de Meneses”: Emílio de Meneses nasceu em Curitiba, em 1866, faleceu no Rio de Janeiro, em1918. Foi jornalista e poeta. Filho de poeta, o escritor Emílio Nunes Correia de Menezes e de Maria Emília Correia de Menezes, era o único filho homem, tendo mais oito irmãs. Fez os ensinos primários e secundários no Paraná, com 14 anos começa a trabalhar na farmácia de seu cunhado; aos 18 anos muda-se para o Rio de Janeiro, acompanhado de Rocha Pombo, se mudou pela influência do movimento simbolista. Desde pequeno já se destacava pela originalidade de sua personalidade e hábitos, usava roupas extravagantes e suas maneiras também eram assim; além de sua extraordinária imaginação. Chegando ao Rio de Janeiro, Emílio de Meneses se aproximou de jornalistas e boêmios, se envolvendo no meio jornalístico. Por intermédio de Nestor Vítor, quem o aconselhou a trabalhar com um dos mais conhecidos educadores do Rio, o professor Coruja, seguindo esse conselho, isso lhe abriu as portas para muitas oportunidades. Um
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ano mais tarde, o escritor paranaense se casou com uma das filhas de professor Coruja. Emílio obteve uma nomeação para trabalhar como funcionário de Recenseamento federal em Curitiba. Depois concluir o trabalho, retorna ao Rio. Nessa época, poucos indivíduos resistiam o modo de ganhar dinheiro fácil, então Emílio juntou um capital, investiu em bolsas de valores e pouco tempo depois estava rico. Usufruiu de capital comprando carros de luxo e colecionando obras de arte, entretanto, com tempos de crise, perde todo o seu dinheiro. Contudo, a vida boêmio que adotou, ele não abandona e continua a viver sem preocupações e em bares, sempre acompanhado de poetas e jornalistas. Começa a trabalhar como colaborador das colunas humorísticas dos jornais. O poeta inspirava-se na publicação de poesias satíricas, sob vários pseudônimos como: Neófito, Gaston d’Argy, Gabriel de Anúncio, Cyrano & Cia., Emílio Pronto da Silva. Em1897, ele teria sido também um dos fundadores, mas havia preconceitos contra a sua maneira de viver, a vida boêmia. Entretanto, foi eleito para a instituição em 15 de agosto de 1914, sucedendo a Salvador de Mendonça. Emílio fez um discurso de posse, em que revelava nada compreender de Salvador de Medonça, nem na expressão da atuação política e diplomática, nem na superioridade de sua realização intelectual de poeta, ficcionista e crítico. A Mesa não permitiu a leitura do discurso e o sujeitou a algumas emendas. Emílio resistiu o quanto pode antes de aceitar essas emendas, e quando faleceu, quatro anos depois de ter sido eleito, ainda não havia tomado posse de sua cadeira. Emílio foi muito mais do que um crítico dos personagens da sua época, tanto que é considerado não apenas um dos poetas parnasianos mais autênticos, como também o autor de poemas simbolistas de extraordinária beleza. Suas obras são: marcha fúnebre sonetos (1892); poemas da morte (1901); dies irae - A tragédia de Aquidabã (1906); poesias (1909); últimas rimas (1917); mortalha - Os deuses em ceroulas - reunião de artigos, org. Mendes Fradique (1924) e obras reunidas (1980). Conclusões Os verbetes são instrumentos importantes, de fácil consulta, para a constituição da história e literatura paranaense, uma vez que, disponibilizados em site próprio, trazem informações sobre os escritores que fazem parte do acervo literário do Paraná, muitos desconhecidos do público-leitor.
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Agradecimentos Agradeço à Fundação Araucária, à Professora Alice, a meus pais pelo apoio de sempre e à Universidade Estadual de Maringá. Referências BURKE, Peter. (org.) A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Momentos decisivos (2 vol.) São Paulo: Martins Fontes, 1959. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Duas Cidades, 1969. CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. 4. ed. Campinas: Papirus, 2005. CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e história. Porto Alegre: ARTMED, 2001. FIGUEIREDO, Eurídice (Org.). Conceitos de literatura e cultura. Niterói: EdFF; Juiz de Fora: EdUFJF, 2010. MARTINS, Wilson. A invenção do Paraná. Curitiba: Imprensa Oficial, 1999. RITTER, Marina Lourdes. As Sesmarias no Paraná no Século XVIII. Curitiba: IHGEP, 1980, p. 119-208
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A IDEOLOGIA DE JORGE LUÍS BORGES EM TORNO DO GOVERNO PERONISTA PRESENTE EM SUA OBRA
Aline Venturini (UFRGS)
O governo Perón foi tema da ficção de vários escritores da América do Sul. Sua representação oscila entre a canonização e a demonização. Outros, porém, de acordo com Burgos (2007) apontam para uma análise da fantasia que o próprio governo Perón criou para si próprio, a fim de sustentar a ideologia que o embasa. Jorge Luís Borges está entre eles. Neste presente trabalho, analisaremos a perspectiva ideológica de Borges em torno de Perón e dos mecanismos que usa para sustentar as ideias de seu governo, considerado nacionalista e populista. O escritor argentino, anti peronista e antinacionalista convicto, discorda da ideia de nacionalismo que o governo Perón prega, pois, na sua visão, é nocivo, porque estimula o ódio entre nações, diferentemente do sentimento nacional benéfico, o qual reconhece sua verdadeira identidade, sem simulacros e fantasias. Essa ideia remete à construção da identidade da Argentina como nação tendo como um de seus pressupostos o governo Perón e suas características. Nesse contexto, pensamos no conceito de identidade postulado por Benedict Anderson (2008), o qual afirma que não existe identidade nacional verdadeira ou falsa, mas sim, imaginada, pois não é possível conceber uma perspectiva que defina todos os habitantes de um país. Logo, o Governo Perón construiu uma perspectiva imaginária enaltecedora do país e de seu próprio mandato, populista e nacionalista. Desse modo, considerando a visão que Borges imprime em suas obras em torno de Perón e de sua discordância com o nacionalismo pregado por ele, entendemos que o conceito de nacionalismo de Borges é semelhante ao que Raymond Williams (2007) postula sobre nacionalismo Figuras históricas são, geralmente, idealizadas pelo discurso historiográfico, pois muitos de seus textos trazem apenas um ponto de vista. Contudo, não é somente a historiografia que se debruça sobre as vidas de personalidades históricas, mas também a literatura e o cinema. Simón Bolívar e Eva Perón são exemplos de figuras da história discutidas e representadas por esses dois discursos artísticos.
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A literatura consegue trazer mais pontos de vista do que um discurso historiográfico. Em torno de Eva Perón, existem muitos textos que a ficcionalizam, em razão de sua imagem ter se cristalizado na cultura popular e na história do país. Geralmente, essa representação pode ser ufanista ou demonizada, como observa Burgos: Los textos que asediaron la figura de Eva Perón, en general establecieron una tradición de interpretación que repetió los linenamientos de una lógica falocéntrica, que le otorga a la potencialidad femenina, causas patológicas. Marie Langer dice: “Por materializar viejas fantasías ejercía un poder mágico sobre todos. Sobre unos, como objeto externo a sus idealizaciones, y sobre todos, paralizándolos, por simbolizar para ellos el mal, la araña, la madre cruel que chupa, castra y mata”(LANGER, 1957, p.94). En general, una escritura de hombres , que no puede asir el fenómeno del amor odio que despertaba Evita y que revela la impossibilidad de su representación , desde otro punto de vista, que el modo dicotómico del melodrama , por el cual, o es demonizada, o canonizada. (BURGOS, 2007, p. 2)
O fato das ficções em torno de Evita possuírem, em sua maioria, somente duas perspectivas atesta o poder da ideologia peronista. Mais tarde, uma outra visão começou a surgir: a de que a imagem de Evita era manipulada, de modo que ela também era um objeto a ser transformado e simulado. Tanto seu comportamento, sua aparência, sua saúde e até sua morte eram ficcionalizadas, transformadas, em favor do regime peronista e esse aspecto passa a ser apontado na literatura. De acordo com Burgos: Eva llegó a ser metáfora de la Argentina. Recordemos que el film que inauguro la democracia, se denominó “La República perdida”, como perdido estuvo también , el cadáver de Eva durante dieciocho años. El proyecto de erigir un monumento funerario, donde se exhibiese su cuerpo embalsamado sobre un cristal, para dar la sensación de que levitaba, se truncó con en golpe cívico-militar que destituyó Perón en 1955. (…) Cada autor reelabora de formas diversas y de algún modo subyacentes, en el imaginario popular sobre la vida y la muerte de Eva. Utilizan temas , símbolos y formas , entre ellas, la confesión autobiográfica, que a veces usan tanto el autor, como el narrador. Muchos se ubican de lleno, en el ámbito de la ficción, lo que les permite colocarse sin contracciones, en el interior mismo de la versión heredada delo imaginario y simbolizar lo que ellos quieren ilustrar, en el marco de las polémicas ideológicas. Por ejemplo: Jorge Luís Borges, David Viñas, etc. (BURGOS, 2007, p. 4)
Neste presente artigo, apresentaremos o ponto de vista literário de Borges, sobre a figura histórica de Eva Perón, primeira dama argentina dos anos 40. O texto de Borges trata da manipulação da imagem de Eva pelo governo peronista a fim de reforçar sua ideologia. É “El Simulacro”, de Jorge Luís Borges, em que a primeira
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dama argentina mostra algo que não é a realidade. Há um simulacro em torno de sua morte. O texto serve para criticar a canonização do poder peronista, que lhe dá uma aura quase de religiosidade, de culto, através da figura de Evita. A literatura sempre foi vista por Borges como uma forma estética cujo principal objetivo era representar uma perspectiva diversa da realidade. O autor rejeita textos que servem à uma ideologia política, pois acredita que isso limita a sua expressão. De acordo com Sarlo: Borges se resistió siempre a un uso político de la literatura. Sin embargo, en la trama de algunos relatos se teje, oculta por el esplendor de los mundos imaginários, una pregunta sobre el orden. Cuentos que, según todas las reglas, pertenecen a la más pura tradición de La literatura fantástica, examinan las condiciones de existencia de uma sociedad, en situación narrativa, organizaciones institucionales fundadas en la opacidad del poder, en la arbitrariedad o en el despotismo.La cuestión del buen orden es examinada muchas veces por Borges, así como la lógica de un mundo donde prevalece el desorden cuando El principio de la ley está oculto o ausente.(SARLO, 2007, p. 157)
A literatura, para Borges, não é um mecanismo ideológico político partidário. Seu entendimento de influência na literatura como social consiste em mostrar que dentro da pretensa ordem das instituições políticas há a desordem, porque o próprio mundo natural também é assim. Borges acredita que não há um estado que possa garantir a ordem absoluta, porque esta não existe, Deste modo, cria mundos imaginários em que representam essa contrariedade e a contradição. Através dessa representação fantástica, o autor mostra que as leis que regem a ordem da sociedade e da política não passam de simulacros da mesma, uma vez que, na prática, o que existe é o jogo de interesses, de poder, arbitrariedade e nepotismo. Perspectiva que o autor refere especialmente ao Governo Perón, cuja característica principal é ser nacionalista. Borges e sua família tem uma oposição histórica com o nacionalismo, posto que seu bisavó era contrário aos federalistas (representantes do caudilhos dominantes no interior da Argentina). Além disso, Borges foi retirado da biblioteca onde trabalhava, nos anos 40, pelo Governo Perón, justamente por sua oposição, e foi nomeado inspetor de aves, o que lhe causou muito desgosto :
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En 1946 subió al poder un presidente de cuyo nombre no quiero acordarme. Poco después fui honrado con la noticia de que había sido “ascendido” al cargo de inspetor de aves y conejos en los mercados.Me presenté en la Municipalidad para preguntar a qué se debía ese nombramiento. “Mire” –dije al empleado-, me parece un poco raro que de toda la gente que trabaja en la biblioteca me hayan elegido a mi para desempeñar este cargo.” “Bueno-contestó el empleado-usted fue partidario de los aliados durante a guerra. Entonces ¿qué pretende?” Esa afirmación era irrefutable, y al día siguiente, presente mi renuncia. Los amigos me apoyaron y organizaron una cena de desgravio. Preparé un discurso para la ocasión, pero como era demasiado tímido Le pedi a mi amigo Pedro Henríquez Ureña que lo leyera en mi nombre. (BORGES,
1999, p.112)
Além da questão política presente em sua família, Borges também tem uma questão pessoal. Para ele, na posição intelectual que ocupava como escritor, o posto de inspetor de aves que o Governo Perón lhe conferiu significou uma espécie de humilhação.
Há, sobretudo, o antinacionalismo de Borges. Contudo, esse sentimento tem a ver com a concepção de que o Governo Perón não exercia o nacionalismo no seu sentido positivo, como a construção da identidade da nação como algo paulatino e gradual, como um sentimento de reconhecimento da nação, e sim, como uma forma de se sobrepor às outras nações, e, sobretudo, construir uma imagem ilusória, fictícia, ligando a identidade da Argentina especialmente ao seu governo. Podemos revisitar o conceito de nacionalismo postulado por Williams (2007) que coloca esses dois tipos de nacionalismo. Nessa questão ainda há a ideia de que existe uma identidade nacional falsa e outra verdadeira, autêntica.Percebemos que o escritor tinha um pendor nacionalista, nos sentido da busca pela sua autenticidade, em seus primeiros textos, posto que procurava ser mais local. Contudo, há a mudança de posicionamento no momento em que estes primeiros ensaios foram retirados de sua obra completa e Borges assume a sua condição de escritor cosmopolita e universal, afirmando uma perspectiva contrária ao apego demasiado ao local pelos escritores argentinos. Neste momento, passa a considerar a questão da identidade como uma construção, de acordo com o pensamento de Benedict Anderson (2008), o qual “afirma que a identidade nacional só pode ser inventada, posto que não é possível todos os habitantes terem apenas uma identidade” (ANDERSON, 2008, p.8). Dessa forma, a invenção se faz necessária pra que todos tenham sentimento de pertencimento,o que resulta no nacionalismo exacerbado, sentimento que Borges
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combate. E esse tipo de nacionalismo ele vê como principal característica do Governo Perón. Por isso, o texto de Jorge Luís Borges vai tratar especificamente desse sentimento de idolatria com a morte de Eva Perón. “El Simulacro”discorre sobre o fato de um pequeno vilarejo erigir um altar imitando simulando o velório da primeira dama argentina. Primeiro, descreve a cena sem identificar os personagens principais, no caso, Perón e Evita: (...) la gente lo trataba con deferencia, no por él sino por el que representaba o ya era. Eligió un rancho cerca del río; con la ayuda de unas vecinas armó una tabla sobre dos caballetes y encima una caja de cartón con una muñeca de pelo rubio. Además, encendieron cuatro velas en candeleros altos y pusieron flores alrededor. La gente no tardó en acudir. Viejas desesperadas, chicos atónitos, peones que se quitaban con respeto al casco de corcho, desfilaban ante la caja y repetían: “Mi sentido pésame, general”. Éste, muy compungido, los recibía junto a la cabecera, las manos cruzadas sobre el vientre, como mujer encinta. Alargaba la derecha para estrechar la mano que le tendían y contestaba con entereza y resignación: “Era el destino. Se ha hecho todo lo humanamente posible”. Una alcancía de lata recibía la cuota de dos pesos y a muchos no les bastó venir una sola vez. (BORGES, 1960,
edição 2009, p. 200)
Em um primeiro momento, Borges descreve a cena como se fosse um velório qualquer, mas já dá pistas de que se trata de um viúvo e de sua mulher sendo velada. Também já sabemos, à esta altura, que o viúvo possui patente militar e é alguém importante, contudo não identifica Perón e Evita. O lugar onde ocorre a representação era bem simples, na beira de um rio, indicando que as pessoas que realizavam o culto eram pobres e humildes. A cena repetia-se, na verdade, em vários lugares: em vilarejos, igrejas, escolas, instituições... Várias pessoas circulavam em torno do caixão demonstrando seus pêsames, como crianças, idosos e adultos, para ilustrar o sentimento geral de tristeza e adoração. O culto repetia-se em muitos lugares e a consternação era geral. O fato mais curioso é que o funeral de Evita era representado, reforçando a ideologia e o sentimento nacionalista que sua figura evocava, como a rainha dos pobres e dos descamisados. De acordo com Burgos: Jorge Luis Borges en El simulacro, evoca con conmiseración, la reverencia con que el pueblo peronista erigió altares en todo el
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territorio, para homenajear a “la Difunta”. Hubo un hecho real: los altares se erigieron en escuelas, lugares públicos y privados, pero Borges lo resemantiza al denominarlo y hacerlo funcionar en su ficción, no como un altar conmemorativo, sino directamente, como un simulacro del velatorio, en el que además, se hacía colecta a beneficio del viudo. Estos simulacros obedecían, según él, a la indisculpable ignorancia de sus seguidores.Borges siempre insistió en interpretar los acontecimientos del periodo peronista como simulacros en los que aparecía como un invariante, el aspecto dramático-sentimental Verbigracia: “Más curioso fue el manejo político de los procedimientos políticos del drama o del melodrama.(BURGOS, 2007, p.5)
Há o questionamento da eficácia do regime de Perón por Borges: se este governo conquistou realmente o povo, por que há a necessidade de construir um simulacro do funeral de Evita em vários lugares do país? Neste ponto, Borges denuncia que Perón construiu uma imagem para sua mulher e usa dela para afirmar a ideia populista. Com isso, abafa as possíveis oposições ao seu governo, de modo que o povo em geral era ignorante das injustiças praticadas. Assim,o texto de Borges reapresenta e ressignifica um fato real: os altares construídos para Evita realmente aconteciam, mas eram vistos como homenagens. Para Borges, são encenações construídas para reforçar a popularidade de Perón. A perspectiva do funeral encenado, antes vista como positiva pelo povo, no texto de Borges é negativa. A posição de Borges sobre os diversos “funerais” de Evita, como verificamos, não é neutra e também é orientada por uma ideologia, por razões históricas de sua família e também pessoais. Se no início do texto ele não identifica nem o objeto da homenagem, nem o general, no final o faz muito claramente: ¿Qué suerte de hombre (me pregunto) ideó y ejecutó esa fúnebre farsa? ¿Un fanático, un triste, un alucinado o un impostor y un cínico? ¿Creía ser Perón al representar un doliente papel de viudo macabro? La história es increíble pero ocurrió y acaso no una vez sino muchas, con distintos actores y con diferencias locales.En ella está la cifra perfecta de una época irreal y es como reflejo de um sueño o como aquel drama en el drama, que se vê en Hamlet. El enlutado no era Perón y la muñeca rubia no era la mujer Eva Duarte, pero tampoco Perón era Perón ni Eva era Eva sino desconocidos o anónimos (cuyo nombre secreto y cuyo rostro verdadero ignoramos) que figuraron, para el crédulo amor de los arrabales, una crasa mitología.
(BORGES, 1960, EDIÇÃO 2009, p. 200)
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No último parágrafo do texto, Borges se posiciona contrário às homenagens prestadas para Evita Perón por meio das simulações de seu funeral em diversas partes do país. Isso é demonstrado através da caracterização que ele opera dos eventos (farsa fúnebre) e pergunta que tipo de homem seria capaz de idealizá- los, de modo que, para o autor, só pode ser negativo, porque mais adiante o nomeia de “cínico, triste, alucinado, fanático, impostor.” Perón é chamado de “viúvo macabro”, deixando claro que o escritor não acredita na tristeza sincera do general pela perda da mulher, sendo que este também é uma espécie de simulacro, e sim, que a morte de sua esposa é usada de forma ideológica e política para explorar a credualidade e a emoção do povo, e por isso é caracterizado como macabro. De acordo com Orlandi (2001), “o discurso político em torno de um acontecimento é reelaborado para manter a posição de poder do enunciador” ( ORLANDI, 2001, p.5). Como tudo passa de um simulacro, em que “Perón não era Perón, nem Eva era ela mesma, e sim, uma boneca”, Borges lembra o drama de Hamlet e sua principal questão: “Ser ou não ser, eis a questão.”, que neste caso, o que importa não é ser, mas representar ser, mexer com o imaginário e a emoção popular, rememorando o fato do funeral em diversas partes do país, com atores distintos. Por isso, é algo que não é real, pois este é rememorado neste ritual, daí que o autor chama o fato de “a cifra perfeita de uma época irreal.” É o início da eternização de Evita como um símbolo mítico do Peronismo na Argentina. O mito é sempre referido em um tempo considerado eterno, não datado. A morte e o funeral de Eva Perón é um evento histórico, mas a repetição incessante de sua representação o torna um fato mítico, atemporal, isto é, retira a historicidade inerente nele e o inscreve na categoria de mito. Borges vê na repetição dos funerais vários simulacros, assim como tudo que o governo Perón realiza, dento de uma perspectiva dramática. De acordo com Burgos:
Es fundamental la carga de significación, que le da a una escritura, el acercamiento a un hecho histórico. La ficción, en ese caso, es una metáfora de ciertas ideas, percepciones, sentimientos, emociones, que el narrador tiene sobre el mundo. Los autores han realizado apropiaciones y representaciones del imaginario popular y las han volcado en sus textos literarios. Encontramos en ellos, matices políticos implícitos o explícitos. La parodia del mito es, en general, la principal forma de
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apropiación, llegando a convertirse en un mecanismo productor de nuevos géneros. (BURGOS,2007, p.16)
A partir da perspectiva de Borges sobre o peronismo, especialmente sobre Eva Perón, verificamos que este autor considera os mecanismos de convencimento do povo como uma grande ficção, uma série de simulacros, para melhor afirmar. Entretanto, seu texto não é imparcial, posto que há divergências políticas históricas em sua família que construíram o seu posicionamento político, especialmente em relação ao populismo que o governo Perón exercia. Por isso, o texto de Borges está permeado pelo seu posicionamento político pessoal, embora ele não faça uso exclusivo da literatura para discutir política. O fato é que , para Borges, os governantes fazem uso da ficção e ligam a suas ideologias, sempre à identidade nacional, para afirmar as suas ações e para se perpetuarem no poder. E isso equivale a perguntar-se , como o faz Hamlet: “ser o não ser, eis a questão”, da obra de Shakespeare “O pequeno príncipe.” Para manter o poder, mais do que ser, é necessário parecer com o que o povo espera que o governante seja, e isso sempre consiste em uma construção de um simulacro, que , na maioria das vezes, não corresponde, necessariamente, a uma verdade absoluta.
Referências Bibliográficas ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Cia das Letras, 2008. BORGES, Jorge Luís. El hacedor . IN: Obras Completas III.Buenos Aires: Emecé, 2009. ________________. Autobiografia. Buenos Aires: EMECÉ, 1999. BURGOS,
Nídia.
representações,
e
Os
textos
literários
deslocamentos
do
sobre
Eva
imaginário
Perón:
popular.
apropriações, In:
REVISTA
IMAGINÁRIO. USP: 2007, Vol 13, n 14 67-83. ORLANDI, Eni. Cidade Atravessadaurbano.Campinas, SP: Pontes, 2001.
os
sentidos
públicos
no
espaço
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SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas. 2ª.Ed. Buenos Aires: Seix Barral, 2007. WILLIAMS, Raymond. Palavras –chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Trad. De Sandra Guardini Vasconcelos. –São Paulo: Boitempo, 2007 .
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PELOS “CAMINHOS DA TERRA”, DE ENEIDA DE MORAES Alinnie Oliveira Andrade Santos (UFPA/CAPES) Introdução
Viajar ao mundo socialista nos anos de 1950 era a realização de um sonho para um membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), além de complementar sua formação como militante. Assim, nesse período, muitas viagens à União Soviética e, posteriormente à China, foram realizadas, tornando-se uma prática comum na época. Além disso, os viajantes sentiam a necessidade de escrever relatos sobre o que viam nesses países para divulgar aos brasileiros como era a vida em um país socialista, bem como propagar as ideologias desses países. Assim, praticamente todo o militante, que fazia essa viagem, escrevia sobre suas experiências. Dentre os intelectuais brasileiros que viajaram ao mundo socialista figuram os escritores Graciliano Ramos (1892-1953), Dalcídio Jurandir (1909-1979) e Eneida de Moraes (1903-1971). Eneida de Moraes, por exemplo, em 1959, viajou para o mundo socialista, convidada a representar os escritores brasileiros no III Congresso de Escritores da URSS. Sua viagem se estendeu à China e ela publicou suas experiências, primeiro em crônicas para o periódico carioca Novos Rumos, onde assinava uma coluna, depois compiladas no livro Caminhos da Terra (1959). Objetivamos, pois, analisar os relatos de viagem dessa autora para verificar o registro que elaborou sobre suas experiências no mundo socialista, como também refletir sobre as manifestações ideológicas presentes nesse texto.
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Viajar à União Soviética: um sonho camarada Desde a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) 1, seus militantes viam a União Soviética como um modelo sociopolítico e econômico de desenvolvimento. Os poucos periódicos comunistas que circulavam na época divulgavam os feitos e avanços da URSS, na tentativa de demonstrar “a transformação de um país retrógrado num mundo melhor e totalmente diferente do capitalista” (SOTANA, 2006, p. 35). Em posse dessa visão construída do país soviético, os comunistas brasileiros passaram a vê-lo como um lugar melhor que os países capitalistas e um exemplo a ser seguido, defendendo a implantação do socialismo no Brasil. Dessa forma, os militantes do Partido, começaram a realizar, ainda na década de 1920, viagens ao mundo socialista, objetivando conhecer esse país regido pelo socialismo. Sendo assim, muitos intelectuais e artistas receberam convites para conhecer a URSS. Apesar de essas viagens terem se iniciado nos anos 1920, somente na década seguinte relatos foram publicados em livro. Em 1931, Mauricio Medeiros publicou um dos primeiros relatos de viagem ao país soviético, o livro Rússia Notas de Viagem, Impressões, Entrevistas e Observações sobre o Regime Soviético. Essa publicação foi seguida por Onde o Proletariado Dirige, de Osório César, em 1932; Um Engenheiro Brasileiro na Rússia, de Cláudio Edmundo, em 1933; URSS: um Novo Mundo, de Caio Prado Junior, em 1934 e URSS, Itália e Brasil, de Astrojildo Pereira, em 1935, entre outros. Ao voltar para o Brasil, os viajantes divulgavam o que viram na viagem, atitude que era vista com bons olhos tanto pelo PCB, como pela URSS. No entanto, durante o Estado Novo e a Segunda Guerra Mundial, essas viagens foram interrompidas, somente sendo retomadas pelos brasileiros em 1948. Nesse ano, os comunistas Jorge Amado e Zélia Gattai foram à URSS a convite da União dos Escritores Soviéticos. Em 1952, uma comitiva de militantes comunistas foi assistir às festividades de 1º Maio na União Soviética, dentre os quais, os escritores Graciliano Fundado em março de 1922 por, na sua maioria, operários ativistas do movimento sindical, o PCB objetivava ser a organização política do proletariado. Meses depois, em Julho, é posto na clandestinidade, vivenciando, até 1945, raros momentos de legalidade. O período de 1945-1947 é o momento em que o Partido se estrutura e tem representantes nos pleitos eleitorais. Há de se salientar que desde a sua origem até o inicio dos anos 1960, o partido chamava-se Partido Comunista do Brasil (PCB). Como em 1962, um novo partido político foi criado com a designação anterior do PCB, optamos neste trabalho, por fazer uso do seu atual nome, Partido Comunista Brasileiro. 1
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Ramos e Dalcídio Jurandir, o senador Abel Chermont, o advogado Sinval Palmeira, o juiz Geraldo Irineu Joffily e o pianista Arnaldo Estrela. Durante esse período, os viajantes estrangeiros que chegavam à URSS tinham sua permanência no país controlada pelos anfitriões, os quais se esforçavam para apresentar apenas os aspectos positivos da sociedade soviética. Duas instituições russas eram utilizadas com o intuito de organizar e controlar o roteiro de passeios e visitas dos estrangeiros: A Sociedade Anônima de Turismo Estrangeiro (Intourist) e a Sociedade para as Relações Culturais da URSS com os Países Estrangeiros (VOKS). Esses dois órgãos objetivavam propiciar um maior conforto aos viajantes com um organizado serviço de recepção dos turistas estrangeiros, muito provavelmente visavam submeter o visitante a uma espécie de controle estatal, direcionando, muitas vezes, as visitas empreendidas pelos turistas estrangeiros (SOTANA, 2006, p.143).
Após o relatório anti-Stalin apresentado por Nikita Kruschev, o itinerário dos viajantes foi modificado e a China começou a ser visitada por comunistas brasileiros: “o início das viagens à China pode ser justificado pela curiosidade dos viajantes, pela descrença na União Soviética, após o relatório de Kruschev, e pelo rompimento de militantes com o PCB.” (SOTANA, 2006, p.121). Segundo os relatos de viagens de alguns desses viajantes, quando voltavam do mundo socialista, sentiam a necessidade de escrever sobre as suas experiências nesse lugar, desconhecido da maioria das pessoas, até mesmo dos militantes comunistas. Até esse momento, além dos relatos publicados na década de 1930, havia poucas publicações sobre a União Soviética, o que motivou ainda mais a escrita de relatos sobre essas viagens. Dentre os livros sobre as viagens escritos nessa época, podemos destacar O Mundo da Paz, de Jorge Amado (1951); Viagem à União Soviética, de Branca Fialho (1952); Moscou, Ida e Volta, de Edmar Morél (1952); Operários Paulistas na União Soviética: Notas e Impressões de uma Viagem de Membros da Delegação de 15 Trabalhadores Brasileiros Convidados pelo Conselho Sindical da URSS para a Participação das Celebrações do 1º de Maio de 1952 em Moscou, de Constantino
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Stoiano e outros autores (1952); Viagem, de Graciliano Ramos (1954); Moscou, Varsóvia e Berlim, de José Guilherme Mendes (1956); Cortina de Ferro, de Marques Rebello (1956); Zamir: uma viagem ao mundo da paz, de Afonso Schmidt (1956); Caminhos da Terra, de Eneida de Moraes (1959); A Grande Advertência, de João Pinheiro Neto (1961); URSS – O Mundo do Socialismo, de Caio Prado Júnior (1967) e As Muralhas de Jericó, de Josué Guimarães (escrito nos anos 1950 e somente publicado em 2001). Dessa forma, podemos perceber que as viagens, bem como os relatos de Eneida de Moraes, os quais analisaremos a seguir, que aconteceram no período da década de 1950, não foram um ato isolado. Na verdade, era uma prática comum entre os comunistas, que servia como um instrumento de divulgação da União Soviética entre os brasileiros. “Uma Viagem de Alice”: o relato de Eneida de Moraes Eneida Costa de Moraes nasceu em 23 de Outubro de 1904, em Belém e faleceu em 27 de Abril de 1971, no Rio de Janeiro. Aos 7 anos escreveu o seu primeiro conto com o qual ganhou um concurso realizado pela revista Tico-Tico. Em 1920, começou a colaborar na revista A Semana, passando a partir de então a contribuir para diversos periódicos, entre os quais, as revistas Belém Nova, Esfera, Leitura e os jornais O Estado do Pará, Tribuna Popular, Momento Feminino, Diário de Notícias, O Semanário, Para Todos e Novos Rumos. Em 1929, lançou o seu primeiro livro Terra Verde, uma coletânea de 26 poemas em prosa. Ao entrar em contato com esse livro, alguns anos mais tarde, o escritor Manuel Bandeira a incentiva a dedicar-se à prosa. Seguindo a sugestão, publicou os livros Cão da Madrugada (1954), Alguns Personagens (1954), Aruanda (1957), História do Carnaval Carioca (1958), Copacabana: História dos Subúrbios (1959), Romancistas também Personagens (1962), Banho de Cheiro (1962) e Boa Noite, Professor (1965). No ano de 1932, filiou-se oficialmente ao PCB, após algumas “provas de fidelidade”, que consistia em panfletagem de propaganda comunista em favor do
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Partido. Por sua militância foi presa diversas vezes, sob a acusação de ser agitadora comunista 2. Como membro desse partido, em 1959, Eneida de Moraes foi à União Soviética, estendendo sua viagem até a China e publicou nesse mesmo ano o livro Caminhos da Terra, no qual descreve suas impressões sobre o Congresso de Escritores, as pessoas que conheceu nesses países e os lugares que visitou, tais como a Praça Vermelha, o Museu Lenin, a Cidade Universitária em Pequim, entre outros. Caminhos da Terra, na realidade, foi a transformação em livro, elaborada por Eneida, das crônicas sobre essa viagem, que publicou durante os anos de 1959 e 1960 no jornal semanal do Rio de Janeiro Novos Rumos, na coluna intitulada O Mundo que eu vi. De fato, cada parte do livro é como se fosse composto de pequenas crônicas sobre sua visita a esses países. A escritora foi escolhida para representar o Brasil no III Congresso de Escritores da URSS, já que o presidente e o vice da União Brasileira de Escritores declararam-se impossibilitados de realizar tal viagem. Convite que aceitou “sem pestanejar”, pois “conhecer a URSS era um velho sonho” (MORAES, 1959, p. 1) para ela. É interessante ressaltar que a escritora paraense mencionou em seu relato que levava consigo, em todas as viagens que fazia, a sua máquina de escrever, demonstrando assim a sua necessidade de escrever sobre tudo o que iria vivenciar. Eneida passou por cidades europeias como Lisboa e Zurique, antes de chegar a Praga, um de seus destinos. Na capital suíça, a escritora comenta ser o fim da primeira etapa de sua viagem, em países capitalistas. No jato soviético que a levou à Tchecoslováquia, inicia os elogios que faz, no decorrer de seu relato, ao mundo socialista: Acabaram as divisões de classes. Viajo afinal de pernas estendidas e cheia de conforto, num magnífico avião. É um jato soviético que, sem que eu me apercebesse, chegou ao seu e meu destino. Viagem tão curta que nem parece uma viagem (MORAES, 1959, p. 5).
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Para saber mais sobre a obra e a militância política de Eneida de Moraes ver: SANTOS, Eunice Ferreira dos. Eneida Memória e Militância Política. Belém: GEPEM, 2009.
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Durante todo o seu relato, Eneida conversa com o leitor, convidando-o para também realizar essa viagem e apresentando para ele um itinerário de passeio pela capital russa e na Tchecoslováquia, construindo assim o seu livro com tais sugestões intercaladas com a descrição da sua própria experiência no mundo socialista: Acho que você, leitor ou leitora, gostará de se hospedar no Hotel Moscou. (...). Você poderá dançar durante o jantar. (...). No Hotel Moscou você terá um bom apartamento entre os seus oitocentos e tantos (...). O amigo chegando a Moscou num sábado, como eu cheguei, domingo de manhã diga que quer ir ao Teatro Bolshoi assistir o balé. O espetáculo começa às 11 horas da manhã e termina às 16 horas. Você vai adorar. Seu pequeno almoço fará com que agüente, sem fome, o espetáculo, mas se a fome chegar, há restaurante e casa de chá no Teatro (MORAES, 1959, p. 10, 13). Passe uns oito, dez, vinte dias em Praga e depois pense em conhecer a Tchecoslováquia. No quarto do hotel você encontrará guias de excursão nas mesas de cabeceira. (...). Você pode viajá-la de autoônibus, (já disse que as estradas são magníficas) de trem, ou de avião. Naturalmente escolha o que quer ver: cidades industriais, cidades de repouso, estações de águas (MORAES, 1959, p. 73).
Além do convite, Eneida defende o socialismo e traça diferenças entre este e o sistema capitalista, exaltando o primeiro e lançando críticas ao segundo. Ela procede assim principalmente por meio da comparação entre as cidades socialistas e capitalistas: Moscou é uma cidade limpíssima, uma das mais limpas cidades do mundo, a cada momento, em toda parte há sempre pequenos depósitos para serem jogados os papéis dos sorvetes, as baganas, tudo que suja as ruas. (...). Quando cheguei meses depois em Paris, já andava procurando depósitos para não colaborar com a sujeira das ruas. Mas ali tudo é diferente. Joga-se mesmo no chão. Paris é como o Rio: cidade sujinha. (MORAES, 1959, p. 27-28).
Além disso, a escritora diz que “domingo em todos os países do mundo é um dia triste”, mas não no mundo socialista, pois afirma que “é alegre um domingo de sol em Moscou”. Enfatiza também o suposto diálogo que teve com o filho de uma de suas intérpretes, que, morando em um país socialista, afirmara nunca ter visto um mendigo:
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Puxei conversa através de Eva. Do quarto ela ia traduzindo para o filho o que eu estava dizendo; suas respostas vinham pela mesma via. Perguntei: – Aqui não há mendigos? – O que é mendigo? Expliquei: mãos estendidas, fatos rotos, fome. E êle para Eva: – Mamãe anda depressa; esta mulher inventa cada coisa. João tem doze anos; nunca viu um mendigo. (MORAES, 1959, p. 67).
Ainda motivada pelo relatório anti-Stalin, a escritora paraense, apesar de enaltecer os líderes socialistas, menciona apenas duas vezes, em todo o seu relato, o nome de Stalin, sem tecer nenhum comentário sobre a sua figura e sobre o período em que liderou a União Soviética. Nessas duas menções, o nome do estadista soviético estava atrelado ao nome de Lenin, ou seja, a imagem e importância do primeiro foram ofuscadas, nos escritos de Eneida, pelo segundo: Ao fazer um resumo das suas impressões sobre a União Soviética, Eneida nem sequer menciona o líder socialista, como se ele não tivesse feito parte da história e da construção do socialismo nesse país: Passei três semanas na URSS. Nunca pensei que ela fosse assim, tão bela. Nunca pensei que o povo tivesse, como tem, tanto amor às coisas da arte. Nunca pensei que nele fosse como é tão grande o amor à Revolução, a Lenine, a Marx. (MORAES, 1959, p. 33).
Em Caminhos da Terra, Eneida faz questão de declarar que ficou encantada com a União Soviética, convidando o leitor para realizar a mesma viagem e ficar também encantado com tudo o que verá: Três semanas na União Soviética e confesso: caminhei de encantamento para encantamento. (...). Passei dois dias visitando o Museu de Literatura Tcheca. Vi tôda sua maravilhosa organização. (...) e todas as notas tomadas não conseguem dizer o encantamento que senti. Encantamento é pouco; direi melhor o entusiasmo de que fui possuída. (MORAES, 1959, p. 34, 65).
Ao visitar os palácios e castelos do tempo dos czares, a escritora paraense lembra-se da Rússia anterior à Revolução: “E lembrar que, naquele momento, a Rússia era um país de fome e de miséria. Como os potentados brincavam com a vida daquele
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povo” (MOARES, 1959, p. 32). E comenta o que o país se tornou após a intervenção dos revolucionários, evidenciando que, na sua visão, esses lugares visitados agora pertenciam ao povo e era este que, após 1917, recebia a atenção e os cuidados do Estado: “Aqui, como na URSS, e em todos os países socialistas, as grandes casas dos nobres, os velhos palácios dos reis foram transformados em museus abertos, com seus parques à visitação pública” (MORAES, 1959, p. 72). A única crítica que Eneida faz da URSS é a forma como é tratada por um guarda no aeroporto de Irkutsk, última parada que faz antes da China, o qual exigiu dela recibos de Moscou e Praga, declarando o dinheiro que possuía. Tais recibos não estavam mais em poder da escritora, fazendo com que o guarda a levasse ao comissariado, atitude que a deixou com muita raiva. Resolvida a situação, a escritora finaliza a sua crítica: “até na URSS há guardas implicantes.” (MORAES, 1959, p. 84), como se lá não fosse possível que ocorresse tal desentendimento. Quando decide estender sua viagem até a China, escreve: “agora eu ia fazer uma viagem de Alice; estava indo para um país de maravilhas” (MORAES, 1959, p. 80), reforçando ainda mais a idéia de seu deslumbramento diante dos países socialistas. Sobre esse país dedica o maior número de páginas de seu livro e grande parte do seu encantamento a começar pela capa da 1ª edição de Caminhos da Terra, que se trata de uma paisagem chinesa em papel recortado, demonstrando assim que de todos os países que visitou, foi este que lhe chamou mais atenção. Ao chegar à China, Eneida faz uma comparação entre a China antes de 1949, ano da Revolução Chinesa, e a nova China que há 10 anos estava em construção, enfatizando que o responsável por essas mudanças foi a implantação do socialismo por Mao-Tse-Tung: A China tem cinco mil anos de idade; foi uma nação escravizada por seis dinastias; foi pilhada, roubada, insultada por estrangeiros e exploradores nacionais; sofreu horrores de várias guerras e invasões; sua guerra civil durou trinta e três anos até que, a 1º de outubro de 1949, Mao-Tse-Tung anunciou aos chineses que a República Popular já possuía sua Constituição e avisou aos estrangeiros que a China não está mais à venda. Seiscentos e cinqüenta milhões de habitantes, num território de 5.480.000 quilômetros quadrados, puderam então sair da miséria, da escravidão, do analfabetismo e da lama em que estavam jogados. Pequim, capital e centro político da nova China, tornou-se o
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símbolo da independência, da prosperidade e da força do país. (MORAES, 1959, p. 91, 92).
A descrição das mudanças na China antes e depois da Libertação continua durante todo o relato, apresentando ao leitor que tais transformações só foram possíveis com o advento do sistema socialista, o qual foi tomando o lugar do capitalismo naquele país: Antes da Libertação havia ali [em Shangai] dois milhões de desempregados, chineses, naturalmente. O bairro chinês que visitei não era – no passado – freqüentado por “brancos” e nem automóveis, bondes e ônibus podiam chegar lá, para servir aos seus habitantes. Hoje é um bairro comum, com um tráfego intenso. (...). Onde foi o Banco da Inglaterra – e lá está gravado em mármore o nome – hoje é a sede do governo de Shangai, com uma bela estrela vermelha bem no alto e uma bandeirinha também vermelha que o vento do mar se encarrega de agitar (MORAES, 1959, p. 120, 123).
Outro elogio que a escritora dedica à China Socialista e aos demais países que seguiam o regime socialista com os quais entrou em contato é como o Estado incentivava a preservação da cultura tanto erudita quanto popular, ressaltando que, em sua opinião, esse cuidado existia para que o povo pudesse ter acesso a essa cultura:
Impressiona a qualquer pessoa honesta do mundo ocidental, o amor que se encontra em todos os países socialistas pelas coisas de cultura. Como todos os palácios, as casas de reis, nobres e ricaços, foram transformados em grupo de pessoas que os visitam, olhando, apontando, discutindo baixinho (MORAES, 1959, p. 100).
Como na época da viagem, a instauração do socialismo era muito recente, a escritora entrou em contato com alguns aspectos que estavam em desarmonia com o tal sistema. Eneida, no entanto, não critica a China, pelo contrário, defende-a explicando os motivos desses problemas e elogia os avanços que o socialismo trouxe para esse país que, segundo a autora, são reconhecidos por todos os chineses: Naturalmente quero saber se há muitos analfabetos. Já sei que uma das tarefas das crianças e dos jovens na China é alfabetizar os velhos; começam ensinando a ler o avô, ao pai, à mãe e assim, na própria
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família é liquidado o analfabetismo. é verdade que ainda há muitos velhos teimosos em não quererem aprender a ler e escrever; mas isso, com certeza, vai terminar logo. (...) mas precisamos não esquecer que a china festejou em 1º de outubro deste ano de 1959, apenas o décimo aniversário de sua libertação (MORAES, 1959, p. 94-96).
O mesmo encantamento que Eneida declarou sentir pela União Soviética, afirmou também ter diante de tudo o que presenciou na China, pois respondeu o seguinte quando perguntada se algo na China lhe desagradou: “disse-lhe que estava mais do que encantada, espantada e enamorada do que vira.”. Tanto que ao final dos seus escritos apresenta o desejo de um dia voltar a esse país. Assim, podemos perceber que o relato de Eneida de Moraes é coerente com o seu posicionamento ideológico, bem como sua filiação a um Partido Comunista, pois o seu livro é uma exaltação aos feitos que o socialismo promoveu nesses países visitados e uma crítica negativa ao sistema capitalista. Tais diferenças demonstram que não foi somente o que esses escritores viram que influenciou diretamente na construção dos seus escritos, mas também as suas convicções sobre os países socialistas que eram anteriores a essas viagens. Dessa forma, esses relatos não são uma apresentação fiel do mundo socialista da década de 1950, mas sim uma descrição permeada das ideologias que seus autores defendiam.
Considerações Finais O relato de Eneida de Moraes representa a forma como o mundo socialista era visto pelos intelectuais que tinham filiação com o PCB, pois entre as descrições que faziam dos locais visitados, exaltavam o socialismo e as políticas públicas organizadas pelo governo, bem como faziam críticas ao capitalismo. Nesse texto, a autora, como militante do Partido e defensora do socialismo, manteve um posicionamento favorável a tal sistema, criticando os lugares pelos quais passaram que não viviam sob esse regime. Apenas ao capitalismo são destinadas as condenações, nenhuma crítica é destinada ao mundo socialista. Esse relato embebido de um enorme encantamento diante de tudo o que viu nas terras socialistas, demonstra que não foi somente o que Eneida viu que influenciou
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diretamente na construção dos seus escritos, mas também as suas convicções sobre os países socialistas que eram anteriores a essas viagens. Dessa forma, Caminhos da Terra não é apenas uma apresentação fiel do mundo socialista da década de 1950, mas sim uma descrição permeada e condicionada às ideologias defendidas pela autora.
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A LITERATURA NO ENEM: QUESTIONAMENTOS, PERSPECTIVAS E PROPOSTAS Aluska Silva (UFCG) Contextualizando: a literatura no ENEM O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) vem apresentando novos matizes tanto do ponto de vista político, como de formatação de questões. Há portanto, uma necessidade de conhecer melhor as novas formas de avaliação que contemplem o ensino de literatura na prova do Exame, entendendo que a literatura oferece uma possibilidade de inserção em várias áreas do conhecimento presentes. A presença da literatura no Ensino Médio (EM), na educação contemporânea, é alvo de grandes discussões em meios acadêmicos e em documentos que norteiam a educação nessa fase escolar. A partir das Orientações Curriculares para o Ensino Médio - OCEM (2006), podemos constatar que ainda há um impasse no trabalho da literatura no EM, bem como uma visão pouco esclarecedora de uma perspectiva metodológica que justifique essa disciplina no currículo. O documento citado apresenta em seu sumário um questionamento no qual se tenta justificar tal disciplina no EM. O primeiro tópico nomeia-se: “Por que literatura no Ensino Médio?”, esse questionamento não é realizado para as outras disciplinas da área. Pensamos: por que será que a literatura necessita de uma razão de ser no EM? Abaixo, encontramos uma amostra da "marginalização" sofrida pela literatura na primeira versão do documento, em 2002: As orientações que se seguem têm sua justificativa no fato de que os PCN de ensino médio, ao incorporarem no estudo da linguagem os conteúdos de Literatura, passaram ao largo dos debates que o ensino de tal disciplina vem suscitando, além de negar a ela a autonomia e a especificidade que lhe são devidas. (BRASIL, 2006, p. 49. Grifo nosso).
Além da inserção da literatura aos estudos da linguagem, fazendo pouco caso
de suas especificidades, percebe-se que o próprio sistema que elabora os documentos reconhece a “falta de atenção”, a negação que foi dada a essa disciplina nos PCN. As Orientações Curriculares para o Ensino Médio, com a tentativa de minimizar o problema ocorrido nos Parâmetros Curriculares Nacionais, edição de 2002, apontam para um ensino de literatura que “humanize”, nas palavras de Antônio Cândido, os alunos, tornando-os além de leitores, cidadãos autônomos, crítico e intelectualmente. Para que essa humanização aconteça, faz-se necessário que o ensino, sobretudo, o de literatura, propicie aos alunos uma reflexão, de modo que possam entender o mundo ao seu redor, crescendo e amadurecendo enquanto pessoa. Ao
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discorrer sobre essa questão, as OCEM apresentam o artigo 35 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LBD) que garante ao aluno esse aprimoramento como "pessoa humana" e, segundo as OCEM, a literatura proporciona esse desenvolvimento de modo singular. De modo a dar prosseguimento aos estudos após a educação básica, como também é previsto pela LDB, o aluno pode optar pela formação técnica ou pelo ensino superior. É nesse momento que surgem os processos avaliativos em larga escala para o fim da educação básica, como o ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio no ano de 1998, alvo de nossas discussões nessa dissertação. O ENEM tinha como objetivo avaliar o desempenho dos alunos ao fim da Educação Básica. Posteriormente, foi utilizado como forma de ingresso dos candidatos em universidades privadas através do programa Universidade para Todos, o PROUNI. Atualmente, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) estimula as universidades federais a utilizarem o ENEM como forma única de ingresso nos cursos de graduação. Partindo do pressuposto de que o ensino se adéqua à forma de avaliação, sobretudo no nível médio, e que o ENEM surge como um importante Exame avaliativo e seletivo, questionamos: O que propõem as questões de literatura do ENEM e como essa nova proposta orienta a abordagem do texto literário? O ENEM é hoje, um grande “divisor de águas” para a formação do currículo para o ensino médio, tornando-se a única forma de ingresso nas universidades federais do Brasil. Documentos educacionais já incentivam a mudança de abordagem desse ensino, de modo a privilegiar a leitura reflexiva do texto literário, levando o aluno a criar hábitos de leitura; pois, o que ocorre, comumente, é um ensino literário voltado única e exclusivamente para o preenchimento de roteiros de leitura, exercício e análise de questões, e o mais grave – análises de acordo com o ponto de vista do professor, não do aluno, fazendo com que esse aluno, nas palavras de I. Martins (2006): [...]só estuda a literatura para „passar no vestibular‟, sem compreender o fenômeno literário à luz de uma perspectiva mais ampla que considere a natureza interdisciplinar da leitura literária, a função social da literatura como um meio de conhecer o universo transfigurado, reinventando o texto. (I. MARTINS, 2006, p. 94).
Relacionando o trecho supracitado à prática do professor em sala de aula, no que diz respeito ao ensino de literatura observa-se que, sobretudo, na última série do ensino médio, o aluno além de estudar a literatura a partir de um panorama historicista é
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obrigado, através dos programas de vestibulares, a ler uma média de seis livros literários que são contemplados nas questões de literatura.1 De forma a justificar a atualidade dessa pesquisa, apresentamos abaixo uma questão do ENEM, na qual se vale de um fragmento de um conto de Clarice Lispector para levar o candidato a diferenciar a funcionalidade do uso do conectivo "mas": ENEM 2010, caderno azul
Entendemos que os elementos linguísticos com suas respectivas funcionalidades devem, dentro de uma abordagem literária, complementar os sentidos presentes no texto. No entanto, o que observamos na questão é uma utilização de um fragmento literário de forma pretextual para a abordagem de um recurso linguístico e a alternativa correta pouco ajuda na compreensão do conectivo utilizado, pois não aponta quais são as funções discursivas que estão colocadas, apenas aponta que são diferentes. A prática da fragmentação também é vista em exames avaliativos. No ENEM, encontramos várias questões apresentando apenas fragmentos, e não só de textos em prosa. A questão do ENEM de 2009 apresentava o poema “Canção do Vento e da minha Vida”, de Manuel Bandeira e observa-se a supressão apenas de uma estrofe. Considerando que o mesmo poema seria objeto de resposta para duas questões, nos perguntamos o porquê de ter sido suprimida uma estrofe que nega ao aluno a possibilidade de ler o poema na íntegra. Com o ENEM o aluno não se vê mais na responsabilidade de ler as obras que serão abordadas na prova de forma mais direta como ocorria com os vestibulares, nem a própria prova oferece esse espaço de leitura integral do texto literário, por menor que ele seja. 1
O número de obras aumentava de acordo com a quantidade de universidades nas quais o aluno inscrevia-se.
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Práticas inadequadas na abordagem do texto literário ocasionarão o surgimento de fórmulas conteudísticas, sem se ter como foco a literariedade que é inerente à tessitura do texto; voltar-se-á, assim para características das escolas literárias as quais o texto está vinculado e não para o modo como o texto literário está abordando tais formas. Essas práticas não formarão competências necessárias para o surgimento de bons leitores literários, mas de alunos que buscam finalidades no estudo da literatura, como obter sucesso nas provas e passar de ano. De modo a observar como o exame está pensando o processo avaliativo do exame, apresentaremos adiante uma discussão sobre a avaliação em um contexto performativo e sobre os documentos oficiais para o nível médio, analisando a Matriz de Referência, mais especificamente, as competências que apresentam a literatura como foco, na área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, documento norteador para o Exame Nacional do Ensino Médio.
Avaliação: funções e aplicabilidades no contexto do ENEM A prática avaliativa é formadora de dados e de critérios para referendar aptidões, e é também uma fonte influenciadora dos sujeitos que, direta ou indiretamente, sofrem os seus efeitos e a ela se adaptam. Existem duas importantes vertentes inerentes ao processo sociológico da avaliação: a primeira diz respeito à avaliação mais imediata, determinada por critérios elaborados pelo professor em relação ao aluno; e, a segunda, diz respeito à realização das formas de aferição de índices de aprendizagem no contexto da sala de aula ou no ingresso dos alunos em outras instituições. Nesse contexto, são apresentados “Os níveis micro, meso e macro do sistema educativo”. (AFONSO, 2000, p. 17, grifos do autor). Para cada nível, desse sistema, a avaliação prestar-se-á a uma finalidade diferente, seja para realizar a aferição de conhecimento conteudístico dos alunos em uma sala de aula, seja para realizar competições através de nivelamento entre escolas, cidades e até mesmo países, a exemplo do PISA. Em um modelo capitalista, o poder do Estado vem regulando e avaliando as práticas escolares desde a década de 1980 com o modelo neoliberal 2. Diferentemente do 2
Neoliberalismo é a resposta à crise do capitalismo decorrente da expansão da intervenção do Estado, antagônica à forma mercadoria, ainda que necessária para sustentá-la. As políticas neoliberais perseguidas ao final dos anos 70 e no começo dos 80 por parte dos governos
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que se propõe nos documentos, ao analisarmos esse processo neoliberal e seus efeitos, percebe-se que o Estado está mais preocupado com o produto escolar do que com seu processo; fato que se agrava porque se distancia do que é proposto nos parâmetros curriculares para o ensino. Nesse sentido, o Estado cria mecanismos de controle e de punição mais eficazes do ponto de vista do desempenho, do país, sobretudo no âmbito econômico: A avaliação aparece assim como um pré-requisito para que seja possível a implementação desses mecanismos. Aliás, sem objectivos claros e previamente definidos não é possível criar indicadores e medir as performances dos sistemas numa época que se caracteriza pela exigência de acompanhamento dos níveis de educação nacional e pela necessidade de manter e criar altos padrões de inovação científica e tecnológica para enfrentar a competitividade internacional. (AFONSO, 2000, p. 49. Grifo do autor).
“Indicadores”, “Performances”, “Níveis” são palavras que sinalizam um novo momento para a educação, tornando-se um desafio para a avaliação sociológica educacional não somente no Brasil como também em outros países. Essa tendência do Estado em interferir no sistema educativo de forma mais incisiva, não é uma particularidade brasileira, pelo contrário, vem refletir uma forma de intervenção adotada em países neoliberais, e que países emergentes como o nosso, também adotam e reproduzem: "O Estado vem adoptando um ethos competitivo, neodarwinista, passando a admitir a lógica do mercado, através da importação para o domínio público de modelos de gestão privada, com ênfase nos resultados ou produtos dos sistemas educativos". (AFONSO, 2000, p, 49. Grifo do autor). Esse modelo de Estado baseia-se em indicadores e em medições de performances, de forma que o nível educacional seja sempre acompanhado, criando condições de competitividade nacional e internacional. A avaliação a partir do ENEM, nos últimos anos, vem alterando tanto as políticas de inclusão no ensino superior quanto as práticas educativas em sala de aula, pois, para que o aluno obtenha uma boa performance na prova, se fará necessário um ensino que o prepare para esse tipo de exame. Dessa forma, vemos como consequência dessa necessidade performática, o crescimento de publicações diversas e de inúmeras edições direcionadas ao candidato que se submeterá ao novo ENEM. Os cursos nacionais dos países centrais constituem precisamente uma tentativa (crescentemente desesperada) de 'remercadorização’ de suas economias. Disponível em: . Acesso em: 27 dez. 2012.
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preparatórios já incidem seus olhares para as questões das provas, antes, praticamente, inexistentes. Os livros didáticos já começam a utilizar os termos adotados no exame; observarmos que, paulatinamente, o ENEM adentra as salas de aulas apresentando uma nova forma de avaliação, como afirmam Lopes e Lopéz (2010): " pelos efeitos que produz nas políticas de currículo, os discursos associados a esse exame constituem um contexto de influência para outras ações curriculares e outros sistemas de avaliação”. (LOPES; LOPÉZ, op. cit. p. 104). Nesse cenário de mudanças, necessário se faz analisar dentro dessas transformações curriculares, como estão sendo concebidas as habilidades e competências requeridas à cada área do conhecimento, para que, professores e alunos possam entender e questionar esse novo sistema. Considerando as limitações do espaço para discussão do assunto, sugerimos a leitura da dissertação homônima3 e, apresentaremos em seguida, uma análise da competência de área número 5 por acreditarmos que ela tem uma quantidade considerável de referências a elementos literários, abordando-os de forma bastante específica, posteriormente, analisaremos uma questão do ENEM, a título de ilustração. Competência de área 5. Matriz de Referência do ENEM. (2009)
Nas habilidades propostas, identificamos que as linguagens descritas na competência compreendem as mais variadas formas de linguagem literária, uma vez que cada uma aborda um contexto específico para o corpus literário. Assim sendo, entendemos que para o aluno obter êxito nas questões que contemplam as habilidades dessa competência ele deve ser proficiente na leitura literária. Vemos aqui, que os 3
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saberes requeridos têm um nível considerável de complexidade, pois, o aluno necessita, não só dos conhecimentos das concepções artísticas e de organização textual, como também do conhecimento das especificidades literárias, de sua estrutura, sua interpretação e sua análise. Em relação às habilidades para a competência de área número 5, temos como primeira, a habilidade 15 que apresenta uma dimensão de cunho mais crítico e interpretativista, exigindo do candidato conhecimentos de conjuntura histórica e social, pois ele necessita realizar relações entre o texto literário e o contexto de produção nele representado. Alguns aspectos nacionalistas, que fazem menção a momentos históricos importantes para o país também são contemplados por essa habilidade. Encontramos, através do Guia Explicativo, algumas orientações para as habilidades que delimitam o que será solicitado nas questões, como o reconhecimento de temáticas nacionalistas, a análise dialética do local e do universal presente nas obras que representam diferentes épocas e movimentos literários e reconhecimento de marcas ditatoriais através de gêneros literários como letras de canções, poemas, fragmentos de narrativas e de teatro. A habilidade 16 contempla as informações acerca das concepções artísticas e dos procedimentos de construção do texto literário. As concepções artísticas estão próximas das escolas literárias, e, conforme discutido no capítulo 2, elas são abordadas na sala de aula, muitas vezes como a finalidade do ensino de literatura. Nesse contexto, a obra literária é utilizada apenas para ilustrar as recorrências dessas concepções. Em relação aos procedimentos de construção do texto, observa-se que a habilidade propõe que o candidato saiba relacionar, por exemplo, as características mais relevantes de alguma escola literária à imanência do texto, conhecimentos acerca das figuras de linguagem e de estilo também são solicitadas nesse contexto. O diferencial da abordagem proposta pela Matriz do ENEM, também apresentada na carta proposta do novo ENEM, é que seja evitado qualquer tipo de memorização como finalidade da questão. Dessa forma, as concepções artísticas devem ser contempladas, não para levar o candidato a retomar as características de alguma escola literária, e sim para articular e reconhecer as características de dado gênero literário presente nas questões e sua relação com o contexto de produção e as concepções envolvidas nesse processo de elaboração. Essa habilidade ainda requer o conhecimento dos procedimentos de construção do texto literário, relacionados à forma composicional e às imagens apresentadas, a partir das manifestações artísticas do texto. A última habilidade para a competência 5 é por nós considerada mais interpretativista.
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Ela requer do candidato a identificação de valores sociais e humanos através do texto literário que sejam atualizáveis e permanentes. Questionamentos A fim de possibilitarmos uma “ilustração” de como esse processo avaliativo materializa-se na prova do ENEM, apresentaremos um recorte de uma análise maior, presente na dissertação, anteriormente mencionada. A proposta da competência 5 da matriz de referência é desafiadora para os candidatos, uma vez que suas três habilidades tentam aliar concepções distintas da teoria literária, as quais apresentam olhares diferentes para o mesmo objeto. Além do historiografismo literário, situando o contexto histórico, social e político (habilidade 15), a competência requer: o conhecimento de procedimentos formais e estilísticos do texto (habilidade 16); a percepção de valores sociais e humanos presentes, numa abordagem mais social, mais "engajada", da literatura (habilidade17). Cabe ao candidato saber aplicar os conhecimentos de cada habilidade apresentada na resolução das questões. ENEM 2009, caderno azul.
“Confidência do Itabirano” integra o livro Sentimento do Mundo (1940), momento em que Carlos Drummond de Andrade passa a refletir sobre o significado das coisas e do mundo, em uma linha argumentativa que procura o sentido, a explicação.
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Nas palavras de Villaça (2006): “o poeta exorta a todos – mas, sobretudo a si mesmo – ao posicionamento exigido pelo novo tempo, „tempo de partido, tempo de homens partidos‟” (VILLAÇA, 2006, p. 59). No poema em estudo, podemos destacar um eu-lírico que pensa como se tudo o que estivesse acontecendo com ele no presente fosse herança de um passado que se foi, deixando marcas. O ferro que compõe sua cidade natal não só marca as calçadas, mas as almas, forte imagem percebida através dos números: “Noventa por cento de ferro nas calçadas. / Oitenta por cento de ferro nas almas”. A insensibilidade que chega aos corações itabiranos a partir da dureza advinda dos ferros chega às almas. O alheamento apresentado pelo eu-lírico marca essa falta de compromisso com o outro, bem como consigo mesmo, característica própria de uma cidade que passa por um processo de desenvolvimento econômico, em que a transformação exterior reflete-se em uma transformação interior. Itabira proporciona, também, momentos de devaneio, vontades de amar, necessidade de voltar ao que se passou, às noites brancas, sem mulheres e sem horizontes, retomar inclusive ao hábito de sofrer, como “doce herança”, imagem paradoxal que nos remete ao sofrimento, palavra associada à dor, à angústia, como um sentimento doce, bom. O adjetivo “doce” anteposto ao substantivo “herança”, conota uma carga de ironia ao verso. O poema drummondiano também apresenta informações acerca da condição passada na qual se encontrava o eu-lírico; os verbos no pretérito perfeito (nasci/vivi) nos evidenciam isto. O terceiro verso desta primeira estrofe parece justificar a condição atual, dualidade presente no decorrer do poema, o passado é lembrado (recordare) como justificação do estado nostálgico em que se encontra o sujeito. Jakobson (1983), em O dominante, define alguns pontos que unem esteticamente um poema, seja ele um tema, uma estrutura sintática, fonológica, algo em que todos os elementos confluem. Diz Jakobson: "Pode-se definir como o dominante como sendo o centro de enfoque de um trabalho artístico: ele regulamenta, determina e transforma os seus outros componentes. O dominante garante a integridade da estrutura" (JAKOBSON, 1983, p. 485) Constamos que em Confidência do Itabirano o elemento "memória" é o dominante do poema. É a através dela que o eu-lírico expressa seu estado atual, é a ela que os verbos remetem-se. As anáforas presentes na quarta estrofe conectam elementos da modernidade como a pedra de ferro, que já foi aludida na primeira estrofe, como
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símbolo de força de poder, mas também de petrificação de sentimentos; o São Benedito, pertencente ao velho santeiro Alfredo Durval – elemento de memória e religiosidade; o couro de anta do sofá – de cunho, mais visual, herança também rural; o orgulho, a cabeça baixa, sinal de aparente subserviência a todas essas lembranças. Os elementos aqui postos aparecem nas estruturas frasais precedidas dos pronomes demonstrativo (este/esta) anaforicamente, confirmando a (pré)dominância da memória como ponto de confluência do poema, aproximação e distanciamento da realidade. No campo da ordenação sintática do poema, percebemos uma regularidade estrutural, no que diz respeito ao paradigma sintagma nominal versus sintagma verbal. O sujeito oracional aparece oculto nas duas primeiras estrofes, artifício provavelmente utilizado para esconder/camuflar o eu-lírico: "Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira.". Nas entrelinhas, esse ocultamento vai se desfazendo, o eu-lírico revela-se aos poucos, sutilmente. Essa ordenação estrutural traz consigo uma fluidez da leitura, pela escassez de inversões sintáticas e utilização de um vocabulário simples. No entanto, as reflexões apresentadas são carregadas de sentidos que precisam ser desvelados. É a eterna dicotomia drummondiana que aborda temas complexos com naturalidade. Ao considerarmos o poema sob essa breve leitura, observamos a sua inserção na questão do ENEM, percebemos que alguns termos técnicos são mencionados no enunciado, mas não são contemplados nas assertivas, fato que mais dificulta do que ajuda a compreensão do candidato no momento de sua resolução. Percebemos que não é necessário ter conhecimento dos procedimentos de construção do texto literário, para a resolução dessa questão, pois, quando analisamos as alternativas propostas, mesmo sabendo que só uma alternativa apresentará a opção correta, as outras alternativas não devem ser óbvias demais na sua exclusão, o que acreditamos ocorrer nessa questão. Essa obviedade nos distratores, nos dá a sensação de que uma leitura atenta do candidato, que faça memória minimamente das aulas de historiografia da literatura, o fará solucionar a questão sem necessitar de conhecimentos literários mais profundos, só aqueles que evitem os deslizes comuns diante do estresse que o próprio exame, por si só, já provoca. A alternativa "A" refere-se à fase heróica do modernismo. Se o candidato estudou um pouco sobre a historiografia da literatura e conhece o mínimo de Drummond saberá que sua poesia inicia-se no início da década de 1930, e ainda assim,
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o poema abordado não apresenta expressões e usos linguísticos típicos da oralidade nem ostenta marcas típicas como o poema-piada, por exemplo. A alternativa "B" por sua vez, diz que é característica do gênero lírico a apresentação de dados e de fatos históricos. Esse distrator é inadequado porque, apesar de o poema apresentar dados e fatos históricos, não se pode afirmar que esses aspectos são condição para que o gênero lírico materialize-se em um poema. A alternativa "D" afirma que há uma crítica, através de um discurso irônico "a posição de inutilidade do poeta e da poesia em comparação com as prendas resgatas de Itabira". Na leitura da quarta estrofe, a qual apresenta a descrição das prendas de Itabira, observa-se que não há utilização desse recurso nessa estrofe. Dessa forma, por não haver ironia, a alternativa já seria considerada incorreta. Outra causa que anula essa alternativa é que nenhum verso do poema apresenta alguma relação metapoética, logo a posição de inutilidade do poeta e da poesia também não integram o sentido do poema. Por fim, distrator "E" também é a opção incorreta, por apresentar uma visão romântica. Se o candidato observar que essa visão romântica configura-se de forma diferente das características do poema apresentado, que é modernista, constatará inadequação nessa alternativa. Na verdade, ele chegará a essa conclusão se for muito longe em seu raciocínio, porque basta ele atentar para os recursos retóricos pomposos que são ausentes no poema em questão, e apresentados como presentes no poema que já anulará essa opção. Resta então à alternativa C que discorre acerca da tensão histórica do eu, de fato presente no poema, marca constitutiva para sua formação como indivíduo, permite que os acontecimentos de sua comunidade, de sua cidade natal contribuam para que essa tensão aconteça. Essa relação eu versus mundo é característica drummondiana, ora mais, ora menos forte em sua poesia. As imagens, apresentadas em nossa análise do poema, contribuem aqui para a consolidação dessa alternativa como o gabarito, a opção correta. No entanto, convém destacar que nenhuma alternativa apresentou elementos de construção do texto literário como forma, recorrências sintáticas, rítmicas, como o enunciado parecia destacar, foi solicitado para a resolução da questão; pelo contrário, o leitor atento observará que o enunciado já prenuncia a opção correta, quando diz que "Sua poesia é feita de uma relação tensa entre o universal e o particular", afirmação muito parecida com "tensão histórica entre o 'eu' e a sua comunidade". Isto posto, acreditamos que a questão procura contemplar a habilidade 16 relacionando concepções artísticas e os procedimentos de construção do texto literário,
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mas fica muito mais evidente a habilidade interpretativa do candidato para se chegar a opção considerada gabarito. Portanto, não há uma exploração dos procedimentos de construção do poema. Perspectivas e propostas Percebemos como a habilidade que visa relacionar informações sobre concepções artísticas e procedimentos de construção do texto literário ainda está distante do que é solicitado nas questões. As singularidades presentes nos poemas analisados não foram abordadas de forma a proporcionar ao candidato o reconhecimento das concepções que estão a elas ligadas. A conciliação tanto da Matriz de Referência com as questões, quanto com o conteúdo abordado nas questões e suas alternativas que, como vimos, ainda estão bastante problemáticas. Há, em alguns momentos, uma relativa diferença entre o que se afirma no enunciado e o que efetivamente cobra-se nas questões como a opção correta. Acreditamos que essa reflexão precisa ser fomentada por professores e alunos interessados em saber como duas realidades complementam-se na materialidade da prova. A falta de material sobre esse assunto nos levou a fazer afirmações fruto desta nossa própria investigação, e, por vezes, sem tanto embasamento teórico. Nossa preocupação foi de sempre evidenciar nossas descobertas com questões do Exame, de forma a não parecerem levianas, nossas considerações. Observamos que mesmo nesse contexto de modificações, a formação de leitores literários ainda é desafio para o Ensino Médio, pois, ainda que com suas lacunas, o ENEM exige competências leitoras na prova, que o aluno/candidato, sem a devida formação não será proficiente na resolução das questões. Conforme apresentamos, o texto literário, sobretudo o gênero lírico, oferece uma gama de possibilidades de abordagem, seja em questões do ENEM, como trabalhamos acima, seja em sala de aula. Como vimos, o Exame influencia o modo de abordagem dos conteúdos na sala de aula, uma vez que é um processo avaliativo em que escolas, professores e alunos precisam moldar-se a essa estrutura para conseguir êxito. Referências AFONSO, Almerindo Janela. Avaliação Educacional: regulação e emancipação. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000.
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PERCEPÇÕES DA METAMORFOSE: O SER E O ESTAR EM TRÊS TEMPOS
Alyere Silva Farias (UFRN) Os personagens transformados de “Meu tio, o Iauaretê.”, de João Guimarães Rosa, da Metamorfose de Kafka, e das Metamorfoses de Ovídio apresentam percepções particulares de si e do seu espaço, que refletem a ruptura dos limites sociais entre o humano e o não-humano, como uma expressão física da multiplicidade mental do homem. Nesta perspectiva, questionamos, como se define o humano em cada uma das narrativas e nos voltamos para o que é excluído por esta definição, o “não-humano. Partimos da concepção de que o não-humano consiste no olhar, dissociado dos limites entre a mente e o corpo (TODOROV, 2004), para discutir aspectos em relação aos espaços sociais (SENNETT, 2013). As três metamorfoses apresentam mais do que a mudança de forma do ser humano, se passam em um não-lugar que descaracteriza o humano e também o nãohumano, e ocorrem de maneira simbólica, visto que são os próprios homens, que determinam a metamorfose em outros indivíduos que não são reconhecidos como seus iguais. Assim, lembramos que o Todorov (2004) considera sobre a ruptura dos limites entre espírito e matéria e, nos textos que analisamos, é possível refletir sobre a ruptura entre o “sentir” e o “ser”, ou entre “palavra” e “coisa” (TODOROV, 2004, p. 222), e como o autor observa a respeito de Nerval, o pensamento torna-se real, o que entendemos como uma transformação do processo mental em processo físico. Investigaremos se é possível considerar que o processo de metamorfose, nos três textos literários citados, pode ser descrita da seguinte maneira, retornando aos termos de Todorov: a sensação se transforma em ideia, a ideia em percepção de si e do espaço, a percepção se transforma em palavra e a palavra em coisa. Entretanto, é necessário
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observar que não nos alinhamos à reflexão de Todorov sobre o fantástico, obviamente, no que diz respeito ao período de produção deste gênero, por ele estabelecido entre Balzac e Kafka.
Eu sou humano? O múltiplo em um espaço de univocidade As metamorfoses (Metamorphoses) de Ovídio, foi escrito em latim entre 1 e 2 a. C. e considera-se que “nenhuma outra obra da Antiguidade Clássica exerceu maior influencia na cultura europeia, em particular na arte, literatura e música” (ALBERTO, 2010, p. 14). A Metamorfose (Die Verwandlung), novela escrita por Kafka em 1912 e publicada em 1915 é o segundo texto que destacamos neste estudo, obra de maior destaque do escritor tcheco que, como os escritos de Ovídio, é alvo de estudos dos mais variados, dentre os quais os que se debruçam sobre a invenção da linguagem, de um modo particular de narrar e da abordagem da temática da transformação. A novela “Meu tio o Iauaretê.” integra o livro póstumo Estas Estórias e foi publicado na revista Senhor em 1961. A narrativa pode ser descrita como um monólogo/diálogo entre um descendente de índios, que é um onceiro e vive isolado no sertão, e um forasteiro, que questiona este onceiro, mas do qual o leitor apenas intui a presença, visto que não há falas dele. A partir destas observações preliminares, nos voltamos para a abordagem da temática da transformação. É importante destacar que o nosso método analítico, a Comparação Diferencial, considera que as obras a serem analisadas se encontram no mesmo nível, e apresentam semelhanças óbvias, no nosso caso o fio comum que une as três obras é a metamorfose. A partir do estabelecimento do fio comum, é que se dá a análise, considerando o diálogo, e não a filiação hierarquizando os textos, observando os efeitos de sentido de cada um dos textos e atentando para as suas singularidades. Contrária a uma postura universalizante da literatura, Ute Heidmann observa que: Em nossa época ameaçada pela dominação de uma linguagem única, é bom lembrar que possuímos um antídoto contra esse perigo: a escrita literária. Ela procede por diferenciação, como é também por diferenciação que se formaram as línguas e as culturas do mundo. [...] Para explorar esse processo de diferenciação e sua função de antídoto contra a linguagem única e o pensamento único, me empenhei em elaborar um método de análise que se funda, também ele, na ação de diferenciar. Ele recorre à comparação com o objetivo de diferenciar as criações literárias e se inscreve contra a tendência mais comum de generalizá-las e de “universalizá-las”. Propus chamar esse método uma “comparação diferencial”. [...] De encontro a essa tendência à universalização produtora de estereótipos, me importa dar a ver o
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extraordinário trabalho de diferenciação construído na e pela escrita literária. Uma tal análise comparativa e diferencial das criações literárias não leva, como veremos, à constatação de irredutíveis diferenças. Ela permite descobrir, muito pelo contrário, que a escrita literária é fundamentalmente dialógica e que ela tira sua capacidade de criar efeitos de sentido diferentes e novamente pertinentes de seu diálogo constitutivo com outras criações, outras línguas e outras culturas. (HEIDMANN, 2012, p.02)
De acordo com o que Heidmann observa, nossa aproximação dos textos literários não busca estabelecer uma filiação ou parentesco entre os textos literários alvo de nossa leitura. Na novela “Meu tio o Iauaretê.”, de Guimarães Rosa, em seu diálogo com os escritos de Ovídio e Kafka, citados anteriormente, nos interessa a metamorfose em sua realização, transformando o ser, e o reflexo de seu tempo em cada uma delas. Como bem observa Heidmann, em relação a escolha dos textos a serem comparados, Como os comparatistas sabem muito bem, não existe uma, mas múltiplas formas de conceber a escrita da obra literária. Essas concepções variam de acordo com as épocas, as línguas, as culturas, os paradigmas e socioletos teóricos em vigor, que poder ser de ordem psicológica, filosófica, antropológica, linguística, poetológica etc. (HEIDMANN, 2012, p.08)
Sobre as obras escolhidas para serem analisadas, escolhemos realizar uma aproximação analítica organizada a partir do critério de antiguidade, mas considerando que esta escolha organizacional não deve ser tomada como hierarquizante, visto que partimos de uma perspectiva oposta a esta estruturação do estudo comparativo. Dito isto, passemos as reflexões sobre Ovídio, a partir das quais traremos elementos diferenciadores encontrados nas metamorfoses de Kafka e Guimarães Rosa, visto que, para a comparação diferencial, [...] O novo texto desloca, condensa ou inverte na maioria das vezes os motivos e sequências observados nas obras antigas, criando assim, em resposta aos textos antigos, significações diferentes e novas. (HEIDMANN, 2012, p.14) Ovídio, ao falar desta obra, na qual narra o maior número de histórias mitológicas em verso heroico, afirmou cantar “formas mudadas”, e o elo entre as diversas narrativas dentro da obra, colocadas quase que de forma fragmentada (BARTHES,2003) é a própria transfiguração: “o propósito é contar histórias de forma contínua, sem grandes reflexões teóricas sobre o sentido da metamorfose, em que os episódios se sucedem uns aos outros, como se o próprio texto se fosse metamorfoseando” (ALBERTO, 2010, p. 18). Posto isto, nos questionamos sobre o que há de humano neste processo, visto que percebemos que nestas formas mudadas há um desnudar de características humanas, exageradamente, como muito mais tarde Todorov (2012) discute ao refletir sobre o
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fantástico. Consideramos que Ovídio brinca com o leitor, com o universo onírico, puramente ficcional, por ele narrado, mas assegura que é seu “animus”, sua parte racional, que o impele a escrever esta narrativa. A relação entre imaginário e verossimilhança também é encontrada nos textos de Kafka e Guimarães Rosa. Considerada como obra original, “As Metamorfoses” de Ovídio reescrevem muitos mitos já conhecidos na cultura helênica e romana, dentre as suas fontes estão metamorfoses da Ilíada, da Odisseia, de Hesíodo e Calímaco, entre outras, então é nosso objetivo observar também, nestes 15 livros e 250 episódios mitológicos ou não, com base na comparação diferencial, qual é a diferença entre estes textos e como ele o faz, se de uma nova forma de escrita ou de uma nova perspectiva ante os mitos narrados, considerando ainda a importância dada aos personagens, se há um predomínio nos deuses ou uma maior atenção aos humanos, se há uma maior atenção a sua forma ou a sua metamorfose, ao desfecho ou a causa. Considera-se eu Ovídio é original por escapar das categorizações existentes em sua época (ALBERTO,2010). Sua narrativa trata inicialmente de um passado imemorial (COSTA LIMA, 2003) no qual o mundo e a humanidade foram criados, com uma progressão cronológica imprecisa, como ocorre no texto de Guimarães Rosa especificamente nas falas do homem-onça, e difere da exatidão temporal da rotina da família Samsa no texto de Kafka. Apesar da fragmentação de algumas histórias narradas por Ovídio, se conserva uma fluidez, talvez auxiliada pela precisão geográfica e física de suas narrativas. Nesta narrativa longa, dão-se a conhecer os principais atores no processo de formação do império romano, suas relações conflituosas com os deuses, criatura míticas e outros homens, entremeadas de metamorfoses que, como se percebe em uma primeira leitura, são punições dos deuses, e em alguns casos, punições aos deuses. As metamorfoses revelam ainda uma ligação entre as transformações a história familiar de cada humano alvo destas punições. A organização social dos deuses recompõe a organização social da época em que Ovídio vivia, como apontam estudos sobre a organização de Roma na qual os membros mais importantes viviam no centro e ao seu redor se organizavam os menos importantes. Percebe-se a influencia grega nesta organização genealógica das transformações, bem como em relação aos nomes dos personagens, que costumam ser bastante significativos para a compreensão da narrativa, ou já se tornaram metonimicamente uma definição de suas metamorfoses, durante a difusão desta narrativa até os nossos dias. Diante do vasto número de metamorfoses, consideramos nos deter a algumas delas que emblematicamente seriam alvo de nossos estudos detalhados, entretanto a figura de um deus em particular nos chamou a atenção, não como um metamorfoseado, mas como um provocador de diversas metamorfoses. Zeus, em suas incursões pela terra revela traços humanos que desencadeiam processos de metamorfoses que expõem seus
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alvos, que na maioria das vezes despertam o desejo sexual no deus e tem sua vida transformada a partir desse encontro com a divindade. Em Ovídio, os personagens não-humanos são humanizados, ganham sentimentos e compreensão da humanidade, diferente das narrativas anteriores. como se observa, “o mundo das metamorfoses é sobretudo um espaço de dramas, de incertezas e arbitrariedades, onde a metamorfose se processa sem que haja uma lógica moral” (ALBERTO, 2010, p.25). esta lógica moral é pouco a pouco perdida também nos textos de Kafka e Guimarães Rosa, nem sempre pelo personagem metamorfoseado. Dentre os metamorfoseados é válido destacar Licaon e sua família de metamorfoseados, para um estudo mais profundado. O elemento desencadeador das metamorfoses em Ovídio é, muitas vezes, religioso, e se dá por escolha, o humano escolhe desobedecer (ou desonrar) um ou mais deuses, ou por castigo de um deus que não conseguiu o que desejava do humano, ou se sentiu ofendido sem que o humano procurasse o desagradar, em resumo a oposição aos deuses é o grande motivo desencadeador em “As metamorfoses” de Ovídio. Entretanto, a primeira metamorfose merece atenção visto que em sua organização pode ser comparada as dos outros dois textos objeto de nossa análise. A primeira metamorfose é a transformação do caos em mundo, ou seja, parte-se da instabilidade e da ausência, há uma minimização, ou simplificação dos deuses, que se tornam semelhantes a natureza, e a criação de uma estabilidade, forma e definição, com a presença das coisas e a descrição de suas características. cria-se a terra sem uma causa anterior, sem uma explicação para esta ação, e é neste aspecto que se assemelha a metamorfose de Kafka, texto no qual o personagem Gregor Samsa já acorda metamorfoseado e toma-se conhecimento de sua vida anterior a esse momento durante o desenrolar dos fatos, a partir de lembranças e evocações de um tempo perdido, por ele e por seus familiares. A estabilidade apontada em relação aos aspectos destacados nesta leitura, só retorna com a sua eliminação. em “Meu tio o Iauareteense” temos também o que Costa Lima nomeia de “palavra inaugural”, a metamorfose ocorre no momento da narrativa, sem que haja um conhecimento prévio sobre os motivos e a vida pregressa do homem onça. aqui a narrativa se desanuvia a partir do relato do próprio homem-onça. Observamos que o momento histórico em que este texto emerge também merecerá uma reflexão, a posteriori, a saber, Antes de analisar aquilo que é dito no enunciado literário (o que avança na intriga, nos motivos e temas, etc.), convém, nessa óptica, examinar a maneira pela qual o sujeito enunciador o apresenta. Em que espaço e em que tempo ele situa sua enunciação e seu enunciado? Qual é a “cena de fala” que ele constrói para dizer ou fazer dizer? O que ele instala nessa cena? (HEIDMANN, 2012, p.11)
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Acreditamos que nos textos selecionados podemos enveredar por diferentes níveis de análise, dentre os quais elegemos o olhar sobre a des-humanização de seus personagens principais e a sua humanização. Estes dois níveis se referem a dois olhares sobre um mesmo acontecimento: a metamorfose A segunda perspectiva a ser explorada por nós se refere ao que podemos chamar inicialmente de “assimilação” entre o homem e o animal no qual foi metamorfoseado, momento no qual as características consideradas como eminentemente humanas se mesclam aos aspectos socialmente apontados como próprios de animais, selvagens e contrários ao caráter humanizador da vida em sociedade. Neste ponto, é possível partirmos do ditado “conhece-te a ti mesmo” numa perspectiva extremamente crítica da sociedade, ou uma reconfiguração de elementos de humanidade, despidos da moral, da ética e da lógica social, desta maneira é possível refletir sobre a relação entre os homens e suas novas formas não como um processo de des-humanização, como inicialmente foi proposto, mas como um desencadeador de uma exploração de sua humanidade dissociada dos padrões sociais, o que exclui as possibilidades de análise adotadas inicialmente, psicológica, política e social, e nos deixa com uma perspectiva mais filosófica e talvez metafísica que possibilitem a elaboração e ensaio de reflexão sobre onde está o humano, o que é o humano e o que há de humano nas metamorfoses destes três textos, o que nos conduz a trechos de outros textos, como um trecho de uma novela de Guimarães Rosa, “a vida mente, mesmo quando desmente” (Os chapéus transeuntes). Seguindo a ordem da novela, na qual temos o contato inicial com o personagem já transformado da novela “Meu tio o Iauaretê”, nos interessamos nas figuras nãohumanas e o reconhecimento de suas novas características, que nesta narrativa se dão a conhecer no discurso do homem-iauaretê. Já na novela de Kafka, o personagem Gregor Samsa e nós, leitores, tomamos conhecimento da transformação no momento de sua ocorrência e suas características se tornam mais evidentes até o fim do texto. No caso do episódio de Aracne, temos a organização linear de acontecimentos que geram uma consequência, que seria a transformação. O processo de descoberta é intenso nas novelas e construído a partir do discurso na primeira, e de comportamentos ou gestos corporais, na segunda, enquanto na narrativa sobre Aracne há, desde o início dela, a defesa de um ponto de vista feita pela personagem, que a define e que acaba lhe causando o mal de sua transformação, ao provocar uma deusa. É interessante perceber a imagem construída socialmente para o resultado final da transformação dos três personagens, bem como se tem hábitos noturnos, se são
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considerados como animais de criação ou pragas, se habitam espaços determinados ou são nômades, e se possibilitam a existência de vínculo com o seu espaço anterior à transformação. Observamos também se este ser não-humano remete a alguma tradição local, ou desestabiliza a “harmonia” existente entre os humanos que ocupam o mesmo espaço. Nos questionamos quanto ao novo corpo, aventando a possibilidade de se constituir como um corpo metamórfico, que pode ser lido como objeto artístico, e no caso do transformado da novela de Guimarães Rosa, nos questionamos sobre se o discurso cria um personagem com um corpo de homem-iauaretê. Nos remetemos ainda às reflexões de Blanchot (2005) sobre a busca de si empreendida por Hermann Hesse , a qual é descrita como uma ruptura mais dolorosa e mais
involuntária, descrita como a “obrigação de se libertar” enquanto “desgraça
incompreensível”. Este é o sentimento presente na transformação do sobrinho do Iauaretê, e ainda em Gregor Samsa, que se veem impelidos a lidar com a ruptura de maneira violenta e que não foi conscientemente escolhida. Blanchot (2005) observa que Hesse considerava suas obras como um monólogo no qual uma pessoa tenta “recuperar suas relações com o mundo e com ela mesma”. Esse discurso, apesar de se referir ao autor, se assemelha à posição do nosso sobrinho do Iauaretê, na medida em que ele é autor de sua narrativa, e estabelece uma autobiografia no momento de seu diálogomonólogo, na qual tenta se designar, se definir, através de negações e afirmações do humano.
Referências ALBERTO, Paulo. Sobre as metamorfoses. In: OVIDIO, As Metamorfoses. trad. de Paulo Alberto. Lisboa: Cotovia, 2010.
BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Difel, 2003.
COSTA LIMA, Luiz. mímesis e modernidade. São Paulo: Graal, 2003.
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HEIDMANN, Ute. (para uso estritamente reservado dos participantes do seminário Construire les comparables, primavera de 2012) Artigo a ser publicado em: Vincent JOUVE (éd.), Quelles nouvelles approches pour le texte littéraire? Editions et presses universitaires de Reims, 2012. HEIDMANN, Ute. Comparatisme et analyse de discours. La comparaison différentielle comme méthode. In: Sciences du texte et analyse de discours. Enjeux d’une interdisciplinarité, J.-M. Adam et U. Heidmann (dir.), Lausanne, Etudes de Lettres 1-2, et Genève, Slatkine, 2005, p. 99-118.
KAFKA, Franz. A Metamorfose. trad. Modesto Carone. São Paulo: Brasiliense, 1989.
OVIDIO, As Metamorfoses. trad. de Paulo Alberto. Lisboa: Cotovia, 2007.
ROSA, João Guimarães. Meu tio o Iauaretê. In:_____. Estas Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. TODOROV, Tzvetan. Introdução a literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2012.
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CORRESPONDÊNCIA DAS ARTES EM POEMAS DE EUGÊNIO DE ANDRADE: PALAVRA E IMAGEM NA “PINTURA” DO SER. Amanda Aparecida Rodrigueiro (PG- UEM) Resumo: A inter-relação das artes propicia um alargamento dos horizontes, ao evocar um olhar crítico em constante movimento, capaz de ver, sentir e (re) criar imagens concretas. Sob essa perspectiva, é elucidativo refletir sobre o diálogo presente entre poesia e pintura. O poeta, sem o recurso da luz, linhas e cores, usa metáforas, adjetivação expressiva e figuras retóricas que remetem ao texto plástico. A leitura da poesia de Eugênio de Andrade ilustra tais aproximações, além do que possibilita a reflexão profunda acerca do homem e sua existência. Com o intuito de levantar questões referentes à visibilidade do texto, apresenta-se uma leitura do poema Post Scriptum, de Eugênio de Andrade, ressaltando o poder imagético dos recursos poéticos presentes na sua obra, na “pintura” da alma humana. A poética do autor corrobora a proposta da inter-relação das artes, ao aproximar imagem e palavra, e, refletindo o contemporâneo, alude ao homem e à vida em plenitude. O cuidadoso arranjo das palavras sugere imagens que decorrem do texto, possibilitando a visualização de imagens espaciais, que também revelam a pintura do ser. Essa proposta de leitura pauta-se em leituras da estilística e retórica, discussões sobre a imagem presente no texto poético e teorias referentes ao papel do leitor e os efeitos de sentidos. A leitura realizada visa discutir as imagens sugeridas pela linguagem poética de Eugênio de Andrade e os recursos que permitem essa visualização.
Palavras-chave: diálogo, texto, imagem.
Considerações iniciais: A presença das imagens na comunicação e na literatura é cada vez mais constante na atualidade. Na realidade, a imagem sempre teve papel importante na comunicação, desde os primórdios. Com o aprimoramento da linguagem e do sistema comunicativo, é cada vez mais comum, na linguagem cotidiana ou artística, não só, a leitura “sem palavras” com sua multiplicidade de cores e formas, como também e, sobretudo, a leitura de palavras que suscitam imagens coloridas e vivazes quanto às imagens propriamente ditas. Nesse processo evolutivo as artes cada vez mais se relacionam, propiciando ao leitor um olhar crítico em constante movimento, capacitando-o a ver, refletir, sentir e criar imagens concretas. Sob essa perspectiva, poesia e pintura frequentemente estabelecem diálogo. O poeta, não tendo o recurso da luz, das linhas e cores, do desenho, utiliza-se das metáforas, da adjetivação expressiva e dos recursos das figuras retóricas que remetem ao
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texto plástico. A leitura da poesia de Eugênio de Andrade vem ilustrar tais aproximações, além do que possibilita a reflexão profunda acerca do homem e sua existência. Nesse sentido de se levantarem questões referentes à visibilidade do texto, o presente estudo apresenta uma leitura do poema Post Scriptum, de Eugênio de Andrade, ressaltando o seu poder imagético, partindo-se dos recursos poéticos presentes na sua obra, na “pintura” da alma humana. A proposta poética do autor vem de encontro a essa temática da inter-relação entre as artes, uma vez que sua poesia tem por característica fundamental a força dada à palavra quer pelo seu valor imagético, quer pela musicalidade. Aproxima-se do lirismo primitivo, reflete o contemporâneo ao aludir ao homem e à vida em sua plenitude de sentidos, por meio de um esmerado trabalho com a palavra, que ultrapassa o seu próprio sentido, sugerindo imagens que decorrem do texto, possibilitando o diálogo com telas de pintores consagrados, dentre as quais se apresenta a tela Gift of Murs (1966) do pintor William Sergeant kendal, como um diálogo possível com o poema Post Scriptum. Para a realização desse estudo, algumas leituras serviram de base, como a teoria da estilística, segundo Nilce Sant’anna Martins, Elisabeth Rallo; a retórica, vista sob as discussões de Dante Tringali e Olivier Reboul. Leituras sobre a presença da imagem no texto poético, como as propostas de Aguiar e Silva e Bosi, bem como teorias que explicam o papel do leitor, a sua recepção e o efeito produzido no leitor conforme Umberto Eco, Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser. Para o estudo das correspondências do texto poético com a imagem, recorreu-se a Alberto Manguel, Ivete Walty, entre outros. A leitura do poema foi realizada, visando perceber e discutir as imagens sugeridas pela linguagem poética de Eugênio de Andrade, o seu processo de escrita e recursos presentes nos poemas, que permitem essa visualização das imagens. Após o levantamento das questões que compõem o texto verbal se discutiu os possíveis efeitos produzidos pela leitura do poema, suscitando metáforas imagéticas.
Eugênio de Andrade e sua escrita poética: Nascido em 1923, em Povoa. Na última década, viveu na fundação Eugênio de Andrade, no bairro do Porto até sua morte, em junho de 2005.
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Eugênio de Andrade é autor de uma vasta produção literária, tendo publicado mais de 40 livros de poesia e outros de prosa, infantis, antologias e traduções. Contudo, é a sua obra poética que lhe confere grande prestígio. No que diz respeito à produção de Eugênio de Andrade, Lopes (s/d) afirma ser a sua poesia um manancial de imagens diversas, que confluem a um mesmo “lugar”, “um paraíso terrestre”, onde a palavra severamente escolhida, ao movimento da metáfora, vislumbra a integração dos quatro elementos. Lopes reconhece a influência da geração espanhola de 1927 na obra de Eugênio de Andrade que, todavia, constitui o que ele nomeia de um imagismo português calcado nas referências materiais, e que não deixa à deriva tudo que é poesia: o corpo, os sentidos, as raízes sociais envoltos numa emoção frásica, mediada por uma linguagem referencial, mas movendo-se sempre da referência real. Resultam dessa articulação as próprias imagens elementares assumem valores de posições muito diversas. Aiello (1985) comenta sobre a exploração da imagística na linguagem de Eugênio de Andrade, que evoca uma desarticulação diante de relações conhecidas, à medida que instaura um novo real, permeado por essas relações: Se alguém objetar que se está talvez à vista duma supra-realidade, deve-lhe responder que estamos, sim, em face duma anterealidade. O itinerário poético de Eugênio de Andrade é uma libertação da impureza da palavra até o refúgio da pureza do objecto como se estivéssemos (e estamos) diante do sentido adâmico da recriação do já existente, todavia impronunciado. _Ervas nasciam dos passos _Um pássaro nascia dos seus dedos _ Uma ave renasce de sua morte São indiscutivelmente recriações dos anteriormente indizível, dizível agora na luminosa ação de restituir às coisas o significado que as letras lhe haviam roubado. E a poesia como real absoluto é isso: a restituição ao universo do poeta do seu paraíso perdido – das coisas limpas, que usará como sinais de Poesia. Pássaro, rosto, anjo [...] (MENDONÇA apud AIELLO, 1985, p. 12).
É desse modo que a poesia de Eugênio de Andrade, baseada nas inúmeras possibilidades da palavra poética, desvia do código estabelecido e promove uma ruptura com a tradição, assinalando uma constante reinvenção da palavra, pelo discurso poético que se recria. Um discurso que parte do imagismo e, palavra a palavra, remete a
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metáforas transfiguradoras. Oscar Lopes, citado por Aiello (1985) comenta sobre essa característica presente nas obras do poeta: [...] um motivo muito característico em Eugênio de Andrade: o motivo de ‘como de’ e do ‘ou’, seja a metamorfose que se desenrola à nossa vista, entre imagens diferentes e até polares (noite/dia, neve/fogo, por exemplo) (LOPES apud AIELLO, 1985, p. 11).
Conforme Eduardo Lourenço (1961), a obra de Eugênio de Andrade resgata o símbolo da fonte e reflexões e pensamentos que a envolvem. Paradoxalmente, a fonte seria o elo divino entre o homem e a espiritualidade (o sonho, a lucidez e a vida) e, ao mesmo tempo, é a realidade quando revela, ao ser humano, a sua fragilidade, no que diz respeito à sua existência na comunhão com o universo. A fonte tem sido, constantemente, vista pela poesia com o fascínio que envolve a vida. E, na poesia de Eugênio de Andrade, ela tem o seu lugar especial, juntamente com os pássaros e as flores porque, como afirma Lourenço, tais elementos são uma espécie de evocação ao paraíso dos homens. A busca da vida no que ela tem de mais puro e feliz, na poesia de Eugênio, reside na idéia da sua plenitude em relação à morte, no que diz respeito aos contínuos ciclos da vida, que a fazem eterna. E diante dessa constatação, não há angústia na sua poesia, mas serenidade ou, pelo menos, a sua busca. Assim, o fazer poético é quem possibilita a ”posse feliz do mundo e de si mesmo” (LOURENÇO, 1961, p. 117). Eis a grandiosidade da poesia, “a conciliação impensável e, todavia, existente da nossa realidade e do nosso sonho, por palavras que miraculosamente, dizem o indizível” (LOURENÇO, 1961, p. 119-120). E, por conseguinte, “o poema aparece, como o lugar da unidade humana reencontrada”, embora fragilmente. Conforme o autor, a poesia é o próprio ciclo do viver e morrer, que se presentifica com a palavra, na sua imortal recriação. E é ela quem dá a consciência da fragilidade da vida, evitando a sua mitificação e a queda do homem. A poesia cria a realidade, por meio da palavra. Desse modo, a palavra é a própria realidade mediadora entre os homens e as coisas. E, sob essa perspectiva, a linguagem constitui-se como sendo senhora do homem. Ao poeta, cabe apoderar-se da linguagem e,
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por meio dela, criar a Realidade que está além da nossa humanidade e da existência das coisas: o ser humano, de fato, define-se por meio da palavra. Segundo a crítica, observa-se na poesia de Eugênio de Andrade a importância dada à palavra, quer no seu valor imagético, quer rítmico, meio pelo qual é apresentada sua temática mais contundente: a figuração do homem que se integra à natureza, composta pelos elementos: terra, água, fogo, e ar. Essa temática elementar, em um sentido geral, evidencia-se por meio de uma escritura, cujos poemas, geralmente curtos, carregam densidade transmutada numa linguagem aparentemente simples, que evoca a energia física, material, a plenitude da vida e dos sentidos. A voz da crítica é importante no sentido de propor uma visão ampla da obra do poeta, ao contemplar o conjunto de sua produção, considerando-se vários aspectos, como, por exemplo, dados biográficos, contexto social, cultural e literário de escrita, estilo autoral entre outros. Contudo, quando se discute recepção de leitura, muitos desses fatores podem não ser considerados, na medida em que a leitura é produzida a partir de alguns conhecimentos específicos e particulares que dialogam com alguns textos apenas. É, logo, sob essa perspectiva que se apresenta a leitura do poema Post Scriptum Da coletânea As Palavras Interditas (1951), o poema selecionado é Post Scriptum.. Composto por três quintetos, com versos heterométricos, a maioria deles decassílabos e hendecassílabos. A grande parte dos versos apresenta rimas consoantes e alternadas: Post scriptum Agora regresso à sua claridade. Reconheço o teu corpo, arquitectura de terra ardente e lua inviolada, flutuando sem limite na espessura da noite cheirando a madrugada. Acordaste aurora, a boca rumorosa de um desejo confuso de açucenas; rosa aberta na brisa ou nas areias, alta e branca, branca apenas, e mar ao fundo, o mar das minhas veias. Estás de pé na orla dos meus versos ainda quentes dos beijos que te dei; tão jovem, e mais que jovem, sem mágoa -- como no tempo em que tinha medo que tropeçasses numa gota de água. (ANDRADE apud SARAIVA, 1999, p. 49).
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O poema “Post scriptum” (pós-escrito) se constrói sob a premissa do retorno a um “lugar”, evidenciada, de maneira estranha, quando propõe o status de lugar à claridade de um corpo: “Agora regresso à tua claridade/Reconheço o teu corpo, arquitectura”. A idéia de um corpo ao qual o eu-lírico regressa, se constrói ao longo do poema, adquirindo gradativamente corporeidade, pelo uso dos adjetivos e verbos a ele relacionados: “corpo, arquitetura de terra ardente, lua inviolada”; “Acordaste aurora, a boca rumorosa de um desejo...”; “rosa aberta na brisa...”; “ estás de pé”; “ainda quente dos beijos”; “tão jovem”; “sem mágoa”. Essa materialidade é construída pelo jogo metafórico de palavras que reiteram os quatro elementos, reforçando a idéia do corpo que não se desvincula da natureza a qual pertence. Ele tem como matéria a terra, o fogo e a luz: “... teu corpo, arquitectura de terra ardente e lua inviolada”. Entretanto, paradoxalmente, esse corpo também é fluido, pois está “flutuando sem limite na espessura da noite...”. É um corpo que, sinestesicamente, emana luminosidade (claridade, lua e rosa branca, açucenas), odores (cheirando a madrugada, açucenas), musicalidade (boca rumorosa, na brisa, mar ao fundo) e sensação tátil (ainda quente, terra ardente). É, portanto, um corpo cheio de vida, renascido, ao qual regressa o eu-lírico, numa atitude de amor. É um corpo que renasce (acordaste na aurora), sedento de vida (desejo confuso de açucenas) abre-se a ela (rosa aberta na brisa), até atingir o seu ápice (estás de pé, ainda quente de beijos) na força da juventude (tão jovem), mais fortalecido do que outrora quando era mais frágil (sem mágoa/ _como no tempo em que tinha medo/que tropeçasses numa gota de água). Nota-se que o poema todo é construído e pautado no recurso estilístico da metáfora, que suscita a vitalidade da palavra que, muitas vezes, ressurge revigorada, possibilitando um efeito imagético ao leitor: a palavra-fênix que ressurge mais forte, luminosa, viva e pura. A leitura do corpo descrito no poema como sendo metaforicamente a escrita poética, pode ser entendida quando se atenta para alguns pontos no texto: o título, referente à escrita, uma escrita que vem depois (volta a cada leitura, ou nova escritura), reiterado na última estrofe, pelo verso: “Estás de pé, na orla dos meus versos/ [...] tão jovem...”.
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Considerações finais: Feita a leitura do poema Post Scriptum no sentido de discutir a visualização, pode-se afirmar que, por um lado, o poema suscita imagens da vida plena no seu movimento dialético de transformação, e do homem que vive essa plenitude por meio da palavra; por outro lado, a construção linguística suscita imagens de elementos concretos (corpo, terra...) que permitem dialogar com a tela analisada. Ou seja, os elementos propostos na poesia de Eugênio de Andrade, articulados por uma linguagem imagética, são as metáforas pelas quais a vida se faz presente no poema: a terra (o corpo, a palavra), é o elemento “mãe” no sentido de acolher todos os outros elementos e o homem; por isso é a metáfora da vida no seu sentido mais pleno, uma vez que, com os seus corpos, animais e frutos, abriga o homem, que nela vive. Portanto, através da palavra poética configurada pelos elementos naturais, realidades humanas são suscitadas a cada leitura; realidades que remetem à integração do indivíduo ao universo, revelando-lhe o conhecimento de si. Desse modo, tais elementos adquirem um valor “coesivo” na poética eugeniana, ou seja, é a partir deles que a linguagem despojada e hermética do poeta abre-se, ao leitor, por meio das imagens concretas suscitadas pelos elementos. A linguagem imagética e elementar de Eugênio de Andrade contribui, portanto, para o diálogo da palavra com a imagem, uma vez que sua composição poética, por meio de um movimento de metáforas transfiguradoras, evoca imagens, na medida em que a linguagem plástica, presente na poética eugeniana, sugere imagens luminosas e sensoriais, proporcionando um movimento dialético da palavra à imagem e vice-versa.
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O FANTÁSTICO EM "EMBARGO", DE JOSÉ SARAMAGO Amanda Batistela (UNESP/Assis) Escritor contemporâneo de língua portuguesa, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, José Saramago esteve engajado na luta contra os problemas sociais. Sua prosa é permeada por temas como a relação entre o homem e os bens materiais, enfocando-se a vida urbana, situações conflituosas entre o individual e o coletivo, além da presença do extraordinário. Esses traços podem ser encontrados em seu livro Objecto quase, de 1978, que traz uma coletânea de seis contos (“Cadeira”, “Embargo”, “Refluxo”, “Coisas”, “Centauro” e “Desforra”), caracterizados como fantásticos e metafóricos, explanando preocupações sociais e políticas, mostrando ainda a relação entre o humano e os objetos inventados por ele. O presente trabalho analisa o conto “Embargo”, em cujo enredo é apresentada a personificação de um automóvel, num momento em que questões econômicas e políticas insinuavam privá-lo do líquido que o alimenta, o combustível. Em meio a esse embargo, o motorista do veículo encontra-se preso em seu carro, tentando desprender-se das forças estranhas que o seguravam em seu assento. A partir desse enredo é possível notar uma relação do conto com o contexto histórico das crises do petróleo, averiguando que a década de 1970 tem como acontecimento um racionamento dessa mercadoria nos países ocidentais, mesma década em que se publicou o livro Objecto Quase. É possível inferir que essa crise de dimensões globais foi objeto de análise trabalhado literariamente por Saramago. Nos anos 1970, a crise do petróleo afetou o Ocidente sendo atingido com a escassez desse produto não-renovável, uma vez que os produtores orientais racionaram-no, com vistas a aumentar o preço dessa mercadoria, controlando ainda a venda de seus demais derivados. Como comprova Moniz Bandeira: “Os países árabes, integrantes da OPEP, aproveitaram a guerra do Yom Kippur para compensar as perdas com a desvalorização do dólar, e usaram, pela primeira vez, o petróleo como arma e instrumento de pressão,
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suspendendo o fornecimento aos países que apoiavam Israel” (MONIZ BANDEIRA, 2006 apud MARINHO, 2014). A partir do conto “Embargo”, de cunho político e econômico, pretende-se refletir sobre as temáticas trabalhadas, salientando-se a grande metáfora por meio da qual é composta uma crítica à sociedade consumista, focada nos bens materiais, bem como averiguar aspectos insólitos encontrados por meio da análise das categorias da narrativa: ação, foco narrativo, tempo, personagens e espaço. O conto “Embargo” inicia-se sinalizando um empecilho, um “embargo” constatado no trânsito vagaroso das grandes cidades, com o homem dessas metrópoles preso nos engarrafamentos, além do próprio embargo da crise do petróleo. O primeiro parágrafo já insere o leitor num episódio cotidiano, o qual se transformará em tensão dramática ao longo da narrativa. Tem-se um homem moderno, apresentando um ritmo de vida aflitivo, haja vista que a personagem tem o “sonho degolado” (SARAMAGO, 1984, p. 37), tenta dormir novamente e receia o amanhecer (“aborreceu-se: se não conseguisse voltar a dormir já, acabaria por ter o dia estragado” (SARAMAGO, 1984, p. 37)), o qual indica um novo dia de trabalho, um novo dia de correria típica da vida estressante do homem contemporâneo, numa sociedade capitalista. Com tais observações, o leitor pode-se sentir na mesma posição da personagem, pois a modernidade trouxe um ritmo de vida acelerado para as pessoas, a busca por cumprir todas as suas obrigações diárias, resulta numa sociedade permeada por doenças tidas como frutos da modernidade: depressão, ansiedade, angústia, estresse. Segundo Bauman, viver nessa sociedade real implica em: A comunidade realmente existente será diferente da de seus sonhos – mais semelhante a seu contrário: aumentará seus temores e insegurança em vez de diluí-los ou deixá-los de lado. Exigirá vigilância vinte e quatro horas por dia e a afiação diária das espadas, para a luta, dia sim, dia não, para manter os estranhos fora dos muros e para caçar os vira-casacas em seu próprio meio. (BAUMAN, 2003 apud FRAGOSO, 2014)
O conto em análise pode ser considerado como fantástico na medida em que evidencia a estética do confronto, problematizante, onde tudo parece normal até que algo inexplicável acontece.
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O fantástico leva o leitor para um ambiente cotidiano, para, então, quebrar essa familiaridade, o que é confirmado por Cortazar (1974, p. 179), em seu texto “Do sentimento do fantástico”: O fantástico força uma crosta aparente, e por isso lembra o ponto vélico; há algo que encosta o ombro para nos tirar dos eixos. Sempre soube que as grandes surpresas nos esperam ali onde tivermos aprendido por fim a não nos surpreender com nada [...].
Com isso, o leitor ao adentrar esse universo ficcional pode-se identificar com o protagonista anônimo, mas, com o desenrolar da trama, o comum torna-se insólito, surpreendendo-o, haja vista que um automóvel personificado não pertence ao universo real. Na leitura do conto, diversas temáticas são encontradas, como o individualismo e a falta de solidariedade, presente na ação do menino que aceitou chamar a esposa do homem preso em seu automóvel em troca de uma remuneração financeira (“[...] com o argumento de uma moeda [...]”, SARAMAGO, 1984, p. 46), estando, portanto, com “o dia ganho” (SARAMAGO, 1984, p. 47). O voyeur também está presente nessa sociedade, com os humanos observando os acontecimentos que se sucedem ao seu redor, com a intimidade cada vez mais pública. Tal invasão do particular pode ser percebida no excerto: Ao voltar a cara para a direita, para o passeio, viu uma rapariguinha a espreitá-lo, ao mesmo tempo intrigada e divertida. Logo a seguir surgiu uma mulher com um casaco de abafo nas mãos, que a rapariga vestiu, sem deixar de olhar. E as duas afastaram-se, enquanto a mulher compunha a gola e os cabelos da menina. Voltou a olhar no espelho e compreendeu o que devia fazer. Mas não ali. Havia pessoas a olhar, gente que o conhecia [...]. (SARAMAGO, 1984, p. 44) Outra temática proporcionada no texto em análise é a humanização do objeto, havendo a utilização de diversas prosopopeias: “transpiração condensada” da vidraça (SARAMAGO, 1984, p. 37), “olho cinzento da vidraça” (SARAMAGO, 1984, p. 37), “o automóvel [...] transpirava como um corpo vivo” (SARAMAGO, 1984, p. 38), “o carro vibrante e tenso nas suas mãos” (SARAMAGO, 1984, p. 39), “o diabo do carro tinha sete fôlegos” (SARAMAGO, 1984, p. 41), “o carro avançava, elástico, respirando
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pausadamente. Alguma coisa não estaria bem no automóvel” (SARAMAGO, 1984, p. 43). Seres inanimados recebem atributos que pertencem à seleção lexical descritiva de seres humanos, adquirindo vida, em contraposição ao homem que está estagnado, não consegue libertar-se das suas invenções, está preso no objeto (automóvel) criado por ele mesmo. Com isso, nota-se um acontecimento incomum no seio da sociedade: um automóvel adquire vida, protagonizando um episódio pertencente ao universo fantástico. É colocado em evidência o consumismo presente na sociedade, a dependência dos recursos materiais, porque, mesmo numa época de escassez do petróleo, os motoristas não deixam seus carros em casa, insistem em sair com os mesmos, com muitos automóveis sendo abandonados na rua, uma vez que o combustível acaba e os postos começam a fechar, já que a matéria-prima que os alimenta está esgotada. Assim, tal conto oferece diversas temáticas concernentes à sociedade, trazendo à tona questões que afetam o cotidiano das pessoas e também o mundo, em virtude do processo de globalização. No entanto, a humanização do automóvel é um acontecimento extraordinário trabalhado pelo autor. A ação tratada traz apontamentos de temas presentes na sociedade, conforme já observado, em um enredo linear e fantástico, com os fatos unidos de modo coeso, com a trama sobre a humanização do automóvel sendo tratada brevemente em 14 páginas. O narrador, heterodiegético, é também onisciente e onipresente. Tal é constatado no próprio início do conto: “Acordou com a sensação aguda de um sonho degolado e viu diante de si a chapa cinzenta e gelada da vidraça.” (SARAMAGO, 1984, p. 37), no qual o verbo encontra-se na terceira pessoa do singular “(ele) acordou”. Todos os fatos da narrativa são apresentados por esse narrador, que está distante das personagens, apenas observando-as. O conto passa-se na década de 1970, devido à menção feita aos árabes, à escassez do petróleo, como é visto em “Ligou a rádio e apanhou um noticiário. Notícias cada vez piores. Estes árabes. Este estúpido embargo” (SARAMAGO, 1984, p. 40); “[...] não haveria ali gasolina antes de quinze dias.” (SARAMAGO, 1984, p. 40), “Viu
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três bombas de gasolina, mas o carro não reagiu. Todas tinham o letreiro de <<esgotado>>.” (SARAMAGO, 1984, p. 46), “À medida que penetrava na cidade, ia vendo automóveis abandonados em posições anormais, com os triângulos vermelhos colocados na janela de trás, sinal que noutras ocasiões seria de avaria, mas que significava, agora, quase sempre, falta de gasolina.” (SARAMAGO, 1984, p. 46). Outro aspecto temporal citado é a data natalina, época em que as pessoas saem às ruas para fazerem suas compras, momento em que há uma grande movimentação mercadológica, revelando novamente uma sociedade consumista. Os excertos que confirmam essa época são: “Um Natal escuro e frio, dizia um dos títulos.” (SARAMAGO, 1984, p. 40), “Tempo do Natal, mesmo faltando a gasolina, toda a gente vem para a rua.” (SARAMAGO, 1984, p. 42). Há marcações temporais exatas no decorrer do conto, informando ao leitor o passar do tempo, que é semelhante ao do relógio. A narrativa se inicia com a personagem masculina que acorda no meio da noite, angustiada pelo sono interrompido, aguardando o amanhecer. Após o amanhecer, dirigindo-se ao trabalho, essa personagem passará o dia e a noite presa em seu carro, conseguindo libertar-se no novo amanhecer, podendo-se dizer que o tempo da história é maior do que o tempo do discurso. Com isso, permite-se examinar que a duração do conto é de um dia, desde que amanhece e a personagem masculina tenta ir ao trabalho até o amanhecer do dia seguinte, com o passar do tempo presente nos seguintes trechos: “madrugada que entrava” (SARAMAGO, 1984, p. 37); “aproveitasse um pouco mais da manhã” (SARAMAGO, 1984, p. 37); “até ao anoitecer o homem circulou pela cidade” (SARAMAGO, 1984, p. 48), “toda a noite viajou” (SARAMAGO, 1984, p. 49), “a manhã abriu por completo” (SARAMAGO, 1984, p. 49). Outro elemento temporal que pode ser citado é o emprego de elipse, que consiste em dar saltos temporais na narrativa, notando-se elipse explícita em “cerca de meia hora depois” (SARAMAGO, 1984, p. 41), “passadas duas horas” (SARAMAGO, 1984, p. 37). Para Genette, a elipse é caracterizada como “o tempo da história elidido” (s.d., p. 106). Ademais, de acordo com Remo Ceserani, em sua obra O Fantástico (2006), dentre os sistemas recorrentes na literatura fantástica, tem-se como procedimento narrativo e
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retórico o uso de elipses (espaços vazios), assinalando outro aspecto recorrente à narrativa fantástica. Por sua vez, acerca das personagens tem-se, por exemplo, o marido, a esposa, o garoto, o automóvel. Verifica-se que esses não são nomeados, índice que pode ser caracterizado como universalizador, pois poderia ser qualquer marido, qualquer esposa, qualquer garoto... Não há descrições das personagens, haja vista que o conto está focado em ações, no drama vivenciado pela personagem masculina, presa no carro até que se consumisse toda a gasolina de seu automóvel. No entanto, é possível averiguar alguns traços caracterizantes acerca dessa personagem em “Mas, na verdade, sempre se considerara muito melhor condutor do que o comum.” (SARAMAGO, 1984, p. 39). Também é apresentado como receoso e envergonhado de ser exposto à mídia em razão de seus momentos de desespero (“E viriam os jornalistas, os fotógrafos, e ele seria mostrado metido no seu carro em todos os jornais do dia seguinte, cheio de vergonha como um animal tosquiado, à chuva.”, (SARAMAGO, 1984, p. 45)). Semelhante ao que ocorre às personagens, o espaço em que se passa a ação não é nomeado, permitindo inferir que tal enredo poderia passar-se em qualquer local, com quaisquer pessoas. Sabe-se que a história se passa num ambiente urbano, com a sociedade embargada pela crise do petróleo. Por se tratar de um episódio tido como surreal, embora envolto em acontecimentos considerados possíveis, o enredo do conto, em que um carro adquire vida, traz algumas passagens que sinalizam para esse fato fantástico: “absurdo” (SARAMAGO, 1984, p. 45), “sonho de cavernas” (SARAMAGO, 1984, p. 46), “poderes que o prendiam” (SARAMAGO, 1984, p. 46), “horrível demais para ser acreditado” (SARAMAGO, 1984, p. 47). Valendo-se novamente dos sistemas usuais na literatura fantástica, Remo Ceserani (2006) afirma que outro procedimento fantástico é a passagem de limite e de fronteia, na qual há: [...] passagem da dimensão do cotidiano, do familiar e do costumeiro para a do inexplicável e do perturbador: passagem de limite, por exemplo, da dimensão da realidade para a do sonho, do pesadelo, ou da loucura. O personagem protagonista se encontra repentinamente
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como se estivesse dentro de duas dimensões diversas [...] (CESERANI, 2006, p. 73)
Tal passagem de limite e de fronteira acontece com o motorista anônimo ao começar seu dia com os fatos dentro da normalidade de seu cotidiano, mas entrar em outra dimensão fantástica ao se encontrar preso dentro de seu carro e submisso aos poderes desse. O envolvimento do leitor é mais um recurso encontrado em “Embargo”. Segundo Ceserani (2006, p. 71): “O conto fantástico envolve fortemente o leitor, leva-o para dentro de um mundo a ele familiar, aceitável, pacífico, para depois fazer disparar os mecanismos da surpresa, da desorientação, do medo [...]”. Assim, a leitura do início do conto conduz a um ambiente íntimo, porém no decorrer das páginas o aceitável torna-se inaceitável, surpreendendo o leitor. Por fim, no término do conto, o automóvel finalmente para, em virtude da falta de gasolina, e, por sua vez, o motorista finalmente consegue se libertar do veículo. Nesse momento, o narrador informa: “[...] porque fosse morrer, ou porque o motor morrera [...]” (SARAMAGO, 1984, p. 50). De tal modo, observa-se a sugestão de dois finais para o conto, em virtude da possibilidade oferecida pelo “ou”, pode-se pensar na morte da personagem masculina ou simplesmente o motorista para em virtude da morte do motor automotivo sem o líquido que o alimenta. Aprofundando essa possibilidade do final do conto, pode-se indagar que mesmo que a morte seja apenas do motor, a sociedade está tão dependente dos recursos materiais que dificilmente saberia viver sem os mesmos. A sociedade moderna conseguiria evitar os excessos de consumo, especialmente, na época do Natal? Assim, examina-se uma significativa crítica ao consumismo. Convém destacar ainda que tal conto serviu de inspiração para uma produção fílmica homônima, do cineasta português António Ferreira. É um filme de 2010, classificado como comédia/drama. Ferreira iniciou as gravações do referido filme, mas interrompeu-as por 20 anos, retomando as filmagens durante uma greve de caminhoneiros ocorrida em Portugal, que despertou novamente a ideia de produzir “Embargo”.
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Assim sendo, tal filme tem um enredo semelhante ao conto saramaguiano, mas inclui novas informações na linguagem fílmica, com o motorista do carro chamando-se Nuno, o qual inventou uma máquina, um “digitalizador de pés”, que iria revolucionar a indústria dos calçados e também melhorar a sua vida, mas quando vai apresentar esse projeto encontra-se preso dentro de seu automóvel, o que igualmente acontece com a personagem principal do conto. O filme “Embargo” recebeu vários prêmios como, por exemplo, o “Grande Prêmio do Cinema Brasileiro 2012”. De tal modo, verifica-se que muitas produções literárias podem servir de inspiração para produções artísticas em outros gêneros, enriquecendo ainda mais o universo cultural. Por fim, a partir das considerações apresentadas nota-se que o conto “Embargo”, do escritor português José Saramago, valendo-se de um enredo fantástico, emprega um automóvel como metáfora para debater a dependência humana em relação aos bens materiais presentes na sociedade.
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A FICÇÃO PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA NA REVISTA COLÓQUIOLETRAS SEÇÃO “RECENSÃO CRÍTICA” (1971/n. 01 - 2013/n. 183) Amanda Mendes (UNESP)
A literatura portuguesa contemporânea inscrita para estudo nos livros de história da literatura portuguesa, vide Saraiva e Lopes e Carlos Reis (coordenador da publicação de uma coleção pela editora Alfa e outra pela editora Verbo, esta em conjunto com Maria da Natividade Pires), não abrange a totalidade nem aprofunda o estudo crítico dos autores portugueses contemporâneos. O termo contemporâneo nesses livros é tomado, cronologicamente, desde o começo do Século XX (Saraiva e Lopes, editora Porto) ou a partir da década de 1930 (Geração da Presença- Carlos Reis, editora Alfa). Para abarcar todos esses anos, verificou-se nessas obras que a abordagem metodológica foi estruturada em décadas ou correntes literárias iniciada por Saraiva e Lopes e continuada pelos referidos críticos. A revista Colóquio Letras, em seu site _ www.coloquio.gulbenkian.pt _ organizou sua produção por décadas _ 1971-1979; 19801989; 1990-1999; 2000-2009; 2010-2013, nas seguintes seções: ensaio, documentos, notas e comentários, recensões críticas, informação literária, letras em trânsito, revista de revistas e inquérito. Dentre essas seções, a que nos interessa é a seção “Recensão Crítica”, responsável pela publicação de resenhas, organizadas sob os temas abaixo, fornecidos pela própria revista: ficção, poesia, teatro, teoria literária, antologia, memórias, ensaio, biografia, tradução, vária, crônica, epistolografia, diário, oratória, autobiografia, literatura infanto-juvenil, bibliografia, dicionário, crítica literária.
As Recensões Críticas publicadas na Revista Colóquio Letras O presente trabalho trata-se de um recorte e um aprofundamento da pesquisa feita durante o desenvolvimento do projeto de Iniciação Científica no curso de graduação em Letras _ O estudo da literatura portuguesa contemporânea por meio de periódicos: Colóquio-Letras - seção “Recensão Crítica” (1980/n. 53-1989/n. 112). Tal projeto de IC fazia parte de uma pesquisa maior com quatro partes, cujo objetivo era
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estudar a literatura portuguesa contemporânea por meio de resenhas publicadas na revista Colóquio Letras. Enquanto na IC foram trabalhados três gêneros _ ficção, poesia e teatro _ em uma única década, a presente pesquisa pretende observar obras de um único gênero _ ficção _ em todos os números e décadas da revista, ou seja, de 1971 a 2013, totalizando 157 através da leitura do corpus do periódico, ou seja, todas as resenhas de ficção. A revista Colóquio-Letras é publicada na cidade de Lisboa (Portugal), de início trimestralmente (1971), pela Fundação Calouste Gulbenkian (www.gulbenkian.pt). Esta pode ser definida com o uma instituição portuguesa de direito privado e de utilidade pública, cujos fins estatutários são a Educação, a Ciência, a Beneficência e as Artes. Foi criada por disposição testamentária de Calouste Sarkis Gulbenkian e seus estatutos foram aprovados em 1956. Calouste Gulbenkian foi um milionário armênio-judeu, nascido em 1869 e falecido em Portugal em 1955. Sua fortuna proveio da concessão de 5% de participação em quatro grandes companhias de petróleo, dentre estas a Shell e a Bristish Petroleum. Por sua participação na transferência dos ativos da Companhia Iraquiana de Petróleo durante a Segunda Guerra Mundial, foi viver em Portugal. Com seu patrimônio pôde satisfazer a paixão por obras de arte adquirindo várias delas, possibilitando com isso, a abertura de um museu, atual Museu Calouste Gulbenkian. Em agradecimento pela acolhida do novo país, ao morrer, legou seus bens aos portugueses na forma de uma fundação, atual Fundação Calouste Gulbenkian. Esta
Fundação
publica
as
revistas
Colóquio/Letras,
Colóquio/Artes,
Colóquio/Ciências e Colóquio/Educação, além de manter atividades culturais diversas como orquestra, bibliotecas, uma companhia de balé e um museu. A revista Colóquio-Letras dedica-se, desde 1971, a estudar o fenômeno literário. Para isso, parte do princípio de que cada direção à frente do periódico impõe um projeto, uma visão de como lidar com a literatura. Dessa maneira, pode ser detectada as diferenças no tratamento editorial da revista durante os respectivos gerenciamentos. Pela Colóquio, passaram cinco direções: Hernâni Cidade e Jacinto do Prado Coelho (1971-1975, números 1 a 23); Jacinto do Prado Coelho (1975-1984, n.24 a 79); David Mourão-Ferreira (1984-1996, n. 80-140/141); Joana Varela (1996/ n.142 a maio/2009/ n.171); Nuno Júdice (set./2009, n.172 até a presente data). Como se nota, a causa de mudança dos diretores é sempre pelo respectivo falecimento (exceto Joana
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Varela). Por isso, durante seus 32 anos de publicação, o periódico não conheceu muitas variações, sendo essa uma característica que o aproxima do caráter tradicional, conservador do jornalismo literário. No
site
da
revista
(http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/lastissue)
encontramos a informação de que a revista tem nova direção desde o número 172/set. 2009 _ o escritor Nuno Júdice: Colóquio/Letras retoma a publicação regular a um ritmo quadrimestral [a partir do n. 172-set. 2009]. Fiel a um projeto, dirigido inicialmente por Hernâni Cidade e Jacinto do Prado Coelho [n.1-1971] a revista reassume agora, sob a direcção de Nuno Júdice, um carácter diversificado e atento às virtualidades da nova paisagem cultural, tratando temas nem sempre ligados à lusofonia.
Em relação ao gênero resenha, por meio da seção “Recensão Crítica”, poderemos verificar que os textos de resenha são produtos da atividade de linguagem em funcionamento permanente nas formações sociais. Essas formações elaboram diferentes espécies de textos que apresentam características relativamente estáveis, justificando-se que sejam chamadas de gêneros de texto. Na maioria, a noção de gênero está associada à de discurso, (gênero de ou do discurso) à noção de tipo, à de textos (tipos textuais ou tipos de textos). Para Severino (2002) resenha, recensão, revista de livros ou análise bibliográfica é uma sinopse ou uma observação sobre as obras publicadas em periódicos especializados em várias áreas da ciência, artes e filosofia, resenhas que, além de exporem a informação contida no texto, também fazem comentários críticos e interpretativos, sendo elas muito mais úteis que somente informativas. Finalizando, Machado (2002), pesquisadora do referido assunto, define a resenha crítica acadêmica como uma ação da palavra materializada no texto posteriormente publicado em uma revista especializada em determinada área. Ela ainda afirma que o resenhista deve considerar seu posicionamento referente a alguma questão incontestável já que leitores podem ter uma avaliação contrária à sua, devendo, assim demonstrar com argumentos que convençam e que sejam pertinentes ao próprio setor acadêmico.
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Recensões ou para alguns pesquisadores, resenhas críticas acadêmicas, são feitas por pesquisadores, cientistas, professores que têm um nível de juízo crítico e que comunicam aos leitores os aspectos essenciais da obra em questão, situando-as no assunto da melhor maneira possível.
REFERÊNCIAS HISTÓRIA Crítica da literatura portuguesa. (direção Carlos Reis). Lisboa: Editorial Verbo, 1993-2006. 9 v. HISTÓRIA da literatura portuguesa (direção Carlos Reis). Lisboa: Publicações Alfa: 2001- 2006. 7 v. MACHADO, Anna Rachel (coordenação); LOUSADA, Eliane; ABREU-TARDELLI, Lília. Resenha. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. (Leitura e produção de textos técnicos e acadêmicos, 2 ). ______. Revistando o conceito de resumos. In: DIONÍSIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. Gêneros textuais e ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. MATTOSO, José . História da vida privada em Portugal: a época contemporânea. Lisboa: 2011.v.3. Revista colóquio-letras. Disponível em site http://coloquio.gulbenkian.pt acesso em 23 de Julho de 2014. SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. 17. ed. Porto: Porto, 1996. SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 11.ed. Europa-América: Mem Martins, 1987. ______.
História de Portugal. Lisboa: Europa-América, 2001. (Biblioteca da
História). ______; GUERRA, Maria Luisa. Diário da história de Portugal: monarquia liberal e república. Lisboa: Difusão Cultural, 1998. v.3.
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SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. 22.ed. São Paulo: Cortez, 2002.
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O MENINO E O RIO: DO LIVRO PARA O VIDEOCLIPE, AS TRANSPOSIÇÕES INTERMIDIÁTICAS DA POESIA DE MANOEL DE BARROS Amaya Obata Mouriño de Almeida Prado (UFMS/CPTL) A poesia de Manoel de Barros tem despertado o interesse de inúmeros estudiosos, sobretudo no campo dos estudos literários. Já há uma extensa produção acadêmica que analisa sua obra desde diversas perspectivas teóricas. Do mesmo modo, acompanhando o universo acadêmico, músicos, cineastas, professores, encantados com esse universo altamente poético, têm desenvolvido trabalhos os mais diversos a partir das imagens, da musicalidade e do clima de encantamento promovido por essa poesia. Dois belos exemplos de produções culturais elaboradas a partir dos textos de Barros são o CD Crianceiras, lançado em 2011 por um selo independente, e as animações em vídeo compostas a partir das músicas deste CD, realizados por Márcio de Camillo, compositor e cantor radicado em Campo Grande, capital do estado Mato Grosso do Sul. Este trabalho propõe observar uma parte dessas operações, pelo viés dos estudos intermidiáticos, analisando duas das transposições da poesia de Manoel de Barros. Trata-se do estudo da letra da música “O menino e o rio” e do vídeo de animação com o mesmo título, produzido a partir desta música. Para tanto, apresentaremos um breve histórico destes trabalhos, situando-os no contexto mais geral, para depois refletir sobre os procedimentos de transposição intermidiática postos em operação. Antes, porém, será necessário situar rapidamente os conceitos mobilizados pelos Estudos de Intermidialidade, propostos por Claus Clüver, além de tecer breves considerações sobre as poesias de Manoel de Barros, com a indicação dos poemas de onde foram retirados os versos da música. Intermidialidade: estudos interartes Em “Intertextus / Inter artes / Inter media”, um artigo publicado no número 14 da Revista Aletria, da UFMG, em 2006, assim como em cursos ministrados nessa instituição, Claus Clüver defende a consolidação de um novo campo de estudos, que designa como Estudos de Intermidialidade.
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Na introdução do referido artigo Clüver situa historicamente o surgimento da disciplina, tomando como ponto de partida o Comparativismo na concepção dos estudos desenvolvidos em universidades americanas em seus programas de Literatura Comparada. Assim surgem, segundo o autor (2006, p. 13), cursos sobre Literatura e outras artes, no qual a arte da palavra se sobrepõe às outras artes, marcando seu vínculo com a literatura. Entretanto, atualmente os Estudos interartes contemplam também manifestações artísticas nas quais a palavra não desempenham papel preponderante, motivo pelo qual Clüver rejeita a denominação, preferindo propor Estudos de Intermidialidade, indo buscar o termo na língua alemã, que utiliza “intermidialität” para designar estudos que articulam literatura e outras artes. De qualquer forma, o que o estudioso propõe é um campo de investigação que parte do comparativismo, adota a perspectiva e os métodos dos estudos literários e privilegiam manifestações em que haja o predomínio da arte da palavra sobre as outras artes. Quanto aos objetos de estudo, defende que o termo intermidialidade, [...] diz respeito não só àquilo que nós designamos ainda amplamente de “artes” (Música, Literatura, Dança, Pinturae demais Artes plásticas, Arquitetura, bem como formas mistas, como Ópera, Teatro e Cinema), mas também às “mídias” e seus textos, já costumeiramente assim designadas na maioria das línguas e culturas ocidentais. Portanto, ao lado das mídias impressas, como a Imprensa, figuram (aqui também) o Cinema e, além dele, a Televisão, o Rádio, o Vídeo, bem como as várias mídias eletrônicas e digitais surgidas mais recentemente. (Clüver, 2006, p. 18-19).
Ao explorar as relações e condições de textos individuais na inter-relação entre mídias, os Estudos de Intermidialidade, tal como estabelece Clüver (2011, p. 15-20), mobilizam as seguintes categorias:
Combinação de mídias/multimidialidade – mídias diferentes em um texto individual - “textos separáveis e separadamente coerentes, compostos em mídias diferentes” (p. 15);
Referências intermidiáticas – “textos de uma mídia [...] que citam ou evocam de maneiras muito variadas e pelos mais diversos motivos e objetivos, textos específicos ou qualidades genéricas de outra mídia” (p. 17);
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Transposição midiática, “é o processo ‘genético’ de transformar um texto composto em uma mídia em outra mídia, de acordo com as possibilidades materiais e as convenções vigentes dessa nova mídia”. O texto “original” [um conto, um filme, uma pintura, etc.] é a “fonte” do novo texto [textoalvo] na outra mídia. (p. 18).
Estes conceitos revelam-se oportunos e produtivos para a leitura e análise do trabalho efetuado por Márcio de Camillo a partir da obra de Manoel de Barros, como queremos demonstrar a seguir. A multimidialidade do texto-fonte. Ainda que os objetos centrais da leitura aqui proposta sejam a música e o vídeo, o ponto de partida é sem dúvida a poesia, que se apresenta primeiramente através do suporte mais tradicional, o livro. A análise da letra da canção revela que o compositor reorganiza alguns dos versos de Barros, retirados de três livros: Memórias Inventadas, de 2003, 2006 e 2008, Tratado geral das grandezas do ínfimo, de 2001e Livro sobre nada, de 1996. A série Memórias Inventadas é composta por três obras escritas em sua maioria em prosa poética. O primeiro livro intitulado Memórias inventadas: a Infância (2003) traz as reminiscências do poeta quando criança; o segundo, sob o título Memórias inventadas: a segunda infância (2006), aborda sua juventude e o terceiro, Memórias inventadas: a terceira infância, sua velhice (2008). Estas obras compõem um projeto de autobiografia poética de Manoel de Barros. Na apresentação de cada obra da série, Manoel de Barros declara: “Tudo que não invento é falso”, numa epígrafe que revela o fato de que suas memórias são invenção, ou talvez sejam lembranças de algo que não ocorreu, correspondendo à fantasia. Em geral as obras de Manoel de Barros são editadas com iluminuras feitas por sua filha, Martha Barros, mas o trabalho com a série Memórias inventadas tem a particularidade de que cada poema traz, logo após o título, uma iluminura, como que apresentando ou introduzindo o texto poético. Sem dúvida, dada sua riqueza, este recurso seria assunto para um trabalho extenso, que levasse em consideração as relações entre texto e imagem. Por ora, as leituras sobre os Estudos de Intermidialidade nos permitem observar que, como tantas outras obras ilustradas, as memórias de Barros lançam mão de pelo menos duas mídias
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distintas. A primeira delas verbal, dada pelo texto impresso, que pode ser também dada pela voz se lido em voz alta. Ao lado desta há a mídia visual das iluminuras ou, se pensarmos como Clüver (2011, p. 12), uma “submídia”, já que emprega meios físicos específicos, tais como lápis de cor e aquarela. Levando-se em conta que os estudos de intermidialidade exploram as relações e condições de textos individuais na inter-relação entre mídias, e com o apoio das subcategorias indicadas por Rajewski (2005, apud Clüver, 2011, p. 15) - a saber: combinação de mídias, referências intermidiáticas e transposição midiática - é possível afirmar que a obra em questão, por apresentar “textos separáveis e separadamente coerentes, compostos em mídias diferentes”, deve ser classificada como uma combinação de mídias ou um caso de “multimidialidade” já que revela a “presença de mídias diferentes dentro de um texto individual” (Clüver, 2011, p. 15). A transposição midiática: da poesia para a música Em 2011 o cantor e compositor sul-matogrossense Márcio de Camillo lança o disco “Crianceiras”, um trabalho independente em parceria com Manoel de Barros. São dez faixas contendo melodias compostas a partir dos versos do poeta, que não só aprovou o trabalho, como também incentivou e aconselhou o músico. Um trabalho gestado com calma e paciência, que evidencia um conhecimento amplo e seguro de toda a obra literária e revela o contato de longa data entre o músico e o poeta. Márcio conheceu Manoel de Barros em 1986 em Campo Grande, MS, e somente em 2007 começa o trabalho para o CD. A letra da canção é uma espécie de “colcha de retalhos”, em que o artesão, o compositor, recorta versos de várias obras do poeta e alinhava-os de tal modo que constituam um mosaico representativo da poética barreana. É composta por quatro estrofes de quatro versos, sendo que a segunda e a quarta estrofes constituem o refrão. A primeira estrofe da música constitui-se de uma seleção de pequenos poemas numerados em sequência, da segunda parte do livro Tratado geral das grandezas do ínfimo, de 2001, intitulada “O livro de Bernardo” (Barros, 2010, p. 414-18). Transcrevemos a seguir, na ordem em que eles estão dispostos na música, mas com a indicação das páginas em que aparecem no livro: 28 O corpo do rio prateia
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quando a lua se abre.
(p. 417)
10 Passarinhos do mato gostam de mim e de goiaba.
(p. 414)
12 Uma rã me benzeu com as mãos na água.
(p. 414)
37 Com fios de orvalho aranhas tecem a madrugada.
(p. 418)
A epígrafe de Barros para a série Memórias Inventadas, “tudo que não invento é falso”, é transposta para a música, constituindo o quarto verso da terceira estrofe. Desse conjunto das memórias é necessário ainda destacar o texto “Manoel por Manoel”, apresentado, nos três volumes logo após a epígrafe, como uma espécie de prefácio. Dele, Camillo retirou outra frase: “Cresci brincando no chão, entre formigas” para construir outro verso da música, o primeiro da terceira estrofe. O segundo e terceiro versos dessa estrofe são: “Meu quintal é maior do que o mundo” (Barros, 2010, p. 47) e “Por dentro de nossa casa passava um rio inventado” (Barros, 2010, p. 329). Foram retirados, respectivamente, da obra As infâncias e do poema “Arte de infantilizar formigas”, um dos que compõem a obra Livro sobre nada. O refrão da música de Márcio de Camillo compõe-se das últimas frases do texto que abre as Memórias Inventadas: “Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.” (Barros, 2006, p. 8). Predomina, nessa seleção de versos, o tema da infância e o destaque para imagens, cenas e espaços típicos do universo infantil, assim como se ressalta uma
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característica comum entre a poesia de Barros e as crianças, o livre trânsito entre realidade de fantasia. Para a análise de uma das faixas, a partir da perspectiva dos estudos de intermidialidade, tomamos uma definição de Rajewski: “A transposição midiática [...] é o processo ‘genético’ de transformar um texto composto em uma mídia, em outra mídia de acordo com as possibilidades materiais e as convenções vigentes dessa nova mídia.” (Rajewski, apud Clüver, 2011, p. 18) A música “O menino e o rio”, tomada como fragmento ilustrativo do trabalho todo, pode ser considerada, pelo senso comum, como um trabalho de adaptação. No âmbito dos estudos de intermidialidade, este processo de transposição é entendido como a construção de um novo texto (o texto-alvo), em outra mídia, utilizando-se de uma ‘fonte’ (o texto original). Nesta operação o novo texto retém elementos do texto-fonte e não pode ser entendido como substituto deste (Clüver, 2011, p. 19 e 2006, p. 17). É o que ocorre em relação à música aqui analisada. Ela não substitui o texto de Manoel de Barros, nem tampouco o modifica completamente. A mídia verbal, presente no livro, se mantém. O trabalho do poeta segue inalterado. O que se altera pela intervenção do músico é a ordem de apresentação dos versos. Seu trabalho consistiu não só na criação da melodia, mas também na seleção e reorganização de versos retirados do texto-fonte. Há aqui uma indefinição de fronteiras em relação à noção de autoria. Ao mesmo tempo em que se reconhece o texto de Barros, sob a forma de citações ipsis literis, a intervenção do músico permite a atribuição de uma nova autoria. Somado este aspecto à criação da melodia, fica reforçada a ideia de “recriação”, base do conceito de transposição midiática. Paralelamente à questão da transposição, vale lembrar que este trabalho musical retoma e amplia o aspecto da multimidialidade indicado anteriormente em relação ao livro. Não há dúvidas de que em primeiro plano aparece a mídia música, ou mídia musical, se quisermos utilizar a denominação proposta por Moser (2006, p. 50), mas no CD, além dela existem também as mídias verbal e visual. A visual recupera o expediente do livro, uma vez que traz as iluminuras de Martha Barros. Ela acompanha o texto verbal pois a capa traz o título e o nome de seus autores (o poeta e o músico) e o encarte apresenta as letras das canções. A configuração visual do CD (capas e encartes ilustrados), entretanto, exige uma reflexão de outra ordem, mais especificamente sobre a prática cultural que envolve a
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produção e circulação do texto musical. Percebe-se que esta “recriação” parte de uma mudança fundamental, tanto no eixo da produção como no da recepção. No primeiro, alteram-se os meios de produção (de uma editora para uma gravadora), de gravação (do papel para os arquivos de som) e de distribuição (de livrarias para internet também). No âmbito da recepção ocorre o mesmo, pois tudo o que envolve este trabalho indica uma mudança em relação ao público-alvo pretendido. As músicas contaram com a participação de crianças e foram direcionadas para o público escolar através de projetos desenvolvidos na rede de ensino de Campo Grande – MS. A própria seleção dos versos de Barros para compor as letras das músicas ressalta temas e imagens que priorizam o universo infantil, como destacado anteriormente. Desde a ideia inicial, o ambiente de produção e os paratextos (embalagem, encarte, capa), nota-se o direcionamento para o público infantil. Neste caso fica evidente que a operação intermidiática leva em conta a recepção do texto-alvo. São aspectos intermidiáticos (Clüver, 2011, p. 11) que interferem diretamente na recepção da obra, assim como o destaque dado ao trabalho através da publicidade, das reportagens, das críticas em jornais, revistas e televisão, enfim, pelos “epitextos”, segundo a definição de Genette (2010, p.237), que estão situados no entorno do texto, porém a uma distancia marcada por uma descontinuidade em relação à obra. Da segunda transposição midiática: o videoclipe O CD “Crianceiras” foi indicado como um dos três melhores álbuns infantis de 2012 pelo Prêmio da Música Brasileira. Imediatamente após o lançamento do CD e colaborando para a divulgação dele, o projeto musical se desdobrou em videoclipes animados exibidos pelo Gloob, canal infantil de televisão a cabo. A produção continua a cargo de Márcio de Camillo, que passa a contar com outros colaboradores como o diretor Josué Júnior e a empresa Animatronic, mas procura manter as características do CD. Para a música “O menino e o rio”, produziu-se um vídeo curto, que ilustra com imagens em movimento a letra da canção. Estas imagens também são de Martha Barros, aparentemente elaboradas com a finalidade específica de ilustrar o videoclipe. Talvez pelo fato de ser uma produção muito recente, fica difícil estabelecer seus detalhes técnicos. Entretanto, para o objetivo proposto, tais informações podem ser postergadas para uma possível continuidade da pesquisa. O que importa aqui é partir do
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texto-fonte, do texto em análise, o videoclipe, e “indagar sobre as razões que levaram ao formato adquirido na nova mídia” (Clüver, 2006, p.17). Em consonância com a maioria das produções deste gênero, este novo trabalho com a música “O menino e o rio” parece ter a finalidade específica de divulgar a trilha sonora, que é vendida separadamente. Mas outra questão se destaca nas entrevistas do músico em jornais e revistas: o interesse em formar e ampliar o público leitor sensível à poesia. Este é o princípio norteador do trabalho, desse sua concepção. A análise do videoclipe revela que a mídia musical não sofreu qualquer alteração. O tempo do vídeo coincide com o tempo da música: dois minutos e quarenta e dois segundos. Letra e música são mantidas, mas agora acrescidas do que Clüver (2006, p. 20) chama de “videotextos visuais”, elaborados a partir da montagem dos textos visuais de Martha Barros, eles próprios compostos a partir de mídias distintas, ou por efeitos de computação gráfica. Em primeiro plano, iluminuras feitas com lápis de cor e aquarela. Esporadicamente aparece o texto verbal (escrita alfabética), reproduzindo o título da canção e alguns versos ou fragmentos deles. Também há efeitos gerados por computador, como se pode perceber pelo movimento das águas (00’49”), pelo espelhamento, ou o reflexo da imagem de uma rã na superfície do rio (00’44”), as gotas de orvalho caindo, transparentes, passando diante das letras postas na imagem (00’56”) e todos estes recursos juntos ao final (02’00”). As imagens se alteram e os seus elementos se movimentam continuamente em transições suaves e algumas vezes a passagem de um plano para outro conta com variações das nuances de cor, que também produzem o efeito de movimento. Trata-se então de um texto mixmídia na medida em que é, como define Clüver (2006, p.20), composto a partir da união de um texto multimídia (música e palavras) com uma montagem de textos visuais. Do mesmo modo, ao considerar o critério de separabilidade, percebe-se que o texto visual, isoladamente, não é auto-suficiente: sem o som, a sequência de imagens não produzem o sentido global. Os ritmos das imagens em movimento perdem seu efeito sem o ritmo da música. Mais uma vez, a transposição midiática efetuada não tem a intenção de substituir o texto-fonte, mas sim de ampliar sua divulgação. Além disso, consiste num tipo de trabalho que busca acompanhar as (r)evoluções
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artísticas atualmente, cuja compreensão exige a revisão de conceitos teóricos e até a formulação de um novo campo de estudos, a intermidialidade. Considerações finais Os trabalhos de transposição, tanto o CD quanto o videoclipe, são novas criações, novos textos artísticos coerentes com seu tempo, em que as diversas mídias ampliam sua presença. Produzidos a partir das poesias de Barros, acompanham as (r)evoluções das produções artísticas atuais, cuja compreensão exige novas abordagens de leitura e de análise, a revisão de conceitos teóricos e até a formulação de novos campos de estudos. Os estudos de intermidialidade podem nos ajudar a compreender, como foi explicitado aqui, as manifestações artísticas contemporâneas, que evoluem a passos largos, acompanhando as evoluções tecnológicas e as transformações mercadológicas. A literatura, desse modo, trilha outros caminhos de aproximação com o público, sem dúvida conquistando mais leitores, através da plasticidade, da musicalidade e da poesia. Referências bibliográficas BARROS, Manoel de. Poesia Completa. 1. ed. São Paulo: Leya, 2010. ______. Memórias Inventadas: A infância. São Paulo: Planeta do Brasil, 2003. ______. Memórias Inventadas: A segunda infância. São Paulo: Planeta do Brasil, 2006. ______. Memórias Inventadas: A terceira infância. São Paulo: Planeta do Brasil, 2008. CLÜVER, Claus. Inter textus / Inter Artes / Inter Media. Revista Aletria. Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais. n. 14, p. 11-41, jul-dez. 2006. (Versão impressa e digital. Disponível em: < http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/issue/view/96>) _____________. Da transposição intersemiótica. In: ARBEX, Márcia (Org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de PósGraduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG, 2006.
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_____________. Intermidialidade. In Pós: Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes. V.1, n.2. Belo Horizonte: EBA UFMG, 2011. (Versão impressa e digital. Disponível em: GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. MOSER, Walter. As relações entre as artes: por uma arqueologia da intermidialidade. Revista Aletria. Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais. n. 14, p. 42-65, jul-dez. 2006. (Versão impressa e digital. Disponível em: < http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/issue/view/96>)
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LEITURA FICCIONAL FEITA POR ADOLESCENTES: COMPASSOS E DESCOMPASSOS ENTRE A ESCOLA E A VIDA SOCIAL Ana Carolina de Azevedo Mello (UEM) Stéfanny Barranco do Nascimento (UEM) Resumo: O presente artigo propõe uma investigação sobre como os estudantes adolescentes interagem nas práticas de leitura em contextos escolares e não escolares. A hipótese de trabalho é de que as práticas de fomento à leitura de modo geral, e da literária, exigidas pela Escola, desconsideram as leituras realizadas pelos adolescentes em âmbito não escolar, tratando-as como leituras não adequadas ou, como dizem as OCNEM (2006), como escolhas de leitura "anárquicas". É notório que a indústria cultural ou cultura de massa influenciam na formação do gosto pela leitura dos adolescentes, porém, pouco se sabe sobre as leituras realizadas fora do âmbito escolar e como se dão essas práticas de letramento e os modos de apropriação desses textos por leitores adolescentes. Buscarse-á, portanto, identificar o perfil e o hábito de leitura dos adolescentes em bibliotecas não escolares, a motivação deles para a leitura e a recepção das práticas de formação de leitura em contexto escolar. Para tanto, realizou-se um levantamento de dados, por meio da aplicação de questionários semiestruturados, a alunos de 12 e 14 anos de escolas públicas e particulares e a leitores de bibliotecas municipais das cidades de Cornélio Procópio e Paranavaí. Nesta comunicação, serão apresentados os dados obtidos e algumas análises sobre as relações entre as leituras de narrativas no espaço e escolar e em espaços não escolares. Palavras-chave: Letramento literário. Adolescentes. Escola. Biblioteca Introdução Com o advento das novas tecnologias da informação, o século XXI – denominado por Sociedade da Informação - é marcado pelas imagens, pela velocidade e pela web. Devido a esses fatores, pesquisas apontam que o índice de leitura é crescente. Contudo, apenas 26% da população brasileira é capaz de ler, entender e interpretar textos mais complexos, segundo os últimos dados do indicador de alfabetismo funcional (INAF, s/d), realizado em 2011. Assim, embora o acesso à informação tenha aumentado, o Brasil encontra-se muito atrasado em relação à garantia do direito básico de cidadão: aquisição das competências das práticas da leitura e da escrita. Porém, como diz o pesquisador Roger Chartier (2001), não basta fazer uma divisão grosseira entre
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analfabetos e alfabetizados, pois todos aqueles que podem ler textos não o fazem do mesmo modo. Para ele, uma história da leitura deve, pois, levar em conta, as formas de compreensão, apropriação e utilização dos textos. É importante ressaltar que o termo Letramento começou a ser usado nos meios acadêmicos nessa tentativa de separar os estudos sobre o impacto social da escrita na sociedade, dos estudos sobre alfabetização. Parece-nos oportuno, portanto, investigar neste artigo, a atividade leitora de adolescentes de 12 e 14 anos, partindo dos pressupostos teóricos do Letramento, pois, “localizar a diferença social nas práticas mais do que nas diferenças estatísticas, são muitas das vias possíveis para quem quer entender, como historiador, essa “produção silenciosa” que é a “atividade leitora.” (CHARTIER, 1999, p. 27) É necessário salientar que, neste artigo, o termo Letramento será lido como letramento literário, devido ao objeto de pesquisa ser as leituras literárias realizadas por adolescentes, as quais possuem como maior especificidade o traço de ficcionalidade, não sendo consideradas apenas as leituras canônicas, ou exclusivamente realizadas no espaço escolar. Serão analisadas, portanto, todas as práticas de letramento literário, que envolvem filmes, novelas, blogs, web etc. Igualmente, serão repensados os espaços sociais em que essas práticas de leitura são realizadas, neste caso, em locais cuja frequência de adolescentes é notória. Para tanto, optou-se pela aplicação de quarenta questionários semiestruturados em dois ambientes distintos: escolas e bibliotecas não escolares das cidades de Cornélio Procópio e Paranavaí. Dessa forma, será analisado se as práticas de letramento literário realizadas pela escola se dão de forma positiva, visto que a mesma utiliza-se do princípio da cultura erudita, com caráter propedêutico, utilizando-se de um corpus de texto literários considerados dignos de serem lidos. Leituras, essas, que são determinadas pelas relações de poder. Nas bibliotecas não escolares, serão analisadas as práticas de leituras realizadas pelos adolescentes, uma vez que, neste espaço social, as leituras não são impostas, são livres e refletem os interesses reais de leitura de seus frequentadores, embora sejam reconhecidas pela escola como leituras não adequadas ou, como dizem as OCNEM (2006), “anárquicas”. Segundo ROJO (2009) “as práticas tão diferentes, em contextos tão diferenciados, são vistas como letramento, embora diferentemente
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valorizadas e designando a seus participantes poderes também diversos”. (ROJO, 2009, p. 99) A presente pesquisa objetiva tornar visível essa complexidade de práticas cotidianas de letramento literário realizadas por adolescentes. A escola apresenta estereótipos dominantes quando desconsidera as leituras realizadas fora do âmbito escolar. Contudo, conhecer e compreender a apropriação desses textos considerados como leituras não adequadas, seria examinar uma conceitualização mais desenvolvida dessas práticas locais de letramento. Letramento: conceitos O termo letramento foi recentemente introduzido nas áreas das letras e da educação. Há, ainda, uma dificuldade em se formular um conceito preciso de letramento, sendo essa dificuldade inerente ao próprio fenômeno. A pesquisadora Mary Kato apresentou, no Brasil, em 1986, a palavra letramento, por meio da tradução literal do termo inglês literacy, recobrindo ao mesmo tempo os significados de alfabetização e de letramento. Por conseguinte, os teóricos da área da linguística e da educação preocuparam-se, durante muito tempo, com a questão da aquisição das competências da leitura e da escrita, em caráter individual. Contudo, com o foco na alfabetização, deixaram de se preocupar com os efeitos que os usos da leitura e escrita poderiam acarretar em grupos de pessoas, em um contexto social. Foi por meio dessa tentativa de separar os estudos do “impacto social da escrita” (Kleiman,1995, p.15) dos estudos sobre alfabetização - que destaca as competências individuais no uso e na prática da escrita, que o termo letramento começou a ser utilizado nos meios acadêmicos. Podendo, hoje, ser definido como um “conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia em contextos específicos, para objetivos específicos.” (Kleiman, 1995, p. 19). Segundo Magda Becker Soares o termo letramento leva em consideração “o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social.” (SOARES, 2001, p.72). Nessa concepção, afirma que letramento são as práticas sociais de leitura e escrita e os eventos em que essas práticas são postas em ação, bem
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como as consequências dela sobre a sociedade. A pesquisadora corrobora com a pluralização do termo letramentos, que já vem sendo reconhecido internacionalmente para “designar diferentes efeitos cognitivos, culturais e sociais em função ora dos contextos de interação com o mundo – não só a palavra escrita, mas também a comunicação visual, auditiva e espacial.” (SOARES, 2002, p.9) Fazendo uma distinção entre os termos alfabetismo e letramento, ROJO (2009) afirma que o primeiro possui foco individual, ditado pelas capacidades e competências (cognitivas e linguísticas) escolares e valorizadas de leitura e escrita, numa perspectiva psicológica, enquanto o segundo recobre os usos e práticas sociais de linguagem que envolvem a escrita, sejam eles valorizados ou não valorizados, locais ou globais, recobrindo contextos sociais diversos, numa perspectiva sociológica, antropológica e sociocultural. É oportuno reconhecer as premissas teóricas e metodológicas de Brian Street (2003) que propõe uma divisão entre dois enfoques de letramento: o modelo autônomo e o modelo ideológico, os quais permitirão fazer um estudo sobre a eficácia ou não do modelo de letramento adotado pela escola nas práticas de leitura realizadas por seus alunos. O modelo escolar tradicional de escrita, apresentado e questionado por Street (1984) como “modelo autônomo de letramento”, vê a escrita como um produto completo em si mesmo. Nesse modelo, as pessoas aprenderiam a decodificar as letras e gradualmente adquiririam habilidades que os levariam a estágios universais de desenvolvimento, disfarçando as suposições culturais e ideológicas sobre as quais se baseiam, como se fossem neutras e universais. Street (1994) afirma que, com a adoção do modelo autônomo, a maioria dos programas tradicionais de letramento fracassa. Jung (2003) chega à conclusão de que com o modelo autônomo de letramento, a escola atribui o eventual fracasso escolar ao indivíduo, visto que a escola, conforme corrobora Kleiman (1995, p. 20), “preocupa-se não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização, o processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico), processo geralmente concebido em termos de uma competência individual necessária para o sucesso e promoção da escola. Já outras agências de letramento, como a família, a igreja, a rua como lugar de trabalho, mostram orientações de letramento muito diferentes.”. Em contraposição ao modelo autônomo
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dominante de letramento, Street (1984) apresenta o modelo “ideológico alternativo de letramento”, que afirma que as práticas de letramento são social e culturalmente determinadas e que levam em conta a pluralidade e a diferença. Portanto, (Street, 2003) “as práticas de letramento referem-se a esse conceito cultural mais amplo das formas específicas de pensar e de fazer a leitura e a escrita dentro dos contextos culturais.”. Dessa forma, o modelo propõe observar o processo de socialização das pessoas na construção de significado pelos participantes, buscando analisar as instituições sociais gerais e não apenas educacionais. Leituras ficcionais feitas por jovens A leitura literária desempenha papel relevante na formação do aluno pela sua função formadora, social e cultural. Nesse sentido, as leis dizem que ela surge como instrumento de prazer, como ferramenta lúdica que permite explorar outros mundos reais ou imaginários, que permite aproximação de outras pessoas e de outras ideias e até permite melhor interação na sociedade em que está inserido. Ainda que as leis assim sugiram, é possível observar, por boa parte dos alunos, um desinteresse pelas leituras indicadas e/ou impostas pela escola. Ao utilizar-se do modelo autônomo de letramento, a escola esconde a realidade das práticas de leituras desses textos, não reconhecendo se suas práticas de letramento se dão de forma positiva. Sendo assim, ao utilizar-se do princípio da cultura erudita, de caráter propedêutico e de um corpus de textos literários considerados dignos de serem lidos, estabelece uma relação de poder, desconsiderando as leituras que refletem os interesses, conhecimentos e necessidades reais de seus alunos, ou as leituras realizadas em outros espaços e realizadas de forma livre, tratandoas como leituras não adequadas ou, como dizem as OCNEM (2006), “anárquicas”. “Observando as escolhas dos jovens fora do ambiente escolar, podemos constatar uma desordem própria da construção do repertório de leitura dos adolescentes. Estudos recentes apontam as práticas de leitura dos jovens fundadas numa recusa dos cânones da literatura, tornando-se experiências livres de sistemas de valores ou de controles externos. Essas leituras, por se darem de forma desordenada e quase aleatória (PETRUCCI, 1999, p. 222), podem ser chamadas de escolhas anárquicas.” (Orientações curriculares Nacionais para o Ensino Médio - OCNEM’s 2006, p.61)
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As leituras “anárquicas”, não literárias, são proibidas aos alunos por seus mestres, ou ao público que é advertido sobre o que se deve ler e pensar, reduzindo-se, assim, a atividade leitora real ao silêncio. De Certeau (1994) alega que, para esses leitores, entretanto, “o cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada.”. Eles vão buscar em outros espaços, as leituras que satisfaçam aos seus verdadeiros interesses, o que não quer dizer que não pratiquem letramento literário, visto que, conforme ROJO (2009) “as práticas tão diferentes, em contextos tão diferenciados, são vistas como letramento, embora diferentemente valorizadas e designando a seus participantes poderes também diversos”. (ROJO, 2009, p. 99) Para que ocorra um letramento literário mais eficaz, que contribua para a formação de leitores competentes, torna-se necessário, como apresentado pelo letramento ideológico proposto por Street (1993), reconhecer as práticas de letramento como indissoluvelmente ligadas às estruturas culturais e de poder da sociedade, reconhecendo a variedade de práticas culturais associadas à leitura e a escrita em diferentes contextos. Para tanto, buscar-se-á compreender se as práticas de letramento literário realizadas no espaço escolar se dão de forma positiva, bem como reconhecer as práticas de leitura realizadas em contexto não escolar, ou seja, em espaços que permitem aos usuários culturais as leituras não autorizadas pelas instituições de poder, locais cuja frequência dos alunos seja notória e que possibilitem apreender a produção silenciosa desses leitores e os sentidos que criam conforme seus próprios interesses, neste caso, escolheu-se analisar a biblioteca não escolar, a fim de examinar uma conceitualização mais desenvolvida dessas práticas locais de letramento. Com o intuito de investigar a efetuação das práticas concretas de leitura, foram aplicados 41 questionários semiestruturados a 20 adolescentes, que frequentaram os espaços das bibliotecas da cidade de Cornélio Procópio: Biblioteca do SESC, Biblioteca Pública Municipal Prof.ª Edna Saad Bonfim Carnevalle, Biblioteca Cidadã Professora Izabel Arantes de Campos e da cidade de Paranavaí: Biblioteca Pública Municipal Júlia Wanderley. Outros 21 questionários foram aplicados nos sétimos e oitavos anos nos colégios: Bento Munhoz da Rocha neto - Unidade Polo e Colégio Nossa Senhora do Carmo – Paroquial, de Paranavaí.
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Compassos e descompassos entre escola e vida social: análise dos resultados A partir do resultado dos dados coletados, observou-se, que a maioria dos adolescentes entrevistados leem e gostam de ler dependendo do texto, como é percebido nas respostas efetuadas na primeira pergunta do questionário: ‘Você gosta de ler ?’.
Fonte : ESCOLA - Questão 1 : Você gosta de ler ? Respostas : Sim: 13; Depende do texto: 5; Não: 3
Fonte : BIBLIOTECA - Questão 1: Você gosta de ler? Respostas: Sim: 9 ; Depende do texto: 10; Não: 1
É importante observar que o interesse por determinadas obras é fundamental para que esse gosto se concretize, como pode ser percebido por aqueles que responderam que ‘dependendo do texto’ gostam de ler (escola: 5; biblioteca: 10). Conclui-se, portanto, que o ‘interesse’ é fundamental, o que pode ser corroborado com uma das conclusões da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil¹, que esclarece que a principal razão do número de leituras ter-se reduzido no Brasil, é em resposta dos 78% dos entrevistados que alegam a falta de interesse pelos livros. ___________________ ¹Terceira edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro, lançada em Brasília, no dia 29 de março de 2012, que tem por objetivo avaliar o comportamento leitor do brasileiro. Segundo a pesquisa, “O índice de penetração de leitores oscilou negativamente, da 2ª edição, realizada em 2007, para esta, passando de 55% para 50%” (RETRATOS DA LEITURA NO BRASIL, p.143)
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Para investigar os interesses de leitura dos adolescentes, a segunda questão investigou quais objetivos possuem ao realizar as leituras. O resultado foi um paradoxo: a maioria (11) dos adolescentes entrevistados na biblioteca, ambiente não escolar, procura por leituras que ofereçam aprendizagem; enquanto que na escola, a maioria (15) busca leituras para se divertir. Sobre outras possíveis razões para realizar leituras – questão 3 – não houve respostas. O questionário verificou, ainda, se os respondentes gostam de histórias/leituras ficcionais. A maioria dos entrevistados (escola: 19 ; biblioteca: 18) afirmaram que gostam de leituras ficcionais (como histórias de ficção, romances, quadrinhos, videogames, clips do youtube, etc.). Outro levantamento importante da pesquisa é observado na quinta questão, que diz respeito às mídias utilizadas na leitura, os multimeios para leitura de ficção. A maioria dos adolescentes entrevistados na escola prefere realizar as leituras no suporte ‘livro’, como observado no total de 81%, sendo que a internet/computador, ficou em segundo lugar, com (71%). Ao serem questionados sobre histórias que tenham visto em outros meios, que não o impresso (questão 6), a maioria das histórias citadas são apresentadas nos suportes televisão e cinema, sendo que os títulos citados abarcam gêneros como ação, aventura e romance. Na sequência, sétima questão, os respondentes foram perguntados sobre quais histórias, escritas em livros, leram nos últimos 3 meses. As 88 respostas revelam que tanto os adolescentes entrevistados na escola quanto na bibliteca, realizaram leituras espontâneas, aparentemente não indicadas pela escola, sendo em sua maioria, literatura estrangeira, best-sellers, livros pertencente ao universo adolescente, de temática infanto-juvenil, trilogias ou séries de livros, como: A culpa é das estrelas (escola: 9, biblioteca: 1); Harry Potter (escola: 3, biblioteca: 0); Fallen (escola: 3, biblioteca: 0), etc. Além dos livros descritos, outros foram mencionados, porém com menor porcentagem de leitura, assim como os livros que podem ter sido indicados/aceitos pela escola, como os elencados pelos entrevistados na escola: A Cartomante (1), Dom Quixote (1), O menino do dedo verde (1) e na biblioteca: A bolsa amarela (1), O pequeno príncipe (1) e Viagem ao centro da Terra (1). Houve, ainda, duas respostas em branco. Nota-se, portanto, que os jovens desenvolvem práticas de leitura de maneira livre, lendo textos variados, que condizem com as expectativas de leitores adolescentes,
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os quais são considerados pela escola como leituras não adequadas, ou escolhas "anárquicas". Contudo, as respostas desta questão, por apenas sondar os últimos livros lidos, não são suficientes para compreender se essas práticas de leitura realizadas pelos adolescentes condizem com suas expectativas de leitura e/ou se podem ser consideradas práticas positivas de letramento, uma vez que, conforme CHARTIER (2001), além de haver graus de conhecimento diferentes, que levam a leituras mais ou menos competentes, também muitos outros fatores interferem nas maneiras de ler: os interesses, os hábitos, as intenções e as técnicas de leitura determinam relações variadas com os textos. Para tanto, buscou-se, na oitava questão, analisar se estes livros, lidos nos últimos meses, condizem com os interesses e preferências de leitura dos adolescentes e/ou se os livros indicados pela escola serão elencados nas respostas sobre as histórias lidas em livros que mais gostaram². As respostas assemelham-se as anteriores e confirmam que, tanto na escola quanto na biblioteca, os adolescentes elencaram como leituras preferidas obras que são desconsideradas pela escola, por não se tratarem de leituras canônicas ou ideais, mas narrativas que são consideradas pelas OCNEM’s (2006) como “aleatórias ou anárquicas”. Observa-se, portanto, que as práticas de letramento desses adolescentes não são consideradas pela cultura oficial e que a Escola não tem conseguido formentar o interesse por leituras de obras ditas canônicas ou ideais. Essa afirmativa se confirma nos resultados obtidos na nona questão, a qual pergunta se os adolescentes gostam dos livros de literatura estudados na escola. O resultado desse questionamento, novamente aponta um paradoxo, uma vez que a maioria dos adolescentes entrevistados na bibliteca afirma gostar dos livros indicados pela escola (não: 4, sim: 7, às vezes: 8, não resposta: 1). Ao contrário do que se esperava dos adolescentes entrevistados no ambiente escolar, que demonstraram não gostar das leituras literárias realizadas na escola (não: 14, sim: 3, às vezes: 4). O fato de gostarem, ou às vezes gostarem desses livros pode ser reflexo dos textos trabalhados e das práticas de leitura realizadas com tais textos. O que é _________________________ Títulos mais mencionados pelos leitores de bibliotecas: Fato real, O pequeno príncipe, Biografia, A bolsa amarela, A marca de Atena, Água para elefantes, Ana e Pedro, As aventuras de Pi, Assassin’s Creed, , etc. Títulos mais mencionados pelos leitores da escola: A culpa é das estrelas, Harry Potter, Diário de um banana, Fallen, Percy Jackson – Mar de monstros, Querido Jhon, A cartomante, A menina que roubava livros, etc.
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comprovado na décima questão, pois, ao justificarem os motivos de gostarem da literatura trabalhada na escola, percebe-se, novamente, que os jovens leitores buscam leituras que alimentam seus interesses e ofereçam aprendizagem. Quantos as razões para não gostarem dos livros trabalhados pela escola, questão 12, quatro dos entrevistados na biblioteca justificam essa premissa afirmando os acham “chatos” e oito dos entrevistados no ambiente escolar alegaram que os textos não falam de temas interessantes. Sobre os espaços da escrita, perguntou-se em quais meios preferem fazer as leituras, se em livros ou histórias lidas/vistas em outros meios. Na biblioteca a maioria, 11, respondeu que prefere o suporte livro, 2 disseram preferir outros meios, 6 preferem ambas, 1 não gosta de outros meios. Da mesma forma ocorreu na escola, a maioria, 12, respondeu preferir o suporte livro, 5 gostam de ambos e 3 outros meios. Nota-se, que dentre os entrevistados, poucos mencionam o uso que fazem da técnologia. Observa-se, portanto, que os adolescentes fazem leituras de narrativas multimidiáticas, porém, não compreendem que as leituras ficcionais não se realizam apenas no suporte livro. Ao justificarem o motivo da preferência do espaço de leitura, questão 15, as respostas foram multivariadas e subjetivas, as respostas vão desde gostarem dos livros “porque são mais detalhados do que outros meios”, “porque eu não tenho paciência para ler livros, prefiro assim”, até “pelo cheiro do livro que me agrada, por poder ter a história em minhas mãos, por ler quando estou chateada ou por prazer(...)” etc. Percebe-se, por meio das respostas às 15 questões, que os adolescentes, embora entrevistados em espaços sociais diferentes, possuem interesses semelhantes por leituras ficcionais. É indubitável, portanto, a necessidade da Escola em reconhecer esses ineteresses e necessidades de leitura, bem como desprendender-se de um modelo de letramento excludente, que silencia e ignora as práticas de leitura realizadas tanto no ambiente escolar quanto na vida social dos alunos, com um subterfúgio paltado nas OCNEM (2006) de que essas leituras são “anárquicas” e que refletem uma desordem própria da construção do repertório de leitura dos adolescentes.
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Conclusão: A partir dos dados coletados, verificou-se que a maioria dos jovens lê literatura constantemente, embora não se sintam estimulados a ler pelas obras indicadas pela escola. Torna-se nítido que as práticas de leitura promovidas pela escola são bastante distintas das leituras praticadas pelos adolescentes fora do âmbito escolar. Partindo do pressuposto que leitura é considerada literária a partir de seus traços de ficcionalidade (Hansen, 2005), este tipo específico de leitura vai além daquilo que a escola apresenta dentro do contexto escolar. De fato, é importante que a escola patrocine leituras vistas como clássicas, pois é necessário que se aprenda – ou pelo menos se conheça – uma vez que, muitos jovens leem apenas o que a escola lhes apresenta. Muito embora a escola promova um modelo específico de letramento, o autônomo (Street 1984), e é evidente que o letramento literário (Zappone, 2008) não está restrito ao âmbito escolar. A partir da pesquisa feita, pelo rastreamento das práticas de leitura ficcional feitas por jovens, foi possível constatar um grande número de leitores que aparentemente sabe o que lê e busca a leitura além daquilo que lhes é apresentado, foi possível conhecer parte das dimensões que permeiam as leituras feitas por eles além dos muros da escola. Como lembra Rojo (2009), o letramento passa a ser um conceito plural. As práticas de letramento, consequentemente, seriam variáveis no tempo e no espaço, havendo práticas de letramento valorizadas e não valorizadas, letramentos dominantes e letramentos vernaculares. É preciso afirmar, portanto, que a escola é apenas um domínio social no qual os alunos e professores desempenham papéis sociais que exigem um determinado letramento. Não são apenas as crianças que aprendem tampouco a escola é o único local onde se aprende. Escola e Biblioteca continuam sendo lugares de referência para os leitores de todos os tipos. Dessa forma, os mediadores de leitura, não devem ater-se apenas à satisfação das preferências de leitura. É necessário, primeiramente, reconhecer os interesses e as práticas sociais de leitura de seus frequentadores, por meio do modelo ideológico de letramento, a fim de se provocar novos interesses, de modo a multiplicar as práticas leitoras e diversificar os materiais à disposição do público. A biblioteca e a escola devem ser locais de práticas da vida cotidiana, seja no aspecto informativo, literário, cultural e social.
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Referências bibliográficas: CHARTIER, R. Comunidades de leitores. IN:_____. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XVI e XVIII. Brasília: Editora da UNB, 1999, pp. 11-31. ______________ Do livro à leitura. In:_______. Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, pp. 77- 106. DE CERTEAU, Michel. Ler: uma operação de caça. IN:_____. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. São Paulo: Vozes, 2003, pp. 259-270. HANSEN, J.A. Reorientações no campo da leitura literária. In: ABREU, M.; SCHAPOCHNIK, N. Cultura letrada no Brasil: objetos e práticas. Campinas, SP: mercado de Letras, ALB, São Paulo: FAPESP, 2005. Inaf: http://www.ipm.org.br/ipmb_pagina.php?mpg=4.02.00.00.00&ver=por (Acesso em 29/05/2014, às 15h) JUNG, N. M. O letramento como prática social. IN: ____; Identidades sociais na escola: gênero, etnicidade, língua e as práticas de letramento em uma comunidade rural multilíngue. 2003. Tese (Doutorado) – Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003. KLEIMAN, A. B. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: _____ Os significados do letramento. Campinas: Mercado de Letras, 1ª. Ed. 1995, 7ª ed.2004. Orientações curriculares Nacionais para o Ensino Médio (OCNEM’s): http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf (Acesso em 28/05/2014, às 23h). Retratos do Brasil: http://www.prolivro.org.br/ipl/publier4.0/dados/anexos/2834_10.pdf 28/05/2014, às 20h).
(Acesso
em
ROJO, R. Letramento (s) – práticas de letramento em diferentes contextos. In: _____. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola editorial, 2009, pp. 95-129. STREET, B. Abordagens alternativas ao letramento e desenvolvimento. Conferência proferida na Unesco, 1999. SOARES, M. Becker. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educação e Sociedade. V.23, no 81. Campinas, dez, 2002. ZAPPONE, M. H. Y. Modelos de letramento literário e ensino da literatura: problemas e perspectivas. Teoria e Prática da Educação, v. 03, p. 47-62, 2008.
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O MÁGICO DE OZ: A CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NAS LINGUAGENS VERBAL E AUDIOVISUAL Ana Carolina Lazzari Chiovatto O lugar de O Mágico de Oz no Cânone da Literatura Infantil Há quase quatro séculos, obras escritas para o público infantil vêm povoando o imaginário de gerações de leitores1, sendo reescritas, readaptadas, trazendo formas narrativas novas para histórias que há muito conhecemos. Contos de fadas, contos maravilhosos e fábulas familiares redesenham-se de tempos em tempos, ganhando novos contornos. Sua presença permanece na sociedade porque, não importa o quanto esta possa mudar, seus valores e receios mais profundos perduram, repetindo-se através das eras. A esse respeito, Nelly Novaes Coelho diz que a “Literatura é ato de relação do eu com o outro e com o mundo. Os tempos mudam incessantemente, porém a natureza humana permanece a mesma” (2012, p.18). Temos exemplos de autores que buscaram reunir contos populares, como Perrault (1628-1703) e os irmãos Grimm, outros que escreveram novas histórias a partir das estruturas dessas narrativas, como Andersen (1805-1875) e Gabrielle-Suzanne de Villeneuve (1695-1755). Como exemplos mais recentes deste segundo tipo de escritor destacam-se L. Frank Baum (1856-1919) e Lewis Carroll (1832-1898), autores de dois dos clássicos infantis mais emblemáticos mundialmente. No presente artigo, ater-nos-emos a um destes exemplos: O Maravilhoso Mágico de Oz, de L. Frank Baum, publicado pela primeira vez em 1900, cuja introdução do próprio autor pontua que “[a obra] aspira ser um conto de fadas modernizado [...]” (2014b, p. 9). Se o autor obteve ou não sucesso nesta empreitada de criar um conto de fadas modernizado, é matéria a ser discutida em outro artigo, mas podemos considerar que seu estrondoso sucesso e permanência no imaginário das gerações seguintes Cf. Nelly Novaes Coelho: “a História da Literatura registra que a primeira coletânea de contos infantis foi publicada no século XVII, na França, durante o faustoso reinado de Luís XIV, o rei Sol. Trata-se dos Contos da Mãe Gansa (1697), livro no qual Charles Perrault [...] reuniu oito histórias, recolhidas da memória do povo [...] (2012, p. 27). 1
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demonstram, antes de qualquer análise mais detalhada, o quanto o leitor pôde encontrar os velhos temas e figuras presentes em seu imaginário. Como obra canônica que é, O Maravilhoso Mágico de Oz traz impregnada em seu discurso a busca por valores eufóricos2 na sociedade ocidental, em especial a americana à época de sua escrita: inteligência, sentimentos, coragem, e uma valorização das raízes, pois, segundo Dorothy, a protagonista, declara em uma discussão, “não importa o quanto sombrios e cinzentos nossos países são, nós, as pessoas de carne e osso, preferimos viver lá do que em qualquer outro lugar, por mais bonito que seja. Não há lugar como o lar” (BAUM, 2014b, p. 37). É possível perceber que a obra de Baum traz em si muito do que era considerado expressivo na cultura americana, e que, nos dias de hoje, parece fazer parte de uma cultura global. Segundo um grande estudioso da obra do autor, O Maravilhoso Mágico de Oz é “grande literatura”: Arguably there have been three great classic quests in American literature, Herman Melville’s Moby-Dick; or The Whale (1851), Mark Twain’s Adventures of Huckleberry Finn (1883), and L. Frank Baum’s The Wonderful Wizard of Oz (1900). Each says something different about America. And each has been controversial in its own unique way. All great literature is (HEARN, 2000, p. xiv) 3.
Um dos fatores que tornou a obra de Baum um clássico da literatura infantil foi essa procura por valores eufóricos e o humor resultante da percepção do enunciatárioleitor de que as personagens têm o tempo todo aquilo que buscam. Tal aparente paradoxo pode ser uma das contraversões de que Hearn fala acima, uma metáfora para seus leitores, ou até mesmo uma parábola. Como a narrativa é episódica, em que cada conflito se resolve em um capítulo, ou em alguns capítulos, há um crescente processo de aprendizado e constante superação. A jornada parece ser mais importante do que seu final. Consequência ou não de suas características canônicas enquanto conto maravilhoso e de seu caráter universalizante (a despeito de se colocar desde o início
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Usamos no presente artigo os conceitos de “euforia” e “disforia” da semiótica francesa. “Possivelmente, houve três grandes buscas clássicas na literatura americana: Moby-Dick ou A Baleia (1851), de Herman Melville, As Aventuras de Huckleberry Finn (1883), de Mark Twain, e O Maravilhoso Mágico de Oz (1900), de L. Frank Baum. Cada uma diz algo diferente a respeito dos Estados Unidos da América. E cada uma foi controversa à sua própria maneira inigualável. Toda grande literatura o é”. (tradução nossa).
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como uma obra norte-americana) em sua busca por valores eufóricos, já na época, a obra conheceu estrondoso sucesso, ganhando adaptação teatral extremamente bem sucedida, e fazendo leitores mirins implorarem por sequências, como se atesta na “Nota do autor” do segundo livro da série: Depois da publicação de O Maravilhoso Mágico de Oz, comecei a receber cartas de crianças contando de seu prazer em ler a história e me pedindo para “escrever algo mais” sobre o Espantalho e o Homem de Lata. No começo, considerei essas cartinhas, apesar de francas e sérias, como pequenos elogios, mas elas continuaram chegando durantes os meses, e até anos seguintes (BAUM, 2014a, p.11).
E, novamente, na “Nota” que abre o terceiro livro: Minhas amigas, as crianças, são responsáveis por este novo “Livro de Oz”, como foram pelo último, que foi chamado A Terra de Oz. Suas doces cartinhas pedem para saber “mais sobre Dorothy”, e perguntam: “O que aconteceu com o Leão Covarde?” e “O que Ozma fez depois?” – querendo dizer, é claro, depois que ela se tornou a Governante de Oz. (BAUM, 2014c, p.?).
Foram mais treze livros depois do primeiro, além de alguns contos, e, em todas as suas introduções, Baum atribui seu retorno às histórias de Oz aos pedidos das crianças. Em 1939, vinte anos após o falecimento de L. Frank Baum, foi lançada a adaptação cinematográfica O Mágico de Oz, que trazia Judy Garland no papel da protagonista Dorothy Gale – um clássico do cinema até os dias de hoje. Como afirma o estudioso Michael Patrick Hearn: Many people believe that it was the now famous movie that made The Wizard of Oz. They are mistaken. The picture did not even make back its initial $ 3 million investment during its original run, and no one at the time suspected that it would become the classic it is considered today. It was the television that made the movie. Metro-GoldwynMayer bought the property in the first place because The Wizard of Oz was already the most beloved American children’s book of the twentieth century. It has also been the most reviled. It has been considered a millstone as much as a milestone in American culture (HEARN, 2000, p. xiv)4. 4
“Muitas pessoas acreditam que foi o filme atualmente famoso que trouxe sucesso a O Mágico de Oz. Estão enganadas. O filme sequer recuperou seu investimento inicial de três milhões de dólares na temporada de exibição original, e ninguém suspeitava que ele se transformaria no clássico que é considerado hoje em dia. Foi a televisão que impulsionou o filme. A Metro-Goldwyn-Mayer só comprou os direitos porque O Mágico de Oz já era o livro infantil mais amado do século XX. Era também o mais
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O livro de Baum teve diversas adaptações, não apenas para o cinema; houve quadrinhos, peças teatrais, musicais e releituras (das quais a mais famosa é, sem dúvida, Wicked, de Winnie Holzman, que ganhou um musical composto por Stephen Schwartz). E não apenas o primeiro livro foi adaptado. A adaptação mais recente Oz – Mágico e Poderoso, produzido pelos Estúdios Disney, não trata da história de Baum propriamente dita – é antes um apanhado dos elementos presentes nos livros de Baum para contar uma suposta história da chegada do Mágico à Terra de Oz. Esta última nos ajuda a compreender o quanto o imaginário popular está envolvido com a história e o quão livre sentem-se para passear em suas omissões. O fato de ser um livro repetidamente trazido à tona pela cultura popular, em diversas linguagens, demonstra o quando O Maravilhoso Mágico de Oz perdura no cânone da literatura infantil mundial. A indubitável realidade da Terra de Oz Como foi dito, O Maravilhoso Mágico de Oz se pretende um conto de fadas, e o classificamos como uma narrativa maravilhosa de acordo com a teoria proposta por Todorov, de que, quando não existem dúvidas quanto à explicação sobrenatural da trama, já não se trata de fantástico, mas de maravilhoso, conforme o fragmento abaixo: No caso do maravilhoso, os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas personagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos. [...] Relaciona-se geralmente o gênero maravilhoso ao conto de fadas; de fato, o conto de fadas não é senão uma das variedades do maravilhoso e os acontecimentos sobrenaturais aí não provocam qualquer surpresa [...] (TODOROV, 2008, pp. 59-60).
No que diz respeito ao livro em questão, não resta dúvida de que se trata de maravilhoso, posto que, apesar de Dorothy partir em sua jornada rumo a Oz, sendo arrastada com sua casa por um ciclone e ser acordada quando a mesma aterrissa, o final do livro nos traz a solução de qualquer dúvida que pudesse haver acerca da veracidade da aventura de Dorothy, conforme se pode apreender do trecho abaixo:
injuriado. Foi considerando tanto um fardo quanto um importante marco na cultura americana” (tradução nossa).
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Dorothy pegou Totó no colo solenemente e, depois de dizer um último adeus, bateu os saltos dos sapatos três vezes, dizendo: – Levem-me para a casa da tia Em. No mesmo instante, rodopiou no ar, tão rápido que tudo o que podia ver ou sentir era o vento assobiando em seus ouvidos. Os sapatos de prata deram apenas três passos, e então ela parou tão bruscamente que rolou na relva várias vezes antes de perceber onde estava. Enfim, entretanto, sentou-se e olhou ao redor. – Oh, céus! – gritou. Pois estava sentada na vasta campina do Kansas, e bem diante de si estava a nova casa que tio Henry construíra depois que o ciclone carregara a antiga para longe. Tio Henry tirava o leite das vacas no celeiro, e Totó pulou de seu colo e correu para lá, latindo furiosamente. Dorothy levantou-se e percebeu estar só de meias, pois os sapatos de prata haviam caído em seu voo pelo ar, e se perdido para sempre no deserto (BAUM, 2014b, pp. 189-190).
E também no último capítulo: Tia Em acabara de sair da casa para regar os repolhos quando ergueu os olhos e viu Dorothy correndo para si. – Minha criança adorada! – ela gritou, envolvendo a menininha em seus braços e cobrindo seu rosto de beijos. – De onde foi que você veio? – Da Terra de Oz – disse Dorothy gravemente. – E aqui está Totó também. Ah, tia Em! Estou tão feliz de estar de volta em casa! (BAUM, 2014b, 191)
Como pode ser notado, tia Em estava preocupada com o destino de Dorothy e alegra-se com seu retorno. A casa da fazenda é outra e a menina traz apenas meias, pois os Sapatos de Prata foram perdidos na travessia do deserto. Isso faz parte da estrutura de contos de fadas da obra, pois os sapatos – que se assemelham às tradicionais botas de sete léguas típicas dos contos de fada de Grimm e Perrault (cf. HEARN, 2000, p. 352 e MATANGRANO, 2014, p. 200) − são um objeto mediador, doadores da competência de voltar para casa, mas que só podem existir em um mundo mágico, segundo observa Hearn: [...] Oz magic cannot work outside Oz. Here Baum again conforms to the pattern of the classical heroic quest. “At the return threshold,” explained Joseph Campbell in The Hero with a Thousand Faces
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(Cleveland: World, 1956), “the transcendental powers must remain behind”5 (HEARN, 2000, p. 355).
Como vemos, o fato de Dorothy ter perdido os sapatos não nos induz a pensar que sua aventura não aconteceu de verdade. Além disso, livros posteriores nos dão ainda mais embasamento para crer na existência de Oz. A Maravilhosa Terra de Oz (1904), por exemplo, o segundo livro da série, traz uma narrativa inteiramente situada em Oz, sem a participação de nenhum habitante do “mundo lá fora”, ou seja, o nosso. E em A Cidade das Esmeraldas de Oz (1910), sexto livro da série, Dorothy muda-se para Oz com seus tios. A adaptação de 1939 traz uma importante diferença no que tange à realidade de Oz: a passagem de Dorothy ao mundo de Oz nos sugere que tudo se tratava de um sonho, e o final mostra isso com clareza. Hearn comenta a esse respeito: One of the unforgivagle changes made in the 1939 MGM film was the revelation at the end that Dorothy’s adventure in Oz was merely a dream. That was already a literary cliché by 1900, cribbed from Lewis Carroll’s Alice books. [...] One reason for the sucess of Baum’s story with young readers is that Oz is “a real truly live place”, even if if was not for MGM Studios6 (HEARN, 2000, p. 27).
A passagem de Dorothy à Terra de Oz, em que há clara marca de sonho ou delírio, com a transformação da tia na bruxa, por exemplo, lembra de fato, em dada medida, a queda de Alice, bem como sua volta ao mundo real, que se dá ao despertar. Ambas as histórias têm uma forte marca de nonsense, o que pode suscitar uma identificação entre elas. O filme de 2013, nesse aspecto, guarda semelhança com o original. A passagem do Mágico a Oz dá-se em um balão (em clara referência ao modo como ele chega a Oz e também sai de lá no livro), que é arrastado por um ciclone à terra mágica. A
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“A magia de Oz não funciona fora de Oz. Aqui, Baum se sujeita novamente aos padrões da clássica busca heroica. Conforme explica Joseph Campbell em The Hero with a Thousand Faces [O Herói de Mil Faces] (Cleveland: World, 1956: ‘No limiar do retorno, os poderes transcendentais devem ficar para trás’” (tradução nossa). 6 “Uma das mudanças imperdoáveis feitas no filme de 1939 da MGM foi a revelação, no final, de que a aventura de Dorothy fora meramente um sonho. Isso já era um clichê literário em 1900, copiado dos livros de Alice, de Lewis Carroll [...]. Uma das razões para o sucesso da história de Baum entre os jovens leitores é que Oz é um ‘lugar real de verdade’, mesmo que não fosse para os Estúdios MGM” (tradução nossa).
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personagem tem um breve desmaio em dado instante e desperta quando chega à terra mágica. Ao final da trama, decide permanecer em Oz. A manifestação do maravilhoso: o contraste entre o nosso mundo e a Terra de Oz Podemos reconhecer a primeira manifestação do maravilhoso pelo contraste (Cf. HEARN, 2000, p. 19) entre o mundo ordinário e as impressões iniciais de Oz. Começamos a perceber tratar-se de um mundo mágico antes que apareça qualquer ser feérico, e isso por causa da diferença pronunciada entre o Kansas e Oz. Vejamos um trecho do primeiro capítulo do livro, “O Ciclone”: Dorothy vivia em meio às vastas campinas do Kansas, com tio Henry, que era fazendeiro, e tia Em, a esposa do fazendeiro. Sua casa era pequena, pois a madeira para construí-la teve de ser carregada de carroça por muitos quilômetros. [...]Quando Dorothy parava à porta e olhava ao redor, não conseguia ver nada além da grande campina cinza por todo lado. Nem uma árvore ou uma casa cortava a larga vista de campo liso que alcançava a beirada do céu em todas as direções. O sol cozinhara a terra arada numa massa cinzenta, com pequenas rachaduras em sua extensão. Nem a relva era verde, pois o sol queimara o topo das longas lâminas até elas ficarem da mesma cor cinza vista em toda parte. Uma vez a casa fora pintada e as chuvas a lavaram, e agora era tão enfadonha e cinza quanto todo o resto. Quando tia Em chegou para viver ali, era uma jovem e bonita esposa. O sol e o vento a mudaram também. Eles tiraram o brilho de seus olhos e os deixaram de uma cor cinza sóbria; tiraram o vermelho de suas bochechas, que também estavam cinza. Era magra e desolada, já não sorria mais. Quando Dorothy, que era órfã, chegou, tia Em sobressaltava-se tanto com a risada da criança, que gritava e pressionava a mão sobre o peito sempre que a voz alegre da menina alcançava seus ouvidos; e ainda a olhava com surpresa por ela encontrar algo do que rir. Tio Henry nunca ria. Trabalhava duro de manhã até a noite e não sabia o que era alegria. Também era cinza, desde sua barba longa a suas botas ásperas, e tinha um semblante austero e solene. Raramente falava. Era Totó que fazia Dorothy rir e a salvava de ficar cinza como seus arredores. Totó não era cinza; era um cachorrinho preto, com pelo longo e sedoso e pequenos olhos negros que reluziam de cada lado de seu focinho engraçado e minúsculo. Totó brincava o dia todo, e Dorothy brincava com ele e o amava muito (BAUM, 2014b, pp. 134, grifos nossos).
Conforme se observa, há uma intensa repetição do termo “cinza” para descrever o ambiente e até mesmo as personagens. Além disso, toda a descrição sugere opacidade,
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austeridade, palidez, tristeza. Até o brilho do sol, normalmente de acepção eufórica, aqui se torna disfórico: é ele que queima a terra, acinzenta a relva e contribui para o longo vazio. O trecho mais chocante da apresentação do cotidiano é, provavelmente, a descrição de tia Em. Fica nítida para o leitor a brutal realidade do Kansas, em que o tema da morte surge figurativizado na descrição dos tios de Dorothy, da relva, da vastidão isolada e até mesmo da casa em que o trio vive. Hearn comenta a esse respeito: For Baum the local color of Kansas was gray. “The word ‘gray’ appears nine times in the space of four paragraphs,” Martin Gardner observes in Note 1 of The Wizard of Oz and Who He Was. “Baum is clearly contrasting the grayness of life in Kansas farm, and the solemnity of Uncle Henry and Aunt Em, with the color and gaiety of Oz.”7 (2000, p. 19).
O aparecimento de Totó vem com uma descrição peculiar: “Totó não era cinza”. Peculiar porque prima em dizer antes como o cachorro não era. Ainda que sua cor seja preta, costumeiramente de acepção disfórica, a frase citada diz o necessário: Totó não é cinza, portanto não é associado aos valores disfóricos do cinza no discurso em análise. Não por acaso, é Totó quem acompanha Dorothy em sua jornada. Toda a apresentação do Kansas sugere silêncio e imobilidade; novamente, são as brincadeiras de Totó que provocam as risadas de Dorothy, e isto é o que interrompe o marasmo, chegando a assustar e surpreender tia Em: “tia Em sobressaltava-se tanto com a risada da criança, que gritava e pressionava a mão sobre o peito sempre que a voz alegre da menina alcançava seus ouvidos; e ainda a olhava com surpresa por ela encontrar algo do que rir” (BAUM, 2014b, p. 14). A adaptação cinematográfica de 1939 consegue, com o recurso audiovisual, traduzir isso pela imagem em sépia. Sendo o recurso da cor recente à época de lançamento do filme8, talvez não tenha sido grande surpresa para o público assistir ao início do filme em sépia.
“Para Baum, a cor local do Kansas era cinza. ‘A palavra ‘cinza’ aparece nove vezes no espaço de quatro parágrafos’, observa Martin Gardner na Nota 1 de The Wizard of Oz and Who He was [O Mágico de Oz e Quem Ele Era]. ‘Baum claramente está contrastando o cinza da vida na fazenda do Kansas, bem como a solenidade de tio Henry e tia Em, com a cor e a alegria de Oz’” (tradução nossa). 8 Utilizam-se do processo da Technicolor, que surgira na década de 1930 (cf. Hearn, 2000, p. 33). 7
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O filme apresenta uma introdução maior do que aquela feita no capítulo 1 do livro, com um alongamento da apresentação da vida de Dorothy no Kansas, algumas personagens figurantes a mais, o que torna nossa impressão de uma fazenda do tio Henry mais próspera, ou menos pobre, do que nos aparenta o livro. Além do mais, o acréscimo de personagens não transmite tanto a sensação de isolamento que a descrição das “vastas campinas cinzentas” nos traz. O recurso ao sépia teve a felicidade de transmitir o cinza incessante que imaginamos na obra escrita, mas há menos figurativização do tema da morte e da solidão. Em Oz − Mágico e Poderoso, usa-se o recurso de preto-e-branco e formato da tela 4:3 − chamado de “janela clássica”, que era o utilizado em quase todos os filmes até os anos 1950 −, em toda a introdução da vida cotidiana do Mágico, que é apresentado como um membro de um circo itinerante. Há cenas mostrando uma vida de altos e baixos, que pode ser descrita como “vazia” em dados momentos; contudo, os temas da solidão, da vastidão e da imobilidade não figuram. Pode-se mencionar tristeza e austeridade, mas isso é dado pelos closes no rosto do Mágico em determinadas situações, pausas na trilha sonora, e até por diálogos. Parece que, em comparação com os filmes, a grandiloquência da apresentação que Baum faz do Kansas está justamente no fato de o capítulo ser curto, e a descrição do cotidiano ocupar poucos parágrafos. O autor diz muito em pouco espaço, utilizando-se inclusive da omissão: há mais pessoas trabalhando na fazenda com tio Henry? Dorothy conhece alguém além de seus tios? Tem contato com outras crianças? Vai à escola? Não se sabe, mas tudo sugere que não. O autor induz o leitor implícito a acreditar na solidão e no vazio e deixa essas questões a cargo do receptor. O ciclone é o fator transformador. É ele quem promove o afastamento 9 de Dorothy e, portanto, o início de sua aventura. Quando a casa da protagonista aterrissa em Oz e ela sai para aquele novo mundo, dá-se origem ao contraste com o Kansas que nos conduzirá ao maravilhoso. Isso pode ser ilustrado no trecho a seguir: A menininha deu um grito de encanto e olhou em volta, seus olhos arregalando-se mais e mais ante a paisagem maravilhosa que enxergavam. O ciclone pousara a casa muito gentilmente – para um 9
Utilizamos aqui o conceito da primeira função dos personagens (cf. PROPP, 2010, p. 27).
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ciclone – no meio de um campo de estupenda beleza. Havia adoráveis caminhos de relva por todo o lado, com majestosas árvores carregadas de ricos e saborosos frutos. Ribanceiras com lindas flores viam-se em cada canto, e pássaros de rara e brilhante plumagem cantavam e batiam as asas, entre árvores e arbustos. Um pouco mais afastado havia um riacho, correndo e reluzindo entre barrancos verdes, e murmurando numa voz grata à menininha que vivera por tanto tempo nas campinas cinzentas (BAUM, 2014b, p. 19, grifos nossos).
Como se pode observar, há várias descrições de cor e brilho, remetendo-nos a grande vibrância e uma atmosfera alegre, com riqueza de adjetivações de acepção eufórica (maravilhosa, estupenda, adoráveis, majestosas, ricos, saborosos, lindas, rara, brilhante, verdes). Com um parágrafo, o autor é capaz de explicar o contraste gritante entre o Kansas e Oz. Como se isso não bastasse, ao final deste, Baum ainda ressalta: “murmurando numa voz grata à menininha que vivera por muito tempo nas campinas cinzentas”. A subordinada adjetiva atesta a cumplicidade com o enunciatário-leitor: sabemos que se trata de Dorothy. Maria Zilda da Cunha comenta o papel da cor na obra: Outro aspecto que merece atenção é a recorrência à cor, nessa narrativa. A cor é um elemento que contribui para assinalar a diferença entre os dois mundos: o real e o imaginário. Kansas, de onde vem Dorothy, é cinza – cor que remete a uma paisagem triste e seca e pode também representar o limite que a menina vive, já que não tem pais e vive com os tios, que não a compreendem. A cor local acaba por contaminar as próprias personagens. Lembremos que, na primeira história, até a tia da garota exibia aparência triste. A alegria da menina não combinava com o ambiente em que ela vivia e sua tia se espantava ao ouvir o riso de Dorothy. Já o mundo de Oz é descrito em tons coloridos e exuberantes, e a constituição das personagens acompanha esse ritmo. Oz é o mundo que possibilita à garota viver aventuras. Um espaço apresentado em cores vívidas, simbolizando um lugar no qual é possível encontrar a alegria, a vitalidade, desfrutar a amizade e o companheirismo, que podem ajudar na superação dos obstáculos (CUNHA, 2014, p. 213).
Entretanto, no livro, a entrada no maravilhoso é sutil. A personagem encontra-se em um lugar novo, oposto ao de sua origem, trazida em circunstâncias inusitadas, no mínimo, mas ainda não há magia propriamente dita. Apesar de suspeitarmos estar em um cenário pertencente à esfera do maravilhoso, ainda não temos certeza.
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A dúvida desaparece com a chegada dos Munchkins e da Bruxa Boa do Norte, pouco depois da aterrissagem da protagonista, não só por sua aparência incomum − incluindo o fato de serem adultos da altura de Dorothy, que se supõe ter cinco ou seis anos −, como pela primeira fala da Bruxa do Norte: “Bem-vinda, nobre feiticeira, à terra dos Munchkins. Nós somos muito gratos por você ter matado a Bruxa Má do Leste, e por ter nos libertado da servidão” (BAUM, 2014b, p. 21). A esta altura, a transição está completa. A surpresa de Dorothy não advém do fato de haver bruxas, mas da afirmação de que ela matara uma. Maria Zilda da Cunha faz uma observação interessante a respeito dessa facilidade: O mundo mágico e o real convivem harmoniosamente. A trajetória que a menina e os demais protagonistas empreendem assume um modelo de estrutura de narrativa aventuresca e possibilita o reconhecimento das virtudes que as personagens possuem (CUNHA, 2014, p. 211).
Já no filme de 1939, houve maestria na escolha do efeito que mostra o instante exato em que Dorothy vê Oz pela primeira vez. O percurso narrativo dá-se de maneira semelhante: Dorothy sente que a casa aterrissou e sai para ver onde está. No momento em que ela abre a porta, vê-se o lado de fora colorido, enquanto o resto da cena está em sépia. Ela sai da casa e, ao fazê-lo, ganha-se somente a vista de Oz, enquanto a própria protagonista ganha cores. A cena é impactante também por seu subtexto. Afinal, Dorothy não parecia pertencer ao Kansas (ela era alegre; o Kansas era triste); sua chegada a Oz e consequente colorização sugerem que àquele lugar ela pertence realmente. Hearn comenta essa passagem: One of the imaginative touches of the 1939 MGM movie occurred when the cyclone dropped Dorothy’s house in Oz. The Kansas sequences were filmed in sepia, but when Judy Garland opened the door, the screen suddenly changed to brilliant Technicolor in Munchkinland. This burst of color, which continued until the last section of the film when it suddenly converted back to sepia on Dorothy’s awakening in Kansas, was one of the most dramatic uses of Technicolor in its early years10 (2000, p. 33). 10
“Um dos toques criativos do filme de 1939 da MGM ocorreu quando o ciclone largou a casa de Dorothy em Oz. As sequências do Kansas foram filmadas em sépia, mas quando Judy Garland abriu a porta, a tela rapidamente assumiu um Technicolor brilhante na Terra dos Munchkins. Essa explosão de cor, que se manteve até a última parte do filme, quando se converteu de volta para sépia ao despertar de
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No filme, essa passagem por si só já traz o maravilhoso; antes de as demais personagens aparecerem já se sabe que a protagonista foi para um lugar que só pode ser mágico. Essa percepção, é claro, é confirmada com o aparecimento dos Munchkins e da Bruxa Boa do Norte. Curiosamente, a câmera em plano aberto logo que a menina sai da casa para Oz remete à vastidão, mas não a mesma descrita no livro acerca do Kansas, pois não se trata de uma solidão vazia; é antes uma expansão de horizontes. Na esteira do filme de 1939, o roteiro de 2013 repete a passagem do mundo real para o mágico utilizando-se da mudança do preto-e-branco para o colorido. No entanto, a atual tecnologia permite tornar este efeito mais “dramático”, para usar a palavra de Hearn acima. Em primeiro lugar, o protagonista estava dentro do cesto do balão, tendo sofrido um breve desmaio por causa da truculência do ciclone. Acorda em meio a uma repentina calmaria. No instante em que ele se levanta, dá-se um close em seu rosto, e vemos os primeiros sinais de cor de pele e céu, ao fundo, ainda sutis. Nesse processo, o espectador tem a sensação de que a tela se expande, pois até então o filme vinha sendo exibido em formato 4:3, e passa, em crescente, para 16:9 (widescreen), o padrão atual. Simultaneamente, enquanto há esta expansão, o vídeo ganha cores, e há uma trilha triunfal ao fundo. A câmera afasta-se do protagonista fazendo um movimento circular, e o plano vai se abrindo, momento em que o céu fica completamente azul. A câmera gira em plano contínuo para mostrar o que ele vê: uma cena em plano aberto, com uma vastidão de formações rochosas anômalas, um longo campo verde e o céu azul, com um arco-íris logo à frente. Todas as cores aparecem mais saturadas do que existem no nosso dia-a-dia, o que contribui para criar o efeito de magia. Tal efeito é utilizado reiteradamente nos meios audiovisuais para referir-se ao maravilhoso, criando uma atmosfera mágica, especialmente nas produções dos Estúdios Disney, como esta e os exemplos recentes: a adaptação de 2010 de Alice no País das Maravilhas, dirigida por Tim Burton, e a releitura Malévola, de 2014.
Dorothy no Kansas, foi um dos usos mais dramáticos do Technicolor em seus primeiros anos” (tradução nossa).
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Não é necessário mais nada para o espectador adivinhar que o protagonista adentrou uma terra feérica. Ainda na produção de 2013, a vastidão mostrada na ocasião da chegada do Mágico a Oz é eufórica: é uma expansão de horizontes e em nada se associa à vastidão disfórica do Kansas. De maneiras diferentes o contraste de luz e cores, do cinza e do brilho, marca a passagem do mundo real para o maravilhoso, expresso no título, tão bem executado na obra original de Baum. Conclusão As diferentes linguagens em que se dá a narrativa possuem recursos diversos para a criação de um efeito similar. A linguagem verbal conta com a habilidade do enunciador e com o imaginário do receptor. Enunciador, enunciado verbal e receptor são, portanto, os agentes da construção do sentido. Já na linguagem audiovisual, temos não um, mas vários planos de expressão, que corroboram para criar um todo dotado de sentido. A narrativa tem, por assim dizer, um enunciado complexo, sendo construída através de sistemas semióticos sincréticos. A linguagem visual que compõe a narrativa conta com os diversos planos de imagem, ângulos e movimentos de câmera para a construção do sentido. Sua justaposição com a trilha, parte de uma linguagem sonora, não pode ser ignorada, assim como a linguagem verbal, aqui atrelada à sonora, posto que é fala, com todos os seus componentes: entonação, prosódia, gestualidade, expressão facial e afins. Tal riqueza de detalhes é impossível no livro. No filme, há espaço para o receptor na construção do sentido, como não poderia deixar de ser, mas o papel de seu imaginário vê-se reduzido. Além do mais, o audiovisual, com sua múltipla linguagem, produz um sentido outro que o do original em algumas situações. A vastidão cinza do Kansas era disfórica, associava-se a morte, isolamento, tristeza, austeridade. A Terra de Oz revela sua grandeza aos poucos ao leitor, que acompanha os passos de Dorothy e está intimamente ligado às suas descobertas. Ela é uma criança e sua casa aterrissou no chão, cercada de árvores e riachos. Oz é vasta, mas não se mostra assim a princípio, por causa das condições de chegada da heroína. A jornada de Dorothy é que a faz expandir seus horizontes em Oz; ela tem um papel ativo em seu próprio crescimento.
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Ironicamente, isso ocorre enquanto ela tenta retornar ao Kansas, seu lar, um lugar que − também ironicamente − é vasto, tem um horizonte distante, contudo, representa uma limitação para a personagem. A adaptação de 1939 perde um pouco de tais sutilezas. O Kansas não aparenta ser tão opressor quanto no livro, apesar dos tons de sépia. Totó é preto; não se destaca nas imagens em sépia, ao contrário do que é pontuado no livro, no qual o preto não representa um valor disfórico, antes se sobressai por não ser cinza. A Terra de Oz revela-se para Dorothy − e para o leitor − muito mais depressa. Em Oz − Mágico e Poderoso, o mundo cotidiano é bastante retratado. Pode não ser feliz, mas o protagonista só descobre que era infeliz depois de chegar a Oz. A passagem para o maravilhoso nos é dada com clareza, a expansão de horizontes deixada expressa com a primeira vista de Oz, do alto. De todo modo, a riqueza da narrativa é explorada da melhor forma possível nas adaptações cinematográficas, considerando sua multiplicidade de linguagens para a construção de um todo dotado de sentido. Adaptações intersemióticas têm a necessidade de escolher como expressar aquilo que é dado por um original, e isso constitui uma tarefa difícil quando se adapta um clássico. A responsabilidade que recai sobre os produtores das adaptações de um cânone, especialmente um representante tão querido há tantas décadas, não pode ser desconsiderada, principalmente se levarmos em consideração que a quantidade de novas adaptações que foram surgindo ao longo dos anos pode ter um papel decisivo na manutenção da obra dentro do cânone da literatura infantil. Como dirá Calvino, “toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira” (CALVINO, 1993, p. 11). Isso acontece com O Maravilhoso Mágico de Oz: cada vez que o lemos, descobrimos coisas novas, ou talvez percebamos que, a cada nova leitura, o livro nos fala de forma diferente, e o maravilhoso narra outras minúcias. Referências Bibliográficas BAUM, L. Frank. A Maravilhosa Terra de Oz. Trad. Carol Chiovatto. Rio de Janeiro: Vermelho Marinho, 2014.
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BAUM, L. Frank. O Maravilhoso Mágico de Oz. Trad. Carol Chiovatto. Rio de Janeiro: Vermelho Marinho, 2014. BAUM, L. Frank. Ozma de Oz. Trad. Carol Chiovatto. Rio de Janeiro: Editora Marinho, 2014. CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. COELHO, Nelly Novaes. O Conto de Fadas: Símbolos – Mitos – Arquétipos. 4ª Ed. São Paulo: Paulinas, 2012. CUNHA, Maria Zilda. “Ozma de Oz: A experiência da aventura nas tramas do imaginário” in BAUM, L. Frank. Ozma de Oz. Trad. Carol Chiovatto. Rio de Janeiro: Vermelho Marinho, 2014, pp. 204-16. HEARN, Michael Patrick. The Annotated Wizard of Oz. Nova York: Norton & Company, 2000. MATANGRANO, Bruno Anselmi. “Reinventando um Gênero: O Contos de Fadas Moderno de L. Frank Baum” in BAUM, L. Frank. O Maravilhoso Mágico de Oz. Trad. Carol Chiovatto. Rio de Janeiro: Vermelho Marinho, 2014, pp. 195-205. PROPP, Vladimir I. Morfologia do Conto Maravilhoso. Trad. Jasna Paravich Sarhan. 2ª Ed. Rio De Janeiro: Forense Universitária, 2010. TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2008.
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ESCOLHAS ESTILÍSTICAS NO CICLO DE CIRCUITO FECHADO, DE RICARDO RAMOS: IMPLICAÇÕES SOBRE A CONDIÇÃO HUMANA. Ana Clarissa Viana Duarte (UFRN) João Maria de Paiva Palhano (UFRN) Este estudo aborda traços estilísticos recorrentes em cinco contos do livro Circuito Fechado de Ricardo Ramos1. Observam-se as escolhas estilísticas realizadas pelo autor em função da associação entre plano da forma e plano do conteúdo. De acordo com Fiorin (2008), é a recorrência que constitui estilo. Nesse entendimento, “estilo é o conjunto global de traços recorrentes do plano do conteúdo (formas discursivas) e do plano da expressão (formas textuais), que produzem um efeito de sentido de identidade” (FIORIN, 2008, p. 96). São, pois, os traços recorrentes que determinam a singularidade de um determinado objeto. No que se refere a Circuito Fechado (1), a recorrência estilística faz-se presente por meio de substantivos concretos justapostos (entre vírgulas e pontos finais), os quais representam as ações rotineiras da personagem ao longo do enunciado. Em outras palavras, há emprego apenas de formas nominais, construindo-se um paralelismo de ordem morfológica. Remete, assim, à rotina presente na vida da personagem, como se percebe no trecho: Chinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme dental, água, espuma, creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água, cortina, sabonete, água fria, água quente, toalha. [...] Poltrona, livro. Cigarro e fósforo. Televisor, poltrona. Cigarro e fósforo. (RAMOS, 1978, p. 21).
Em decorrência, o sujeito, cujas ações são depreendidas, não aparece, de fato, no conto, sendo apenas subtendida a sua existência. Há também recorrência de um léxico cotidiano. No que se refere a Circuito Fechado (2), o traço estilístico recorrente se apresenta também na repetição de sequencias nominas do início ao fim do conto. Elas sinalizam uma enumeração das perdas físicas, psicológicas e materiais que um sujeito pode ter sofrido ao longo da vida. Para isso, o autor faz uso de elipse, uma vez que não usa termos como “perdi”, “perdeu-se” ou “perderam-se” no início de cada sequência nominal, deixando-os implícitos no contexto, o que se pode perceber no trecho: Dentes, cabelos, um pouco do ouvido esquerdo e da visão. A memória intermediária, não a de muito longe nem a de ontem. Parentes, amigos, por morte, distância, desvio. Livros, de empréstimo, 1
Ricardo de Medeiros Ramos (1929 – 1992) teve forte influência na literatura contemporânea brasileira. Organizou o Museu de literatura Paulista e foi primeiro diretor da instituição, assim como presidiu a União Brasileira de Escritores. Publicou Circuito Fechado em 1978, durante um período brasileiro de marcante repressão política e desenvolvimento industrial. Neste artigo, elegeram-se os contos Circuito Fechado (1), (2), (3), (4) e (5).
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esquecimento e mudança. Mulheres também, com seus temas. (RAMOS, 1978, p. 36).
Mais uma vez, há a representação de um ciclo de rotina por meio da repetição exaustiva de um mesmo procedimento. O léxico empregado também é coloquial e cotidiano. No que se refere a Circuito Fechado (3), observa-se a recorrência de várias falas do cotidiano, características do dia a dia em um meio urbano. São recortes clicherizados de conversas separados por pontos. Confirma-se isso no trecho: Muito prazer. Por favor, quer ver o meu saldo? Acho que sim. Que bom telefonar, foi ótimo, agora mesmo estava pensando em você. Puro com, gelo. Passe mais tarde, ainda não fiz, não está pronto. Amanhã eu ligo, e digo alguma coisa. (RAMOS, 1978, p. 51).
Como se trata de uma sequência de sentenças cristalizadas do dia a dia, justapostas e dissociadas do processo comunicativo, tornam-se vazias de sentido. No que se refere a Circuito Fechado (4), o traço recorrente também fica por conta da repetição de sequências nominais. Entretanto, aqui, elas se referem ao inventário da vida de um sujeito e suas relações com os objetos, com outros seres e com suas vivências. Confirma-se isso no trecho: Ter, haver. Uma sombra no chão, um seguro que se desvalorizou, uma gaiola de passarinho. Uma cicatriz de operação na barriga e mais cinco invisíveis, que doem quando chove. [...] Uma janela sobre o quintal, depois a rua e os telhados, tudo sem horizonte. (RAMOS, 1978, p. 65).
Para marcar a representação da vida da personagem, foram empregadas formas nominais que remetem para implicações tipicamente cotidianas e rotineiras. No que se refere ao último conto, Circuito Fechado (5), há o emprego de uma anáfora, representada por meio da repetição do advérbio “não” e do verbo “ser”, empregado em tempo pretérito. Há também, ainda que de modo menos recorrente, nas sequências nominais que partem do “não”, justificativas permeadas pelos termos “porque”, “já que” e “mas”, entre outros. Isso é perceptível no trecho: Não. Não foi o belo, quase nunca, nem ao mesmo o bonito, porque tudo se veio esgarçando em rotina, sombra com vazio. Não foi o plano, o projeto, a lucidez conduzindo, já que o mistério se fez magia e baralhou os búzios da vontade. (RAMOS, 1978, p. 81).
No conjunto dos contos em análise, depreendem-se, sempre em sintonia com a recorrência estilística enfocada, juízos de valor sobre o comportamento do indivíduo e sua localização na sociedade da qual faz parte. É pertinente, nesse sentido, considerar o contexto de produção dos enunciados: o Brasil atravessa um período de significativo desenvolvimento econômico, ao mesmo tempo em que enfrenta uma época de regime repressivo. Na década de 70, a ditadura militar tem seu auge com o clímax da intolerância e dos atos violentos contra opositores. Por outro lado, o país alcança alto
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índice de desenvolvimento econômico e industrial, ficando o período conhecido como o “milagre brasileiro”. No primeiro conto da série, evidenciam-se o tédio e a falta de perspectiva de mudança por parte da personagem. Essa última é sinalizada apenas por meio dos objetos. No segundo conto, tem-se uma ênfase maior no envelhecimento e no transcorrer do tempo de vida da personagem, um esvaziamento incontido e premente representado pela lista de coisas perdidas ao longo da vida. No terceiro conto, evidencia-se a obstaculização das relações humanas, representadas pela desconexão entre as frases corriqueiras e mecanizadas que são utilizadas no dia a dia. No quarto conto analisado, percebe-se que há também o interesse em evidenciar a passagem do tempo. Entretanto, o foco muda: aborda-se essa passagem na perspectiva da enumeração do que se perdeu. No quinto conto, mais uma vez, ganha visibilidade a representação da rotina de uma vida mecanizada. Ante o exposto, pode-se afirmar que os elementos recorrentes em cada conto e a relação entre plano da forma e plano do conteúdo, de fato, imprimem, nos contos, um tom crítico sinalizador da crise existencial em que o indivíduo se encontra mergulhado. Dessa forma, as escolhas estilísticas são decisivas no desvelamento da alienação, da falta de identidade e da solidão, características de uma época em que se turvam as relações sociais. Tem-se, em todos os contos enfocados, um apagamento do sujeito, reforçando sua despersonificação. O ser humano perde sua identidade, passando a agir de modo rigorosamente programático. É a encenação do que a vida social moderna faz com os sujeitos: isolamento, estaticidade e rotina. Referências FIORIN, José Luiz. Uma concepção discursiva de estilo. In: Em busca dos sentidos: estudos discursivos. São Paulo: Contexto, 2008. p. 93-111. RAMOS, Ricardo. Circuito fechado. Rio de Janeiro: Record, 1978. p. 21-22, 36-37, 50-51, 65-66, 81-82.
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MALLARMÉ NA IMPRENSA PARANAENSE: O MODERNO NA IMPRENSA LITERÁRIA CURITIBANA
Ana Karla Carvalho Canarinos (UFPR)
1. Introdução
Um aspecto importante na vida intelectual do Paraná no final do século XIX é a quantidade e a diversidade de ideias que circulam de modo fragmentário nos mais de cem jornais e revistas paranaenses da época. Ideias sobretudo de caráter científico, como o positivismo e o evolucionismo, num momento em que a ciência passa a ser atestado de modernização no mundo ocidental. E já que a modernidade passou também a ser entendida como sinônimo de civilização, a livre circulação de ideias aceitas como cosmopolitas (na verdade europeias) sugeria uma capacidade de atualização do local e de uma busca pela modernidade literária. Nicolau Sevcenko, em Literatura como missão, aponta a forma como o liberalismo influenciou na reordenação da sociedade brasileira nos anos iniciais da República e as consequências desse processo na literatura finissecular. Para o autor, a intelectualidade brasileira postava-se como “os lumes e os representantes dos novos ideais de acordo com o espírito da época” (SEVCENKO, 1983, p.83). Enfatizava a atualização da sociedade com o modo de vida preconizado na Europa, a modernização das estruturas da nação e a elevação do nível cultural e material da população. Como o país não possuía propriamente uma nação e estava diante de um Estado reduzido ao servilismo político, os dois parâmetros básicos da produção intelectual brasileira se davam em dois sentidos: construir a nação e remodelar o Estado, de modo a modernizar a estrutura social e política do país. Decorrência direta dessa dupla atitude reformista e salvacionista seria ainda a avidez arrebatada com que os escritores se iriam entregar ao estudo dos mais variados aspectos da realidade brasileira. Esse nacionalismo intelectual não se resumia em um desejo de aplicar ao país as técnicas de conhecimento desenvolvidas na Europa. Mais do que isso, ele significava um empenho sério e consequente de criar um saber próprio sobre o Brasil, na linha das propostas do cientificismo, embora não necessariamente comprometido com ele. (...) Uma ciência sobre o Brasil seria a única maneira de garantir uma gestão lúcida e eficiente de
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seu destino. Desacreditadas as elites tradicionais, só a ciência – e seus Prometeus portadores – poderia dar legitimidade ao poder. Indispensável ainda para compreender as condicionantes dessa geração e da germinação de seu esforço fremente para o conhecimento do Brasil, foi, naturalmente, a atmosfera de instabilidade e indefinição que envolveu todo o período de decadência do Império e consolidação da República. Uma sensação de fluidez e de falta de pontos fixos de referência se difunde e palpita incessantemente na profundidade dos textos. (SEVCENKO, 1983, p.85)
Diante disso, os intelectuais não conseguiram ser aceitos como os líderes e condutores da nação no sentido das reformas que preconizavam, então o destino trágico de “paladinos malogrados”, segundo Sevcenko. A cruzada modernizadora largou-os à margem, configurando uma “situação bastante insólita: campeões do utilitarismo social, no momento mesmo do triunfo do seu ideal, veem-se transformados em personagens socialmente inúteis.” (SEVCENKO, 1983, p.86). Sob este aspecto, os intelectuais paranaenses assumiram o papel de difundir o pensamento europeu, principalmente o científico e o estético, independente de qualquer tradição local, como uma prática modernizadora. O Paraná, que se tornou emancipado de São Paulo apenas em 1853, começou a preocupar-se com a defesa de uma identidade por volta da década de 1870. Segundo Sevcenko, é justamente a partir desse momento, após a Proclamação da República, que a rapidez de atualização, nivelada pela Europa, passa a ser atestado de modernização no país. Diante disso, podemos supor que a afirmação de identidade no Paraná não está ligada ao espírito identitário nacionalista do Romantismo. Isso criou uma confusão entre o que era uma lógica nacional de modernidade, mantida também no estado, e uma lógica particularista, preconizada entre os intelectuais paranaenses, que buscavam mostrar a sua capacidade de atualizar-se como prova de sua autonomia e de seu progresso. Essa práxis modernizadora impôs à intelectualidade paranaense a necessidade de que ela se incorporasse à discussão de questões nacionais, apesar de se configurar como um estado jovem e sem uma tradição literária local. O espaço que os intelectuais encontraram disponível para divulgar essa intenção modernizadora foi a imprensa. Na última década do século XIX, a imprensa passa a ser o espaço essencial para a informação e a formação dos valores culturais da sociedade. É pelos jornais e revistas que a sociedade no Paraná é orientada quanto aos acontecimentos políticos do país, quanto aos valores socias, ideológicos e morais. Para além disso, a imprensa paranaense disponibiliza jornais e revistas com fins exclusivamente de divulgação de textos literários. Essa configuração agregadora tem um motivo triplo:
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dirigir o gosto literário do público local, difundir a literatura local e definir uma identidade literária pela ação direta sobre o público e sobre quem pretendesse apresentar-se como um literato. A imprensa cultural curitibana era controlada por figuras centrais, inicialmente com:
Dario Vellozo, Silveira Neto, Júlio Perneta e Rocha Pombo e,
posteriormente, com Emiliano Perneta, Euclides Bandeira e Romário Martins. A intenção de ver no progresso civilizatório a garantia da modernização e, por esse motivo, como garantia da autonomia local, é resultado das preocupações do Paraná da época, mas também se encontra na organização política no país, como afirma Sevcenko, ao analisar a realidade fin de siècle carioca. A passagem da Monarquia para a República representou uma mudança no modo de organização da sociedade e na ideologia diante do nacionalismo. Na Monarquia, o poder era centralizado, a sociedade se organizava em torno de sistemas de governo patrimonialistas e a ideologia da nação se configurava na ótica do país novo, cuja natureza era prova da grandiosidade do país. Enquanto que, na Primeira República, o patrimonialismo se mascara com a ideologia liberal, o poder central é descentralizado e o nacionalismo só deve ser defendido na prova de atualização e de adaptação à modernidade cientificista e tecnológica europeia.
2. Revisão bibliográfica Consolidou-se como lugar comum na crítica literária brasileira a noção de cópia e de um descompasso ideológico frente a uma literatura produzida no contexto europeu. Roberto Schwartz foi quem melhor formulou essa concepção, e no ensaio que abre o livro Ao vencedor as batatas, “As ideias fora do lugar”, o autor, ao estudar a elite brasileira da segunda metade do século XIX, argumenta que ela se valia de uma espécie de estratégia de comportamentos e modismos típicos da classe economicamente dominante na Europa, a burguesia. Isso como uma tentativa de pertencimento ao mundo compreendido como civilizado. Schwarz debruçou seu estudo principalmente sobre José de Alencar e Machado de Assis, autores inseridos no período anterior à Primeira República. Nicolau Sevcenko, em contrapartida, faz o inverso, analisa os desdobramentos da influência europeia em Lima Barreto e Euclides da Cunha, autores após a Proclamação da República. Ambos parecem apontar para os problemas e as soluções formais que os autores do século XIX utilizaram frente a uma realidade europeia. Antes de nos debruçarmos mais detidamente
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sobre a imprensa e a análise dos poemas, iremos elencar alguns dos problemas e impasses enfrentados pelos simbolistas paranaenses na consolidação de uma modernidade e autonomia da literatura paranaense.
3. Relação problemática entre público e autor
O desenvolvimento da imprensa, o surgimento de editoras e de escolas superiores, embora indiquem uma certa mudança na vida cultural a partir da segunda metade do século XIX, não retiram o país do atraso. Walter Bejamin ao analisar a obra de Charles Baudelaire, afirma que no século XIX a leitura começava a se articular com um público de amplas camadas sociais tornando-se um hábito na França. (BENJAMIN, 1989, p.114). Nessa perspectiva, poder-se-ia afirmar que a Modernidade iniciou-se na França com a formação de um público leitor, em que, de acordo com Benjamin, a multidão para Baudelaire significava a multidão de clientes e do público. No contexto brasileiro, o sentido degradante da incultura local e as precaríssimas condições de produção literária no país surgiram de modo claro à consciência dos artistas e críticos do período1. No texto « O que falta à Nossa Literatura », José Veríssimo nos descreve o cerne do problema. Faltou-lhe sempre comunicabilidade, isto é, seus escritores, que enormes distâncias e a dificuldade extrema das comunicações separavam, ficaram estranhos uns aos outros. E não à comunicações pessoais, de valor secundário, me refiro, senão às intelectuais, estabelecidas pelas obras (...). Esta falta de contato continua ainda hoje, e é maior agora do que foi por exemplo no período romântico. Faltou sempre o elemento transmissor, o mediador plástico do pensamento nacional, um povo suficientemente culto para interessarse por esse pensamento, ou, ao menos, apto a se deixar influenciar por ele. Na constituição de uma literatura o povo tem simultaneamente um papel passivo e ativo : é dele que parte e a ele que volta a inspiração do poeta e do pensador. Um e outro não se podem abstrair, antes fazem parte integrante dele. Somente talvez no período romântico, de 1835 a 1860, se pode dizer existiu, limitada a uma parte diminuta do país, essa Nicolau Sevcenko, em Literatura como Missão, nos apresenta uma pesquisa realizada por José Veríssimo no ano de 1900, em que o número de analfabetos no Brasil, em 1890, segundo a estatística oficial, era, em uma população de 14.333.915 habitantes, de 12.213.356, isto é, sabiam ler apenas 16 ou 17 em 100 brasileiros. “Difícil será, entre os países presumidos de civilizados, encontrar tão alta proporção de iletrados. Assentado esse fato, verifica-se logo que a literatura aqui falta a condição da cultura geral, ainda rudimentar e, igualmente o leitor e consumidor dos seus produtos” (VERÍSSIMO, José. “Revista Literária”. In: Literatura como missão. SEVECENKO, Nicolau. Editora: Brasiliense, Rio de Janeiro, 1895. P. 88. ) 1
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condição de comunicabilidade. (...). De sorte que, pode-se dizer, sob este aspecto, foi o desenvolvimento de nossa cultura que prejudicou a nossa evolução literária. Parece um paradoxo, mas é simplesmente uma verdade. Defeituosa e falha, essa cultura foi ainda assim bastante para revelar ao público ledor a inferioridade dos nossos escritores, não mais contrabalançando este sentimento pelo ardor patriótico do período de formação da nacionalidade. É, pois, a deficiência da cultura geral dos escritores de todo o gênero no país, uma das falhas da nossa literatura. (VERÍSSIMO, 1978, p.64-65).
O público restrito sempre se configurou como um problema na literatura brasileira desde o Arcadismo até os fins do século XIX. Antônio Candido, afirma em seu texto « O Escritor e o Público », que desde o Romantismo e a Independência, o nacionalismo e o novo papel do escritor no interior desse contexto histórico foram fundamentais para a formação de um público de auditores (CANDIDO, 1972, P.81), que segundo o autor, irá permear por todo o século XIX. Esta tradição de auditores é consequência de um público já mais amplo, porém não afeito à leitura e muito pouco sofisticado em suas demandas culturais e literárias. No Brasil, a literatura, segundo Cândido, ainda transitava por uma espécie de « público restrito e caloroso, que produzia simultaneamente literatura, assegurando a esta (o que não era frequente na época) circulação e apreciação ». (CANDIDO, 2002, p.52) Cândido vai ainda mais além na delimitação do problema da realidade social do fim do século brasileiro.
Com efeito, ligam-se ao analfabetismo as manifestações de debilidade cultural : falta de meios de comunicação e difusão (editoras, bibliotecas, revistas, jornais) ; inexistência, dispersão e fraqueza dos públicos disponíveis para a literatura, devido ao pequeno número de leitores reais (muito menor que o número já reduzido de alfabetizados) ; impossibilidade de especialização dos escritores em suas tarefas literárias, geralmente realizadas como tarefas marginais ou mesmo amadorísticas ; falta de resistência ou discrimiação em face de influências e pressões externas. (CANDIDO, 2011, p.172)
A literatura paranaense era divulgada preponderantemente pelos jornais e revistas literárias da época e parecia girar em torno de um público muito restrito, uma vez que os próprios poetas eram os diretores dos jornais e os resenhistas das próprias obras. Há muitos casos desse auto elogio entre os poetas, em vários fascículos dos jornais. Exemplo disso é uma homenagem à obra Ilusão de Emiliano Perneta, publicado na terceira e última edição da Revista Atheneia (1914), em que « a forma é por excelencia
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emilianesca, opulenta de pedrarias, maravilhas orientais, pompeando no ouro das rimas, entrecortada de encantadores imprevistos, cheia de tics originais – traduzindo a cor, o aroma, a luz, o som e o inefável. »2. Os poemas, as discussões literárias e a busca por um progresso civilizatório giravam em torno de um grupo de escritores. É evidente no contexto paranaense fin de siècle a presença fraca de públicos disponíveis para a literatura produzida, a impossibilidade de especialização dos autores, a ausência de críticos literários e, sobretudo, a falta de resistência de influências literárias externas. Parece estar longe do Brasil do século XIX e, sobretudo do Paraná, a possibilidade de os poetas poderem articular um discurso poético com uma profundidade crítica, uma vez que não havia condições históricas de se ter um público burguês, muito menos um público virtual antiburguês.
Pressupõe que o artista/escritor oriente a sua estratégia de público inteiramente pela burguesia, no sentido de que esta é ao mesmo tempo destinatária – a obra será como que « maquiada » para ela – e alvo – se possível, sem que ela própria o perceba. « Alvo » significa vítima sem efígie, sendo que a condenação – levada ao cabo simplesmente pela exposição – é feita com vistas a um outro público, ainda não visível ou localizável, a que Sartre chama le public virtuel. Essa estratégia dúplice, meio caminho entre o público real, portanto burguês, e o virtual, ou seja, antiburguês, quando não proletário, é constitutiva da estética antiburguesa. (OEHLER, 1997, p.15)
4. O problema da Modernidade
Marshall Berman, em sua obra Tudo que é sólido se desmancha no ar, explora e mapeia esses períodos de modernidade na literatura e as condições sociais que corroboram a dissolução de um sistema tradicional por um novo, moderno. O autor inicia caracterizando o turbilhão da vida moderna, que se abastece preponderantemente das descobertas das ciências físicas, da industrizalição da produção na qual o conhecimento cientifico é transformado em tecnologia, da aceleração do ritmo de vida, da descomunal explosão demográfica e principalmente, da emergência de um mercado capitalista mundial, drasticamente flutuante, em permanente expansão. (BERMAN, 1986, P.16). Mais adiante, Berman afirma que o público moderno do fim do século XIX, apesar dessa constante modernidade sugando os meios de produção, ainda se lembra do que é viver, 2
M.G. Revista Athenéia. 3º edição, Curitiba, 1914.
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material e espiritualmente, em um mundo que não chega a ser moderno por inteiro. E, para o autor, é dessa profunda dicotomia, dessa sensação de viver em dois mundos simultaneamente que emerge e se desdobra a ideia de modernismo e modernização. (BERMAN, 1986, p.16-17) Frente a uma desordem política existente no Paraná do XIX, os intelectuais projetaram a sua vontade de pôr-se à frente no espaço, que acreditavam ser de sua competência, isso como uma forma de defender o ideal de progresso a partir da recusa da religião pelas ideias cientificistas. Dario Velloso define assim o papel que espera do literato seu contemporâneo no artigo que faz publicar com o título « A Imprensa e o Clero », na revista O Cenáculo em 1896.
É dever de todo aquele que se preza de possuir uma pena [...] mostrar e demonstrar ao povo ingênuo e crédulo a impropriedade do ensino religioso, a falsidade dos ensinos da Igreja Romana, a esterelidade de seu dogmatismo. 3
Dentro desse posicionamento defendido por Dario, a própria revista se posiciona frente ao clero “o Cenáculo protesta em nome da Moral, em nome da Pátria republicana, contra esse invadir da Igreja aos domínios da Inteligência.”5 Já no fascículo seguinte, Silveira Neto propõe que se revigore “o caráter do Brasil com os sagrados exemplos de valor e de hombridade que a História nos oferece; anulese com a Pedagogia os rosários e os jejuns; substitua-se, no templo, as missas em Latim por lições de História Natural”, enfim limite-se a atuação do catolicismo no Estado. E termina conclamando o Brasil para que faça valer a todos as leis republicanas, revigorando a nossa agricultura, motor de nossa industrialização e comércio, que sejam valorizados os aborígenes, “para integridade da nação”, e as artes, pois só assim “teremos sólidos fundamentos para receber o futuro.”4 Tudo isso como uma forma de modernizarse. Na revista A Penna encontramos um discurso mais veemente de defesa da modernização e do progresso na região paranaense.
VELLOZO. A Imprensa e o Clero. Revista Cenáculo, janeiro de 1896. (v. II) p. 45. 5Ibsen. 4 SILVEIRA NETO, M. O socialismo e o clero. Revista Cenáculo, Curitiba, 13º fascículo, ano III, abril de 1896 3
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Faça a moderna geração paranaense com que o nosso meio literário seja a Jerusalém restaurada da Arte; tragam todos a este novo reduto contra a Indiferença e contra a Ignorância o quinhão do seu Talento; – e o Paraná, consagrados os seus bons elementos intelectuais, há de imporse vantajosamente aos grandes centros literários da República [...] Eis o nosso rumo – O FUTURO!5
Esse discurso modernizador tem como centro da discussão questões políticas, sociais e ideológicas a respeito da situação social do Paraná no século XIX. Com um público precário, um número irrisório de produtores, empresários de bens simbólicos e com um baixo grau de industrialização, o estado ainda se encontrava entre um discurso romântico engajado e uma retórica simbolista do poeta na Torre de Marfim, buscando pelo sonho, pelo mistério e pelo Ideal. Apesar das condições de atraso e da situação social brasileira não ir de encontro com a realidade industrial descrita por Berman, os simbolistas paranaenses estavam nesse entrelugar, entre o Romantismo e a Modernidade, em que se imiscuem o discurso cientificista, a recusa do Clero, um nacionalismo exacerbado como estratégia de autoafirmação cultural decorrente do atraso e temas tipicamente simbolistas como a fuga do real, o sonho e o mistério. Os três temas principais defendidos como ideologia na revista Esfinge, são a « Ciência, Arte e Mistério ». (CAROLLO, 1890, p.256). , ou seja, ela preconiza tanto elementos caros ao simbolismo francês : o Ideal e o Mistério, assim como a ciência e a industrialização, temas que Mallarmé recusou em sua poesia como uma forma de se opor a essa sociedade cada vez mais utilitária.
5. Conclusão
Stéphane Mallarmé (1842-1898), após a morte de Paulo Verlaine, foi considerado como o príncipe dos poetas na França. Sua obra influenciou toda uma geração de autores do século XX, autores não apenas europeus mas de toda a América Latina. Hugo Friedrich em Estrutura da Lírica Moderna, traça um painel dos principais autores que compõe a Modernidade na Europa. Friedrich elenca uma série de categorias negativas como uma forma de caracterizar essa nova poesia que emerge no fim do século francês.A despersonalização, a extrema racionalização dos poemas, a estética do feio, a
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Revista A Penna, nº 4, ano I, abril de 1897.
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idealidade vazia, o hermetismo da linguagem e a ênfase em temas grotescos são algumas das categorias que compõem a poesia de Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé. Essa mudança poética ocorre, em partes, pela sociedade tornar-se cada vez mais utilitária e industrial, em que o artista começa a criar consicência de que a sua obra passou a ser vista como mercadoria. Para Adorno, « Sentis a poesia lírica como um elemento de oposição à sociedade, de natureza totalmente individual. A vossa resposta emocional insiste que assim permaneça », mais adiante o autor explica a razão desse sentimento de recusa à sociedade, « contra violência opressiva das coisas (...) uma forma de reação contra a reificação do mundo, o domínio das mercadorias sobre as pessoas. » (ADORNO, 2003, p.8). Sob esta perspectiva, os simbolistas franceses foram influenciados por um contexto ideológico específico que originou esse desconforto com a realidade social e, consequentemente, criou essa poesia hermética, grotesca, complicada, obscura, o isolamento do poeta na Torre de Marfim, o Tédio baudelairiano e a recusa quase completa de Mallarmé em abordar temas referentes a sociedade. Nesse sentido, levando em consideração a sociedade brasileira finissecular, suas condições de atraso, as mudanças de um sistema patriarcalista e escravocrata para um sistema Republicano e o processo constante de modernização e progresso que acomete o país nas últimas décadas do século XIX, iremos analisar os principais poetas simbolistas paranaenses, todos participantes ativos das revistas pesquisadas, tendo em vista as categorias negativas descritas por Friedrich, de modo a traçar pontos de convergência com a modernidade na poesia francesa. Tendo em vista o período de transição que o fim do século XIX significou na sociedade brasileira, de um sistema patrimonialista e escravocrata para um republicanismo, as condições de incultura e de atraso, o público restrito e a independência tardia do Paraná, pode-se concluir que os autores ocupavam uma espécie de entrelugar, não eram mais românticos mas também nao se enquadravam na modernidade tal qual estava acontecendo no cenário francês. Enquanto os simbolistas franceses estavam fugindo dos problemas sociais na Torre de Marfim, aqui nós encontramos uma pluralidade e contraposição de discursos : o cientificismo, o engajamento político e ideológico e a fuga da realidade. Não pretendemos afirmar que Emiliano Perneta e Dario Vellozo defendessem de modo ferrenho qualquer projeto de autonomia ou configuração da identidade paranaense em detrimento de uma estética simbolista. Eles apenas, por motivos particulares, por necessidades do seu meio local e pela posição de dependente em relação à hegemonia do centro nacional, constituíram as bases para uma certa
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singularidade da literatura paranaense. Singularidade que, mais tarde, com a oficialização dessa literatura singular (o principado de Emiliano e a liderança espiritual de Dario), foram transformados no alicerce de um projeto institucional: o Centro Paranista, este sim empenhado na defesa da identidade paranaense, sobretudo a curitibana. Por conseguinte, eles foram transformados na projeção inevitável no modernismo do processo literário paranaense: a Revista Joaquim, editada por Dalton Trevisan nos anos 40 do século XX e já marca de um outro momento cultural e intelectual da cidade. 6. Referências
ADORNO, Theodor. Notas de Literatura I. Trad: Jorge de Almeida. Editora Duas Cidades, São Paulo, 2003 BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Trad : Ivan Junqueira. Editora : Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2006 BENJAMIN, Walter. Um lírico no auge do capitalismo. Trad: José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989 BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986 BORDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2009 CANDIDO, Antonio. O romantismo no Brasil. São Paulo: Humanitas, 2002 _________________. A Educação pela noite e outros ensaios. Rio de Janeiro : Ouro sobre Azul. _______________. Literatura e Sociedade. Editora: T.A. Queiroz Editor, São Paulo CAROLLO, Cassiana Lacerda. Decadismo e Simbolismo no Brasil. Editora: Livros técnicos e científicos Editora S.A. Rio de Janeiro, 1980 NETO, Silveira, Luar de Hinverno. Curitiba: Farol do Saber. 1996
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OEHLER, Dolf. Quadros Parisienses (1830-1848): estética antiburguesa em Baudelaire, Daumier e Heine. Trad. José Marcos Macedo e Samuel Titam Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 1997 PERNETA, Emiliano. Ilusão. Editora Farol do Saber, Curitiba, 1996 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. Editora Brasiliense: São Paulo, 1983 SCHWARZ. Ao vencedor as Batatas. Editora Duas Cidades, São Paulo, 1977 VELLOZO, Dario. Cinerário. Editora Farol do Saber, Curitiba, 1996 VERÍSSIMO, José. « O que falta à nossa Literatura ». In: José Veríssimo: Teoria, crítica e História literária. Editora: EDUSP, São Paulo, 1978.
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INSERINDO CRIANÇAS DE ANOS INICIAIS NO UNIVERSO LITERÁRIO: UMA PROBLEMÁTICA A SER REPENSADA
Ana Luisa Feijó Cosme (FURG)1
Resumo: É de extrema importância que logo nos anos iniciais do ensino básico o aluno seja estimulado para o exercício prazeroso da leitura. Entretanto, sabe-se que muitas vezes, por mais que o professor se esforce para elaborar atividades que trabalhem a leitura de literatura, na maioria das vezes essa leitura, por ser obrigatória, acaba por se tornar enfadonha e desagradável para as crianças. Partindo dessa premissa, foi elaborado um projeto de incentivo a leitura com o intuito de despertar o gosto pela leitura em crianças de anos iniciais. Sendo assim, o objetivo desse artigo é expor as práticas, promovidas pelo projeto “Oficina de contação: a formação de leitores” realizadas com alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental de uma escola de Rio Grande e orientado pela professora Mairim Linck Piva da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Palavras-Chave: Literatura; Leitura; Educação; Ensino.
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Aluna do Programa de Pós-Graduação em Letras, Mestrado em História da Literatura da Universidade Federal do Rio Grande – FURG.
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O projeto “Oficina de contação: a formação de leitores” tinha por objetivo despertar nos alunos de anos iniciais o interesse pela leitura e trabalhar a criatividade dos mesmos, para dessa forma, desenvolver a expressão oral e escrita das crianças e aguçar o hábito de leitura. O foco do projeto era a contação de histórias por parte da acadêmica de Letras integrante do mesmo e, a partir da contação de histórias que acontecia através de recursos que chamavam a atenção das crianças, as mesmas interpretavam e criavam releituras de tais histórias para assim trabalharem a sua criatividade, tornando-se, dessa forma, novos leitores que tivessem o costume de frequentar a biblioteca e criar suas próprias histórias. O projeto era desenvolvido com crianças dos anos iniciais do Ensino Fundamental da Escola Estadual de Ensino Médio Dr. Augusto Duprat, na cidade de Rio Grande. Faziam parte do projeto sessenta crianças que estavam entre o primeiro e o quarto ano do ensino básico, as quais participavam de um projeto maior promovido pela escola, cujo foco era manter os alunos no ambiente escolar o maior tempo possível. Esse foco se justifica pela situação vulnerável em que se encontravam seus alunos. A Escola Estadual de Ensino Médio Dr. Augusto Duprat está localizada entre a Vila Militar e o Bairro Getúlio Vargas. Não há praça, campo de futebol ou área de lazer no interior destes bairros. A comunidade é socialmente carente e pouco letrada e, em consequência, os alunos dispõem de poucos recursos e meios para superar as dificuldades de inserção social bem como vivenciar e valorizar sua cultura. Além disso, o Bairro Getúlio Vargas é cercado por uma aura de descrédito pela fama de violência e criminalidade que desenvolveu desde o seu surgimento. A escola atende, principalmente, as crianças de ambos os bairros e lida com uma grande diversidade cultural. Por isso, a mesma procura investir em projetos que levem a criança e também sua família para o interior da escola, construindo assim uma grande comunidade escolar. Devido a todas as características do bairro o qual se situa a escola (difícil acesso à cultura e comunidade socialmente carente), os projetos e programas que
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compõem o Plano de Estudos da instituição têm a finalidade de oferecer uma compensação da carência das comunidades e perseguir a qualificação do ensino através da Formação Continuada (em serviço) de seus docentes. Dentre esses projetos, está o “Mais Educação”, que proporciona aos alunos atividades de Letramento, música, prática de esportes e reforço escolar. Esse projeto mais amplo englobou, portanto, o projeto “Oficina de contação: a formação de leitores”, que foi extremamente bem recebido pela equipe diretiva e pedagógica da escola, pois os objetivos do projeto iam ao encontro dos objetivos propostos pela escola. Com base no que afirma Zilberman (1991), é delegada à escola a função de despertar na criança o gosto pela leitura, e isso tem se tornado cada vez mais complexo visto que muitos professores utilizam textos literários como o mero pretexto para o ensino e trabalho com língua portuguesa, esquecendo-se das riquezas que o mesmo carrega. Utilizando a leitura apenas para o trabalho com a gramática, o professor acaba por fazer com que o aluno compreenda que o texto não tem sentido, pois muitas vezes é trabalhado de forma descontextualizada. Como afirma Marisa Lajolo: “Ou o texto dá sentido ao mundo, ou ele não tem sentido nenhum. E o mesmo se pode dizer das nossas aulas.” (LAJOLO, 1982, p.15). Lajolo alerta para o fato de que propostas e discussões arbitrárias para o uso do texto literário em sala de aula, principalmente com o trabalho com as crianças dos anos iniciais, muitas vezes, acabam por resultar em experiências desastrosas, já que as atividades não possibilitam uma real interação entre o leitor e o texto, fazendo com o mesmo não tenha sentido para o aluno e esse acabe perdendo, ou não despertando, o prazer na leitura. Considerando, portanto, que a escola dificilmente estimula o exercício da leitura, a não ser quando utilizado para tarefas de ordem pragmática, é difícil aceitar que a escola seja um veículo para manifestação pessoal do aluno, que colabora com a sua auto-firmação, já que é o exercício da leitura do texto literário que possibilita ao aluno que ele se desenvolva tanto na escrita quanto na oralidade. Se o professor conferir de
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fato sentido à leitura de literatura, fazendo com que seus educandos tenham maior segurança em suas experiências como leitores, com toda a certeza teremos crianças que além de possuírem um maior domínio da fala e da escrita, também terão um pensamento crítico mais desenvolvido. Embora a escola seja o maior possível incentivador da leitura para as crianças, despertar o gosto pela leitura em alunos do ensino básico não é tarefa apenas dela, como explica Regina Zilberman no seu livro A leitura e o ensino de literatura, o país vem desdobrando esforços com o intuito de difundir o interesse pela leitura e literatura para assim sair de uma situação de atraso cultural:
“O exercício dessa função [...] é delegado à escola, cuja competência precisa tornar-se mais abrangente, ultrapassando a tarefa usual de transmissão de um saber socialmente reconhecido e herdado do passado. Eis porque se amalgamam os problemas relativos à educação, introdução à leitura, com sua consequente valorização, e ensino da literatura, concentrando-se todos na escola, local de formação do público leitor” (ZILBERMAN, 1991, p.16).
Sendo assim, fazer com que as crianças se tornem leitores que realmente reflitam acerca do que foi lido e saibam discutir tais leituras não é tarefa apenas da escola, mas também das famílias e da sociedade como um todo. Entretanto, embora se saiba que se trata de uma responsabilidade da sociedade no geral, é no professor que recai a culpa toda vez que um aluno diz não gostar de leitura e de literatura. Sendo assim, o projeto “Oficina de contação: a formação de leitores” tinha como objetivo proporcionar aos alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental um contato prazeroso com a leitura, despertando nos mesmos o interesse pela leitura e pela produção de textos, trabalhando a expressão oral e escrita dos alunos, possibilitando assim à acadêmica de Letras o contato com a literatura infantil e juvenil na realidade escolar.
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Além de “criar” novos leitores, o objetivo do projeto foi fazer com que as crianças, desde seu primeiro contato com a escola, desenvolvessem um olhar crítico acerca do que era lido, elegendo suas leituras preferidas, desenvolvendo a habilidade de recontar histórias a partir de suas leituras e também desenvolver a sua criatividade possibilitando ao aluno a criação não só de outras histórias como também releituras, fazendo com que a criança se expressasse tanto na oralidade como na escrita, apresentando suas preferências e sua capacidade de criação. As atividades eram elaboradas e aplicadas pela acadêmica e se articulavam através de encontros semanais com a duração de 4 horas na escola e de 4 horas de preparação e orientação com a orientadora do projeto. Durante o período de encontro, a acadêmica propunha atividades de leitura e escrita, envolvendo contação de histórias com recursos didáticos, como fantoches, painéis, ilustrações, fantasias, entre outros. Além disso, os alunos também assistiam a vídeos e filmes para trabalhar a intertextualidade entre a história lida e a assistida, fazendo comparações e percebendo as várias maneiras de se contar uma mesma história. A partir das narrativas contadas, os alunos criavam releituras das histórias apresentadas, confeccionando ainda ilustrações e fantoches dos personagens das suas histórias para a dramatização das mesmas para os colegas. Para a seleção dos textos, foi levado em conta o interesse temático e o estágio de leitura que geralmente apresenta a maioria dos alunos da faixa etária e dos níveis de escolaridade das crianças que faziam parte do projeto. Além das atividades relatadas, os alunos também tinham a oportunidade de escolher um livro e realizar a leitura. Após essa leitura, as crianças contavam a história lida para os seus colegas, dizendo o que acharam delas, qual a parte que mais gostaram e o que mudariam, etc. Tal atividade fez com que as crianças percebessem que tal expressão é natural e que não é preciso reprimir suas opiniões, elas podem e devem ser compartilhadas com o
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grupo. Através do incentivo criado diante dessas atividades, as crianças acabaram por, com o passar do tempo, falar naturalmente até mesmo sobre a história apresentada pelos colegas, demonstrando como a expressão oral e o pensamento crítico das mesmas estava se desenvolvendo. Embora o projeto tenha tido um curto período de duração, foi possível perceber a mudança realizada na vida dos integrantes do mesmo, pois antes a maioria das crianças achava que ler era chato e que criar histórias era muito difícil, mas no decorrer das atividades os alunos foram demonstrando interesse por descobrir novas histórias, compartilhar com os colegas as opiniões diante dos enredos e também desenvolver a criatividade, percebendo assim o quanto eram capazes de produzir histórias e releituras muito criativas que interessavam aos colegas e familiares. Durantes o período de encontro com as crianças foi possível perceber que as leituras livres foram realizadas cada vez com maior frequência, os alunos se apropriavam dos livros literários assim que os mesmos eram oferecidos, solicitando também o empréstimo semanal. Além de estimular a leitura, fica claro que as atividades oferecidas no projeto também trabalharam com a auto-estima e o comportamento dos alunos nos trabalhos individuais e coletivos, fazendo com que as crianças aprendessem a respeitar o olhar do outro. Aos poucos, os participantes do projeto foram demonstrando como estavam se interessando pela leitura, e como aspectos como a cooperação, a competição de forma saudável e as brincadeiras também foram sendo desenvolvidos durante as atividades. As produções realizadas pelas crianças também comprovam o êxito que o projeto obteve, já que estas se mostraram cada vez mais criativas e encantadoras. Além das produções escritas e das ilustrações e fantoches confeccionados, os alunos também demonstraram um grande desenvolvimento na oralidade, já que no início do projeto poucos dos integrantes do mesmo conseguiam se expressar diante do grupo e ao final
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todos se demonstravam interessados em falar aos colegas sobre as leituras feitas e também opinar sobre as atividades realizadas. Além disso, conforme questionamentos feitos aos professores dos alunos integrantes do projeto, ficou claro que as atividades realizadas durante as oficinas contribuíram com o desenvolvimento dos alunos em sala de aula, pois no decorrer do projeto os alunos passaram a frequentar mais a biblioteca, ofereceram-se para ler textos em voz alta durante a aula e também passaram a interpretar melhor todas as leituras feitas, desde histórias ficcionais até problemas matemáticos e instruções de atividades. Embora o projeto tenha tido um bom resultado, algumas dificuldades foram encontradas no decorrer do planejamento e da aplicação das atividades realizadas. A maior de todas as dificuldades enfrentadas durante o projeto era o fato de que ao mesmo tempo em que era ministrada a oficina de leitura também ocorriam atividades recreativas no pátio da escola, como jogo de futebol e caçador. Uma vez que antes do início das atividades da oficina todos os alunos participavam dos jogos no pátio, foi bem complicado convencê-los de que seria divertido trabalhar com leitura e produção de histórias. Outra grande dificuldade encontrada foi adquirir livros para utilizar durante as oficinas e a falta de recursos financeiros, já que muitas vezes a ministrante gostaria de levar os integrantes do projeto até a Livraria da cidade ou até uma biblioteca pública, mas não conseguia meios de transportar os alunos até os locais desejados. Além disso, durante a produção das histórias em quadrinhos, por exemplo, os alunos não tinham material suficiente para a ilustração das mesmas, tendo a ministrante que solicitar material emprestado nas outras salas de aula já que os que a mesma havia levado não eram suficientes para a demanda de alunos. A partir do exposto nesse trabalho, conclui-se que o projeto “Oficina de contação: a formação de leitores” foi realmente produtivo, não só para as crianças integrantes do projeto como também para a ministrante das atividades, já que esse contato com a realidade escolar é enriquecedor para um aluno de licenciatura.
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Além disso, ao perceber que as crianças estavam se desenvolvendo melhor na escrita e na oralidade, percebe-se o quanto as atividades e o estímulo à leitura feitos nos encontros do projeto colaboraram para o progresso dos alunos em sala de aula, pois tendo um maior domínio da leitura e da escrita, os alunos conseguem compreender melhor os conteúdos trabalhados durantes as aulas, além de se expressarem com maior criatividade e originalidade nas aulas de Língua Portuguesa. Fica claro, portanto, que o trabalho com o texto literário não pode resumir-se ao ensino de gramática, o professor precisa compreender que o texto em si já possui o seu sentido, a sua importância, entender que a literatura não precisa estar sempre interligada a um conteúdo. Ler também é exercitar e aprender mais sobre a Língua Portuguesa, ao ler o aluno desenvolve o seu raciocínio e amplia o seu vocabulário. Portanto, é preciso que se entenda que o trabalho com o texto literário possui a sua própria finalidade, não sendo dependente sempre de algum conteúdo gramatical. Sendo assim, com o resultado do projeto, concluí-se que se houver incentivo, as crianças podem sim se interessar cada vez mais pela leitura tornando-se assim bons e críticos leitores, além de desenvolverem a sua expressão oral e escrita. Para isso, basta que sejam oferecidas oportunidades onde os alunos possam se desenvolver como leitores e escritores, através de atividades que despertem o interesse das crianças e as façam perceber o quanto a leitura de literatura pode ser fantástica e divertida.
Referências: AGUIAR, Vera T. (Coord.). Era uma vez... na escola :formando educadores para formar leitores. Belo Horizonte: Formato, 2001. LAJOLO, Marisa. Usos e abusos da literatura na escola. Rio de Janeiro: Globo, 1982. ______. Do mundo da leitura para a leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 2005.
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Plano Político Pedagógico da Escola Estadual de Ensino Médio Dr. Augusto Duprat. Rio Grande, 2009. RESENDE, Vânia Maria. Literatura infantil e Juvenil: vivências de leitura e expressão criadora. São paulo: Saraiva, 2000. ZILBERMAN, Regina; LAJOLO, Marisa. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1999. ZILBERMAN, Regina. A leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 1991.
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A LITERATURA CANÔNICA, A TRIVIAL E OS DIVERSOS SUPORTES NA FORMAÇÃO DO LEITOR DE ENSINO PÚBLICO
Ana Maria Reino Cavalieri (UEM)1 Considerações Iniciais
A preocupação da indústria cultural com o público jovem, que se inicia na leitura literária, tornou-se evidente neste início de século, quando focou seus projetos em textos direcionados ao leitor ainda imaturo literariamente, buscando por meio de autores acessíveis em termos linguísticos e semânticos, enredos persuasivos e correspondentes às expectativas deste. Autores como Stephenie Meyer, Stephen King e Nicholas Sparks também se mostram receptivos ao contato com seu público leitor seja por meio de sites, e-mail ou em eventos dos quais participam, deixando-se perceber “humano” ao compartilhar seu cotidiano familiar e profissional com os que admiram seu trabalho por meio das redes sociais, diferenciando-se, da imagem do artista da idade média, que se isolava, afastando-se do povo. Outro fator interessante utilizado para o envolvimento do leitor é a mediação deste texto, que atualmente envolve múltiplos suportes, além de diálogos diversos com outras artes. Se a diversidade de textos não canônicos oferecidos pelas editoras teve sua aceitação pelo público acelerada com a revolução industrial, quando, houve um aumento de público para este tipo de leitura, o que, diz Bourdieu, “coincide com a extensão do público resultante da generalização do ensino elementar, capaz de permitir às novas classes (e às mulheres) o acesso ao consumo cultural” (BOURDIEU, 2007, p.102) seu alvo agora são os filhos da atual classe média, que trazem da família valores sociais e culturais nos quais está incluída a cultura literária como símbolo de status, 1
Mestranda em Letras: Literatura (UEM) - trabalho realizado sob a orientação do Prof. Dr. Márcio Roberto do Prado (UEM)
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muito embora desconheçam os valores estilísticos considerados como relevantes em uma obra pela academia e/ou especialistas em literatura. Parte daí, a inquietação norteadora deste trabalho que foi a busca por compreensão do ato receptivo dos textos ficcionais, por parte da população mais jovem, em particular os adolescentes em idade escolar, que estão tendo sua iniciação literária e buscam formar juízo a respeito da literatura. Observamos durante o período da pesquisa, nas instituições escolares, um embate entre jovens leitores e adultos responsáveis pela formação literária destes, envolvendo posturas divergentes frente à determinação do padrão estético do texto tido como edificante para o saber literário e a expectativa específica de um público ansioso por identificar no romance escolhido a representação dos sentimentos, linguagem, angústias e cultura próprios da fase de vida em que se encontra, ambientados histórica, cultural e temporalmente na sociedade da qual faz parte. No acesso a estas informações percebemos a busca dos educadores por estratégias pedagógicas que permitissem uma interação maior entre as gerações num diálogo, em âmbito escolar, que conduzisse ao rompimento com o preconceito existente entre o público jovem, pelo que eles nominam de um livro “velho”, no sentido de ter sido escrito há tempos e ser considerado clássico pelas instituições competentes, e o leitor mais experiente, de um livro “novo”, no sentido de ter sido escrito recentemente por um autor ainda não canonizado ou por ter se tornado um best-seller. 1 A obra de ficção e o jovem Este percorrer “pelas trilhas” literárias em busca de um texto imbuído de ideias que correspondam às expectativas adolescentes não constitui uma manifestação contemporânea, como podemos ver manifestado em trechos retirados de livros dedicados ao público jovem, publicados em épocas diferentes. Para ilustrar o afirmado acima temos os exemplos abaixo:
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LIVROS
Vem do corredor um rumor de passos. Clarissa esconde apressada o livro que está lendo. Olhos parados, fica imóvel, escutando. Os passos se afastam, morrem no fundo do corredor. Clarissa torna a abrir o livro. Um romance. Tem que ler às escondidas. A titia não gosta de livros que não sejam os do colégio. Diz que romances prejudicam a cabeça duma menina que estuda. O nome do livro é: A que morreu de amor... Está no quinto capítulo. (VERÍSSIMO, Érico. Clarissa, p. 87) Este fragmento pertence ao livro Clarissa, publicado em 1933, de Erico Verissimo.
LIVROS Decidi matar uma hora com leituras não relacionadas à escola. Eu tinha uma coleção de livros que vieram comigo para Forks, e o volume mais esfrangalhado era uma compilação das obras de Jane Austen. Escolhi este e fui para o quintal, pegando uma manta velha e puída no armário do alto da escada ao descer. (MEYER, Stephenie. Crepúsculo, p.114) Este fragmento pertence ao livro crepúsculo, de Stephenie Meyer, publicado em 2005.
Ambos os fragmentos tratam do assunto, que é bastante recorrente no cotidiano do jovem, ler o que a escola manda em detrimento de ler o que ele escolhe. Há que se atentar, porém, para o fato de que se não nos atermos na provável (e bastante discutida em eventos acadêmicos) manipulação da indústria cultural, que foca em vantagens financeiras com a citação de obras literárias canonizadas, porém rejeitadas pela maioria dos adolescentes, em textos que atraentes a um determinado público, há a possibilidade de por meio de uma narrativa em evidência apresentar ao leitor outra obra já sacralizada pela crítica e ampliar seu conhecimento literário. Também Santo Agostinho reflete a respeito das leituras obrigatórias na idade escolar no capítulo XII, Ódio ao estudo, do livro Confissões, “(...) eu não gostava dos estudos, e odiava que a eles me obrigassem. Contudo, era coagido e me faziam grande bem.” (p.41). No capítulo seguinte, Gosto pelo latim, ele explicita bem que não consegue explicar o motivo de odiar o estudo das letras gregas bem como pelas letras latinas
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“ensinadas pelos professores primários”, porém era apaixonado pelas letras latinas ensinadas pelos gramáticos com as quais, segundo ele, no decorrer de sua vida pode ler e escrever tudo o que quisesse e que eram por ele consideradas mais úteis do as que lhe eram impingidas pela escola, Nas quais era obrigado a decorar uns erros de um tal de Enéias, esquecido dos meus, e a chorar a morte de Dido, que se suicidou por amor; enquanto isso, eu miserabilíssimo, suportava a minha própria morte com olhos enxutos, morrendo para ti, ó meu Deus, minha vida! (SANTO AGOSTINHO, 2008, p.42)
Continuando sua linha de pensamento, Santo Agostinho suscita um questionamento ao qual o próprio filósofo responde citando a sua experiência com o aprendizado da leitura e gera uma reflexão a respeito das abordagens e metodologias educacionais no que se refere ao processo inicial do contato do leitor com uma literatura mais complexa a fim de ampliar seu saber literário. Santo Agostinho diz no Capítulo XIV, Aversão pelo grego: Por que então aborrecia eu a literatura grega, na qual se cantam tais coisas? Porque também Homero é mui habilidoso em tecer essas historietas, dulcíssimo na sua frivolidade, embora para mim, menino, fosse bem amargo. Creio que o mesmo ocorra com Virgilio para os meninos gregos obrigados a estudá-lo, como a mim com relação a Homero. Era a dificuldade de ter de aprender totalmente uma língua estranha que, como fel, aspergia de amargura todas as doçuras das fábulas gregas. (SANTO AGOSTINHO, 2008, p.44)
Observando atentamente o depoimento a seguir, dado pelo mesmo autor, é possível que se encontre em seus dizeres possibilidades de perspectivas, do ponto de vista educacional, em forma de diálogo e troca de experiências nas quais se ofereçam aos mais jovens a oportunidade de entrar em contato com textos mais complexos por abordagens proporcione-lhes um contato prazeroso com a leitura canônica. Diz ele: Eu não conhecia uma palavra daquela língua, e já me obrigavam com veemência, com crueldades e terríveis castigos, a aprendê-la. Na verdade, eu, ainda criança, também não conhecia nenhuma palavra de latim; contudo, com um pouco de atenção, o aprendi entre o carinho das amas, os gracejos dos que se riam e as alegrias dos que brincavam,
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sem medo algum nem tormento. Eu o aprendi, sem a pressão dos castigos, impelido unicamente por meu coração, desejoso de dar à luz seus sentimentos, e o único caminho para isso era aprender algumas palavras, não dos que as ensinavam, mas dos que falavam, em cujos ouvidos ia eu depositando quanto sentia. (SANTO AGOSTINHO, 2008, p.44)
Percebemos que esta citação, apesar da distância temporal e geográfica, é bastante similar à fala dos estudantes atuais e pode ser ouvida com vocábulos adequados contemporâneos em pátios escolares de qualquer parte do Brasil e do mundo. Esta similitude demonstra que, todo leitor iniciante (ou não) quer ter o direito de ler deleitando-se com um texto que lhe traz a representação de seus sentimentos e vivências além de um vocabulário acessível. Este fato preocupa educadores que buscam meios de oferecer a oportunidade de que uma leitura de textos menos complexos desperte no leitor a curiosidade cultural por textos mais elaborados. Alguns estudiosos como Roger Chartier (2011) acreditam na utilização, pela instituição escolar, de suportes midiáticos a que os discentes já estão acostumados, como forma de incentivo à aproximação do jovem leitor ao conhecimento cultural que a escola oferece. Essa ideia fica clara quando ele diz que: [...] É papel da escola incentivar a relação dos alunos com um patrimônio cultural cujos textos servem de base para pensar a relação consigo mesmo, com os outros e o mundo. É preciso tirar proveito das novas possibilidades do mundo eletrônico e ao mesmo tempo entender a lógica de outro tipo de produção escrita que traz ao leitor instrumentos para pensar e viver melhor. (CHARTIER, 2011)
Além da mediação midiática, há sugestões como a que propõe a utilização de textos com os quais o leitor se identifique para apresentar-lhes outros. Estas sugestões também oferecem a possibilidade de partir de um best-seller para um clássico, se os textos dialogarem e de alguma forma o leitor conseguir a identificação tanto com um como com o outro, esta experiência poderá fornecer-lhe uma oportunidade de expandir seus horizontes de forma prazerosa. Buscando embasamento para a fala anterior, por termos conhecimento da transitoriedade de uma narrativa considerada por grupos especializados como um texto
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de menor expressão dentro da estética literária considerada como alta, encontramos Jauss (1994, p.19-20) em determinado ponto de seu estudo sobre o formalismo, concluindo que o “espírito objetivo” das épocas homogêneas é repudiado como “especulação metafísica”, e segue seu pensamento citando Vítor Chklovski e Iúri Tynianov, que afirmam que: Em toda época existem simultaneamente várias escolas literárias, e uma delas representa o ápice canonizado da literatura; a canonização de uma forma literária conduz à sua automatização, provocando na camada inferior, a construção de novas formas, as quais conquistam o lugar das antigas, adquirem a dimensão de um fenômeno de massa e, por fim, são elas próprias compelidas de volta à periferia .(CHKLOVSKI, TYNIANOV, apud JAUSS, 1994, p.20-21) Observamos ainda que Jauss chama a atenção para o fato de que "a maneira como uma obra literária, no momento histórico de sua aparição, atende, supera, decepciona ou contraria as expectativas de seu público inicial oferece-nos claramente um critério de determinação de seu valor estético” (JAUSS, 1994, p.31). Segundo a estética da recepção, a distância existente entre a experiência estética já adquirida pelo leitor e a mudança desse conhecimento que se fez necessária perante a nova obra lida é o fator determinante do caráter artístico de uma obra literária (JAUSS, 1994). Embasados nas opiniões acima citadas quanto à recepção, buscamos a opinião de professores da rede estadual de educação do Paraná por meio de artigos publicados no site oficial da SEED como resultado de pesquisa e produção de material didáticopedagógico e aplicação em sala de aula. Para a nossa investigação e análise quanto às diversas formas de recepção de textos canônicos apresentados a alunos de escola pública, buscamos levantar, por meio de amostragem, quais eram as principais questões discutidas em duzentos artigos, resultado de trabalhos do PDE (Programa de Desenvolvimento Educacional) entre 2010 e 2012 de língua portuguesa e observamos que todos traziam a preocupação do professor com a recepção da leitura por seu aluno. De acordo com este levantamento, descobrimos que a maioria dos trabalhos foi voltada
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para a formação de leitores com a justificativa de que a leitura da maioria dos alunos não correspondia à série cursada pelos mesmos. Fica evidente nestes trabalhos, por meio da fala dos educadores que os alunos de um modo geral não gostam de ler, alguns pela dificuldade de decifrar os códigos linguísticos, outros por não aceitarem as sugestões da escola, como já foi tratado anteriormente neste trabalho, no que diz respeito à leitura dos clássicos. Para o entendimento desta questão buscamos junto aos alunos de uma escola pública, a sua versão a respeito do assunto. Em uma entrevista informal, durante uma aula de português no nono ano C, o consenso entre os vinte alunos presentes foi de que eles leem, porém não o que os professores querem que eles leiam. Constatamos, assim, que, de forma geral, é verdade quando dizem que leem. Em todo lugar que se vai tem sempre alguém lendo, até de pé em uma circular lotada foi constatada por nós a presença de uma jovem lendo. Porém, eles não gostam de ler o que a escola sugere. É como se houvesse uma rejeição para autoafirmação, pois este “não querer” começa no início da adolescência, em torno do 8º ano. A primeira reação identificada é a conhecida expressão: “não quero ler isso”, “livro de véio” (sic). É nesse momento que os professores, como mediadores dessa leitura, que é o objetivo da escola brasileira na área de línguas se deparam com uma realidade adversa aos seus anseios como colaborador da expansão cultural literária, que tem como objetivo formar um leitor competente. Para Tereza Colomer (2009) o significado de ser um leitor competente em nossa sociedade é desenvolver uma competência específica e possuir alguns conhecimentos determinados que tornem possível a interpretação no seio de uma cultura. Segundo ela: É a partir deste valor formativo que se pode afirmar que o objetivo da educação literária é, em primeiro lugar, o de contribuir para a formação da pessoa, uma formação que aparece ligada indissoluvelmente à construção da sociabilidade e realizada através da confrontação com textos que explicitam a forma em que as gerações anteriores e as contemporâneas abordaram a avaliação da atividade humana através da linguagem. (COLOMER, 2009, p. 31)
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Percebemos também que as expectativas quanto ao trabalho com leitura em sala de aula são normalmente frustradas, e as opiniões divulgadas pelos professores em relação à atividade de leitura demasiadamente insatisfatória de seus alunos são bastante similares independentemente da localização no estado. Além de nos depararmos com a preocupação dos professores, que já não pensam mais que se as bibliotecas estiverem com um bom acervo e se houver incentivo por parte dos professores de língua portuguesa para que os alunos as procurem, o número
de leitores aumentará,
observamos também que os professores passaram a aprimorar metodologias ou mesmo a criar seus próprios métodos a fim de concretizar a melhoria da leitura entre seus alunos, pois se descobriu que ler (decodificar os símbolos) eles sabiam, o grave problema, a reclamação unanime era a interpretação. Nas intervenções pedagógicas utilizadas nos projetos foram usadas todas as ferramentas possíveis e disponíveis em cada “escola-laboratório” pelo professor responsável. Do livro em suporte tradicional ao e-book, textos em prosa, poema, quadrinhos, imagens, pinturas clássicas, cinema teatro. Tudo foi tentado em prol da interpretação e da ampliação do conhecimento literário. Nesta busca notamos também um aumento na inserção das novas tecnologias como ferramenta de apoio à ampliação do conhecimento literário do aluno. Este aumento é tímido, vai se ampliando aos poucos, mas, de acordo com os textos pesquisados a escola está interagindo um pouco mais, com aumento gradativo a cada ano que passa com as ferramentas tecnológicas que já fazem parte do cotidiano da atual geração nas demais áreas da sociedade. A fim de observar, na prática, a reação de estudantes diante de um texto canônico apresentado por um suporte que não o tradicional, ainda que recorrêssemos a este com o intuito de comparar as linguagens próprias de cada um destes, optamos pela adaptação cinematográfica também visando perceber se o aluno da escola pública consegue por meio de adaptações em outras mídias, apreender o discurso inserido no texto e tecer considerações a respeito dos aspectos culturais e sociais ali representados. Esta apreensão, segundo o levantamento feito a partir dos artigos publicados pelos participantes do programa PDE, não vem ocorrendo a contento quando a oferta textual é feita no suporte tradicional impresso.
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Escolhemos o Morro dos ventos uivantes para aplicarmos em uma sala de aula regular, por ser sugestão apropriada para a série e também pelo motivo de ser citado por Janet Murray (2003) como precursor do cinema ao usar flashbacks complexos. A autora diz que “[...] Décadas antes da invenção da câmera cinematográfica, a prosa de ficção do século XIX começou a experimentar as técnicas dos filmes.” E afirma também que “podemos vislumbrar o cinema que estava por nascer nos complexos usos de flashback na obra de Emily Brontë.” (MURRAY, 2003, p. 42) O livro de Emily Brontë publicado em 1847 sob o pseudônimo de Ellis Bell causou polêmica na época. Porém, apesar de deixar o público leitor escandalizado na época, nunca deixou de ser publicado e lido. Atualmente voltou a ser lido por adolescentes influenciados pela personagem-leitora Bella, da série Crepúsculo. O livro narra a história de Cathy e Heathcliff, criados juntos em uma fazenda na Inglaterra e presas de uma paixão arrebatadora que ignora os limites da crueldade na tentativa de protegerem um ao outro diante dos que cruzam sentimentalmente seus caminhos. 2 A obra de ficção na sala de aula O estudo em questão foi realizado durante o primeiro semestre de dois mil e quatorze, com alunos da Escola Estadual Regente Feijó, em Doutor Camargo, interior do estado do Paraná. Na referida cidade não existe ensino privado e reúnem-se em uma mesma sala de aula alunos de diversas classes sociais, com valores sociais, crenças e culturas díspares. A heterogeneidade citada permitiu que percebêssemos diversos níveis de recepção em um mesmo ambiente facilitando assim a percepção da complexa situação em que se encontra o professor de escola pública como mediador de textos literários canônicos. Sem nos atermos demasiadamente ao fato de que, por se tratar de alunos de nono ano e com nível de proficiência em língua inglesa ainda insuficiente para a leitura do texto escolhido no original, utilizamos a tradução para o português, tanto no texto escrito quanto no filme. Consideramos necessário anotar que trabalhar com tradução causa certa insegurança, pois a adaptação de certas expressões idiomáticas da língua
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inglesa para a língua portuguesa nem sempre consegue reproduzir a verdadeira intencionalidade do texto original, porém, é uma maneira eficaz de apresentar aos alunos da escola pública uma parte das obras consideradas clássicas. Sendo a tradução utilizada compatível com as características próprias da turma iniciamos a apresentação do texto de Brontë partindo do livro Eclipse de Stephenie Meyer (2009), como recurso pedagógico. Seguimos os seguintes passos na apresentação do texto de Brontë: primeiramente mostramos de onde estávamos partindo (e eles já sabiam): um fragmento do livro Eclipse em que há um diálogo a respeito do livro O morro dos ventos uivantes. No trecho as personagens Bella e Edward dialogam a respeito do livro e Edward questiona o motivo de tanto interesse de Bella pela narrativa: – Com ou sem memória fotográfica, não entendo porque gosta dele. Os personagens são pessoas medonhas que arruínam a vida umas das outras. Não sei como Heathcliff e Cathy terminaram ao lado de casais como Romeu e Julieta ou Elizabeth Bennet e o Sr. Darcy. Não é uma história de amor, é uma história de ódio. (MEYER, 2007, p.30)
Seguindo com a leitura do fragmento escolhido, os alunos puderam entrar em contato, a partir da opinião de ambas as personagens, com a trama que viriam a conhecer em seguida. Dando continuidade, distribuímos fragmentos do livro de Brontë de forma que os alunos percebessem os acontecimentos de acordo com a ordem cronológica dos fatos. Em seguida, assistiram a adaptação televisiva do texto produzida pela ITV em 2009, sob a direção de Coky Gledroye e roteiro de Peter Bowker. Esta versão foi escolhida por entendermos que, se a adaptação do texto seria mostrada na TV pendrive, melhor uma adaptação para a TV do que para o cinema. Observamos durante as atividades propostas que do ponto de vista da turma, o vídeo equivale ao livro, pois foram acostumados desde pequenos a associar palavras com imagens, sendo que as últimas muitas vezes descrevem uma personagem, assim como num filme a fala e ou os gestos de outra deixa transparecer a verdadeira personalidade.
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Os estudantes fizeram as atividades propostas nas quais confrontaram as linguagens: a escrita e as imagens em movimento do cinema. Observaram também a fala, a música que faz a diferença nas cenas, idade das personagens, características (físicas e psicológicas), a visão das personagens principais pela perspectiva das outras personagens, características do lugar, época, como os acontecimentos históricos da época são explorados no filme, se os acontecimentos estão ou não em ordem cronológica entre outros questionamentos que surgiam durante a exibição da narrativa. Notamos que conforme a interpretação e reestruturação do enredo pelo ponto de vista do diretor e do roteirista, a inserção de cenas ou o corte de algumas, a mudança de um plano para outro ou mesmo o flashback produziam efeitos restritivos na recepção de alguns alunos, fato para o qual atentamos e focamos nossa busca. Percebemos aí, um processo de recepção conflituoso e abaixo do esperado para idade/série. Para poucos alunos, cujo meio familiar apresenta certa intimidade com o que se define como conhecimento literário pelas instituições competentes que regularizam o currículo da escola brasileira, a compreensão de textos se fez com mais propriedade. Considerações finais Com este trabalho foi possível observar o empenho dos educadores, que fazem uso de diversos recursos didáticos para que leituras canônicas não se tornem enfadonhas para o adolescente, embora tenhamos percebido também que apesar do esforço, muitas leituras não se concretizam a contento. Notamos também, observando pela perspectiva dos alunos participantes do estudo, que a busca por ampliação e melhoria tecnológica na instituição escolar é importante, de fato, para a inserção de toda a comunidade escolar no contexto digital, facilitando o acesso a várias fontes de pesquisas. Este acesso poderia colaborar com a aquisição de conhecimentos culturais diversos, sanando, em parte, a carência da base literária clássica, necessária para a aprendizagem literária proposta pelos currículos da escola brasileira atualmente. Referências
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BRONTË, Emily. O morro dos ventos uivantes. Trad. Guilherme da Silva Braga.Porto Alegre: L&PM, 2011. BOURDIEU, Pierre. O mercado dos bens simbólicos. In: A economia das trocas simbólicas, org. Sergio Miceli. 5º ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. CHARTIER, Roger. Entrevista: O especialista em história da leitura. Disponível em: acesso em 12/10/2014. COLOMER, Teresa. Andar entre livros A leitura literária na escola. Trad. Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2007. JAUSS, Hans Robert. Trad. Sérgio Tellaroli. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994. MEYER, Stephenie. Eclipse. Trad. Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009. ______. Crepúsculo. Trad. Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Intrínseca, 3. ed., 2009. MURRAY, Janet H. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. Trad. Elissa Khoury daher, Marcelo Fernandez Cuzziol. São Paulo: Itaú Cultural: UNESP, 2003. O morro dos ventos uivantes. Adaptação televisiva ITV. Com Tom Hardy e Charlotte Riley. Direção: Coky Gledroye e roteiro de Peter Bowker, 2009. PRODUÇÕES PDE disponível em: acesso em 25/08/2014 SANTO AGOSTINHO, Confissões. Trad. Alex Martins. São Paulo: Martin Claret, 2008. VERÍSSIMO, Erico. Clarissa. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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O LEVANTE CONTRA A COLÔNIA E O DESEJO DE SUPERAÇÃO DA REALIDADE COLONIAL EM POEMAS DE JOSÉ CRAVEIRINHA: UMA PERSPECTIVA PÓS-COLONIALISTA André Boniatti (UNIOESTE) 1.
Introdução
O presente artigo tem a intenção de discutir aspectos anticolonialistas referentes à obra de José Craveirinha, sob o olhar de escritores pós-colonialistas, como Homi K. Bhabha, Jean-Paul Sartre, Walter Mignolo, aqui destacados com veemência, embora não tão amplamente citados no corpo do texto. Contudo, é desses autores, principalmente, que brota a inquietude percorrida nas páginas seguintes, visto estas tentarem resgatar uma breve nesga no terreno da história afetiva, psicanalítica e sociológica da colonização em versos de nosso poeta de análise, enveredado na luta contra as brutalidades da imposição política e cultural, da aculturação, que inibe a liberdade de seu povo em Moçambique. Não é motivação deste texto trazer à tona a história política da terra natal do poeta, nem explicitar fatos históricos referentes aos acontecimentos nacionais e às lutas travadas; mas sim mostrar como a impressão desses acontecimentos se dá em Craveirinha e como ele reflete um significante afetivo da dor que imerge sua pátria. Qual a resposta que se suscita nele ao abuso colonizador e como ele universaliza, em sua voz, o desejo de muitos povos mestiços, que por séculos sofreram injusta opressão e dominação. Também é intento deste artigo demonstrar, mediante os poemas analisados e a bibliografia proposta, a agravante guerra travada entre esses dois opostos, colonizador/colonizado, como essa relação cria uma necessidade própria do desejo de identificação por que passam ambos em contato com o seu duplo. Sob essa ótica geral, tentaremos fazer análise, pois, principalmente dos poemas: “Aforismo”, pertinente aos seus “Poemas da Prisão”; “Grito negro” e “Poema do futuro cidadão”, ambos estes de seu primeiro livro, “Xibugo”, tentando traçar um olhar globalizante sobre a poesia de resistência do autor, fazendo-se crer em sua imarcescível
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universalidade e beleza para todos os povos, para reflexão da humanidade como somos hodiernamente, sem apagar as raízes de nossas nocivas e cruéis memórias.
2.
José Craveirinha: O levante contra a colônia e o desejo de superação da realidade colonial
Poeta de Moçambique, José Craveirinha é comumente evocado por seus compatriotas tal qual Camões o é em Portugal, tanto em razão de uma literatura genuinamente moçambicana, quanto pela luta que travou em favor da libertação de seu povo da colônia, pela emancipação de sua língua e de suas terras. Deveras, a luta anticolonialista está imbricada à sua poesia, sobretudo a seus primeiros dois livros publicados, respectivamente em 1964 e 19741, “Xibugo” e “Karingana ua karingana”. Nesses escritos, muito fortemente, junto aos ideais modernistas universais, a sua poesia abraça o linguajar nativo e busca conglomerar seu povo, mediante sua história íntima e a constante saudação às suas raízes, desde a África. Percebe-se, na leitura de seus poemas, o motivo aparente que o faz ícone de seu país, figura marcante e simbólica de sua literatura: a luta pela libertação da colônia o erige a uma poesia de traço característico moçambicano, exaltando o estado nacional e a valorização de seus costumes e heranças, bem como a negritude, execrada pelo estado colonial, auxiliando no construto de sua identidade. Assim, como dito, tal qual Camões marca linguística e culturalmente a pátria portuguesa, Craveirinha é aquele que trará propriedade à cultura literária de Moçambique, como afirmarão em admiração escritores do porte de Mia Couto2. E não só à cultura literária, pois a literatura foi forma de
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Período justamente entre o abrir e cessar fogo Moçambicano contra as forças portuguesas, sob o regime ditatorial salazarista. Deveras, desde 1964, a guerra finda em 1974 e Moçambique conquista sua independência em julho de 1975, após a Revolução dos cravos proclamar-se vitoriosa e destituir a ditadura, em abril do mesmo ano. 2
BRITO, Glória de. As vozes poéticas de José Craveirinha. Acessível em: http://www.pluralpluriel.org/index.php?option=com_content&view=article&id=242:as-vozes-poeticasde-jose-craveirinha&catid=75:nd-6-litteratures-africaines-de-langue-portugaise&Itemid=55. Acessado no dia 18 de Julho de 2014.
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expressão da angústia por que passava o povo frente às mazelas aflitivas do colonizador, trazendo à tona a luta pela liberdade. Dessa forma, insere-se o poeta de análise no contexto também político, que lhe legaria mais tarde a prisão, período de reclusão por que passa, mas que demarca um veio poético em sua obra de incontestável força, submergindo mais amplamente o estado por que passava todo o cidadão nativo de seu país: fica evidente nesses “Poemas da prisão”, de sua bibliografia tardia, como a luta política maculava seu povo. Contudo, também evidencia como o seu povo guardava força e esperança, como almejava ultrapassar aquele momento de perfídia e aculturação que os assolava. Dessa leva, surgirá o poema “Aforismo”, de mensagem rebelde e inconformada, que, no entanto, não se afirma apenas como mensagem direcionada, e sim como expressão poética, artística. O que se quer corroborar no anteriormente dito, na verdade, é que a poesia de José Craveirinha, embora constantemente de manifesto, não se desprende da literariedade. Funda-se, antes, como arte poética, arte literária. Quaisquer de seus versos parecem passar por um filtro de imagens sólidas e inebriantemente afetivas. Ora, muito mais profícuo que um artigo científico é a imersão no coração de seu povo para que se provoque, deverasmente, a “revolução”. Voltando ao “Aforismo”, os versos são os seguintes:
Havia uma formiga / compartilhando comigo o isolamento / e comendo juntos. // Estávamos iguais / com duas diferenças: // Não era interrogada / e por descuido podiam pisá-la. // Mas aos dois intencionalmente / podiam pôr-nos de rastos / mas não podiam / ajoelhar-nos.3
A comparação com a formiga, não somente no poema acima se encontra. Na obra “Karingana ua karingana”, lê-se ainda “Homem e formiga” (CRAVEIRINHA, 2010, p. 40), em que a comparação se dá no âmbito do trabalho e da parcela de cada um nesse processo de construção trabalhística. Nesse poema, ele avalia o estado de trabalho do homem como emergentemente condicionado à diferenciação capitalista, em que não há fraternidade, mas apenas noção de produtividade; em que as funções são distribuídas 3
CRAVEIRINHA, José. Aforismo. Acessível em: http://www.escritas.org/pt/poema/13383/aforismo. Acessado no dia 11 de Julho de 2014.
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de forma desigual e, obviamente, também o ganho. Sim, aqui a crítica sobrepõe-se ao sistema capitalista, pois, diferente dos homens, as formigas trabalham “silenciosamente / fraternalmente / sem complexos nem diplomas”, como uma verdadeira comunidade. No poema “Aforismo”, a metáfora da formiga, embora traga toda a carga do outro aqui citado, remete-se mais propriamente à sua condição na prisão. Comparandose a uma formiga, a primeira impressão que nos traz é de sua pequenez diante do sistema que lhe é imposto, mediante a força bruta. Essa pequenez, apenas nesse âmbito, o da utilização da violência como forma de dominação, é que se instaura. No poema anterior, a pequenez une todos os homens em trabalho, como iguais; aqui, diferencia-se o homem pela força bruta. Em seu prefácio a “Os condenados da Terra”, de Frantz Fanon (1979), Jean-Paul Sartre, dirigindo-se ao colonizador, falando sobre o “lócus enunciativo” de Fanon, esclarece-nos de forma terrível tais bestialidades colonizadoras. No seguinte trecho, a submissão pela força física nos parece justificável de modo inescrupuloso, entretanto fica evidente que não atinge sua real função:
Se resiste, os soldados atiram, é um homem morto; se cede, degradase, não é mais um homem; a vergonha e o temor vão fender-lhe o caráter, desintegrar-lhe a personalidade. A coisa é conduzida a toque de caixa, por peritos: não é de hoje que datam os serviços psicológicos. Nem a lavagem cerebral. E no entanto, malgrado tantos esforços, o objetivo não é atingido em parte nenhuma: no Congo, onde cortavam as mãos dos negros, nem em Angola onde, bem recentemente, furavam-se os lábios dos descontentes para os fechar com cadeados. E não afirmo que seja impossível converter um homem num animal; digo que não se chega a tanto sem o enfraquecer consideravelmente; as bordoadas não bastam, é necessário recorrer à desnutrição. (FANON, 1979, p. 09.)
Até esse ponto, o texto já se faz suficiente para se entender, de maneira revoltante, o absurdo da colonização. E, referente ao poema de Craveirinha, torna-se claro o que o poeta afirma: “podiam pôr-nos de rastos / mas não podiam / ajoelhar-nos”. Ora, conviviam ambos identicamente, formiga e homem. Duas diferenças distinguiam, contanto, a formiga do poeta: eles não podiam interrogá-la, enquanto a ele o faziam; e podiam pisá-la por descuido, a ele, deixa-se uma ambiguidade: ou não podiam pisá-lo, por ser consideravelmente maior que a formiga, ou não o faziam “por descuido”, mas intencionalmente, de modo que a opressão ganhe teor físico e brutal.
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A par das palavras de Sartre, todavia, ficam as últimas palavras do poema: pôlos de rastos, a violência, mas não ajoelhá-los, pois esta última palavra tem um teor quase sacro, senão inteiramente sacro. Ajoelhar refere-se a reverenciar. É algo que se faz por plena aceitação, sacralidade, em oração ou submissão. Se os joelhos fossem ao chão pela brutalidade do espancamento, mesmo assim o poeta recusa-se à submissão, à reverência diante dessa imposição colonial. O ajoelhar-se refere-se, no poema, a negarse, ainda, toda a cultura de sua pátria e as suas raízes culturais, sua negritude. Recusar sua própria pele, sua realidade inaceitável ao colonizador. Como disse Sartre no excerto de seu prefácio acima, o que se reafirma em Craveirinha, “o objetivo não é atingido em parte nenhuma”. Mesmo porque é ato assassino forjar o homem, de forma tão incongruente, a negar a própria verdade, a própria realidade. É impossível. E quantos anos seriam necessários para se compreender razoavelmente essa questão! Realmente, o poeta jamais se submeteria. Em “Grito negro” (CRAVEIRINHA, 2010, p. 15), poema de seu primeiro livro publicado, “Xibugo”, “ode” mais que conhecida, o libertário ascende-se contra a dominação, mostrando-lhe as bases e insurgindo dela própria para sua redenção, ou para a redenção de seu povo. “Eu sou carvão / E tu arrancas-me brutalmente do chão / E fazes-me tua minha / Patrão”. Assim inicia seus versos fazendo-nos clara a sua situação: O carvão representa o fogo sempre vivo, a força que move, a que não deixa o movimento extinguir-se. Pouco tem a metáfora com a cor da pele, mas com a brasa, com o fogo, com o movimento. O carvão é um instrumento de manutenção constante e de força arrebatadoura. Tal analogia refere-se, certamente, ao trabalho escravo. Ser a mina do patrão presentifica-se na exploração do colonizador, que precisa de um carvão para manter o trabalho vivo, precisa da mão-de-obra, que se faz escrava pela imposição. De outra mão, se não a escravidão em si, no sentido estritamente irrefletido acerca das condições de trabalho e exploração capitalista, mas a escravidão cultural, a submissão à cultura alheia, a aculturação. O colonizador quer que esse “carvão” mantenha viva a sua chama, ignorando a sua combustão íntima. Em virtude (ou desvirtualização) do abuso colonizador, Sartre expõe-se:
Esse personagem arrogante, enlouquecido por todo o seu poder e pelo medo de o perder, já não lembra realmente que foi um homem: julga-
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se uma chibata ou um fuzil; chegou a acreditar que a domesticação das “raças inferiores” se obtém através do condicionamento de seus reflexos. Negligencia a memória humana, as recordações indeléveis (...) (FANON, 1979, p. 11.)
A esse colono é que Craveirinha levanta seu grito negro, em posição de ódio. E ateste-se nas palavras acima que Sartre faz questão de frisar que essa convivência jamais seria pacífica, em virtude de duas nuances divisas: o colonizado, em face de reverter sua situação de moléstia; o colonizador, sob o aspecto do pavor que sente em tornar-se o seu contrário, ser colonizado. Talvez isso nem chegue a poder ser crível para ele: ser colonizado, pois em seu credo até mesmo a divindade se diferencia desse outro ser, seu duplo. É uma troca que se dá pela resistência, que dá existência aos grupos, comunidades; mas uma existência de guerra, em busca de supressão, um do outro, em razão de uma identidade compartilhada pela negação, — até à necessidade dessa relação:
não o eu e o outro, mas a alteridade do eu inscrita no palimpsesto perverso da identidade colonial. (...) existir é ser chamado à existência em relação a uma alteridade, seu olhar ou lócus. (...) É sempre em relação ao lugar do outro que o desejo colonial é articulado: o espaço fantasmático da posse, que nenhum sujeito pode ocupar sozinho ou de modo fixo e, portanto, permite o sonho da inversão dos papéis. (...) é uma imagem duplicadora, dissimuladora do ser em pelo menos dois lugares ao mesmo tempo, que torna impossível para o évolué desvalorizado, insaciável (um abandono neurótico, afirma Fanon) aceitar o convite do colonizador à identidade: “Você é um médico, escritor, um estudante, você é diferente, você é um de nós.” (BHABHA, 1998, p. 75 e 76.)
Como nos mostra Bhabha no excerto acima, essa resistência de ambas as partes ampara-se num liame indissociável, tenso em seu centro, inapagável pela própria necessidade que um cria da existência do outro. E isso provoca em ambas as partes um sentimento inexpugnável de defesa e combate, constantes. O colonizado em ataque, defendendo a liberdade de sua alma, pela livre manutenção de suas raízes e de seu progresso, de sua primitividade e emancipação. O colonizador em defesa, atacando em favor de sua segurança e proteção, em atitude de coerção e correção cultural, que nasce
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da postura arrogante de certa “classe” de homens sobre outra. Pois há homens que se julgaram por muito (e se julgam) melhores por certos atributos com que impõem sua diferenciação abusiva: cor da pele, condição financeira, localização geográfica etc.. Homens que se organizaram apoiados em tais absurdas crenças para “corrigir” outros homens, que a seu ver erram. Querem corrigi-los e mostrar-lhes o “seu” caminho, único válido para si. Praticando, assim, o etnocídio, como se fosse uma missão a ser cumprida, sob a alcunha de divina intervenção.
Aceita-se que o etnocídio é a supressão das diferenças culturais julgadas inferiores e más; é a aplicação de um princípio de identificação, de um projeto de redução do outro ao mesmo (o índio amazônico suprimido como outro e reduzido ao mesmo como cidadão brasileiro). ( CLASTRES, 2011, p. 83)
Tornar o colonizado um ser civilizado, eis no que creem. Suprimi-lo de sua condição de povo, tornando-o “outro em erro”, em retrocesso, (não “outro”, mas aquele a quem falta ser o mesmo, a quem falta civilidade), e mencionando como um bem aceitá-lo, como se precisasse ser aceito, como não existisse antes ou fosse menos (daí reduzi-lo, retirando-o de seu patamar e inserindo-o num contexto que não é o seu). Desta mão, resulta que esse ser não civilizado sob a imposição colonizadora torna-se um não ser, — mas que lhe é imposto ser: ser não sendo. Assim nos disserta Mignolo (2005) em “La idea de América Latina”:
En realidad, la conciencia criolla era más bien una doble conciencia: la de no ser o que se suponía que debían ser (es decir, europeos). Ese ser que es em verdad um no-ser es la marca de la colonialidad del ser. Los afrocriollos y los aborígenes no tienen esse problema. En su caso, la conciencia crítica surge de no ser considerados ni siquiera humanos.4 (MIGNOLO, 2005, p. 87)
Pois então o homem colonizado torna-se sempre aquele que deve tornar-se, nunca o que é. Ele é forjado a aderir ao outro, viver o mundo do outro, sem isso não 4
Na verdade, a consciência crioula era sim uma dupla consciência: a de não ser o que se supunha que deviam ser (quer dizer, europeus). Esse ser que é na verdade um não-ser é a marca da colonialidade do ser. Os afrodescendentes e os aborígenes não têm esse problema. Em seu caso, a consciência crítica surge de não ser considerados nem sequer humanos. (Tradução minha).
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existe, torna-se periférico e, até mesmo, inumano, como é dito dos afrodescendentes e aborígenes. A partir dos textos acima, temos a denúncia de uma realidade abusiva, que submete as culturas de outrem a uma subcategoria — frente à imposição de uma cultura superior que as quer devorar —, categorizada sempre sob a égide de erro ou do pecado. Walter Mignolo, pois está sob lócus enunciativo latino-americano, demonstra um novo tipo de “cidadão”, um homem que não pode ser, que para ser paira entre duas realidades: a sua e a do seu opositor, que impõe sua insígnia de superioridade. Tendo de remontar-se num terceiro espaço, nunca bem definido; um entre-lugar, tal qual o define Silviano Santiago (2000), que pertence ao homem colonizado. Mas àquele afrodescendente, após se ter abolido a sua situação de escravo, aparentemente, a sua submissão à cultura “branca” foi irredutível (até os dias de hoje). Não deixou de ser, afora a militância, “ni siquiera humanos”. Talvez se acreditasse que a quebra com a colônia seria, pois, uma forma de libertação de tais amarras, conquanto não se previsse que essa submissão estava arraigada à vivência e mentalidade de todos. Porque havia uma necessidade de “descolonização do pensamento”, da alma, não apenas das amarras políticas. Dessa forma, quando o afrodescendente passa à suposta liberdade, encontra-se deformado em relação a ela, é um estranho dela (pois a liberdade é praticada também como um atributo branco-cristão, e nesse reduto se fecha) e tem de camuflar sua realidade em face da inaceitação. E a luta por liberdade invalida-se, já que não poderá exercê-la, mediante a supressão cultural que sofre. Daí que a existência de um faz-se necessária à afirmação da existência do outro, entre-ligando-os: “Eu sou carvão! / E tu acendes-me, patrão”. Ora, nesses versos Craveirinha afirma pelo coração o que acima é teorizado pela pesquisa, já que é o próprio “patrão” que mantém viva a brasa do “carvão” (carvão: eu lírico, afrodescendente, moçambicano); carvão este que se mantém aceso tanto pelo pleno funcionamento da civilização branca, quanto pela combustão íntima, o desejo de superação, de inversão: “É sempre em relação ao lugar do outro que o desejo colonial é articulado: o espaço fantasmático da posse, que nenhum sujeito pode ocupar sozinho ou de modo fixo e, portanto, permite o sonho da inversão dos papéis” (BHABHA, 1998, p.76). Daí que, logo após dizer que o “patrão” o acende, o eu lírico do “Grito negro” brada: “Para te servir eternamente de força motriz / mas eternamente não / Patrão!” E então, perante a negação à subserviência, Craveirinha clama a persistência e a bravura do homem colonizado, que deve “Arder até às cinzas da
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maldição / (...) Até não ser mais tua mina / Patrão!” Ou seja, esgotar a resistência social imiscuindo-se e inflamando tal que a inversão se dê, pela imposição novamente, talvez em face do que proclama Sartre em seu prefácio já citado: “nenhuma suavidade apagará as marcas da violência; só a violência é que pode destruí-las” (FANON, 1979, p. 14). Enfim, o poeta encerra o seu grito, como prenúncio não de paz, deixando clara a sua posição: “Sim! / Eu serei o teu carvão / Patrão!” Entretanto, com essa sentença encerra, além do mais, uma veia utópica muito mais pacífica dentro dele, mas que nasce deveras utópica, como um sonho que depende da destruição para concretizar-se, niislista. Ainda na mesma obra, “Xibugo”, ele inscreve o “Poema do futuro cidadão”, em que assume a esperança do fim dessa guerra entravada:
Vim de qualquer parte / de uma nação que ainda não existe. / Vim e estou aqui! // Não nasci nem eu / nem tu nem outro... / mas irmão. / Mas / tenho amor para dar às mãos cheias. / Amor do que sou / e mais nada. // E / tenho no coração / gritos que não são meus somente / porque venho de um país que ainda não existe. // Ah! Tenho meu Amor a todos para dar / do que sou. / Eu! / Homem qualquer / cidadão de uma Nação que ainda não existe. (CRAVEIRINHA, 2010, p. 19)
O eu lírico supõe-se uma alma de outro tempo, nesse poema. Ora, alguém que não tem nação, porque sua nação ainda há de formar-se. Refletem-se em tais versos um desejo de emancipação tanto do contexto político em que vive, quanto na esperança utópica, de homens gerais, de uma Nação universal. Que só pode ocorrer diante da aceitação, do Amor, entre a humanidade. Em se considerar todos realmente iguais. Homens que possam expressar sua liberdade (“Amor do que sou / e nada mais.”), que sejam a si próprios e convivam harmoniosamente. Só desse modo a guerra finda e se convive em paz, aceitando-se mutuamente como iguais homens brancos e afrodescendentes, extinguindo-se desde o pensamento o racismo, o preconceito, o que conceitua em nosso íntimo um modelo superior... Mas talvez isso tenha que se dar pela violência, pela destruição, como prediz Sartre e rebate o poeta: “Arder vivo como alcatrão, meu irmão” (CRAVEIRINHA, 2010, p. 15). Talvez se preveja uma grande explosão, que pelo bem há de proclamar-se, em todo lugar. Fato é que a poesia de Craveirinha passeia pelo coração de muitos e prenuncia de alguma
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forma, a nós todos, uma reviravolta na história, um momento x, decisivo, um momento de se colocarem frente a frente os homens, levado às últimas consequências. No entanto, enquanto o espírito do poeta não concretiza o sonho e torna-o realidade, permaneceremos “Homem qualquer / cidadão de uma Nação que ainda não existe”.
3.
Conclusão
Deveras, a coincidência entre os excertos escolhidos das obras aqui citadas com a poesia de José Craveirinha é indiscutível e poderia ser ampliada em muito. Afora seu lado amoroso, a poesia lírica, sua verve social representa um grito contra a atrocidade promovida por séculos pela imposição de raças sobre outras raças, de credos sobre outros credos, de políticas coercitivas abusivas sobre o homem nativo de diversas nações... Lembrando que Craveirinha seja antes poeta, que político, e por isso sua poesia nos alcança com teor de eternidade, entretanto a denúncia é latente e a preocupação com o fim desse ranço colonizador ainda há de durar mais alguns séculos, talvez. Mas talvez, frente a tão grandes brados de revolta, tal ranço esteja pendendo à dizimação. Talvez a sociedade — pelo coração, afetivamente, como o quer o intuito poético — esteja dobrando-se para a consciência, entendendo que tais mazelas não hão de perdurar no pensamento, descolonizando-o. Esse ser ignorado, o afrodescendente, o aborígene, o colonizado... hoje, entendese que não é minoria. E talvez se entenda ainda, com os avanços da antropologia e da sociologia, que a história cultural dos povos deve ser respeitada, não repreendida. Que quaisquer povos têm o direito de viver sua liberdade enquanto grupo, comunidade. De exercer sua religião, de cantar suas canções populares, sem repúdio, sem coerção, sem necessidade de correções. Talvez o presente artigo aclare essas proposições, bem como abra portas a um aprofundamento na leitura da bibliografia exposta e do poeta de análise, sumidade em se tratando de assuntos anticoloniais... bem como de assuntos de poesia.
Referências
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Acessível
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http://www.escritas.org/pt/poema/13383/aforismo. Acessado no dia 11 de Julho de 2014. FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. MIGNOLO, Walter D. La Idea de América Latina. Barcelona (Espanha): Editorial Gedisa, 2005. SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso Latino-Americano. In: Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
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PROCEDIMENTOS INTERTEXTUAIS NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS André Vinícius Pessôa (UERJ)1 O crítico literário Alfredo Bosi, no ensaio “Brás Cubas em três versões” (2006), afirmou que a crítica machadiana, ao estudar o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, tem se guiado por três principais registros. O intertexto, a partir da apropriação de Machado da “forma livre” de Lawrence Sterne, inserida na tradição da sátira menipeia2; a leitura existencial, centrada na figura do humorista melancólico que se autoanalisa; e a crítica sociológica, que tem como foco o tipo social de Brás e o contexto do Brasil Império3. Bosi, no entanto, ressalta que nenhuma interpretação é suficiente para captar a densidade do olhar machadiano. Trataremos aqui da primeira vertente mencionada pelo crítico – a intertextualidade – em estudos recentes de autores que tratam do tema na obra de Machado, e mais precisamente na composição de Memórias Póstumas de Brás Cubas: o ensaio do próprio Bosi, que apresenta traços panorâmicos; Alusão e Zombaria: Citações e Referências da Ficção de Machado de Assis (2008) e O olhar oblíquo do bruxo: ensaios machadianos (2008a)4, de Marta de Senna; e Machado de Assis: por uma 1
Vinculado à Pesquisa de Pós-Doutorado “Machado de Assis: edições originais dos livros de contos e fortuna crítica recente” pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, coordenada pelo Prof. Roberto Acízelo Quelha de Souza, com Bolsa de Apoio da FAPERJ. 2 “A sátira menipeia tem sua origem em Marco Terêncio Varrão (116 a 27 a.C.) com Saturae Menippeae: o adjetivo menipeia provém de Menipo, filósofo da escola dos cínicos, a qual desprezava as convenções sociais e as riquezas, obedecendo exclusivamente às leis da natureza. A etimologia de cínico se prende a ‘kýon’, cão, um possível epíteto de Diógenes, integrante da escola cínica de comportamento extravagante. Menipo de Gadara viveu no século III a.C. e escreveu muito, mas nada nos chegou. Entretanto, Varrão o assimilou e nos dá uma ideia dos escritos daquele filósofo através de sua obra Saturae Menippeae” (Silva, Amós Coelho da.) In: “O Alienista e a sátira clássica antiga”. Disponível em: http://www.filologia.org.br/revista/artigo/10(29)03.htm. Acesso em 28 ago. 2014. 3 Alfredo Bosi, em “Machado de Assis na encruzilhada dos caminhos da crítica”, texto de uma conferência que proferiu no encontro “Machado de Assis: balanço e perspectivas de um centenário”, em 31 de agosto de 2009, reconheceu uma quarta força crítica a partir dos estudos de Hélio de Seixas Guimarães sobre a recepção da obra machadiana no século XIX, reunidos no livro Os leitores de Machado de Assis – O romance machadiano e o público de literatura no Século 19 (2004). A essa quarta dimensão, que inclui tanto os estudos de recepção atual da obra de Machado quanto a investigação sobre a sua fortuna crítica, Bosi chamou de transitiva ou relacional. 4 Na sua 2ª edição, revista e modificada.
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poética da emulação (2013), de João Cezar de Castro Rocha. São trabalhos que fornecem uma boa visualização do tema que passo a apresentar em linhas breves. A intertextualidade na obra de Machado de Assis é um fator estrutural nas suas composições, por isso mesmo ocupa um lugar privilegiado na fortuna crítica do escritor. A pesquisa intertextual machadiana, anterior ao conceito formulado por Julia Kristeva em 1966, no qual “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e citação de outro texto” (KRISTEVA apud COMPAGNON, 2006, p. 111), começou em 1939 com Eugênio Gomes, que escreveu o estudo Influências inglesas em Machado de Assis5. Dez anos após essa pioneira publicação, o mesmo autor, em Espelho contra espelho, retomou sua pesquisa e a ampliou ao relacionar Machado com o escritor francês Victor Hugo6. O trabalho de Eugênio Gomes, fiel à sua época, se valia dos parâmetros de “fonte” e “influência”, que mais tarde, na teoria e na crítica literária, viriam a ser substituídos por “intertextualidade”. Alfredo Bosi, ao se referir à intertextualidade em Machado desvendada pela tradição crítica, ressalta panoramicamente a linhagem que se ateve a um olhar formal sobre a obra do escritor. A visada do crítico traz à cena considerações de José Guilherme Merquior que, em “Gênero e estilo das Memórias Póstumas de Brás Cubas”, viu na composição do romance os traços formais e psicológicos da menipeia, tais como: “mistura do sério e do cômico, liberdades em relação à verossimilhança, preferência por estados de espírito aberrantes e, fundamentalmente, o gosto de intercalar subgêneros que vão do fragmento puramente anedótico ao mais inesperado excurso digressivo” (BOSI, 2006, p. 23); e Enylton de Sá Rego que, em O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica, entre outras considerações, compara procedimentos retóricos de Machado com os encontrados nas obras satíricas de Luciano de Samóstata, escritor sírio do Séc. II d.C. Finalmente, em sua breve exposição, Bosi passa a transcrever uma parte do ensaio de Sérgio Paulo Rouanet, “The Shandean form: Laurence Sterne and Machado de Assis” (2004)7, que apresenta uma multiplicidade de 5
Otto Maria Carpeaux, na Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira, o tem como o “primeiro estudo sério de literatura comparada aplicada a Machado de Assis” (CARPEAUX apud SENNA, 2008a, p. 13). 6 Um estudo recente sobre o tema encontra-se em Rimas de ouro e sandalo: ̂ a presenç a de Victor Hugo nas crônicas de Machado de Assis, livro de Daniela Mantarro Callipo (2010). 7 Traduzido pelo próprio Bosi.
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similitudes procedimentais entre as obras de Machado e Sterne, relacionadas em quatro tópicos: “a presença enfática do narrador; a técnica da composição livre, que dá ao texto a sua fisionomia digressiva e fragmentária; o uso arbitrário do tempo; a interpenetração de riso e melancolia” (2006, p. 24). A presença enfática do narrador, ou a “hipertrofia da subjetividade”, destacada por Bosi, que Roberto Schwarz em Um mestre na periferia do Capitalismo (1990) chamou de “volubilidade”, é compreendida por Rouanet como um traço estrutural de Memórias Póstumas de Brás Cubas. No romance Tristram Shandy, o narrador de Sterne apresenta a mesma volubilidade de Brás Cubas, ainda acompanhada de uma certa arrogância. Para Rouanet, a obra do escritor inglês, modelar para a narrativa machadiana, se constituiu no protótipo de todos os romances volúveis. A ideia de filiação se explicita na comparação entre as duas obras a partir de seus narradores. Ambos se pautam por exposições demasiado sinuosas. Se Tristram “disserta sobre todas as coisas” (2006, p, 24), o ensaísta observa que do mesmo modo Brás Cubas “exprime a sua opinião sobre tudo” (2006, p. 25). Seguindo o fluxo de diversas pesquisas que pautaram a intertextualidade na obra de Machado de Assis desde o pioneirismo de Eugênio Gomes, Marta de Senna, ensaísta e pesquisadora do Centro de Pesquisa da Fundação Casa de Rui Barbosa, situado no Rio de Janeiro, recentemente disponibilizou uma base de dados na internet8 que permite a localização de um sem-número de citações e alusões histórico-literárias identificadas na obra do escritor fluminense. Trata-se de um instrumento de pesquisa que possibilita que sejam acessados imediatamente os autores citados por Machado, assim como as obras mencionadas, os fatos históricos, as personagens e os lugares nomeados ou a que se faz alusão. Também o site possibilita identificar referências de fontes anônimas, como provérbios, ditados e adágios, além de criações coletivas, como a Bíblia, a Mitologia Clássica e a História. Senna lembra que são mais de dois mil registros de citações e alusões a serem consultadas, mas adverte que (...) a simples enumeração de autores ou obras citados é um exercício estéril. O interessante é, uma vez identificadas as referências, tentar compreender o uso que delas faz o autor, de que maneira as faz render 8
No site www.machadodeassis.net.
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este ou aquele resultado, com que habilidade as põe de serviço de sua própria obra (2008a, p. 130).
Em Alusão e Zombaria: Citações e Referências da Ficção de Machado de Assis, livro centrado na questão da intertextualidade, Marta de Senna afirma que o intertexto em Machado revela um “universo temático, cronológico e geográfico de magnitude sem precedentes (e sem sucessores) na literatura brasileira” (2008, p. 11). A quantidade de citações e referências ao longo da obra do escritor, que incide não apenas nos seus romances e contos, mas também nas suas crônicas e na dramaturgia, dá a indicação imediata de que Machado era fundamentalmente um leitor voraz e exemplar. A lista de referências intertextuais é infindável: a Bíblia – Antigo e Novo Testamento, Shakespeare, Homero, Camões, Voltaire, Platão, Byron, Milton, Plutarco, Diógenes, Dante, Molière, Hugo, Pascal, Virgílio, Garrett, Sá de Miranda, só para mencionar alguns poucos, entre tantos outros, incontáveis até. Nunca gratuitas, as citações, que poderiam passar por meros artifícios de um escritor de origem humilde que pretendia se afirmar no ambiente literário de sua época, na verdade sempre assumiram um caráter funcional nas suas narrativas, “servindo ora à caracterização de uma personagem, ora à estratégia do narrador, ora à própria estruturação da obra, ora a um propósito extratextual, ora à sugestão de uma atmosfera” (2008a, p. 131). Dada não apenas a sua incidência como também sua importância, o intertexto exerceu um papel fundamental na estruturação da obra machadiana, principalmente na fase madura do escritor, interferindo diretamente nos enredos e na construção das personagens. A obra mais frequentemente citada na obra de Machado é a Bíblia, que “serve aos mais diferentes propósitos, e ela pode mesmo ser evocada para trazer ao texto certo lirismo, com que Machado vez por outra atenua a impiedade cética dominante em seus escritos” (SENNA, 2008, p. 47). Nos romances iniciais, as alusões e citações bíblicas aparecem como um procedimento discreto e pontual, mas em Memórias Póstumas de Brás Cubas e nas obras subsequentes, nas quais o narrador onisciente dá lugar a outras modalidades narrativas, as Escrituras sofrem um processo de dessacralização, com a aplicação de passagens bíblicas a situações profanas, estratégia que, dentre outras, Roberto Schwarz assinalou como uma desfaçatez do narrador machadiano. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo, as passagens são relacionadas a
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situações comezinhas – de zombaria 9 – em contextos espúrios ou moralmente suspeitos. A “pena galhofeira” (2008, p. 39) do livro, de seu “narrador tão versátil quanto frívolo” (2008, p. 38), assim como procede nas passagens bíblicas, quando se serve de alusões à mitologia e à literatura clássica10 também subtrai dessas referências toda e qualquer aura de solenidade. Não apenas a Bíblia e os antigos gregos sofrem tal deslocamento valorativo na voz do narrador machadiano. Senna mostra que “nem mesmo Dante é imune a essa espécie de nivelamento por baixo, a que Brás submete, quase sem exceção, os autores que cita”11 (2008, p. 37), e tampouco o cultuado Shakespeare escapa a esse processo de rebaixamento, concernente às “estratégias do autor na construção de seu narrador imprudente e debochado” (2008, p. 36)12. Senna, em seus estudos, visualizou em Machado um eminente leitor da tradição, referenciando a biblioteca do bruxo do Cosme Velho como ponto de partida e ferramenta indispensável para a composição de seus textos. Mesmo ciente de que os esforços de pesquisa nessa direção não necessariamente provam que o escritor teria efetivamente lido os títulos que possuía em casa, esses pelo menos fornecem algumas indicações que se ajustam com as passagens citadas e aludidas na sua obra. Além da biblioteca de Machado, disponível em inventário realizado pelo biógrafo Jean Michel 9
Alguns exemplos trazidos por Marta de Senna são bastante ilustrativos. No capítulo 1 de Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Moisés, que contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco” (ASSIS apud SENNA, 2008, p. 30). “No título e no corpo do capítulo 33, (o narrador) usa a expressão repetida anaforicamente por São Mateus no Sermão da Montanha (5:3-12), para anunciar o convívio com Eugênia no Alto da Tijuca: ‘Bem-aventurados os que não descem’” (SENNA, 2008, p. 33). No capítulo 35: “Ora, aconteceu que, oito dias depois, como eu estivesse no caminho de Damasco, ouvi uma voz misteriosa que sussurrou as palavras da Escritura ( Act. X, 7): ‘Levanta-te e entra na cidade.’ Essa voz saía de mim mesmo, e tinha duas origens: a piedade, que me desarmava diante da candura da pequena, e o terror de vir a amar deveras, e desposá-la. Uma mulher coxa!” (ASSIS apud SENNA, 2008, p. 34). 10 “No capítulo 34, ‘A Uma Alma Sensível’, o narrador se dirige ao leitor que o estaria considerando cínico por causa de sua atitude para com Eugênia, a quem já chamara, no capítulo anterior, ‘minha Vênus manca’. Agora, fazendo jus ao adjetivo, e exacerbando o cinismo a um nível quase insuportável, por meio de um trocadilho cruel, pergunta: ‘Eu cínico, alma sensível? Pela coxa de Diana!’” (SENNA, 2008, p. 35). 11 “Diz Brás Cubas: ‘Um livro perdeu Francisca; cá foi a valsa que nos perdeu’. Virgília, já casada com Lobo Neves, dança com Brás num baile, e os dois são como que incendiados pela sensualidade da valsa. Repare na diferença: na obra de Dante, os amantes deixam-se empolgar por um beijo quase casto e são por causa disso condenados à danação eterna. Aqui, Virgília e Brás começam a sua aventura adúltera, que será vivida impunemente” (SENNA, 2008, ps. 37-38). 12 “Diante da dúvida se devia ou não aceitar ir como secretário de Lobo Neves na presidência de uma província, para poder continuar o seu affair com Virgília, Brás evoca a mais famosa frase de Hamlet, aviltando-a: ‘Era o caso de Hamlet; ou dobrar-me à fortuna, ou lutar com ela e subjugá-la. Por outros termos: embarcar ou não embarcar: esta era a questão’” (SENNA, 2008, p. 37).
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Massa13, a ensaísta, na introdução de seu livro O olhar oblíquo do bruxo: ensaios machadianos, se baseia também no fato de que o escritor “era freqüentador assíduo das melhores bibliotecas públicas do Rio de Janeiro de seu tempo: a Biblioteca Nacional e o Real Gabinete Português de Leitura” (2008a, p. 11). Ressalta-se, a partir da pesquisa de Senna, o mundo de Machado, o seu ambiente, os livros de sua biblioteca e outros, que o escritor buscou nas bibliotecas públicas, todos que presumidamente nortearam sua intenção de permear as narrativas com alusões e passagens lapidares encontradas nas fontes da tradição literária e filosófica. Nesse sentido, é necessária também a cumplicidade do leitor machadiano, que se vê obrigatoriamente familiarizado com as referências apontadas nas obras. Consequentemente, nesse contexto, presume-se uma valorização do ato de ler, que deixa de ser mero passatempo de figuras da alta sociedade para receber de Machado um grau de erudição sem precedentes na história da literatura brasileira. “Machado supõe no leitor um parceiro de jogo à altura de sua cultura literária, um leitor que compartilhe com ele a sua enciclopédia” (2008, p. 22), afirmou Senna. No ensaio “Sterne e Machado: o pacto com o leitor”, publicado no livro O olhar oblíquo do bruxo: ensaios machadianos, Senna se refere à “tendência de todo romancista criar uma espécie de segundo ‘eu’, o leitor, a quem imagina como receptor ideal de sua mensagem” (2008a, p. 31). Esse leitor, direta ou indiretamente, é levado pelo autor a ler de determinadas maneiras, sendo assim conduzido sem resistência a pontos de vista pré-fixados. “Tal leitor é mais uma entre as várias invenções do romancista, é uma entidade tão ficcional quanto qualquer personagem” (2008a, p. 31), diz Senna. Sterne, em Tristram Shandy, fornece uma eficaz receita de complacência para com o leitor: “o respeito mais verdadeiro que podeis mostrar pelo entendimento do leitor será dividir amigavelmente a tarefa com ele, deixando-o imaginar, por sua vez, tanto quanto imaginais vós mesmos” (STERNE apud SENNA, 2008a, p. 32). O escritor, com isso, lança mão de uma retórica que visa obter uma determinada atenção do leitor
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O trabalho pioneiro de Jean Michel Massa, originalmente redigido em francês na Revista do Livro, em 1961, foi republicado na íntegra em A Biblioteca de Machado de Assis, livro organizado pelo professor da UERJ e crítico literário José Luiz Jobim (2001).
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para que ele possa acionar sua imaginação criativa. Necessário, contudo, uma cooperação do leitor com o autor para o bom entendimento da obra. Escreveu Senna: Sterne valoriza a relação entre o seu texto e o do leitor, entre o narrador e o público e, por isso cria uma espécie de pacto entre um knowing consumer of novels, este um leitor privilegiado, capaz de discernir todas (?) as possibilidades de interpretação a que os romances dão margem (2008a, p. 33).
O leitor de Sterne, o knowing reader, é o “que aprende a decifrar o texto porque se torna comparsa de um narrador extremamente hábil” (2008a, p. 33). Para a ensaísta, através da proximidade estabelecida entre o texto e a sua recepção, a relação sentimental mais valiosa que se constrói em Tristram Shandy é justamente entre o narrador benevolente e o leitor sapiente. E em Machado, a partir de Sterne, a pergunta imediata que se faz é: como o escritor fluminense estabelece em Memórias Póstumas de Brás Cubas o pacto entre o narrador – o defunto autor – e o leitor? Senna fornece um caminho para a resposta: Logo no prólogo “Ao leitor”, dirá o narrador que terá, talvez, não mais que cinco leitores (tópico a que volta no capítulo 34, “A uma alma sensível”). A estes se dirige. Destes, seletíssimos, espera que lhe percebam “as rabugens de pessimismo”, que, dissimulado, alega não saber se meteu ou não na obra (2008a, p. 37).
A primeira grande mensagem do livro de Machado é que o leitor deve ser especialmente apurado para entendê-lo. Machado insta esse leitor raro a contribuir na (e para a) obra, num processo incansável de sedução ou mesmo uma exortação implacável 14
. A projeção de Sterne na obra de Machado, a partir de Tristram Shandy, que
inspirou a composição do texto de Memórias Póstumas de Brás Cubas, foi bastante visitada pelos críticos. Senna, ao estudá-la, indicou diversos processos intertextuais 14
Alguns exemplos destacados por Marta de Senna, entre tantos na narrativa machadiana: “Vou exporlhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo” (cap. 1) (2008a, p. 37); “Decida o leitor entre o militar e o cônego” (cap. 2) (2008a, p. 37); “Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas” (cap. 7) (2008a, p. 38). “Se o leitor não é dado à contemplação desses fenômenos mentais, pode saltar o capítulo, vá direto à narração” (2008a, p. 38).
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interferentes na técnica narrativa do escritor fluminense. Sobre as relações entre os textos de Sterne e Machado, a ensaísta afirmou que “em ambos, sob a capa do humor e do inverossímil, é possível ler uma inteligente crítica social e ideológica aos costumes e às filosofias que lhe são contemporâneas” (2008, p. 30). Ao sinalizarem sua condição existencial numa realidade multifacetada e aberta, as obras fundamentam a si mesmas como manifestações genuinamente processuais na sua inserção num mundo em permanente diálogo. As ideias de “fonte” ou “influência” literária, substituídas historicamente pelo conceito amplo de intertextualidade, que vimos servir de pano de fundo aos ensaios de Marta de Senna, se veem agora no campo da crítica machadiana diante de uma nova hipótese no livro Machado de Assis: por uma poética da emulação (2013). O trabalho do professor de Literatura Comparada da UERJ, João Cezar de Castro Rocha, propõe uma novidade crítica ao reconhecer no escritor a figura de um emulador. Se a técnica da imitatio, entre os antigos romanos e no Renascimento, consistia em imitar o estilo de um escritor ou artista para engendrar uma nova obra de arte, a aemulatio, por sua vez, a partir de tal obra “imitada”, sem perder de vista a referência do modelo original, objetivava superar o seu exemplo. Tendo como foco a disposição procedimental de Machado, tomando-o pela sua própria autodefinição como um “autor-operário”, Rocha recupera os parâmetros da antiga prática da aemulatio e a atualiza, forjando o conceito de “poética da emulação”, nome para o esforço anacrônico do escritor que propiciou novos rumos para as suas narrativas. Machado teria praticado a poética da emulação não apenas com a apropriação de um determinado conjunto da tradição literária em Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas a partir da liberdade inovadora e a irreverência libertadora com que foi realizada a obra. O empréstimo de uma renovada técnica de composição fez parte da estratégia definitiva que colocou Machado numa posição de destaque que nunca tivera antes. Passou a ser o escritor que hoje conhecemos como universal. Como mais tarde afirmou o crítico Augusto Meyer, o antes acanhado “Machadinho” finalmente se transforma no potente “Machadão”15.
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In: MEYER, Augusto. “De Machadinho a Brás Cubas”. Revista do Livro, Rio de Janeiro, v.3, n. 11, set.1958, p. 9-18.
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A intertextualidade em Machado de Assis, estudada pela atual fortuna crítica de sua obra, encontra dois tópicos privilegiados para o desenvolvimento de ideias a respeito da pertinente prática machadiana: o procedimento do autor e o diálogo com o leitor. O procedimento do autor, apresentado brevemente por Bosi, explicitado nas leituras críticas que privilegiaram métodos formais, e investigado mais detalhadamente a partir de intercâmbios textuais por Marta de Senna, ganha novos contornos com a hipótese de João Cezar de Castro Rocha, a de que Machado revolucionou sua escrita ao realizar plenamente na sua fase madura a poética da emulação. O diálogo com o leitor, por sua vez, revigora processos intertextuais e dialógicos ao visualizar o panorama do mundo narrado com os mundos aludidos e citados, pressupondo ainda outros mundos, aqueles que só o leitor-cúmplice do narrador machadiano é capaz de trazer não apenas do seu conhecimento da tradição e da sua memória de leituras, mas no modo de se relacionar com as narrativas e com a perspectiva numerosa e fragmentária de alusões e citações, essa que se mostra tão antiga quanto contemporânea na atual sociedade em rede. Referências ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Prefácio de Abel Barros Baptista. São Paulo: Globo, 2008. BOSI, Alfredo. Brás Cubas em três versões: estudos machadianos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: UFMG, 2006. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: O Romance Machadiano e o Público de Literatura no Século 19. São Paulo: Nankin/Edusp, 2012. GUIMARÃES, Hélio de Seixas; SENNA, Marta de (Org.). Machado de Assis e o outro: diálogos possíveis. Rio de Janeiro: Móbile, 2012. JOBIM, José Luís. (Org.) A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Topbooks/Academia Brasileira de Letras, 2001.
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JOSÉ SARAMAGO: A (RE)CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA E AS RELAÇÕES INTERARTES Andresa Fabiana B. Guimarães (USP) 1. A (re)construção da memória e o estilo saramaguiano Levantado do chão (2005), daqui em diante LC, é a narrativa que retrata a saga de três gerações de uma família de trabalhadores rurais (os Mau-Tempo) que vivem na região do Alentejo, no sul de Portugal. As vidas de António, João, Domingos, Anselmo, Maria da Conceição e Gracinda Mau-Tempo entrecruzam-se com a de outros trabalhadores. A primeira geração da família está representada pelo casal Domingos Mau-Tempo, sapateiro de profissão, e Sara da Conceição. O romance nasceu de um desejo de José Saramago de retratar a sua gente, pais e avós que viveram no campo em condições difíceis. Em 1976, após ficar sem trabalho ele decide ir para o Alentejo: “fiquei lá dois meses, falando com pessoas, indo ao campo onde trabalhavam, comendo com eles, dormindo com eles. E voltei, depois, por mais algumas semanas.” (CULT, nº. 17, dez/1998, p.22). Conta que após a viagem ele tinha uma história para contar, a história dos camponeses do Alentejo, com tudo: a fome, o desemprego, o latifúndio, a polícia, a igreja. É importante ressaltarmos que os traços característicos da escrita saramaguiana nascem justamente na elaboração do romance LC, ao abordar o processo de construção da narrativa, Saramago afirma que para além da história para contar “me faltava o como contar isso.” (idem, p.22), prossegue expondo: “O tema que eu tinha estava claríssimo, era um romance neo-realista (...) e modelos do romance neo-realista português, nós os temos, e grandes romances. Portanto, o molde eu já tinha.” (idem, p.23). Dessa maneira, a primeira escrita do romance LC segue aos padrões dos romances neorrealistas: “comecei a escrevê-lo como um romance normalzinho (...), mas eu não estava gostando do que estava fazendo”, por isso em seguida declara: Na altura da página 24, 25, estava indo bem e por isso eu não estava gostando. E sem perceber, sem parar para pensar, comecei a escrever como todos os meus leitores hoje sabem que escrevo: sem pontuação.
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Sem nenhuma, sem essa parafernália de todos os sinais que vamos pondo aí (...) eu havia estado com essa gente, ouvindo, escutando-os, estavam contando-me as suas vidas, o que tinha acontecido com eles. Então, eu acho que isso aconteceu porque, sem que eu percebesse, é como se, na hora de escrever, eu subitamente me encontrasse no lugar deles, só que narrando a eles o que eles me haviam narrado. Eu estava devolvendo pelo mesmo processo, pela oralidade, o que, pela oralidade, eu havia recebido deles. A minha maneira tão peculiar de narrar, se tiver uma raiz, penso que está aí (ibidem, p.23, grifos meus).
O nascimento desse novo estilo, segundo o próprio autor, deve-se à busca de uma aproximação com a voz do povo, entenda-se com a linguagem mais coloquial: “Eu estava devolvendo pelo mesmo processo, pela oralidade o que, pela oralidade, eu havia recebido deles”. Na contracapa do romance há uma declaração do autor: “Um escritor é um homem como os outros: sonha. E o meu sonho foi o de poder dizer deste livro, quando o terminasse: “Isto é o Alentejo.” Sendo assim, percebemos que embora inicialmente, o escritor demonstre certa nostalgia ao projeto de retratar a história de seu povo, verificamos que tal fato não se confirma; pelo contrário, não há nostalgia e tampouco tom de lamentação ao referir-se ao passado e muitas vezes ele é descrito de maneira irônica. Narrativa pautada pela (re)construção das memórias dos trabalhadores alentejanos, LC também faz um resgate da história portuguesa em que o narrador encarrega-se de problematizar o nosso conhecimento da História e o processo de narrála, justapondo-lhe o processo de escrever ficção. Dessa maneira, pode-se afirmar que a reconstrução de ambientes e acontecimentos históricos é um dos elementos que mais evoca a tradição do gênero “romance histórico” na metaficção historiográfica de Saramago e, portanto no romance analisado. De certa forma, temos uma reconstrução realista, com referências históricas expostas de maneira detalhada que vai ganhando contornos e imagens à medida que o narrador vai delineando o percurso dos personagens. Para Rosemary (2006), o projeto literário do escritor português parece consistir em fornecer uma visão do passado sob uma nova perspectiva, iluminada por um realismo crítico e social que se fundamenta na ideologia marxista. Esse processo de
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dessacralização do passado torna-se literário pela utilização de recursos expressivos como a ironia e a paródia, que, associados a elementos míticos e oníricos, conferem à obra uma dimensão artística que ultrapassa os limites da História e da ideologia. Fundamentalmente, a ironia dá ao romance a possibilidade de questionar o passado, enfim, a História. A análise minuciosa da instância narrativa evidencia que este se faz presente o tempo todo, a sua voz está de tal modo entrelaçada na ação que a distinção entre ambos desaparece. Temos então o que Adorno (2003) denomina “encolhimento da distância estética”. Como sabemos, no romance tradicional essa distância era fixa, agora ela varia de acordo com a pretensão do narrador, ele guiará o leitor na narrativa e é a partir dos seus olhos, da sua posição que o leitor tomará conhecimento da obra, dos fatos, porque o narrador não tem mais uma posição meramente contemplativa, pelo contrário, é forçado a adentrar na narrativa vivenciando aquilo que está sendo narrado. Dessa maneira, também não é possível deparar-se com uma apresentação mimética do real, embora o próprio Saramago defenda que, no caso do romance LC, ele foi ao Alentejo, ouviu os trabalhadores e ao escrever está devolvendo a eles pela mesma forma (pela oralidade) o que eles lhe relataram. Não se trata, portanto, de uma apresentação mimética do real, afinal pela narrativa é possível escutar a voz desse narrador que imprime nela a todo tempo a sua visão dos acontecimentos de maneira crítica. Para isso, lança mão de recursos como ironia, paródia e metáforas na construção do enredo e é por meio desses que o narrador deixa de ser imparcial e passa a conduzir o leitor a uma nova significação que a história adquire. 2. As relações interartes
Para Louvel (2012), o pictural seria o surgimento de uma referência às artes visuais em um texto literário, sob formas mais ou menos explícitas, com valor de citação, produzindo um efeito de metapicturalidade textual. Os textos apresentam, desta maneira, alguns marcadores responsáveis pela descrição pictural, são eles: (...) o léxico técnico (cores, nuanças, perspectiva, formas, camadas, linhas etc.); a referência aos gêneros picturais (natureza morta, retrato, etc.); o recurso aos efeitos de enquadramento; a colocação de operadores de abertura e de fechamento da descrição pictural
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(dêiticos, enquadramentos textuais como os encaixes nas narrativas, a pontuação, a repetição do motivo); a colocação de focalizadores e operadores de visão; a concentração na história de dispositivos técnicos que permitem ver; o recurso às comparações explicitas – “como em um quadro”; a suspensão do tempo marcado pela forma – ing em inglês, que indica também a inserção da subjetividade e, de fato, inscreve a espacialidade no tempo da narrativa, a imobilidade e a ausência de movimento. Em resumo, tudo aquilo que abre o texto à imagem pictural quando este tende a ser de imagem sem jamais o atingir, pois a imagem textual permanecerá sempre uma imagem no ar. (DINIZ, 2012, p.49)
O efeito quadro produz um efeito de sugestão tão forte que a pintura parece assombrar o texto mesmo na ausência de qualquer referência direta, seja à pintura em geral, seja a um quadro em particular. O efeito acontece no nível da recepção, quando de repente o leitor tem a impressão de ver um quadro, ou ainda percebe uma referência a uma escola de pintura. O efeito quadro é extremamente subjetivo, se não detectarmos no texto os marcadores capazes de fazer a translação entre o texto de partida e o pictural. A memória é um elemento fundamental para o efeito quadro, já que recompõe os detalhes de uma cena em um quadro pitoresco, permitindo assim, o acesso ao sentido oculto de uma lembrança. Neste sentido, verificamos que ao compor o painel social das condições de vida dos trabalhadores rurais da região do Alentejo e, consequentemente ao retratar a família Mau-Tempo, o narrador saramaguiano tem um olhar similar ao de alguns pintores ao narrar e descrever suas cenas a ponto do leitor guardá-las na memória como se as tivesse visto num quadro, ou ainda, relacioná-las diretamente com algumas fotografias. Como é o caso da focalização das condições desumanas a que foi submetido o pequeno João após o suicídio do pai, Domingos Mau-Tempo: “Agora João Mau-Tempo é o homem da casa, o mais velho” (idem, p.51), portanto deverá buscar o sustento para a mãe e os irmãos: João Mau-Tempo não tem corpo de herói, É um pelém de dez anos retacos, um cavaco de gente que ainda olha as árvores mais como alpenduradas de ninhos do que como produtoras de cortiça, bolota ou azeitona. É uma injustiça que se lhe faz obrigá-lo a levantar-se ainda noite fechada, andar meio a dormir e com estômago frouxo o pouco ou muito caminho que o separa do lugar de trabalho, e depois dia fora, até ao sol posto, para tornar a casa outra vez de noite. (SARAMAGO, 2005, p.55-6)
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O pequeno João, ao invés de desfrutar das coisas próprias para uma criança da sua idade, as brincadeiras, ir para a escola, aprender a ler e escrever precisa abrir mão de tudo isso para auxiliar a família. Assume o papel de homem, de adulto responsável sem mesmo ter tido a oportunidade de ser criança, também isso o latifúndio tirou dele e dos irmãos, enfim de toda a família Mau-Tempo: mas esta criança, palavra só por comodidade usada, pois no latifúndio não se ordenaram assim as populações (...) esta criança é apenas uma entre milheiros, todas iguais, todas sofredoras, todas ignorantes do mal que fizeram para merecerem tal castigo. (idem, p.56).
Como vemos, o latifúndio não é o lugar para se ter uma infância prazerosa, pelo menos não aos filhos dos camponeses, cujos pais sofrem com o desemprego, com a miséria e a fome. Nesse espaço não há lugar para as brincadeiras infantis, os pais não conseguem oferecer aos filhos uma condição digna de vida, por isso eles são obrigados a trabalhar desde cedo. No romance o narrador expõe a situação trágica daqueles que são forçados pela situação econômica a crescer antes do tempo, a trocar as brincadeiras pelos instrumentos de trabalho, a trocar a escola pelo campo, pelo trabalho. No livro Terra (1997), Sebastião Salgado, na ânsia de uma melhor compreensão do homem e do mundo, retrata os trabalhadores rurais, os mendigos urbanos, presos, garimpeiros, crianças de rua, gente que vaga entre o sonho e o desespero. Nas fotos, a luminosidade bicromática reflete paisagens humanas onde pode faltar tudo, a começar pelo espaço mínimo para assentar a vida. Nesse sentido, podemos estabelecer um diálogo entre a cena descrita anteriormente no romance LC e a foto de Sebastião Salgado, já que a descrição do pequeno João Mau-Tempo e das condições de vida no latifúndio produzem um efeito de sugestão tão forte que nos remete à fotografia:
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Embora a foto retrate a situação de uma criança de uma família de retirantes de Serra Grande, na fronteira entre o Ceará e Piauí, vemos que ela expõe de forma dramática as dificuldades da vida no campo, do sofrimento de ser privado da infância. O menino sentado em uma cama de hospital tem os pés machucados, duros como cascos; as mãos pequenas, mas largas e fortes de alguém que logo cedo teve que deixar a infância de lado, trocar os brinquedos pelos instrumentos de trabalho, a vida feliz e contente sem responsabilidades e obrigações pelo trabalho, submeter-se às condições do clima: calor ou frio. Se observarmos com um olhar mais atento veremos que esses pés e mãos se assemelham mais aos de um adulto assim como o rosto, as feições, a boca, a expressão do olhar não denotam uma infância feliz, pelo contrário, podemos enxergar a tristeza, a dor e sofrimento da criança que não tem infância, que não tem perspectiva de futuro. Seu olhar não transmite a vivacidade, a alegria e as cores da infância, pelo contrário produz-nos a sensação de desespero, a falta de esperança. A única imagem que
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nos remete à infância é a da chupeta pendurada no pescoço como que para lembrar que em meio a tudo, ainda resta ali, naquele corpo, uma criança. Tendo em vista que “o efeito quadro também funciona no plano do personagem, que serve de intermediário para o leitor, inscrevendo discretamente a impressão estética no texto” (LOUVEL, 2012, p.50) verificamos que a imagem de criança retratada por Sebastião Salgado dialoga com aquela descrita em LC, com aquelas crianças do latifúndio, que, assim como esta também não tiveram infância, que tiveram que crescer e se tornarem adultos antes da hora. Silva (1989) afirma que os Mau-Tempo fazem parte tanto da ficção quanto da história; são ficção, enquanto personagens de uma trama que se ordena de acordo com a vontade do escritor, são história “quando compostos com dados que coerentemente dão conta da vida de outros personagens a quem se assemelham e que, portanto são capazes de representar.” (idem, p.197). A crítica também pontua que as experiências individuais e coletivas vividas por eles como fome, miséria, opressão são circunscritas por fatos históricos que compõem o quadro português do nosso século. Nesse sentido, fala-se então na universalidade do romance, já que as situações vivenciadas pelos personagens podem ser homólogas às de outros trabalhadores de outras regiões, de outros países, desta maneira, vemos que a realidade brasileira e portuguesa mesclam-se. Ao tecer um painel das condições miseráveis dos trabalhadores rurais e também ao resgatar elementos da História de Portugal como a repressão durante o a ditadura de Salazar, o narrador saramaguiano remete-nos à construção de imagens pictóricas. Na perspectiva da representação do sofrimento e aflição dos trabalhadores (o povo), selecionamos uma cena em que eles são retratados como animais em que o descaso para com o trabalhador (o ser humano) é tamanho que toma dimensões dramáticas: O povo fez-se para viver sujo e esfomeado. Um povo que se lava é um povo que não trabalha, talvez nas cidades, enfim, não digo que não, mas aqui, no latifúndio, vai contratado por três ou quatro semanas para longe de casa, e meses até, se assim convier a Alberto, e é o ponto de honra e de homem que durante todo o tempo do contrato se não lave nem cara nem mãos, nem a barba se corte. E se o fizer, hipótese ingênua de tão improvável, pode contar com a troça dos patrões e dos próprios companheiros. É esse o luxo da época, gloriarem-se os sofredores do seu sofrimento, os escravos da escravidão. É preciso que este bicho da terra seja bicho mesmo, que de manhã some a remela da noite à remela das noites, que o sujo das mãos, da cara, dos sovacos,
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das virilhas, dos pés, do buraco do corpo seja o halo glorioso do trabalho no latifúndio, é preciso que o homem esteja abaixo do animal, que esse, para se limpar, lambe-se, é preciso que o homem se degrade para que não se respeite a si próprio nem aos próximos. E mais. Gabam-se os trabalhadores das pontadas que apanharam nos trabalhos de arroteia. (...) Estes é que eram os trabalhadores bons, os que, em tempo de chicote, mostrariam envaidecidos os vergões encarnados, e se sangrarem melhor ainda, gabarolas iguais ao rebotalho das cidades que presumiam de virilidade tanto maior quanto mais cavalos duros ou cancros moles adquirissem no comércio da cama alugada. Ah povo, conservado na banha ou no mel da ignorância que nunca te faltem ofensores. E trabalha, mata-te a trabalhar, rebenta se for preciso, que assim deixarás boa lembrança no feitor e no patrão. (idem, p. 73-4, grifos meus)
A situação é descrita de maneira tal que causa no leitor um certo desconforto e o contorno realista é o responsável por essa dramaticidade, notamos que a situação desumana a qual é submetida os trabalhadores é expressa por meio da descrição das condições de trabalho no campo. Há uma enumeração de fatores que coroam de forma gloriosa o sofrimento dos trabalhadores, o sujo das mãos, da cara, do sovacos, da virilha, os pés, todos os buracos corpo. Motivo de orgulho a sujeira está relacionada à virilidade. Verificamos também que o narrador vai revelando os aspectos mais característicos e expressivos das condições da vida, denunciando de maneira vigorosa as injustiças e as imensas desigualdades entre a miséria dos trabalhadores e a opulência em que viviam os latifundiários. Assim como na pintura realista, na cena, temos uma representação destes trabalhadores por meio de sua rudeza, fealdade, sua proximidade com bichos. Gombrich (1999) expõe que retratar homens e mulheres trabalhando no campo foi um tema revolucionário no início do século XIX, porque na arte do passado, os camponeses eram geralmente vistos como labregos ridículos. Millet ao retratar três mulheres labutando no campo em “As respingadeiras” o faz de modo a realçar os movimentos deliberados, os contornos são simples enquanto a campina aparece banhada de sol, desta maneira, as camponesas assumiram uma dignidade mais natural e mais convincente do que a dos heróis acadêmicos, pode-se dizer que há uma impressão de tranquilidade e equilíbrio na tela. A preocupação com a sinceridade e com o realismo é uma das marcas do século XIX nas artes como um todo. No entanto, tal abordagem não se verifica na cena e, tampouco no romance, já que a todo tempo o narrador pinta a crueldade dos patrões e dos feitores para com os camponeses, além de colocar em
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evidência através da adjetivação e dos comentários irônicos a situação desumana a qual estes são submetidos. Desta maneira, verificamos que na cena descrita anteriormente e no romance como um todo o narrador cria o que Louvel (2012) chama de efeito quadro, já que se produz um efeito de sugestão tão forte que a pintura parece assombrar o texto mesmo na ausência de qualquer referência direta, seja à pintura em geral, seja a um quadro em particular. O efeito acontece no nível da recepção, quando de repente o leitor tem a impressão de ver um quadro, ou ainda percebe uma referência a uma escola de pintura. A memória é um elemento fundamental para o efeito quadro, já que ela recompõe os detalhes de uma cena em um quadro pitoresco, permitindo assim, o acesso ao sentido oculto de uma lembrança. O conceito de hipotipose em grego vem de “modelo, original, quadro, de desenhar e de pintar.” Para Fontanier (apud LOUVEL, 2012) a hipotipose pinta as coisas de uma maneira tão viva e tão enérgica que, de certa forma, as coloca sob os olhos, e faz, de uma narrativa ou de uma descrição, uma imagem, um quadro ou mesmo uma cena viva. (p.54). A hipotipose seria um exemplo de narração descritiva, um lugar de forte concentração das figuras. Ela efetua a conversibilidade do dizer em ver. Seu elo com a pintura encontra-se principalmente na expressão animada, em sua eloquência eficaz, logo em seu fazer verdadeiro essencialmente mimético, pois o movimento está ali sugerido – a energia. Na hipotipose a referência direta à pintura ainda permanece ausente. O efeito pictural depende do leitor que permanece livre para fazer ou não a associação. Ao contrário, o quadro vivo está diretamente ligado à pintura e inscreve-se num projeto estético apresentado como tal no próprio texto. Desta maneira, é possível visualizar os procedimentos do efeito quadro, da hipotipose no romance LC. A expressão da vida interior, as imagens que vêm do fundo do ser, a angústia e o sofrimento dos trabalhadores são retratados de uma maneira que foge ao mimetismo rompendo com todas as tradições clássicas, o narrador saramaguiano remete-nos ao que está dentro do ser humano, sua ênfase é no homem como um todo.
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NARRATIVA JUVENIL CONTEMPORÂNEA: A CONSTRUÇÃO DO UNIVERSO POLICIAL NAS OBRAS DE LUÍS DILL Andressa Fajardo (UEM) RESUMO: A narrativa juvenil brasileira das últimas décadas, constituindo um subsistema diferenciado do infantil, tem mostrado diferentes facetas temáticas e formais, inclusive com a revitalização de gêneros literários, como o romance policial, contribuindo para aproximar jovens leitores dessa produção. A partir dessa perspectiva, procuramos, no decorrer deste trabalho, com o apoio de diferentes teorias e pesquisadores, observar e discutir modos de apropriação de elementos da narrativa policial, em obras do escritor gaúcho Luís Dill. A fundamentação teórica, abrange estudos sobre a gênese do romance policial, sobre suas modalidades textuais (romance de enigma, noir e de suspense), com respaldo nos estudos de Lins (1953), Todorov (1979), Medeiros e Albuquerque (1979), Reimão (1983), Boileau e Narcejac (1991) etc., os quais foram de grande importância para que pudéssemos estabelecer os pontos de contato entre o gênero policial e as narrativas juvenis contemporâneas analisadas. Durante o processo analítico, destacamos que a relação estabelecida entre a narrativa policial e a juvenil ocorre desde a inserção de temáticas violentas (morte, violência, criminalidade etc.), até a forma com que a obra literária é construída, a atmosfera de mistério e investigação, a inserção das personagens jovens no papel do detetive e/ou do criminoso, as pistas a serem investigadas, a presença de um crime, entre outros fatores, responsáveis não apenas por aproximar os dois objetos estéticos, mas também por proporcionar ao jovem leitor, a partir do cotejamento entre dois mundos – realidade e ficção, - o questionamento acerca de acontecimentos e emoções que o envolvem como ser-no-mundo. Palavras-chave: Narrativa juvenil policial; Romance policial; Luís Dill.
O gênero policial em questão: gênese, principais obras e perspectivas estéticas De acordo com Álvaro Lins, em sua obra No mundo do romance policial (Departamento de Impressa Nacional, 1953), ao nos ater ao estudo dos gêneros, é fundamental levar em consideração que a divisão literária, nessa categoria, encontra muitas dificuldades, visto que a imposição de determinadas regras a divisão de estilos literários pode, às vezes, interferir no seu desenvolvimento. Nesse sentido, o “romance” nada mais é do que um gênero que, em épocas clássicas, foi desdenhado por ter suas origens entre os plebeus. No entanto, nos séculos XIX e XX, esse gênero veio a se
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tornar a expressão literária por excelência, tornando-se, assim, o mais bem aceito entre os nobres. Aliás, segundo cada época, o romance pode exprimir a realidade por meio da narrativa ficcional, ou retratá-la por meio da narração histórica, biografias, reportagens etc. A forma e a técnica do romance variam a partir de cada tendência momentânea, o que cria certas dificuldades para a modernidade ao tentar defini-lo e conceituá-lo. Logo, para Lins (1953), a narrativa policial, repleta dessas características conceituais de um “romance”, traz consigo outro fardo: a de não ser aceita, por muitos, como gênero específico da literatura, ou seja, “o romance policial não é literatura no conceito estético desta palavra” (LINS, 1953, p. 9). Segundo Pierre Boileau e Thomas Narcejac, no livro intitulado O Romance Policial (Ática, 1991), os estudos direcionados ao romance policial são muito numerosos. Ora se esforçam em expor sua história, vendo nela a oportunidade de revelar sua evolução, ora consideram que o universo do romance policial é o reflexo de certa sociedade e está intrinsecamente relacionado ao fato de retratar a vida do homem e da mulher comuns, sintetizando seus dramas, angústias, anseios, terrores e esperanças. Por isso, na concepção dos estudiosos, o romance policial parece ter-se constituído pouco a pouco, em uma época relativamente recente, pois os mecanismos da razão empregados por ele são considerados contemporâneos do próprio homem. Para Sandra Lúcia Reimão, em sua obra O que é romance policial? (Brasiliense, 1983), a narrativa policial é um gênero criado com base na essência e nas características próprias do gênero escrito por Edgar Allan Poe (1809 – 1849), no ano de 1841, com a publicação do conto Assassinatos na Rua Morgue, pela revista Graham’s Magazine. Nessa obra, Poe estabeleceu múltiplas combinações de elementos que, desde então, passaram a ser peças mestras para o surgimento do conto policial: um crime misterioso, o detetive e a investigação (espécie de jogo dramático, cujo autor joga na companhia do leitor), todos esses recheados de muita violência, sutilezas psicológicas e suspense. Aliás, a inserção desses fatores proporcionou ao gênero literário a garantia de um indubitável sucesso de público e, de certa forma, ajudou a marcá-lo em um determinado lugar marginal nas discussões acerca dos fenômenos culturais. Entretanto, pensar em romance policial e em sua origem é relacioná-lo, também, ao chamado romance de aventuras, como afirma Paulo de Medeiros e Albuquerque, em
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seu livro O mundo emocionante do romance policial, de 1979, e à constante luta entre forças antagônicas, que expressam o bem e o mal. Para tanto, é necessário que, anteriormente ao estudo das modalidades (enigma, noir e suspense) e das características específicas do gênero literário em questão, levantemos, neste momento, quais foram as circunstâncias do seu nascimento e o que levou o romance policial a inserir determinados elementos em sua construção. Desse modo, podemos perceber que os fatos da época se tornam relevantes para o aprimoramento dessa narrativa de enigmas, entre eles, estão: o desenvolvimento das cidades industriais, que servirão de cenário para os enredos policiais (os labirintos de ruas, as grandes multidões e os lugares desconhecidos, fechados e macabros), o desenvolvimento da polícia (e, com ela, a presença do criminoso, proteiforme, isto é, carregado de disfarces, que lhe oferecem todos os recursos do truque, do anonimato), o surgimento dos jornais, que se aproveitavam do sentimento mórbido que o ser humano possui de saber da desgraça alheia (junto com a curiosidade de saber dos mistérios que envolvem o fato) para venderem seus exemplares e, por fim, o aparecimento de um novo público, o qual, instigado pelo aumento da criminalidade, torna-se cada vez mais interessado em ler esses mistérios circulantes, repletos de temas voltados aos dramas banais, como incêndio, acidentes, crimes etc, e responsáveis em despertar no leitor um prazer de forma intensa. Essa atmosfera criada nos romances policiais, com base nos aspectos reais, deve ser produzida visando a um efeito particular nos seus leitores. Para Poe, em seu ensaio “Filosofia da composição” (In: POE, Edgar Alan. Ficção Completa, Poesia & Ensaio, São Paulo: Nova Aguilar, 1997, p. 911-920)1, a resposta deve ser, portanto, clara e objetiva: medo. Esse é o propósito principal do romance policial e, para tal empreendimento, lança-se mão do mistério e de cenas de terror, em uma forma de experimentação que se iria consolidar mais tarde. Esse formato experimental, todavia, mostra-se diferente daquele encontrado no chamado romance experimental ou “romance de tese” naturalista, o qual valoriza a análise social e a coletividade. Vemos a narrativa policial, que se concentra em atos anormais e criminosos, dando ênfase a fatos que, normalmente, só existem no interior da alma humana. Assim, por meio da palavra, o 1
A primeira edição em português desse texto é de 1981, publicada pela editora Nova Aguilar.
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medo se torna uma tortura da imaginação e estabelece uma relação poética entre o leitor e o narrador; o mundo com seu caráter ainda selvagem e ameaçador - por mais contraditório e urbano que aparente ser – é, dessa forma, uma fonte fundamental de inspiração literária. O romance policial é permeado, portanto, por esses diversos elementos advindos do contato do homem com o outro e com o desconhecido – medo, mistério, investigação, curiosidade, assombro, inquietação etc, dosados na obra de acordo com os autores e as épocas em que o gênero será produzido. Logo, é por meio dessas características que a narrativa policial se dividirá em três diferentes modalidades: romance policial de enigma, noir e de suspense, as quais serão vistas, respectivamente, no próximo tópico.
Narrativa juvenil contemporânea e a sua relação com o gênero policial Compreender como ocorre a relação entre o romance policial (voltado para o público adulto e com início no século XIX) e a narrativa juvenil contemporânea é verificar quais são os elementos presentes no primeiro que motivaram diversos autores, entre eles, Luís Dill, a preencher seus textos com determinadas características típicas do universo policial. Aliás, devemos deixar claro que a escolha pela produção de narrativas juvenis policiais requer, dos autores desse campo, adaptabilidade e recriação de determinados aspectos do gênero literário. Ou seja, não basta introduzir elementos da narrativa policial para a juvenil; deve-se, também, articular as duas frentes literárias, pois devemos considerar que esta última sofre influências temporais, etárias e, principalmente, mercadológicas ao longo de sua produção. Para tanto, deixaremos agora o campo referente à análise da estrutura narrativa para atentar às questões relativas às particularidades do universo policial, as quais estão presentes nas duas obras selecionadas para compor o corpus de análise deste trabalho. Entretanto, nosso objetivo não é somente observar os pontos em comum e a relação entre o gênero policial e a narrativa juvenil brasileira contemporânea, mas também tentar enquadrá-la, por meio de certos elementos, em uma das modalidades do gênero policial: romance de enigma, roman noir e romance de suspense, como forma de
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comprovar a preferência do autor por um tipo específico de atmosfera policial em suas obras. Ao longo da leitura das narrativas juvenis selecionadas, é evidente a preferência do escritor pela atmosfera policial, visto que podemos encontrar uma articulação entre o gênero literário e o subsistema juvenil. No entanto, vale ressaltar que, como se trata de obras destinadas ao público jovem, a adequação de certas características, por exemplo, adolescentes no papel de detetives, crimes cometidos pelos próprios jovens etc, é essencial para tornar a narrativa ainda mais atrativa aos olhos do jovem leitor. Esse aspecto evidencia a evolução do caráter policial nas obras selecionadas, o que nos levou a pesquisar as primeiras e as últimas publicações do autor para esse público leitor específico. Seguindo a linha do romance policial, Beijo Mortal revela a preocupação do autor em adequar o seu livro ao público alvo (juvenil). Ao longo da trama, determinadas características típicas do gênero policial são trazidas para o universo ficcional juvenil, entre elas: a presença de um detetive, não mais na figura de um adulto, mas na de um adolescente, o processo de investigação do crime, o jovem no papel de criminoso, a presença de vítimas, todas elas jovens entre treze e dezesseis anos, o mistério etc. Todas essas características são elaboradas de modo a surpreender o jovem leitor e aproximá-lo do objeto narrado. No decorrer da trama, observarmos que a construção do enunciado de Beijo Mortal ocorre em um momento posterior à enunciação. O fio condutor deste último surge a partir do interesse do adolescente Francisco pelo assassinato de sete garotos, ocorrido seis meses atrás, em um campinho de futebol. Com isso, o comportamento do protagonista passa a se assemelhar a de um detetive, o qual busca, diante de um crime, decifrar, com auxílio da razão, os obscuros eventos da história. Impulsionado pela curiosidade (elemento que marca a construção da identidade juvenil) e pelo mistério, Francisco decide investigar o caso por meio de entrevistas com as testemunhas do episódio: Francisco sente a excitação encobrir o choque, é algo novo. Parece inadequado seu trabalho de campo se sobrepor à memória dos meninos mortos. Até porque não é trabalho de verdade e o temor de
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estar usando pessoas humildes para satisfazer sua curiosidade começa a gerar esfera escura que se adensa em seu estômago (DILL, 2009, p. 21).
O comportamento de Francisco na obra corporifica a ideia de detetive nos romances policiais: a de ser uma alegoria da razão. Motivado pelas questões particulares (construção de um blog jornalístico) e, também, pela influência paterna (o pai é um jornalista investigativo), o adolescente se lança em uma autêntica investigação. No decorrer dela, o jovem procura possíveis pistas sobre o caso, interroga as testemunhas, reflete sobre os motivos que levaram os adolescentes Guilherme, Betinho e Cabeça a realizarem a chacina: - Foi uma chacina e aconteceu há seis meses – Francisco esclarece paciente. – Quero colocar no meu blogue. - Em vez de falar de mulher, vai falar de chacina, brother? - É projeto diferente, não quero meu blogue igual ao de todo mundo (DILL, 2009, p. 13). [...] - Como foi? - Eu tava em casa com a patroa, olhando tevê. Aí o tiroteio. Espiei pela janela e vi três vagabundos saindo pelo lado de lá. - Correndo? - Caminhando, como se não tivesse acontecido nada. Falei pra polícia, mas não consegui descrever os vagabundos. Se eles tivessem saído pro lado de cá... - E o senhor foi lá? Foi um dos primeiros a chegar? - Fui lá, sim. Mandei a patroa ligar pra Brigada Militar e fui lá ver o motivo da confusão (DILL, 2009, p. 52-53).
A inserção de um adolescente na figura de um personagem, quase sempre adulto, elimina a distância entre texto literário e público leitor. Isso acontece não só por causa das adequações sofridas pelo enredo policial, mas também porque o jovem leitor é chamado a participar gradativamente da aventura vivida por eles. Outro elemento típico da atmosfera policial é a brutalidade e a violência encontrada no decorrer dos relatos feitos pelas testemunhas do crime. Esses aspectos são responsáveis pela aproximação da narrativa juvenil, novamente, da modalidade policial roman noir, a qual é marcada pela violência, no sentido mais brutal, pela paixão desenfreada, pela imoralidade e pelo ódio. No entanto, como a narrativa apresenta uma
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cronologia não linear (esse tipo de temporalidade oferece à obra juvenil ação e risco no decorrer dos fatos), os fatos que antecedem a chacina e aqueles que ocorrem depois dela vão sendo apresentados para o leitor simultaneamente. Isso possibilita que o leitor tenha acesso à identidade dos criminosos e, também, à forma como aconteceu o assassinato: Pelo centro do campo de terra, junto ao barranco aparece Guilherme, o revólver já na mão direita. Não há brisa na praça. A sensação de calor é reforçada pela luz de tonalidade amarela a descer como cortina crespa sobre o grupo. O silêncio também se reproduz, isola do resto da cidade os jovens envolvidos no episódio que ganhará manchetes. As idades regulam, o mais novo tem 13, o mais velho 17. Como principal diferença, o nível de tensão. Os três que seguram seus símbolos de poder, nervosos. Os oito jogadores bem tranquilos, julgando se tratar de algo sem importância, talvez brincadeira, provavelmente engano (DILL, 2009, p. 56-57). - Olha pra cá – insiste. – Olha aqui pro cano! - Queima ele! – Betinho pede com risada sincera. - Tá olhando? – a raiva toma conta de Guilherme. Atira. Instigados pelo som, na exaltação do imprevisto, Betinho e Cabeça pressionam seus gatilhos repetidas vezes até esvaziarem suas armas (DILL, 2009, p. 60).
Visto que no romance policial os sentimentos amorosos não aparecem, de modo a focalizar toda a atenção no enigma da trama, em Beijo Mortal esse é um ingrediente extra que o autor insere na narrativa, de maneira a atrair ainda mais a curiosidade do jovem leitor pela história. Além disso, no caso da narrativa em questão, o sentimento amoroso serve como ponto de partida para que o crime aconteça. Por isso, ele é parte fundamental na construção e na interpretação do enredo por parte do leitor. Aliás, a junção entre os aspectos da narrativa policial com as inovações amorosas pode ser visto como um recurso, a fim de seduzir o jovem leitor e de aproximá-lo do universo narrado: - Li no jornal sobre a desavença, o Guilherme e o Guga tinham certa rivalidade, já tinham trocado ofensas no colégio. Ela ri. - Aquilo tudo, os sete guris mortos, sabe por quê? - Não, senhora. Tô tentando entender. Ri sulfúrica. Meio forçado, sombria. - Tudo por causa de um beijo (DILL, 2009, p. 86-87).
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- Por que o Guga deu uns beijos e sabe-se lá mais o que com a idiotinha lá do colégio, a namorada do Guilherme. O Adalberto me contou, disse que o Guilherme nunca admitiu nem vai admitir, mas foi tudo por causa dum beijo (DILL, 2009, p. 87).
Normalmente, não é típico, nem aconselhável que uma narrativa policial contenha intrigas amorosas, segundo uma das regras (a terceira, no caso) que Van Dine propõe para a elaboração de um romance policial de qualidade. No entanto, em Beijo Mortal, a presença do sentimento amoroso não desvia a atenção do jovem leitor do foco principal: o assassinato de sete adolescentes por outros jovens. Ele funciona como um recurso que serve para explicar o que levou os garotos Guilherme, Betinho e Cabeça a realizarem o crime, além, é claro, de aproximar o jovem leitor de sentimentos e de emoções da sua faixa etária. Outra narrativa que apresenta a intriga amorosa como base para que o crime e a violência sejam praticados é Decifrando Ângelo. Assim como acontece em Beijo Mortal, a obra instaura o adolescente João Batista Vuia no papel de detetive. Isso ocorre porque o adolescente tem a ideia de produzir uma espécie de documentário, a partir de alguns depoimentos cedidos pelos colegas de turma e de escola, a respeito do assassinato da garota Letícia por Ângelo. No decorrer da narrativa, as entrevistas são feitas com adolescentes que conheciam Ângelo ou que com ele conviviam. A produção do documentário tem como objetivo revelar e compreender as possíveis causas que levaram o garoto a assassinar Letícia, no pátio da escola, em um dia comum de aula: O que aconteceu com a Letícia... Não tenho nem palavras. Ninguém tem. Eu fico imaginando a dor que o Ângelo tava sentindo antes de apertar o gatilho. O desespero. Imaginem. Pegar a arma do pai, trazêla dentro da mochila como se fosse um dia normal de aula, dar tchau pra mãe – foi ela que trouxe ele –, descer, entrar no colégio, entrar na sala de aula com o 38 na mochila, assistir dois períodos de matemática e um período de português, sair pro intervalo, se isolar no banheiro, ouvindo música, depois sair, procurar a Letícia, conversar um pouco e finalmente atirar no peito dela. Bem no coração. Morte instantânea. Assassinato (DILL, 2012, p. 61). Quando saí do banheiro e tava voltando pra sala de aula eu vi o Ângelo e... Bom, foi tudo muito rápido. Parecia uma cena de filme. Não parecia real. [...]. Ah, sim, lá tava eu saindo do banheiro, aí vi o Ângelo. Vi também, cleary, cleary, o revólver que ele tirou de dentro
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da mochila. Jurei que era algum tipo de brincadeira, uma encenação (DILL, 2012, p. 24).
A paixão na narrativa policial é caracterizada, segundo ressalta Kothe (1994), como uma razão do inconsciente, em que o apaixonado está ofuscado pela descoberta, não tendo tido tempo para desdobrá-la durante os acontecimentos da trama. Isso permite que o protagonista acabe sendo sufocado, engasgado por suas atitudes impensadas. A partir desse aspecto, verificamos que, em Decifrando Ângelo, a questão amorosa surge no decorrer da história como elemento central nessa narrativa juvenil policial. Entretanto, mesmo que o sentimento amoroso não deva ser introduzido na atmosfera policial, como afirma Van Dine, nesse caso, por se tratar de uma obra literária que visa ao público juvenil, a inserção desse elemento oferece à obra um caráter inovador, aproximando-o do objeto narrado. Aliás, o conflito amoroso serve de base para que o crime aconteça e, portanto, é de fundamental importância para que o leitor possa compreender a trama e desvendar as causas da tragédia que mudou, para sempre, a vida dos colegas do adolescente Ângelo. Logo, diferentemente de uma narrativa policial tradicional, o enigma é um elemento secundário, e o sentimento amoroso é a temática principal e o motivo que leva o protagonista a cometer o crime. Como ocorre nas demais obras analisadas, o autor teve a preocupação de adequar outros elementos típicos do romance policial para o contexto do público alvo – o juvenil. Além da inserção de um detetive jovem, como encontramos nas demais narrativas que compõem nosso trabalho, observamos, também, no papel do criminoso, a figura do adolescente. Essa opção em atribuir a culpa do assassinato a um jovem atrai o leitor, incitando nele a reflexão a respeito do tema e da sua sociedade, o que possibilita, segundo Antonio Candido (1972), a construção da função social e ideológica por parte do leitor. A primeira refere-se à reflexão a respeito da sociedade e a segunda refere-se às ideologias expostas no texto e que podem se referir às crenças do autor e de seu meio social. Dessa forma, o texto, ao ser construído por meio de depoimentos, permite que o leitor preencha, a partir da sua leitura e do seu pensamento, os espaços em branco deixados por cada um dos adolescentes entrevistados e, como o próprio título da obra sugere, tente decifrar quem é o garoto Ângelo.
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Ao comparar determinados elementos que figuram na narrativa juvenil Decifrando Ângelo com aqueles típicos das modalidades textuais do romance policial (enigma, noir e de suspense), encontramos alguns aspectos que aproximam a narrativa juvenil da narrativa policial de enigma. Por exemplo, nesse tipo de romance, tanto o trabalho do detetive perante o crime quanto a narração de suas deduções ocorrem após o crime ter acontecido. Na narrativa juvenil em questão, essa regra básica é bem clara, uma vez que inicialmente há o assassinato da adolescente Letícia e, logo depois, há a produção do documentário (com objetivo investigativo) pelo adolescente JB Vuia. Outro fator presente na obra juvenil que a assemelha à narrativa policial de enigma é a presença de um narrador cujo papel não pode ser o do detetive, mas apenas o de um narrador em terceira pessoa responsável por retratar para o leitor o que ele enxergou. Isso faz que ele não transponha para a narração o seu ponto de vista. A partir dessa perspectiva, como ressalta Jauss (1994), a relação entre a literatura e o leitor atualiza-se tanto na esfera estética quanto na reflexão moral. A obra literária, ao ser lida, é julgada em contraste com as anteriores e com as experiências vividas pelo leitor em seu cotidiano. Com isso, ela se torna capaz de adentrar o horizonte de um efeito histórico. Nesse sentido, uma obra deve buscar contribuir com a vida social, e não somente ser uma arte de pura representação. Ou seja, devem ser focalizados os momentos da história em que há a provocação de tabus morais e dominantes, ou ser oferecida ao leitor a oportunidade de encontrar novas soluções para a moralidade cotidiana da vida, podendo, então, abrir um novo campo de pesquisa e possibilitar a descoberta de novos horizontes. Logo, as narrativas analisadas ilustram a alta qualidade estética da literatura
juvenil contemporânea. O trabalho realizado por Luís Dill, quanto à adequação e à transformação dos elementos característicos do gênero policial para o universo juvenil, apenas vem confirmar o quanto o subsistema juvenil tem conseguido alcançar excelentes e importantes resultados no campo literário.
Considerações finais
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Ao levar em consideração a originalidade dos elementos internos dos textos e a sua alta qualidade estética, verificamos que a construção de cada um deles foi indispensável para a criação da atmosfera policial. No decorrer da análise das obras juvenis, observamos como o autor, com base nas questões mercadológicas e temporais, conseguiu adequar e, principalmente, transformar características típicas do gênero literário policial (adulto) no universo dos textos juvenis. Para que pudéssemos compreender melhor essas mudanças, foi necessário rever algumas considerações acerca do gênero e de suas modalidades textuais (romance de enigma, noir e suspense), entre elas: a presença da tríade policial - detetive, vítima e criminoso -, o crime, a investigação e o suspense. Entretanto, como se trata de textos destinados a um público leitor específico - o jovem -, observamos não só a sua apropriação para o campo juvenil, mas também o modo como esses textos trabalham com as especificidades típicas desse subsistema literário. Os textos apresentam em seu conteúdo verbal aspectos que privilegiam tanto a típica atmosfera policial, por meio de crimes, de temas e de cenas violentas (sequestro de jovens, assassinato, roubo), quanto questões que acompanham a faixa etária do público leitor, como as incertezas e as dúvidas em relação ao primeiro amor, a difícil relação com os pais e irmão mais velhos, a excessiva vontade de emagrecer, o ciúme. As oito narrativas, ao mesmo tempo em que buscam refletir o universo sombrio e chocante das obras policiais, assumem um caráter inovador à medida que estimulam seus leitores na reflexão de temas, os quais colaboram com a sua formação e criticidade. Para tanto, as transformações sofridas pelo gênero literário policial (detetives adolescentes, crimes cometidos por jovens contra outros jovens), ao serem introduzidas no campo juvenil, passam a ser de grande importância na mediação entre texto e leitor e, consequentemente, no processo de imaginação e de aprendizado. As narrativas de Luís Dill contribuem com a função social, uma vez que os jovens leitores encontram a seu dispor textos que trabalham com temáticas atuais e os estimulam a pensar sobre a sociedade e sobre o seu próprio comportamento. A identificação e o estranhamento do leitor perante as situações narradas (característica do romance policial) funcionam como uma resposta para o processo reflexivo, no qual o jovem leitor se vê, muitas vezes, na mesma posição das personagens (detetive, vítima,
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criminoso). Além disso, a riqueza linguística e estética dos textos analisados apresenta aos jovens leitores novas perspectivas e diferentes realidades, proporcionadas pelo hábito da leitura, o qual é o responsável por aguçar o pensamento crítico e a maturidade, motivo pelo qual deve ser disseminado e motivado entre nossos jovens. Com base nesses e em outros fatores, vemos o quanto é importante que sejam feitos novos trabalhos que visem investigar como a literatura juvenil se apropria e transforma gêneros literários (particularmente, adultos) ao introduzir certos elementos em seu universo ficcional, ainda mais porque eles poderão contribuir com o desenvolvimento do país por intermédio da leitura, transformadora da realidade social.
Referências: BOILEAU, Pierre; NARCEJAC, Thomas. O Romance Policial. Tradução de Valter Kehdi. São Paulo: Ática, 1991. CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. Revista Ciência e Cultura. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1972, p. 803-809. DILL, Luís. Beijo Mortal. São Paulo: Dulcinéia, 2009. DILL, Luís. Decifrando Ângelo. São Paulo: Scipione, 2012. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. LINS, Osman. Espaço romanesco, espaço romanesco e ambientação e espaço romanesco e suas funções. In: LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976, p. 62-110. MEDEIROS E ALBUQUERQUE, Paulo de. O mundo emocionante do romance policial. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. POE, Edgar Allan. Filosofia da Composição. In: POE, Edgar Allan. Ficção completa, poesia e ensaios. Tradução de Oscar Mendes e Milton Amado. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 911-920. REIMÃO, Sandra Lúcia. O que é romance policial? São Paulo: Brasiliense, 1983.
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A CISÃO IDENTITÁRIA NO CONTO “A MEETING IN THE DARK” Andressa Massoni da Costa (UEL) A história do continente Africano passa a ser conhecida, por muitos, a partir do evento da partilha da África, em que potências principalmente europeias objetivaram extrair riquezas e garantir seu poderio político e econômico sobre as nações mais pobres. No entanto, ignora-se toda a cosmogonia que regia os povos autóctones antes da chegada do colonizador na África, assim como os próprios colonizadores a ignoraram ao impor um modus vivendi estranho aos africanos. Dessa forma, entender a história da África no período anterior à colonização é entender quão devastadora foi a atuação do colonizador, cujas consequências se fazem notórias, principalmente, na constituição dual da identidade do sujeito africano. Entendido nos termos de Hall (2004), o conceito de identidade antes estável, transforma-se pelo discurso da modernidade, resultando num sujeito deslocado, em constante articulação. Neste contexto, as sociedades africanas cujas bases estavam fundamentadas na tradição foram diretamente impactadas pela modernidade colonialista, configurando o embate entre colonizado e colonizador. Convém discorrer, ainda que brevemente, a problemática existente quando se utiliza os vocábulos tradição e modernidade a fim de caracterizar colonizado e colonizador, respectivamente. Antes de se iniciar a experiência colonial, as sociedades autóctones se organizavam segundo seus costumes e suas leis, sua magia e religião, e funcionavam em total harmonia, por meio da qual cada indivíduo cumpria com seu papel; a economia de subsistência destinava-se a satisfazer as necessidades da tribo, em que os princípios de reciprocidade, redistribuição e de domesticidade garantiam a todos sua subsistência. Polany (1980) salienta que: Enquanto a organização social segue sua rotina normal, não há razão para a interferência de qualquer motivação econômica individual; não é preciso temer qualquer evasão do esforço pessoal; a divisão do trabalho fica assegurada automaticamente; as obrigações econômicas
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serão devidamente desempenhadas e, acima de tudo, estão assegurados os meios materiais para uma exibição exuberante de abundância em todos os festivais públicos (POLANY, 1980, p. 64).
Os sistemas político, econômico e religioso, entre outros, vigentes na Europa, diferiam daqueles utilizados pelas sociedades africanas, e, por isso, estas foram consideradas tradicionais uma vez que “não corresponde[m] ao modelo da sociedade industrial avançada” (BALANDIER, 1976, p. 100). No entanto, Balandier pontua que o aspecto da continuidade não é suficiente a fim de caracterizar as sociedades tradicionais, e define o termo tradição: Pode-se encará-lo como aplicado a um sistema: ao conjunto dos valores, dos símbolos, das idéias e dos imperativos que determina a adesão a uma ordem social e cultural, justificada por referência ao passado e que assegura a defesa dessa ordem contra a ação das forças de contestação radical e de mudança. Certas sociedades tradicionais são obsedadas pelo sentimento de sua vulnerabilidade, pelo temor das rupturas; estão empenhadas numa luta permanente contra os extravios e os desequilíbrios que as ameaçam. (BALANDIER, 1976, p. 101).
Certamente, esta definição de Balandier enfatiza o caráter da manutenção de valores no seio de uma sociedade; porém, ressalta a função da tradição no sentido de oferecer segurança à população: as novidades são assimiladas com base no conhecimento já adquirido, de modo a manter certos quadros culturais e sociais. Ademais, conserva a possibilidade de recorrer a rituais ou ações “tranquilizadoras” (BALANDIER, 1976) a fim de garantir o funcionamento harmonioso da sociedade. Mesmo que haja uma preferência pelo aspecto da continuidade para denominar o tradicional, não se pode afirmar que haja imutabilidade nas sociedades ditas tradicionais. Na verdade, as transformações se dão num ritmo mais lento se comparado àquelas que ocorrem nas sociedades desenvolvidas. Desse modo, as sociedades autóctones convivem baseadas em seus valores e prezam a manutenção da organização social e dos sistemas econômico e religioso; ao passo que as comunidades desenvolvidas, perpassadas pelo discurso da modernidade, possuem um dinamismo interno e caracterizam-se como geradoras de mudanças profundas e rápidas. No que diz respeito a teorizações sobre a imutabilidade que perpassa as sociedades tradicionais, preservando o aspecto da continuidade, e aquelas que entendem
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o fator do dinamismo como propulsor que impele mudanças nas sociedades desenvolvidas, Balandier as considera uma falácia, pois “a tradição não é radicalmente incompatível com a mudança do mesmo modo que a modernidade não o é com uma certa continuidade” (BALANDIER, 1976, p. 102). Portanto, quando se denominou as sociedades autóctones por tradicionais e as desenvolvidas perpassadas pelo discurso da modernidade, esta denominação somente é possível pelo caráter de oposição que regem ambas as sociedades. Conforme salientam Serrano e Waldman (2010): A diversidade inerente ao mundo tradicional não tem como deixar de ser explicada quando se exige um entendimento ótimo de uma realidade específica. Na realidade, apenas quando o mundo tradicional é confrontado com a modernidade é que podemos permitir o uso de conceitos generalizantes, firmados na dicotomia engendrada pela própria contraposição gerada pelo mundo contemporâneo. (SERRANO; WALDMAN, 2010, p. 127).
Ao tratar sobre a gênese da modernidade, mister se faz ponderar sobre a dupla constituição do termo. Deve-se resgatar, a princípio, um aspecto histórico da Europa: o período da Idade Média. O poderio exercido pela igreja, o feudalismo e as relações de suserania e vassalagem, por exemplo, provocaram o descontentamento popular, o que resultou numa revolução, cujo contexto propiciou o nascimento da modernidade. Houve a negação da autoridade divina e o ser humano descobriu-se dono de sua própria vida, sem mediação para relacionar-se com Deus ou com a natureza. De acordo com Hardt e Negri (2005, p. 89; 90) “a humanidade descobriu seu poder no mundo e integrou essa dignidade a uma nova consciência de razão e potencialidade” [...] “o conhecimento passou do plano transcendente para o plano imanente, e, por conseguinte, esse conhecimento humano tornou-se um fazer, uma prática de transformar a natureza.” Nessas origens da modernidade, o homem descobre seu poder imanente, destruindo as relações com o passado transcendente e constituindo um novo paradigma. No entanto, este movimento foi duramente reprimido por outra revolução, a qual intentava conter as forças emergentes e dominá-las. Este segundo modo de modernidade almejava “transplantar a nova imagem de humanidade para um plano transcendente, relativizar as capacidades da ciência para transformar o mundo, e acima de tudo opor-se à reapropriação do poder pela multidão.” (HARDT; NEGRI, 2005, p. 92). Houve a
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suplantação do poder imanente do ser humano, e este segundo paradigma de modernidade consolidou-se no contexto europeu. Como os europeus começaram a expandir domínios fora de seus territórios, este discurso da modernidade foi de extrema importância no sentido de sujeitar outros povos à dominação europeia. Para Balandier (1976) as sociedades desenvolvidas da Europa apresentam em si um dinamismo que conduz a mudanças, consideradas “geradoras de revolução” (BALANDIER, 1976, p. 96). As revoluções ocorridas no continente africano, decorrente do processo de colonização, impactaram profundamente a sociedade: o processo de decadência e desarticulação social provocado pela colonização destruiu as bases culturais e sociais, e desorientou os povos autóctones, o que Berman (2006) considera um estado de terror. O autor pondera que: A cultura da modernidade baseou-se na transformação social do pessoal e concreto para o abstrato e universal – da confiança nas pessoas, fundamentada em laços de parentesco, comunidade e relações recíprocas de poder e dependência, incorporado a sistemas ontológicos de religiões e rotinas tradicionais propriamente ditas, para uma confiança abstrata e impessoal, baseada em incertas probidades e habilidades de pessoas desconhecidas, em instituições de complexa e grande escala nacional, na verdade, internacional (BERMAN 2006, p. 4-5).
Dessa forma, de modo a compreender este “estado de terror” instaurado nas sociedades autóctones, o conto “A meeting in the dark” do escritor queniano Ngugi wa Thiong’o problematiza o choque violento entre colonizador e colonizado e os artifícios utilizados como ferramenta de dominação mental e ideológica, além de enfatizar o aspecto da cisão identitária que sofre o colonizado por meio da imposição da religião cristã que domina cultural e epistemologicamente o sujeito africano, cuja cisma culmina em um fim trágico e revela as mazelas mais profundas do conflito colonial na África. “A meeting in the dark” (Um encontro na escuridão) trata do modo como a imposição do Cristianismo pelo colonizador impactou a constituição identitária do colonizado. Por um lado, cristãos convertidos à fé colonialista; por outro, africanos que tentam manter suas bases religiosas herdadas de seus ancestrais. Imerso neste universo religiosamente antagônico, o personagem John se vê desamparado em meio a um problema aparentemente insolúvel: a menina com quem ele mantinha um
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relacionamento secreto está grávida. Ao ser pressionado pela garota, John hesita: apesar do apreço pela cultura africana, o rapaz é cristão e não poderia ficar com Wamuhu, porque ela mantinha os valores da sociedade africana e era, por conta disso, circuncidada. No desespero que o consumia, o garoto só conseguia ver a imagem rígida do pai, Stanley, que se tornou um homem muito severo com o filho, fato justificado pela tentativa de evitar que o primogênito cometesse o mesmo pecado que ele: Stanley e Susana mantiveram relação sexual antes do casamento, ato que gerou um fruto: John. Porém, já no começo do conto, John assume-se enquanto pecador e no decorrer da estória, descobre-se que ele cometeu o mesmo erro de seus pais. Ademais, além do temor ao pai, a gravidez estragaria seus planos de ir para faculdade, uma vez que, pela tradição africana, os jovens deveriam se casar. Totalmente transtornado diante de um dilema que a ele parece insolúvel, John acaba por matar Wamuhu. O garoto educado e admirado no vilarejo está totalmente fora de si, transpassado pela escuridão que o tomou por completo e que o deixou cego: Ele está violentamente chacoalhando Wamuhu, enquanto sua mente lhe diz que ele está apenas acariciando-a gentilmente. Sim, ele está fora de si. [...] ele tenta abraçá-la pelo pescoço, pressiona. ... Ela solta um grito horrível e cai no chão. E então, de repente, a luta acaba [...] (THIONG’O, 1963, p. 70).
O conto revela não somente a luta física, mas a luta interior de John. Esse embate traduz, na verdade, a cisão do indivíduo no que diz respeito às bases religiosas. John é cristão, mas sua infância foi perpassada pela religião africana. As histórias que sua mãe contava sobre os mitos africanos foram substituídas pelas histórias de Jesus. Ainda que John respeite os costumes africanos, o cristianismo se faz presente com mais intensidade, seja pela figura do pai, seja pela figura do reverendo Carstone, responsável por sua formação religiosa. Porém, as crenças se misturam no momento do desespero, e ele já não sabe a qual delas recorrer: “John tentou rezar. Mas para quem ele iria rezar? Para o Deus de Carstone? Isso soava falso. Era como se ele estivesse blasfemando. Poderia ele rezar para o Deus da tribo? Seu senso de culpa o esmagava” (THIONG’O, 1963, p. 64).
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Nenhuma das bases religiosas parece poder confortá-lo neste momento, pois ele “traiu” a ambas. A noção de pertencimento que abrange o sujeito africano foi, em John, substituída pela noção de sujeito enquanto indivíduo. Ao mesmo tempo em que John pensa pela lógica africana “Por que não casar com ela? Ela é linda!” (THIONG’O, 1963, p. 64) ele também a vê sob a perspectiva do colonizador, de modo inferiorizado: Wamuhu é circuncidada e não tem a educação dos brancos. Ademais o personagem receia profundamente a condenação pelo pecado que cometeu: “Sim! Ele John, cairia do Portão do Céu para os Portões do Inferno, abertos, esperando por ele” (THIONG’O, 1963, p. 69). A postura vacilante de John revela que o choque entre o colonizador e o colonizado deixou marcas profundas nas sociedades africanas. A escuridão que abarca o personagem representa metaforicamente as trevas que a estranha cosmogonia imposta pelo homem branco fundamentou a constituição do ser e das sociedades africanos. A harmonia das forças vitais que fundamentavam a cosmogonia africana acaba por sucumbir diante da coerção mental e ideológica imposta pelo colonizador, criando um sujeito africado fraturado diante da dualidade cultural que marca sua formação. Em “A identidade cultural na pós-modernidade”, Hall (2004) sintetiza três concepções de identidade. O primeiro conceito trata do sujeito do Iluminismo, o qual é retratado como “um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação...” (Hall, 2004, p. 10). O autor pondera que o sujeito possui um núcleo interior, o qual acompanha o indivíduo desde o nascimento. Hall (2004) trata do sujeito sociológico em sua segunda concepção de identidade, o qual é entendido em seu aspecto interativo. A identidade se constitui, neste caso, na relação do sujeito com a sociedade: “A identidade, então, costura o sujeito à estrutura” (HALL, 2004, p. 12). Por fim, diante da conjuntura que perpassa este artigo, a definição que mais interessa é o que Hall chamou de identidade do sujeito pós-moderno. As mudanças estruturais acabam por alterar uma visão unificada e estável de identidade, haja vista a transformação contínua das relações do sujeito com a sociedade. O discurso da modernidade que perpassa as sociedades produzem sujeitos deslocados, ou seja, não
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existe nenhum princípio organizador, assim como havia anteriormente, que garanta bases estáveis para a construção da identidade. Sendo assim, a noção de identidade, pensada como código simbólico que sustenta e que propicia estabilidade à população, se transforma. E, por isso, vemos o personagem John tão transtornado. Segundo Hall (2004) ainda que a retomada do passado possa garantir alguma certeza no processo de reestruturação do sujeito moderno – que foi deslocado de sua base identitária – a construção da identidade se dá no interior de mudanças sociais, sendo necessário uma negociação com novas “rotas”1. No conto analisado, essa negociação não existe e os preceitos do colonizador não são suficientes para construção de um novo sujeito africano, visto que eles destinavam-se mais à diferenciação e à dominação. Desta forma, mais que uma dominação territorial, o colonizador impôs uma ideologia que tenta construir um novo sujeito ao inculcar uma nova visão de mundo, mas que entra em choque com os costumes, a herança e os valores cultuados no seio de uma cultura secular. Assim como em outras obras de Ngugi, o final dos contos aponta não para uma definição do problema, visto que não se conta o que acontecerá a John, mas sim para as fissuras causadas pelo processo de colonização. Considerações finais Uma das mais evidentes consequências do processo de colonização é a imposição de valores e crenças estranhos ao colonizado. Trata-se de uma transformação, muitas vezes violenta, do modus vivendi das sociedades colonizadas, que culmina, não raro, em exploração econômica e domínio político. A chegada do colonizador acabou por transformar a relação harmônica existente na sociedade africana (totalmente distante do discurso de modernidade que permeava a Europa) e desprezou os rituais e as práticas culturais das sociedades autóctones, o que impossibilitou uma conciliação, um diálogo entre ambas as sociedades.
1
Stuart Hall faz referência ao jogo de palavras “root” e “route”, que significam raiz e rota, respectivamente.
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É certo que o colonizado não se sujeita pacificamente à dominação do colonizador e não abandona seus laços afetivos e os tecidos sociais e culturais. No entanto, o que se vê, em geral, é a constituição de uma identidade em conflito no âmbito individual e na sociedade como um todo, uma vez que a dominação cultural imposta pelo colonizador acabou por destituir os povos autóctones de suas bases. Por isso, a cisma no processo de construção da identidade deste povo foi inevitável. Referências BALANDIER, George. As dinâmicas sociais: sentido e poder. Trad. Gisela Stock de Souza. Rio de Janeiro: Difel, 1976. BERMAN, Bruce. The ordeal of modernity in an age of terror. African Studies Review, vol. 49, n.1, 2006. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 9 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2005. POLANY, Karl. A grande transformação. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1980. SERRANO, Carlos; WALDMAN, Mauricio. Memória d’África: a temática africana em sala de aula. 3ed. São Paulo: Cortez, 2010. THIONG’O, Ngugi wa. A Meeting in the Dark. In.: ______. Secret Lives and other stories. London: Heinemann Educational, 1975.
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UMA APRENDIZAGEM CHEIA DE RITMO APESAR DE SABER QUE NINGUÉM APRENDE SAMBA NO COLÉGIO Antonella Flavia Catinari (CPII) Batuque é um privilégio Ninguém aprende samba no colégio Sambar é chorar de alegria É sorrir de nostalgia Dentro da melodia1
Ao iniciar o percurso deste relato, faz-se imprescindível delimitar o tempo e o espaço de onde partiu o projeto desenvolvido e, assim, marcar a relevância desses fatores para que ele fosse constituído da forma escolhida. Tudo sobre o que se falará a partir de agora teve lugar no Colégio Pedro II, um Instituto Federal de Ensino localizado na cidade do Rio de Janeiro e, mais precisamente no Campus Tijuca I, que, na realidade, situa-se no bairro do Maracanã. E por que tal localização tem tamanha influência a ponto de merecer ser descrita? Uma vez que o projeto teve como eixo norteador a história do carnaval carioca, a inserção do espaço físico da escola no chamado ― berço do samba‖ aportou uma série de inesperadas contribuições ao mesmo, que só fizeram com que os alunos fossem se envolvendo cada vez mais com o trabalho à medida que o levavam a cabo. Cada turma de 5º ano nas quais este trabalho foi realizado, possui uma média de 28 alunos e conta com uma grade semanal com dois tempos de 50 minutos dedicados às aulas de Literatura. Esses alunos encontravam-se com idades que variavam entre 10 e 12 anos. 1. Os alicerces ou ― Na roda do samba eu sou bacharel‖ Como fundamentação teórica para este projeto, assumo os encaminhamentos e reflexões contidos em textos de autoras como Teresa Colomer, Martina Fittipaldi, Cecilia Bajour, Mikhail Bakthin e María Teresa Andruetto. Colomer, por exemplo, advoga a ideia de que ― a leitura de livros é o ponto de interseção entre leitura, literatura infantil e juvenil e ensino de literatura‖ (COLOMER, 2007, p.9), e que aos docentes cabe trabalhar em conjunto no sentido de ― criar um itinerário de leitura‖ (ibidem) no qual os alunos possam compreender o mundo segundo várias possibilidades e ― desfrutar da vida que a literatura lhes oferece‖ (ibidem). 1
Versos do samba Feitio de oração, de Noel Rosa e Vadico, de 1933.
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Como afirma Maria Zelia Versiani Machado, ―overbo ‗ensinar‘ parece não combinar muito com a experiência que se quer alcançar no trabalho com literatura na escola‖. Isso porque ‗transmitir‘, ‗instruir‘, ‗treinar‘ e até mesmo ‗punir‘, alguns dos sentidos atribuídos ao verbo em seus variados e controversos usos, não condizem com a educação que forma leitores literários.‖ (MACHADO, 2012, p.35)
Há que se atentar que, ao levarmos a literatura para a escola, ela não deve ser atrelada à pergunta ― para quê‖. A literatura dentro do espaço escolar deve vir atrelada, sim, a uma formação artística essencial a todo ser humano, de modo que ele possa, por meio de outras maneiras de percepção do mundo e do outro, passar a compreender-se melhor e qual o papel que exerce nesse mundo. Como pano de fundo a este projeto está a ideia de que meu trabalho de professora — e, sobretudo, meu exemplo — deve basear-se na premissa de que é possível alterar a realidade planejando estratégias para vasculhar e conhecer, com os alunos, as realizações da humanidade, isto é, seu patrimônio cultural e artístico. Além disso, é indispensável ter como norte a possibilidade de acrescentar e interferir de forma criativa na realidade, de modo a proporcionar aos alunos a experiência de atribuir outros sentidos ligados à sua existência no mundo. Meu papel como professora deve ser o de convocar, por meio do conhecimento e da imaginação criadora, os alunos para outras realidades possíveis; promover a releitura do vivido para reinventá-lo (COLOMER, 2002)2. É nesse patamar que reside a força educativa da literatura: oferecer a possibilidade de um olhar distinto sobre o mundo, de estimular o leitor a interrogar-se sobre a substância de como é composto perante a força da criação de mundos possíveis (COLOMER, 1999)3. Nesse sentido, é fundamental selecionar obras que despertem o desejo de compartilhar interpretações, que estabeleçam o diálogo, ou seja, livros ― com capacidade evocadora, capaz[es] de provocar emoções, ressonâncias poéticas e poderosas imagens na mente do leitor‖ (COLOMER, 2002, p.174) Assim, é importante ter em conta que o tempo de formação de um leitor não é uniforme, tampouco pode ser medido em números de aulas ou períodos escolares: esse tempo é interno, particular e essa trajetória é construída de maneira singular. O professor atua, destarte, como um mediador, alguém Esse livro de Colomer não se encontra traduzido para o português, de modo que as traduções desse texto são de minha autoria. 3 Idem. 2
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que traz as chaves para abrir esse portal por onde os alunos-leitores poderão transitar em sua busca de sua formação. 2. Traçando o itinerário Como foi dito, os bairros da Tijuca, Vila Isabel, Maracanã e Estácio, que configuram a região que circunda o local onde se encontra o Campus, e de onde provém a maioria de nossos alunos, mesclam-se à história das origens do samba e do carnaval na cidade do Rio de Janeiro. Nas primeiras décadas do século XX, na zona portuária do Rio de Janeiro, numa localidade denominada como Pedra do Sal, aos pés do Morro da Conceição, o samba surge como uma marca identitária e cultural da população negra, que, justamente atravessava o momento de transição entre a escravidão recém-abolida e os ajustes à nova realidade. Para a sobrevivência desse grupo, foi essencial que se formasse uma rede de sustentação, a qual promoveu o intercâmbio entre as distintas etnias de que era formado esse grupo tido como homogêneo até então sob uma visão eurocêntrica e escravocrata (NOGUEIRA, 2007). Com as reformas engendradas pelo prefeito Pereira Passos, já no início do século XX, a população negra e marginalizada foi expulsa e terminou por aglomerar-se na região conhecida como Cidade Nova. Nessa localidade, em torno da casa de Tia Ciata (1854- 1924), Hilária Batista de Almeida, do núcleo das baianas radicadas no Rio de Janeiro, criou-se um núcleo de resistência cultural que, paulatinamente, foi invadindo o cerco do bloqueio social, econômico e geográfico (NOGUEIRA, 2007). A data de 1917 é emblemática desse movimento, pois, pela primeira vez, foi gravado em estúdio um disco com a descrição do gênero musical ― samba‖, registrada por Donga, que deu parceria ao influente jornalista Mauro de Almeida. A partir daí, o gênero devidamente registrado passa a sofrer uma série de intervenções, sobretudo no Estácio, ao pé do morro de São Carlos, com a criação da primeira escola de samba, na verdade um bloco carnavalesco ou rancho para alguns historiadores, a Deixa Falar (MÁXIMO & DIDIER, 1990). O berço do samba foi, inclusive, imortalizado nestes versos de O X do problema do compositor da Vila, Noel Rosa, escrito para Emma D'Ávila interpretar: Nasci no Estácio Eu fui educada na roda de bamba Eu fui diplomada na escola de samba Sou independente, conforme se vê
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Nasci no Estácio O samba é a corda e eu sou a caçamba E não acredito que haja muamba Que possa fazer gostar de você Eu sou diretora da escola do Estácio de Sá E felicidade maior neste mundo não há (...) (ROSA apud MÁXIMO & DIDIER, 1990, p. 494)
3. Abre-alas que queremos passar Começava o ano de 2014 e o grupo de professores do Campus Tijuca I decidiu planejar um projeto interdisciplinar que fosse uma tentativa de iniciarmos o ano letivo unidos em um mesmo objetivo. Nós, do chamado Núcleo Comum, viemos com a ideia de abordarmos o carnaval do ponto de vista da formação de uma identidade ― carioca‖, nessa mistura entre a cultura do morro e a do asfalto, remetendo às origens das diferentes manifestações presentes durante o carnaval de nossa cidade. Unimos os dois eixos e demos início ao trabalho, que foi distribuído da seguinte maneira:
1º ano: As marchinhas e suas origens; 2º ano: Os blocos e os cordões carnavalescos de ontem e de hoje; 3º ano: As diferentes manifestações do carnaval de rua ao longo do tempo: o entrudo, os corsos, os blocos e a figura dos Clóvis ou bate-bolas; 4º ano: Os sambas-enredo e o desfile das escolas de samba; 5º ano: As escolas de samba: sua origem e principais compositores.
Sendo assim, como Coordenadora Pedagógica da área de Literatura e única professora do 5º ano, resolvi partir do desfile das Escolas de Samba de 2014 e apresentar, por meio de um power point, um resumo de seus enredos, a forma de organização de um desfile de uma escola de samba e promover a leitura e a análise da letra do samba-enredo da União da Ilha, que tratava da história do brinquedo: É Brinquedo, É Brincadeira: A Ilha Vai Levantar Poeira. Como parte dessa análise, fizemos uma pesquisa sobre alguns brinquedos e brincadeiras conhecidas pelos alunos. A partir da busca da origem do Grêmio Recreativo e Escola de Samba União da Ilha do Governador, começamos a estudar a origem das escolas de samba, tomando como base o Dossiê das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro (NOGUEIRA, 2007) e o livro de Nei Lopes Sambeabá: o samba que não se aprende na escola (2003), textos que foram apresentados aos alunos de maneira simplificada e resumida e acompanhados de imagens exibidas em power point.
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Em sala, lemos os livros Tequinho, o menino do samba e Tequinho e o ensaio da bateria, ambos da autoria de Neusa Rodrigues e Alex Oliveira e com ilustrações de Mello Menezes. Os livros tratam das escolas de samba, sua organização, origem e importância histórica e simbólica de resistência para a comunidade afro-brasileira do ponto de vista de um menino que ― sonha um dia ser mestre de bateria e ver a escola da comunidade ser campeã‖ (RODRIGUES e OLIVEIRA, 2009, p.32). Ambos causaram muita empatia entre os alunos, uma vez que, em todas as turmas, houve sempre a participação de algum parente ou membro do grupo familiar — pais, avós, irmãos, tios, padrinhos e madrinhas — em algum setor de alguma escola de samba, fora os que participam desfilando. Em uma das turmas, um dos alunos é membro da bateria-mirim da GRES Unidos de Vila Isabel, o que enriqueceu muito nosso trabalho, pois o mesmo explicou para os colegas como se organiza a bateria, além de levar para a sala alguns instrumentos de percussão. Outro fator extraescolar que serviu para incrementar a leitura dos dois livros, foi o fato de eu ser amiga de uma pessoa da Diretoria da GRES Beija-Flor de Nilópolis, escola na qual desfila o menino Tequinho em quem os livros foram inspirados. Essa amiga enviou-me fotos do menino, que é filho do mestre-sala da Escola, as quais foram exibidas para os alunos e causaram muita euforia na criançada. Acredito que tal riqueza de aportes e de ― coincidências‖ seja oriunda do fato de na contemporaneidade a literatura para crianças ter evoluído de ―( ...) uma literatura infantil, ou seja, uma literatura para ser ouvida e acatada (não para fazer falar), para uma literatura que busca ou propicia, de diversas formas o diálogo, a participação ativa das crianças no mundo (HALFON, 2012, p.59).
4. “Eu vou pra Vila aonde o samba é da coroa‖ Nesse ponto do trabalho, surgiu o desejo de ler com os alunos um livro de literatura que abordasse a questão do samba e que, sobretudo, se aproximasse de questões vivenciadas pelos alunos; um livro que tocasse e desenvolvesse com destreza literária o tema tratado em sala, mesclando-o, como um pano de fundo, com as expectativas e dilemas característicos daquela faixa etária. Pois foi, numa dessas coincidências da vida, que, ao entrar em uma conhecida livraria da zona sul carioca, que me deparei, no setor de literatura infantil e juvenil, com o livro Ninguém aprende samba no colégio, da autora Christina Dias (2013), até então desconhecida por mim. Imediatamente o título me despertou o interesse, por se tratar de um dos versos do famoso samba de Noel Rosa e Vadico, Feitio de Oração.
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Após a leitura do instigante prólogo e apresentação do livro escrito por Martinho da Vila, figura emblemática do samba carioca e nacional, o interesse pelo livro aumentou. Nesse texto introdutório, Martinho ressoa justamente os versos de Noel ao criticar o fato da ― falta de informações sobre o samba nas nossas escolas‖ (VILA In: DIAS, 2013, p.10). Além disso, recomenda enfaticamente a leitura do livro: É isso aí, leitor, ou melhor, é este aqui um livro que se deve ler e reler. Não vacile. Abra bem os olhos e viaje pelas páginas desta obra tão bem escrita pela gaúcha Christina Dias, que, com a história da jovem Amélia, reconta um pouco da história do nosso samba. (Idem, p.11)
Devorei com prazer o livro em uma tarde e estava decidido: seria essa a narrativa a ser trabalhada com os alunos. O livro não se tratava de mais um daqueles volumes feitos por encomenda de modo a responder às novas demandas de mercado que visem a contemplar o cumprimento de determinadas leis. Absolutamente. O texto de Christina é o que podemos chamar de ― literatura sem adjetivos‖, usando uma categoria de Maria Teresa Andruetto (2012), por pertencer ao grupo de narrativas que é plurissignificativa, ambígua e que se abre a uma multiplicidade de caminhos a serem traçados pelo leitor. É uma obra construída de forma a dar ao leitor a possibilidade de ali reconhecer-se, de se perceber em suas contradições, em suas grandezas, mas também em suas idiossincrasias. É um texto cuja totalidade de interpretações escapará ao professor e que este deverá estar com os ouvidos bem apurados para apreender o máximo que puder e respeitar todas as leituras que dele vierem. De forma resumida, Ninguém aprende samba no colégio nos traz a história da adolescente Amélia, que em nada se assemelha à famosa xará saída dos versos de Ataulfo Alves e Mário Lago — o que a protagonista faz questão de esclarecer durante a narrativa. Amélia, a do livro, é uma garota de seu tempo, decidida, que participa de forma ativa dos eventos de seu colégio, mas que também mantém preservada sua sensibilidade sob a forma de uma caixinha de segredos e lembranças decorada por ela com esmero. O livro de Christina Dias situa-se no que Colomer (1999) descreve como uma literatura infantil e juvenil que reflete as mudanças das sociedades pós-industriais: ― uma literatura realista de novo tipo‖ (Idem p.116). Nesse rol de livros escritos sob esse marco, irrompem alguns temas ligados a preocupações e mudanças sociais que surgem a partir da década de 80 do século XX, tais como: a incorporação social da mulher, as
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mudanças ocorridas nas estruturas familiares, a forma de constituir sociedades multiculturais e a necessidade de preservar a memória histórica. (Ibidem) Por conta de um bordão repetido por um de seus professores: ― Não quero choro nem vela‖, Amélia, que vive no Sul apenas na companhia de sua avó,— formando parte dessa tradição, presente na literatura para crianças, de protagonistas órfãs que vivem com as avós — entra em contato com Noel Rosa e seu universo, além de começar a desvendar certos mistérios sobre a história de sua família, sobretudo a de seu pai Osvaldo. A narrativa de Christina Dias entremeia o dia a dia de Amélia na escola, os segredos de família aos versos de canções famosas do compositor da Vila. Por meio dessas canções, vão sendo revelados para Amélia esses segredos, o que permite que ela possa renascer, ao final, na sua relação com a avó e com o mundo. O livro vai criando expectativas nos jovens leitores, além de trazer, com um ponto de vista cúmplice, muitos dos problemas vivenciados por eles na sua relação com a escola e com seus familiares e amigos. A linguagem empregada é cuidada e aproximase do universo infantil e juvenil, sem, no entanto, apresentar nenhum grau de facilitação para conseguir essa empatia com o leitor. Ao final, são apresentadas, nos paratextos, uma breve biografia de Noel Rosa e as letras de suas canções mais famosas. 5. “Com que roupa eu vou?‖ Como estratégia, decidi ler o livro para os alunos em partes, parando sempre em trechos que criassem um certo suspense e curiosidade, como se fosse um folhetim. Foi costumeiro ouvir da alunada comentários do tipo ― Mas você vai parar na melhor parte?‖ ou ― Logo agora você vai parar?‖, além dos inúmeros pedidos para continuar a leitura. Em paralelo, fui trazendo elementos de conhecimento de mundo sobre as referências presentes no livro e estimulando que os alunos passassem também a pesquisar sobre o que era citado no texto: o Rio antigo dos anos 20 e 30 do século XX, a vida e a obra de Noel Rosa. O livro que referenciou todo o material produzido foi Noel Rosa: uma biografia, de João Máximo e Carlos Didier (1990), um verdadeiro tratado não só sobre a vida e a obra do biografado, mas um compêndio sobre a história do samba e da música popular do final do século XIX e as quatro primeiras décadas do século XX. Para trabalhar com o livro e analisarmos as características da protagonista, parti da canção de Ataulfo Alves e Mário Lago, Amélia, trazendo o contexto em que foi
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criada a música, a questão da mulher antigamente e o que temos hoje em nosso meio. Aos poucos, os alunos foram dando-se conta de que a heroína do livro era uma antiAmélia em busca de seus direitos. Foi apresentado um novo power point sobre o Rio de Janeiro dos anos 20 e 30 e sobre a biografia de Noel Rosa, com imagens de Vila Isabel hoje, com suas calçadas com pedras portuguesas que representam acordes das canções de Noel e a estátua do compositor em que se vê representada a famosa cena de Conversa de Botequim. Nesse momento, muitos alunos que circulam pelas ruas desse bairro puderam reconhecer e compreender imagens e símbolos de seu cotidiano que até então não lhes aportavam nenhum significado. À medida, também, em que certas canções eram citadas no livro, fui levando a letra completa e gravações antigas das mesmas. Um pai de aluno, que toca surdo na bateria da Vila Isabel, gravou um CD com vinte e seis músicas de Noel Rosa, material que recolheu na escola de samba e com que nos presenteou. As turmas, sensibilizadas pelo gesto, se interessaram ainda mais pelos sambas de Noel. Como ponte a análise dos os três personagens ícones do carnaval (Pierrô, Colombina e Arlequim), cantamos Pierrô apaixonado, de Noel e Heitor dos Prazeres, de 1935, e analisamos a sátira a essa história feita pelos autores, típica do ambiente carnavalizante de acordo com o que discorre Bakthin (2008)4. Na atividade seguinte, propus à alunada uma atividade em dupla na qual eles deveriam fazer uma espécie de paródia à letra de Conversa de botequim. Os alunos, usando a técnica do decalque, recriaram a música e, em muitos casos, situando essa conversa num botequim do século XXI com a presença de celulares e com o uso de gírias de seu cotidiano. Os alunos que o desejassem poderiam apresentar sua versão para a turma e, nas três classes, todas as duplas quiseram compartilhar seus trabalhos, que eram ouvidos com atenção e aplaudidos ao final. Uma contribuição emocionante ao trabalho se deu por meio de uma aluna, J., que, ao comentar em casa sobre o que estávamos lendo em classe, descobriu ser bisneta de um dos amigos de Noel Rosa, Homero Dornellas, ― um músico competente e generoso‖ (MÁXIMO & DIDIER, p.149). Foi justamente Dornellas a quem Rosa procurou para registrar a partitura de Com que roupa?, exigência do estúdio de Conferir, sobretudo, o primeiro e o terceiro capítulos da obra, em que são estudados o riso na Idade Média, a inversão entre alto e baixo no grotesco e os golpes e injúrias presentes nos atos cômicos em que os reis são detronados.
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gravação. Noel, acompanhado por Almirante, a pedido de Dornellas, ouve nesse mesmo dia uma composição deste músico e decide gravá-la, tornando-se o grande sucesso do carnaval de 1930, o samba Na Pavuna. Com o material cedido pela família da aluna, preparei um texto ilustrado de modo a valorizar tão significativa participação Outras canções, como Três apitos, Festa no céu, Gago apaixonado, Com que roupa?, Último desejo, O orvalho vem caindo foram sendo apresentadas aos alunos no decorrer da leitura do livro e seus contextos iam sendo analisados, para que os alunos pudessem fazer mais inferências quanto ao sentido e a intencionalidade das letras ali contidas. Também foram exibidas cenas do filme Noel, o poeta da Vila, dirigido por Ricardo Van Steen (2006), uma vez que julguei inadequado exibi-lo na íntegra devido à faixa etária dos alunos. Entremeadas a essas atividades, íamos discutindo os sentimentos e atitudes das personagens, as possibilidades que poderiam se apresentar no enredo (as previsões e antecipações), confrontando opiniões, dentro do que Cecilia Bajour diz a respeito do ato de leitura : ― (...) o ato de leitura consiste em grande medida na conversa sobre os livros que lemos.‖ (BAJOUR, 2012, p.22) Fizemos uma pesquisa sobre Christina Dias e apresentei os dados coletados sobre sua vida e a obra da autora gaúcha foi apresentado às turmas num novo power point. Nesse meio tempo, de posse do e-mail da autora e por meio do recurso do Facebook, estabeleci contato com ela no intuito de que os alunos se correspondessem com ela por e-mail ou chat utilizando o Laboratório de Informática da escola. A proposta da autora, porém, foi bem mais sedutora, e por meio dela eu conseguiria conciliar dois objetivos numa só atividade. No dia 29 de maio, ela estaria no Rio de Janeiro, no Salão do Livro Infantil e Juvenil da FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil), e se propôs a receber as três turmas, respeitando a diferença de horário disponível, em função dos dois turnos das mesmas. Antes desse momento, porém, foi proposto aos alunos que, divididos em grupos de sete, escolhessem uma das canções do Noel Rosa ouvidas em sala e a dramatizassem. A música seria colocada no aparelho de som e eles teriam de escolher uma maneira de representá-la de forma teatral. Houve duas aulas para planejamento e ensaio das apresentações e as soluções encontradas foram muito criativas e inesperadas em alguns casos. Para a canção Último desejo, por exemplo, um grupo formado somente por meninas encenou um programa de rádio com auditório característico dos anos iniciais do século passado, entre outros. A solidariedade e o trabalho em equipe com divisão de tarefas foram altamente estimulados durante esse período.
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Durante as apresentações era sorteado um jurado, composto por três alunos, que deveria avaliar a apresentação segundo três critérios: criatividade, participação de todos e capricho. Após as apresentações, os jurados expunham seus votos e os participantes do grupo avaliado tinham direito a resposta. Essa atribuição de responsabilidade teve como objetivo apurar um olhar crítico sobre uma obra artística e desenvolver o poder de argumentação e contra-argumentação dos alunos. No dia 29 de maio, realizamos a visita ao Salão do Livro e o encontro com a autora Christina Dias. A conversa com a autora foi extremamente profícua e ela encantou-se pelos alunos, por sua leitura profunda do livro e pela qualidade de seus questionamentos. As turmas também se encantaram com a escritora gaúcha, estabelecendo um elo afetivo com a mesma. Ao final de tudo, foi feita uma avaliação do trabalho desenvolvido em sala, primeiro oralmente e depois por escrito, na qual os alunos se avaliavam em relação à turma e aos trabalhos e depois avaliavam as aulas de Literatura desse período. A partir dessa avaliação e durante nossas conversas e debates em sala de aula, pude obter o que Martina Fittipaldi (2012)5 trata como ― respostas leitoras‖ dos alunos ao material trabalhado durante o projeto. Fittipaldi trata dessas repostas no plural, uma vez que ― as respostas aos textos são plurais e, poderíamos dizer, quase infinitas‖ (Idem, p.72). Essa multiplicidade de respostas ao mesmo tempo em que enriquece o trabalho em sala de aula, torna a tarefa de organizar e planejar o seguimento a elas uma ― tarefa titânica‖ ainda segundo as palavras de Fittipaldi (Ibidem). 6. “O samba então nasce no coração‖ Finalizado o projeto, mais uma vez confirmo que o ambiente escolar pode e deve ser um espaço privilegiado de vivências coletivas e individuais, de aquisição de gosto pela leitura literária, sobretudo em um país como o nosso. A escola deve ser um local em que prepondere o estímulo ao aluno no sentido de refletir, de desenvolver seu gosto, de tomar contato com o patrimônio da humanidade em suas manifestações artísticas e culturais. Por meio da leitura, ele poderá ampliar seus horizontes, concorrendo para isso o auxílio luxuoso dos colegas e a mediação do professor. Acredito que o compartilhamento deste projeto possa fomentar a reflexão sobre o papel da leitura literária na construção da identidade nas séries iniciais, por meio da Este livro não se encontra traduzido para o português, de modo que as citações foram traduzidas por mim.
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alteridade. A leitura de um texto literário na escola (e fora dela) ajudará ao leitor iniciante a poder ter acesso a fragmentos do mundo que não são aqueles que ele conhece em seu cotidiano. A literatura supre uma necessidade humana de ouvirmos histórias a fim de não nos limitarmos a uma única existência, a podermos experenciar outros mundos e outras vidas. Dessa forma, a literatura para crianças se alça também a ser verdadeiramente apenas literatura, isto é, um território da linguagem no qual está presente o passado de todos e de cada homem, em que é permitido ao leitor recordar (etimologicamente, recordar vem de passar pelo coração) e reviver suas emoções; emoções que só poderá viver por meio da leitura literária. Referências ANDRUETTO, María Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. Trad.: Carmem Cacciacarro. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012. BAJOUR, Cecilia. Ouvir nas entrelinhas: O valor da escuta nas práticas de leitura. Trad: Alexandre Morales. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012. BAKTHIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hicitec; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. Trad: Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2007. ________________. Introducción a la literatura infantil y juvenil. Madrid: Editorial Síntesis, 1999. ________________ (dir.). Siete llaves para valoras las historias infantiles. Madrid: Fundación Germán Sánchez Ruipérez, 2012. DIAS, Christina. Ninguém aprende samba no colégio. São Paulo: Editora Globo, 2013. FITTIPALDI, Martina. ― La categorización de las respuestas infantiles ante los textos literarios. Análisis de algunos modelos y propuestas de clasificación‖ In: ____________ y COLOMER, Teresa (coords.). La literatura que acoge: Inmigración y lectura de
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A PRESENÇA DE XANGÔ EM TENDA DOS MILAGRES
Bárbara Poli Uliano Shinkawa (IFPR/ PG -UEL) A obra de Jorge Amado é bastante conhecida e respeitada por abordar o povo e a cultura da Bahia. Parte de sua fama se dá também pela maneira como o escritor mistura elementos religiosos e destaca a cultura do Candomblé. Assim, a ideia deste estudo é abordar a presença do orixá Xangô no romance de Jorge Amado, Tenda dos milagres. O romance é interessante pelos vários assuntos que o transpassam como a mestiçagem, a política, (já que a obra vem à tona em plena ditadura), a imposição cultural e, entre outras ligações que Amado faz, a religiosidade, em especial, o Candomblé, bem como a defesa de tudo o que ele abrange é latente. Segundo Prandi (1991), Xangô é orixá geral para os brasileiros. Não à toa, Amado constrói a personagem principal do livro, Pedro Archanjo principalmente sob égide de Xangô. Archanjo é Ojuobá de Xangô. Sob sua proteção, Mestre Archanjo se configurará como o grande representante do povo e da cultura afro-brasileira no enredo. Assim, a trajetória de Xangô e de Pedro Archanjo como Ojuobá e a ligação estabelecida entre homem e seu orixá é o que se quer salientar no artigo. A religiosidade em Jorge Amado O misticismo e a religiosidade sempre marcaram presença na ficção de Jorge Amado. Não que em outros escritores não haja misticismo religioso, mas, se há um lugar em que a mistura religiosa ganha espaço são nos romances de Jorge Amado. ― [Ele] é, antes de mais nada, sincrético. Como é sincrética a Bahia, seu personagem principal. [...] misturava todas as nações de candomblé. Santos católicos e orixás se confundem no enredo de seus romances na mais fina tradição do sincretismo‖. (PRANDI, 2009, p. 49).
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A obra de Amado sempre privilegiou a Bahia. A verdade é que Jorge Amado fez de seus romances belas telas sobre a vida baiana e especialmente do povo e de sua cultura: Jorge Amado como bom baiano e brasileiro é também um apaixonado pelas manifestações e realizações do povo descendente de africanos. Autor muito polêmico, adorado pelas massas baianas, como cidadão de destaque, faz parte do Opô Afonjá como um dos ministros de Xangô, desprezado pela crítica universitária, repudiado pelos intelectuais negros é, no entanto, o mais lido dos nossos autores fora de nossas fronteiras. Mestre Jorge talvez seja quem melhor evidencia a nossa verdadeira face, ao mesmo tempo, negra, branca e índia, num país que teima em ser europeu. (ADOLFO, 2000, s/p).
Os romances de Amado trazem um traço em comum: a pouca ou nenhuma diferença entre ficção e realidade. O que sugere que na Bahia, em especial, o real é por si só maravilhoso. Para Norma Goldstein, (2009, p. 15-16), há três possíveis causas para essa característica amadiana: Primeiro, para acentuar a verossimilhança, a impressão de verdade do universo ficcional — de seus fatos, ambientes, personagens. Em segundo lugar, pela intenção de situar esse universo na Bahia, com seus cenários, costumes e valores. Pessoas reais e figuras do romance vivem todas no mesmo contexto: aquele que é marcado pela identidade baiana do autor e de sua obra. Em terceiro lugar, pela própria opção estilística de Jorge Amado, que se definia como um ‗contador de casos‘, um ‗homem do povo‘, um cronista da vida cotidiana da Bahia.
Sendo uma ou todas as razões, o fato é que o real maravilhoso de Amado permite que os orixás circulem livremente aonde queiram ir. ― A religião na Bahia, como em Jorge Amado, não se separa do mundo real, que se mostra cheio de mistério, segredo e magia‖, (PRANDI, 2009, p.49). Entram em contato com os humanos, brincam e selam os destinos desses. Essa intimidade em falar sobre o Candomblé se deve ao fato de o escritor se aproximar da religião. Jorge foi Ogã e Obá, respectivamente, protetor e um dos conselheiros do terreiro. Pelos enredos acontecerem na Bahia, já há um quê de mistério e um estado de alegria que toca o infindável. Freyre, (2003, p.194), argumentou que ― [n]a Bahia tem-se
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a impressão de que todo dia é dia de festa. Festa de igreja brasileira com folha de canela, bolo, foguete, namoro‖. Conjuntamente a isso, por volta de 1930 a 1940, houve a importância da Bahia como um centro de estudo a respeito da cultura e do povo de origem africanas no auge da pesquisa acerca desse assunto. (HEALEY, 1996). Há vários trechos de romances de Jorge Amado que expressam a alegria baiana e, fortemente, a presença do Candomblé. Antes mesmo de ser ler as obras, já são vistos elementos ligados aos orixás, por exemplo, as ilustrações que exibem Exu abrem e fecham as histórias. Amado, certamente, ofertou a ele para que se desse de fato a comunicação. Deu certo, o escritor baiano é um dos mais traduzidos e lidos. As religiões afro-brasileiras: breve explanação De certa forma, quando se pensa em religiões afro-brasileiras algumas verdade e inverdades constituem essas crenças. Um ponto forte em comum entre as nações de candomblé1 é o elemento mágico. Para Prandi, (2003, p.22), ― Ambas pressupõem o conhecimento e o uso de forças sobrenaturais para intervenção neste mundo, o que privilegia o rito e valoriza o segredo iniciático.‖. Geralmente as religiões de origem africana se organizam em terreiros – que são os templos – para realizarem seus rituais sagrados. O povo-de-santo, os seguidores, mantém em sua organização a ideia de uma grande família que se reúne para celebrar. Segundo Prandi, (2009, p.49), O conjunto de todos os seguidores das religiões afro-brasileiras é chamado de povo de santo. O termo ―s anto‖ é uma tradução livre para o português da palavra ―or ixá‖, da língua iorubá. Povo de santo quer dizer, portanto, povo de orixá, povo que cultua os orixás. O candomblé reproduz simbolicamente a antiga família iorubá, que no Brasil foi completamente desestruturada pela escravidão. A comunidade do terreiro é chamada de família de santo, e cada um de seus membros ocupa um lugar na hierarquia, isto é, nos diferentes níveis de poder. Seus membros são designados como os componentes de uma família comum. Acima de todos está a mãe de santo ou o pai Conforme Prandi ( 1991), o Candomblé ganhou vários nomes dependendo da região em que se instalou. No Maranhão,Tambor-de-mina, Batuque no Rio Grande do Sul, Xangô em Pernambuco, entre outros. Para maiores esclarecimentos, vide PRANDI, José Reginaldo. Os candomblés de São Paulo. 1
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de santo, que são os sumos sacerdotes de um terreiro. Abaixo estão os filhos de santo. Os filhos da mesma mãe ou pai de santo se consideram irmãos de santo. Cada um tem seus parentes colaterais, tios de santo, sobrinhos de santo etc.
Diferentemente das religiões cristãs que possuem em seu ― panteão‖ figuras e limites definidos para o bem e o mau, o Candomblé, em especial, ― que está mais perto do pensamento africano que a umbanda, o bem e o mal não se separam, não são campos distintos.‖ (PRANDI, 2003, p.23). Outro ponto interessante a ressaltar é que no Candomblé, tendo em vista sua formação familiar que, no Brasil, foi destruída pela escravidão, há níveis de aprendizagem, muito próximo das fases da vida. A infância, por exemplo, aproxima-se do período de iniciação. Ao iniciado são imputadas várias atividades concernentes ao aprendizado que segue uma hierarquia: As obrigações iniciáticas preparam o filho ou filha de santo para que os orixás se manifestem em seus corpos durante o transe ritual. Os filhos de santo que entram em transe são chamados iaôs, ou feitos e feitas. Além dos iaôs, há a classe dos que não entram em transe, constituída de equedes e ogãs. Equedes são as mulheres encarregadas de cuidar dos orixás manifestados nos iaôs e dançar com eles. Os homens que não entram em transe são os Ogums, responsáveis pelos sacrifícios votivos, os alabês, que tocam os atabaques, e os que cuidam de outras tarefas indispensáveis ao culto e ao funcionamento e proteção do terreiro. São genericamente chamados ogãs. Alguns são ogãs honoríficos, com encargos de cunho mais social que religioso. (PRANDI, 2009, p.50).
Cada filho tem uma ligação muito importante com seu orixá. Trabalhar para que esse elo aconteça e permaneça em harmonia é um dos preceitos primordiais para o povo-de-santo. Há obrigações que devem ser cumpridas para agradar o orixá. que possui um lugar especial dentro do Candomblé, pois os ritos, as comidas, a convivência e as obrigações do filhos são em prol dos orixás: Os deuses do candomblé devem ser alimentados e vestidos como qualquer membro de uma família. O ebó — oferenda ou sacrifício — contém tudo de que eles necessitam: comida, bebida, roupa, adornos e outros produtos de uso pessoal. É preciso conhecer o gosto do orixá para que o ebó seja aceito por ele. Os orixás também gostam de dançar
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e usam o corpo das feitas, no transe ritual, para se juntar aos seres humanos nas cerimônias dançantes de confraternização entre deuses e mortais. Nesses momentos rituais, por meio de intrincada coreografia, eles representam passagens de suas mitológicas aventuras na Terra. Porque um dia foram seres humanos como nós. (PRANDI, 2009, p.50).
Muitos nomes relacionados ao universo candomblista tem como fonte os mitos Yorubás ou nação Queto, justamente os ressaltados por Jorge Amado em suas obras e, possivelmente, por isso, são os que atingiram a população com maior amplitude. Mas o Candomblé traz de suas origens africanas outras influências como as dos povos Jeje e Bantu ou nação de Angola. Segundo Adolfo, (2000, s/p), na área das religiões de matriz bantu no Brasil, existe uma enorme carência de estudos, pois muito pouco ou quase nada tem sido feito desde que nossos pioneiros na pesquisa do africano e nas suas manifestações simbólicas afirmaram não encontrar elementos de peso da cultura bantu no Brasil. Desde tal acontecimento, a atenção dos estudiosos passou a ser voltada para os sudaneses, criando, com isso, a temática do nagocentrismo que muito prejuízo tem causado, já que reforça a idéia lançada por Nina Rodrigues e acalentada por Edison Carneiro e Arthur Ramos de que os bantu eram possuidores de uma mítica paupérrima, com ausência total de mitos cosmogônicos e fundadores, razão por que teriam se apoderado da mítica e dos rituais nagô. Em decorrência da falta de estudos mais aprofundados sobre o tema, a tarefa de compreender a mítica bantu no Brasil, infelizmente, tornou-se quase impossível.
A condição de falta de história escrita da cultura africana em geral possui pelo menos dois pontos importantes. O primeiro deles se deve ao fato de que ao entrar em contato com o solo brasileiro, a cultura religiosa do Candomblé sofreu fortes modificações, ainda mais sendo a religião ― herética‖ do outro, o duplamente explorado e, por isso, outremizado, visto que era arrancado de sua terra e trazido para ser torturado na condição escrava. O segundo ponto interessante é que há que se lembrar do valor da oralidade. A oralidade é o suporte maior para todo o ensinamento de origem africana. Sendo assim, a possibilidade de registro no sentido escrito da palavra é bastante dificultada:
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A oralidade se constitui no ponto fulcral das atividades no recinto das casas de culto, oralidade vinda, em parte do ―e thos‖ africano dos povos aqui aportados, mas que também passou por um processo de reconstrução, de rearranjo necessário para a estruturação do atual fato cultural. No candomblé, a narrativa é tudo e tudo se estrutura como uma narrativa, sendo os acontecimentos sagrados (ou sacramentados) passados de pessoa para pessoa, como insistem os autores clássicos, Roger Bastide e Juana Elbein. A entonação da voz, o calor dos lábios, a saliva, são partes do ritual, completam o conteúdo do narrado, enfim, não é o fim último – mas é o elemento que veicula um trajeto maior: o trajeto no qual se constrói a iniciação. (ADOLFO, 2000, s/p).
Tendo em vista a perseguição que se iniciou a todo aquele que não expressasse a religião oficial do Brasil, que por muitos anos foi o Catolicismo, o povo-de-santo teve de se camuflar e, em uma saída bastante estratégica, de sobrevivência, acabou por agregar elementos da religião católica para evitar maiores confrontos sociais e policiais. Assim, não é incomum ouvir que Santa Bárbara e Iansã, por exemplo, seriam a ― mesma‖ entidade, caso esse muito bem aproveitado por Dias Gomes em O pagador de promessas. Ocorre que o Candomblé perdeu, gradativamente, essa ― necessidade‖ de elo com o catoliscismo e começou, aos poucos, a reforçar a ligação com a origem: a cultura africana. Já a Umbanda que ― nasceu num processo de branqueamento e ruptura com símbolos e características africanas, propondo- se como uma religião para todos, capaz mesmo de se mostrar como símbolo de identidade de um País mestiço‖, (PRANDI, 2003, p.20), ainda mantém esse vínculo: Um seguidor da umbanda está longe dessas preocupações. Ao contrário, ao invés de fortalecer sua identidade religiosa, uma aspiração muito corrente entre os umbandistas é a de se iniciarem também no candomblé. Muitos o fazem e entre esses não são poucos os que acabam abandonando a umbanda definitivamente para se dedicar aos orixás segundo o rito do candomblé. Assim se enfraquece a autonomia umbandista. Nos ritos da umbanda, as preces católicas e a invocação de Jesus, Maria e santos da igreja nas letras dos cantos sagrados continuam indispensáveis. Num hipotético processo de dessincretização da umbanda, grande parte de seu hinário teria que ser abandonada, pois as referências às crenças católicas são muito explícitas. (PRANDI, 2003, p.22).
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Se por um lado, as religiões de base africana, grosso modo, gradativamente tenham conseguido alguma paz por parte da polícia, o preconceito, a falta de conhecimento e uma insistente propaganda negativa produzida pelas igrejas neopentecostais, prossegue a extirpar o sossego do povo-de-santo. O Candomblé exerce uma postura diferente em relação aos seus seguidores, por exemplo, não obriga seus seguidores a tomarem posturas radicalmente diversas de sua ontologia, o fiel de candomblé não é incentivado a mudar, a ser outra pessoa, mas sim a aperfeiçoar, tendo como referencial o mito de seus orixás, a sua própria natureza. A sabedoria africana não quer que o homem seja outro, nem seja deus, mas que seja profundamente homem porque no recôndito de sua humanidade encontrá-se o divino, a força motriz, o grande construtor e mantenedor da vida. (ADOLFO, 2000, s/p).
Xangô e o seu Ojuobá em Tenda dos milagres No início do texto, o narrador enfoca a região do Pelourinho que ele coloca como ― vasta universidade‖ e alega em cada casa ou tenda existir um professor. Conforme vai apresentando as profissões, há comparação com o orixá que seria correspondente. A maneira como esse narrador, feito por Amado, vai apresentando o ambiente sugere que esse seja um grande templo de Candomblé com suas entidades prontas para o trabalho, no duplo sentido, que nesse caso a palavra sugere. Logo, no próximo capítulo do romance, surge a figura de Fausto Pena, contratado por Levenson, um nobel de Ciência, que se encanta pelas obras de Pedro Archanjo e, ao tocar nesse nome, inicia um verdadeiro terremoto por parte de jornalistas e outros ligados à imprensa para saber de quem se tratava, mesmo porque, até então Archanjo não passava de um ―bê bado subversivo‖. Vale ressaltar que ― Tenda dos milagres‖ se desenvolve em dois planos. O primeiro é o presentificado pela chegada de Levenson e a efervescência causada pela sua declaração acerca de Archanjo, bem como a organização às pressas pela passagem do centenário do autor baiano e claro todo o interesse financeiro e político acima do que seria a real intenção: Pedro Archanjo – vida e obra. O segundo plano narrativo ressalta a trajetória de Pedro Archanjo. As aventuras amorosas, os vários filhos, os enfrentamentos sociais e religiosos passados pelo Ojuobá – os olhos de Xangô. Como pano de fundo, as teorias raciais e a supremacia da medicina, por meio dos médicos, estabelecendo-se como a única, se não única, mas a melhor detentora de saídas e resoluções para as questões sociais. E esse é o mote da pendenga entre o bedel da faculdade, Pedro Archanjo, e o lente, Nilo Argolo, representando no livro o famoso médico Nina Rodrigues. O conflito, mais
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especificamente, surge entre os dois, porque Archanjo produz um livro sobre os encontros raciais das famílias baianas da alta sociedade. Nilo Argolo, sendo um dos representantes da classe alta, não aceita sua origem mestiça. Assim, dá-se início a uma intensa batalha ideológica e verbal para, de um lado esmagar o preconceito racial e religioso, do outro, aniquilar a voz estridente da multidão menosprezada. Especialmente o segundo plano e presença de Xangô são pontos caros a este trabalho. Na sequência da narrativa, surge Pedro Archanjo, no bar, sendo chamado de mestre e já em idade um tanto quanto avançada. Descrevem-se os momentos que antecedem a morte de Archanjo. No trecho, é destacado que antes de estar ali no botequim, o mestre tinha ido fazer as obrigações a Xangô. Vê-se aqui a importância da relação do homem com seu orixá, manter essa relação em harmonia é algo interessante. Na cena em questão, Amado deixa alguns detalhes da reunião: Iam para o amalá de Xangô, obrigação das quartas-feiras. Tia Maci dava de-comer ao santo, no peji, ao som do adjá e do canto das feitas. Depois em torno à grande mesa na sala, serviam o caruru, o abará, o acarajé, por vezes um guisado de cágado. Mestre Archanjo era bom de garfo, de garfo e copo. (AMADO, 2008, p.35).
Pedro Archanjo é Ojuobá, os olhos de Xangô, aquele para o qual não há portas fechadas, assim os orixás ordenaram. (AMADO, 2008). Xangô é o orixá da justiça, do fogo, do trovão, entre outras acepções. Segundo a pesquisa realizada por Prandi, em ― Os candomblés de São Paulo (1991), Xangô é um orixá evemérico, ou seja, ele teria existido como ser humano e por suas virtudes fora tornado orixá. Foi rei de Oió, era justo, gostava da presença da corte e do poder, tentava sempre resolver as quizilas. Também bastante sedutor, possuía três esposas. Certa vez, pediu a Iansã, uma de suas esposas, que buscasse um poção fantástica. A mulher ia trazendo, mas sua curiosidade a fez provar do líquido, que por ser bastante ruim, foi cuspido por Iansã que liberou fogo. Encantado com a possibilidade, Xangô foi testar o composto mágico e acabou incendiando a cidade. Destronado, o rei culpado recebeu a pena por seu delito: a morte. Dirigiu-se à floresta e assim o fez, mas como o povo de Oió não encontrou o corpo, chegaram à conclusão que o rei virara orixá e saíram proclamando: ― Oba ko so! Obá Kossô!" "O rei não se enforcou". (PRANDI; VALLADO, 2014, s/p). A partir dessa pequena digressão acerca da figura de Xangô e lembrando que o orixá que a pessoa carrega é grande responsável pela sua personalidade, é possível já premunir como é o perfil de Archanjo, ainda mais ele sendo os olhos de Xangô. Com a morte do protagonista logo no início, por meio de fluxos de consciência e diálogos gradativamente o leitor é levado ao começo da história de Archanjo. Ao relembrar do amigo, várias personagens vão dando dicas da figura do mestre:
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De repente a ladeira começou a animar-se. Do largo da Sé, da Baixa dos Sapateiros, do Carmo, surgiram homens e mulheres apressados e aflitos. Não vinham pela morte de Pedro Archanjo, sábio autor de livros sobre miscigenação, talvez definitivos, e, sim, pela morte de Ojuobá, os olhos de Xangô, um pai daquele povo. [...] Ester, [...] puxava os cabelos e batia nos peitos: — Ai, Archanjo, meu santo, por que não disse que estava doente? Como eu ia saber? Agora, Ojuobá, como vai ser? Tu era a luz da gente e nosso entendimento. Tu sabia de ontem e de amanhã, quem mais vai saber? (AMADO, 2008, p.36).
Também é possível visualizar a concepção religiosa sincrética de Amado. Embora Archanjo fosse do Candomblé, autoridades e partícipes, por assim dizer, de outros segmentos religiosos, propriamente o católico, mantinham contato com ele e o povo de santo e ele, por sua vez, também com outros segmentos religiosos. Tanto é que isso fica dito no momento em que se discute como devem ser os procedimentos fúnebres: Mas o sacristão da igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, parceiro de longa data e de muita pagodeira, lembrou ser Pedro Archanjo membro antigo da Confrataria, benemérito e remido, com direito a velório no templo, encomendação do corpo, missa de sétimo dia e a jazigo perpétuo no Cemitério das Quintas. (AMADO, 2008, p. 37).
A vida de Mestre Archanjo teve como palco a tenda de Lídio Corró, grande riscador de milagres, não à toa seu estabelecimento ficara conhecido como Tenda dos Milagres que: ― é uma espécie de Senado, a reunir os notáveis da pobreza, assembleia numerosa e essencial. Ali se encontram e dialogam ialorixás, babalaôs, letrados, santeiros, cantadores, passistas, mestres de capoeiras, mestres de arte e ofícios, cada qual com seu merecimento‖ (AMADO, 2008, p.90). É desse ― senado‖ que se desenvolve um bedel audacioso capaz de mudar os rumos da origem da alta sociedade baiana e causar grande estardalhaço na vida alheia e na própria. Também não se pode esquecer a grande prole providenciada por Archanjo com muitas mulheres, o que revela sua interação com Xangô, mas também com Exu, afinal ele era ― filho predileto de Exu, senhor dos caminhos e encruzilhadas‖ (AMADO, 2008, p.118). Certa vez, a fim de revidar o castigo proposto por uma iabá, que de beleza estonteante mexera com brios de homem de Pedro Archanjo o orixá da comunicação o ajudou. Humilhado pela impotência sexual, logo ele, grande galanteador, foi avisado por Exu das intenções da iabá que lhe disse o que fazer ressaltando que ― o resto Xangô vai lhe dizer‖ (idem). E disse, tanto é que o mal propósito da iabá se desfez em uma cena memorável do romance.
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Mas outra atuação igualmente importante para Pedro Archanjo será em prol da defesa dos terreiros de Candomblé brutalmente perseguidos pela lei e pelo preconceito personificados por Pedrito Gordo, um delegado dado a valente, cruel e algoz, especialmente em se tratando de negros, mestiços e da cultura afro-brasileira. Versado em Gobineau, Pedrito nutria verdadeiro ódio pelos templos de Candomblé e tudo o que ele representava. Acompanhava de perto as invasões aos terreiros e expressava imensa satisfação ao depredar os templos: Pedrito Gordo soltara a malta do terror com carta branca: invadir terreiros, destruir pejis, surrar babalaôs e pais-de-santo, prender feitas e iaôs, iyakêkêrês e iyalorixás. Vou limpar a Bahia dessa imundície! Deu ordens estritas aos soldados da policia, organizou, a escolta de bandidos, partiu para a guerra santa. (AMADO, 2008, p. 207).
Quando começaram os ataques mais ferrenhos, Pedro Archanjo fora avisado por Mãe Majé Bassã, minutos antes de ela falecer, do perigo que rondava o povo-de-santo. Archanjo guardou as palavras de Mãe Bassã: ― mistura as línguas, usa palavras e frases iorubás, é a última lição, o ensinamento derradeiro‖ (AMADO, 2008, p.207). O que Mãe vira, era um aviso, premonição do que iria realmente acontecer. Em sua ira e arrogância, Pedrito Gordo sabendo do dia de Xangô foi atacar o terreiro de Manuel Praxedes. Partindo para as mais vis agressões, feriu Praxedes no ombro, que era de Xangô. Sangrando, Xangô ganhou o mato para se preservar da sanha de Gordo. Xangô sumiu no mato, o ombro em sangue, a dança de chicotes. Os bandidos espalharam-se atrás dos fugitivos. Ah! se pegassem Felipe Muxelê com seu Xangô! Ah! se pusessem as mãos em cima de Manuel de Praxedes, que maravilha! Nem rastro no mato escuro, apenas o pio das corujas. A destruição dos objetos rituais não acalmou a fúria, o ódio dos cruzados. Era pouco. Puseram fogo no barracão, as chamas consumiram o Terreiro de Sabaji. Para exemplo. (AMADO, 2008, p. 213).
Por muito tempo se deu a chamada ― guerra santa‖, iniciada e mantida especialmente por Pedrito Gordo, que era comparado a grandes heróis das cruzadas por Nilo Argolo. Pedrito atormentou a vida de muitos pais e mães, alguns foram feridos e/ou mortos. Mas o povo-de-santo, mesmo sendo subjugado, não se deixou abater. Um deles, Procópio, mesmo ameaçado de morte, tendo que viver escondido, no dia de saudar seu orixá, desobedeceu à lei personificada na figura de Gordo. Logo após o início da cerimônia, o delegado com seus capangas, um deles Zé Alma Grande – um brutamontes – adentra ao terreiro proclamando a sentença de morte
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a Procópio. Pedro Archanjo reconhece Zé, fora Zé de Ogum, antes de ser impedida a sua entrada no terreiro por Mãe Bassã. A tragédia estava anunciada. Entretanto, Pedro, com olhos de Xangô, percebe algo diferente. Oxossi, o rei e guerreiro da selva, na pessoa de Procópio, mantém-se firme diante da investida da corja de Pedrito, que por sua vez, representada por Zé Alma Grande, investe em Procópio. Nesse instante, Archanjo, sendo o Ojuobá ou o próprio Exu profere as mesmas palavras que Mãe Majé Bassã lhe contara a Pedro. O fato é que Zé é tomado pelo santo e acaba com valentia de Pedrito e seu bando: mata um e deixa outro desacordado. Diante da fúria do orixá, Pedrito Gordo não teve outra alternativa: correu covardemente. Pediu demissão da polícia e viajou para Europa com o pretexto de estudar. A notícia correu pela cidade e chegou até a tenda de Lídio e Archanjo. Pedro comentando com seu amigo sobre os acontecimentos fala sobre o futuro: Um dia vai se acabar, meu bom, não será no nosso tempo, camarado. Vamos morrer brigando, na briga nos divertindo. Pedrito na frente, na corrida, Ogum atrás, as mãos de cobras, deixe-me rir, compadre, coisa tão engraçada nunca vi. Vamos morrer brigando. Jovens e afoitos, meu bom. Fit-o-fó para a policia, viva o povo da Bahia! (AMADO, 2008, p. 243).
Considerações finais Como se pode verificar o texto de Jorge Amado é recheado com a presença dos orixás que desfilam livremente pelo mundo real. Eles integram essa dimensão e isso ocorre em praticamente todas as obras do escritor. Os orixás interferem de forma direta na vida de seus filhos, defendendo-os e os orientando em seus caminhos. O caso de Pedro Archanjo é ainda mais especial. Ele é um filho dileto dos orixás. Embora seja o Ojuobá de Xangô é ajudado, ao longo do romance, por outros, como Exu, Ogum, mas é importante lembrar que Xangô jamais o abandona. Embora chegue ao final da obra esboçando certa incredulidade acerca da existência dos orixás; o que chega a ser uma incongruência, se pensada a grande prova que o próprio Archanjo teve no episódio entre Pedrito Gordo e Zé Alma Grande, a ele se referem como Pedro Archanjo Ojuobá; alcunha que não rejeita. O fato é que para Pedro, o Candomblé é também é uma obrigação para com o povo negro e mestiço, é a alegria do povo, para o povo e ele deve isso a sua comunidade.
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Todavia, se olhada a trajetória de Pedro Archanjo e como ela é contada, não seria possível o sucesso do bedel Ojuobá, se não fosse sua proteção por Xangô. Amado deixa em sua personagem marcas muito fortes dessa relação. É possível que seja por isso que Pedro Archanjo se mantenha nas obrigações a Xangô. Cauô Cabieci! Referências: ADOLFO, Sérgio Paulo. A contribuição iorubana na ficção de Jorge Amado. In: X Congresso da ALADAA. Rio de Janeiro, 2000. _____________. O mito africano no cotidiano brasileiro: comunicação apresentada no X Congresso da ALADAA. Rio de Janeiro, 2000. AMADO, Jorge. Tenda dos milagres: uma história de feitiçaria. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. PRANDI, José Reginaldo. Os candomblés de São Paulo: a velha magia na metrópole nova. São Paulo : HUCITEC : Editora da Universidade de São Paulo, 1991. ___________. As religiões afro-brasileiras e seus seguidores. In: Civitas. V. 3, n.1. Porto Alegre, 2003, p. 15-33. ___________. Religião e sincretismo em Jorge Amado. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz.; GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. (Org.). O universo de Jorge Amado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 46-61. Disponível em: < http://www.jorgeamado.com.br/professores.php> Acesso em: 23 abril. 2014. __________.; VALLADO, Armando. Xangô: o rei de Oió. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/sociologia/prandi/xangorei.htm Acesso em: 26 abril de 2014.
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LITERATURA E AMIZADE NA CORRESPONDÊNCIA ENTRE MADELEINE DE SCUDÉRY E JEAN-BATISTE BOISOT
Beatriz Polidori Zechlinski (UFPR)
Este trabalho analisa a correspondência entre Madeleine de Scudéry e Jean Batiste Boisot nas décadas de 1680 e 1690. Ela foi uma escritora de grande influência nos espaços letrados franceses e alcançou enorme sucesso na venda de seus livros. Ele foi um abade erudito, conhecido por sua vasta coleção de livros antigos. O estudo da correspondência entre essa escritora e seu amigo permite-nos observar as trocas literárias e afetivas entre um homem e uma mulher de letras na França do século XVII, possibilitando verificar a amizade e o intercâmbio literário como aspectos complementares nas relações interpessoais desse período. Notamos que são recorrentes nessas cartas os comentários sobre livros, leituras e a própria produção literária tanto de Madeleine quanto de Boisot, que também escrevia. Era muito frequente que eles se enviassem versos, não só de sua própria autoria, mas também de outros autores, e que os comentassem e os julgassem. Por outro lado, são recorrentes as cobranças afetivas, de atenção e de carinho, ou mesmo a demonstração de ciúme. Assim, desejamos mostrar que a troca de correspondências foi uma prática favorável para um tipo específico de criação literária daquela época, que era uma criação coletiva, da mesma forma como foi primordial para a manutenção de longas amizades entre homens e mulheres, o que era uma experiência nova no princípio da modernidade. Madeleine de Scudéry (1607-1701) teve no início de seu percurso como escritora o auxílio de seu irmão Georges de Scudéry (1601-1667). Georges e Madeleine encontraram-se órfãos muito cedo, ela com seis anos e ele com doze, e acabaram sendo
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criados por um tio. Segundo a biografia escrita por E. J. B. Rathery1 (1873), a mãe havia dado aos filhos uma educação básica, mas foi o tio, um homem de letras que possuía uma vasta biblioteca, quem deu aos sobrinhos todas as condições necessárias para que eles seguissem o caminho das letras, ensinando-os inclusive línguas estrangeiras, como o italiano e o espanhol (RATHERY, 1873, p. 6). Originária de Havre, na Normandia, a família de Georges e Madeleine, embora fosse de pequena nobreza, encontrava-se em grandes dificuldades financeiras quando o pai deles, um capitão de portos de Havre, morreu em 1613, deixando a sua mulher com muitas dívidas. Ela veio a falecer apenas seis meses depois e ficaram as crianças, portanto, praticamente sem recursos próprios (RATHERY, 1873, p. 5). De acordo com Rathery, por volta de 1620 os dois irmãos fizeram juntos uma peregrinação pela Normandia, na esperança de encontrar parentes que pudessem ajudálos, mas no entanto não obtiveram grande sucesso. A saída imediata encontrada por Georges para poder mantê-los foi seguir a carreira militar, entrando para a Guarda Real de Havre (Régiment des Gardes). Todavia, além de Georges não sentir-se muito satisfeito com a profissão, conforme ele mesmo expressou em algumas de suas obras, o cargo ocupado na Guarda não lhe fornecia uma renda muito significativa (RATHERY, 1873, p. 8-11). Assim, foi na realidade o contato com a erudição do tio que ofereceu o caminho para que os irmãos pudessem realmente reerguer a sua condição econômica, pois quando Georges começou a escrever para ganhar a vida, eles passaram a desfrutar de uma situação financeira um pouco mais confortável. Por volta de 1630, Georges passou a dedicar-se exclusivamente à literatura, fato decisivo para que ele e Madeleine fossem morar em Paris em torno de 1640. Segundo conta Rathery, entre 1631 e 1644 Georges de Scudéry teve dezesseis peças de teatro de sua autoria representadas, o que lhe valeu a proteção do cardeal Richelieu e a entrada no salão da Marquesa de Rambouillet (RATHERY, 1873, p. 12-14).
1
Rathery baseou a biografia que fez da autora principalmente nas anotações deixadas por Valentin Conrart (1603-1675) e no testemunho deixado por Gédéon Tallemant de Réaux (1619-1692).
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Não demorou para que Georges de Scudéry pudesse introduzir a sua irmã no mesmo salão. Conforme Rathery, nas histórias contadas por Tallemant de Réaux2 a colaboração literária entre Madeleine de Scudéry e seu irmão era intensa, tendo um participado da produção literária do outro pelo menos até o ano de 1655 (RATHERY, 1873, p. 13). Georges, já famoso por suas peças de teatro, assinou os primeiros romances da irmã, obras de grande sucesso de vendas, Cyrus (1649-1653) et Clélie (1654-1660). A vivência no Hôtel de Rambouillet proporcionou para os dois irmãos a proximidade com muitos letrados de quem se tornaram amigos, entre eles Jean de Chapelain, Valentin Conrart, Pierre-Daniel Huet e Gilles Ménage. Madeleine, especialmente, era conhecida por sua capacidade de fazer muitas amizades e de juntar ao seu redor muitos homens e mulheres de letras nas suas conversações. Assim, em 1652, momento em que se encontrava já mais independente do irmão, ela abriu o próprio salão, que ficaria conhecido como Samedis de Mademoiselle de Scudéry, do qual eram assíduos os amigos acima citados, além de Madame de La Fayette, Madame de Sévigné, La Rochefoucauld e o seu amigo mais íntimo e verdadeiro companheiro, Paul Pellisson3. Ao contrário de Madame de La Fayette, Madeleine de Scudéry, que não tinha nem marido e nem filhos, fazia questão de ser reconhecida pelas obras que escrevia. O nome do irmão na folha de rosto dos seus primeiros livros correspondia apenas à necessidade de oferecer ao público obras de um homem de letras já reconhecido, o que facilitava certamente a negociação com editores e livreiros. No entanto, ela nunca fez qualquer esforço para esconder a identidade de “escritora”. Como demonstrou Myriam Dufour-Maître (2008), as amizades que conquistara, a conversação agradável e o sucesso de venda de seus livros tornaram Madeleine de 2
Gédéon Tallemant de Réaux (1619-1692) foi um escritor que ficou conhecido por suas memórias e pelas biografias que escreveu de seus amigos. 3 O escritor Paul Pellisson (1624-1693) foi secretário de Nicolas Fouquet e por esse motivo foi preso na Bastilha, de 1661 a 1666, quando Fouquet foi acusado de traição ao rei. Pellisson deveu a sua soltura e o seu restabelecimento justamente à proximidade de Madeleine de Scudéry com Jean Chapelain e com Valentin Conrart. Depois de libertado, Pellisson tornou-se historiógrafo real.
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Scudéry uma referência de mulher letrada no século XVII. Não foi por acaso que ela se tornou o alvo preferido de difamação como preciosa. As ofensas que lhe endereçaram escritores como Molière, Somaize, Boileau e o Abade de Pure, decorreriam justamente do fato de ela ter sido a escritora mais influente desse período, fosse pela inserção de suas obras no público leitor, fosse por sua atuação nos espaços letrados. Assim, desejamos enfatizar aqui o modo de agir dessa escritora em um período em que desfrutava de uma boa posição no meio letrado, a partir da década de 1680, quando ela era uma autora reconhecida, anfitriã de um famoso salão, amiga íntima de homens de letras próximos ao rei e que exerciam poder nos espaços literários (como eram Chapelain e Conrart). Foi durante esse período que ela escreveu a série Conversations, tratados morais publicados entre 1680 e 1692, nos quais ela retomou algumas passagens de Cyrus e Clélie, além de ter escrito novos textos sobre a conversação, a prática da escrita e as sociabilidades. A atenção para a correspondência que Madeleine de Scudéry trocou nas décadas de 1680 e 1690 com um homem de letras seu amigo, mas que não fazia parte de seu círculo mais íntimo, Jean-Batiste Boisot (1638-1694), permite-nos verificar o quanto a amizade fora importante mesmo para uma escritora que não necessitava mais da proteção e do auxílio masculino em relação à sua escrita. Também nos permite observar as trocas literárias entre homens e mulheres de letras através dos comentários sobre obras suas ou de outrem. Jean-Batiste Boisot foi um abade erudito que ficou conhecido por sua vasta coleção de livros antigos. Natural de Besançon, Boisot conheceu Madeleine de Scudéry e Paul Pellisson quando residiu em Paris ainda jovem para estudar na Sorbonne, período ao qual se seguiram as longas viagens que realizou para a Espanha, a Itália e os Países Baixos. No seu retorno à França lhe foi confiada a abadia de Saint-Vincent, em Besançon, onde residiu até falecer em quatro de dezembro de 1694. O período da correspondência de Boisot com Madeleine de Scudéry que conhecemos começa em fevereiro de 1687 e vai até novembro de 16944, pouco antes da 4
Analisamos as cartas publicadas por E. J. B. Rathery (1873).
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morte dele. As cartas que Madeleine lhe escreveu em doze de setembro de 1687 e em dezessete de outubro desse mesmo ano demonstram que eles se corresponderam enquanto ele se encontrava na Espanha e na Itália (SCUDÉRY, 1873, p. 306-307). Nessas cartas Madeleine faz referência ao espanhol e ao italiano de Boisot, que lhe proporcionavam muito prazer, dando a entender que ele escrevia para ela em língua estrangeira. São recorrentes os comentários sobre livros, leituras e a própria produção literária tanto de Madeleine quanto de Boisot, que também escrevia. Era muito frequente que eles se enviassem versos, não só de sua própria autoria, mas também de outros autores amigos. Nesse sentido, a carta de dezessete de outubro de 1687 pode ser tomada como exemplo:
O que você dirá, senhor, do meu silêncio? As aparências são contra mim, mas na verdade, eu não sou culpada, porque eu não sou nem um pouco ingrata. O vosso italiano me deu ao menos tanto prazer quanto o vosso espanhol, e depois um soneto escrito da própria mão de Tasse é uma coisa infinitamente agradável a qualquer um que seja sensível ao mérito de um tão excelente homem. Eu teria vos agradecido mais cedo, sem um grande resfriado que me importunou bastante; e depois eu teria gostado de vos enviar em troca alguma coisa de mim mesma para vos divertir. Mas eu vos envio, senhor, versos de um gentil homem5 dos meus amigos de Bordeaux que faz coisas muito bonitas. [Que direz-vous, Monsieur, de mon silence? Les apparences sont contre moi, mais dans la vérité, je ne suis pas coupable, car je ne suis point du tout ingrate. Votre italien m’a fait pour le moins autant de plaisir que votre espagnol, et puis un sonnet écrit de la propre main du Tasse est une chose infiniment agréable à quinconque est sensible au mérite d’un si excellent homme. Je vous en aurois remercié plus tôt, sans un grand rhume qui m’a fort importunée ; et puis j’eusse bien voulu vous envoyer en échange quelque chose de moi propre à vous divertir. Mais je vous envoie, Monsieur, des vers d’un gentilhomme de mes amis de Bordeaux qui fait de fort belles choses.] (“A M. L’Abbé Boisot, le 17 octobre 1687.” SCUDÉRY, 1873, p. 306)
A partir do ano de 1689 eles já se correspondiam entre Besançon e Paris. Em carta onde cita textos de seu companheiro Paul Pellisson, pedindo a avaliação do amigo 5
Nesse caso, gentilhomme tem o mesmo sentido de honnêtehomme, quer dizer, um homem erudito, bem educado, que se comporta de acordo com as normas de polidez e de galanteria.
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Boisot, podemos perceber o quanto ela considera o julgamento do amigo sobre obras literárias:
De resto há um debate entre os homens de saber para dar a preferência a um dos três elogios ao Rei que M. de Pellisson fez nos textos que escreveu sobre a religião. O primeiro está no primeiro volume de Réflexions6 que eu sei que você tem: ele está colocado na relação sobre o estado da religião na França. O segundo elogio está no segundo volume de Réflexions e o terceiro está no final de Chimères7, que eu suponho que M. de Pellisson vos deu. Como eu estimo muito o vosso discernimento, senhor, e a delicadeza de vosso gosto, eu vos peço para relê-los, para escolher um, e para me dizer aquele que você terá preferido, em papel à parte. [Au reste il y a une contestation entre des gens de savoir pour donner la préference à un des trois éloges du Roi que M. de Pellisson a faits dans ce qu’il a écrit sur la religion. Le premier est au premier volume des Réflexions que je sais que vous avez : il est placé dans la relation sur l’état de la religion en France. Le seconde éloge est au seconde volume des Réflexions et le troisième est à la fin des Chimères, que je suppose que M. de Pellisson vous a données. Comme j’estime beaucoup votre discerniment, Monsieur, et la delicatesse de votre goût, je vous prie de les relire, d’en choisir un, et de me mander celui que vous aurez préféré, en un papier à part.] (“A M. L’Abbé Boisot, le 22 mars 1690.” SCUDÉRY, 1873, p. 314)
Dessa forma, mesmo para uma escritora de oitenta e três anos, já bastante reconhecida, e para o seu companheiro, permanecem importantes as trocas de ideias e os julgamentos dos amigos. Assim como os círculos de relações eram importantes para as escritoras iniciantes, continuavam sendo para escritores e escritoras estabelecidos, pois eles compreendiam a literatura antes de tudo como um meio de criar o intercâmbio intelectual e afetivo entre as pessoas. A influência exercida pela escritora entre pessoas letradas se verifica facilmente nas cartas que ela envia a Boisot, pois recorrentemente ela lhe agradece por ter recebido em Besançon ou ajudado pessoas que lhe foram por ela recomendadas, esses favores aparecem em muitas cartas, como, por exemplo, na de dezenove de agosto de 1689: “Eu recebi, senhor, tão grandes agradecimentos de M. de Bonnecorse pai e filho, que eu 6 7
Referência à obra de Paul Pellisson, Réflexions sur les differends en matiere de religion, de 1686. Referência à obra de Paul Pellisson, Les Chimères de M. Jurieu, de 1690.
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seria bem ingrata se eu não vos testemunhasse o reconhecimento que eu tenho de todas as maneiras honestas8 que você recebeu o meu muito humilde pedido.” [“J’ai reçu, Monsieur, de si grands remercîments de M. de Bonnecorse père et fils, que je serois bien ingrate si je ne vous témoignois pas la reconnoissance que j’ai de toutes les manières honnêtes dont vous avez reçu ma très-humble prière.”] (“A M. L’Abbé Boisot, le 19 août 1689.” SCUDÉRY, 1873, p. 307). Esta carta de sete de março de 1691 é particularmente interessante pelos comentários de Madeleine sobre uma jovem amiga de Boisot. Pelo que compreendemos da carta de Madeleine, Boisot havia enviado para ela uma carta que ele havia recebido de uma amiga sua, onde esta elogiava longamente Madeleine. Ao que parece, Boisot havia desejado agradar Madeleine ao lhe mostrar a admiração de uma jovem que parece apta ao exercício da escrita, assim como promover entre elas uma nova amizade, por isso enviou-a o texto da sua pupila, que admirava muito a escritora, para colocá-las em contato (“A M. L’Abbé Boisot, le 7 mars 1691.” SCUDÉRY, 1873, p. 319-321). Vemos, portanto, que não somente Madame de La Fayette se inspirava na autora de Cyrus, como também outras possíveis escritoras. Percebemos que Madeleine demonstrava satisfação em exercer essa influência literária, especialmente quando se tratava de meninas. A jovem citada nessa carta era Mademoiselle Bordey, a quem Madeleine escreveu poucos dias depois, em dezesseis de março de 1691, iniciando mais uma amizade que será duradoura:
Eu vos sou infinitamente grata, senhorita, da honra que você me fez em me escrever, mas permita-me vos dizer que eu sou a pessoa do mundo que deve ser a menos temida, também posso vos assegurar que eu não gosto que me temam, e eu jamais inspirei esse sentimento no coração daqueles que me viram. Bane-o então, por favor, do seu [coração] ao me olhar, e a razão o quer assim. Porque primeiramente com todo o espírito que você tem, você não deve temer ninguém, e já que você não teme M. l’abbé de Saint-Vincent [o abade Boisot] que é mais temível do que eu, você está errada em me recear. 8
Também aqui manières honnêtes é uma referência ao comportamento polido e civilizado, quer dizer que o abade recebeu o pedido da amiga de uma forma bem educada e gentil.
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[Je vous suis infiniment obligée, Mademoiselle, de l’honneur que vous m’avez fait de m’écrire, mais permettez-moi de vous dire que je suis la personne du monde qu’on doit le moins craidre, aussi vous puis-je assurer que je n’aime nullement qu’on me craigne, et je n’ai jamais inspiré ce sentiment-là dans le coeur de ceux qui m’ont vue. Bannissez-le donc, s’il vous plaît, du votre à mon egard, et la raison le veut ainsi. Car premièrement avec tout l’esprit que vous avez, vous ne devez craindre personne, et puisque vous ne craignez pas M. l’abbé de Saint-Vincent qui est plus redoutable que moi, vous avez eu tort de m’appréhender.] (“A Mademoiselle Bordey, ce 16 mars 1691.” SCUDÉRY, 1873, p. 321/322)
Foi assim que se formou um círculo amistoso entre Madeleine de Scudéry, o abade Boisot e Mademoiselle Bordey, o que confirmam as cartas de Madeleine a Boisot de vinte e três de março de 1691 e de vinte e sete de julho de 1691 (SCUDÉRY, 1873, p. 323-326), entre outras. Podemos perceber que a partir dessa ocasião muitos textos de Mademoiselle Bordey, entre diálogos e poesias, serão lidos e comentados por Madeleine de Scudéry, assim como elas irão trocar textos também de outros escritores. Elas continuarão se correspondendo pelo menos até 1695. Quando a pupila de Boisot decidiu casar-se, no final do ano de 1691, Madeleine não deixou de expressar seus sentimentos desconfiados quanto à instituição matrimonial, principalmente quando esta se mostrava um acordo de interesses:
Eu não duvido que seu casamento não seja feliz, já que você o aprovou. Eu não fui tão prudente quanto ela, porque eu preferi três vezes na minha vida a liberdade à riqueza, e eu não saberia me arrepender. Você não lhe dirá, por favor, senhor, isso que eu vos escrevo, porque uma coisa que é boa para uma pessoa não é para outra. Desde que ela tenha a liberdade de vos ver frequentemente eu não lamentarei a ela sobre todas as consequências de um casamento que não foi feito pela simpatia recíproca. [Je ne doute point que son mariage ne soit heureux, puisque vous l’avez approuvé. Je n’ai pas été si pudente qu’elle, car j’ai préféré trois fois dans ma vie la liberté à la richesse, et je ne m’en saurois repentir. Vous ne lui direz pas, s’il vous plaît, Monsieur, ce que je vous écris, car ce qui est bien pour une personne ne l’est pas pour l’autre. Pourvu qu’elle ait la liberté de vous voir souvent je ne la plaindrai de toutes les suites d’un mariage que la sympathie réciproque n’a pas fait.] (“A M. L’Abbé Boisot, le 18 décembre 1691.” SCUDÉRY, 1873, p. 330).
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No entanto, apesar da desaprovação quanto ao casamento da amiga, Madeleine não deixou de expressar em carta endereçada a ela os votos de felicidades, ainda que não tenha se privado de comentar que o casamento era “a coisa mais difícil do mundo de fazer adequadamente” [“la chose du monde la plus difficile à faire bien à propos”] (“A Madame de Chandiot (Mademoiselle Bordey), le 18 décembre 1691.” SCUDÉRY, 1873, p. 332). Nessas passagens vemos Madeleine expressar o conceito que desenvolveu sobre a instituição matrimonial: principalmente quando o casamento era realizado sem amor, ele tolhia a liberdade da mulher. Assim, para a escritora, seria o sentimento afetuoso entre os cônjuges que abriria as portas para as mulheres experimentarem relações menos hierárquicas com os seus companheiros. Com efeito, Madeleine parece nunca ter lamentado a decisão tomada de não ter se casado. As muitas amizades que teve e especialmente a relação íntima com Paul Pellisson ocupavam o lugar da afetividade na vida da escritora. Apesar do tom mais formal que vemos nas cartas de Madeleine de Scudéry a Boisot do que, por exemplo, de Madame de La Fayette a Ménage, encontramos nelas algumas cobranças sobre falta de zelo e pedidos de desculpas decorrentes de desatenções, que faziam parte das relações de amizade entre homens e mulheres de letras. Vemos isso nas cartas de cinco de abril de 1692 e na de trinta e um de maio de 1692 (SCUDÉRY, 1873, p. 342-344). Madeleine chegou a comentar com o abade Boisot que Paul Pellisson algumas vezes expressava ciúme quando lia as suas cartas. Como dizia a própria Madeleine, as cartas do abade lhe proporcionavam muito prazer e a divertiam muito. Em quase todas elas há referências a livros que enviaram um ao outro, a transcrição de uma poesia ou mesmo um ou dois versos. Até a última carta, em seis de novembro de 1694, Madeleine continua pedindo a opinião do amigo sobre escritos seus e de Pellisson, demonstrando grande estima pelo julgamento do amigo, assim como ela demonstrava a necessidade de continuar a relação afetuosa com ele. Desejamos, assim, demonstrar que as trocas intelectuais e o sentimento de afeição eram condições necessárias para as relações de amizade entre homens e mulheres de letras. No século XVII, na França, essas amizades eram fundamentadas na ideia da reciprocidade, do compartilhamento e da afeição, antes do que na hierarquia de
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gênero, permitindo às mulheres não só a inserção no espaço intelectual e o desenvolvimento de uma escrita mais adequada aos padrões literários da época, mas também uma verdadeira experiência de relação igualitária com os homens.
Referências DUFOUR-MAÎTRE, Myriam. Les Précieuses. Naissance des femmes de lettres en France au XVIIe siècle. 1ª reimpressão. Paris: Honoré Champion, 2008. 823p. RATHERY, E. J. B. “Notice sur Mademoiselle de Scudéry.” In: SCUDÉRY, Madeleine de. Mademoiselle de Scudéry, sa vie et sa correspondance, avec un choix de ses poésies (par MM. Rathery et Boutron). Paris: Léon Techener, 1873. 531p. pp. 1-137. SCUDÉRY, Madeleine de. Mademoiselle de Scudéry, sa vie et sa correspondance, avec un choix de ses poésies (par MM. Rathery et Boutron). Paris: Léon Techener, 1873. 531p.
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A IDENTIDADE (PÓS)ESCRAVOCRATA E (PÓS)COLONIALISTA NA POESIA LUSÓFONA: AS TEMÁTICAS POÉTICAS DE SOLANO TRINDADE E XANANA GUSMÃO Bruna Cielo Cabrera (UFSM) Introdução Indo a contrapelo da poesia canônica, buscando, encontrando e construindo uma identidade timorense/afro-brasileira os poetas Xanana Gusmão e Solano Trindade, um timorense e o outro brasileiro, embora nunca se tenham conhecido, aproximam-se e distanciam-se em temáticas poéticas. Temas esses que perpassam o regime (pós)escravocrata e o regime (pós)colonial, cavando nas raízes ancestrais do povo timorense para encontrar o pertencimento nacional de individuo nas veias de um coletivo primitivo. Usando os versos como armas de batalha e as palavras como gritos de denúncia das atrocidades e malignidades da escravatura e do colonialismo. Neste trabalho buscar-se-á averiguar as marcas da poesia moderna junto com a associação de diversas temáticas, como identidade timorense/afro-americana ou afrobrasileira, escravocrata/colonialista, nacional e ancestral, nas aproximações e diferenças entre Xanana Gusmão e Solano Trindade. Batalhas sociais transformadas em versos Solano Trindade e Xanana Gusmão ostentam em seus versos uma poesia livre dos grilhões da formalidade clássica, suprimindo a versificação silábica e o discurso rimado. Ambos dão continuidade para a herança da poética moderna de Charles Baudelaire, iniciada no século XIX, com a adoção do verso livre e do discurso prosaico. Podemos apontar essas características nos poemas “Esperanças rasgadas” de Xanana Gusmão, com os versos “Timor / Onde a morte / só se consagra no combate” (vv. 1315), e, no poema “Canto dos Palmares”, de Solano Trindade, com os versos “O opressor convoca novas forças / vem de novo / ao meu acampamento / Nova luta” (vv. 38-41). Nota-se a inexistência de metrificação, a ausência de rimas, tanto externas quanto internas, e o discurso é majoritariamente prosaico.
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Essas aspirações contrárias à poética tradicional têm como objetivo principal o regresso ao ritmo, que, segundo Octavio Paz, é reprimido pelos limites da rima. Também se destaca, em O arco e a lira, que o ritmo está associado a todas as formas verbais, porém apenas no poema ele se apresenta absoluto. Um poema não pode existir sem o ritmo e a prosa não pode existir somente do ritmo. Porém, não se pode associar ritmo estritamente com a estrutura formal do poema metrificado, uma vez que ritmo e metro não são o mesmo conceito com nomenclaturas diferentes (PAZ, 1982, p. 82, 84).
Já, Alfredo Bosi, em O ser e o tempo da poesia, declara que a falta de metrificação, a liberdade, não deve ser compreendida como indiferença, visto que durante o “andamento” (termo do autor) da leitura a marcação do ritmo como o modo sonoro no qual se dá a empatia do leitor (BOSI, 1977, p. 86-87). No poema “Oh! Liberdade”, de Xanana Gusmão, o ritmo é criado entre o paralelismo simétrico presente nas estrofes, que possuem o mesmo número de versos desmetrificados. Todas as estrofes começam com a sentença “Se eu pudesse” (vv. 1, 10, 19, 28, 37) e encerram com a palavra “Timor” (vv. 9, 18, 27, 36, 45). Essa estratégia é descrita por Bosi como o mecanismo de “recuperar a sensação de simultaneidade”, com valor estético da regularidade, causando um sentimento de expectativa. A repetição de sons, prefixos, funções sintáticas completas e até frases inteiras mecanizam como o tempo exercido para o desabrochar de um botão de flor. Essa retomada se dá na ordem da conotação, do valor (BOSI, 1977, p. 31-32). Além do ritmo, na poesia moderna há a tentativa de reverter a sensação de falsidade trazida pelo “dialeto poético”, visto como artificial, à busca pelo “idioma de todos os dias” e por uma imagem concreta e verossímil da realidade, em que encontramos a presença marcante do cenário da urbe (PAZ, 1982, p. 91-92). Na poesia de Solano Trindade percebe-se a aspiração pela linguagem das grandes cidades, descrita como característica da poesia modernista por Octavio Paz (1982). Porém, nos versos de Trindade a urbanização é referenciada como todo o continente americano, ou, as três Américas, e, o negro protagoniza o poema como o trabalhador proletário que cria a força motriz para as engrenagens movimentarem a grande máquina da civilização.
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Exemplo desse pensamento é o poema “Também sou amigo da América”, que suscita a ideia de industrialização e mecanização exacerbadas do século XX (“Corre em mim / o sangue negro / que ajudou na tua construção” (vv. 5-7)), do vertiginoso crescimento das metrópoles americanas, culminando na guerra (“Construirei máquinas / Para tua vingança / Marcharei para defender-te” (vv. 25-27)). A partir desse breve levantamento de características formais referentes à poesia moderna, podemos perceber
que
na
poesia
de
Solano
Trindade
e
Xanana
Gusmão essas
particularidades estão presentes, uma vez que seus poemas não possuem uma estrutura fixa de versificação, tampouco são rimados ou apresentam estrofes combinadas. Em seus versos os elementos formais clássicos cederam lugar para a unidade rítmica e imagética moderna. Além das características formais, na estrutura semântica, Solano Trindade e Xanana Gusmão apresentam forte sentimento de pertença a terra e às raízes ancestrais de seu povo, além de engajarem-se poeticamente na busca por uma identidade, seja afro-brasileira/americana, seja nacional timorense. É possível relacionar esse tipo de elemento à teoria de Alfredo Bosi: A expressão social do pensamento depende da possibilidade do discurso. Não se pode ignorar nem baratear esse árduo e longo itinerário em direção ao ato simbolizador que o homem tem percorrido desde que lhe foi dado significar mediante a articulação sonora (BOSI, 1977, p. 23).
Através dos versos, a poesia se configura simbolizando escudo e arma contra a opressão racista, escravocrata e/ou colonialista.
Em busca da construção de uma
identidade afro- americana, o eu-lírico de “Canto dos Palmares”, de Solano Trindade, se manifesta como todo um povo, tomando posição de um indivíduo que pertence a um grupo e esse grupo se manifesta através dele, celebrando os feitos de luta dos negros revoltosos com a escravatura (“porque o meu canto / é o grito de uma raça” vv. 5-6). Sendo Palmares o marco memorial da luta dos afro-descendentes no Brasil, e a representação da construção e configuração da história desses personagens. Como coloca Florentina Souza, “no poema, os negros não são representados como vítimas inertes, e sim como grupo oprimido que em vários momentos mostrou-se insubmisso e disposto a lutar pela liberdade” (SOUZA, 2004, p. 290). Esse sujeito lírico
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pertence aos oprimidos, aos castigados pelo açoite dos tiranos escravistas (“o escravagismo [do opressor] é o seu sonho”, v. 55), que lutam e morrem pelas mãos desse opressor. Ele canta aos seus irmãos, seus conterrâneos, seus amigos, seu povo, porque seus versos são libertadores e o poema não pode ser morto pelo opressor (“meu poema / é cantado através dos séculos”, vv. 187-188). Através dos seus versos acontece a denuncia das atrocidades da escravatura, e, mesmo sendo apenas um sujeito, sua alma sofre e compartilha do infortúnio por todos os negros oprimidos. Zumbi, último líder do Quilombo dos Palmares, se torna o ícone central ao encerrar o poema (“Zumbi foi redimido”, v. 191), compondo bases para um perfil heroico do personagem mítico da resistência negra à escravatura brasileira. O próprio nome do poema aproxima a ideia de um ambiente de resistência, sendo Palmares o maior dos quilombos do período colonial, transformando-se no símbolo moderno da resistência africana à escravatura no Brasil. Partindo desse pressuposto, pode-se presumir que o poema trata, temporalmente, da segunda metade do século XVII, período escravista brasileiro. Constrói-se assim a imagem que sintetiza os elementos da história brasileira unidos às tradições africanas, como a religião, com outras passagens (“Saravá! Saravá! / Repete-se o canto / do livramento”, vv. 150-152). Xanana Gusmão cria, também, um retrato de luta violenta, no poema “Esperanças rasgadas”, baseado no massacre de Santa Cruz durante a ocupação indonésia sobre o Timor- Leste. Buscando, ao mesmo tempo, uma identidade e um espírito de nacionalidade timorense, o poeta une o desejo de libertação do povo, e a necessidade da definição dessa nação, onde vida e morte são entrelaçadas pela demanda da liberdade: “Timor / onde as pessoas / nascem para morrer / pela esperança / em rasgos de dor / [...] / em rasgos da própria liberdade / que se alcança / com a morte!” (vv. 25-29, 34-36). Podemos interpretar como se o nacionalismo timorense fosse construído sob o véu da morte, e só assim poderá haver um futuro livre para o povo, através da luta. Considerações finais Podemos entender as expressões poéticas de Solano Trindade e Xanana Gusmão como manifestações que se mantém isoladas uma da outra, porém, através das temáticas e composição da forma poemática, podemos identificar diversos traços comuns entre
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esses dois autores. Ambos recorrem a imagens que remetem ao povo negro afroamericano e/ou africano e sua cultura para a construção de um imaginário em que é atribuído grande valor e simbologia para a questão ancestral e o sentimento de pertença nacional, gerado pela luta contra a opressão escravocrata e/ou colonialista. Todas essas temáticas se entrelaçam para a formação dessa identidade total. Retratando com destreza um cotidiano em diferentes situações, tornando o eulírico multifacetado através dos versos, e, fazendo com que percebamos que “a atividade poética busca uma relação intensa com o ‘mundo-da-vida’” (BOSI, 1977, p. 112). Isso retoma a ideia da poesia moderna de contrariar a “falsidade” e partir em busca da realidade do sujeito lírico. Ambos os poetas, Solano Trindade e Xanana Gusmão, utilizam sua poesia como arma de luta contra as violências sofridas pelo grupo ao qual se identificam como sujeitos. A partir dos levantamentos teóricos e de análise poemática deste trabalho podem-se ser buscadas novas referências acerca de outros poetas lusófonos que se manifestem que dialoguem com as temáticas presentes na poesia de poetas brasileiros, justamente pela importância da criação de uma “ponte” entre as literaturas de expressão em língua portuguesa. Referências bibliográficas BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix / Ed. da Universidade de São Paulo, 1977. CUNHA, Helena Parente. "Os gêneros literários". In: PORTELLA, E. et. al. Teoria Literária. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1979. pp. 97-106. GUSMÃO, Xanana. Mar Meu – Poemas e Pinturas. Prefácio de Mia Couto. Edição bilíngue português-tétum. Porto: Granito Editores e Livreiros, 1998. PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. SOUZA, Florentina. Solano Trindade e a produção literária afro-brasileira. Afro-Ásia, Salvador, n. 31, p. 277-293, 2004. TRINDADE, Solano. Cantares ao meu povo. São Paulo: Brasiliense, 1981.
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O FILME AS PALAVRAS: A MATERIALIDADE DA LITERATURA NO CINEMA
Brunilda Reichmann (UFPR/Uniandrade-PR) A ideia deste trabalho surgiu de uma discussão entre cerca de 30 participantes das áreas de Literatura Comparada, Estudos Interartes e Intermidialidade em Congresso realizado em 2012. O tema abordado pela autora daquele e deste trabalho dizia respeito à “transparência e opacidade” nas mídias, mais especificamente, na literatura e no cinema. Os presentes expressaram opiniões completamente contrárias sobre assunto sendo apresentado. Cerca de metade dos presentes concordava que a opacidade dizia respeito à quebra da ilusão na literatura ou no cinema (quando o autor ou cineasta adentra o universo sendo criado e fala diretamente aos seus leitores/espectadores ou apresenta alguma reflexão sobre o processo criativo de sua obra). A outra metade associava a quebra da ilusão ao conceito de transparência, Ficou clara então minha intenção de demonstrar que os termos utilizados não são apreendidos com clareza. Naquela ocasião apresentei slides com definições de transparência e opacidade encontradas no Dicionário Aurélio: Transparência [De transparecer + -ência]. Substantivo feminino. 1. Qualidade de transparente; diafaneidade (q. v.), limpidez. 2. Fenômeno pelo qual os raios luminosos visíveis são percebidos através de certas substâncias. 3. Trabalho efetuado por um transmissor radio difusor ou telegráfico. 4. Folha de material transparente, na qual se imprimem ou escrevem textos, gráficos, desenhos, mapas, etc., para projeção em retroprojetor (q. v.). Opacidade [Do lat. Opacitate]. Substantivo feminino. 1. Qualidade de opaco. 2. Lugar sombrio; sombra densa. Meu objetivo com esses slides era demonstrar que definições de dicionário não se mostram de grande valia tampouco para que retivéssemos de forma clara os conceitos de opacidade e transparência utilizados por vários autores (Xavier, Stam, Mozer, entre outros). O segundo momento de dúvida foi suscitado pelo uso da expressão “materialidade da mídia”. A maioria dos presentes manifestou-se dizendo que os autores
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de romances metaficcionais ou autorreflexivos trabalham a materialidade da mídia. Outro possível equívoco. Em um romance metaficcional, o autor pode sim utilizar a materialidade da mídia como objeto de sua ficção, mas a materialidade da mídia não está necessariamente ligada à reflexão sobre o processo criativo. Em grande parte dos romances metaficcionais, o autor “fala” sobre o processo de criação artística. Isto também acontece no cinema, quando o cineasta discute a criação do filme (processo autorreflexivo) ou inclui claquetes, câmeras, maquetes, etc., na filmagem (materialidade da mídia). Propus então apresentar alguns exemplos nos quais a utilização da materialidade da mídia na literatura ou no cinema, é evidente. Para qualquer conhecedor de cinema não há necessidade de se apontar O homem com uma câmera, de Dziga Vertov (Vufku, 1929), como um trabalho pioneiro, no qual o cineasta está filmando o quotidiano das pessoas e sendo filmado por outro profissional que utiliza outra filmadora, mas não é visto pelos espectadores (materialidade velada que revela a materialidade do cinema). Da relação de exemplos sobre a presença da materialidade da mídia, escolhemos, então, fazer referência •
A um trecho do segundo volume da trilogia de Samuel Beckett, Malone Dies (final dos anos 1940);
•
A um trecho do conto “Better be ready ‘bout half past eight”, de Alison Baker (1993);
•
Ao filme Passion, de Jean-Luc Godard (1982);
•
A um trecho do romance e ao filme A mulher do tenente francês (1969, 1981).
Materialidade da literatura
No primeiro exemplo, em Malone Dies, o narrador está a voltas com os materiais mais rudimentares da escritura e inclui referências aos mesmos no texto que escreve: Não tenho tempo de escolher minhas palavras, tenho pressa em acabar. No entanto, não, não tenho pressa. [...] Meu dedo escorrega antes do lápis pela página e me avisa que o fim da linha está
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próximo. Mas na outra direção, verticalmente é claro, não tenho nada para me orientar. Não queria escrever, mas tive que me resignar no final. [...] No entanto, escrevo sobre mim mesmo com o mesmo lápis e no mesmo bloco de notas que escrevi sobre ele. [...] Creio que dormi de novo. Sem sucesso procuro, não consigo encontrar meu bloco. Mas ainda tenho o lápis na minha mão. [...] Levei um tempão para conseguir pegá-lo. O bloco de notas tinha caído no chão. Tive que pescá-lo. [...] De agora em diante vou escrever nos dois lados da folha. De onde ele [o bloco de notas] veio? Não sei. Eu o encontrei, é isso, no dia que precisei dele. Mesmo sabendo perfeitamente que não tinha nenhum bloco, revirei minhas coisas na esperança de encontrar um. [...] O lápis ao contrário é um velho conhecido, devia estar comigo quando me trouxeram pra cá. É um lápis pentagonal. Está bem pequeno. Apontado nas duas extremidades. (BECKETT, Malone morre, p. 125, minha ênfase)
As palavras em negrito, na citação acima, incluem os mais rudimentares materiais que podem ser utilizados por um escritor: um lápis, uma folha de papel, um bloco de notas. O narrador não utiliza máquina de escrever e aparentemente não vive na era do computador ou notebook. Ele faz referência apenas ao lápis e à folha de papel ou bloco – materiais de longa data, mas ainda importantes, para se utilizar na escrita. O lápis, como o conhecemos hoje, foi criado na França, no século XVIII, e o papel foi inventado na China 105 anos depois de Cristo (d.C.); portanto, são antigos companheiros de quem escreve. Já no conto “Better be ready ‘bout half past eight”, de Alison Baker, escrito no final do século XX, o narrador associa a materialidade da mídia ao tipo de escritura ou projeto a ser realizado. Ao digitar uma palavra no teclado do computador, o pesquisador-poeta, protagonista do conto, não pode escapar ao impulso de transformar a palavra na tela em um projeto de pesquisa. É apenas no bloco de notas amarelo, tão utilizado pelos norte-americanos, que sua poesia encontra material apropriado para concretizar-se. Sempre escrevera sua poesia em blocos com longas folhas amarelas tamanho ofício. Tinha uma vez tentado jogar alguns pensamentos poéticos no computador, mas eles deslizaram de seu poema e insinuaram-se em uma nova ideia para uma pesquisa, que de fato se desenvolveu em um grandioso projeto que foi financiado mais tarde. A experiência o tinha assustado.
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Observou a fatia de céu que era visível do lugar onde estava sentado e segurou o bloco no colo por mais de uma hora. Durante esse tempo anotou treze palavras. (BAKER, 1993, p. 12, minha ênfase).
Novamente as palavras em negrito registram a materialidade da mídia: palavras no bloco de notas > poesia; palavras na tela do computador > projeto de pesquisa. Para nós, leitores, não importa qual a criação do protagonista, pois ambas a poesia e o projeto científico fazem parte do texto ficcional. O narrador faz com que o personagem, amigo do protagonista, utilize, portanto, meios simples e sofisticados, dependendo do destino das palavras. Os dois trechos incluídos acima não deixam nenhuma dúvida quanto à utilização do material específico da mídia como material para criação da obra; nos trechos citados, os materiais utilizados para a escritura de textos ficcionais. Para estabelecer distinção entre esses textos e o texto que fala sobre o processo criativo, vejamos o início do capítulo XIII do romance A mulher do tenente francês (1969), de John Fowles: Não sei. A história que estou contando é pura imaginação. As personagens que creio nunca existiram senão em minha mente. Se fingi imaginar até agora as ideias e pensamentos mais íntimos de minhas personagens, é porque estou seguindo... uma convenção universalmente aceita à época da minha história, ou seja, a de que o romancista está colocado numa posição de Deus. Ele pode não saber tudo, mas procura fingir que sabe. Vivo, porém na época de Alain Robbe-Grillet e Roland Barthes, e se isso que o leitor tem em mãos pode ser chamado de romance, jamais será um romance na moderna acepção do termo. (FOWLES, 1987, p. 96)
O leitor não encontra nesse texto nenhuma referência à materialidade da literatura, mas sim a reflexões do narrator/autor sobre o processo criativo. Há quebra da ilusão, interrupção da narrativa num momento em que o leitor é levado a imaginar que seria seguido de revelações da protagonista sobre si mesma. Mas isso não acontece. Sei que, no contexto de meu livro, Sarah jamais enxugaria as lágrimas e se debruçaria à janela para apresentar um capítulo de revelações. Teria imediatamente recuado ao me [autor] ali, quando a velha lua surgisse, desaparecendo em seguida nas sombras do quarto. [...] Mas sou um romancista, não um homem num jardim. [...] Um único motivo é compartilhado por todos nós [romancistas]: desejamos criar mundos que pareçam reais, e no entanto diferentes do mundo que já existe. (FOWLES, 1987, p. 97, ênfase do autor)
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Materialidade do cinema
No filme Passion, de Jean-Luc Godard (1982), há tanto a discussão do processo criativo, quando a presença da materialidade da mídia cinematográfica. Trata-se de uma história ficcional de um cineasta polonês (Jersy), que está produzindo um filme em que serão encenadas e reconstituídas, “ao vivo”, no estúdio de produção cinematográfica, obras-primas célebres da pintura europeia: A ronda noturna, de Rembrandt [Rembrandt Harmenszoon Van Rijn, pintor holandês do século XVII]; 3 de maio de 1808, de Goya [Francisco José de Goya y Lucientes, pintor espanhol do século XVIII], e A entrada dos cruzados em Constantinopla, de Delacroix [Ferdinand Victor Eugène Delacroix, pintor francês do século XIX] (MOZER, 2006, p. 55). Segundo Mozer, Passion •
[É] “Uma história da dificuldade de se fazer um filme a partir da pintura”.
•
“Godard não mostra a produção ou a criação pictural, nem as condições midiáticas de produção da pintura, mas sim a produção cinematográfica.”
•
“O que nós assistimos como espectadores é o filme Passion, de Godard, sobre a impossibilidade de o cineasta Jerzy fazer seu filme ‘Passion’.”
•
A única história que se pode contar é a da impossibilidade de contar uma história. (MOZER, 2006, p. 60).
•
Várias cenas do filme mostram o caos criador no estúdio, onde tudo parece girar em torno de uma desordem sublime: atores vestidos a caráter, personagens de diferentes pinturas se misturam entre si e entre os cineastas que estão preparados para rodar o filme, o pessoal técnico, o maquinário, o cenário que está sendo montado. (MOZER, p. 60, nota 51)
Os diálogos do filme e as ações e reações dos envolvidos (patrocinadores, diretor, atores, técnicos), demonstram, por um lado, a dificuldade de se realizar o filme idealizado (nós espectadores estaríamos, portanto, escutando falas sobre o processo criativo que versa sobre a dificuldade, senão a impossibilidade, de se produzir o filme).
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As cenas, por outro lado, mostram maquetes, atores, câmeras (materialidade da mídia) e profissionais em um ir e vir desordenado, caótico mesmo, enquanto o diretor discute problemas financeiros, de relacionamentos, etc., problemas esses centrais ou periféricos à realização do filme. Voltando ao romance A mulher do tenente francês (1969), de John Fowles, a adaptação de Harold Pinter (1981) para o cinema, passa também pela impossibilidade de se fazer um filme, neste caso adaptar-se um romance, a não ser que a estrutura do mesmo seja profundamente modificada. O projeto de adaptar o livro para o cinema tem início anterior à publicação do mesmo e mostra uma trajetória bastante pitoresca. Parte dela é narrada pelo próprio Fowles no Prefácio de The Screenplay of The French Lieutenant’s Woman, de Harold Pinter (1980). No Prefácio, Fowles escreve: Relembrando, suspeito que a coisa principal que dificultava o trabalho e frustrava os diretores e escritores com quem conversávamos era a reputação bombástica do próprio livro. Tinha tido sorte suficiente para ganhar não apenas uma reputação comercial, mas um sucesso crítico considerável. E seu texto estava em grande perigo de se tornar sacrossanto. Lembrome de um encontro com Robert Bolt, que declinou o roteiro, mas queria explicar o porquê. No final da conversa, seu argumento quase me convencera totalmente que, como estava (ou permanecia impresso), o livro era e seria sempre “infilmável". (FOWLES, In: PINTER, 1980, p. viii; minha tradução) No dia 27 de maio de 1980, mais de uma década após o início das negociações, a equipe de Reisz filma a claquete e o retoque na maquiagem da atriz, indicando a cena a ser gravada, dando início à filmagem do filme dentro do filme, isto é, da narrativa do século XIX dentro da narrativa do século XX. Estrutura mise-en-abyme, esta foi a principal mudança necessária para que o romance paródico chegasse às telas do cinema. Afastando-se da estrutura do romance, é difícil imaginar como um autor, neste caso um dramaturgo, conseguiu produzir técnicas com efeito semelhante às da metaficção no cinema, adaptando elementos “infilmáveis”. Fowles tinha consciência da dificuldade do processo e fala sobre isso também no Prefácio do roteiro de Pinter. Ele declara que (p. ix):
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A mulher do tenente francês foi escrito numa época em que comecei a desenvolver uma visão forte e talvez idiossincrática no domínio do cinema e do romance. Há, sem dúvida, grande parte dessas mídias, considerando que ambas são essencialmente narrativas, que são comuns; há outros territórios, no entanto, que são intransponíveis... (pense, por exemplo, na estarrecedora precariedade do vocabulário para definir nuanças sem fim da expressão facial) e coisas da palavra que a câmara nunca captará nem atores jamais pronunciarão. (FOWLES, In: PINTER, 1980, p. viii; minha tradução)
Fowles, no romance, cria uma narrativa do século XIX, entrecortada por comentários do século XX sobre o processo de criação da própria narrativa, característica fundamental da metaficção. No centro da sua narrativa, temos uma outra narrativa, relatada por Sarah. Linda Hutcheon (1984), crítica e teórica canadense, diz que: “Metaficção... é ficção sobre ficção – isto é, ficção que inclui em si mesma um comentário sobre sua própria identidade narrativa e/ou linguística” (p. 1, minha tradução). Ela acrescenta que a metaficção tende, sobretudo, a brincar com as possibilidades de significado e de forma, demonstrando uma intensa autoconsciência em relação à produção artística e ao papel a ser desempenhado pelo leitor que, convidado a adentrar tanto o espaço literário quanto o espaço evocado pelo romance, participa assim de sua produção. Concluindo esta parte, no romance de Fowles, a quebra da ilusão se dá pelas reflexões sobre o processo criativo como demonstram as citações nas páginas 4 e 5 deste trabalho. Na adaptação, na qual Pinter modifica a estrutura do romance e a transforma em história dentro da história, a materialidade da mídia (a filmagem da história do século XIX) vêm à superfície: o espectador vê claquetes, retoques da maquiagem, composição da cena, câmeras, etc.
Materialidade da literatura no cinema
O filme The Words [As palavras], uma releitura do filme alemão Lila, Lila [My Words, My Lies, My Love, 2009], é baseado no romance do escritor suíço Martin Suter,
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com roteiro de Alexander Buresch). Lila, Lila [2009] é a história de David Kern [Daniel Brühl], um garçom solitário que inventa uma enorme mentira para conquistar a mulher que ama, Marie [Hannah Herzsprung]. Depois de comprar uma mesa de cabeceira no mercado das pulgas, David encontra um manuscrito em uma das gavetas e o lê. Fascinado pelo texto, entrega para Marie, como se fosse dele, para que o leia. Ela o convence a publicá-lo, e, ao fazê-lo, Kern torna-se famoso da noite para o dia. Antes de uma sessão de leitura em Berlin, o moderador descreve o romance como "A Anna Karenina para a geração de Internet". As palavras [2013], roteiro e direção de Brian Klugman e Lee Stemthal, é uma releitura bem mais complexa do que Lila, Lila. O enredo resgata, a princípio, dois momentos distintos: o final da segunda guerra mundial e o presente da narrativa Aborda também a dificuldade nos relacionamentos humanos no passado e no presente, mas acima de tudo leva o espectador a refletir sobre a busca da celebridade como escritor, a apropriação indébita de um texto e as consequências desse crime. Rory Jansen [Bradley Cooper] é casado com Dora [Zoe Saldana] e sonha em publicar seu próprio romance, mas suas tentativas são todas frustradas por sua própria inaptidão. Um dia, em uma pequena loja de antiguidades, ele encontra uma pasta com um velho manuscrito (materialidade da literatura). Ao ler o texto, Rory fica fascinado e decide transcrevê-lo palavra por palavra para o computador (materialidade da escritura), copiando até os erros de datilografia (materialidade da escritura) que haviam sido datilografados pelo autor do velho manuscrito durante a segunda guerra mundial, e o apresenta como se fosse seu ao editor com quem trabalha. O livro é publicado e se torna um sucesso de vendas. No entanto, a vida de Rory sofre uma revés quando conhece um senhor idoso [Jeremy Irons] que lhe diz ser o autor do velho manuscrito e lhe conta sua história. Essa trama é envolvida por outra, em uma estrutura mise-em-abyme, como no filme A mulher do tenente francês, na qual o romancista Clayton Hammond [Dennis Quaid], em uma sessão de leitura, encontra uma fã apaixonada, Daniella [Olivia Wilde], e, de forma ostensiva, a procura depois da sessão e parece querer revelar que seu romance é uma farsa, que ele é um usurpador do texto de outrem. O filme trata, portanto, da materialidade da literatura no contexto cinematográfico e estabelece um
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diálogo profícuo entre as duas mídias. Do sonho de se tornar um escritor famoso até o conflito de ter utilizado “as palavras” de outro autor, do glamour da fama ao desespero do homem, passagens e passagens do filme mostram o “escritor verdadeiro” datilografando seu texto durante a segunda guerra mundial e do “escritor que se apropriou do texto” digitando o texto em época mais recente no teclado do computador, com o brilho da tela a espelhar o brilho nos olhos de quem encontrou uma obra de arte que poderá, por meios ilícitos, chamar de sua.
Considerações finais
Como se pode constatar, os termos “opacidade e transparência” na literatura e no cinema não são de fácil apreensão ao se falar sobre o “espetáculo [ou narrativa] interrompido”. Geralmente o espetáculo é interrompido por interferências além do uso da materialidade da mídia. Muitas vezes, a materialidade é parte do próprio processo criativo e não implica em quebra da ilusão de realidade, mas pode fazê-lo. Ao leitor pode ser dada a possibilidade de ler sobre o processo criativo ou sobre a materialidade da literatura; ao espectador, semelhante oportunidade é dada por meio da visibilidade. Na filmagem O homem com uma câmera, vemos o cineasta em ação em uma ilusória captação da “realidade como ela é”. Em Malone Dies, a preocupação com o papel que está acabando e com o pequeno lápis é parte integrante da composição do texto literário. No conto “Better be ready ‘bout half past eight”, os materiais empregados (computador e bloco de notas amarelo) são também parte da diegese e definem o destino das palavras do pesquisador-poeta. No filme Passion, a materialidade do cinema faz parte da visibilidade da espera que leva à conclusão da impossibilidade de se realizar o filme, mas o filme existe, no entanto, e a materialidade do cinema fica evidente. No romance A mulher do tenente francês, o autor/narrador não utiliza a materialidade da mídia, mas refere-se ao processo criativo do romance, informação que é ignorada por Pinter ao adaptar o texto para o cinema. Na adaptação, a materialidade do cinema deixa evidente que a narrativa do século XIX é uma produção cinematográfica. No filme As palavras, a materialidade da escritura ou da literatura é um dos grandes lances do diretor para demonstrar a angústia do escritor diante da
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página em branco, da inépcia de pretensos escritores, e da necessidade e consequências de realizar um sonho a qualquer preço.
Referências
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FOWLES, John. Prefácio de The Screenplay of The French Lieutenant’s Woman, de Harold Pinter. Great Britain: Parlon Edition, 1981.
GODARD, Jean-Luc Passion. Parafrance Films. 1982. 88m.
HUTCHEON Linda. Narcissistic Narrative: The Metafictional Paradox. London: Methuen, 1984.
KLUGMAN, Brian; STERNTHAL Lee. As palavras. Parlay Films. DVD Video. 2012. 102m.
MOSER, Walter.As relações entre as artes: por uma arqueologia da intermidialidade. Revista Aletria, jul-dez, p. 42-65, 2006. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/ poslit/08_ publicacoes_ txt/ale_14/ale14_wm.pdf. Acesso em: 02 ago. 2014. REISZ, Karel. A mulher do tenente francês. Metro-Goldwyn-Mayer. DVD Video. 1981.
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homem
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LITERATURA INFANTIL E ESTRATÉGIAS DE LEITURA: UMA PROPOSTA DE PRÁTICAS PARA O LETRAMENTO Bruno Marini Bruneri (UFMS) A veracidade do baixo nível da habilidade leitora do alunado brasileiro pode ser evidenciada através dos resultados insatisfatórios que nosso país apresentou nos estudos de avaliação, realizados em 2009, pelo Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) realizado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (BRASIL, 2009). Ademais, essa realidade pode ser confirmada por meio do INAF – Indicador de Analfabetismo Funcional, instrumento constituído a partir dos dados da pesquisa nacional sobre o nível de alfabetismo do brasileiro, realizada pelo Instituto Paulo Montenegro e a ONG Ação Educativa: “O percentual da população alfabetizada funcionalmente foi de 61% em 2001 para 73% em 2011, mas apenas um em cada quatro brasileiros domina plenamente as habilidades de leitura, escrita e matemática”1. Esse cenário poderia ser irrelevante para um cidadão comum que vê apenas a atual conjuntura da escola pública como um mero dado estatístico ou algo que está longe de sua realidade; no entanto, para um docente com vistas à pesquisa na área educacional essa situação precária serve como um ponto de partida para a reflexão sobre o papel que a escola exerce na inclusão/exclusão - sucesso/fracasso social do cidadão brasileiro. Dessa maneira, o ensino das primeiras letras, pautado na formação do sujeito chamado letrado, adquire um papel significativamente relevante na educação atual, pois o domínio da compreensão da língua escrita torna-se precondição para a democratização das informações disponíveis no mundo e, consequentemente, a inserção plena desse indivíduo no mundo das letras. Sendo assim, propomos para iniciar a discussão acerca da problemática supracitada algumas considerações sobre as definições de alfabetização e letramento, 1
Disponível em: . Acesso em: 27 set. 2013.
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sobre a situação da leitura na escola, a propositura da literatura infantil como possibilidade de introdução ao mundo da leitura – e, por fim, a ideia da utilização das estratégias de leitura com vistas ao desenvolvimento da habilidade leitora. Considerações: alfabetização/letramento e a leitura na escola Ao tratarmos sobre o ensino da leitura na escola faz-se necessário antes de tudo definir alfabetização e letramento. Partimos do pressuposto de que estes são dois processos distintos e da sua compreensão dependerão os caminhos a serem percorridos para a formação de leitores que compreendam os significados de textos. Assim, é importante apontar que a partir da década de 1980, surgem simultaneamente nos meios acadêmicos do Brasil, da Europa e dos Estados Unidos, preocupações acerca da “necessidade de reconhecer e nomear práticas sociais de leitura e de escrita mais avançadas e complexas que as práticas do ler e escrever resultantes da aprendizagem do sistema de escrita” (SOARES, 2008, p.4). Neste contexto, surge o termo letramento e o entendimento de alfabetização. Sendo assim, primeiramente, conceituarmos alfabetização nas palavras de Soares (2003b, p. 80): [...] tomando-se a palavra em seu sentido próprio como o processo de aquisição da “tecnologia da escrita”, isto é, do conjunto de técnicas – procedimentos, habilidades – necessárias para a prática da leitura e da escrita: as habilidades de codificação de fonemas em grafemas e de decodificação de grafemas em fonemas, isto é, o domínio do sistema de escrita (alfabético, ortográfico) (SOARES, 2003b, p. 80)
Ademais, para não reduzir a alfabetização a um mero mecanismo de codificação e decodificação, o conceito de alfabetização pode ser compreendido como um sistema mais amplo, ou seja, como um processo de compreensão e expressão de significados morfológicos, sintáticos e semânticos da língua escrita “não se escreve como se fala, mesmo quando se fala em situações formais; não se fala como se escreve, mesmo quando se escreve em contextos formais” (SOARES, 2003a, p. 17). Portanto, alfabetizar é entendido como fazer com que o educando compreenda as convenções do código alfabético, decifrando as estruturas arbitrárias da escrita, através
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do desenvolvimento de competências e habilidades de análise estrutural das palavras como reflexão metalinguística. Ampliando a discussão, diferentemente da mecânica de codificar e decodificar signos linguísticos, o termo letramento surge em um momento histórico onde há a necessidade de definir-se a utilização social do código escrito na prática discursiva de um determinado grupo social. Segundo Kleiman (1998, p. 18) “podemos definir hoje letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. Ainda dentro dessa perspectiva de utilização social do código escrito Soares (2003b, p. 80) define o termo amplamente: Ao exercício efetivo e competente da tecnologia da escrita denominase letramento, que implica habilidades várias, tais como: capacidade de ler ou escrever para atingir diferentes objetivos – para informar ou informar-se, para interagir com outros, para imergir no imaginário, no estético, para ampliar conhecimentos, pra seduzir ou induzir, para divertir-se, para orientar-se, para apoio à catarse...; habilidades de interpretar e produzir diferentes tipos e gêneros de textos, habilidades de orientar-se pelos protocolos da leitura que marcam o texto ou de lançar mãos desses protocolos, ao escrever; atitudes de inserção efetiva no mundo da escrita, tendo interesse e prazer em ler e escrever, sabendo utilizar a escrita para encontrar ou fornecer informações e conhecimentos, escrevendo ou lendo de forma diferenciada, segundo as circunstâncias, os objetos, o interlocutor [...] (grifos nossos)
Desse modo, para melhor definir e distinguir as ações entre alfabetização e letramento, Soares (2002) atribui o conceito aos usos sociais da leitura e da escrita pelo indivíduo que podem ou não dominar a tecnologia de codificar ou descodificar, pois, dentro dessa perspectiva, o indivíduo pode não saber ler e escrever, mas pode ser letrado (atribuindo a este adjetivo o sentido vinculado ao letramento) ao ouvir uma leitura, ao ditar escrita (de uma carta ou uma lista de compras, por exemplo) faz uso da escrita e envolve-se em práticas sociais de leitura ou escrita. Isso posto, fica claro que os processos de alfabetização e letramento são distintos, porém complementares no caminho de formar o leitor, pois: Dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque, no quadro das atuais concepções psicológicas, linguísticas e psicolinguísticas de
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leitura e escrita, a entrada da criança (e também do adulto analfabeto) no mundo da escrita ocorre simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional de escrita – a alfabetização – e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita – o letramento. (SOARES, 2008, p. 14)
Nessa mesma direção, a divulgação no Brasil, a partir da década de 1980, da teoria construtivista2 acerca da aquisição da escrita, levou para muitos lugares a condenação do uso o das cartilhas, que por muitas décadas foram utilizadas para o ensinamento das primeiras letras e tinham apenas a preocupação de ensinar a codificar e decodificar a língua escrita. A crítica relacionada às atividades da alfabetização mecanizada, baseadas em exercícios de memorização e repetição – de letras, sílabas, palavras descontextualizadas e aglomerados de frases considerados textos – que são encontradas nas cartilhas, pautase na ausência de práticas geradoras de hábitos de leitura oferecidas por esses materiais. Tampouco elas oferecem condições de situações didáticas atreladas a práticas sociais e reflexivas passíveis de situações de letramento, pois não se utilizam de diversos tipos de textos, muito menos são permeadas por práticas de discussões da realidade e de exercícios que valorizam o conhecimento prévio do aluno por meio da oralidade (MENDONÇA; MENDONÇA, 2007). O que se observa é que essas estratégias de ensino, trazidas pelas cartilhas, nada contribuem para a formação de leitores críticos. Se o objetivo primordial é fazer com que o aluno seja um leitor autônomo, que compreenda os sentidos mais profundos do texto e os relacione com a realidade, não é possível tomar como unidade básica de ensino nem a letra, nem a sílaba, nem a palavra, nem a frase que, descontextualizadas, pouco tem a ver com a competência discursiva, ou seja, a capacidade de se produzir discursos – orais ou escritos – adequados a situações enunciadas em questão, considerando todos os aspectos e decisões envolvidas nesse processo, que é questão 2
A partir da década de 1970, as psicolinguistas argentinas Emília Ferreiro e Ana Teberosky iniciaram a investigação baseada na teoria construtivista de Jean Piaget, partindo do pressuposto de que “a aquisição do conhecimento se baseia na atividade do sujeito em interação com o objeto de conhecimento, já antes de chegar à escola, tem ideias e faz hipóteses sobre o código escrito, descrevendo os estágios linguísticos que percorre até a aquisição da leitura e da escrita” (MENDONÇA; MENDONÇA, 2007, p. 41).
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central. Dentro desse marco, a unidade básica de ensino só pode ser o texto (BRASIL, 1998). Tradicionalmente, na escola, a leitura é utilizada com a finalidade de ensinar a ler, ou seja, lê-se para aprender a decodificar; porém, no cotidiano, a leitura é regida por outros objetivos, que conformam o comportamento do leitor e sua atitude em relação ao texto. No dia-a-dia, uma pessoa pode ler para sentir prazer – lendo um romance, um livro religioso, humorístico -, para informar-se – ler jornal, uma revista informativa -, ler para agir – ao ler uma placa. Essas leituras, guiadas por diferentes objetivos, produzem efeitos variados, que modificam a ação do leitor diante do texto. São essas práticas sociais que devem ser vividas em nossa sala de aula, pois leitura não é simplesmente decodificar, conforme afirma Freire (1992 apud SOUZA, 1992, p. 2), pois: [...] uma compreensão crítica do ato de ler não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura das palavras.
Porém, o que se comumente observa como práticas de ensino da leitura, apontadas por Silva e Carbonari (1997), é a oralização dos textos na sala de aula que ocorre nas seguintes situações: leitura de textos didáticos para obter informações, leitura de textos produzidos pelos alunos, leitura de palavras isoladas (descontextualizadas) para treino ortográfico e leitura de perguntas e respostas de questionários. Tais práticas reduzem o ato de ler apenas para obter informações superficiais do texto, ou seja, a leitura fica apenas condicionada à decodificação da escrita e o bom leitor, nessa perspectiva, é considerado aquele que recita bem o texto. Para que a leitura oral possa ter significado é preciso que ela seja uma atividade dinâmica de recriação dos sentidos existentes nos textos, que enriqueça e amplie o sentido imediato daquilo que é lido e que faça parte dos interesses e realidade dos que o leem. Outra situação que facilmente se encontra na escola é a didatização da leitura que utiliza o texto como pretexto para outras atividades relacionadas à língua escrita. Segundo Solé (1998, p. 34): Em geral, essa sequência inclui a leitura em voz alta pelos alunos de um determinado texto – cada um deles lê um fragmento, enquanto os
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outros “acompanham” em seu próprio livro; se o leitor cometer algum erro, este costuma ser corrigido diretamente pelo professor ou, a pedido deste, por outro aluno. Depois da leitura elaboram-se diversas perguntas relacionadas ao conteúdo do texto, formuladas pelo professor. A seguir, se preenche uma ficha de trabalho mais ou menos relacionada ao texto lido e que pode abranger aspectos da sintaxe morfológica, ortografia, vocabulário e, eventualmente, a compreensão leitora.
Esse tratamento do ensino de leitura praticado pela escola, alicerçado por conhecimentos empíricos e/ou por atividades mecanizadas tradicionalmente divulgadas pelas cartilhas, se perpetuam por décadas no cenário escolar e, infelizmente, não extrapolam o nível de decodificação e tampouco proporciona ao educando o contato com a manipulação e utilização dos diferentes gêneros textuais em circulação social. Ou seja, o tratamento prende-se nas atividades de alfabetização sem se preocupar com atividades de letramento. Como visto, a leitura é simultaneamente objeto de conhecimento e instrumento de aprendizagem, conceito nem sempre bem entendido pela escola. Dessa forma, o ato de ler torna-se cada vez mais um instrumento necessário para o desenvolvimento e sucesso do indivíduo. Ou seja, na contemporaneidade, onde o acesso à informação do mundo todo é feito de forma rápida e dinâmica, através dos textos encontrados na Internet, a competência leitora passa ser necessidade do indivíduo, pois a leitura on-line requer do leitor velocidade e sentido crítico, sem os quais a compreensão da informação e o conhecimento ficam comprometidos (SIM-SIM, 2006). Nesse sentido, a leitura torna-se cada vez mais uma necessidade básica para o desenvolvimento pessoal e social. Assim, faz-se necessário o domínio da leitura, visto que o leitor para ser um sujeito ativo, deve ultrapassar o nível de decodificação do texto, atingindo também o nível de compreensão e interpretação da leitura e que ele construa novos conhecimentos através dos domínios já existentes, tornando sólidos os seus referenciais e, dessa forma, aprendendo significativamente. Logo, através dessas práticas dialógicas, o leitor conversa com o texto, se indaga, levanta questões e hipóteses sobre suas leituras, apegando-se cada vez mais ao ato de ler e aumentando seu gosto por ela. É importante salientar que saber ler bem é condição primordial para iniciar o gosto pela leitura, pois a leitura bem feita leva o indivíduo a criar bons hábitos de
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leitura. Essa interação entre o leitor, seu prazer e interação com textos o torna conhecedor de si mesmo e do mundo. Para Bamberger (1988, p. 29): Quando uma pessoa sabe ler bem, não existem fronteiras para ela, ela pode viajar não apenas para outros países, mas também no passado, no futuro, no mundo cósmico. Descobre também o caminho para a porção mais íntima da alma humana, passando a conhecer melhor a si mesmo e aos outros.
Destarte, reiteramos que para se formar realmente um bom leitor, proficiente, autônomo e que tenha gosto pela leitura, não cabe à escola apenas alfabetizar, mas cabe também a ela expor seu aluno aos diferentes tipos e gêneros textuais para ele possa interagir com o código e envolver-se em práticas sociais de leitura ou escrita, ou seja, desenvolver concomitantemente o processo de letramento, pois é através desses processos que se torna possível o desenvolvimento pleno da leitura que envolve complexas competências de cunho linguístico, cognitivo, social e afetivo. A seguir, trataremos da literatura, em especial a infantil, como um meio de inserção do indivíduo ao mundo das letras e as possibilidades que ela traz no desenvolvimento do letramento. A mola propulsora: literatura infantil e o letramento É mais que sabido que a literatura infantil é um grande receptor de informações da criança e que as histórias são fontes maravilhosas de experiências, são meios preciosos de ampliar o horizonte do indivíduo e aumentar seu conhecimento em relação ao mundo que as cerca. No entanto, como visto anteriormente, somente na década de 80, quando acontece uma ruptura nas práticas tradicionais no ensino da leitura e da escrita à medida que a teoria construtivista e a ideia de alfabetizar e gerar letramento ganham maiores proporções, que a literatura infantil ganha um maior espaço na escola, ao passo que as concepções de ensino baseadas nos ideais de utilização social do código escrito se incorporam nos planejamentos didáticos, uma gama de textos adentra ao espaço escolar com vistas ao abandono dos criticados textos apresentados pelas cartilhas.
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Dentre essa diversidade textual a literatura começa a ter destaque. Nesta direção, Arena (2010, p. 13-14) afirma que: Desde os anos 1980, no Brasil, foram verificados dois movimentos na área da leitura: o primeiro teve como núcleo o lento, mas progressivo, abandono dos manuais, entre eles, o da cartilha, como material impresso nuclear no processo de ensinar e de aprender a ler; o segundo, vinculado ao primeiro, deu-se na vagarosa, mas gradativa incorporação do livro de literatura infantil nas salas de aula, acompanhada pela rápida expansão de produção editorial de qualidade. A introdução frequente e variada do gênero, não mais fora de seu suporte (nas páginas dos manuais), mas no material histórico elaborado para lidar com ele, isto é, o livro, estabeleceu novas discussões sobre as relações entre literatura infantil, alfabetização e aprender a ensinar a ler.
Dessa maneira, a proximidade entre a literatura e a criança faz com que o processo de letramento se realize maior facilidade e efetividade, logo, “o processo de letramento que se faz via textos literários compreende não apenas uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas também, e sobretudo, uma forma de assegurar seu efetivo domínio” afirma Cosson (2006, p. 12). Ademais, a literatura ao ser inserida no contexto escolar é considerada promotora da criança em seu meio histórico-social, além de levá-la a reflexões sobre as culturas e realidades que tem acesso. Nessa perspectiva de uso da literatura como promotora de habilidades de uso social da língua, Arena (2010, p. 15) justifica a sua inserção nas salas escolares por duas questões: [...] a primeira, por entender que a literatura medeia a relação da criança com a cultura de sua época, mas transcende a ela, tanto para o passado, quanto paro o futuro; a segunda, porque a criança, imersa em um contexto cultural, necessita desse contexto para se apropriar da cultura que encharca o gênero literário a que tem acesso.
Tendo em vista todo esse valor atribuído à literatura podemos afirmar que é dever do professor: [...] explorar ao máximo, com seus alunos, as potencialidades desse tipo de texto. Ao professor cabe criar as condições para que o encontro do aluno com a literatura seja uma busca plena de sentido para o texto literário, para o próprio aluno e para a sociedade em que todos estão inseridos. (COSSON, 2006, p. 29).
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Sendo assim, apontaremos sucintamente a seguir algumas capacidades de compreensão de textos (estratégias) como possibilidades no trabalho com a leitura e consequentemente com o texto literário com vistas à formação do leitor. Uma possível saída: estratégias de leitura e práticas de compreensão leitora
Descreveremos de forma sucinta as estratégias de compreensão leitora encontradas na obra “Estratégias de Leitura” de autoria de Isabel Solé (1998) com o intuito de informar o leitor deste texto sobre as possibilidades de trabalho no ensino da leitura com finalidade de formação de leitores que compreendam autonomamente os textos escritos. Solé (1998) frisa que antes mesmo de o professor iniciar o trabalho com as estratégias de leitura, há a necessidade de estabelecer um objetivo para que o leitor possa alcançar o sucesso na compreensão de texto a ser lido, pois: [...] compreender não é uma questão de tudo ou nada, mas é relativa aos conhecimentos de que o leitor dispõe sobre o tema do texto e aos objetivos estipulados pelo leitor (ou, embora estipulados por outro, sejam aceitos por este). Esses objetivos não determinam apenas as estratégias que se ativam para se obter uma interpretação do texto; também estabelecem o umbral de tolerância do leitor com respeito aos seus próprios sentimentos de não-compreensão (SOLÉ, 1998, p. 41) (grifos nossos).
Portanto, ao estipular o objetivo de leitura – independentemente se feito pelo professor ou pelo próprio leitor – estaremos ativando estratégias próprias de compreensão leitora. Assim sendo, para muito além do trato com as atividades de leitura encontradas na escola, que descrevemos anteriormente, a autora propõe três momentos de desenvolvimento das atividades de estratégias: antes, durante e depois da leitura. No primeiro momento, as atividades antes da leitura, objetivam a ativação dos conhecimentos prévios trazidos pelas crianças que podem ser relacionados às ideias do texto e interferem diretamente na compreensão durante a leitura. Já, no segundo momento, as atividades durante a leitura confirmarão as hipóteses, antecipações ou expectativas criadas no primeiro momento, além de propiciar a identificação de novas informações importantes no texto, a busca de significados
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desconhecidos e a assimilação entre as informações novas e o conhecimento prévio do leitor. E, por fim, há as atividades para depois da leitura que proporcionarão ao aluno a reflexão sobre o texto lido, através da releitura ou síntese. A avaliação do texto e a discussão de sua temática são objetivos proporcionados por essas atividades, como organização de sínteses, debates, avaliação crítica do texto etc. Por tanto, as atividades de leitura propostas pela autora, visam o trabalho antes de iniciar-se a leitura, durante a leitura e após a leitura, explorando várias dimensões do texto e proporcionando a interação do aprendiz com o objeto de leitura. Diferentemente do que encontramos na escola atual, como por exemplo, as fichas de leitura que acompanham os livros de literatura ou os questionários de compreensão textual que compõem as unidades do livro didático. Considerações finais Procuramos neste texto discutir sobre a situação do ensino de leitura na escola e sua contribuição na formação do sujeito letrado, pois os dados demonstrados pelas avaliações nacionais apontam um baixo índice na habilidade leitora das crianças de nosso país, sendo que essa habilidade é precondição para a formação do cidadão consciente, ativo e de sucesso na sociedade atual, que cada vez mais valoriza a cultura escrita. Para tanto, traçamos brevemente os conceitos dos termos alfabetização e letramento para que pudéssemos reconhecer o papel do ensino das primeiras letras como a pedra angular na formação do aluno leitor, pois a escola é a principal responsável pelo ensino da tecnologia do ler e escrever, além de ser dela a promoção da utilização social da língua escrita e do envolvimento dos indivíduos em seu contexto social através do código. Igualmente, apontamos a literatura infantil como possibilidade de inserção, atração e instrumento de letramento nas práticas pedagógicas nas aulas de Língua Portuguesa, logo, a magia do texto literário é capaz introduzir a criança no mundo das letras, aliás, no mundo da boa leitura, com maior facilidade, além de demostrar diversos
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gêneros discursivos comprovando que a leitura ultrapassa a mera decodificação letras, sílabas, palavras ou frases sem contexto. Outrossim, demonstramos através da teoria de Isabél Solé (1998) uma alternativa de ensino que visa a ampla compreensão do texto através das estratégias de leitura. O uso das estratégias possibilita a mediação do professor no desenvolvimento da compreensão leitora e, por conseguinte, a promoção pelo gosto de ler. Por fim, o ensino da leitura visando à formação do sujeito letrado, deverá organizar-se de modo que os alunos sejam capazes de expandir o uso da linguagem em instâncias privadas e utilizá-las em instâncias públicas, sabendo assumir a palavra e compreender textos adequados a seus destinatários, aos objetivos a que se propõem e aos assuntos tratados. É fundamental que o aluno tenha um domínio da língua oral e escrita para a participação social efetiva, pois é por meio da língua que o homem se comunica, tem acesso à informação, expressa e defende seus pontos de vista e constrói seu conhecimento. Por isso, a escola precisa garantir a todos os seus alunos o acesso aos saberes linguísticos, necessários ao exercício da cidadania. Referências ARENA, D. B. A literatura infantil como produção cultural e como instrumento de iniciação da criança no mundo da cultura escrita. In: SOUZA, R. J. de. et al. Ler e compreender: estratégias de leitura. Campinas: Mercado das Letras, 2010. p. 13-44. BAMBERGER, R. Como incentivar o hábito de leitura. São Paulo: Loyola, 1998 BRASIL.
PISA
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Relatório
Nacional
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Brasília.
Disponível
em:
Acesso em: 25 abr. 2012. BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
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COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006. KLEIMAN, A. B. Os significados do letramento. Campinas, SP: Mercado das Letras, 1995. MENDONÇA. O. S.; MENDONÇA, O. C. Alfabetização: método sociolingüístico: consciência social, silábica e alfabética em Paulo Freire. São Paulo: Cortez, 2007. SIM-SIM, I. Ler e ensinar a ler. Lisboa: Asa, 2006. SILVA, A, C.; CARBONARI, R. Cópia e leitura oral: estratégias pra ensinar? In: CHIAPPINI, L. A prender e ensinar com textos didáticos e paradidáticos. São Paulo, Ed. Cortez, 1997. SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2002 ______. As muitas facetas da alfabetização. In: Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, p. 13-27, 2003a. ______. Letramento e escolarização. In Cadernos de Formação – Alfabetização. São Paulo: UNESP, p. 79-98, 2003b. ______. Letramento e alfabetização: as muitas facetas. Presença Pedagógica. Dimensão, v. 14, n. 81, p. 23-36, mai./jun., 2008. SOLÉ, I. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Artes Médicas Sul Ltda, 1998. SOUZA, R, J de. Poesia infantil: concepções e modos de ensino. 2000. Tese. (Doutorado em Letras) FCL/UNESP-Assis, 2000.
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A FORMALIZAÇÃO ÉPICA DA MERCANTILIZAÇÃO DO SUJEITO NA PEÇA AUTO DOS BONS TRATOS, DA CIA DO LATÃO Camila Hespanhol Peruchi (UEM) 1. Temática da peça Auto dos bons tratos e a formalização estética da mercantilização do sujeito 1.1 Um fato histórico e vários pontos de vista A peça Auto dos bons tratos (2002), da Companhia de teatro paulista, Cia. do Latão, se passa entre os anos de 1545 e 1547 e tematiza o processo de escravização dos índios pelo primeiro donatário da capitania de Porto Seguro, Pero do Campo Tourinho, que, adepto da ideologia capitalista, entra em uma disputa ideológica com a Igreja por ser contrário aos feriados de dia santo. Assim, a peça se baseia em um processo jurídico verídico que ocorreu no início do Brasil Colônia. No entanto, na prisão, o donatário tem uma visão a respeito da cordialidade que o indica o modo ideal de se relacionar com os seus escravos e funcionários, para tê-los sempre dóceis. Com esse princípio organizador, a peça permite ao público e ao leitor que perpassem por vários seres sociais e por duas instâncias do poder do século XVI e realiza, sob o viés benjaminiano, a revisão de um dos acontecimentos da História Oficial. Durante a peça, trechos do documento verídico do processo movido contra Tourinho são lidos em cena1. Assim, o estudo temático do presente trabalho tem por objetivo compreender a elaboração estética do tema histórico da peça como possibilitadora de uma leitura histórica materialista do primeiro processo da Inquisição no Brasil. Para tanto, procuraremos evidenciar os momentos do texto que mais fortemente revelam a sua capacidade de reconstruir um episódio do século XVI sob o viés da filosofia da história benjaminiana2, bem como os elementos estéticos que 1
Como indicado em nota, ao final da peça publicada na obra Companhia do Latão 7 peças, o documento original se encontra no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo número 8821, transcrito por Rosana G. Britto no volume A saga de Pero do Campo Tourinho: o primeiro processo da Inquisição no Brasil. 2
Para essa análise, pauto-me nas Teses sobre o Conceito de História, desenvolvidas por Walter Benjamin em 1939 e na posterior leitura e análise feita por Michael Lövy na obra Walter Benjamin: aviso de Incêndio. (2005). Para o contexto de trabalho, interessam, sobretudo, as teses V, VI e VII. Devido às limitações do artigo e à especificidade da análise não cabe, neste contexto, um estudo que abarque os
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permitem sua formalização. Essa perspectiva, portanto, direciona também a um estudo das formas épicas, sem as quais a temática, ainda que histórica e política, se veria vazia de sentido. Não se deve perder de vista que, como cita Gagnebin (1982), a reflexão de Benjamin sobre a crítica materialista da literatura o conduz a uma reflexão sobre a história - enquanto conjunto dos eventos do passado -, sobre a escritura desses eventos e, também, sobre a sua transmissão. Assim, para Benjamin (2005), a história não é a acumulação dos acontecimentos, como quer a historiografia tradicional, nem a historiografia materialista é triunfalista. Esta deve, ao contrário, a partir de outra forma que não apenas reproduza a historiografia burguesa em chave invertida - por meio da inversão do maniqueísmo (o que fez em parte o realismo socialista) -, adquirir uma memória que não consta na historiografia tradicional, relacionando-a ao presente. Ao teatralizar o episódio que Pero do Campo Tourinho de blasfêmia e heresia, esse fato verídico passa a ser visto sob vários pontos de vista que recuperam a materialidade histórica do século XVI por meio das relações sociais que nele figuravam. Para Benjamin, essa seria justamente a vantagem da arte que, ao não ter o compromisso – ainda que falso – com a verdade, como o têm a informação e a historiografia, poderia reconstruir “pelas arestas” as lacunas não registradas sobre determinado acontecimento. Como cita Carvalho (2009), Auto dos Bons Tratos, apesar de todas as referências adotadas, está mais próxima de uma fábula do que de uma crônica histórica. Há em cena, portanto, o ponto de vista dos trabalhadores livres, da Igreja Católica, da Corte Portuguesa, do judeu banqueiro - ao qual todas as demais instituições são subservientes - e do próprio Capitão, desvelando, dessa maneira, as estruturas sociais e ideológicas profundas que subjazem o processo movido pela Igreja contra Tourinho, o que permite que este fato seja narrado e interpretado em todas as suas possibilidades, ganhando amplitude. Neste caso, a apropriação e reprodução do processo jurídico do personagem não é, definitivamente, o que importa. Antes, o que poderia ser tomado como o acontecimento principal funciona como propulsor do processo de questionamento do “teor de verdade”.
imbricamentos do pensamento materialista benjaminiano com os elementos teológicos judaicos – fortemente presente nas teses – e que, para um estudo mais detalhado, não podem ser perdidos de vista.
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Na tese V sobre o conceito de História, Benjamin (2005) reafirma a função do materialismo histórico ao ter que romper com a ideia historicista de que o que foi registrado pela historiografia é a verdade: “‘A verdade não nos escapará’ – essa frase de Gottfried Keller indica, na imagem que o Historicismo faz da história, exatamente o ponto em que ela é batida em brecha pelo materialismo histórico” (BENJAMIN, 2005, p. 62). Isso porque, como desenvolvido na tese VII, o historiador do historicismo se identifica com o vencedor. Nesse sentido, a história oficial seria também uma história dos vencedores que, para se constituir enquanto tal, deixa de lado a história dos vencidos, não sendo, portanto, inteiramente verdade. Ao elaborar artisticamente um fato histórico brasileiro, a peça o narra também sob o de vista dos oprimidos. Em uma das cenas, por exemplo, o trabalhador livre, o marinheiro Biela, diante da possibilidade de ver a capitania sem o seu governante, cogita a organização de uma insurreição e conta para a dona da mercearia, Maria Machado: MARIA MACHADO: Que ideia de tatu. Não vê que precisamos da proteção deles? Sem um tipo como Tourinho, capaz de arrancar a cabeça de um índio na faca, nós seríamos massacrados pelos tapuias. E mesmo se as tribos nos deixassem em paz, El-Rei mandaria uma esquadra de Portugal para que os canhões lembrassem quem é o dono da terra (CARVALHO; MARCIANO, 2008, p.182)
A ingenuidade e o otimismo de Biela são assim contrapostos à visão sempre realista de Maria Machado, cuja fala evidencia não só a dependência dialética existente entre os oprimidos e o opressor, como também a cadeia de dominação e opressão necessária para que a ordem seja mantida. Enfatiza-se também a relação existente entre um acontecimento histórico – a possível prisão de um donatário de terras – e os prejuízos do indivíduo insignificante. Benjamin (1987) já havia enfatizado que, para Brecht, era necessário privar o palco de todo sensacionalismo. Nesse sentido, os fatos históricos seriam os mais adequados para as peças por já serem conhecidos do público. É certo que o episódio da primeira inquisição ocorrida no Brasil não é conhecido pelos brasileiros, no entanto, Benjamin (1987) destaca a necessidade de que, mesmo nos fatos históricos conhecidos, a liberdade de criação deveria intervir, já que a ênfase não deve recair sobre as grandes decisões históricas – o que corresponderia à expectativa do
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público – mas sobre os aspectos individuais e incomensuráveis. Há, portanto, em Auto dos Bons Tratos a relativização do próprio acontecimento histórico a partir de suas outras consequências que revelam um mundo regido por classes e não por indivíduos. 1.2 Os recursos cômicos: a ironia como distanciamento Embora se deva levar em consideração o pressuposto de que narrar já é adotar um ponto de vista, a história de Auto dos Bons Tratos, no entanto, não é narrada só sob o ponto de vista dos oprimidos. Ao partir de um realismo que tem pressupostos, a peça procura expor o que não está aparente. Como assinala Benjamin (1987), se ao teatro naturalista coube expor determinadas condições sociais, ao teatro épico coube revelar os seus pressupostos. Por isso, a peça não se trata de uma denúncia da escravização indígena, mas dos motivos dessa prática. Para isso, o que se tem é a mistura, muitas vezes lado a lado, das visões de vários personagens que são, na verdade, representantes de classes sociais distintas que se favorecem ou se prejudicam quando assim lhes convém. Assim, na cena 4, que se passa no Paço Real de Lisboa, os reis de Portugal (como indica a própria rubrica, sempre lida em voz alta para o público na abertura de cada cena) defendem a liberdade da Inquisição: DOM MARTINHO: Nem gosto de dizer, mas tenho medo que tanta resistência, tantos perdões a prisioneiros, indultos e abrandamentos, tenham o cheiro do dinheiro. A máquina apostólica não é mais confiável. Talvez haja suborno de cristãos-novos pondo azeite nas engrenagens. RAINHA: Como este mundo é corruptível. EL-REI [tenso]: Mas e as nossas dádivas: a pensão que mandamos ao Cardeal Farnese? E a fortuna que gastamos com os sobrinhos do pontífice? Isso não conta? (CARVALHO; MARCIANO, 2008, p.159)
Como teatro dialético, o enredo explicita, ao revelar a incoerência entre os diferentes discursos que variam dependendo dos diferentes contextos, a contradição de cada uma dessas instituições de poder. Além disso, o choque de contrários gerado pela estrutura do diálogo faz com que o humor seja presença constante na peça. Vale frisar, junto com Nogueira (2003), que o teatro épico insere-se na tradição do deleitar e instruir, como deixa claro o próprio Brecht na obra Pequeno órganon para o teatro (1948): “O teatro consiste na apresentação de imagens vivas de acontecimentos
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passados no mundo dos homens que são reproduzidos ou que foram, simplesmente, imaginados; o objetivo dessa apresentação é divertir (...)” (BRECHT, 1978, p.127). Portanto, ao contrário do pensamento dogmático e vulgar que acusa o teatro de filiação brechtiana de formalismo e racionalismo excessivos, uma das suas maiores preocupações é o riso. Demarca-se, assim, a filiação de Brecht com o pensamento alemão que já no romantismo elaborava uma crítica ao modelo de teatro que vinha sendo seguido, ainda pautado pela catarse aristotélica por meio da identificação do público com o que era encenado. Benjamin (1987) afirma que o teatro épico contrapõe ao êxtase subjetivo da catarse o que ele denomina de “assombro”. O conceito benjaminiano de “assombro” parece dialogar também com a refuncionalização do conceito de diversão proposta pelo teatro épico. Assim, a diversão, no lugar de ser mero entretenimento, passaria a estar ligada também à produção de conhecimento. A dimensão comunicacional da peça Auto dos Bons Tratos permite que o espectador torne-se observador das contradições expostas. Sem assumir um juízo de valor diante do que é exposto, justamente por trazer vários pontos de vistas e não apenas um (como o faria o teatro de tese), a peça faz com que o espectador reflita sobre eles, estimulando a dimensão imaginativa e reflexiva do teatro. A ironia explícita gerada pelo fato de o personagem dizer exatamente o contrário daquilo que pensa convida o espectador/leitor a ser ativo para refletir sobre o tema e se posicionar. Para o teatro épico a ironia é, pois, uma forma de distanciamento. 1.3 Uma leitura a contrapelo: a apropriação crítica da forma auto e o conceito de cordialidade A tese VII sobre o conceito de História cita que “Nunca há um documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie” (BENJAMIN, 2005, p.70). Assim, também o progresso empreendido por Tourinho é exposto em chave crítica. A figura que poderia ser compreendida (e que, de fato, o foi pela historiografia oficial) como aquele que bravamente vem povoar a terra e civilizá-la por meio da construção de engenhos é criticada pela exposição lado a lado de uma prática que com a pretensão de ser um avanço subjuga e maltrata a mão de obra indígena e anula a sua cultura.
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Como cita Holanda (2008), as terras fértei do país permitiram a supremacia da propriedade rural enquanto unidade de produção. A ficcionalização desse momento se dá na peça pela construção do engenho de Tourinho e, assim, consegue captar a imposição de um modo de vida e de produção pertencente à civilização mercantil europeia, mas não à cultura indígena. De acordo com Holanda (2008), os índios dificilmente se adaptavam ao trabalho metódico que exige a exploração dos canaviais e, por isso, mantinham-se avessos a certas ordens, motivo pelo qual a mão de obra indígena foi substituída pelos escravos africanos. Solução que figura, inclusive, no final da peça. Esses diferenças sociais e culturais entre a civilização europeia e os povos indígenas são, portanto, também retratados em Auto dos Bons Tratos: “TOURINHO: Esses [os índios] não conseguem fazer nada sozinhos. Não percebem que a obra é deles também. Que o açúcar é o nosso futuro. Riqueza para nós, e trabalho para eles” (CARVALHO; MARCIANO, 2008, p. 164). Desse modo, o relato da violência aos indígenas é contínuo e permeia toda a peça. Como não é a intenção explicitar essa violência no palco, na esteira de um hipernaturalismo, a violência praticada contra eles é referida pelo diálogo daqueles que a praticam, principalmente por meio das ordens dadas por Tourinho. Não é só pelo senhor de terras, no entanto, que a violência aos índios é explicitada. Os padres não estão alheios a ela, ainda que tentem escondê-la por meio de uma missão maior, seja o progresso e o ato de civilizar. A atitude dos padres, representada pela figura de Bernard de Aureajec, é ironizada ao extremo e atinge o seu auge crítico por meio da formalização estética do metateatro. Assim, os índios, orientados por Bernard, encenam em frente à Igreja da vila, antes da Missa do Galo, um auto de Natividade, assistido pelos moradores. O metateatro, enquanto demonstração da consciência do caráter de representação de uma peça, está diretamente ligada à construção épica, na medida em que, latu sensu, o emprego dos recursos metateatrais visam à ruptura da ilusão dramática. Em sentido strictu senso, suas significações variam de acordo com o contexto. Aqui, esse recurso formal refere-se menos a uma obra que remete para si própria e mais ao fato de haver uma peça (o auto de Natividade) dentro de outra peça (Auto dos Bons Tratos). Essa construção, no entanto, incita a reflexão do público que tem ampliado, por meio da
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representação do auto de natividade, a percepção do contexto do século XVI e dos mecanismos de opressão da Igreja Católica. Os índios aparecem, assim, ora suscetíveis à catequização da Igreja, ora condenados à exploração de Tourinho, que vê na Igreja um elemento retrógrado do progresso. BERNARD [ao público]: Aproximem-se, senhores, vai começar o auto da natividade. Venham todos. Os índios hoje podem chegar mais perto. Que a graça de Deus não nos deixe confundir as penas do Inferno com as glórias do Paraíso. Veremos agora um novo teatro, representado por índios batizados de gerações amigas. Homens que abandonaram o erro e a barbaria, e nos mostram à sua maneira brasílica os ensinamentos da Bíblia. No primeiro quadro vemos a Virgem Imaculada, o carpinteiro José e o menino Jesus na manjedoura (CARVALHO; MARCIANO, 2008, p.191)
Assim, a situação ficcional da encenação do auto também dialoga com a ideia de que a cultura e a barbárie, como cita Benjamin (2005), não são polos que se excluem mutuamente compondo etapas diferentes da evolução histórica, mas são, dialeticamente, dependentes. A forma auto, portanto, coroa essa perspectiva, pois se refere às composições dramáticas de caráter religioso e/ou moral que visam à instrução e devoção e eram representadas em toda a Europa desde o século XI. Os autos de Anchieta, por exemplo, dão mostras exemplares da prática pedagógica de educação por meio da arte (LIMA, 2006). Na situação ficcional da peça, é atribuído a essa forma o sentido paródico, já que a recriação cômica do gênero permite empregar-lhe sentido crítico, revelando explicitamente a verdadeira intenção dos padres e da encenação: A alteração proposital da obra parodiada produz, necessariamente, modificação das intenções e significados primeiros. Esse caráter de ruptura com o já conhecido permite ao gênero registrar juízos e valores sobre os costumes da época em que foi escrito. É um procedimento igualmente revolucionário em relação à evolução linear dos gêneros literários por seu poder de realizar a crítica da produção anterior (COSTA, 2006, p. 231)
Assim, embora o auto da natividade mantenha a característica didática, a sua forma tradicional é subvertida pelo tema. O didatismo, nesse caso, não é empregado para catequizar, mas para evidenciar os mecanismos de opressão que existem por trás da catequização. No último quadro, em que os índios aparecem usando máscaras grotescas
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representando os animais da manjedoura, eles começam a dançar, cantar e gritar, de modo que o auto é interrompido e contraposto ao coro cantado dos anhebés, em língua própria. Bernard, no entanto, consegue fazer com que retomem o comportamento anterior e a cena metateatral termina com o padre soprando o texto que um dos índios, o anhebé pertencente ao juiz Escorcyo, havia esquecido: “Belíssima oportunidade estão a nos dar. Não ultrajemos nossos benfeitores. Pertençamos a eles. Pertençamos a eles” (CARVALHO; MARCIANO, 2008, p.193). Esta última frase enfatiza o caráter de mercadoria dado aos índios e, com isso, a situação peculiar do Brasil e sua incongruência fundamental 3: a conjunção do capitalismo e da escravidão. O Brasil nasceu, assim, sob a ordem do capital – sob a égide do mercantilismo europeu – e não conheceu, portanto, nenhum modo de produção anterior a ele. Sendo criatura do capitalismo europeu, foi criado para funcionar de acordo com a lógica do capital, exceto por uma diferença essencial: a não existência do trabalho livre, princípio constitutivo do capitalismo que se pauta na venda da maisvalia. O país se desenvolveu, assim, por meio da exploração da mão de obra escrava que perdurou por quatro séculos, estendendo-se até 1888. Ao modernizar-se conservando a escravidão que, em tese, é o contrário do próprio capitalismo, particularizou-se. Sendo um país de escravização tardia, não produziu o indivíduo burguês livre, dono de sua força de trabalho e que, portanto, deveria esforçar-se para vendê-la. Formada pelas heranças da aristocracia rural que enriqueceu por meio da escravidão e, quando não, pelas relações de compadrio e de favores, a racionalidade burguesa no Brasil é deficiente, o que gera, ainda hoje, um modo peculiar de se relacionar com o capital. A arte consegue captar essa materialidade histórica específica e assim o faz a peça Auto dos Bons Tratos ao articular em seu enredo o início do processo histórico da implantação do capitalismo no Brasil Colonial com o seu modo particular de sociabilização. Por conta de sua filiação dialética, mesmo quando a peça se refere a tempos remotos, o assunto é a história contemporânea e suas questões. A tese VI sobre o conceito de História atenta para o fato de que “articular o passado historicamente não 3
As ideias desenvolvidas aqui são baseadas na conferência de José Antônio Pasta Júnior, realizada na Oficina Cultura Oswald de Andrade, São Paulo, em setembro de 2014, por ocasião do I Seminário Internacional de Teatro e Sociedade.
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significa conhecê-lo ‘tal como ele propriamente foi’. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de perigo” (BENJAMIN, 2005, p.65). Benjamin, nessa tese, enfatiza a importância de se descalcificar a história, de modo que ela faça sentido no tempo presente. Portanto, embora o processo de Pero do Campo Tourinho possa ser encontrado nos livros da história oficial, a peça, pela formalização estética épica não é histórica, mas historicizada. A peça historiciza a implantação da ideologia capitalista no Brasil, representada pelo pensamento progressista de Pero do Campo Tourinho. Essa ideologia, no entanto, revela-se universal somente in abstracto. Na prática, esse sistema adquire sempre uma faceta particular em um país de modernização conservadora, de racionalidade burguesa rarefeita e situado na periferia do capitalismo, para usar os termos de Schwarz (1999). Como pontua Holanda (2008), a tentativa de implantação da cultura europeia em um extenso território dotado de condições largamente estranhas à sua tradição milenar é o fato mais rico em consequências. Uma dessas consequências fica clara na cena em que Tourinho está preso e, na prisão, tem uma visão sobre a cordialidade. Na cela, Tourinho - cujo autoritarismo foi combatido por outro mais forte, o da Igreja - continua blasfemando os santos quanto tem uma visão de Santa Luzia: SANTA LUZIA [Ensina, hierofânica]: Jamais serás um bom senhor se não aprenderes o trato correto. (...) Mistura alívio ao cativeiro, deixa que adorem os santos, e dá-lhes dias de dança e folguedo. (...) O bom senhor apazigua a escravaria, com seu humano coração. E faz com que esta morte em vida se pareça um pouco mais com vida (CARVALHO; MARCIANO, 2008, p. 185)
Assim, a peça se configura como um retrato simbólico da formação da personalidade autoritária no Brasil. Caracterizado pelo excesso de opressão, a ponto de ter sido alvo de um ridículo e zombeteiro processo inquisitorial do Santo Ofício, Pero do Campo Tourinho dialoga em chave invertida com o que Holanda (2008) definiu como “cordialidade”, este problemático comportamento da sociedade brasileira que consiste em relacionar-se intimamente de modo que a proximidade afetiva oculte uma distância de classe intransponível. Para Benjamin (2005), o passado nunca é factual e, portanto, nunca está dado. É, antes, uma interpretação. Daí a importância do materialismo histórico “ao capturar uma imagem do passado como ela inesperadamente
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se coloca para o sujeito histórico no instante do perigo” (BENJAMIN, 2005, p.65). As cenas do processo contra Tourinho e o debate acerca do exercício do poder por meio da escravidão correlaciona-se com a realidade do presente histórico, justamente porque a peça não apenas aborda o fato histórico, mas aponta as suas consequências também para o tempo presente, séculos depois. A visão de Santa Luzia, também em chave paródica, parece esclarecer o título da peça: Auto dos Bons Tratos. Assim, a apropriação crítica da forma auto, para além do metateatro já mencionado, está relacionada também às características didáticas da peça e a essa cena especificamente. Uma figura sagrada, Santa Luzia, aparece para ensinar Tourinho que, no Brasil, a exploração capitalista deve ser camuflada pelo afeto. Embora o auto, historicamente, tenha sua origem no século XIII e seja definido pela intenção didática, religiosa e moralizante, a partir da década de 1950, a função apologética da catequese inaciana é preenchida pelo sentido político (LIMA, 2006). A peça Auto dos 99%, do Centro Popular de Cultura, dá mostras da apropriação do didatismo do auto que, mesclado ao cômico e ao paródico, visa à exploração de outras temáticas que não a religiosa. Também na dramaturgia nordestina, especificamente pelos trabalhos de Ariano Suassuana e Emílio Borba Filho, a forma tradicional do auto é subvertida. Rosenfeld (2008) assinalou as possibilidades estéticas do auto para a dramaturgia contemporânea, uma vez que possui nítidas característica épicas. Entre elas, a quebra da unidade de tempo e espaço propiciada pela fragmentação das cenas que deviam abarcar um longo período (muitas vezes, a vida de Cristo ou de santos desde o nascimento até a morte); a presença de prólogos e epílogos e alocuções intermediárias ao público com intenção didática. Dessas características formais, compreendidas por Rosenfeld (2008) enquanto potenciais recursos épicos, todas se mantêm no Auto dos Bons Tratos. As cenas são fragmentadas e se passam ora no Brasil, ora em Portugal. Há a presença de prólogo e epílogo que, por si só, já constituem um comentário ao público, antecipando o caráter fabular e fragmentário da peça que será vista. No entanto, mesmo a permanência dessas características gerais parece ser pouco para garantir que o público identifique a peça vista com o auto em seu sentido tradicional.
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Há que se considerar, portanto, que existe outra implicação em se denominar formalmente uma peça em seu título: a expectativa do público. Neste caso, o contraste entre o título e a peça que será vista já funciona por si só como um mecanismo formal de estranhamento. No caso de Auto dos Bons Tratos, o que parece se manter da forma auto tradicional, além do que já foi citado, é a sua apropriação literal no título, mas paródica na encenação que ganha efeito cômico tanto no auto de natividade encenado pelos índios, quanto na cena de Santa Luzia. No entanto, há ainda a possibilidade de a peça ser lida como um auto judicial. De fato, ela se trata do julgamento de Pero do Campo Tourinho. De acordo com o dicionário jurídico, o termo “auto”, na área judicial, refere-se à peça constitutiva de um processo. É, assim, também a narração circunstanciada de qualquer ato ou diligência judiciária ou administrativa, escrita e autenticada por tabelião ou escrivão. É um ato público, realizado por determinação legal ou por ordem judicial. Ora, a definição de auto define também o eixo temático inicial da peça, motor de seus desdobramentos, uma vez que, inclusive, partes do documento de acusação de Tourinho são lidas em voz alta pelo escrivão do caso, narrando as declarações das testemunhas acerca de seus desmandos. Para concluir, cabe enfatizar que a abordagem do tema da mercantilização do sujeito no início do Brasil Colônia e a sua relação com o momento atual só é possível devido à formalização estética alcançada pelo emprego de recursos épicos, tais como a perspectivação de vários pontos de vista, a fragmentação em quadros, o humor ácido, a ironia, a evidenciação da contradição dos sujeitos, a existência de vários personagens sociais (que representam classes) em cena, a apropriação paródica da forma auto e o didatismo. A forma do drama burguês – definido enquanto conflito intersubjetivo entre indivíduos livres expresso por meio do diálogo – não poderia abordar esse tema, justamente porque o tema não diz respeito a indivíduos livres, mas a sujeitos que, ao serem escravizados, encarnam a própria mercadoria, em um processo de reificação que se inicia no Brasil Colônia e que se estende até os dias de hoje. Referências BENJAMIN, Walter. Que é o teatro épico? In: Obras escolhidas vol. I: magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.
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O SIMBOLISMO E A CRÍTICA LITERÁRIA NA GAZETA DE NOTÍCIAS (1890‐1900) Camila Soares López (UNESP/FAPESP – Número do processo: 2013/13489-8) O Simbolismo no Brasil No século XIX, diversos movimentos artísticos e literários efervesceram na França. No Brasil, a presença de ideias e da cultura francesa era intensa; logo, em terras brasileiras, o surgimento de estéticas, bem como a propagação de conceitos sobre arte e literatura esteve intimamente relacionado com aquilo que emergia no além-mar. Parnasianismo e Simbolismo foram manifestações genuinamente francesas. O primeiro, que apregoou com veemência o conceito de “arte pela arte”, foi aclimatado pelos literatos brasileiros; a sua proposta de correção formal foi, inclusive, exaltada por Machado de Assis. O segundo, ainda que se assemelhasse ao Parnaso, foi rejeitado, apesar de ter alcançado expressão nas letras francesas e inspirado o surgimento de diversas petites revues e, além disso, ter sido resultado de um momento de ruptura com a dita “arte burguesa”. Seu maior representante no Brasil, o poeta catarinense Cruz e Sousa, era alvo frequente de sátiras e sua obra pouco apreciada pela crítica da época. São diversas as justificativas para a recusa do Simbolismo no cenário literário brasileiro. Para Andrade Muricy, por exemplo, “certa desinformação e certo imobilismo aprovincianado facilitaram a extensão e penetração da acessibilidade da estética do Parnasianismo” (1987, p. 22). Os colaboradores da Gazeta de Notícias, importante jornal carioca dirigido por Ferreira de Araújo, questionaram a legitimidade dos ditames simbolistas e, em diversos momentos, execraram a poesia de Cruz e Sousa e de seus entusiastas. Na década de 1890, figurar nas páginas da Gazeta, que era uma folha de circulação significativa para os padrões do período, era sinônimo de prestígio, e o conteúdo de seus textos críticos exerceu, possivelmente, influência sobre poetas e romancistas daqueles anos.
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A Gazeta de Notícias e o Simbolismo Na Gazeta de Notícias, a publicação de poesia foi expressiva. Entre os anos de 1890 e 1898, constam de suas páginas mais de 1.000 poemas. Tais estrofes seguiam, em sua maioria, a temática e os preceitos formais do Parnasianismo, ainda que o periódico não apresentasse textos de manifesto ou abordasse com assiduidade tal classificação. A preferência pelo Parnaso refletia-se, ainda, em crítica aos agrupamentos simbolistas franceses. Embora em alguns momentos da década de 1890 colaboradores da Gazeta de Notícias tenham questionado a legitimidade das ditas “escolas”, como o fez Fantasio (pseudônimo de Olavo Bilac) em 1895, era evidente certa resistência em relação ao Simbolismo, e mesmo a aquilo que circulava na França nas rodas dos novos. Em 1891, Pedro Malazarte fez de Paul Verlaine e de Stéphane Mallarmé tema de seus “Fanfreluches”. Nas estrofes de “Condecorado!”, não chegou a achincalhar os poetas franceses; contudo, a epígrafe que precede esses versos alude a essa possibilidade: Condecorado! Mallarmé e Verlaine vão prefaciar os versos de Xavier de Carvalho. Que ponta! Apostamos como o Pedro Malazarte vai meter a catana nisto. (Do Novidades) Catana, por que, colega? Não me faça assim tão mal! Justiça aqui não se nega, Não se nega nem a pau! O meu mote é este, e creio Que o cumpro de vez em quando: - Como o bebê do Passeio, Sou útil inda brincando. É bem feliz quem alcança Como o Carvalho, quem lê, Prefácio, em língua de França, De Verlaine e Mallarmé! Colega, não sou perverso E veja que o que nos conta Em prosa, eu cá digo em verso: - O Carvalho está na ponta!
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Olha, colega estimado O que afirmo com razão - Ser assim prefaciado Vale mais que ser barão! (MALAZARTE, 1891, p. 1, 6 col.).
Em 1894, a Gazeta de Notícias mostrou-se contrária a um posicionamento comum ao Mercure de France, constantemente em oposição a Emile Zola. Na ocasião, referiu-se ao texto “Le crétin des Pyrénées”, de Léon Bloy, publicado em setembro do mesmo ano no periódico francês: O sestro de injuriar e de descompor os que nos agradam ou são nossos adversários por qualquer título, é desgraçadamente muito comum aos povos de raça latina. Aí vai um espécime das amabilidades que ao ilustre E. Zola dirigiu há pouco o Sr. Léon Bloy, num estudo (?) crítico que o Mercure de France publicou: “Négociant littéraire, – Balcon de table d’hôte, – vieux serpent, – fangeux domestique, – Messie de la tinette, – Christophe Colomb d’un lieu commun, – bison, – cafard, – belle brute, – crétin des Pyrénées” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1894, p. 1, 5 col.).
Em 1898, quando anunciou a morte de Stéphane Mallarmé, considerado mentor de novas propostas do fazer literário na França, a Gazeta de Notícias publicou a tradução de um texto do periódico Le Temps. Tal folha não deixou de ressaltar o valor da escrita de Mallarmé para a poesia francesa. Entretanto, não se absteve de discutir os hábitos dos novos e de divulgar a seguinte afirmação: O simbolismo e o mallarmismo foram sempre inofensivos, e pode-se prever a hora em que deixarão de existir. Já na eleição que deu a Stéphane Mallarmé as honras do principado, um forte rival lhe apareceu pela frente: Jean Moréas, a reviver literaturas clássicas. É, pois, bem possível, que o próximo plebiscito traga mudança de dinastia. (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1898, p. 1, 7 col.).
Na contramão das propostas do Mercure de France, a Gazeta de Notícias mostrou-se, ao longo da década de 1890, frequentemente elogiosa a Émile Zola. O naturalista aparecia em anúncios das livrarias Garnier e Laemmert, o que atesta a circulação de suas obras no Brasil; era sempre mencionado por cronistas – mesmo Ferreira de Araújo, sob o pseudônimo Lulu Sênior, recorreu a uma imagem de um poema de Zola em “Às Quintas”. Romances “ao estilo de Zola”, como O aborto, de Figueiredo Pimentel, eram anunciados. As viagens e relações políticas do escritor
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francês, bem como seu papel no campo editorial e em revistas francesas, eram constantemente noticiadas. Além disso, sua candidatura à Academia era acompanhada pelo periódico carioca (para qual nunca foi eleito), que saiu um sua defesa quando da sua derrota para Pierre Loti, em 1891. Na Gazeta de Notícias, entre os diversos poemas que satirizavam os simbolistas, havia crônicas que traduziam a aproximação de questões da sociedade e política da época ao Simbolismo e seus representantes. Um exemplo é a crônica de Olavo Bilac que data de 27 de fevereiro de 1898. Nesse texto, Bilac discutiu a qualidade da carne consumida no Rio de Janeiro e relatou o caso de dois loucos, José e Abel, que haviam sido capturados pela polícia, em um momento de suspensão de estado de sítio. José e Abel foram acondicionados em um carro e encaminhados ao hospício. No caminho, José tentou empurrar Abel para fora do veículo: Ora, aqui tendes uma bela ocasião de admirar e praticar as vantagens do simbolismo. O simbolismo é uma grande invenção! Nem só Mallarmé, o poeta decadente, ama os símbolos. Já Santo Agostinho, esse candelabro da verdade católica, dizia: uma ideia enunciada por alegoria, fica sempre mais agradável e mais clara do que quando é enunciada em termos técnicos. Aquele Abel é um símbolo. É o símbolo do povo: quando um povo fica louco, furioso, que faz o governo? mete-o na camisola de força do estado de sítio. E Abel não tem o direito de se queixar, porque quem não quer merecer a camisola de força não fica louco. Sucede às vezes que, metido nessa prisão, o povo encontra sujeitos que, como José, abusou da impossibilidade de movimentos de Abel, abusam da sua falta de liberdade. De quem é a culpa? Queixe-se o Abel de si mesmo: se não tivesse ficado maluco, não teria merecido a camisola de força, não teria sido tão fartamente esmurrado por José. E basta! (BILAC, 1898, p. 1, 3-4 col.).
Já as menções a Cruz e Sousa, considerado representante do Simbolismo, eram majoritariamente negativas. Em 1893, logo após a publicação de seus livros Missal e Broquéis, o jornal divulgou “Na Costa d’África”, cujos versos satirizam a produção literária do poeta catarinense e chacoteiam sua ascendência africana. Mesmo Machado de Assis, em “A Semana” de 18 de fevereiro de 1894, aludiu negativamente a Cruz e Sousa. Aparentemente, Machado execrou os Broquéis e, ainda, remeteu a sua escrita e ao pessimismo diante da própria existência: Há uma leva de broquéis, vulgo dinamite, que parece querer marcar este final de século. De toda a parte vieram esta semana notícias de
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explosões, e aqui mesmo houve tentativa de uma. Digam-me que paz de espírito pode ter um pobre historiador de coisas leves, para quem a pólvora devia ser, como os maus versos, o termo das cogitações destrutivas. Inventou-se, porém, maior resistência, e daí o maior ataque, naturalmente, a pólvora sem fumaça, o torpedo, a dinamite; mas, que diabo! basta-lhes a guerra, como necessidade que é da vida universal. A paz universal, esse belo sonho de almas pias e vadias, seria a dissolução final das coisas. Façamos guerra, mas fiquemos nela. Talvez haja nisso um pouco de rabugem – e outro pouco de injustiça. A anarquia pode acabar sendo uma necessidade política e social, e o melhor dos governos humanos, aquele que dispensa os outros. Voltaremos ao paraíso terrestre, sem a serpente, e com todas as frutas. Adão e Eva dormirão as noites, passearão as tardes; Caim e Abel escreverão um jornal sem ortografia nem sintaxe, porque a anarquia social e política haverá sido precedida pela da língua. Antes do último ministro terá expirado o derradeiro gramático. Os adjetivos ganharão o resto de liberdade que lhes falta. Muitos que viviam atrelados a substantivos certos, não terão agora nenhum, e poderão descer a preposições, a artigos (MACHADO DE ASSIS, 1894, p.1, 1 col.).
Não se pode deixar de examinar o papel exercido por Machado de Assis na difusão de alguns dos princípios parnasianos. Machado foi defensor da economia e da sobriedade das imagens, da precisão vocabular e a da correção métrica e gramatical. Foi, ele mesmo, influenciado pelo Tratado de Metrificação Portuguesa (1891), de Antonio Feliciano de Castilho. Em 1879, publicou o texto “A nova geração”, no qual discorreu sobre os poetas de seu tempo e sobre a derrocada do pensamento subjetivo e romântico, além de exaltar o verso alexandrino. Nesse mesmo texto, o criador das personagens Quincas Borba e Brás Cubas evidenciou a qualidade dos versos de Alberto de Oliveira. O escritor foi mentor de Oliveira no que concerne à obra Meridionais, de 1883, tendo-o como uma espécie de “protegido”. Segundo o autor de Dom Casmurro, o livro – do qual foi prefaciador – reunia as mais notáveis composições de Oliveira e constituía reflexo do que seria o Parnasianismo brasileiro. Supomos, portanto, que diversas circunstâncias culminaram na recepção pouco amistosa do Simbolismo no Brasil, em especial na Gazeta de Notícias. Nas próximas linhas, discorreremos sobre dois textos que mostram posicionamento distinto face à produção dos novos.
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Magalhães de Azeredo e Virgílio Várzea: diferentes olhares para a mesma proposta A Gazeta de Notícias foi porta-voz do discurso de sua época. Sua redação constituía um pequeno reduto parnasiano e realista, pois seus colaboradores, de modo geral, exaltavam tais tendências. Desse modo, pode-se justificar o motivo de as amostras de apreço à vertente simbolista terem ocorrido com modesta frequência. Em 1893, a Gazeta divulgou dois textos críticos: “Os decadentes em Portugal”, de Virgílio Várzea, e “Missal”, de Magalhães de Azeredo. Ambos foram publicados no mesmo ano de Broquéis e Missal, de Cruz e Sousa, por isso sua representatividade no momento em que se discutiu o Simbolismo no Brasil Em “Os decadentes em Portugal”, o assunto é a produção de dois decadentistas portugueses: João Barreira e Alberto de Oliveira (homônimo do parnasiano brasileiro). Para Virgílio Várzea, as obras Gouaches, de Barreira, e Poesias, de Alberto de Oliveira, eram representações do “nobilíssimo movimento” que vigorava em Portugal. O crítico comparou a produção simbolista às composições de Wagner, que, segundo ele, para serem compreendidas, precisavam ser constantemente revisitadas. Várzea reconheceu que, naquela época, o Simbolismo não era uma unanimidade na literatura. No entanto, assegurou que a manifestação em questão era destinada a um pensamento de elite, a uma sociedade que fosse “avançada e culta”: Vencerá o decadismo na totalidade das suas ideias, ou entrará na literatura universal atenuadamente? Acredito que Wagner terá, durante alguns anos, desde já e com futuro próximo, a batuta genial, como ao simbolismo caberá aureolar as frentes sonhadoras que nasceram para a arte, de era avante. Não decorrerão muitos anos, que as atuais leituras realistas, presentemente de difícil técnica, virão a ser contadas como cousas chilras, de simplicidade elementar, em virtude de necessidades mentais superiores, para as quais far-se-ão indispensáveis produções equivalentes, como alimentos restaurativos (VÁRZEA, 1893, p.1-2, 71 col.).
Em “O Missal”, de Magalhães de Azeredo (colaborador fixo da Gazeta e protegido de Machado de Assis), encontram-se referenciais importantes do fazer crítico do século XIX, em especial no que concerne à recepção das novas perspectivas que permeavam a produção literária do período. Vê-se que o poeta ateve-se, em seu texto, às
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questões vinculadas àquilo que se julgava “real” em literatura, – o que pode ser considerado resultado do que defendia o Positivismo de sua época, – aos preceitos da estética simbolista e ao embate entre novos e a produção literária precedente. Nota-se, primeiramente, a valorização atribuída por Magalhães de Azeredo à classificação de textos literários enquanto gênero, o que sugere o caráter incompreensivo do autor diante daquilo que era considerado novo, o que fez com que não apenas o Simbolismo, mas alguns gêneros literários fossem considerados menores e mesmo desprezíveis, tanto por sua temática como pelo registro coloquial que apresentavam. Segundo o autor, o Missal foi, inicialmente, recebido com louvores por seus contemporâneos, que não passavam, contudo, de “encômios de noticiário”. Em seu texto, Azeredo criou uma situação na qual uma personagem alegórica, o Bom Senso, ri do livro de Cruz e Sousa, procedimento adotado para indicar que a obra seria isenta de qualidade. Além disso, analisou pejorativamente o processo de criação do simbolista, refletindo o pensamento da época, que indicava o prestígio do poeta-ourives e prezava a contenção e o rigor formal: O único meio, pois, de qualificar o Missal, é filiá-lo nessa espécie de escritos denominados literariamente – fantasias. Mas Fantasias? É um escolho perigoso esse, em que os naufrágios são frequentes e inevitáveis, quando a razão não está ao leme do batel. Com o manto da fantasia se encobrem desvarios inúmeros, tudo se admite, tudo se absolve com a usual desculpa: - Oh! aquela imaginação ardente tem voos de condor, a quem lhe pode aparar as asas? Mas, senhores meus, dizei-me como se chama o estado mórbido, em que a imaginação ofusca a aniquila o sentimento? Loucura, senhores meus, loucura! E, certo, não é ela uma disposição favorável para o labor artístico (AZEREDO, 1893, p. 1, 7 col.).
Magalhães de Azeredo expôs-se, ainda, contrário à estética simbolista, bem como afirmou ter sido Cruz e Sousa “pobre de concepção e de pensamento”. Aos seus olhos, o Brasil de sua época passava por uma situação difícil, e a obra de Cruz e Sousa refletia a falta de perspectiva dos homens e mulheres de então: Só sei definir o que penso de um estilo tal, com esta expressão que é estrangeira, mas frisante: estilo rastaquère... Ignoro os antecedentes literários do Sr. Cruz e Souza, e não posso julgar por eles; apenas acrescentarei que, se toda obra de arte deve ser tomada como efeito e produto de um momento social, o Missal é verdadeiramente o santo e a senha da situação em que nos achamos no Brasil, sem norte, sem
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ideias, sem convicções, sem crenças políticas – em uma completa dissolução mental e moral que, por honra nossa, esperamos seja transitória (AZEREDO, 1893, p. 2, 1 col.).
Por fim, para Magalhães de Azeredo, o Missal era obra “apta a deslumbrar os parvos”. Como arremate de seu escrito, dirigiu-se de forma direta a Cruz e Sousa: Sabem o que eu faria, se fosse o Sr. Cruz e Souza? Durante dois anos, pelo menos, não publicava nada; guardava o que escrevesse para julgar o meu trabalho como se julga o vinho: depois de velho. O Sr. Cruz e Souza rirá da minha pretensão e chamar-me-á, quem sabe? imbecil – atirando-me ao rosto aquela objurgatória: “E faz (faze, devia ser), igualmente, Sultão dos espaços, que os argumentos duros, broncos, tortos, não sejam arremessados à larga contra o meu cérebro com incisivas pedradas fortes.” (Pág. 6. Oração ao Sol). Pois olhe; o conselho era bom. Infelizmente vem tarde, Sr. Cruz e Souza; já não está em sua mão segui-lo (AZEREDO, 1893, p. 2, 1 col.).
Cruz e Sousa só voltou a ser lembrado de maneira positiva pela Gazeta na ocasião de sua morte. Quando de seu falecimento, o periódico divulgou uma nota. Supomos, portanto, que o posicionamento contrário da Gazeta de Notícias, no que se refere à produção de Cruz e Sousa, pode ter sido relevante para a recusa de suas obras e do movimento simbolista na então Capital Federal. Referências AZEREDO, Magalhães de. O Missal. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 18 set. 1893. p.1-2, 1 col. BILAC, Olavo. Crônica. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 27 fev. 1898, p. 1, 3-4 col. GAZETA de Notícias. 28 de setembro de 1894, p. 1, 5 col. ______. O príncipe dos poetas franceses. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 9 out. 1898, p. 1, 7-8 col. MALAZARTE, Pedro. Condecorado! Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 20 mar. 1891, p. 1, 6 col. MURICY, Andrade. Panorama do movimento simbolista brasileiro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987. 1. v. VARZEA, Virgilio. Os decadentes em Portugal. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 10 mar. 1893. p. 1-2, 7col.
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PATINHO SURDO: TRADUZINDO A IDENTIDADE DE UM GRUPO E AS POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES DESSA OBRA NA FORMAÇÃO DO LEITOR SURDO
Carla Cristina Gaia dos Santos (UEM)
Introdução As estórias dos Grimm, de Andersen, Perrault e de muitos outros escritores, vem sendo traduzidas, ganhando novas interpretações e sendo atualizadas ao longos dos séculos, desconstruindo e ao mesmo tempo revigorando o caráter universalista e atemporal que normalmente se atribui aos clássicos. Cada nova tradução traz uma nova interpretação, uma maneira diferente de olhar a mesma história e de revivê-la em meio as novas gerações, em novos contextos históricos e sociais. Desde 1979 a Unesco faz um levantamento dos livros traduzidos e publicados ao redor do mundo. Trata-se de uma cooperação entra as bibliotecas nacionais de seus países membros, que enviam à Unesco dados referentes à traduções de diversas áreas do conhecimento humano, como literatura, ciências humanas e sociais, artes, história, ciências exatas, naturais e muitas outras. Os resultados são cumulativos e compilados online na página do Index Translationum, podendo ser facilmente acessados. O banco de dados focaliza traduções interlinguais veiculadas pelo meio impresso e conta atualmente com mais de 2.000.000 de entradas. O Index evidencia estatisticamente os autores mais traduzidos, a evolução das traduções em cada país membro, os países onde as traduções são mais recorrentes, e diversos outros dados significativos para pesquisadores, profissionais da área ou demais interessados na disseminação global das traduções. 1
1
http://www.unesco.org/xtrans/
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A lista dos cinquenta autores mais traduzidos é encabeçada por Agatha Christie, seguida por Júlio Verne em segunda posição e por William Shakespeare em terceira. A lista segue apresentando inúmeros nomes já conhecidos e canonizados mundialmente, desde os mais tradicionais até os mais contemporâneos. A oitava, décima e décima primeira posições, entretanto, são destinadas a nomes que hoje alimentam as literaturas infantis clássicas, aparecendo respectivamente, Hans Christian Andersen e os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm. O fato destes escritores ainda hoje ocuparem posições de destaque entre os mais traduzidos do mundo, insinua a grande importância dos contos infantis. Como explora Bettelheim (1980) em seu estudo A Psicanálise dos Contos de Fadas, os heróis dos contos clássicos efetuam feitos miraculosos e, com o desenrolar das histórias, mudam de aparência, transformam suas vidas, suas maneiras de se relacionarem com o mundo e com os problemas que os rodeiam, adquirindo uma identidade própria, que não mais o incomoda, mas o representa. O conto de fadas até mesmo projeta esta aceitação da realidade para a criança, porque enquanto ocorrem transfigurações extraordinárias no corpo do herói à medida que a estória se desenrola, ele torna-se novamente um mero mortal quando a luta termina. No final do conto de fadas não mais ouvimos falar da força ou beleza extraterrestres do herói. Isto é totalmente diferente do herói mítico, que retém suas características sobrehumanas sempre. Uma vez que o herói do conto de fadas adquiriu sua verdadeira identidade no final da estória (e com uma segurança interna sobre si mesmo, seu corpo, sua vida, sua posição na sociedade), ele fica feliz do jeito que é, e não é mais inusitado sob qualquer aspecto. (BETTELHEIM, 1980, p. 73)
Segundo Bettelheim (1980), ao se identificar com o herói do conto infantil, seja este feminino ou masculino, o leitor projeta para sua realidade esta mesma aceitação que o herói aprende a ter de si, superando complexos, problemas cotidianos ou inquietações internas. Tais estórias influenciam o inconsciente do leitor, estabelecendo até mesmo regras comportamentais e convenções normativas, desenvolvendo, principalmente no leitor infantil, competências de interação social, estimulando raciocínio e a percepção de mundo de maneira crítica.
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O fato das pessoas se identificarem com os heróis e demais personagens desses contos é tão vibrante, que todos os anos são lançados releituras desses clássicos – no meio impresso, cinematográfico e diversos outros -, alcançando sempre sucesso de público, não apenas infantil, como também juvenil e adulto. Para não mencionar demais veículos semióticos contemporâneos onde a atmosfera dos clássicos vem sendo reproduzidas com sucesso, como o game Child of Light, por exemplo, que traz aos jogadores toda a magia de Lamúria durante o sono da pequena Aurora, através do design ricamente construído para se aproximar dos livros infantis, apresentando diálogos sempre rimados e cheios de ritmo. Assim como todas essas traduções, Patinho Surdo (KARNOPP; ROSA, 2005) também reconta o clássico, mas a partir de seu ponto de vista, ou seja, a partir da experiência visual do sujeito surdo e traz elementos dessa identidade que a traduz. As Comunidade Surda têm ganhado força nas últimas décadas e vêm abrindo espaço no mundo para contar suas histórias ou recontar as antigas à sua moda, partindo de uma percepção visual do mundo.
Traduzindo identidades Em Patinho Surdo, percebemos a concepção pós-moderna de surdez enquanto marca idiossincrática própria de uma comunidade, marcada pela experiência visual, pelo uso da língua de sinais e da construção de uma cultura que prescinde ao som. Através da língua de sinais, a surdez, antes vista como deficiência, passa a ser elemento constituinte da identidade de um povo e o sujeito surdo é capaz de se comunicar, de imaginar, criar sua própria literatura, partindo de sua própria vivência de mundo, valorizando e reafirmando a sua cultura, não apenas como um copista da pessoa ouvinte, como salienta Skliar (1998): Não me parece possível compreender ou aceitar o conceito de cultura surda se não através de uma leitura multicultural, ou seja, a partir de um olhar de cada cultura em sua própria lógica, em sua própria historicidade, em seus próprios processos e produções. Nesse contexto, a cultura surda não é uma imagem
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velada de uma hipotética cultura ouvinte. Não é seu revés. Não é uma cultura patológica. (SKLIAR, 1998, p. 28)
Contudo, em sua grande maioria, indivíduos surdos coabitam um ambiente bilíngue onde há a prevalência hierárquica de uma língua e uma cultura oralista. Tratam-se, portanto, de identidades híbridas, fronteiriças e desterritorializadas, que tem de aprender a criar estratégias próprias de diferenciação para se organizarem e articularem suas histórias. Em cada país, em cada estado, em cada região, uma comunidade surda cria sua própria comunidade interpretativa, com processos próprios de produção cultural de bens simbólicos. Ainda que a experiência visual configure um elemento identitário fortíssimo, a comunidade surda de Maringá, no Brasil, e a comunidade surda de Nagasaki, no Japão, não partilham das mesmas experiências de vida, nem ao menos da mesma língua de sinais. Esse hibridísmo natural dos indivíduos revela o paradoxo do próprio termo “identidade”.
Identidades em jogo Hall (2000), baseando-se em Derrida, chama atenção para o fato de que o termo identidade tal qual foi originariamente cunhado, para significar uma unidade una, inteiriça e completa, já não server mais ao pensamento crítico pós-moderno. Contudo, não foi ainda substituido dialeticamete por um outro conceito capaz de acoplar em sua teia de significações o hibridismo tão complexo de pessoas reais. Segundo ele, nada se pode fazer, portanto, a não ser continuar a utilizá-lo, desde que sob rasura, ou seja, a partir de uma abordagem desconstruída e destotalizada da conceituação de identidade: A identidade é um desses conceitos que operam “sob rasura”, no intervalo entre a inversão e a emergência: uma ideia que não pode ser pensada da forma antiga, mas sem a qual certas questões-chave não podem ser sequer pensadas. (HALL, 2000, p. 104)
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Hall parte de uma visão ambivalente do conceito identidade, pensando-a enquanto um termo de natureza inacabada, nunca unificada, mas sim fragmentada. Segundo ele, a identidade é multiplamente construída a partir dos processos de historização de cada sujeito, em diferentes momentos contextuais de sua existência. O sujeito, e portanto sua identidade, vive mudanças constantes, passando por transformações mais ou menos impactantes de acordo com seus diferentes momentos. Por isso, ao tratar de comunidades, ou grupos identitários, utiliza-se do termo “identificação”, para referir-se ao fator que gera o reconhecimento de alguma origem em comum, característica essa, que será partilhada entre os diversos indivíduos que compõem uma mesma comunidade. Segundo o sociólogo, essa identificação com um ou outro grupo identitário, pode ser sustentada ou abandonada, sendo condicionada pelos diferentes contextos e momentos aos quais o indivíduo é submetido ao longo de suas vivências (HALL, 2000, p. 106). Dessa forma, a identidade pode ser associada à peça de um quebra-cabeça, a uma das muitas peças que nos compõe. Porém, sua aplicabilidade é inversa ao jogo como estamos habituados. Como destaca Bauman (2005, p. 54), a identidade, ou as identidades, é uma das muitas pecinhas que compõe o indivíduo, mas atuam diferentemente do jogo de quebra-cabeças, no sentido de que não se sabe de antemão a imagem final que se formará. Nem mesmo sabemos se o indivíduo encontrará todas as suas peças ao longo de seu trajeto, pode ser que faltem algumas ou sobrem outras. A identidade, por mais que represente uma peça do quebra-cabeças que nos forma enquanto indivíduos dotados de subjetividade, não é sempre completa, nem mesmo nos dá uma imagem anterior acabada, pela qual possamos nos guiar e saber se o montamos corretamente ou não. O interessante no jogo da identidade, segundo Bauman (2005), não é a coesão e coerência da imagem final, cujo encaixe das peças ocorra de maneira perfeita, mas justamente as peças que vão surgindo ao logo de nossas jornadas, as quais podem ser agrupadas e reagrupadas, construindo e desconstruindo imagens sempre que necessário. Em meio a era líquido-moderna, o sociólogo enfatiza a ideia de identidades híbridas e fragmentadas: Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são
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garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age - e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade” (BAUMAN, 2005, p. 17)
Dessa forma, podemos inferir que grupos e comunidades identitárias nunca são unas, inteiriças, bem como seus indivíduos não são idênticos. A compreensão de uma identidade se dá a partir da percepção de uma teia onde diversas “diferenças” se interrelacionam, processos esses que são condicionados por relações de poder e, consequentemente, por processos de exclusão. Os Surdos são excluídos há séculos sob o estigma da deficiência e, apenas recentemente, a comunidade surda brasileira teve sua língua natural reconhecida. Somente a partir de 2002, com a Lei nº 10.436, que a Libras – Língua Brasileira de Sinais foi oficializada no Brasil como a língua materna dos surdos brasileiros, constituindo o primeiro passo para a libertação desses indivíduos rumo ao direito de serem surdos e desenvolverem suas subjetividades a partir de uma língua e uma vivência surda. As línguas de sinais e a idiossincrasia de percepção visual do mundo não são novas, mas sim a sua oficialização legal. Ainda mais recente é a divulgação dos bens simbólicos destas comunidades, como pinturas, esculturas, poemas ou prosa, visto que muito diferente do que contar uma história sobre o surdo, é contar uma história que de fato represente e apresente essa individualidade. É por meio da produção e da difusão destes bens simbólicos que um grupo minoritário atinge o reconhecimento de seus pares, bem como das demais culturas que o permeiam. Muitos títulos são encontrados hoje sobre o título de Literatura Surda, como o Kit Libras é Legal, desenvolvido pelo Escritório Regional da FENEIS (Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos) em parceria com o programa PETROBAS SOCIAL, cujos títulos englobam Viva as Diferenças, História da Árvore, Cachos Dourados, Ivo e Adão e Eva. Para não mencionar obras como Tibi e Joca, de Bisol (2001), O Som do Silêncio, de Cotes (2004), A cigarra e as formigas, de Oliveira e Boldo (2003). Contudo, por constituírem uma comunidade minoritária, coabitante em
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um espaço predominantemente não visual e ouvinte, sabe-se que as traduções exercem papel importantíssimo dentro deste universo. Podemos encontrar títulos como os presentes nas edições da editora Arara Azul, cuja equipe de tradutores/intérpretes traduzem para o público surdo histórias como o Saci-Pererê, O gato de Botas, Alice no País das Maravilhas. Mas algumas traduções chamam mais a atenção, aquelas que surgem de dentro das próprias Comunidades Surdas e traduzem não apenas o idioma, mas principalmente as peculiaridades culturais capazes de aproximar o leitor dos personagens, criando o efeito de identificação. É o caso, por exemplo, de Patinho Surdo (KARNOPP; ROSA, 2005), a releitura do clássico sujeito excluído e inferiorizado.
Adentrando a fantasia Os contos populares, que se encaixam na modalidade do maravilhoso são, em sua maioria, muito frequentes no contexto da literatura destinada ao público infantil. Por conta da linguagem metafórica e dos muitos símbolos dos quais se utilizam, acredita-se que estas estórias ajam inconscientemente, ajudando na maturação da subjetividade humana, proporcionando bons sentimentos reais a partir de fantasias irreais (BETTELHEIM, 1980, p. 157). Dessa forma, O Patinho Feio, de Hans Christian Andersen (1805-1875), contribui para a percepção e a valorização do indivíduo a partir de suas qualidades intrínsecas e não por atributos externos ou privilégios. Andersen é considerado por Coelho, em sua obra A Literatura Infantil (1982), como precursor no âmbito de estórias para crianças, as quais, por vezes, continham características pedagogizantes, sugerindo até mesmo padrões de comportamento. Andersen nasceu na Dinamarca em meio ao revés das conquistas napoleônicas e, segundo a pesquisadora, desde muito jovem respirou “a atmosfera de exaltação nacionalista” (COELHO, 1982, p. 303), desencadeada ainda na Alemanha, as quais buscavam afirmação étnica e racial. Andersen colheu as sementes nacionalistas do período romântico popular semeada por seus antecessores, trazendo também para sua obra um misto do mundo maravilhoso, da realidade e da violência cotidiana.
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Da mesma forma, a Comunidade Surda brasileira passa por um período de autoafirmação, mas no sentido linguístico e identitário. Após séculos de silenciamento e de proibição da utilização língua de sinais, as lutas dessa comunidade começam a surtir efeito, a língua de sinais é oficializada, políticas públicas passam a ser repensadas e esses indivíduos conquistam o direito de se desenvolverem enquanto Surdos. Patinho Surdo representa a afirmação dessa comunidade, que expõe com orgulho sua marca idiossincrática, como uma resposta ao centro ouvintista até então dominante. O conto de Andersen narra a estória de um cisne que, por adversidades da trama, acaba nascendo em um ninho de patos. Por ser diferente dos demais, era tratado como um patinho muito feio e desajeitado. Após muitas ofensas e humilhações, advindas até mesmo de seus familiares próximos, o patinho feio se afasta do grupo. Passa por diversas aventuras e o tempo vai-se indo, até que um dia, o patinho já crescido, se depara com um bando de lindos cisnes brancos. Só então percebe sua semelhança com aqueles magníficos seres e o patinho, antes feio, se vê agora um formoso cisne. A partir da imagem de dois animais cotidianos, a estória de Andersen contrapõe ideias e valores. O pato é um animal biologicamente menor que o cisne. Contudo, o pequenino cisne era humilhado e minorizado por eles no início. Porém, ao final, o pequeno se torna o grande. O cisne é simbolizada por Andersen como uma ave nobre, majestosa e o amadurecimento
da
personagem
proporciona
que
ela
cresça
psicológica
e
subjetivamente. Já na releitura ocorre o inverso. A estória de Karnopp e Rosa (2005) conta a história de um patinho surdo que, por conta das adversidades da trama, nasce em um ninho de cisnes ouvintes. O patinho surdo se sentia muito diferente do restante da família, não conseguia se comunicar com eles e nem cantar como seus irmãos, por isso acabava sozinho, excluído. Não se sentia parte daquela família. Certo dia, se afastou do grupo
e
acabou
encontrando
um
bando
de
patos
muito
parecidos
que,
surpreendentemente, também sinalizavam como ele. O patinho ficou encantado por encontrar outros animaizinhos com os quais conseguia se comunicar, se sentia bem com eles, se sentia em casa. A mamãe pata, que também era surda, reconheceu seu filhote
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perdido e tratou logo de esclarecer toda a história com a mamãe cisne, contratando um sapo intérprete. A fantasia metaforiza a situação comumente enfrentada por filhos surdos de pais ouvintes. A família ouvinte, por mais que ame seu filho, raras vezes consegue proporcionar a criança um ambiente linguístico favorável ao seu desenvolvimento subjetivo e intelectual. Somente o relacionamento com outros surdos sinalizadores e a integração da criança às comunidades surdas é capaz de lhe proporcionar esse desenvolvimento natural e saudável. Apesar do patinho sentir-se deslocado em meio aos cisnes ouvintes, sua surdez não é tratada como a falta de algo, mas como uma diferença não compreendida pelos cisnes. Contudo, apesar da inversão dos papéis dos patos e dos cisnes na releitura, a ideia de grandeza do cisne é mantida, como pode ser observada na ilustração de Maristela Alano:
(Imagem 1: Patinho Surdo, 2005)
Os cisnes são construídos maiores em todas as ilustrações do livro e, sempre que deparados aos patos, cria-se esse contraste, como um reflexo da imposição ouvintista na
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sociedade. Contudo, esse contraste mantido pelas ilustrações são subvertidos pela trajetória da personagem principal. Vejamos que, no clássico de Andersen, a personagem inicia-se pato e, após um tempo de crescimento e de desenvolvimento psicológico, percebe-se cisne. Até mesmo o nome, o jeito pelo qual a personagem era denominada ao decorrer da trama muda. A mudança da condição do patinho em cisne na história de Andersen representa a maturação da personagem, no sentido de superação. Já na releitura de Karnopp e Rosa, a ideia de superação se dá justamente pela aceitação do pato em ser pato e conviver com isso de maneira natural. A personagem inicia-se minorizada justamente devido sua condição de pato surdo, mas ao procurar novos caminhos, a personagem também se desenvolve psicologicamente, também cresce. Através do contato com seus pares, a personagem percebe que não há nada de errado em ser um patinho surdo. Não há nada de errado em se comunicar diferente dos irmãos cisnes. Justamente porque continua sendo pato, se aceitando enquanto tal e buscando meios de se relacionar com outros patos surdos, é que ela atinge a maturação e ganha densidade psicológica. Esta passagem é um retrato da luta por autoafirmação da identidade surda, aquela que não quer se adequar ao modelo padrão dos cisnes, mas sim ter o direito desenvolver sua subjetividade e sua identidade própria. Outra característica marcada da identidade surda no livro por meio das ilustrações, é a antropomorfização dos patinhos por meio de sua representação com mãos no lugar das asas, atribuindo às personagens os membros principais de comunicação dos indivíduos surdos. Além de tudo, atenção especial também deve ser dada à presença do sapo intérprete. Apesar de ser um animal consideravelmente menor que o pato, ele é retratado por Alano como seu igual, como pode ser percebido com a ajuda das linhas pontilhadas adicionadas à ilustração. Ambos o sapo intérprete e a pata surda são retratados com as mesmas proporções, lado a lado, representando a importância dessa parceria nas lutas pelas causas surdas. A releitura ambienta-se no Rio Grande do Sul, mais especificamente na Lagoa dos Patos, fazendo alusão à comunidade que concentra grande força surda naquele estado. É também sede da ULBRA – Universidade Luterana do Brasil, local onde o livro foi publicado e estado natal da própria Karnopp e de Alano, responsável pelas
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belíssimas ilustrações. O fato do patinho surdo desde sempre estar situado na “Lagoa dos Patos”, mesmo quando era inferiorizado pela família de cisnes, traz consigo uma ideia de pertença ao local em que se nasce. Apesar do sentimento de exclusão que marca a passagem do patinho até que decida procurar seu caminho, percebe-se que ele está onde deveria estar.
Amarrando algumas considerações... Partindo da concepção de identidade enquanto unidade de natureza híbrida e fragmentada, e da ideia de identificação proposta anteriormente por Hall (2000) como fator determinante na constituição de uma determinada comunidade, pode-se inferir que Patinho Surdo, de Karnopp e Rosa (2005), é produto representante das conquistas e desafios que englobam as lutas da comunidade surda brasileira. Patinho Surdo evidencia a busca dessa comunidade por afirmação, evidenciando a surdez e a percepção visual do mundo enquanto marca idiossincrática própria desse grupo. O fato de Patinho Surdo, de Karnopp e Rosa (2005), ser publicado via uma editora universitária diz muito sobre a proporção e o papel que esta obra assume em meio a esta comunidade. Antes de ser compreendido como um livro de literatura infantil, que visa despertar os pequenos leitores surdos ao mundo literário, deve ser compreendido como uma obra literária pedagogizante de afirmação política e identitária, o qual cumpre a função de disseminação de valores e ideologias pensadas a partir do contexto histórico e social dos Estudos Surdos.
Referências ANDERSEN, H. C. The ugly duck: and other tales (1882). Withefish: Kessinger, 2010. BAUMAN, Z. Identidade: Entrevista a Benedetto Vecchi. Trad.: MEDEIROS, C. A. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
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BETTELHEIM, B. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Trad. CAETANO, A. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. BISOL, C. Tibi e Joca: uma história de dois mundos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2001. BRASIL.
Lei
n.
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de
24
de
abril
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2002.
Disponível
em:
. Acesso em: 22 de maio de 2013. COELHO, N. N. A Literatura Infantil. São Paulo: Quíron/Global, 1982. COTES, C. O som do silêncio. Campina: EDUCAR, 2004. HALL, S. Quem precisa de identidade?. In: SILVA, T. T. (org.) Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. KARNOPP, L. B.; ROSA, F. S. Patinho Surdo. ALANO, M. (ilustração). Canoas: Ed. ULBRA, 2005. OLIVEIRA, C.; BOLDO, J. A Cigarra Surda e as Formigas. Erechim: Corag, 2003. Site : . Acesso em: 27 de Abril de 2013. Site: . Acesso em: 27 de Abril de 2013. Site: . Acesso em: 15 de Julho de 2014. SKLIAR, C. Surdez. Um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1998.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Anais do III CIELLI (2014) - ISSN 2177-6350
DO MODERNISMO À (PÓS)-MODERNIDADE: UM CAMINHO PARA A LITERATURA ITALIANA CONTEMPORÂNEA Carlos Felipe da Silva dos Santos (UNESP/Assis)
Breves considerações sobre o movimento modernista Fato é que conforme os séculos, as décadas, os anos se passam, são inevitáveis as mudanças que os acompanham. A sociedade se transforma continuamente mudando seus costumes, linguagens, estilos. O homem, esse se (re)configura diariamente, cada informação é o suficiente para que mude sua opinião e pensamento. O homem do início do século XX se diferencia daquele que vivia na década de 1950 e tampouco se iguala a nós. Estamos em constante transformação: muda-se o tempo, muda-se o espaço, muda-se o mundo. Por conseguinte, dentro dessa evolução que vivenciamos, as áreas do conhecimento como a história, sociologia, psicologia, literatura, filosofia entre outras, também se transformam. Uma maneira de se verificar tal fato são as escolas literárias. Percebemos então que cada obra escrita em determinada escola, carrega, literariamente e, muitas vezes, mimeticamente, as características de cada escola de acordo com o período por ela compreendido. Europa, fim do século XIX e início do século XX, vários fatores científicos, artísticos, político-sociais, tecnológicos voltam o olhar do ocidente para as artes, compreendendo essas não só a literatura, mas também a pintura, música e outras. Um olhar que, atentamente, foge do importante conteúdo que até o momento sua importância prevalecia sobre qualquer crítica e análise, e valoriza a forma como novo conceito de interpretação. O conteúdo não cede espaço à forma, pelo contrário, há uma simbiose que permite um novo caminho artístico e um novo projeto estético. À medida que tais inovações estéticas ganham espaço e se diferem de seus precedentes, um novo nome é dado para marcar esse estilo. Um nome que marca o que está acontecendo, o novo e o contemporâneo: o Modernismo. Entre várias faces que os termos ‘moderno’ e ‘modernismo’ podem ter, esclarecemos nosso contexto aqui em acordo com Michel Peters: Começaremos com o termo ‘modernismo’, o qual tem duas acepções. De acordo com a primeira, o termo refere-se aos movimentos artísticos dos meados do final do século XIX; a segunda acepção é histórica e filosófica, fazendo referência ao termo ‘moderno’ e significando
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Anais do III CIELLI (2014) - ISSN 2177-6350
‘modernidade’ − a época que se segue à época medieval. Existe, obviamente uma relação entre os dois sentidos, que se expressa pela ideia de que o ‘moderno’ envolve uma ruptura autoconsciente com o velho, o clássico e o tradicional, e uma ênfase concomitantemente no novo e no presente. (PETERS apud FERNANDES, 2005, p.16).
Seguindo a mesma linha de raciocínio, Raymond Williams também aponta o modernismo como uma ruptura, separando-o do sentido de modernidade, mas, devido ao corrente uso do termo para designar e generalizar tudo o que era novo, passou-se a empregá-lo como referência para esse recorte temporal: Rapidamente, contudo, ‘moderno’ muda a sua referência de ‘agora’ para ‘agora mesmo’ ou ainda ‘neste instante’, e já há algum tempo tem sido uma designação sempre caminhando para o passado, ao qual a ‘contemporaneidade’ pode ser contrastada por seu presenteísmo. ‘Modernismo’, como um título para todo um movimento e momento cultural, tem sido usado como um termo geral desde a década de 1950, fixando assim a versão dominante do ‘moderno’ ou mesmo do ‘moderno absoluto’, entre, digamos, 1890 e 1940. Temos ainda o costume de usar ‘moderno’ quando falamos desse período de cinquenta anos, distante meio século de nós. (WILLIAMS, 2011, p. 2)
O que se deu primeiramente na Europa ultrapassa as fronteiras e se expande às outras nacionalidades, obviamente, cada uma com suas especificidades, teorias e pensamentos. No Brasil, por exemplo, tal movimento tinha como intuito base afastar as artes brasileiras das europeias, ou seja, dar-lhes uma roupagem completamente nacional e livre da presença estrangeira, ou que administrassem a incorporação das influências externas a ponto de devorá-las. Era preciso que as artes nascessem verde e amarelo, conceitos que levaram artistas da época a realizarem a Semana de Arte Moderna em 1922, na cidade de São Paulo, onde demonstraram suas novas produções baseadas nesse novo conceito de arte. Não obstante, o “novo” proposto por esses artistas gerou desconforto na sociedade, sendo suas obras depreciadas e rejeitadas. Ainda em referência ao modernismo brasileiro, por mais que sua intenção fosse aplicar às artes uma identidade nacional inovando tanto em conteúdo quanto estética, não se deixou de lado tudo o que já se havia realizado – no âmbito cultural e artístico – para então dar início à essa nova empreitada que revolucionaria determinado momento histórico. Não houve completa ruptura com o passado. Aliás, se chegamos ao ponto de incorporar a brasilidade ao que se produziria a partir dali em diante, é porque houve um passado que permitiu que tal fato fosse realizado. Mesmo esse passado sendo positivo ou
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negativo, foi a partir dele que chegamos ao moderno. Há uma busca do passado agregada ao presente. Macunaíma, por exemplo, é um projeto modernista que revela por si a tentativa de mostrar o Brasil ao mundo, porém Mário de Andrade resgata o indianismo, muito presente no romantismo alencariano, acoplado aos novos moldes propostos pelo movimento. Os fatores – mencionados anteriormente – acarretados pela chegada do novo século não foram marcados por um único movimento, mas por vários, de acordo com a proposta de cada país. Podemos citar as mais conhecidas como futurismo, impressionismo, expressionismo, cubismo e dadaísmo. As vanguardas europeias, nome dado a esses movimentos, se caracterizavam como uma revolução no âmbito artístico e, assim como o modernismo brasileiro, pregavam o novo, o diferente e, mesmo tendo sua origem em um determinado país, ultrapassavam os limites geográficos e não se limitavam ao seu continente. Porém, Williams aponta uma sútil distinção entre o movimento modernista e a vanguarda, uma questão de grupos. Dessa forma O modernismo teria se iniciado no segundo tipo de grupo – os artistas e escritores experimentais alternativos e radicalmente inovadores –, enquanto a vanguarda teria se iniciado com o grupo do terceiro tipo, totalmente oposicional. (WILLIAMS, 2011, p.30)1
Atualmente, com o tempo, essa distinção entre os dois movimentos se perdeu, nos restando apenas os termos ‘modernismo’ e ‘vanguarda’ generalizando e caracterizando determinado período. O futurismo, tendo seus primórdios em 1909, se deu primeiramente na Itália e teve como percursor Filippo Tommaso Marinetti. A ideologia proposta por Marinetti era o total rompimento com o passado e a partir de então, viver o contemporâneo e o futuro. Futuro que segundo Ettore Finazzi-Agrò, “é limitado à década: é este o prazo da sua contemporaneidade, que será sucessivamente enterrada como o passado contra o qual eles, por sua vez, estão se revoltando naquele momento” (FINAZZI-AGRÒ, 2010, p. 263). Ademais, pode-se dizer que tal movimento carregava consigo também o Nesse contexto, entende-se como “grupos” uma massa popular que reclamava uma revolução social artística sob uma ótica do agora e do futuro. Eles seria então o início do movimento de vanguarda, visto que “se desenvolveram em formações totalmente oposicionais, determinadas não apenas a promover suas próprias obras, mas a atacar sus inimigos nas instituições culturais em além disso, a atacar toda a ordem social na qual esses inimigos haviam ganhado poder, agora exercendo e reproduzindo-o” (WILLIAMS, 2001, p.30).
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experimentalismo dannunziano em que o autor – Gabriele D’Annunzio – estabelece uma relação fundamental para com toda a arte do Novecento: aquela entre a criatividade e a civilização de massa, entre a expressão e a mass media. De acordo com Contini: O termo “futurismo” se opõe à “passadismo” e intenciona a separação de uma tradição racional, clássica, acadêmica e também sentimental [...] além de instauração de uma nova mitologia trazida pelo mundo contemporâneo do movimento e da velocidade. (CONTINI, 1992, p. 290)2
Nessa perspectiva, Marinetti e seus companheiros propunham não só uma evolução, mas também uma revolução social embasada em uma ideologia política de total ruptura com o passado e voltada para um futuro ainda incerto, mas que não houvesse biblioteca nem museus, onde a máquina e a velocidade predominaria sobre o homem, como se encontra em seu Manifesto Futurista, publicado no jornal francês Le Figaro em 1909.
Aspectos do Pós-modernismo sob um olhar diacrônico Algumas décadas após o boom do movimento modernista e de vanguarda, sobretudo como fim da Segunda Guerra Mundial, há uma transformação social que leva esse modernismo à um grau mais elevado. O que seria o pós-modernismo? Em um primeiro pensamento podemos encará-lo como algo mais evoluído ao movimento precedente, e não deixa de ser, mas as observações devem ser feitas para que não haja uma interpretação vazia e não teórica. Para Raymond Williams Após a canonização do modernismo, contudo, pela acomodação do pósguerra e o consequente e cúmplice endosso acadêmico, há então a pressuposição de que, desde que o modernismo é ‘aqui’, nessa fase ou período específico, não há nada além dele. Os artistas marginais e rejeitados se tornam clássicos da docência institucionalizada e das exibições itinerantes nas grandes galerias das cidades metropolitanas. O ‘modernismo’ está confinado a esse campo altamente seletivo e desconectado de todo o resto em um ato de pura ideologia, cuja primeira ironia inconsciente é o fato absurdo de parar a história. O modernismo Tradução nossa de “Il termine ‘futurismo’ si oppone a ‘passatismo’ e vuol significare distacco da una tradizione razzionale, classica, accademica e anche sentimentale [...] e instaurazione di una nuova mitologia ricavata dal mondo contemporaneo della meccanica e dela velocità”.
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sendo o término, tudo o que vem depois é removido de seu desenvolvimento. É o posterior; preso no pós. (WILLIAMS, 2001, p. 6)
A pós-modernidade, como assim podemos chamar determinado período, vem em contrapartida e, muitas vezes, em contramão aos ideais defendidos pelos movimentos predecessores. Enquanto a modernidade se voltava para o progresso, para a modernização, na pós, o homem e a sociedade se deparam frente a novas sensibilidades como o fim das grandes ideologias, da grandes narrativas (na literatura), uma política direcionada ao comunismo e à democracia. Segundo Habermas, o vício central do pós-modernismo é sua função política reacionária, como expressa na tentativa generalizada de se desacreditar o impulso modernista que ele associa ao Iluminismo burguês e a seu espírito a inda universalizante e utópico. (HABERMAS apud JAMESON, 2007, p.83).
A história e a literatura se reescrevem, fazendo com que a sequencialidade modernista rumo ao futuro e a negação do passado seja negada: há a hibridação dos tempos. O passado se torna constantemente revisitado com vistas à interpretá-lo a partir do presente. Já a literatura passa a contar o que a história “escondeu”, assim como a revisão e contestação do cânone literário. Tudo então se consolida como construção e interpretação, tudo pode ser (re)construído e (re)interpretado. A representação do mundo, uma vez em crise, faz com que a literatura volte frequentemente para si mesma, propagando uma metalinguagem. Em entrevista à um programa televisivo, Jameson afirma que o modernismo visava quebrar os universais genéricos e criar obras únicas, eventos únicos que não se repetem. Textos quase inclassificáveis sob a regra deste ou daquele gênero. O modernista teve a intenção de produzir ou criar uma obra. A obra seria única, além de ser a criação de um estilo. Quando as possibilidades de novos estilos se esgotam, o modernismo entra em crise final.3
E finalizando, em relação ao pós-modernismo, o autor diz que o movimento
JAMESON, Fredric. A estética da singularidade. Parte I. Programa Fronteiras do pensamento. Ufrgstv. Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=QpAFiUpo8zk> Acesso em 25/08/2014.
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desconsidera a maioria das premissas modernistas. Não é mais uma religião da arte, mas a prática da arte parece regredir a um tipo de artesanato pós-industrial. Não tem mais nada a ver com estilo e por uma razão: o estilo é a marca de uma única personalidade. A arte pós moderna não procura um objeto a ser produzido, mas uma estratégia de produção. O conteúdo temático é eliminado do pós-modernismo assim como o tempo é abolido pelo espaço tornando assim uma diferença fundamental: o fim dos temas, o fim dos conteúdos4
A atualidade do romance pirandelliano e sua contribuição para a literatura moderna No que se refere à literatura italiana, podemos afirmar que um dos nomes mais conhecidos na modernidade e nesse período assim determinado como modernismo, é Luigi Pirandello. O escritor nascido em 1867 em Agrigento, Sícilia, possui uma bibliografia extensa, uma vez que escreveu poesias, novelas, contos, peças de teatro, entre elas uma das mais conhecidas mundialmente, Seis personagens à procura de um autor. No célebre texto da peça encenada pela primeira vez em 1921, o real e a ficção se misturam no palco onde ocorre um ensaio teatral, que é interrompido pelos personagens de outra peça, pois eles querem ganhar voz e passam a contar a sua história. O fato é que a trama burguesa em si, contada pelos personagens, não importa, e sim o modo como Pirandello usa certos artifícios para narrá-la, sobretudo o fato de que, a certo ponto, é rompida a barreira que separa o palco da plateia, que é ‘convidada’ a participar, a interpretar – mesmo que a seu modo – o que se passa. Tal identificação entre a realidade e ficção, que foi um das características maiores da obra de Pirandello, passa a ser um dos temas mais explorados na modernidade e na pós-modernidade. Se nos lembrarmos do último romance do escritor, Uno, nessuno e centomila e do conflito do sujeito na experiência da modernidade, manifestado no embate entre os papéis sociais e as diversas personae, temos mais um poderoso exemplo da narrativa pirandelliana e do seu alcance ao questionar as oposições e distâncias entre o ser e o parecer, entre unidade e pluralidade do sujeito, entre sanidade e loucura. Na representação pirandelliana estão as bases da tensão dramática na contemporaneidade, bastante difusa em manifestações da literatura, do teatro e do cinema durante o século XX.
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Idem.
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Como um escritor que vivenciou e teve grande parte de sua obra produzida entre o século XIX e XX, o dramatúrgico italiano teve sua origem literária no Verismo, escola literária realista iniciada já no fim do século XIX. Giovanni Verga (1840-1922), para muitos o maior escritor verista da segunda metade do século XIX, transpunha para suas novelas o momento vivido pelos habitantes da Sicília naquele momento de transição. Os trabalhadores rurais, grande massa popular habitante dali, presenciavam a chegada das máquinas que os substituiriam, além de estarem diante do Novecento. Essa nova realidade por eles vivida nos é revelada por meio das linhas dos textos de Verga. Os personagens representavam desde os mais simples dos habitantes até os donos de terras, mas que sofriam por medo de perder os seus bens. Dessa forma, muito do panorama social do sul da Itália, pouco considerado no restante do país, passava a integrar o universo literário com a possibilidade de manifestar a consciência dos problemas do homem meridional. Nessa perspectiva, a literatura de Pirandello amadureceu com o passar dos anos, se afastando então dos traços veristas, assumindo características próprias com ideais que se perpetuariam na teoria literária chegando até nossos dias. Mesmo ambos sendo sicilianos, a visão de Pirandello era diferente da de Verga e podemos dizer que sua atitude literária foi completamente revolucionária. Para um estudo de I malavoglia, de Verga, Asor Rosa apresenta o “principio di lontananza” (ROSA, 1997, p.439)5. Enquanto no primeiro tudo era visto de longe, com certo afastamento psicológico e geográfico – mesmo devido à posição social de aristocrata de Verga – percebemos que em Pirandello há uma evolução desses princípios, tudo se dá a partir de um olhar mais próximo, tudo é visto e assistido de perto, nos permitindo pensar em um possível “principio di vicinanza”, razão pela qual a representação se dava com uma carga psicológica acentuada, ao lado de uma abordagem social mais introspectiva. Entretanto, em relação ao futurismo, mesmo sendo contemporâneo à vanguarda, Pirandello não se aderiu ao movimento. A contemporaneidade do escritor não era a mesma da vivida por Marinetti, que defendia uma ideologia propensa ao fascismo. Percebe-se na literatura pirandelliana o anseio por teorias mais inovadoras que se Asor Rosa encaixa o principio di lontananza dentro da categoria dos principi dell’ottica verghiana. Nesses princípios, o autor traça, explica e exemplifica os diversos raciocínios teóricos dentro da obra de Giovanni Verga, possibilitando um estudo detalhado e tornando-se referência para outros teóricos, pois permite que se aplique a mesma técnica em outras obras e escritores. Rosa diz que Verga “não conseguiria escrever o romance daquela forma, sem elaborar e colocar em campo uma série de instrumentos psíquicos e cognitivos, que apresentam grande quociente de originalidade pessoal que, de algum modo, possam ser ocultos às temáticas dominantes no verismo italiano contemporâneo e que, substancialmente, sintetizam no escritor uma surpreendente capacidade – absolutamente solitária no seu tempo – de se introduzir sem estranhamento na misteriosa antropologia das classes sicilianas subalternas” (1997, p.438. Tradução nossa).
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relacionavam com a influência da cultura europeia e, simultaneamente, apresentavam características como representação menos objetiva da realidade, relativismo filosófico e ético, e também a decomposição e dissolução de identidade.
Alessandro Baricco entre o passado e o presente: para um estudo de uma literatura (pós)-moderna A contar da morte de Pirandello, cinquenta e cinco anos depois, em 1991, Alessandro Baricco se lança no universo literário com Castelli di rabbia. A partir desse momento, o autor que já escrevia artigos e ensaios para jornais, se consagraria como um romancista italiano contemporâneo. Nascido em 1958, Baricco se graduou em filosofia. Além da formação acadêmica, o autor é formado em piano e também atua como crítico musical para o jornal La Reppublica e La Stampa. Vale lembrar que Baricco também foi apresentador de programas televisivos e diretor de teatro. Entre suas principais obras literárias podemos encontrar a já citada Castelli di rabbia (1991), Oceano Mare (1993), Seta (1996), City (1999) e Senza sangue (2002). Em 1994, publicou a obra dramatúrgica Novecento: un monologo feita para o cinema, dando origem ao filme La leggenda del pianista sull’oceano, sob a direção de Giuseppe Tornatore. Percebemos em suas obras, características que nos fazem refletir sobre a literatura contemporânea quanto à sua forma – pode ser vista em Seda onde a estrutura é composta por um hibridismo de escritas: prosa, poética e dramatúrgica – como o conteúdo. Assim como Pirandello, as personagens de Baricco são complexas e também são colocadas frente aos seus medos e frente ao embate com o outro ou com o mundo externo, refletindo assim em seu caráter, modo, psicológico. Em Novecento, o medo do novo, do que nunca se viu, presenciado pelo protagonista ao descer às escadas do navio para a cidade pela primeira vez na vida, o faz pensar em sua condição e desistir de sua saída, permanecendo no navio até sua morte. A trama narra a história de Danny Boodman T.D. Lemon Novecento, bebê órfão abandonado no transatlântico Virginian, encontrado por um marinheiro negro Danny B., sendo seu pai até seus oito anos de idade. Novecento se caracterizava por ser um homem com grande capacidade de aprendizagem, vive através de desejos e paixões do outros e se realiza com a música, pois aprende piano ao ter contato com o narrador, músico da banda do navio.
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Toda aquela cidade ... não se via o fim... O fim, por favor, era possível ver o fim? E o barulho. Sobre aquela maldita escada ... tudo era muito belo, tudo ... e eu me sentia excelente vestindo aquele sobretudo. Realmente dava uma boa impressão e não tinha dúvidas de que iria descer, sem nenhum problema. Com meu chapéu azul, [...] Não foi o que vi o que me parou, Mas o que não vi. Me entende, irmão? O que não vi ... procurei, mas não havia. Havia Tudo em toda aquela infinita cidade Tudo Menos um fim. Não se via onde tudo aquilo terminava. O fim do mundo. (BARICCO, 1994, p.17)6
Baricco traz em suas obras, várias características que não são novidades ao leitor do século XX e tampouco aos do século XXI. Talvez, atualmente, tais aspectos sejam mais evidenciados e diretos. Percebemos então a presença e carga psicológica e filosófica atuando diretamente na vida das personagens e na estrutura narrativa. Em Pirandello já presenciávamos tais fatos como indicadores de uma evolução e autonomia no romance pirandelliano, assim como o conceito de máscara, crise da representação, identidade psicológica e cultural já revisitados na literatura de hoje. Se falamos em fragmentação do homem, somos levados quase que imediatamente ao ser humano que não é único, que usa várias máscaras proposto por Pirandello no início do século XX. Williams afirma que Essas fórmulas insensíveis nos lembram que as inovações do que é chamado modernismos tornaram-se as formas novas, embora engessadas, do nosso momento presente. Se quisermos romper com a rigidez a-histórica do pós-modernismo, então devemos, para o nosso bem, procurar e contrapor-lhe uma tradição alternativa retirada das obras negligenciadas de deixadas na larga margem do século, uma Tradução nossa de ““Tutta quella città... non se ne vedeva la fine... La fine, per cortesia, si potrebbe vedere la fine? E il rumore Su quella maledettissima scaletta... era molto bello, tutto... e io ero grande con quelcappotto, facevo il mio figurone, e non avevo dubbi, era garantito che sarei sceso, non c'era problema Col mio cappello blu Non è quel che vidi che mi fermò È quel che non vidi Puoi capirlo, fratello?, è quel che non vidi... lo cercai ma non c'era, in tutta quella sterminata città c'era tutto tranne C'era tutto Ma non c'era una fine. Quel che non vidi è dove finiva tutto quello. La fine del mondo” 6
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tradição que poderia apontar não por essa reescrita do passado, hoje passível de exploração por ser tão inumana, mas para um futuro moderno no qual a comunidade possa ser novamente imaginada. (WILLIAMS, 2001, p.7)
A história, psicologia, filosófica, e mesmo as ciência exatas, eram e ainda são incorporadas na literatura. A psicologia já estava presente em Italo Svevo, assim como em quatro décadas depois, a filosófica guiava a trilogia Caminhos da Liberdade, de Sartre. Durante todo esse período que dizemos ter passado de um moderno para um pós, nada fizemos senão que uma evolução histórica presente no mundo artístico dado o fim da Segunda Guerra Mundial como marcador para que isso fosse possível, mas não devemos encarar como uma ruptura total. Sabemos que Pirandello foi de extrema importância contribuição para a literatura italiana moderna. Para além, propomos um possível estudo sobre a presença pirandelliana na contemporaneidade, como uma herança literária deixada após sua morte e que pode ser percebida atualmente. Assim, devemos ter em mente que não se analisa aqui a presença pirandelliana na literatura de Alessandro Baricco e tampouco supor a ligação direta desse último com Pirandello. Ao escolhermos Baricco como um dos autores que nortearão essa pesquisa, desejamos fazer um estudo mais abrangente se sua literatura, visto que sua fortuna crítica é ainda curta no âmbito acadêmico, sobretudo no Brasil. Contudo, o dilema apresentado no excerto acima, referente à Novecento, traduz, na contemporaneidade, que o mesmo que se passava no início do século passado, ainda acontece hoje. Muitos pensamentos do mundo empírico, são transpostos mimeticamente para a ficção, visto que no pós-modernismo há certa dificuldade de separar o ficcional do “real”. Tanto a literatura quanto a história são frutos de interpretações da realidade e trabalham com perspectivas subjetivas. De repente estamos diante de Mattia Pascal e suas três vidas, Vitangelo Moscarda e seu problema com o nariz, Novecento e sua vida dentro do navio e Sr. Rail meio aos seus vidros: personagens perplexos diante de um mundo cambiante. Referências ASOR ROSA, Alberto. Genus italicum: saggi sulla identità letteraria italiana nel corso del tempo. Torino: Einaudi, 1997. _________________. Storia della letteratura italiana. Firenze: La Nuova Italia,1985. BARICCO, Alessandro. Castelli di rabbia. Milano: BUR- La scala, 1999.
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_________________. Novecento: un monologo. Disponível Acesso em 10/09/2014.
em
CONTINI, Gianfranco. La letteratura italiana otto-novecento. Milano: Edizione Accademica, 1992 FERNANDES, Telma. MARTINS, Leda Maria. O Teatro Moderno. In: Vestido de noiva: um texto escrito no espaço. Dissertação de mestrado do Programa de PósGraduação em Letras: Estudos Literários: UFMG, 2005. FINAZZI-AGRÒ, Ettore. Arqueologia do presente: futurismo e modernismo entre tradição e transgressão. In: (org.) BAGNO, Sandra et al. Cem anos de futurismo: do italiano ao português. Rio de janeiro: 7letras, 2010. HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo, Martins Fontes, 2000. JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. 2.ed. São Paulo: Ática, 2007. PIRANDELLO, Luigi. Il fu Mattia Pascal. In: MACCHIA, Giovanni; COSTANZO, Mario. Pirandello: tutti i romanzi. Volume primo. Verona: Mondadori, 2003. ________________. Uno, nessuno e centomila. In: MACCHIA, Giovanni; COSTANZO, Mario. Pirandello: tutti i romanzi. Volume secondo. Verona: Mondadori, 2003. WILLIAMS, Raymond. Política do Modernismo: contra os novos conformistas. Tradução de André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
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A SIMBOLOGIA DO FELINO EM MAX AND THE CATS DE MOACYR SCLIAR E LIFE OF PI DE YANN MARTEL
Carlos Henrique Pires de Sousa (UNESP) Apoiando-se no projeto de pesquisa em desenvolvimento sob o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), cujo objetivo principal é a comparação entre os temas abordados em Life of Pi (2001), de Yann Martel e Max and the Cats (1981) de Moacyr Scliar, esta apresentação tem o intuito de analisar e comparar a figura do felino selvagem em obras de envergaduras distintas. Life of Pi e Max and the Cats são obras de travessias, nas quais os protagonistas enfrentam naufrágios que mudam suas vidas e os põem em frente ao desafio de sobreviver ao oceano com a presença de um felino de grande porte a seu redor. Tal tema abordado pelos dois romances, de fato, não é original por parte de nenhum dos autores; porém, a construção de uma narrativa que parte de tal arquétipo integrado à sobrevivência de um garoto com uma fera em uma pequena embarcação – que, na verdade, simboliza algo ainda maior –, é pioneiramente atribuída a Scliar. Sob a perspectiva desta pesquisa, tal aproximação não pode ser nomeada erroneamente - como é recorrente na área da literatura -, como o fenômeno de “intertextualidade”, por, primariamente, não se tratar de uma referência integral. Adotase, então, seguindo a visão de Gérard Genette (1982), o termo “hipertexto” para descrever a relação das obras analisadas. “Intertextualidade” e “hipertextualidade” são distinguidas na obra do teórico francês por apresentar as seguintes características: no fenômeno da “intertextualidade”, A está presente com B no texto B; enquanto a “hipertextualidade” se faz por imitação e transformação, ou seja, B deriva de A, mas A não está efetivamente presente em B. É sobre o hipertexto de sobrevivência de jovens junto a um grande felino em um bote salva-vidas que o livro “que fará o leitor acreditar em Deus”, como é descrito pelo narrador-personagem de Martel, cumpre sua promessa.
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Quanto ao romance de Scliar, fatos históricos importantes que ocorriam no Brasil na época em que Max and the cats foi escrito devem ser relembrados, a fim de se obter uma melhor compreensão da simbologia do felino: a ditadura civil-militar. Neste contexto, em 1968 foi estabelecido no país o AI-5 que foi o ato institucional mais duro de todos, e instaurou as trevas que se abateriam no país durante mais de dez anos. Para que as obras produzidas na época “driblassem” os censores, traços estilísticos que deixaram forte marca na produção cultural de 1970 eram utilizados, como o discurso cifrado feito através da metáfora e da alegoria. Assim fez Scliar: recorreu à utilização da metáfora para causar o efeito de catarse em seus romances. Max and the cats é estruturado em três partes – antes, durante e após o naufrágio –, e em cada parte há um felino que representa as diversas fases do “ego” do garoto, assim como seus medos: o tigre de bengala, o jaguar no escaler e a onça no morro. Na primeira parte, a história se desenvolve com a apresentação do pai do jovem alemão, Hans Schmidt, comerciante de peles que possui um animal empalhado que dava nome a sua loja “Ao tigre de bengala”, abatido na Índia. O artefato aterroriza o menino durante sua infância, e a figura do felino irá assombrá-lo pelo resto de sua vida. Max, sensível e ingênuo, sente-se pequeno em relação ao tigre sobre o armário, assim como se sente impotente perante a tirania de seu pai, que persegue seus passos, inclusive em sua iniciação à vida amorosa com a empregada Frida. Anos após tais eventos, o regime nazista se expande pela Alemanha, e Max volta a se envolver com Frida, que está comprometida com um membro do partido. O jovem se vê forçado a fugir de seu país em direção ao Brasil, e, durante a fuga, acontece o naufrágio de sua embarcação. O garoto encontra refúgio em um precário bote salvavidas, e para sua surpresa, na caixa que se encontrava junta ao bote, estava um feroz jaguar, com o qual o garoto se vê obrigado a compartilhar o pouco espaço que possui. A falta de recursos e escassez de água potável e alimento fazem o garoto se render a seu destino: quando Max se vê a ponto de ser devorado pelo jaguar, perde suas forças e desmaia, acordando em sua nova terra: o Brasil. Não há sinais do jaguar no escaler e o jovem já não sabe se o que ocorreu foi real ou mera ilusão. O jaguar, aqui, constrói uma metáfora do regime nazista, que quando não alimentado, com afiliações a sua ideologia, devorava os não adeptos, junto aos judeus.
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De modo geral, a mesma representação volta à vida do personagem, já velho, na terceira e última parte do romance: Max reconhece seu novo vizinho como o alemão que fora marido de sua amante, e passa a ter surtos de paranoia. A figura do felino, então, paralelamente a este acontecimento, volta a assombrar o protagonista da obra de Scliar: os animais de sua chácara e sua pequena filha são atacados por uma onça que morava no morro; Max, no entanto, acredita que tudo seja obra de seu novo vizinho. O felino traz ao protagonista o desequilíbrio. Com incertezas da sanidade de Max, o narrador deixa pistas que sua desconfiança não cabe à realidade, mas não nega completamente a visão do protagonista. Nota-se que a variedade de felinos do romance de Moacyr Scliar marca as diversas fases da vida do protagonista, desde a infância e seus medos à estabilidade da velhice, quando é Max quem é dono dos gatos, e, portanto, exerce o controle sobre os animais que agora são menores que ele. Como sugere o dicionário de símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2012), o tigre evoca ideias de poder e ferocidade, que se comportam de forma negativa. Assim foi a vida de Max, tomada por medos de forças maiores que ele, as quais eram cruéis e ferozes sobre o jovem alemão, massacrado pelo poder. Scliar, por meio dos felinos, simbolizou o regime nazista, que por sua vez, simbolizou a ditadura civil-militar no país, já que a crítica da essência de Max and the cats não passaria pelos sensores ditatoriais, caso fosse explícita. Já tratando do único felino que há em Life of Pi, de Yann Martel, temos Richard Parker, que, ao estabelecer relação com o sobrevivente do naufrágio, o jovem Piscine Patel, forma uma alegoria aos anseios e crenças da humanidade. Durante o período em que o jovem Piscine está à deriva no mar, ele aprende a lidar com a fera e também a ensina a respeitar seu espaço. Após 227 dias no Oceano Pacífico, Pi, já sem forças, perde a consciência ao chegar à costa do México, mas antes, vê Richard Parker partir sem nem olhar para trás, o que o magoou profundamente. O garoto é resgatado e entrevistado pela seguradora do navio que naufragara, que, em primeira instância, não acredita na história relatada por Pi, devido à falta de traços de que o felino estivera no barco. O garoto, então, conta uma segunda versão do ocorrido, na qual toda selvageria, atribuída ao tigre, havia sido feita por ele.
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Richard Parker é o “ego” não admitido por Piscine Patel, sendo que ele recorreu a seus instintos necessários para garantir sua sobrevivência. Por mais que Pi tenha se desapontado pelo tigre ter ido embora sem nem olhar para trás, seu amigo já não era necessário para sua sobrevivência; então, seu lado selvagem oculta-se novamente. Vemos que mesmo com o evidente diálogo que Life of Pi faz com Max and the cats, ambas as obras têm seu próprio cunho: Moacyr Scliar usa o leitmotiv do garoto sobrevivendo junto a um grande felino a bordo para falar da opressão do nazismo, e, de fato falar da opressão da ditadura civil-militar; já Martel utiliza da mesma fábula para representar os conflitos do ser humano e as contradições de sua natureza. Tem-se então um romance que segue as tendências da literatura best-seller que aborda o esoterismo e adere à transparência, que a percepção do leitor atravessa durante suas longas páginas em formato próprio para consumo, em contraste com seu predecessor, de caráter denunciatório e artístico. Referências CHEVALIER, J. & GHEERBRANDT, Dicionário de Símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva -26ª ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 2012. COUTINHO,
Eduardo
F.;
CARVALHAL,
Tania
Franco
(orgs.).
Literatura
Comparada: textos fundadores, Rio de Janeiro: Rocco, 1994. GENETTE, Gérard. Palimpsestos: A Literatura de Segunda Mão. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1982. MARTEL, Yann. Life of Pi, a novel. New York: Mariner, 2001. SCLIAR, Moacyr. Max and the cats. Trad. Eloah F. Giacomelli. Toronto: Key Porter Books Limited, 2003. (primeira edição, 1990)
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A CORPOREIDADE DO POEMA: UM RECINTO DE LUTA EM LUIZA NETO JORGE
Carolina Alves Ferreira de Abreu (UFAM) A utilização da linguagem erotizada na obra dessa poetisa portuguesa mostrou a necessidade de compreender o corpo e suas dimensões. Por isso, apresenta-se, neste relatório parcial de iniciação científica, um histórico a respeito da representação do corpo da escrita e, assim, tornando a discussão mais bem fundamentada. Também apresenta-se a discussão sobre a reação do ser no espaço e tempo em que habita e constrói diante das convenções estabelecidas no sistema social. Pelo fato de a língua ser o lugar do despoder, como salientou Roland Barthes (1997), Luiza Neto Jorge emprega variadas possibilidades de representar tais relações como umo combate e transformação: “foi como exercício de despoder que ela se tornou um lugar de invenções, de experimentação e de fruição” (JORGE, 2008, p.10). Complementando: um estado de fruição da língua para o ser, um recinto de luta motivado pela inquietação estética e ética que é construído sob o itinerário da poesia. No âmbito da escrita dos anos de 1960, o objetivo era repensar a tradição discursiva, estética e contextual, desviando a linguagem para uma multiplicidade de sentidos, ora construindo, ora descontruindo discursos ideológicos, o que proporcionou uma eficaz renovação literária. A produção poética da poetisa fundamenta-se na revolta manifestada pelas palavras, sob o aspecto de pulsão política, conflito entre o sujeito e as instituições sociais, de modo a associar este embate ao erotismo como prática libertária do próprio corpo, no qual o poema é um corpo erotizado, um indivíduo ativo no espaço, e, portanto, capaz de lutar pela liberdade em um ambiente lusitano opressor e ditatorial, e de construir um itinerário artístico. Luiza Neto Jorge cria na sua poesia a dimensão do erotismo como um aspecto da transgressão a convenções, a imposições, e levanta, dessa maneira, questionamentos sobre uma causa justa, que é o empenho nas reivindicações políticas. O espaço do
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poema trata das relações construtivas do erotismo que se materializa em um corpo, seja ele o do ser humano ou o da escrita, estando todos simultâneos e sobrepostos, conforme se lê no texto abaixo: O lugar de repouso está por inventar A cidade é morna o rio vazio nem o mar é filho do mundo nem o mundo é mar nem o meu corpo um chapéu de ilusionar A cidade é morna o espaço baço nem caem da face os olhos nem se perde o braço (JORGE, 2008, p. 61)
Neste poema intitulado “Esta cidade” observa-se a construção de um lugar ambientado por uma realidade caótica e não menos alarmante, que impulsiona a um novo olhar. “A cidade é morna/ o rio vazio”, remonta à perspectiva de um espaço sem identidade, sem novidade e que pode fundar qualquer outro recinto, cuja experiência se construa de modo mais intensificador. Desta forma é que “a poesia deveria reflectir esta atitude, ser esta atitude, explodindo de raiva ou de sarcasmo, rasgando, ferindo, um mundo monstruoso, apesar de apodrecido” (CRUZ, 2010, p. 32). Complementa-se a observação de Gastão Cruz, com outro trecho de um poema de Luiza, no qual ela escreve que existe um “jogo de relâmpagos sobre o mundo/ De só imaginá-la a luz fulmina-me/ na outra face ainda é sombra” (JORGE, 2008, p.16). No poema “O poema”, pode-se evidenciar tais construções, no qual o corpo tem a necessidade de fincar no mundo, gritando-o pela garganta: Esclarecendo que o poema é um duelo agudíssimo quero eu dizer um dedo agudíssimo claro apontado ao coração do homem Falo com uma agulha de sangue a coser-me todo o corpo
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à garganta (JORGE, 2008, p.41)
A importância da matéria escrita neste poema é visível, quando se tem o esclarecimento do poema como um duelo ao mundo externo e formidável, como também a necessidade de divulgá-lo ao outro, “apontado ao coração do homem”. Nas condições sexuais, “Falo”, na concepção de órgão sexual, mas também de um enunciado, um grito diante de um lugar reprimido pelas autoridades salazaristas, à censura, ao corpo estabelecido e moldado como um templo divino, através de “uma agulha de sangue / a coser-me todo o corpo / à garganta”. Este corpo que grita e ecoa a liberdade se expõe nu atravessando as barreiras da moral que o impulsionava ao pudico. O corpo este, por sua vez, intensificado pelas relações sustentadas, em constantes embates que fazem deste um corpo atuante, e formado pelas instâncias em que se vive, este lugar reforça a necessidade do corpo de sublevação, massificado pelas propostas ideológicas do Estado Novo, que se tratava de “reeducar” os portugueses sob um conceito de nação regenerada pelo liberalismo. A ditadura de Salazar prega tais ideias, como também a família como uma forma de integridade da nação em “bons costumes”. O corpo humano, ascensor de uma identidade enquanto ser vivo, está relacionado à sua estadia e feitoria sobre o espaço em que se está condicionado, ou sobre o outro, como também nas desconstruções ou construções discursivas nas quais se pode realizar. O poema situa-se paralelamente a esta definição, como um indivíduo ativo no espaço em que está direcionada sua atuação. De resto, pode-se adaptar ainda tal conceito como uma busca pela identidade feminina que passa pela afirmação do corpo e da sexualidade. Constata Alilderson Cardoso: “Por essas e por outras razões, quando tento falar a partir do ‘corpo de Luiza Neto Jorge’, penso no quanto é importante e, diria, urgente não reduzir a poesia que dele nasce a um breve passeio pelo bosque dos desejos eróticos” (CARDOSO, 2010, p.60). Nesta relação, segundo Octávio Paz (2001), o erotismo e a poesia se interrelacionam sob a realidade de que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal, complementados por uma oposição: “A linguagem – som que emite sentido, traço material que denota ideias corpóreas – é capaz de dar nome ao mais fugaz
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e evanescente: a sensação; por sua vez, o erotismo não é mera sexualidade animal – é cerimônia, representação. O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora” (PAZ, 2001, p.12). A poesia erotiza a linguagem e o mundo, uma vez que seu modo de ação é erotismo; o erotismo é o sexo em ação, interrompendo a finalidade da função sexual. O corpo, predisposto como um elemento sexual é rebelde, pela forma violenta como confronta a si próprio, ao outro ou ao meio. Este corpo, cuja estrutura se consolida de forma diversa, está paralelo à linguagem, também construída de múltiplos sentidos muitas vezes subentendidos. Construir suas concepções diante das relações sociais, culturais e tecnológicas foi importante para compreender o quanto o corpo foi um mero preceptor de modelos vigentes, que o encarceraram diante do mundo e de sua extensão. Referências BARTHES, R. Aula – Aula Inaugural da Cadeira de Semiologia Literária do Colégio de França. 14ª edição. Tradução e posfácio de Leyla Perrone – Moisés. São Paulo: Editora Cultrix, 1977. CRUZ, G. A Quarta Dimensão da Poesia de Luiza Neto Jorge. In: ALVES, I. Um Corpo Inenarrável e Outras Vozes – estudos de poesia portuguesa moderna e contemporânea. Niterói: Editora Eduff, 2010. CARDOSO, A. Um corpo Insurrecto é a casa do mundo: O sexo Luiza Neto Jorge. In: ALVES, I Um corpo inenarrável e Outras Vozes - estudos de poesia portuguesa moderna e contemporânea. Niterói: Editora Eduff, 2010. JORGE, L N. Corpo Insurrecto e Outros Poemas. São Paulo: Editora Escrituras, 2008. MARTELO, R. M. Um Jogo de Relâmpagos. In: JORGE, L. N. Corpo Insurrecto e Outros Poemas. São Paulo: Editora Escrituras, 2008. PAZ, O. A dupla chama: amor e erotismo. 5ª ed. São Paulo: Siciliano, 2001.
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POESIA NAS RUAS DE MANAUS – FANZINES E PROCESSO DE PRODUÇÃO Caroline de Assis Campos Pinagé (UFAM) Revistas de fã ou de um fanático por determinado tema. Etimologicamente, essa é a definição literal do termo “fanzine”, objeto de estudo que permeou essa pesquisa, intitulada Fanzine em Manaus - criação coletiva e produção literária. Aliada à tal denominação vinculou-se um conceito determinado pelas condições de produção iniciais, que seria o de periódicos artesanais, confeccionados manualmente, de forma independente e com proposta de temática livre. Essa foi a definição semântica que também coube às revistas alternativas nomeadas fanzines. Em seu percurso histórico, as revistas sempre estiveram associadas a produções de gêneros como histórias em quadrinhos (HQ) e de mídia alternativa de comunicação. Mas, em razão de sua temática abrangente foi possível perceber a presença de manifestações em gêneros literários circulantes nesse suporte. E foi com base nessa proposição, que a investigação desse estudo se iniciou. A partir do conjunto de técnicas proposto na obra Análise de Conteúdo, de Laurence Bardin (1977), foi possível estabelecer o corpus da pesquisa, delimitado em 32 revistas recenseadas. A partir da análise categorial, fez-se falar indicadores que demonstraram a presença de gêneros como crônica, histórias em quadrinhos, conto, ensaio filosófico, com destaque para a frequência da poesia em mais da metade do corpus. A fim de verificar as condições de produção desse último gênero literário nas publicações, a técnica escolhida para a leitura dessa proposição teve como base a Análise do Discurso, por meio da obra Discurso Literário, de Dominique Maingueneau (2012), que objetiva uma compreensão do contexto da produção. As ruas da cidade, como espaço associado, é o lugar parasitário aonde os escritores de fanzines recorrem comumente para realizar algumas das etapas de sua produção, como a circulação por meio da venda pessoalizada. Circulantes em um território marcado pelo embate de posicionamentos, os fanzineiros caminham pelo
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centro urbano manauara instaurando um discurso não legitimado pelos padrões elitistas, consumados por pessoas que frequentam esse mesmo espaço. Para Maingueneau (2012), “a arte não dispõe de outro lugar além desse movimento, a impossibilidade de se encerrar em si mesma e deixar-se absorver por esse Outro que se deve rejeitar mas de que se espera o reconhecimento” (MAINGUENEAU, 2012, p.98). O que mantém o discurso constituinte dos fanzines é esta paratopia ativa, exatamente o estado constante de enfrentamento dessas ditas “tribos invisíveis” diante ao Outro, representado pelo sistema capitalista e quem o sustenta. Tais tribos não assumem um papel coletivo, apesar de ativarem uma memória da coletividade, a do discurso constituinte nos fanzines, já que em sentido involuntário esses escritores constroem discursos que dialogam entre si e com as mais diferentes estéticas, desde a influência mais erudita até a mais popular, a experimentação é o que lhes congrega. Os escritores de fanzines, assim como outros artistas, são frequentadores recorrentes de lugares que podem ser associados à representação das cafeterias europeias, do século XIX, frequentadas pelos boêmios, sendo reconfiguradas, atualmente, como os bares. O café se acha na fronteira do espaço social. Lugar de dissipação de tempo e de dinheiro, de consumo de álcool e tabaco, ele permite que mundos distintos se encontrem lado a lado. [...] Pois o artista é o perpétuo andarilho que acampa às margens da cidade (MAINGUENEAU, 2012, p.97).
Esse lugar boêmio é marca representativa nos ritos genéticos desses escritores, já que impõem como necessidade a circulação, o diálogo e a realização dos discursos nesses espaços. Configura-se assim uma segunda paratopia chamada identitária, já que esses escritores não pertencem a lugares estáveis, em razão desta mobilidade sempre instigada pela necessidade do novo e da experimentação, faz com que uma identidade definitiva lhes escape durante as andanças. Ainda pode-se entender que o não enquadramento em uma identidade determinada seja uma apropriação do movimento. A análise do dispositivo enunciativo fanzinesco conduz ainda à interpretação dos critérios linguísticos, que também podem ser apontados como embreantes da marca paratópica dessa produção, tanto pela estrutura superficial da linguagem, quanto pela
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sua significação. Vejamos na leitura do poema a seguir, extraído do fanzine Risos, Soluços e Convulsões (canções me sobram). A alma é o buraco de uma coisa Com outros buracos dentro. Como se essa coisa oca Tivesse uma broca de vento. Fazendo furos no furo Entrando se retorcendo. A alma é um grito no escuro Mesmo grito não tendo. A alma é em cada segundo Centenas de horas dentro. Passado, presente e futuro Perdidos num eco, no vento. A alma é um espaço curto Mas com tanto espaço dentro - E como há espaço em tudo, Até mesmo há espaço no tempo – Só cabe o espaço da alma No tempo do pensamento (FURTADO, Adriano, sem ano, sem paginação). A leitura do poema do escritor Adriano Furtado condiz a de uma linguagem simples, que intenta fazer-se comunicar por meio de um inscritor, que conduz a uma reflexão acerca do tema metafísico, a experiência da alma. A relação estabelecida por esse inscritor acerca do elemento espiritual realiza-se por meio de adjetivos de significação vagante, como “A alma é o buraco de uma coisa”. Ao indicar a imagem do buraco como característica à alma, o poeta remete a uma ausência, ou à falta de certo espaço que deveria estar ocupado, já que, dependendo da profundidade, o buraco só existe em razão da disposição de seu entorno, algo que o circunda. Assim, o poeta continua a descrever a quantidade dessa ausência: “com outros buracos dentro”, o que demonstra que esta falta não é superficial, não pode ser medida, já que a única presença possível é a de outros buracos, o que aumenta a noção de vazio. Nos versos seguintes, o poeta mantém a ideia de inexistência, diz: “como se essa coisa oca”, que induz a uma sensação de vazio, de não preenchimento. Ainda direcionando à expansão, o inscritor sinestesicamente funde ausência e dor: “tivesse uma broca de vento / Fazendo furos no furo / Entrando se retorcendo”. O que se faz sentir é uma sucessão de espaços vazios, que se expandem de maneira antropofágica, que apesar de “fazer furos no furo”
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transmitir uma ideia imaterial, que transcende a lógica da razão, pode-se sentir uma sensação de mutilação do corpo vazio por outros corpos que o penetram. Nenhuma experiência concreta é possível para capturar a essência da alma, que assim como a poética paratópica fanzinesca, mantém-se nesse não-espaço: “A alma é um espaço curto / mas com tanto espaço dentro/ e como há espaço em tudo / Até mesmo há espaço no tempo”. Por fim, o inscritor funde espaço e tempo, alma e pensamento “Só cabe o espaço da alma / No tempo do pensamento”. Pode-se entender que as marcas linguísticas permitem uma compreensão acessível. Apesar dessa leitura possível, o poema não diminui seu potencial hermético, principalmente em razão de seu poder polissêmico, já que a reflexão sobre a significação da “alma” permite múltiplas interpretações. Assim, Maingueneau (2012) considera que “é imprescindível que esse texto seja considerado ‘profundo’ para se poder e dever submetê-lo à interpretação; mas é imprescindível que o texto seja submetido à interpretação para se poder dizer que é profundo” (p.73). Com isso, pode-se verificar que o discurso fanzinesco realiza a concepção de interlíngua proposta pelo teórico Maingueneau, quando esse concebe a reapropriação de sua língua, não apenas em termos imediatos, mas diante ao trabalho criador, bem como do leitor. Além do recurso linguístico, a composição da enunciação também reforça o perfil paratópico no discurso analisado, visto a descrição do objeto metafísico tratar exatamente desta falta, ausência e vazio como lugar vagante por onde esse objeto passeia e aonde o poeta busca apreendê-lo. Assim, a língua literária também se constitui enquanto embreante paratópico neste discurso. Referências BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Tradução Luís Antero e Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70, 1977. FURTADO, ADRIANO. Risos, soluções e convulsões (canções me sobram). Manaus: Publicação independente, sem ano. GUIMARÃES, Edgard. Fanzine. Brasópolis, MG: edição do autor, 2000. MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. Tradutor Adail Sobral. – 2. Ed. São Paulo: Contexto, 2012.
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FOTOGRAFIAS ROUBADAS E HISTÓRIAS USURPADAS: QUANDO O HOMEM CONTA A HISTÓRIA DA MULHER. Célia Cristina de Azevedo Ask (SEESP) “A hundred and eleven years without a chauffeur” é um dos últimos contos escritos por Muriel Spark. Ele foi publicado em 2000 na revista The New Yorker, voltando a ser publicado em 2004 em uma coletânea de contos, All the stories of Muriel Spark. O conto tem por figura central uma escritora que, ao procurar fotografias de seus antepassados em uma tentativa de recuperar suas raízes para uma biografia, descobre que há algumas delas faltando, o que a leva a buscar na memória os registros perdidos. Neste processo, a narradora se lembra de um de seus amigos, Damian de Dogherty, que se dizia herdeiro de nobres e cujas características marcantes restringiamse a ser divertido “na mesa de jantar”, sofrer de narcolepsia e trabalhar como genealogista. O “Barão” de Dogherty retorna à memória da antiga amiga porque havia se casado com uma fotógrafa profissional e também havia mencionado seu desejo de escrever uma autobiografia. Entretanto, a relação entre as fotografias antigas e o amigo morto somente será revelada quando a escritora encontra alguns destes registros familiares à venda. Surpreendentemente, as imagens são vendidas como espólio do falecido Barão de Dogherty; além disso, as fotos foram modificadas, passando a representar os supostos nobres antepassados do amigo. Memórias familiares: o que se conservou, o que se perdeu Fotografias são a memória conservada de entes queridos, de um passado cujas marcas vão se perdendo com o tempo, assim como a nitidez das imagens registradas. A memória perde os detalhes, o que ficou nos bastidores, mas o seu registro palpável dá uma leve ideia do quanto da história se perdeu ou se conservou. A narradora sparkiana de repente se encontra ante o levantamento de suas perdas e ganhos ao voltar-se para sua história familiar ao buscar informações para a escrita de sua biografia. Na esperança
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de agregar memórias e documentos de seu passado, os registros encontrados apenas servem de ligação com os que desapareceram. Inicialmente, é necessário atentarmos para o fato de que as fotos são encontradas em um quarto de visitas que raramente é usado. Jogadas dentro de uma gaveta e esquecidas, as fotos ficam esquecidas por 20 anos até serem reencontradas pela narradora. As três fotos mencionadas pela escritora denotam a condição das mulheres de sua família: na primeira, temos o casal de tios de sua mãe, tipicamente patriarcal: “Jim was sitting with a hand on his knee, a watch chain across his belly, while Gladys stood beside him, one hand on his shoulder. Beside Gladys was a photographer’s prop – a pillar surmounted by a brunch of flowers. Date circa 1860.” (SPARK, 2004, p. 395). O que se nota nesta imagem é a hierarquia que se delineia entre o casal, pois o marido, estando sentado, representa o patriarca, senhor da família. A autoridade do marido é reforçada pelo relógio, cuja importância está em representar a lógica patriarcal e o domínio sobre a história; assim como pelo posicionamento da esposa que, por estar em pé ao lado dele, indica sua prontidão para obedecer a suas ordens; um gesto que evidencia sua submissão. Este retrato da família patriarcal denota o destaque dado à figura masculina, posição obtida não por mérito, mas por uma espécie de direito garantido pelo poder dominante, o qual se assegura pelo contrato estabelecido entre homens através do casamento, que se ampara na troca de mulheres, sendo que, Para os homens, essa troca de mulheres é um dom que provoca um contra-dom, o que instaura um vínculo social entre eles, um sistema de alianças fundamentado na reciprocidade. Para as mulheres, ao contrário, a troca acarreta sua redução ao status de objeto: não passam de moeda de troca, signos e emblemas do status dominante dos homens. (OLIVEIRA, 1999, p. 32-3)
Quando ela observa, em seguida, a fotografia da bisavó com as irmãs, percebe que: “They were wearing their best frocks, tightly corseted waists, prominent busts, as breasts were called, lots of rows of lace, and always a locket hanging round their necks, enclosing God knows whose photos, whose locks of hair.” (SPARK, 2004, p. 395). A descrição das vestimentas das mulheres acrescenta a ideia de contenção e repressão: as cinturas apertadas pelos corpetes remetem à afirmação de Bourdieu, em A dominação
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masculina (2003), de que “A cintura é um dos signos de fechamento do corpo feminino [...] simboliza a barreira sagrada que protege a vagina, socialmente constituída em objeto sagrado” (BOURDIEU, 2003, p. 25 – grifo do autor). Outro fator de indicação da condição da figura feminina como secundária em seu grupo são os bustos proeminentes, simbolizando a função das mulheres como reprodutoras e provedoras da família. Além disso, medalhões com fotos e/ou cabelos dos familiares, possivelmente maridos e filhos, pendem de seus pescoços, como se as enforcassem, sufocando-as, silenciando-as; clara referência à pressão social de desempenhar seu papel social préestabelecido. A imagem que vem à memória da narradora remete ao fato de a história das mulheres estar recorrentemente relacionada a uma relação de poder que se ancora nas experiências e realizações que se iniciam no espaço privado e, muitas vezes, alcançam a fronteiras do espaço público e as transpõem, é possível trazer à tona um encadeamento de fatos que transparecem naquilo que se convencionou denominar de relações de gênero, as quais, por sua vez, edificam e alicerçam as relações de poder entre os sexos. (ALMEIDA, 2007, p. 49)
Quando, finalmente, a foto em que estão a mãe da narradora e sua prima é mencionada, a narradora afirma que o nome de solteira da prima não é lembrado, embora ela seja descrita como uma mulher ambiciosa que desejava ter um Rolls-Royce e um chofer; ambição que não foi alcançada pela Sra. Henderson. No entanto, outra foto desta prima de sua mãe vem à memória da narradora, ainda que estivesse perdida: uma foto em que ela se inclina sobre uma máquina de costura, compondo um belo registro informal e, a seu ver, encantador. Trata-se de um registro que se perdeu, mas que permaneceu na memória da escritora por seu valor enquanto indicativo da mudança em processo na vida das mulheres em que o desejo de obter status social representa a insatisfação feminina com seu papel social secundária e a consciência de que lhe é possível reconfigurar sua situação. Este posicionamento feminino encontra-se em consonância com um modelo de resistência que acontece “quando ao cruzamento de mudanças sociais se articula uma tomada de consciência daquele que é submetido, o que gera insatisfação e desejo de mudança” (ALMEIDA, 2007, p. 50).
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Com a menção das fotografias, é possível percebermos que o olhar da narradora dirige-se quase exclusivamente para as figuras femininas de sua família, o que seria uma forma de demonstrar o quanto da história desta personagem está ligada ao passado das mulheres. Por outro lado, também lhe vem à mente uma figura masculina, cuja importância para o resgate da história familiar e pessoal da narradora somente será compreendida posteriormente. A interferência deste homem causará, como veremos, grandes mudanças na realidade das mulheres e os resultados, de uma forma aparentemente estranha, contribuirá para que a história delas seja reescrita. Intervenções masculinas e femininas na história das mulheres No processo de resgatar suas origens, a narradora acaba por lembrar-se também da história do amigo Damian de Dogherty, já falecido: “the family were Huguenots originating from Ireland, taking refuge in France; members of the Family were later in the servisse of Maria Theresa of Austria, who conferred on them a pincedom. Being modest people, they accepted to be merely barons” (SPARK, 2004, p. 396). A figura do Baron de Dogherty torna-se emblemática quando a narradora passa a apresentar características mais marcantes do amigo, como a narcolepsia, o trabalho como genealogista e seu casamento com uma fotógrafa profissional muito rica e talentosa. Cada um destes aspectos da vida de Dogherty adquire um significado muito importante na construção da biografia da narradora, na medida em que são usados para traçar um paralelo entre a vida de ambos. Sendo assim, inicialmente chama-se a atenção para a narcolepsia: quando estavam reunidos com amigos, Damian caía em sono profundo. Para a narradora, a explicação é clara: “I always understood this trait as a reaction to reality [...] something would cause him to face an unacceptable truth, and he just turned out” (SPARK, 2004, p. 396). Como uma forma de fugir da realidade inaceitável, o apagamento do amigo permitia-lhe escapar de qualquer situação que lhe fosse desconfortável, sem que precisasse explicar-se. Em seu modo de reagir à realidade, Damian evitava que sua verdadeira história fosse relevada ou que, ao menos, fosse questionada a versão por ele contada. Percebemos, consequentemente, que a narradora dispunha de informações que
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confrontavam a versão masculina, pois menciona que: “His name was not to be found in any of the reference books for the titles and old families of Europe” (SPARK, 2004, p. 397). A falta de documentos que comprovassem sua origem entra em conflito até mesmo com a profissão de genealogista exercida por Damian, pois após descobrir e comprovar a origem de tantas famílias que o contratavam, era surpreendente que não conseguisse provar sua própria história. Provavelmente, este foi o motivo de a amiga aconselhá-lo a mudar sua autobiografia para um romance. O conhecimento do qual a narradora dispunha, que mais se configurava na certeza de uma história inventada, deixa claro que a mentira masculina não pode passar despercebida pelas mulheres; pelo contrário, deve ser confrontada e evidenciada como tal. É por este motivo que a narradora, em uma conversa com o amigo, demonstra ter conhecimento das origens dele: “‘I’ve come to the bit when my aunt La Comtese Clémentine de Vevey came to visit me at school in Switzerland.’ ‘I believe you went to school in Salt Lake City’, I said, having been informed by one of his schoolmates. ‘Oh, that was earlier.’” (SPARK, 2004, p. 397). Ainda que a conversa não tenha desencadeado mudanças comportamentais em nenhum dos envolvidos, ela se torna relevante posteriormente, quando Damian interfere na reconstituição da história familiar de sua amiga. Isto porque, anos após a morte do Barão de Dogherty, a narradora encontra, em uma livraria, algumas fotos antigas belamente emolduradas. Quando percebe, ela está olhando para suas antepassadas, nas fotos que haviam desaparecido de sua casa, embora elas tivessem sofrido muitas mudanças: as mulheres usam belas tiaras, cordões com insígnias de famílias reais. A grande surpresa, porém, é descobrir que aquelas fotos haviam sido vendidas como espólio de Damian. As alterações efetuadas nas imagens, primeiramente, causam espanto, pois o amigo apodera-se dos registros do passado de sua família, mudando suas histórias: “My humble relatives, one by one, had been exalted with Orders and Garters” (SPARK, 2004, p. 398). Em segundo lugar, a narradora percebe que a usurpação evidencia a mentira sobre a qual Damian construiu sua vida pública. Tem-se, desta forma, a realização de um ato que tradicionalmente foi praticado pelos homens e que não coube
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às mulheres questionarem ou recusarem, que é a interferência masculina nas experiências femininas. Ao transferirem estas experiências para o espaço público, os homens dispõem do poder patriarcal para dar-lhes a moldura que desejassem. Mais evidentemente, a mudança nas vestimentas, a fim de denotar o poder econômico dos falsos parentes, reafirma o desejo masculino de colocar as mulheres no papel relegado a elas pelo casamento, como nos apresenta Greer: “a mulher é a principal consumidora e vitrina da riqueza do marido: ociosa, improdutiva, narcisista e dissimulada” (1974, p. 264). Neste sentido, é simbólica a mudança que faz com que as mulheres do passado possam ter uma vida melhor se os homens assim o permitirem. O poder masculino que interfere na vida das mulheres parece desejar reafirmar o papel feminino nas sociedades patriarcais, nas quais “A mulher deveria se cultivar para viver em sociedade e ser agradável ao homem, porém não poderia concorrer com ele profissional e intelectualmente, pois isso seria ultrapassar os limites da segurança social” (ALMEIDA, 2007, p. 109). No entanto, percebemos no conto sparkiano a ultrapassagem dos limites seguros, pois devemos compreender que o trabalho fotográfico tão bem executado que mudou o status das mulheres do passado somente foi possível com a intervenção de uma mulher. Sob este prisma, a antiga esposa de Damian, que era fotógrafa profissional, representa as mulheres que detêm o conhecimento e têm domínio sobre as ferramentas da mudança. Entendemos, assim, que esta tentativa de resgate do passado histórico, quando os homens gozavam de status social que o patriarcado lhes garantia, torna-se um engodo para eles quando as mulheres constroem a verdadeira história. Como veremos, a seguir, o feminismo foi o fator determinante para a construção das mulheres por elas próprias, ao assumirem o controle sobre suas ações e falarem por si mesmas perante a sociedade tradicionalista que, a contragosto, passou a reconhecer os direitos das mulheres. Fotografias reencontradas: a nova história das mulheres
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Após o movimento das mulheres haver conquistado o devido espaço social para as mulheres, muito se falou sobre os problemas decorrentes da inserção delas no mercado de trabalho. A maioria dessas pessoas acreditava que as mulheres fracassaram ao tentar conciliar as atividades domésticas com as profissionais, pois elas estavam sujeitas a um paradigma, como afirma Oliveira: procuravam assim corresponder ao novo perfil de mulher que emergia da agonia de um paradigma. Obedeciam a uma mensagem dupla e contraditória: ‘para ser respeitada pense, aja e trabalhe como homem; mas para ser amada continue sendo mulher. Seja homem e seja mulher’ (OLIVEIRA, 1999, p. 55).
Adicionalmente, Greer (1974) afirma que o casamento, por sua relevância social para a tradição patriarcal, era visto como a resposta para as mulheres que buscavam realização, uma vez que a carreira profissional não poderia permitir que isto ocorresse. Segundo a autora, “Na imaginação comum [...] as mulheres de carreira estão se compensando pelo fracasso em descobrir a mais profunda felicidade permitida à humanidade” (GREER, 1974, p. 249). A exemplo de várias outras mulheres, Spark precisou descobrir pela experiência que o casamento, muitas vezes, é um empecilho tanto para a realização profissional quanto pessoal. Por isso, não raramente, em seus contos e romances vemos mulheres lutando por seu espaço nos ambientes familiar e profissional, os quais são préestabelecidos socialmente. O conflito gerado pela ação feminina se instaura e, a elas, resta apenas levar a cabo seu projeto contra todos os obstáculos e sob a pena de ter que arcar com as consequências, o que geralmente ocorre com tais personagens. O conto “A hundred and eleven years without a chauffeur” ilustra, assim, a trajetória do movimento das mulheres na história. Isto porque, inicialmente, a narradora apresenta as mulheres de sua família como indivíduos dependentes de seus cônjuges e, aos poucos, evidenciam o desejo de conquistar a autonomia que lhes é negada. A narradora, por sua vez, torna-se representativa do empoderamento feminino quando se observa que sua função é resgatar a história familiar. Símbolo da história social das mulheres, os registros fotográficos das parentes da narradora são roubados como também foram roubadas as vivências peculiares ao mundo das mulheres.
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É importante destacar, desta forma, que a narradora sparkiana não fica encerrada ao espaço sociocultural a que Showalter (1994) denominou de zona selvagem, marcada pelas experiências exclusivamente femininas, geralmente restritas ao espaço privado/doméstico. Ao contrário, a narradora rompe com os antigos limites à sua independência intelectual e de ação social, questionando a veracidade das afirmações do amigo e, até, buscando meios de comprovar suas hipóteses, como pesquisando fontes sobre as origens de Damian e sobre os conhecimentos necessários para alterar as fotos. É possível pensar, assim, que o olhar da narradora consegue identificar nas figuras femininas retratadas nos registros familiares a condição de vida das mulheres ao longo da história. O que vemos, por meio das descrições desta personagem, é a reprodução das relações entre homens e mulheres e as mudanças que vão ocorrendo com o passar do tempo. O (re)encontro das fotografias roubadas passa a representar, de forma mais evidente, o valor dado a elas pelos grupos masculino e feminino: enquanto o vendedor ressalta que o interesse público estaria no valor histórico reforçado pelas molduras, a narradora dá atenção às mudanças nas mulheres. Certamente, os olhares destoam entre si porque a visão masculina preocupa-se, mormente, em identificar traços da padronização e do controle que a moldura implica, ignorando a história das mulheres que a visão feminina, por outro lado, consegue identificar. Temos, então, que a protagonista do conto, em seu papel atualizador da trajetória das mulheres, reconhece o empoderamento adquirido por seu grupo, que reivindicou para si a autonomia e independência às quais tinham direito. Como consequência, temse o despertar da sua identificação e empatia a partir da foto da tia, que antes se debruçava sobre uma máquina de costura e, na foto atualizada, passa a se abaixar para entrar no Rolls-Royce, cuja porta é aberta por um motorista cheio de pompa, realizando, deste modo, o “sonho de uma vida”. Depreende-se, a partir destas reflexões, que a tia da narradora ganha um poder social do qual não dispunha antes por atuar apenas no espaço privado e por realizar uma atividade não remunerada e, por isso, sem valor econômico; atividade esta que, como afirma Greer, historicamente permanece “tão invisível para os métodos convencionais de coleta de dados quanto o trabalho dos animais” (2001, p. 144-5). De forma paralela,
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podemos afirmar que a realização do sonho das mulheres da família é, ao mesmo tempo, a realização do projeto feminista, cujo empoderamento se pode identificar por meio da autonomia para agir socialmente e da independência intelectual. Conclusão As relações de poder marcam de modo evidente a relação entre homens e mulheres. No entanto, a busca pelo poder social, cultural e econômico sofreu mudanças em decorrência ao movimento das mulheres. Por isso, é notável como a história deste grupo, marcada por longos períodos de subordinação, precisou reconfigurar-se para que ele tivesse o espaço social devido, sem a determinação dos papéis sociais que antes lhes era imposta. A preocupação das mulheres em dar visibilidade ao projeto feminista ficou evidente em função do trabalho delas em diversas áreas de atuação humana e, de modo mais expressivo, na literatura. Embora algumas autoras tenham declarado sua filiação ao movimento feminista, defendendo seus ideais e exigindo abertamente o cumprimento dos direitos das mulheres, muitas escritoras preferiram expressar de modo menos explícito seu posicionamento ante as injustiças sociais sofridas pelas mulheres. Autoras como Muriel Spark, que recusaram o “rótulo” de feminista, entretanto, denotaram em suas obras o engajamento com os interesses de seu grupo, apresentando personagens femininas que se destacaram pela busca por superação das limitações sociais e, por isso, pela independência intelectual e financeira, tão importantes para as feministas. No conto sparkiano que apresentamos neste trabalho, “A hundred and eleven years without a chauffer”, a autora apresenta uma de suas figuras femininas que procuram conquistar seu espaço. A narradora do conto, ao tentar resgatar sua história, encontra nas vivências de suas parentes a escrita da própria história das mulheres, na qual cada geração representa as etapas da trajetória feminina ao longo da história do movimento. Ao traçar as mudanças estabelecidas pela agenda feminista, a narradora reconhece nas mulheres que a antecederam sua identidade e na realidade delas, os paradigmas da sua própria condição como mulher e como agente social.
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Podemos perceber, assim, que o conto apresenta o desejo de ter um carro de luxo com chofer como um paralelo ao projeto feminista, pois representam a autonomia das mulheres nos campos intelectual e econômico. Intelectual, porque o fato de poder questionar a construção da história pelos homens, como faz a narradora, ao questionar as origens de seu amigo, assim como ao ignorar a moldura das fotos roubadas, denota que as mulheres não aceitam velhas práticas sexistas depois de haverem instituído grandes mudanças sociais e culturais. Autonomia econômica porque a aquisição de bens e serviços comprova a independência financeira advinda da atuação profissional das mulheres, o que no conto sparkiano se expressa por meio do carro de luxo e pelo chofer. Esta figura, particularmente, é emblemática da autonomia feminina; pois, uma vez que ele acompanha a tia da narradora e segue suas instruções, conduzindo-a aos destinos por ela determinado, representa o fim do controle masculino e da subordinação feminina. Em suma, o conto de Muriel Spark nos faz refletir quanto à necessidade de nós, mulheres, resgatarmos nossa história e a escrevermos a partir de nossos próprios ideais, valorizando as experiências e vivências características a nosso grupo. Assim, poderemos construir, a cada dia, uma sociedade mais justa, que garanta os direitos individuais à independência intelectual e econômica, como o movimento feminista nos apresentou. O projeto feminista, apesar de haver estabelecido mudanças significativas na sociedade, ainda não completou sua tarefa, o que é bem difícil de prever quando ocorrerá. Contudo, sabemos que resgatar nossa história e revalorizar as peculiaridades de nosso grupo é o primeiro passo. Referências ALMEIDA, Jane Soares de. Ler as letras: por que educar meninas e mulheres? São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo; Campinas: Autores Associados, 2007. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
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GREER, Germaine. A mulher eunuco. São Paulo: Círculo do Livro, 1974. ______. A mulher inteira. Trad. Alda Porto. Rio de Janeiro: Record, 2001. OLIVEIRA, Rosiska Darcy de. Elogio da diferença: o feminino emergente. 3. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1999. SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. In: HOLLANDA, H. B. de (org.). Tendências e impasses: o feminismo como da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, Gênero Plural. 1994, p. 23-57. SPARK, Muriel. All the stories of Muriel Spark. New York: New Directions, 2004.
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A TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA EM VESTIDO DE NOIVA: DA DRAMATURGIA PARA O CINEMA Charlott Eloize Leviski (FAE) O teatro rodrigueano foi dividido em três distintas classificações: as peças psicológicas, as peças míticas e as tragédias cariocas (organizadas em dois volumes). Essa divisão foi realizada pelo crítico e amigo Sábato Magaldi, tendo uma função didática, uma vez que as peças foram agrupadas de acordo com sua temática. Pertencente às peças psicológicas, conforme sugere o próprio nome, Vestido de noiva explora a fundo o quesito psicológico da protagonista Alaíde. A peça tornou-se um marco no teatro brasileiro: inovou desde a linguagem até a encenação dos personagens. Foi por meio dessa peça que Nelson Rodrigues conseguiu de vez integrar-se ao cenário teatral brasileiro. Na primeira montagem, em 1943, o cenário, idealizado por Santa Rosa, optou pela funcionalidade e modernidade. Na iluminação, realizada pelo famoso diretor polonês Ziembinski, utilizaram-se mais de 300 efeitos luminosos, a fim de separar os três planos em que se dividia o enredo. Em complemento à classificação de peça psicológica, defende-se, neste artigo, que também se trata de uma peça de memória, uma vez que apresenta o “eu” exteriorizado pela mente de Alaíde. O principal objetivo do estudo foi estabelecer a relação intermidiática entre a peça Vestido de noiva (1943) e sua tradução para o cinema, realizada em 2006, por Joffre Rodrigues. Para isso, procurou-se investigar a utilização de técnicas experimentais que traduzem os mecanismos da memória como recurso de construção textual na peça. Conforme o objetivo específico anterior, traçouse um paralelo entre as técnicas dramatúrgicas e cinematográficas utilizadas para representar o funcionamento dos planos que correspondem a mente de Alaíde. Peça psicológica e peça de memória O termo peça de memória foi cunhado pelo ensaísta Paul Nolan, em 1983, ao analisar os textos dramáticos de Tennesse Williams e Arthur Miler no artigo Two
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memory plays: The glass menagerie and after the fall. Nolan (1983) postula que a peça de memória difere da peça onírica, do drama expressionista e do teatro tradicional em geral. Trata-se de uma projeção do “eu” que focaliza apenas a ação tal qual é entendida e filtrada pela mente do narrador-protagonista para atingir a raiz da ação propriamente dita: a consciência. A peça de memória traz em cena um jogo diferente com a plateia. O protagonista, cuja memória é acessada, pode “editar” a realidade, pois para a memória não importa como os fatos aconteceram realmente, antes o que prevalece são as impressões que o sujeito tem sobre os fatos objetivos. São possibilidades do fluxo da consciência: explorar o elemento de incoerência em nossos processos conscientes; ignorar fronteiras de espaço e tempo, ou estabelecer novos modelos em lugar dos movimentos diários; buscar análise interna de motivos e impulsos; e, principalmente, acentuar expressões sensoriais (HUMPHREY, 1955). Alguns dos recursos, de uma extensa gama de técnicas dramatúrgicas, utilizados nesse estilo são: flashback, flashforward, epifania, conexões simultâneas de presente e passado, focalizações múltiplas, intrusão de elementos desencadeadores de associações da mente, manejo e fragmentação do tempo. Em Vestido de noiva ocorre o mergulho no interior da mente da protagonista, sendo que a ação ocorre simultaneamente em tempos diferentes, divididos em três planos. O plano da realidade fornece as coordenadas da ação, indicando o tempo cronológico linear do enredo. São elementos essenciais, para o desenrolar da narrativa, que aparecem por meio de flashes. Os outros dois planos – memória e alucinação – passam-se no subconsciente de Alaíde, onde os diálogos e situações resumem-se quase sempre à projeção da mente decomposta de Alaíde, dividida entre o delírio e o esforço ordenador da memória. As informações são colocadas de forma fragmentária, correspondente à mente da personagem, por meio de cenas mudas, pela iluminação, outras vezes pela voz das personagens ao microfone ou sons que invadem o palco. O retrato de Alaíde é construído por meio de episódios biográficos que aparecem no plano da memória: era uma jovem de classe média alta, casada, não precisava trabalhar e o marido era um industrial bem-sucedido. Ela havia se casado com Pedro,
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namorado de sua irmã, Lucia. No entanto, o marido era apenas um troféu que ela conquistara da irmã. Após o casamento, tornou-se uma esposa frustrada. O resgate das lembranças pode ocorrer de diversas maneiras. Conforme assevera Samuel Beckett (2003, p. 31) a memória voluntária corresponde a uma “consulta ao índice remissivo do Velho Testamento do indivíduo”; ela não se interessa pelo “misterioso elemento de desatenção que colore nossas experiências mais triviais. Apresenta-nos um passado monocromático.” (BECKETT, 2003, p. 31). O presente está impregnado de antigas imagens, detalhes de experiências passadas, por isso o que vem à tona pode, muitas vezes, ser infiel às imagens percebidas. Em Vestido de noiva, a personagem Alaíde é representada pela sua própria projeção do “eu”, por meio de sua consciência. A fim de ligar seu presente ao passado, além dos devaneios no plano da alucinação, a personagem é obrigada a abandonar a posição central e a recolocar suas imagens no mesmo plano. Por diversas vezes, Alaíde faz voluntariamente uso de sua memória num esforço de compreender o que se passa: Alaíde – Por que é que eu estou aqui? [...] Alaíde – Aconteceu alguma coisa na minha que me fez vir aqui. Quando foi que ouvi seu nome pela primeira vez? Estou-me lembrando! (RODRIGUES, 2004, p. 115).
Nem sempre as lembranças são consultadas como numa enciclopédia. Beckett (2003) também aborda a respeito da memória involuntária que escolhe seu próprio momento e lugar; é nela que está armazenada “a essência de nós mesmos, o melhor de nossos muitos eus e suas aglutinações”, “a pérola que pode desmentir nossa carapaça de cola e de cal” (2003, p. 31). A memória involuntária é explosiva, “subtrai o útil, o oportuno, o acidental, porque em sua chama consumiu o hábito e seus labores e em seu fulgor revela o que a falsa realidade da experiência não pôde e jamais poderá revelar – o real” (BECKETT, 2003, p. 33). A mente de Alaíde toma proporções gigantescas na peça, recebendo papel de destaque nesta análise, uma vez que a ação é desencadeada pela tentativa da personagem rememorar sua história. No entanto, a partir do momento que ela não tem mais o controle entre lembrança e alucinação, exige-se um nível aprofundado de leitura
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da peça para entender a intenção dramática. Afinal, como pode uma cafetina morta fazer comentários sobre seu próprio assassinato? No plano da alucinação, a perspectiva do inverossímil é permitida. O recurso da divisão dos planos indicados por meio da iluminação ou das rubricas explicativas funciona como um fio norteador para o espectador não se perder na consciência de Alaíde. Entretanto, a distinção entre os planos não obedece a fronteiras rígidas. Na mente em decomposição de Alaíde, os planos da memória e da alucinação por vezes se confundem. O dramaturgo insere no segundo ato uma rubrica explicando que conforme a situação de saúde da protagonista se agrava, sua memória torna-se mais confusa: “A memória de Alaíde em franca desagregação. Imagens do passado e do presente se confundem e se superpõe. As recordações deixaram de ter ordem cronológica” (RODRIGUES, 2004, p. 134). A transposição intermídias: do texto teatral para o filme A versão para o cinema de Vestido de noiva, lançada em 2006, teve como produtor, roteirista e diretor o filho mais velho do dramaturgo, Joffre Rodrigues. A carreira artística do diretor começou cedo, aos nove anos fez seu primeiro papel como ator e, desde então, dedicou grande parte de sua trajetória cinematográfica em produções de obras do pai, sendo Vestido de noiva um projeto que engloba quatro gerações, com duração de sete anos. Tal projeto foi encarado de modo divergente pela crítica: elogiada por alguns como um trabalho de dedicação e seriedade, no qual o diretor se empenhou em reconstruir o texto do pai para o cinema; por outro viés, recebeu a crítica de não criar autonomia para uma linguagem cinematográfica, tornando o diálogo por demais teatral. Conforme declaração de Joffre Rodrigues, no Making of do filme, organizado por Marcelo Gibson, seu objetivo foi manter a essência do texto teatral e convertê-lo para a linguagem do cinema. Por isso, segundo o diretor, a ênfase foi para a atuação, explicando-se a escolha cuidadosa do elenco que desempenhou os papéis principais: Simone Spoladore (Alaíde, a protagonista), Marília Pera (Madame Clessi, a cafetina), Marcos Winter (Pedro, o marido) e Letícia Sabatella (Lucia, a irmã).
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Nesse ínterim, com intuito de promover a análise da versão fílmica de Vestido de noiva, faz-se necessária uma reflexão sobre o surgimento e aplicação da teoria da intermidialidade, além do estudo dos termos transposição e/ou tradução intersemiótica. A obra de Calvin Brown, Music and literature, de 1948, é considerada o documento fundador dos Estudos Interartes nos Estados Unidos. No início desses estudos, a adaptação cinematográfica de textos literários era uma questão abordada como a de tradução e, por isso, com a expectativa de que a adaptação do texto-alvo fosse o mais fiel possível (CLÜVER, 1997, p. 45). A intermidialidade, onde deságuam os Estudos Interartes, refere-se àquilo que é designado amplamente como “artes” entre as mídias e seus textos. Segundo as contribuições de Helbig (1998 apud CLÜVER, 2006, p. 24), intermidialidade engloba pelo menos três formas possíveis de relação: relações entre mídias em geral (relações intermidiáticas); transposições de uma mídia para outra (transposições intermidiáticas ou intersemióticas); união (fusão) de mídias. A transposição intersemiótica trata-se da mudança de um sistema de signos para outro e, normalmente, também de uma mídia para outra (CLÜVER, 2006), assim como acontece com a tradução da peça Vestido de noiva para o cinema. O texto intersemiótico, ainda segundo Clüver (2006, p. 20), “recorre a dois ou mais sistemas de signos e/ou mídias de uma forma tal que os aspectos visuais e/ou musicais, verbais, cinéticos e performativos dos seus signos se tornam inseparáveis e indissociáveis”. O quesito fidelidade é algo mais próximo de uma questão de ideologia porque o signo, como substituto, pode apenas apontar para o objeto, sem o poder de ser fiel ou não (PLAZA, 2003). Na análise da versão fílmica, atenta-se para o fato de que Joffre Rodrigues realiza um roteiro cinematográfico mantendo a linguagem e diálogos da peça, tornando óbvia a forte tentativa de fidelidade entre o filme e a peça. Principalmente, no que se refere ao texto, quando aparece no letreiro de abertura de Vestido de noiva (2006) a seguinte informação: “do universo de Nelson Rodrigues, a JBR filmes e a Paradigma Filmes apresentam a adaptação cinematográfica da peça que deflora a moderna dramaturgia brasileira”. Além de utilizar a palavra adaptação, segue-se o lembrete de que o filme é baseado em uma peça homônima de Nelson Rodrigues.
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Clüver (2006) assevera que, inevitavelmente, toda tradução poderá oferecer menos ou mais do que o texto original, ou seja, haverá cortes, reformulações e acréscimos. Cabe ao tradutor o papel de juiz, tomando as decisões do que será eliminado e a equivalência que precisa ser encontrada. Do mesmo modo, no filme Vestido de noiva, o diretor precisou fazer escolhas no processo de tradução intersemiótica. Mesmo que o roteiro tenha relação estreita ao texto original, prefere-se a utilização do termo transposição ou tradução, ao invés de adaptação. Nas traduções intersemióticas, tornam-se evidentes as diferenças essenciais entre os sistemas sígnicos, sendo possível evidenciar isso pelo estudo das soluções encontradas pelos tradutores. Ainda, o texto-alvo pode e deve ser visto como criação independente, explorando omissões, persistências, transformações, expansões e interferências do texto-fonte (CLÜVER, 1997, p. 43, 45). Pode-se inferir que a versão cinematográfica Vestido de noiva (2006) é realizada por meio da montagem narrativa invertida. Nesse tipo de montagem o desenrolar da sequência dos acontecimentos subvertem “a ordem cronológica em proveito de uma temporalidade subjetiva e eminentemente dramática, indo e voltando livremente do presente ao passado” (MARTIN, 2007, p. 155). O diretor se preocupa em criar uma atmosfera realista, apesar de o plano do bordel (alucinação) parecer impressionista. Não é expressionista porque o espaço é usado como suporte e não como extensão dos personagens. Divisão dos planos no cinema: memória, alucinação e realidade Na primeira cena do hospital, logo após o atropelamento, Alaíde é levada em uma maca e, ao passar pelos corredores, o plano aponta a subjetividade da personagem, a câmera foca no teto sendo observadas cenas com trocas de carícias sexuais entre diversas pessoas (indicativo de alucinação de Alaíde). A cena seguinte é de Alaíde, ainda viva, recebendo os primeiros socorros da equipe médica. A passagem para a próxima cena ocorre por meio de fade-out, técnica que separa as sequências umas das outras, indicando uma mudança de lugar ou passagem do tempo (MARTIN, 2007, p. 87). O fade-out é um recurso que representa uma sensível interrupção da narrativa,
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correspondendo a uma mudança de capítulo. É o que ocorre no filme, um corte brusco na cena do hospital com Alaíde na mesa de cirurgia para a cena seguinte, em que a personagem aparece tocando a campainha de uma porta pesada de madeira. Para surpresa, quem atende a porta é Pedro travestido em um funcionário de bordel. Um dos grandes indícios do plano da alucinação é a indumentária de Alaíde quando foi atropelada: um tailleur cinza. Ainda nessa sequência, observam-se espelhos na entrada do bordel que deformam as imagens de Alaíde quando passa para a sala principal, indicando a exteriorização do “eu” da personagem. Um recurso encontrado para explorar o plano da alucinação no bordel é o tratamento da cor utilizada em função dos valores e da implicação psicológica de Alaíde, uma vez que a imagem recebe um escurecimento no segundo plano do cenário, enquanto a imagem das personagens em primeiro plano recebe um maior foco de luz. A música que sai da vitrola durante a conversa com a cafetina é mais um indicativo do plano da alucinação, pois a mesma música se repete em outras tomadas ao longo do filme, fazendo o espectador rememorar o cenário do bordel. Alaíde está em busca de Madame Clessi. O espectador pode ficar confuso, a princípio, quando a cafetina aparece no bordel, mas ela já fora mencionada no início do filme, estabelecendo a relação de projeção criada por Alaíde enquanto lia os diários da cafetina. Conforme Marcel Martin (2007, p. 164) existe o estabelecimento de uma regra geral de que todo procedimento de expressão fílmica “é válido desde que psicologicamente justificado” independente de “sua inverossimilhança material”, ou seja, é justificado desde que possua função dramática. O encontro entre as duas é possível somente na alucinação de Alaíde. Aliás, a sequência do bordel é intercalada por cinco cenas de Alaíde no hospital, também utilizando a técnica do fade-out, que corresponde a uma mudança de tempo e espaço. Essa foi a estratégia encontrada pelo diretor a fim de deixar clara a separação entre realidade e alucinação. Além da vestimenta de Alaíde, a indumentária de Madame Clessi é outro indício dos acontecimentos no plano da alucinação. A prostituta aparece usando um longo vestido de seda branco, as joias são todas com pérolas brancas, há só um adereço vermelho em seus cabelos. O detalhe em vermelho também aparece nos botões do comportadíssimo tailleur cinza de Alaíde. O significado simbólico da cor vermelha
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possui sentido ambivalente, uma vez que pode referir-se a cor da vida, do amor, do calor, da paixão e da fecundidade. Por outro lado, pode simbolizar a cor da guerra, do poder destruidor do fogo, do derramamento de sangue e do ódio (LEXICON, 1997). Neste caso, ao se analisar a representação do vermelho na indumentária das personagens, faz-se necessária uma fusão entre os significados. Além da paixão e do desejo de vida tanto em Alaíde quanto na cafetina, também se observa a representação da destruição e morte, uma vez que elas provocam desavenças familiares e amorosas na trama. Madame Clessi é assassinada por razões passionais, quando o rapaz de 17 anos com quem tinha um caso amoroso descobre que ela pretendia deixá-lo. Por sua vez, Alaíde provoca a discórdia entre ela e Lucia por causa de Pedro, sendo depois atropelada por um carro, ficando explícito que se tratava de uma trama entre o marido e a irmã. Pedro, o marido já apresentado no início do filme, aparece na sequência do bordel primeiro como funcionário afeminado, depois como cliente que a acusa de assassina. Alaíde tenta se lembrar de quem é esse rosto, suspeitando que havia matado seu marido. Nesse sentido é que Madame Clessi tem um papel fundamental, uma vez que ajudará Alaíde a recuperar suas lembranças. Uma das cenas em que se observa o plano da memória é de Alaíde vestida de noiva conversando com Pedro no quarto. A sequência é entrecortada por Alaíde conversando com Madame Clessi no bordel, ambas usando indumentária da alucinação, especificada anteriormente. Nesta cena, Lucia participa da conversa. Após a saída de Pedro, as irmãs estão posicionadas em frente a um espelho, Alaíde está sentada na penteadeira e Lucia em pé por trás da irmã, sendo que a câmera capta o reflexo das duas no espelho. Conforme Marcel Martin (2007, p. 67) tal recurso pode ter duas funções simbólicas: representar uma janela aberta para um mundo misterioso e angustiante, ou então pode ser uma testemunha impassível e cruel das tragédias humanas. Nesta cena ocorre uma grande discussão entre as irmãs, visto que Alaíde está prestes a se casar com o ex-namorado de Lucia, ambas exteriorizam toda raiva e frustação que sentem em virtude da disputa pelo mesmo homem. Alaíde admite que roubara o namorado da irmã, que por sua vez, revela que ainda se encontra secretamente com ele e ameaça que Alaíde poderia desaparecer misteriosamente. Esta não se abala com a declaração, pois, a
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seu ver, era a vitoriosa, pois Pedro a escolhera para se casar, enquanto Lucia seria apenas um caso. Logo após, temos um corte e o plano se passa em um velório de uma mulher, que mais tarde, pelas pistas fornecidas, leva-se a conclusão de que é o velório de Madame Clessi. A cena da discussão no quarto (lembrança) é intercalada pela cena do velório (alucinação). A equivalência do diretor para apontar esse momento transferido é uma cena em que aparecem a silhueta de Alaíde e Madame Clessi passeando na praia (alucinação). A partir daqui há uma mistura de casamento com funeral apontando a desagregação da mente de Alaíde, que se afirma confusa, misturando passado e presente. Não se separa mais memória de alucinação, tanto que os fatos tornam-se inverossímeis ao espectador, mas já foi acordado que os fatos se passam na realidade e na alucinação. Da metade para o final há uma tomada em uma igreja, na qual Alaíde e Lucia aparecem usando o mesmo modelo de vestido de noiva: Lucia entra para impedir o casamento e rouba o noivo da irmã. Madame Clessi também está na igreja, assistindo toda confusão, um claro indício do plano de alucinação. A mudança para o plano de realidade é indicado por um corte em que estão em cena Pedro e duas prostitutas, num quarto barato de hotel. O barulho de telefone tocando é outro prenúncio da realidade. Pedro ouve a notícia de que a esposa foi atropelada e vai até o hospital. Na sequência, a alternativa encontrada pelo diretor a fim de sobrepor os planos foi, por três vezes, intercalar cenas entre igreja (alucinação) e o hospital (realidade). A cena perde função no filme, tornando-se repetitiva e desnecessária, talvez devido à armadilha da tentativa de fidelidade ao texto dramatúrgico. No texto teatral essa intercalação ocorre inúmeras vezes entre os planos, mas não foi encontrada outra alternativa no cinema, por isso, nesse exemplo a tradução não foi bem-sucedida. Ainda na cena da igreja, em que se passa o plano da alucinação, o pai de Alaíde é representado como um padre afeminado, um recurso irônico acrescido no roteiro cinematográfico que, no entanto, não teve uma boa aplicação cênica. Uma das características da obra rodriguena é o grotesco, porventura pode ter sido essa a tentativa do diretor, mas não teve função dramática, tornando-se um aparte incoerente.
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Após declarada a morte de Alaíde, uma cena muito bem explorada é o travelling que enquadra em primeiríssimo plano os olhos de Lucia, enquanto em voice over é reproduzida a voz de Alaíde. Mas sobretudo a câmera sabe esquadrinhar as fisionomias, lendo nelas os dramas mais íntimos, e essa decifração das expressões mais secretas e fugazes é um dos fatores determinantes do fascínio que o cinema exerce sobre o público (MARTIN, 2007, p. 39).
O close tem o poder de manifestar a significação psicológica e dramática da cena, sendo que o plano do rosto humano, aqui em especial, os olhos de Lucia tem um poder dramático que não poderia ser expresso melhor. Além disso, ocorre um realce dos acontecimentos em virtude da morte de Alaíde, uma vez que Lucia desejava a morte da irmã e agora passa por uma crise de consciência. Na sequência da ação aparecem Pedro e Lucia conversando no velório, tornando-se evidente que Pedro planejou a morte da esposa para ficar com Lucia, conivente com tudo que ocorrera. Entretanto surge uma indagação observada na tradução fílmica: por que aparecem Clessi e Alaíde na cena do velório, usando o mesmo traje de quando estavam na alucinação, já que se subentende que Alaíde morreu? Seriam fantasmas das duas que rondam os que continuam vivos ou, de fato, são aqueles minutos finais em que o corpo é decretado como morto pela equipe médica e a mente de Alaíde ainda permanece em funcionamento, indicando um prolongamento da alucinação? Prefere-se adotar a segunda hipótese, a de que mesmo depois de declarada como morta prolonga-se a projeção de sua mente, ou seja, alucina como seria seu velório e o desfecho do caso amoroso entre Pedro e Lucia. Conclusão A dramaturgia e o cinema são, obviamente, sistemas sígnicos diferentes, o que indica escolhas a serem feitas pelo tradutor. Coube a Joffre Rodrigues, responsável pela versão fílmica de 2006, o papel de juiz. No processo criativo, houve, certamente, o momento em que as equivalências e correspondências foram avaliadas, e, como o próprio diretor afirmou, essas escolhas foram alicerçadas na tentativa de fidelidade ao texto-fonte.
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Durante a análise procurou-se traçar um paralelo entre as técnicas dramatúrgicas e cinematográficas a fim de representar o fluxo entre os planos. Assim sendo, na peça isso foi demarcado com as informações nas rubricas por meio de: efeitos luminosos, vozes ao microfone, barulhos externos e cenas mudas. Por outro lado, no filme foi indicado por meio da indumentária, da música, do cenário e do tratamento da imagem. Torna-se evidente que o bordel corresponde à alucinação de Alaíde, uma vez que é plano de fundo de seu encontro com a cafetina morta. Em alguns momentos, a busca do diretor pela fidelidade ao texto-fonte causou problemas práticos, o que resultou em perda de carga dramática, por meio de repetição de cenas que funcionam muito bem no texto dramatúrgico, mas não no roteiro cinematográfico. Referências BECKETT, S. Proust. Trad. Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac&Naify, 2003. BERGSON, H. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. CLÜVER, C. Da transposição intersemiótica. In: ARBEX, M. (Org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2006, p. 107-166. ______. Estudos interartes: conceitos, termos objetivos. In: Literatura e sociedade: Revista de teoria literária e literatura comparada. São Paulo: Universidade de São Paulo, n. 2. 1997, p. 37-55. ______. Inter textus / inter artes / inter media. Aletria: Revista de Estudos de Literatura. v. 14, n. 1. 2006, p. 10-41. EISENSTEIN, S. A forma do filme. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
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HELBIG, J. Der rezipient als cybernaut: Gedanken zur poetik des elektronischen romans. In: HELBIG, J. (Org.). Intermedialität: Theorie und Praxis eines interdisziplinären Forschungsgebiets. Berlim: Erich Schmidt Verlag, 1998. p. 81-92. HUMPREY, R. O fluxo da consciência. Trad. Gert Meyer. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976. LEXICON, H. Dicionário de símbolos. Trad. Erlon José Paschoal. São Paulo: Cultrix, 1997. MAGALDI, S. Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações. São Paulo: Perspectiva, 1992. MARTIN, M. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Brasiliense, 2007. PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003. RODRIGUES, N. Nelson Rodrigues: teatro completo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004. v. 1. VESTIDO de noiva. Direção de Joffre Rodrigues. Brasil: Riofilme, 2006. 1 dvd (111min).
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RELIGIÃO EM PAUTA EM KIMPA VITA, A PROFETIZA ARDENTE DE JOSÉ MENA ABRANTES. Cínthia Renata Gatto Silva (UEL)1 Introdução Neste trabalho proponho uma leitura do texto dramático Kimpa Vita, a profetiza ardente privilegiando os seus momentos de embate cultural e refletindo sobre seus temas principais: a reinvenção da religião católica através do olhar africano, o sincretismo com as religiões tradicionais e como esse processo levou a uma releitura do papel do colonizador e do colonizado contrariando as figuras fixas submersas no imaginário ocidental(izado). A peça é do multifacetado José Mena Abrantes (1945-), simultaneamente dramaturgo, encenador e produtor de teatro, com dezoito peças publicadas e um grande número de realizações teatrais. Nascido em Angola, em 1945, licenciou-se em filologia germânica. Atualmente trabalha com o grupo Elinga Teatro. O texto que discutimos neste trabalho é uma das seis peças classificadas pelo autor como “histórico-fantasiosas”, que se enquadram naquilo que Hutcheon classificou como “metaficção historiográfica”. São textos que recriam períodos históricos valendose da imaginação e da interpretação, podendo recorrer aos documentos disponíveis sobre o período a ser recriado – e no caso da encenação, revivido. Não se trata de uma descrição e não se almeja estabelecer verdades sobre o passado, mas abrir possibilidades infinitas recusando uma cristalização da história, subvertendo a versão Oficial, aquela que almeja ser a única versão dos fatos. As metaficções se abrem à pluralidade, buscam revelar o avesso da história. Procura-se reverter à noção de “fatos”, preferindo a noção de “versão”. A interrogação que se faz é: de quem é a “versão” que se conta e não mais qual é o “fato” verdadeiro?
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Pesquisa financiada pela CAPES.
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Na peça estudada as datas e fatos históricos específicos correspondem à versão oficial. No entanto, os diálogos são recriados em uma linguagem contemporânea, indicando que a mensagem se dirige ao tempo atual, pouco se interessando pela fidelidade ao inacessível passado. Não se trata de “ensinar” o passado, ou de retomá-lo devido ao interesse de conservar um legado ou patrimônio. O que se procura no passado é o que pode revelar ao presente, assim, no argumento da peça Abrantes menciona:
A acção da peça decorre no princípio do século XVIII. Não é preciso fingir que sabemos muito sobre a época, concretamente sobre a linguagem, o vestuário, a gestualidade, etc. Basta que sejamos apenas minimamente verossímeis e convincentes na forma como levamos esta peça à cena. (ABRANTES, 2013, p.127).
Este argumento não deixa dúvidas: o passado é inacessível, e só é possível recria-lo através de especulações e da imaginação. Este passado está, contudo, ainda presente nas sociedades africanas, pois a empreitada colonial deixou marcas profundas nas organizações sociais, contradições de um choque cultural que vem sendo superadas, mas, o legado de miséria e discriminação deixado pelo colonialismo ainda não foi superado totalmente. Isso explica a recorrência do tema na literatura angolana da atualidade. Recriar o passado é, antes de tudo, uma tendência pós-moderna, é a tentativa de dar voz ao silenciado, ação ao oprimido, liberdade ao enclausurado. No caso da literatura angolana, é o próprio oprimido que liberta a sua voz, reconta a sua história e reivindica o direito a ter a própria história: uma história na qual a ótica africana prevaleça.
Reinvenção do catolicismo: o contexto híbrido de Kimpa Vita. Não é preciso dizer aqui que as informações que temos a respeito do reino do Congo são, em sua maioria, registro de europeus, principalmente viajantes, missionários
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e cronistas. A memória cultural de boa parte dos povos africanos era passada adiante através da oralidade e de visões particulares as quais não temos acesso. É interessante notar que vários povos africanos possuíam escrita, aliás, as mais antigas formas de escrita são africanas. No entanto, apesar de possui-la privilegiava-se a fala. Os africanos exaltavam a fala, a memória, todo um patrimônio cultural que não foi devidamente registrado. Ainda assim, alguns estudiosos se empenharam bastante nos últimos tempos em analisar o reino do Congo de uma maneira mais imparcial, procurando entender o contexto de um ponto de vista menos etnocêntrico. A heroína nasceu em 1680 e viveu em um contexto religioso híbrido: católico e banto ao mesmo tempo. A jovem, conforme a peça indica e a história comprova, era de família nobre congolesa. De educação católica, em meados de 1700 afirma ter sofrido de estranha doença, falecido e ressuscitado como Santo Antônio: ela dizia que o santo possuía a sua mente, e era durante esse transe que pregava à população em prol do Congo. Kimpa Vita pertencia a um contexto no qual o reino do Congo já havia perdido a sua unidade e soberania. A antiga capital, Mbanza Congo, posteriormente chamada de São Salvador, era um dos centros da disputa. O objetivo principal da luta de Kimpa Vita, que ela dizia ser inspirada por Santo Antônio, tratava de devolver a soberania do reino do Congo ameaçada por Portugal e pelos poderes mais representativos do contexto, apresentados na peça por meio de três figuras: o padre, o comerciante e o militar. Um dos principais questionamentos de Kimpa Vita diz respeito à intromissão dos missionários no reino do Congo, e critica os seus interesses materiais pela terra: “esse padre, enquanto nos diz para esquecermos os bens materiais, está sempre com perguntinhas sobre se há ouro ou prata por estes lados” (ABRANTES, 2013, p.132). A peça mostra o conluio entre os três poderes, unidos em prol de seus interesses. No Reino do Congo, houve um gigantesco movimento de catolização no final do século XV e também de aportuguesamento das relações políticas. Contudo, o país manteve também os seus antigos costumes e sua religião juntamente com as novidades da Metrópole. Não é possível, portanto, imaginar dois mundos separados, o da tradição e o da modernidade. Balandier (1969) rompe com um discurso sociológico dualista entre tradição e modernidade, e a sua visão “revela que o homem das sociedades
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chamadas dualistas não organiza sua existência situando-se alternativamente em face de dois setores separados e regidos, um pela tradição, outro pela modernidade” (p.166). Nesta perspectiva, a religião de Kimpa Vita não é propriamente a católica e também não se resume a religiosidade tradicional, é o que nasce da dialética entre esses modos de ver o mundo. Não é possível se situar ora em um modo de ver as coisas, ora em outro. Surge um novo modo de compreender a realidade, que poderíamos chamar de africanização do catolicismo. A africanização do cristianismo deu-se por uma releitura banto da religião católica, pode-se dizer que o movimento de Kimpa Vita nasce da dialética entre tradição e modernidade. É por isso que o Cristo de Kimpa Vita é negro: “dessa nossa madeira escura, dura como o ferro. Deus de certeza que é negro. (pausa para refletir). E mesmo Cristo não nasceu em Belém, mas aqui em Mbanza Congo...” (ABRANTES, 2013, p.137). O Deus e o Cristo dos congoleses não pode ser aquele que o ocidente desenhou a sua imagem e semelhança. É necessário um Deus com o qual as pessoas se identifiquem. Considerada responsável pela alienação humana, à religião também demonstra ser um elemento poderoso de resistência. Na peça de Mena Abrantes e na história da colonização, a religião é capaz de mover as pessoas em determinadas direções. A religião é arma do colonizador, que a utiliza para manipular o colonizado, mas também é arma do colonizado, que mantém suas raízes tradicionais como forma de resistência. Kimpa Vita é um exemplo de que os estereótipos não dão conta de descrever o mundo colonial, pois se tratam de relações complexas demais para que se possa reduzir colonizador e colonizado, enquanto sujeitos ativos/passivos, modernos/tradicionais, primitivos/civilizados. São os princípios do Cristianismo, aliados a visão tradicional de mundo que dão a Kimpa Vita o tom de seu discurso: Kimpa Vita: (gritando). Mazinga Mlolo! Mazinga Mlolo! O reino do Congo vai renascer! O reino do Congo vai voltar a estar unido! Mazinga Mlolo! (com voz firme). Vim agora mesmo do céu. Deus e Santo António disseram-me para não suportarmos mais tantas guerras e tanto sofrimento, temos de nos organizar e unir para por fim à luta dos que querem ocupar pela força o trono do nosso reino. O rei D. Pedro IV foi feito prisioneiro pelos padres no monte Kibangu. Temos
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de o libertar para ele voltar aqui para o Mbanza Congo, onde estão enterrados os nossos pais e os pais dos nossos pais e onde sempre estiveram todos os Ntotilas. Se ele continuar a recusar vamos escolher outro. (ABRANTES, 2013, p.146)
Há uma nítida reversão do discurso colonial, sempre pautado no estereótipo: “um aspecto importante do discurso colonial é as dependência de “fixidez” na construção ideológica da alteridade”. (BHABHA, 1998, p.105). O discurso colonial fixa o nativo enquanto ser degenerado, primitivo, irremediavelmente pecador. Esta fixidez é combatida e revertida por Kimpa Vita, que prega um discurso semelhante contra os missionários: Santo António/ Kimpa Vita. Vão e queimem tudo o que pertence a esses servidores do diabo! Acendam fogueiras em todos os vales, montes e florestas! As raízes das árvores queimadas vão transformarse em outro e prata; e das cinzas das cruzes e das ruínas das casas dos ‘nkadi-a-mpemba’ vão surgir minas de pedras preciosas. O fogo há de nos mostrar o caminho do céu e a face escondida de Nzambi-aMpungu. E eles, os nossos inimigos, hão de arder sem piedade nos incêndios que nós atearmos. Do norte ao sul, do leste ao oeste, a terra dos nossos antepassados vai voltar a estar unida” o nosso reino vai renascer” Mazinga Mlolo! Mazinga Mlolo! (ABRANTES, 2013, p.146).
No segmento deste texto, refletiremos acerca da diferença de perspectiva dos discursos de colonizador e colonizado. É preciso compreender, portanto, que não são apenas dois modos de organização que são colocados em confronto, mas sim, identidades. Com isso queremos dizer que não é possível compreender os aspectos sociológicos do embate ignorando os psicológicos. É necessário procurar, no discurso do colonizador, do nativo “assimilado” e do nativo resistente os elementos que nos permitem compreender toda a complexidade do jogo colonial. Um choque cultural: o olhar do outro. Na peça fica evidente o choque entre mundos culturais bastante díspares e as consequências de tal embate nas mentalidades dos africanos e dos europeus, e nas consequentes ações que realizam de acordo com esse entendimento. Quanto às personagens africanas, há reações distintas, mais ou menos combativas, porém, com
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uma característica comum: não é possível desfazer completamente os laços com a cultura nativa, aquela perpetuada pelo círculo social e ensinada pela família, ainda que este seja o desejo do indivíduo. O nativo assimilado, portanto, não o é tanto quanto gostaria. Quer o indivíduo deseje, ou não, sua visão de mundo não se apaga completamente. A identidade não se oblitera conforme almejam os colonizadores, e o que acaba acontecendo é a criação de uma nova “realidade” formada a partir do choque entre a tradição e os novos conceitos advindos da invasão. Aparentemente, no choque de realidade,, há uma simbiose cultural na qual prevalece ora o que chamamos de tradição, ora o que chamamos de modernidade, a primeira correspondendo às práticas existentes antes da chegada dos colonizadores, e a segunda aos novos conceitos trazidos por eles e, por força das circunstancias, esses novos conceitos são antes imposições do que trocas culturais. Contudo, o ser humano não é capaz de situar-se entre dois mundos e manterse unificado. É no terreno instável do choque cultural que se situam as identidades do colonizador e do colonizado. Os conceitos de tradição e modernidade devem ser vistos em tal complexidade. Eles não são de tão fácil delimitação. Balandier (1976) discute qual o problema em ver o mundo de uma forma dualista: ou tradicional (autóctone, estático, avesso à mudanças) ou moderno (estrangeiro, progressista) e por consequência, compreender o progresso como propriedade das nações ocidentais: Tal maneira de ver, largamente compartilhada, gera uma concepção “dualista”, que delimita os domínios da tradição e da modernidade, respectivamente: a primeira aparece como integralmente autóctone e define as configurações anteriores aos relacionamentos externos; a segunda aparece como estrangeira e resulta, principalmente, de tais relacionamentos. A teoria indígena, tal como se exprime nos planos das comunidades camponesas, pode parecer justificar essa interpretação: o ordenamento do espaço rural e as práticas são atingidos por um tal dualismo, e determinados modelos novos são, parcialmente recusados, na medida mesmo em que tidos como estrangeiros. Uma análise mais avançada mostra amiudamente que a realidade não se compadece com essa concepção simplificadora. Permite compreender a dialética que age entre um sistema tradicional (degradado) e um sistema novo (determinado do exterior) e faz surgir um terceiro tipo de sistema sociocultural, instável mas portador da modernidade autêntica
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Para melhor compreensão utilizamos o conceito de cultura proposto por Said (2011) em uma das duas acepções propostas pelo estudioso, aquela que define cultura como “todas aquelas práticas, como as artes de descrição, comunicação e representação, que têm relativa autonomia perante os campos econômico, social e político, e que amiúde existem sob formas estéticas, sendo o prazer um dos seus princípios objetivos.” (p.10). Assim, compreender a cultura como prática nos ajuda a compreender a maioria da desconfiança dos europeus em relação aos africanos. Mas, a segunda acepção proposta por Said (2011) complementa o aqui exposto, ele diz que a cultura também pode ser compreendida como “...um conceito que inclui um elemento de elevação e refinamento, o reservatório do melhor de cada sociedade, no saber e no pensamento...” (p.11), e, quando é assim compreendida a cultura é “uma fonte de identidade, e aliás bastante combativa, como vemos em recentes “retornos” à cultura e à tradição”. Considerações finais
A intenção de Mena Abrantes, ao escrever uma peça de Kimpa Vita é a de revitalizar uma figura emblemática, de enorme importância para compreendermos o processo de invasão da África, que apesar da colonização, propriamente dita, iniciar-se no século XIX, vinha sendo preparada há tempos. Contudo, nem todos os autores concordam em associar o movimento Antoniano ao anticolonialismo, até porque, segundo eles, essa seria uma visão extemporânea. O significado do movimento é complexo demais para ser discutido neste trabalho, no qual me limito a realizar uma leitura da peça de Mena Abrantes que considero não desvincular de todo a ação de Kimpa Vita do anticolonialismo, assim como John Thornton, principal estudioso que levo em conta em minha pesquisa. Também é muito relevante discutir um movimento de tamanho impacto no Reino do Congo, e talvez a pouca importância que se tem dado ao estudo desse período e do movimento Antoniano se dê por conta tanto dos preconceitos de certos conservadores em relação ao movimento, considerado herético, demoníaco, como
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também devido a pouca “vontade” de certa historiografia oficial dominante sempre teve ao falar da resistência no continente africano. Questionar esse olhar enviesado da historiografia é um dos objetivos principais da literatura que retorna a história. Retorna para interroga-la, para perguntar quem é que está contando e reivindicar o direito de que outras versões dos fatos possam vir à tona.
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Referências
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ANA CRISTINA CESAR E O REAL: A POESIA EM TEMPOS DE DITADURA Clarissa Loyola Comin (UFPR)1
1. Apresentação
Considerada pela crítica literária como um dos nomes mais relevantes da geração marginal, Ana Cristina Cesar apresenta um percurso de ascensão particular. Advinda de uma família intelectualizada, cujo pai era sociólogo e a mãe professora, travou um contato precoce com amplos repertórios artístico-culturais. Antes de aprender a escrever Ana Cristina já “[d]itava seus poemas à mãe, que os punha em forma caligráfica” (MORICONI, 1996, p. 75). Com o passar do tempo, ela se envolveu na edição de jornaizinhos na escola e na igreja presbiteriana que frequentava com a família, nos quais costumava publicar poemas. Os poemas chamavam atenção pelo léxico sofisticado para uma menina de doze anos. Seu referencial teórico-literário se expandiu quando, aos 17 anos, partiu para a primeira imersão no estrangeiro – um intercâmbio de um ano na Inglaterra –, de onde voltou com um repertório diferenciado: Emily Dickinson, Sylvia Plath, Katherine Mansfield, T. S Elitot e Ezra Pound. Após esta experiência ingressou no curso de Letras da PUC-RJ, no qual passou a se dedicar com afinco à produção poética e acadêmica, colaborando para diversas publicações, como a Folha de S. Paulo e o Jornal do Brasil, e para os periódicos culturais Opinião e Beijo. Em 1978, iniciou o mestrado na Escola de Comunicação da UFRJ e defendeu uma dissertação sobre a relação da literatura brasileira com o cinema documentário, com o título Literatura não é documento. Concluída esta etapa, a poeta dá continuidade à carreira acadêmica. Volta à Londres, em 1979, para um segundo mestrado, na Universidade de Essex, dessa vez em teoria e prática de tradução literária. Lá desenvolveu um trabalho crítico e prático a partir da tradução do conto “Bliss”, de Katherine Mansfield. Em 1981 retornou ao Brasil e trabalhou para a Rede Globo como leitora e avaliadora de novelas. Prosseguiu
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Mestranda em Estudos Literários na UFPR. Bolsista CNPQ. E- mail: [email protected]
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paralelamente com a atividade jornalística, crítica e poética. Os últimos anos de sua vida foram marcados por uma forte depressão, que acabou levando-a a cometer suicídio em 29 de outubro de 1983.
2. O lugar de Ana Cristina Cesar na geração marginal
Em seu artigo “A poesia marginal”, Heloisa Buarque de Hollanda define poesia marginal como um acontecimento cultural que, por volta de 1972-1973, teve um impacto significativo no ambiente de medo e no vazio cultural, promovidos pela censura e pela violência da repressão militar que dominava o país naquela época, conseguindo reunir, em torno da poesia, um grande público jovem(...) (HOLLANDA, 2009) [grifo nosso].
O cuidado que a crítica demonstra ao abordar o tema fica claro pela escolha da palavra acontecimento, e não movimento, vanguarda ou fenômeno; embora tenha sido também contemporânea aos acontecimentos do que fala, percebemos em suas reflexões uma parcimônia crítica marcada pelo distanciamento crítico. Evitando encarar a poesia marginal como um conjunto de ações organizadas exteriormente ao contexto cultural da época, como que formando uma postura reflexiva diante deste, seja para resolver alguns dos impasses locais, seja para direcionar a inteligência nacional, descrever o que ali se passou como acontecimento traz a ideia de algo que estava no ar, e que aconteceu devido a um conjunto de circunstâncias. O que por fim uniu este grupo de poetas não foi um manifesto, um plano piloto ou uma postura política. Foram circunstâncias mais amplas: a ausência de engajamento político-partidário, a marginalidade que o grupo experimentava junto aos mercados editorias e certo descaso que exibia diante das ditas “grandes obras” do cânon literário (Hollanda, 2009). Foi neste contexto que despontou Ana Cristina Cesar. Sua estreia oficial aconteceu na antologia 26 poetas hoje, que reuniu também poemas de outros marginais, como Chacal, Waly Salomão e Roberto Piva. A poeta, apesar de dividir com os contemporâneos vários dos traços essenciais da geração marginal, destoa do restante
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dessa produção tanto em aspectos formais como conteudísticos. Nas palavras de Ítalo Moriconi:
A crítica literária contemporânea é unânime em classificar o texto de Ana Cristina como excêntrico em relação ao tipo de poesia que notabilizou sua geração e que passou para os manuais de literatura sob o rótulo de “poesia marginal”. (MORICONI, 1996, p. 8)
O procedimento de Ana Cristina Cesar em relação aos eixos temáticos da poesia marginal é basicamente a seguinte: ao eleger temas caros aos marginais, como o exercício da poesia do “eu” e a abordagem de temas triviais do cotidiano, ela os trata de maneira
inusitada,
criando
uma
espécie
de
contato
divergente
com
seus
contemporâneos. Sua dicção destaca-se, em primeiro lugar, devido ao seu alto nível de sofisticação. Enquanto a maioria dos poetas marginais encarava a tradição literária com indiferença ou descaso, Ana demonstrava uma cuidadosa leitura da tradição - tanto a de língua portuguesa como a de língua inglesa - bem como uma notável re-apropriação do material ali presente, o que levou à conformação uma voz poética autônoma e singular.
3. Características da poética de Ana Cristina Cesar
Listamos características que nos parecem definidoras da dicção da poeta. Algumas são particularmente originais, enquanto outras apenas a colocam na esteira de uma certa filiação à poética brasileira. São elas: a) A ironia metapoética: É a partir dela que o eu lírico pode se apresentar como instância meramente ficcional do poema e denunciar, ao mesmo tempo, sua natureza “estratégica” de elaboração diante do leitor. Exemplo deste uso pode ser visto no poema “Este livro”, no qual o eu lírico diz: “Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do/coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two/ total, tilintar de verdade que você seduz” (CESAR, 1987, p. 26). O excesso de intimidade forjada espanta o leitor que, na sequência, percebe seu uso como puramente irônico e falsamente confessional. b) Falso confessional: Coloca-se com a exposição forjada da intimidade do eu lírico e dos outros sujeitos ao seu redor, abordando sem reservas temas que vão da sentimentalidade à sexualidade. Para obter este efeito, temos o uso de
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registros discursivos diretamente relacionados à intimidade e à convivência próxima como: cartas, diários, cartões postais e bilhetes. Há poemas em que dados da vida pessoal da poeta surgem como falsos indícios de realidade, como no poema “Nestas circunstâncias o beija-flor vem sempre aos milhares”, em Cenas de Abril. O eu lírico começa “Este é o quarto Augusto. Avisou que vinha.” Segundo a biografia da poeta, sabemos que ela namorou quatro rapazes de nome Augusto. Logo, isso poderia estabelecer o aspecto confissional deste poema. Mas o jogo pretendido é a desestabilização do leitor; c) Intertextualidade: Forma de diálogo literário e cultural, que se manifesta através de referências mais ou menos explícitas aos discursos externos, advindos tanto da cultura popular quanto da tradição literária. Herança do modernismo de 1922, este recurso foi amplamente assimilado e reapropriado pelos poetas das gerações seguintes, e inclusive pelos contemporâneos de Ana Cristina Cesar. No poema de abertura de A teus pés vemos: “Billy the Kid versus Drácula./Drácula versus Billy the Kid.” (CESAR, 1987, p. 7), em que a referência à cultura popular repousa na menção ao notório assassino e pistoleiro fora-da-lei, William Henry McCarty Jr., o Billy the Kid, e à cultura erudita na figura de Drácula, remetendo diretamente ao romance de Bram Stoker, de 1897, mas também pasteurizado pela cultura popular após suas várias aparições no cinema. d) O feminino: Este tópico não é inédito na poesia brasileira, mas acreditamos que a maneira pela qual Ana Cristina Cesar o aborda merece atenção. A poeta não apenas tematiza e ilustra o feminino, mas também problematiza-o, lançando sobre ele um olhar crítico. Longe de praticar literatura feminista, Ana Cristina Cesar estava preocupada em trazer à tona as contradições, os joguetes, as inconstâncias e outras nuances particulares do universo feminino. O meio acadêmico e cultural em que circulava era ocupado majoritariamente por figuras masculinas. Como bem sinaliza Moriconi, Ana teve de aprender a lidar com esta preponderância, ainda que isso tenha lhe custado bem caro, pois um dos grandes impasses de sua vida foi querer ocupar um lugar no universo intelectual e ao mesmo tempo preservar a especificidade da condição de mulher, desenvolvendo uma reflexão, uma prática e sobretudo uma estética que representassem um abalo na divisão tradicional de lugares entre os gêneros. (MORICONI, 1996, p. 71).
e) Tensão entre o real e o ficcional: O esgarçamento está presente em boa parte da produção de Ana Cristina. É esta tensão que gera o falso confessional, já mencionado
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anteriormente. Com tal tensionamento, a poeta pretende provocar um estranhamento junto aos seus leitores, embaralhando os limites entre as duas instâncias. Marcos Siscar, ao analisar a obra poética de Ana Cristina, ressalta que: “sinceridade não existe, no sentido da continuidade entre o que se sente/pensa e o que se diz: é nisso que insiste Ana C., em consonância com os imperativos que reconhece para a poesia de sua época” (SISCAR, 2011, p. 50). A sinceridade aqui é nada mais que a possibilidade de transmitir e elucidar para um outro os sentimentos que dirigem as ações do eu lírico; o trabalho com a linguagem, nos poemas que abordam tal problemática, se dá como se tal sinceridade fosse impossível pelo próprio fato de ter que passar pelo crivo da expressão. Sendo o sentir/pensar e o expressar duas instâncias diferentes, temos que a passagem de uma para outra só pode resultar em interferência. A estratégia poética de Ana Cristina consiste em jogar com essa interferência, mostrando a construção essencialmente ficcional que se põe no tipo de expressão que consideramos ser justamente a mais “real”.
4.
O lugar de Ana Cristina Cesar na tradição poética brasileira
A fim de estabelecer uma ponte entre Ana Cristina Cesar e a tradição poética nacional, cabe recuperarmos algumas figuras poéticas notórias, seja para marcá-las como personagens simpáticos ou antipáticos ao trabalho desenvolvido pela poeta. Pensando em termos de filiação explícita, o principal nome é o de Manuel Bandeira. Em sua tese Maria Lúcia de Barros Camargo demonstra esta forte ligação e seus desdobramentos: Ana Cristina sabe, e talvez tenha aprendido com Bandeira, que a poesia está em tudo, nos amores e nos chinelos, nas coisas lógicas e disparatadas. A questão, no entanto, é descobrir seu próprio “tudo”, seu modo de fazer poesia e sua própria forma de viver. (CAMARGO, 2003, p. 103)
Na sequência, ainda considerando esta aproximação, Maria Lúcia complementa:
A leitura de Bandeira fertiliza a poesia de Ana Cristina e norteia sua busca, como se pode ver em alguns detalhes: aproveitamento
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temático, exercício da rima toante e do verso livre, liberdade poética. Mas, acima de tudo, a busca da poesia, mais tarde, irá se dar no limite entre a construção e a expressão espontânea, na relação com o cotidiano e, como decorrência, no limiar entre a confissão e a literatura. (CAMARGO, 2003, p. 110)
Alfredo Bosi também caracterizou a obra poética de Bandeira “pela prática de um lirismo confidencial, auto-irônico”, conformando “um dos melhores poetas do verso livre em português [...] talvez o mais feliz incorporador de motivos e termos prosaicos à literatura brasileira.”(BOSI, 1994, p. 361). Outra influência importante foi Carlos Drummond de Andrade. A seu respeito, Bosi afirma que “desde Alguma Poesia foi pelo prosaico, pelo irônico, pelo anti-retórico que Drummond se afirmou como poeta congenialmente moderno” (BOSI, 1994, p. 444). No que toca sua influência sobre Ana Cristina assinalamos, assim como em Bandeira, o recurso autobiográfico e confessional, que está em alguns poemas drummondianos: “Poema de sete faces”, “Não se mate” e “Carrego comigo”. Recurso semelhante aparece em Ana Cristina Cesar, no poema “Soneto”, de Inéditos e dispersos, no verso: “Quem é a loura donzela/ Que se chama Ana Cristina” (CESAR, 1998, p.38). A esse respeito, Moriconi afirma: “Apesar de fazêlo de maneira desconstrutiva e distanciada, toda a literatura produzida por Ana Cristina toma por base a autobiografia, o auto-retrato, a confissão” (MORICONI, 1996, p. 123). Nesse sentido, podemos estabelecer uma filiação em cadeia, que começa com Bandeira, reelabora-se em Drummond e refrata-se em Ana Cristina Cesar. Passando para uma figura aparentemente antagônica ao projeto estético de Ana Cristina, temos João Cabral de Melo Neto. No que diz respeito aos aspectos formais, é verdade que sua influência é pouco aparente. No entanto, o poeta da concreção está constantemente apontando para a materialidade dos objetos, a partir de uma linguagem programada. É com semelhante recurso que Ana Cristina busca manipular seu eu lírico, a partir do forjamento controlado da intimidade. Este intuito fica claro nas palavras da própria poeta: “o poema é uma produção, um modo de produzir significação mediante o fingimento poético, e não uma nobre tradução do intraduzível” (CESAR, 1993, p. 48). Em outras palavras: o que em Ana Cristina parece despojado, casual e espontâneo, na verdade não passa de fino controle artesanal do seu eu lírico, que encena pequenos fatos privados. A grande diferença, talvez a fundamental, entre as duas poéticas é o fato de que, para controlar a matéria do poema, João Cabral se concentre na supressão do eu lírico, tentando criar uma poesia paralela aos objetos, enquanto que Ana Cristina ataca o
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problema com uma outra visada, instaurando o eu lírico como parte integrante da concretude do próprio poema. Vemos que, neste sentido, mesmo poéticas aparentemente refratárias ao eu lírico, que o entendem como campo da expressão subjetiva, voltaram a utilizá-lo enquanto instrumento da construção poética (o João Cabral de Museu de Tudo, por exemplo, e o Haroldo de Campos das Galáxias). A distância entre o real empírico do poeta/escritor e o produto de seu trabalho, a poesia, parece ser a principal chave de leitura para a compreensão satisfatória de seu projeto estético. Para delinear esta questão, ela desenvolveu, na maioria de seus poemas, a temática da intimidade forjada, optou por recursos discursivos pertinentes – a carta, o diário pessoal – e os retrabalhou com o intuito de jogar com as expectativas convencionais do leitor. A re-encenação da composição ficcional parece ter por intuito não apenas deflagrar uma estratégia poética, mas também questionar a capacidade da poesia enquanto meio de transmissão transparente dos sentimentos e pensamentos do eu. A partir da constatação dos obstáculos e percalços de uma linguagem confessional, a poeta desenvolve um eu lírico mais robusto, que recupera a camada propriamente poética da função expressiva da linguagem. Siscar também aborda esta questão e a este respeito observa que: o poema é crítico não somente quando rompe com o individualismo da experiência biográfica do real [...], mas sobretudo quando evidencia sua desconfiança em relação ao espírito de continuidade com o real, de maneira mais ampla. Quando chama para dentro do poema – de um modo que não é simplesmente teatral, no sentido da ilusão produzida, mas dramático, no sentido da intensidade – a cumplicidade ou a irritação de um outro. Ou seja, quando introduz uma ambivalência provocante, uma brecha que esvazia a oposição e a hierarquia entre vida e poesia. (SISCAR, 2011, p. 25)
Parece ficar claro o comprometimento da poeta que, a exemplo de seus predecessores, sempre preocupados com as questões do fazer poético, desenvolveu uma proposta estética marcada por esta dicotomia: real x ficcional. É nesse sentido que constatamos na obra de Ana Cristina Cesar uma leitura acurada de seus predecessores, bem como a posterior conformação de uma voz poética própria, capaz de reformular e retrabalhar temáticas pré-existentes.
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5. O outro tipo de engajamento
Em seu reconhecido texto, “A nova narrativa”, Antonio Candido ao falar sobre o mais da produção literária – mais especificamente da prosa – nos anos 1970, aponta a ditadura militar como fator relevante na oposição política contra o governo por boa parte dos artistas, mas sem que estes pudessem deliberadamente demonstrar seu descontentamento. Nas palavras do crítico, nessa literatura havia “a negação implícita sem afirmação explícita da ideologia.” (CANDIDO, 2011, p. 256). Apesar de ter sempre escrito poesia, Ana Cristina Cesar também pode ser localizada nesse cadinho, pois ao caracterizar a produção do período, os apontamentos feitos pelo crítico parecem tocar no que era essencial para o projeto estético da poeta: “estamos ante uma literatura do contra. Contra a escrita elegante, antigo ideal castiço; contra a convenção realista, baseada na verossimilhança e o seu pressuposto de uma escolha dirigida pela convenção cultural;” (Idem). Era exatamente assim que se colocava Ana Cristina Cesar junto ao cenário literário do seu tempo. Apesar de jamais ter tematizado diretamente a ditadura militar e seus efeitos deletérios, a poeta escolheu uma via diferente de contestação – através do campo literário - demonstrando uma lucidez estética única e íntegra. Esperamos que, até aqui, estejam claras as preocupações da poeta com a linguagem e de que maneira entrevemos essas preocupações de cunho estético como sua maneira de ser engajada nos anos 1970. Indo além do plano da escrita, sabemos que Ana Cristina Cesar exerceu forte presença no meio jornalístico da época, atuando continuamente junto à revistas e suplementos literários voltados para literatura. Fora isso, em seus anos universitários, a poeta engajou-se fortemente junto aos movimentos que questionavam a maneira como os alunos aprendiam nos cursos de Letras, sobretudo o excesso de teorias e formalismos, que acabavam por anular a experiência empírica com o texto literário. Segundo Ítalo Moriconi (1996), a geração à qual pertencera Ana Cristina não foi a responsável pela revolução, pois já a recebera pronta através dos meios de comunicação, dos modelos pedagógico nas escolas e universidades, dos festivais de música, etc. No entanto, o cenário político brasileiro da época foi fortemente marcado pelo regime militar, fato que não podia passar desapercebido pela juventude. Nesse sentido, os jovens encontravam-se, grosso modo, diante de duas possibilidades: primeiro, o engajamento político, que ia desde a inocente distribuição de panfletos e participações
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em passeatas até a adesão aos movimentos de guerrilha urbana e rural; segunda alternativa, o desbunde. A este respeito, nos cabe recuperar as duas acepções possíveis para o termo, desenvolvidas por Moriconi: a primeira, proveniente de um vocabulário político-militante, carregava uma conotação negativa, pois era como chamavam aqueles que desertavam a causa política e partiam em função de algum projeto pessoal geralmente casar, ganhar dinheiro, ter filhos. O segundo, que sai do vocabulário caro à contracultura, tem sentido positivo. Diz respeito ao consumo de drogas, sobretudo alucinógenas, à vivência plena da sexualidade e o gosto pelo consumismo e pela novidade. Retomando a oposição colocada anteriormente e simplificando-a: os jovens podiam escolher entre serem responsáveis ou irresponsáveis. Aqui se escancaram dois extremos: de um lado, a adesão à violência política, que anulava os projetos pessoais em prol de um bem maior, e por outro o tédio, configurado pelo desgaste e pela banalização de um novo tipo permissivo de liberdade. Junto a este panorama, Ana Cristina Cesar não adotou nenhuma das posições extremas e tentou encontrar um entrelugar. Nas palavras de Moriconi, “ela sempre fez o gênero natural alternativo de cara limpa. Não se permitia jamais desativar seu louco giroscópio de lucidez.” (MORICONI, 1996, p. 31). Para o crítico, Ana teve seu desbunde, mas num sentido distinto daqueles apresentados até agora. Uma vez que a poeta considerava mais pertinente cuidar da própria vida, resolveu trocar o engajamento partidário por um micropolítico - a militância literária - que exerceu em diversas frentes: críticas aos currículos dos cursos de Letras nas universidades cariocas, discussões de teorias e críticas literárias no âmbito acadêmico e na reflexão do fazer poético de sua geração. Ou seja, as lutas que considerou importantes foram aquelas que diziam respeito a seu campo de atuação. Na sua poética isto fica claro se observarmos a abordagem da dinâmica dos gêneros, por exemplo. Para Moriconi é preciso entender que “a poesia de Ana se desengaja da militância ortodoxa para engajar-se numa política de linguagem anti-autoritária.”(MORICONI 1996, p.50). Isso foi feito a partir do exercício poético como pesquisa de articulações possíveis de uma linguagem desafeita às ilusões, lição aprendida com seus predecessores. Ora, não podemos esquecer que o movimento modernista de 1922 foi de fundamental importância para a instauração, segundo Mario de Andrade (2002), de três pressupostos cruciais à produção artística nacional: a pesquisa estética, a inteligência artística brasileira e a consciência criadora nacional.
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A recusa ao autoritarismo vinha de encontro com aquilo que unia Ana e seus contemporâneos: o desenvolvimento de um fazer poético que questionasse o rigor pseudo racionalista difundido entre a juventude engajada politicamente. Ana Cristina olhava para este universo com suspeita, pois considerava a presença de um forte reacionarismo emocional nos sujeitos que se diziam engajados, que muitas vezes disfarçavam uma faceta artística-cultural reacionária com discursos políticos progressistas e bastante objetivos. Ou seja: o militante político convencional não era propriamente alienado, “mas era distraído na existência” (MORICONI, 1996, p. 50). Diante desta conjuntura, o interesse de Ana Cristina passa a ser uma “politização dos afetos, uma pessoalização da política.” (MORICONI, 1996, p. 50). Este exercício foi nítido em seu engajamento universitário, enquanto discente do curso de Letras da PUCRJ, onde se envolveu em discussões acaloradas sobre a falta de contato dos alunos com o texto literário, que era relegado a segundo plano em nome dos estudos de teorias. Seguindo esse raciocínio sobre a relação entre o poeta e a realidade, temos o ensaio “Palestra sobre lírica e sociedade”, onde Adorno nos dá subsídios para pensar melhor a relação entre literatura e sociedade. O filósofo aposta na ideia de que a remissão ao social feita pelo poema é capaz de levar ainda mais para o fundo da obra de arte e não para longe desta. Ou seja, a argumentação vai contra as teses sociológicas mais ortodoxas, que costumam julgar como bem realizado o objeto artístico que apresenta maior índice de engajamento social. Adorno reconhece que a universalidade do poema lírico não é uma volonté de tous, não é a mera comunicação daquilo que os outros simplesmente não são capazes de comunicar. [...] Ao contrário, o mergulho no individuado eleva o poema lírico ao universal por tornar manifesto algo de não distorcido, de não captado, de ainda não subsumido, anunciando desse modo, por antecipação, algo de um estado em que nenhum universal ruim, ou seja, no fundo algo particular, acorrente o outro, o universal humano. A composição lírica tem esperança de extrair, da mais irrestrita individuação, o universal. (ADORNO, 2012, p. 66)
Nesse sentido, podemos inferir que esta universalidade vai contra o pensamento ingênuo de que os artistas são capazes de antecipar tendências do seu tempo com alguma clarividência. Ou seja, ao invés de supor um movimento que vai do externo – mundo – ao interno – mente do autor –, Adorno sugere justamente o contrário: é do
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excesso de individuação que se aufere o universal, e este reside no espaço que antecede a comunicação propriamente dita. Esperamos, em alguma medida, ter levantado questões pertinentes à trajetória político-poética de Ana Cristina Cesar, demonstrando como o lugar-comum da alienação a respeito da geração marginal torna-se equivocado, se considerarmos a presença desta que foi, talvez, a última poeta da tradição brasileira que conseguiu orquestrar coerentemente atividades acadêmicas, críticas, artísticas e tradutórias.
Referências ADORNO, T. “Palestra sobre lírica e sociedade” in: Notas sobre literatura I. São Paulo: Ed.34, 2012. ANDRADE, Mario de. Aspectos da literatura brasileira. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 2002. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Ed. Cultrix, 1994. CAMARGO, Maria Lucia de Barros. Atrás dos olhos pardos. Uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar. Chapecó: Argos editora universitária, 2003. CESAR, Ana Cristina. A teus pés. São Paulo: Ática, 1999. ______. Escritos no Rio. Rio de Janeiro: Ed UFRJ/Ed Brasiliense, 1993. ______. Inéditos e Dispersos - Poesia/Prosa. Org. Armando Freitas Filho. São Paulo: Ed. Ática, 1998. HOLLANDA, Heloisa Buarque de. “A poesia marginal”. Disponível em: < http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/a-poesia-marginal >. Acesso em: 22 jun. 2014, 16h10. MATTOSO, Glauco. O que é poesia marginal. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1982. MORICONI, Ítalo. Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.
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SISCAR, Marcos. Ana Cristina Cesar por Marcos Siscar. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2011.
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DESCONSTRUÇÃO DO ESTEREÓTIPO DA BELEZA FEMININA AMAZÔNICA: uma leitura em Dois Irmãos Claudia Maria De Serrão Pereira (UFAM) Cássia Maria Bezerra do Nascimento (UFAM)
INTRODUÇÃO
A presente investigação propõe desconstruir imagens estereotipadas da beleza feminina amazônica, como por exemplo, os dos traços indígenas, cujos meios de comunicação, frequentemente, perpassam uma representação rotulada e para fins comerciais, limitando, deste modo, os episódios histórico-culturais da região Amazônica, e construindo estereótipos que não condizem com a realidade local. À vista disso, a investigação se direciona para os porquês deste representativo físico pelos meios de comunicação, e compreender até que em medida esta representação visual se converte em algo danoso para a sociedade, uma vez, que por trás, das mídias, existem relações de poder, na qual o povo predominante opera sua força perante os povos dominados: índios, negros e mestiços. Além disso, a pesquisa busca realizar um estudo comparativo entre as mídias (campanhas publicitárias) e a literatura (Dois Irmãos), visto que ambos apresentam perspectivas sociais e culturais divergentes, sendo uma a liberdade do ser e representação artística, e a outra dominada pelos padrões e fins comerciais. Para isso, a pesquisa parte da análise das personagens femininas de Dois Irmãos, para que se poda observar como estas são descritas na narrativa, e das campanhas publicitárias, que seguem a linha cronológica do romance, pois assim se entende o perfil estético presente de acordo com o tempo narrativo de Dois Irmãos.
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Enquanto métodos e aporte teórico, a pesquisa se concerne inicialmente em uma literatura relida pelo pensamento complexo que em consonância com os atuais estudos sobre teorias e métodos de investigação literária, se aponta ampliar os limites do estudo acerca da linguagem literária de modo que se analise o texto literário nos aspectos subjetivos e objetivos e nas relações com a sociedade. A pesquisa, deste modo, recorre a uma perspectiva científica transdisciplinar, fundamentada no método de Morin, cuja linha científica não simplifica o objeto, pelo contrário, lhe dá o caos que é seu por sua natureza. Em seguida, direciona os estudos, para o embasamento teórico da Teoria da Residualidade,1 que serve de base científica para os estudos dos estereótipos, da identidade e da cultura, uma vez que esta linha científica se fundamenta nos estudos históricos sociais e culturais de determinados grupos. E, por fim, os estudos apontados por Djalma Batista sobre o desenvolvimento desenfreado na região Amazônica, na qual explicita como a região se desenvolveu economicamente ao longo de sua história, e também socialmente, visto que foi habitada por diversos grupos culturais diversos, constituindo em uma Amazônia multicultural. METODOLOGIA O projeto é uma abordagem qualitativa, bibliográfica e documental que investiga os estereótipos da beleza feminina amazônica em Dois Irmãos de Milton Hatoum, e nos anúncios publicitários da década de 50 a 70, recorrendo ao pensamento complexo, de Edgar Morin, e a teoria da residualidade literária e cultural, de Roberto Pontes, para embasar os pressupostos relacionados aos porquês da limitação da beleza feminina amazônica aos traços indígenas.
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Teoria literária proposta pelo poeta e ensaísta Roberto Pontes.
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RESULTADOS E DISCUSSÕES
De acordo Djalma Batista (2007), a Amazônia teve grandes choques culturais ao longo de seu desenvolvimento. A começar pelo encontro do índio com o colonizador europeu. O encontro destes dois foi sumamente grave, e houve mudanças nas rotinas e hábitos dos índios. Mas apesar disso, alguns hábitos e crenças ainda sobreviveram no espírito do povo amazônico apesar de muitos não saberem a respeito, por exemplo, dos rituais e festas indígenas “Não temos o contato direto, mas a terra é substancialmente índia na sua alma e muito no aspecto de seus habitantes.” (BATISTA, 2007, p. 56). Outro momento de encontro de culturas foi com a chegada do nordestino, que deslocou de sua região em busca de riqueza nos seringais da borracha. A sua vinda acabou originando o caboclo, na qual em maioria das famílias amazônicas prevalecem resíduos nordestinos, e singularidades encontradas somente nesta cultura. A criação da Zona Franca, especificamente ocorrida na cidade de Manaus, também trouxe pessoas de outros estados que vinham para trabalhar nas industriais e Centro da cidade. A Amazônia, portanto, está em uma complexidade cultural, emaranhada de vários povos. Mas, isto acaba não sendo difundido, uma vez que a região é vista por partes, e não como um lugar multicultural. A imagem que perpassadas pelas mídias, é de uma região disfarçada por pressupostos estereotipados carregados de resíduos que reduzem o local e o simbólico. Os resultados buscados foram compreender os motivos destas representações e desconstruir as imagens estereotipadas a partir de campanhas publicitárias entre os anos 30 e 70 e a narrativa de Hatoum. Nas campanhas investigamos os perfis estéticos, cujo resultado não foi o esperado, visto que as campanhas eram mais associadas ao perfil de dona-de-casa, isto é, nas vendas de produtos. No entanto, foi identificado em jornais daqueles anos, que os mestiços e as mestiças não tinham lugar nas campanhas, e seus aparecimentos são nulos. Observou-se, deste modo, um prejuízo cultural e social, que ainda se conserva na
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atualidade. Tratando-se de resíduos construídos e perpetuados como estereótipos da noção de periferia que cabe aos perfis mestiços na sociedade. Na parte narrativa, observou-se a oposição literatura versus publicidade, a qual, à frente da mídia delimitadora, compreende o complexo cultural da região, e não atende às mazelas da cultura de massas enquanto objeto de manipulação. Na literatura estão personagens, em seus aspectos culturais e comportamentais, conforme o que lhes cercam, em um processo que não delimita, mas em um processo de representação, transformação e crítica da realidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Devido à ampla pesquisa, o projeto será continuado, focando não somente a região Amazônica, mas também no restante do Brasil, buscando compreender as representações mentais que surgem no imaginário coletivo a partir nas mídias e na literatura. REFERENCIAS BATISTA,
Djalma.
O
Complexo
da
Amazônia:
Análise
do
processo
de
desenvolvimento. 2 ed. Manaus: Valer e Impa, 2007. HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Tradução Eliane Lisboa. 4ª ed. Porto Alegre: Sulina, 2011. PONTES, Roberto. Poesia insubmissa afrobrasilusa: estudo da obra de José Gomes Ferreira, Carlos Drummond de Andrade e Agostinho Neto. Edições UFC, Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1999.
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A IDENTIDADE FEMININA NA PEÇA THE PLOUGH AND THE STARS (1926), DE SEAN O'CASEY Cláudia Parra (UNESP)1
RESUMO: Irlanda, 1916. Na manhã do dia 24 de abril, segunda-feira, sete homens que mais tarde seriam lembrados como heróis (Patrick Pearse, Tom Clarke, Séan MacDiarmada, Thomas MacDonagh, Éamonn Ceannt, James Connolly e Joseph Plunkett), juntamente com aproximadamente 1.800 civis irlandeses, ocupam prédios importantes no centro da cidade de Dublin e fazem do Correio Central sua base de operações para aquela semana. A Irlanda, até o momento dominada econômica e politicamente pela coroa inglesa, é proclamada república independente por esses irlandeses que se autodenominam líderes provisórios do novo governo. Assim está iniciada a Insurreição de 1916, chamada também de a Revolta da Páscoa de 1916 (em inglês Easter Rising). Embora não tenha alcançado seu principal objetivo na época, devido à rápida resposta por parte dos ingleses, a insurreição foi peça fundamental que fomentou e deu forças ao processo de independência. É nesse contexto histórico que se passa a peça que analiso: The Plough and the Stars (1926), de Sean O’Casey. O processo de investigação se inicia com o estudo dos fatos históricos ocorridos em 1916, que mais tarde foram relembrados na dramaturgia irlandesa por meio da peça de O’Casey. Nesse sentido, busco traçar uma análise da representação teatral apropriandose de aspectos da crítica literária feminista e dos estudos culturais, considerando, sobretudo, questões de identidade nacional. James Moran, em seu livro Staging the Easter Rising: 1916 as theatre (2005), faz uma verificação geral dos estudos sobre as adaptações para o palco da insurreição de 1916 e identifica uma resistência interpretação
à
e análise do papel controverso desempenhado pelas mulheres, na
dramaturgia e na vida real, durante esse período intensamente nacionalista. A partir dessa constatação proponho uma análise do papel da mulher irlandesa durante a insurreição e como a peça de O’Casey retratou e (des)construiu a identidade feminina no palco. Em sincronia com esse estudo é explorada outra abordagem da crítica literária feminista, o controle patriarcalista nas representações femininas. De caráter praticamente universal, esse assunto é de grande relevância para análise da figura Aluna do programa de pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), campus São José do Rio Preto. 1
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feminina e o papel da mulher, pois o patriarcalismo ditou estereótipos femininos “adequados” para a sociedade irlandesa, a qual se assume em grande parte patriarcalista. The Plough and the Stars Concomitante ao estudo do período histórico de 1916, a análise tem como fim o estudo da figura feminina nas representações teatrais da insurreição irlandesa, por meio da investigação das personagens femininas na peça do dramaturgo irlandês Sean O’Casey, The Plough and the Stars (1926). A peça retrata os eventos ocorridos em 1916 na capital irlandesa e é a base do estudo, que não se limita apenas à investigação das personagens femininas centrais das peças; antes, envolverá todas as personagens femininas de relevância presentes peça. O contexto do período de estreia contribui muito para a consideração de como o escritor reviveu o evento histórico, bem como a forma que ele representou as personagens em sua obra dramática. A recepção de uma peça teatral acaba por receber influência de acontecimentos políticos e sociais do período. Em 1926, dez anos à frente dos eventos reais, O’Casey teve seu trabalho inaugurado no Irish National Theatre (Teatro Nacional Irlandês) ou mais conhecido como Abbey Theatre, em um período em que, mesmo já independente e com um novo regime político totalmente irlandês, a Irlanda ainda tinha problemas de unificação dentro do território, o que fez perdurar a contínua discussão em torno de uma identidade originalmente irlandesa. Concernente aos ideais femininos na sociedade, o dramaturgo vivenciou uma Irlanda que propagava um discurso nacionalista carregado de interesses políticos, principalmente por meio do seu primeiro presidente, Éamon de Valera, em que o papel das mulheres era uma personificação impotente de mãe sacrificial, devotada aos deveres do lar, que podia somente lamentar e inspirar os homens a morrer pelo país. Considerando o envolvimento da peça estudada com o conturbado contexto histórico da insurreição irlandesa e que este servirá como base para constatações e afirmações tal qual os argumentos teóricos, há a necessidade de uma análise detalhada e fiel de dados e fatos reais. A apresentação desses dados e fatos históricos fornece compreensão e fortalecimento das proposições apresentadas durante a pesquisa. Existe assim uma preocupação e cuidado referente à neutralidade das fontes de informação, evitando-se fatos e dados tendenciosos. Algumas das fontes utilizadas para a elaboração da análise serão a exposição online “1916”, oferecida pela National Library of Ireland (Biblioteca Nacional da Irlanda), e livros que abordam a história irlandesa antes, durante
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e após a insurreição: Ireland: A History (2003), de Robert Kee, e The Transformation of Ireland 1900-2000 (2005), de Diarmaid Ferriter. A identidade feminina irlandesa Inicialmente pretendo comparar a representação de mulher que a peça construiu em contraste com as imagens de “mãe sacrificial” e “natureza maternal” da mulher de 1916, propagada pela onda nacionalista que circulava tão fortemente na Irlanda nesse período, levando em conta o período em que a peça foi encenada pela primeira vez. Para esse fim, almeja-se um estudo, em paralelo, dos estereótipos femininos previamente concebidos pela sociedade patriarcalista e nacionalista a partir do fim do século XIX e também do culto à imagem de mãe sacrificial concebida pela Irlanda, chamado de culto à “Mother Ireland”, ou Mother Éire, que, segundo James Moran, é “uma figura primariamente definida por sua capacidade de criar filhos para que lutassem e morressem pela nação”2 (2005, p. 20, tradução minha). Indicativa de passividade e falta de poder, essa versão feminina da Irlanda atribuiu às mulheres as mesmas características negativas, o que se contrapõe às proposições da crítica feminista. Elizabeth Cullingford em seu artigo “Thinking of her... as Ireland” explica que “ao atribuir o gênero feminino (à nação), confirma-se os padrões sociais que caracterizam as mulheres como bens materiais e não como sujeitos falantes” 3 (1996, p. 56, tradução minha). Gerardine Meaney (2010, p. 189) fala sobre uma insistência da subjetividade feminina, abordando como o nacionalismo irlandês, entendido aqui como um “artefato cultural” (ANDERSON, 2006), constrói a figura de uma mulher assexuada, desumanizada, ou seja, a figura mítica da própria Mother Ireland que envia seus filhos para lutar por sua liberdade, construindo e fixando, dessa forma, os moldes para o papel das mulheres na sociedade irlandesa. Em 1916, essa figura feminilizada toma forças devido ao intenso movimento nacionalista. Assim, essas mulheres se viam obrigadas a assumir um papel criado para elas, passando por cima de seus próprios sentimentos em relação aos seus filhos e maridos. A morte do marido ou mesmo de um filho nessas batalhas pela mãe-pátria era entendida como honra para família, principalmente para a mulher que nesse momento fazia exatamente seu papel de mãe sacrificial. O desespero
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A figure primarily defined by her ability to raise offspring who would fight and die for the nation. To gender it (the land) as female, therefore, is to confirm and reproduce the social arrangements which construct women as material possessions, not as speaking subjects. 3
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pela morte de um filho era calado pelo amor à nação. Nesse sentido, Benedict Anderson questiona e argumenta sobre a origem dos ideais nacionais, dizendo que Essas mortes nos colocam bruscamente diante do problema central posto pelo nacionalismo: o que faz com que as parcas criações imaginativas da história recente (pouco mais de dois séculos) gerem sacrifícios tão descomunais? Creio que encontremos os primeiros contornos de uma resposta nas raízes culturais do nacionalismo. (ANDERSON, 2008, p. 34)
Levando em conta esse parecer sobre nacionalismo e identidade nacional e o direcionando para o eixo da pesquisa, cabe então examinar se, assim como houve no contexto histórico abordado, há na peça um discurso nacionalista que não só imagina uma comunidade originalmente irlandesa, mas que também afeta e modifica a identidade feminina. Seria possível afirmar que a retratação das mulheres presentes na peça é uma caracterização do que a sociedade nacionalista irlandesa, assumida como produção de uma identidade cultural,
esperava que elas fossem? Há alguma
personagem que denuncia essa forma de caracterização ideal como forma de opressão e descontentamento, desconstruindo assim o conceito de imutabilidade vigente na cultura nacional? Dentro da teoria feminista e concomitantemente à análise da produção da identidade nacional, buscarei também averiguar a representação da identidade feminina sob a ótica do patriarcalismo. É frequente no estado democrático e também na literatura a presença de uma figura feminina marginalizada procedente da autoridade patriarcal sobre as mulheres. Uma das teorias sobre a origem do patriarcalismo aponta a existência da propriedade privada como um dos fatores para o surgimento da opressão feminina, pois esse tipo de propriedade delimitou a hierarquia de classe e a formação de estados. De acordo com Engels, o surgimento da propriedade privada foi a “origem da histórica derrota do sexo feminino” (ENGELS, 1942, p. 50). Perante a averiguação da conduta das mulheres irlandesas, durante a revolta de 1916, analisarei de que forma essa realidade foi transferida para os palcos por meio das personagens femininas, e se essas personagens foram construídas e caracterizadas segundo o conceito patriarcal e o papel que elas “deveriam” cumprir na sociedade. Levando em conta a data da peça, será examinado o modo como a obra apresenta essa proposta da figura feminina. Para esse fim, tomo como base o patriarcalismo segundo um conceito advindo dos estudos sobre a subjugação/opressão da mulher. Tomas Bonnici afirma que
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Na teoria feminista, o patriarcalismo é definido como o controle e a repressão da mulher pela sociedade masculina e parece constituir a forma histórica mais importante da divisão e opressão social. É um vazio conjunto universal de instituições que legitimam e perpetuam o poder e a agressão masculina. (BONNICI, 2007, p. 198, grifo nosso)
Simultaneamente às questões propostas para análise nesta pesquisa (produção de identidade e patriarcalismo), será de igual importância a consideração das representações femininas feitas a partir da autoria masculina. Parece relevante pensar acerca do cânone ocidental, essencialmente masculino e branco, uma vez que o corpus constitui-se de uma peça escrita por homen, branco, advindo de um país ocidental e de língua inglesa. Neste sentido, destaco o modo como a mulher era vista pela sociedade nacionalista de 1916, com uma política formada essencialmente por homens. Sabe-se que a tendência da literatura masculina, em sua maioria, era a de classificar as personagens femininas de acordo com binarismos, como homem x mulher e forte x fraco. Assim, busca-se trazer à tona os modos pelos quais o feminino é representado na peça, não somente por meio do trabalho caricatural das mulheres, mas também observando como os homens e a sociedade lidam com elas. Feminismo e identidade nacional O embasamento teórico da análise partirá de teorias e ensaios sobre identidade nacional, produção de identidade e diferença na literatura, bem como discursos antifeministas vinculados à experiência feminina na sociedade patriarcal. Ambas as teorias partirão do ponto de vista da crítica literária feminista. Nesse âmbito será utilizada a corrente feminista anglo-americana, já que, levando em conta o aspecto cultural, entende-se que as críticas dessa corrente literária são mais próximas do questionamento da identidade feminina dentro das instituições marcadas pelo poder masculino. Posto que será utilizado também uma abordagem sobre a construção de identidade e sua relação com elementos culturais, empregarei, ao propor uma análise comparativa segundo a crítica literária feminista, noções e conceitos feministas que insistem em uma participação na sociedade mais significativa por parte das mulheres. Portanto aplico essa característica da crítica feminista para avaliar o comprometimento feminista em representar uma identidade de sexo onde o sujeito não precisa se ajustar a padrões anteriormente estabelecidos. Com a concepção de que os estereótipos, “homem” e “mulher”, são construídos culturalmente, Simone Beauvoir, (1953 p. 249,
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apud BONNICI 2007, p. 126) atesta que “a mulher não nasce mulher; ela se faz mulher.” Referente às questões de identidade na literatura, partirei da teoria com relação à identidade produzida por elementos culturais, como o nacionalismo. Nessa perspectiva, serão utilizados os conceitos e definições sobre nação e nacionalismo abordados por Benedict Anderson em seu livro Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo (2008). Anderson argumenta que a identidade nacional é parte de
uma “comunidade imaginada” e analisa como o
“nacionalismo imaginário”, compreendido por ele como artefato cultural, se enraizou de tal maneira na sociedade, produzindo sentidos de nação com os quais as pessoas se identificam e constroem suas identidades. Anderson também questiona sobre as mortes sacrificiais por amor a mãe-pátria, contraditoriamente nação inventada, e explica como essa lealdade é estimulada por meio de produtos culturais (poesia, prosa, ficção, música, artes plásticas). Essa fala do autor de Comunidades imaginadas é relevante, visto que encontramos um comportamento tipicamente nacionalista advindo desses elementos culturais na sociedade irlandesa dentro do período histórico analisado, bem com na peça de Sean O’Casey. Além do mais, será relevante analisar o arcabouço literário irlandês do período da insurreição irlandesa em seu todo, pois segundo Pascale Casanova (2002), toda a história específica da literatura irlandesa se resume “inventada” e definida entre 1890 e 1930 por três cidade, Dublin, Londres e Paris; e nos fala também sobre normas impostas para a literatura pelo nacionalismo e nos leva a averiguar como O’Casey lidou com isso e se submeteu-se a esses moldes ou não. Ainda dentro da linha teórica sobre produção de identidade, utilizo os ensaios de Stuart Hall sobre identidade e diferença que nos faz pensar sobre uma descontrução da cultura nacional, visto que busco analisar também processos de desconstrução da identidade feminina na representação de O’Casey. Stuart Hall (1992, p.62) nos convida a pensar as culturas nacionais “como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade”.
Considerações finais O presente texto é parte de um projeto de pesquisa de mestrado que tem como proposta a comparação de duas peças de dramaturgos irlandeses que reviveram em suas obras a Ester Rising de 1916. As duas peças da comparação nos proporciona um olhar
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sobre as mulheres, suas concepções e suas experiências diante da insurreição. No momento, apresento o percurso que pretendo fazer para examinar os processos de construção e/ou desconstrução de identidade, especificamente a nacional, em uma das peças da minha pesquisa. Investigando a produção da identidade nacional como resultado de artefatos culturais criados, seriam essas personagens construídas e moldadas por essa identidade criada? Como o dramaturgo trabalhou
com essas
questões nacionalistas através dos elementos teóricos do teatro? Houve um processo de desconstrução do papel estereotipado de “mãe sacrificial” pregado por um discurso nacionalista? Portanto, dado que a identidade de um sujeito é produzida a partir de elementos culturais, meu objetivo é constatar de que maneira o sujeito feminino é retratado na peça em termos de suas identidades culturais, mais especificamente a identidade nacional. Busco comprovar processos de construção e/ou desconstrução do estereótipo feminino promovido por meio do discurso nacionalista irlandês. Pretendo alcançar o objetivo por meio da análise das figuras femininas na peça diante de um sistema de representação cultural que cria sentidos que influenciam ações e a concepção de existência do indivíduo. Até o momento, diante da forma como Sean O’Casey abordou a cultura nacional e a relacionou com a identidade feminina em seu trabalho, foi possível identificar a existência de uma identidade fixa construída segundo os ideais nacionais e também a subversão dessa identidade por meio da protagonista da peça. Organizando o estudo acerca da crítica literária feminista, patriarcalismo e produção de identidade e diferença, busco um aprofundamento nesses processos de fixação e não fixação de identidade, a fim de entender como atuou esse papel feminino durante o evento histórico e, na literatura, como esse papel feminino foi utilizado
por Sean O’Casey para
questionar imutabilidade das identidades e expor os malefícios do nacionalismo irlandês para a sociedade. 4. Referências Bibliográficas: ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BEAUVOIR, S. The Second Sex. Trad. H. M. Parshley. London: Lowe and Brydone, 1953. BONNICI, T. Teoria e crítica literária feminista: conceitos e tendências. Maringá: Eduem, 2007.
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MEU PÉ DE LARANJA LIMA: UM DOCE RELATO Cláudia Regina Bachi (SEE-SP) A leitura é uma atividade dialógica, mediada pela linguagem, sustentada na interação entre o leitor e o autor, situados em determinados contextos sociais e históricos. É um processo ativo e dinâmico de construção e reconstrução de significados, a partir de um texto. Literatura é o registro da expressão humana e da relação do homem com o mundo e com o espaço social em que está inserido. Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos de folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações (CANDIDO, p.174, 2004)
Pode interferir na maneira como o ser humano é e age, possibilitando a construção de sua identidade e a compreensão do meio social. A sociedade atual leva o homem a vivenciar as mudanças que nela ocorrem e que provocam mudanças também na identidade cultural. Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles. Por isso é que em nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. (CANDIDO, p.175, 2004)
A literatura, como um dos diversos registros da história da humanidade, possibilita o contato com bens culturais, ou conhecimento humano organizado. Permite a interiorização, quando estimula a ativação de processo interno em que raciocínio e emoções operam juntos para atribuir significado ao texto, e a reflexão transformadora, a partir da reconstrução do texto com base nas ideias apresentadas pelo texto lido com aquelas que o sujeito-leitor já possui, tornando-se sujeito das significações.
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a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação. (CANDIDO, p.174, 2004)
A literatura permite a fabulação, ato de contar histórias como se fossem fatos verídicos, que nos auxilia na elaboração de elementos do inconsciente. É a leitura das entrelinhas que nos proporciona o pensar e lidar com as semelhanças e as diferenças. Representa uma necessidade universal que satisfaz a personalidade, já que aprimora os sentimentos, amplia a visão do mundo, organiza o pensamento humano, ou seja, humaniza, como afirma Candido (2004). À luz do conceito de Candido, no que se refere à literatura como aspecto de humanização, percebe-se a importância do ensino da literatura e da leitura na educação básica como requisito fundamental à formação de leitores e à formação humana desses leitores. Portanto, a literatura infantil e infanto-juvenil são essenciais à formação da personalidade do sujeito por tratar de temáticas relacionadas ao seu universo e ao sugerir soluções que auxiliam no desenvolvimento de esquemas internos para enfrentamento das dificuldades da vida real. Candido (2004) alerta que “a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável” (2004, p.191). Destacando o conceito de humanização de Candido (2004), a literatura é concebida, além de um direito, como uma necessidade de equilíbrio entre o homem e a sociedade, ou seja, fator indispensável à humanização. Entendo por humanização o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante. (CANDIDO, 2004. p.180)
A maneira como as produções literárias agem sobre o homem, ocorrem a partir da junção das construções, formas de expressão e formas de conhecimento, as três faces apresentadas por Candido (2004). Ao se apropriar da palavra organizada, o indivíduo consegue ordenar melhor seu pensamento e seus sentimentos, além de sua visão de mundo. Nesse contexto, a literatura se caracteriza como objeto de conhecimento fundamental ao processo de formação humana. Isso por que possibilita discutir
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preconceitos e atitudes através de suas obras, num processo em que prepondera o sentimento de liberdade do leitor, ao mesmo tempo em que lhe dá a oportunidade de fazer seus próprios juízos sobre os fatos que se apresentam. Na sociedade contemporânea, educar vai além de ensinar, significa orientar o aluno a fim de que este desenvolva capacidades indispensáveis para gerenciar sua vida nas áreas pessoal, profissional e social. Assim, é importante que a escola deixe “de ser ‘um lugar’ exclusivo em que se aprende apenas o básico [...] e se reproduz o conhecimento dominante, para assumir que precisa ser também uma manifestação de vida em toda sua complexidade”, segundo Imbernón (2011, p.8). Complexidade essa que abrange o ser cidadão nas instâncias social, política, econômica e cultural. A literatura e a leitura devem ser concebidas como instrumentos do saber que promovem a integralização dos conhecimentos, a formação humana e o acesso aos bens culturais da humanidade, já que, segundo Souza (2005) Leitura é, basicamente, o ato de perceber e atribuir significados por meio de uma conjunção de fatores pessoais com o momento e o lugar, com as circunstâncias. Ler é interpretar uma percepção sob as influências de um determinado contexto. Esse processo leva o indivíduo a uma compreensão particular da realidade. (SOUZA, 2005, p.11)
A leitura é um dos aspectos fundamentais para a vida no mundo letrado. É através dela que entramos em contato com diversas informações e com o conhecimento produzido ao longo da existência humana. Se entendermos leitura como um dos caminhos de inserção no mundo e de satisfação de necessidades amplas do ser humano [...], é de se esperar que propostas nesse sentido estejam direcionadas para a superação de uma visão utilitarista das linguagens em que é privilegiado apenas o seu domínio técnico – no sentido da compreensão de que estas constituem produções humanas e, como tal, são passíveis de manipulação, construção, desconstrução e reconstrução. (SOUZA, 2004, p.81)
De acordo com a autora, apesar de algumas pessoas entenderem leitura como decodificação de palavras e de signos, sabe-se que ler vai muito além disso, ler é compreender o texto atribuindo-lhe sentido. A leitura acompanha o sujeito desde os primeiros anos de vida quando compreende gestos e sons, interagindo com o objeto lido num diálogo efetivo. Dessa forma
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Seria preciso, então considerar a leitura como um processo de compreensão de expressões formais e simbólicas, não importando por meio de que linguagem. Assim, o ato de ler se refere tanto a algo escrito quanto a outros tipos de expressão do fazer humano, caracterizando-se também como acontecimento histórico e estabelecendo uma relação igualmente histórica entre leitor e o que é lido (MARTINS, 2005, p. 30)
Ler é uma ação que depende de estímulo e motivação. Estimular a leitura é requisito fundamental para a formação do indivíduo, já que desperta sentimento, possibilita a formação crítica e a ampliação de horizontes. Caracteriza-se como instrumento motivador e desafiador, capaz de tornar o indivíduo sujeito ativo e responsável pela sua própria aprendizagem, além daquele que compreende o contexto em que está inserido e modifica-o conforme as necessidades. Não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. (FREIRE, 2006, p.11)
Ler é um ato social, segundo Kock (2011), que envolve o leitor e o autor numa interação que procura atender a objetivos socialmente determinados. Trata-se de uma atividade que considera os conhecimentos já construídos pelo leitor e impõe, como já dito, mais que o domínio do código linguístico, visto que exige a participação ativa do leitor para a construção de sentidos. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (1997), o trabalho com a leitura desenvolvido nas escolas deve ter por finalidade a formação do leitor capaz de compreender o que lê, estabelecendo relações com outras leituras e atribuindo diferentes sentidos ao texto. A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de construção e significado do texto, a partir dos seus objetivos, do seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a língua [...]. Não se trata simplesmente de extrair informação da escrita, decodificando-a letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica, necessariamente, compreensão na qual os sentidos começam a ser constituídos antes da leitura propriamente dita. (Parâmetros Curriculares Nacionais, 1997, p.41)
Kleiman (2007), em acordo com os PCN, aponta a importância do conhecimento prévio para a compreensão do texto, pois
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o conhecimento linguístico, o conhecimento textual, o conhecimento de mundo devem ser ativados durante a leitura para poder chegar ao momento de compreensão, momento esse que passa desapercebido, em que as partes discretas se juntam para fazer um significado. [...] leitura implica uma atividade de procura por parte do leitor, no seu passado, de lembranças e conhecimentos, daqueles que são relevantes para a compreensão de um texto que fornece pistas e sugere caminhos. (KLEIMAN, 2007, p.27)
Assim percebe-se a importância de ações específicas para o ato da leitura como a mobilização de conhecimentos construídos ao longo da vida. Ainda segundo a autora, os conhecimentos linguístico, textual e de mundo ou enciclopédico colaboram para a compreensão do texto pelo leitor. Quanto mais o leitor é exposto a diferentes gêneros textuais, quanto mais conhecimento textual tiver, mais fácil e profunda será sua compreensão da leitura. A ativação do conhecimento prévio é, então, essencial à compreensão, pois é o conhecimento que o leitor tem sobre o assunto que lhe permite fazer as inferências necessárias para relacionar diferentes partes discretas do texto num todo coerente. Este tipo de inferência, que se dá como decorrência do conhecimento de mundo e que é motivado pelos itens lexicais no texto é um processo inconsciente do leitor proficiente (KLEIMAN, 2007, p.25)
A leitura apresenta sempre uma finalidade definida e considera aspectos relevantes para a compreensão, como a forma e o conteúdo do texto, e o leitor e o conhecimento prévio que esse traz. É a partir do ato de ouvir histórias que a criança entra em contato com a linguagem escrita e sua estrutura, e tem oportunidade para o desenvolvimento da criatividade, da imaginação, do senso crítico, bem como desenvolve a formação intelectual, moral e afetiva. O ato de ler fomenta a educação, desperta a sensibilidade e estimula a reflexão, o que humaniza o indivíduo. Desde a primeira participação do Brasil, em 2000, no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), o resultado do desempenho em leitura de estudantes brasileiros nos mostra o quanto ainda precisamos avançar nessa capacidade. Segundo, Zabala e Arnau (2010, p.55) “quando optamos pela formação integral ou para a vida, não apenas se entende que o conhecimento deve ser aprendido de modo funcional, como também que, além disso, deve-se ser competente em outros âmbitos da vida”. Um dos aspectos fundamentais para a escola refere-se à importância do trabalho sistematizado com a leitura e incentivo a ela. Por ser dinâmico, o ato da leitura não nasce com o indivíduo, mas é adquirido com o tempo e a prática, e necessita ser aprendido. Nesse contexto a escola tem papel
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fundamental no desenvolvimento da prática de leitura, além de ser importante que professor e aluno estejam motivados para ensinar e aprender a ler. Para Souza (2004) Considerando que o gosto pela leitura se constrói por meio de um longo processo em que sujeitos desejantes encontram nela uma possibilidade de interlocução com o mundo, espera-se que o professor seja um agente fundamental na mediação entre alunos e suportes textuais, um impulsionador e guia, no sentido de um contato cada vez mais intenso e desafiador entre o leitor e a obra a ser lida. (SOUZA, 2004, p.81)
O professor tem o compromisso, como mediador da aprendizagem, de propiciar situações para que o aluno desenvolva estratégias que o auxilie a ler de forma significativa. Ensinar a ler é ensinar estratégias que ajude o aluno a direcionar a leitura de forma organizada que o conduza à compreensão do texto e capacite-o para o levantamento de hipóteses e questionamentos. Assim A função do educador não seria precisamente a de ensinar a ler, mas a de criar condições para o educando realizar a sua própria aprendizagem, conforme seus próprios interesses, necessidades, fantasias, segundo as dúvidas e exigências que a realidade lhe apresenta. Assim, criar condições de leitura não implica apenas alfabetizar ou propiciar acesso aos livros. (MARTINS, 2005, p. 34)
Além disso, Lerner (2002, p.101) afirma a necessidade de ensinar a leitura em condições reais de uso quando “se desenvolve na sala de aula [...] projetos que deem sentido à leitura, que promovam o funcionamento da escola como uma microssociedade de leitores e escritores em que participem crianças, pais e professores”. É importante que o ensino da leitura garanta ao aluno uma interação funcional e significativa com a escrita para que possa vivenciar as diferentes etapas de aprendizagem. Por isso, é importante que o texto escrito seja presença constante em sala de aula e que o ensino das estratégias permita o planejamento da tarefa de leitura pelo aluno, contribuindo para a formação do leitor autônomo. Segundo Girotto e Souza (2010), para alcançar a autonomia leitora cabe ao professor planejar e definir, intencionalmente, atividades cada vez mais complexas para que o leitor possa adquirir autoconfiança e [...] seja capaz de redefinir para si próprio as operações e ações contidas na atividade de ler, constituindo-se aí a aprendizagem de estratégias de leitura (GIROTTO E SOUZA, 2010, p.53)
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Neste contexto, é papel do professor criar condições para leituras diversificadas e auxiliar o aluno a interrogar o texto para a busca de sentidos, levantar e verificar hipóteses, procurar indícios e elucidar suas próprias estratégias, facilitando e contribuindo para a interação com o texto. Como nos apresentam Girotto e Souza (2010), fazer uso de conexões, de inferência, de visualização, de sumarização e de síntese propicia maior interação do aluno com o texto, ou seja, a capacidade metacognitiva ajuda o sujeito a pensar sobre a compreensão do texto. Quando o aluno consegue a boa interação com o texto desperta para o prazer que a leitura pode proporcionar. Formar leitores é algo que requer [...] condições favoráveis para a prática de leitura – que não se restringem apenas aos recursos materiais disponíveis, pois, na verdade, o uso que se faz dos livros e demais materiais impressos é o aspecto mais determinante para o desenvolvimento da prática e do gosto pela leitura (Parâmetros Curriculares Nacionais, 1997, p.43)
Diante do exposto, o que se pretende defender é a necessidade do ensino da leitura na escola, pois esse é um processo imprescindível para a formação global do indivíduo e para a vida social. O papel da escola é ensinar o aluno a ler a fim de que este aprimore sua capacidade de imaginação e seja estimulado a pensar, a escrever, a criar e recriar sua própria realidade. Neste contexto, a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (SEE-SP) lança, em 2008, o projeto “Apoio ao Saber”, que distribui obras literárias aos alunos dos Anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio como doação. Intencionando a formação do leitor proficiente e autônomo. Cada aluno recebe um kit, por ano, com três títulos de gêneros diferentes para que forme sua biblioteca particular. A escolha pela obra “O meu pé de laranja lima”, de José Mauro de Vasconcelos, se deu por ser este um dos livros que compõem o kit “Apoio ao saber” de 2013. O projeto “Meu pé de laranja lima: um doce relato” foi desenvolvido com alunos do 7º ano do Ensino Fundamental, tendo como objetivo a ampliação do repertório cultural, sensibilização para o aspecto estético e humanizador do texto literário. Foi organizado em oficinas de leitura baseadas nas estratégias sugeridas por Girotto e Souza (2010), que propõem atividades de conexões, inferências, visualizações, sumarizações e sínteses, e articulado à proposta de estudo do gênero relato sugerida pelo Currículo Oficial do Estado de São Paulo. A obra foi lida em sala de aula para melhor orientação da leitura e das atividades que seriam desenvolvidas posteriormente. A cada semana foram lidos dois capítulos e realizadas discussões sobre a compreensão leitora dos alunos. Posteriormente, realizaram-se atividades de registros em pequenos grupos, nomeados pelos alunos como “grupos de estudo”, porém de forma individual. A escolha pelo
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trabalho em grupos se deu para que os alunos pudessem se apoiar uns aos outros durante os processos de leitura e de escrita. Para os três primeiros capítulos, foram utilizadas as estratégias de conexões (texto-leitor, texto-texto, texto-mundo), sendo uma para cada capítulo. Os alunos foram estimulados a relacionarem os fatos marcantes apresentados no primeiro capítulo a experiências vividas por eles; a se lembrarem de outras leituras, filmes, entre outros, que tivessem uma árvore importante para a história, como mostrada no segundo capítulo; e a pensarem em outros casos de pessoas que vivem em situação de pobreza, como descritas pelo autor no terceiro capítulo. Conforme a leitura avançava, os alunos utilizavam as demais estratégias, como a visualização das palmadas que Zezé recebeu por ter pegado “morcego” no carro de Manuel Valadares, ou a síntese da primeira parte do livro. Antes da leitura de cada capítulo foi feito o registro das inferências sobre o que poderíamos encontrar durante a leitura. Ao finalizar a leitura da obra, os alunos foram estimulados a registrarem suas conexões, opiniões sobre o relato autobiográfico e comentar sobre os sentimentos despertados durante a leitura. Cada aluno recebeu uma pasta para que organizasse seu portfólio e acompanhasse seu processo de reflexão e registro escrito. Como resultado do trabalho foi possível observar o envolvimento de grande parte dos alunos nos processos de leitura e de escrita, desmistificando a ideia de que não gostam de ler, além do aumento da autoestima, de alguns, ao conseguirem realizar as relações com suas experiências vividas e com situações sociais. Alguns aspectos só foram possíveis perceber durante o desenvolvimento do projeto, já que não são passíveis de registro escrito, tais como alterações nos conteúdos atitudinais de alunos envolvidos. É notório a importância do ensino da leitura logo nos primeiros anos de escolarização para que o aluno possa ampliar sua capacidade leitora ao longo da vida escolar. Pretendeu-se com o desenvolvimento desse projeto, a ampliação de habilidades leitoras que possibilitam ao leitor humanizar o meio em que vive, transformando-o e sendo transformado.
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A RELAÇÃO ENTRE A PALAVRA E A IMAGEM NA OBRA SONGS OF INNOCENCE AND OF EXPERIENCE DE WILLIAM BLAKE Claudia Regina Rodrigues Calado (Unilab) William Blake (1757-1827), tipógrafo, poeta, pintor, ilustrador, desenhista, era um caso de dopplebegabung, definição dada pelo estudioso Ulrich Weisstein, em 1968, para uma categoria de artistas que possui vários dons: pintura, poesia, escultura, música etc. Dentre eles, o autor destaca William Blake, Michelangelo, Dante Gabriel Rossetti e outros (WEISSTEIN, 1982). Dentro do universo dos Illuminated Books (livros produzidos por Blake a partir de seu método próprio de impressão denominado Illuminated Printing), Songs of Innocence and of Experience (1794) apresenta uma grande interação entre texto e imagem. Nessa obra, os textos verbais e imagéticos são entrelaçados de maneira inextricável (ainda assim separáveis), criados sobre um mesmo meio físico (matriz de cobre), pelo mesmo artista, apresentando claras indicações de que o autor pretendia alcançar uma unidade para cada peça. Na tentativa de classificar Songs of Innocence and of Experience para efeito de análise, recorremos aos estudos sobre a relação verbo e imagem pictórica, especificamente ao campo de estudos que aparece no final do século XX, dentro da tradição comparativista, chamado Estudos Interartes. Esse estudo abriu oportunidade para a análise das relações entre as artes, entre as mídias, possibilitando o desenvolvimento de trabalhos que preconizam o reconhecimento dos vários modos possíveis de produções textuais e extrapolando os limites do verbal para cobrir outros sistemas semióticos. A partir do surgimento dessa nova “escola”, termos como “intermidialidade” foram cunhados. O que essa nova nomenclatura advoga é o diálogo entre a Literatura com outras artes e mídias, ou seja, outros sistemas semióticos, como centro de interesse. Dentro dessas outras formas de sistemas semióticos, podemos citar o cinema, a fotografia, a poesia visual, os hipertextos ou textos em paralelo ao principal – que permitem uma leitura não-linear – inclusive, as histórias em quadrinhos; enfim, toda um a gama de produção cultural, que é objeto de interesse dos Estudos Interartes.
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Dois nomes de destaque aparecem nesta perspectiva: os pesquisadores e professores Claus Clüver e Leo Hoek. Clüver (2006) nos fala de textos em que os signos verbais e visuais são combinados, recebendo as seguintes classificações: textos multimídia, que se compõem de textos separáveis e separadamente coerentes, compostos em mídias diferentes, como por exemplo, a ópera; textos mixed-midia, que contêm signos complexos em mídias diferentes e que não possuem coerência ou autosuficiência separadamente, como por exemplo, o videoclipe, em que o texto visual não é nem coerente nem auto-suficiente, não podendo ter existência separada; e textos intermídia ou intersemióticos, ou seja, que recorrem a dois ou vários sistemas de signos diferentes, fazendo com que os aspectos visuais e/ou musicais, verbais, cinéticos e performativos dos seus signos se tornem inseparáveis e indissociáveis, como por exemplo, os caligramas, poemas visuais que têm como um de seus maiores expoentes o poeta Guillaume Apollinaire (1880-1918). Poderíamos tentar definir Songs of Innocence and of Experience como um caso de obra mixed-midia, porém, não acreditamos que a mesma se enquadre nessa categoria, já que seus textos verbais gozam de certa autonomia, tendo sido publicados muitas vezes sem seus textos imagéticos correspondentes, mesmo que isso comprometesse, em nossa opinião, o entendimento da matriz como um todo. Segundo a nomenclatura de Clüver, os textos mixed-midia se caracterizam pela não autonomia de nenhuma de suas partes. Hoek em seu trabalho “A transposição intersemiótica: por uma classificação pragmática” (2006) nos apresenta uma classificação feita a partir de critérios formulados por Clüver em seu texto “Estudos Interartes: introdução crítica” (2001). Para ele, existe a relation transmédiale, que se dá na transposição de um texto para outro em outro sistema sígnico, como é o caso das adaptações cinematográficas, em que os textos são separáveis e auto-suficientes; nesses casos, há uma politextualidade, ou seja, muitas obras diferentes podem estar dialogando umas com as outras; o discours multimédial, em que há a justaposição de textos auto-suficientes compostos num sistema sígnico diferente, como é o caso das ilustrações; o discours mixte, em que há a combinação de textos separáveis, mas não auto-suficientes, compostos em sistemas sígnicos diferentes, porém em um mesmo meio, como no caso dos quadrinhos; o
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discours sycréthique, em que textos que possuem aspectos visuais ou auditivos não admitem separação do verbal, de tal modo que qualquer tentativa de decodificação e interpretação deve simultaneamente levar em consideração vários sistemas semióticos. Nesse tipo de texto, há uma fusão entre os elementos verbais e visuais, que estão combinados e são inseparáveis; há um jogo de inter-relações entre os meios semióticos envolvidos, como é o caso novamente dos caligramas, que Clüver chama de textos intersemióticos. Como explica Hoek: Transposição (relação transmedial), justaposição (discurso multimedial), combinação (discurso misto) e fusão (discurso sincrético) representam, assim, os graus em ordem crescente de imbricação do texto e da imagem. Estes quatro graus se deixam distinguir a partir de três traços pertinentes: separabilidade (o signo visual e o signo verbal pertencem a sistemas significantes diferentes e se deixam isolar um em relação ao outro), autosuficiência (a coerência individual de um e de outro permanece intacta) e a politextualidade (muitas obras diferentes estão em jogo) (HOEK, 2006, p. 185).
Hoek também não oferece uma categorização que nos pareça satisfatória, embora as características de seu discours mixte aproximem-se bastante das características de Songs of Innocence and of Experience, porém com uma diferença: os textos (verbal e visual) da obra não podem ser considerados separáveis, nem autosuficientes, porque Blake os criou para serem apreciados em conjunto, de maneira bem costurada e entrelaçada, embora possamos encontrar muitas edições em que só os textos verbais foram publicados e, ainda assim, foi possível sua leitura. Portanto, por não termos encontrado nenhuma nomenclatura que considerássemos suficientemente abrangente para definirmos a obra de Blake de maneira mais completa, sugerimos chamá-la de “verbo-pictórica”, pois, a nosso ver, ela apresenta traços bastante singulares, como já foi explicado anteriormente. William Blake não foi o único ou o primeiro artista a unir palavra e imagem em uma mesma obra. Essa combinação já pôde ser vista em manuscritos medievais ilustrados e em outros trabalhos anteriores. Desde os primeiros sinais traçados pelo homem, na remota era do paleolítico até hoje, a imagem e a escrita vêm interagindo através dos tempos, suscitando diversos estudos sobre sua correlação. Segundo Mora
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(2004), uma das primeiras comparações explícitas entre imagem e verbo deu-se por volta do ano 500 a.C., a partir da obra do poeta grego Simonides (557 a.C. a 467 a.C.), para quem a pintura seria uma poesia muda e a poesia constituiria uma pintura falada. Porém, como explica Mora (2004), Simonides não forneceu uma definição explícita sobre as bases nas quais essa comparação estava sendo feita; seu interesse em aproximar as duas artes residia no fato de que ele, como poeta que cobrava pelos seus poemas, queria aproximar sua atividade de outra de cunho artesanal, justificando assim um pagamento maior pelo seu trabalho. Para ele, a poesia era uma maravilhosa criação humana, ideia que seria contrária ao que acreditavam os antigos gregos, que a viam como
uma
atividade
inspirada
pelos
deuses.
Seu
interesse
era,
portanto,
fundamentalmente mercantilista. Platão (1999) foi o primeiro a postular pontos de contato entre poesia e pintura; ou seja, a partir desse filósofo, foi possível estabelecer fundamentos que permitiram comparar as duas atividades. Uma de suas primeiras impressões sobre ambas foi quanto ao caráter ontológico. Para ele, ambas as artes eram essencialmente atividades operadas por imitação (mímesis). Platão supervalorizava a filosofia em detrimento das atividades artesanais, que eram vistas pelos gregos antigos como inferiores aos produtos do intelecto. Essa noção de mimese concebida por Platão é a base de sua teoria das artes e pode ser encontrada no Diálogo Íon, Livro X da “República”. A poesia, para o filósofo, é produto do entusiasmo criador, fruto da irracionalidade, das pressões irracionais a que os poetas estão subjugados; por isso, não pode servir como fonte de educação moral. A pintura, por sua vez, era vista por ele, segundo Oliveira (1993), como cópia inferior daquilo que cada imagem representa. As artes plásticas, em geral, eram, segundo ele, imitadoras de uma suposta realidade, portanto, enganadoras; meras cópias e sombras da essência ideal, pois elas seduziam a parte fraca da alma humana. Assim, a mentira do poeta era comparada à imagem do pintor. Ambas as artes, em especial a pintura, estão longe da realidade, do mundo do ser e somente podem copiar as formas ideais; ambas misturam falsidade com verdade, ambas são perigosas para a juventude porque chamam a atenção do homem em seu mais baixo estado de racionalidade. Hagstrum (1958) indica que, para Platão, ambas
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deveriam ser banidas do bem estar comum, já que nem o pintor nem o poeta seria capaz de transmitir o conhecimento supremo. Para Platão, pintura e poesia têm um caráter enganador, pois elas nos fazem acreditar em coisas que não existem, nos mostram aparências, quando, na realidade, representam apenas imagens dessas aparências. Porém, como afirma Mora, (2004), a poesia ainda conseguia impor certa superioridade porque, enquanto que a prática pictórica ilude seres inteligentes, mas também animais irracionais, através de sua técnica bimensional ou tridimensional, capaz de produzir efeitos de perspectiva e profundidade, “na poesia, pelo contrário, apenas os mais inteligentes são enganados; aqueles que são capazes de se deixar submergir na fantasia poética criada pelo fingidor que é o poeta” (MORA, 2004, p. 23). Aristóteles também via a arte como uma atividade imitativa e, especificamente a poesia, era para ele resultante de uma habilidade especial que se dá em uma relação entre a arte com a vida e/ou a natureza. A imitação poética recria o real e, nesse sentido, o conceito de mimese em Aristóteles difere do conceito de mimese em Platão, para quem imitação é sinônimo de cópia fiel a um original; não de criação ou de poesis. Para Aristóteles, segundo Santaella: As obras não são réplicas ou cópias servis de uma realidade que as transcende; elas mantêm uma relação de correspondência e complementaridade criativa e reveladora com a natureza humana. As obras são ficções reveladoras, produtos da imaginação criativa orientada para o fazer, imaginação produtiva. Na junção da téchne, sabedoria na operação com os meios, com a poeisis, capacidade criadora, o poeta é capaz de revelar poeticamente verdades concernentes à natureza e à vida que não apareceriam sem a sua intervenção (SANTAELLA, 1994, p. 29-31).
Aristóteles (apud JOLY, 1996) afirmava que o artista deveria ter o domínio da téchne para alcançar o belo na arte, para configurar, através de sua imaginação, as atividades operantes da natureza, seduzindo e despertando prazer no receptor; esta seria uma forma de causar nele um efeito catártico, levando-o a uma experiência educativa e transformadora. Sobre a tragédia, Aristóteles (1994) comenta, na seção 5 de sua obra “Poética”, que esse gênero representa pessoas que estão acima do nível comum e que o dramaturgo trágico deveria seguir o exemplo de um bom retratista; este, sem perder a
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verossimilhança, geralmente retrata o homem como um ser mais bonito do que realmente é. A natureza pode ser melhorada e, ainda assim, continuar sendo natureza. A pintura, por sua vez, na opinião do filósofo, opera por imitação através de cores e formas; a poesia, através de linguagem, ritmo e harmonia. Elas não seriam irmãs, mas primas. Para ele, as irmãs da poesia são a música e a dança (artes de movimento temporal) e não as artes visuais ou gráficas. Para Aristóteles, forma e cor podem retratar muitas coisas, mas não todas as coisas. Platão e Aristóteles pensaram na poética e nas artes plásticas, porém, foi mesmo a partir do primeiro que a tradição de cotejo entre pintura e poesia começou. Segundo Praz (1982), o poeta romano Horácio (65 a.C. a 8 a.C.), herdeiro do raciocínio platônico de que ambas as artes são enganadoras, tentou aproximar a literatura da pintura, buscando denominadores comuns à sua estruturação. A partir de sua obra intitulada Ars Poetica, que continha, no verso 361, a famosa expressão Ut Pictura Poesis (a poesia é como a pintura), comparou poesia e pintura, usando como parâmetro as técnicas que se poderia aplicar na composição e na apreciação de ambas. Concluiu, então, concordando com Platão, que as duas artes são enganadoras; mas, ao contrário deste último, via também nelas uma função muito importante: a finalidade puramente estética, sem necessidade de se atribuir a tais atividades uma função pedagógica ou qualquer outra função utilitária. Podemos observar que, a partir da tradição horaciana, as duas artes começaram a ser mais estreitamente correlacionadas, embora essa aproximação tenha sido feita por Horácio para ilustrar problemas específicos da poesia dramática (como por exemplo, os limites da licença poética) e não para sugerir uma reflexão, propriamente dita, acerca da pintura. Praz (1982) afirma que a partir desses lugares comuns, nascia então a fonte de uma abordagem crítica, retomada profusamente nos séculos posteriores, que aproximava a literatura das artes plásticas, embora em seus preceitos iniciais, preconizasse a supremacia da primeira perante as outras. No Renascimento, de acordo com Hagstrum (1958), a palavra de ordem era a expressão horaciana Ut Pictura Poesis, porém, com uma ênfase maior à arte pictórica. Em 1436, o arquiteto e teórico de arte italiano, Leon Battista Alberti proclamou a pintura como a arte mãe. Em 1508, o pintor italiano Rafael Sanzio categorizou-a como a mais difícil das artes liberais. Michelangelo pregava a superioridade da pintura sobre a
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poesia, retomando, ainda segundo Hagstrum, o antigo pensador Plutarco, para quem a relação entre arte e realidade ficaria mais evidente na pintura do que em qualquer outra forma de expressão estética; a pintura, para ele, possuía uma força moral que as outras artes não tinham. Hagstrum (1958) afirma também que Leonardo da Vinci defendia a visão neoplatônica de que o pintor lembra, mais do que qualquer outro tipo de artista, o Criador, já que Deus é sempre visto como o maior artífice de todos; ou seja, o pintor supremo. Assim, o pintor, que lida com as coisas que retrata em sua arte, superior ao poeta, que lida com palavras. O pintor é o senhor da realidade. A pintura não precisa falar; ela possui uma linguagem superior. Porém, embora Leonardo tenha feito tais afirmações, a poesia nunca perdeu seu prestígio e muitos pintores ainda recorriam aos poetas para obter inspiração; pintores renascentistas como Leonardo da Vinci, Cellini, Brunelleschi, Michelangelo, dentre outros, também escreviam versos (HAGSTRUM, 1958). Ao longo dos séculos XVII e XVIII, os paralelos entre as duas artes foram sendo mais elaborados, porém, ao contrário do que aconteceu no Renascimento, houve, neste período, a notória subordinação da pintura em relação à poesia. Segundo Oliveira (1993), alguns autores dessa época afirmavam que a poesia enriquecia a mente com visões que o pintor poderia representar; assim, o conhecimento da obra poética poderia ajudar o homem comum a apreciar as belezas da natureza. Ocasionalmente, havia comparações que pendiam para a pintura quando se notava a influência de alguns pintores sobre determinados poetas. Porém, todas essas comparações baseadas na tradição Ut Pictura Poesis continuaram a acontecer de maneira muito vaga e isso deu margem ao surgimento de duas novas orientações: a de Denis Diderot, na França, e a de Gotthold Lessing, na Alemanha. Diderot (apud PRAZ, 1982) propõe que se comparem as artes, mostrando as analogias existentes entre elas, examinando como um pintor e um poeta representam as mesmas imagens. Dideot propõe uma “leitura” dos quadros, em que o espectador possa passear pela tela e penetrá-la, criando enredos a partir do que está observando e tendo, assim, liberdade de interpretação. De acordo com Oliveira (1993, p. 17), a partir de Diderot, Prenuncia-se o relativismo do mundo moderno, o descentramento, que admite vários ângulos de visão, todos igualmente válidos. [...]
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Diderot, ao propor um ‘passeio’ pelo quadro, introduz na pintura, arte do espaço, um elemento de temporalidade.
Lessing, ao contrário de seu contemporâneo, aponta as diferenças entre as artes e não as semelhanças. Oliveira (1993) explica que, em sua obra Laocoon: an essay on the limits of painting and poetry de 1776, Lessing afirma que a pintura e a poesia, por empregarem signos diversos, não poderiam ser comparadas. Chegou a essa conclusão a partir da observação da estátua Laocoonte, que retrata o ataque de duas serpentes a esse personagem mitológico e a seus dois filhos, na época da Guerra de Tróia. Na opinião de Lessing (1998), a poesia seria a arte do tempo, pois possui uma maior liberdade para representar ou descrever uma ação contínua, que é seu objeto próprio; ele advoga que qualquer escrita tem um caráter linear, sucessivo e não simultâneo. Já a pintura, por empregar signos como figuras e cores para representar corpos e objetos deve ser considerada como a arte do espaço; pois só pode utilizar um único momento da ação, tendo-se que escolher por isso o mais fecundo, a partir do qual o antecedente e o subsequente poderão ser úteis para se contextualizar uma obra que se deseje analisar. Para Lessing (1998), a pintura é uma arte espacial e visual, por isso não poderia ser temporal e psicológica; já a poesia, uma arte intelectual e temporal, não poderia ser espacial e visual, pois não utiliza elementos como linhas, espaço, cor e simultaneidade de efeito. Portanto, Lessing (1998) advoga que uma comparação entre as duas se tornaria impossível, preconizando, ainda, que a poesia seria superior à pintura, pois esta possui uma maior capacidade de representação. Pode-se dizer que, de certa maneira, Lessing comunga com a noção desenvolvida por Diderot de perceber um quadro como um texto, na medida em que, ao fazer um estudo baseado na estátua Laocoonte (que representa o famoso personagem da guerra de Tróia Laocoonte e seus filhos, no momento em que são estrangulados por duas serpentes marinhas num episódio relatado na “Ilíada” de Homero), ele afirma que o observador das artes plásticas deve acrescentar, em sua imaginação, momentos anteriores e posteriores à obra que está apreciando. O espectador deve pensar além. Segundo Oliveira (1993), tem-se aqui o que se poderia chamar de uma estética da recepção rudimentar, pois há uma tentativa de emancipar o espectador do autoritarismo da obra.
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Séculos depois dos postulados iluministas de Diderot e Lessing, temos os estudos semiológicos modernos, que retomam essa questão da comparação entre as artes irmãs. Para o linguista formalista russo Algirdas Greimas, as linguagens verbal e não verbal são independentes, devendo ser analisadas assim, já que suas estruturas semióticas são diferentes. Porém, ao proferir a frase “fora do texto não há salvação”, Greimas (1974, p. 25) defende o texto verbal como ponto de partida para qualquer pesquisa de caráter linguístico ou discursivo; ou seja, é no texto verbal que estão inscritas as redes de significação. Portanto, todas as respostas para os questionamentos são encontradas dentro dele. Sua teoria semiótica é centrada no texto verbal e abre mão de qualquer realidade extralinguística. De acordo com Pereira (2008, p. 22): [...] a semiótica discursiva parte do princípio de que fora do texto não há como evidenciar as ideologias que circulam nas atividades sociais dos sujeitos. Porque é por meio da linguagem que o homem se constitui. Nela, as práticas discursivas podem ser desvendadas.
Vemos, portanto que, para Greimas, a superioridade da linguagem verbal sobre as demais é sequer passível de discussão, embora admita a distinção entre esses diferentes sistemas semióticos. Para ele, o discurso verbal é dominante, pois seria através dele que todas as outras “linguagens” (verbais ou não) se tornariam comparáveis. Outro importante nome da semiologia, Roland Barthes (1974), propõe eliminar a diferença entre literatura e a pintura (que seria puramente de meio material), renunciando à pluralidade das artes para afirmar a pluralidade dos textos. Nesse sentido, percebemos uma interseção entre o pensamento de Barthes e o de Diderot, já que ambos encaram a obra verbal e a obra pictórica como textos. Se a literatura e a pintura já não são mais consideradas numa tradição hierárquica, uma sendo espelho de fundo da outra, por que mantê-las como objetos ao mesmo tempo unidos e separados, em resumo, classificados juntos? Por que não eliminar a diferença entre elas (que é puramente de meio material)? Por que não renunciar à pluralidade das artes, para afirmar tão mais fortemente a pluralidade dos textos? (BARTHES, 1974, p.55).
Da tradição horaciana à crítica semiológica, passando por Lessing e Diderot, a relação entre as artes irmãs suscita uma questão crucial: a interdependência entre a linguagem verbal e a pictural. Porém, partimos do pressuposto de que não há posição de
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superioridade com relação às artes e que as semelhanças, a integração, a suplementaridade ou, até mesmo a complementaridade entre elas, existe e pode ser comprovada. Segundo Joly (1996, p. 133): As palavras e as imagens revezam-se, interagem, completam-se e esclarecem-se com uma energia revitalizante. Longe de se excluir, as palavras e as imagens nutrem-se e exaltam-se umas às outras. Correndo o risco de um paradoxo, podemos dizer que quanto mais se trabalha sobre as imagens mais se gosta de palavras.
Manguel (2001, p. 20) afirma que “dispomos de uma linguagem feita de imagens traduzidas em palavras e de palavras traduzidas em imagens, por meio das quais tentamos abarcar e compreender nossa própria existência”. Em outras palavras, somos seres movidos por imagens e palavras; isso faz com que percebamos ou leiamos um quadro como se fosse um texto, pois é dessa forma que percebemos todas as imagens. Manguel afirma ainda que: Quando lemos imagens – de qualquer tipo, sejam pintadas, esculpidas, fotografadas, edificadas ou encenadas –, atribuímos a elas o caráter temporal da narrativa. Ampliamos o que é limitado por uma moldura para um antes e um depois e, por meio da arte de narrar histórias, conferimos à imagem imutável uma vida infinita e inesgotável (MANGUEL, 2001, p. 27).
Podemos afirmar que na interface entre artes plásticas e literatura é possível reconhecer vários níveis de relação entre imagem pictórica e texto verbal. Desde os primeiros manuscritos iluminados até hoje, é abundante a quantidade de obras artísticas que apresentam ambos os meios semióticos em sua composição. Como observou Barthes (apud ARBEX, 2006), escrever e pintar são verbos que remetem a gestos físicos e práticas da mesma natureza. O mundo da iconografia (que vem do grego: eikón, eikónos, imagem; e grapho, gravar, escrever, desenhar; daí eikonographéo, ou seja, representar por imagens) evidencia a permeabilidade das fronteiras entre as artes, a relação dinâmica e a necessidade de troca entre os mundos do dizer e do ver. Há uma heterogeneidade nas obras em que o legível e o visível se reúnem. As obras pictóricas e verbais nunca deixaram de se relacionar. No caso específico de Blake, a relação que este fazia entre poesia e pintura, consideradas por muitos estudiosos como opostas ou rivais, leva-nos a entender que, para ele, as duas artes funcionavam como dois elementos diferentes que, juntos,
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formariam uma só composição. Assim, ele desenvolveu algo particular e explorou essa correspondência de maneira única: a imagem poderia acrescentar algo à interpretação do verbo (ou até mesmo mudá-la) e vice-versa. Uma era a metade da outra; duas vozes cantando em dueto. Essa associação está bem clara nas “Canções”. Gravação e poema podem ser vistos como dois personagens, cada um representando um papel dentro de cada canção; ou ainda, como instrumentos de uma orquestra em que nenhuma das partes tem uma posição privilegiada sobre a outra, ou de destaque. Funcionam harmonicamente como complementos necessários a uma interpretação ou apreciação mais ampla e complexa de cada uma das canções. Songs of innocence and of Experience não apresenta uma relação de independência entre os seus textos verbais e os pictóricos, mas sim, de complementaridade. Referências ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFGM, 2006. ARISTÓTELES. Poética. Tradução e comentários de Eudoro de Sousa. 4ª ed. Brasília: Imprensa Nacional/Casa da moeda, 1994. BARTHES, Roland. S/Z. Trad. Richard Miller. New York: Hill & Wong, 1974. BLAKE, William. The Complete Illuminated Books. Introdução de David Bindman. Londres: Thames and Hudson, 2008. CLÜVER, Claus. Estudos Interartes: introdução crítica. In: BUESCU, Helena et al (Coord.) Floresta Encantada: novos caminhos da literatura comparada. Lisboa: Dom Quixote, 2001. CLÜVER, Claus. Inter textus, inter artes, inter media. Aletria, 2006. Disponível em Acessado em 08 de set. de 2014. GREIMAS, A. J. L’Énonciation: une posture épistémologique. In: Significação – Revista Brasileira de Semiótica, nº 1, Centro de Estudos Semióticos A. J. Greimas: Ribeirão Preto, 1974.
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VIVER ENTRE LIVROS: ASPECTOS DA LEITURA LITERÁRIA E O ENSINO Cláudio José de Almeida Mello (UNICENTRO) Jociane Maurina Salomão (UNICENTRO) Não se ensina literatura para que todos os cidadãos sejam escritores, mas para que nenhum seja escravo. (Gianni Rodari) Introdução O ensino da leitura literária tem sido, por vezes, reduzido à mera decodificação de textos, sem que se identifiquem objetivos claros e metodologias eficientes para que o aprendizado ocorra de fato. Os índices de leitura, no Brasil, têm apresentado, segundo pesquisa recente, realizada pelo Instituto Pró-Livro em 2011, uma leve diminuição, de 4,7 livros por habitante em 2008, para 4 em 2011 (FAILLA, 2012). Embora os dados apresentados sirvam apenas de base para os estudos, não sendo, portanto, totalmente relevantes devido às diversas questões elencadas no corpus da pesquisa, o fato é que o índice de leituras não tem aumentado, o que é bastante preocupante, uma vez que os investimentos, por parte do governo federal, em aquisição e distribuição de livros parece estar distante de atingir os objetivos desejados. Ainda segundo aponta a pesquisa, o desinteresse pela leitura está em primeiro lugar, seguido pela falta de tempo. Tendo em vista que a leitura literária vinculada ao ensino tem sido tema de diversos trabalhos desenvolvidos na academia, devido ao entendimento da mesma como primordial, contribuindo para a formação crítica dos leitores, a relevância deste trabalho está em apontar estratégias de ensino, através de pesquisa bibliográfica tendo por base alguns autores que dedicam-se à problemática do ensino de literatura, tais como: Aguiar (2006), Bordini (1993), Chartier (1998), Colomer (2007), Cosson (2014), Lajolo e Zilberman (2009), Rojo (2009) e Solé (1998) buscando contribuir para com a divulgação e solidificação de profícuas estratégias de ensino por meio da implementação da leitura literária.
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Paradoxos da leitura no Brasil Vivemos em uma sociedade na qual o contato com o código escrito e, em consequência, com a leitura se dá cada vez mais cedo, principalmente devido ao difundido acesso às tecnologias da informação, tais como computadores, tablets e celulares. Assim, nossas crianças parecem nascer com as habilidades necessárias para manusear tais instrumentos, isso porque as adquirem com muita facilidade, ao passo que nós, adultos, por vezes enfrentamos algumas resistências e dificuldades quanto ao uso destas mesmas ferramentas. Embora o acesso aos meios de comunicação (e destacamos aqui os meios que fazem uso da linguagem escrita) seja cada vez maior, o que significa que as pessoas estão lendo cada vez mais, o fato é que o letramento não tem ocorrido de forma satisfatória. Segundo dados obtidos a partir do desempenho dos estudantes nos diversos exames prestados, tais como Prova Brasil, ENEM, SAEB, vestibulares e mesmo o PISA, estamos longe de obter resultados aceitáveis. Diante dos fatos, percebe-se uma discrepância entre o acesso à leitura e seu uso adequado. Como explicam Lajolo e Zilberman: O acesso à realidade virtual depende do domínio da leitura e, assim, esta não sofre ameaça nem concorrência. Pelo contrário, sai fortalecida, por dispor de mais um espaço para sua difusão. Quanto mais se expandir o uso da escrita por intermédio do meio digital, tanto mais a leitura será chamada a contribuir para a consolidação do instrumento, a competência de seus usuários e o aumento de seu público (LAJOLO; ZILBERMAN, 2009, p. 31).
Cabe a nós refletirmos de que maneira esse acesso está sendo garantido, pois não parece haver um fortalecimento da leitura, no sentido de termos leitores competentes, capazes de fazer uso da mesma com criticidade. O fato é que, infelizmente, nossos jovens estão, em sua grande maioria, cada vez mais habituados a consumir informações sem as digerir criticamente, isso porque muitas vezes não têm a mínima competência necessária para o entendimento daquilo que leem: eles apenas decodificam palavras, o letramento não lhes foi garantido. Como apontam pesquisas recentes, que medem o desempenho dos alunos no
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ensino médio, cerca de 5,35% dos nossos jovens apresentam, ao finalizar o ensino médio, capacidades compatíveis de leitura com o que se espera ao término do ensino básico (ROJO, 2009, p.34). Constatação gritante, pois a escola, nesse sentido, atinge seu propósito de formar sujeitos capazes de agir criticamente apenas em pouco mais de 5% dos casos, isso para não mencionarmos os índices de evasão escolar, que não foram computados na referida pesquisa apresentada por Rojo. Destarte, a escola, em vez de incluir nossas crianças e jovens na sociedade, parece estar excluindo-os, situação acarretada por diversos fatores, dentre os quais destacamos as metodologias de ensino que não presam por uma aprendizagem significativa, bem como a leitura literária desvinculada do ensino. Pressupostos metodológicos Para que a aprendizagem seja garantida de fato, é preciso que os conteúdos signifiquem para os alunos, assim, a leitura deve estar vinculada ao ensino: Não se lê livremente em umas séries e se aprende literatura em outras. Se se está consciente da continuidade de aprendizagem, as séries se podem enlaçar de forma mais eficaz […]. A leitura se socializa e se compartilha com os outros através de práticas de leitura, que estabelecem comunidades de leitores tanto "fisicamente" como "ligados" pela tradição cultural (COLOMER, 2007, p. 10-11).
O ensino da leitura deve, necessariamente, estar enleado ao texto literário, pois dessa forma os alunos aprendem a ler já familiarizados com a literatura, vindo a ampliar seus horizontes quando há de fato um planejamento de atividades que garanta a continuidade das práticas pedagógicas eficazes. Entretanto, tais práticas, bem como a leitura literária, têm encontrado entraves quanto as suas realizações em sala de aula. Por vezes preocupa-se apenas em “vencer” os conteúdos presentes no livro didático da turma, e assim o conhecimento é despejado nos alunos, sem que estes consigam apreendê-los, pois os mesmos não significaram, não fizeram sentido. Fórmulas são memorizadas e esquecidas assim que cumprido o ritual da tradicional atividade avaliativa. Uma proposta de trabalho que visa minimizar tais problemas refere-se à 3
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necessidade de serem ensinadas técnicas de leitura, para que de fato se aprenda a ler. Tais técnicas necessitam, para serem ensinadas, de um elemento fundamental – o livro literário: […] Se a escola foi criada para ensinar a linguagem escrita, pensar que este objetivo pode ser alcançado sem nela ler e escrever é tão absurdo como pensar que se pode ensinar a nadar sem uma piscina onde os alunos possam mergulhar. (COLOMER, 2007, p. 118)
Insiste-se, pois, no contato direto com os livros, bem como na realização de leituras compartilhadas, pois estas são a base para a formação de leitores (SOLÉ, 1998). Com a troca de experiências leitoras os alunos conseguem atribuir significado às atividades escolares, que deixam de ser meras tarefas, muitas vezes sem sentido, para adquirirem um papel social. É por meio da interação, primeiramente solitária, entre o leitor e o livro, e depois naquela construída entre estes e os demais leitores, que os saberes são compartilhados e ressignificados, contribuindo, dessa forma, com o desenvolvimento intelectual e cultural do grupo: O ato de ler é, por definição, solitário, envolvendo o mergulho do leitor na decifração do código, na compreensão dos sentidos expressos, no preenchimento dos não ditos […] A partir daí a atividade pode se socializar, quando o leitor traz para o seu mundo os significados percebidos e coletiviza a leitura no debate com o grupo e na criação de outras formas expressivas. (AGUIAR; MARTHA, 2006, p. 260)
Se faz importante salientar o papel de mediador que cabe ao professor na realização de tais atividades. Sua função consiste em motivar os alunos, interceder na interpretação textual (caso necessário), fornecer pistas, auxiliar nos momentos de dificuldades, enfim, intermediar sempre que for preciso, de maneira que o entendimento do texto literário seja garantido: A aprendizagem da leitura e de estratégias adequadas para compreender os textos requer uma intervenção explicitamente dirigida a essa aquisição. O aprendiz leitor – e poderíamos chamá-lo apenas de
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aprendiz – precisa da informação, do apoio e dos desafios proporcionados pelo professor ou pelo especialista na matéria em questão. Dessa forma, o leitor incipiente pode ir dominando progressivamente aspectos da tarefa de leitura que, em princípio, são inacessíveis para ele. (SOLÉ, 1998, p. 18)
É importante frisar, ainda, que a promoção da leitura não deve ser relegado a determinados anos, mas sim servir como suporte nas mais diversas situações de leitura, independente da série em que os alunos estejam, pois é papel da escola colaborar com a implementação das estratégias de leitura: Na escola, a leitura literária tem a função de nos ajudar a ler melhor, não apenas porque possibilita a criação do hábito de leitura ou porque seja prazerosa, mas sim, e sobretudo, porque nos fornece, como nenhum outro tipo de leitura faz, os instrumentos necessários para conhecer e articular com proficiência o mundo feito linguagem.(COSSON, 2014, p. 30)
Por meio da leitura significativa, o acesso à cultura é ampliado e a formação individual é implementada, isso porque, devido à função de representar a realidade, que é papel da literatura, a criatividade dos leitores é acionada, de modo que aquilo que é lido recebe múltiplas interpretações e ressignificações, processo este necessário à humanização do leitor. Antônio Cândido (2011), ao discorrer sobre o papel humanizador da literatura, afirma o direito de todos terem acesso à literatura, e ao garantir esta necessidade, Cândido não pensava apenas nos clássicos ou nas obras canônicas, ao contrário, em seu texto são considerados desde as anedotas populares e as piadas até o ato de mentir, por exemplo. Nesta perspectiva, o autor afirma ser impossível ao homem viver sem literatura, pois desde seu nascimento já está culturalmente inserido em uma sociedade que faz uso da literatura como prática social. Destarte, cabe à escola, embora não apenas a ela, garantir o acesso ao texto literário tido como mais “complexo”. Os saberes escolares devem ser compartilhados, não apenas despejados sobre os alunos, pois não há aprendizagem, de fato, caso as atividades realizadas não signifiquem, não sejam apresentadas com um porquê previamente definido. Quando alcançados os objetivos da leitura literária, os livros – objetos 5
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inanimados que não dizem absolutamente nada por si sós, ganham vida por meio da leitura: […] a leitura não está inscrita no texto, sem uma distância pensável entre o sentido atribuído a este último (por seu autor, seu editor, pela crítica, pela tradição, etc. …) e o uso ou a interpretação que dele pode ser feita por seus leitores. […] um texto apenas existe porque há um leitor para dar-lhe significação. (CHARTIER; CAVALLO, 1998, p. 05)
É por meio da vivência literária como prática social que o direito à literatura é garantido, e este se efetiva de forma contundente quando há a formação de comunidades de leitores, pois quando isso ocorre, e retomando Colomer (2007), tem-se a leitura literária como elemento constitutivo da tradição cultural. As comunidades de leitores preveem atividades desenvolvidas para além dos bancos escolares, pois a instituição escolar, sozinha, enfrenta dificuldades quando busca implantar a leitura literária na tradição cultural. Entretanto, quando o prazer literário é internalizado na escola, o mesmo reflete na vida comunitária e o leitor passa a ler também em ambientes não escolares. Para que isso ocorra, o ensino de literatura precisa assumir um caráter global na escola, o que de fato dificilmente ocorre. A grande maioria das instituições de ensino atribui o fracasso literário à disciplina de língua portuguesa, pois tem-se o conceito de que é função do professor de língua e ou literatura – e somente dele – ensinar a ler e incentivar a leitura literária, o que não é verdade: “[…] o ensino da leitura não é questão de um curso ou de um professor, mas questão de escola, de projeto curricular e de todas as matérias” (SOLÉ, 1998, p.19). Outro problema relacionado ao mau ensino de leitura consiste nas atividades de pergunta resposta, que consiste em realizar a leitura e, após esta, responder a perguntas, por vezes técnicas, que podem sem respondidas mesmo sem se fazer necessária a leitura do texto. Tais perguntas, ainda de acordo com Solé (1998), não ensinam a compreender o texto. A compreensão textual tem início com o resgate dos conhecimentos prévios relevantes para a leitura, entretanto, “[…] ativar o conhecimento prévio relevante, 6
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estabelecer objetivos de leitura, esclarecer dúvidas, prever, estabelecer inferências, autoquestionar, resumir, sintetizar, etc. - são muito pouco frequentes” (SOLÉ, 1998, p.36). Se faz necessário voltar um olhar mais atento ao planejamento de atividades, à escolha dos materiais a serem trabalhados e às metodologias a serem empregadas, pois o tempo hábil para a realização das atividades escolares é reduzido, sendo que não se admite “perder tempo” com atividades mal elaboradas e metodologias que têm um fim em si mesmas, sem que este colabore e amplie os conhecimentos. Pensando em um modelo de práticas voltado ao ensino de literatura na escola, Colomer (2007, p. 19) insiste que: “Qualquer modelo de ensino literário se caracteriza pela forte inter-relação que estabelece entre seus objetivos, seu eixo de programação, o corpus de leitura proposto e as atividades escolares através das quais o ensino se desenvolve”. Para que de fato ocorra um bom planejamento, que venha a apresentar resultados satisfatórios, o professor deve ter claros os objetivos de seu trabalho, o que nem sempre se observa. Muitas vezes os professores não têm objetivos delimitados – ensinam assim porque lhes foi dito para fazer dessa forma, ou ainda, porque precisam preencher o tempo escolar com atividades, quais sejam. Por isso é que diversos pesquisadores especialistas no assunto insistem na formação continuada de professores e, principalmente, na graduação pautada em critérios qualitativos (COLOMER, 2007). O professor de línguas e literatura, que na grande maioria dos currículos é o mesmo, deve ter consciência da importância do ensino literário, bem como de metodologias possíveis e estratégias de leitura a serem empregadas para obter êxito em suas atividades. Para tanto, a formação adequada e a implementação proporcionada por formações continuadas de qualidade são imprescindíveis para o professor. Dentre tantos saberes necessários, o professor de literatura precisa entender, por exemplo, que: […] o confronto entre textos literários distintos oferece ao aluno a ocasião de enfrentar a diversidade social e cultural. […] a literatura
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nos prepara para ler melhor todos os discursos sociais. É uma ideia que sustenta que os textos literários constituem um bom andaime educativo, não apenas para ler e escrever literatura, mas também para aprender os mecanismos do funcionamento linguístico geral (COLOMER, 2007, p. 31-6).
Destarte, quando o conhecimento sobre a importância da promoção da leitura literária está presente nas práticas desenvolvidas pelo professor, a leitura adquire novas dimensões e passa de simples (e enfadonha) atividade imposta, a algo que busca desenvolver o prazer literário, formando, assim, leitores assíduos, os quais não abandonam os textos literários quando distantes dos bancos escolares. A título de conclusão Tendo em vista que a promoção da leitura literária no contexto escolar é um tema de suma importância e pertinência à formação acadêmica, e que reflete fortemente nas práticas sociais, muito ainda há que se refletir sobre o assunto, sempre em busca de novas técnicas que garantam um acesso cada vez maior e melhor à mesma, justificando assim o subtítulo aqui empregado. A leitura literária, quando realizada por prazer, contamina a todos. É inerente ao ser humano compartilhar daquilo que faz bem ao outro. Não existe maior incentivo à leitura que a indicação de obras lidas, e para isso não se faz necessária nenhuma formação específica, basta falar com o coração, mas, para tanto, é preciso gostar de ler. Comungando com as ideias presentes no prefácio ao livro de Solé (1998), o bom leitor é, nesse sentido, aquele que gosta de ler, aquele que lê por prazer, não apenas aquele que lê mais ou melhor, pois ao ler com prazer ele também transmite seu ato como prática social. Somente quem gosta de ler é capaz de ensinar a ler por prazer, do contrário não serão formados leitores perenes e capazes de propagar o gosto pela leitura. Ao contrário do que muitos pensam, gostar ou não de ler literatura é algo que se aprende, e depende da abordagem empregada no contexto escolar. É claro que quando há o incentivo por parte dos pais e familiares, o papel da escola se torna menos complexo, entretanto, pensar em uma sociedade na qual todas as crianças cheguem à escola com uma base crítica formada, pois oriundas de famílias bem 8
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estruturadas e conscientes da importância da promoção adequada dos saberes escolares é um ideal utópico, pois sabemos que muitas das nossas crianças não têm sequer uma família que lhes garanta as condições mínimas, os bens incompressíveis, para utilizar a nomenclatura de Cândido (2011). Nesses casos cabe à escola, e somente a ela, garantir o acesso ao texto literário, por meio da atuação de profissionais conscientes de seu papel e que possuam objetivos claros, dentre os quais pressupõem-se: a) Concepção definida de literatura, bem como da importância da presença da mesma nos currículos escolares; b) Planejamento de atividades profícuas à promoção da leitura literária, que tenham objetivos bem delineados; c) Adequação dos textos à faixa etária dos alunos, buscando iniciar com temáticas pelas quais os mesmos demonstrem interesse; d) Promoção de leituras compartilhadas, para que haja maior interação e troca de experiências entre os leitores; e) Mediação das atividades de leitura, vindo a contribuir criticamente para a compreensão textual e também para incentivar e apoiar quando surgirem eventuais dificuldades no decorrer da atividade de leitura. Ao serem garantidas tais atividades na prática educacional, os alunos se sentirão seguros diante do texto literário e, por conseguinte, preparados para ler cada vez mais e melhor. Como leitores competentes, possuirão plenas habilidades para comparar suas leituras, escolher obras que lhes interessam mais, analisar criticamente o que leem e, dessa forma, superarem os monstruosos índices de não leitores e de leituras exíguas que assolam nossa sociedade.
Referências: AGRIAR, V.; MARTHA, A. Territórios da leitura: da literatura aos leitores. São Paulo: Cultura acadêmica; Assis, SP: ANEP, 2006. 9
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BORDINI, M.; AGUIAR, V. Método recepcional. In: Literatura: A formação do leitor – alternativas metodológicas. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. p. 81-102. CÂNDIDO, A. O direito à literatura. In: Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011. p. 169-191. CHARTIER, R. CAVALLO, G. História da leitura no mundo ocidental. v. 01. São Paulo: Ática, 1998. COLOMER, T. Andar entre livros: A leitura literária na escola. Trad. Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2007. COSSON, R. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed., 3ª reimpressão. - São Paulo: Contexto, 2014. FAILLA, Zoara (org.). Retratos da leitura no Brasil 3. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Instituto Pró-Livro, 2012. LAJOLO, M. e ZILBERMAN, R. Das tábuas da lei à tela do computador: a leitura em seus discursos. São Paulo: Ática, 2009. ROJO, R. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. SOLÉ, I. Estratégias de leitura. Trad. Cláudia Schilling - 6. ed. - Porto Alegre: Artmed, 1998.
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OBSERVATÓRIO DE ARTIFÍCIOS: FICÇÕES DA ESCRITA E DO ESCRITOR NA CORRESPONDÊNCIA DE MURILO RUBIÃO COM FERNANDO SABINO E OTTO LARA RESENDE Cleber Araújo Cabral (Doutorando Pós-Lit – UFMG) Maringá, 27 de Agosto de 2014. Até mesmo as cartas extensas não dizem metade do que deixou de ser escrito (ANDRADE, 2003, p.896). A memória nem sempre guarda detalhes. (...) Esta carta não se destina à posteridade nem é simbólica.1
Prezados, inicio esta comunicação, misto de carta aberta e carta de leitor, apresentando uma questão da qual me ocupo há vários anos. Trata-se de uma provocação feita por Davi Arrigucci Jr. em texto hoje canônico para os interessados na ficção de Murilo Rubião: “É possível falar dos contos fantásticos de Murilo sem se repetir” (ARRIGUCCI JR., 1987, p. 165)? Esta pergunta, em que ecoam a incessante reescrita e a circularidade características dos contos rubianos, além de motivar minhas pesquisas, ela faz com que eu me coloque, a todo instante, a seguinte pergunta: como viabilizar abordagens que auxiliem a renovar as condições de leitura da obra de Rubião? Durante o mestrado (CABRAL, 2011), no qual efetuei uma leitura das noções de narrador, personagem, espaço e tempo presentes nos contos rubianos, percebi que Murilo não publicou artigos ou textos teóricos em que formalizasse sua poética ou refletisse acerca do gênero conto. Afora as poucas menções feitas em entrevistas sobre autores de sua preferência ou de opiniões (ora evasivas, ora conclusivas) acerca de sua filiação à literatura fantástica, chamou minha atenção o fato de Rubião não expressar
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Carta de Murilo Rubião a Otto Lara Resende. Belo Horizonte, 05 de agosto de 1948. Fundo Otto Lara Resende. Série Correspondência com Amigos. Subsérie Murilo Rubião. Instituto Moreira Salles. Rio de Janeiro. Marcações em itálico de minha autoria.
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pontos de vista concernentes à sua experiência como escritor ou sobre o seu fazer literário. Diante dessa ausência, coloquei-me a vasculhar o arquivo de Murilo, alocado no Acervo de Escritores Mineiros da UFMG, a fim de averiguar a existência de textos ou de anotações nos quais houvesse comentários ou apontamentos suscitados pelo trabalho de elaboração de sua própria obra. Foi quando me deparei com seu epistolário. Ao examinar suas cartas com escritores, críticos e tradutores, constatei a existência de várias conversas sobre temas e convenções caras à criação ficcional, tais como construção de personagens, vozes narrativas, verossimilhança e representação da realidade, dentre outros. Além disso, também pude observar cartas em que nas quais se discutiam planos de textos em processo, argumentos de contos em desenvolvimento, plantas-baixas de livros em edição e sugestões de mudanças de títulos para contos. Essas reflexões acerca do fazer literário, presentes nas cartas de Rubião, constituem uma espécie de diário da obra do pirotécnico, laboratório (mas também observatório) a aguardar um leitor. Diante de tal achado, passei em revista a fortuna crítica de Rubião e constatei que, à exceção do volume Mário e o pirotécnico aprendiz: cartas de Mário de Andrade e Murilo Rubião (ANDRADE; SOUZA; MORAES, 1995), da tese Para uma história do intelectual: Mário de Andrade através de sua correspondência (KOENEN, 1992) e de comentários esparsos,2 o epistolário de Murilo permanecia inédito e inexplorado. Foi assim que percebi nas cartas um argumento consistente para formular uma resposta à pergunta de Arrigucci Jr., que também resume a hipótese central de minha tese: pensar a poética do conto de Rubião a partir de sua correspondência com escritores, críticos ou tradutores. Penso que tal abordagem possibilita não só esboçar traços de seu projeto literário, mas também pode auxiliar a ler sua obra por outras perspectivas. Construído o objeto e elaborada a hipótese, o próximo passo consistiu em delimitar o corpus a ser analisado. Dado o volume do epistolário, optei, inicialmente, como estratégia crítico-operativa, pela composição de três conjuntos, constituídos por duas séries cada: escritores (séries Fernando Sabino e Otto Lara Resende), críticos 2
Ver ANDRADE, 1995 e MENEZES, 2010.
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(séries Jorge Schwartz e Nelly Novaes Coelho) e tradutores (séries Pavla Lidmilová e Thomas Colchie). Os critérios utilizados na elaboração dos conjuntos e na escolha dos destinatários/remetentes foram os seguintes: presença de elementos estéticos que caracterizam o debate crítico sobre a criação literária, reconhecimento na história da literatura brasileira, pertencimento geracional, afinidades intelectuais e relações pessoais (Sabino e Resende), relevância acadêmica e crítica (Schwartz e Coelho), interesse editorial e reflexões sobre o processo criativo de Rubião por meio da prática tradutológica (Lidmilová e Colchie). Mas esse projeto inicial passou por reformulações motivadas por dois fatores: a necessidade de diminuir o volume de cartas a ser trabalhado (que então totalizava 290 documentos), e, principalmente, as tentativas frustradas de reunir a correspondência ativa e passiva. Por essas razões, decidi reduzir o escopo do corpus documental, focando-me nas cartas trocadas entre Murilo, Otto e Sabino. A correspondência de Rubião e Lara Resende é constituída por 90 cartas, que se estendem de 1945 a 1991. No tocante às de Sabino para Rubião, trata-se de um montante de 47 mensagens, que abrangem os anos de 1943 a 1983. Entretanto, cabe mencionar que, apesar dos esforços empreendidos junto a herdeiros, arquivos e instituições de pesquisa, o paradeiro das cartas enviadas por Murilo a Fernando permanece desconhecido. No entanto, não desisti de localizar essas hipotéticas “cartas fantasmas” (DIAZ, 2007, p.129), cujos espectros rondam a tese e têm me estimulado a elaborar outras formas de ler sobre as quais irei discorrer a seguir. O período em que há um corpus epistolar mais significativo se situa entre as décadas de 1940 a 1950 – momento em que Rubião ainda elabora as balizas de seu projeto ficcional e no qual ocorre a edição de seus primeiros livros, O Ex-Mágico (1947) e A Estrela Vermelha (1953). Nas cartas dessas décadas, nota-se a predominância de um tom informal (mas nem por isso menos “encenado”), que reforça o sentimento de camaradagem e de cumplicidade manifesto na troca de ideias, originais ou mesmo quando se predispõem a “puxar angústias”. De modo esquemático, a correspondência de Murilo com Otto e Fernando apresenta os seguintes tópicos que, a meu ver, também se fazem presentes, de modo geral, no intercâmbio epistolar de escritores e intelectuais: apontamentos sobre estilo e linguagem; observações acerca do
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ofício de escritor e da vocação para a literatura; sugestões de autores e leituras; propostas de caráter profissional; visões do campo e da crítica literária a respeito da própria obra; comentários sobre relação com editores, tradutores e mercado editorial; considerações acerca de ideias para projetos literários, planos de obras e textos em andamento; traços da vida cultural brasileira do período; solicitações de favores diversos (de pedidos de emprego para terceiros a procurar artigos, contos ou crônicas publicados em periódicos a fim de compor o arquivo); repertório de locais onde residiam, de pessoas e amigos com quem mantiveram contato; traços da vida cultural e política no período que abrange as correspondências; preocupações de ordem financeira; questões relacionadas à doença, envelhecimento, melancolia ou solidão. Acredito que esses tópicos afiançam a possibilidade de ler a correspondência como espaço em que o escritor pensa a escritura e se pensa por meio da escritura – circunstância em que o interlocutor exerce a função de um mediador que possibilita, ao remetente, um exercício de compreensão de si mesmo e de seu trabalho, conforme propõe Brigitte Diaz (DIAZ, 2002, p.137). *** Estou escrevendo muito depressa e ao correr da pena. É uma explosão. Sincera, nua, sem conveniência, de qualquer espécie.3
Após este breve memorial da pesquisa exposto acima, passo ao comentário de alguns operadores conceituais utilizados na tese. Quando penso em pesquisas com fontes documentais, indago-me, sobretudo, acerca das estratégias de apropriação e atribuição de sentidos empregados pelos pesquisadores no trato com as fontes documentais eleitas como objeto de estudo. De imediato, uma questão se impõe: “como trabalhar os indícios ou traços que chegaram desde o passado (...), como torná-los legíveis, de maneira a [dialogar com eles,] fazê-los falar” (PESAVENTO, 2008, p.63 e 67)? Tendo em mente essa pergunta, bem como a inexistência de uma teoria
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Carta de Otto Lara Resende a Murilo Rubião. Rio de Janeiro, 03 de novembro de 1947. Arquivo Murilo Rubião. Série Correspondência com Amigos. Subsérie Mário de Andrade, Marques Rebelo, Otto Lara Resende, Jair Rebêlo Horta e Paulo Mendes Campos. Acervo de Escritores Mineiros – Centro de Estudos Literários e Culturais. Belo Horizonte, UFMG. Marcações em itálico de minha autoria.
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hermenêutica de cartas, delineio, a seguir, as conjecturas que emprego para embasar a manipulação das fontes documentais objetos desta tese. O fio condutor é a investigação de Murilo Rubião como leitor de sua poética. Já o cerne do modo de leitura que proponho, consiste na articulação da crítica biográfica a três operadores conceituais: dispositivo, espectro e locação. Não se trata necessariamente de um método, mas de alguns pressupostos que configuram uma (dentre outras) maneira de ler que se orienta pelo estudo de edições de correspondências e dos trabalhos de Giorgio Agamben, Carlo Ginzburg, Michel Foucault e Jacques Derrida. Da crítica biográfica busco captar meios de aproximar fragmentos da vida do escritor de seu texto. Eneida de Souza, em Janelas indiscretas, propõe, a partir do trabalho com manuscritos e correspondências de escritores, um enfoque biográfico no qual se permite “associações entre texto e contexto, obra e vida, arte e cultura” (SOUZA, 2011, p.09) por intermédio da aproximação de teoria e ficção. Para tanto, Souza parte do conceito de ficção proposto por Jacques Rancière em A partilha do sensível, que consiste em “rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz” (RANCIÈRE apud SOUZA, 2011, p.11). Tal entendimento da ficção viabiliza meios de recuperar dados da vida do escritor que se depreendem da leitura dos manuscritos e documentos alocados nos arquivos de escritores, criando condições de metaforizar e rearranjar tais rastros da experiência e da escrita de si em ficções do escritor e de sua escrita. Com o estabelecimento de tais pontes metafóricas,4 torna-se possível inverter a equação vida-obra para, a partir da obra, interpretar as cartas como índices que facultam ler a vida como texto oportunizando, assim, movimentos “de proximidade e distanciamento entre literatura e vida, ficção e documento” (SOUZA, 2011, p.13) sem incorrer em aproximações causalistas – como o biografismo do século XIX que tentava interpretar a obra pela vida.
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O termo pontes metafóricas remete ao uso de metáforas tomadas de empréstimo à obra do escritor como conceitos operatórios para pensar sua ficção. Em minha tese, utilizo-me das figuras de indivíduos em constante estranhamento com um mundo tido por fora dos eixos, tal como os protagonistas dos contos “O ex-mágico da taberna Minhota” e “O pirotécnico Zacarias”. Estas imagens funcionam como catalisadores para refletir tanto acerca da ficção de Murilo como das representações que o escritor constrói de si em suas cartas.
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A fim de enriquecer a abordagem biográfica, busco na noção de dispositivo, categoria elaborada por Michel Foucault e reformulada por Giorgio Agamben, contribuição para caracterizar a carta como mecanismo que engendra o direcionamento e o exame da consciência, bem como a experiência de formação (mas também de transformação) do sujeito – tanto de quem escreve como daquele que lê (AGAMBEN, 2007). No contexto de minha tese, articulo a noção de dispositivo às ideias de biografia e de espectro com o intuito de propor dispositivos biográficos e espectrográficos a fim de examinar, nas cartas, rastros do artifício de “edição de si”.5 Quanto à ideia de espectro, tomada de empréstimo ao pensamento de Jacques Derrida, considero que ela propicia refletir tanto acerca das aparições (do escritor, da escrita e da literatura) como a propósito da sobrevida6 destes fantasmas elaborados e editados pelos autores em seu epistolário. O espectro, de acordo com as reflexões de Derrida, é um rastro, um traço do passado que insurge na atualidade, “um ser do passado que não para de sobreviver” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.29), imagem provisória que permanece e pode ser reanimada criticamente, mesmo depois do desaparecimento de sua inscrição originária. Há três motivos que orientam o diálogo com tal ideia: primeiro, a recorrência de figuras espectrais na ficção de Murilo, como a não-morte do pirotécnico Zacarias, morto-que-está-vivo; o “ex-Mágico”, (não-)ser surgido de um espelho, que lamenta não ter nascido e não poder morrer; o velho Simeão que assombra a memória d’“A casa do girassol vermelho”; as (ex-)esposas assassinadas que retornam em os “Três nomes de Godofredo”; o retrato da mãe que necessita ter a maquiagem retocada todas as noites em “Petúnia”; a aparição de “Marina, a intangível” no conto de mesmo título;. O segundo motivo consiste nas “cartas fantasmas” de Rubião a Sabino, que têm me estimulado a pensar uma poética indicial (GINZBURG, 2002) que auxilie a fazer ouvir, ainda que 5
De acordo com Ângela de Castro Gomes, faz-se necessário compreender a escrita de si “como tendo ‘editores’ e não autores propriamente ditos. É como se a escrita de si fosse um trabalho de ordenar, rearranjar e significar o trajeto de uma vida no suporte do texto, criando-se, através dele, um autor e uma narrativa”. Para mais detalhes sobre essa reflexão, consultar GOMES, 2004, p.16. 6 Penso aqui no conceito de sobrevivência das formas, como assim entende Aby Warburg, para quem as formas e os momentos históricos são impuros, heterogêneos e fantasmáticos. Não possuem a estabilidade conservadora do passado nem se acham dominados pelo estigma da repetição. Não se apresentam enquanto pedras, conceitos cristalizados e aparentemente fechados. Atuam como forças recorrentes que insurgem no presente de modo a revitalizar e dar sobrevida às novas manifestações, sem apagar o elo estabelecido com formas antigas.
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por vias indiretas, a voz ausente e as respostas às questões e apontamentos elaborados por Fernando nas cartas ausentes de Murilo. Quanto ao terceiro, este se refere aos espectros do escritor Mário de Andrade que povoam os diálogos dos “jovens moços de Minas”. A figura do “mestre” é evocada de várias maneiras nas cartas, seja nas menções às regras do pacto epistolar por ele formalizado, que deram as balizas de uma comunidade epistolar, no elogio ao amigo ausente, ou, ainda, como legado que se insinua nos conselhos e comentários de Lara Resende e Sabino a Rubião. Por fim, proponho uma leitura do diálogo epistolar a partir da ideia de locação. Reinaldo Marques (MARQUES, 2007), ao recorrer à etimologia deste vocábulo, alude às significações de lugar,7 demarcação e delimitação. Lido num registro mais amplo, o termo remete à indicação de elementos estruturais de uma construção – no caso, a modernidade que se processa no Brasil de início do século XX. Marques propõe que a leitura de locações como a burocracia, vida literária e a jornalística pode auxiliar na contextualização de debates e posicionamentos de escritores em seu discurso sobre si e acerca de suas obras. A partir desta ideia proponho pensar a carta, “gênero de fronteira” (HAROCHE-BOUZINAC, 1995, p.92), espaço enunciativo híbrido e paradoxal, tensionado entre documento e objeto estético, entre real e ficcional, entre objetividade e subjetividade, entre o indivíduo e o coletivo, entre o público e o privado, como sendo composta por um conjunto de ambientes de encenação onde escritores performam sua existência. Com isto faço glosa a leitura de Alain Pagès, para quem “a correspondência, ao contrário do que se pensa, nem sempre é o lugar de um compromisso sincero: trata-se de uma encenação” (PAGÉS apud GUIMARÃES, 2004, p.09). Assim, julgo viável mapear, nas conversas ocorridas nas cartas, as diferentes locações em que os escritorespersonagens se manifestam acerca de situações reais ou imaginárias.
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A fim de precisar melhor o que se compreende por locação, recorro à distinção proposta por Michel de Certeau entre lugar e espaço. A título de síntese, um lugar é um local projetado para configurar o exercício de ações e posicionamentos determinados. Já o espaço é um meio constituído por um conjunto de vários lugares (exemplo: uma casa é um espaço habitacional formado por dormitórios, sanitários, sala de estar, cozinha etc). Conforme propõe o pensador francês, os dois termos, apesar de complementares, encontram-se em relação de oposição mas, também, de mútua reconfiguração. O lugar se relaciona às estratégias institucionais de subjetivação, já o espaço se vincula às táticas de resignificação adotadas pelos indivíduos. Assim um lugar se transforma em espaço pelas táticas de apropriação e uso adotadas pelos sujeitos que o frequentam ou habitam. Para mais detalhes aconselho a consultar CERTEAU, 2004, p.184186.
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Enumero a seguir um repertório de locações observadas no corpus que, a meu ver, se apresentam como estimulantes à reflexão e produtivas para análises de conjuntos epistolares: bastidor (ambiente fora do alcance público, em que resoluções são tomadas e ações são empreendidas, mas também suporte em que se prende e se estica o tecido sobre o qual se borda); laboratório (local de manipulações, exames e experiências efetuados no contexto de pesquisas; local provido de instalações e equipamentos próprios para tratar filmes fotográficos ou cinematográficos); observatório (mirante de onde se observa, à distância, as atividades, posicionamentos e relações entre escritores); campo (espaço simbólico no qual os agentes que legitimam as formas de representações culturais se posicionam, estabelecendo relações, seja de enfrentamento, de cooperação ou de aliança); fórum (lugar de debate e julgamento, mas também mercado onde noções e valores de cultura, literatura e política são expostas e discutidas). *** Aqui me despeço. Aguardo ansioso suas notícias. Que elas sejam muitas, alegres ou tristes, felizes ou infelizes, líricas ou prosaicas, autênticas ou inventadas.8
A primeira palavra do título desta comunicação condensa, em diversos aspectos, características do objeto-tema. Como observatório, as cartas permitem observar, à distância histórica, as atividades, os posicionamentos, as relações e os embates entre os escritores, bem como a linguagem e a cultura de outras épocas. Feitas para afastar (e não para reunir), as missivas, conforme propõe Vincent Kauffmann (KAUFFMANN, 1990), também permitem a quem as escreveu (mas também a quem as lê), formas de aproximação – da história, da memória cultural, do escritor e da escritura. Nesse sentido o artifício de “se pôr em cena”, seja no modelar personas ou ao dissimular aproximações e distanciamentos, é aqui pensado como meio de os participantes do jogo epistolar (incluído também o crítico que dele participa), colocarem-se em perspectiva de modo ambivalente: aproximando-se de si mesmos (ou do outro) conforme se afastam do outro (ou de si mesmos). 8
Carta de Fernando Sabino a Murilo Rubião, N.Y. 22 de julho de 1947. Arquivo Murilo Rubião. Série Correspondência com Amigos. Subsérie Fernando Sabino. Acervo de Escritores Mineiros – Centro de Estudos Literários e Culturais. Belo Horizonte, UFMG. Marcações em itálico de minha autoria.
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Para encerrar este texto, passo à leitura de duas narrativas encontradas em um manuscrito localizado no arquivo de Murilo Rubião. Nelas há subsídios para pensarmos algumas questões abordadas nesta comunicação que se relacionam com a leitura de cartas de escritores. O DOCUMENTO (Parábola) Levou a vida toda decifrando um documento. Palavra por palavra. Cinquenta anos em cima do documento. Um dia, alguém [xxxxxxxxxxxx] lhe diz: — Sabes que levaste a vida toda em cima deste papel, que estás velho e morrerás dentro em pouco. O ancião olha o rosto no espelho, acaricia os cabelos brancos. Pega no documento, sacode-o[,] e volta a decifrá-lo. (RUBIÃO, s.d.)9
Neste texto curto, materializa-se o pesadelo de todo pesquisador (principalmente o que se aventura em arquivos, literários ou não): o texto ilegível, com o qual não se consegue dialogar. Somos apresentados a uma vida dedicada à decifração de um documento. Sua origem não é revelada (não sabemos se é público ou privado) e seu teor (ou “segredo”) permanece inacessível. No esforço de compreender melhor tal documento, examino-o atentamente e noto que, no avesso da página (trama do bordado?), há outra estória, manuscrita, com o título sugestivo de “O mistério”. O mistério Devia ser uma coisa sutil. Um mistério. Todos a entendiam e pouca importância [xxx] davam. [xxxxxx]. a ela. Somente a mim incomodava não decifrá-la. Não perguntaria a ninguém, como seria [ ] lógico, porque sabia, de ante-mão, que não me falariam. Tinha que ser mistério apenas para mim. [xxx] Pens[a?] em mil maneiras de descobrir o sentido daquilo tudo, sem [t?]ardar, ou melhor, indagando de tão sutil maneira que ninguém percebesse o que eu desejava (RUBIÃO, s.d.)10 9
RUBIÃO, Murilo. “O documento (parábola).” [datiloscrito sem data]. Fonte: Acervo Murilo Rubião. Série Produção intelectual do titular. Pasta “Anotações antigas para contos improváveis”. Acervo de Escritores Mineiros – Centro de Estudos Literários e Culturais. Belo Horizonte, UFMG. Os trechos entre colchetes visam a transcrever rasuras, tal como presentes nos manuscritos. Quanto às marcações em itálico, estas são de minha autoria. 10 RUBIÃO, Murilo. “O mistério.” [manuscrito sem data]. Fonte: Acervo Murilo Rubião. Série Produção intelectual do titular. Pasta Anotações antigas para contos improváveis. Acervo de Escritores Mineiros – Centro de Estudos Literários e Culturais. Belo Horizonte, UFMG. Os trechos entre colchetes que possuem interrogação, tais como “Pens[a?]” e “[t?]ardar”, visam a informar quanto a dúvidas sobre a grafia do trecho assinalado. Marcações em itálico de minha autoria.
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Recorri a estas narrativas que tematizam a dificuldade de ler para encerrar esta comunicação-carta por considerar que desenvolvem algumas das questões enfrentadas por pesquisadores na abordagem de correspondências de escritores. E com estes personagens que perseveram obstinados na leitura de documentos e de mistérios, deixo em aberto nossa conversa, na certeza de que este texto é apenas o início de uma série de diálogos – presenciais ou, quem sabe, epistolares. Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. Carlos Drummond de Andrade: prosa seleta: volume único. Sel. pelo autor. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. ANDRADE, Mário de; SOUZA, Eneida Maria de; MORAES, Marcos Antonio de (org.).; RUBIÃO, Murilo. Mário e o pirotécnico aprendiz: cartas de Mário de Andrade e Murilo Rubião. São Paulo: I.E.B.: Ed. Giordano; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1995. ANDRADE, Vera Lúcia. A biblioteca fantástica de Murilo Rubião. In: MIRANDA, Wander Melo (Org.). A trama do arquivo. Belo Horizonte: Ed. UFMG: Centro de Estudos Literários, 1995. p. 45-52. AGAMBEN, Giorgio. O autor como gesto. In: ______. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. – São Paulo: Boitempo, 2007. p. 55-63. ARRIGUCCI JR., Davi. Minas, assombros e anedotas (Os contos fantásticos de Murilo Rubião). In: Enigma e comentário: ensaios sobre literatura e experiência. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 141-165. CABRAL, Cleber A.. Lugares de Bruma: coordenadas do imaginário narrativo de Murilo Rubião. 149 f., enc.: Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Letras, Belo Horizonte, 2011.
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CASTRO, Edgardo. Dispositivo. In: CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault – um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Trad.: Ingrid Müller Xavier. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p. 123-124. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano, 1 : artes de fazer. 10. ed. Trad. Ephraim Ferreira Alves. – Petrópolis: Vozes, 2004. DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o Estado da divida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Trad.: Anamaria Skinner. – Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. DIAZ, Brigitte. L’Épistolaire ou la Pensée Nomade. Paris: PUF, 2002. DIAZ, José-Luis. “Qual genética para as correspondências?” (trad. Cláudio Hiro e Maria Sílvia Ianni Barsalini). Manuscrítica: revista de Crítica Genética, 15. São Paulo: Associação de Pesquisadores de Crítica Genética /Humanitas, 2007, p. 119-162. DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Tradução: António Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. 3. ed. [Lisboa]: Vega, 1992. p. 128-160. GINZBURG, Carlo. Sinais, raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas e sinais: morfologia e historia. 2. ed. Trad. de Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 143-179. GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Ângela de Castro (org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 07-24.
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GUIMARÃES, Júlio Castañon. Contrapontos: notas sobre correspondência no modernismo. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2004. (Papéis Avulsos; 47) HAROCHE-BOUZINAC, Geneviève. L’Épistolaire. Paris: Hachette, 1995. (Collection Contours Littéraires).
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“NOITE DA PAIXÃO” DE DALTON TREVISAN E “MARIA DE JESUS DE SOUZA” DE JOÃO ANTÔNIO: UM ESTUDO COMPARATIVO DO SAGRADO E DO PROFANO Cléia Garcia da Cruz Milan (UEL) I.
INTRODUÇÃO: ENTRE A SANTIDADE E A PROSTITUIÇÃO
O que há de sagrado e profano nesta representação de Nelsinho em consonância com o sofrimento de Cristo, da prostituta escolhida por ele a quem chama Madalena e a personagem também prostituta em João Antônio? Entre a santa e a prostituta existem semelhanças de um vínculo cristão deteriorado pela dureza da vida cotidiana, da vida na cidade? Ou a profissão mais antiga do mundo já não anda tão escandalizadora? Por mais que seja dada voz e vez às personagens tanto de um narrador como de outro, elas acabam sofrendo as humilhações e a violência deste universo urbano, machista. O que representa ser igual para uma sociedade? Desde que as classes abastadas continuem com o direito a participar do que é sagrado e os demais, considerados pobres ou moralmente incorretos, como se houvesse um guardião proibindo a entrada de locais considerados sagrados. Se seguissem de fato o que diz a Bíblia sagrada permitiriam a entrada de todas as pessoas em seus templos. Jesus histórico, segundo BOFF em Paixão de Cristo – paixão do mundo (1978), fora considerado como criminoso sobre vários aspectos: subversivo (Lc 23: 2-14), blasfemador (Mt 26: 62-67), guerrilheiro (Mc 14: 64), falso profeta (Mt 27: 62-64), possesso (Mc 3: 22; Jo 8:48) e louco impostor (Mc 3:24; Mt 27: 63). Porque ele não deixava de andar com quem quer que fosse, de cumprimentar, conversar com todo o tipo de pessoa, de orientar pobres e pessoas carentes, pescadores e aqueles que não tinham como sobreviver, a acusação de blasfêmia acontece apenas porque responde a Caifás que “sim” era o filho de Deus. Blasfêmia perante quem afinal? Àqueles que se consideravam detentores da religião? Jesus Cristo fora acusado injustamente porque representava naquelas regiões dominadas pelo império romano um baderneiro, pois ia contra a ordem estabelecida, perdoando e acatando os problemas de cada um, visto como um contraventor das regras dos anciões do Antigo Testamento, bem como, das leis romanas. Boff (1978) comenta que a intenção discursiva no Novo Testamento é mesmo de polemizar, de convencer positivamente sobre as atitudes de Cristo, ou seja, quem a
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escreveu não queria apenas “relatar aos pósteros”, mas testemunhar o que acontecera, defender e demonstrar o Cristo como aquele que salva a humanidade. Se num dado momento ele era aquele filho abandonado pelo pai, agora ele indicava a importância da ressurreição, é a partir disto que se forma a Cristologia. Sendo Cristo não aquele que morreu naturalmente, mas o que fora flagelado pelos romanos, a ressurreição representa o fim digno e não a morte violenta. Segundo Eliade (2001) não é comum a proximidade com o espaço do sagrado de objetos ou pessoas consideradas impuras: [. . .] não te aproximes daqui, disse o Senhor a Moisés; tira as sandálias de teus pés, porque o lugar onde te encontras é uma terra santa (Êxodo, 3:5). Há, portanto, um espaço sagrado, e por consequência, “forte” significativo, e há outros espaços não-sagrados, e por consequência sem estrutura nem consistência, em suma, amorfos (ELIADE, 2001 p. 25).
Para o homem e mulher religiosos há espaços diferenciados, um que contém o sagrado e outros que pertencem ao convívio das ruas, isso se trata da religiosidade primária, o homem se centra no mundo, ou seja, organiza-se a partir desses preceitos e o espaço profano não lhe permite isto: [. . .] o tempo em que se desenrolou a existência histórica de Jesus Cristo, o tempo santificado por sua pregação, por sua paixão, por sua morte e ressurreição [...] e o conceito do Tempo Litúrgico ao afirmar a historicidade da pessoa do Cristo (ELIADE, 2001, p. 66).
Não só o espaço tem importância na religiosidade, como também o tempo histórico e tempo mítico, por se tratar de um tempo sagrado. II.
SEMELHANÇAS ENTRE JESUS DE SOUZA”
OS CONTOS:
“NOITE
DA PAIXÃO” E
“MARIA
DE
Nelsinho no conto “Noite da paixão” é o homem que se coloca como vítima da prostituta, primeiramente, ele é quem sai “à caça da última fêmea”, não encontrando ele entra na Igreja sem se persignar, vê as mulheres beatas ao pé do Cristo, chama-lhe de “defunto”, beija-lhe os pés, ofende-lhe: “por tua culpa, Senhor, todos os Bordéis fechados (TREVISAN, 1988, p. 100).” Segundo Burkert (2001, p. 121) é costume cristão que não se fixe os olhos, também que não se faça orações com as mãos abertas e sim com as mãos fechadas, joelhos dobrados e olhos abaixados o que evita a fixidez do
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olhar. Nelsinho nota as velas acesas, os quatro círios acesos e ao observar os rostos de espantos das beatas que só se viram e erguem a cabeça quando chega alguém que profana o ambiente sagrado, ele se volta também: “escândalo das beatas, inclinou-se a visitante, saia preta, blusa verde, casaco vermelho. Cabeleira solta no ombro, cada gesto um estalo de couro, beijou o pé trespassado (Idem).” Os gestos dos dois acaba por entregar que os profanadores do templo eram eles “os escolhidos”, saindo da Igreja eles combinam: “- Onde é que a gente vai?/ - Ali na esquina (Idem).” O encontro entre as personagens acontece dentro do espaço do sagrado, o que já indica o caráter profano do conto, segundo Eliade (2001, p. 29) a Igreja é, um espaço religioso que permite a comunicação dos homens com Deus, a porta é representativa do que é transcendido, por ali os homens deveriam subir aos céus. Aqui, ao contrário, eles marcam o encontro para o espaço degradado. Poderíamos entender, a partir de Eliade que o mundo de Nelsinho e da prostituta em “Noite da paixão”, assim como “Maria de Jesus de Souza” se organizam pelo dessacralização, pela recusa ao religioso: “por um homem que recusa a sacralidade do mundo, que assume unicamente uma existência “profana” [...] o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o comportamento religioso” (ELIADE, 2001, p. 27). Na cultura judaico-cristã: “um Deus criador, único e pessoal. Esquece assim que há outras concepções do divino, desde o animismo primitivo até o ateísmo de certas seitas e religiões orientais (PAZ, 1982, p. 326).” Segundo Paz a religião cristã leva ao cadáver de Deus, e este criaria os fetiches e seria responsável pelo “domínio sobre os outros. Concebe o mundo e os homens como minhas propriedades, minhas coisas. O árido mundo atual, o inferno circular, é o espelho do homem cerceado em sua faculdade poetizadora. (PAZ, 1982, p. 327)” Para Eliade, o homem que retoma essa cristandade, faz o retorno do tempo histórico, como se acompanhasse o trajeto: [. . .] quando um cristão de nossos dias participa do Tempo litúrgico, volta a unir-se ao illud tempus em que Jesus vivera, agonizara e ressuscitara – mas já não se trata de um Tempo mítico, mas do Tempo em que Pôncio Pilatos governava a Judéia (ELIADE, 2001, p. 27).
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A personagem Nelsinho não é aquela que acompanha as dores de Cristo, mas que não havendo opção de mulheres nas ruas, busca uma na Igreja, ao deparar-se com a cena que prevê a ressurreição, passa a encaminhar cada passo seu com a prostituta, como se fosse ele o escolhido. O apocalipse revela, por exemplo, a luta entre o bem e o mal, entre os filhos da luz e os filhos das trevas, a luta dos eleitos, conflito entre Deus e satã. A psicanálise faz com que o ser humano enfrente a própria sombra, ainda que esteja permeada de acusações e demônios, Jung estudou os fenômenos dentro do vínculo cristão para que assim pudesse compreender que esses mitos estão dentro da própria Igreja. E é nos ambientes sacros que os dois se rivalizam, apoiando-se na psique das pessoas que os frequentam: [. . .] foi por isso que o Deus cristão e o Diabo cristão inevitavelmente se tornaram partes de uma única visão de mundo [...] nossos inimigos e demônios são projeções de nossos medos [...] „Deus é luz e nele não há trevas‟, diz a escritura (I Jó, 1,5) -, a psique se isola da introspecção e da responsabilidade por seus atos. O mal vem de fora, não de dentro. A „Nova Jerusalém‟ futura é apenas para os eleitos, enquanto satã permanece à solta (PADEN, 2001, p. 107).
Em João Antônio a personagem Maria de Jesus de Souza pede a proteção de Deus em vários momentos, o narrador eterniza as orações que na boca dela se tornam constantes e expressivas, mesmo se tratando de prostituição, o clamor para Deus se dá até mesmo quanto ao desejo de Deus para com os homens: “peguei um pilantra que me lambuzou toda, charlou, e fui, feito uma gata melada. Isto será sina, meu Deus? (ANTÔNIO, 1986, p. 37).” A presença do sagrado está enraizada na cultura popular, no seu comportamento cotidiano, no imaginário, convivendo intimamente com as pessoas através da simbologia: “de que modo, mais do que uma ideologia de classe através da religião, os sinais e símbolos do sagrado ajudam a escrever a face mais imaginária da identidade e do modo de vida de tão diferentes tipos de grupos e pessoas das classes populares? (BRANDÃO, 1985, p. 9)” Em “Noite da paixão” a personagem Nelsinho ironicamente se compara ao sofrimento de Cristo e a prostituta com Maria Madalena, ao ser questionado sobre quanto tempo ficariam juntos, ele lhe responde: “- O resto da vida, Madalena
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(TREVISAN, 1998, p. 100).” O embate entre os dois se dá por conhecimento clérigo dele e ausência de cultura cristã dela, ou seja, um conhecedor profanador e ela que desconhece a catequese, porém entra na Igreja para pedir perdão dos pecados. Por exemplo, ela não sabia que se tratava do dia da paixão do Cristo, do dia de malhar Judas e os confundiam com a Páscoa, ao vê-lo reclamar de uma paixão antiga passando em frente à casa de Marta, eles dialogam: - Não fique triste, querido. Todinha do amor. Foi bem de Páscoa?/ De Páscoa ainda não fui./ - Ah, eu pensei... Não é hoje a Páscoa?/ Hoje é sexta-feira, minha flor. Que horas são?/ - Quase onze./ - A própria noite da paixão. Amanhã é aleluia./ - Que a gente ganha ovos?/ - Dia de malhar Judas. Porventura sou eu, Senhor?/ Envergonhada, apertou-lhe o braço: - É, sim, meu bem. (TREVISAN, 1988, p. 101)
Após esses desníveis de cristandade a personagem Nelsinho, coloca-se como o próprio Cristo, igualando-se a este, porém note-se na passagem citada acima que ele se vincula mais à imagem de Judas, do que a de Cristo, na visão da prostituta, leiga no assunto, ela concorda inocentemente com ele, ajuste do narrador. Tudo vai bem até que ele se depara frente a frente com a mulher e nota que lhe faltam os dentes entre as presas, vinculada à ideia de vampira e ele vitimizado pelo pecado na noite da paixão: “terei de beber, ó Senhor, deste cálice? (TREVISAN, 1988, p. 102)”, como se ele fosse entregue ao sacrifício. Retomando a cena bíblica em Mateus 26:39, Jesus disse: “Meu Pai, se é possível, afasta de mim este cálice! Todavia não se faça o que eu quero, mas sim o que tu queres”. Foi ter então com os discípulos e os encontrou dormindo. E disse a Pedro: “Então não pudestes vigiar uma hora comigo... Vigiai e orai para que não entreis em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca.” Ou seja, se pensarmos no ato profanador de Nelsinho, ele abandona totalmente a sua carne, as frases da liturgia ele repete e conhece, mas o que diz respeito ao corpo em plena sexta-feira santa, esquece-se totalmente. Em um único momento se observa a fragilidade da prostituta em “Noite da paixão” é quando eles se encaminham para o hotel e ele vai pagar o encontro à senhora atrás do balcão e esta toma a revista de fotonovela que encontra na bolsa da prostituta, apertando-lhe o dedo ao correr o zíper, a moça se entristece por perder a revista, ao
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entrarem no quarto, Nelsinho percebe que ela nem se mexia, porque a patroa lhe confiscara a história e essa não era a primeira vez. O narrador no conto de João Antônio demonstra os clamores da sua personagem prostituta por Deus: “Meu nome, desde que me entendo, é Maria de Jesus de Souza. E meu Deus, preciso fazer um ganho (ANTÔNIO, 1986, p. 37).” O tempo todo ela se encontra em diálogo com o divino, frases por vezes ligadas a espiritualização cristã x profanação: “Uma alma boa, uma mãe-de-Deus abençoada não me aparece. [...] Hoje não estou querendo nem saber quem envernizou a asa da barata. Nem venham (ANTÔNIO, 1986, p. 38).” O leitor atento tem que observar que o criador da barata, do homem, da mulher e todas as outras existências, na simbologia cristã, foi Deus, como num momento ela pede proteção divina e em outro não quer nem saber quem envernizou a asa da barata? No ato de se defender dos meninos que a incomodam na rua, chamando-a de Mimi Fumeta, ela se considera toda de Deus, os meninos do diabo: “Uma raiva me rala, ó vexame. Se cato um pixote desses na minha unha... Meu Deus, uma criatura não pode ter paz [...] Vão jogar bola, vão ao banho de mar, vão brincar no bem-bom. Fossem para o diabo. Mimi Fumeta é os cambaus. A ilustríssima senhora sua mãe (ANTÔNIO, 1986, p. 38-39).” Na verdade as pessoas da rua a tratavam desta forma por saberem do seu envolvimento com o tráfico é como se estivesse abandonada por Deus e pelo mundo: “Deus e o mundo ficaram sabendo do meu chaveco e aqui na Lapa até vendedor de amendoim e engraxate tiram sarro com a minha cara (ANTÔNIO, 1986, p. 39).” Por sentir talvez esse abandono ou por várias crenças no Brasil e influências de outras religiões e seitas a personagem acredita também em horóscopo, ao comprar uma revista de fotonovela e ler o conteúdo romântico da mocinha pobre que se envolve com um homem e muda de vida, acaba por se prender à leitura pagã, detalhe ela é de Virgem (contradição proposital do narrador): Alegre-se, garota de Virgem! Com toda a certeza você já pressente que o amor está rondando por perto e que, devagarinho, está chegando cada vez mais. O astral à sua volta está perfeito: vibrações harmoniosas, cheias de alegria e irradiando muita simpatia. E será no meio desta festa que você receberá uma maravilhosa declaração de amor [...] Toda a cautela, no entanto, com pessoas invejosas. Mas a sua persistência fará com que enfrente a vida com segurança e tudo
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será mais fácil./ Bato, três vezes seguidas, no tronco da árvore do Passeio Público. Este horóscopo tem de ser quente, só tem. Inveja e olho grande, deixa estar. Tem duas aí no pedaço que estão a fim de me secar, as asas negras Odete Cadilaque e Rita Pavuna. Estou sabendo. Deixa estar, suas. Maria de Jesus não vai dar bobeira. (ANTÔNIO, 1986, p. 41)
Após ouvir tudo isso, a vida da personagem não melhora, pelo contrário, ela é vítima dos policiais que a abordam primeiro para averiguação de drogas, depois a espancam, levam-na para um beco e a estupram, ela acorda sem sentidos e vai até o barzinho como de costume. Do que adiantou, as crenças dela diante da dureza da vida? Nem Deus, nem horóscopo e nem bater três vezes na madeira lhe tirou do destino trágico e rotineiro vivido pela personagem. Com referência a secar, “olho grande”, de acordo com Burkert em A criação do sagrado (2001, p. 114) entre os rituais de submissão, não é comum que se olhe fixamente, pois traz “mau olhado e desperta um programa de alarme hereditário.” Resta que a vida já lhe era suficientemente cruel. Nelsinho em “Noite da paixão”, refletindo melhor sobre o seu momento, tenta dissuadir a prostituta de estar com ele, mas é inútil, visto que ela não possui a consciência cristã: - Não tem medo, minha filha? [...] Castigo do céu. A noite santa. O amor é maldito./ - Não minta, vai para o inferno. Quantas vezes entrou e saiu da igreja? À caça de homem./ - Se fosse o diabo? Perder a sua alma? (Idem)” A personagem usa de artimanhas através da iconografia cristã, do tempo da quaresma e a presença do maligno: “Esta noite, minha filha, o amor é pecado. Esta noite ele gera monstros (TREVISAN, 1988, p. 103).
Esta parte do conto parece corresponder a passagem bíblica que lembra a tentação que Cristo sofrera, ela lhe responde: “- Tem a lábia do diabo.” E ele: “- Tu o disseste – e entregou-se ao sacrifício [...] Na agonia do amor, sofresse até o último alento (Idem).” Na passagem bíblica em Mateus 26: 45: “Voltou então para os seus discípulos e disse-lhes: „Dormi agora e repousai! Chegou a hora: o Filho do homem vai ser entregue nas mãos dos pecadores‟...” Não há em “Maria de Jesus de Souza”, por exemplo, um ambiente que a proteja do cotidiano de sua profissão, apesar de sonhar com mãos manicuradas, com desfile ao lado de um homem fino, com a oportunidade de local melhor para os encontros como o
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“Bar e Boate Primor”, o que lhe sobra é mesmo a rua da Lapa, o botequim dos mendigos, o bar onde faz fiado, o hotel da Travessa do Mosqueira. Outra passagem profana em “Noite da paixão” recai sobre a atitude dela que o faz decidir: Faça-se o que deve ser feito.” Depois do desfile da mulher diante de Nelsinho que desviava os olhos, as ações são sempre dela que se enrosca nele, enfiando a língua nas suas orelhas e as reações dele que não consegue negar o que sente, entrega-se:“ – Que se faça tua vontade, Senhor, e não a minha (TREVISAN, 1988, p. 105).
Ao percorrer o corpo dele, ela ia satisfazendo-se e satisfazendo-lhe, porém para ele fingidamente era “o sacrifício”: “preparando para o sacrifício, espargia no corpo o bálsamo aromático (Idem).” Ela o perseguia e nesta situação, a personagem pede água: “- Último alento, berrou espavorido: - Tem água aí? (TREVISAN, 1988, p. 106).” Sem ter como se sair da situação provocada por ele mesmo, propositadamente, reclama que ninguém vem lhe salvar: “agora fecho os olhos e desmaio de tristeza./ - O galo cantou três vezes (Idem).” Já sem ter como fugir da situação se entrega de vez: “- Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?/ Em cheio a ventosa obscena, ó esponja imunda de vinagre e fel. – Está consumado (Idem).” Nelsinho se torna sem ação diante da mulher, note-se que entre os rituais de submissão há ainda a sexual: “a humilhação pode assumir uma outra forma a da submissão sexual, o que significa que os homens aceitam funções femininas.” (BURKERT, 2001, p. 2001). A selvageria dela se aproxima do maligno, diabólico, na visão cristã do narrador personagem, o oco dos dentes, lembra a imagem do vampiro (a), também maldito (a): “um grito selvagem de triunfo, beijava-o possessa, olho aberto. Ele apertou a pálpebra, não ver a careta diabólica de gozo (TREVISAN, 1988, p. 107).” Ao final do conto, os sinos dobrando na Igreja anunciando o fim do sofrimento da paixão de Cristo e a declaração da personagem Nelsinho, como se ele fosse o próprio ressuscitado: “Nelsinho suspendeu o passo, a terra fugia a seus pés: - Sou inocente, meu Pai (Idem).” A personagem aqui faz referência a cena apocalíptica a que Cristo passa, onde tudo é resolvido, decidido, culminando no fim trágico e violento de morte de cruz, enquanto que para Nelsinho, tudo é tão simples que ele apenas sai da cena do seu sacrifício, renovado e sem dever nada.
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Na ideologia cristã, comenta Paz, o homem seria impedido de ser ele mesmo: “ser si mesmo é condenar-se à mutilação, pois o homem é apetite perpétuo de ser outro (PAZ, 1982, p. 327).” Ou pior ainda, essa busca acaba sendo a eterna briga dos poetas românticos, a busca pela metade, pelo outro de certa forma perdido pela religiosidade: “atrás de Cristo ou de Orfeu, de Luzbel ou de Maria, procuravam essa realidade das realidades que chamamos de o divino ou o outro (PAZ, 1982, p. 328).” Os preceitos mencionados por Paz poderiam revelar que a tentativa do narrador é demonstrar como é inseparável a outra vida e esta vida, o divino e o terrestre, se vaidade ou falta de imaginação, a finalidade não gera a simples salvação, mas demonstrar que a vida e a morte andam juntas, redescobrindo entre um e outro os fragmentos que compõem o universo. Para Eliade a ressurreição representa para o religioso: “para o cristão o Tempo começa de novo com o nascimento de Cristo, porque a encarnação funda uma nova situação do homem no Cosmos (ELIADE, 2001, p. 98).” Nelsinho personagem de Trevisan procura desmistificar a religião apregoada na sua cidade, inverte papeis, coloca-se como vítima, a qual não é, é sim profanador, é uma personagem capaz de não respeitar os vínculos cristãos de outrem em busca dos próprios instintos sexuais.
CONCLUSÃO: Nos contos tanto a prostituta em “Noite da paixão”, como a “Maria de Jesus de Souza”, não possuem uma identidade definida, a primeira não é citada por nome e a segunda é considerada por todos como Mimi Fumeta, as duas possuem o mesmo sonho de romantismo instaurado pelas fotonovelas, a que tem o homem perfeito que as tiraria daquele universo opressor, vivendo entre o desejo dos homens e a rejeição deles, na face de cada uma o horror da vida cotidiana, em uma a ausência dos dentes, na outra a surra dos policiais com os “olhos raiados de sangue”. Apesar de em “Noite da paixão” Nelsinho se colocar como vítima, notamos singelamente, que a única vítima é a própria mulher é ela que sofre as opressões que é usada como pessoa e largada na cama do hotel após isso. Poderíamos concluir ainda que a tentativa do homem/mulher é aproximação frustrante de Deus, da perfeição:
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De uma perspectiva cristã, poder-se-ia dizer igualmente que a nãoreligião equivale à nova “queda” do homem: o homem a-religioso teria perdido a capacidade de viver conscientemente a religião e, portanto, de compreendê-la e assumi-la; mas, no mais profundo de seu ser, ele guarda ainda a recordação dela (ELIADE, 2001, p. 173).
Sem argumentações em demasia, o homem/mulher moderno (a) é aquele (a) que se perdeu pelo caminho, que saiu do centro do cosmos religioso e que “depois da primeira „queda‟, a religiosidade caiu ao nível da consciência dilacerada; depois da segunda, caiu ainda mais profundamente, no mais fundo do insconsciente: foi „esquecida‟ (ELIADE, 2001, p. 174).” Ainda há que refletir se a pessoa atual sabe pensar por si própria ou se ela é mesmo fruto do meio, do tempo e do espaço, haja vista que pertencemos a um grupo que estudou o tempo histórico de Cristo, tempo bíblico e o condicionamos a nossa ótica de vida, a cada qual cabe raciocinar o que é sagrado e o que é profano. Não nos cabe por ora julgar o homem, a mulher, seja ela prostituta ou não, mas alicerçar essas reflexões à história de cada um, compreendendo as oportunidades de vida que o ser humano tem e o seu vínculo religioso, cultural do lugar em que mora. A religião é um modo de controle do estado e da política para que as pessoas façam o correto e tumultue menos a ordem local, sem isto, como os governantes poderiam controlar a baderna, a arruaça, o sexo desenfreado, a falta da família? A preocupação vai além da moral e dos bons costumes, porque se uma sociedade não sabe quem é pai de quem, irmãos acabam se casando entre eles e causando outros problemas. Longe de tentar resolver as questões da prostituição, este artigo só pretendeu suscitar algumas ideias quanto a cristandade, o sagrado e o profano. As personagens tanto Madalena como Maria de Jesus de Souza são representativas dessas mulheres que nem se sabe o porquê chegaram nessa vida, se por comodismo, se por falta de opção em outros locais de trabalho. Porém, em “Noite da paixão” Nelsinho é muito cruel, ao terminar o ato sexual, ele não se vira para trás, veste suas roupas, antes que ela se mexa, “sem se despedir” se retira. A dignidade da pessoa humana é eliminada, a mulher é mesmo o objeto sexual do desejo masculino, aqui reforçado nas entrelinhas.
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Referências: ANTÔNIO, João. Abraçado ao meu rancor. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. Bíblia Sagrada. São Paulo: Editora Ave-Maria LTDA, 1994. BOFF, Leonardo. Paixão de Cristo – paixão do mundo. Petrópolis: vozes, 1978. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Memória do sagrado: estudos de religião e ritual. São Paulo: Editora Paulinas, 1985. BURKERT, Walter. A criação do sagrado. Lisboa/Portugal: Edições 70, 2001. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 2001. PADEN, Willian E. Interpretando o sagrado: modos de conceber a religião. São Paulo: Paulinas, 2001. PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. TREVISAN, Dalton. O vampiro de Curitiba. Rio de Janeiro: Record, 1998.
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DUETO LITERÁRIO: ESTRATÉGIAS PARA AMPLIAR A RELAÇÃO DO LEITOR COM O TEXTO Conceição Maria Alves de Araújo Guisardi (PROFLETRAS1 - UFU2) Cléverson Alves da Silva (PROFLETRAS - UFU3) RESUMO O ensino de Língua Portuguesa tem sido voltado quase sempre para a escrita considerada de prestígio e para o domínio de conceitos gramaticais. Dessa forma, a literatura acaba sendo um apêndice da língua, e ressalta-se, em estado de falência. As causas são diversas, entre elas, a falta de apoio pedagógico ou o condicionamento de ensinar apenas as escolas literárias, autores e obras. Cosson (2012) diz que a relação entre literatura e educação está longe de ser pacífica e ressalta o quanto o momento enfrentado pela literatura é crítico. O ensino de maneira significativa e professores qualificados contribuem para o incentivo da leitura, seja por meio do lúdico ou de estratégias diferenciadas que concretizam na formação de leitores críticos. Sabe-se que a escola é uma grande agência de letramento, onde escritor e leitor, ao se apropriarem da ação efetiva do ato de ler ou de escrever, fazem acontecer uma significativa interação com o texto, contribuindo para a comunicação, uma vez que a interação pela linguagem materializa-se através de textos, orais, escritos e imagéticos. Pensando assim, foi organizada a aplicação de uma proposta denominada “Dueto Literário” para alunos do ensino fundamental e médio de uma escola pública do Distrito Federal. Os alunos desenvolveram atividades utilizando vídeos, edição, apresentações, entre outras, que contribuíram para uma aprendizagem significativa da literatura. A proposta aplicada está ancorada em teorias e nas TIC–Tecnologias da Informação e da Comunicação. Os meios adotados contribuíram para motivação dos alunos nas aulas de literatura e para estreitar a relação entre o texto e o leitor. PALAVRAS- CHAVE: Literatura, Letramento Literário; Tecnologias da Informação. 1 INTRODUÇÃO O ensino de literatura tem sido, ao longo dos anos, visto apenas como estudo sistemático de escolas literárias, contexto histórico, vida e obra de autores. É importante que o contato com a literatura aconteça desde a infância, por meio dos contos de fadas, fábulas, parlendas, trava-línguas e outras infinitas possibilidades de acesso ao mundo da leitura, dentro de um contexto significativo. A aprendizagem deve ultrapassar meios
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Agradecemos o apoio financeiro recebido da, FAPEMIG, e à CAPES. Mestranda em Letras- Profletras, pela Universidade Federal de Uberlândia. [email protected] 3 Mestrando em Letras- Profletras, pela Universidade Federal de Uberlândia.. [email protected] 2
E-mail: E-mail:
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mecânicos ou até mesmo culturais e se efetivar em algo que prepare o aluno para as mais diversas situações de letramento4. Ao falarmos de literatura, torna-se pertinente remetermos para dois polos: o texto e o leitor. O contato individual e silencioso com o livro tem função educativa, porque prepara o leitor para o contato direto entre as imagens lidas e o desenvolvimento da emoção e do imaginário. O professor de Lingua Portuguesa, como grande construtor de conhecimentos da linguagem, deve por sua vez, buscar estratégias diferenciadas para favorecer o processo de letramento. À medida que os alunos vão ganhando autonomia para a leitura, vão adquirindo maior compreensão naquilo que lê. Cosson (2012) defende que o processo de letramento que se faz via textos literários compreende não apenas uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas também, e, sobretudo, uma forma de assegurar seu efetivo domínio. Essa visão do letramento literário é destacada pelo autor pela possibilidade de uma concepção de leitura que fosse além das práticas escolares usuais. Ainda nos dias de hoje, o ensino da literatura parece estar ancorado no método tradicional, o qual entendemos como forma inadequada para se trabalhar a literatura, pois são ações traduzidas como obrigação de praticar o “decorar” datas, nomes de autores e escolas literárias. Situações como essa levam os alunos a se afastarem dos livros e a perderem o estímulo para a leitura. Evocando Iser (1996), ressaltamos, então, a importância da interação. A teoria da interação, proposta pela psicologia social, apresentada no livro “Foundation of Social Psychology”, parte do pressuposto de que é preciso estabelecer categorias de tipos de contingências5 que são encontráveis ou emergem em cada interação humana. (ISER, p.97, 1996). Enquanto professores de Língua Portuguesa e focados na necessidade de práticas diferenciadas do ensino da Língua, pensamos que o ensino de literatura deve ser efetivo, desde o ensino fundamental e envolvendo todos esses fatores que já mencionamos, ou seja, a relação do leitor com o texto, a interação, o estímulo. Esse ensino deve vir 4
O letramento abrange o processo de desenvolvimento e o uso dos sistemas da escrita nas sociedades, ou seja, o desenvolvimento histórico da escrita, refletindo outras mudanças sociais e tecnológicas, como a alfabetização universal, a democratização do ensino, o acesso a fontes aparentemente ilimitadas de papel, o surgimento da internet. (KLEIMAN, 2005, p18). 5 Tipos de contingência: pseudocontingência , contingência assimétrica, contingência reativa e contingência mútua. A contingência faz parte da constituição da interação. (ISER, 1996).
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permeado de situações que levem o aluno a perceber todo o contexto das lacunas deixadas pelo livro didático e pelas aulas expositivas de assimilação de conceitos enraizados em práticas desmotivadoras: perceber o que o texto traz pronto e o que não traz, ou melhor, exemplificando, o dito e o não dito. Biella (2014) ressalta a importância de vermos a literatura como prática e como ensino, a preocupação com a transmissão do saber, a necessidade de substituição do autor, escola e movimento, pelo texto, do direito à polissemia e, enfim, manifestar a literatura como mediadora do saber. (informação verbal)6 Diante dessa inquietação, foi feita uma proposta de ensino de literatura, em uma escola pública do Distrito Federal, que atende alunos do ensino fundamental e médio. Justifica-se a aplicação dessa proposta pela necessidade de despertar, no aluno, o prazer para a aprendizagem de literatura, de aproximaá-lo do texto. O público alvo foi uma turma de 9° ano do ensino fundamental e 1°, 2° e 3° ano, do ensino médio, podendo com isso, ter uma visão ampla do ensino de literatura, do letramento literário, das turmas de ensino fundamental ao médio.
O objetivo maior dessa discussão, que
resultou na prática, foi trabalhar com o letramento literário, contribuindo para a formação de leitores reais. 2 REFERENCIAL TEÓRICO 2. 1 O ensino de Literatura O contato com a obra literária, desde a infância contribui de forma significativa na formação de bons leitores. É a oportunidade de desenvolver potenciais que permeiam no campo do criativo, cognitivo e cultural. A Literatura, nas escolas, deve despertar o gosto pela leitura, pois "[…] a literatura pode proporcionar fruição, alegria e encanto quando trabalhada de forma significativa pelo aluno. (SAWULSKI, 2002, apud MARTINS et al. p.1). Concordamos com Martins et al, quando dizem que a literatura “pode desenvolver a imaginação, os
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Trecho da aula do professor Dr. João Carlos Biella, apresentada no curso do Profletras da Universidade Federal de Uberlândia. Em Uberlândia. MG. Março. 2014. Biella (2014) traz essa informação baseandose na obra “Reflexões a respeito de um manual”, de Roland Barthes.
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sentimentos, a emoção, a expressão e o movimento através de uma aprendizagem prazerosa". (p.10). Sabemos que muitos estudantes não têm o hábito de ler, e que o contato com a literatura ocorre concomitante com a chegada à escola. Uma simples história contada traz consigo uma infinidade de possibilidades de aprendizagem. Por isso, o professor de Língua Portuguesa deve sempre refletir sobre sua prática pedagógica, no que tange ao ensino da leitura e da escrita, do texto literário, identificando as particularidades que envolvem a relação leitor e texto. Com isso, ponderamos que a literatura como um diálogo entre dois seres igualmente ativos: o autor e o leitor, estabelece no primeiro momento um contato geralmente silencioso e em solidão. É o momento de encontro do leitor com o livro, em que ele decifra, compreende e interpreta as palavras do autor. Após essa interação individual, a leitura pode ser socializada na forma de diálogo, resumos orais, debates ou atividades coletivas, teatro, música, cinema, entre outros; passando do estágio de solidão para o estágio da comunicação com outros potenciais leitores. Cosson (2012, p.23) diz que “estamos diante da falência do ensino da literatura. Seja em nome da ordem, da liberdade ou do prazer. O certo é que a literatura não está sendo ensinada para garantir a função essencial de construir e reconstruir a palavra que nos humaniza”. O autor nos explica o motivo desse estado, quando em sua obra “Letramento Literário-Teoria e Prática” diz que essa falência é visualizada porque falta um objeto próprio de ensino, afirma também que os que se prendem aos programas curriculares escritos, a partir da história da literatura precisam vencer uma noção conteudística do ensino para compreender que, mais que um conhecimento literário, o que se pode trazer ao aluno é uma experiência de leitura a ser compartilhada. Cosson (ibid) lembra ainda que, “aqueles que acreditam que basta a leitura de qualquer texto, estão equivocados, pois essa experiência poderá ser ampliada com informações específicas do campo literário e até fora dele”. (p. 23). Para que a literatura cumpra seu papel no imaginário do leitor, é fundamental a mediação do professor na condução dos trabalhos em sala de aula e no exemplo que dá
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a seus alunos, lendo e demonstrando, sempre que possível, a utilidade do livro e o prazer que a leitura traz para o intelecto e a sensibilidade. Pensando assim, para alcançar um ensino de qualidade é necessário que o professor utilize estratégias de leitura e que saiba fazer as escolhas adequadas das obras literárias a serem trabalhadas. 2.1.2 As TIC e o Ensino de Literatura O mundo globalizado é o resultado de inúmeras transformações sócio, econômicas, culturais e tecnológicas. Pode-se afirmar que no âmbito das comunicações, as mudanças foram mais visíveis para o conjunto da população, uma vez que, independente da situação econômica, o acesso às TIC (Tecnologias de Comunicação e Informação) tem crescido a cada ano. De acordo com os dados do IBOPE Media7, o Brasil atingiu em 2013 a marca de mais de 105 milhões de pessoas com acesso à internet. Para essa pesquisa foi considerado o acesso à internet em qualquer ambiente como domicílios, trabalho, lanhouses, escolas, bibliotecas, espaços públicos e outros locais. Entretanto, se compararmos esse número com a totalidade da população e o número de municípios brasileiros, poderemos constatar que ainda existe um mapa de exclusão digital. Hoje, investir em qualidade educacional significa ter acesso e domínio das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), especialmente da internet. Ou seja, parece não existir qualidade de educação sem o domínio das ferramentas digitais. Constata-se, através de pesquisa realizada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico-OCDE (2005, 2007) que existe uma grande preocupação acerca do desenvolvimento dos letramentos digitais.8 Dessa forma, a OCDE informou, segundo Romaní (ibdi), que a avaliação PISA (Programme for International StudentAssessment) poderia incluir uma nova seção para 7
“O IBOPE é a maior empresa privada de pesquisa da América Latina e a 13ª maior do mundo. Com mais de 70 anos de experiência, tem na credibilidade o seu maior patrimônio. Não por acaso, a marca IBOPE está presente nos dicionários como sinônimo de prestígio. O IBOPE Media é a unidade de negócios do Grupo IBOPE responsável por prover o mercado com pesquisas sobre o consumo de todos os meios” Disponível em: . Acesso em: dia/ abreviação do mês (ex. abr.) /2014 8 Recomendamos para aprofundamento da temática “Letramento digital”, a leitura da obra Letramento Digital: Aspectos sociais e possibilidades pedagógicas, organizado por Carla Viana Coscarelli e Ana Elisa Coscarelli, da coleção Linguagem e Educação/Literatura e Educação.
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avaliar as competências cognitivas no que tange ao uso das tecnologias e competências digitais9. Segundo esse pesquisador, na prova do PISA de 2009 e 2012 avaliações das competências digitais foram introduzidas, tendo em vista a importância da análise desse campo. Em 2013, o questionário aplicado aos alunos que participaram do exame indagava sobre o uso dos computadores pelos alunos e como se sentiam ao usá-los. O objetivo de tudo isso nos parece ser avaliar o desenvolvimento do letramento em novas TIC. Acreditamos que o acesso às TIC aumenta e melhora a “performance” dos alunos nos testes de avaliação externa. Isto pressupõe a melhoria na qualidade de vida dos cidadãos uma vez que possibilita a interação em massa da sociedade de forma participativa, promovendo a democracia digital. O emprego das TIC e em especial, da Internet, tem possibilitado desenvolver um potencial de participação capaz de formar o cidadão para viver no mundo contemporâneo em toda a sua complexidade. E por que não relacionar isto tudo ao ensino de literatura, já que o nosso objetivo é retirá-la do estado de falência? Ancorados nessas mudanças no contexto contemporâneo, devemos buscar um processo de ensino de Língua Portuguesa, que de fato tenha significado para o aluno para que ele entenda para quê e por que aprender determinados conteúdos, para que se perceba a transitividade do ato de ler. Seria pretensão nossa, querer mudar toda a concepção que se tem em torno do ensino de literatura nas escolas, o que almejamos é a possibilidade de somar estratégias para que essa área do conhecimento comece a ter um tratamento que vá além de apêndice da língua. Para redimensionar o pensamento em torno do ensino da literatura é que lançamos como proposta o letramento literário por meio das TIC. As práticas de sala de aula precisam contemplar o letramento literário, para que possamos, então, detectar a relevância das propostas aplicadas.
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Conforme Romaní (ibidi) “As competências digitais são um conjunto de capacidades e habilidades para explorar o conhecimento tácito e explícito, complementado pela utilização de tecnologias digitais e o uso estratégico da informação. As competências digitais vão além do uso de qualquer TIC específica, incluindo uso proficiente da informação e aplicação do conhecimento para trabalhar individualmente e de forma colaborativa em contextos mutantes”.
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3 METODOLOGIA A proposta constituiu-se de dois momentos: Entrevista literária e Cinema literário. Enfatizamos aqui, que em uma avaliação inicial, notamos que os alunos não conheciam bem a experiência do colega. Podemos exemplicar isso, através do “nothing” que Wolfang Iser defende: “Todas as nossas relações interpessoais se fundam nesse “nothing”, pois reagimos como se conhecêssemos as experiências dos nossos parceiros, criamos sem cessar imagens de como os parceiros fossem reais” (ISER. 1996, p.101). É destacado ainda que a “relação interpessoal é, portanto, um constante balanço que fazemos a respeito dessa lacuna inerente a nossa experiência.” (p.101). Os alunos participantes dessa proposta são alunos do ensino médio e 9° ano do ensino fundamental. Os alunos do ensino fundamental participaram de algumas atividades, apenas como ouvintes ou auxiliares, embora tenham tido acesso aos textos literários, além da oportunidade de socialização desses momentos. Os alunos do ensino médio, 1°, 2° e 3° anos, foram de fato, os mais atuantes, devido ao fato da proposta envolver mais diretamente conteúdos desse segmento. Ressaltamos que trabalhamos com os alunos do ensino fundamental utilizando uma sequência básica e com o ensino médio, a expandida. Oferecer um tratamento lúdico ao ensino de literatura pareceu-nos, em primeira instância, uma relevante alternativa a fim de contribuirmos para uma aprendizagem efetiva dessa área do conhecimento, utilizando, a tecnologia a nosso favor. Foram propostas as seguintes atividades: Cinema Literário: Momento de troca de experiências, de socialização e de vivenciar práticas de letramento digital ou letramentos múltiplos. Como a proposta era transformar as obras em vídeo para formar um acervo para a escola, despertando o interesse de outros alunos para a leitura, os recursos tecnológicos foram essenciais. Os alunos foram divididos em grupos que exploraram as atividades, buscaram espaços próprios para fazerem suas filmagens, como por exemplo, a obra “A moreninha” foi gravada em prédios históricos. Após todas as obras prontas (Obras escolhidas pelos alunos), organizamos sessões de cinema, onde os alunos explicavam para o público (alunos de outras séries e professores) o contexto da obra, fazendo comparações com o estilo contemporâneo de algumas obras e logo após exibiam os filmes. Foi feito um concurso para escolha de ator revelação, da melhor obra, melhor elenco, trazendo um enorme envolvimento e motivação das turmas.
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Entrevista literária: Após o trabalho com os filmes, que aconteceu em dois meses de efetiva dedicação, era o momento de conhecer o autor, suas obras, suas concepções. Os alunos organizaram entrevistas com os “autores” 10 das obras trabalhadas anteriormente, criando espaço próprio, e nomes para as entrevistas, tais como: De frente para Clarice, Encontro com Machado. Após o desenvolvimento de atividades que envolveram a turma toda, e outros segmentos, como professores, direção, pais, os alunos demonstraram mais interesse em conhecer as obras e autores clássicos, e, acreditamos que, como consequência, estes livros começaram a fazer parte do acervo dos alunos junto aos tão desejados Best Sellers. Na filmagem das entrevistas, criaram momentos de intervalo, com propagandas, chamando atenção para questões sociais, tais como segurança pública e campanhas de vacinação. Com toda diversidade que gerou esse projeto, os alunos começaram a entender a literatura em sua essência, como possibilidade de troca de experiências, de socialização. Os alunos começaram a perceber a ligação da literatura com outros componentes curriculares, a relação de obras, autores, com o contexto social e com a arte. 3.1 RESULTADOS As atividades da proposta foram desenvolvidas em quatro meses. Participaram da proposta, uma turma do ensino fundamental (40 alunos) e sete turmas do ensino médio, sendo: três primeiros anos, dois segundos, e dois terceiros anos (280 alunos). Os alunos trabalharam em grupos, onde cada grupo ficou responsável por uma tarefa, como organização de figurino, de roteiros, elaboração de textos, fotos, organização dos ensaios, edição das imagens, gravação de cds do cinema literário, organização de sessão de cinema para que outras turmas pudessem assistir, entre outros. Alguns professores de outras disciplinas, tais como arte, ajudaram na organização de atividades da proposta. Os alunos fizeram relatos de que as turmas ficaram mais unidas e que resgataram o prazer pela aprendizagem de literatura. Alguns relataram que ao prestar um processo seletivo para vestibular, escolheria o curso de Letras pela possibilidade de ampliar o estudo dessa área de conhecimento. Os alunos do ensino fundamental demonstraram a vontade de cursarem logo, o ensino médio, para que pudessem vivenciar esses momentos mais efetivamente. Os alunos, após todas essas possibilidades de letramentos
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Os alunos se caracterizaram dos mais diversos escritores: Clarice Lispector, Machado de Assis, Lima Barreto, entre outros.
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múltiplos, melhoraram suas produções textuais, questões de convivência e a maneira de se relacionarem. Entendemos que por meio de uma pesquisa se constrói conhecimento. Para Minayo e colaboradores (1994), a pesquisa é iniciada com uma pergunta, uma dúvida, que para ser respondida se coloca a necessidade de articular conhecimentos anteriores ou então criar novos conhecimentos. Isto é, ela indaga e constrói a realidade, e mesmo sendo uma prática teórica, vincula o pensamento e a ação. Por isso, para fins de pesquisa, fizemos uma avaliação com as turmas, levantando os seguintes questionamentos: 1. Você acredita que o cinema literário e a entrevista literária trouxeram uma aprendizagem mais motivadora da literatura? 2. O que você achou desses momentos na escola? Pode ser melhorado? 3. Você considera que a aprendizagem foi mais significativa com esses momentos do que se tivessem acontecido somente com aulas expositivas? Focados em um método qualitativo, apresentamos aqui, alguns registros, respeitando o anonimato dos alunos. Representar “Garota de Ipanema” marcou minha vida para sempre (aluna do 2° ano). Atuar como Capitu? Meu Deus, que sonho! (aluna do 3° ano). Foi muito gratificante representar “A Moreninha”, agora até gosto do livro, pois achava chato demais. Estou sendo verdadeira... (aluna do 1°ano). Eu gostei tanto que nem imagino a gente tendo aula de literatura, de outra forma, quando estivermos no ensino médio (aluna do 9°ano). Nossa, esse é o maior registro literário, e porque não dizer o mais marcante na minha vida” (relato de aluno, devido ter colocado nas propagandas da entrevista literária, o depoimento de uma pessoa com câncer, e dias depois a pessoa ter falecido. Considerou a atividade como oportunidade de lembrança dessa pessoa). Não somente aprendemos literatura, vivemos literatura. Trabalhos como esse, não teríamos apenas que ter visões das obras, como entender todo o contexto do qual fazem parte”. (aluno do 3° ano). “Poder ajudar o ensino médio, fez com que eu me sentisse importante.” (aluna do 9° ano). Trabalhar o cômico nas propagandas, trabalhar a música, a arte, ler muito... Isso tudo nos mostrou como é bom aprender de literatura. (aluno do 2° ano). Nossa, o que foi aquilo? Filmar, representar o “Pais do Carnaval”... gente, vou lembrar para sempre. Obrigada, professora! (aluno do 3° ano). A matéria que mais gosto é literatura, afinal, é a oportunidade que temos de unir as turmas, de trabalhar com o computador, de competir com os colegas. Amei tudo isso. Espero que ano que vem seja desse jeito. (aluna do 1 ° ano). “Nunca pensei que alguém fosse valorizar o que escrevo. Quando a professora falou que eu poderia ler meu poema diante de toda a escola, me senti a pessoa mais importante do mundo. Quando for fazer faculdade, quero fazer Letras.” (aluno do 1° ano). Fonte: Avaliação da proposta: “Dueto Literário” – Aplicada em uma escola pública do Distrito Federal.
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O principal objetivo em se trabalhar literatura de forma gradativa e lúdica é estimular a imaginação dos alunos, em um clima de alegria e descontração. É possível, também, proporcionar momentos de socialização e troca de experiências, oportunizar o acesso ao texto literário, possibilidade de fruição, despertar o interesse do aluno pela leitura, permitindo a autoidentificação e favorecer a resolução de conflitos. Para o desenvolvimento dessas atividades, os autores desse projeto, buscaram um conhecimento mais efetivo das TIC, pois os alunos utilizaram para as gravações, microcomputadores, filmadoras, celulares, além de programas para edição. Todas as filmagens da Entrevista Literária fazem parte, hoje, do acervo da escola. Foram trabalhados diversos autores, releitura de entrevista com Clarice Lispector, entrevista com Machado de Assis, Joaquim Manuel de Macêdo, entre outros grandes nomes da literatura. Todo esse trabalho despertou prazer para a aprendizagem de literatura, possibilidade de formação de um leitor real, possibilidade de acesso a meios tecnológicos, possibilidades de socialização, prazer pela leitura, melhora em produções textuais e contribuiu principalmente para reflexões de professores da LP, (professores da instituição escolar) da necessidade urgente de reformulação de propostas pedagógicas para conquista do que chamamos de letramento literário. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Quanto mais cedo o estudante entrar em contato com o texto literário, melhor terá uma visão do universo que o cerca. Nesse momento, ocorre a possibilidade de ampliação do potencial criativo, além de ampliar o conhecimento. O letramento literário se caracteriza não só como instrumento de formação conceitual, mas também como emancipação de uma sociedade que vive mudanças ideológicas e tecnológicas. Muitos alunos não têm o hábito de ler, e pelo que foi possível perceber na proposta aplicada, têm contato com a literatura, apenas, quando chegam à escola. Mas, não cabe ao professor de LP trabalhar de forma “instrumental” a literatura. Ele deve criar condições para que o estudante trabalhe com o texto a partir de seu ponto de vista, trocando opiniões sobre ele, assumindo posições sobre os fatos narrados.
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Pela análise feita, conclui-se ainda que os objetivos foram atingidos, pois do lado teórico, acredita-se que o conhecimento e a compreensão da literatura como um universo a descobrir, remete para a necessidade de estratégias diferenciadas em sala de aula para que desde os primeiros anos escolares, os alunos apresentem gosto pela leitura. Do lado prático, percebemos que a motivação para a aprendizagem é fator que permeia o universo do aluno e do professor, e que para que os alunos sintam prazer com atividades que envolvam a literatura, são necessárias estratégias que visem a superação dos obstáculos impostos pela falta de hábito de leitura. A proposta, idealizadas por nós, partiu da necessidade de se romper com toda uma concepção equivocada, quanto ao ensino de literatura. Foi possível fazer uma reflexão teórica e perceber que se faz necessário somar estratégias de ensino, respeitando toda a diversidade que temos no espaço escolar. Além disso, enfatizar a importância que a tecnologia exerce nesse contexto, com o objetivo de construir conhecimentos, desenvolver hábitos de leitura e efetivar o contato do leitor com o texto. As atividades envolvendo práticas de letramento literário, transpondo muitas vezes, até os espaços escolares (fator identificado ao fazerem as filmagens) quando utilizadas de forma adequada, com certeza acrescentam-se à educação como mais um agente transformador da aprendizagem. Acreditamos que levamos ao aluno o direcionamento para aprenderem a aprender literatura. E todas as limitações encontradas serviram como base de reflexão para que novas formatações pedagógicas do ensino de literatura sejam implantadas para garantia de uma aprendizagem significativa.
5 REFERÊNCIAS BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental: Língua Portuguesa. Brasília/DF: MEC/SEF, 1998. COSSON, R. Letramento Literário: teoria e prática: São Paulo, 2012. COSTA, M. M da. Metodologia do ensino da literatura infantil. Curitiba: IBPEX, 2007.
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IBOPE. Número de pessoas com acesso à internet no Brasil chega a 105 milhões. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2014. ISER, W. O ato da leitura: Uma teoria do Efeito Estético. Tradução Johannes Kretschmer. Editora 34, 1996. KLEIMAN, Ângela. Preciso ensinar o letramento? Não basta ensinar a ler e a escrever? Campinas, UNICAMP/MEC, 2005 MARTINS et al. A importância da literatura infantil no desenvolvimento cognitivo da criança. < Disponível em http://www.sitedeliteratura.com>. Acesso em: 10 jun. 2014. MINAYO, M. C. S. (Org); DESLANDES, S. F.; CRUZ NETO, O. GOMES, R. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT OECD. Are students ready for a technology-rich world? What PISA studies tell us.Paris, 2005a. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2014. ______. Longer term strategy of the development of PISA. In: MEETING OF THE PISA GOVERNING BOARD PARIS, 20., 3-5 Oct. 2005b., Reykjavik, Iceland. EDU/PISA/GB (2005) 21. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2014. ______. PISA: the OECD programme for international student assessment. Paris, 2007. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2014. ROMANÍ. C. C. Explorando tendências para a educação no Século XXI. Cad. Pesqui. vol.42 no.147. São Paulo Dec. 2012. p. 848-867. Disponível em:< http://www.scielo.br/pdf/cp/v42n147/11.pdf> Acesso em: 10 jun. 2014.
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MACHADO DE ASSIS: POETA (O APRENDIZADO DO OFÍCIO) Cristiane Nascimento Rodrigues (UFSCAR) O escritor brasileiro Machado de Assis, ainda adolescente, iniciou sua carreira literária em 1855 com a publicação de poemas na revista a Marmota Fluminense, do tipógrafo, editor, redator e poeta Francisco de Paula Brito. Um homem importante para a história da imprensa brasileira, pois em 1831 estabeleceu por conta própria sua empresa, uma casa editora e em frente uma livraria, no centro do Rio de Janeiro, ampliando assim a edição de jornais, livros e revistas no país e colaborando para a publicação de textos literários de iniciantes nas Letras. Na livraria de Paula Brito se reuniam homens de todos os tipos para discutir política, as novidades dos teatros, comentar sobre os fatos da semana, e principalmente falar sobre literatura. Era a associação literária denominada Petalógica. E como o Romantismo ainda permanecia com seus célebres poetas nacionais, os poemas eram os mais exclamados e admirados. Nesse ambiente, Paula Brito acolhia os jovens escritores que participavam das reuniões aprendendo e travando amizades e além disso, publicava seus textos produzidos, em sua Marmota. Nesse sentido, Machado de Assis ao frequentar a Petalógica e publicar intensamente na Marmota de 1855 a 1857, revela ser assíduo participante desse grupo. E como seu gosto ainda estava em formação e recém aprendia os passos literários é normal que tenha seguido modelos tanto de poetas também frequentadores da livraria como de sua leitura dos já consagrados. “Machado de Assis era sensível aos discípulos e aos epígonos dos grandes astros; ele se inseria numa tradição poética.” (MASSA, 2009, p.114). Portanto, tal pesquisa propõe a leitura dos primeiros poemas (1855-1857) de Machado de Assis, publicados na Marmota, buscando verificar como se deu sua formação intelectual e literária. O grande prosador de nossa literatura, portanto, nasceu poeta. Ainda em tenra idade já traçava um objetivo na vida, um plano de futuro que revelava sua maior inspiração: escrever. Encontrou, sobretudo, o terreno ideal para desenvolver sua vocação, graças ao grande florescimento literário de que gozava a capital do Império na segunda metade do século XIX. (AMPARO, 2013, p.88).
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Nesse sentido, busca-se descobrir suas primeiras amizades literárias, suas participações nos eventos da sociedade da época, assim como, em associações literárias, idas ao teatro, conversas nos mais diversos ambientes públicos do Rio de Janeiro do Segundo Reinado. Além de tentar conhecer também os poetas que mais o influenciaram. E como na época de sua estréia nas Letras ainda reinava no Brasil o Romantismo com a publicação periódica em revistas de poetas como Gonçalves Dias, Alvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Gonçalves de Magalhães entre outros, tanto brasileiros como estrangeiros, é evidente que o jovem Machado de Assis tenha se espelhado primeiramente nos poemas destes para enfim compor seus próprios versos, exerimentando os mais diversos temas e formas. E por isso, foram lidos textos históricos e críticos sobre o meio social, cultural e literário do Brasil, e principalmente da cidade do Rio de Janeiro da metade do século XIX. Buscou-se, ainda, primeiramente reler diversas biografias sobre Machado de Assis, dando ênfase para as biografias intelectuais a fim de recolher material sobre o período de sua formação poética. Além disso, pesquisou-se ainda sobre o editor Francisco de Paula Brito e sua revista a Marmota (1831-1864), com o intuito de averigar sua linha editorial e o público leitor a quem era dirigida: “Publicava estampas de modas, artigos literários, anedotas, acrósticos, motes e glosas, charadas e logogrifos, tudo isso muito ao sabor da época.” (PUJOL, 2007, p.8). E os mais interessados nesse conteúdo eram os estudantes e as moçinhas que buscavam um entretenimento e uma leitura fácil, poética e prazerosa, bem ao estilo europeu da época. E além disso, foi realizada a análise aprofundada de somente um poema de Machado de Assis, o primeiro publicado antes de a Marmota, no final de 1854 em um jornal de pouca veiculação: Periódico dos Pobres. E verificou-se que o poema, reproduzido a seguir suas primeiras duas estrofes, apesar de passar despercebido e não ter tido sucesso por uma estrutura um pouco dura e sem efeito, é possivel retirar informações importantes para o entendimento do aprendizado do poeta. Nomeado “Soneto” e oferecido a “Ilma. Sr. D. P. J. A”, contém imagens tanto românticas quanto clássicas e o mesmo se passa em sua forma. Evidenciando então estar Machado
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veiculado à tradição romântica mas ao mesmo apresentando características clássicas de seu interesse e gosto. Quem pode em um momento descrever Tantas virtudes de que sois dotada Que fazem dos viventes ser amada Que mesmo em vida faz de amor morrer! O gênio que vos faz enobrecer, Virtude e graça de que sois c´roada, Vos fazem do esposo ser amada (Quanto é doce no mundo tal viver!)
(MAGALHÃES JUNIOR, 1981, p.18).
E nesse momento, tem-se relido e analisado os poemas publicados na Marmota, selecionando-os para o relatório final de pesquisa, já que são um total de 36 poemas publicados em dois anos, com temas e formas diversos. Com a realização de metade da pesquisa, percebe-se que Machado de Assis ao compor seus primeiros poemas estava mais interessado em experimentar diversos temas e formas, mais que já preencher um lugar entre os poetas de uma geração e escola literária. Seus poemas dispersos possuem os temas românticos, mas utilizam imagens ora românticas, ora clássicas, além de possuirem versos que ao mesmo tempo que aproximam o poeta Machado aos grandes poetas românticos da época, o distanciam. É ainda interessante notar que a maioria desses poemas dispersos não foram reunidos em livro pelo escritor, e foram esquecidos por muito tempo, vistos como ruins. Porém, concluimos serem importantes para o entendimento do processo de aprendizagem de Machado de Assis, além de revelar como este participou do período romântico e deixou revelar suas mais diversas leituras da literatura universal em seus versos.
Referências AMPARO, Flávia. “As musas de Machado de Assis”. In: O eixo e a roda: revista de literatura brasileira, 1982. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG. Dossiê de estudos de poesia brasileira, 2013, p.87-104.
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ANDRADE, Mário de. “Machado de Assis”. In: Aspectos da Literatura Brasileira. Editora Americ, s/d, p.119-143. BANDEIRA, Manuel. “O poeta”. In: ASSIS, Machado. Obras completas. v.3. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 2006, p.11-14. BOSI, Alfredo. “Machado de Assis”. In: História Concisa da Literatura Brasileira. 43ª ed. São Paulo: Cutriz, 2006, p.174-183. _____. (org.) Leitura de Poesia. São Paulo: Editora Ática, 2010. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira – momentos decisivos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. FILHO, Barreto. Introdução a Machado de Assis. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1947. _____. O estudo analítico do poema. 4ª ed. São Paulo: Humanitas, 2004. GONDIM, Eunice Ribeiro. Vida e obra de Paula Brito. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana Editora, 1965. LOPES, Helio. A divisão das águas. Contribuição ao estudo das revistas românticas. São Paulo: Conselho Estadual de artes e ciências humanas, 1978. MAGALHÃES JUNIOR, R. Vida e obra de Machado de Assis. v.1. Aprendizado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. _____. Ao redor de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S. A. 1958. MASSA, Jean Michel. A Juventude de Machado de Assis. 1839-1870. Ensaio de biografia intelectual. São Paulo: Editora Unesp, 2009. _____. Dispersos de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura. Instituto Nacional do Livro, 1965.
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ENTRE A INSTITUIÇÃO DE ENSINO E O MERCADO DE CONSUMO: A LEITURA DE BEST-SELLERS POR ACADÊMICOS DE UM CURSO DE LETRAS Daiane da Silva Lourenço (UTFPR) O aumento de leituras de obras por parte de leitores jovens, tanto de leitores ainda na educação básica quanto de acadêmicos, revela que, ao invés de lerem apenas o que a escola ou a universidade pede, desenvolvem seus próprios gostos e tendem a escolher o que leem fora de tais instituições. O interesse em averiguar as histórias de leituras de um grupo de jovens e seu crescente interesse pelo ato de ler romances, levounos a elaborar esta pesquisa, contribuindo para o campo de estudos sobre formação de leitores. Ao observarmos que alguns acadêmicos de um curso de Letras Português-Inglês, de uma universidade pública paranaense, buscavam outras literaturas, além da brasileira, para ler fora da universidade, procuramos realizar uma pesquisa a fim de conhecer suas preferências de leitura. Diante da lista de títulos de romances citados como lidos no último ano, buscamos coletar outros dados dos participantes da pesquisa, como o motivo das escolhas de leituras, o contexto socioeconômico, as concepções de leitura, leitor e literatura. Como são poucos os pesquisadores que se voltam para os objetos de leitura escolhidos pelos alunos, ao contrário dos “indicados” pelos professores, suas percepções enquanto leitores literários são praticamente desconhecidas. Por outro lado, o posicionamento de críticos e professores é constantemente discutido em livros, artigos e eventos. Consideramos importante que a academia também procure abordar as percepções
dos
leitores
jovens,
considerados
inexperientes.
Diante
de
tal
problematização, apresentamos neste trabalho as preferências de leitura e as concepções de literatura de um grupo de professores em formação a partir de suas próprias perspectivas.
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Participantes da pesquisa e metodologia O grupo de participantes da pesquisa é formado por 76 estudantes de um curso de Letras Português-Inglês de uma universidade pública que se dispuseram a responder aos questionários e nos autorizaram a utilizar as informações fornecidas. No segundo semestre de 2010, responderam aos questionários 3 alunos do segundo ano, 22 alunos do terceiro ano e 3 alunos do quarto ano. Em março de 2011, coletamos dados de 48 alunos do primeiro ano. De todos esses participantes, 17 disponibilizaram-se a participar de uma entrevista individual gravada em áudio. A maioria dos respondentes tem idade entre 17-63 anos. No primeiro ano, entretanto, prevalece a faixa etária de 17 a 25 anos. Nas outras turmas predominam estudantes entre 20 e 28 anos. Dos 76 respondentes, 57 são do sexo feminino e 19 masculino. Devido ao interesse em pesquisar a circulação de literaturas estrangeiras entre alunos de um curso de Letras, coletar dados e interpretá-los, este trabalho procurou seguir procedimentos metodológicos de uma pesquisa de cunho etnográfico. A etnografia foi inicialmente desenvolvida por antropólogos para estudar a cultura e a sociedade (ANDRÉ, 1995). Nos estudos antropológicos, esse conjunto de técnicas é usado para coletar dados sobre hábitos, costumes, crenças de um grupo específico, os quais depois são relatados por meio da descrição. Segundo André (1997), a partir do final dos anos 70, pesquisadores da área da educação demonstraram interesse pela etnografia e passaram a aplicá-la em seus trabalhos, com o objetivo de interpretar a(s) perspectiva(s) adotada(s) pelos participantes. Em nossa pesquisa, a fim de interpretar a percepção dos participantes acerca da literatura, empregamos instrumentos de pesquisa associados à etnografia: observação participante, entrevistas, questionários, interpretação dos dados. Nos meses de outubro e novembro de 2010, aplicamos o Questionário 1 (focando
hábitos
e
preferências
de
leitura),
o
Questionário
2
(aspectos
socioeconômicos) e Questionário 3 (conceitos de leitura, leitor e literatura) para alunos do segundo, terceiro e quarto ano de Letras, e em março de 2011 para estudantes do primeiro ano. No período abril-junho de 2011, realizamos entrevistas semiestruturadas, gravadas em áudio, abordando suas concepções.
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Para a coleta e análise de dados, empregamos a técnica da triangulação, com o objetivo de abranger a máxima amplitude na descrição, explicação e compreensão da pesquisa (TRIVIÑOS, 1987). Nessa técnica, diversas fontes são utilizadas para a coleta de dados, recorrendo a diferentes olhares para o mesmo objeto. Em nosso caso, empregamos a observação participante, os questionários e as entrevistas. As fontes diversas favorecem a reflexão e a interpretação mais confiável da cultura dos participantes devido à extensão do corpus coletado. A circulação de literatura estrangeira entre os participantes A fim de conhecermos as preferências de leitura dos participantes da pesquisa, os questionamos a respeito dos livros que leram desde janeiro de 2009 até o momento da aplicação do questionário (outubro de 2010) e que não foram pedidos como leitura pela universidade. Ao mesmo tempo, pedimos que justificassem suas escolhas, de forma que a partir das respostas pudéssemos começar a perceber: a) se as literaturas estrangeiras circulam entre eles, ainda que na forma traduzida, visto que muitos não têm o nível de língua inglesa exigido para a leitura do texto-fonte; b) as influências recebidas que desencadearam as escolhas de tais objetos de leitura. O grupo de acadêmicos de Letras citou ao todo 178 títulos lidos sem serem requisito da universidade. Os estudantes do primeiro ano apresentaram maior quantia de obras lidas, enquanto nos outros anos alguns chegaram a justificar a falta de ou a pouca leitura devido ao tempo livre limitado por causa das leituras exigidas pelo curso. Das obras citadas, apenas 74 títulos são de literatura brasileira, enquanto 104 de estrangeira. Os títulos brasileiros citados são, em sua maioria, textos consagrados, tais como: A hora da estrela, Dom Casmurro, Fogo Morto, Macunaíma, O alienista, Vidas Secas. Contudo, best-sellers nacionais também são mencionados: Verônica decide morrer, O vendedor de sonhos, O alquimista, entre outros. Em meio aos títulos estrangeiros, há menções a clássicos e a obras mais vendidas. No entanto, as últimas prevalecem. Dos 104, 79 são de literatura em língua inglesa (Canadense, Estadunidense, Britânica, Australiana, Irlandesa). Os alunos variam suas leituras entre Shakespeare, Jane Austen, Ernest Hemingway, Charles Dickens, Alice Walker e escritores que produzem para o
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consumo. Os best-sellers mais lidos são, respectivamente: A cabana (William P. Young), Crepúsculo (Stephanie Meyer), Eclipse (Stephanie Meyer), O caçador de pipas (Khaled Hosseini); Marley e eu (John Grogan), A menina que roubava livros (Markus Zusak), Amanhecer (Stephanie Meyer). Apesar de estarem em um curso de Letras de licenciatura dupla, grande parte de tais leituras são realizadas por meio da versão traduzida. O questionário aplicado também possibilitou-nos averiguar as influências que tais sujeitos receberam para realizar suas escolhas de objetos de leitura e o que consideraram ao escolherem os livros. A indicação de amigos e os seus comentários sobre as obras prevaleceram como a principal razão para realizar uma leitura (44 indicações), pois os estudantes afirmam que sua curiosidade é despertada. As indicações são tanto de obras clássicas quanto de best-sellers. Além da indicação de amigos, outros motivos são citados, como: o enredo interessante, a preferência pelo autor, o interesse pelo tema abordado, o título, o filme baseado no livro, o gênero (romance, ficção, aventura, fantasia), o resumo da obra, obra presenteada, livros clássicos. Dentre essas justificativas, algumas são resultado da influência do mercado editorial para que as obras sejam vendidas, como o título, o resumo, o enredo e a produção fílmica. Além dessas, outras razões aparecem com menos frequência nas respostas, mas também são influência da indústria cultural: por serem contemporâneos, a crítica do livro, continuação da saga, mídia, linguagem fácil. Os alunos participantes demonstram interesses que são permeados por outros sujeitos (amigos, familiares) ou meios (mídia). Para os alunos de Letras, os cânones são lidos por serem importantes para a formação dos sujeitos enquanto futuros professores, no entanto, fora da comunidade universitária, preferem best-sellers. A relação estreita entre os participantes da pesquisa e a indústria cultural é demonstrada nas respostas. Com a intenção de vender, as editoras procuram elaborar bem a capa dos livros, para ficarem atraentes para os leitores; as traduções dos títulos das obras em língua inglesa são pensadas para o público brasileiro, a fim de chamar a atenção dos leitores; o resumo da contracapa pretende criar a curiosidade e mostrar como a obra tem sido lida em outros países; sem contar a preocupação com o enredo, seja romântico, de aventura, de suspense, cômico, para prender o leitor do início ao fim. Outra maneira de fazer com
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que as obras sejam vendidas é produzi-las em coleções, também chamadas sagas ou trilogias, pois o leitor só chega ao fim da história no último livro. Por fim, após o trabalho de elaboração nas editoras, há as propagandas em meios de comunicação, principalmente na Internet e em revistas, algumas vezes na televisão ou no rádio, que atraem vários leitores, e as facilidades para que os livros cheguem às suas mãos, muitas vezes entregues em casa. A produção fílmica também contribui para que as vendas tripliquem, pois não satisfeitos em serem apenas espectadores da narrativa, o público também quer ser leitor, para saber mais detalhes do enredo. O mercado de consumo pode alterar as próprias convenções de leitura criadas pelos grupos de leitores ao exercer influência sobre suas escolhas e suas percepções de literatura. O ciclo de leituras de best-sellers tomou grandes proporções no final do século XX, mas acreditamos que se expandiu ainda mais em meio aos jovens do século XXI. Como querem pertencer a um grupo, ler best-sellers faz parte desse processo, que inicia entre os adolescentes e se expande até cerca dos trinta anos. Se antes se juntavam para falar sobre moda e futebol, atualmente discutir sobre livros tem sido parte do cotidiano de jovens brasileiros. De certa forma, a indústria cultural tem tido forte influência sobre as leituras dos jovens, mais do que as instituições de ensino. A interpretação das respostas dos questionários e das entrevistas permitiu-nos perceber que muitos dos participantes leem best-sellers porque dentro de seu grupo, o grupo de amigos, há percepções favoráveis a esses textos. Os acadêmicos participam do grupo de amigos e de um grupo que integra a academia, com concepções de literatura muitas vezes diversas das que expressam. Às vezes, como descrevemos mais adiante, as concepções dos dois grupos nos quais estão inseridos se confundem, ou seja, o respondente expressa uma concepção de literatura que representa tanto a percepção dos amigos quanto a perspectiva dos estudiosos de literatura. Literatura: alguns conceitos Partimos do princípio de que não é possível definir literatura, apesar de várias tentativas já terem sido feitas por teóricos e estudiosos. Mesmo empregando alguns critérios para o julgamento de um texto como literário ou não, não é possível apontá-los
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como únicos e acabados, visto que há outros textos que têm características consideradas literárias e literatura com características apontadas como não-literárias. Diferentes conceitos foram apresentados em diferentes contextos históricos. Sendo assim, os limites são tênues, contudo consideramos importante para nosso trabalho adentrar um pouco neste universo de discussões e destacar algumas afirmações de pesquisadores acerca do que seja literatura para depois refletirmos sobre as concepções literárias dos participantes da pesquisa. Dentre as várias tentativas de definição do literário, acreditamos que a mais difundida é o conceito de ficção. Sendo essa uma das principais formas de tentar distinguir a literatura de outros gêneros, Eagleton (1983) afirma que poderíamos, a princípio, descrever que a literatura é uma escrita “imaginativa”, que não é literalmente verídica. É um texto que faz com que o leitor se distancie do cotidiano e imagine um universo diferente. “As oposições de real/irreal e verdadeiro/falso são quase sempre mantidas para classificar operacionalmente „ficção‟ e distinguir semântica e pragmaticamente a leitura literária de outros regimes de leitura, como os textos pragmáticos, históricos, filosóficos e científicos” (HANSEN, 2005, p. 19). Contudo, a distinção entre fato/ficção, real/irreal e verdadeiro/falso é muitas vezes sujeita a questionamentos. A literatura tem uma linguagem específica. Eagleton (1983) propõe que um texto literário pode ser definido não por ser “imaginativo”, mas por empregar a linguagem de forma peculiar, de uma maneira que se distancia da linguagem comum. A literatura, como afirma o autor, transforma e intensifica a linguagem comum, afastandose da fala cotidiana. Em um texto literário, as palavras superam o sentido literal. A conotação é uma forma de o autor dizer além do que está escrito. A plurissignificação do texto literário se opõe à denotação de outros textos lidos em nosso cotidiano. A linguagem literária é singular e causa estranhamento no leitor por distinguir-se bastante dos textos cotidianos. Até o momento, percebemos que a literatura não é somente ficção e um modo “especial” de emprego da linguagem, para caracterizá-la é preciso apontar, ainda, outras propriedades. Como diferenciar um texto literário de um científico, filosófico, histórico? Talvez seja importante, aqui, destacarmos que o discurso literário não tem um
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propósito, é “não-pragmático” (EAGLETON, 1983), o que o diferencia de manuais de física, propagandas, bilhetes. Ele não tem uma finalidade imediata, segundo Candido (1985, p. 45), tem a propriedade de “exprimir representações individuais e sociais que transcendem a situação imediata, inscrevendo-se no patrimônio do grupo”. A grandeza da obra literária está em sua capacidade de tornar-se intemporal e universal. Por ser “não-pragmática”, a ficção literária também é imotivada (HANSEN, 2005). Mais que imotivada, a escrita literária é gratuita. A literatura não pode ser definida objetivamente, visto que a subjetividade faz parte de seu processo de produção e de recepção. Sendo assim, “a definição de literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza daquilo que é lido” (EAGLETON, 1983, p. 9). Nesse sentido, o conceito de “valor literário” varia de acordo com o público. O termo literatura é contingente. A resposta à pergunta: “O que é literatura?” talvez não seja possível de ser dada, mas “Quando é literatura?” parece mais conveniente: é literatura quando um texto literário tem propriedades específicas, quando é fictício, quando atende a formas literárias, quando está inserido em um contexto que o apresenta como literatura, quando determinado público julga como literatura. O que é literatura para os participantes? Os acadêmicos do curso de Letras discorreram sobre o que consideram ser literatura. Ao analisarmos as respostas dos questionários, interpretamos 30 conceitos diferentes de literatura. As concepções de literatura predominantes foram: é ficção (5 indicações) e é o estudo de livros (5) em conformidade com Hansen (2005) que aponta a literatura como textos de ficção em oposição aos pragmáticos. Para 4 alunos, é uma forma de arte, assim como a pintura, a música, entre outros. Também 4 sujeitos consideram literatura uma forma de passar informação. Com 3 indicações aparecem os seguintes conceitos: é uma tentativa de representação da sociedade, é uma escrita imaginativa, são trabalhos literários de uma época, é uma forma de atualização de conhecimentos e é humanizadora. Dentre tantos outros conceitos literários também citaram: tudo o que um grupo considera literatura, histórias antigas, períodos literários,
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linguagem elaborada, manifestação da arte, a arte de recriar histórias, um olhar diferente sobre as coisas comuns. Já afirmamos não ser possível definir literatura. As respostas dos alunos confirmam a perspectiva que adotamos. Os conceitos, como ficção (HANSEN, 2005), escrita imaginativa (EAGLETON, 1983), linguagem literária (AGUIAR E SILVA, 1973), estranhamento (CULLER, 1999) aparecem nas respostas dadas, retomando o discurso da crítica literária, além da questão da formação humana. Contudo, não é possível dizer o que a maioria dos alunos considera ser literatura, visto que não houve resposta que se sobrepusesse às outras. A triangulação de dados dos acadêmicos de Letras nos possibilita ter acesso a concepções diversas de literatura. A visão de literatura do grupo condiz tanto com leituras clássicas quanto com best-sellers. A pergunta “Você diria que as obras estrangeiras que fazem parte da indústria cultural podem ser consideradas literatura, visto que a maioria dos críticos não as considera?” é respondida, em geral, utilizando elementos literários discutidos anteriormente. Vejamos: Eu acho que sim. É uma literatura de massa, mas é literatura. Até um folheto pode ser literatura, dependendo de quem fez o folheto. A literatura é algo bem maior do que todo mundo pode tachar. Não tem como tachar o que é literatura ou não. É o que eu acho. Não tem dessa de falar que só porque é da indústria cultural não é literatura. Alguma coisa de bom sai dali. A literatura não é um retrato fiel da realidade, então se não é um retrato fiel da realidade, são dois mundos a parte, o mundo real e o literário, as obras que estão saindo agora são literatura. Eu acho isso, talvez possa estar errado ou mude minha opinião daqui há dez anos. Agora acho isso (Tiago, 27 anos). Eu acho que sim. Não literatura clássica... não literatura da melhor... mas sim literatura de massa. Eu acho que... lógico, não tem como substituir os clássicos por isso, nem tirar eles do colégio e colocar só Harry Potter. Mas eu acho que poderia ser inserido sim (Paula, 25 anos). Tem muita oposição. Eles falam que não é literatura, porque talvez não seja do próprio país. Mas tem muita coisa que não é literatura. Por exemplo, tem muitos livros que são muito mal escritos. Eu posso criticar? [risadas] Diários de um vampiro é um livro muito mal escrito... Você não tem um início, meio, conclusão. É claro que ele tem uma continuação, mas às vezes você se perde em uma história... e isso pode influenciar o aluno a escrever de uma forma errada, sem início meio e fim. Eu acho que isso não pode ser considerado
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literatura. Mas... como eu falei, livros como A menina que roubava livros e O Caçador de pipas são livros muito bem escritos, uma linguagem rebuscada. Uma linguagem que é rebuscada, mas é compreensível. Não é aquela linguagem que ninguém entende o que está falando. Então... eu acho que depende do livro pode ser considerado literatura sim (Janete, 19 anos). Sim. Porque ela faz a gente ter a catarse. Acho que tudo que é escrito que faz a gente sentir, nos sentir humanos pela arte é literatura. Não é só o que os críticos falam: “Isto é literatura e isto não é”... Porque o crítico é uma pessoa e ele tem as concepções dele, na minha concepção tudo que faz a gente se sentir humano pela arte... porque a escrita faz a gente ter um sentimento, faz a gente gostar. Tanto pelo gosto... que nem sempre é bom, às vezes faz mal pra gente, porque o que a gente lê faz mal. Mas tudo que a gente... tudo que busca nossas emoções, nossa memória, nossa história... faz a gente reinventar a vida (Vilma, 21 anos).
Destacamos, em negrito, elementos literários já discutidos no decorrer deste trabalho e presentes na fala dos estudantes para argumentar porque best-sellers, de acordo com suas concepções, são literatura. Os argumentos dos alunos são persuasíveis, pois discorrem sobre o que seu grupo convencionou como literário. Por fim, perguntamos aos alunos “Você tem mais interesse por obras nacionais ou estrangeiras? Por quê?”. As respostas permitem-nos chegar a algumas conclusões quanto ao conceito de literatura estrangeira dos alunos-participantes. Primeiro, há os alunos que a leem porque se interessam por alguns escritos canônicos de outras nacionalidades: Por eu gostar muito da língua inglesa, prefiro os estrangeiros como Shakespeare e Edgar Allan Poe, mas os nacionais me agradam mais do que literatura grega, por exemplo (Viviane, 18 anos).
Segundo, há alguns estudantes que consideram relevante a questão cultural. Portanto, veem a literatura estrangeira como uma fonte de conhecimento sobre outra cultura: Tenho mais interesse por obras estrangeiras. Por ter um contexto diferenciado e enriquecido. Mas é muito importante ter conhecimento de nossa cultura (Joana, 22 anos).
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Tenho mais interesse por obras estrangeiras. Porque a cultura, a literatura principalmente norte-americana me fascina (Ângela, 17 anos). Estrangeiros, pois adoro conhecer as culturas de outros povos e acredito que lendo livros estrangeiros poderei “viajar” para outros locais (Celeste, 17 anos). Estrangeiras. Gosto da literatura nacional, mas amo a possibilidade de um contato maios com outras culturas por meio de obras estrangeiras (Vagner, 20 anos).
Por fim, em terceiro lugar, estão os acadêmicos que relacionam a literatura estrangeira a uma leitura prazerosa, estimulada pela mídia. Em outras palavras, sua visão de literatura estrangeira parte dos best-sellers: Geralmente leio estrangeiros, devido comentários de amigos e mídia (Cláudia, 19 anos). Não me importa muito, mas acho que as estrangeiras, pois são mais interessantes quando se trata de suspense (Olga, 18 anos). Estrangeiros, pois são mais simples de ler e geralmente os temas chamam mais minha atenção (Fábio, 20 anos). Estrangeiras. Gosto do estilo, digo, de como é escrito, as obras nacionais (pelo menos as que li) tem uma linguagem “dura”, torna o livro difícil de ler, uma leitura arrastada (Pedro, 27 anos). A visão de literatura estrangeira do mercado editorial tende a repercutir mais
entre os jovens do que a dos especialistas. As entrevistas realizadas nos fornecem mais dados nesse sentido. A mesma pergunta (“Você prefere literatura brasileira ou estrangeira? Por quê?”) foi feita aos alunos de Letras entrevistados. Dos que afirmaram preferir literatura estrangeira, algumas das respostas dadas foram as seguintes: Ah, porque são temas mais legais, mais interessantes, mais atuais. Literatura brasileira só tem tema de romance, do século I e II [risadas]. Literatura muito antiga, histórias antigas, temas muito antigos. E a literatura estrangeira não, sempre está tendo lançamentos de temas atuais. Tem muito mais lançamento de literatura estrangeira do que brasileira, não concorda? E as obras brasileiras não são divulgadas. Aqui no Brasil só são divulgadas literatura estrangeira, de massa, que são traduzidas, é claro. Por causa do marketing, da Internet. Literatura
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brasileira não é divulgada. Tipo Paulo Coelho, Dalton Trevisan, ninguém lê eles atualmente (Janete, 19 anos) Eu acho que a forma como é escrita é diferente. O brasileiro se foca muito na... pelo menos a literatura que foi me indicada até agora, são literaturas antigas. A forma de escrever parece que é arrastado. Você não consegue ter aquela linearidade de leitura (Pedro, 27 anos). Olha... eu gosto de literatura estrangeira... eu li... eu até comprei porque eu gosto muito, O caçador de pipas... eu li várias vezes. Até li um Harry Potter mas... não gostei muito não... porque... na verdade eu não gostei de coisas que não existe... em nada... não só em literatura... em filme... (...) Nem novela quando começa com essas coisas nada a ver... igual um robô falando... eu já não gosto. Não assisto. Eu não gosto de ficar pensando em coisas que não existem. Então... com relação à literatura por isso... Harry Potter, O Senhor dos Anéis... ai! (expressão de nojo)... animais que falam, que pensam... eu não gosto deste tipo de coisa. Quer dizer... não é essa na verdade a literatura estrangeira... mas é o que a gente tem contato. (...) Igual... do Edgar Allan Poe... eu fui descobrir no começo deste ano que existia... sabe? Então... se alguém não fala pra você... você não tem acesso. O que você tem acesso são os livros estrangeiros da mídia (Priscila, 24 anos).
A preferência pela literatura estrangeira nos dois primeiros alunos está relacionada à divulgação do mercado editorial e à linguagem fácil, voltada para o consumo. O último sujeito reconhece que a concepção de literatura estrangeira baseada principalmente em best-sellers é devido à mídia que favorece o contato dos brasileiros com estas obras, que são mais lucrativas, enquanto clássicos como Poe só são conhecidos, muitas vezes, na graduação em Letras. Considerações finais A interpretação dos dados coletados demonstra que a literatura é convencionada entre os participantes da pesquisa, sendo assim, os grupos ao qual pertencem (de amigos, de acadêmicos, de professores) tem seus próprios conceitos de literatura. Por isso, suas escolhas são influenciadas pelos contextos nos quais estão inseridos. Há grupos que preferem os clássicos e há os que leem mais best-sellers. Uma mesma pessoa inserida em diferentes contextos pode ler ambos os textos, com diferentes
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objetivos, o que os dados coletados demonstraram acontecer com alguns participantes da pesquisa. As respostas coletadas mostraram que muitos acadêmicos sofrem a influência da indústria cultural ao escolherem as leituras. Apesar de a maioria saber distinguir entre uma obra estrangeira e uma nacional, alguns demonstraram dificuldade e confundiram a tradução com textos nacionais. Como veem propagandas diversas de lançamentos de obras estrangeiras e são best-sellers, consideram essas obras o principal exemplo que têm de literatura estrangeira. Por outro lado, outros estudantes relembram “grandes” cânones, como Shakespeare, Jane Austen, Poe. E ainda outros destacam a relevância de tais obras como conhecimento cultural. Nosso trabalho contribui com a linha de pesquisa formação de leitores pelo fato de focar as perspectivas de leitura e de literatura de comunidades de leitores e de empregar na análise teorias dedicadas ao estudo do leitor enquanto construtor de significados para um texto. Assim, abre possibilidades de estudos voltados para culturas específicas, para realidades pouco pesquisadas, ao evidenciar metodologia e teorias que favorecem a investigação de contextos pouco interpretados. Referências ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Etnografia da prática escolar. Campinas, SP: Papirus, 1995. CANDIDO, Antonio. A literatura e a vida social. In: ______. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 7. ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1985. p. 17-39. CULLER, Jonathan. Teoria literária: uma introdução. São Paulo: Beca Produções Culturais Ltda., 1999. EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1983. HANSEN, João Adolfo. Reorientações no campo da leitura literária. In: ABREU, Márcia; SCHAPOCHNIK, Nelson (Orgs.). Cultura letrada no Brasil: objetos e práticas. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2005. P. 13-44
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"LIRISMO, DESAMPARO E SOLIDÃO EM MEMÓRIA DE ELEFANTE, DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES"
Daniella Sigoli Pereira (UNESP/IBILCE)
António Lobo Antunes nasceu em Lisboa em 1942. Em 1970, é recrutado como tenente médico para a guerra de Angola, regressando em 1973. É em 1979 que se dá a publicação de seu primeiro romance, nosso objeto de estudo, Memória de Elefante, que narra um dia na vida de um médico psiquiatra, regressado de Angola e que vive a separação da mulher e de suas filhas, experimentando um profundo sentimento de angústia e desamparo diante do que lhe parece uma existência vazia, sem projetos ou perspectivas. Tal obra faz parte de uma trilogia composta, também, pelos livros Os Cus de Judas (1979) e Conhecimento do Inferno (1980), sendo que essa se enquadra dentro daquilo que Maria Alzira Seixo (2002) considera como Literatura Pós-Colonial, que faz o retrato da problemática do deslocamento, da mudança de lugares e da própria mudança subjetiva, que se relaciona, quando falamos especificamente em literatura pós-colonial portuguesa, com a experiência da guerra de independência das colônias africanas ligada aos combatentes contrariados, encontrando em Lobo Antunes uma de suas formas mais
bem
executada e
dramatizada. É importante ressaltar que a colonização portuguesa em África não deixou de ser violenta durante todo seu processo (ainda que essa ideia tenha sido ignorada ou rejeitada por muitos portugueses saudosos e defensores do governo salazarista) e tentou se sustentar até o último momento por meio de um governo militar totalitário, já que o país não vislumbrava outra maneira de sustentar sua economia a não ser por meio da exploração das terras ultramarinas. O historiador português Joel Serrão descreve a situação do país em 1975, no livro Balanço da colonização portuguesa, e que não parece ter se alterado muito mesmo depois de quase quarenta anos:
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Na verdade o país encontra-se numa situação sem par em toda sua história: o tenaz projecto ultramarino, mantido e afeiçoado no decurso de cinco séculos, esgotou, definitivamente, as suas virtualidades. Acabaram-se os ‘brasis’, ou as ‘áfricas’ que, em dado momento, pretenderam reconstituir aqueles. Acabaram-se para sempre! Entendamos isto, por uma vez se, por seu turno, queremos – se efetivamente queremos- entender o que importa levar por diante. É que, directa ou indirectamente, clara ou obscuramente, de uma forma ou de outra, todos nós fomos condicionados, historicamente, por um dado contexto herdado de geração para geração, no qual o centro da gravidade da nossa existência colectiva se encontrava alhures, em última instância, na caça ao índio brasileiro, na exploração do trabalho escravo do negro, nas colônias, condenadas a dados ritmos de ‘desenvolvimento’ou de estagnação, consoante fosse do agrado ou da conveniência ou das possibilidades dos senhores reinóis. Senhores que, por seu turno, manifestavam sua magnanimidade nos cuidados com a salvação das almas daqueles que, neste vale de lágrimas, implacavelmente se exploravam (SERRÃO, 1975, p.160).
Além de ser enquadrada dentro dessa perspectiva pós-colonial, a trilogia também pode ser entendida, ainda, dentro daquilo que Levecot (2011) e outros estudiosos denominam como Literatura Portuguesa do último quarto de século XX. Sendo este momento caracterizado
por inovações na linguagem, o deslocamento subjetivo que
seus personagens sofrem, causados não só pela Guerra Colonial em África, mas, juntamente com ela, pela Revolução dos Cravos em 1974, pelo fim do Salazarismo e pelas consequências históricas, políticas e culturais desse governo ditatorial, revelando, assim, um compromisso que se estabelece também com a revisão da História Oficial do país e com o presente histórico português. A questão temporal torna-se, portanto, central dentro dessas narrativas já que o passado irá atormentar o presente dessas personagens, que são incomunicáveis com seu tempo, vivendo num mundo de ruínas, fragmentação e solidão, tendo como perspectiva um futuro irônico e descrente em melhorias ou grandes transformações. Estabelece-se, assim, uma releitura crítica do passado à luz do presente. É nesse sentido que investigamos determinados recursos linguísticos e estilísticos que se anunciam em Memória de Elefante, desenvolvendo-se e consolidando-se em obras posteriores do autor. Dessa maneira, encontramos em Lobo Antunes um modo muito específico e próprio de se colocar dentro desse período
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literário português, seja pela metaforização que marca suas descrições, pelo percurso solitário desenvolvido pelo protagonista, bem como por sua falta de identificação com espaço, tempo e pessoas, pelo desencontro de si próprio, pelo monólogo interior e pela fragmentação formal que se radicaliza ao longo das suas narrativas. Quando pensamos na literatura pós-colonial portuguesa, percebemos nela um aspecto importante, que é o da desidentificação. Tal aspecto está marcado principalmente na figura do combatente contrariado que regressa ao seu país de origem constituindo-se já como outro sujeito, muito destoante daquele que era quando parte para África justamente pelo que nesse lugar vivencia e não consegue transformar em experiência completa de aprendizagem. Essa falta de uma experiência totalizante, que não é passível de transmissão, não é estranha, como bem afirma Walter Benjamin em seu conhecido texto “Experiência e pobreza”, “porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes.” (BENJAMIN, 1987, p. 115) Além disso, tal figura é ainda confrontada com o retorno a um território que também já não é mais o mesmo por causa do olhar modificado que agora ele lança para o mundo externo. Temos assim um duplo desencontro, do sujeito consigo e do sujeito com o mundo que o cerca. Se Berlim Alexanderplatz, de Döblin, apresenta como seu negativo sociológico os desempregados, de acordo com Walter Benjamin em “A crise do Romance”, Portugal o tem na figura dos retornados, classe da qual o protagonista do romance faz parte: “Entre a Angola que perdera e a Lisboa que não reganhara o médico sentia-se duplamente órfão, e esta condição de despaisado continuara dolorosamente a prolongar-se porque muita coisa se alterara na sua ausência(...)” (ANTUNES, 2009, p. 82) Se o sujeito que narra é este que já é um outro modificado quando retorna e que, portanto, lança um outro olhar para mundo que o cerca, nós, os leitores, vamos ter acesso a tudo que é externo ao narrador-protagonista de modo distorcido e modificado. Rosa Maria Goulart, professora da Universidade de Açores e estudiosa de Vergílio Ferreira, vai dizer que afirma que num romance tradicional, marcado por um narrador
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em terceira pessoa heterodiegético que, dificilmente, sofreu as consequências das experiências que estão sendo narradas, não encontramos essas distorções do mundo exterior: Mas não assim no romance lírico porque geralmente a subjetividade e a mundividencia do narrador – a menos que a atitude lírica seja da responsabilidade de uma personagem outra que não ele, o que é menos comum – dominam o mundo narrado, que assim aparece intimamente ligado à instancia da narração. Deste modo, na relação sujeito/objeto evidencia-se sempre uma supremacia do sujeito, mesmo que no mundo diegético esteja subjacente um esforçado labor do eu para vir à tona. Assim, o mundo narrado é o mundo do eu, mesmo se os outros lá estão (GOULART, 1946, p.32).
Em Memória de Elefante, acrescentando-se à experiência traumática de ter feito parte da guerra colonial, obrigado a defender uma ideologia em que desacreditava e contribuir, mesmo que involuntariamente, com as barbáries que tal conflito gerou, o médico protagonista ainda tem de aprender a lidar, muito precariamente deve-se ressaltar, com a extensão das consequências que tal experiência desencadeou. Já que é o combate e suas marcas simbólicas na consciência do personagem que fazem com que este reveja seu trajeto até o presente por meio de um registro memorialístico que traz à tona outros acontecimentos marcados pela angústia, como o casamento rompido e o afastamento das filhas. Nos momentos em que tais recordações aparecem no texto, podemos perceber o conflito entre aquilo que o personagem fez e que esperavam que fizesse, bem como entre aquilo que ele mesmo esperava de si e o que conseguiu de fato realizar, conflito este instaurado antes mesmo da Guerra, mas que só se evidencia para ele no momento do retorno. Tal volta é, portanto, marcada pelo convívio doloroso que o desencaixe em relação a si próprio e ao seu modo de estar no mundo provoca. Além disso, não podemos desconsiderar o fato de que o médico psiquiatra encontra-se na cidade de Lisboa que, ainda que não seja o exemplo máximo e perfeito de modernização, é em Portugal a mais desenvolvida, modernizada e populosa: Talvez que circular por Lisboa o dia inteiro atire as pessoas para uma espécie de epilepsia explosiva, talvez que esta cidade dê raiva e nojo a quem por obrigação a percorre em todos os sentidos, talvez que o próprio do indivíduo seja a exaltação assassina em franjas e andemos por aqui, nós os comedidos, a fingir amabilidade que não temos. (ANTUNES, 2009, p. 110)
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Sendo assim, é diretamente afetado pelo que a modernização causa em seus indivíduos, ou seja, a concentração de uma população enorme em centros urbanos, a expropriação das propriedades das famílias, a consequente extinção das relações comunitárias e familiares para uma inclusão artificial em classes sociais, que quase sempre, dão-se de maneira distanciada e alheia. É que, de fato, produziram-se na constituição da família mudanças que já não lhe permitem ter a mesma influencia preservadora de outrora. Enquanto, antigamente, a família mantinha a maior parte de seus membros em sua órbita desde o nascimento até a morte e formava uma massa compacta, indivisível, dotada de uma espécie de perenidade, hoje ela só tem uma duração efêmera. Mal se constitui e já se dispersa (DURKHEIM, 2000, p.493).
Como o sociólogo Durkheim irá discutir em seu texto O suicídio, o maior problema está na maneira com que essas modificações causadas por um progresso acelerado foram feitas, ou seja, de modo doentio e que só poderia, portanto, produzir relações sociais doentias. Ao retirar do homem algo com o que ele, de fato, poderia se vincular (sua comunidade ou sua família), a sociedade moderna nada colocou em seu lugar. Uma sociedade que se dissolve a cada instante para se recompor em outros lugares, mas em condições completamente novas e com elementos completamente diferentes, não tem continuidade suficiente para construir uma fisionomia pessoal, uma história que lhe seja própria e à qual seus membros possam apegar-se. Se, portanto, os homens não substituem o antigo objetivo de sua atividade à medida que este lhes escapa, é impossível não se produzir um grande vazio na existência (DURKHEIM, 2000, p. 494).
Há ainda a mão de obra que é cada vez mais reificada, técnica e instrumentalizada, marcada por um trabalho com o qual o trabalhador não vê sentido e, por vezes, nem utilidade. Como bem afirma o sociólogo Edison Bariani no seu artigo intitulado “O sucesso e a valorização dos processos técnico-produtivos na administração”, “Quando tais processos técnico-produtivos usurpam a qualidade de valores sociais tem-se então a completa transfiguração de pessoas em objetos, meios em fins, instrumentos em entidades, interesse em ética.” Ainda que o médico psiquiatra de Memória de Elefante não lide necessariamente com processos que podem ser
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considerados técnicos produtivos, marcado por algum avanço tecnológico, é notável a completa reificação que até mesmo um processo entre humanos passou a ter na era moderna: Vestir as pessoas de diagnósticos, ouvi-las sem as escutar, ficar de fora delas como à beira de um rio de que se desconhecem as correntes, os peixes e o côncavo de rocha de que nasce, assistir ao torvelinho da enchente sem molhar os pés, recomendar um comprimido depois de cada refeição e uma pílula à noite e ficar saciado com esse feito de escuteiro: o que me faz pertencer a este clube sinistro, meditou, e sofrer quotidianamente remorsos pela debilidade dos meus protestos e pelo meu inconformismo conformado, e até que ponto a certeza de que a revolução se faz do interior não funciona em mim como desculpa, auto-viático para prosseguir cedendo? (ANTUNES, 2009, p. 38).
Dessa forma, desamparo e solidão deixam de se relacionar somente com o lugar em que o personagem se encontra e com as pessoas com quem convive para se tornar um estado e uma condição que não podem ser controlados pelo personagem e das quais ele não pode fugir, já que está presente em todos os aspectos da sua vida. Para anunciar tais estados, assim como bem pontua Seixo (2010), o do desamparo e o da solidão, Lobo Antunes lança mão de uma linguagem altamente figurada caracterizada principalmente pela utilização de imagens metafóricas, bem como metonímicas quando temos transposição de sentido da ordem da contiguidade, ambas convergindo para a expressão do sentir do indivíduo no espaço e no tempo. Tal linguagem figurada emerge geralmente quando o plano memorialístico irrompe no discurso, fazendo com que o tempo e o modo de experenciá-lo se tornem subjetivos, característica fundamental, de acordo com Tadié (1974), para que uma narrativa possa configurar uma linguagem altamente poética. Maria Goulart também entende que o tempo da memória é um tempo que se diferencia do tempo objetivo e progressivo das narrativas comuns. Para ela: a partir do momento que o primeiro [ eu narrante] tem de fazer um apelo à memória para a reposição do vivido, sediado já lá atrás no passado, a exatidão desse vivido perde seus contornos. E então, ou porque a imaginação tem de intervir, ou porque o que foi antes na evocação será outra coisa, a lírica encontra nessa zona de indefinição o lugar propício ao seu eclodir. (GOULART,1990, p. 33)
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Além disso, é necessário reforçar que, para Tadié, o tempo cronológico é insuficiente para retratar a experiência humana com o tempo, justamente por ser essa subjetivada, e aquele objetivo, fazendo-se, assim, impossível a coincidência entre ambos. Enquanto um deve ficar preso a medidas uniformes, o outro se liga às sensações e experiências pessoais. Tais sensações e experiências podem ser transportadas para o texto por meio da utilização de metáforas e metonímias que dão grande poeticidade à narração. Parece-nos claro, portanto, que a narrativa poética tem que, necessariamente, apresentar ao leitor esse tempo subjetivado: “Embora a narrativa poética construa um mundo fechado, que tem seu próprio tempo, ela não pode isolar-se da História completamente, e em todas as suas manifestações. As duas progressões temporais cruzam-se. Mas é um cruzamento simbólico [...].” (TADIÉ, 1994, p. 95).1
Em Memória de Elefante, identificamos ser a solidão o elemento unificador dos tempos passado e presente do personagem, além de conferir à narrativa um ritmo temático, pois é reincidente em toda ela. Assim, como afirmamos, o médico encontra-se num estado de solidão profunda e paralisante, mas que, pelo que se percebe ao longo da narrativa, já está presente na sua infância, na guerra, na relação com a mulher e as filhas, e na própria ideia da prática médica. Tal perspectiva subjetiva do tempo faz com que o leitor possa não só refletir sobre a história que está sendo narrada, mas também vivenciá-la, justamente porque coloca o tempo cronológico num segundo plano, evidenciando o tempo tal como é sentido pelo protagonista. Quando discutimos o lirismo presente em Lobo Antunes, faz-se importante dizer que um dos seus grandes precursores, Vergílio Ferreira, também apresentava um modo “Bien que Le récit poétique construise um monde clos, qui a son propre temps, Il ne peut s’isoler entièrement, et dans toutes sés manifestations, de l’Historie. Les deux déroulements temporels se coupent. Mais c’est une coupure symbolique”. Uso, neste trabalho, a tradução inédita do livro Le Récit poétique feita pelo Prof. Dr. Orlando Nunes de Amorim em 2001 e que, muito gentilmente, foi concedida para nossa pesquisa. 1
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único de escrever e se manifestar no seu tempo, com narrativas que marcadamente apresentavam aspectos líricos e memorialísticos. Rosa Maria Goulart afirma ainda mais, para ela: “Um vivo interesse pelos processos de construção do romance contemporâneo, nomeadamente pela feição marcadamente lírica que era timbre de muitos deles, foi germinando em nós sobretudo através da leitura de Vergílio Ferreira.” (GOULART 1946, p. 16). Ainda dentro dessa perspectiva, vale notar que os autores portugueses do período em que a narrativa estudada neste trabalho é feita tem como compromisso não só a revelação, o questionamento e a revisão dos fatos que envolvem a história oficial de Portugal, mas, principalmente, de como representa-los na literatura. Porém, como bem afirma Vinícius Jatobá (2007), mestre em literatura e crítico literário, o que talvez faça de Lobo Antunes um dos mais importantes autores dessa produção seja essa sua capacidade para escrever uma extensa obra que apresenta de forma equilibrada o lirismo como uma de suas características centrais, como foi brevemente ilustrado aqui por meio da sua obra inicial, Memória de Elefante, mas sem necessariamente cindir com a prosa política, ainda que se distancie desta quando pensamos num gênero estanque em que há o compromisso primeiro de denúncia social. Em Memória de elefante, bem como em outras obras, Lobo Antunes nunca permite que o lirismo seja uma forma de alheamento do sujeito que percorre seu trajeto, pois é nas construções líricas que há a manifestação de como o personagem encara seu desamparo e sua solidão, mas, além disso, essa obra não permite qualquer esquecimento do mundo que cerca esse sujeito e das condições políticas, sociais e históricas que o levaram até ali.
Referências ANTUNES, A. L. Memória de Elefante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. BARIANI, E. O sucesso e a valorização dos processos técnico-produtivos na administração. Disponível em: http://administradores.com.br/artigos/economia-e-
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CRUCIFICAÇÃO E RESSURREIÇÃO: UMA POÉTICA DA SOBREVIVÊNCIA EM A QUARTA CRUZ DE WEYDSON BARROS LEAL Danielle Marinho (Unicamp / Fapesp) As visões do tempo em A quarta cruz (2009), do poeta pernambucano Weydson Barros Leal, nascido em 1963, estão vinculadas a um embate constante entre espaços vazios e fartos, ausências e presentificações. O poeta, na verdade, mobiliza uma dialética de crucificação e ressurreição, que envolve as pequenas mortes que acometem o poeta e a poesia (o mundo que se dissipa, o amor que não se realiza, a lembrança que lhe foge, o poema que não se faz; a palavra lançada e por isso perdida, a palavra não dita, o silêncio) e o que, apesar de tudo, resiste: os restos do mundo, os restos do amor, os restos de memória, restos de voz, restos do eu, restos do próprio tempo, afinal. A experiência do tempo implicada nesta poética está vinculada à própria interpretação do espaço. Sabe-se que espaço e tempo, enquanto categorias básicas da existência humana, enquanto elementos da sensibilidade que tornam possível o próprio conhecimento, configuram e ao mesmo tempo estão sujeitos à visão de mundo de cada época. A modernidade, por exemplo, ao conceber a história como progresso contínuo, permitiu uma compreensão evolutiva de tempo que determinou uma noção progressiva e expansiva do espaço. Com o avanço do capitalismo, a globalização se tornou imperativa: era preciso ampliar o espaço de dominação humana otimizando o tempo. Ou seja, ocorre na modernidade o crescente esvaziamento da concepção de tempo, que, sendo “puramente mecânico, automático, quantitativo, sempre igual a si mesmo” como o tempo opressor do relógio (LÖWY, 2005, p.125), tornou-se portanto cada vez mais reduzido ao espaço. É o tempo da teoria do progresso, que é “exatamente o mesmo tempo dos bancos de investimento e dos grandes estabelecimentos de crédito...; é o tempo da marcha dos lucros produzidos por um capital” (PÉGUY apud LÖWY, 2005, p.131). O que acontece na contemporaneidade, contudo, difere um pouco desse quadro; aliás, desde meados do século XX o debate científico vai paulatinamente deixando de
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propagar essa teoria do progresso e suas promessas de avanços tecnológicos para o futuro e passa a estudar e promover alternativas que já não inviabilizem o nosso futuro enquanto espécie. Hoje, a sociedade não se apazigua no discurso da esperança ou crença no progresso e na evolução, depois de ter vivenciado a noção expansiva do espaço pela destruição, como o foi a experiência das guerras e, mais atualmente, a própria devastação do planeta empreendida pouco a pouco, dia a dia. A sensação que parece predominar hoje ― e cada vez mais ao longo do século XX ―, a nossa experiência de mundo é muito mais a de que a catástrofe é o que está aí, é o que há. Octavio Paz já alertava para esse estado de coisas no famoso ensaio “Os signos em rotação”, ao observar que o pensamento poético e o movimento revolucionário encontram-se “ao fim de um século e meio de querelas e alianças efêmeras, diante da mesma paisagem: um espaço preenchido de objetos, mas desabitado de futuro” (PAZ, 1976, p.99). Nesse contexto, Paz está tratando de um certo desencantamento da modernidade provocado pelo desaparecimento da imagem do mundo, fato que, segundo ele, havia permitido o surgimento da técnica: “se o mundo, como imagem, se desvanece, uma nova realidade cobre a terra inteira. [...] A indústria é a nossa paisagem, nosso céu e nosso inferno” (PAZ, 2012, p.267). Em tal conjuntura, o futuro como lugar de predileção tornava-se algo tão desacreditado quanto a eternidade cristã, e tão catastrófico quanto o presente em que já se vivia. Ao sentir-se sozinho no mundo, o homem antigo descobria o seu próprio eu e, assim, o dos outros. Hoje não estamos sozinhos no mundo: não há mundo. Cada lugar é o mesmo lugar e nenhum lugar está em lugar algum. A conversão do eu em tu ― imagem que compreende todas as imagens poéticas ― não pode ser realizada se antes o mundo não reaparecer. A imaginação poética não é invenção, mas descobrimento da presença. Descobrir a imagem do mundo naquilo que emerge como fragmento e dispersão, perceber o outro no um, será devolver à linguagem sua virtude metafórica: dar presença aos outros. A poesia: busca dos outros, descobrimento da “outridade”. (PAZ, 2012, p.267)
Subentende-se aqui uma noção de poesia enquanto força de presentificação ― ideia que sustenta toda a teorização de Paz acerca da imagem poética. Restava a essa nova poesia ater-se ao presente, o que acarretaria uma “poética da convergência”, delineada em Os filhos do barro (1974):
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A visão do agora como centro de convergência dos tempos, originalmente visão de poetas, transformou-se numa crença subjacente às atitudes e ideias da maioria de nossos contemporâneos. O presente tornou-se o valor central da tríade temporal. A relação entre os três tempos mudou, mas essa mudança não implica o desaparecimento do passado ou do futuro. Ao contrário, eles ganham mais realidade: ambos se tornam dimensões do presente, ambos são presença e estão presentes no agora. (PAZ, 2013, p.161)
Até que ponto seria possível abordar essa poética do agora, da convergência, da presença, dentro de um contexto de desencantamento, de desaparecimento da imagem do mundo; como falar de tempos que se conciliam no agora1 se vivemos um tempo em desaparição, se vivemos um “presente que se desvanece, iminência que se dissipa” (PAZ, 2012, p.336)? Como se dá esse descobrimento do mundo no que se mostra enquanto fragmento e dispersão? Seria preciso pensar em um agora que, se porta dimensões do passado e do futuro, comporta também os seus silêncios, suas ruínas. Pensar em um poema que – se tem a virtude da metáfora, se traz uma imagem do mundo, se é ele mesmo, como um todo, presença – em cada uma de suas partes, em cada uma de suas figurações, visões, é constituído por ausências, por inconciliações. Octavio Paz, ainda em Os filhos do barro, mais precisamente nas últimas linhas da obra, sugere por meio de uma imagem o elemento central dessa nova poesia: A poesia que começa agora, sem começar, busca a interseção dos tempos, o ponto de convergência. Afirma que, entre o passado heteróclito e o futuro desabitado, a poesia é o presente. A re-produção é uma apresentação. Tempo puro: um adejo da presença no momento de sua aparição/desaparição. (PAZ, 2013, p.165)2
A poética da convergência, portanto, seria a poética do adejo da presença no instante de seu aparecimento-desaparecimento: como um pássaro-presença que, no poema, adeja, se (des)equilibra, ao bater vigoroso das asas, entre o aqui e o alhures. Seria possível traçar um paralelo entre a metáfora de Paz e a alegoria do anjo da história elaborada por Walter Benjamin na sua IX tese sobre o conceito de história: Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele [o anjo da história] enxerga uma única catástrofe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e
1
“O presente se manifesta na presença e esta é a reconciliação dos três tempos. Poesia da reconciliação: a imaginação encarnada num agora sem datas.” (PAZ, 1993, p.57) 2 No original: “[…] Tiempo puro: aleteo de la presencia en el momento de su aparición/desaparición.” Paz. Los hijos del limo, p.227.
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juntar os destroços. Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte que o anjo não pode mais fechá-las. (LÖWY, 2005, p.87)
Enquanto o angelus novus sob a ótica de Benjamin se volta para o passado ― onde só vê catástrofe, escombros, mortos e destroços ― e é impelido ao futuro, ao progresso, à queda no abismo, a nova poesia de que fala Octavio Paz voa “a céu descoberto”3, pois a ação da técnica na modernidade “consiste em ser uma permanente destruição de futuro. De fato, na medida em que o futuro que constrói é cada vez menos imaginável e se mostra desprovido de sentido, deixa de ser futuro: é o desconhecido que irrompe sobre nós” (PAZ, 2012, p.270). Assim, se não há mais crença no progresso, se não há mais futuro, o poeta parece sobrevoar a história recolhendo os estilhaços de imagens do mundo, de imagens poéticas, sempre à procura de um espaço-tempo onde possa se deter: “Poesia: busca de um agora e de um aqui” (PAZ, 2012, p.271). A imagem do anjo da história faz parte de uma concepção mais ampla de tempo e história que Walter Benjamin propõe com as Teses. Diante de uma experiência vazia do tempo e de um espaço farto e em alguma medida opressor, Benjamin buscava opor uma outra concepção de tempo, qualitativa, descontínua, que se aproximava fundamentalmente da percepção religiosa do tempo. Então, àquela concepção de tempo da teoria do progresso, “‘feito à imagem e semelhança do espaço’, reduzido a uma linha ‘absoluta, infinita’, Benjamin opõe o tempo da memória, o tempo da ‘rememoração orgânica’, que não é homogêneo, mas que tem ‘plenos e vazios’”(LÖWY, 2005, p.131). A rememoração tem por tarefa, segundo Benjamin, a construção de constelações que ligam o presente e o passado. Essas constelações, esses momentos arrancados da continuidade histórica vazia, são mônadas, ou seja, são concentrados da totalidade histórica ― “plenos”, diria Péguy. Os momentos privilegiados do passado, diante dos quais o adepto do materialismo histórico faz uma pausa, são aqueles que constituem uma interrupção messiânica dos acontecimentos ― como aquele, em julho de 1830, quando os insurgentes atiraram nos relógios. Esses momentos constituem uma chance revolucionária no combate ― hoje ― ao passado oprimido ― mas também, sem dúvida, ao presente oprimido. (LÖWY, 2005, p.131)
Rememoração (Eingedenken) e redenção messiânica (Erlösung) compõem a ideia benjaminiana de teologia, que é a base do novo conceito de história proposto. Trata-se não apenas da postura contemplativa e crítica de voltar-se ao passado, mas 3
No original, “a la intemperie” (PAZ, 1956, p.262).
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sobretudo de pôr em prática o poder messiânico que nos foi atribuído pelas gerações passadas, e executar no presente a tarefa revolucionária da redenção por meio da “reparação ― em hebraico, tikkun ― do sofrimento, da desolação das gerações vencidas, e a realização dos objetivos pelos quais lutaram e não conseguiram alcançar” (LÖWY, 2005, p.51). Por isso, a relação que se estabelece entre o presente e o passado não é unilateral, mas dialética: “o presente ilumina o passado, e o passado iluminado torna-se uma força no presente” (LÖWY, 2005, p.61). É aqui que surge a ideia de imagem dialética, isto é, “constelação crítica que um fragmento do passado forma precisamente com um momento do presente” (LÖWY, 2005, p.62). Na tese V, o presente, na concepção benjaminiana de tempo e história, se traduz em imagens dialéticas, imagens do passado que, céleres e furtivas, lampejam. Para Benjamin, em um momento de perigo, apresenta-se aos olhos do historiador ― ou do revolucionário ― “uma constelação salvadora que liga o presente ao passado” (LÖWY, 2005, p.68) e assim se pode “atear ao passado a centelha da esperança” (BENJAMIN, 2005, p.65). Benjamin institui uma compreensão de passado “em que brilha, apesar de tudo, na sombra da noite do fascismo triunfante, a estrela da esperança, a estrela messiânica da redenção [...] ― a centelha da sublevação revolucionária” (LÖWY, 2005, p.68). Propomos uma aproximação entre a ideia de imagem dialética e o conceito de imagens-vaga-lumes desenvolvido por Didi-Huberman a partir da leitura de Pasolini. Para este, a questão consiste em “um lamento fúnebre sobre o momento em que, na Itália, os vaga-lumes desapareceram, esses sinais humanos da inocência aniquilados pela noite ― ou pela luz ‘feroz’ dos projetores ― do fascismo triunfante” (DIDIHUBERMAN, 2011, pp.25-26). Assim, através dos vaga-lumes, Pasolini “metaforiza [...] a humanidade reduzida a sua mais simples potência de nos acenar na noite” (DIDIHUBERMAN, 2011, p.30). O que Didi-Huberman faz é partir da imagem pasoliniana do desaparecimento dos vaga-lumes ― com base em Benjamin, Warburg e Agamben ― para conceber uma teoria da sobrevivência, segundo a qual o que importa não é tanto o desaparecimento dos vaga-lumes, mas sim seus redesaparecimentos, ou seja, não há nem destruição radical nem redenção final: há lampejos, ressurgências, apesar de tudo. Assim, o agora do vaga-lume é sempre o presente de sua sobrevivência, a reaparição
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que precede um novo desaparecimento. Crer nas sobrevivências consistiria em preservar o olhar, em manter viva “a capacidade de ver [...] aquilo que não havia desaparecido completamente e, sobretudo, aquilo que aparece apesar de tudo, como novidade reminiscente, como novidade ‘inocente’, no presente desta história detestável” (DIDIHUBERMAN, 2011, p.64-65). A imagem também se define por “sua intermitência, sua fragilidade, seu intervalo de aparições, de desaparecimentos, de reaparições e de redesaparecimentos incessantes” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.86). Porém, para ele, é na própria intermitência de vaga-lume, na sua fragilidade, que está a sua potência da imagem: sua capacidade de sobreviver. Ora, se hoje estamos diante de um tempo desabitado de futuro, diante de uma sociedade arruinada que corrói seu próprio espaço, seu hábitat ― diríamos, de um mundo cuja imagem está em queda ―, a poesia não seria um modo de conferir alguma dignidade aos restos? De inventar formas, de fazer dançarem os vaga-lumes? E, assim sendo, não estaria respondendo a essa perda da imagem do mundo com novas imagens, que de alguma forma sobreviveram à catástrofe? Michael Löwy, em comentário à IX tese sobre o conceito de história de Benjamin, dizia que os escombros nela referidos não são “um objeto de contemplação estética, mas uma imagem dilacerante das catástrofes, dos massacres e de outros ‘trabalhos sanguinários’ da história” (LÖWY, 2005, p.92). De modo semelhante, diríamos que, em Weydson Leal, as ruínas são a imagem dilacerante e dilacerada da catástrofe diária. Se para Walter Benjamin o Paraíso é a imagem utópica da redenção social futura, a poética de Weydson Leal elege como núcleo a imagem da crucificação (claramente evocada no título e no primeiro poema do livro, “A nona hora”). Dialeticamente, ao evocar a crucificação, Weydson Leal convoca também para o poema a ressurreição, num processo de rememoração de derrotas e sobrevivências. Seus poemas trazem à tona escombros, restos, vultos, ressuscitando cada pequena coisa que, na palavra, na metáfora, sobrevive. O cenário que vemos na capa remete a essa devastação:
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Propomos uma leitura da poética de Weydson Leal nessa perspectiva: trata-se de uma “semente preciosa”, para retomar um termo de Michael Löwy, lançada em terra devastada; o texto, ― no limite de sua fertilidade/infertilidade, sua potência/impotência ―, vai se contrapor à desolação dessa terra. É pela devastação, e apesar dela, que a obra existe. O poema “A curva” (LEAL, 2009, pp.19-20) é imprescindível pra tal discussão, pois figura na própria capa do livro, mais especificamente na quarta capa, como se fosse ele mesmo a quarta-cruz anunciada no título da obra. Eis o campanário vazio que a mão do desejo procura: farto de ausências, certezas e arrependimentos, o presente o aponta por toda cidade. Eis o tempo em cujas extremidades dois cegos se buscam e se distanciam. Eis o abismo onde para sempre é a curva o futuro que treme. O passado e seu enterro conduzido pelo tempo. Como a morte nas ruas, a morte de uma constelação – este amor – a morte na floresta escura – este amor – a morte no grito do incêndio. Como a morte do dia, a morte da moça, a morte que esfria. Como a morte do velho, a morte do enfermo, a morte da culpa e do desejo. Como a morte que nasce,
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a morte implícita que esvazia, a morte que em tudo principia.
O poema inicia com a imagem do campanário que, em função do presente, que “o aponta por toda a cidade”, se reconhece vazio, mas farto de tudo, inclusive de ausência. O campanário é atravessado por duas temporalidades: o tempo vazio dos relógios e o tempo histórico do calendário. Benjamin narra, em uma de suas teses sobre o conceito de história, um episódio ocorrido na Revolução de Julho, em Paris (1830), que ilustraria a experiência do embate entre essas duas temporalidades: Chegado o anoitecer do primeiro dia de luta, ocorreu que em vários pontos de Paris, ao mesmo tempo e sem prévio acerto, dispararam-se tiros contra os relógios das torres. Uma testemunha ocular, que, talvez, devesse à rima a sua intuição divinatória, escreveu então: “Qui le croirait! On dit qu’irrités contre l’heure De nouveaux Josués, au pied de chaque tour, Tiraient sur les cadrans pour arrêter le jour.” (BENJAMIN, 2005, p.123)
O ato de atirar contra o relógio consiste, pois, numa tentativa de interrupção revolucionária e messiânica do rumo catastrófico do mundo. Contra o tempo quantitativo dos relógios, que nos rouba o poder do agora, onde reside nossa possibilidade de ação, a revolução reivindica o tempo qualitativo: apenas no tempo-deagora (Jetztzeit) se dá a ação concreta do rompimento, que é por isso intempestiva. Há uma certa continuidade entre a consciência da história por trás do ataque desses revolucionários aos relógios e o que Octavio Paz descreve como “pontos sensíveis do espaço e do tempo” (Cf. PAZ, 2012, pp.267-270). Tal noção aparece ao lado da afirmação de que as construções da técnica, como aeroportos e fábricas, são reais mas não são presenças, ao passo que uma mesquita ou um arco triunfal, um templo maia ou uma catedral medieval são obras de significação, de presença, e por isso seriam [...] pontos sensíveis do espaço e do tempo, observatórios privilegiados a partir dos quais o homem podia contemplar o mundo e o transmundo como um todo. [...] Ponto de vista total sobre a totalidade. Essas obras não eram apenas uma visão do mundo, mas foram feitas à sua imagem: eram uma representação da figura do universo, sua cópia ou seu símbolo. (PAZ, 2012, pp.267; 268)
Diríamos então que o campanário seria também um ponto sensível de presentificação, uma obra de significação e de silêncio. Um ponto de adejo da presença
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onde vemos o embate de duas temporalidades, de plenos e vazios. Uma imagem (poética) dialética. Segundo Michael Löwy, a imagem a seguir ― para ele, uma imagem dialética ― ilustra a capa de seu livro com a leitura das teses “Sobre o conceito de história” porque resume o que considera ter sido a obra de Walter Benjamin: “uma espécie de ‘aviso de incêndio’ dirigido aos seus contemporâneos, um sino que repica e busca chamar a atenção sobre os perigos iminentes que os ameaçam, sobre as novas catástrofes que se perfilam no horizonte” (LÖWY, 2005, p.32). Apesar disso, no campanário, “os sinos tocam com toda a força, mas ninguém parece ouvi-los” (LÖWY, 2005, p.32, em nota de rodapé).
Pavasario motyvas [Motivo primaveril], M. K. Čiurlionis, 1907, têmpera.
Na obra de Weydson Barros Leal, o próprio poema é esse campanário, daí que o poeta utilize, de início, o advérbio de designação “eis”, que indica algo que está próximo no tempo ou no espaço. Atualizado no aqui e no agora, inscrito no papel, o “eis” designa algo que se faz presente (se apresenta) na própria instância discursiva (o campanário, o tempo, o abismo). Na primeira atualização do termo, o “eis” parece trazer para o presente, o aqui-agora do campanário, algo do passado (ausências, certezas, arrependimentos); na segunda atualização, nos localizamos em um ponto mais central no eixo do tempo, de onde se poderia vislumbrar suas “extremidades”; na terceira, temos uma evocação direta do futuro que se ratifica também através da imagem do
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abismo, a catástrofe que nos espera, o que está para além da curva, cujas imagens (da curva e do abismo) estão realizadas inclusive no próprio corpo do poema, pelo corte entre os versos finais da primeira estrofe. Eis o campanário, eis o abismo, a curva: lugares do poema, figurações do tempo através de imagens espaciais, que implicam uma concepção de história não linear, não progressista; o tempo possui extremidades de onde “dois cegos se buscam e se distanciam”. Assim o poema se estrutura com base nessas duas pontas do continuum temporal, da história: passado-futuro, vida-morte. De forma semelhante, Octavio Paz dizia, a propósito da poética da convergência: “Viver no agora é viver de frente para a morte.” (PAZ, 2013, p.161). No poema de Barros Leal, a morte também é algo vivo porque cresce em suas determinações, como é viva a morte que passa em uma sucessão de cenas de cortejo fúnebre: há a morte nas ruas, na floresta escura, no grito do incêndio; há a morte de uma constelação, do dia, da moça, do velho, do enfermo; a morte que esfria, a morte da culpa e do desejo. “A morte que nasce”, portanto, e “em tudo principia”. Pela reiteração da palavra, o poeta, ao mesmo tempo em que cria a imagem de várias mortes, instaura a existência de várias coisas vivas, vidas que o tempo enterra, vidas que tremem no futuro. Através dos vários contextos de morte, o poeta recupera o que Paz denominaria “vida concreta”, pois é capaz de “reunir o par vida-morte, reconquistar um no outro, tu no eu, e assim descobre a figura do mundo na dispersão de seus fragmentos” (PAZ, 2012, p.276). Ao utilizar verbos apenas no indicativo presente, e ainda pelo uso reiterado de “eis”, faz com que vida e morte se encontrem no agora, na curva (conforme o título), no poema. Outro aspecto relevante é que, embora o advérbio “eis” seja um dêitico, serve mais para demarcar um tempo-espaço de enunciação do que um eu enunciativo; não há identidade entre os sujeitos (“dois cegos se buscam e se distanciam”), e cada morte é outra morte, ainda que no fundo sejam uma só. Nesse contexto de dispersão imposto pela técnica em décadas de progresso e destruição ― dispersão dos deuses, do tempo, da imagem do mundo, do ser ―, a poesia que se faz hoje parece ter uma função clara: se não pode estabelecer uma presença, o poema se instala sobre as formas destruídas e expressa uma iminência (o adejar), uma busca, que representa a própria condição do homem contemporâneo. O poema do ser
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inacabado, do ser-tempo. Ao mesmo tempo em que o poeta tenta se refugiar da fragmentação, ele constrói seu refúgio com os estilhaços de seu tempo. É o que pode ser visto neste outro poema, intitulado “Meu filho sou eu” (LEAL, 2009, pp.21-22): Meu filho sou eu. Hoje ele nasce, amanhã é sua infância, logo olhará para trás e verá o futuro. Cada dia é sua vida me puxando pela mão para o abismo do sono. É lá que ele dorme abraçado ao meu corpo, e à noite celebra o invento de sermos um só. Meu filho sou eu no vulcão cuja boca é o medo que ronda os relógios. Longe das janelas, no quarto seguro onde inventa maneiras de começar um incêndio, reconta seu tempo ― o tempo e seus túmulos no oceano dos dias, no aquário vazio de todos os mortos. Ele conhece as cidades onde a imortalidade é um orgulho, mas no futuro já não haverá bustos ou cemitérios para tantos sepulcros. O tempo é sua asa e sua queda. Meu filho sou eu. Meu filho é a minha sobrevivência.
O poema aqui é o lugar de sobrevivência de um sujeito em desintegração; se ele só resiste ao tempo através da poesia, é a poesia o que lhe resta. Não há mais crença na integridade subjetiva: o sujeito é residual, formado por restos e, também, formador de restos. Estruturado em três estrofes de sete versos livres, o poema tem sua força prosódica no sintagma “Meu filho sou eu”, que, pela repetição, serve para conferir, propriamente, existência a esse descendente: à medida que o poeta escreve seus versos, o pai gera o filho nas linhas do poema. Octavio Paz dizia que a poesia de Mallarmé foi construída em cima de um oco, resultando em uma constelação de espaços vazios; em Um lance de dados, a poesia “não é uma figura, e sim a possibilidade de chegar a sê-lo”, e a tentativa poética consistiria, a partir de então, em “fechar o punho para não deixar escapar os dados que são o signo ambíguo da palavra talvez. Ou abrir, para mostrar que eles também se desvaneceram” (PAZ, 2012, p.280). Em perspectiva semelhante, podemos vislumbrar
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na quarta cruz o mesmo desvanecimento, pois, fixada sobre a ausência, adquire também a potência de uma imagem do vazio, do talvez. A quarta cruz é ainda a própria condição da poesia nos tempos atuais. O poeta se atém ao presente, a esse tempo em desintegração, para ver a imagem do mundo não como utópica integridade, mas em suas ruínas. Se há um esforço de construção, de montagem em meio a essa dispersão ― dizendo de outro modo, se há ainda tentativa poética, hoje ―, não é para nos mostrar um mundo de presença e inteireza. O poeta não cultiva mais a utopia de encantar o mundo: sua tarefa é pósutópica (Cf. CAMPOS, 1997), ele vem nos dizer que, do que resiste, algo escapa, e do que resta, algo nos falta. Referências BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. In: Löwy, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005. BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1977. CAMPOS, Haroldo de. O arco-íris branco: ensaios de literatura e cultura. Rio de Janeiro: Imago, 1997. DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Tradução Vera Casa Nova, Márcia Arbex. Revisão Consuelo Salomé. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. _______. Quando as imagens tocam o real. Tradução Patrícia Carmello e Vera Casa Nova. Pós: Belo Horizonte, v.2, n.4, p.204-219, nov.2012. LEAL, Weydson Barros. A quarta cruz. Rio de Janeiro: Topbooks, 2009. LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses "Sobre o conceito de história". São Paulo: Boitempo, 2005. PAZ, Octavio. A outra voz. Trad. Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1993. _______. El arco y la lira. México: Fondo de Cultura Económica, 1956. [O arco e a lira. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012.] _______. Los hijos del limo. Barcelona: Seix Barral, 1990. [Os filhos do barro. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2013.] _______. Signos em rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1976.
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O SÁBADO DE VINÍCIUS DE MORAES DAVI DA SILVA OLIVEIRA, mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, professor de Literatura Brasileira e Portuguesa no UNASP, Campus Engenheiro Coelho (SP). [email protected]
RESUMO: O objetivo deste artigo é fazer uma abordagem do que seja o recurso da intertextualidade. Levantamos a questão das fontes de inspiração de Vinícius de Moraes, considerando a Bíblia como ponto de diálogo com o poema Sábado deste autor. Nosso objetivo é conferir a materialização do diálogo existente entre as duas obras citadas, reconhecendo na primeira, o livro sagrado dos cristãos, uma fonte inspiradora para a segunda. Palavras-chave : Intertextualidade, Bíblia, Vinícius. ABSTRACT: ABSTRACT: The objective of this paper is to propose a definition of intertextuality as a literary device. It raises the question of Vinicius de Moraes’ sources of inspiration by considering the Bible as a point of dialogue with the poem “Sábado” (Saturday) by this author. Another of its goal is to provide a means of materialization to the existing dialogue between the twopreviously mentioned works, recognizing the former - the holy book of Christians - as an inspiring source for the latter, thus shaping our concept of intertextuality. Keywords: Intertextuality, Bible,Vinícius.
Introdução Falar que um texto dialoga com outro parece habitarmos no lugar-comum no universo da literatura, mormente, quando nos referimos a textos que “conversam” com a Bíblia Sagrada, certamente, sendo este um dos livros mais influentes na literatura ocidental. Quer em forma de paráfrase, quer em forma de paródia, o texto sagrado colore romances, contos, crônicas e poesias de diversos períodos estéticos da literatura.
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À guisa de exemplo, além do poema O Dia da Criação, há miríades e miríades de poesias, crônicas, contos e romances que habitam o território literário brasileiro em cujo bojo facilmente se percebem palavras, expressões e episódios oriundos do universo bíblico. Pontuemos o bruxo do Cosme Velho, Machado de Assis, que arrasta sobre si o aposto de ser o mais bíblico dos escritores brasileiros. É no manuseio das obras do autor de Dom Casmurro que encontramos diversos episódios onde se incorporam palavras, textos e cenas nascidos nas páginas do Velho e do Novo Testamentos, como o romance Esaú e Jacó; contos como Adão e Eva e Na arca. Já no frontispício das obras do autor, pisamos no terreno onde está a sarça ardente de acontecimentos que primeiramente ocorreram lócus bíblico. Em O Dia da Criação, o eu-lírico não economizou palavras para clarificar referências ipsis litteris do texto sagrado dos cristãos, inclusive, pontuando incisivamente o capítulo vinte do livro do Gênesis, É sobre a poesia de Vinícius de Moraes que vamos nos debruçar e deixarmos fluir para ela a atmosfera oriunda do livro maior dos cristãos.
Intertextualidade A dívida para com a fonte do discurso remonta a Bakhtin (1993, p. 140). O teórico se manifesta dizendo que: É suficiente prestar atenção e refletir nas palavras que se ouvem por toda parte, para se afirmar que no discurso cotidiano de qualquer pessoa que vive em sociedade (em média), pelo menos a metade de todas as palavras são de outrem reconhecidas como tais, transmissíveis em todos os graus possíveis de exatidão e imparcialidade (mais exatamente, de parcialidade).
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Alcança-se facilmente, nas palavras do teórico russo, o reconhecimento da perspectiva do crédito das palavras utilizadas, quer por falantes, quer por escritores, geradas por outros personagens da história. O diálogo com outros textos, na perspectiva de Bakhtin (1929), materializa-se quando um enunciado mantém um vínculo dialogal com outro. Segundo ele, dentro de um texto há outros textos, que por sua vez, contêm outros textos e assim sucessivamente dialogam entre si. Desta forma, manifesta-se Bakhtin, (1986, p. 162): (...) o texto só ganha vida em contato com outro texto (com contexto). Somente neste ponto de contato entre textos é que uma luz brilha, iluminando tanto o posterior como o anterior, juntando dado texto a um diálogo. Enfatizamos que esse contato é um contato dialógico entre textos [...] por trás desse contato está um contato de personalidades e não de coisas. Não seria exagero chamarmos um escritor ou falante de fantasma, ou seja, ele é e não é. Ele se faz presente, mas suas palavras são o eco de outras palavras já ditas e repetidas. O escritor, sem desmerecer sua genialidade e materialidade da sua verbalização, é a caixa de ressonâncias de outras vozes que agora lhe servem de estrutura para sua escrita. Comentando sobre a palavra alheia, Bakhtin (1985, p. 385) declara que: As influências extra (...) textuais têm uma importância muito especial nas primeiras fases do desenvolvimento do homem. Estas influências estão revestidas de palavras (ou de outros signos) e estas palavras pertencem a outras pessoas: antes de mais nada, trata-se das palavras da mãe. Depois, estas ‘palavras alheias’ se reelaboram dialogicamente em ‘palavras próprias alheias’ com a ajuda de outras ‘palavras alheias’ (anteriormente ouvidas) e, em seguida, já em palavras próprias que já possuem um caráter criativo.
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O texto seria o ponto de encontro do que foi dito e o que se está dizendo. São as vozes apanhadas e reinventadas, reescritas e adaptadas a uma nova fala. No texto, está a presentificação de outras vozes. Há um concílio de vozes do passado ou do presente que entram na sala das palavras atuais. No elenco de críticos que contemplam o estudo sobre o diálogo entre texto, adicionamos Barros (2003, p. 4) que, numa reflexão sobre Althusser e Focault, declara que eles “(...) assumem como postulado de base que o estudo da linguagem não pode estar desvinculado do de suas condições de produção”. Neste contexto de diálogo de um texto com outro, Blikstein (Apud BARROS e FIORIN, 2003, p. 46) afirma que: “(...) o discurso, seja qual for, nunca é totalmente autônomo. Suportado por toda uma intertextualidade, o discurso não é falado por uma única voz, mas por muitas vozes, geradoras de muitos textos que se entrecruzam no tempo e no espaço (...).” Harmonicamente, em relação aos já citados, para Fiorin (2003, p. 30) a intertextualidade define-se como o “processo de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo.” Entende-se que um texto está longe de ser visto como uma pedra monolítica, constituída apenas de uma matéria. Sob a visão intertextual, um texto é um espaço onde mosaicos de outros textos perfazem a “estética” do ambiente textual.
As faces do diálogo Num apanhado dos conceitos até então apresentados, salienta-se uma voz de unanimidade: os textos não são absolutamente puros. Há, nas entranhas deles as marcas ou as vozes de outros textos ou de contextos sociais que serviram de pano de fundo para a produção. São as marcas temáticas e estilísticas, explícitas ou implícitas. Pelo dito até o presente, facilmente alcançamos a conclusão de que não há texto absolutamente puro, unissabor, unicolor e univocal. O texto é, na realidade, uma sopa de vozes variadas anteriormente escritas e, agora, acrescentadas com o “sal” e o “tempero” do autor atual.
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Não há demérito em um texto ser um concílio de outros textos. Não há desvalor num autor que incorporou outros textos no seu texto. Desta forma, seria utópica a existência do escritor e dos textos puros. Valhamo-nos de um metáfora de Paul Valèry (apud FERRAZ, 2011,p. 52) para compreendermos este julgamento: Nada mais original, nada mais próprio do que nutrir-se dos outros. Mas é preciso digeri-los. O leão é feito de carneiro assimilado. Plagiário é aquele que digeriu mal a substância dos outros: torna seus pedaços reconhecíveis. Não há escritores originais, pois aqueles que merecem este nome são desconhecidos; e mesmo irreconhecíveis. Mas existem aqueles que aparentam sê-lo. Segundo Valèry, faz-se necessário que o escritor que incorpora os outros textos nos seus necessita imprimir a sua marca, injetar a sua criatividade de forma que os outros textos adquiram uma nova roupagem, sem ser a cópia.
Bíblia como fonte A relação de influência da Bíblia na literatura é pensada em Frye (ibidem, p. 21) desta forma: “A literatura ocidental tem sido mais influenciada pela Bíblia do que por qualquer outro livro”. Na perspectiva de compreender a relação da Bíblia como literatura, Frye (2004, p. 14) diz que “A abordagem da Bíblia de um ponto de vista literário não é de per si ilegítimo: nenhum livro poderia ter uma influência literária tão pertinaz sem possuir, ele próprio, características de obra literária”. Conforme declara Ryken (apud ZUCK, 1994, p. 145): “A literatura bíblica está repleta de aventuras, fatos maravilhosos, batalhas, personagens sobrenaturais, vilões (...) heróis valentes, heroínas belas e corajosas (...) cárceres, sagas, histórias de resgates, romantismo, heróis juvenis. (...) A literatura bíblica tem vida.” Além da Bíblia, o Deus deste livro também ressoa nos escritos não só de literatos, mas também de filósofos, psicólogos e artistas, conforme registra Ferraz (2003, p. 11):
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“Deus fascinou filósofos como Nietzche, Heidegger, Leibniz; encantou escritores como Dante, Dostoéviski, Milton; [...] além do Deus da Teologia, há um Deus da Filosofia e há um Deus concebido pela Literatura.” Na esteira da relevância da Bíblia Sagrada, ficamos à sombra de Tenfen, 2011, p. 161 ao declarar que: A importância da Bíblia para o Ocidente pode ser mensurada em números ou estatísticas, mesmo que isto seja insuficiente. Nenhum outro livro influenciou tanto a política e as artes, direta ou indiretamente, nenhum outro livro foi tão traduzido (nem mesmo Paulo Coelho), nenhum outro livro foi tão lido e tão discutido... Interpretamos o diálogo com a Bíblia em Vinícius de Moraes no nível das estruturas literárias. A intertextualidade aqui vista não tem compromisso com os pressupostos teológicos ou doutrinários.
Comparação entre os sábados O poema de Vinícius de Moraes dialoga com o primeiro livro do Pentateuco bíblico, Gênesis, o primeiro e o segundo capítulos. Nestes dois capítulos, encontra-se o relato da criação dos céus e da terra e de tudo o que neles há, inclusive a formação do homem e da mulher. Veja o que é narrado em Gênesis 2:1-3. De acordo com o texto bíblico, o Senhor criou todas as coisas em seis dias e no sétimo descansou. O sétimo dia bíblico é o sábado. De acordo com O Dia da Criação, Deus criou todas as coisas também em seis dias e descansou no sétimo dia, que, no poema, é o domingo. A distribuição dos dias seria da seguinte forma na tabela 1. Tabela 1 Semana de acordo com os livros de Gênesis e Êxodo
Primeiro dia
Domingo
Semana de acordo com o poema Dia da Criação de Vinícius de Moraes Primeiro dia Segunda
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Segundo dia
Segunda
Segundo dia
Terça
Terceiro dia
Terça
Terceiro dia
Quarta
Quarto dia
Quarta
Quarto dia
Quinta
Quinto dia
Quinta
Quinto dia
Sexta
Sexto dia
Sexta
Sexto dia
Sábado
Sétimo dia
Sábado
Sétimo dia
Domingo
Há, pelo menos, um ponto de harmonia entre o texto bíblico e o poema de Vinícius de Moraes: Deus criou o mundo e descansou no sétimo dia. Também percebemos, pelo menos, dois pontos desarmônicos entre os dois textos: o primeiro é que, no texto bíblico, após o relato de cada ato de criação, o narrador testifica, de acordo com Gênesis 1:31: “e eis que era tudo muito bom.” Já no poema O Dia da Criação, o eu lírico lamenta o fato do senhor não ter descansado no sexto dia, ou seja, Deus inventou de criar o homem e a mulher o que trouxe grande prejuízo para a sociedade. O segundo ponto desarmônico entre os dois textos estudados consiste na atribuição nos nomes da semana correspondentes aos dias transcorridos, ou seja, o sétimo dia em Gênesis e Êxodo é chamado de sábado, enquanto que o sétimo dia de Vinícius é chamado de domingo. Desta forma, em O Dia da Criação, Deus criou no sexto dia (sábado) e descansou no sétimo dia (domingo). Veja a tabela 2: Tabela 2 Sábado Bíblia Sábado 7º dia Gênesis 2:2 e 3 (Moisés) Sábado 1. Dia de descanso 2. Deus descansa
Dia da criação (Vinícius de Moraes) Êxodo 20:7 (Moisés) Sábado
Sábado
Domi ngo
6º dia da criação Deus não descansou neste dia
7º dia
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3. Deus abençoa e santifica
Deus cria o homem e a mulher
A criação causa os problemas da humanidade
Deus descan sou
A literatura dialoga com a Bíblia, quer em harmonia com os seus conceitos, quer em desarmonia. O literato não está refém dos dogmas das interpretações eclesiásticas. O que interessa para ele, enquanto escritor, é pinçar do texto sagrado algum episódio, frase ou conceito que lhe sirva de suporte para ancorar seu processo de criação. Dialogar com o texto em forma de paráfrase ou de paródia não tem implicações negativas ou positivas. O que importa é o diálogo.
Considerações finais No poema O dia da criação, as Escrituras Sagradas são citadas literalmente através das palavras como “sábado”, “descansou” e “sétimo dia” que pululam no percurso do poema. Além do mais, o título O Dia da Criação ativa a memória do leitor da Bíblia, cuja expressão “criação” lhe é familiar, haja vista que, logo no primeiro livro, Gênesis, repetidas vezes registra-se o verbo “criar”. Claro que o propósito do poeta ao confeccionar o poema citado não objetivava a formação de prosélitos ou conversão do pecador. O foco do poeta era fazer uma poesia, criar uma obra literária através da arte da palavra. Daí que, o processo do diálogo entre os dois textos visa o estético-literário e não a salvação para a vida eterna. O compromisso do eu-lírico está além da fidelidade à narrativa bíblica, pelo contrário, ele poderia até se insurgir, subverter o texto do Pentateuco, a fim de atender às necessidades de uma obra literária. Segundo alguns seguimentos religiosos, os sabatistas, por exemplo, o sábado é o santo dia da criação, enquanto que para Vinícius, este dia deveria “ter sido riscado do Livro das Origens.” Portanto, o apropriar-se dos textos oriundos da Bíblia Sagrada fez o poeta trazer do imaginário cristão as imagens que lhe são familiares, porém, sem apoiar-se em questões doutrinárias que cercam tais referências, como a questão sobre o verdadeiro
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dia de guarda ou de descanso. Diga-se também que, não estava o nosso escritor declarando-se sectário de alguma denominação religiosa, ou fazendo a sua profissão de crédito em Deus.
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JOSÉ SARAMAGO E A UNIDADE DUPLA: REESCREVENDO A INTERDEPENDÊNCIA ENTRE O SAGRADO E O PROFANO NA LITERATURA Davi Silva Gonçalves (UFSC)
Quanto mais eu estudo as religiões, mais eu estou convencido de que o homem nunca adorou nada além dele mesmo. (Richard Francis Burton)
Literatura e Religião: Uma Tensão Constante No artigo “Jesus Cristo Humanizado em O Evangelho Segundo Jesus Cristo: Releitura Crítica da História Bíblica” (2011), Ana Célia Coelho et al. demonstram como, talvez no cume desta tradição, emerge José Saramago; segundo os autores, Saramago “busca, em sua escrita, descaracterizar a imagem de um Deus Criador, Bondoso e Soberano”. Particularmente em sua mais polêmica obra, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), Deus é cruel, egocêntrico, tirano, egoísta e sanguinário; não se importa com a criatura humana, apenas pretende utilizá-la para satisfazer as suas vontades mesquinhas” (p. 2). Travando um diálogo entre literatura de fato de modo um tanto hostil, Saramago não modula ou diminui o tom de sua crítica em função da suposta inquestionável construção da narrativa bíblica no que concerne à vida de Jesus Cristo. O autor, muito pelo contrário, faz uso de tal narrativa não apenas para desconstruir a imagem de Deus da forma a qual ela tradicionalmente é identificada – como bem aponta Coelho (2011); Saramago vai além ao reconstruir este Deus tendo como via de caracterização suas ações mais físicas que metafísicas; deixando de lado o transcendental que permeia a atmosfera cristã e motivando uma maior reflexão por parte dos leitores acerca das ações de fato cruéis, egocêntricas e danosas que são direcionadas à vontade de Deus dentro da tradição cristã. O Evangelho Segundo Jesus Cristo (2008), de José Saramago, foi selecionado por abordar o dualismo Deus/Diabo como nunca este havia sido abordado; sendo os interesses e atos dos mesmos tratados de modo que, para o leitor, fica muito difícil determinar quem é quem; ou melhor, mais difícil ainda é determinar se um dos dois
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pode ser considerado pior do que o outro. A análise é, portanto, fundada em uma análise que enfatiza um posicionamento anticlerical contra a perspectiva defensora da ideia falaciosa de que sempre se manteve “vívida a ameaça do Inferno ante os olhos da população” (NOGUEIRA, 1986, p. 46). Na realidade o que se observa é que, ao invés de tentar “vencer” a figura do demônio, para a igreja tem sido muito mais lucrativo e benéfico “sublinhar a todo o momento a quase onipotência de Satã” (NOGUEIRA, 1986, p. 47). De fato, no romance de Saramago, se por um lado Deus é construído como um ser egoísta que se utiliza dos homens para satisfazer seu ego, por outro, “no decorrer da narrativa percebe-se que o Diabo tem um caráter contrário àquele no qual o senso comum acredita, pelo que lhe foi passado pela Igreja”. Ao invés de personificar uma fonte de pensamentos criminosos, interesseiros e vingativos, “o Diabo é um instrutor zeloso que procura sempre reavivar a consciência de Jesus e torná-lo lúcido. Ele orienta Jesus [...], o instrui, desperta seu espírito crítico e contestador” (COELHO, 2011, p. 6). Dessa forma, parece lúcido ressaltar que, no romance, “Saramago apresenta Jesus, Deus e o Diabo de uma forma que contraria o tradicionalismo religioso; o autor faz uma releitura das três personagens, numa visão com características desafiadoras” (COELHO, 2011, p. 9). É em função desta resignificação destes dois polos cristãos e desta alteração de posições entre Deus e Diabo que o trecho do livro escolhido para essa análise se concentra na discussão estabelecida entre Deus e Diabo com Jesus dentro do seu barco de pesca. Como argumenta Andréia Régia Nogueira do Rego (2009), durante a evolução dessa conversa entre os três, percebe-se claramente que, “instilar dúvidas, desafiar traiçoeiramente e criar tensões na personagem são ações que partem de um Deus cuja natureza é mais demoníaca que divina”. Nas palavras da autora, “trata-se, afinal, de uma visão moderna, herdeira do niilismo nietzschiano que esvazia o mundo de Deus, retira-o de cena ou desacredita-o – uma visão que Saramago compartilha e faz transparecer na sua ficção” (2009, p. 20). Com este seu niilismo nietzschiano, é como se Saramago fosse capaz de reconfigura toda a idealização do que seria não só bem e mal: mas também da própria lógica da constituição do conceito de pecado. Conceitos tão objetivos como bem e mal, separados pelas ações daquele que peca e daquele que não peca, são colocados em questão pelas reflexões propostas pelo escritor, e é por esse viés
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que “não existem o Bem e o Mal, mas um Bem que precisa de um Mal para continuar sendo Bem”. É justamente este arquétipo que Saramago inverte: ou melhor, desconstrói, já que a existência de bem ou mal não se configura em uma arena na qual aqueles que os representam travam uma batalha em vias de alcançar uma solução final: dentro do cristianismo um depende do outro, um dá vida ao outro; no final das contas, se aquele que teme acredita, Saramago pede aos seus leitores que deixem de temer – para que assim, naturalmente, percam a necessidade de continuarem a acreditar. “Dessa forma, a paródia ganha contornos irônicos; pois a culpa pela perpetuação do mal é do próprio Deus ao exigir que Diabo intensifique seu poder maléfico” (REGO, 2009, p. 21). O desejo por viver no paraíso e encontrar a Deus não seria tão omnisciente se o medo de acabar no inferno e de encontrar o Diabo também não o fosse – premissa básica para qualquer expansionismo ideológico tal afirmação ainda é tida como tabu em uma sociedade que muitas vezes se recusa a enxergar aquilo que salta aos olhos do mais ignorante observador. Saramago e O Universo Mitológico Cristão do Bem vs. Mal: De acordo com Northrop Frye (2004, p. 14) não se deve tentar evitar que uma abordagem da Bíblia de um ponto de vista literário seja colocada em prática já que “nenhum livro poderia ter uma influência literária tão pertinaz sem possuir, ele próprio, características de obra literária”. Entretanto, ainda que a bíblia seja utilizada como fonte para devaneios literários é preciso se ter em mente que ela “é obviamente mais do que uma obra literária” (FRYE, 2004, p.15). De um ponto de vista ideológico, ou mesmo estético, isso não quer dizer de forma alguma que a bíblia é um livro “superior” se comparada a outros; entretanto, existe todo um imaginário bíblico que nos condiciona, estando a tradição Cristã emplacada, impregnada no nosso imaginário de modo que, ao manipular figuras como Jesus, Deus e o Diabo, Saramago não só conta uma estória inócua, mas é também capaz de “descondicionar” profundamente a mente de seu leitor: “O homem [...] não está nu nem imerso na natureza. Ele está dentro de um universo mitológico, um corpo de pressupostos e crenças desenvolvidos a partir de suas inquietações existenciais” (FRYE, 2004, p.16).
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É num diálogo de 40 dias no barco de pesca de Jesus, entre este e Deus, no qual o Diabo tece alguns poucos comentários, que mora a grande crítica de Saramago ao cristianismo no que concerne a parceria do bem e do mal, o seu equilíbrio, como fundamental para se conquistar, tanto através do medo quanto através da adoração, um maior número de fiéis. Este talvez seja o capítulo chave do romance de Saramago, pois é nele que se constrói uma alegoria de tudo que se desenvolve durante a narrativa. É no momento quando parte para o encontro com Deus e Diabo que “Jesus busca compreender sua verdadeira identidade e o motivo de ter sido escolhido por Deus”; dúvida para a qual nunca surge uma resposta convincente – até mesmo porque a própria tradição cristã sempre foi incapaz de fornecê-la. Com o intuito de sanar essa considerável crise identitária vivida por alguém que é responsabilizado por uma tarefa para a qual nunca se disse pronto, de acordo ou, ao menos interessado, Jesus parte na empreitada de enfrentar seus dois criadores. Jesus, para este fim, vai então “para o mar, pois, como pescador, era da água que esperava os sinais divinos, pressentimento que, opondo-se à sabedoria mítica (Deus no céu e Diabo no inferno), ressalta a imagem do mar como espaço intermediário entre o céu e a Terra” (REGO, 2009, p. 20). Logo, a conversa entre os três inicia efetivamente quando Jesus para de remar ao notar que “[s]entado no banco da popa, está Deus” (SARAMAGO, 2008, p. 304). Porém, ainda mais interessante é o momento no qual o Diabo também aparece para participar da conversa: “[O Diabo] ia se ia instalando na borda do barco, exactamente a meia distância entre Jesus e Deus, porém, caso singular, a embarcação desta vez não se inclinou para o seu lado” (SARAMAGO, 2008, p. 307). Se o barco se inclina com a entrada de Deus, com o Diabo a bordo ele permanece perfeitamente equilibrado, metáfora que demonstra o quanto a fé cristã depende não só do amor por Deus, mas também, e talvez principalmente, do seu medo perene do Diabo. Além disso a existência “física” de um não só acarreta na existência do outro, mas de certa forma dela depende. Na análise do romance que faz a professora Salma Ferraz (2010, p. 9) esta nota que “o Diabo, ao entrar na barca, ocupará uma posição estratégica entre Deus e Jesus [...]. É como se uma nova trindade começasse a se delinear, talvez uma trindade dupla ou uma unidade dupla”. Entretanto, nesta unidade dupla, o diálogo também demonstra que um possui o papel indiscutível de ativo e o
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outro representa o papel de passivo – o próprio fato do Diabo ter que nadar até o barco ao mesmo tempo em que Deus, todo-poderoso, simplesmente cria um nevoeiro e surge no barco quase que como um Deus Ex Machina. Desde o início do romance, mas particularmente neste capítulo, “Saramago aborda a rispidez de Deus, consequente da sua soberania e autoridade, até mesmo em relação ao próprio Diabo, já que este vai revelando-se como alguém passivo” (COELHO, 2011, p. 8). Uma unidade dupla, de fato, é estabelecida: na qual o Diabo – passivo e inofensivo – complementa um soberano e autoritário Deus. Entretanto, curiosamente, quando Deus apresenta o Diabo à Jesus este se surpreende: “Jesus olhou para um, olhou para outro, e viu que, tirando as barbas de Deus, eram como gémeos, [...]” (SARAMAGO, 2008, p. 307). Mas não é apenas a semelhança física entre os dois que, aos poucos, reforça a surpresa de Jesus; mas sua percepção de que, no fundo, as atitudes e testemunhos do Diabo fazem com que ele seja muito mais digno de estima e respeito do que o próprio Deus. “A figura do Diabo, que, segundo o senso comum, deveria ser má e cruel, se mostra o oposto do esperado: sereno e, de certa maneira, inocente.” (COELHO, 2009, p. 8). Neste sentido, o que mais parece incomodar a Jesus é o fato de que os argumentos de ambos Deus e Diabo no diálogo que se dá dentro do seu barco vão, aos poucos, deixando cada vez mais claro que o papel que eles desempenham acaba por se configurar de forma profundamente complementar. O que Jesus esperava ver – assim como talvez a maior parte dos cristãos – com os dois no seu barco de pesca era um debate conflituoso, algo contrário ao diálogo pacífico que de fato se estabelece. Sendo assim, e com o intuito de desmascarar a idéia de que Deus e Diabo são inimigos, que ambos se desprezam, Jesus os ameaça: “levo-os até à borda para que todos possam, finalmente, ver Deus e o Diabo em figura própria, o bem que se entendem, o parecidos que são” (SARAMAGO, 2008, p. 311). É claro que o “poder” de Deus impede que Jesus tenha sucesso neste seu plano, mas talvez se ele conseguisse levar os dois até a borda para que todos os fiéis vissem o quanto
se
complementam
tal
esforço
seria
extremamente
válido
para
a
contemporaneidade, pois depois deste encontro a Igreja continuou se fortalecendo, não se sabe se porque a cada dia Deus é mais adorado ou o Diabo mais temido, talvez a segunda hipótese esteja mais perto da verdade. Além disso, apesar do Deus de
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Saramago aparentemente perceber o quanto, como efeito colateral do seu próprio poder sob a humanidade (e vice-versa), o Diabo se tornaria poderoso com uma expansão do Cristianismo, este não parece estar nem um pouco preocupado. Jesus se espanta ao perceber que esta criação e este desenvolvimento dicotômico do Cristianismo não passam de um plano estratégico elaborado por Deus, respeitando os espaços que lhe cabem e que cabem ao Diabo para que um mundo completamente tomado pela Igreja (no caso o que seria o nosso hoje) pudesse de fato ser alcançado: “Percebo agora por que está aqui o Diabo, se a tua autoridade vier a alargar-se a mais gente e a mais países, também o poder dele sobre os homens se alargará, pois os teus limites são os limites dele, nem um passo mais, nem um passo menos” (SARAMAGO, 2008, p. 310). Deus não hesita em concordar com seu filho: “Tens toda a razão, meu filho, alegro-me com a tua perspicácia” (SARAMAGO, 2008, p. 310). Dos personagens bíblicos que o romancista resgata, o Diabo parece ser aquele que mais se beneficia de seu apreço; na opinião de Salma Ferraz (2010, p. 4) é essencial que se olhe com cuidado para essa “reapropriação que Saramago faz de Lúcifer […], e a forma como o redime”. Ao redimir a figura do Diabo e ridicularizar a de Deus, Saramago parece destacar o quanto seria injusto colocar naquele que não inventou o pecado, não inventou o inferno, não inventou o sofrimento e que tampouco inventou a si mesmo, a culpa por toda maldade do mundo. E, ao tirar esta culpa do Diabo e colocá-la no próprio Deus, Saramago está na realidade acusando a Igreja (sendo ateu seria no mínimo ambíguo que o foco de sua crítica fosse de fato Deus) de tratar como inimigo aquele que, desde o início do Cristianismo, vem servindo ao propósito da religião mais como “funcionário” do que como inimigo, no final das contas foi o Cristianismo quem inventou o Diabo, como bem pontuado por Ferraz: “Os chamados espíritos maus são entes vagos, múltiplos, contraditórios. Foi a Igreja Católica quem consagrou o ente do mal, tenebroso, inimigo da Igreja […], metido sempre em luta cósmica contra o Filho de Deus e a tentar eternamente o homem” (2010, p. 2). Se o Diabo fosse, de fato, um inimigo de Deus e da Igreja, essa já o teria vencido há muito tempo, dado o domínio Cristão no mundo contemporâneo; A guerra protagonizada pela Igreja Católica já deveria ter terminado, mas trata-se esta de um conjunto de batalhas contra o demônio que aparenta não ter fim. É interessante notar
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que, ainda que o Diabo seja sempre considerado inferior, abaixo de Deus, a sociedade sente muito mais medo dele do que se sente defendida por aquele que se diz protetor incondicional de todos. Interessante, mas não fora do esperado, já que o medo e receio de ir para o inferno foram sempre explorados pelo Cristianismo para manter os seus fiéis amarrados na cadeira da igreja dia após dia através não dá fé, mas do medo, sendo que “as pregações eclesiásticas tendem a destacar cada vez mais o Mal e as suas consequências” (NOGUEIRA, 1986, p. 47). Parece não haver dúvidas que Deus e o Diabo não são apenas complementares, mas praticamente representantes de uma unidade interdependente; é preciso que Deus represente o Bem e que o Diabo represente o mal. No Evangelho Segundo Jesus Cristo (SARAMAGO, 2008, p. 328-329), quando o Diabo se desculpa e pede um basta para que a humanidade não mais precise sofrer na terra simplesmente por conta do embate entre os dois, Deus se recusa a aceitá-lo de volta no reino dos céus: “Não te aceito, não te perdoo, quero-te como és, e, se possível, ainda pior do que és agora”. Na realidade o que Deus mais teme ultrapassa os limites do puro egocentrismo, apesar de extremamente racional: “Se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como Diabo, Deus não vive como Deus, a morte de um seria a morte do outro [...].” Para que o Cristianismo possa prosperar, este precisa manter “vívida a ameaça do Inferno ante os olhos da população” (NOGUEIRA, 1986, p. 46). Deus não só depende como também lucra com essa ameaça, por isso preferiria que o diabo não só continuasse sendo ruim, mas, se possível, “ainda pior” (SARAMAGO, 2008, p. 329). Parece ser esta a mensagem principal da conversa no barco entre Deus, Jesus e Diabo. A ambição do criador o impede de abandonar seu plano expansionista, praticamente colonizador, de conquistar o planeta (ainda “não-Cristão” naquele momento). Trata-se de um plano tão importante que os questionamentos trazidos por Jesus, por mais interessantes que sejam aos olhos do Diabo, são extremamente cansativos para Deus. Este não está preocupado em explicar a razão das coisas para aquele que supostamente é seu filho e que por ele deve morrer; e, sendo “assim, pode-se observar que, durante todo o diálogo, Deus se mostrou impaciente e ríspido com Jesus, respondendo a suas perguntas, demonstrando enfado” (COELHO, 2011, p. 8). Deus é ríspido e grosseiro com Jesus da mesma forma que a
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crença cristã o é com seus acríticos seguidores; e o que Ferraz (2010, p. 21) conclui muito bem na sua análise da obra Saramaguiana é o fato de que “o que o Deus de Saramago confirma é que o mal é essencial para a existência e fundamentação do cristianismo.” É possível, portanto, inferir que Deus e Diabo são como “duas faces de uma divindade só, inseparáveis até o final de toda a existência” (FERRAZ, 2010, p. 20). Esta seria uma visão da crença Cristã maquiavelicamente embasada em uma planilha puramente matemática; o Diabo não existe para tentar os filhos de Deus, ele existe por uma questão de lógica, cumprindo uma função política que traz grandes benefícios para que o cristianismo se afirme e fortaleça. A humanidade sofre de um condicionamento primeiramente social, mas logo psicológico, onde, com Deus bloqueando uma margem e o Diabo a outra, acabamos enclausurados num rio de limitações filosóficas e ideológicas por uma religião que soube se aproveitar das ânsias e medos humanos para acorrentar a humanidade em correntes feitas de uma falsa moral Cristã. Saramago morreu antes de ver a sociedade perceber que o Cristianismo não se caracteriza por libertar, mas sim por adstringir, o pensamento humano. Com ceticismo e olhar crítico, o que podemos concluir é que nossa lógica cristã se dá devido ao nosso condicionamento social. Dessa forma, “[e]ntre as funções práticas da crítica [..] está a de fazer-nos mais conscientes, penso, de nosso próprio condicionamento mitológico”. (FRYE, 2004, p. 16-17) Nada confronta a mitologia cristã sem topicalizar seus traços incoerentes, ilusórios, repressivos e regressivos. A religião é introduzida ou expurgada da vida dos artistas de acordo com suas próprias experiências pessoais, sendo a arte capaz de abrigar os cristãos mais ruidosos assim como, e talvez principalmente, os ateus mais petulantes. Ou seja, para alguns a religião vem servir de conforto e é abraçada com todo fulgor do coração humano; para outros, como Saramago, Deus é um mal que deve ser rechaçado a todo custo, pois este nos leva a anulação, ignorância, negação, perda de autonomia, antropocentrismo, egoísmo, e sede insaciável pelo poder. Autores como Saramago levantam suas vozes em prol de uma visão particular e contrária a ortodoxia do lócus no qual tais vozes são escutadas, elaborando perspectivas críticas acerca de assuntos perigosamente banalizados e que acabam por reger importantes aspectos da sociedade.
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Através de sua arte e da liberdade que ela os fornece, os autores abrem janelas para importantes conteúdos de cunho filosófico, onde mais importante do que achar uma resposta seria fazer as perguntas corretas. Os questionamentos levantados pela literatura produzida por Saramago, dessa forma, criticam e fomentam o questionamento religioso. Sendo assim, foram então aqui revisitados e analisados. Tais obras se provaram fundamentais tendo em vista que põem em xeque dogmas tradicionais que até hoje são capazes de pulsar, e oferecem visões alternativas de leituras feitas e defendidas por grupos que, por uso de artifícios pouco altruístas, as impuseram sobre uma sociedade que não possuía as ferramentas para contesta-las. Hoje nos sobram ferramentas, entretanto nos falta contestação. Considerações Finais: O Sagrado Profanando A ficção de Saramago não é, por definição, mais ou menos “realista” do que relatos bíblicos. No final das contas, tendo em vista os esforços de autores como ele para nos fazer pensar, refletir, transformar, transcender, e revolucionar – enquanto instituições como a igreja tentam nos convencer a fazer nada disso – o que fica é a pergunta: para nos sentirmos “menos vazios”, será que vale a pena abrir mão da nossa sapiência? Na visão de Saramago parece que não; em seu romance ele constrói, então, “um Deus que não perdoa Lúcifer e castiga mais os justos do que os injustos” (COELHO, 2011, p. 9). Desconstruindo a áurea de benignidade inquestionável tão cultivada dentro das igrejas – discursivamente, é claro, já que a atuação material do cristianismo propriamente dita pode ser considerada muita coisa, menos benigna – o narrador desse evangelho apócrifo – como todos os outros – nos leva até “um Deus que vê Jesus como um instrumento usado apenas para satisfazer seu ego e torná-lo o Deus mais conhecido do mundo” (COELHO, 2011, p. 10). Se existe um outro caminho, se existe alguma criatura de fato preocupada com as dúvidas inerentes a existência humana, com o seu sofrimento e a sua tentativa de posicionamento em um mundo cujos disparates parecem ir muito além do devido, aquele capaz de direcionar tal caminho só poderia ser o Diabo. Este se apresenta no romance como um dos poucos que busca “uma tentativa de mudar os rumos da história a partir da não aceitação dos propósitos de Deus” (COELHO, 2011, p. 10). Propósitos
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estes bastante questionados pelo Jesus como caracterizado por Saramago – mas que poderiam muito bem ser questionados também por qualquer um dos leitores de seu romance. Entretanto, Saramago não oferece apenas uma solução subjetiva para um problema subjetivo; obviamente seria de certa forma vazio querer que seus leitores enxergassem o Diabo como resposta para os questionamentos levantados pela inconsistência divina. Se não existe Deus, não existe também Diabo; a ideia não é apenas inverter o arquétipo sagrado; não apenas profanar para provocar a igreja. Saramago parece pedir aos leitores que repensem a constituição mitológica de ambos estes personagens; que observem o fato de que o cristianismo tem se esforçado – como continua se esforçando – para aproximar os homens do Diabo e os afastar de Deus através de descrições bíblicas para nos convencer de que estamos inevitavelmente fadados à desgraça, a assumir nossa culpa como eternos pecadores, a assimilarmos o medo que tantas atitudes insanas nos levam a cometer. Percebendo que o Diabo nada mais é que uma extensão dos homens e que Deus não passa de uma idealização utópica daquilo que gostaríamos/deveríamos ser – já que, diferentes dele, nascemos no pecado e no pecado morreremos – talvez os leitores aprendam que, na verdade, quem sempre profanou foi a mão pesada da igreja; e não a do homem comum. Foi o direito sagrado de ser livre que nos foi tomado; e é justamente esse direito que Saramago tenta recuperar. Desta forma, “apesar da interferência e da manipulação divinas, as reflexões da personagem Jesus demonstram que, interiormente, predominara sua natureza humana, ratificando, de modo conclusivo, a desmistificação dos arquétipos divinos” (REGO, 2009, p. 21). Jesus, homem como todos os homens, questiona a criação de seu pai como todos nós deveríamos questionar; “ao mesmo tempo em que demonstra criticamente a soberania dos dogmatismos em detrimento da liberdade humana, também sugere que o pensamento, o sonho do homem, apesar de limitado, nem sempre pode ser dominado” (REGO, 2009, p. 23). Principalmente quando permitimos que o medo se ausente e que a consciência ressurja das cinzas, nosso pensamento deixaria de ser dominado por esta falaciosa, mas efetiva construção mitológica. O que é mais interessante neste processo é que, para transformar o pai de Jesus nesse ser abominável, desprezível e individualista Saramago não precisa de muito
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esforço: todas as atrocidades escondidas por trás do pensamento cristão estão, e sempre estarão, presentes em seus fundamentos basilares. Mas o Jesus de Saramago não é o Jesus bíblico, o seu Jesus não se vê como predestinado a aceitação, ele não se acomoda com as injustiças tão perenes às decisões de seu pai; o Jesus de Saramago é revolucionário, ele abdica de seu direito a salvar a humanidade, pois nunca foi ele quem desejou a existência desta humanidade, não foi ele quem criou o bem e o mal, não foi ele que, por um mal-entendido, expulsou lúcifer do lado de Deus. Sendo assim ele se recusa a assumir a responsabilidade de terceiros, a morrer por vontade de seu pai ausente, daquele que muito manda, mas que muito pouco oferece em troca. Como todos nós, Jesus não “veio à terra sabendo as decisões que deveria tomar; Jesus aqui é colocado diante de Deus e do Diabo como um homem indeciso quanto as suas escolhas e capaz de cometer erros/pecados como qualquer outro ser humano” (COELHO, 2011, p. 9). Sendo assim pode-se concluir que a briga que Saramago comprou com a igreja, e cuja repercussão lhe rendeu um exílio que durou até a sua morte, valeu, e muito, a pena. Não porque o autor simplesmente profana o sagrado, inverte o bem e o mal, mas porque ele nos ensina a questionar tais dualismos; a repensar a nossa culpabilidade frente ao mundo no qual vivemos e no qual inventamos nossos dogmas. Saramago traz o homem à materialidade, pede aos seus leitores que repensem a necessidade de transcender, de buscar o metafísico, já que é no mundo físico que nossas ações, assim como aquelas supostamente levadas a cabo pelo Deus cristão, têm suas maiores consequências. Ao acompanhar a trajetória da personagem Jesus, “o leitor sente-se impelido a reavaliar seu próprio percurso, procurando detectar os momentos em que se deixou transformar em objeto do discurso dominante e quando se propôs a protagonizar mudanças” (REGO, 2009, p. 22). O leitor de Saramago aprende a questionar, a tomar o discurso pra si e a deixar de reduzir-se a passividade que tanto mal nos faz, e que tanto controle proporciona a uma tão pequena parcela da sociedade. Neste sentido, a ficção de Saramago não é mais nem menos fictícia do que o universo mitológico cristão que sustenta a sociedade ocidental, mas as reflexões propostas por ele vão muito além de tal universo. “Assim, o Jesus de Saramago nos deixa a sensação (quase uma certeza) de que somente o homem pode salvar a si mesmo” (REGO, 2009, p. 23). Antes do suposto nascimento de Jesus, Sócrates já havia dito que para encontrar a si mesmo, o sujeito
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deveria pensar por si mesmo; o filósofo estava certo, principalmente quando os fatos soam tão insofismáveis. Diversos foram os momentos quando esquecemos nossa única e maior responsabilidade: a de ser livre e de permitir que o próximo também o seja (talvez o maior dos mandamentos, mas um que, obviamente, nunca estaria entre os bíblicos). Já passamos por dezenas de “guerras-santa”, inquisição, pelas cruzadas, caça as bruxas, por atos terroristas, pela escravidão, por misoginias, genocídios, homofobias, patriarcados, colonialismos, neocolonialismos, etc.; todos estes deploráveis momentos e processos históricos foram liderados, sustentados, justificados ou endossados por doutrinas religiosas. Então é justo dizer que, por enquanto, o homem ainda pode salvar a si mesmo; daqui a pouco, parece evidente, é provável que seja tarde demais. Referências COELHO, A. et al. “Jesus Cristo Humanizado em O Evangelho Segundo Jesus Cristo: Releitura Crítica da História Bíblica”. Revista Graduando, v. 2, 2011 DELUMEAU, J. A História do Medo no Ocidente. Trad. Maria Lucia Machado & Eloísa Jahn. São Paulo: Editora Schwarcz LTDA, 2009. FERRAZ, S. “O diabo perde Perdão: A redenção do Diabo por Saramago”. Revista Labirintos (UEFS), v. 4, 2010. FRYE, N. O Código dos Códigos: A Bíblia e a literatura. Boitempo Editorial: 2004. KUSCHEL, K. J. Os Escritores E as Escrituras. São Paulo: Edições Loyola, 1999. NIETZSCHE, F. O Anticristo: Ensaio de uma Crítica do Cristianismo. L&PM: 2008. NOGUEIRA, C. R. F. Deus e o Diabo: A Pedagogia do Medo. São Paulo: 1986. REGO, A. “Deus e o Diabo na Terra de Saramago”. Todas As Letras, v. 11, n. 2, 2009. SARAMAGO, J. O Evangelho segundo Jesus Cristo. Cia. De Bolso: 2008.
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A GEOGRAFIA NA OBRA DE EUCLIDES DA CUNHA Débora Soares de Araújo (UFPR) Conformações Euclides da Cunha sempre deixou evidente sua paixão pelas terras brasileiras. Seja como militar, engenheiro, chefe de comissão de reconhecimento, jornalista ou geógrafo, ele é um peregrino telúrico, misto de pesquisador documental e poeta, cujo foco principal é o interior brasileiro. O autor declara que a Rua do Ouvidor era o pior lugar para se pensar sobre o Brasil1 e que não desejava o conforto do boulevard, mas o sertão e a difícil vida de pioneiro2. Seguindo esses pensamentos, Euclides trabalha na busca por uma perspectiva que fosse capaz de analisar e interpretar o momento histórico que o país atravessava. Assim, ele propõe observar a nação através de pontos extremos do território nacional, pois acreditava que esses lugares distantes e mais desconhecidos do que as terras estrangeiras poderiam pôr em xeque as ilusões a cerca da questão identitária e do processo de modernização da nação. Euclides acredita que o sertão e a região amazônica, as duas paisagens que norteiam e dão base (respectivamente) à sua primeira e última obra (Os sertões, 1902 e Um paraíso perdido, 1909), seriam as paisagens capazes de questionar a profundidade da adesão ao modelo civilizador irradiado pela Europa e suas conflituosas consequências. Mais que isso: sertão e floresta seriam os lugares de observação do choque entre o modelo europeu de modernização e as condições físicas, sociais, econômicas e políticas que aqui se desenharam. 1
A respeito das novas perspectivas sobre a nacionalidade brasileira, a partir de sua visão amazônica, Euclides assevera o seguinte a Afonso Arinos, em 12 de janeiro de 1905: “Realmente, cada vez mais me convenço que esta deplorável rua do Ouvidor é o pior prisma por onde toda a gente vê a nossa terra.” In: GALVÃO, GALOTTI 1997, p. 251. 2 A citação completa: “Não desejo Europa, o boulevard, os brilhos de uma posição, desejo o sertão, a picada malgradada, e a vida afanosa e triste de pioneiro. Nestes tempos de fragilidade já não é pouco”. In: GALVÃO e GALOTTI, 1997, p.212.
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Já desde Os sertões (1902), Euclides da Cunha percebe os problemas da implantação do modelo europeu em solo brasileiro e com os escritos amazônicos de Um paraíso perdido3 (1909), o autor de certa forma ratifica o desterramento do sertanejo, agora literalmente um desterrado nas terras da floresta. São suas duas paisagens fundamentais (sertão e região amazônica), as responsáveis por elaborar e organizar uma visão do todo, ou seja, uma poética da terra brasileira, capaz de contemplar desde sua formação até sua desembocadura na (até então) jovem República. Na verdade a visão do autor ultrapassa a questão delimitadora do tempo, sendo atualíssima. Nela, encontramos, por exemplo, discussões que partem da ideia de formação da nação e identidade nacional, e que também vislumbram outras questões consequentes, atuais e importantes, desenvolvidas a partir do processo de modernização do país, de seus efeitos e desdobramentos. De certa forma, a análise crítica dessas paisagens brasileiras (que compõem o que aqui se chama geopoética euclidiana4) põe em evidência a dinâmica das concepções nacionais através do tempo. Munido de suas opiniões políticas e científicas (aqui destaco sua afinidade com o positivismo, o evolucionismo, e teorias raciais), Euclides entra primeiramente no sertão da Bahia, para onde (com intuito de relatar o desfecho da Revolta de Canudos) foi enviado como correspondente do jornal O Estado de São Paulo. Do conhecimento, científico e literário, previamente adquirido em livros, compêndios e artigos, o autor fez uso especial na observação física da flora e fauna sertaneja, bem como do clima e da formação geológica, porém em relação à observação do homem e suas relações é possível perceber alguns impasses. As teorias científicas em voga no século XIX e com as quais Euclides simpatizava inicialmente, como nos esclarece Roberto Ventura5 (1991), estavam mergulhadas na ideia de que as raças americanas e africanas eram degeneradas e de que havia uma forte relação causal entre a natureza destas terras e de seus habitantes, ambos vistos negativamente (tanto em seu aspecto físico, cultural, político e religioso). Das terras da América, com sua juventude caótica, animalesca e 3
Um paraíso perdido é a inconclusa última obra de Euclides da Cunha, que teve sua primeira edição organizada em 1909. 4 O termo geopoética atribuído à obra de Euclides da Cunha foi utilizado pela primeira vez por Ronaldes de Melo e Souza em seu livro A geopoética de Euclides da Cunha, 2009. 5 Ver especialmente o capítulo 1 - Civilização nos trópicos? In: Estilo tropical – História cultural e polêmicas literárias no Brasil (1991 p.17-43). No capítulo, Roberto Ventura discorre sobre as disputas ideológicas no Novo Mundo.
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herética, surgiam os homens quase animais, sem registro, sem cultura, sem história e que ansiavam veementemente pela instalação das luzes civilizatórias vindas da Europa. Porém, com a experiência das viagens o autor teve a oportunidade de observar in loco esses postulados europeus, e é exatamente dessa observação que brota o choque. Euclides percebe que tais postulados não se aplicam inteiramente ao sertão e ao sertanejo. Da mesma maneira que percebe, posteriormente, já em sua viagem à Amazônia, que as concepções europeias e a política brasileira não davam conta de analisar as duras relações econômicas, sociais e políticas desencadeadas nas regiões da floresta. Nesse sentido, sertão e região amazônica colocam em xeque o ideal de progresso e de modernização da nação. Bem como coloca em conflito o próprio posicionamento de Euclides diante dos dois polos que marcam nossa consciência (inclusive literária): o primeiro, marcado pela influência do modelo europeu e pela necessidade de ter fortes pontos de contato com ele e o segundo, marcado pela busca de uma tradição nova e nossa6. Diante dessa relação, Euclides opta pelo exercício prático-imaginativo de um itinerário que busque interrogar os modos de produção das ilusões identitárias a partir de pontos extremos do território, portanto, dos limites de possibilidade da história e da cultura, constitui ensaio, ao mesmo tempo, do mapeamento de imagens e vozes de hipotéticas contracorrentes muitas vezes dispersas, quando não inteiramente inacessíveis, mas o bastante reais para converter em instáveis e rapidamente ocas a maior parte das representações edificantes do “Brasil moderno”. Por isso mesmo, ao invés de buscar de início um centro (histórico, político, econômico, cultural, artístico, ideológico, etc), a perspectiva a se adotar é a do inventário de signos desviantes, à margem – deslocados, enfim, das cristalizações monumentais, ruiniformes ou deletérias do corpo da pátria”. (HARDMAN, 2009, p. 310).
É nesse feixe de relações conflituosas que Euclides formula sua geopoética, que é sua tentativa de análise dialética do país, pois este tipo de análise parece ser a única capaz de abarcar conceitos e experiências, ciência e arte, literatura e história, capaz de interpretar verdadeiramente o Brasil. O drama da formação da literatura brasileira, conforme observa Afrânio Coutinho no texto Definição e caracteres da literatura brasileira, é resultado de uma luta entre uma tradição importada e a busca de uma nova tradição de cunho local ou nativo. Ver texto completo em: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=43&sid=310. 6
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Convergências É conhecida a presença do caráter científico na obra de Euclides da Cunha. Para o autor, o consórcio entre ciência e arte se faz necessário para a realização daquele que, de maneira ampla e profunda, é seu maior objetivo: conhecer o Brasil. Nessa busca Euclides lança mão de um imenso rol científico, de onde gostaríamos de destacar a geografia. Necessária para conhecer e entender a nação, a geografia é uma das ciências humanas mais atuantes nos textos euclidianos, seja em sua perspectiva física, seja em sua perspectiva cultural. Utilizando um aparato geográfico diversificado, que utiliza desde referências aos estudos dos viajantes europeus até a exploração de recentes e controversas teorias geográficas, Euclides se debruça sobre o sertão e a região amazônica. Seu trabalho interpretativo se apoia na utilização de uma narrativa multifacetada, que conta com um eixo de análise bastante abrangente. A narrativa é resultado de sua liberdade de escolha como sujeito, sua filiação social, ideológica e estética e onde coexistem numa combinação de formas heterogêneas, “historiografia, geografia, crônica, epistemologia e poesia, versadas todas em estreito consorcio com o comentário científico” (SEVCENKO, 1998, p.134), já o eixo de análise transparece na divisão em três partes de Os sertões (a terra, o homem, a luta), composição que articula elementos capazes de evidenciar profundas questões sociais, econômicas e políticas e que de certa forma, como observa Willi Bole, também influencia na construção de Um paraíso perdido7. Com as duas obras, Euclides tece uma representação das paisagens, que se articulam numa geopoética brasileira - resultante do choque, do emaranhamento e das transfigurações dessas paisagens. Antes de seguir é importante tecer algumas observações acerca da importância da geografia na obra euclidiana. A relação entre as duas instâncias se justifica sobremaneira pela presença de certo pensamento geográfico que, por sua vez, é resultante da representação das interações dinâmicas entre o homem e seu meio. De forma mais específica, ressalto a importância do termo paisagem. Sabe-se que este termo enseja uma gama variada e multidisciplinar de abordagens, mas a princípio, a 7
Willi Bolle em seu artigo O mediterrâneo da América Latina: a Amazônia na visão de Euclides da Cunha observa esta influência ao dizer que: “Como pano de fundo de todos esses ensaios amazônicos de Euclides é possível notar a influencia do molde de composição de Os sertões” (BOLLE, 2005, p.143).
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ideia principal é mesmo aquela que nos fala da convivência que se desenvolve entre um espaço geográfico e os homens. A moderna noção de paisagem na obra de Euclides se coaduna com abordagens geográficas relativamente recentes, especialmente a partir da geografia cultural8, onde a paisagem é, ao mesmo tempo, uma dimensão concreta significada a partir do olhar, porém, o resultado deste olhar já é um processo cognitivo repleto de representações do imaginário social e, portanto, se apresenta de forma dual: é real e também representação, concreta e subjetiva, e não se pode mais estabelecer limites entre fenômenos naturais e culturais plasmados pelo olhar, já que “o ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto de evidências tautológicas [...] Ver é uma operação de sujeito [...] fendida, inquieta, agitada, aberta” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p.77). Para Euclides a paisagem é onde se conjuga “aquilo que se vê como evidência de um volume e, por outro lado, aquilo que nos olha – o que não tem mais nada de evidente e vem das experiências do sujeito, que tenta repor e (res)significar suas perdas, ruínas e esvaziamento” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 37). A paisagem é onde as experiências se inscrevem e são transmitidas de um individuo a outro, de uma geração a outra, e assim, se torna testemunha das relações entre os homens e o meio. Por isso, parece oportuno convocar aqui a noção de paisagem formulada por Milton Santos, que a define como sendo “um conjunto de formas que, num dado momento, exprime as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza” (SANTOS, 2002, p.103). Santos assinala ainda o caráter transtemporal da paisagem, capaz de unir objetos passados e presentes em uma construção transversal que revela um aspecto de palimpsesto (SANTOS, 2002, p.103). A paisagem presente ou evocada, concreta e subjetiva ajuda a questionar e conduzir as obras, colocando-se como princípio de descoberta, de mediação. Dessa maneira, Euclides da Cunha transforma a paisagem em tema e meio. Aliás, Os sertões e Um paraíso perdido são dessas obras em que as paisagens assumem o papel de motor dialético – a construir imagens do Brasil através do vertiginoso jogo de figuração e transfiguração dos espaços. É partindo da importância e do papel das paisagens que as 8
No artigo A evolução recente da geografia cultural de língua francesa, Paul Claval comenta que com a renovação da geografia cultural, após 1980, a paisagem passa a ser considerada em sua dimensão cultural, ou seja, como um dos contextos através dos quais a cultura se transmite de um individuo a outro, de uma geração a outra e se torna testemunha das relações entre os homens e o meio. Ver: CLAVAL, 2003.
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interações entre literatura e geografia se fortificam e é possível afirmar que Euclides compõe uma geopoética profunda e complexa do Brasil, capaz de vislumbrar a distância geográfica, histórica, antropológica, social e política entre o sertão e a floresta, entre Canudos e as disputas nas terras amazônicas, o rio Vaza-Barris e o rio Purus, o sertanejo e o seringueiro, o Hércules Quasimodo e o Judas Asverus. Dentro do pensamento geográfico euclidiano, vale frisar uma intenção quase constante de localização espacial (quer seja através de coordenadas, mapas, ou descrições mais objetivas – quase pinturas, ou cenas onde as relações humanas são problematizadas – lutas, conflitos e disputas) e uma preocupação quanto ao caráter político, que inclui o estudo da organização regional e do papel que sertão e floresta desempenham na e para a nação. Considerações Finais A geografia, pela via da influência de leituras, também se faz presente na obra de Euclides. Aqui a referência é aos relatos de viagens dos viajantes europeus, especialmente ao trabalho multifacetado de Alexander Von Humboldt (RICOTTA, 2000). A representação dos quadros da natureza em Os sertões e Um paraíso perdido ressoa o cultivo simultâneo do estético e do científico, onde as afinidades científicas e literárias se faz presente e é mesmo buscada. Assim como os quadros da natureza do Novo Mundo de Humboldt, a tessitura euclidiana busca aliar cenas da natureza, evocação e consistência material perceptiva na construção de complexas imagens do Brasil. Outra presença a marcar é a de William Morris Davis, geógrafo norte-americano considerado o pai da geografia moderna americana. Davis foi contemporâneo de Euclides e sua obra The Rivers and Valleys of Pennsylvania9 (1889), que trata do ciclo vital dos rios daquele estado americano, influencia a análise de Euclides a cerca do rio Purus na região amazônica. Ou seja, o arco de abrangência que vai desde o diálogo com a tradição romântica dos textos de Humboldt até as análises inovadoras da morfologia dos rios de Davis nos dá indícios da importância da geografia no projeto de Euclides. Com essa forte presença, o autor brasileiro vai além da relação entre história da nação e identidade nacional. Assim, seu pensamento geográfico passa a ser um elemento de 9
Sobre a questão ver: A margem da História (CUNHA, 2006, p.31-44).
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partida e análise, que se constitui num elemento indispensável para entender o Brasil em sua gênese e continuidade. Nesse sentido, é de fundamental importância investigar o papel das paisagens dentro do projeto literário de Euclides da Cunha. O ponto primordial deste objetivo está posto na ideia de que o sertão e a floresta, retratados respectivamente em Os sertões e Um paraíso perdido, se encontram e se articulam de forma orgânica na elaboração de uma geopoética brasileira. Sob esta ótica, as paisagens são responsáveis por constituir uma imagem profunda do Brasil, capaz de dar conta da difícil tarefa de pensar o país na passagem do século XIX para o XX. As duas paisagens primordiais para Euclides (sertão e floresta) são vistas, analisadas, tratadas e imaginadas como formadoras dessa geopoética. Um estudo comparativo que as contemple pode trazer boas contribuições às pesquisas que, direta ou indiretamente, se ocupam da abordagem multidisciplinar, dos temas, espaços e discussões que emergem da obra de Euclides. Ressalto que um dos pontos importantes neste percurso é a tentativa de enxergar a obra do autor de forma articulada (não segmentada, estanque) e, investindo nessa mirada, perceber um Euclides que expande fronteiras ao pensar também o papel do Brasil na América do Sul. A tarefa é árdua, especialmente porque o autor tem uma literatura única. Como bem observa Francisco Foot Hardman (2009): Sua literatura, alheia a escolas estéticas fechadas, cavava espaços na luta contra os limites extremos do habitat humano. Forjava assim, nesse confronto do vazio, um estilo único. Não só estilo, mas gênero único, híbrido, mestiço, inclassificável e, por isso mesmo, desde sua primeira aparição, inteiramente moderno. (HARDMAN, 2009, p. 49).
Nessa direção, penso que a especificidade do texto euclidiano deve ser considerada e que existe a necessidade de pesquisas que partam desta ideia de gênero mestiço e de que as paisagens se configuram como seu motor dialético. Desta maneira, articular o bastante conhecido (Os sertões) com o pouco conhecido (Um paraíso perdido) pode ajudar a ampliar a mirada crítica sobre os escritos do autor. Logicamente, além de apontar a questão da presença e importância da geografia no projeto euclidiano e mostrar alguns pontos de contato e convergência, a pesquisa merece atenção redobrada e um esforço de diálogos mais amplos e dinâmicos.
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Referências BOLLE, Willi. O Mediterrâneo da América Latina: a Amazônia na visão de Euclides da Cunha. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13442/15260. Acesso em: 27/05/2013. COUTINHO, Afrânio. Definição e caracteres da literatura brasileira. Disponível em: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=43&sid=310. Acesso em: 09/julho de 2013. CLAVAL, Paul. A evolução recente da geografia cultural de língua francesa. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/geosul/article/view/13599. Acesso em 16 de julho de 2013. CUNHA, Euclides da. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. CUNHA, Euclides da. A margem da História, São Paulo: Martin Claret, 2006. DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998. GALVÃO, Walnice, e GALOTTI, Oswaldo. Correspondência de Euclides da Cunha. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997. HARDMAN, Francisco F. A vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a literatura moderna. São Paulo: Unesp, 2009). RICOTTA, Lúcia. A paisagem em Alexander Von Humboldt: modos descritivos dos quadros
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SEVCENKO, Nicolau. A literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na primeira república. São Paulo: Brasiliense, 1998. SOUZA, Ronaldes de Melo. A geopoética de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: Ed.Uerj, 2009. VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
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AS PAIXÕES DE EURÍDICE SEGUNDO JEAN ANOUILH E ALAIN RESNAIS Desiree Bueno Tibúrcio (UEL)1 Introdução O estudo em questão integra uma dissertação de mestrado sobre a obra de Jean Anouilh e Alain Resnais: ambos franceses, o primeiro foi um renomado autor dramático e o segundo, um célebre cineasta. A pesquisa, ainda em desenvolvimento, tem como objeto as peças Eurydice (1942) e Cher Antoine ou l’Amour raté (1969) de Anouilh, e o filme Vous n’avez encore rien vu (2012) de Resnais. Para o presente estudo, a análise repousa nas diferentes Eurydices, tendo como ponto de partida a Eurydice de Anouilh em comparação com as três diferentes Eurydices do filme de Resnais, a fim de explorar a presença das paixões nas obras. Para tanto, o alicerce teórico pauta-se na semiótica francesa greimasiana, sendo possível observar diferentes efeitos passionais em cada releitura, considerados aqueles que mais se destacam para o desenrolar da trama da peça e do filme. A peça de Jean Anouilh revisita o mito de Orfeu: construída nos moldes da tragédia grega, seu enredo se passa na modernidade. No filme Vous n'avez encore rien vu, de Alain Resnais, é a Eurydice de Anouilh quem é revisitada e torna-se o elo entre as personagens do filme. A obra de Anouilh insere-se em Resnais como a peça escolhida para encenação pela Compagnie de la Colombe, reunindo-se três diferentes gerações de atores – dois casais de Orfeu e Eurídice, um de meia idade e outro mais velho, que já encenaram a peça sob a batuta do mesmo diretor, e um jovem casal que representa a peça na Compagnie de la Colombe - todas encenando uma única peça, simultaneamente. Eurídice segundo Anouilh
1
Aluna do PPG Letras da UEL, bolsista CAPES, sob orientação da profa. Dra. Sonia Pascolati.
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O mito grego de Orfeu serve como fonte de inspiração para Anouilh e acaba por ganhar uma nova roupagem: levando o título de Eurydice, personagem que no mito é a esposa de Orphée, Anouilh traz a trama do mito para os palcos do teatro. No original clássico, Orfeu vai até o mundo dos mortos resgatar sua esposa Eurídice, permissão concedida por Hades e Perséfone encantados pelo seu talento como músico com a condição de só olhar para ela depois de saírem dos domínios dos mortos. No entanto, Orfeu não consegue cumprir o acordo e Eurídice tem que retornar para o mundo dos mortos; após sofrer mais uma vez a perca da esposa, Orfeu sucumbe: ambos mortos podem, enfim, ficar juntos. Na peça, Anouilh traz o enredo do mito para o contexto moderno: Orphée também é músico, mas diferente do mito, Eurydice é integrante de um grupo de teatro. Após se conhecerem, se apaixonam e decidem largar tudo para viverem juntos. Mas Eurydice muda de ideia e decide fugir sozinha. Incrédulo, Orphée aos poucos conhece sua verdadeira natureza. No meio da fuga, Eurydice morre em um acidente no ônibus para Toulon. Monsieur Henri faz o papel que cabe a Hades e Perséfone no mito, permitindo que ela retorne à vida com uma condição semelhante à do mito grego: Orphée não poderá olhar para ela até o dia seguinte. No entanto, enciumado e colérico, Orphée quer saber a verdade do que descobriu sobre Eurydice. Ela nega a veracidade do que disseram sobre ela, isto é, de que ela fora amante do empresário da companhia teatral, porém ele não acredita em sua palavra e quebra o pacto, fazendo com que ela morra novamente. Desolado por perdê-la mais uma vez, agora a única solução para Orphée ficar com Eurydice é no mundo dos mortos. Eurídice segundo Resnais A peça Eurydice de Anouilh é encenada no filme Vous n'avez encore rien vu de Resnais. No filme, duas diferentes gerações de atores que trabalharam com o dramaturgo Antoine d'Anthac são convocadas para leitura de seu testamento. No inusitado testamento, Antoine pede para que eles avaliem a possibilidade de uma
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terceira montagem de Eurydice, desta vez realizada pela jovem Compagnie de la Colombe. A montagem é exibida em um filme a que estes atores assistem. No decorrer da encenação, as duas diferentes gerações de atores começam gradualmente a interpretar Eurydice simultaneamente à Compagnie de la Colombe. Tem-se aqui o efeito da mise en abyme, com uma estrutura em cascata: as encenações se fundem numa só, formando uma mescla de vozes e a fusão ou co-presença de dois ambientes. O filme traz um painel do universo teatral, o que lhe confere teatralidade. Ao terminar a exibição de Eurydice pela Compagnie de la Colombe, Antoine entra em cena e revela que sua morte era uma farsa, cuja real intenção era a de reunir seus antigos atores para encenarem a peça mais uma vez. Vous n'avez encore rien vu termina com a insinuação do suicídio de Antoine. As paixões em Eurydice Antes de realizar a análise dos efeitos passionais presentes em Eurydice, deve-se ressaltar que, ao encenar o texto dramático em Vous n'avez encore rien vu, este passa a ser uma nova linguagem; há, então, duas obras diferentes: a Eurydice escrita por Anouilh e a Eurydice encenada no filme de Resnais. No entanto, ainda que se trate de linguagens diferentes, as paixões presentes em ambas as obras continuam sendo as mesmas. Assim, da mesma forma que diferentes atores interpretam uma mesma personagem, eles igualmente interpretam as mesmas paixões vivenciadas por essas personagens, o que se diferenciará é o modo de representação de cada ator. Além disso, há de se considerar que "as paixões não são propriedades exclusivas dos sujeitos (ou do sujeito), mas propriedades do discurso inteiro" (GREIMAS; FONTANILLE, 1991, p. 21). Logo, pretende-se considerar a análise do discurso como um todo e a partir dele compreender como se dão os efeitos passionais e sua relevância para a obra. Para os limites deste trabalho, deter-nos-emos apenas na análise das paixões nas diferentes Eurídices, sem considerar as especificidades da linguagem teatral e cinematográfica, discussão a ser desenvolvida na pesquisa de mestrado em andamento. Além disso, é possível observar que Resnais encena o texto dramático de Anouilh quase que na
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íntegra, e as sutis mudanças de representação realizadas pelo cineasta não comprometem o estudo das paixões. Ao analisar a cena inicial tanto do texto dramático, quanto da peça, pode-se observar a relação turbulenta e a decadência financeira de Orphée e seu pai. Um tenso diálogo se dá entre eles, culminando na paixão do furor no pai de Orphée, sendo este o primeiro efeito passional evidente de Eurydice. O furor ocorre depois de o filho interromper uma história contada por seu pai; a paixão é indicada no texto pela didascália2: "O PAI, furioso. – Está bem, está bem, eu não insisto" (ANOUILH, 2008, p. 328)3. No filme de Resnais, a paixão é interpretada pelo ator Vincent Chatraix, o ator que encena o Pai de Orphée é da terceira geração, a geração mais jovem que integra a Compagnie de la Colombe. Nesta encenação o ator grita irritado e sua voz ecoa furiosa, a expressão corporal muda; o ator tenciona os dedos da mão direita e aperta o guardanapo que segurava com a mão esquerda, cerrando o punho (Figura 1).
Figura 1 – Furor, Resnais (2012) Anouilh registra a indicação cênica apenas como “furor", visto que a didascália "é um texto autônomo, uma escritura homogênea, é um texto de apoio para o texto dos diálogos" (PAVIS, 2011, p. 207); sendo assim a encenação tem liberdade para construir imageticamente essa paixão, considerando ainda que as didascálias "impõem um certo tipo de dramaturgia, em relação com a situação e o desenvolvimento do texto. Deste 2
"Instruções dadas pelo autor a seus atores (teatro grego, por exemplo), para interpretar o texto dramático. Por extensão, no emprego moderno: indicações cênicas ou rubricas" (PAVIS, 2011, 96). 3 "LE PÈRE, ulcéré. – C'est bom, c'est bom, je n'insiste pas." (ANOUILH, 2008, p. 328)
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modo, sempre constituem um intermediário entre o texto e a cena [...]" (PAVIS, 2011, p. 207). O furor é definido como "grande exaltação de ânimo; fúria, ira exaltada; frenesi; impetuosidade; violência" pelo dicionário Michaelis (2009), sendo ele caracterizado pela violência, cabe então a escolha de interpretação do ator para esse efeito passional, uma vez que "as paixões definidas pelo /querer-fazer + não poder não fazer/ caracterizam-se principalmente pela violência e pelo ímpeto da fúria ou da irritação [...]" (BARROS, 1999, p. 70). Nesse sentido, o pai de Orphée quer fazer (contar uma história), mas não pode, pois é interrompido. E mesmo o furor ocorrendo somente após a interrupção do filho, o diálogo que a precede já era tenso e a interrupção é apenas seu estopim. A entrada de Mathias, antigo amante de Eurydice, é indicada no texto dramático por meio da didascália: "Mathias entra bruscamente. Ele está com a barba por fazer, obscuro, tenso" (ANOUILH, 2008, p. 335)4. Em Resnais, é possível observar duas diferenças de interpretação dessa mesma indicação cênica. O ator da terceira geração, Vladimir Consigny, que representa Mathias pela Compagnie de la Colombe, encena-a entrando taciturno, cabisbaixo (Figura 2), ao passo que Jean-Noël Brouté, o ator que encena Mathias na geração mais velha se levanta da cadeira subitamente de maneira brusca e exasperada (Figura 3).
Figura 2 – Mathias, Vladimir Consigny, Resnais (2014)
4
"Mathias entre brusquement. Il est mal rasé, sombre, tendu." (ANOUILH, 2008, p. 335)
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Figura 3 – Mathias, Jean-Noël Brouté, Resnais (2014) Apesar das diferenças de atuação, os atores interpretam a mesma personagem e exprimem a mesma paixão: a personagem está abatida, pois se encontra em disjunção com seu objeto valor, aquele que se caracteriza por ser o “objeto determinado pelas aspirações e projetos do sujeito, por seus valores, em suma” (BARROS, 2003, p. 88). Eurydice se configura como objeto valor de Mathias, o qual tenta estabelecer um contrato fiduciário com Eurydice, contrato de confiança e imaginário (GREIMAS, 1983, p. 230), mas com o qual apenas Mathias se compromete. Eurydice não se compromete, portanto, não corresponde aos seus sentimentos e o contrato é quebrado, o que causa a tristeza da personagem. A música é um elemento vital no mito grego e não o é diferente na Eurydice moderna: é a música que atrai Eurydice até Orphée. Encantada pela música, ela enfim o encontra e mesmo sem nunca terem se visto antes, o reconhecimento é mútuo. O amor entre as personagens é instantâneo: "ORPHÉE. – Eu não te deixarei jamais /; EURYDICE. – Você jura?" (ANOUILH, 2008, p. 338)5. Segundo o dicionário Michaelis (2009), o amor é um "sentimento que impele as pessoas para o que se lhes afigura belo, digno ou grandioso; [...] afeição, grande amizade, ligação espiritual; [...] benevolência, carinho, simpatia.". Este sentimento surge entre as personagens de imediato, a afeição entre Orphée e Eurydice é tão forte que se dá instantaneamente. No entanto, Mathias também ama Eurydice e ainda a procura. Desconfiado, Orphée a questiona: "Quem é Mathias? / ORPHÉE. – Aí está, três vezes que ela vem te 5
"ORPHÉE. - Je ne vous quitterai jamais / "EURYDICE. - Est-ce que vous me le jurez?" (ANOUILH, 2008, p. 338
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dizer que ele a procura" (ANOUILH, 2008, p. 350)6, temeroso em perder seu objeto valor, ele vê Mathias como um possível rival: [...] o ciúme aparece de súbito no fundo de uma relação intersubjetiva complexa e variável, presente por definição ao longo de todo o percurso passional: o temor de perder o objeto só se compreende aqui em presença de um rival, nasce da presença do objeto de valor que funciona como pivô. (GREIMAS; FONTANILLE, 1991, p.171). Nesse sentido, independentemente das declarações e juras de Eurydice, a mera presença de um rival já traz o temor de perdê-la. Há de ressaltar que em Vous n'avez encore rien vu a demonstração do ciúme de Orphée ocorre simultaneamente a um impulso colérico (Figura 4):
Figura 4 – Ciúme e cólera, Resnais (2014) Ele segura Eurydice violentamente, em um ímpeto de cólera. A violência é explicada pelo dicionário Michaelis (2009) como "[...] qualidade do que atua com força ou grande impulso; força, ímpeto, impetuosidade. [...] ação violenta.". Sua voz se altera e sua respiração fica ofegante, indicando a irritabilidade da personagem, que fica colérica com a presença de um rival, sendo esta uma paixão de "impulso violento, ira, irritação forte que incita contra aquele que nos ofende ou indigna" (MICHAELIS, 2009). 6
"Qui est ce Mathias." / ORPHÉE. – Voilà trois fois qu'on vient vous dire qu'il vous cherche" (ANOUILH, 2008, p. 350)6
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A paixão da cólera é desencadeada em Orphée devido ao ciúme que sente da possível relação entre Eurydice e Mathias; ele quer que ela diga quem é essa pessoa que a procura e que o ameaça. O ciúme que ele sente é com relação aos relacionamentos anteriores de Eurydice, cabe ressaltar que este é um "sentimento indiferente ao fato de o outro ser fiel ou não" (FIORIN, 2007, p. 11), ou seja, mesmo com a fidelidade o ciúme ainda surge. Além disso, conforme é indicado pelo diálogo, ele se sente inseguro por não ter sido seu primeiro amante, considerando ainda que "a ideia de compartilhar não agrada ao ciumento, ao contrário, leva-o a desesperadora dor." (NUNES, 2007, p. 24). Para Orphée, é a ideia de compartilhar seu objeto valor que o faz sofrer e isso é indiferente à fidelidade de Eurydice. Apesar do ciúme, decidem largar tudo para ficarem juntos. Ela vai até Mathias e lhe revela que ama Orphée, o que o leva ao suicídio. O suicídio é a solução que a personagem encontra para acabar com sua tristeza, que para ela, não teria outra saída, uma vez que para "um suicida, para quem viver é insuportável”, a morte é “[...] categoria semântica eufórica" (MENDES, 2010, p. 36). Com isso, acabar com a própria vida é o único meio de Mathias sair do estado de disforia, que “marca a relação de desconformidade do ser vivo com os conteúdos representados” (BARROS, 2003, p. 86) e ir para um estado de euforia, que “estabelece a relação de conformidade do ser vivo com os conteúdos representados” (BARROS, 2003, p. 87). Orphée também precisa se separar de seu pai. Mas antes mesmo de conhecer Eurydice, isso já era um desejo da personagem, conforme é indicado em um diálogo anterior, ele desejava seguir sua própria vida, mas para isso lhe faltava a modalização do poder: ORPHÉE. – [...] É provável que eu não poderei jamais te deixar. Eu tenho mais talento que você, eu sou jovem e sei que a vida me reserva outra coisa; mais eu não poderei viver, se eu souber que você pode morrer em qualquer parte. (ANOUILH, 2008, p. 329)7. 7
"ORPHÉE. – [...] Il est probable que je ne pourrai jamais te quitter. J'ai plus de talento que toi, je suis jeune et je suis sûr que la vie me réserve autre chose; mais je ne pourrai pas vivre, si je sais que tu crèves quelque part." (ANOUILH, 2008, p. 329)
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Dessa forma, ele era até então sujeito apenas do querer fazer, pois precisava de alguém para separá-lo de seu pai e assim tornar-se sujeito do poder fazer: "ORPHÉE. – [...] Às vezes eu sonho com quem poderia nos separar..." (ANOUILH, 2008, p. 329)8. Orphée precisava de alguém para tornar-se sujeito atualizado, “atualização [...] [que] pode corresponder – na medida em que se efetua a partir de uma realização anterior – a uma transformação” (GREIMAS; COURTÉS, 1979, p. 36) e isso ocorre ao conhecer Eurydice e se apaixonar por ela: o amor e a vontade de viver ao lado da pessoa amada lhe conferem a modalidade do poder fazer. No entanto, Eurydice recebe uma carta de Alfredo Dulac, seu empresário e antigo amante. Percebendo que não conseguirá fugir de seu passado, decide partir sozinha para Toulon. Diz para Orphée que quer fazer compras para o jantar, mas que quer ir só. Enquanto ela sai, ele desconfia de sua atitude, corre até a porta e a chama, mas ela já havia ido. Tendo em vista que ele não admite o fato dela ter tido outros amantes antes de conhecê-lo, Eurydice decide fugir para impedir que ele se encontre com Dulac. Pode-se dizer que o ciúme de Orphée colabora para sua fuga, que resultará em sua morte. No entanto, é importante ressaltar que o motivo da fuga de Eurydice não é diretamente o ciúme, mas o sofrimento que ele pode ocasionar. Dulac ainda não sabe de sua fuga e a procura no quarto de hotel. O empresário se apresenta a Orphée como seu antigo amante; enciumado, ele se recusa a acreditar. Ao revelar sua relação com Eurydice, Dulac também se configura como um rival para Orphée, com isso há de se considerar que para Greimas e Fontanille (1991, p. 173): [...] a rivalidade não será nunca para o ciumento, alegre e conquistadora, mas se apresentará de preferência como dolorosa e amarga, tendo por perspectiva a perda do objeto; por outro lado, o apego será profundamente inquieto e preocupante, porque ameaçado pelo rival: no momento mesmo em que conta apenas a relação com o ser amado, por exemplo, uma inquietude guarda o vestígio ameaçador e mais ou menos imaginário de um antissujeito.
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"ORPHÉE. – [...] Quelquefois je rêve à ce qui pourrait nous séparer..." (ANOUILH, 2008, p. 329)
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Para Orphée, que se configura como sujeito ciumento, essa situação é dolorosa. Ele sofre com a possibilidade de perder Eurydice, e com a revelação de Dulac, este passa a ameaçar sua relação com ela e é visto então como antissujeito: "ORPHÉE o olha. – Não sei o que você é mais: odioso ou ridículo..." (ANOUILH, 2008, p. 391). Ele reage com descrença às revelações de Dulac, ao mesmo tempo em que se altera, irritadiço e elevando o tom de voz. Em contrapartida, o empresário age com tranquilidade e provoca-o exaltando minúcias sobre o comportamento e personalidade de Eurydice, mas ela está morta e não pode mais se defender. Nesse momento da ação, entra em cena M. Henri que a traz de volta à vida, com a condição de que Orphée não a olhe até o dia seguinte. Enciumado, ele deseja saber a verdade e a questiona sobre Dulac, mas ela se recusa a dizer a verdade. Cego pelo ciúme, ele olha para Eurydice e ela tem que voltar para o mundo dos mortos. Orphée agiu impulsivamente, sem refletir sobre as consequências de sua atitude, visto que "o ciúme é a paixão que mais provoca atos explosivos e impensados, deixa a razão muito aquém da emoção, e causa muita dor com a sua fúria” (NUNES, 2007, p. 34). Antes de voltar para o mundo dos mortos, Eurydice confessa ter sido amante de Dulac, mas apenas porque ele a chantageava. Ao perdê-la mais uma vez, Orphée entra em disjunção com seu objeto valor e se recusa a prosseguir sua vida, já que, como afirma Fiorin (2007, p. 19), "o sujeito é impotente para reagir contra o que deu origem a seu descontentamento e, portanto, revive-o com intensidade. Isso produz uma malquerença, que conduz à lamúria [...]". Orphée não sai da cama, lamurioso, não sente vontade de continuar, apesar de seu pai e M. Henri tentarem reanimá-lo. A impossibilidade de entrar em conjunção com seu objeto valor, no caso Eurydice, é a única coisa que o fará sair desse estado de lamúria. Mas ela está morta e desta vez não poderá retornar. Somente M. Henri pode ajudá-lo, mas agora o único meio de ficarem juntos é ir até Eurydice no mundo dos mortos. Com isso, Orphée sucumbe para poder ir atrás de Eurydice e, enfim, ficarem juntos. Considerações Finais
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Dentre os diferentes efeitos passionais que podem ser encontrados em Eurydice, destacam-se o furor do pai de Orphée, resultado de uma relação tensa entre pai e filho; a tristeza de Mathias oriunda da disjunção com seu objeto valor e da quebra do contrato fiduciário; o amor entre Orphée e Eurydice e o ciúme, acompanhado pelo ímpeto de cólera de Orphée. Todas as paixões aqui analisadas contribuem para que a trama flua, até culminar duas vezes na morte de Eurydice. Ambas as vezes o ciúme foi a paixão que mais colaborou para isso: temendo o sofrimento de Orphée, devido ao ciúme de Dulac, Eurydice decide fugir e morreu em um acidente. Da mesma forma é que, posteriormente, dominado pelo ciúme e desconfiança, Orphée olhou para Eurydice, tendo como consequência a quebra do pacto com M. Henri. Eurydice cumpre o papel de objeto valor de Orphée, que deseja entrar em conjunção ela. No entanto, seu ciúme acaba por afastá-la indiretamente. Há de se ressaltar que a análise das paixões em Eurydice nesta pesquisa se deu tanto no âmbito do texto dramático, de Anouilh, quanto nas encenações da peça inseridas no filme Vou's n'avez encore rien vu de Resnais, fazendo a devida distinção quando necessário. Apesar de tratarem de linguagens diferentes, os efeitos passionais não sofreram alterações significativas, tendo sido possível, então, realizar-se a análise simultânea. Referências ANOUILH, Jean. Eurydice. In: ______. Pièces noires. 6. ed. Paris: La Table Ronde, 2008. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Paixões e apaixonados: exame semiótico de alguns percursos. In: _____. Revista cruzeiro semiótico. Porto: Associação Portuguesa de Semiótica, 1999. p. 60-73. ______. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2003. COURTÉS, Joseph; GREIMAS, Algirdas Julien. Dicionário de semiótica.São Paulo: Cultrix, 1979.
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JOURNEY E AS NOVAS POSSIBILIDADES NARRATIVAS DOS VIDEOJOGOS Deyseane Pereira dos Santos Araújo (UEPB)1 As reflexões sobre a pós-modernidade instituíram a tese do fim dos grandes relatos e, por extensão, da narrativa. Duas razões podem sustentar tal tese: o apego da teoria pós-moderna a toda forma de fragmentação; e o descrédito contemporâneo a formas de projetos coletivos de médio e longo prazo. Acreditamos, contudo, que os postulados pós-modernistas do fim dos grandes relatos não se aplicam ao universo do vídeo contemporâneo, em particular ao universo dos videojogos ou games, uma vez que, como o lugar ideal da pós-modernidade, ele funciona como paradigma forte daquilo que é feito em grande medida pelos sistemas midiáticos atuais e demonstra, sobremaneira, o ato exacerbado de narrar da contemporaneidade. Tal como Ricoeur (1994), entendemos que o ato de narrar é uma forma de estar no mundo, forma esta que constitui o tempo para a consciência humana. A narrativa reorganiza experiências temporais e nos ajuda a perceber “os modos de comunicação existentes na contemporaneidade, contemplando estratégias e lugares, e compreendendo a experiência humana na sua dimensão temporal” (LEMOS, 2006, p. 08). Ela é a matriz da compreensão integrativa entre os tempos sincrônicos e diacrônicos que dá densidade às memórias e aos projetos de vida. Como sabemos, as narrativas podem ser apresentadas em diferentes mídias (livros, história em quadrinhos, jornal, cinema, teatro, etc) incluindo videojogos. Sendo assim, ela é uma constante que varia em seu meio de expressão. Segundo Murray (2003), as narrativas sempre foram o instrumento basilar encontrado pelos agrupamentos humanos para construir comunidades, desde uma tribo reunida em volta de uma fogueira até uma comunidade global conectada por um computador de última geração. Os homens contam histórias uns aos outros e compreendem-se através delas. Assim, a narrativa é um dos mecanismos cognitivos primários para a compreensão do
1
Doutoranda em Literatura e Interculturalidade (UEPB)
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mundo (MURRAY,2003). Ela está entre as matrizes semióticas fundamentais dos seres humanos. Esta experiência de comunicação e partilha realizada através da narrativa tem sido objeto da reflexão de diversos pensadores contemporâneos, tendo se tornado lugar comum a tese, para nós infundada, do fim dos grandes relatos e da impossibilidade da narrativa em tempos pós-modernos. De acordo com Walter Benjamin (1994), há uma impossibilidade de experiência
comunicável
no
mundo
contemporâneo
devido
ao
monstruoso
desenvolvimento da técnica. Para este teórico a transmissão da experiência já não é mais possível e a constituição de uma tradição improvável. Estamos vivendo, como afirma George Lukács (2000), no tempo da abrangência e da fragmentação, tempo este em que a totalidade não encontra mais lugar. Essa é a razão pela qual Lukács afirma a impossibilidade de produzirem-se grandes narrativas. A morte da narrativa na literatura é o ponto nevrálgico discutido por Benjamim em O narrador. Para ele, o indício primeiro que culmina na morte da narrativa é o surgimento do romance, fator no qual se tem uma ruptura entre o mundo da oralidade (modelo exemplar da narrativa) e o da escrita que se manifesta num processo de produção e recepção diversos, pautados no isolamento do escritor e do leitor, isto é, na segregação do romancista e na leitura individual e silenciosa, como nos afirma na seguinte passagem: “a origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e não recebe conselhos nem sabe dá-los” (BENJAMIN, 1994, p.201). O surgimento desta modalidade acaba com a faculdade de intercambiar experiências, as quais passam de pessoa a pessoa e constituem a fonte de toda narração. Logo, se não existe experiência compartilhável, não há o que contar. Para Walter Benjamin, o romance nem provém da tradição oral nem a alimenta: Essa característica o distingue, sobretudo, da narrativa, que representa, na prosa, o espírito épico em toda a sua pureza. Nada contribui mais para a perigosa mudez do homem interior, nada mata mais radicalmente o espírito da narrativa que o espaço cada vez maior e cada vez mais impudente que a leitura dos romances ocupa em nossa existência. (BENJAMIN, 1994, p.55)
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Em suas reflexões, Walter Benjamim atribui o patamar de “verdadeira narrativa” àquela ligada a experiência de quem narra, de modo que não há narrativa, de acordo com este autor, sem que o narrador possa exercer uma das suas funções fundamentais: dar conselhos. Ora, o ato de narrar assim concebido, proveniente tão somente da oralidade, limita, sobremaneira, o caráter ubíquo da narrativa uma vez que ela deve ser concebida não como algo ligado intrinsecamente a tradição oral, mas, antes, como “fruto da necessidade que o homem tem de contar e recontar, de um para o outro, as histórias que permeiam sua vida. E esse contar pode nascer, hoje principalmente, nos vários lugares em que a vida acontece” (RESENDE, 2006, p.165). Se por um lado foi à perda da vitalidade do ato de narrar, devido ao fato de as experiências deixarem de ser comunicáveis, que chamou a atenção de Benjamin, no atual momento, o que percebemos, é que é a proliferação exacerbada de narrativas que tem imposto uma reflexão sobre si mesma. Nas palavras de Figueiredo (2010), os novos tempos têm sido caracterizados por esta proliferação de narrativas, disponibilizadas pelo mercado cultural, nos mais diferentes suportes. Proliferação esta que se constitui no interior de uma ampla rede em que os bens simbólicos circulam, de maneira descentrada, desfazendose antigas hierarquias, ao mesmo tempo em que o mercado, seguindo a lógica comercial, cria segmentações de acordo com o tipo de público a que o produto se destina. (FIGUEIREDO, 2010, p.62)
Para nós, o texto seminal de Walter Benjamin, que é uma leitura de outro texto fundamental para o debate sobre a narrativa, A teoria do romance de Georg Lukács (2000), deve ser entendido menos no sentido de uma impossibilidade da narrativa nas sociedades modernas e contemporâneas, a despeito das palavras tanto de Benjamin quanto de Lukács, do que uma mudança significativa no seu estatuto, não cabendo, a nosso ver, opor narrativa e romance, antes sendo este uma configuração moderna daquela. Ferenc Fehér (1997), fazendo uma releitura do livro de Georg Lukács, ajuda a compreender tal mudança de estatuto na medida em que concebe o romance como uma forma narrativa que diz respeito a sociedades fundadas por relações “puramente sociais”, não míticas, não podendo ser considerado o fim da narrativa, mas uma nova estruturação dela, pois diz respeito ao estágio capitalista das sociedades humanas que mantém características de todas as sociedades humanas enquanto tais, sendo antes um
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enriquecimento da narrativa que seu fim. Diferente do que defendem muitos teóricos, Fehér (1997) acredita que este gênero soube se renovar e produzir frutos de alto nível sem negar a si mesmo, nem renegar seus princípios essenciais. De fato, vivenciamos, na atualidade, o fenômeno de deslizamento das narrativas de um meio para outro e isto tem colocado em evidência o processo contínuo de reciclagem narrativa. O processo de deslizamento da narrativa de uma midiasfera (Debray, 1993a) para outra ajuda-nos a compreender a contínua remodelização que este material sofre em diferentes meios e suportes. Tomando as palavras de Figueiredo (2010) aplicadas ao romance, narrativa das sociedades puramente sociais (FÉHER, 1997), poderíamos afirmar que a narrativa, devido a sua vocação antinormativa e anticanônica, estabelece uma íntima interação com outros gêneros e outras linguagens. Ela possui a capacidade de se adaptar, de absorver e ser absorvida por outras formas culturais, pois lhe é característica, devido a sua maleabilidade, a capacidade de se ajustar as mudanças tecnológicas e culturais. De acordo com Figueiredo (2010, p.88), as transformações tecnológicas ocorridas nas últimas décadas do século XX têm gerado novas formas de vivenciar a temporalidade, motivando com isso A revalorização da narrativa como instância de organização da experiência: no lugar das macronarrativas legitimadoras dos grandes projetos coletivos, com as quais as vanguardas, a seu modo dialogam, afirmaram-se as pequenas narrativas que privilegiam as pessoas comuns e a vida privada.
Acrescendo as ideias de Figueiredo não só acreditamos nessa proliferação visível da narrativa evidenciada pelo surgimento dessas pequenas narrativas, como também cremos no surgimento de outras potencialidades narrativas através de novos suportes, como no caso do videojogo, sistema criador, tradutor e disseminador de narrativas em potencial, que orquestra, através do suporte digital, variados códigos que proporcionam ao usuário experiências diversas devido a sua natureza intersemiótica. Nesse sistema, o narrativo não só se faz presente como componente constitutivo, como também é o elemento que torna fundamental, para a eficácia dessa mídia, a relação entre ludismo, estratégia, sequencialidade, sem as quais o videogame não tem sentido. Porém,
2670
vale ressaltar aqui que a experiência narrativa de um videojogo é essencialmente diferente da experiência narrativa de um meio tradicional como a literatura, por exemplo.
“O
destinatário
das
narrativas
tradicionais
permanece
sentado
confortavelmente em uma cadeira, sem conseguir interferir diretamente no enredo da narrativa que se apresenta a ele” (NESTERIUK 2009, p.30). Na narrativa de um videojogo “o jogador altera constantemente o estado da arte do jogo, construindo assim, a cada momento, o seu próprio jogo e a sua própria narrativa” (NESTERIUK, 2009, p.31), isto, é claro, dentro dos limites preestabelecidos pelo sistema do jogo. Nas pesquisas já realizadas sobre o universo dos videojogos existem algumas divergências teóricas quanto à classificação ou a não classificação desse gênero midiático como pertencente ao campo da narrativa. Alguns estudiosos, a exemplo dos narratólogos, afirmam que os videogames funcionam como uma espécie de narrativa, outros defendem a tese de que tal mídia não pode ser caracterizada como narrativa por não pertencer ao mesmo ambiente das mídias narrativas formadas por filmes, novelas, peças de teatro, literatura, etc. Outros, porém, corroboram com esta posição acrescentando que os videojogos são tratados de forma diferenciada de outras mídias por ter a constante intervenção do jogador que a qualquer momento pode iniciar ou parar o jogo e percorrer caminhos distintos dentro de uma mesma história. Há de se marcar, para alguns pesquisadores dos games, outro fator para a sua não inclusão nas mídias narrativas, o papel do interagente, que participa nos videogames de maneira mais explícita do que nas mídias tradicionais – cinema, teatro, livros, etc. Frasca (2010) afirma que mesmo que embora o videojogo possua todos os elementos de uma narrativa, ela só se efetiva mediante o resultado da ação das relações entre o sistema do jogo e os elementos próprios da narrativa. Não obstante não haver consenso entre os estudiosos dos videogames quanto à sua dimensão narrativa, cremos que tais recusas à narratividade dos videojogos não se sustentam em bases teóricas fortes, pois todas as recusas se baseiam equivocadamente em duas dimensões, por serem os videojogos narrativas em outros suportes técnicos, diferentes dos próprios da literatura, do cinema e da televisão, ou por serem dominantemente lúdicos. Ora, nenhuma dessas recusas se sustenta por não conseguirem questionar o que neles é determinante, a natureza temporal e sequencial de todos os
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jogos. Se o suporte é outro, mais antenado com os novos aparatos técnicos, isso não é suficiente para se recusar sua narratividade, pois, como Ference Fehér fez para a análise do romance, nestes novos suportes o que está em jogo é um novo estatuto da narrativa, não a sua inexistência. Por outro lado, o lúdico não é oposto ao narrativo, antes, nos videogames, um sustenta o outro. Para nossos objetivos aqui, não interessa se o narrativo é o dominante no videojogo, sua característica mais importante. Para nós, interessa que o narrativo é, hoje, elemento fundamental no seu desenvolvimento, sendo ele o elemento comum que faz unir, na babel contemporânea, a experiência da logosfera, da grafosfera e da videosfera (DEBRAY, 1993a). Assim, a narrativa funciona como um elemento integrador que põe em jogo variados processos de diálogos entre as diferentes midiasferas. Como é tendência no surgimento de cada midiasfera a incorporação das eras passadas, e considerando que a narrativa é este elemento integrador que esteve presente em todas as midiasferas citadas por Debray, veremos, a partir da análise do videojogo Alice Madness Returns no capítulo 3, como esta narrativa pertencente ao tempo do 3 (videosfera), evoca, através do processo de intersemiose, irresistivelmente, as eras idas, alimentando-se do distante mítico e performático da logosfera e da lógica do livro pertencente a grafosfera. Da narrativa em Journey e suas potencialidades Poética. Esta é a palavra que define a experiência narrativa de quem imerge no universo de Journey, videojogo lançado para Playstation 3, no ano de 2012, pela Thatgamecompany, empresa criadora de jogos indie, cuja filosofia não é apenas o desenvolvimento de videojogos que causem entretenimento interativo, mas sim a criação de experiências estéticas significativas e enriquecedoras para cada leitor/jogador/úsuário. Concebido para despertar emoções, Journey tem como arco narrativo central a jornada do herói descrita por Joseph Campbell em seu livro O Herói de Mil Faces. A jornada do herói descrita por Campbell se constitui num ciclo de morte e renascimento e de busca de aquisição dos poderes intrínsecos. Ela representa a aventura vivida por cada ser humano quando este sai do mundo confortável e protetor do ventre materno para um
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mundo estranho, repleto de desafios. Em outras palavras, a jornada do herói contaria uma variação da busca por um objetivo específico que, após tirar o herói de sua zona de conforto, o lançaria em uma jornada de inúmeros perigos e ciladas, até finalmente transformá-lo para sempre. Segundo o Jenova Chen (2012b), um dos criadores de Journey, a utilização dessa estrutura narrativa visa tocar profundamente pessoas de várias origens, já que todas elas vivenciam uma jornada interna e, nessa jornada, precisam ultrapassar barreiras em busca de um objetivo. Controlando uma personagem que lembra um humanoide envolto por um nova manto vermelho, vagando entre dunas móveis em uma região árida e quase desolada, Journey nos lança em uma jornada em direção ao topo de uma monumental e distante montanha, objetivo inicial do videojogo. O jogo não nos conta a razão da peregrinação ou quais as suas consequências, na realidade, cada jogador é responsável por construir a significação de sua jornada, que variará em cada experiência. Como quem “(re)nasce do pó”, a personagem de Journey, que somos nos mesmos, nos faz trilhar um caminho composto por desafios até a chegada ao cume do montanha. A jornada nos permite compor a história de uma sociedade, agora em ruínas, traçando desde o auge até a sua queda. Esta história, todavia, é secundária e fica a cargo do jogador compô-la ou não, pois o que está em questão não é a história da sociedade em si, mas a metáfora da caminhada da vida trilhada por todos nós, em todos os lugares e em todos os tempos. Característica emblemática que enfatiza a metáfora da jornada proposta por Journey encontra-se na possibilidade de este videojogo poder ser jogado online. A experiência online proporciona encontros com possíveis companheiros de viagem durante o caminho. Para muitos, o aspecto mais interessante da experiência é justamente a possibilidade de ter, num mundo tão desolado e por vezes opressivamente solitário, a presença de alguém que – em algum lugar do mundo – está trilhando a mesma jornada que você. Vale ressaltar que embora você saiba que é outra pessoa ali do lado, diferente de outros jogos online, não há como conversar com o outro por voz ou digitação. A comunicação é feita através de signos indiciais, de toques, de vocalização, aspectos que fortalecem a relação de companheirismo e solidariedade. Chen (2012b) afirma que a opção por estabelecer este contraponto diferenciado dos demais jogos multiplayer
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online, teve como objetivo criar uma experiência onde os jogadores fossem amistosos, bem como incentivar a criação de um vínculo emocional entre os participantes, pois é dividindo a jornada com outra pessoa que Journey nos leva a refletir sobre o que é realmente importante. Tematicamente complexo, Journey trata da existência e do processo de compreensão da vida. Tudo dentro de sua constituição corrobora para o processo de significação. Em outras palavras, o reflexo semiótico da narrativa pode ser percebido através das formas, das cores e dos sons presentes em todo o jogo. Longe de querermos aqui dar conta de todos os signos presentes na narrativa de Journey, limitamos nossa discussão, pelo caráter desse trabalho, a análise das modificações ocasionadas na narrativa quando esta migra para um espaço além-livro. Neste sentido, centraremos esta análise nas novas possibilidades de leitura/escritura, construídas através de mecanismos indiciais de oralização e presentes nesta narrativa, que oferecem ao leitor/usuário a vivência de uma nova subjetividade pela opção de organizar “o enredo de acordo com suas vontades e expectativas, consolidando sua participação real no desvelar da trama” (XAVIER, 2014, p.3). Journey apresenta em sua constituição, através do seu potencial narrativo, o substrato verbal que é dominante na grafosfera. A narrativa, medula da discursividade verbal, pode ser encarada como uma matriz cognitiva (SANTAELLA, 2005) que “reorganiza o fluxo dos acontecimentos na forma de uma cadeia causal de ações perpetradas por personagens” (GOMES, 2013, p.4). A narrativa presente em Journey, caracterizada pela sua natureza participativa, impõe um novo olhar em sua análise devido ao fato de o desejo, quase atávico, de entrar na imagem, ou mais propriamente, no filme, advindo do cinema clássico, encontrar aqui, pelo menos em parte, um lugar de realização. O poder de exercer ações significativas dentro do universo do videogame e de observar o resultado das possíveis escolhas dá ao leitor/interator – termo que aqui usamos também para os jogadores de videogames – “a possibilidade de “fazer parte” da história, através da tomada de ações significativas” via personagem (GOMES, 2008, p.28). Anexado à dinâmica de meios como a literatura e o cinema canônico, por exemplo, o videojogo Journey carrega consigo, indubitavelmente, procedimentos narrativos como personagens, enredo, espaço, conflito e afins. Classificado como um
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jogo de personagem, ou seja, um jogo que “se estrutura em torno de uma jornada através de um determinado espaço-tempo, no qual o interator penetra como protagonista” (GOMES, 2009, p.70), ou, para usarmos a terminologia de Caillos (1990), como um jogo de Mimicry, uma vez que o objetivo central é representar um personagem via adoção de determinados comportamentos; o videojogo canaliza os seus esforços na construção de um ambiente navegável, cujo principal objetivo é ser explorado pelo gamer por meio do avatar. Para se ter acesso ao desenrolar da narrativa, o jogador penetra no videojogo através de um tipo de imersão denominada por Santaella (2003) de imersão através de avatares. Ou seja, da união entre o jogador e a personagem controlada surge o avatar que é a representação gráfica e diegética do interator no mundo virtual e tridimensional do jogo e o meio pelo qual “exercemos nossa capacidade de interagir com o ambiente proposto” (BOBANY, 2008, p.41). A participação do jogador, através do avatar, no desenrolar da narrativa, dá a esse a capacidade de mudar os acontecimentos dentro daquele universo, contribuindo, assim, para o enredo através do agenciamento, “um certo tipo de atuação cinestésica que se converte em um fim em si mesma” (DARLEY, 2002, p.69). Este agenciamento faz do interator o sujeito da enunciação, no entanto, “o interator não é o autor da narrativa digital, embora ele possa vivenciar um dos aspectos mais excitantes da criação artística a emoção de exercer o poder sobre materiais sedutores e plásticos” (MURRAY, 2003, p. 150). Em outras palavras, o processo de agência dá maior poder de participação e de construção da narrativa dentro de um sistema pré-modelizado, todavia há de se salientar que esta liberdade não é total. A questão da agência levanta uma problemática no que diz respeito ao imbricamento de três instâncias presentes no videojogo, a saber: leitor/jogador, autor e avatar. A possibilidade de uma “leitura” performática abriu mudanças profundas na dinâmica da leitura proposta por essas novas narrativas, uma vez que integrou elementos outrora apartados, reconfigurando os seus papéis. A interatividade colocou o leitor em várias posições concomitantes: de jogador, de personagem, e até de possível autor da história, porém, vale ressaltar aqui que apesar da aparente liberdade imposta pelas narrativas deste videojogo, ou seja, apesar de se
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poder interferir de forma direta na narrativa através do personagem-avatar, isso não significa que o jogador se torne autor da história. Ela é e sempre será criada por um designer que nos oferece possibilidades de escolhas dentro daquele universo para que cada experiência seja diferenciada. A interatividade do videojogo se baseia apenas na ação e esta ação no enredo é passível de ser executada pelo próprio jogador. Em Journey, devido ao fato de a ação da personagem estar refém da instanciação do jogador “e mesmo os objetos e os agentes implementados pelo programa só entra[re]m em ação em resposta às atitudes do personagem/interator” (GOMES, 2008, p.46), encontramos uma narrativa que só se atualiza via interação entre sistema e jogador, como afirma Frasca (2010), ou seja, que se implementa no momento do seu consumo e que sofre “mudanças” neste processo de interação. O tecido narrativo de Journey é composto para que o interator possa penetrá-lo e dele venha fazer parte através da sensação de imersão ocasionada justamente pela conexão/identificação com o avatar. Conectados a ele, somos lançados em uma vivência de uma nova corporalidade e passamos a vestir as motivações da personagem. A inserção do nosso corpo através da presença do avatar ativa, semelhantemente ao período da logosfera, a questão da performance, da oralização da narrativa, uma vez que o corpo, a musculatura, os olhos, a atenção sem relaxamento são aqui convocados. Este corpo/avatar nos enraíza na narrativa e nos faz vivenciar o drama da protagonista no espaço-temporal daquele ambiente. O leitura/escritura oralizante do jogo Journey advém, portanto, deste fato, do fato de nesta narrativa não estarmos diante de algo que está sendo contado ou mostrado, mas experimentado. A participação do jogador, como um personagem da história confere uma experiência imersiva através da extensão protética de agenciamento que é o avatar (KLEVJER, 2006). Aqui, o intérprete é uma presença (ZUMTHOR, 2010) materializada no mundo ficcional através da vivência de uma espécie de Umwelt alternativo, filtrado pelo corpo desse Outro que, ao jogar, habito. Esse Outro se dá para mim como uma corporalidade que coloco em ação jogando (...)” (GOMES, 2009, p.94). Ele é a inserção do meu corpo no mundo diégetico do videogame. Em suma, Journey, devido ao seu aspecto performático, exige do leitor comportamentos “mentais e atitudinais bem mais participativos que os realizados em
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superfícies estáticas, como as páginas do livro impresso, por exemplo” (XAVIER, 2014, p.2), suscitando por isso, outras subjetividades para o leitor tradicional. Em outras palavras, esta narrativa nos coloca diante de máquinas-de-ser-eu que ativa diferentes subjetividades para o leitor pelas potencialidades de multiplicar-para-se-sentir que ela nos faculta. Referências BENJAMIN, Walter. Brinquedo e brincadeira: Observações sobre uma obra monumental. In: Obras escolhidas, vol. I – Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, SP: Brasiliense, 1996. BOBANY, Arthur. Videogame Arte. Teresópolis , RJ: Novas Idéias, 2008. CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens. Lisboa: Cotovia, 1990. CHEN, Jenova. Religion, frienship, and emotion: a Journey post-mortem. Gamespot. Disponível em: < http/WWW.gamespot.com/features/religion-friendship-and-emotiona-journey-post-mortem-637138>. Acesso em 23 de Nov. 2012. DARLEY, Andrew. Cultura visual digital: Espetáculo y nuevos gêneros em lós médios de comunicación digital. Barcelona: Paídos, 2002. DEBRAY, RÉGIS. A noção de midiasfera. In: Curso de midiologia geral. Petrópolis: Vozes, 1993a. FEHÉR, Ference. O romance está morrendo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema. Rio de Janeiro: Ed. PUC- Rio: 7Letras, 2010. FRASCA, Gonzalo. Ludology meets Narratology. Disponível http://www.ludology.org/articles/ludology.htm > Acessado em: 10 de abr. 2010.
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AS FIGURAÇÕES DO ESPAÇO NA POÉTICA DE MARCELO ARIEL Diamila Medeiros dos Santos (UFPR) O presente trabalho tem como objetivo o exame de um recorte do livro Tratado dos Anjos Afogados1, de Marcelo Ariel. Poeta nascido no ano de 1968, em Santos, litoral paulista, mudou-se para Cubatão ainda criança e, desde então, vive nesta cidade que já foi apontada como a mais poluída do mundo na década de 80. Desenvolveu uma série de atividades como pedreiro e faxineiro, e é proprietário, desde 1988 do sebo itinerante “O invisível”.2 Ariel publicou Me enterrem com a Minha AR-15, em 2007; Tratado dos Anjos Afogados em 2008; O Céu no Fundo do Mar em 2009; Coltrane Blues, Conversas com Emily Dickinson e Outros Poemas e A morte de Herberto Helder e outros poemas em 2010; A Segunda Morte de Herberto Helder em 2011; Cosmogramas e Teatrofantasma ou o Doutor Imponderável contra o onirismo groove em 2012; sendo sua mais recente obra o livro Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio lançado, recentemente, pela editora Editora Patuá. Os livros foram publicados por selos independentes, editoras menores ou então através de edições artesanais ou cartoneras3.
1
ARIEL, Marcelo. Tratado dos Anjos Afogados. Caraguatatuba: LetraSelvagem, 2008. Na sequência
falaremos de maneira mais retida do livro e também do recorte em questão. 2
ARIEL, Marcelo. Entrevista para a jornalista Marcella Chartier, em 29 de janeiro de 2008. Disponível
em: http://teatrofantasma.blogspot.com.br/2008/01/entrevista-para-jornalista-marcella.html Consultado em 15/11/2013. 3
As edições cartoneras, iniciaram-se na Argentina com o coletivo Eloisa Cartonera (2003), e depois se
espalharam pela América Latina. São produções editoriais que se valem do aproveitamento de papelão na confecção de livros, constituindo assim um veículo de divulgação literário alternativo ao universo das grandes editoras comerciais. No Brasil, as publicações de Marcelo Ariel saíram pelo selo Dulcinéia Catadora de São Paulo-SP, Sereia Ca(n)tadora de Santos-SP, Edições Caiçaras de São Vicente-SP e Rubra Cartonera de Londrina-PR.
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Algumas dessas produções aparecem, inicialmente, nos sites mantidos por Ariel4, para depois tornarem-se livro impresso. Marcelo Ariel tornou-se leitor frequentando a Biblioteca Pública de Cubatão e, embora soe como algo trivial, podemos depreender alguns aspectos importantes com base nisso ao tentarmos traçar algumas hipóteses para a compreensão da proposta estética de Ariel. Dizemos isso, pois é comum que algumas dessas bibliotecas de cidades de médio porte como Cubatão tenham um acervo variado de obras que vão desde a literatura canônica – nacional e estrangeira – até as grafic novels, passando por filmes e CD’s. Além disso, o acesso a esse acervo se dá de maneira direta, sem mediação ou curadoria prévias, o que possibilita uma enorme liberdade de associação entre essas mídias, resultando em um aproveitamento que ora parece ser muito profícuo exatamente pela não adesão a padrões associativos pré-estabelecidos, como os que temos nos meios acadêmicos, por exemplo, e ora parece ser mera referenciação enciclopédica. Neste sentido, veremos em seus poemas se alternarem e entrelaçarem alusões a um elenco de artistas e obras oriundos de várias modalidades e propostas estéticas diferentes. Nota-se, o quanto o contato com certas fontes de produção artística ou até mesmo filosófica modularam sua obra e se associaram para constituir a própria estética do poeta, embora, por vezes, a compreensão do tipo de relação que o poeta estabelece entre essas fontes não seja de fácil acesso. Os fatores que constituem a voz poética de Ariel passam pela incorporação de outras matrizes artísticas, como o rap e os HQ’s, e se convertem, aliadas às referências já mencionadas, em apontamento direto nos poemas, seja através de dedicatórias, seja através da alocação dos nomes de artista e pensadores e de suas obras no interior dos poemas, ou seja até mesmo através da incorporação da forma da expressão poéticas de alguns autores. Há uma série de questões que poderiam ser investigadas a partir desse processo acumulativo de associações promovido pela lírica de Ariel: quais tipos de leitura podem ser suscitadas pelo remanejamentos das referências; de que forma a poética de Ariel se 4
Ariel
mantém
os
blogs:
http://teatrofantasma.blogspot.com.br/
e
http://ouopensamentocontinuo.blogspot.com.br/
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insere ou não no projeto estético da modernidade; como as múltiplas vozes evocadas pelo autor se associam para construir sua própria voz poética? No entanto, este trabalho não terá condições de abarcar todos esses questionamentos que ficam para trabalhos subsequentes. Há ainda o fator do espaço da cidade, no caso Cubatão, que entra de forma manifesta em um grande número de poesias, sobretudo, da seção observada neste trabalho. Tendo em vista o tipo de representação observada: parece-nos que o mimetismo proveniente de uma “poética da cidade” configurada sobretudo nas produções marginais contemporâneas cede lugar a um tipo de construção que, com base na profusão de alusões, cria um mecanismo outro de relação com o real que se expande até tocar em questões metafísicas e transcendentes. Assim, dentre as inúmeras inquietações trazidas pela lírica de Ariel que transita entre o brutal, o sublime, o etéreo e o caótico, interessa discutir aqui as relações com o espaço, seja esse espaço o da cidade industrial objetivamente figurada ou o espaço da subjetividade no qual se dá a construção de seu eu-poético. Parece-nos que a poesia de Ariel se constrói da tensão entre esses dois espaços, sem que haja a hierarquização de um em detrimento do outro. O poeta, devido a alguns de seus dados biográficos (negro, pobre, sem escolarização formal), acaba por suscitar o rótulo primário de “marginal” que o insere em certo nicho da produção brasileira contemporânea que, no entanto, não comporta sua produção poética. Benito Martinez Rodriguez, em seu texto denominado “Scherzirajadas líricas: balas e baladas na dicção poética de Marcelo Ariel”, salienta o aspecto problemático de incluir a obra do autor sob certa alcunha de “literatura marginal” e também reitera o aspecto da combinação de repertórios já anteriormente mencionada aqui: [Na obra de Ariel] A combinação entre repertórios de corte erudito e excertos da crônica policial, se não é inédita nas dicções da arte moderna, decerto não se produz no quadro dominante daquilo que se vem referindo desde a década passada, como literatura marginal. (RODRIGUEZ, 2014, p. 93)
Outro aspecto importante no que concerne à não inclusão de Ariel na produção marginal contemporânea é a própria negação do poeta ao rótulo, o que pode ser observado em suas declarações e considerações sobre seu próprio “fazer estético”.
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Parece haver, em Ariel, certo desinteresse quanto à sua participação na construção de alguma espécie de “identidade de grupo” e um afastamento de alguns seguimentos – não necessariamente de artistas marginais – que têm produções vinculadas a uma noção de arte engajada que nos parece ultrapassada. Neste sentido, cidade representa em sua obra não apenas um objeto de denúncia social, mas sim um microcosmo no qual, a partir de catástrofes ambientais, sonhos, espelhos, organizações criminosas, se constrói um eu que transfigura o real a partir de uma reflexão intensa sobre as possibilidades de representação e subjetivação desse real através da e na poesia. Pensando nessa noção da representação do espaço da cidade na literatura, talvez seja importante refletir um pouco como a própria noção do termo espaço podem ser compreendida de diversas maneiras distintas. Luis Alberto Brandão, em seu texto “Breve história do espaço na Teoria da Literatura”, aponta algumas tendências da Teoria Literária do século XX no que concerne à abordagem do espaço. Segundo ele: Quando se pretende discutir a questão do espaço segundo um viés diacrônico, é preciso levar em conta duas perspectivas, em geral intimamente relacionadas. A primeira propõe que uma “história do espaço” – ou seja, um registro das modificações que envolvem tal categoria no decorrer de determinado período – seja constituída por meio do levantamento das diferentes formas de percepção espacial, as quais incluem tanto os sentidos do corpo humano quanto os sistemas tecnológicos, rudimentares ou complexos, de observação, mensuração e representação. A segunda perspectiva propõe que se indaguem as transformações do espaço exatamente como conceito, construto mental utilizado na produção do conhecimento humano, seja de natureza científica, filosófica ou artística. No primeiro caso, tem-se, pois a fundamentação empírica de “história de espaço”; no segundo, a historicidade da categoria espaço segundo uma perspectiva epistemológica. Um breve exame da história da cartografia é suficiente para demonstrar que as formas de representação espacial variam de acordo com a relação que cada época e cultura possui com o espaço, relação que abarca possibilidades de percepção e uso, definidas por intermédio de condicionantes econômicos, sociais e políticos. (BRANDÃO, 2005, p. 115)
Neste longo excerto, podemos observar o quanto a concepção de espaço se alterna de acordo com uma abordagem sincrônica e diacrônica. Além disso, dentro de cada uma dessas divisões, se alternam distinções do conceito que se relacionam ao campo do conhecimento que o investiga. Assim, o espaço é visto de uma forma pela
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geografia, pela arquitetura, pela física, pela história, e etc, e também sofre alterações significativas de acordo com a base epistemológica utilizada. No que concerne à “historicidade do espaço”, Brandão destaca o estudo “das transformações da mais persistente e complexa forma de organização espacial humana: a cidade” (BRANDÃO, 2005, p. 116) e sua associação a outras formas de espaço, como, por exemplo, o próprio espaço da casa, enquanto habitação humana. Em relação à Teoria Literária, para o autor, as reflexões quanto ao espaço não têm sido uma opção destacada nessa área do pensamento devido à prevalência, no século XX, de teorias imanentistas, isto é, que se recusam a “atribuir à arte o papel de representação da realidade” (BRANDÃO, 2005, p. 118). Dentre essas, ele destaca as teorias vinculadas ao Estruturalismo, dentro das quais o espaço observável na obra seria o “espaço da linguagem”. No entanto, há outras perspectivas, nas quais a ideia de uma relação de representação a partir do real é totalmente possível. Em relação a isso encontraríamos as teorias vinculadas aos Estudos Culturais que se traduzem exatamente na “retomada da noção de literatura como representação, ou seja, de uma revalorização da perspectiva mimética” (BRANDÃO, 2005, p. 124). Parece-nos que ambas as possibilidades, seja a que valoriza o espaço da linguagem e seja a que vê como aspecto central a noção de representação mimética do real, não se traduzem como opções válidas na tentativa de compreensão do trabalho poético no geral e, especificamente, do trabalho de Marcelo Ariel devido à hipótese já apresentada de que o estilo ou a estética do poeta se constrói exatamente no limiar entre esse espaço da linguagem e o espaço como representação do real. O livro Tratado dos Anjos Afogados, nosso objeto específico neste trabalho, agrega parte da produção do poeta construída durante cerca de vinte anos, período durante o qual seus escritos foram sofrendo modificações até chegarem à forma apresentada na publicação no ano de 2008. Foi publicado pelo selo editorial independente LetraSelvagem, parte da Associação Cultural LetraSelvagem, grupo que pretende ser uma alternativa ao mercado editorial globalizado5. Os poemas reunidos na obra estão agrupados em seis subdivisões internas: 5
As informações sobre a proposta editorial do selo LetraSelvagem podem ser encontradas no seguinte
endereço digital: http://www.letraselvagem.com.br/pagina.asp?id=2
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- I) “Vila Socó: Libertada”, que apresenta vinte e seis poesias; - II) “Scherzo-rajada”, com quatro poesias; - III) “Oceano Congelado”, a maior parte com sessenta e quatro poesias; - IV) “Esse invisível fantasma”, com nove poesias; - V) “Autobiografia total e outros poemas”, composto de vinte e duas poesias; - VI) “Me enterrem com minha AR 15” (Scherzo-rajada 2). Com dezoito poesias, esta seção do livro já havia sido publicada anteriormente pela Dulcinéia Cartonera, no entanto, na versão de 2008 há o acréscimo de algumas poesias inéditas o que é enunciado na abertura da sequência de poemas. Observaremos especificamente a seção “Vila Socó: Libertada”6, extraída do livro Tratado dos Anjos Afogados de Marcelo Ariel, para que possamos investigar as relações entre a construção estética de Ariel e nossas suposições quanto ao conceito de espaço na obra deste autor. Essa seção do livro possui, vinte e seis poemas, distribuídos na seguinte sequência: - “O Espantalho”; - “Moto descontínuo”; - “Caranguejos aplaudem Nagasaki”; - “Sonho que sou João Antônio sonhando que é Fernando Pessoa”; - “Catálogo do fim: Pensando em Klimt e Gottfried Benn”; - “O reflexo de K.R.”; - “A revolução”; - “A pergunta e a resposta”; - “A pergunta e o mito”; - “Eco”; - “A reunião”; - “A cosmicidade de tudo”; - “Vila Socó libertada”; - “Praça Independência-Santos”; - “Jardim Costa e Silva-Cubatão”; - “Carandiru geral”; 6
ARIEL, Marcelo, 2008, p. 19 – 54.
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- “Cena comum”; - “O Bode”; - “Como as palavras”; - “Com Miles Davis na Serra do mar”; - “O enigma”; - “Em Cubatão”; - “O amor”; - “Paradoxo”; - “Rimbaud”; - “Ontologia e merda”. Nesta seção do volume há um bloco de poemas nos quais conseguimos observar referências mais nítidas ao espaço da cidade, o que dá a eles um caráter mais colado à noção do espaço na literatura enquanto representação do real. No restante dos poemas, a ideia de espaço se desloca do aspecto do espelhamento da cidade e da vida de seus habitantes, indo em direção à outra noção de construção espacial. Parece haver, nesses poemas, interesses outros que não se restringem a uma ideia de representação mais colada à realidade. Em cada um desses blocos, encontramos poemas paradigmáticos no que concerne ao tipo de “noção topográfica”7 e com base nisso, transcreveremos um deles diretamente no corpo do trabalho e, em seguida, traçaremos nossas observações com o objetivo de construir algumas possíveis interpretações para esta seção do trabalho de Ariel. Optamos por fazer a análise detalhada de apenas um dos poemas nos quais observamos o espaço da cidade de maneira mais manifesta, em razão do caráter deste artigo, no entanto, seria possível fazer o exame minucioso de vários trechos do livro em questão. VILA SOCÓ LIBERTADA (depois do fogo) 7
Pensamos a “topografia” da poesia de Marcelo Ariel no que concerne à tensão da representação do real
em sua obra estética e à criação de um espaço outro de linguagem que não se restringe a essa representação, como enunciado na introdução, como nossa hipótese de trabalho.
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no outro dia (sem poesia) as crianças (sub-hordas) procuram no meio do desterror botijões de gás para vender, um menino indianizado encontra uma geladeira pintada por Pollock dentro o cadáver de uma grávida incinerado com a barriga estouradaa mão do feto devorado (por Saturno) atravessa as tripas sai para o fora do fora ali ao lado onde o silêncio do menino é calmo (a quietude neutra avalia o inconsolável) um jornalista a cem metros do projeto caminha (a câmera-sombra focando um canto) atrás dele um rapaz que julga ver nos escombros um Lázaro ele corre e ao agarrar um braço o braço vem junto e ao ser largado no ato por um instante entre o chão e o espaço é fotografado pelo pai de um dos meninos do gás
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na foto revelada: uma realidade desfocada (sem mortos, vivos ou paisagem) tudo é uma névoa-nada.8
No dia 24 de fevereiro de 1984, um vazamento em um oleoduto da Petrobrás, na cidade de Cubatão-SP, causou uma explosão que atingiu dezenas de barracos, matando um número de pessoas que – até hoje – permanece incerto, tanto por causa das enormes temperaturas a que chegou o incêndio (não deixando nenhum vestígio de alguns corpos) quanto por causa do enorme grau de indigência das pessoas que moravam naquele lugar. Famílias inteiras foram incineradas e não havia quem nem ao menos soubesse que elas estavam lá. “Vila Socó Libertada” é o poema central da seção homônima do Tratado dos Anjos Afogados e faz referência direta à tragédia em Cubatão. Além disso, este poema também se referencia a uma célebre obra literária: Jerusalém Libertada, escrita pelo poeta italiano Torquato Tasso, no século XVI. O poema épico narra os acontecimentos da primeira cruzada cristã contra os muçulmanos com o intuito de libertar o Santo Sepulcro no século XI. Inicialmente, o poema parece ser meramente referencial ao trazer algumas cenas do dia posterior à tragédia da explosão do oleoduto. As crianças que procuram em meio ao que sobrou depois do terror (“desterror”) objetos que possam ser vendidos revelam o lado ainda mais indigno da situação, seja por nos confrontar com a miséria de vender botijões de gás para se obter algum dinheiro ou seja por encontrar um corpo de uma grávida com a barriga estourada. Mas, a imagem é deslocada, quando o poeta insere Saturno e coloca a cena em um plano metafórico. A metáfora é ainda ratificada nos versos seguintes, nos quais as tripas que estão “fora do fora” são atravessadas pelo deus Saturno. Interessante é observar a ironia do poeta ao incorporar a imagem do pintor norteamericano Jackson Pollock. A geladeira, de acordo com o poema, foi pintada por 8
ARIEL, 2008, p. 36-37
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Pollock porque, provavelmente, já não parece mais uma geladeira. Invocar o nome do expressionismo abstrato parece refletir sobre o quanto a obra de arte, por mais afastada das propostas figurativas que seja, como é o caso do expressionismo de Pollock, apontam sempre para algum referente no mundo, pois parece-nos que não se faz arte sem traçar-se algum tipo de relação com a experiência dos fatos e objetos do mundo. O que converte este real em arte é o tipo de trabalho que se faz sobre esse referente, no caso de Pollock, com as tintas, no caso de Ariel, com as palavras. Em seguida, a figura do jornalista entra no poema caminhando ao tentar registrar as imagens grotescas que o próprio poema descreve. Então um dos pais daqueles meninos que buscam os botijões de gás fotografa (guarda na memória) um braço arrancado de um corpo. Mas, no trabalho de fotografar – o que nos parece a possibilidade mais exata de captar o real – o poema reconhece exatamente o contrário: a impossibilidade total de apreender o real à medida que na foto revelada o que se vê é uma realidade desfocada, uma “névoa-nada”. Aqui, mais uma vez, podemos verificar o quanto esse espaço de representação do real é transfigurado em outro tipo de espaço: o poema aponta para a lacuna essencial da linguagem em refletir o real e assim, nesse espaço do poético, o que se constrói é a consciência da impossibilidade da representação, pois o real já é em si mesmo um fragmento. As tripas que estão “fora do fora” são também o “fora do fora” da linguagem em relação à experiência. Quando observamos esse tipo de movimento dentro do poema, podemos apreender o tipo de consciência estética do poeta e sua inserção numa das linhas de força da arte contemporânea: a compreensão de que a linguagem – enquanto o lugar de existência do homem no mundo – é o lugar no qual se produz o real. Essa transposição da experiência de quem observa a tragédia – e não de quem é vítima dela, pois quem é vítima já não pode mais falar sobre ela – se constitui como outra coisa que não a experiência em si, pois esta é intraduzível. Através deste poema apresentado, podemos vislumbrar o tipo de operação realizada pela obra poética de Marcelo Ariel. Pois se verifica o mecanismo enunciado por Antonio Candido em seu texto “Crítica e Sociologia” no qual o autor reflete sobre como os elementos externos ao texto se tornam internos à medida que se traduzem na forma estética e não só no conteúdo apresentado. No texto em questão, Candido refere-
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se mais diretamente a obras em prosa, no entanto, isso também pode ser apreendido na poesia. Para ele: De fato, antes procurava-se mostrar que o valor e o significado de uma obra dependiam de ela exprimir ou não certo aspecto da realidade, e que este aspecto constituía o que ela tinha de essencial. Depois, chegou-se à posição oposta, procurando-se mostrar que a matéria de uma obra é secundária, e que a sua importância deriva das operações formais postas em jogo, conferindolhe uma peculiaridade que a torna de fato independente de quaisquer condicionamentos, sobretudo social, considerado inoperante como elemento de compreensão. Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (CANDIDO, 2010, p. 13-14)
Neste sentido, parece-nos que a dissonância, o apelo ao grotesco, o fascínio pela heresia como apontados por Friedrich, em seu Estrutura da Lírica Moderna, não se constituem apenas como mero “assunto” na obra poética de Ariel. Ao contrário, esses elementos compõem a própria forma do poema, o que se dá na maneira através da qual o poeta associa essa representação figurativa do real do espaço urbano (de suas catástrofes e de seus problemas) com uma espécie de espaço outro no qual as questões plásticas já não são mais centrais. Referências ARIEL, M. Tratado dos Anjos Afogados. São Paulo: LetraSelvagem, 2008. ______, M. Entrevista para a jornalista Marcella Chartier, em 29 de janeiro de 2008. Disponível
em:
http://teatrofantasma.blogspot.com.br/2008/01/entrevista-para-
jornalista-marcella.html Consultado em 15/11/2013. BRANDÃO, L. A. Breve história do espaço na Teoria da Literatura. Cerrados: Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura, Belo Horizonte, n. 19, ano 14, 2005, p. 115-134.
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__________ Espaços Literários e suas expansões. Aletria: Revista de Estudos de Literatura. Poéticas do Espaço. Belo Horizonte, v. 15 (jan-jun 2007). p. 207-220. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/publicacao002100.htm CANDIDO, A. Crítica e Sociologia. In: ______ Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2010, p. 13-25. FRIEDRICH, H. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978. RODRIGUEZ, B. M. Scherzi-rajadas líricas: balas e baladas Na dicção Poética de Marcelo Ariel. In: IPIRANGA, P (Org.). Do amor e da guerra: um itinerário de narrativas. São Paulo: Annablume; Brasília: Capes, 2014, p. 89-114.
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O RISO SÉRIO EM O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO DE JOSÉ SARAMAGO. Diana Almeida Lourenço (UFPR)
As audiências mais conservadoras tendem a se chocar com visões menos ortodoxas das escrituras sagradas, há certa dificuldade em lidar com o conceito de riso no que diz respeito ao sagrado de uma maneira geral. No caso específico da literatura, podemos observar essa especificidade do riso desde os primórdios, com a Arte Poética de Aristóteles para quem a tragédia era uma forma de composição superior. Aristóteles referiu-se à comédia como “a imitação de maus costumes”, daquilo que é “ignominioso” e “ridículo”, voltada à banalidade e aos “assuntos gerais”, diferentemente da tragédia e da epopeia que deveriam abordar temas elevados, envolvendo personagens nobres. (ARISTÓTELES, 2003, p. 33, 34, 95). Essa tensão entre cômico e sério se intensificou com a cristianização do Império Romano no séc. III d.C. Se antes a comédia, era vista como um gênero inferior, de menos qualidade, com o advento do cristianismo passou a adquirir tons de profanação do sagrado. Os primeiros séculos do Cristianismo foram movidos pelos movimentos monásticos e ascéticos que pregaram a fuga da contaminação do mundo e de seus prazeres na expectativa de um apocalipse iminente, com a destruição do mundo, o castigo dos maus/impuros e a recompensa dos bons/puros. É nesse contexto que devemos compreender a condenação do riso por parte dos pais da igreja. Bakhtin cita São João Crisóstomo (séc. IV d.C.) como a fonte da declaração de que “as burlas e o riso não provêm de Deus, mas são uma emanação do diabo”, sendo o dever do cristão “conservar uma seriedade constante, o arrependimento e a dor em expiação dos seus pecados” (BAKHTIN, 2002, p. 63). Essa mesma ideia sobre o cômico estendeu-se por toda a Idade Média.
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No entanto, apesar de todo o rigor das instituições do período, o cômico, ou o riso mantinha-se na literatura. Este elemento estava diretamente ligado a cultura popular. Descrevendo esse paradoxo entre o cômico e o trágico, entre o sagrado e profano, Bakhtin afirma que: [...] O homem medieval levava mais ou menos duas vidas: uma oficial, monoliticamente séria e sombria, subordinada à rigorosa ordem hierárquica, impregnada de medo, dogmatismo, devoção e piedade, e outra público-carnavalesca, livre, cheia de riso ambivalente, profanações de tudo o que é sagrado, descidas e indecências do contato familiar com tudo e com todos. E essas duas vidas eram legítimas, porém separadas por rigorosos limites temporais.(BAKHTIN, 2002, p.129).
Entre os muitos recursos estéticos e estilísticos que servem à produção do riso tanto na literatura quanto em outras formas de arte, podemos citar os jogos de palavras, a ridicularização, o estereótipo, o grotesco, o burlesco, a obscenidade e a ironia, normalmente combinados entre si em alguma extensão. De acordo com Bakhtin, esses recursos evoluíram durante o Renascimento, no século XVIII até tornarem-se “componentes estilísticas dos gêneros sérios, principalmente o romance”. É nesse contexto que gostaríamos de destacar a paródia como um gênero peculiar de produção artística que rompe com a vertente da seriedade na literatura. O Evangelho Segundo Jesus Cristo de José Saramago traz a tona todas as questões aqui expostas, o livro do escritor português foi alvo de críticas e de polêmicas que envolveram vários setores da sociedade. Palco de disputas infindáveis na época de seu lançamento, principalmente em Portugal, quando um eminente prelado da Igreja Católica chegou mesmo a vir a público em defesa da fé cristã classificando o livro de “uma grande merda” (BARRAL, 1992, p.285; GEORGE,1992, p. 192-203). Esse romance e sua repercussão no mundo literário, político e religioso, mostram que a questão do riso e do sagrado ainda causam estranhamento na recepção de obras que abordam esse tema.
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Um dos principais recursos de linguagem utilizados por Saramago para construir O Evangelho Segundo Jesus Cristo é a paródia. É através dela que o autor (re)cria e (re)conta histórias que pertencem ao imaginário popular ocidental, como a vida de Cristo. Saramago constrói um diálogo não apenas com o texto bíblico, mas com a própria tradição cristã de um modo geral. Existe uma grande subversão que se constrói ao longo do romance, porém, classifica-lo apenas como paródia, no sentido primeiro da palavra - apenas com o intuito de se opor diretamente a fala original, entrar em antagonismo, ridicularizar o texto parodiado - é simplificar demais a complexidade do romance saramaguiano, que parece buscar no enfrentamento com o texto bíblico uma crítica tanto aos costumes passados, como as ideias vigentes no presente, causando o que chamamos de “riso sério” ou “riso que faz pensar”. A concepção de paródia proposta por Linda Hutcheon em sua obra Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX (1984) pode ser aplicada para entendermos a obra saramaguiana sob o prisma da paródia. A crítica canadense propõe em seu livro um estudo sobre a configuração das práticas artísticas modernas. Dentre essas práticas, o estudo dá especial destaque à paródia, reconhecendo-a como um fenômeno presente na tradição artística, mas analisando-a através da reconsideração de sua natureza e de sua função à luz da modernidade. A autora tem consciência de que os ecos paródicos não são exclusivos do século XX, porém, o grande número de obras que se constitui a partir dessa construção formal, nos mais diversos meios artísticos, sinaliza a importância adquirida pela paródia a partir desse século. O estudo compreende que a paródia é a repetição com diferença, um modelo complexo de “transcontextualização”, inversão e revisão crítica que remete à arte moderna a sua tradição: Paródia é, pois, repetição, mas repetição que inclui diferença (Deleuze 1968); é imitação com distância crítica, cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo. Versões irônicas de “transcontextualização” e inversão são os seus principais operadores formais, e o âmbito de ethos pragmático vai do ridículo desdenhoso à homenagem referencial. (HUTCHEON, 1984, p.54).
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Segundo Hutcheon, esse recurso ultrapassa a ideia antiga de paródia como texto “menor”, ou “parasitário”, que tinha o intuito de fazer blague de outro texto. A paródia moderna se constitui em um texto que dialoga com outro, e que devido a esse diálogo cria um novo texto, que não tem necessariamente o intuito de ridicularizar o outro, mas de criticar sua própria época. Essa concepção de paródia moderna pode ser usada para analisar as obras saramaguinas que se utilizam desse recurso. Ao tratar a paródia como algo “muito para além da mera comédia ridicularizadora (HUTCHEON, 1984, p. 37.)” ampliamos a simples ideia de um autor ateu, blasfemando contra um texto religioso: “quando falamos de paródia não nos referimos apenas a dois textos que se inter-relacionam de certa maneira. Implicamos também uma intenção de parodiar outra obra (ou conjunto de convenções) e tanto um reconhecimento dessa intenção. (HUTCHEON, 1984, p.34)”, ou seja, há uma intenção na paródia, que ultrapassa a simples ideia da sátira a um texto anterior. A paródia, segundo Hutcheon, opera como um método de inscrever a continuidade,
permitindo
uma
distância
crítica.
Pode
funcionar
como
força
conservadora ao reter e escarnecer, simultaneamente, de outras formas estáticas; mas também é capaz de poder transformador, ao criar novas sínteses. Nesse trabalho vamos nos propor a analisar alguns trechos d’ O Evangelho Segundo Jesus Cristo sob o prisma da paródia moderna usada por Hutcheon. O uso desse recurso nas narrativas recai sobre as subversões realizadas em relação às convenções da forma parodiada e a abordagem criativa que se faz da tradição e que permite o estabelecimento das diferenças a partir do paralelismo. Desse modo, a paródia não se constitui de imitação nostálgica de modelos passados, mas de um fenômeno que envolve a recontextualização de modelos e a consequente alteração dos sentidos. E mais, para Hutcheon “a paródia é uma forma de auto-referencialidade, mas isso não quer dizer que não possua implicações ideológicas” (HUTCHEON, 1984 p. 41), ou seja, a paródia, ainda que tenha relação direta com o texto e com os elementos
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concretos que o compõe, não elimina uma relação externa entre o texto original (parodiado), o texto parodístico e as intenções implícitas em fazer a paródia. Dessa maneira, Saramago, ao recontar histórias conhecidas pelo imaginário popular cristão ocidental, cria um novo texto, que não apenas critica os costumes e crenças do passado, mas que propõe outra visão sobre esses temas, e ao mesmo tempo, faz uma crítica ao tempo presente, imbuído de sua própria visão de mundo. Para exemplificar o que chamamos de intenção da paródia citaremos dois trechos do ESJC nos quais a referência ao texto bíblico é explicita, porém onde o intuito de Saramago está muito mais relacionado a crítica a um tipo de comportamento humano, do que ao texto das escrituras sagradas em si. Iniciaremos pela primeira personagem focada pelo narrador, José, pai de Jesus. Ao construir esse personagem, Saramago nos dá uma riqueza de detalhes sobre seu diaa-dia, tirando dele toda e qualquer sacralidade, como por exemplo, na descrição da rotina exercida por José ao amanhecer: “Encaminhou-se para um alpendre baixo, que era a barraca do jumento, e aí se aliviou, escutando, com uma satisfação meio consciente, o ruído forte do jacto de urina sobre a palha que cobria o chão.” (SARAMAGO, 1991, p. 16). Nota-se no trecho a informalidade na construção do relato de fatos corriqueiros da vida de José, a minúcia é tamanha que até suas necessidades fisiológicas são colocadas na narrativa, e o fato de José urinar, como qualquer ser humano comum, é relatado lado a lado com as atividades do dia-a-dia desse personagem, como comer, trabalhar e rezar. Saramago faz questão de ressaltar, em toda narrativa, o cotidiano prosaico de vários outros personagens, diferentemente do texto canônico que relata apenas os acontecimentos importantes do ponto de vista divino. Esse recurso dá aos personagens uma roupagem ainda mais humana e próxima do leitor. Vivendo vidas comuns, são personagens humanos comuns, muito distantes da áurea divina que a tradição vem lhes conferindo ao longo dos tempos.
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O peso da seriedade que um personagem como José representa é quebrado em uma simples descrição sobre seu cotidiano extremamente humano, a leveza da descrição aproxima a o leitor da personagem e da própria história que será narrada. Mesmo sendo diferente do personagem canônico, José permanece poupado de uma critica mais direta até o episódio das crianças de Belém, quando descobre por acaso que os soldados romanos, a mando de Herodes, irão matar todas as crianças com até três anos que nasceram ou que estão em Belém. Desesperado em salvar seu filho, Jesus, recém-nascido, José corre até a gruta onde está Maria com o intuito de empreenderem fuga. Porém, os soldados não encontram a gruta e o bebê fica a salvo, fato que não acontece com as outras crianças de Belém que não são preservadas. A atitude de José é perfeitamente aceitável, em se tratando de um pai desesperado para salvar o único filho, porém a partir desse momento na narrativa, José será atormentando por uma culpa que carregará até o fim dos seus dias: não ter avisado as outras famílias de Belém, sobre a carnificina que estava por vir: Um homem bom que cometeu um crime, não imagina quantos antes dele os cometeram também, é que os crimes dos homens bons não tem conta, e, ao contrário do que se pensa, são os únicos que não podem ser perdoados... Disse o anjo, Foi a crueldade de Herodes que fez desembainhar os punhais, mas o vosso egoísmo e cobardia foram as cordas que ataram os pés e as mãos das vítimas. ...mais depressa seria perdoado Herodes que teu marido, mais depressa se perdoará a um traidor, que a um renegado... (SARAMAGO, 1991, p.93).
No trecho citado, o anjo confirma a culpa de José e profetiza seu triste destino. Podemos perceber a grande importância que Saramago dá a atitude de José que, ao pensar apenas no individual, sem olhar para o coletivo, comete um erro para o qual não existe perdão, segundo o evangelista saramaguiano. A humanidade de José parece já não ser mais exaltada pelo narrador, muito pelo contrário, ele carregará consigo esse fardo, que após sua morte, passará para seu filho Jesus, em forma de pesadelos.
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A paródia na construção do personagem José assume vieses complexos que não se limitam a subversão do texto bíblico, mas em uma crítica a atitudes humanas dessa personagem. Outro personagem que vale a pena destacar é Herodes, ao rei de Israel, não é dada nenhuma chance de mostrar o ser humano por trás da máscara social que o descreve, muito pelo contrário, o narrador nos mostra, com detalhes, apenas sua decadência como ser humano, e sua crueldade, como podemos notar no trecho a seguir: O rei (Herodes), possesso de dor e furor, com a espuma a saltar-lhe da boca como se o tivesse mordido um cão raivoso, ameaça que os fará crucificar a todos se não descobrirem rapidamente remédio suficiente para o seus males, que, como já foi antecipado, não se limita ao ardor insofrível da pele e também as convulsões que frequentemente o derrubam, o atiram ao chão, fazendo dele um novelo retorcido, agônico, com os olhos a saltarem-lhe das órbitas, as mãos rasgando as vestes, por baixo das quais as formigas, multiplicando-se seguem o devastador trabalho. (...) Arrastando um corpo que fede de putrefacção, apesar dos perfumes de que leva embebidas as roupas e ungidos os cabelos pintados, a Herodes só o mantém vivo a fúria. (SARAMAGO,1991, p. 66 - 67).
A descrição das mazelas de Herodes é feita com minúcia, com detalhes, sem nenhum tipo de preservação de qualquer característica humana e, segue dessa forma por vários parágrafos. Outro ponto importante desse mesmo trecho é quando o narrador descreve o sonho profético de Herodes, sobre o Messias que iria chegar : Miquéias entra no sonho de rompante, em meio de um estrondo que não pode ser deste mundo, como se empurrasse com as mãos relampejantes umas enormes portas de bronze, e anuncia em estentórea voz, O Senhor vai sair da sua morada, vai descer e pisar as alturas da terra, e logo ameaça, Ai dos que planejam a iniquidade, dos que maquinam o mal em seus leitos, e o executam logo ao amanhecer do dia, porque tem o poder na sua mão, e denuncia, Cobiçam as terras e apoderam-se delas, cobiçam as casas e roubam-nas, fazem violência ao homem e à sua família, ao dono e á sua herança. (SARAMAGO, 1991, p. 68).
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O trecho citado é muito próximo ao texto bíblico, Saramago mantém a voz profética de Miquéias que fala em nome de Deus. Podemos notar que ao transcrever o trecho tal qual figura na bíblia o autor parece concordar com a atitude de Deus nesse trecho do livro, pois Deus está condenando aqueles que detêm o poder, como Herodes. O trecho citado é um exemplo da forma como Saramago usa o texto canônico de acordo com seus interesses e não apenas como fonte de simples paródia ridicularizadora. É fazendo uso de um trecho bíblico que Saramago faz sua crítica a todo poder instituído e as personagens que detêm esse poder e que não estão pensando na coletividade. Em outras palavras, Saramago extrapola a simples paródia que ridiculariza o texto bíblico (como muitos dos seus críticos disseram na época) ele utiliza os trechos bíblicos e seus personagens para criar uma reflexão a respeito das atitudes humanas. Essa crítica, por sua vez, depende da capacidade do leitor em decodificar a intenção do autor, indo além da intertextualidade. O escritor perfaz, assim, aquilo que Hutcheon declara em sua obra: Na sua visão de intertextualidade [Michael Riffaterre] a experiência da literatura exige um texto, um leitor e as suas reações que tomam a forma de sistemas de palavras que são agrupadas associativamente no espírito do leitor. Mas no caso da paródia, esses agrupamentos são cuidadosamente controlados [pelo autor]. Mais, como leitores ou espectadores ou ouvintes que descodificam estruturas paródicas, atuamos também como descodificadores da intenção codificada. (HUTCHEON, 1984, p.35).
A partir da concepção de paródia adotada nesse trabalho nota-se a complexidade da narrativa saramaguiana, que está longe de apenas ridicularizar a figura sagradas criadas pela tradição. Saramago através do riso sério, ou da ironia critica as atitudes humanas, tanto do passado quanto do presente.
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Referências BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1996. __________. A tipologia do discurso na prosa. In: LIMA, Luis Costa. Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. __________. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina G. G. Pereira São Paulo: Martins Fontes,1997. BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2008. FERRAZ, Salma. As faces de Deus na obra de um ateu. José Saramago - 2. ed. rev. e ampl. - Blumenau: Edifurb, 2012. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX. Trad. de Tereza Louro Pérez. Lisboa: 1984. SARAMAGO, José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
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A TRANSFORMAÇÃO DA PERSONAGEM MORTE NO ROMANCE AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE, DE JOSÉ SARAMAGO Diana Milena Heck (UEM)1 A realidade humana, segundo Lacan2, é constituída por três níveis: Real, Simbólico e Imaginário, também conhecida como a tríade lacaniana. Cada elemento tem uma significação própria e pode ser identificado separadamente no comportamento humano e na maneira como o mesmo lida com as situações. O Real lacaniano é diferente do que se entende por real, no sentido comum da palavra. O Real é sempre escrito com o “r” maiúsculo, justamente para ser visível a diferença entre os dois. Diferente do real, o Real lacaniano é uma instância que pode ser vivida pelo ser humano, mas, ao mesmo tempo, torna-se algo insuportável para o mesmo. Segundo Silva (2009), o Real é o que está para além do que pode ser representado na rede do Simbolismo. Se o que chamamos realidade é um produto distorcido das nossas percepções, o Real é um excesso (surplus) que não cabe nessa realidade, só pode ser percebido pelo seu brilho, para o qual não se pode olhar diretamente, como o brilho do Sol. É indizível e, portanto, chocante, traumático (SILVA, 2009, p.213).
Sendo assim, todo encontro com o Real é traumático, mas nem todo trauma sofrido gera um encontro com o Real. Para exemplificar esse conceito, Slavoj Žižek (2003) aborda o ataque terrorista ao World Trade Center, em 11 de Setembro, nos EUA. Esse atentado serviu para mostrar especialmente aos americanos, mas também a todas outras pessoas que acompanharam o acontecimento, que eles não estavam acostumados a presenciar os horrores da morte e da destruição. Apesar de não terem vinculado imagens das pessoas mortas e da real situação do local logo após as explosões das Mestrado em Estudos Literários pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), tendo sido orientada pela Professora Dra. Marisa Corrêa Silva. Este trabalho é um recorte da dissertação de mestrado, defendida em março de 2014.
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Lembrando que não trabalhamos com o conceito de Lacan, mas com a releitura que Žižek fez dos conceitos lacanianos.
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torres, podemos imaginar que o cenário era terrível. O contato com o Real ocorreu para quem vivenciou aquilo ou para os que se depararam com os pedaços humanos espalhados pelo local. Segundo Žižek, teríamos, portanto, de inverter a leitura padrão, segundo a qual as explosões do WTC seriam uma intrusão do Real que estilhaçou a nossa esfera ilusória: pelo contrário – antes do colapso do WTC, vivíamos nossa realidade vendo os horrores do Terceiro Mundo como algo que na verdade não fazia parte de nossa realidade social, como algo que (para nós) só existia como um fantasma espectral na tela do televisor -, o que aconteceu foi que, no dia 11 de setembro, esse fantasma da TV entrou na nossa realidade. (ŽIŽEK, 2003, p.31).
Não somente um acontecimento como foi o 11 de setembro pode exemplificar o encontro com o Real, mas situações de estupro, por exemplo, que acabam gerando danos a vítima e esta não consegue mais voltar a ser a mesma pessoa que era antes de sofrer a violência. Mas, como o Real é insuportável para o humano, este necessita ressimbolizar seu trauma para continuar vivendo. Tal ressimbolização ocorre quando o indivíduo passa a saber como lidar com seu trauma, pelo fato de já ter conseguido encontrar em seu mundo simbólico os elementos necessários para explicar o que foi vivenciado. No caso de uma vítima de estupro, por exemplo, a ressimbolização do contato com o Real ocorre quando esta passa a falar sobre o ocorrido, aceita algum tipo de tratamento médico específico etc. Ou seja, não é que a pessoa esqueça o que sofreu, mas ela aprende a lidar com o trauma, pois, caso contrário, a vida se tornaria insuportável. O Simbólico é o plano no qual a vida do ser humano é estruturada. É através do campo do Simbólico que o indivíduo estrutura os códigos, leis, proibições, enfim, o que garante sua socialização. O Simbólico é a ordem do significante e o Imaginário, último elemento da tríade, está na ordem do significado. O Imaginário é a instância em que o
ser humano projeta e visualiza objetos e situações na psique. O Simbólico estrutura o campo do Imaginário, ou seja, é a partir do que está no Simbólico que o indivíduo consegue imaginar no campo visual. A linguagem pertence tanto ao campo do Simbólico, quanto do Imaginário.
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Esses três conceitos de Lacan, que foram relidos por Slavoj Žižek, podem nos oferecer a explicação de como a imagem da morte (evento) e da Morte (personagem) foram modificadas no decorrer do romance, nos campos do Simbólico e Imaginário, a partir da terceira fase da morte, em que ela se torna humanizada. A morte se apresenta de duas maneiras no romance. Primeiro, ela é imaginada pelas pessoas, pois ela não se deixa ver pelo ser humano, de uma maneira que se tornou comum
em
suas
representações,
principalmente no Ocidente.
A morte é
costumeiramente descrita como “[...] um esqueleto embrulhado num lençol, [que] mora numa sala fria em companhia de uma velha e ferrugenta gadanha que não responde a perguntas [...]” (SARAMAGO, 2009, p.145). Até aqui, a descrição da morte é a mesma que todos os habitantes do país em que ninguém morria tinham. A morte, além de ser imaginada dessa forma, era adjetivada (negativamente). Quando a Morte, já personagem, resolve mandar cartas às suas vítimas, fazendo com que elas fossem avisadas de sua morte, os jornais do país a acusaram de: [...] impiedosa, cruel, tirana, malvada, sanguinária, vampira, imperatriz do mal, drácula de saias, inimiga do género humano, desleal, assassina, traidora, serial killer outra vez, e houve até um semanário, dos humorísticos, que, espremendo o mais que pôde o espírito sarcástico dos seus criativos, conseguiu chamar-lhe filha-daputa (SARAMAGO, 2009, p.126).
Todas as acusações feitas contra a Morte são de caráter pejorativo. Até na própria História da morte percebemos que a mesma foi duramente difamada até o ponto de se tornar um tema interdito no Ocidente, como explica Ariès (2003), tamanho o medo e pavor que o fenômeno provoca no ser humano. O esqueleto se tornou símbolo da morte. Todos que avistam a imagem de um esqueleto já imaginam que ele signifique algo relacionado com a morte. Sua simples presença em local já dá um ar mais macabro ao ambiente, com o intuito de amedrontar. A partir do primeiro pronunciamento oficial da Morte-personagem, é possível perceber o primeiro traço de humanização da mesma. Na carta, a Morte tenta explicar e justificar a sua decisão de entrar em greve, a fim de fazer com que os humanos a entendam e anuncia seu retorno. Ao final da carta, como se costuma fazer, “só me resta pedir-lhe que faça chegar hoje mesmo a todos os lares do país esta minha mensagem
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autografa, que assino com o nome que geralmente se me conhece, morte” (SARAMAGO, 2009, p.100). O primeiro-ministro, após ler a carta, debocha da Morte por ela não saber que um nome sempre se assina com letra maiúscula e não com minúscula, como ela fez. A Morte manda uma nova carta, enfurecida com as piadas feitas a seu respeito, explicando que ela assina seu nome com letra minúscula, pois a verdadeira Morte não era ela, mas só uma parcela, e exige que seja feita uma retificação do mal entendido com as seguintes palavras: [...] convido-o instantemente a cumprir aquelas honradas disposições da lei de imprensa que mandam rectificar no mesmo lugar e com a mesma valorização gráfica o erro, a omissão ou o lapso cometidos, arriscando-se neste caso o senhor diretor, se esta carta não for publicada na íntegra, a que eu lhe despache, amanhã mesmo [...] (SARAMAGO, 2009, p.112).
O fato de se importar com o que se pensavam a seu respeito, tanto pela greve, como pela sua assinatura, demonstra características humanas e, apesar de ela não se render, continuar a exercer o papel de soberana, deixa transparecer que se importa com a opinião dos humanos. Apesar de toda a população do romance imaginar a morte como um esqueleto embrulhado em um lençol, acredita-se que “a morte sempre foi uma pessoa do sexo feminino” (SARAMAGO, 2009, p.128) e que seria uma mulher jovem e muito bonita. Aqui se demonstra uma primeira característica humana, mas é algo imaginado e ainda não concretizado. Se há a hipótese, por parte dos humanos, da Morte sempre ter sido do sexo feminino, o Imaginário aqui já começa a se transformar, pois se pensam a Morte como mulher, teoricamente não a imaginariam como um esqueleto feminino, mas já a veem em forma de mulher. Há uma passagem em que o narrador insinua que a Morte possa ter sido um dia uma humana no trecho em que diz que ela (a Morte) nunca sorri, pois, obviamente, não tem lábios. Ao invés de um sorriso, “ela traz à vista é um esgar de sofrimento, porque a recordação do tempo em que tinha boca, e a boca língua, e a língua saliva, a persegue continuamente” (SARAMAGO, 2009, p.139). Essa passagem pode representar um
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aspecto humano da morte, pois se há sofrimento na recordação de um dia já ter sido humana, poderia também haver uma capacidade de sentimento por parte da Morte. No capítulo 11, a Morte ainda tem o mesmo aspecto de um esqueleto embrulhado em um lençol, que mora em uma sala fria, na companhia de uma gadanha e que não gosta de ser vista pelas pessoas, sendo muito discreta quando necessita sair à rua. O narrador argumenta que o motivo de ser tão reclusa são questões estéticas, já que qualquer ser humano provavelmente se assustaria se a visse assim. Quando a Morte decide ir à cidade para ver de perto porque o violoncelista não morria, ocorre a primeira mudança significativa em relação à forma física, ou seja, ela decide adquirir aparência humana. Quando ocorre o processo de humanização da Morte, esta começa a experimentar sensações e formas humanas que vão culminar com sua total transformação em mulher. A partir do momento em que a Morte passa a sofrer essas mudanças, a própria representação da Morte no que Lacan chama de Imaginário também se transforma, pois Saramago vai descrevendo uma série de momentos em que o processo de humanização ocorre, o que não acontece repentinamente, uma vez que até para a Morte essa transição é estranha. Ela passa a experimentar sensações humanas e admira sua forma de mulher, como se sua autoestima fosse melhorada com o novo aspecto, pois em forma de esqueleto ela jamais seria elogiada e desejada, mas, como mulher, o próprio final da história vai provar que isso será possível. Segue abaixo a passagem em que ocorre a primeira transformação. Para isso, a Morte se despiu de seu lençol e: [...] perdeu outra vez altura, terá, quando muito, em medidas humanas, um metro e sessenta e sete, e, estando nua, sem um fio de roupa em cima, ainda mais pequena nos parece, quase um esqueletozinho de adolescente. Ninguém diria que esta é a mesma morte que com tanta violência nos sacudiu a mão do ombro quando, movidos de uma imerecida piedade, a pretendemos consolar do seu desgosto (SARAMAGO, 2009, p.146).
O momento em que ocorre sua total transformação humana, fisicamente, é descrito da seguinte forma:
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Então aconteceu algo nunca visto, algo não imaginável, a morte deixou-se cair de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, por isso é que tinha joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos se escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorar não será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua (SARAMAGO, 2009, p.152-153).
Apesar de ter acontecido sua total transformação física, há uma oscilação entre ser e não ser humana, pois, assim como pode mudar sua forma, novamente sendo um esqueleto, não adquire os sentidos e sensações humanas de uma vez. O narrador descreve algumas passagens em que a morte experimenta ou reflete sobre alguns hábitos e sensações humanos que ela nunca havia experimentado e, com o desenrolar da história, a morte vai se humanizando cada vez mais, como ocorre na última passagem. No copo tinha ficado um pouco de água. A morte olhou-a, fez um esforço para imaginar o que seria ter sede, mas não o conseguiu (SARAMAGO, 2009, p.154). Muito mais tarde, o cão levantou-se do tapete e subiu para o sofá. Pela primeira vez na sua vida a morte soube o que era ter um cão no regaço (SARAMAGO, 2009, p.154). [...] fizeste com os ombros aqueles movimentos rápidos que nos seres humanos costumam acompanhar o choro convulsivo, foi então, com os teus duros joelhos fincados no duro soalho, que a tua exasperação de repente se esvaiu com a imponderável névoa em que às vezes te transformas quando não queres ser de todo visível (SARAMAGO, 2009, p.156).
E ocorre também a sua desumanização, ou seja, “a morte é novamente um esqueleto envolvido numa mortalha, com o capuz meio descaído para a frente, de modo que o pior da caveira lhe fique tapado[...]” (SARAMAGO, 2009, p.157). Também há características da morte como algo além da humanização como quando o narrador afirma que “a morte está, não anda. Ao mesmo tempo, e em toda a parte” (SARAMAGO, 2009, p.166) ou quando diz que “a morte, escusado será dizer, enche o teatro todo até ao alto, até às pinturas alegóricas do tecto [...]” (SARAMAGO, 2009, p.166). Neste sentido, não é a Morte, em sua forma, que prevalece, mas o sentido da morte, enquanto fenômeno, que toca a todo ser humano, animal e vegetal.
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Após voltar a sua forma de esqueleto e estar novamente em sua sala fria, a Morte resolve voltar à cidade novamente, mas não se transforma em humana desta vez, permanecendo invisível. Segue todos os passos do violoncelista, a fim de tentar encontrar uma maneira de lhe entregar a carta. Ao olhar para o violoncelista, num primeiro momento, não consegue distinguir se o rosto que lhe aparece à frente é feio ou bonito. Para a Morte, até o momento, todo ser humano é feio da mesma maneira. Como houve certa “convivência”3 com o violoncelista, a Morte passa a reparar em coisas que vão além de somente tentar encontrar uma maneira de liquidá-lo. Vê, por exemplo, que em toda a casa do músico não há uma foto de mulher, a não ser por um retrato de uma senhora de idade, que a Morte julgou ser a mãe. Ao perceber este detalhe, é revelada mais uma característica humana na Morte, que tentando encontrar uma maneira de liquidar o músico, observou algo que é comum em humanos que se sentem atraídos por outros. Até então, a Morte ainda permanecia na forma de um esqueleto, mas, como plano para concluir sua tarefa de entregar a carta ao músico, resolve passar uma semana na cidade a fim de finalizar seu trabalho. Para isso, deixa por encargo da gadanha o envio das outras cartas de cor violeta e vai para uma porta, na sala fria, que nunca havia sido aberta. Após meia hora fechada, [...] a porta se abriu e uma mulher apareceu no limiar. A gadanha tinha ouvido dizer que isto podia acontecer, transformar-se a morte em um ser humano, de preferência mulher por essa cousa dos géneros, mas pensava que se tratava de uma historieta [...] (SARAMAGO, 2009, p.180). Estás muito bonita, comentou a gadanha, e era verdade, a morte estava muito bonita e era jovem, teria trinta e seis ou trinta e sete anos como haviam calculado os antropólogos [...] (SARAMAGO, 2009, p.181).
Ao se misturar entre os vivos, “[...] tira da bolsa uns óculos escuros e com eles defende os seus olhos agora humanos dos perigos de uma oftalmia mais do que provável em quem ainda terá de habituar-se às refulgências de uma manhã de verão” Aqui a convivência não era mútua, pois a morte, apesar de estar no apartamento do violoncelista, não permitia que este a visse, portanto, era como se ela convivesse com ele, podendo descobrir coisas sobre sua vida, mas ele era privado do mesmo, pois nem sabia que a morte estava em sua casa.
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(SARAMAGO, 2009, p.183), ou seja, adquire mais um aspecto que é comum aos seres humanos, que é o da fragilidade da visão, diante do sol, mas como a total humanização ainda não se concretizou, permanecem resquícios da incompletude da transformação, como a incapacidade de dormir. No último capítulo, Saramago ainda lança alguns indícios de que a Morte, apesar de já ter forma humana, ainda não se humanizou totalmente. Porém, como a personagem resolve fazer um jogo de sedução com o violoncelista de modo que fosse mais fácil entregar-lhe a carta de cor violeta, acaba também sendo seduzida pelo músico, assim como ele se apaixona por ela. Após terem se visto e conversado, o músico lembra que eles nunca haviam se tocado. Ela nunca havia deixado o músico se aproximar tanto, pois, sendo a morte, tem o corpo frio e, caso o músico a tocasse, poderia perceber que algo naquela mulher não era de todo humano. Como a Morte já havia se envolvido sentimentalmente com o violoncelista e tentara várias vezes lhe entregar a carta, sempre adiando a chance, percebe-se claramente que esta seria a motivação para sua total humanização, que acontece na última cena do romance da seguinte forma: Quando ele terminou, as mãos dela já não estavam frias, as suas ardiam, por isso foi que as mãos se deram às mãos e não se estranharam. Passava muito da uma hora da madrugada quando o violoncelista perguntou, Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher respondeu, Não, ficarei contigo, e ofereceu-lhe a boca. Entraram no quarto, despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda. [...] A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu (SARAMAGO, 2009, p.207).
Totalmente humanizada, o Imaginário em relação à Morte também se modifica completamente. No fim do romance, não há mais a possibilidade de simplesmente imaginar a Morte como sendo um esqueleto embrulhado em um lençol, morando em uma sala fria. A Morte agora é uma mulher bonita e apaixonada e quem a vê, o violoncelista, por exemplo, não imagina que esta é a Morte, agora em carne e osso e forma humana.
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Para não ser mais identificada como a Morte, foi necessário que Saramago realizasse uma transformação do Imaginário (lacaniano) humano, ao mesmo tempo em que também houve uma modificação do plano Simbólico dessa personagem ao longo do enredo. Se é no plano Simbólico que o sujeito estrutura os códigos, estabelecendo o que é certo ou errado, bem ou mal, então é neste campo que o indivíduo vê a morte como má. O romance mostra que essa concepção da morte como uma inimiga dos humanos é verdadeira, uma vez que quando a Morte entra em greve, houve muita comemoração pelo fato de os humanos terem se livrado da mesma, mas não se altera a impressão de que a morte seja má, pois os habitantes pensam que a greve não ocorreu por bondade da Morte, mas por obra divina. A igreja católica espalhou essa ideia entre os habitantes, para que acreditassem que a greve e suas consequências eram apenas uma prova. Se, por um momento, os habitantes do país quisessem que a morte regressasse, pois as consequências da greve eram piores do que ter de lidar com a perda de entes queridos, a partir do momento em que ela retoma seu trabalho, com a distribuição das cartas de cor violeta, anunciando a morte das pessoas, a mesma tornou a ser a pior inimiga da humanidade. Para os habitantes do país, a morte continuou a ser inimiga até o final do romance, pois eles nunca saberiam que ela havia se humanizado. O fato de suspender a morte novamente, no fim do romance, não faria com que eles a amassem, pois já sabiam como era enfrentar uma greve. Somente o violoncelista pôde ver a Morte transformada em mulher e acompanhar sua total humanização, pois teve um envolvimento amoroso com a mesma e foi peça fundamental para que sua transformação ocorresse. Entretanto, não há indício no romance de que em algum momento ele tenha sabido que aquela mulher era a Morte. Sua estrutura Simbólica em relação à Morte mudou, pois ele se apaixona por ela, mas como ele não sabe que a mulher é, na realidade, a Morte, não tem consciência dessa mudança, então sua percepção continua sendo a mesma, associando a Morte a um esqueleto. Portanto, Saramago muda o Simbólico do leitor da obra, mas não mexe na estrutura simbólica das personagens em relação à morte, pois se os mesmos não souberam que ela havia se humanizado, adquirindo sentimentos e sensações humanas,
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não puderam perceber que a Morte não mata por prazer ou por querer o sofrimento dos humanos, mas que o faz por ser seu trabalho e porque é preciso “renovar o estoque humano” na Terra, para que não fosse necessária, como os habitantes estavam prevendo com a primeira greve, a construção de verdadeiras torres de babel para comportar o número de idosos, doentes e moribundos que se acumulariam ao longo da eternidade. Ao final do romance, o leitor não consegue mais imaginar a Morte na forma de um esqueleto e associá-la a frieza e medo, passando, ao contrário, a torcer para que ela consiga viver seu amor com o violoncelista. Referências ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente. Trad. Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. SARAMAGO, José. As Intermitências da Morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. SILVA, Marisa Corrêa. O Percurso do Outro ao Mesmo: Sagrado e profano em Saramago e em Helder Macedo. São Paulo: Arte & Ciência, 2009. ŽIŽEK, Slavoj. Bem- vendo ao deserto do real!: cinco ensaios sobre 11 de Setembro e datas relacionadas. Trad. Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2003. ______, Slavoj. Como ler Lacan. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
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DIÁLOGOS INTERTEXTUAIS: ANÁLISE DA PEÇA A COLHER DE SAMUEL BECKETT, DE GONÇALO TAVARES Diogo da Silva Nascimento (UEL) Neste artigo, será apresentada uma análise da peça “A colher de Samuel Beckett”, presente na obra A colher de Samuel Beckett e outros textos (2002), do escritor português Gonçalo M. Tavares, sob o foco da relação do texto dramático com a estética do Teatro do Absurdo, sobretudo as relações intertextuais com a peça Esperando Godot, do dramaturgo irlandês Samuel Beckett. Gonçalo M. Tavares é um professor universitário e escritor português, nascido em 1970. Em pouco mais de dez anos de carreira, já possui uma extensa bibliografia, tendo publicado mais de trinta obras. De acordo com o blog do escritor, já estão em curso cerca de duzentos e trinta traduções em quarenta e seis países. Tavares tem conquistado um espaço significativo no meio literário e já é considerado um dos principais escritores de língua portuguesa da sua geração. O escritor, em suas obras, está em constante diálogo com outros escritores e, em sua maioria, esse diálogo é explícito como, por exemplo, os livros que compõem a série O Bairro, em que os próprios títulos remetem aos nomes dos escritores, além dos títulos Biblioteca, Uma viagem à Índia e a obra aqui em análise. Percebe-se que esse diálogo estabelecido por Tavares tem o propósito de trazer à luz outros processos de observação e ressignificação de escritores e obras consagrados. Tavares, assim, “faz da ficção um espaço para discutir a ficção, a crítica e a historiografia, e acrescenta significados ao termo intertextualidade” (DALTOÉ, 2011, p. 5). O conceito de intertextualidade foi teorizado pela filósofa e crítica literária Julia Kristeva, baseando-se nos estudos do pensador russo Mikhail Bakhtin. Basicamente, intertextualidade é quando um texto estabelece um diálogo com outro texto ou outros textos, conforme Kristeva afirma: “a palavra (o texto) é um cruzamento de palavras (de textos) onde se lê, pelo menos, uma outra palavra (texto)” (KRISTEVA, 1974, p. 64).
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Esse diálogo – ou cruzamento – com outro(s) texto(s) é uma espécie de retomada do passado em que o autor, consciente de sua tarefa, retoma um determinado universo (literário ou não) e traz para o presente um significado novo; uma outra palavra, como menciona Kristeva. E a crítica e ensaísta brasileira Beth Brait complementa essa ideia: “entende-se que os diálogos sociais não se repetem de maneira absoluta, mas não são completamente novos, reiteram marcas históricas e sociais, que caracterizam uma dada cultura, uma dada sociedade” (BRAIT, 2006, p. 118). Sobre essa relação com o passado, o poeta T. S. Eliot faz a seguinte declaração: Mas a diferença entre o presente e o passado é que o presente consciente constitui de certo modo uma consciência do passado, num sentido e numa extensão que a consciência que o passado tem de si mesmo não pode revelar [...] O fundamental consiste em insistir que o poeta deva desenvolver ou buscar a consciência do passado e que possa continuar a desenvolvê-la ao longo de toda a sua carreira. (ELIOT, 1989, p. 41-42).
Percebe-se, pois, na obra de Gonçalo M. Tavares essa “consciência do passado” e esse passado é o ponto de partida da sua escrita. Vejamos, então, como essa relação se dá na peça de Tavares. A colher de Samuel Beckett e outros textos teve sua primeira edição lançada em novembro de 2002 (um ano após a publicação do primeiro livro do escritor, o Livro de Dança). A obra é composta por três peças teatrais, sendo elas “A colher de Samuel Beckett”, “Escada zero” e “Debaixo da cidade”, e dois textos que teorizam sobre o teatro, são eles “Alguns dólares sobre teatro e outras notas menores” e “Reposta a duas perguntas”. Em A colher de Samuel Beckett, Tavares estabelece um diálogo explícito com a obra de Beckett, visto que há no próprio título menção ao escritor irlandês. Há, pois, neste texto dramático a retomada do universo beckettiano, mais especificadamente relacionado à peça Esperando Godot, em que se percebe uma releitura e projeção – como numa espécie de prisma – para os dilemas do homem contemporâneo. O personagem – sem nome – está envolto em seus conflitos e angústias que ora parecem os mesmos dos personagens de Beckett (como a constante espera por alguém ou por algo, as incertezas sufocantes e faltas de perspectiva etc.), ora parecem de outra natureza, mas que também estão conectados, de certa forma, com a obra beckettiana
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(como a irritação com o “mundo externo”, isto é, com os barulhos vindos de fora da casa do personagem que, em Esperando Godot, percebe-se essa problemática com o mundo externo, representada pela presença de Pozzo e Lucky). Basicamente, A colher de Samuel Beckett trata-se de um breve espaço de tempo de um homem que está à espera de um escritor. Assim como os personagens Vladimir e Estragon que esperam por Godot e Godot não vem, o escritor também não aparece. E, nesta espera, o homem discorre longos monólogos acerca de vários assuntos aparentemente sem ligações umas com as outras como, por exemplo, os temas: música; matemática; tédio; sobre escrever etc. Esse monólogo confuso do personagem de Tavares remete ao monólogo do personagem Lucky, servo de Pozzo, no primeiro ato de Esperando Godot. Sobre essa condição da espera, Esslin (1968, p. 39) assegura que “Esperando Godot não conta uma história; explora uma situação estática”. Isto é, não nos interessa tentar descobrir a essência da história porque nem há história, não nos interessa tentar desvendar um segredo onde não há segredo, isso seria, muito provavelmente, um trabalho em vão. Devemos, no entanto, percorrer outro caminho. Assim, não nos interessa descobrir quem é Godot, mas sim devemos nos atentar sobre a sua espera, o que essa espera representa na peça e o que ela exprime enquanto condição humana. Sobre isso, Esslin faz a seguinte conjectura: O assunto da peça não é Godot, mas a própria espera, o ato de esperar como um aspecto essencial e característico da condição humana. Durante toda a nossa vida, estamos sempre esperando alguma coisa, e Godot representa tão-somente o objetivo de nossa espera – um acontecimento, uma coisa, uma pessoa, a morte. Além do mais, é no ato da espera que experimentamos o fluxo do tempo em sua forma mais pura e mais palpável. (ESSLIN, 1968, p. 43-44).
Durante o tempo de espera, os personagens oscilam entre os momentos altos (de esperança, de aparente certeza de que o objetivo será alcançado) e os momentos baixos (de angústias, incertezas, medos etc.). Por conseguinte, em Esperando Godot, esse “sentimento de incerteza que é criado, e os altos e baixos dessa incerteza – entre a esperança da descoberta da identidade de Godot e os repetidos desapontamentos – são em si a essência da peça” (ESSLIN, 1968, p. 38). E essa espera é a essência também em
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A colher de Samuel Beckett, visto que há igualmente a ausência de uma história e até mesmo a identificação do personagem. Sabemos apenas que ele espera um escritor que, por sua vez, o fato de ser um escritor é também muito significativo. O palco, na peça de Tavares, é constituído de um “piso zero” (onde há sal ou pequenas pedras) e seis escadas. Sendo que no topo da primeira escada há uma mesa, cadeira, bloco de folhas e uma caneta em grandes dimensões, no topo da segunda há um copo com água em cima de uma pequena mesa, na terceira um lixo, na quarta um relógio em cima de uma mesa, na quinta uma mesa com pratos, talheres, guardanapos etc., e no topo da sexta escada não há nada. O homem transita por entre essas seis escadas e, conforme as indicações cênicas, ele cumpre um ritual para subir e descer cada uma delas, isto é, o homem ao andar no piso zero deverá estar calçado, já ao subir cada uma das escadas, ele deverá tirar sapatos e meias e isso será repetido várias vezes. Outra indicação cênica é que este homem estará o tempo todo com uma corda envolta ao pescoço com a ponta presa ao teto. O cenário e as indicações cênicas são bastante expressivos tanto no que diz respeito ao minimalismo dos objetos, isto é, há somente o que é essencial para a vida (do sujeito-personagem) no topo de cada escada, como também retoma algumas características da obra de Beckett. Luciana Éboli afirma que “assim Gonçalo M. Tavares inicia seu texto, com indicações cênicas que remetem ao universo ‘beckettiano’ e trazem à cena questões da identidade do homem contemporâneo” (2012, p. 216). E complementa: Com essa breve descrição, o autor cria o espaço cênico e propõe, desde o início, o jogo enigmático entre o leitor/espectador através da expectativa do que está por vir. Nada é explicitado ou explicado: apenas a situação de estranhamento que os fatos provocam no leitor. (ÉBOLI, 2012, p. 217).
Assim sendo, as peças de ambos os escritores causam um estranhamento ao leitor/espectador. Estranhamento causado também por vários outros motivos como, por exemplo, a falta de enredo. Tanto em Esperando Godot como em A colher de Samuel Beckett há a ausência de uma história – da qual estamos acostumados – com começo, meio e fim. Assim, não se têm nesses textos dramáticos, de uma forma definida, os
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elementos do enredo como a apresentação, complicação/desenvolvimento, clímax e desfecho. A ação, como já se sabe, é constituída por sequências de experiências dos personagens em um espaço-tempo e, assim, essas sequências de ações formam o enredo. Como há falta de enredo nessas peças, há também, em certo nível, uma falta de ação de seus personagens, isto é, ações significativas e, diríamos, fundamentais no percurso da história, que poderiam modificar o seu curso. Como não há essas ações significativas, o essencial das peças está em outro âmbito. Está, podemos dizer, na ambientação e no diálogo. Mas ainda no que diz respeito à ação (ou a falta dela) Madalena Vaz Pinto, em um artigo publicado na Revista Abril sobre Tavares, alega que na peça do escritor português há uma promessa de movimento, de ação. Se esticarmos a mão. A mão que sai de um corpo. Como são os corpos da literatura portuguesa? Não o corpus, os corpos. A decadência dos povos pode ser não aceitar a decadência dos corpos, repara. O texto de Gonçalo Tavares tem corpo. Um corpo não inquisidor nem inquisitorial. Um corpo que dança. Uma dança feita de movimentos incondicionados, não aleatórios. (PINTO, 2010, p. 36).
Desse modo, apesar da falta de enredo, para que as duas peças se mantenham firmes (dentro desses movimentos incondicionados, porém não aleatórios), os autores pautam-se nas repetições. Sobre essas estruturas firmes de repetição, John Fletcher, em um artigo que está na parte “Apêndices” do livro Esperando Godot, faz a seguinte declaração sobre a peça de Beckett: Ela pode não ter sido construída segundo linhas tradicionais, com exposição, desenvolvimento, peripécia e desenlace, mas tem uma estrutura firme, ainda que de outra natureza, uma estrutura baseada na repetição, na volta dos leimotifs e no equilíbrio exato de elementos variáveis, e justamente esta estrutura deve ser destacada na montagem (FLETCHER In BECKETT, 2005, p. 209).
Essas repetições podem ser observadas principalmente em pequenas situações e nos diálogos, tanto na peça de Beckett como na de Tavares. Enquanto na peça do primeiro, repetem-se situações como o aparecimento de Pozzo/Lucky e do menino, as
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tentativas de se enforcarem e as de tirar as botas nos dois atos da peça, na do segundo as repetições são as subidas e descidas das escadas, tirando e colocando os sapatos, as contagens dos pratos, talheres e guardanapos e as tentativas de escrever, acabando sempre a amaçar o papel e jogando-o fora. Desse modo, pode-se fazer a leitura de que essas repetições feitas pelos personagens em ambas as peças nos remetem ao nosso próprio dia-a-dia, baseado em repetições de tarefas (algumas relevantes, outras nem tanto, mas que estão dentro também desse círculo vicioso) que ora fazemos de forma consciente, ora fazemos inconscientemente. Há também outros elementos relevantes, citados de forma breve anteriormente, na peça de Tavares que remete a de Beckett, são eles: a corda, como representação do suicídio, e as botas, com repetições mecânicas de tirá-las e colocá-las. Enquanto na peça de Tavares a corda e as botas são apenas elementos visíveis, não havendo menção por parte do personagem a elas, na peça de Beckett elas são discutidas. Assim, em A colher de Samuel Beckett, a corda está envolta ao pescoço o tempo todo e, por vezes, quando o personagem abaixa, ele sente a pressão da corda, voltando a sua posição anterior, no entanto, nunca é dito sobre a corda ou sobre suicídio. Já em Esperando Godot, não há uma corda, porém Estragon e Vladimir expressam o desejo do suicídio enforcando-se na árvore, como se pode perceber nas seguintes passagens da peça de Beckett (2005): Estragon: E se a gente se enforcasse? Vladimir: Um jeito de ter ereção. Estragon (excitado): Uma ereção? Vladimir: Com tudo que se segue. Onde cair, a mandrágora brota. É por isso que a raiz grita, quando arrancada. Você não sabia? Estragon: À forca sem demora! (p. 34-35). Estragon (olhando para a árvore): Pena que não temos um pedaço de corda. Vladimir: Venha. Está esfriando. (Puxa Estragon. Como antes) Estragon: Me lembra de trazer uma corda amanhã. Vladimir: Está certo. Venha. (Puxa Estragon. Como antes) (p. 105106). Estragon: Venha ver. (Arrasta Vladimir até a árvore. Estacam diante dela. Silêncio) E se a gente se enforcasse?
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Vladimir: Com o quê? Estragon: Você não tinha um pedaço de corda? Vladimir: Não. Estragon: Então não podemos. (p. 192).
Percebe-se que há nas duas peças, numa mais implícita noutra mais explícita, uma referência ao suicídio, ambas ficam apenas na promessa de movimento, de ação, como diz Madalena Vaz Pinto na citação acima. Podemos, no entanto, pensar que em Tavares a ideia do suicídio é ainda mais radicalizada, visto que já aparece desde o início, não é a falta de “enredo” que leva ao pensamento suicida, como em Beckett. Quanto às botas, pode-se dizer também que são expressivas, pois o ritual na peça de Tavares é significativo no que diz respeito à encenação da peça, enquanto que na peça de Beckett há uma passagem interessante sobre as botas: Vladimir: Finalmente! (Estragon levanta-se, dirige-se a Vladimir, as duas botas na mão. Coloca-as junto à boca de cena, endireita-se e contempla a lua) O que está fazendo? Estragon: O mesmo que você, admirando a claridade. Vladimir: Não, com as botas. Estragon: Vou deixa-las aqui. (Pausa) Alguém vai passar, parecido... igual... a mim, mas calçando menos, e vai ficar contente. Vladimir: Mas você não pode andar descalço. Estragon: Jesus andava. Vladimir: Jesus! Olha só o que você está dizendo! Não vai querer se comparar a ele? Estragon: A vida toda me comparei. Vladimir: Mas por lá fazia calor! Não chovia! Estragon: É. E crucificavam rápido. (BECKETT, 2055, p. 104-105).
Pode-se conjecturar, então, a ligação que Tavares estabelece quanto a esses dois elementos – a corda e as botas –, já que ambas têm valores expressivos na peça de Beckett, e que é retomado por Tavares com um outro aspecto. O personagem, quando está na quinta escada, conta os pratos, guardanapos, copos e talheres, porém falta uma colher e o homem não se conforma com a falta dessa colher e repete a contagem várias vezes, como se fosse a única coisa com que se importasse; encontrar a colher. E, só ao final, o personagem encontra a colher no piso zero, onde um foco de luz recai neste momento, porém ele não pega, pois não pode se agachar por causa da corda no pescoço.
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Essa cena é muito representativa, visto que quando o personagem encontra o que lhe faltou o tempo todo – a colher – ele não pôde pegá-la, pois havia uma corda que o limitava. Havia algo que o impedia de avançar, que limitava as suas ações, que controlava os seus movimentos. E disso podemos extrair também a representação das várias instituições da sociedade que controlam e limitam, em certo nível, nossas ações. Ressalta-se ainda outro aspecto da atmosfera Beckettiana, a solidão. O personagem, assim como nós, está nessa constante espera de alguém ou de algo que preencha um vazio latente e as insatisfações do absurdo do cotidiano, como se pode perceber nos seguintes trechos do monólogo do personagem de Tavares (2002): E o escritor que não vem. Irrita-me isto. (p. 15) Eu gosto das pessoas, porém não as suporto. Irritam-me (pausa). (p. 20) Ficar por aqui, à espera. Pode ser que venha. E quando vier devo estar preparado (pausa) Já devia ter vindo. Atrasado. (levanta-se) Ir ver o relógio para confirmar (pausa). Já fui. (pausa) Ou beber água ou ir ao lixo. Não. Ou beber água ou confirmar a mesa. (pausa) Dois pratos com sopa e dois copos. Basta. Não quero pensar mais nisto. (pausa) Ele não vem. (p. 22) Vou dizer uma frase idiota: escrever é falar para dentro de uma folha. Outra frase idiota: o silêncio é a moral mais profunda e nela, nessa moral, aparecem as ideias. (pausa grande) Vou contar outra história. Para entreter. Enquanto ele não vem. (p. 25) Esperar. Que coisa idiota esta: ter de esperar. (pausa) Ponham música. Para distrair os idiotas: música, ou então: problemas de matemática. (p. 27)
Essas duas peças, absurdas se comparadas às peças tradicionais, mas tão próximas e coerentes em suas representações de sentimentos humanos, seja de sujeitos da primeira metade do século XX, seja de sujeitos do século XXI, conseguem tocar no âmago da complexa condição humana. E, quanto ao aspecto dialógico, Tavares trabalha com maestria ao buscar elementos do Teatro do Absurdo, ampliando-os e ressignificando-os. Referências BECKETT, Samuel. Esperando Godot. Tradução de Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
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A RECEPÇÃO DA OBRA ÇAIÇÚ’INDÉ: O PRIMEIRO GRANDE AMOR DO MUNDO NO PROJETO JOVEM LEITOR Diogo Sarraff Soares (UEA)1 Considerações iniciais A literatura, sendo considerada como ciência ou não, pode ser tomada através de muitos enfoques. O formalismo russo, por exemplo, assim como a estilística, são teorias sobre as quais se pode recorrer a fim de se fazer estudos para acentuar reflexões críticas no texto literário. Estas conjeturas possuem particularidades, bem como especificidades de abordagem, o que nos leva a pensar em um ramo de estudos no qual existem várias maneiras de se tratar o texto. Considerando esses muitos enfoques, este trabalho propõe uma análise literária a partir da Estética da Recepção, uma das abordagens da literatura; e adota-se como objeto de estudos uma narrativa da literatura infantojuvenil amazonense intitulada Çaíçu’indé: o primeiro grande amor do mundo, de autoria do escritor indígena Roní Wasirí Guará. Entretanto, para que o estudo seja feito sob a ótica desta teoria, é necessário realizar uma análise dentro de um processo de leitura. Este processo é o Projeto Jovem Leitor, que, na verdade, foi uma ação cujo objetivo maior consistia no incentivo à leitura, o qual ocorreu no município de Parintins-AM nos anos de 2011 e 2012. A obra selecionada para análise foi escolhida por inúmeros motivos, sendo que o maior foi o de ela ter causado, por parte dos leitores do projeto, uma boa recepção e, consequentemente, servido de excelente instrumento de ensino e incentivo à leitura. No entanto, destaca-se também como motivo de seleção o fato de ser um livro da literatura infantojuvenil amazonense, cujo enredo consiste em uma lenda indígena. O livro também, dentro dos paradigmas da crítica literária, é possível de ser analisado e teorizado elencando diversos elementos da literatura. Este estudo tem caráter bibliográfico, uma vez que se inicia com a apresentação da Estética da Recepção, baseando-se nas pesquisas dos principais teóricos e estudos acerca dos princípios da mesma. Tem também caráter descritivo, pois descreve o Projeto Jovem Leitor, um projeto de incentivo à leitura, iniciativa utilizada na análise Acadêmico do Curso de Letras da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e pós-graduando em Língua Portuguesa e Literatura pelo Centro de Estudos e Pesquisas da Amazônia (CEPAM). [email protected] 1
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como parte do processo de recepção. E ainda tem caráter analítico, visto que conclui com uma análise de uma narrativa sob a perspectiva da teoria crítica literária em questão, levando em consideração seus aspectos basilares. A estética da recepção A Estética da Recepção, bem como as demais teorias da literatura, é fundamentada basicamente por características determinadas pelo contexto histórico de sua gênese. Quando se originou, durante os anos de 1960 e 1970, estava em voga um confronto entre o marxismo e o formalismo, por isso, segundo Hans Robert Jauss – um dos pioneiros na fundação da teoria da recepção – tentou-se “fundir as melhores qualidades do marxismo e do formalismo, propondo alterar a perspectiva pela qual nós normalmente interpretávamos os textos literários” (SAMUEL, 2011, p. 165-166). Isso quer dizer que ela foi um divisor de águas desde seu surgimento, já que, embora seja um composto entre proposições já existentes, passou a ser uma nova ideologia, uma inovadora maneira de se tratar o texto literário. Enquanto pressupostos passados pregavam a significância da obra associada à genialidade do autor ou até mesmo aos demais recursos da obra, a teoria da recepção volta-se ao público leitor, ao modo como os leitores lidam com o texto. Ainda segundo Jauss, “a significação histórica da obra não é [...] estabelecida pelas suas qualidades, ou pelo gênio de seu autor, mas pela cadeia de recepções de geração em geração” (SAMUEL, 2011, p. 166). Este é, portanto, o princípio fundamental desta crítica literária, na qual suas inferências se fazem a partir da recepção que a obra obteve de diversos públicos. Este pressuposto está inteiramente vinculado às interpretações do leitor, ao público sobre o qual se destina a obra e ao público receptor. Os primeiros teóricos da recepção centram-se tanto no leitor a ponto de acreditarem que “se as expectativas de um leitor não são ‘desapontadas’ ou ‘violadas’, então o texto é de segunda categoria” (SAMUEL, 2011, p. 167). Para eles só se tem uma boa literatura quando há um rompimento das expectativas do leitor. Tal pensamento é bastante relativo hoje, visto que há situações, por exemplo, cujo autor direciona sua obra a um determinado público, entretanto ela acaba sendo recebida por um público diferente do qual o autor havia planejado. Nesse caso, uma vez que há boa recepção de outro público, a obra pode não ter impactado o público alvo
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como se esperava, mas certamente impactou o público receptor e, dessa forma, é uma boa literatura. É esse o motivo pelo qual Karlheinz Stierle, outro teórico da recepção, diz – em texto traduzido e organizado por Luiz Costa Lima – que “a legitimidade estética do julgamento pessoal, mesmo do que só se formulou uma vez, se torna segura de si mesma apenas em face de um processo de formação do julgamento” (1979, p. 120). Isto é, a recepção de uma obra só é legítima quando o receptor formula julgamento, seja bom ou ruim, acerca da arte dentro de um processo. Ele considera como processo a recepção por meio de um momento de recepção, o qual se inicia pelo horizonte de expectativa de um primeiro público, transcorrendo a outras gerações. É assim o trabalho com os textos literários por parte desta teoria, a qual toma como conclusões válidas as apreciações dos leitores. É dessa maneira também que ela se aproxima da ciência, a qual adquire como resultados valores bons ou ruins de receptores previamente elencados para o estudo. Stierle afirma que a recepção abrange cada uma das atividades que se desencadeia no receptor por meio do texto, desde a simples compreensão até a diversidade das reações por ela provocadas – que incluem tanto o fechamento de um livro, como o ato de decorá-lo, de copiá-lo, de presenteá-lo, de escrever uma crítica ou ainda o de pegar um papelão, transformá-lo em viseira e montar a cavalo. (1979, p, 121)
Segundo o teórico, o resultado da recepção está ligado ao modo como o leitor reage ao texto, às ações tomadas após a leitura. Para os estudantes da recepção, a obra pode ser considerada de bom nível quando o receptor termina de ler e tem atitudes como querer decorar ou copiar partes dela, presenteá-la a alguém ou escrever uma crítica a seu respeito. Em contra partida, pode ser considerada como de segunda categoria quando, após a leitura, o receptor adquire vontades como engavetar o livro, destrui-lo ou nunca ter lido, preferindo ter feito algo de mais útil no tempo gasto com a leitura. Além disso, os teóricos da recepção também têm como princípio o estudo da obra de arte a fim de determinar antecipadamente se ela terá boa qualidade na recepção ou não. É o ramo da teoria ligado à estética textual, pois há possibilidades de os elementos internos do texto influenciar a recepção literária. Stierle diz que se, por um lado, no caso concreto, os momentos ficcional e não-ficcional podem ser tão entrelaçados que o estatuto de todo o texto oscila entre ficcionalidade e não ficcionalidade e se torna difícil a sua determinação, por outro lado, o esquema da própria ficcionalidade é inequivocamente determinável. (1979, p. 131)
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São estudos de ordem ficcional e não-ficcional do texto, a propósito dos quais se indaga a respeito de sua própria estrutura. Questões como a ficção e sobre o lado material da obra são relevantes para os teóricos da recepção e são levantadas com a hipótese de se definir a qualidade de um texto literário. É possível, pois, estudar a estética de uma obra de arte, bem como sua recepção utilizando fundamentos da Estética da Recepção. Para a realização de tal atividade, deve-se levar em consideração o receptor do texto dentro de um processo de recepção, as interpretações do leitor e ações que ele perpetua após a leitura. É importante também estudar a estética do texto, uma vez que a ficcionalidade e a não-ficcionalidade podem revelar antecipadamente possíveis resultados acerca da recepção da obra. O projeto jovem leitor O Projeto Jovem Leitor, coordenado pelo professor MSc. Edilson da Costa Albarado (UFAM), consiste em uma iniciativa que visa o incentivo à leitura a crianças e jovens de Parintins-AM. O município de Parintins, localizado à margem direita do rio Amazonas, é habitado por mais de 100 mil pessoas que vivem do comércio, da agricultura e da pecuária. Esse município, conhecido pelo Festival Folclórico dos bois Garantido e Caprichoso, evento que manifesta as riquezas culturais e artísticas da região, carece de atividades que incentivem o hábito da leitura ao público infantojuvenil. Esta iniciativa propôs estratégias de leitura que valorizem a cultura local e regional a partir de temas contextualizados, os quais estimulam as relações de pertencimento e diálogo com a diversidade cultural brasileira. Dentre as estratégias, a mais significativa está relacionada à obra proposta pelo projeto, sobre a qual se encontra uma infinidade de livros direcionados ao público infantojuvenil, como clássicos da literatura universal (O Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry), para crianças de autores amazonenses (coleção Aventuras de Zezé na Floresta Amazônica de Elson Farias) e indígenas (Çaícú’indé: o primeiro grande amor do mundo de Roní Wasiry Guará). Junto a estes, propôs-se também clássicos da literatura brasileira (O Ateneu de Raul Pompéia) e da literatura portuguesa (A cidade e a serras de Eça de Queiróz). O projeto se desenvolveu a partir da aplicação de oficinas de leitura e produção textual, as quais ocorreram em um ambiente externo da Livraria Universitária de Parintins (LUPA), estabelecimento comercial que ofertou os livros para esta iniciativa e
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onde se arquivava os mesmos. Esta foi mais uma estratégia importante para promover o acesso à leitura, pois, embora ocorresse em uma livraria, o ambiente era não formal, fora da escola, um local onde as crianças e jovens não estavam acostumados a frequentar. Isto é importante porque “na educação não formal, os espaços educativos são localizados em territórios que acompanham a vida dos grupos e indivíduos, em locais informais e fora das escolas” (ANELO & SOUZA, 2012, p. 2). Em meados de 2011, o projeto iniciou com a escolha de quatro escolas da rede pública de educação do município de Parintins, instituições de ensino nas quais há alguns alunos que se encontram em um estado problemático de interesse e aprendizagem. Estes alunos, crianças e jovens entre 8 e 18 anos, foram selecionados para participar das atividades. Através desta ação formaram-se quatro turmas para o desenvolvimento das oficinas, as quais ocorriam em dois dias da semana, em horários alternados, pelo horário da manhã e da tarde. Os responsáveis pela aplicação das oficinas foram quatro acadêmicos de licenciatura da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), um em cada turma. A metodologia empregada na aplicação das oficinas levou em consideração a importância do texto literário. Elas desenvolveram-se a partir de atividades de leitura, que sempre culminavam na produção textual. Em outros termos, logo após a prática do ato de ler houve muitos exercícios à técnica da escrita. As oficinas foram realizadas dessa maneira porque, assim como Lígia Cadermatori, acredita-se que se, adquirindo o hábito da leitura, a criança passa a escrever melhor e a dispor de um repertório mais amplo de informações, a principal função que a literatura cumpre junto a seu leitor é a apresentação de novas possibilidades existenciais, sociais, políticas e educacionais. (CADERMATORI, 2006, p. 19-20)
Nas oficinas aplicadas geralmente escolhia-se um texto para ser lido, mas antes de as crianças realizarem a leitura, possibilitava-lhes momentos de leitura pré-textual visando inferir no título, nas imagens e em outros elementos para-textuais. É o que Maria Helena Martins (2003) chama de nível sensorial da leitura, o nível associado aos aspectos externos da leitura: o tato, o prazer do manuseio de um livro bem acabado, com papel agradável, com ilustrações interessantes e planejamento gráfico caprichado. Quanto à produção, permitia-se a exploração dos gêneros textuais, por meio dos quais os jovens não apenas conheceram gêneros pouco explorados em sala de aula, mas também passaram a praticá-los de maneira mais recorrente, pois se escrevia, corrigia-se,
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reescrevia e melhoravam-se os textos. Em outras palavras, eles instruíram-se também quanto às competências de produção textual, sendo que, conforme Maria Alice Faria (2008, p. 20), “a aquisição dessas competências passa de início pela leitura ou audição de narrativas ou poemas”. Entre a coletânea sugerida para a leitura achava-se, sobretudo, obras de autores consagrados do cânone brasileiro de literatura, romances e contos da cultura brasileira e amazonense, poemas modernistas, dentre outros. E sobre os gêneros propostos para aprendizagem e produção, utilizou-se grande quantidade de contos, bem como de poemas, histórias em quadrinho, cartas, bilhetes, lendas, teatro e notícia. Antes do desenvolvimento desta ação foram idealizadas metas a serem alcançadas. Uma delas consistia na leitura de, no mínimo, sete títulos da coleção disponibilizada até ao final das oficinas, pois, assim como Lígia Cadermatori (2006, p. 18,19), tem-se a ideia de que “a convivência com textos literários provoca a formação de novos padrões e o desenvolvimento do senso crítico”. O resultado não foi outro, pois cada participante leu mais de dez livros. A atitude mais surpreendente foi o compromisso por eles assumido com a realização das leituras indicadas, elevando a curiosidade e sendo crítico das crianças e jovens. Diante da coletânea disponibilizada, os três livros que mais despertaram atenção das crianças e jovens foram: Viajando com o boto no fundo do rio, da coleção Aventuras de Zezé na Floresta Amazônica de Elson Farias; Formosa, a sementinha voadora de Wilson Nogueira; e Çaícú’indé: o primeiro grande amor do mundo de Roní Wasiry Guará. Foram as narrativas mais bem recebidas, as quais possibilitaram maior interesse pela leitura e marcaram a vida dos participantes do projeto. Através disso, o Projeto Jovem Leitor obteve sucesso e provocou o uso da criatividade, a melhoria no desempenho escolar, assim como a aprendizagem de valores culturais e ideológicos a cada criança e jovem leitor. Análise da narrativa Em um ambiente onde se desenvolve qualquer trabalho através da disposição de uma diversidade de livros de literatura, é evidente que nem todos os livros serão bem recebidos pelo público ao qual se destina a atividade. Com o Projeto Jovem Leitor não foi diferente. Perante a variedade dos livros postos para a leitura, nem todos tiveram a
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mesma recepção. Alguns ficaram para segundo plano, outros, porém, se sobressaíram no atendimento do público alvo. Dentre a coletânea alocada pela Livraria Universitária de Parintins ao projeto, um dos livros mais bem destacados, no quesito recepção, foi uma narrativa intitulada Çaiçú’indé: o primeiro grande amor do mundo, de autoria do escritor indígena Roní Wasiry Guará. É uma historieta que conta, na perspectiva da mitologia indígena, a origem do fenômeno atualmente conhecido como eclipse: Foi então que Moñag teve uma ideia maravilhosa: usou seu poder e criou um fenômeno onde Guaracy e Gixiá pudessem se encontrar. Desta maneira ele criou o Çaiçú’indé, o grande encontro do maior e primeiro amor do mundo, que hoje conhecemos como eclipse, pois quando isso ocorre pensamos que Guaracy e Gixiá escondem-se um por detrás do outro. Na verdade, eles estão se abraçando e matando a saudade de vários anos sem se ver. (GUARÁ, 2011, p. 30, 31)
Um dos primeiros aspectos a se considerar versa sob o processo de recepção. No projeto, um ponto positivo foi a diversidade de livros colocados para leitura, onde foi possível se fazer uma comparação entre a recepção de todos. Em outros termos, esse aspecto do processo é válido porque, caso não existisse uma diversidade – literatura infantojuvenil, brasileira, amazônica, lusitana –, ficaria duvidoso saber se realmente as crianças e jovens tivessem preferido determinada categoria, já que existiria apenas uma: a literatura lusitana, por exemplo. Esse aspecto deve ser considerado porque, para Stierle o significado da obra literária é apreensível não pela análise isolada da obra, nem pela relação da obra com a realidade, mas tão-só pela análise do processo de recepção, em que a obra se expõe, por assim dizer, na multiplicidade de seus aspectos (1979, p. 120).
Essa comparação é, pois, de propriedade, pois as crianças tiveram principal interesse pela parte da coleção classificada como infantojuvenil e, sobretudo, pelos livros de autores que escrevem sobre a região e cultura amazônica. Outro aspecto a ser considerado dentro do processo de recepção refere-se à leitura realizada por intermédio do projeto, mesmo que este não tivesse como primeiro objetivo avaliar a1 recepção dos livros. Este aspecto consiste nas oficinas de leitura e é apropriado porque a leitura foi voluntária e não foi feita na escola, ambiente no qual se costuma ter obrigatoriedade nas atividades. Pelo contrário, foi um ambiente natural onde se realizava as leituras e também ouvia-se música, o cantar dos pássaros, o ruído
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do trânsito e, ao mesmo tempo, conversava-se com as pessoas. É o que Stierle (1979) nomeia como formação de julgamento, processo dialógico e formação consensual. E ainda, partindo da premissa a respeito da significação histórica da obra, definida pela cadeia de recepções de geração em geração (SAMUEL, 2011), a narrativa em questão foi lida por um grupo bastante heterogêneo, no qual havia meninos e meninas, rapazes e moças. Se nesse processo ela não foi lida por mais de uma geração, é conveniente ressaltar a realização da leitura por pessoas de diferentes fases, que vai desde crianças de oito anos de idade até jovens de dezoito. Há que se considerar também dentro do processo de análise da narrativa de Wasiry Guará a reação do público durante e após a leitura do livro, porque, conforme Wolfgang Iser, “a obra de arte não está no texto, nem na leitura, mas entre os dois” (SAMUEL, 2011, p. 167). Enquanto alguns livros foram lidos pela metade, pois cansavam ou não interessavam o leitor, a narrativa indígena foi lida de modo integral e discutida com qualidade, ocasionando atividades bem sucedidas. Além do mais, foi a que mais levou as crianças e jovens a lembrarem-se do seu enredo, a respeito da qual mais falaram bem e a que mais gostariam de ter. Em último aspecto, é importante ressaltar a estética do texto, visto que, quanto à tessitura textual, o mesmo possui linguagem fácil de ser compreendida, com discurso direto alternando com o indireto, como se observa no excerto seguinte: Todos da aldeia procuravam saber o que estava acontecendo; alguns diziam que algum espírito do rio havia judiado dela, ou, quem sabe, não era o boto? Seus pais então resolveram levá-la ao pajé, que após ouvir o relato lhes disse: – Não fiquem preocupados, hoje falarei com os espíritos e saberei o que há com sua filha. (GUARÁ, 2011, p. 12)
Com apenas estes elementos já se poderia dizer que a narrativa chamaria atenção de seus leitores, pois é um texto fácil de ser lido, possui um enredo encantador, o qual conta a história de um amor impossível, de sofrimentos, tristeza, dispersão de lágrimas, com desfecho surpreendente. A estética do texto possibilita uma leitura formidável, pois, para os teóricos da recepção, “o objetivo estético é constituído pelo ato de ler” (SAMUEL, 2011, p. 167). Quanto à ficcionalidade e a não ficcionalidade, ainda é formidável evidenciar a narração de uma história já conhecida, seja através da ficção, seja através da vida real: um romance de amor impossível entre duas pessoas cujo epílogo é a união do casal. Todavia, essa história estereotipada é contada através do uso do elemento fantástico que
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permeia a literatura infantojuvenil amazonense. Em outros termos, no texto há uma relação entre elemento ficcional e elemento não-ficcional. Segundo Stierle a relação do texto com a realidade não é uma simples função de uma realidade a ser retratada, mas sim uma poética da ficção, que pode ser ora mais, ora menos relacionada com a realidade e com a experiência coletiva da realidade. (1979, p. 131-132)
Tanto a história estereotipada quanto o elemento fantástico são bem aceitos pelo público infantojuvenil. Entretanto, no delinear da história ela rompe as expectativas do receptor quando uma parte do casal fica sozinha; e rompe, pela segunda vez, quando se acha um jeito de unirem-se de novo, mas de maneira distante um do outro. E o desfecho, em contra partida, é surpreendente porque o texto finaliza dando a ideia da união do casal pela eternidade. Por outro lado, o mundo maravilhoso aguça a imaginação das crianças a fantasiarem coisas que extrapolam os limites do nosso mundo, levando-as a acreditar na história. Entende-se, pois, que essa narrativa é considerada de boa recepção não apenas porque se ouviu dizer que os leitores do projeto “gostaram de lê-la”, mas, sobretudo, porque nesse estudo se percebe seu ajuste dentro de alguns pressupostos da Teoria da Recepção. Questões com processo de recepção, ações pós-leitura, expectativas dos receptores, entre outros, levam a afirmar que a narrativa Çaiçú’indé: o primeiro grande amor do mundo, de Roní Wasiry Guará, não é apenas um livro de primeiro nível literário, mas sim um livro de primeiro e alto nível literário. Considerações finais Entre o universo de um texto e a teoria, há muitas análises e possibilidades de leitura. Entre a presença do fantástico na literatura infantojuvenil e a crítica literária, têm de existir um ensino presunçoso de valores culturais e ideológicos às crianças. Entre o mundo mágico, mítico e lendário da literatura amazonense e a pesquisa de teóricos, ainda permanecem inúmeras lacunas a ser preenchidas. E entre a narrativa Çaiçú’indé: o primeiro grande amor do mundo e a Estética da Recepção, corrobora a existência de um livro ímpar para as literaturas amazonense e brasileira.
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Referências ______________. A Literatura e o leitor: textos da estética da recepção. Coordenação e tradução de Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. ANELO, Gisele P. & SOUZA, Anilda M. Aprendizagem no espaço escolar. Osório, RS: Revista Modelos, 2012. Disponível em , acesso em 16 de ago. de 2014. CADERMATORI, Lígia. O que é literatura infantil. São Paulo: Brasiliense, 2006. (Coleção primeiros passos; 163) FARIA, Maria Alice. Como usar a literatura infantil na sala de aula. 4. ed. São Paulo: contexto, 2008. GUARÁ, Roní Wasiry. Çaícú’indé: o primeiro grande amor do mundo. Manaus: Editora Valer, 2011. MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. São Paulo: Brasiliense, 2003. (Coleção primeiros passos; 74) SAMUEL, Rogel. Novo manual de teoria literária. 6. ed. revista e ampliada. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
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DISSEMINAÇÃO DE CONFLITOS DISCURSIVOS NA DRAMATURGIA DE JORGE ANDRADE
Domenico Sturiale (IFTO-UFT)
Introdução Este trabalho propõe uma leitura de As Confrarias de Jorge Andrade a partir da teoria dialógica bakhtiniana, que revela os jogos persuasivos e paródicos entre as personagens, e da teoria da disseminação discursiva foucaultiana, que denuncia como tais jogos efetivam contínuas e constantes deslocações de poder. A análise discursiva comprova a centralidade da categoria da conflitualidade entre discursos liberais e discursos conservadores.
Retrospectiva Em sua vasta obra dramatúrgica, Jorge Andrade procura incessantemente o significado da própria vida, da sua saga familiar, da história brasileira e do drama do homem universal. Seu teatro é uma das mais completas panorâmicas da história nacional, “desde a velha ordem colonial e patriarcal até os problemas de ser ou não ser no mundo de hoje” (ANDRADE, 1978, p. 219), em que o autor busca a si mesmo e revela a própria alma na transposição cênica. Jorge Andrade nasce em Barretos (SP), em 1922. Seus pais são fazendeiros paulistas, oriundos de Minas Gerais. Na década de 1930, com a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque e a crise do café, começa o declínio lento e inexorável da velha aristocracia rural e da família Andrade. Enquanto isso Jorge Andrade vive na fazenda do pai, onde revela sua inconformidade com o meio que o cerca. Em 1942, com vinte anos de idade, Jorge Andrade se matricula na Faculdade de Direito de São Paulo, onde, pelo escasso interesse por assuntos jurídicos, não se deterá muito. Após uma breve passagem por um banco, volta à fazenda paterna, onde se dedica à fiscalização dos colonos que lá trabalham. Em 1951, no Teatro Brasileiro da Comédia, está em cartaz a peça de Tennessee Williams, O anjo de pedra, cujo papel principal é interpretado por Cacilda Becker. Procurada após o espetáculo pelo jovem Jorge Andrade, a atriz o aconselha a
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matricular-se na Escola de Arte Dramática Alfredo Mesquita, onde o aspirante a ator descobre sua verdadeira vocação de dramaturgo. Em 1955 ganha uma viagem aos Estados Unidos, onde conhece pessoalmente Arthur Miller, que o exorta a descobrir, em seu regresso ao país natal, por que os homens são o que são e não o que gostariam de ser. Em São Paulo, além de cultivar a paixão pela dramaturgia, exerce para sobreviver as profissões de professor em ginásios vocacionais e de redator da revista “Realidade”. Jorge Andrade falece em 1984. Sua produção pode ser dividida em duas grandes fases: o “ciclo do presente”, com peças publicadas de 1970 a 1980, em que une ao teatro a experiência da televisão, projetando-se na indagação do presente e do futuro; o “ciclo do passado” ou “ciclo de Marta”, que aqui é o que mais nos interessa e que vai até o ano de 1970, data da publicação de Marta, a árvore e o relógio, “o conjunto mais coeso de peças do teatro brasileiro” (SANT’ANNA, 1993, p. 107). Fazem parte desse ciclo O telescópio (1951), A moratória (1954), Pedreira das almas (1957), Vereda da salvação (1957-1963), A escada (1960), Os ossos do barão (1960), Senhora na boca do lixo (1963), Rastro atrás (1966), As confrarias (1969) e O sumidouro (1969). No livro Marta, a árvore e o relógio, a sequência das peças não observa a cronologia da composição, mas a dos acontecimentos históricos retratados. O ciclo de Marta representa uma trama de conflitos entre personagens, épocas, gerações, ideologias e cosmovisões (GUIDARINI, 1992, p. 13). Nas dez peças do ciclo de Marta, há uma contraposição entre, de um lado, práticas típicas vinculadas à aceitação, à realidade, ao dever, à necessidade e ao status quo, e, de outro, práticas atípicas vinculadas à rejeição, ao desejo, ao prazer, à utopia, à liberdade (GUIDARINI, 1992, p. 33). Poderíamos atribuir o título de “Em busca do pai perdido” a todo o ciclo de Marta, que é “uma dolorosa autoanálise em que Jorge se investiga e pesquisa as suas origens” (MAGALDI, apud ANDRADE, 1978, p. 9).
Antecedentes O texto de As confrarias gira em volta do conflito discursivo entre a protagonista Marta e os membros de quatro confrarias mineiras aos quais ela pede o sepultamento do filho.
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Na peça há dois planos narrativos se entrecruzando. O primeiro plano começa com a morte de José, cujo cadáver é arrastado pela companheira e pela mãe, as quais pedem sepultura para ele ao mesmo tempo em que acendem o espírito de revolta contra a opressão da monarquia portuguesa e da igreja mineira. O segundo plano enfoca Marta, a sua união com Sebastião, seu filho José, até a morte violenta deste. Marta é ao mesmo tempo personagem do tempo presente e narradora do tempo passado. Todas as vezes que cumpre incursões narrativas no passado, a protagonista visa a provocar no presente uma reação de aceitação ou recusa entre os membros das confrarias. O passado é manipulado no presente para gerar conflitos e efetivar mudanças das quais deverá brotar um novo futuro. Para quem queira reconstruir a ordem cronológica dos fatos é necessário juntar os episódios narrados por Marta: o tempo passado no convento; sua união com Sebastião; o anseio de José para correr mundo; a morte do marido e, depois, a do filho; sua iniciativa de invocar uma sepultura digna para o corpo de José, que, no desfecho, ocorrerá fora dos cemitérios, no esplêndido templo da natureza. Na Capitania das Minas do século XVIII, no auge da extração aurífera, uma moça pobre e órfã, Marta, é levada a um convento de franciscanas para ser freira. Ali permanece por dez anos sem mostrar vocação para a vida religiosa. Um dia Sebastião aparece no convento para levar sua irmã que quer ser freira. Marta e Sebastião se conhecem, se prometem em casamento e, dois meses depois, este volta ao convento para levá-la embora. Sebastião é filho de faiscador, mas se dedica à agricultura. Os dois têm um filho, José, que, porém, não possui a mesma dedicação dos pais para a vida rural. O pai o deixa livre e espera que encontre seu caminho na vida. A mãe, porém, quer que o filho se conforme com a realidade em que vive. Nesse sentido Marta encarna os valores conservadores de fixação à terra. Mas o que José sente é mais forte que a ligação com seus pais e mesmo com a terra em que vive. José quer descobrir o mundo que existe para além do campo. Assim, um dia vai-se embora ao encontro do seu destino. Na cidade começa a trabalhar nos carregamentos das naus que transportam os quintos de ouro para Portugal. Descobre então as injustiças do mundo e o sofrimento dos oprimidos. Depois, descobre-se ator e monta uma companhia teatral itinerante que leva sua arte em toda a colônia. Enquanto isso, após a partida do filho, Sebastião é ameaçado
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de perder seu sítio em virtude do ouro que ali é descoberto. A porção de ouro à qual teria direito como dono da terra não bastaria para pagar os impostos devidos à coroa portuguesa. Esperar pelo esgotamento do veio aurífero também não adianta pelo caráter devastador da exploração mineira. Ir-se embora para outro sítio, conforme a sugestão de Marta, é uma hipótese por ele orgulhosamente recusada a priori. Seu desespero transforma-se em fúria violenta, e Sebastião começa a perseguir, durante a noite, os mineradores, estrangulando-os e cortando suas mãos. Após ter sido desmascarado, Sebastião é enforcado na mesma árvore sob a qual enterrava as mãos de suas vítimas. Antes de morrer, Sebastião pede a Marta que não o sepulte para que seus ossos fiquem espalhados naquela terra que fora o seu templo. Pede também para que Marta procure José e faça com que o filho continue a missão do pai. Marta sai em busca do filho e o encontra trabalhando como ator, unido a uma preta-mina, chamada Quitéria. Após a encenação da peça Catão de Almeida Garret (anacronismo por licença poética: no século XVIII a peça ainda não existia sendo uma produção pré-romântica de 1822), Marta vale-se do fervor da personagem de Marco Bruto, filho rebelde de César, para insuflar no filho a revolta. As três personagens mais importantes da peça, Sebastião, Marta e José, passam ao longo da história por transformações radicais. Sebastião é inicialmente um homem pacífico, imbuído de um naturalismo religioso, com uma postura existencial clássica, alheia a qualquer tipo de complexidade e contraditoriedade moderna. A esse propósito Bakhtin (2010, p. 423) atesta que tal tipo de homem é inteiramente perfeito e terminado. Ele é concluído num alto nível heroico, [...] ele está todo ali, do começo ao fim, ele coincide consigo próprio e é igual a si mesmo. [...] ele é completamente exteriorizado. Entre a sua verdadeira essência e o seu aspecto exterior não há a menor discrepância. [...] à parte este destino definido e esta situação precisa, não resta nada dele.
Falando de Sebastião, Marta dirá: “Pois gosto é de gente como seu pai: pensa na terra, na semente e na chuva. Gosta de pão na mesa e de lençóis limpos. Se me deseja, me abraça. Se não, vira-se para o canto e dorme. Pronto! Não entendo quem só sabe falar” (ANDRADE, 1986, p. 31). No momento em que seu espaço passa a ser ameaçado, sente sobre si todo o peso da opressão que a igreja e a coroa exercem sobre a
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colônia e abraça uma luta que era já de muitos nas Minas, na Bahia, em Pernambuco e no Rio de Janeiro, e que dará vida aos movimentos de inconfidência. Marta é a mulher da terra, da estabilidade, do trabalho manual silencioso, humilde e cotidiano. Se Sebastião é da cor da terra, Marta é da cor do trigo e do linho (ANDRADE, 1986, p. 34). Para Marta, o mundo começa e termina na roça onde vive com o marido e o filho. Perante a ameaça da mineração, ainda tenta salvar esse mundo, pedindo ao marido que a leve embora para um lugar onde juntos possam recomeçar (ANDRADE, 1986, p. 41). Mas o marido faz outra escolha e opta pela revolta violenta. Fielmente Marta o segue. E a mudança em Sebastião provoca uma mudança em Marta, transformando-a numa revolucionária. Após a morte do companheiro, assim Marta fala ao filho: MARTA: [...] Busquei você por toda a parte, ouvindo, olhando à minha volta. As cidades, os campos que percorri, foram plantando indignação e revolta em mim. Vi coisas que não pensei existir entre os homens... e compreendi que vivera trancada no sítio, mais do que no convento. E você? Veio para conquistar a cidade, abrir as portas e ver como as pessoas vivem, e não saiu do palco, ou de você mesmo. Sua indignação termina com os papéis que representa. Que importa saber de quem descende, se não enxerga nem os que vivem à sua volta? (ANDRADE, 1986, p. 51)
José é um homem diferente em relação ao meio em que vive. Quer correr mundo, abrir as casas, ver como as pessoas vivem, descobrir a própria identidade. Sua mãe o culpa de ter-se fechado num palco, ele que queria abarcar o mundo inteiro. Aparentemente sem limites, de fato prisioneiro dos papéis que representa. José indignase com as injustiças, mas só na ficção teatral. Pelo resto está totalmente entorpecido entre as pernas de Quitéria. Graças à insistência da mãe, José desperta (ANDRADE, 1986, p. 52) e sente a responsabilidade do legado paterno, em virtude do qual sacrificará a própria vida, enfrentando a morte que o destino lhe reserva pela mão de um beleguim. O processo de conscientização de José acarreta uma contraposição dilacerante entre o prazer atordoante que experimenta na cama com Quitéria e o compromisso que assume para com a humanidade, lutando contra a injustiça, e para com a colônia, lutando pela liberdade (ANDRADE, 1986, p. 55).
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José está encenando uma peça em que tenta convencer o povo a reagir às injustiças e lutar pelos próprios direitos, mas começa a misturar a realidade com os inúmeros papéis que já representara. Seu discurso se torna difícil, o povo não o compreende, e um dos beleguins ali presentes atira e o mata. A partir desse momento, começa a primeira cena da peça em questão.
Desconstrução e descentralização do espaço discursivo convencional Uma forma de poder e de saber desenvolvida no Ocidente tem a confissão como um dos rituais mais importantes para a produção da verdade. As confrarias pode ser lida como uma extensa confissão de Marta aos dirigentes das quatro confrarias por ela visitadas. Esses são detentores de um poder que lhes permite vasculhar a vida de Marta à procura de uma suposta impiedade que permite recusar o sepultamento do filho (ANDRADE, 1986, p. 29). Em todo ritual confessional quem escuta detém o poder de interpretar, decidir e avaliar quem fala. Marta consegue subverter essa relação de sujeição. Partindo de uma posição submissa, a mãe de José põe em discurso a própria diversidade, suas escolhas e opiniões, sua opção de manter insepulto o cadáver do filho para provocar uma transformação no domínio injusto das confrarias mineiras. A luta de Marta não é apenas para subverter o status quo. Primeiramente ela precisa apropriar-se do discurso em si e por si, desprendendo-se dos rótulos de impiedade, heresia e loucura (ANDRADE, 1986, p. 32; 43; 57; 63; 67). Temos assim um enfrentamento de sujeitos: Marta versus os membros das confrarias. Vemos aí um objeto de disputa: o sepultamento de José dentro do espaço sagrado. Há algumas circunstâncias históricas pontuais: a inconfidência mineira, a exploração colonial portuguesa, a propaganda iluminista. Nesse cenário operam precisas interdições (FOUCAULT, 2001): atores, suicidas e infiéis não podem ter sepultura sagrada; mouros, judeus, carijós, negros, cabras e outras infectas nações não podem fazer parte da confraria do Carmo; brancos e pardos não podem integrar a confraria do Rosário; brancos e negros não podem entrar na confraria de São José. Há também ritualizações específicas (FOUCAULT, 2001): para ser sepultado numa confraria, deve-
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se pertencer a ela; a fim de fazer parte de uma confraria, é necessário passar por uma atenta sindicância que averigue certas condições de admissibilidade. A presença de Marta resulta incômoda até em ambientes mais receptivos aos novos sopros liberais, comprovando que, mesmo entre os que se batem contra a opressão portuguesa na colônia, vigem modelos ideológicos metropolitanos. Para desmascarar e derrubar tais modelos é que Marta entra em cena e confessa sua vida. E ao confessar subverte os papéis convencionais da confissão, instaurando outra relação de poder. Normalmente a confissão provoca uma modificação em quem se confessa. Aqui a mudança promovida ocorre em quem escuta. Marta penetra na malha ritualística da confissão e se apropria da palavra transformadora. Isso só é possível em virtude do princípio foucaultiano da onipresença e dispersão do poder, do “poder sem rei” (FOUCAULT, 1988, p. 87). O poder não é concentrado, institucionalizado e unívoco, mas disseminado, informal, polivalente, descontínuo, material e aleatório. A combinação da confissão com o exame dos sinais emitidos pelo sujeito – procedimento adotado para legitimar cientificamente o ritual da confissão em âmbitos como o médico e o judiciário – emerge na peça todas as vezes em que os líderes das confrarias, ao ouvir o relato da protagonista, mostram-se atentos à sua maneira de ser (ANDRADE, 1986, p. 28; 30; 42; 43; 47; 62). A exigência de uma interpretação surge a partir da consideração de que a verdade não está pronta no sujeito que a confessa. Em virtude dessa lógica da suspeita, a verdade encontra-se em quem fala, porém de uma forma incompleta e cega em relação a si própria. Quem ouve e recolhe a fala tem o papel de completá-la e iluminá-la. Acompanhada por Quitéria, que arrasta uma rede com o corpo de José, Marta surge à porta da confraria do Carmo, constituída apenas por irmãos da raça branca e pede que o corpo do filho seja acolhido na Igreja do Carmo. Após revelar não pertencer a nenhuma confraria – detalhe surpreendente na época – é questionada sobre o porquê da escolha da confraria do Carmo. Então alega que, à semelhança de Santa Quitéria (padroeira da igreja do Carmo), que, após o martírio, carregara a própria cabeça decepada, Marta carrega o filho morto. Na confraria do Carmo Marta recita o papel de uma mulher desamparada que não pertence a nenhuma confraria, mas que mesmo assim declara sua fé em Cristo e a disposição a pagar trinta anos de anuais atrasados. Seu
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objetivo imediato na realidade não é o sepultamento do filho, mas o uso da sua morte para a desconstrução do status quo. Em virtude disso, sua estratégia discursiva visa a provocar a oposição e a recusa, a subversão do discurso dominante e a afirmação do discurso da liberdade e da igualdade entre todos os seres humanos. No fim Marta dirá ao filho: “Plantei você dentro deles! Juntaram-se todas as confrarias para trazerem você” (ANDRADE, 1986, p. 68). Marta evoca sua história familiar insinuando o sentimento de revolta contra Portugal. MARTA: (Começando o jogo) Primeiro trabalhou numa nau dos quintos. (Sondando) Nos carregamentos do ouro que nos tiram e nos empobrecem. PROVEDOR: Mais um pouco e teremos que suar ouro! MARTA: (Sorri, acentuando o jogo) O povo está suando há muito tempo. José correu mundo... e acabou descobrindo o que havia dentro das casas: gente suando dízimos... em triste estado: procurando com esperança de encontrar, encontrando com a certeza de não usar. Foi assim que se preparou para o trabalho. (ANDRADE, 1986, p. 34-35)
Enfim Marta abre o jogo e revela a profissão de ator do filho, causando grande alvoroço entre os interlocutores, para os quais o ator é um ímpio, uma face do demônio, mais uma boca de mulato que estropia versos, um bastardo, um sujeito que, no mesmo nível de infiéis e suicidas, representa um sério perigo para os costumes, a fé e as instituições. A recusa do Carmo não admite réplica. Revoltada com a recusa, Marta sai do consistório da igreja do Carmo acusando os carmelitas de defender interesses raciais, sociais, econômicos e políticos que não condizem com a verdadeira religião. A confraria do Rosário já teve notícia da mulher que arrasta o corpo do filho numa rede. A cor de José, mulato para os carmelitas em razão da profissão de ator, transforma-se aqui em cor negra graças ao hábil jogo persuasivo da mãe: “MARTA: (Recomeçando o jogo) Desconfiaram que meu filho tinha sangue de negro” (ANDRADE, 1986, p. 39). O verbo “desconfiaram” insinua a tentativa de Marta de supostamente esconder a ascendência de José. Com extrema sagacidade Marta se insere no grupo dos irmãos negros, com o orgulho de pertencer à raça que edificou o poder da Província e sem cujo trabalho “Deus não poderia ser glorificado” (ANDRADE, 1986, p. 39). A antipatia inicial (“Mulatos e pardos não são negros!”, p. 39) muda-se em boa disposição (“Receberemos o corpo de seu filho”, p. 39). Abre-se uma nova sindicância e
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começa uma nova confissão. O particular de não pertencer a nenhuma confraria, pouco antes omitido a fim de favorecer sua aceitação, agora é revelado para provocar a iminente recusa. Volta o discurso contra a opressão da coroa e da igreja. Lança-se novamente a isca discursiva dos dízimos, do quinto, dos párocos desonestos, da maldade dos ministros civis e eclesiásticos. Os irmãos do Rosário apreciam o discurso de Marta. Mas de repente emerge na fala de Marta um discurso novo: o inimigo é agora a extração aurífera, que para os negros representa a única oportunidade de liberdade e revanche sobre os brancos. Para Marta, porém, o ouro é como lepra e traz uma idêntica maldição (ANDRADE, 1986, p. 40). A fala de Marta avança num crescendo polêmico contra o ouro, a ostentação das procissões e dos cultos religiosos, insulto ao sofrimento dos humildes e demonstração equivocada do amor a Deus. A revelação da profissão de José encerra definitivamente qualquer chance de acordo e permite a Marta uma áspera crítica contra a irmandade do Rosário: “A única diferença entre vocês e o Carmo é a cor da pele. [...] Não fazem nada para acabar com isto. (Aponta) Escravizam também por este ouro! São tão odientos quanto os brancos!” (ANDRADE, 1986, p. 44-45). Na confraria de São José Marta está sendo esperada. Ao entrar, sem muitos rodeios, oferece uma sacola de ouro em pó como pagamento de dízimos e anuais atrasados. A profissão de ator de José já é de domínio público. Marta não desanima. Se a possibilidade de ter sangue negro servira de elo com a confraria do Rosário, a condição de artista proporciona um vínculo com a irmandade dos artistas e dos artesãos. Para José a arte transformara-se em maldição e valera-lhe a suspeita de ser mulato. O jogo discursivo de Marta é primoroso: a pele do filho torna-se ora mais clara ora mais escura segundo o requeira a situação. Mas ainda não chegara a hora de enterrar o filho. Os irmãos esperam que Marta revele o nome de algum inconfidente a fim de obterem benefícios junto ao governador, mas Marta investe duramente contra a confraria, a arte e a religião quando não põem o homem como fim último de seu agir. MARTA: (Ataca) Pode ser muito bonita a vocação espiritual, mas ela não dispensa ninguém de trabalhar. PÁROCO: Trabalho para Deus! MARTA: (Perde o controle) Fazendo da igreja seu celeiro. Deus não tem fome, nem doenças, senhor pároco. Enquanto os homens sofrem lá fora, você reza! PROVEDOR: Tirem esta mulher daqui!
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MARTA: Há séculos que exploram um corpo exposto, confundindo a vida com a morte, espalhando cegueira e medo! (ANDRADE, 1986, p. 56) MARTA: Não quero missas. Nem que fique na igreja. (Olha à sua volta) Ela lembra o Passeio Público. Aqui colocam inscrições santas, imagens, pinturas, talhas de lavor inestimável. Mas, por baixo, nos alicerces e nas paredes, estão os que gemeram nos grilões, os que acabaram seus dias, sem Cristo e sem remédios. (ANDRADE, 1986, p. 56)
Na confraria das Mercês Marta está mais à vontade. Evoca a época em que conseguira unir a arte de José com a luta de Sebastião. Mais tarde, a fim de provocar a reação negativa dos mercedários, não resta a Marta outro recurso a não ser suas provocações de ordem política. MARTA: Conheço outros infernos por aí. Um deles é esse sofrimento de ser salvo, sem saber do quê! CURA: (Sondando) Não devemos nos esquecer de que a igreja luta por nós. MARTA: Os tiranos também. Mas gastam a força apenas disputando a presa. Às vezes, são tão afáveis, amorosos... enquanto não começam a impor preceitos. (ANDRADE, 1986, p. 64)
O discurso político de Marta provoca nos irmãos das Mercês a mesma reação de conservadorismo das outras confrarias. Por baixo de uma fina camada de liberalismo emerge o mesmo espírito retrógrado e acanhado. O jogo encaminha-se para o seu desfecho. O objetivo está alcançado. Todo o mundo foi desmascarado. As confrarias se juntam para sepultar o filho de Marta, a qual acredita ter plantado José em todos eles, levando a termo sua missão. José é sepultado fora da cidade, mas o que mais importa é que ele tenha sido “sepultado” na consciência dos homens que em nome das leis, do sangue, da religião e de Deus são causa de divisão, injustiça e opressão na história e no mundo. E isto Marta consegue graças ao uso subversivo da palavra e do discurso dos quais se apropria no palco da vida, dirigindo ao filho e a si própria numa peça dentro da peça. Considerações finais Na economia da obra aqui analisada pudemos observar como duas instâncias de poder constituído estão demarcadas na sucessão dos eventos: a igreja mineira em suas vertentes clerical e leiga; o governo em suas dimensões metropolitana e colonial. Em
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contraposição, ergue-se uma instância de contrapoder: a protagonista Marta, que graças a uma refinada estratégia discursiva gradualmente logra um poder de fato que lhe permite agir eficazmente na história e descortinar uma transformação no rígido mundo das confrarias. Em meio a relações conflitivas entre povos, raças, classes sociais e grupos religiosos, contrapõem-se na camada mais profunda da obra, de um lado, o discurso conservador, de outro, o discurso liberal. A literariedade da obra, com sua carga de plurissignificatividade, permite a abertura do texto e do substrato histórico em que se alicerça a construção do drama a significados sempre novos, de modo a possibilitar “outras” leituras, no Brasil da década de 1960 em que o autor confeccionou a peça, e na atual situação brasileira.
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GUIDARINI, Mário. Jorge Andrade na contramão da história. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1992.
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A ESTÉTICA ( E A LITERATURA) CO MO CONHECIMENTO : ENTRE A ARTE E A CIÊNC IA Edison Barian i (Facita/Fasar /IMES) “ O estético é u ma fo rma p rópria de desvend ar a realidade” (H ÖFFE sobre Kant , 2005, p . 300 ). “ Só há ciência do necessário, não há ciência do acidental” (HEG EL, 1985, p. 85) .
O pen sament o oci dent al, quando de sua ânsia pelo conhecimento, lo gro u distanciar-se do jugo divino e da imposição da nature za, tom ou forma com a super ação do m ito por meio da razão, a partir de então, a imagina ção, a fant asia, a int uição, a invenção, a fruição e a particular idade deram lugar central à lógica, ao método, ao conceito, ao universal, ao r igor, à experimentação, à prova, à ver ificação, ao julgam ento epistêmico e à aceitação do s sábios. Desde ent ão até a m odernidade, o conheciment o – tomado com o veículo para a v erdade – torno u-se apanágio da f ilosofia e, apó s, de sua filha dileta e ingrata, a c iênc ia. Já as artes, e a literatura em particular, n esse mundo em processo de desencantamento, tornaram-se um gozo da alma, re gozijo e distração, entret ant o, tal prazer, ainda que algo necessário, sob o julgam ent o da razão, não par ece ser suficiente. O saber contido n a ima ginação artística e literária foi pro gressivamente cedendo espaço ao conhecim ento científico, fun cional, utilitário e esotérico. Coube então à arte, por m eio da estética, justificar- se como produtora de conheciment o, ain da que por m eio de um saber p eculiar. Por m eio das considerações estéticas de Platão, Ari stót eles, Kant , Hegel e Luk ács é possível refletir sobre a arte (e morment e a literatura) com o form a de conheciment o e sua relação com a ciên cia. Se Sócrates é o prop ugn ador do rigor do conceito, do escrutínio da ironia e do exercício da dialética, é com Platão que as separaçõe s entre corpo e alma, sensível e ideal, doxa e ep isteme, particular e geral vão fraturar permanentem ent e a uni dade da vida e dos sabere s; também , a definição (e hierar quização) da epi stem e com o terreno do conheciment o, da v erdade, som ent e alcanç ável por meio do un iver sal ( já que não há
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“ciência” do partic ular) r elegará o s o utros saberes a um terreno inf erior do conheciment o, à proscrição ou mesmo à irra cionali dade. Na o bra platônica, o conheciment o é contem plação das formas p uras, ideais, todavia, a poesia está indeleve lmente marcada pela maldição da m ím esis. 1 A poesia (épica) e sua mímesis estão separ adas por três níveis da realidade da ideia: a criação natural (por Deus), a cr iação do o bjeto (artesão) e a criação literária (poética) que, por sua vez, é a reprodução de algo já dado como objeto sen síve l, portanto, distanc iado da forma, da ideia. A poética é a reprodução artística da imitação da im itação do original, da forma pura, daí, “Engana-se igualment e quem atribui esse conheciment o universal aos poeta s” (PLATÃO, 2011, p. 403), já que “A ideia é um a só, ma s os objetos compreendidos debaixo dela são m uitos” ( ibidem, p. 398), e ao poeta “seria mais adequado chamá-lo imitador daquilo que o s o utros fabricam” (ibi dem , p. 399), pois que imita a criação natur al, já dada como aparência e não com o ideia, como conceito. O poeta, assim, dev eria contentar-se em repro duzir a aparência da aparência, r ecolher-se à sua condição m enor, de r eprodutor da ap arência, po is “Quem pudesse fazer a coisa imitada não se cont entaria em fazer a aparên cia” (ibidem, p. 403). Também, dev eria conter-se em suas imitaçõe s, uma vez que “Quem supõe que seja po ssíve l conhecer todas as coisas ignora a própria natur eza do conhecimento” (ibidem, 402), visto que para Platão, em A República, as realizaçõe s devem estar ligadas à s voc ações n aturais, aos talent os dos hom ens conforme as ordens sociais e sua utilidade na man utenção do ideal da pólis. A mímesis e o poeta, para Ar istóteles, j á desfr utam de outro estatuto. A imitação já está ligada à própria forma de tom ar cont ato e conhecer o mundo, bem com o ao prazer de repro duzir o mundo conforme suas possibilidades. “Ao que parece, duas causas, e am bas nat urais, geraram a poesia. O imitar é congên ito no hom em (e nisso difere s dos o utros viv entes, pois, de todos, é ele o m ais imitador e, por imitação, apren de a s pr imeiras noções) e o s hom ens se comprazem no imitado ” (A RI STÓTELES, 1
A d espeito dos problemas em traduzir -se “mí mesis”, usamos aqui o t ermo j á usual “imitação”, para uma detida considera ção sobre o conceito, ver Lima (1995, 2000 , 2003 ).
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1979c, p. 243). Im itar é, assim, algo in erent e ao homem , m eio que encontra para represent ar a natureza das coisas, apreendê-las, pois que a aparência das coisas, capt ada pela exp eriên cia, é o primeiro cont ato com a “matéria” do conheciment o. Embora seja por m eio da razão e do intelecto que o conhecimento se efetive, a experiênc ia, dada ao intelecto, não é falha, erro, ilusão apenas, é já, prim ariamente, in dício, m atéria bruta oferecida para se che gar ao conhecimento verdadeiro. Na o bra de Kant, a estética ganha autonomia e um estatuto próprio. Tratada, sobretudo, n a Crítica do Juí zo, a estética (e o modo de apre ender o belo e a arte) está contemplada na faculda de de julgar e supõe uma “uni dade da imagina ção com o entendim ento” (K ANT, 2009, p. 35), assim, o juízo do go sto não é conceitual, m as pode ser subm etido às f aculdades de conheciment o (ibidem, p. 36). “Portanto, o juízo do go sto não é um juízo de conhecimento, um juízo lógico, mas sim estético, ou seja, um juízo cujo m otivo determinante só pode ser subjetivo” (ibidem, p. 47), configurando-se como um juízo reflexion ant e. Segun do Kant (2009, p. 51), considerar “o objeto como objeto de prazer não é um conheciment o do objeto”, o juízo do gosto – que deve e star separ ado do int eresse – “tem de im plicar uma pretensão de ter validade para todos, em bora n ão uma universalidade baseada em objetos, quer dizer : que necessita ter associ ada a ele uma pretensa univer salidade subjetiva” (ibidem , 56). Em bor a tal un iver salidade seja algo subjetivo, é também algo ext ensivo e possível de ser com partilha do por todos, uma vez que está ligada ao bom senso, que é distribuído equanimente na h umanidade. Não sendo o juízo do gosto algo f undando em conceitos e determinações, não há, portanto, ciên cia do go sto o u estética científica em term os normativos, po is “Não pode hav er nenh um a re gra de gosto o bjetiva que determ ine por conceitos o que seja belo, visto que to do juízo dessa fonte é estética, i sto é, que seu m otivo determinante é o sentiment o do sujeito e não um conceito do objeto” (KANT, 2009, p. 76). O estético como anál ise e apreciação do belo tam bém está relacionado a um finalismo na sua pro dução com o objeto, está ligado a um a causa final e não a uma causa ef iciente, uma vez que o juízo tem como base a explicação por meio do propó sito que está em sua criação e do objetivo pretendido (KANT, 2009, p. 208), e n ão a relação universal e n ecessária de pro dução de um fenômeno por meio de o utro. 3
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Com Hegel (1985, p. 79) a estética rom pe completam ent e com a ideia de m ímesis com o imitação, despreza a fonte da m atéria oferecida à criação artística e rompe com qualquer possibilidade de identificar o belo e o nat ural. “Tudo quanto provém do espírito é sup erior ao que existe na nature za. A p ior da ideias que perp asse pelo esp írito de um homem é m elhor e mais eleva da do que a m ais gran dio sa produção da natur eza – justament e porque essa ideia participa do espírito, porque o espiritual é superior ao n atural”. O belo não está ligado à criação n atura l, à im itação da natur eza, pelo cont rário, “O que nos apraz é, portanto, a imitação do h um ano pela n ature za” (ibidem, p. 98). O poder particular da arte consiste assim em “Evocar em nós todos os sentiment os possívei s, penetrar a no ssa alma de todos os cont eúdo s vitais, re alizar to dos estes moment os interiores por meio de um a re alida de exterior que da real idade só tem a aparência” ( HEGEL, 1985, p.100). Tem-se então que: “1º As obras de arte não são produtos nat urais, m as produtos h umano s”; “2º As obras de arte são cr iadas para o homem e, em bora re corram ao mundo insensível, dir igem -se à sensibilidade do homem , de um m odo próprio, a arte confina com o mundo sen sív el, m as é difícil traçar o limite entre ambos”; “3º A obra de arte tem um fim particular que lhe é im anente” (i bidem , p. 108). A arte tem assim uma exi gência racional: “o homem, enquant o consciência, exterioriza-se, desdo bra- se, oferece-se à contemplação própria e a lhei a. O a utor da o bra de arte procura exprim ir a consciênc ia que de si possui” (HEGEL, 1985, p. 112). Embora seja po ssível uma racionalização do entendimento do processo de pro dução e de fr uição, tal r azão não é atributo individual e não é possív el uma instrum ent alização técnica da pro dução artística, eis que seria absurdo cr iar re gra s p ara a pro dução da arte, já que esta é baseada n a “inspiraç ão”, n a intervenção do “inconscient e” (ibidem , p. 2
109). Ent retanto, a subjetividade cont ida na arte não é ap ena s idio ssincr ática: “A o bra de arte, com o a religião, deve levar-nos ao esquecimento do particular enquant o o exam inam os; se examinarm os o partic ular à luz do sent imento consideraremos não a 2
Heg el (1985, p. 109) preza a art e co mo expr essão do espírito e d eplora os artifi cialismos ao ponto de afir mar: “ é preciso que a atividade artística seja inconscient e para se r efi caz e verdad eiramente criadora, aparecendo a interv enção da consciên cia como um ele mento que só p erturba a atividad e artística, que só prejudica a perfeição das obr as”.
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própria coisa, m as nós m esm os e as no ssas subjetivas partic ularidades. Quan do a atenção se concentra n as partic ularidades do sujeito, o conse quente ex ame da obra de arte é um a oc up ação fastidio sa e desagradável” (ibidem, 1985, p. 13). Também para Lukács (1978, p. 2) a particularidade é extremam ent e relevante para pen sar a arte, sen do considerada a “categoria cent ral da estética”. Mas não é a particularidade em si que fundamenta a art e como objeto estético, m as a dialética entre sin gular, particular e univ ersal. “A aproximação dialética no conhecimento da sin gularidade não pode ocorrer separ adamente das suas múltiplas relações com a particularidade e com a univer salidade”, pois “Estas já estão, em si, contidas no dado imediatamente sensível de cada sin gular, e a realidade e a essência deste só pode ser exatament e com preendida quando estas mediações (as r elativas particularidades e universalidades) ocultas na im ediaticidade são postas à luz” (ibidem, 1978, p. 106, grifo s do autor). Devem ser consideradas as me diações ent re o sin gular inexprimível, a significação ímpar da particularidade e o universal expresso por meio do conceito, evitando o solip sismo e a banalização da expressão. “Deste m odo, a particular idade como categoria espe cífica da estética ganha uma nova concretização. Na realidade, a evocativi dade se expressa da seguinte m aneira : a un idade or gân ica in divisível do sin gular e do un iver sal, sua super ação (ou melhor, sua f usão) na nova síntese, na qual eles já n ão podem m ais ser desco bertos: está sínt ese é precisam ente a particularida de” (LUKÁCS, 1978, p. 278). Cabe à particularidade a m ediação dialética por m eio da univer salização do sin gular, bem como da não dissolução do singular no univ ersal. “A particular idade como categor ia cent ral da e stética, por um lado, determina um a univ ersalização da p ura sin gularidade imediata aos fenômenos da vi da, mas, por outro, supera em si toda universalidade; uma univer salidade não superada, que transcen desse a p articularidade, destruiria a unidade artística da obra” (L UKÁCS, 1978, p. 189). O equívo co da subjetivação da arte seria o solip sismo, configurado como tendência am plament e difundida na “ideolo gia bur guesa decadent e”, sen do “ a tendência a identificar inteiramente a subjetividade – e, sobretudo a artística – com a particularidade m ais imediata de cada sujeito” (LUKÁCS, 1978, p. 193). Assim, não é a 5
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sin gularidade e a idiossincrasia que confere originalidade, autenticidade e proprie dade estética à arte. “Em tal caso, com o supõ em muitas teorias decadent es da arte, a pura expressão da subjetividade imediata e a criação artístic a seriam a mesm a coisa; sur giria na obr a de arte um m un do solip sístico, imediato em seu conteúdo essencial, o bscur ecido por pressentiment os, associaçõ es e introspe cçõe s” ( ibidem , p. 196). Já Galvano Della Volpe critica a posição de L ukács que, segundo ele, enten de a arte de m odo “idealista” como intuição sen síve l, mas desconsidera que, quan do Lukács se ref ere à “intuição sensível ” e à não totalidade da vida ele está afirm an do que o sujeito que produz a arte está construindo um conheciment o a partir de si, de sua condição (social) com o sin gularidade e as m ediaçõe s e contradições com a particularidade e a tot alidade não formam uma totalida de conceitual, do tipo da ciência, m as uma “totalidade” presum ida a partir da particularidade, da visão parcial e localizada. Ainda, Lukác s perce be, o que escapa a Della Volpe, que a vi da ( in dividual) não é passív el de compreensão racional e exp licação científica e, tam bém , não pode ser er igida como sin gularidade – sem as m ediaçõe s dialéticas, sem ser elevada ao particular e ao universal estético – em repre sent ação artística de m odo im ediato. Não o bstante, Della Volpe aponta para um problema epistem oló gico que rebate na estética lukácsiana: o reflexo estét ico (e também o científico) afetam o sujeito indivi dual, todavia, tant o a arte quanto a ciên cia enunciam um conh ecimento que tem como sujeito o gr upo social, a classe, cuja atuação está ont oló gica e socialm ente orient ada para a apr een são desse saber que, conform e a posição da classe, pode ser efetivo (cient ífico, arte autêntica) ou ideo ló gico. I sto posto, percebe- se que há uma lacuna entre a apreensão dos fenôm enos pe lo in div íduo por meio do reflexo da r ealidade objetiva e a con strução efetiva da arte e da ciência que, no limite, tem como sujeito social a classe, o u seja, estão ocultas as mediações entre o indiv íduo como produtor e a classe como referên cia, quadro teórico que em oldura a percepç ão do reflexo da estr utura objetiva da re alidade. Arte e ciência, a despeito de se debr uçarem so bre um mesmo mundo com o coisa em si e serem afeta das pelo s fenôm eno s que dele em anam, ainda assim , or gani zam tal percepção por m eios distint os e con duzem a reflexão conforme diferent es instr umentos e objetivos que, deste modo, devem ser anal isados e avaliado s conform e diferentes 6
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instrumentos crítico s, o que não im pede a aplicação de um arsenal teórico com um para abor dagem dos distintos conhecim entos que am bas forne cem . Não há h ierarquia entre arte e ciência, nem com plement aridade, n em disputa, nem polarização entre el as, uma vez que, a partir deste mesmo m undo, a ciência se oc upa da po ssível organização racional das coi sas e da existência social, enquanto a arte se ocupa da vida como imponderável, da ri queza e multiplicidade da existência h umana.
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A FICÇÃO AUTOBIOGRÁFICA COMO SENTIDO DA VIDA DIANTE DO TEMPO-PARA-A-MORTE Edson Ribeiro da Silva (UNIANDRADE) A ficção autobiográfica como possibilidade de significância existencial ou estética As possibilidades de uma ficção autobiográfica estendem-se para muito além da natureza complexa desse conceito. Ser ficção implica em fingimento; ser autobiográfica indica estar ancorada em fatos da experiência pessoal. Novamente, está-se diante dos estreitos limites que separam a ficção do acontecimento real. Paul Ricoeur ocupa-se, em Tempo e narrativa, a explicitar os modos pelos quais as narrativas tentam explicitar a perplexidade humana diante do tempo. A narrativa empreende “jogos com o tempo” (RICOEUR, 2010, p. 103), modos de compor a obra que acabam resultando em elaboração estética. A essa elaboração, Ricoeur chamou “configuração”, momento que corresponde à produção da obra narrativa. Por ser um esforço de configuração do passado, a ficção autobiográfica olha para o tempo. Não apenas como memória. Não se trata apenas de retomar o passado como uma história para ser contada. Buscam-se tanto modos de compreensão do tempo como possibilidades de representação. O esforço dá origem às inúmeras possibilidades que a narrativa literária exibe. A ficção autobiográfica assume essa preocupação, quer entender o sujeito inserido na temporalidade. O tempo é objeto de toda narrativa literária. Esta resultaria do esforço humano para entendê-lo. Dessa forma, a atenção dada a este não poderia ser reduzido a uma característica eventual. O tempo sempre foi objeto, mas o sujeito também pode ocupar essa condição, quando olha para si. Firma-se estreita ligação do objeto com o sujeito que com ele se preocupa. As análises de Proust empreendidas por Ricoeur atentam para essa possibilidade de a preocupação com o tempo, como objeto, explicarem o sujeito, sobretudo porque a memória torna-se o objeto a ser entendido e configurado pela narrativa. Ou seja, a ficção autobiográfica possui essa condição: o sujeito inserido no tempo configura-se a si mesmo na obra, observa-se, desvela-se como objeto da narrativa, algo que o torna indissociável da compreensão das especificidades do tempo. Ricoeur sabe que o tempo não se reduz a um fenômeno imediatamente compreendido a partir de seu conceito. Por isso, retoma Santo Agostinho e sua
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inquietação diante da inexplicabilidade do tempo. Este existe apenas para a consciência, que o apreende como uma mudança incessante. Ela apreende só o passado, mas se localiza no presente, que não consegue perceber. Inserida no presente, a consciência percebe o tempo como uma linha que se distende, a distentio animi, em relação ao passado, guardado como memória, mas também como uma linha que se supõe à frente, como intentio, ou seja, a expectativa pelo futuro, como algo que, quando ocorre, só pode ser percebido como já passado. A consciência perceberia apenas esse tempo não existente, crê no futuro, que se escoa e torna-se passado. À frente dela, o linha do tempo diminui; atrás, aumenta. A filosofia atentou para esses três momentos da temporalidade, mas muitas vezes os enxergou com os olhos do senso comum. Ideias vindas da linha aristotélica, que conteria passado, presente e futuro, um tempo cronometrável, mas que a filosofia, aos poucos, assumiu como não correspondendo ao tempo real. Ricoeur considera Heidegger um filósofo que conseguiu aglutinar em sua exposição acerca da temporalidade os conceitos a ela ligados, sejam do senso comum ou da filosofia. Heidegger (2012, p. 516-524) teria explicado os motivos que colocam a consciência como atrelada ao “conceito vulgar de tempo”, ideia deste como sucessão de eventos. Para ele, a atenção para aquilo que constitui o presente e suas preocupações, que ele define como “Cuidado”, coloca os sujeitos diante da impossibilidade de atentar para o tempo real. Tal impossibilidade é responsável pela inautenticidade, condição da existência sem sentido nem consciência de si. Romper com o tempo vulgar constitui, para o filósofo alemão, condição para a tomada de consciência de si, como ser que se insere numa temporalidade. Atentar para o tempo é perceber que a destinação de toda existência é a morte. Todo ser caminha para seu fim, é um “ser-para-a-morte”, e tem no intervalo entre o presente e a morte o tempo que lhe resta. É nele que o ser vai construir a sua significância, dar sentido a essa inserção no tempo. Assim, o “tempo-para-amorte” ganha a condição de único de que se dispõe, e não mais o presente. Mas Ricoeur leva adiante a preocupação de Heidegger com o “tempo-para-amorte”, pois este também é condição para que a narrativa literária se construa, como forma de se explicar o tempo. Evidentemente, como forma de o ser, enquanto sujeitoenunciador, dar sentido àquele, através das tentativas de apreendê-lo e de representá-lo. Ricoeur dedica longos trechos de Tempo e narrativa a Marcel Proust. A atenção do filósofo recai sobre o último capítulo de Em busca do tempo perdido, contido em O
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tempo redescoberto, o volume final, onde Proust (1988, p. 288) expõe os modos pelos quais o tempo que se perde pode ainda ser retido: “Aceitamos a perspectiva de já não existirmos dentro de dez anos, e nossos livros dentro de cem”. O autor pode ser visto como ilustração dessa condição do ser que se coloca diante da morte e sente a necessidade imperiosa de retê-lo, de fugir ao fluxo incessante que leva, inevitavelmente, à morte. Esse intervalo até a morte também é caracterizado pela constatação de que o presente é sempre um tempo perdido. Ele deteriora a beleza das coisas inseridas nesse fluir. Reter a passagem incessante e construir a beleza como algo perene é atribuição da arte. Construir uma obra-de-arte é condição para escapar dessa necessidade gerada pelo tempo. Se Proust chegou à conclusão de que o “tempo-para-a-morte” é o intervalo em que o ser pode construir uma obra literária e confirmar a possibilidade da beleza perene, a voz que enuncia a descoberta, na narrativa de Em busca do tempo perdido, é a de um narrador que assume a condição do fingimento ficcional. Uma voz que narra, em primeira pessoa, o percurso seguido por esse personagem-narrador, entre uma noite na infância, em que o tempo atormenta aquele que espera, e uma festa em que as pessoas aparecem descaracterizadas, afetadas pelo envelhecimento. Entre um momento e outro, tudo se perdeu no tempo. Os homens são seres-para-a-morte, mas a narrativa literária pode ser perene. Pode, além disso, construir os sentidos da experiência. Assim, a memória é o próprio ser que se perde. Explicar o ser, como objeto, é possibilidade de estabelecer seu sentido. O que pode explicar as razões de uma existência, senão a reflexão empreendida pela obra literária? A obra pode perenizar esse ser; o sentido da existência, aqui, não é algo que se perde com a morte. Se ele pode permanecer, a narrativa literária ganha essa condição de possibilidade de construção do sentido para a vida, diante de um tempo que existe apenas como intenção ou expectativa. Blanchot (2011, p. 97) considera essa condição como a do “poder morrer”, momento em que a obra está realizada pelo escritor e ele enxerga nela o sentido de uma vida toda. A ficção autobiográfica como configuração: contar e mostrar Sendo narrativa literária, a ficção autobiográfica assume a configuração como a etapa da mimetização em que o real ganha a condição de arte. Ou seja, a narrativa literária não está interessada em apenas contar os fatos, a passagem de um tempo da condição de intenção para a de distensão. A oposição entre contar, ou seja, narrar, em seu modo mais básico, e mostrar, como forma de mimetizar através da configuração da
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obra o tempo, está na base para as grandes experimentações que a literatura empreendeu, sobretudo a partir da modernidade. A diferença entre contar e mostrar se evidencia a partir do estudo feito por Percy Lubbock, em A retórica da ficção. Para Lubbock (1976), a atitude de mostrar era parte de um esforço para fazer da própria configuração da voz do narrador um elemento de poderoso valor estético. O narrador deixa de ser a voz do autor e exige que o leitor atente para os modos como uma voz ficcional configura seu enunciado. Mostrar, da mesma forma, não se limita à voz. Através do esforço para mostrar, a narrativa literária busca formas de representar o tempo. E este não é mais, para o narrador moderno, apenas o tempo vulgar ou o tempo histórico, convenções que davam origem à narrativa que só contava. Há mais possibilidades de a narrativa se complexificar, de ganhar em configuração e fazer desta a condição de sua significância. A ficção autobiográfica assimila, de um modo bastante profícuo, a intenção de mostrar. Afinal, a atitude de contar, de narrar de um modo mais tradicional, limita as possibilidades de ficcionalização, do fingimento como ato que transforma a narrativa de fatos ancorados na memória em criações do imaginário. Mostrar, portanto, libera o narrador moderno de uma focalização da voz que narra em relação ao tempo e ao espaço. A ideia de narradores que se inspiram em fatos de seu passado não é recente. Há traços de autorreferência em narradores de todas as épocas, mas o fenômeno se intensifica com a consolidação do romance. Identificar traços autobiográficos em narradores que contam é quase um esforço pela depreensão de sentidos ocultos. A configuração da narrativa de ficção autobiográfica atenta para elementos diversos. Não se refere apenas à voz que narra. Mas esta é, sem dúvida, um dos materiais de trabalho mais rentáveis para o narrador. A voz contém a narrativa, a corporifica. É ela que possibilita que algo seja contado ou mostrado. Da mesma forma, a voz mostra o tempo, como algo contado como memória, ou mostrado enquanto se produz o narrado. O narrador que conta costuma optar por uma voz adulta, que olha para o tempo distendido atrás de si, como passado, já na condição de quem pode refletir sobre ele. O narrador proustiano é o paradigma dessa voz adulta, marcada por características de um discurso mais maduro. Aqui, é preciso que se retomem dois conceitos básicos de Weinrich (1968): a história é a narração dos fatos, enquanto o comentário é a emissão de opiniões, juízos que quase sempre avaliam o que foi contado. A predominância da história nos narradores mais objetivos é uma convenção que
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também serve para assinalar que uma narrativa possui pouco teor autobiográfico ou o esconde. Na narrativa assumidamente de teor autobiográfico, mesmo ficcional, é comum o comentário como uma das possibilidades para a construção do sentido da experiência pessoal narrada. Existe a possibilidade de a ficção autobiográfica contar, atentando para a importância daquilo que se conta, como sentido dentro do passado do autor. Narra-se como para evidenciar uma causalidade. Na posição oposta, pode-se constatar a opção do autor que mostra a configuração da obra, sem que os fatos narrados possam, de fato, serem vistos como possuidores de conflito que pede solução. Está-se diante de textos que significam pela sua configuração. Novamente, a voz do narrador pode determinar a condição do narrado como reflexão a partir de conflito ou como configuração. Narradores que assumem uma voz adulta ostentam a maturidade de quem pode avaliar a relevância dos fatos narrados. São narradores reflexivos, preocupados com a significância daquilo que narram. Mas existe a condição do narrador que finge, que mimetiza a voz infantil, interessado em mostrar o modo como a criança se posiciona diante dos fatos. Até mesmo narradores que são crianças. Nesses casos, é a própria configuração da obra como voz infantil que deve ser apreendida pelo leitor. A obra quer se desvelar como mimetização de uma voz; o conflito torna-se relativo às possibilidades de a criança compreender o real. Condição típica do fingimento, que mimetiza a voz da criança mesmo quando narra no tempo passado, criando uma condição enunciativa específica da ficção literária. Essa voz infantil também pode narrar no tempo presente, e não identificar os meios pelos quais ela se corporifica como texto escrito. É uma das possibilidades mais produtivas de jogo ficcional: fingir que se assiste à enunciação de um pensamento, de uma consciência, ou apenas ao desenrolar dramático de uma cena. Munro e Vilela: possibilidades de significâncias através do contar e do mostrar As duas possibilidades descritas acima, no que se refere ao uso da voz em relação ao passado, e que ilustram uma das diferenças mais marcantes entre contar e mostrar, podem ser constatadas em dois autores que fazem de suas experiências passadas o material para a configuração como narrativas literárias. O primeiro caso refere-se à escritora canadense Alice Munro, criadora de contos, alguns calcados na memória. O segundo tem em Luiz Vilela, escritor brasileiro, um autor que serve como ilustração. Ambos são contistas contemporâneos e usam o passado pessoal como lugar
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de onde as suas histórias podem ser extraídas. Representam, sem dúvida, a ação do autor que tem diante de si um tempo-para-a-morte onde a obra deve ser produzida. Escrever pode ser construir um sentido para os fatos narrados, mas também pode atingir uma significância perene através da instauração da beleza. A preocupação com os sentidos daquilo que se extrai da memória faz com que Alice Munro comente. Seus contos entremeiam a narrativa de fatos com a aferição de comentários que os explicitam como portadores de sentido para a escritora-narradora, que no presente os enuncia. Em Luiz Vilela, a memória constitui pretexto para elaborações estéticas que valem como experimentação. O uso da voz, no contista mineiro, constitui um dos fatores que opõem a sua ficção memorialística à de Munro. A autora canadense ilustra a técnica do contar, do narrar em que o enunciadornarrador assume a enunciação. O volume Vida querida faz uso de graus dentro desse desvelamento do narrador como sendo uma voz ficcional ou a da própria autora. As marcas estão dispersas ao longo dos contos. Apenas a narradora em primeira pessoa não basta para confundir o leitor. O conto “Cascalho” o evidencia: Era a minha mãe que insistia em chamar atenção para ela. “Nós morávamos do lado da velha mina perto da estradinha do posto”, ela dizia às pessoas, e ria, porque estava feliz demais por ter largado tudo que tinha a ver com a casa, a rua – o marido –, com a vida que tivera antes. (MUNRO, 2013, p. 93.)
O leitor reconhece, no início de “Cascalho”, que o “eu” que enuncia é personagem ficcional, no sentido de invenção. Pode reconhecê-lo como tal, pois nos contos de natureza autobiográfica existem fatos e descrições recorrentes. Como a descrição do local onde, de fato, a autora-narradora passou a infância: Quando jovem eu morava no fim de uma rua comprida, ou de uma rua que me parecia comprida. Bem longe atrás de mim, quando eu voltava da escola primária para casa, e depois do colegial, ficava a cidade de verdade com sua atividade e suas calçadas e seus postes de luz para quando escurecia. (MUNRO, 2013, p. 297.)
Munro assume a ancoragem na memória ao enfeixar os quatro contos finais de Vida querida em uma parte do livro denominada “Finale”, em que ela assume uma primeira pessoa de contadora de histórias: Os últimos quatro textos deste livro não são exatamente contos. Eles formam uma unidade à parte, que é autobiográfica em espírito, apesar de não o ser inteiramente, às vezes, de fato. Acredito que eles sejam as primeiras e as últimas – e as mais íntimas – coisas que eu tenho a dizer sobre a minha vida. (MUNRO, 2013, p. 255.)
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A condição de não serem “exatamente” contos faz da advertência uma atitude de quem precisa dar-se uma garantia. O leitor precisa lê-los como contos, ao mesmo tempo em que se querem autobiográficos. Mas ainda são ficcionais, pois a autora confessa não serem “inteiramente” memória. A partir desse contrato, a autora permite-se contar, como um “eu” que narra e pode intervir no “tempo da narrativa”, esta como sendo a história contada, tempo das personagens, através da escolha de fatos que não sejam “inteiramente” memória, mas também na narração, esta como momento em que se enuncia o texto, através da recorrência a menções ao momento presente. Há um “agora”, “tempo da narração”, usando-se aqui os termos de Genette (s/d., p. 25-27), que é o presente da enunciação dos textos: Havia muita matança, se agora eu paro para lembrar. (MUNRO, 2013, p. 303.) Agora eu tenho que descrever como se organizava o quarto em que dormíamos eu e a minha irmã. (MUNRO, 2013, p. 273.)
Trata-se de um recurso que aproxima o conto do ensaio. Aproximar o leitor da narração e tanto este quanto a autora se distanciarem da narrativa é técnica que permite a condição da contadora, que detém a moral da história, a qual aparece nos contos na forma do comentário. Na verdade, verdadeiras reflexões sobre os sentidos dos fatos: Havia outras coisas que ele podia ter dito. Ele podia ter me feito mais perguntas sobre minha atitude para com a minha irmã ou as minhas insatisfações com a minha vida em geral. Se isso acontecesse hoje, ele podia ter marcado uma consulta para mim com um psiquiatra. (Acho que era o que eu poderia ter feito por um filho, uma geração e uma classe social à frente.) A questão é que o que ele fez deu certo. Aquilo me recolocou, mas sem zombaria ou alarme, no mundo em que vivíamos. A gente pensa umas coisas que preferia não pensar. Acontece na vida. (MUNRO, 2013, p. 283.)
O trecho acima, extraído do conto “Noite”, parte de um comentário sobre fato: uma conversa com o pai durante uma noite de insônia. A reflexão sobre uma atitude do pai transforma-se em comentário referente a costumes do presente em que se narra. Levar filhos ao psiquiatra, em vez de aconselhá-los. Costume que a autora-narradora atribui a si, no presente, como possibilidade. Mas que a conduz à constatação do valor da atitude do pai, no passado, em relação aos fatos que se seguiriam, em um tempo que ultrapassa o passado da narrativa e chega ao agora da narração. O comentário termina com um juízo de valor a respeito de atitudes que perpassam toda a vida, não apenas a da autora, pois ela se insere em um “a gente” que também inclui o leitor, convidando-a a acatar a sua reflexão sobre a vida. São ações costumeiras da vida, coisas nas quais é
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melhor não pensar. As narrativas autobiográficas de Munro seguem essa dialética entre fato narrado e reflexão, evidenciada através de comentário. É uma forma de assegurar que seu leitor se apropriou do sentido do narrado, seja um fato da memória ou apenas fingimento. O que importa é que a narrativa serviu para o estabelecimento de sentidos para o narrado, como vida, que se especifica no próprio título do volume. Sentidos que transcendem a elaboração estética e ganham ares de confissão. A possibilidade de que tais sentidos remetam à elaboração estética, e que a obra torne-se, por si, a razão para o narrado, é o que se constata nos contos autobiográficos de Luiz Vilela. Em Contos da infância e da adolescência, o contista escreve textos curtos. Eles falam de situações corriqueiras da infância no interior do país, em época que se torna indefinida, pois fatos como ganhar um cachorro, confessar-se a um padre, participar de cerimônias religiosas, fumar escondido, tentar impressionar uma garota, apanhar frutas, e tantos outros, ainda ocorrem, embora muitos assumam a condição de anacrônicos. Fatos ocorridos durante o curso primário, ou contos com nomes como “Meus oito anos” remetem a épocas passadas. Mas o autor não se posiciona como um contador de histórias. Vilela fala de fatos corriqueiros, rituais banais da infância. Não se trata de narrar conflitos de grande densidade axiológica, que demandassem solução. A narrativa de Vilela está mais próxima daquilo que Deleuze chama de “falso problema”, ou seja, “a ilusão que nos arrasta, ou na qual mergulhamos, inseparável de nossa própria condição” (DELEUZE, 2012, p. 15), e que faz com que formulemos problemas a partir de noções enganosas. Partindo das ideias de Bergson, Deleuze considera falsos os problemas que residem, por exemplo, na noção de que haveria uma diferença de grau entre ordem e desordem. A ordem se instauraria sobre uma desordem primordial, e restabelecer aquela seria a solução de um problema. Mas, para ambos os filósofos, a diferença entre ambas reside na natureza dos fatos. Assim, a noção de infelicidade como ausência de prazer seria um desses equívocos que dariam origem aos falsos problemas. Os contos de Vilela colocam situações em que o problema não pode constituir um estado que demande uma solução imprescindível. Há, neles, problemas verdadeiros, mas que são colocados a partir do mostrar, mas não do contar. Os problemas verdadeiros escapam à compreensão ou à percepção do narrador-criança. Para os narradores de tais contos, esses problemas verdadeiros podem se reduzir a ambiguidades. Novamente, é a configuração da voz que define a natureza desses fatos narrados. Podem ser verdadeiros problemas inseridos em
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textos que, de um modo geral, querem ser vistos como elaborações estéticas a partir da memória. Mas podem ser falsos problemas, eventos corriqueiros que não suscitam reflexões em busca de soluções. Nenhum dos doze contos do volume repete, em sua inteireza, o modo como os demais articulam a voz narrativa. Em alguns, existe a figura de um narrador que olha para o passado. Tais narrativas estão mais próximas do contar. Mas a atitude não se resume a contar. É preciso mostrar. Não apenas fatos, mas os próprios procedimentos de configuração. Assim, o conto “Meus oito anos” assume um distanciamento no tempo. Cada parágrafo trata de um aspecto da vida do narrador aos oito anos. Para que o narrado não escape à voz daquele, não há travessões marcando vozes de personagens. Mas a presença de elementos da linguagem infantil o perpassa: Lucinha, dentinhos de coelho e olhos azuis, missa das oito no domingo e matinê à tarde, minha gravatinha vermelha com bolinhas brancas, meu sonho, meu amor, dez vezes te salvei da mão do tarado, vinte vezes te carreguei do fogo do incêndio, trinta vezes te levei no meu avião a jato, mas você nem uma vez sorriu para mim. (VILELA, 2001, p. 34.)
Trata-se de um narrador que mistura a sua voz adulta com a do menino de oito anos. A presença de um modo infantil de falar mistura-se, ao mesmo tempo, com a condição ficcional de invocar a presença de um “tu”, que se torna “você”, mas que não é o enunciatário do texto. A atitude de usar a segunda pessoa para invocar personagens não é marcante nos narradores que contam histórias. Vilela não acata as convenções desse modo pelo qual o adulto olha o passado. Quer recuperar a voz da criança, levar a narração para o tempo da narrativa. Fazendo assim, ela passa a mostrar essa criança e não mais a contá-la. Há procedimentos intermediários, como no conto “Menino”, em que o mostrar se especifica como cena, e as personagens apenas falam; estas se misturam à voz de um narrador ausente, agora em terceira pessoa: – Você está com as mãos sujas, não te falei pra não comer assim? Levanta, vai lavar. – Striknik! – Quê que é isso? Pare de fazer esses barulhos bobos. O menino viu o passarinho na árvore, assobiou, o passarinho respondeu; o menino chegou mais perto da janela. “Olha as horas, quer perder a escola? Lava logo essas mãos.” (VILELA, 2001, p. 49.)
O trecho exibe uma cena. Faz uso de um falso pretérito, que na verdade apenas enumera ações do menino. Elas se acumulam, misturadas às falas das personagens. Não
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se trata de um pretérito contado, que tenha valor de passado. Vilela mostra o menino, sem a intenção de explicá-lo. O parágrafo seguinte avança ainda mais nesse sentido: Fez uma careta no espelho: sou feio, sou cabeludo, sou o lobisomem, vou comer todo mundo, inhaaau, sou o lobo mau, para que esses olhos tão grandes? para melhor te ver; para que esses braços tão compridos? para melhor te abraçar; e para que esses dentes tão agudos? (VILELA, 2001, p. 49.)
A mistura de vozes cria o efeito de cena que se passa diante dos olhos do leitor. Não se está contando, por isso a mudança da terceira para a primeira pessoa também silencia um narrador distante no tempo. O uso de discursos diretos, marcados com travessão, ocorre na maioria dos contos. A presença desses discursos sobrepuja a voz do narrador. E esta lhe é concedida na condição de quem deve mostrar: – Responda com educação, seu malcriado! Sua mãe não te deu educação em casa não? – Vá à merda... – O quê?... Não devo desrespeitar os meus mestres. Não devo desrespeitar os meus mestres. Não devo desrespeitar os meus mestres. O pátio escuro e sem ninguém; sentou-se debaixo da mangueira, e seus olhos estufaram de choro. (VILELA, 2001, p. 51.)
A representação do castigo dado ao menino pode ser uma frase por ele repetida. De quem é essa voz? Em outros textos, o procedimento acaba por tornar-se somente modo dramático, sem a voz de um narrador, como em “Dez anos” e “Confissão”. O início deste último: – Conte os seus pecados, meu filho. – Pequei pela vista... – Sim... – Eu... – Não tenha receio, meu filho, não sou eu quem está te escutando, mas Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, que está aqui presente, pronto a perdoar aqueles que vêm a Ele de coração arrependido. E então... – Eu vi minha vizinha... sem roupa... – Completamente? (VILELA, 2001, p. 77.)
Cenas que se resumem a diálogos, sem nenhuma voz senão as das personagens. Mas existem condições mais complexas. No conto “Corisco”, existe uma narrativa em primeira pessoa. Percebe-se que não há uma voz adulta narrando. O conto assume a forma de escrita infantil: Papai entrou batendo os pés como sempre fazia, pra sacudir a poeira das botas, pendurou o chapéu na parede, depois deu um tapinha nas costas de Mamãe, falando com voz grossa ê filha, o serviço hoje
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esteve puxado, e batia a mão na barriga, espiando as panelas de comida enquanto contava casos de bois acontecidos lá no retiro, e então parece que ele reparou no silêncio de Mamãe e falou um pouco mais alto, mas daquele jeito que não era bravo, quê que houve, filha, você não fala nada, engoliu a língua? (VILELA, 2001, p. 9.)
O trecho ficcionaliza uma enunciação pela criança, mas configurada através da imitação da sua escrita. Evidencia-se essa paródia de escrita escolar no modo como se conta uma história; mas o texto mostra a condição da criança como autora, através das características típicas de uma enunciação infantil: a seleção de termos, a pontuação, o uso da conjunção “e” como elemento coesivo, entre outros. O conto mostra-se como tal e mostra aquilo que poderia ser contado: o universo infantil, contido na memória, e que, através da configuração estética do texto, ganha uma significação como obra de arte. O mesmo ocorre em “Lava-pés”, conto no qual essa voz infantil é configurada como fala desenfreada de um menino: A gente era apóstolo pra ganhar a rosca que tinha passas dentro que eu catava com o dedo e comia antes de comer a rosca que eu nem comia porque o que eu gostava mesmo eram as passas que não eram iguais às passas compradas em caixinhas e que a gente podia comer à vontade pois eram muito mais gostosas (...). (VILELA, 2001, p. 25.)
A fala desenfreada mostra-se através da repetição de termos, da ausência de pontuação, do efeito de falta de planejamento, entre outros recursos de que o autor faz uso. O conto mimetiza uma ação, em vez de contá-la. Servir como apóstolo durante a missa é fato que ganha significância na memória do autor, recordação de uma infância feita de eventos previsíveis. Tornar esse fato um conflito que incitasse uma reflexão axiológica certamente não interessa a Vilela. A significância de tais fatos poderia existir na memória afetiva. Mas ela pode ser compartilhada quando se configura como obra-de-arte e ganha a condição definida por Proust como possibilidade de reter o tempo. Mostrar, aqui, é uma forma eficiente de compartilhar esse passado, em vez de fazer dele pretexto para reflexões que prevalecessem sobre a significância estética que a literatura enseja. Considerações finais A ficção autobiográfica corresponde à preocupação, tanto de Heidegger quanto de Proust, de dar sentido à existência, quando o sujeito, no caso o autor, coloca-se diante do tempo-para-a-morte. Olhar para a própria vida, como tempo passado, ou perdido, poderia se referir apenas à reflexão. Ou ensejar obras de teor ensaístico ou
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memorial. No caso da ficção autobiográfica, essa reflexão torna-se literatura. Ou seja, ela opta pela permanência no tempo, como obra-de-arte perene. Tal obra representa a construção do sentido da existência, seja da memória, como passado, ou da vida completa, como tempo restante. Munro e Vilela buscaram na ficção autobiográfica a possibilidade de dar um sentido permanente às suas experiências passadas. Blanchot (2011, p. 97) diria que esses autores já podem morrer, suas vidas possuem sentidos. A literatura possibilitou, através de procedimentos estéticos diversos, sua construção ou reconhecimento. Eles podem ser contados ao leitor, na condição quase de ensaios; mas a significância também pode ser mostrada, ou vivenciada, como encantamento através da experiência estética. Referências BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. 2ª ed., São Paulo: Editora 34, 2012. GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Tradução de Fernando Cabral Martins. Lisboa (Portugal): Vega Universidade, s/d. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Márcia Sá Cavalcanti Schuback, 7ª ed., Petrópolis, RJ: Editora Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012. LUBBOCK, Percy. A técnica da ficção. Tradução de Otávio Mendes Cajado. São Paulo: Editora Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1976. MUNRO, Alice. Vida querida. Tradução de Caetano W. Galindo. 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2013. PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Vol. 7: O tempo redescoberto. Tradução de Lúcia Miguel-Pereira, 8ª ed., Rio de Janeiro: Editora Globo, 1988. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Vol. 3: O tempo narrado. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. VILELA, Luiz. Contos da infância e da adolescência. 2ª ed., São Paulo: Editora Ática, 2001. WEINRICH, Harald. Estructura y función de los tiempos en el lenguaje. Tradução espanhola de Federico Latorre. Madrid (Espanha): Editorial Gredos, 1968.
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PARA UMA APRESENTAÇÃO DE A SOBRINHA DO MARQUÊS, DE ALMEIDA GARRETT Prof. Dr. Edson Santos Silva- (Unicentro) Almeida Garrett nasceu em 1799, no final do século XVIII, quando o Antigo Regime ainda perdurava. Por anos a fio, Garrett será um dos seus mais virulentos adversários. Em 1823, com a contrarrevolução absolutista chefiada por D. Miguel – a Vilafrancada-, os liberais são perseguidos e em 9 de junho Garrett foge para a Inglaterra. Lá, ele sofrerá as agruras do seu primeiro exílio. Em 26 de julho tenta em vão retornar a Portugal, é preso no Limoeiro, e em 25 de agosto é deportado para a Inglaterra. Em Londres, enfrentará dificuldades financeiras e por conta disso partirá para a França, em Havre, passando a trabalhar no banco Laffitte, como encarregado da correspondência portuguesa e brasileira desse estabelecimento. Nesse contexto começará, segundo Sérgio Nazar, a escrever, em maio de 1824, a obra Camões. Ainda segundo Nazar: “O primeiro exílio, para Garrett, foi afinal um período de solidão, de fortes apreensões financeiras, de temores em relação à situação política na França, onde, ao que tudo indica, era também vigiado” e ainda: “seus livros, escritos em português não encontravam, no ambiente em que vivia, público adequado” (NEVES, 2007, p. 45). Em 1825 vem a lume Camões, sem indicação do nome do autor por motivos políticos, obra considerada introdutora do Romantismo em Portugal. O título da obra já deixa muito clara a postura nacionalista do autor: o tema é a vida do grande poeta Luís Vaz de Camões. Mas curiosas são as suas palavras no prefácio à primeira edição da obra: Não sou clássico nem romântico; de mim digo que não tenho seita nem partido em poesia (assim como em coisa nenhuma), e por isso me deixo ir por onde me levam minhas ideias boas ou más, e nem procuro converter as dos outros nem inverter as minhas nas deles: isso é para literatos de outra polpa, amigos de disputas e questões que eu aborreço. (1822, p.6)
Há que se tecerem algumas ponderações a respeito da citação. No referido prefácio, Garrett admite que a essência do seu Camões é romântica, mas pede que não o filiem nem ao Classicismo, muito menos ao Romantismo. Desta forma, Garrett pode ser considerado um romântico moderado. Ou seja, o introdutor do Romantismo em Portugal é, na verdade, um escritor com características ainda neoclássicas e fortemente marcadas por um comprometimento: repensar o presente com o
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olhar do passado. Extensão desse comprometimento é sua literatura que, engajada, expõe um claro projeto a ser perseguido: a crítica à sua contemporaneidade por meio de uma cuidadosa leitura do passado, viés este devidamente explicitado na obra Catão. De todos os meios artísticos, Garrett elegerá o teatro como basilar, tanto para levar sua voz liberal, quanto para colocar em cena o projeto engajado de sua dramaturgia: o passado como modelo e também como leitura alegórica de sua contemporaneidade. Esse projeto concretizado com as peças Catão (1821), Um Auto de Gil Vicente (1838), Filipa de Vilhena (1840) e O Alfageme de Santarém (1842) fora esboçado em 1819, no prefácio de uma tragédia que chegou incompleta: Afonso de Albuquerque. O prefácio da primeira edição de Catão, seguido de carta a um amigo, foi publicado em Lisboa, a 13 de março de 1822. No primeiro texto, o prefácio, Garrett expõe uma história do teatro universal, com o objetivo de situar o português, para em seguida afirmar seu papel de dramaturgo dentro desse contexto. A apresentação inicia-se com o teatro grego, com destaque para a tragédia grega, em que nomes como os de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes são ressaltados. Em seguida, Garrett elenca um breve panorama da comédia grega, lamentando que ela seja “vaga e incerta”, e que apenas o nome de Aristófanes seja digno de menção. Depois do teatro grego, vem à baila o romano que, segundo Garrett, apresenta “cópias desfiguradas dos originais gregos que, tendo largado o pálio de Atenas, vestiram a toga do Lácio que se lhes desajeitava os ombros desafeitos”. (1972, p. 1, Teatro I) Tendo apresentado o teatro grego e o romano, Garrett passa em revista o panorama do teatro das línguas modernas que, moldado ora no clássico grego, ora no gênero romano, formava “uma terceira espécie de ambas participantes e que tantos esmeros e prodígios veio depois a dar ao teatro das línguas modernas” (id. ibid., p. 2). Neste ponto, Garrett chama atenção para os autores Trissino, António Ferreira, João del Encina, Gil Vicente, Prestes e Ariosto para, em seguida, salientar a riqueza do teatro inglês, sobretudo com Shakespeare, e o francês, com Racine, Voltaire e Crébillon. Salienta, outrossim, que se coube ao teatro francês a conservação e o apuro do gênero clássico, coube ao gênero romântico, “filho de Shakespeare, formar uma classe distinta e separada, que suposto irregular e informe, tem contudo belezas próprias que só nele se acham.” (id. ibid., p. 2) A terceira espécie de teatro seria, portanto, para Garrett, um gênero novo, ou seja, uma junção do clássico com o romântico, “cujos caracteres são bem salientes e cuja beleza é incontestável”.(id. ibid. p. 2) Os grandes nomes dessa nova espécie de teatro seriam Corneille e Ducis, em quase todas as obras deles; Schiller, em muitas, e os modernos autores ingleses e espanhóis, ainda segundo Garrett, em quase todas. Após a rápida apresentação acima, Garrett passa a falar do teatro em Portugal. Recorde-se que apenas dois nomes de autores teatrais foram citados anteriormente: Gil Vicente e António Ferreira.
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Garrett acrescenta a esses dramaturgos o nome de J.B. Gomes e secamente afirma: “dos outros todos [dramaturgos] creio que afoutamente se poderá dizer que não valem o trabalho de contá-los”. (1972, p. 3). Para explicar esse vazio teatral, Garrett faz duas indagações, para em seguida tentar respondê-las: “Será isto, [o vazio teatral] defeito e falha nossa [dos portugueses]; “Não teremos nós la tête dramatique, como os franceses l’épique? (id. ibid., p. 3) Vale a pena transcrever a resposta de Garrett acerca das perguntas feita por ele: “Não sei responder, mas nem por isso deixo, ou deixei desde que me entendo, de forcejar por encher, quanto em mim fosse, o vazio do nosso teatro”. (id. ibid., p. 3). É dentro desse contexto, ou seja, o de preencher o vazio teatral em terras lusas que nascerá, portanto, Catão e A Sobrinha do Marquês. Nota-se na produção dramatúrgica de Almeida Garrett uma forte intenção didática que tem como fontes os ensinamentos de Horácio e das Luzes, recorde-se sãs palavras garrettianas no prefácio da obra Camões, em que fica clara a sua formação Neoclássica. Essa preocupação didática está delineada no texto intitulado Memória do Conservatório, que antecede a obra Frei Luís de Sousa (1844), em que se lê: Coligir os factos do homem é emprego para o sábio; compará-los, achar a lei de suas séries, ocupação para o filósofo, o político; revesti-los das formas mais populares e derramar assim pelas nações um ensino fácil, uma instrução intelectual e moral que, num aparato de sermão ou preleção, surpreenda os ânimos e os corações da multidão do meio dos seus prórpios passatempo, missão do literato, do poeta. (1966, p. 1086).
Não há dúvida, portanto, que foi imbuído desse desejo de surpreender os ânimos e os corações que Almeida Garrett publicou, em 1847, A Sobrinha do Marquês, que em conjunto com as peças Tio Simplício (1844), Falar a verdade a mentir (1845), As profecias de Bandarra (1845), O noivado do Dafundo (1847) compõem a fase da dramaturgia garrettiana em que ele tenta estabelecer em Portugal os alicerces da comédia lusa1, cujo viés é, como se verá, na peça em questão, a valorização da classe burguesa, mercantil em oposição à classe aristocrática de sangue. A Sobrinha do Marquês foi representada pela primeira vez em 04 de abril de 1848 mesmo ano em que Garrett fará o prefácio da obra -, no Teatro Dona Maria II, em Lisboa. No prefácio, Garrett afirmará que seu objetivo ao escrever a obra não foi outro que salientar por meio do enredo e das personagens o ridículo de uma época, ou seja, a renhida luta entre a classe média e a aristocracia e entre estas duas classes, o povo, sempre hesitante, ao longo dos três atos que compõem a obra. Para dar azo a seu projeto, Garrett se valerá, como já fizera antes, de figuras paradigmáticas da História de Portugal, no caso da peça, de Marquês de Pombal, e ao lado deste 1
Para um conceito mais abrangente do verbete Comédia indica-se a obra: PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Tradução para o Português e direção de J. Guinsbourg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
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“um tempo memorável” Á frente dessa [luta] esteve entre nós o Marquês de Pombal. É ocioso mencionar que teve por contrário os jesuítas e a alta nobreza, mas é muito necessário recordar que, para os combater, suscitou, se não criou ele, a classe média; que a separou do povo; que a arregimentou sob o comando da coroa, que reinou com ambas dominando uma a outra, erguendo-as e contendo-as com a mesma mão. (1966, p. 1256).
Urge aqui uma indagação: quem foi o Marquês de Pombal? Sebastião José de Carvalho e Melo 2 nasceu em Lisboa, em 13 de maio 1699. Era o filho mais velho de doze irmãos de uma família de origem da chamada “pequena nobreza”, uma fidalguia da província, sem muito dinheiro, com propriedade na região de Leiria. Seus pais foram Manuel de Carvalho de Ataíde, fidalgo da Casa Real e capitão de cavalaria, e Dona Teresa Luísa de Mendonça e Mello, da família dos morgados dos Olivais e de Souto de El-Rei. Dois irmãos destacam-se em sua biografia como leais colaboradores: Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1700-1779), governador do estado do Grão-Pará e Maranhão e adjunto do secretário de Estado, e Paulo de Carvalho e Mendonça (1702-1770), eclesiástico que exerceu os cargos de presidente do Senado de Lisboa e inquisidor-geral do Reino. O irmão mais novo, José Joaquim de Carvalho, morreu em 1740, na defesa de Goa. Aos vinte anos assistiu à morte do pai e ao segundo casamento da mãe com Francisco da Cunha de Ataíde, que, segundo alguns historiadores, por sua influência na corte, visto ter exercido o cargo de governador da Casa de Relação como chanceler do Reino de Dom José até 1755, colaborou muito na escolha do futuro Marquês para a formação do Conselho de Ministros. Embora não se tenha registro de matrícula, acredita-se que tenha estudado um ano de Direito na Universidade de Coimbra, tendo depois servido, por pouco tempo, nas forças armadas, e seu nome ligado a grupos de jovens “turbulentos”. Considerado um mau partido, engendrou um rapto consentido para casar-se em 1723 com Dona Teresa de Noronha e Bourbon de Mendonça e Almada (1689 – 1737), com quem não teve filhos. Dona Teresa era sobrinha do quinto Conde dos Arcos e dona de muitos bens. Desse modo, o futuro Primeiro Ministro conseguiu ascender à alta aristocracia. Em 1733, com a ajuda do tio cônego, Paulo de Carvalho de Ataíde (1679 – 1737), lente de 2
A biografia transcrita do Marquês de Pombal, com alguns recortes, foi extraída da tese de doutoramento de Virgínia Maria Antunes de Jesus. Miguel Rovisco: O Teatro da História. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Letras. Orientador: Professor Doutor Francisco Maciel Silveira, São Paulo, 2008.
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cânones e mais tarde Patriarca de Lisboa, integrou-se na Real Academia da História Portuguesa, título que lhe reconhecia a cultura e conferia notoriedade social. Participara, antes de 1720, da Academia dos Ilustrados e, apesar de ter escrito muito pouco, de não ter sido muito assíduo às sessões da Academia régia e de não ter cumprido sua obrigação acadêmica de escrever as biografias de Dom Pedro I e Dom Fernando, ninguém põe em dúvida sua erudição e suas ideias firmadas no Enciclopedismo e no Iluminismo. Em 1737 morreu sua primeira esposa; a 2 de outubro de 1738, foi nomeado Enviado Especial - Ministro Plenipotenciário à Corte de Londres, para onde embarcou de Lisboa no dia 8 desse mesmo mês; em 29 de novembro desse ano, numa audiência pública, consolidou a aliança luso-britânica e assumiu o posto de seu antecessor, o então embaixador Marco António de Azevedo Coutinho, seu primo em quarto grau, que lhe abriu as portas da diplomacia. Regressou a Lisboa em 21 de dezembro de 1743 e já em 14 de setembro de 1744 foi instruído mais uma vez como Enviado Especial - Ministro Plenipotenciário, agora à corte de Viena de Áustria, chegando em 17 de julho de 1745 e, sem dúvida, teve contato mais direto com os conceitos do Despotismo Esclarecido. Logo, em 13 de dezembro desse mesmo ano, firmou o contrato nupcial de seu segundo casamento com a Condessa Maria Leonor Ernestina Daun, sobrinha do Marechal Heinrich Richard, conde de Daun, figura de destaque na Guerra de Áustria. A união foi abençoada por duas casas reais representadas pela Imperatriz Maria Teresa e pela Rainha Maria Ana de Áustria, mulher de D. João V. Essa conveniente aliança resultou em cinco filhos e assegurou a Sebastião José o posto de Secretário de Estado do Governo de Lisboa, em 1749, quando Dom João V adoeceu gravemente. Assim, aos cinquenta anos de idade, o futuro Marquês de Pombal já chegara muito próximo ao poder. Dom Luís da Cunha (1662-1740), famoso diplomata do governo de Dom João V, considerado um estrangeirado, ou seja, simpatizante das ideias calvinistas, é apontado como influência definitiva para a nomeação do futuro ministro, uma vez que, em seu Testamento Político, sugere ao ainda príncipe Dom José o nome de Sebastião José ao governo, definindo-o como “homem de boa visão”, Em 1750, com a morte de Dom João V, teve início o reinado de Dom José I. Carvalho e Melo foi nomeado Secretário dos Negócios Estrangeiros, formando com Pedro da Mota e Silva, na pasta do Reino, e Diogo de Mendonça Corte-Real, Secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, o Conselho de Estado do novo rei. Foram nomeados ainda dois oficiais maiores: Filipe Correia da Silva para os Negócios Estrangeiros e a Guerra e Estevão Pinto de Morais para a Marinha e os Domínios Ultramarinos. Mais importante foi a permanência na chancelaria-mor, desde a época de D. João V, do doutor Francisco Luís da Cunha de Ataíde, padrasto e protetor de Sebastião José, que em seu cargo teve discreta, mas diligente atuação até 1755, quando uma
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catástrofe natural - um efeito combinado de um sismo e um maremoto seguidos de incêndios, sem dúvida a maior tragédia coletiva vivida pelo povo lusitano no decorrer de toda a sua história - veio auxiliá-lo a tornar-se o homem mais influente do corpo de ministros do reino português. O terremoto de Lisboa, considerado pelos geólogos modernos com magnitude de nove graus na escala Richter, começou como um tremor e um grande barulho por volta das 9h30 de 1º de novembro, dia de Todos os Santos. Foi seguido por um segundo, o mais forte e destruidor; depois, com a cidade em chamas, aconteceu um maremoto que acabou por destruir quase tudo que ainda restava em pé. Acredita-se que cerca de um terço da população lisboeta tenha morrido e oitenta e cinco por cento das construções destruídas, se não pelos abalos sísmicos, pelos incêndios que se lhes seguiram. Não apenas Lisboa foi afetada pela catástrofe. Também todo o sul de Portugal, especialmente o Algarve, foi atingido e a destruição generalizada. As ondas de choque do sismo foram sentidas por toda a Europa e norte da África. A família real escapou ilesa. Dom José e a corte estavam no “campo real” de Belém, uma quinta nos arredores de Lisboa, onde os tremores não se fizeram tão fortes. Todos os altos dignitários e membros dos Conselhos foram a Belém a fim de receber orientações do rei e, dentre todos, o secretário de Estado impôs-se por seu pragmatismo, sabendo aproveitar-se do desastre natural para reconstruir Lisboa e, com avisos, alvarás e decretos, construir sua sólida carreira política. Tomadas as primeiras providências para atender às necessidades de toda a população – todos os historiadores são unânimes em dizer que a atuação do governo foi bastante eficiente –, Carvalho e Melo à frente de tudo, começa a afirma-se como primeira figura do Governo. “Enterrar os mortos, cuidar dos vivos e fechar os portos”, a frase famosa atribuída ao estadista, em verdade foi proferida por Dom Pedro de Almeida, Marquês de Alorna, todavia resume sua atuação: pedido à Câmara de Lisboa para disponibilização de pessoal e dinheiro; convocação das tropas de artilharia para tarefas de socorro; distribuição de alimentos aos necessitados pelos doze bairros da cidade; convocação das pessoas válidas para desobstrução das ruas e enterro dos cadáveres, para evitar focos de epidemia (em 2 de novembro consulta o cardeal-patriarca sobre o destino dos corpos ainda sem sepultura, ficando assente lhes atar pesos e lançá-los ao mar); determinação do regresso dos que haviam fugido da cidade sem privilégio de condição social; intimação aos moleiros, padeiros e forneiros dos arredores para abastecer a cidade de pão e outros mantimentos; ordem às vilas mais próximas para o envio de farinha e comestíveis ao Senado de Lisboa; isenção de dízima, sisa e demais tributos ao peixe vendido na capital; disponibilização de armazéns para venda de mantimentos e pontos de distribuição aos necessitados; criação de cargos com funções específicas para o cumprimento das determinações e punição aos abusos; fixação dos
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preços exercidos em outubro, com pena de quatro meses de prisão e
serviço nas obras de
desentulho aos que exorbitavam; punição até com a pena capital aos que saqueavam igrejas e casas, ou seja, aos que cometiam crimes “torpes e indignos, escandallo da religião e da humanidade”; distribuição aos indigentes de recursos provenientes da caridade pública (angariações conseguidas junto à Fazenda real, aos nobres e aos religiosos); imposição do pagamento de 4% sobre os direitos aduaneiros nas mercadorias importadas, o que duraria até a reedificação das alfândegas do reino; e reparações nas igrejas atingidas, para garantia do conforto espiritual. Com essas primeiras e imediatas medidas e após o início da reconstrução urbana, Carvalho e Melo teve seus poderes sensivelmente aumentados junto ao monarca, e, assim, em maio de 1756, com a morte de Pedro da Mota e Silva, assumiu o cargo de ministro do Reino, posto mais importante do governo. Junto com a ascensão granjeou forte oposição da alta nobreza, bem como do clero, e passou a ser alvo de intrigas e conjuras palacianas. Em agosto desse mesmo ano, o desembargador António da Costa Freire, os duques de Lafões e de Aveiro e os marqueses de Anjeja e Marialva, por meio de um comerciante alemão, Feliciano Velho Oldemberg, que acomodara a família real em sua propriedade após o terremoto, fizeram chegar ao Rei uma exposição do advogado Teixeira de Mendonça com gravíssimas acusações ao ministro. Seu prestígio e confiança angariada junto a Dom José levam os implicados se não à prisão ao degredo. Na mesma época, Diogo Teixeira de Mendonça é demitido com ordens de sair de Lisboa a uma distância mínima de quarenta léguas, por desavenças com o futuro marquês. Proporcionalmente ao aumento e sedimentação de seu poder, surgem atos considerados, sob o ponto de vista de alguns estudiosos, de grande crueldade e, sob o ponto de vista de outros, justificáveis num contexto de pré liberalismo no século XVIII. Em 23 de fevereiro de 1757, com a criação da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, surgiu um motim no Porto: revoltosos cercaram a casa de Bernardo Duarte de Figueiredo, Juiz Conservador da Companhia e, de abril a outubro, quatrocentas e setenta e oito pessoas foram julgadas, trinta e seis absolvidas e a grande maioria condenada e punida pelo crime de lesa-majestade. Em 3 de setembro de 1758, teve lugar um dos episódios mais marcantes, e também dos mais relidos pela história e pela literatura, da época pombalina: a tentativa de regicídio. Dom José voltava ao Palácio Real da Ajuda de um encontro com sua amante (mais tarde identificada como a duquesa nova de Távora), quando sofreu um atentado, que, verdadeiro ou forjado, serviu de pretexto para uma demonstração de força do futuro marquês contra a alta nobreza. Dentre os muitos presos, foram investigados, julgados e condenados, de maneira muito pouco convencional e clara, membros da família Távora, o Duque de Aveiro e o Conde de Atouguia, bem como alguns jesuítas considerados cúmplices. Em 12 de janeiro de 1759, tendo os bens confiscados, foram executados os
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envolvidos e, em 6 de junho, Sebastião José recebeu o título de Conde de Oeiras, como reconhecimento de sua diligente atuação no caso e pelos serviços prestados ao Reino ao longo de vinte anos. Ceifado em suas raízes o poder da alta nobreza pela punição exemplar dos pretensos regicidas, restava ainda mitigar a influência de outro dos pilares da sociedade portuguesa na época: os religiosos, mais especificamente os jesuítas. A expulsão, pois já haviam tido seus bens confiscados, teve muitas implicações, mas o que foi decisivo para tal decisão foi a atuação dos inacianos no Brasil. Há dois séculos como missionários não haviam cumprido determinações da metrópole quanto ao Tratado de 1750, à mão de obra escrava e a leis de libertação e casamento dos indígenas, a comprometer, assim, o relacionamento entre nativos e colonos e o desenvolvimento do Brasil em geral e, em especial, da região norte. Dom Francisco Xavier de Mendonça, irmão do secretário de Estado, desde 1751 governador do Grão-Pará e Maranhão, fez chegar ao reino suas reclamações quanto à atuação da Companhia de Jesus, um poder paralelo mais forte que o da Coroa, desafiando-a com a edificação de um Estado próprio que se opunha aos interesses do Reino. Os jesuítas decidiram enfrentar o poder de Sebastião José e pouco a pouco foram sendo desterrados, condenados por crime de lesa-majestade “por dizer mal das leis de El-Rei” e expulsos em 21 de julho de 1759 do Brasil; em 3 de setembro uma Carta de Lei proscreve, desnaturaliza e expulsa os jesuítas dos domínios portugueses. Em 21 de julho de 1773, depois de muitas ações diplomáticas junto ao Vaticano, o papa Clemente XIV, na breve Dominus Ac Redeptor Noster, extingue a Companhia de Jesus. Sebastião José de Carvalho e Melo tentou colocar o Portugal do século XVIII entre as nações mais modernas do mundo com medidas que atingiam todos os setores da administração pública. No ensino e na cultura, colocou-se radicalmente contra a pedagogia inaciana que já vinha sendo considerada retrograda. Em 7 de junho de 1755, um Decreto Régio veio possibilitar a Reforma de Mendonça Furtado, que visava à criação de “diretorias” em substituição ao ensino jesuíta. Inicia-se, então, uma série de reformas: em abril de 1759, é criada a Aula do Comércio, cujo ensino subordinado à Junta do Comércio deveria ensinar contabilidade conforme o modelo inglês; em dezembro, aprovam-se os novos estatutos da Universidade de Coimbra; em 1761 funda-se o Real Colégio dos Nobres e, em 1762, a Real Escola Náutica do Porto; em 1768, a Real Mesa Censória – a Inquisição tem mudadas suas funções, deixa de ocupar o Tribunal do Santo Ofício e passa a ser responsável pelos restantes tribunais -; inaugura-se a Aula Oficial de Gravura Artística, que se mantém até 1787; em 1771 o ensino passa a depender da Real Mesa Censória com a demissão do Diretor de Estudos, Luís António Verney, e o sistema estatal incorpora as escolas que ensinam “a ler, escrever e contar”. Em 1772, Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas foi nomeado
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Presidente da Junta do Subsídio Literário, tornando-se a maior figura na reforma do ensino: faz instaurar a reforma da Universidade e promulgar uma lei que cria novas bases financeiras e incentivo à produção literária mediante pagamento de subsídio aos professores que se envolvessem nos projetos; reorganiza todo o ensino primário e promove a fundação da Imprensa Régia. Inúmeras medidas para o desenvolvimento social e econômico foram orientadas pelo futuro marquês. Dentre muitas, em 1760, dá seu apoio aos mercadores contra intermediários e contrabandistas para uma reorganização do comércio regular e do sistema de crédito; cria o erário régio e o cargo de Intendente Geral da Polícia, primeira medida de combate ao banditismo. Em 1761, promove-se a limitação dos privilégios corporativos; abole-se a escravidão na metrópole – que perdura, todavia, nas colônias - e passam a ser “libertos e forros” escravos que entram em Portugal. Em 1764, dá-se a criação do Terreiro Público para abastecimento da População e têm início ações de investimento e fomento para o desenvolvimento industrial; em 1767, inicia-se a exportação de algodão do Brasil para a Inglaterra. Em 1768, um Decreto Régio contra o puritanismo anula a exclusividade de direitos de uma aristocracia hereditária e cargos passam a ser atribuídos a homens de negócios, cujos conhecimento e mérito são reconhecidos; o ministro faz publicar a Lei da Boa Razão – a visar que as leis fossem fundamentadas numa razão justa a fim de não se tornarem inválidas – e a Lei do Morgadio. Em 1770, o comércio é declarado “profissão nobre, necessária e proveitosa”, obtém-se monopólio lucrativo do sal para o Brasil, bem como os direitos do tabaco e taxa de importação sobre o azeite. Em 1773, cria-se a Companhia Geral das Reais Pescarias do Reino do Algarve e, em 25 de maio, Pombal propõe a abolição da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, efetivada por lei de Dom José em 15 de dezembro. Em 1774, por decreto do ministro, os habitantes da Índia Portuguesa passam a ter os mesmos direitos dos naturais de Portugal. Em 1775, edifica-se uma Fábrica de Estampagem de Tecidos. Quanto à política externa, o marquês administrou crises com a Santa Sé, com a Espanha, tentou conservar a neutralidade na Guerra dos Sete Anos (1756-1763), também denominada Guerra Fantástica; todavia uma batalha entre ingleses e franceses em águas territoriais portuguesas acabou por fazer Portugal aderir à causa britânica. Dom José casara-se com uma Bourbon e malgrado ter sido convidado, recusou-se a participar de uma aliança com os monarcas Bourbons da França, Espanha, Nápoles e Parma, o chamado Pacto de Família de 1761. Em consequência, Portugal foi invadido por tropas espanholas e francesas. O exército luso encontrava-se totalmente desorganizado, vendo-se Pombal obrigado a buscar pessoal mais qualificado para defender a nação portuguesa. Assim o faz, contrata um príncipe alemão – Wilhelm von Schaumburg-Lippe –, contingentes ingleses e mercenários suíços, dessa forma consegue resistir e obrigar a retirada dos invasores, conseguindo assinar, em 1763, o Tratado de Paz de Paris.
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Enfrentando e contornando, despótica ou diplomaticamente, crises desde 1755, Sebastião José vai alicerçando seu prestígio junto ao rei. A década de sessenta lhe é altamente auspiciosa. Em 18 de setembro de 1770, quando já completara 71 anos de idade, o “fidalgote da Rua Formosa” – como era chamado desdenhosamente pela alta fidalguia - recebe o título de Marquês de Pombal, sua consagração social. É nesse mesmo ano que Machado de Castro inicia por encomenda oficial a execução a estátua equestre de D. José I, do monumento faz parte um medalhão que homenageia o Marquês. Em 6 de setembro de 1771, o Ministro foi vítima de um atentado. Ao sair de carruagem do Palácio da Ajuda, foi atacado por duas pedradas que apenas quebraram os vidros do coche. João da Cruz, “moço de servir”, foi o autor do ato encomendado, contudo, tendo sido considerado anormal pelos médicos, acabou seus dias na prisão, sem sequer ter sido julgado. Com a morte de D. José, em 1777, ciente de sua morte política, Carvalho e Melo, com 78 anos e doente, apenas alguns dias após o passamento do rei, pede a Dona Maria I que o desobrigue das funções que vinha desempenhando. Em 1779, o Marquês é acusado de abuso de poder, corrupção e diversos tipos de fraudes. Os interrogatórios dessa ação judicial só terminam no ano seguinte. Em 1781, tem fim o julgamento e Pombal é considerado culpado e condenado, apesar de sua idade avançada e precário estado de saúde, ao desterro de no mínimo vinte léguas da Corte. Em 8 de maio de 1782 morre Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal. Com efeito, dentro do projeto político de Sebastião José de Carvalho, que pode ser sintetizado em quatro eixos, nota-se uma preocupação com o fomento da economia capitalista e nela a valorização da já referida classe média. Vale a pena sintetizar tais eixos: A) Absolutismo Real: destruir todas as forças que poderiam limitar o poder real, no caso, D. José I de Portugal (1714-1777); B) Modernização das Estruturas do Estado que estava enfraquecido depois da Guerra da Independência, para tanto modernizou o exército e fez novas leis; C) Fomentou a economia capitalista apoiado numa classe de gente rica nascida do ouro do Brasil. No primeiro ato da peça, notam-se personagens que ilustram essa nova classe; D) Tentativa de Modernização do Ensino em Portugal, com a contratação de professores vindo do estrangeiro e o fechamento de escolas dirigidas pelos jesuítas. O Marquês de Pombal criou as primeiras escolas laicas do país e introduziu em terras lusas os Estudos de Ciências Exatas e de Natureza. Finalizando esta síntese, cabe assinalar que por conta do famoso Terremoto que destruiu Lisboa em 1/11/1755, Pombal transformara Lisboa na primeira cidade moderna do ocidente. Na peça em questão, Garrett colocará o já referido tempo memorável nos últimos dias daquele célebre reinado, ou seja, na noite da morte de D. José I, ocorrida em 24 de fevereiro de 1777, e as consequências dela advinda, isto é, os antigos dominadores – os nobres e jesuítas
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levantam a cabeça, mas ainda com medo; a classe média (criada pelo Marquês) deixa claro que o teme, não o ama e dois dias depois, o fato mais importante: a derrubada do Marquês de Pombal. Estes fatos fazem Garrett afirmar, no já referido prefácio de 1848: Este era o estado de ânimo em Portugal ao expirar D. José I, e ao sentir-se cair do poder o seu grande Ministro. Pareceu-me que esse dia supremo devia, melhor que nenhum outro, pôr em evidência as paixões, os interesses, as ações e reações todas de uma época memorável. (1966, p. 1256).
As personagens, ainda segundo Garrett, com exceção do Marquês de Pombal – “tipo de si mesmo e que só por si podia ser representado” -, devem ser, como convém a uma comédia, típicas e, portanto, “figuram” não um indivíduo e sim uma classe da qual são representantes. Na peça visualizam-se as seguintes personagens: 1. Padre Inácio, que representa os jesuítas que desejam vingança contra o Marquês; 2. D. Luiz da Távora, que representa a antiga fidalguia, na peça, decaída; 3. Família do Mercador da Rua Augusta, Manuel Simões, Tia Mônica, que representam a burguesia vacilante, incerta ainda do presente, com terrores e saudades do passado; 4. Zeferino e ZÉ Braga, dois caixeiros e funcionários de Manuel Simões, que representam as aspirações do povo, que ainda não entram em nada, assistem à contenda das duas classes superiores, sem poder nem saber decidir bem ainda nem as suas próprias simpatias, que tendem a uma ora a outra. Nota-se na peça que não há uma regularidade entre as cenas que a forma. O primeiro ato compõe-se de 14 cenas, o segundo de 19 cenas e o último de 12 cenas. Gomes do Amorim (1884, p. 240- 241, Tomo III), o maior biógrafo de Garrett, assinala que há um descompasso entre os atos, uma vez que: nos dois primeiros os desenhos das personagens são corretos e acabados e sempre despertam interesse no leitor, enquanto o terceiro apresenta certa frouxidão que além de prejudicá-lo no que tange ao desenvolvimento das personagens, indicam longo intervalo entre a feitura de uns e a do outro. (1884, p. 240-241, Tomo III)
Ainda para Gomes do Amorim, a composição é “graciosa, bem concebida” e em relação ao retrato feito por Garrett do Marquês de Pombal é “perfeito”. O biógrafo de Garrett chama ainda atenção para o prefácio da obra que, segundo ele, apresenta ideias que servem como estudo da sociedade portuguesa e das fases pelas quais ela passou desde que “nossos pais e avós travaram a guerra da classe média com a aristocracia.” Resta por fim ao leitor o regozijo de ler tão surpreendente obra.
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Referências AMORIM, Francisco Gomes de. Garrett: Memórias Biographicas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1884. Tomo III. GARRETT, Almeida. Catão. Tragédia. 1. ed. Obras I (Teatro I). Lisboa: Imprensa Liberal, 1822. ______. Obras de Almeida Garrett. Porto: Lello & Irmão-Editores, 1966. V. II. ______. Obras Completas . Catão. 7. ed. Lisboa: Parceria A. M. Pereira Ltda, 1972, Teatro I. JESUS, Virginia Maria Antunes de. Miguel Rovisco: O Teatro da História. 277 p. 2008. Tese (Doutorado em Literatura Portuguesa- Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas)- Universidade de São Paulo, 2008. MONTEIRO, Ofélia Milheiro Caldas Paiva. A formação de Almeida Garrett- Experiência e Criação. Coimbra: Centro de Estudos Românicos, 1971. V. II. NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das; et alii. Garrett: o fim do primeiro exílio e o semanário O Cronista (1827). In: Literatura, história e política em Portugal (1820-1856). EDUERJ: Rio de Janeiro, 2007. p. 44. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Tradução para o Português e direção de J. Guinsbourg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Anais do III CIELLI (2014) - ISSN 2177-6350
RELATO DE UM CERTO ORIENTE, DE MILTON HATOUM: MEMÓRIA E IDENTIDADE.
Elaine Cristina de Souza Breganholi (UEL)
Para o historiador francês Jacques Le Goff, a memória, como propriedade de conservar certas informações, “remete-nos a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (2013, p. 387). Partindo desse pressuposto, e acreditando na importância da memória para a formação da identidade do indivíduo, este texto faz um percurso por meio da narradora anônima de Milton Hatoum em Relato de Um Certo Oriente (1989), evidenciando como suas lembranças, podem influenciá-la e como sua memória será o fio condutor deste relato que se torna impreciso e com várias lacunas. Essa impossibilidade de recuperação da memória revelará a crise do próprio sujeito, a crise da narração tão comum ao romance moderno e que vem se radicalizando nos escritos contemporâneos. O amazonense Milton Hatoum nascido em 19 de agosto de 1952, na cidade de Manaus, é um dos maiores escritores da atualidade brasileira, destacando-se pelo recebimento de três prêmios Jabuti, atribuídos a Relato de Um Certo Oriente (1989), Cinzas do Norte (2005) e Órfãos do Eldorado (2008). Descendente de libaneses conviveu com a cultura, religião e tradição dos árabes e dos judeus. Na adolescência mudou-se para Brasília e, tempos depois, ingressou na Universidade de São Paulo e fez pós-graduação na Universidade de Paris. Foi professor de literatura francesa na Universidade Federal do Amazonas e na Universidade da Califórnia. Atualmente, mora em São Paulo, onde é colunista do Caderno 2, do O Estado de S. Paulo) e do site Terra Magazine. Relato de Um Certo Oriente (1989) foi o primeiro romance de Hatoum. A palavra relato, no sentido dicionarizado, significa ação ou efeito de relatar, narração, descrição, explanação ou explicação feita oralmente sobre uma situação ou acontecimento e relato de experiência. Pensando na série de significados desta palavra, pode-se ter uma prévia acerca do que será abordado neste romance. Todo relato necessita de um narrador que, através de sua memória, relatará os fatos dando vida a cada palavra pronunciada. A narrativa conta a história de uma narradora inominada que, após ficar internada por vários anos em uma clínica psiquiátrica, retorna para sua cidade Natal. Correspondendo-se
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com seu irmão em Barcelona, ela produzirá relatos extraídos de sua memória, ativados assim que ela entra na casa de Emílie, sua mãe adotiva que acaba de falecer. As narrativas organizadas pela narradora, de acordo com Helena Sobral (2010), se constituem no âmbito em que a memória se manifestará trazendo à tona o vivido por ela, pelos outros narradores, por meio dos espaços visitados, do urbano, da floresta, dos ambientes internos, enfim, possibilitará o resgate de parte desse passado marcado por vieses nem sempre compreendidos pela protagonista, mas que representam uma busca pelas instâncias submersas pelo tempo. Assim, a narradora procura reviver, “com os olhos da memória, as passagens da infância, as cantigas, os convívios, a fala dos outros, a nossa gargalhada ao escutar o idioma híbrido que Emilie inventava todos os dias” (HATOUM, 2003, p. 166). Inicialmente, nos deparamos com a primeira característica intrigante deste romance que já nos remete a um dos traços da literatura contemporânea, a narradora, personagem central da trama, não tem nome. Começa a narrativa já se referindo ao irmão e nome não é revelado. Aqui, a narradora é descentrada, pois mesmo que seja a organizadora e personagem central da trama, não se podem conhecer suas características, seu caráter, personalidade ou profissão, sua identidade já lhe é negada desde o início do romance. Stuart Hall em A Identidade Cultural da Pós-Modernidade (2006) apresenta o conceito do sujeito pós-moderno, discutindo que ele não possui uma identidade fixa ou permanente e que nossas identificações estão continuamente sendo deslocadas. A narradora inominada de Hatoum começa seu relato sem dar pista alguma de como é realmente: Quando abri os olhos, vi o vulto de uma mulher e o de uma criança. As duas figuras estavam inertes diante de mim, e a claridade indecisa da manhã nublada devolvia os dois corpos ao sono e ao cansaço de uma noite maldormida. Sem perceber, tinha me afastado do lugar escolhido para dormir e ingressado numa espécie de gruta vegetal, entre o globo de luz e o caramanchão que dá acesso aos fundos da casa. (HATOUM, 2008, p.7) Sem nome a personagem principal inicia uma série de relatos a fim de enviá-los a seu irmão que está em Barcelona. Consegue descrever, de maneira fragmentada e por vezes imprecisa, suas impressões acerca do seu retorno a sua cidade natal e à casa. No contato com pessoas e até mesmo lugares que marcaram sua infância sua memória é ativada e ela acaba por relatar suas lembranças ao irmão: Antes de sair para reencontrar Emilie, imaginei como estarias em Barcelona, entre a Sagrada Família e o Mediterrâneo, talvez sentado em algum banco da praça do Diamante, quem sabe se também
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pensando em mim, na minha passagem pelo espaço da nossa infância: cidade imaginária, fundada numa manhã de 1954... (HATOUM, 2003, p.12) Assim que adentra sua antiga casa, cada parte torna-se fundamental para compor o mosaico nem sempre ordenado, mas importante para seus relatos. A descrição dos tipos de tapete Kasher e Isfahan já nos remete a objetos do oriente, são tapetes persa, os elefantes indianos de porcelana, revelando a nacionalidade da família descendente de libaneses, que, apesar de serem narrados como memória da anônima, não nos diz muito a seu respeito, visto que fora adotada e não se sabe nada de seu nascimento ou nacionalidade. A atmosfera da casa estava impregnada de um aroma forte que logo me fez reconhecer a cor, a consistência, a forma e o sabor das frutas que arrancávamos das árvores que circundavam o pátio da outra casa. Antes de entrar na copa, decidi dar uma olhada nos aposentos do andar térreo. Duas salas contíguas se isolavam do resto da casa. Além de sombrias, estavam entulhadas de móveis e poltronas, decoradas com tapetes de Kasher e de Isfahan, elefantes indianos que emitiam o brilho da porcelana polida, e baús orientais com relevos de dragão nas cinco faces. (HATOUM, 2003, p. 8) Beatriz Rezende em seu livro Contemporâneos (2007) define que a presentificação ocorre na produção contemporânea em que assuntos da atualidade que contrastam com termos do passado e futuro, retratando uma preocupação com a urgência em se abordar o hoje com múltiplas possibilidades de criação. Para a narradora de Hatoum, há uma necessidade em se construir um presente ordenado, mas que acaba por se criar com várias lacunas, sendo grande parte de suas memórias de outras pessoas e não sobre ela própria. No segundo capítulo ela inicia se referindo ao irmão: “tu ainda engatinhavas naquele natal de 54 e Soraya Ângela era a minha companheira” (HATOUM, 2003, p. 11). Mas, quem vai comandar o andamento da narrativa é a vida da matriarca Emilie, sua mãe adotiva que está prestes a morrer. Todos os relatos giram ao seu redor “ninguém podia viver longe de Emilie, nem refutar sua manias” (HATOUM, 2003, p. 18). Duas tragédias também são narradas no romance. A primeira é a morte da menina Soraya Ângela filha da tia Samara. A menina que nasce surda-muda e acaba por isolada da família pela própria mãe, uma vez que Samara se sentia culpada por ter uma filha com deficiência. O acidente acontece de repente e não é relatado em muitos detalhes: Estavas ausente naquela manhã. Emilie te levara ao mercado, os tios dormiam e Samara Délia madrugava na Parisiense com vovô. Tudo aconteceu de uma forma rápida e inesperada, como se o golpe
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fulminante da fatalidade perseguisse o corpo de Soraya Ângela. (HATOUM, 2003, p. 12) A segunda tragédia é o suicídio do tio Emir que, assim como a morte de Soraya, não é explicitamente revelado, e provavelmente se trata de uma desilusão amorosa: Mas nem nas nossas conversas nem na correspondência que mantivemos ela replicou as minhas insinuações a respeito da morte de Emir. Talvez por respeitar o pacto com Emilie, já que um suicídio pode abalar várias gerações de uma família. (HATOUM, 2003, p. 74) Na viagem de Beirute para o Brasil, o navio fez uma escala em Marselha. Uma frase de Emilie, que bem ou mal traduzi e nunca mais esqueci, dizia mais ou menos assim: “Um porto é um lugar perigoso para os jovens porque quase sempre são vítimas de um vírus fatal, o do amor” (HATOUM, 2003, p. 75). Toda essa junção de relatos coletivos e individuais acabam - construindo um mosaico de narrativas para compor um único relato, dos oito capítulos os quais são compostos o livro, apenas três é da narradora inominada que terá o papel que juntar e organizar esses relatos fragmentados para compor seu relato final. Para Stefania Chiarelli, toda essa fragmentação é um problema moderno da representação: A fragmentação surge como resposta ao impasse dessa experiência impossível de ser abarcada em sua totalidade, de um discurso que pretenda abranger vivências que já não são possíveis de representação, pelo menos não em um sentido totalizante. O discurso da unidade não sendo mais viável, a ideia de dispersão e de fragmentação surge como um modo de operar. Trata-se, portanto, de experiências que será encenadas por esses sujeitos da diferença cultural em permanente embate com uma realidade marcada pela divisão, equacionando na linguagem possível a impossibilidade de narrar a experiência plena. (CHIARELLI, 2007, p. 53) Quando a narradora se propõe a contar sua história, ela percebe que não poderá fazê-la sozinha, utilizando-se da memória coletiva daqueles que fizeram parte de seu passado. Todavia, ao tentar organizar todas essas memórias, depara-se com a dificuldade em recriar a sua própria. Sua memória está fragmentada e, por mais que tente dar uma ordem, há uma imprecisão dos fatos, impedindo assim da inominada dizer quem é realmente. Retomando Le Goff: “A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos
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indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (2013, p. 435). Para a inominada de Hatoum cada lembrança, que nos remete a sua identidade, parece estar carregada de dor: “um inferno de lembranças, um mundo paralisado à espera de movimento” (2003, p. 11). Quando ela se apresenta por ela mesma, tem o direito de se lembrar apenas o que realmente quer. Sua memória cheia de lacunas é tudo o que ela pode e quer dar ao leitor. Beth Brait em A Personagem (2006) descreve a personagem apresentada por ela mesma: Quando a personagem expressa a si mesma, a narrativa pode assumir diversas formas: diário íntimo, romance epistolar, memórias, monólogo interior. Cada um desses discursos procura presentificar a personagem, expondo sua interioridade de forma a diminuir a distância entre o escrito e o “vivido”. (BRAIT, 2006, p. 61) A narradora fará seus relatos em forma de memórias através de cartas que possuem um receptor, seu irmão em Barcelona. Há a descrição da cidade, nas primeiras décadas do século XX, a casa de Emilie, a loja da família Parisiense, as tradições, culinária, as diferenças religiosas e diversas situações e momentos familiares, mas ela sempre está em segundo plano, não falando de si, sabe-se apenas que esteve por quase vinte anos em uma clínica em São Paulo. Toda a narrativa fica ligada ao silêncio sem a possibilidade de reconstruir a identidade da narradora, que acaba por ser um ser fragmentado com pouco ou nenhum dado revelado. O relato se mantém ao redor da matriarca Emilie que também é uma personagem cheia de segredos. Em algum dia do passado, tu deves ter reparado no bracelete enroscado no antebraço de Emilie, como uma tatuagem dourada; na verdade eram quatro argolas unidas por não sei o quê. Nas outras incursões que fiz ao baú – para obter uma carta, encontrei outro par de pulseiras, como um novo anel que surge no corpo de uma serpente. Demorou algum tempo para relacionar o numero de pulseiras aos filhos de Emilie. Nunca descobri de onde surgiram essas argolas delgadas que se reproduziram secretamente no leito do relógio. (HATOUM, 2004, p.55). Como mencionado, essa autonegação já remete à ideia de falta de identidade. Como uma espécie de sombra a narradora está sempre se projetando por trás de outro personagem. Entretanto Hall, já alerta para essa busca de identidade por não passar de uma mera ilusão:
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A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas e de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (HALL, 2006, p 13). Toda a trajetória da inominada deu a ela coragem para voltar. Através do ajuntamento das estórias de outros personagens, ela recria um universo que lhe causou dor, mas que lhe deu vida. Por mais distante que aparente estar, e mesmo sem nome, conseguiu ter voz e contar sua história. A inominada atingiu seu objetivo que era escrever uma carta a seu irmão, apesar de toda dificuldade encontrada e pelos estilhaços na narrativa, conseguiu organizar seu relato. Gravei várias fitas, enchi de anotações uma dezena de cadernos, mas fui incapaz de ordenar coisa com coisa. Confesso que as tentativas foram inúmeras e todas exaustivas, mas ao final de cada passagem, de cada depoimento, tudo se embaralhava em desconexas constelações de episódios, rumores de todos os cantos, fatos medíocres, datas e dados em abundância. Quando conseguia organizar os episódios em desordem ou encadear as vozes, então surgia uma lacuna onde habitava o esquecimento e a hesitação: um espaço morto que minava a sequência de ideias. (HATOUM, 2008, p. 147) Também me deparei com outro problema: como transcrever a fala engrolada de uns e o sotaque dos outros? Tantas confidências de várias pessoas em tão poucos dias ressoavam como um coral de vozes dispersas. Restava então recorrer a minha própria voz, que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozes. (HATOUM, 2008, p. 148). Trata-se de uma pessoa que, por meio de imagens fragmentárias de sua memória traz à tona suas lembranças de infância e juventude na cidade de Manaus. Sua criação por uma mãe adotiva, Emilie que é o centro de todos os acontecimentos de sua vida e peça chave para que ocorra todo o relato. Vários outros narradores, que conviveram com a inominada, auxiliam nas lembranças e na composição da história. Seu nome não revelado já remete a sua identidade negada. Hall (2006) declara que o que aconteceu à concepção do sujeito moderno, na modernidade tardia, não foi simplesmente sua degradação, mas seu deslocamento. Quando a narradora se propõe a narrar suas memórias, o que se percebe são suas lembranças de outras pessoas e sua história permanece oculta não sendo revelada.
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Os quase vinte anos que passou em São Paulo em uma clínica psiquiátrica é um dos poucos dados revelados sobre ela. Todavia, não se sabe por quais motivos estaria naquele lugar. O leitor imagina e deduz que, pelo tempo que ela permaneceu lá, provavelmente esteve muito doente, mas é apenas uma suposição. Todo esse percurso inverso que ela faz através de toda coleta de dados e organização dos relatos, nos remete à ideia de que ela precisava disso para se sentir realmente curada. Através dos fatos apresentados nota-se que tudo o que ela passou em Manaus, foi necessário para compor sua identidade. Mesmo sem possuir um nome, suas lembranças a constroem como personagem e através de sua identidade negada por sua inominação, a narradora consegue se afirmar através de sua memória.
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Referências BONNICI, Thomas, ZOLIN, Lúcia Osana. Teoria Literária. 2ª ed. Maringá: Eduem, 2005. BRAIT, Beth. A personagem. 8.ed. São Paulo: Ática, 2006. (Princípios, 3). CHIARELLI, Stefania. Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum. São Paulo: Annablume,2007 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2006. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1994. MAQUÊA, Vera Lúcia da Rocha. Memórias inventadas: um estudo comparado entre 'Relato de um certo oriente', de Milton Hatoum e 'Um rio chamado Tempo, uma casa chamada Terra', de Mia Couto. Diss. Universidade de São Paulo, 2007. PELLEGRINI, Tânia. A narrativa Brasileira Contemporânea: Emergência do pósmodernismo. 1994. PELLEGRINI, Tânia. Ficção Brasileira Contemporânea: Assimilação ou Resistência? ,2001. RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: Expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra: Biblioteca Nacional, 2008. SCHOLLHAMMER, Karl Erick. Ficção Brasileira Contemporânea. RJ: Civilização Brasileira, 2011.
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SILVA, Helena Sobral Arcoverde. RELATO DE UM CERTO ORIENTE NARRAÇÃO E MANIFESTAÇÕES
DA
MEMÓRIA
COLETIVA
Disponível
em:
.http://www.uniandrade.br/mestrado/pdf/bancas/2007-helena_sobral.pdf VILLAÇA, Nízia. Paradoxos do pós-moderno: sujeito & ficção. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996, p. 13-57.
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LEITURA NA CULTURA PARTICIPATIVA: ENTRE O CÂNONE DO FANDOM E O CÂNONE DA ESCOLA Elenice Koziel (UEM) As mudanças trazidas pelo advento da internet e a modernização e difusão de aparelhos de comunicação eletrônica têm reflexos nas práticas de leitura e de escrita. O leitor contemporâneo tem à sua disposição vários recursos que fazem com que o ato de ler, quase sempre, envolva também o contato com as mídias digitais e a interação no/com o ciberespaço. Isso acontece, sobretudo, nas comunidades on-line de fãs – fandoms. Através de plataformas virtuais criadas e alimentadas por fãs, leitores interagem com outros leitores, compartilham suas impressões de leitura, produzem materiais artísticos relacionados à obra “original”, fazendo reflexões críticas a partir das leituras com as quais estão envolvidos. Dessa forma, no fandom, leitores apropriam-se de ferramentas digitais que ajudam a tornar a leitura uma atividade mais interativa e produtiva, fazendo com que a função tradicional do leitor espectador seja ampliada. Porém, embora no fandom também se encontrem produções relacionadas a clássicos da Literatura, o que predomina nas plataformas virtuais são as comunidades de leitores das séries destinadas ao público juvenil. É visível que há um amplo público leitor dessas séries que dedica parte do seu tempo para atos que vão além da tradicional leitura individual e silenciosa. Somado às discussões sobre as múltiplas possibilidades de interpretação dos textos lidos compartilhadas entre os leitores/fãs, e aos trabalhos artísticos produzidos por esse público, há também, nesse ambiente, debates sobre assuntos diversos, entre os quais se destacam livros e literatura. Assim, partindo das considerações sobre cultura da convergência e cultura participativa (JENKINS, 2009), analisamos postagens, em uma fan page no facebook, da série Percy Jackson e Os Olimpianos, de Rick Riordan, em que os leitores/fãs discutem questões relacionadas à leitura e à literatura.
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Convergência e participação: expansão do fandom O impacto do uso das mídias digitais e da conexão em rede na sociedade atual, a maneira como os “novos” e os “antigos” meios de comunicação estão interligados e como os papéis de consumidores e produtores de mídias estão “confusos” no contexto da cibercultura são pontos discutidos por Jenkins (2009). O autor chama esse cenário de cultura da convergência. De acordo com Jenkins, a cultura da convergência é “onde as velhas e as novas mídias colidem, onde mídia corporativa e mídia alternativa se cruzam, onde o poder do produtor de mídia e o poder do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis.” (JENKINS, 2009, p. 29). O autor destaca que, mais do que aparelhos, é ação dos consumidores tem um papel fundamental. Para Jenkins, “a convergência não ocorre por meio de aparelhos, por mais sofisticados que venham a ser. A convergência ocorre dentro dos cérebros dos consumidores individuais e em suas interações sociais com outros.” (JENKINS, 2009, p. 30) Jenkins considera que os consumidores estão mais ativos, e participam mais efetivamente do processo de produção e distribuição de conteúdos midiáticos. Assim, na cultura participativa, os consumidores são também produtores. Ao usar a expressão cultura participativa, a autor retoma o termo inteligência coletiva, cunhado por Pierre Lévy, em que se entende que o consumo tornou-se um processo coletivo, ou seja, ninguém sabe tudo, cada um sabe algo que passa a ser compartilhado com outros com objetivos comuns. A internet facilitou o desenvolvimento de trabalhos de forma coletiva. Jenkins (2009) afirma que nesse espaço as habilidades individuais são subordinadas a objetivos comuns. Essa cultura participativa é vista, sobretudo, nas comunidades on-line de fãs. Jenkins destaca que os fãs são o segmento mais ativo do público das mídias, aquele que se recusa simplesmente a aceitar o que recebe, insistindo no direito de se tornar um participante pleno. Embora não seja um fenômeno novo, o fandom popularizou-se nos últimos anos com a expansão da internet. O espaço virtual proporcionou uma maior facilidade em reunir pessoas que os mesmos gostos. “A Internet abriu uma comporta aos jovens cujas paixões estão finalmente sendo ouvidas” (JENKINS, 2009, p. 322). Da mesma forma,
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Murray (2003) destaca que a internet acelerou o crescimento do fandom, e que os fãs utilizam esse meio para conversar uns com outros e, muitas vezes, também com produtores, escritores e astros. O número de comunidades on-line de fãs tem crescido, abrangendo diversos contextos e produtos culturais, incluindo as produções literárias, principalmente as séries voltadas para o público juvenil. Nos fandoms é possível identificar convergência entre “velhos” e “novos” meios de comunicação, de que fala Jenkins (2009), uma vez que nas comunidades voltadas às séries literárias há a convivência harmoniosa entre livro impresso e os meios eletrônicos, uma vez que, geralmente, a obra é lida em meio impresso, porém os fãs utilizam-se dos recursos digitais para outras formas de interação relacionadas à obra. Nas plataformas virtuais, grupos que compartilham as mesmas paixões interagem e produzem reflexões críticas e trabalhos criativos relacionados à obra por eles apreciada. Entre os trabalhos mais comuns de fãs, podemos citar as fanfictions, fan arts, fan films. Por fanfiction – fanfic ou fic, de forma abreviada – entende-se a prática em que o fã escreve histórias baseadas na narrativa oficial; fan arts são as imagens criadas por fãs, retratando personagens ou cenas relacionadas à obra apreciada. Essas imagens vão desde um simples desenho com lápis numa folha de caderno a artes mais elaboradas usando recursos digitais; fan films são produções de vídeos amadores realizados por fãs. Os fan films ganharam força graças à popularização de equipamentos eletrônicos usados para produção de vídeos e também à facilidade em publicar e compartilhar vídeos na web. A atuação dos fãs no ciberespaço é ampla e está presente em vários segmentos midiáticos. Observa-se que entre as comunidades de fãs, destacam-se as séries que conquistam o público juvenil. Assim, vemos uma grande quantidade e uma variedade de produções relacionadas aos livros que esses jovens estão lendo.
Leitura no fandom X leitura na escola Quando se fala em cânone, existe uma diferença entre uso desse termo no espaço escolar e nas comunidades de fãs. O cânone literário é comumente usado no ambiente
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da educação formal para se referir às obras consagradas pela crítica, obras que, conforme afirma o teórico Roberto Reis (1992), são julgadas e consideradas com valor literário pelos que são investidos de autoridade para fazê-lo. Já no fandom, o termo cânone se refere à narrativa estabelecida como referência para todos os fãs, à narrativa pela qual o fã cultiva um carinho especial. Embora existam grupos de fãs de produções relacionadas a obras que fazem parte do cânone literário tradicionalmente valorizado pela escola e pelas instituições que “definem” o que faz parte do corpus canônico, esses grupos são muito pequenos. É visível que os livros preferidos pelos jovens leitores, os que conquistam um amplo número de fãs e movimentam as comunidades virtuais, geralmente, não são os mesmos que constam nas listas de leitura que a escola solicita. Assim, observa-se que fora do ambiente escolar os alunos leem e, além de ler, consomem e produzem produtos midiáticos relacionados ao texto lido. Muitos deles participam ativamente das comunidades de leitores/fãs, debatendo as múltiplas possibilidades de interpretação da narrativa, produzindo trabalhos artísticos e discutindo assuntos diversos que incluem questões relacionadas à leitura e à literatura. Ao analisarmos alguns posts em uma das principais fan pages da série Percy Jackson e Os Olimpianos, percebemos que essa discussão sobre livros, leitura e literatura é frequente. Os debates envolvem outras séries que fazem parte do universo de leitura dos participantes desse fandom; outros livros do mesmo autor; livros que não são necessariamente literatura, mas que discutem algum tema abordado na série (mitologia, especialmente); e, também, clássicos da literatura, livros que geralmente são cobrados na escola. Em relação às discussões sobre leituras que são exigidas pela escola, tomamos como exemplo um post de uma fã em que ela publica uma lista de livros solicitada pela sua escola para o ano de 2014, para a turma do oitavo ano, onde consta, entre outros livros, O ladrão de raios, primeiro volume da série Percy Jackson e Os Olimpianos. Na descrição da postagem, a frase “sintam inveja de mim”.
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Figura 1 – imagem publicada por uma fã na página Pérolas Percy Jackson, no facebook
Nota-se que a lista contempla tanto clássicos da literatura como best-sellers adorados pelos adolescentes. No recorte a seguir, publicamos parte da discussão referente à lista de livros publicada pela fã, vemos alguns comentários que giram em torno da leitura de clássicos.
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Imagem 2 - Print Screen de comentários dos fãs em relação ao conteúdo da imagem 1
Os comentários que se seguiram ao post, incialmente, mostraram-se maravilhados com a ideia de estudar em uma escola que solicitava que seus alunos lessem aquilo que eles já liam por puro prazer. Porém, aos poucos, inicia-se também o debate sobre a importância da leitura de clássicos, tomando como base os clássicos solicitados na lista e partindo para outros livros canônicos conhecidos do público leitor desse grupo de fãs, autores como Shakespeare e Machado de Assis, por exemplo. Notase que, por um lado, há uma resistência à leitura dos clássicos, vistos como algo antigo fora do contexto deles, como uma linguagem “classuda”, para a qual falta-lhes “paciência”, ou algo que alguém disse que era “chato”. Por outro lado, há os que
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defendem a leitura dos clássicos, mas não com muitos argumentos, simplesmente porque são clássicos, portadores dos “valores da literatura”. Atualmente, dentro das comunidades de leitores/fãs e mesmo fora delas, as redes sociais se tornaram um espaço de “leitura ostentação”. Alguns comentários atestam que “ler virou modinha”. É comum encontrarmos as chamadas shelfies, fotos de estantes e outros ambientes com livros, cuja intensão é mostrar o “bom gosto” do leitor. A palavra shelfie faz analogia à palavra selfie, as fotos pessoais tiradas pelos próprios usuários para publicar nas redes sociais. Assim, uma vez que shelf significa prateleira em inglês, as shelfies mostram a “sofisticação” do usuário ao expor sua prateleira. No caso das comunidades de fãs da série Percy Jackson e Os Olimpianos, observamos, além de fotos dos livros que compõem a série, fotos de outros livros do mesmo autor e de livros de outras séries de grande apelo entre o público juvenil. Livros frequentemente estão relacionados a status. Historicamente, é comum encontrarmos casos em que o livro é associado à sofisticação. Manguel (1997) cita como exemplo, entre outros casos, a história de um senhor chamado Klostermann que, na Rússia do século XVIII, fez fortuna vendendo longas fileiras de encadernações recheadas de papel velho. A ilusão de uma biblioteca permitia aos cortesões obterem favor da imperatriz letrada. O autor lembra que até os nossos dias livros são usados para decoração a fim de dar ao ambiente uma atmosfera mais sofisticada. Estantes de livros são usadas como fundo em programas de televisão a fim de acrescentar um toque de inteligência ao cenário. Assim, parece natural, em um contexto cibercultural, que muitos usuários mostrem-se leitores e, dessa forma, tentem agregar em seu perfil toda simbologia que o livro carrega. Porém, nas comunidades de fãs essa onda de mostrar-se leitor, gera comentários contraditórios. Há os que acreditam que o fato de expor o que se lê contribui para conquistar novos leitores e há os que não veem necessidade de tal exposição. A seguir publicamos alguns comentários retirados de uma das fan pages da série Percy Jackson e Os Olimpianos no facebook em que, após um post que mencionava o fato da leitura ser “modinha”, há uma discussão sobre essa questão.
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Figura 3 – Print Screen de comentários de membros da fan page Pérolas Percy Jackson no facebook
Percebemos que os fãs, mesmo contestando a necessidade de se expor o que se lê, ressaltam os benefícios do ato de ler: veem a leitura como algo que não se desgasta, como um caminho para a transformação do país, como um meio para se desenvolver, adquirir conhecimento e sair da ignorância. Alguns leitores/fãs veem a leitura como um ato que os diferencia dos demais, que dá eles certo status que pode estar ameaçado se muitos começarem a ler. Há os que acreditam que a moda é passageira e que só permanecerão leitores os que sempre foram leitores. Por outro lado, mesmo os que criticam a exposição exagerada do “perfil de leitor”, veem nessa “modinha” um possível caminho para aproximar os jovens não leitores dos livros.
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Considerações finais Quando o fandom torna-se um espaço de discussão que engloba questões diversas, incluindo o debate sobre livros e literatura, podemos considerá-lo como um importante aliado que contribui para incentivar a prática de leitura e reflexões críticas entre os jovens da atualidade. Embora a escola tenha o papel promover a leitura, não se pode negar que, muitas vezes, esse papel é desempenhado com êxito pelas comunidades on-line de fãs, em que os usuários, ativos membros da cultura participativa, contribuem, cada um a seu modo, para a construção de um espaço que contribui para a formação de leitores críticos. A escola tem o papel de incentivar a leitura de obras canônicas, porém, não se pode ignorar que há um amplo consumo por parte do público juvenil de outras literaturas que não se enquadram nesse perfil. Assim, vale a reflexão a respeito de como a escola pode discutir o que os alunos têm lido fora do ambiente escolar e de que forma as leituras, discussões e produções artísticas presentes no fandom podem contribuir para a formação de um leitor crítico e como essas práticas dialogam com as obras canônicas.
Referências JENKINS, H. Cultura da Convergência. Tradução: Susana Alexandria. São Paulo: Aleph, 2009. MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. MURRAY, J. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Itaú Cultural: Unesp, 2003. REIS, Roberto. Cânon. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da crítica: Tendências e Conceitos no Estudo da Literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992. Col. Pierre Menard. p.65-92.
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AS CRÔNICAS DE R. ARLT E AS GRAVURAS DE F. DE GOYA Eleonora Frenkel (UNIOESTE, CAPES/PNPD)
A viagem de Roberto Arlt ao Brasil, encarregado de enviar suas crônicas ao jornal El Mundo, de Buenos Aires, onde já escrevia sua coluna de águas-fortes portenhas desde 1928, resultou em uma série de 39 textos publicados entre 2 de Abril e 29 de Maio de 1930. Textos marcados pela oscilação entre a idealização da sociedade carioca e os preconceitos de uma visão de mundo estereotipada. O contato de Arlt com o estrangeiro provoca um efeito de mão dupla, no qual uma via conduz ao encantamento e a outra ao desprezo, de modo que seu movimento se expressa com toda a complexidade do termo hospitalidade, aquele que se refere ao gesto de acolher o estrangeiro, mas que, em tempos modernos, se aproxima cada vez mais do campo semântico da hostilidade e se afasta do terreno da amizade.1 O cronista crítico dos paradoxos da modernidade argentina se torna, em território estrangeiro, mais “argentinófilo” do que nunca, como diz em crônica intitulada “Amabilidade e realidade”, de modo que observamos que quanto mais se fecha a individualidade e a propriedade, mais se hostiliza o contato entre hóspede e hospedeiro. É bom que tenhamos isso em mente ao ler as crônicas cariocas de Arlt, porém, lêlas com Francisco de Goya nos permite sair de um conflito entre identidades nacionais e de possíveis conflitos diplomáticos, como aquele que Arlt teme provocar ao escrever sobre o Jardim Zoológico do Rio de Janeiro e qualificá-lo de chinfrim e defini-lo como pensionato de animais. Ele escreve toda a crônica e ao final, anota: “P.S.: Não gostaria que esta nota provocasse um incidente diplomático” (ARLT, 2013, p. 320). Ler Arlt com Goya nos desloca a pensar a opção estética pelo grotesco, que se revela em sua linguagem sarcástica e seus personagens deformes, bizarras mesclas entre homens e animais. Ler as crônicas de Arlt com as gravuras de Goya nos permite explorar a escolha pela técnica da gravura à água-forte para dar nome à sua coluna de crônicas.
Massimo Cacciari apresenta um processo histórico que situa pouco a pouco o termo latino hostis no campo semántico da hostilidade: “Nuestra lengua ya no es capaz de captar el significado original que tenían antes estas palabras, es decir, ese indicar una relación esencial en virtud de la cual hostis era un término que se encontraba en el ámbito semántico de la hospitalidad y la acogida. También puede decirse, como afirmaba Benveniste, que hostis siempre tiene un valor recíproco y que esta reciprocidad hoy se da solamente en el ámbito de la enemistad y no en el de la hospitalidad y acogida” (CACCIARI, 1996, p. 18). A reflexão de Cacciari, assim como a de Jacques Derrida, se coloca a partir da cadeia de significantes que Emile Benvenista elabora, onde o campo semântico de hostis se move entre: hóspede-hospedeiro-hostilidadeinimizade. 1
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A água-forte é uma técnica que resulta da ação mordente do ácido nítrico e dos restos de tinta que se imprimem sobre o papel e a escolha de Arlt por ela não me parece casual. É curioso observar que durante três meses em 1929, Raúl Scalabrini Ortiz assumiu a coluna de Arlt no jornal El Mundo e nesse período, as crônicas passaram a se chamar Apuntes porteños. Em 1925, dois escritores – Juan M. Prieto e Félix Lima – assinavam colunas de crônicas nos jornais Mundo Argentino e Crítica, que se chamavam, respectivamente, Cuadritos porteños e Acuarelita boquense. Claramente, a opção de Arlt era mais incisiva, mais mordaz. Suas provocações constantes ao leitor e sua falta de pudor ao ser ofensivo e descortês se tornam marcas do personagem-escritor que o jornalista cria para si mesmo. Essa marca se faz presente em muitas passagens, por exemplo, quando escreve sobre os “Costumes cariocas” (03/04/1930) e os compara aos portenhos, apresentando a estes últimos (seus compatriotas) como desrespeitosos em relação às moças, às mulheres; e ali ele escreve: “Me desculpem; ando viajando para dizer verdades aos meus leitores, não para acariciar seus ouvidos” (ARLT, 2013, p. 31). O personagemescritor Roberto Arlt não veio ao mundo para agradar e sim para incomodar. No ano anterior à sua viagem, em 1929, Arlt tinha publicado uma crônica em que trazia à baila uma discussão que um suposto leitor, o senhor Olmedilla, tinha travado em uma tertúlia de café, onde se dizia que os textos de Arlt não passavam de “descrições caninas” e de simples “pastéis”. O senhor Olmedilla, muito consternado por não ter conseguido defender o escritor na tal tertúlia, decide escrever a ele e perguntar o que diria em sua defesa. E Arlt responde, com ironia e petulância que “com toda ingenuidade”, nunca tinha se preocupado de saber o que era aquilo que escrevia, quer dizer, que nunca lhe interessara a etiqueta com a qual se classificava qualquer mercadoria. Porém, dirá: “Quando o senhor me pergunta se o que escrevo são ou não águas-fortes, não sei dizer que sim ou que não. Sei que às vezes, a certas pessoas, minhas notas picam como ácido nítrico. E é com esse ácido que se grava no metal o desenho dessa classificação: águasfortes” (ARLT, 1998, p. 377). Creio que é pertinente que nos situemos no espaço da água-forte como gênero corrosivo, preparando-nos para uma leitura que provocará essa ardência, essa incômoda queimação. Além do sarcasmo impetuoso, o caráter goyesco das crônicas de Arlt se lerá em seus personagens grotescos, homens que perderam (ou não adquiriram) o status de cidadãos, aquela condição que revelaria uma pretensa completude do homem moderno – civilizado. Os personagens de Arlt, seja em suas crônicas, contos, romances ou peças de teatro, estão, em geral, mergulhados numa condição infra-humana ou subcivilizada. De
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modo análogo a muitas das figuras de Goya em suas gravuras ou pinturas, que permanecem em uma espécie de limbo entre o animal e o homem. Um conflito que se traduz na tensão entre a barbárie e a civilização, entre a monarquia inquisitória e a república liberal ou entre o estado colonial e a nação independente. Arlt e Goya experimentam essas tensões, cada um em seu tempo e em sua geografia, e o que os articula é a percepção ambígua e indecisa, é o gesto barroco que desestabiliza o centro estruturante e a certeza apaziguante. Ambos são sensíveis ao paradoxo e ao que resta sem explicação, e daí provém suas formas irregulares e mal acabadas. Para conhecer um pouco mais desse personagem-escritor tão provocador, vale contar uma anedota que se passa antes da chegada de Arlt ao Rio de Janeiro, na viagem que faz a bordo do navio “Darro”. No dia 31 de Março de 1930, Arlt embarca “Rumo ao Brasil, em 1ª classe”. O jornal El Mundo havia reservado uma passagem na primeira classe para seu cronista-estrela, porque a essa altura as águas-fortes portenhas eram um sucesso de público, e o escritor narra o seu não pertencimento a esse espaço, sua condição estrangeira desde esse primeiro momento da viagem. Ao ouvir o gongo que anunciava a hora do jantar, Arlt se conduz ao restaurante e é recebido hostilmente por um cavalheiro na porta que lhe anuncia a necessidade de que vestisse um terno preto. O cronista escreve: O muito ladino deve ter manjado que eu, apesar de viajar de primeira, tinha cara de passageiro de terceira; mas eu, que pesco as coisas no ar, disse: - Veja, meu amigo; eu não tenho nada além de uma fatiota; e é essa que eu estou vestindo. Tenho outra também, mas está suja e rasgada. De modo que eu virei rangar com a que estou vestindo, e se os ‘gringos’ não gostarem, que reclamem perante a embaixada de seu país” (ARLT, 2013, p. 251.
Esse é o incômodo personagem e o intolerável narrador que leremos, também, nas crônicas cariocas. A primeira vez que me deparei com essas crônicas, na hemeroteca da Biblioteca Nacional de Buenos Aires, me pareceram uma boa oportunidade de tradução e publicação para o público leitor brasileiro; porém, uma primeira leitura me fez duvidar, justamente por essa incômoda combinação entre idealização e preconceito. Se, por um lado, o cronista irá registrar suas impressões sobre uma “cidade de gente decente” (ARLT, 2013a, p. 29), sobre a amabilidade, a educação, o respeito e a gentileza entre seus moradores; sobre uma “cidade casta e honrada”, onde não se encontram “mulheres de má fama pelas ruas” e onde não há jogatinas e cafés abertos pela noite; e, inclusive, irá afirmar que “eles
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[os cariocas] estão no caminho de uma vida superior à nossa [os portenhos]” (ARLT, 2013a, p. 45), e que o Brasil é “o mais europeu” dos países da América. Por outro lado, o cronista fará afirmações desconcertantes como: “O nível cultural do trabalhador argentino é imensamente superior ao do brasileiro” (ARLT, 2013a, p. 119) e questionamentos soberbos como: “Que fenômeno agiu sobre nós, argentinos, para nos tornar indiscutivelmente o país mais interessante, psicológica e culturalmente, da América do Sul?” (ARLT, 2013a, p. 159). E, o que é pior, seu expressivo assombro com a negritude e suas descrições nada polidas: “Fui tomar um trem na estação Pedro II. Na entrada, um futum de negro suado me invade o nariz” (ARLT, 2013a, p. 99). Por essas e outras, terminei por concluir que as crônicas cariocas não seriam a melhor maneira de dar continuidade à apresentação da literatura de Arlt ao público brasileiro, que o conhecia já de algumas traduções de seus romances e contos, mas que ainda não contava com suas crônicas em língua portuguesa. Nesse sentido, penso que a decisão de Gustavo Pacheco e de Maria Paula Gurgel Ribeiro, bem como das respectivas editoras Rocco e Iluminuras, de traduzi-las e publicá-las, é admirável pelo risco que assumem. As duas edições trazem exímios trabalhos de tradução (e são delas que retiro os fragmentos citados em português). Gustavo Pacheco, de certo modo, “avisa” os leitores de sua tradução: “Arlt escreve o que quer e da maneira que quer, incluindo opiniões abertamente preconceituosas, racistas e sexistas” (PACHECO, 2013, p. 12). Mas é nesse ponto que quero também pensar o goyesco ou o grotesco nas crônicas de Arlt, suas descrições implacáveis das figuras que encontra pelas ruas da cidade como expressões dessa estética que prima pela deformação e que apresenta com sua excentricidade um modo singular de leitura onde o peso está dado pelo enfrentamento de ideais homogeneizantes da modernidade e civilidade que não encontram seu espaço de realização nem na cidade de Madri percorrida por Goya, nem no Rio de Janeiro visitado por Arlt e nem em sua cidade natal. O trabalho de cronista, para Roberto Arlt, é, a modo Baudelairiano, o do trapeiro, aquele que coleciona os resíduos da cidade e deles faz sua poética. Seus passeios pela cidade não promovem seu enaltecimento e sim, a modo de Goya, seu desaparecimento e sua transformação em um “empório infernal”; sua exposição como “cenário grotesco e pavoroso onde [...] os endemoniados, os enforcados, os enfeitiçados, os enlouquecidos, dançam sua sarabanda infernal” (ARLT, 1998, p. 116).
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As imagens que ganham relevo nas águas-fortes portenhas de Arlt são violentas, por serem abjetas e excessivas, por excederem as formas, por deformá-las e transformálas, a ponto de violarem o espaço no qual se inscrevem,2 qual seja: o jornal progressista e familiar, onde a estética do belo predomina, onde contrastam brutalmente com os anúncios de roupas da moda, decoração de interiores, do sonho da casa própria e do automóvel. A operação realizada por Arlt é a mesma que ele identifica em Goya, quando diz que o pintor “se metia com as botas carregadas de barro nas salinhas privadas da duquesa de Alba” (ARLT, 2009, p. 349). Nesse sentido, é interessante observar a página de jornal em que aparecem as crônicas. Por exemplo, a de 08 de Agosto de 1930, em que se explora a figura da “vitrolista”, a moça que trabalha no comando da música nos cafés de bairro; sua descrição é pavorosa: Precisa ver as caras esgunfiadas dessas pobres criaturas que trampam de vitrolistas. Dão pena. Juro que dão pena. [...] Precisam vê-las! Dá vontade de embuchar umas onças de óleo de bacalhau nelas. A pele terrosa, anemia pura e sem falsificação; o risco do penteado cheio de caspa e com projeto de urbanização de insetos; a fala ciciosa; umas meias escabrosas e uma pele de gato pela decoração futurista do casaco... Estas são as princesas de bairro que fazem os poetas paroquiais escrever versos nauseabundos (ARLT, 1998, p. 97).
O interessante é que a imagem inapelável de uma moça anêmica, casposa e cercada de insetos é amenizada pelo projeto editorial do jornal e pela ilustração de Luis Bello, que acompanha boa parte das crônicas de Arlt. Suas descrições nos remetem muito mais à série de Caprichos de Goya ou às gravuras de alguns dos Artistas del pueblo, contemporâneos e conterrâneos de Arlt, principalmente Adolfo Bellocq e Facio Hebequer, onde primam as formas excessivas e desproporcionais, o exagero dos traços e a animalização do homem que, por mais que anuncie sua civilidade, não passa de uma “magnífica besta” (ARLT, 1998, p. 120). Em outra crônica que transcorre em Buenos Aires, “Os bares alegres do Paseo de Julio”, o narrador faz uma visita a uma espelunca, uma bodega suja transformada em conluio de menestréis decadentes e de vadias que, antes de invadir as ruas, se dedicam ao Nancy (2003, p. 48 e 52-3) diz que toda imagem beira não apenas a violência, mas a violência extrema, a crueldade, pois não há imagem sem punção de uma intimidade fechada ou de uma imanência não aberta. Ou seja, a imagem é violenta na medida em que é excesso, exposição e extração. Ela excede as formas, as deforma e transforma, no que reside seu caráter “monstrativo”, sua capacidade de “monstruação”. A imagem não somente excede a forma, o aspecto das coisas, mas deve ela mesma exceder-se, pôr-se para fora, extrair-se, destacar-se de seu fundo. A imagem precisa ser ela mesma excessiva, pois deve expor à presença o que está ausente, não o representando, mas dando-lhe força para se apresentar. 2
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“figurantismo”. Num cenário de segunda categoria, essas mulheres, “barraganas e pelanduscas”, dançam seu espetáculo brutal, gritam e latem. São informes de gordas, assimétricas, ensebadas e bestiais, comparadas a vacas, galinhas ou cavalos. E depois de tamanha apresentação, o narrador completa, com a mesma ironia cruel de Goya na lâmina 22 d’Os Caprichos, “¡Pobrecitas!”:3 “Coitadinhas!…. Vivem da comissão… E, além disso são burras demais pra serem malvadas” (ARLT, 1998, p. 255). As imagens evocadas pelo escritor são tão grotescas quanto as do pintor e as legendas de Goya são tão cáusticas como os textos de Arlt. Esses personagens que se desfiguram e assumem feições bestiais estão nas gravuras de Facio Hebequer, artista que Arlt admira e que, por sua vez, faz uma releitura de Goya na modernidade portenha. No ano de 1928, celebra-se o centenário da morte do pintor e há em Buenos Aires diversos eventos: exposições, debates, publicações; de modo que ele está muito vivo nesse contexto. Facio Hebequer, como Goya, Baudelaire e Arlt, se faz cronista da cidade e opta pelo disforme como modo de intervenção, pela imagem poluída, pelo contorno impreciso. Com tudo isso, creio que é possível fazer uma leitura das crônicas escritas por Arlt no Rio de Janeiro, especialmente suas passagens mais agressivas, não apenas a partir de um pré-juízo de valor, do preconceito racial que o leva a uma apreciação “politicamente incorreta”, como diz Gustavo Pacheco. Suas escolhas de mal gosto, a violência de suas imagens, a ferocidade de sua linguagem são escolhas estéticas que estão em diversos momentos de sua literatura, em todos os gêneros em que escreveu, e que se inscrevem no modo pelo qual esse personagem-escritor se fez insolente e abusivo. Não se trata de buscar condescendência, mas de ampliar o leque de leitura, deslocando-o exclusivamente das crônicas cariocas traduzidas e desdobrando-o no contato com o conjunto de suas águas-fortes, que poderia também chegar a tocar seus contos, romances e peças de teatro, e percebendo o “contágio” que há entre elas e as gravuras de Goya, Facio e Bellocq. Este último terá imagens muito fortes em que as formas humanas e animais se hibridizam, como em “Miseria” (1917), onde as figuras têm expressões ferozes e gestos simiescos – como se a miséria fosse uma condição em que a Na gravura de Goya, a legenda explica: “Dos embozados persiguen o custodian a dos mujeres que llevan sus rostros completamente cubiertos por las mantillas” [“Dois embuçados perseguem ou custodiam a duas mulheres que trazem seus rostos completamente encobertos pelas mantas”]. E o comentário nos manuscritos de Ayala completa: “Las rameras pobres van a la cárcel; las de rumbo adonde les de la gana” [“As rameiras pobres vão para a prisão, as de ocasião aonde tem vontade”]; e, ainda, no exemplar de Carderera: “Vayan a cocer las descosidas. Recójanlas, que bastante anduvieron sueltas” [“Vão costurar as descosturadas. Recolham-nas, que já estiveram soltas o bastante”] (SERNA, 1984, pp. 81-82). 3
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civilidade do homem se ausentasse e restasse nele a animalidade que deveria ser superada pelo moderno, mas que insiste em permanecer. Vejamos se podemos nos aproximar a uma das crônicas escritas por Arlt no Rio de Janeiro, que tem o título de “Os pescadores de pérola” (7/4/30), onde ele narra seu passeio pela rua da Carioca, rumo ao mar, até chegar a uns galpões em que: Negros, uns descalços, outros com sobretudos surrados, quase todos de camiseta, com chapéus sebentos, maltrapilhos, olhavam o sol decompor pedaços de peixe colocados sobre esteiras, sustentadas por pedaços de pau em cruz. Um fedor de peixaria, de sal e de podridão infectava o lugar. Deitados ao sol, olhavam um rapaz de carapinha, cor de carvão, com os braços e os pés nus, que segurava uma gaiola com pássaros de plumagem azul, enquanto na mão direita encolhida levava um papagaio verde-diamante. Aninhado junto a um cesto, havia um gato branco com um olho azul e outro amarelo. Parei junto aos negros e comecei a olhá-los. Olhava e não olhava. Estava perplexo e entusiasmado frente à riqueza de cores. Para descrever os negros é necessário frequentá-los; têm tantos matizes! Vão desde o carvão até o vermelho escuro do ferro na bigorna. Depois continuei caminhando, e três passos depois, entrei em uma pracinha aquática... Lá estava! [...] Esta pracinha aquática era fechada 40 metros adiante por dois braços de pedra, que deixavam uma abertura de alguns passos. Por ali entravam e saíam as chalupas. E me lembrei dos pescadores de pérolas, de A pérola vermelha. O mesmo lugar do romance de Salgari, a mesma imundície carregada de um fedor penetrantíssimo, cascas de banana e tripas de peixe. De pé, junto às pirogas – não merecem outro nome -, havia anciãos barbudos, descalços, mulatos, desgrenhados vermelhuscos, remendando lentamente uma rede, raspando com uma faca a quilha de suas embarcações, acomodando cestos de vime amarelo, com um mata-rato entre os lábios inchados como leprosos. [...] A pracinha aquática poderia estar na África, no Ceilão ou em qualquer lugar do Oriente. E embora negros, água e peixes soltassem um fedor de salmoura insuportável, sei que qualquer um dos que me leem apertaria as narinas apressadamente se tivesse que estar ali; mas eu permaneci muito tempo com os olhos fixos na água, nas pirogas estropiadas, pobres, remendadas. Da pracinha aquática emanava uma sensação de paz tão profunda que não dá para descrever... Até cheguei a pensar que se alguém se jogasse na água e chegasse ao fundo, poderia encontrar a pérola vermelha... (ARLT, 2013a, pp. 47-50)
A imagem é barroca por seu excesso, por seu “horror ao vazio”; não sobra um espaço em branco, tudo está preenchido de cores e contrastes; a cena é grotesca por sua carnalidade, pela exposição dos corpos em formas hediondas e odores repulsivos; é literária pois se desprende da observação empírica e conduz ao espaço imaginário, às ficções de Emilio Salgari, a outras geografias onde se poderiam desdobrar as histórias desses mesmos personagens. Há passagens nas crônicas escritas por Arlt em Buenos
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Aires em que ele promove o mesmo deslocamento, dizendo não saber se está no Egito ou em Marrocos;4 há algo como uma “imaginação colonizada”, daquele que pretende encontrar as marcas da civilização por onde passa e não deixa de se surpreender com sua ausência. Com o qual voltamos ao assombro goyesco: essa percepção estarrecida diante de ideais liberais que se veem frustrados e que aparece com toda força na série de Desastres da Guerra. Torna-se relevante pensar uma seleção de crônicas de Arlt que não passa pelo recorte da localidade geográfica onde foram escritas, como tem sido suas edições: portenhas, cariocas, gallegas, andaluzas, asturianas, africanas. As águas-fortes goyescas de Arlt passam pelo grotesco, sarcástico, deforme, barroco, ambíguo, elíptico que há em suas crônicas; para além da exploração e valoração de tipos e identidades locais, a opção de uma estética excêntrica e excessiva capaz de provocar um incômodo profundo e um abalo das certezas.
Referências ARLT, Roberto. Águas-fortes portenhas seguidas de Águas-fortes cariocas. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Iluminuras, 2013. ____. Águas-fortes cariocas. Tradução de Gustavo Pacheco. Rio de Janeiro: Rocco, 2013a. ____. El paisaje en las nubes. Crónicas en El Mundo 1937-1942. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009. ____. Obras. Aguafuertes. Ensaio preliminar de David Viñas. Tomo II. Buenos Aires: Losada, 1998. CACCIARI, Massimo. “La paradoja del extranjero”. Archipiélago, Barcelona, número 26-27, inverno 1996, pp. 16-32. NANCY, Jean-Luc. Au fond des images. Paris: Galilée, 2003. “Um fedor de gordura e de sebo escapa destes antros. Não se sabe se estamos no Marrocos, no Egito ou em Buenos Aires” (ARLT, 1998, p. 110).
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PACHECO, Gustavo. “Introdução”. In: ARLT, Roberto. Águas-fortes cariocas. Tradução de Gustavo Pacheco. Rio de Janeiro: Rocco, 2013, pp. 7-16. RIBEIRO, Maria Paula Gurgel. “Roberto Arlt e as águas-fortes”. In: ARLT, Roberto. Águas-fortes portenhas seguidas de Águas-fortes cariocas. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Iluminuras, 2013, pp. 9-24. SERNA, Ramón Gomez de la. Goya. Madri: Espasa-Calpe, 1984, 4ª edição (1ª edição de 1928).
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INTERTEXTUALIDADE E AS POSSIBILIDADES DE RELEITURAS EM CHAPEUZINHOS COLORIDOS
Elesa Vanessa Kaiser da Silva (UNIOESTE)1
RESUMO: Os contos de fadas pertencem a uma tradição cultural, histórica e sociológica e trazem, desde sua origem, marcas da literatura oral, proporcionando a difusão do gênero que permanece vivo até os dias atuais. Muitas são as obras contemporâneas que dialogam com os contos de fadas clássicos. Nesse sentido, este artigo apresenta um estudo da obra Chapeuzinhos Coloridos (2010) de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta. Busca-se, desta forma, analisar como se dá o diálogo entre a obra contemporânea e o conto clássico Chapeuzinho Vermelho, tanto na versão de Perrault como na dos Irmãos Grimm. Pretende-se destacar pontos de tensão, paródia e questionamentos de estereótipos, observando quais valores estão sendo reiterados na obra infantil contemporânea. Para tanto, serão utilizadas como base teórica sobretudo as obras Conto e reconto: das fontes à invenção (2012), organizada por Vera Teixeira de Aguiar e Alice Áurea Penteado Martha; Como e por que ler os Clássicos Universais desde cedo (2002) de Ana Maria Machado e Paródia paráfrase & Cia (1937) de Affonso R. de Sant’anna. PALAVRAS-CHAVE: Contos de fadas, recontos, Chapeuzinhos Coloridos.
Introdução
Muitas são as obras contemporâneas que dialogam com as clássicas, e é desta forma que os contos de fadas, por meio dos recontos, permanecem vivos até os dias Aluna regular Aluna regular de Pós-graduação strictu sensu em Letras, nível de Mestrado da Universidade Estadual do Oeste do Paraná -UNIOESTE- campus de Cascavel. Linha de Pesquisa: Literatura, memória, cultura e ensino.
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atuais, pois conquistaram um espaço especial dentre as leituras preferidas. Estudos apontam sobre a importância dos contos de fadas para a vida das crianças, obras como A psicanálise dos contos de fadas de Bettelheim (1980), destacam que a leitura dos mesmos proporciona uma infinidade de contribuições: “Os contos de fadas são ímpares, não só como uma forma de literatura, mas como obras de arte integralmente compreensíveis para a criança, como nenhuma outra forma de arte o é” (BETTELHEIM 1980, p.21). Considerando a intertextualidade com clássicos contos de fadas clássicos, cada vez mais presente em obras contemporâneas, é que este artigo apresenta um estudo da obra Chapeuzinhos Coloridos (2010) de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta. Busca-se, desta forma, analisar como se dá o diálogo entre a obra contemporânea e o conto clássico Chapeuzinho Vermelho, tanto na versão de Perrault como na dos Irmãos Grimm. Pretende-se destacar pontos de tensão, paródia e questionamentos de estereótipos, observando quais valores estão sendo reiterados na obra infantil contemporânea. Para tanto, serão utilizadas como base teórica sobretudo as obras Conto e reconto: das fontes à invenção (2012), organizada por Vera Teixeira de Aguiar e Alice Áurea Penteado Martha; Como e por que ler os Clássicos Universais desde cedo (2002) de Ana Maria Machado e Paródia paráfrase & Cia (1937) de Affonso R. de Sant’anna. Contos de fadas clássicos e Literatura Infantil contemporânea
Os contos clássicos têm sua origem na oralidade, cultura a qual é transmitida de geração para geração. As histórias mais conhecidas são resultado de registros de escritores que deixaram esse “patrimônio cultural” de clássicos infantis, dentre eles destacam-se: Perrault, La Fontaine, Irmãos Grimm e Andersen. Quando hoje falamos nos livros consagrados como clássicos infantis, os contos de fada ou contos maravilhosos de Perrault, Grimm ou Andersen, ou as fábulas de La Fontaine, praticamente esquecemos (ou ignoramos) que esses nomes não correspondem aos dos verdadeiros autores de tais narrativas. São eles alguns dos escritores que, desde o século XVII, interessados na literatura folclórica criada pelo povo de
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seus respectivos países, reuniram histórias anônimas, que há séculos vinham sendo transmitidas, oralmente, de geração para geração, e as registraram por escrito. (COELHO, 2010, p. 06)
Charles Perrault, na França, com a publicação de Contos da Mamãe Gansa em 1697, organizou um registro de oito estórias recolhidas da memória popular, oferecendo autoria ao seu próprio filho Pierre Perrault. Esta é considerada a primeira coletânea de contos infantis. Jean de La Fontaine, na mesma época, dedicou-se ao resgate das fábulas, estas, que durante os séculos, também recebem especial destaque quanto às preferências dos leitores. Os Irmãos Grimm (Jacob e Wilhelm), na Alemanha, um século depois de Perrault, realizaram pesquisas a fim de resgatar os contos da tradição oral popular alemã. Influenciados pelo ideário cristão que dominava o pensamento da época, fizeram diversas alterações no enredo de alguns contos, ou seja, foram retiradas as partes que incluíam violência ou maldade, principalmente quando envolviam crianças. O dinamarquês Hans Christian Andersen, considerado grande referência após suas publicações (1835-1872), passou a ser grande destaque tanto no resgate do folclore em seus contos, como em suas próprias criações. O poder de resistência dessa coisa, aparentemente tão frágil e precária, que é a palavra (literária ou não), prova de maneira irrefutável que a comunicação entre os homens é essencial à sua própria natureza. O impulso de contar estórias deve ter nascido no homem no momento em que ele sentiu necessidade de comunicar aos outros certa experiência sua, que poderia ter significação para todos. (COELHO, 2010, p. 07)
Os contos clássicos conquistaram tamanha repercussão que atraíram o gosto de leitores de diversas idades, e atualmente, tanto os contos clássicos como contemporâneos, estão dentre os preferidos na hora da leitura das crianças, inclusive no momento antes de dormir, e desta forma, a literatura que em sua origem não era destinada ao público infantil, atualmente comanda o auge de publicações.
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O clássico Chapeuzinho Vermelho Dentre os clássicos contos de fadas, Chapeuzinho Vermelho é uma das histórias mais populares, seja por meio da tradição oral ou pela escrita, através de filmes, seriados, propagandas e produtos de natureza diversa. Robert Darnton, no texto Histórias que os camponeses contam: o significado de Mamãe Ganso (2011) enfatiza a dimensão histórica dos contos populares, definindoos como documentos que sofreram grandes transformações, em diferentes tradições culturais. O autor critica os psicanalistas Erich Fromm e Bruno Bettelheim por analisarem os contos de fadas sem levar em conta o histórico dos mesmos: “rejeitar os contos populares porque não podem ser datados nem situados com precisão, como documentos históricos, é virar as costas a um dos poucos pontos de entrada no universo mental dos camponeses, nos tempos do Antigo Regime”. (DARNTON, 2011, p. 32). Assim, o autor apresenta um estudo acerca da origem dos contos de fadas, destacando Chapeuzinho Vermelho, no início do capítulo, com a versão narrada em torno das lareiras, nas cabanas dos camponeses, na França do século XVIII. Posteriormente, descreve análises referentes aos contos de fadas, desconstruindo-as e apresentando os contos como documentos históricos. Mais de metade das 35 versões registradas de “Chapeuzinho Vermelho” terminam como a versão contada antes, com o lobo devorando a menina. Ela nada fizera para merecer esse destino; porque, nos contos camponeses, ao contrário dos contos de Perrault e dos irmãos Grimm, não desobedece a sua mãe nem deixa de ler os letreiros de uma ordem moral implícita, escritos no mundo que a rodeia. Ela simplesmente caminhou para dentro das mandíbulas da morte. E a natureza inescrutável e inexorável de calamidade que torna os contos tão comoventes, e não os finais felizes que eles, com freqüência, adquirem, depois do século XVIII. (DARNTON, 2011, p. 79) Quanto à versão de Perrault, conforme Fortes (1996), a educação moralizante é fundamental para a compreensão trágica desse conto e de outros do mesmo livro: “O Chapeuzinho Vermelho, de Perrault, nega à menina uma segunda oportunidade, postura
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que coaduna com a rígida moral da burguesia nascente que pune a transgressão com a danação: Chapeuzinho devorada é Chapeuzinho acabada”. (FORTES, 1996, p. 17). No conto reescrito pelos Irmãos Grimm, surge a figura do caçador, o qual resgata a menina e a avó, contribuindo para um novo desfecho. Embora a menina tenha uma segunda chance, vale destacar que: A convicção social feminina, tradicionalmente, ao longo da história, está associada à dependência de um protetor masculino, pai, irmão, ou parente, que resgata as mulheres das armadilhas do mundo, até que o marido assuma definitivamente esse papel. Nesse conto, essa figura não se faz presente e a menina, ao sair do espaço da casa, área de atuação feminina, fica à mercê dos perigos da vida fora do círculo familiar. (FORTES, 1996, p.20)
A personagem clássica, dotada de beleza, vaidade e ingenuidade, necessita de um elemento masculino para sua proteção. É submissa ao homem. Já na Literatura contemporânea, encontram-se novas representações, tanto de Chapeuzinho quanto do lobo. São diferentes versões que dialogam com o clássico Chapeuzinho Vermelho. Considerando tais aspectos, é que este estudo pretende analisar uma obra contemporânea que dialoga com a clássica. E desta forma, destacar como ocorre a intertextualidade, bem como a paródia no reconto. Do capuz vermelho à cor preferida do leitor: o diálogo entre clássico e contemporâneo Na Literatura Infantil contemporânea apresentam-se novas personagens que desconstroem os estereótipos, numa ruptura que vai muito além da cor do capuz clássico. Em Chapeuzinhos Coloridos (2010) de José R. Torero e Marcus A. Pimenta, as histórias começam com o tradicional "era uma vez..." e a estrutura básica: “sai de casa, vai pela floresta, chega na avó, encontra o lobo, o caçador chega”. No entanto, cada Chapeuzinho vivencia uma história diferente para cada uma dessas situações mencionadas. Sendo assim, são apresentados seis contos: Chapeuzinho azul, Chapeuzinho cor de abóbora, Chapeuzinho verde, Chapeuzinho branco, Chapeuzinho lilás e Chapeuzinho preto.
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Os próprios autores, na apresentação da obra, chamam a atenção do leitor para a evidente intertextualidade, mas também para a distinção que estabelecem em relação ao texto “original”: Para começar, os chapeuzinhos não são vermelhos. São azul, verde, branco, lilás, cor de abóbora e preto. E as histórias também são diferentes. Tem uma em que a Chapeuzinho é malvada, outra em que ela quer ser famosa, uma em que a Chapeuzinho é gordinha, outra em que ela quer ganhar dinheiro, uma sobre amizade e outra sobre o tempo. (TORERO; PIMENTA 2010, p. 05).
As histórias não se misturam estruturalmente, porém, estimulando a imaginação dos pequenos leitores apresentam diversas possibilidades, ou seja, questionamentos subentendidos: E se o chapeuzinho de Chapeuzinho Vermelho não fosse vermelho? E se o Lobo fosse bonzinho? E se houvesse um romance entre o Caçador e a Mãe? E se tudo fosse um plano diabólico da Avó? São diversos pontos de vistas, em que a criança poderá identificar-se com pelo menos um. Desta forma, José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, em Chapeuzinhos Coloridos, trazem, através da obra contemporânea, diversas tonalidades, não só pelas novas cores dos chapéus, mas também pelo fato de cada protagonista da história apresentar uma nova personalidade, pois a heroína pode ser uma menina que se sente desprotegida (mas é cúmplice de um plano com sua avó), uma que é gordinha de grandes bochechas, uma que adora dinheiro, uma que se sente triste, uma que sonha em ser famosa e ainda outra que reflete sobre seu crescimento pessoal. O livro, que é o primeiro da série Coleção de Fábulas, apresenta histórias totalmente vinculadas ao contexto histórico em que a obra está inserida, pois são diferentes gostos, sonhos e realidades e o próprio título Chapeuzinhos Coloridos já traz a ideia de diversidade. As ilustrações (de Marilia Pirillo) em Chapeuzinhos Coloridos, destacam a harmonia entre as diferentes cores, fortes e vivas, em que se cria a impressão de diferentes texturas, que constituem um cenário atrativo. Dessa forma, o leitor revê o clássico Chapeuzinho Vermelho com novas roupagens, mas com a essência do clássico. Assim, Chapeuzinhos Coloridos apresenta seis meninas diferentes e divertidas, que convidam aos leitores a criarem sua própria personagem:
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Tomara que você goste de ler a história dessas outras Chapeuzinhos. E depois você pode até inventar uma Chapeuzinho nova. Ela pode ter um chapéu de bolinhas, listrado, com luzinhas, branco, roxo, cor de burro quando foge, sei lá! O importante é a gente saber que pode mexer nas histórias. (TORERO; PIMENTA 2010, p. 05).
Torero e Pimenta (2010), ao resgatarem o conto Chapeuzinho Vermelho, utilizam a paródia, pois as perguntas clássicas recebem novas respostas de cada personagem vovó. Conforme Sant’anna (1985, p. 07) “A paródia é um efeito de linguagem que vem se tornando cada vez mais presente nas obras contemporâneas”. Em Chapeuzinho Verde, por exemplo: - Vovó, por que você tem orelhas tão grandes? - Para ouvir o tilintar das moedas. - E esses olhos tão grandes? - São para ver os extratos no banco. - E essas mãos tão grandes? - São para contar o dinheiro mais rápido. - E esse nariz tão grande? - É para sentir o cheiro das notas. - E essa boca tão grande? Então o lobo parou de imitar a Vovó e falou com sua voz terrível: - Essa é para te comer! (TORERO; PIMENTA, 2010, p. 27)
Já em Chapeuzinho Preto, é a própria menina que, além de fazer as perguntas, também encontra as próprias respostas enquanto observa atenciosamente seu rosto no espelho: - Por que eu tenho orelhas tão grandes? E ela se respondeu: - Ah, é porque agora já posso usar brincos. - E esses olhos tão grandes? - É porque agora posso ver mais coisas. - E essas mãos tão grandes? - É porque agora posso alcançar o que antes eu não alcançava. - E esse nariz tão grande? - É porque agora sou dona do meu próprio nariz. - E essa boca tão grande? - Acho que é porque já posso falar por mim mesma – falou Chapeuzinho. (TORERO; PIMENTA, 2010, p. 53)
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A música “Pela estrada afora” cantada por Chapeuzinho Vermelho em algumas versões musicadas, também recebe destaque na obra contemporânea, sendo parodiada em cada conto, como em Chapeuzinho cor de abóbora, por exemplo: Então Chapeuzinho colocou a torta numa cesta, deu um beijo na mãe e partiu. No caminho, ela cantava assim: Almocei agora. Mas já estou com fominha. Pena que esse doce É para a vovozinha. (TORERO; PIMENTA, 2010, p. 15)
A representação das personagens também sofre uma ruptura quanto às características e atitudes clássicas, pois, em Chapeuzinhos Coloridos, a imagem da avó muda em cada nova versão: uma é caçadora de Lobos em extinção (em Chapeuzinho Azul), outra é muito magrinha (em Chapeuzinho cor de abóbora), outra mesquinha (em Chapeuzinho Verde), outra muito sozinha (em Chapeuzinho Branco), outra que adorava fofocas (em Chapeuzinho Lilás) e ainda outra que já tinha conhecimento do seu destino, tanto que, ao Lobo dizer que iria engoli-la, respondeu: “ –Eu sei”. Com o lobo, não é diferente. Em cada história, assume um novo papel. Na primeira, é vítima de um plano infalível, seu destino é trágico, torna-se o prato predileto tanto da avó quanto da neta. Na segunda, é o guloso que engole até o caçador e acaba explodindo. Na terceira, além de engolir Chapeuzinho e a avó, tem interesse em dinheiro, inclusive pensa em roubar as jóias da velhinha. Na quarta, cansado de ser solitário, acaba sendo o animal de estimação. Na quinta, o lobo (que é bom!), tenta mudar a visão que as pessoas sentem dele, mas acaba sendo morto injustamente pelo caçador, que conhece a sua fama de mau. Na sexta, o lobo não só dialoga com a menina, como também quer ser amigo do caçador. Desta forma, os contos não só apresentam novas Chapeuzinhos, como também convidam o leitor a criar a sua própria personagem. Quanto aos desfechos das histórias, nota-se que estão inseridos no contexto atual: o fato de Chapeuzinho Azul (que é menor de idade) ser presa juntamente com sua avó após terem comido torta do lobo, sendo acusadas de matarem animais em extinção, reflete um tema polêmico na sociedade, pois a mãe da menina pagou fiança e tudo ficou bem, exceto para o lobo.
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De maneira sutil, as diferentes versões coloridas de Chapeuzinho Vermelho abordam assuntos/temas recorrentes na atualidade (obesidade, fama, dinheiro, diferentes famílias e adolescência), provocam questionamentos e modificam a forma de representar personagens que fazem parte do repertório e do imaginário do público leitor, instaurando uma ruptura com a tradição literária e com os estereótipos de vilão e herói. Tais aspectos apresentados em relação ao reconto, são possíveis por meio do diálogo estabelecido entre a obra clássica e a contemporânea, no entanto, para que o recurso parodístico seja compreendido pelo leitor, é necessário o conhecimento do clássico, pois, de acordo Machado (2002): Como esses contos tradicionais são os clássicos infantis mais difundidos e conhecidos, a gente sabe que pode se referir a eles e piscar o olho para o leitor, porque ele conhece o universo de que estamos falando. Fica possível, então, fazer paródias aos contos de fadas e brincar com esse repertório, aprofundando uma visão crítica do mundo a partir de pouquíssimos elementos. Mas para que esse jogo literário possa funcionar plenamente, para que o humor seja entendido e a sátira seja eficiente, é indispensável que o leitor localize as alusões feitas, identifique o contexto a que elas se referem e seja, então, capaz de perceber o que está fora de lugar na nova versão. É como uma brincadeira. Não dá para brincar de “pequeno construtor” com quem nunca viu uma casa. Ou seja, nem que seja apenas para poder entender tanta coisa boa que vem sendo escrita hoje em dia a partir de uma reinvenção desse gênero, os contos de faz continuam sendo um manancial inesgotável e fundamental de clássicos literários para os jovens leitores. Não saíram de moda, não. Continuam a ter muito o que dizer a cada geração, porque falam de verdades profundas, inerentes ao ser humano. (MACHADO, 2002, p. 81-82)
Em Chapeuzinhos Coloridos a heroína pode ser uma menina que se sente desprotegida, outra que é gordinha de grandes bochechas (adora comer, seu prato preferido é bisteca de lobo), outra que sonha em ser famosa ou ainda outra que é caçadora. Desta forma, nota-se que a obra também oferece o que Bettelheim (1980) considera nos clássicos: Enquanto diverte a criança, o conto de fadas a esclarece sobre si mesma, e favorece o desenvolvimento de sua personalidade. Oferece significado em tantos níveis diferentes, e enriquece a existência da criança de tantos modos que nenhum livro pode fazer justiça à
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multidão e diversidade de contribuições que esses contos dão à vida da criança. (BETTELHEIM, 1980, p. 20)
Com as diversas possibilidades de releituras na literatura contemporânea, o leitor que conhece Chapeuzinho Vermelho é convidado a desfrutar de narrativas que dialogam com os clássicos, assim se identifica com os personagens e passa a vivenciar incríveis experiências por meio da leitura, sendo que, pode ser convidado a criar sua própria versão. Considerações finais No contexto da Literatura Infantil, é possível observar que a utilização da paródia é frequente. Dessa forma, a leitura de um reconto provoca o efeito cômico a partir do momento que transforma o esperado em algo inusitado. Tratando-se dos contos de fadas, o leitor que conhece os clássicos, observará um novo desfecho nas narrativas contemporâneas. A criação parodística permite esse regate dos contos clássicos e ao mesmo tempo uma inovação em relação às possibilidades de novos caminhos a serem seguidos pelas personagens que sobrevivem através dos contos de fadas. A obra analisada Chapeuzinhos Coloridos, compõe o acervo 2012 do PNBEPrograma Nacional Biblioteca da Escola- desta forma, está presente nas escolas públicas de todo o território nacional, o que destaca ainda mais a importância dos professores conhecerem o conteúdo da mesma, objetivando a mediação da leitura. A personagem clássica Chapeuzinho Vermelho, dotada de beleza, vaidade e ingenuidade, necessita de um elemento masculino para sua proteção. É submissa ao homem. Já na Literatura contemporânea, encontram-se novas representações, tanto de Chapeuzinho quanto do lobo. São diferentes versões que dialogam com o clássico. Já na obra Chapeuzinhos Coloridos apresenta-se uma ruptura com as histórias clássicas, no entanto, ao retomar os mesmos personagens, valoriza-se o texto parodiado, pois, tornase necessário conhecimento prévio do texto tradicional (Chapeuzinho Vermelho) para que o leitor estabeleça o diálogo e a paródia tenha efeito.
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.Por meio do estudo dos recontos, vale ressaltar a importância dos mesmos para o resgate dos contos de fadas clássicos; da mesma forma, torna-se imprescindível que o leitor tenha uma leitura prévia dos contos tradicionais, pois somente assim as obras contemporâneas terão maior sentido. Referências: AGUIAR, Vera Teixeira. MARTHA, Alice Áurea Penteado. (Orgs.) Conto e Reconto: das fontes à invenção. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 16ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. COELHO, Nelly N. Panorama Histórico da literatura infantil/juvenil: das origens indoeuropeias ao Brasil contemporâneo. 5ª ed. São Paulo: Manole, 2010. DARNTON, R. Histórias que os camponeses contam: o significado de Mamãe Ganso. In: ______. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa.Tradução: Sonia Coutinho. São Paulo: Graal, 2011. P 13-103. FORTES, Rita F. De objeto a sujeito, Chapeuzinho muda de cor. In: ______; ZANCHET, Maria B.; LOTTERMANN, Clarice. Tradição, Estética e Palavra na Literatura Infanto-juvenil. Cascavel: Gráfica da Unioeste, 1996. (11- 62). MACHADO, Ana M. Como e por que ler os Clássicos Universais desde cedo. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2002. SANT'ANNA, Affonso R. de. Paródia paráfrase & Cia São Paulo: Ática, 1937. TORERO, José R.; PIMENTA, Marcus A. Chapeuzinhos Coloridos. Ilustrações: Marilia Pirillo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
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ÓPERA E LITERATURA EM CENA: UMA ANÁLISE DA OBRA JUVENIL AÍDA, ADAPTADA POR HAN MI-HO E ILUSTRADA POR LUCIA SFORZA Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira1 (UNESP-Assis/SP/FUNDUNESP) Claudia Valéria Penavel Binato2 (UNESP-Assis/SP) RESUMO: Este texto tem por objetivo apresentar uma análise da obra Aída, adaptada por Han Mi-Ho (2012) e ilustrada por Lucia Sforza, a partir de ópera clássica homônima de Giuseppe Verdi. Esta obra compõe a coleção Música clássica em cena, da editora FTD, que visa a apresentar ao público jovem histórias de importantes libretos considerados como clássicos no campo musical. Mais especificamente, pretende-se neste texto verificar, a partir dos princípios bakhtinianos, como se efetiva a dialogia entre a produção de Verdi e a obra adaptada de Han-Mi-Ho. Para a consecução dos objetivos, pretende-se apresentar uma reflexão fundamentada pela Estética da Recepção acerca do que propicia o prazer na leitura e quais elementos determinam o papel do leitor implícito. Constrói-se, neste texto, a hipótese de que a estratégia de Han-Mi-Ho de resgatar uma ópera clássica e adaptá-la sob a forma de narrativa ilustrada para o jovem leitor, tanto lhe faculta contato com um texto atraente, lúdico e crítico que o conduzirá à reflexão, quanto amplia seus conhecimentos, por meio do resgate da memória cultural. A apropriação de uma produção cultural clássica, mas adaptada à linguagem narrativa e direcionada ao jovem, pode atuar como fator de valoração da identidade deste leitor. Por meio dela, ele é capaz de elevar sua autoestima, pois percebe 1
Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP-Assis). Exerce a função de Professora Doutora Assistente na Universidade Estadual Paulista, câmpus de Assis, São Paulo, onde atua na graduação em Letras. Tem experiência nas áreas de Letras, Educação e Literatura, com ênfase em Leitura e Formação do Leitor, atuando principalmente nos seguintes temas: leitura, letramento literário, produção de textos e gêneros do discurso. Membro do Grupo “Leitura e Literatura na Escola” (UNESP-Assis). Este texto resulta de um projeto financiado pela Fundunesp – Fundação para o Desenvolvimento da Unesp. Contato: [email protected]. 2 Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP-Assis). Exerce a função de Professora Doutora Assistente na Universidade Estadual Paulista, câmpus de Assis, São Paulo, onde atua na graduação em Letras. Tem experiência nas áreas de Cultura Clássica e Língua e Literatura Latina, atuando principalmente nos seguintes temas: cultura clássica, língua latina e literatura. Membro do Grupo “História e Filosofia da Linguística” (UNESP-Assis). Contato: [email protected].
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que é considerado como receptor de uma produção, ao mesmo tempo em que se reconhece como herdeiro de um patrimônio cultural tradicional. PALAVRAS-CHAVE: Ópera, Estética da Recepção, Cultura Clássica.
Introdução A obra Aída apresenta, sob a forma de conto ilustrado em cores, uma adaptação da escritora coreana Han Mi-Ho (1957-), inspirada na ópera homônima de Giuseppe Verdi (1813-1901). O livro, com tradução de Heloísa Prieto e ricas ilustrações de Lucia Sforza, recebeu, em 2013, o Prêmio FNLIJ de Altamente Recomendável, na categoria Tradução/Adaptação Criança e pertence à coleção Música clássica em cena, da editora FTD. Esta coleção é composta por histórias de importantes libretos, recontadas especialmente para o público infantojuvenil e sua classificação direciona-se a leitores a partir do 4º ano do Ensino Fundamental. Cada livro da coleção vem acompanhado de um CD de áudio com algumas faixas de reconhecidas canções para serem apreciadas. Justifica-se a indicação da obra para o jovem leitor, a partir do 6º ano, pelas temáticas da guerra, do triângulo amoroso, da traição e da vingança que se revelam como atraentes para esse público. Durante a leitura, o jovem acompanha a trágica história da princesa etíope Aída que, posta em cativeiro como escrava da princesa egípcia Amneris, encontra-se dividida entre cumprir suas obrigações com seu reino ou entregar-se ao amor que dedica ao capitão Radamés do exército inimigo. Esse capitão, aliás, é amado por Amneris, embora não corresponda a esse amor e só tenha olhos para Aída. As ilustrações que compõem a obra reconstroem o cenário do Antigo Egito, por meio de símbolos, animais, paisagens, palácios e pirâmides. Sua grandiosidade avulta nos tons em dourado que remetem ao universo da opulência e dos sonhos, ampliando o imaginário do leitor e dialogando com os cenários próprios das representações operísticas dramáticas.
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Ao término do livro, encontram-se anexos, acompanhados de fotos, que explicam quem foi Giuseppe Verdi, compositor da ópera, quando a criou e a encenou pela primeira vez, bem como cada encenação contemporânea pode optar pelo enfoque ora do amor, ora da guerra. O penúltimo anexo elucida que a ópera Aída é narrada por meio de belíssimas árias e convida o leitor a ouvir quatro peças musicais que compõem o CD disposto no encarte: “Celestial Aída” (Radamés); “Regresso vitorioso” (Aída); “Grande marcha” (coro); e “Ah, meu país” (Aída). Essas quatro árias são comentadas e aparecem escritas em versos em itálico. Também, são acompanhadas de uma cena ilustrada correspondente ao enredo do livro. O último anexo informa o leitor sobre a montagem de uma ópera, revelando como esta se compõe desde o trabalho com os figurinos até os da orquestra. As biografias da adaptadora, Han Mi-Ho, da ilustradora, Lucia Sforza, e da tradutora, Heloisa Prieto, dispostas ao final do livro, conferem-lhes discurso de autoridade pela formação cultural que receberam, bem como pela citação e enaltecimento de seus outros trabalhos. Justifica-se a eleição de Aída como objeto de estudo pelo seu projeto gráficoeditorial bem elaborado, pela qualidade literária de seu texto e pela linguagem adequada ao público jovem. Objetiva-se, na análise dessa obra, adaptada a partir de ópera clássica homônima de Giuseppe Verdi, verificar, como se efetiva a dialogia entre música e literatura. Para tanto, pretende-se apresentar uma reflexão fundamentada pela Estética da Recepção acerca do que propicia o prazer na leitura e quais elementos determinam o papel do leitor implícito. Neste texto, constrói-se a hipótese de que a estratégia de Han-Mi-Ho de resgatar uma ópera clássica e adaptá-la sob a forma de narrativa ilustrada para o jovem leitor, tanto lhe faculta contato com um texto atraente, lúdico e crítico que o conduzirá à reflexão, quanto amplia seus conhecimentos, por meio do resgate da memória cultural. A apropriação de uma produção cultural clássica, mas adaptada à linguagem narrativa e direcionada ao jovem, pode atuar como fator de valoração da identidade deste leitor. Por meio dela, ele é capaz de elevar sua autoestima, pois percebe que é considerado como receptor de uma produção, ao mesmo tempo em que se reconhece como herdeiro de um patrimônio cultural tradicional.
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Ópera, música e literatura O vocábulo “ópera” equivale ao termo “obra” em italiano, mais especificamente, a uma peça teatral musicada, a um drama cantado e acompanhado por uma orquestra. O vocábulo foi, justamente, introduzido na musicologia pela Itália, inicialmente, com o sentido de peça de composição musical, posteriormente, com a evolução semântica, como cena musical. A ópera como forma artística, enquanto espetáculo vocal e de magnificência visual, conceitua que a música transforma os personagens em seres humanos, sujeitos a paixões, tragédias e até mesmo triunfos. Trata-se de uma representação ardente, criativa e íntima, que explora o capricho dos homens e, muitas vezes, dos deuses ou do destino (SILVA, 2006). A relação entre música e literatura é profunda, ambas classificam-se como manifestações artísticas. Conforme Ernesto von Rückert (2014), a voz humana é o mais primitivo instrumento musical, pois do canto surgiu a música, por sua vez, no canto, o conteúdo é a poesia declamada melodiosamente. Ao produzir instrumentos musicais, o homem procurou imitar a voz. Só em uma etapa posterior surgiu a música absoluta, isto é, completamente dissociada de qualquer mensagem literária. Enquanto Arte, música e literatura desenvolvem-se no tempo, em oposição às artes plásticas que se desenvolvem no espaço. Na própria sistematização que a estética faz das belas artes, música e literatura ocupam células vizinhas do esquema, estando, portanto, unidas por um ponto de vista estrutural. Os estudos sobre música, de acordo com Rückert (2014), consideram que, no ocidente, esta arte tem início com o cantochão, canto litúrgico da Igreja Católica Romana, institucionalizado, no século VII, pelo papa Gregório I. Trata-se do “Canto Gregoriano”, que persistiu como padrão oficial durante oito séculos. Nesse tipo de canto, o coro, de forma homofônica, canta o texto litúrgico, com as vozes em uma mesma melodia. Para Rückert (2014), pelo viés artístico, a liturgia é uma obra literária constituída de textos bíblicos acrescidos de comentários. Pode-se observar, então, que a música ocidental, de 650 a 1450, como arte, configura-se de forma indissociável à literatura.
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A ópera, pela sua composição e manifestação artística, é considerada uma arte plural, pois dialoga com a literatura (a poesia), o teatro, a música, a dança e as artes plásticas (no cenário). Justamente, por isso associa-se à literatura da música. Trata-se, enfim, de um poema dramático musicado e representado de forma teatral, com o concurso do canto e de acompanhamento orquestral, incluindo também a dança e a composição cenográfica como elementos. A base de sua concepção operística é o libreto – texto poético a ser cantado ou recitado, em alguns trechos –, e a música. Deve-se lembrar que a ópera também dialoga com a tragédia, aliás aquela é a evolução orgânica das tragédias da Antiguidade clássica. Tanto a ópera, quanto a tragédia, diferindo da épica em que o aedo recitava para os ouvintes, em suas manifestações dramáticas, utilizam-se da voz. Assim, o poeta narrador desaparece e o público depara-se com os atores, investidos de seus personagens, os quais falam diretamente para este que os assiste, produzindo efeito de cumplicidade. O que define o tema das tragédias clássicas é a apresentação do homem em conflito, exposto dramaticamente, diferenciando-se, por exemplo, do personagem épico, retratado em narrativa como um herói dotado de qualidades quase divinas e que enfrenta e supera as muitas dificuldades encontradas. Na tragédia, o herói ultrapassa os limites de um ser mortal, tentando-se equiparar aos deuses, mesmo que inconscientemente. Com isso, ele comete uma violência contra si mesmo, uma hybris, provocando toda a desgraça. Em
Ésquilo,
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exemplo de homem trágico é Agamemnon que, por intervenção direta dos deuses, sacrifica sua filha Efigênia para acalmar os mares e, assim, ser possível a viagem até Troia. Em Sófocles, o homem em conflito é representado por Édipo que, ao tomar conhecimento de seu trágico destino, tenta evitá-lo, mas tudo que faz, acaba colaborando para o cumprimento do oráculo. Já, Em Eurípedes, o exemplo clássico é a peça Medeia em que o homem se conduz ao desfecho fatal, voluntariamente, levado pelas próprias paixões, sem a interferência dos deuses. A história, o mito, o enredo nas tragédias eram transmitidos mediante a musicalidade dos versos antigos, acompanhados de instrumentos musicais, com a presença do coro e da orquestra, com suas evoluções rítmicas e coreográficas. Na ópera, os próprios personagens revelam seus dramas através do canto característico dessa
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apresentação, com todo o aparato cênico. Das tragédias antigas para a ópera, houve uma grande evolução, mas o homem continua sendo o mesmo ser conflituoso, posto em provação. Na ópera, o núcleo é sempre o drama do homem, porém com novos elementos como o amor impossível entre os protagonistas. No caso da obra Aída, a personagem principal é uma princesa etíope, capturada e levada como escrava para o Egito. Em tempos de guerra, Aída encontra-se sempre martirizada por sentimentos antagônicos entre o amor devotado a seu pai e o amor despertado por Radamés, o comandante do exército inimigo. Este é seu conflito, seu desafio a ser resolvido: atender aos pedidos do pai e trair o amado ou trair o pai e fugir com Radamés. Prevalece, então, em sua existência, o profundo sofrimento: pathos. Este produz no leitor o mesmo efeito da tragédia: temor pelo destino da jovem e compaixão pela sua dor. Considera-se Orfeo, de Claudio Monteverdi (1567-1643), estreada em 1607, em Veneza, como a primeira ópera, de acordo com Rückert (2014). Orfeo, nos fins do século XVI, merece essa classificação, pois apresenta árias e coros em sua composição, no lugar de recitativos, e é acompanhada por orquestras, em vez de pequenos conjuntos. A ópera atual resulta de transformações e evoluções de uma forma de representar que surgiu na Antiguidade clássica, passou a servir a fins religiosos e de entretenimento dos aristocratas, sendo arte restrita aos espaços da realeza. Populariza-se, em 1637, com a fundação do primeiro Teatro de Ópera, o San Cassiano, em Veneza, destinado a apresentar ópera para classes desprestigiadas. Com início na Itália, a ópera conquista toda Europa. Em primeiro lugar, chega à Alemanha e França, e depois, à Áustria e Inglaterra, e assim sucessivamente. A ópera atinge seu auge junto ao povo no século XIX, com a rivalidade entre os compositores Verdi e Wagner. Dessa disputa, surgem repertórios operísticos criativos, inovadores de altíssimo nível musical (FERREIRA, 2009, p.212). No Brasil, a ópera surge no Barroco, embora este período também seja marcado pelas obras instrumentais, então, introduzidas na música. No século XIX, Carlos Gomes compôs óperas célebres como O Guarani e Fosca, entre outras. A primeira, composta em 1870, possui quatro atos, foi escrita em italiano com libreto de Antônio Scalvini e estreou no Teatro Scala de Milão, na Itália, em 19 de março de 1870, fazendo um
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grandioso sucesso. Em sua abertura, encontra-se a mais famosa música instrumental conhecida pelos brasileiros, pois tocada todos os dias às 19 horas, em cadeia nacional, em rádios de nosso país. A relação entre literatura e música, também, advém de adaptações de peças teatrais, como “Romeu e Julieta”, de Shakespeare; “Fausto”, de Goethe; “Electra”, de Eurípedes, com versão célebre de Sófocles; “Édipo Rei”, de Sófocles; entre outros, e de romances diversos, como a narrativa A dama das camélias, de Alexandre Dumas Filho; o romance em versos Tristão e Isolda, na versão de Gottfried von Strassburg, que inspirou Richard Wagner; O Guarani, de José de Alencar; entre outros. No Brasil, em 2008, a microssérie Capitu, adaptada pela Rede Globo, do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, foi planejada, conforme seu site oficial (), para que sua luz, seus figurinos, objetos cênicos, enfim, sua atmosfera, remetesse ao tom operístico, ou seja, a configurasse como uma ópera. A adaptação revelou-se um texto híbrido, construído a partir de referências do cinema, da ópera, e da literatura, tornando válido o pressuposto bakhtiniano de que todo enunciado se constitui por meio de outros (BAKHTIN, 2005). Vale destacar que uma das principais características da ópera é a articulação entre as mídias. De fato, a microssérie brasileira Capitu une e dissolve as fronteiras entre diversos campos culturais, inclusive da computação gráfica, realizando-se de forma televisiva. Para Adriana Pierre Coca (2014), com a microssérie, a ópera reencontrou, mais uma vez, a televisão e, na produção, a ópera é referenciada ainda na associação de Capitu à personagem Carmem, da ópera homônima de Georges Bizet, pela caracterização do figurino. A microssérie Capitu resultou, então, em um texto construído a partir de múltiplas referências artísticas com dimensões intermidiáticas que se concretizaram em um texto televisual. Atualmente, no interior do Estado de São Paulo, há apresentações de óperas curtas e com entrada franca. Um exemplo pôde ser visto, em 20 de julho deste ano, quando a população da cidade de Assis, no interior desse Estado, assistiu, no Teatro Municipal Enzo Ticinelli, à ópera curta Carmem, realizada pela Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo (MARCILIANO, 2014). A produção contou com um cenário simples, porém adequado à atmosfera do enredo. A apresentação da ópera efetivou-se,
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por meio da performance de três cantores, um ator (narrador) e também cantor, três bailarinos de flamenco e três músicos e revelou, pelo grau de apreciação dos espectadores que a aplaudiram de pé, que a cultura não só pode como deve ser democratizada. A ópera arquetípica A ópera Aída, de Giuseppe Verdi, foi composta entre 1870 e 1871, embora tivesse sido encomendada pelo soberano egípcio Ismail Paxá, para ser apresentada no novo edifício da ópera, não o foi para celebrar a abertura do canal de Suez (BOURNE, 2008, p.85). Inicialmente, Verdi recusou-se a compor uma peça por encomenda, mas foi convencido por um grande egiptólogo da época, Auguste Mariette. O primeiro libreto da ópera foi escrito em francês por Camille du Locle e traduzido em italiano por Antonio Ghislanzoni (1824-1893), um barítono escritor e, também, libretista. Sua estreia aconteceu na véspera do Natal de 1871. Aída é considerada por Joyce Bourne (2008), como o arquétipo da grande ópera. Cantada em italiano, com música de Verdi, divide-se em quatro atos e oito cenas, seu caráter épico requer grande aparato cênico para sua realização que, à moda francesa, conta com coros, ballets e atos longos. Seu cenário recria o Egito Antigo e seu libreto mais conhecido é justamente o do italiano Ghislanzoni. A ópera estreou na Casa da Ópera, no Cairo, em 24 de dezembro de 1871. Seu enredo trata da história de uma princesa etíope, Aída, que é raptada e levada ao Egito, país vizinho, como prisioneira para ser escrava, após seu reino ter perdido a última guerra. Sua protagonista Aída esconde sua identidade para sobreviver no cativeiro, tornando-se escrava da filha do faraó, Amneris. Todavia, Aída, apaixona-se pelo guerreiro Radamés do exército inimigo. Este, também, a ama, mas é desejado pela filha do faraó a quem Aída serve. O triângulo amoroso conduz as personagens envolvidas a conflitos, desconfianças, mentiras, traições e angústias existenciais. Em especial, quando o pai de Aída, Amonasro, rei da Etiópia, reúne outro exército e atravessa a fronteira para resgatar sua filha e vingar seu povo.
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Como Amonasro é derrotado, acaba sendo feito prisioneiro, bem como seu povo. No cativeiro, com sua identidade oculta, percebe que o amor de Aída por Radamés é correspondido, por isso convence sua filha a seduzir o jovem guerreiro, a fim de que este revele o local por onde passarão as tropas egípcias para que os etíopes organizassem uma emboscada. Pode-se notar, então, que o enredo da obra adaptada, sob a forma de conto, por Han Mi-Ho, mantém os mesmos temas – guerra, triângulo amoroso, traição e vingança –; a mesma temporalidade; mesmo espaço e percurso narrativo. A própria abertura do conto realiza-se como a de uma peça teatral dramática, pois em folha dupla, encontramse a contextualização da trama pelo narrador em terceira pessoa – “Nos tempos dos faraós, no Antigo Egito, templos, palácios e pirâmides eram construídos com o trabalho escravo. As cidades eram deslumbrantes, à margem do Nilo.” (2012, p.4) –, ao lado da apresentação ilustrada dos quatro protagonistas – Aída, Radamés, Amneris e Amonasro –, acompanhados de descrições psicológicas sumárias que os motivam à ação, por exemplo: “Amonasro – Rei etíope que tenta libertar seu país e recuperar sua filha, Aída.” (2012, p.5). Há, então, uma paráfrase estrutural com a ópera no plano narrativo e temático. Vale, então, refletir sobre como se mantém no texto ilustrado a atmosfera suntuosa e dramática. Pela análise das ilustrações e do projeto gráfico-editorial, pode-se notar que a suntuosidade é assegurada, pela capa dura e dimensão do próprio livro, no formato de álbum, com 26 cm por 33,5, dotado de ilustrações e cenários dispostos em folha dupla. As eleições pela folha dupla e pela ilustração narrativa, ou seja, a que capta as personagens em movimento, remetem a uma cena teatral e asseguram a dialogia com o espetáculo próprio da ópera. Além disso, prevalecem, nas ilustrações, detalhes que avultam graças ao trabalho cuidadoso dos traços e da eleição de cores, constituindo assim cenários com atmosfera que remete ao Egito Antigo e, pelos tons dourados, conotam nobreza e opulência. O drama, por sua vez, configura-se na obra, no plano imagético, pelas expressões faciais e corporais tensas das personagens, sempre preocupadas em esconder suas reais intenções e emoções. O plano verbal, por meio das descrições psicológicas das personagens e de suas angústias, dissimulações, desconfianças, inconformismos e
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mentiras, enfatiza esse aspecto. Um exemplo pode ser visto na cena em que Amneris percebe que o rosto de seu amado, Radamés, ilumina-se quando Aída se aproxima. Assim, ela o indaga, já desconfiando de seus sentimentos e o ameaçando: “– Por que está tão feliz? Estaria apaixonado? [...]. – Não sei quem é sua escolhida, mas, confesso, sinto ciúmes.” (2012, p.8). O guerreiro, ciente de que corre perigo, pois não corresponde ao amor da filha do faraó, dissimula seus sentimentos: “– Eu? Apaixonado? [...]. – Que bobagem... Estava imaginando como seria bom ser o capitão de nosso exército.” (2012, p.8). Nota-se, no plano verbal, o emprego das reticências como recurso capaz de instaurar a lacuna para o leitor, visando tanto revelar-lhe a dissimulação discursiva, como até mesmo convocá-lo a deduzir o rumo dos acontecimentos na narrativa, como no trecho de abertura da obra: “O capitão Radamés, amado por Amneris, apaixonou-se por Aída. E ela se apaixonou por ele...” (2012, p.4). Desse modo, pode-se notar que o texto supõe um leitor implícito participativo, capaz de realizar deduções e preencher os espaços vazios, por meio da projeção imaginativa e da dedução. Como a trama advém de disputa de poderes, conflitos existenciais, bem como do triângulo amoroso, inevitavelmente, seus protagonistas estão fadados a um trágico fim. Embora o leitor consiga prever este desfecho, seu interesse é capturado justamente pela curiosidade quanto ao destino dos protagonistas e por suas performances diante dos dilemas que o destino lhes impõe. Um exemplo aparece na cena em que Aída, de forma espontânea, sussurra a Radamés que lhe deseja vitória na liderança do exército. Quando fica sozinha, a jovem percebe seu erro, pois a luta será contra a Etiópia. Assim, pensa: ““Como pude desejar que Radamés voltasse vitorioso? Ele enfrentará meu pai nesta guerra!”” (2012, p.12). Dessa forma, Aída percebe o quanto seu destino é trágico, pois sofre e reza para que seu país conquiste a vitória, ao mesmo tempo em que deseja que Radamés não se fira. Para o jovem leitor, a trágica história da princesa etíope, transformada em escrava, que se sente acuada entre cumprir suas obrigações para com seu reino ou se entregar ao amor que dedica ao capitão Radamés do exército inimigo, é cativante.
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Na sala de aula A obra Aída, na mediação em sala de aula, permite ampliar o debate acerca dos gêneros textuais, dramáticos, imagéticos e verbo-vocais: canto, conto, ópera, teatro, ilustração, entre outros. Além dos tipos textuais: narração, descrição, argumentação. Em um trabalho comparativo, o mediador pode explorar a dialogia entre a ópera e o texto de Han Mi-Ho, justamente, no plano estrutural da narrativa, na configuração dramática e realização imagética. Por sua vez, em um desdobramento dialógico, pode remeter ao tema do amor impossível em Romeu e Julieta, de Shakespeare, entre outros textos. Na exploração da dialogia da ópera de Verdi com o gênero dramático, pode, ainda, levar os alunos a refletirem sobre a distinção entre o jogo dramático das brincadeiras despretensiosas e o drama propriamente, em que as personagens revelam em suas performances a luta por um causa ou ideal (SLADE, 1978). Para tanto, a proposição da leitura da peça Eu chovo, tu choves, ele chove..., de Sylvia Orthof, amplia esse debate, pois revela uma peça teatral lúdica, em que as protagonistas oprimidas, embora envolvam-se em situações cômicas inusitadas e surreais, jamais abandonam o espírito crítico e o desejo de libertação. A audição das árias que compõem o CD, disposto no encarte final do livro, auxilia na recuperação da memória cultural, por meio do reconhecimento, enquanto desperta o gosto pela ópera. A possibilidade do mediador de apresentar em sala de aula a ópera na íntegra, usando de recursos áudio-visuais, ou de levar a turma a assistir uma ópera curta, certamente, enriquece o debate e democratiza o acesso à cultura clássica. Também, a reflexão acerca de produções contemporâneas, como Capitu, pela rede Globo, que dialoga com a ópera, permite-lhe perceber que a cultura é por natureza dialógica. Considerações finais Pela análise da obra, pode-se notar que Aída possui projeto gráfico-editorial bem elaborado e qualidade literária em seu plano verbal. Sua linguagem é adequada ao
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público jovem, bem como seus recursos linguísticos asseguram o teor dramático à trama. O professor, ao trabalhar uma obra clássica como Aída, oferece aos alunos a oportunidade de conhecerem as belas criações artísticas que o homem criou através dos séculos, despertando neles o interesse e o gosto pelas diferentes artes, ampliando seus horizontes culturais. A dialogia entre a ópera e a obra se efetiva de forma bem-sucedida. Além disso, essa dialogia, pela instauração de lacunas no texto, ao convocar a projeção imagética do leitor em seu preenchimento, assegura a comunicabilidade, tornando a obra atraente na leitura, pois considera seu leitor implícito como inteligente e interativo. Pelo exposto, é válida a hipótese de que Han-Mi-Ho realiza sua adaptação, facultando ao jovem leitor contato com um texto atraente, lúdico e crítico, capaz de conduzi-lo à reflexão e ampliar seus conhecimentos, por meio do resgate da memória cultural. Assim, pela leitura e mediação, o jovem apropria-se de uma produção clássica que sempre lhe pertencera, pois resultante da cultura. Ao se enxergar como herdeiro de um patrimônio cultural, sente-se valorizado em sua identidade de leitor, elevando assim sua autoestima. Referências BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. BOURNE, Joyce. Ópera: os grandes compositores e as suas obras-primas. Prólogo de Lord Harewood e Bryn Terfel. Lisboa: Editorial Estampa Ltda., 2008. COCA, Adriana Pierre. A intermidialidade na ficção televisual contemporânea: os diálogos possíveis na microssérie Capitu. In: Revista Curitiba, v. 16, n. 2, p.102-115, jul./dez.
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FERREIRA, Martins. Como usar a música na sala de aula. 7.ed. 2.reimpr. São Paulo: Contexto, 2009. MARCILIANO, Dag. “Carmem” lota teatro e encanta público. Jornal Voz da Terra. 22 lul.
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O PAPEL DA MEMÓRIA COLETIVA NOS ROMANCES “THE LONGEST MEMORY”, (1994), E “FEEDING THE GHOSTS” (1997), DE FRED D’AGUIAR Elis Regina Fernandes Alves (UNESP-IBILCE)1 A Memória da Escravidão Seguindo o discurso perpetuado por tantos escritores anti-abolicionistas, a literatura dos séculos XVII, XVIII e XIX produziu retratos estereotipados dos escravos, mantendo a ideia da superioridade branca. Por outro lado, escritores abolicionistas tentaram criar obras que retratassem os sujeitos negros escravizados como seres humanos iguais aos brancos e aos sujeitos de outras cores. Mas, ainda, não era a voz do negro a ser impressa, mas o seu testemunho e, às vezes, sua memória. Em muitas situações, este testemunho era publicado em jornais abolicionistas, o que, de certa forma, constituía-se a descrição da memória da escravidão. A história da escravidão foi, por muito tempo, negada, como vemos em Walvin: “Historiadores Britânicos tendem a considerar a escravidão como um assunto distante (colonial, imperial, Americano, marítimo), de interesse marginal ou passageiro para integrar o Reino Unido.” ((2000, p. xi).2 Neste sentido, a literatura produzida acerca da questão da escravidão, por muito tempo, restringiu-se a focar o ponto de vista dos brancos escravagistas, que minimizavam a barbárie da escravidão utilizando a suposta inferioridade negra e a necessidade da manutenção da dominação branca. Isto leva à percepção de que a história e a memória da escravidão eram retratadas de forma enviesada, já que vista por olhos binários.
1
Aluna de doutorado do Programa de Pós -Graduação em Letras da UNESP-IBILCE. British historians have tended to regard slavery as a distant (colonial, imperial, American, Maritime) issue, of only marginal or pas sing interest to mainstream Britain. 2
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Atualmente, têm surgido muitos romances que tematizam a escravidão, de forma que a ficção tem servido como meio de representar, relembrar, discutir e criticar a história da escravidão, tantas vezes negada pela história ou pelas ficções contemporâneas à escravidão. Neste sentido, Bonnici afirma que: [...] vários autores de ascendência caribenha e africana, recorrendo á reescrita da história da escravidão, percebem que a história, especialmente do século 19, é uma importante fonte de recursos ficcionais. Os romances sobre a escravidão do início do século 21 têm uma força temática que vem ao encontro das ambiguidades, informações incorretas e da supressão da memória sobre a escravidão e o racismo na Europa, especialmente no Reino Unido, e nos Estados Unidos. (2012, p. 56)
Ao lidarmos com a literatura produzida por e sobre a escravidão, buscamos analisar, no contexto literário, diversas formas de outremização, ou seja, de “fabricação” do outro (escravo) pelo Outro (escravizador). (ASHCROFT et. all., 2000). Muitas são as formas de outremizar e Spivak (1987) as distingue em três: uma delas seria a exploração física da terra colonizada; outra seria a criação de estereótipos para inferiorizar o colonizado e a última é a criação de uma distância entre o outro e o Outro. Estes estereótipos foram, ao longo do tempo, sendo repetidos e interiorizados pelo discurso colonizador, de modo a negar a legitimidade da voz do colonizado e retratá-lo como incapaz de governar-se a si mesmo. É o que afirma Bhabha: O discurso racista estereotípico, em seu momento colonial, inscreve uma forma de governamentabilidade que se baseia em uma cisão produtiva em sua constituição do saber e exercício do poder. Algumas de suas práticas reconhecem a diferença de raça, cultura e história como sendo elaboradas por saberes estereotípicos, teorias raciais, experiência colonial administrativa e, sobre essa base, institucionaliza uma série de ideologias políticas e culturais que são preconceituosas, discriminatórias, vestigiais, arcaicas, “míticas”, e, o que é crucial, reconhecidas como tal.(2005, p. 127)
Dentro destas estratégias de outremização praticadas ao longo da história da colonização e do processo de escravidão, é possível verificarmos também as memórias da escravidão e a história da escravidão, pois uma das formas encontradas pelos colonizadores para marginalizar os colonizados foi a negação de sua história e dos
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efeitos extremamente negativos da escravidão. Assim, através da história tornada oficial contada pelos colonizadores (detentores do poder político e econômico), a história da escravidão é contada de forma a negar a própria escravidão, ou minimizar seus efeitos, já que o olhar do escravizado não é mostrado, mas sim o olhar do escravizador, que, binariamente, vê a escravidão como algo necessário e, até mesmo correto, e não denuncia sua barbárie. A situação atual das sociedades colonizadas, que se encontram sob forte racismo, além das diásporas dos sujeitos coloniais em busca de melhores condições de vida em outros países são, dentre outras, consequências dos processos coloniais e escravistas, porém negados pelas histórias oficiais. Neste sentido, ao estudar as tradições africanas inventadas pelos administradores ingleses colonizadores em diversos países africanos para legitimar e tornar aceita a ideologia colonial, Hobsbawm afirma que: As tradições inventadas importadas da Europa, ao mesmo tempo que forneceram aos brancos modelos de “comando”, deram também a muitos africanos modelos de comportamentos “modernos”. As tradições inventadas das sociedades africanas- inventadas pelos europeus ou pelos próprios africanos, como reação- distorceram o passado, mas tornaram-se em si mesmas realidades através das quais se expressou uma incrível quantidade de conflitos coloniais. (2012, p. 273)
Analisando a literatura produzida com o intuito de evidenciar as relações escravagistas, é preciso, também, entender que a literatura, como já entendera Gramsci (1985), é produto de processos históricos. A história deixa marcas na literatura. E a própria literatura utiliza-se destas marcas, se afeta por elas, representa-as, de certa forma. É o que afirma Chakrabarty (1995, p. 383) ao analisar a história da Índia colonizada: “Construções anti-históricas do passado provêm formas muito poderosas de memória coletiva”.3 Para entender isso no contexto pós-colonial, utilizamo-nos do que afirma Halbwachs (2006, p. 29): “Recorremos a testemunhos para reforçar ou enfraquecer e também para completar o que sabemos de um evento sobre o qual já temos alguma informação, embora muitas circunstâncias a ele relativas permaneçam obscuras para nós”.
3
Antihistorical constructions of the past often provided very powerful forms of collective memory.
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Ao estudarmos a representação da memória da escravidão, é preciso entender o que definimos como memória. Para Le Goff “A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar, a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (1994, p. 423). Tratando da escravidão, é preciso entender que escravizados vão “atualizar” impressões/informações bastante diferentes das dos escravizadores, pois o olhar de ambos para este mesmo fato histórico será, necessariamente, diferente. Analisando Aristóteles, Le Goff nos mostra que este “[...] distinguia a memória propriamente dita (mnemê), mera faculdade de conservar o passado, e a reminiscência, amamnesi, faculdade de evocar voluntariamente este passado [...]” (1994, p. 439). Assim pensando, podemos entender que tanto a memória da escravidão quanto a sua reminiscência, sua lembrança, serão distintas quando contadas por pessoas diferentes, em posições ideológicas distintas, no caso, escravos e senhores de escravos, pois tais sujeitos sentiram o processo de escravidão de forma muito particular. Abigail Ward (2011) também diferencia memória (mnémé) de lembrança (hypomnésis), pois enquanto a primeira é a reprodução do passado de forma involuntária, a segunda é a lembrança intencional do passado. Dito isso, importa também a distinção entre a memória coletiva e a memória individual para analisarmos como a escravidão é lembrada. Para Halbwachs, de modo geral, as lembranças são coletivas, visto sermos seres sociais: Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isto acontece porque jamais estamos sós. Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem. (2006, p. 30)
Assim, mesmo as lembranças de fatos ocorridos sem testemunhas materiais constituem-se como lembranças coletivas, pois as impressões em nós produzidas são, sempre, influenciadas por certas ideias e opiniões e ideologias a nós trazidas em momentos prévios. Mas, Halbwachs pergunta-se se não há lembranças
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[...] que reaparecem sem que de alguma forma seja possível relacionálas a um grupo, porque o acontecimento que elas reproduzem foi percebido por nós num momento em que estávamos sozinhos (não em aparência, mas realmente sós), cuja imagem não esteja no pensamento de nenhum conjunto de indivíduos, algo que recordaremos (espontaneamente, por nós) nos situando em um ponto de vista que somente pode ser o nosso? (2006, p. 42)
Ele acredita ser isso possível, pois algumas lembranças constituem-se como individuais na medida em que abrangem sensações só nossas, sentimentos sentidos apenas por nós diante de certos fatos: “[...] na base de qualquer lembrança haveria o chamamento a um estado de consciência puramente individual que chamamos de intuição sensível (grifos do autor)- para distingui-lo das percepções em que entram alguns elementos do pensamento social” (2006, p. 42). Em relação à memória histórica, há que se verificar que a história é descrita sob determinado ponto de vista, que não consegue englobar todas as memórias individuais e coletivas dos participantes de determinado fato histórico. Le Goff, ao estudar Pierre Nora, diz que ele “[...] nota que a memória coletiva, definida como “o que fica do passado vivido dos grupos, ou o que os grupos fazem do passado”, pode à primeira vista opor-se quase termo a termo à memória histórica [...]” (1994, p. 472). Ora, não se pode negar que os fatos históricos são descritos de acordo com certas ideologias de quem os vê. Em se tratando da história da escravidão, é forçoso notar que os escravizados não tinham acesso à escrita e à imprensa. Tais domínios eram exclusivos dos donos de escravos, proprietários que apoiavam a escravidão e, portanto, inserindo esta opinião na descrição histórica da escravidão, não podiam emitir o ponto de vista dos que tinham sua liberdade cerceada, seu corpo castigado com o trabalho duro nas lavouras, suas famílias vendidas. Uma indagação que surge dentro deste contexto é acerca destas memórias históricas, que parecem não retratar o ponto de vista do escravizado e, neste sentido, perguntamo-nos se o legado da escravidão (racismo, preconceito, estereótipos, diásporas, etc) é hoje um fator esquecido a não ser pela denúncia de autores de ficção. Tal investigação parece pertinente dentro das obras aqui propostas para serem analisadas. Desta feita, as obras ficcionais que ora mostram memórias da escravidão não são escritas com base em lembranças reais, mas imaginadas e Bergson afirma que
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“Imaginar não é lembrar-se” (2011, p. 158). Tais obras criam lembranças imaginadas para retratar a escravidão. Hoje, ao criar uma obra que nos mostra ficcionalmente uma parte dos fatos ocorridos no processo de escravização, tenta-se dar voz às pessoas que normalmente eram excluídas do arquivo histórico da escravidão, ou seja, os próprios escravos, e abrem-se novas perspectivas para rememorar este passado. (WARD, 2011). Alguns romances tentam soar históricos, baseando-se em fatos registrados pela história, outros criam memórias fabricadas, imaginadas. A memória da escravidão em Fred D’Aguiar Ao focalizarmos nossa análise nas memórias individuais e coletivas do romance “A mais remota lembrança” (1994) e nas memórias individuais e históricas de “Feeding the ghosts” (1997), romances de Fred D‟Aguiar, guianense que usa a memória da escravidão para levantar a questão sobre o que devemos fazer com seu legado histórico (WARD, 2011), precisamos considerar que o primeiro romance cria memórias imaginadas da escravidão em uma plantation na Virginia no início do século XIX, tornando-se um romance polifônico, pois propõe muitas vozes narrativas para lembrar um fato ocorrido na fazenda: a fuga, denúncia, captura, punição e morte do escravo Chapel, delatado pelo próprio pai, Whitechapel. Já o segundo romance propõe uma ideia contrastante entre a memória individual da protagonista Mintah e a memória histórica relatada oficialmente acerca do mesmo fato real, a viagem do navio negreiro Zong vindo da África para a Inglaterra em 1781 e a morte de 131 escravos, jogados ao mar por estarem, supostamente, doentes e o capitão entender que seria mais fácil obter o dinheiro do seguro por estes escravos mortos do que tentar vendê-los doentes. Dentro destas duas obras, o questionamento aqui feito foca, também, a necessidade de discutir como as memórias individuais destes personagens podem alterar e/ou afetar as memórias coletivas dos outros personagens envolvidos nos mesmos fatos. Diante disso há que se ir mais adiante e questionar como as memórias coletivas e/ou individuais afetam e/ou alteram a memória histórica e vice versa. A memória histórica da escravidão terá tido como base quais memórias? As memórias coletivas de quais grupos?
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Em “A mais remota lembrança” as memórias individuais dos personagens Whitechapel (escravo), Chapel (seu filho morto), Mr. Whitechapel (senhor), Sanders Senior (feitor), Sanders Junior (seu filho, feitor), a cozinheira (mãe de Chapel), Lydia (filha do senhor), a bisneta de Whitechapel, e do jornal local mostram diferentes percepções acerca do mesmo fato. Whitechapel, o protagonista, lembra todos os dias a delação e a morte do filho e sofre com a culpa: “Não quero lembrar. Lembrar dói. Como chorar. Só que calado e fundo. A lembrança sobe à pele então, e não agüento que me toquem. Dói o corpo todo, doem os ossos, os dentes se afrouxam nas gengivas, o nariz sangra. Não me façam lembrar. Eu esqueço o mais que posso. (D‟AGUIAR, 1997, p. 10). Rememorado por pessoas distintas, com pontos de vista diversos sobre a escravidão, a memória coletiva deste fato é construída de forma fragmentada. A memória que se torna coletiva não inclui a dor de Whitechapel, sua culpa pela delação e morte do filho, mas foca no olhar acusador dos outros escravos: “Assim é que meu bisneto pode me derrubar, ignorar meu corpo caído, deixar-me sem fôlego e machucado e nem se incomodar. Todos, se, exceção, me culpam pela morte de meu filho. Trombam comigo e me matam.” (D‟AGUIAR, 1997, p. 30). Enquanto Whitechapel lembra-se com culpa de como tentara salvar o filho ao delatá-lo (negociando sua vida com o patrão), os outros escravos não entendem como essa delação lhe pudesse ser mais benéfica que a possibilidade de liberdade, como vemos no relato da bisneta de Whitechapel: “Eu e todos os outros não víamos como é que trair o paradeiro do filho podia ser encarado como ato de proteção.” ((D‟AGUIAR, 1997, p. 129). O jornal local, The Virginian, constrói uma memória histórica que ignora os sentimentos dos escravos, não lhes dá voz. Condena a morte do rapaz, não por sentimento de humanidade, mas pela perda de seu trabalho e pelo fato de não ter o exemplo vivo aos demais „fujões‟: “A chave nesse caso está em castigar com firmeza, usando o castigo como instrução. E há também o seguinte: o escravo deve ser um exemplo vivo de alguém que fracassou na tentativa de fugir [...].” (D‟AGUIAR, 1997, p. 110). Ao fim do romance, tem-se o capítulo intitulado “Esquecendo”, e tendo a história de seu filho latente no pensamento e a culpa de sua morte, Whitechapel tenta
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esquecer. Sua memória não é a mesma dos colegas escravos e ele espera a morte para poder esquecer: “Preciso me sentar. Não, deitar. Repousar estes olhos, cansados de tentar não ver. Descansar esta hora. Parar de provar o azedume lá dentro. Esquecer. A lembrança é a dor tentando ressucitar. “(D‟AGUIAR, 1997, p. 141) Em “Feeding the ghosts” a memória individual de Mintah, a protagonista, que estava a bordo do navio Zong e foi jogada ao mar, mas conseguiu içar-se de novo ao navio é contraposta à memória histórica (e, nesse caso, real), que foi oficializada e aceita no tribunal de julgamento sobre as mortes a bordo do Zong. Ficcionalizando a história real do Zong, D‟Aguiar insere a personagem Mintah, criada numa missão, que fala, lê e escreve em inglês e tenta intervir sobre as mortes dos escravos doentes no Zong, mas é jogada ao mar para evitar influenciar outros escravos. Içando-se, Mintah se esconde no navio, planeja um motim, mas fracassa. Escreve um diário que é levado ao tribunal, mas desconsiderado, por ser ela uma escrava. É vendida na Jamaica e, já velha, não consegue livrar-se da culpa e esculpe 131 esculturas, representando os colegas mortos. A memória de Mintah foca sobre a crueldade do capitão do navio e sua tripulação. Ela não entende o pensamento capitalista do mundo escravocrata que trata-os como mercadorias: Então eles começam a pegar as mulheres doentes e eu tenho certeza que o que eu não queria pensar podia ser verdade. Mesmo quando eu digo isso com os outros, nenhum de nós realmente acreditamos no que dizemos. Eles estão jogando os doentes no mar. Queremos ver isso por nós mesmos. Queremos olhar para estes homens conforme eles pegam os doentes e fazem essa coisa. Mas nós os combatemos e eu grito seu nome, 'Kelsal'! (D'AGUIAR, 1999, p. 185). 4
A memória individual de Mintah não é aceita no tribunal, e a memória coletiva dos tripulantes do navio (brancos, escravagistas) é que torna-se oficializada: Simon não podia entender o que estava errado. Por que a decisão foi em favor dos investidores, sem menção às mortes? Ele não sabia. Ele 4
Then they start to take sick women and I know for sure what I did not want to think could be true. Even as I say it with the others none of us truly believe what we say. They are throwing the sick into the sea. We want to see it for ourselves. We want to look at these men as they grab the sick and do this thing. But we fight them and I shout his name, „Kelsal‟!
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tinha certeza de que ele havia traído Mintah. Todos haviam sido reduzidos a mercadoria e isso foi o fim de tudo. O diário de Mintah havia sido recusado, porque ela não era livre, mas adquirida como mercadoria. (D'AGUIAR, 1999, p. 173).5
A protagonista nunca mais consegue contar sua história e passa sua vida na Jamaica. Já velha e tendo conseguido sua liberdade, ela se torna livre apenas fisicamente, pois sua consciência a acusa diariamente. Ao esculpir os 131 escravos mortos no Zong, parece querer preservar sua história no navio ou mesmo ajustar as contas com quem fracassara. O romance desloca a história da escravidão para o século XVIII, mas Mintah parece representar o legado da escravidão ainda hoje, pois assim como ela, os descendentes de escravos continuam sem voz. Analisando e contrapondo as lembranças destes dois romances, vê-se como a escravidão deixou efeitos e como tais efeitos não podem ser ignorados ou esquecidos. O passado da escravidão, esta diáspora forçada, um legado das empreitadas coloniais, se impõe a nós, na medida em que tantas marcas foram deixadas, como a estereotipação do sujeito negro, o racismo, a inferioridade imposta em tantas esferas sociais, as diásporas atuais. O passado da escravidão retorna a nós todos os dias, mesmo quando a memória histórica tenta suprimi-lo. A ficção busca revisitar este passado, rememorando-o ou imaginando-o, numa tentativa de evidenciar os legados da escravidão entre nós. (WARD, 2011). O estudo destas memórias e a sua representação ficcional parece impelir-nos a não ignorar o passado, de modo a não perpetuar as barbáries da escravidão. A escravidão pode ter acabado, mas seus efeitos não. E, em “A mais remota lembrança”, a evidência disto está nos personagens viventes que não conseguem libertar-se da morte do rapaz Chapel, vítima de 200 chibatadas dadas por seu meio-irmão e delatado pelo próprio pai. Em “Feeding the ghosts” as marcas deste passado escravagista perseguem a protagonista Mintah, que não consegue, no tribunal, fazer seu relato ser crível, o que faz com que as 131 mortes dentro do Zong não sejam efetivamente julgadas. Neste caso, a
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Simon couldn‟t work out what had gone wrong. Why had the ruling gone in the investors‟favour with no mention made of the deaths? He didn‟t know. He felt sure he had betrayed Mintah. Everyone had been reduced to stock and that was the end of it. Mintah‟s diary had been dismissed because she was not free but owned as stock.
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voz de Mintah (escrava) é ignorada a e a memória histórica é escrita de modo a negar o olhar do próprio escravo.
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O MUNDO CARNAVALIZADO EM CONTOS DE LUIZ VILELA Eunice Prudenciano de Souza (UFMS)1 Angela Nubiato Lopes (UFMS)2 ***
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A solidão e o desamparo experimentados hodiernamente pelo ser humano ocupam lugar central nas narrativas de Luiz Vilela. Tencionamos, com o presente artigo, analisar como essa condição aparece retradada em dois contos do ficcionista: “No bar”, de No bar (1968), e “O buraco”, de Tremor de terra (1967), livro de estreia do autor. A partir dos conceitos de carnavalização e grotesco romântico de Bakhtin, em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (2013), verificamos como Vilela aborda o mote nesses contos e como se dá a relação mundo exterior e interioridade em suas personagens. O mundo carnavalizado, na concepção de Bakhtin, é o locus da inversão, onde o marginal e o excludente estarão no centro da representação. O espetáculo carnavalesco anula as fronteiras hierárquicas, ideológicas e sociais. Esse mundo às avessas representa a liberdade e o extravasamento perante a vida oficial que consagra a imutabilidade e a permanência das regras. O caráter real da carnavalização é a sua condição não oficial, de suspensão de todas as hierarquias, em que uma vida paralela constitui-se como paródia dos aspectos da vida séria, proclamando a suspensão de valores, normas e tabus que regem a vida cotidiana. Para o teórico, o grotesco que ressurgiu durante o Romantismo, embora conserve alguns traços do realismo grotesco, expressa uma visão de mundo subjetiva e individual, um pouco distante do grotesco popular e carnavalesco da Idade Média e do Renascimento. Trata-se de “[...] um grotesco de câmara, uma espécie de carnaval que o indivíduo representa na solidão, com a consciência aguda de
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Em estágio pós-doutoral no PPG Mestrado e Doutorado em Letras da UFMS, Campus de Três Lagoas; integra o Grupo de Pesquisa Luiz Vilela– GPLV; [email protected]. 2 Mestranda em Estudos Literários – UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso Sul. Três Lagoas – MS – Brasil. CEP 79603-010 ; [email protected].
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seu isolamento.” (BAKHTIN, 2013, p. 33 grifo do autor). Consciente de sua condição, o indivíduo transgride os limites da racionalidade, havendo a dessacralização do lado oficial da vida, com suas normas, regras e condutas estabelecidas, e, em decorrência, os limites todos se relativizam. ***
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Em “No bar”, temos um narrador homodiegético, que, consciente da incomunicabilidade de todos os seres, sofre pelo imenso contraste entre a vida idealizada e o meio que o circunda. O narrador do conto discute, angustiadamente, com um amigo, no espaço de um bar, sobre sua trajetória de vida. Relembra fatos do passado para explicar e entender o presente. Durante a conversa, faz referência a Leibniz e sua teoria das mônadas. Segunda esta, cada ser humano é constituído por uma mônada e é incomunicável, não interage com outras mônadas, mas é responsável por suas escolhas, que levam sempre à ação. A seguir, o narrador discorre sobre o dia em que ele e seu amigo Lúcio descobriram que os seres são incomunicáveis; nesse dia, confessa, morreram um pouco, foi “como se cada um tivesse ido pro túmulo”. No entanto, diz ao amigo do bar que Lúcio conseguira ressuscitar e ele não. Segue refletindo e analisando as angústias humanas, constatando a solidão do indivíduo diante das incertezas da vida: [...] você sabia que a gente só ouve a própria voz? e que eu já chorei por causa disso? e que eu também já ri por causa disso? Ai meu Deus, essa vida é uma merda, por que estou com vontade de chorar e não choro? Por que estou com vontade de morrer e não morro? Meu Deus, meu Deusinho, eu te perdoo porque você não sabe o que faz e eu também não sei o que faço e estou bêbado e cansado e só. (VILELA, 1968, p. 170).
Pela voz do narrador, percebe-se a angústia de viver, em desamparo e em eterna busca por algo que atribua sentido para sua existência. No conto “Tremor de terra”, do livro homônimo (1967), o narrador fala da espera de algo significativo, de um tremor de terra, que provoque mudanças e configure um sentido para sua vida: É o que desde criança espero, um tremor de terra, algo que abalasse, que tremesse, que sacudisse tudo. Uma vez, quando tinha sete anos,
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fiquei horas acordado esperando o tremor, [...]. O tremor não veio, e até hoje o espero, e em certas noites quase rezo, implorando a Deus que ele venha – nessas noites em que ando pela rua sem vontade de ir a nenhum lugar e de conversar com ninguém e de ficar em casa e de andar e de viver e de morrer, quando não há nenhum problema, quando tudo está assim e vai ficar desse jeito como dois mais dois igual a quatro [...]. (VILELA, 1972, p. 154).
Fala de um Deus que não veio para salvar a humanidade de sua solidão, de sua incomunicabilidade e de sua existência paradoxal. De modo geral, o homem vileliano é um ser angustiado, perplexo diante da falta de sentido da vida. E o narrador de “No bar”, depois de constatar a dimensão de sua solidão, continua dizendo ao amigo que, dois dias depois que “morreram”, ao contrário dele, Lúcio conseguiu ressuscitar e subir ao céu pela chaminé. Nesse dia, Lúcio ligara para ele dizendo que havia encontrado a solução para a falta de comunicação entre os seres, dizendo que se não havia portas ou janelas, a solução seria sair pela chaminé. Lúcio diz ter descoberto que ele era, na verdade, São Francisco de Assis; não qualquer São Francisco de Assis, mas o São Francisco de Assis de Portinari. Em consonância com a leitura proposta, podemos pensar que a imagem de São Francisco de Assis remete à liberdade e transgressão perante o estabelecido e normativo da vida em sociedade, visto que [a] vida de Francisco nos é contada a partir de rupturas: era rico e rompe com a riqueza; era leigo, rompe com a vida laica, se propõe uma vida religiosa; rompe com o pai; rompe com o orgulho e a avareza com um modo de vida fundamentado na caridade e na humildade. Polemiza com os vícios humanos, mas não polemiza com os vícios da instituição Igreja. Em um mundo hierárquico, propõe uma solidariedade horizontal. Sua fuga do mundo é se refugiar no próprio mundo, em suas regiões pecadoras e de pecadores, atuando nele. Falar em Francisco de Assis significa envolver-se com polêmicas e ambiguidades, [...]. (SILVA, 2005, p. 148).
Se pensarmos ainda que o São Francisco de Assis, de Cândido Portinari, é parte de um painel da Igreja, na Pampulha, em Belo Horizonte, e escandalizou as autoridades locais na época por representar o santo ao lado de um cachorro, veremos um segundo
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rompimento com o oficial e o dogmático. Lúcio quer ir além em suas transgressões, subverter a ordem, para renascer em outra identidade: São Francisco de Assis. Na sequência de seu raciocínio, o narrador de “No bar” chega à conclusão de que “intersubjetividade monadológica” e “comunicação das consciências” são nomes complicados para a necessidade de amor e carência do ser humano. Ao falar de sua obsessão por Lídia, afirma que, no fundo, o amor se aproxima de uma doença. Reconhece: há os equilibrados, os normais, os sadios, todos esses tipos nojentos que serão vomitados da boca de Deus no Juízo Final. Eles amam porque amar é uma coisa que um homem tem de fazer, como tem de comer e dormir; arranjam uma mulher porque é uma coisa que eles têm de arranjar um dia, como têm de arranjar uma casa, um filho, uma posição social, pra viver em harmonia com o rebanho e morrer na santa paz do Senhor [...]. Arte de viver: outra nojeira. Não se esgote, não pense no amanhã, não se preocupe depois das dez da noite, não beba, não fume, sorria sempre, a vida é uma maravilha, Deus me sorri, etcétera. Palhaçada. (VILELA, 1968, p. 173).
Aqui, o narrador critica as amarras e coibições sociais que levam os indivíduos a agirem de maneira robotizada, conforme o esperado para “seres humano-sociais normais”, evidenciando a inadequação do ser a uma série de comportamentos prescritos, por ele definidos, simplesmente, como “palhaçada”. O tempo da narrativa é o do indivíduo adulto que cresceu e se endureceu em decorrência de sofrimentos e perdas. Reconhece: o amor pela Lídia fora “um adeus à minha adolescência”, originando “uma nova maneira de viver, mais fria, mais dura, mais contida” (VILELA, 1968, p. 174). Diz que desejara que o amigo pudesse ter visto seu sofrimento e que previra que um dia Lúcio pudesse virar santo, pois “[p]erto dele o que eu entendia por amor era apenas egoísmo disfarçado.” (VILELA, 1968, p. 174). Observa que Lúcio estava em um plano mais evoluído, pois, para ele, o amor devia ser e estar em relação a todos os seres e coisas. Então o narrador termina o relato dizendo que, depois que Lúcio descobrira que era São Francisco de Assis, a família o levara a um psiquiatra. Este receitara choques para curá-lo, “mas Lúcio não ficou bom” e fora dado como “caso irrecuperável”.
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Inicialmente, Lúcio ficou livre, “conversando com as árvores e passarinhos [...] uma coisa maravilhosa” (VILELA, 1968, p.175). Foi tomado como comunista ao começar pregar sobre o amor. Depois deu todos os seus pertences aos pobres. “Foi então que resolveram mantê-lo permanentemente trancado num quarto – um quarto com janelas gradeadas para ele não fugir. Não compreenderam que já não podia haver mais prisões para ele.” (VILELA, 1968, p. 176). Ao final, percebemos que Lúcio libertara-se, transcendera a algo superior. A loucura de Lúcio parece representar uma necessidade humana maior, em aparente questionamento da racionalidade da sociedade burguesa contemporânea. Lúcio, ao superar o limite proibido, renovara-se, libertando-se. Sua loucura é a forma encontrada para sobreviver em meio à lógica racionalista e a incomunicabilidade dos seres. Ao comentar a relação do indivíduo considerado louco pelo meio em que vive, Bóris Schnaiderman, em Dostoiévski: prosa e poesia (1982), afirma: [s]egundo foi mostrado pelos teóricos da antipsiquiatria, e já se tornou até uma verdade surrada, o meio coloca uma etiqueta no ‘louco’, define-o como tal, livra-se dele, mas, na realidade, o doente representa uma necessidade vital do ambiente em que vive. Este como que lhe delega, localiza nele, um mal que seria de todos. (1982, p. 101).
O louco, assim, representa o mal que seria de todos: o desajuste do indivíduo ao seu meio. Isolados, tocados pela busca inútil de sentido para a vida, os seres fogem para dentro de si mesmos. Mônada, sem sonhos e utopias, a loucura torna-se um meio de sobrevivência para o homem moderno. Segundo Bakhtin, [o] motivo da loucura, por exemplo, é característico de qualquer grotesco, uma vez que permite observar o mundo com um olhar diferente, não perturbado pelo ponto de vista ‘normal’, ou seja, pelas ideias e juízos comuns. [...]. No grotesco romântico, porém, a loucura adquire os tons sombrios e trágicos do isolamento do indivíduo. (BAKHTIN, 2013, p. 35).
O indivíduo, ao buscar uma saída para suas angústias, entra em processo de transformação que culmina em processo de loucura, mas o seu encontro consigo mesmo
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significa também uma compreensão mais ampla do mundo. Podemos ver a figura do louco como representativa de uma necessidade vital e coletiva do espaço em que vive. A carnavalização da literatura representa a liberdade e o extravasamento; nesse sentido, a personagem Lúcio, de “No bar”, transcende, rompendo todas as fronteiras, pois, ao final, “[...] já não podia haver mais prisões para ele.” (VILELA, 1968, p.176). Desse modo, podemos reconhecer, no conto, a dessacralização do lado oficial da vida, estabelecendo-se uma vida paralela em que normas, regras e condutas estabelecidas são relativizadas. A loucura é a saída da racionalidade para o ingresso em uma nova ordem superior. Diante da constatação de que somos seres incomunicáveis, a loucura é o escape do insulamento e da individualidade a que estamos submetidos. O mundo moderno retratado na ficção de Vilela é um mundo de solidão e descrença. Em seu percurso, o narrador do conto “No bar” emerge, de suas experiências, sem utopias e sonhos, completando-se em negatividade e em niilismo. Para ele, nem mesmo o amor consegue vencer o desalento existencial, pois, ao amar, o homem descobre-se solitário: O amor é o que existe de mais solitário no homem. A gente costuma pensar no amor como algo que estivesse aí no ar e aparecesse de repente para unir duas pessoas — mas não, não é assim, não é nada disso, o amor é solitário, é uma coisa que está aqui dentro, uma coisa que a gente sente pelos outros e que os outros podem não sentir pela gente. Amar alguém é descobrir nossa solidão. (VILELA, 1968, p. 8788).
Podemos pensar o conto “No bar” nos moldes do grotesco romântico de Bakhtin, em que o ser humano é visto em seu caráter de universal incompletude. O ser sempre estará em transformação e em busca de sua totalidade, as fronteiras do corpo são ultrapassadas para colocá-lo em comunicação com o que o circunda. Transvestido como a máscara trágico-cômica de louco, Lúcio simboliza a tentativa de se chegar à concreta verdade dos homens puros, a comunicação e o amor entre todos os seres. A máscara de louco, aqui, possui a função catártica de libertar, inverte e transveste, opondo-se a todas as hierarquias e imutabilidades sociais. Ao despir o ser de sua real identidade, relativiza a verdade, celebrando a mudança e a renovação do mundo.
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Em relação ainda ao conto “No bar”, podemos pensar seu espaço perpassado pela instância dialógica em que as personagens, por meio de suas ações, definem os limites não palpáveis das relações humanas. O narrador define seu ponto de vista acerca da existência a partir do espaço de um bar, cronotopo marcado pela libertação e extravasamento do ser, em que as ações do álcool sobre a consciência permitem uma visão mais livre e verdadeira acerca da vida. Estamos, provavelmente, no limite da lucidez-embriaguês, as máscaras sociais coercitivas caem e o personagem narrador revela suas angústias e fragilidades de modo mais informal e descontraído. Não ocorre o detalhamento do espaço em si, todavia a psicologia da personagem caracteriza os espaços em que transcorrem as ações: o bar, a igreja, o manicômio, as ruas da cidade, todos esses lugares, aos poucos, vão sendo definidos. São espaços públicos não oficiais, propícios ao “carnaval” e ao extravasamento da vida paralela. A embriaguês do narrador dá a dimensão do carnaval que é a existência, em que as esferas oficiais e não oficiais se fundem, caracterizando um espaço que se define por meio de ação psicológica exercida em ambiente de alegria como um bar, que insere em seu contexto a reflexão sobre a incomunicabilidade, a solidão e a eterna busca por amor e amparo. ***
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No conto “O buraco”, um narrador autodiegético, Zé, divide-se entre o resgate das memórias da infância e adolescência e a busca por uma identidade esfacelada em meio aos relacionamentos sociais. Assim, a fábula gira ao redor dos conflitos emocionais e existências de Zé, que relata a construção de um buraco, cuja lembrança mais antiga remonta ainda à infância, mas, na realidade, não sabe “como” nem “quando” começou. Tudo acaba sendo muito vago, pois Zé diz que “devia ter três anos” e que, inicialmente, tomara o buraco como um brinquedo; porém, aos poucos, o buraco vai se tornando algo muito significativo para a personagem. Afirma que, mesmo antes de caber todo no buraco, já pensava nele como algo que pertencesse só a ele e a mais ninguém. Diz que, embora ficasse no quintal, à vista de todos e as pessoas passassem ao
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lado e mesmo sobre ele, o buraco não deixava de ser seu e secreto. Parece-nos que, aqui, o narrador faz referência ao mundo interior invisível aos olhos das outras pessoas, o ser humano visto em toda sua complexidade e em seu caráter de interior infinito. De início, Zé fica dividido, chegando a admitir: ao mesmo tempo em que eu “achava bom ficar ali [no buraco] sozinho, longe de todo mundo” (VILELA, 1972, p. 22), “sentia-me triste, e tinha vontade de voltar para as pessoas, conversar, falar, ouvir.” (Vilela, 1972, p. 22). À medida que vai crescendo, o buraco vai tomando uma dimensão maior na vida da personagem, muito além do espaço físico do quintal, e, aos quinze anos, a personagem reconhece o buraco como algo intrínseco a sua pessoa: “[d]e qualquer modo uma coisa era certa: aquele buraco existia e era meu, inseparavelmente meu, tão meu que era como se estivesse não ali fora mas dentro de mim.” (VILELA, 1972, p. 22). Diante da incompreensão e espanto das outras pessoas quando elas descobriam a existência do buraco, Zé tenta tirá-lo de sua vida. Mas, desesperado, afirma que, toda vez que tentava tampá-lo, “[...] cada pá de terra atirada dentro do buraco era como se fosse atirada dentro da minha boca. Eu não podia fazer aquilo, era como se eu estivesse me assassinando. Então desisti.” (VILELA, 1972, p. 24). Ao mesmo tempo em que tenta desistir do buraco, reconhece: “[...] eu me sentia bem ali dentro, perfeitamente à vontade, como se fosse ali realmente o meu lugar, o meu habitat.” (VILELA, 1972, p. 24). Aos poucos, o buraco finalmente fica grande o suficiente para cabê-lo todo, tornando-se um espaço de refúgio, em que podia ficar em paz e em silêncio, sem ser incomodado: A verdade é que, das pessoas que me cercavam, com quem lidava todo dia, a maioria me aborrecia, me desgostava, me cansava; me cansavam sobretudo por causa de uma coisa: elas falavam demais; por que não conseguiam ficar em silêncio? Depois de estar com elas, como era bom entrar no buraco e ficar ali naquele silêncio. (VILELA, 1972, p. 25).
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As pessoas “falavam demais”; talvez, sem nunca ouvirem o que Zé tinha para dizer. Afinal, as pessoas sempre estão mais interessadas no que têm para dizer, nunca estão dispostas a ouvirem e conhecerem o outro. Quando as pessoas insistiam para que Zé saísse do buraco e ele se recusava, elas “ameaçavam jogar coisas dentro; não tinham o menor respeito pelo buraco” (VILELA, 1972, p. 25), numa nítida demonstração de desrespeito à individualidade de Zé. Atitude que faz com que ele tenha ainda mais vontade em ficar no buraco, afastando-se em definitivo do convívio social. As pessoas avisam-no então de que acabaria por transformar-se em tatu. Zé pensa que seria bom, afinal “[a]quelas pessoas me deixariam em paz no meu buraco, não viriam molestar-me [...].” (VILELA, 1972, p. 25). Desse momento em diante, o narrador-protagonista passa a desejar transformar-se em tatu, refletindo sobre o quanto seria bom viver sozinho no escuro e no silêncio, longe das pessoas. E sua busca passa a ser pelo silêncio e pela noite. Continuava cavando, agora em busca de maior silêncio e menos claridade. Diferentemente de Gregor Samsa, Zé não é totalmente abandonado pela família. E aqui também, ao contrário da transformação do protagonista kafkiano, a sua é voluntária. Certo dia em que sua mãe sai, ouve alguém se referindo a ela como sendo “a mãe do tatu”, e ela chora ao lhe contar o ocorrido, o que faz com que Zé prometa não mais voltar ao buraco. No entanto, ele não consegue cumprir sua promessa: “[...] eu não podia mais ficar fora do buraco, sentia-me desambientado, doente, tudo me feria, me incomodava, a luz do sol queimava meus olhos como se fosse fogo, os sons abalavam meus ouvidos [...].” (VILELA, 1972, p. 27). Com o tempo, passa a ter as mãos compridas, com unhas fortes e pontudas e já não pode nem mesmo pedir bênçãos a sua mãe. Para disfarçar, suas mãos ficam nos bolsos. Embora a mãe prometa nunca abandoná-lo, é ele que reconhece: “[p]obre Mamãe, eu é quem a abandonei.” (VILELA, 1972, p. 28). A falta de comunicação e identificação de Zé com os que o circundam promove um distanciamento cada vez mais acentuado. Sua segregação decorre do sentir-se diferente entre os seus. Ao pensar na mãe, afirma: “[...] sou diferente dela, meu mundo é diferente, não tenho mais nada a ver com seu mundo, só a memória me liga a ela.”
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(VILELA, 1972, p. 28). Abandona também a noiva, que entra em desespero. Quis então gritar a todos que era diferente, “[...] mas era tatu, não tinha mais voz.” (VILELA, 1972, p. 29). O constatar-se diferente é angustiante, e requer coragem para enfrentar regras e tabus, visto que o diferente nunca foi bem aceito pela sociedade. Quando finalmente as pessoas deixam de procurá-lo, ironicamente ele passa a sentir a falta da voz humana. Refletindo, observa que, provavelmente, só sentia a carência por estar longe, se voltasse a pertencer ao mundo dos humanos, “desgosto e cansaço” é o que sentiria. Termina por descobrir que Maria havia ficado noiva de outro. A princípio, sente enorme tristeza, mas volta a si e reconhece que ela não podia continuar sendo noiva de um tatu. Acaba por achar graça na situação: “[a]cabei achando a idéia divertida, e pensei numa manchete de jornal assim: ‘Mulher apaixonada por um tatu mata-se.’ Seria engraçado.” (VILELA, 1972, p. 31). A presença do humor subverte os valores e podemos fazer uma leitura do conto aos moldes da carnavalização proposta por Bakhtin. O riso relativiza a ordem e as verdades estabelecidas, reagrupando outros valores. Supre a consciência profunda de solidão, isolamento e de não pertencimento à sociedade oficial. O desfecho cômico desfaz o percurso de tragicidade do conto, visto que o riso do grotesco romântico, segundo Bakhtin, perdeu seu caráter regenerador, mas tornou-se libertador. “O universo do grotesco romântico se apresenta geralmente como terrível e alheio ao homem. Tudo o que é costumeiro, banal, habitual, reconhecido por todos, torna-se subitamente insensato, duvidoso, estranho e hostil ao homem.”, afirma Bakhtin (2013, p. 34). Nesse quadro, o homem cria para si a necessidade de uma busca interior pela verdade. O sério da vida ordinária violenta e oprime o indivíduo, que busca alternativas para a ausência de liberdade. As transformações sofridas pelas personagens dos contos de Luiz Vilela, Zé e Lúcio, demonstram que ambos providenciam para si a criação de mundos paralelos. Nos contos de Vilela, em buracos ou em bares se desenvolvem as mais íntimas inquietações do ser, revelando a vida em seu processo ambivalente, interiormente contraditório. E a busca pela verdade dissolve os tênues limites existentes entre razão e lucidez para captar a existência como um fenômeno que vai além das manifestações
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rotineiras. Para se aproximar das respostas a tantas indagações e dúvidas, resta ao indivíduo abrigar-se na profundidade silenciosa de um buraco ou na insanidade regeneradora, saídas capazes de aliviar a dura tarefa de existir. No mundo carnavalizado de Bakhtin, os participantes perdem as noções hierárquicas, criando uma espécie de mundo não oficial. Nesse sentido, tanto “um louco” quanto “um tatu” não teriam, em seus universos, as hierarquias típicas reguladoras da vida social. No carnaval bakhtiano, o "desrespeito" às instituições era permitido apenas no momento não oficial da vida. Vilela dá essa liberdade aos seus protagonistas, de serem eles mesmos, um tatu e um louco, e de tornarem oficiais suas vidas privadas, assim, seus seres ficcionais renascem em outra forma. Zé, já na infância começa a cavar seu buraco, numa demonstração da própria consciência de que o destino do ser humano é a solidão. Consciente da incomunicabilidade inerente ao ser humano, tece seu buraco. Dessa maneira, cada ser humano cava seu buraco para sobreviver à difícil experiência de viver. Uma das personagens de Vilela, Aristotelina, do conto “Noite Feliz”, de Você Verá (2013), enuncia sua solidão: “nunca houve ninguém tão só. Nunca, neste mundo, alguém se sentiu tão só. Nem se eu estivesse – só eu de gente –, nem se eu estivesse lá numa cratera da Lua ou num deserto de Marte.” (VILELA, 2013, p. 92). Em sua humanidade latente, as personagens de Luiz Vilela desnudam-se em solidão. Aconchegar-se à proteção das paredes de um buraco, refugiar-se na loucura ou mesmo na morte, como Aristotelina, parecem ser as saídas encontradas pelas personagens de Vilela. ***
4 ***
Nos contos de Vilela, as relações humanas, escondidas sob a realidade de cada dia, surgem na sua dimensão de falta e carência. E a solidão a que o ser humano está relegado ocupa papel central em suas narrativas. Wania Majadas, em O diálogo da compaixão na obra de Luiz Vilela, enfatiza a problemática da solidão no conjunto da obra do escritor: A solidão, na obra de Luiz Vilela, ocupa grande espaço: a solidão da criança, do jovem, do velho, dos animais; a solidão entre quatro paredes ou entre amigos; a solidão na rua estreita de uma cidadezinha ou na larga avenida de uma capital. [...] Até o narrador [...] está
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envolvido por esse sentimento da ausência do outro. Ele é contaminado pela solidão da personagem [...], pelo espaço onde a personagem transita, e até mesmo pelos objetos que [a] cercam [...]. (MAJADAS, 2011, p. 59).
Drummond, no poema “O fazedor de homens”, afirma que todo homem é uma ilha, mas o poeta acredita ser possível construir pontes para que um indivíduo possa ligar-se a outro, saindo, assim, de seu isolamento. No entanto, não há ligação possível. No universo ficcional de Vilela, as ligações são sempre muito frágeis e podem ruir a qualquer momento, o homem está destinado a ser só. Em tempos modernos, torna-se ainda mais difícil construir qualquer ligação. Zé e Lúcio, diante da inexorabilidade de seu desamparo e da impossibilidade de contato fora de sua própria ilha, construíram suas próprias verdades, obstruindo as pontes que os levavam para o mundo oficial, seguros na decisão de serem simplesmente homens em toda sua plenitude. Assim, diante da eterna inadaptação humana, a transgressão e o mascaramento são recorrentes na obra de Vilela, pois, ao despir o ser de sua real identidade, relativiza a verdade, celebrando a mudança e a renovação do mundo, inverte e transveste, opondose de modo bakhtinianamente carnavalizado a todas as hierarquias e imutabilidades sociais.
Referências bibliográficas: BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 8 ed. São Paulo: Hucitec, 2013. MAJADAS, Wania de Sousa. O diálogo da compaixão na obra de Luiz Vilela. Goiânia: PUC-GO/Kelps, 2011. SCHNAIDERMAN, Bóris. Dostoiévski: prosa e poesia. São Paulo: Perspectiva, 1982. SILVA, Victor Augustus Graciotto. Francisco de Assis e a pobreza franciscana: a fundação de um discurso. História: Questões & Debates, Curitiba, UFPR, n. 43, 2005, p. 147-168. VILELA, Luiz Vilela. Tremor de terra. 3 ed. Rio de Janeiro: Edições Gernasa, 1972. VILELA, Luiz Vilela. No bar. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1968. VILELA, Luiz Vilela. Você verá. Rio de Janeiro: Record, 2013.
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LAVOURA ARCAICA E A DIALÉTICA DA TRANSGRSSSÃO ÉTICA
Evanir Pavloski (UEPG)
Tendo em vista uma abordagem da obra literária que valoriza os seus diálogos e os seus intertextos com outras esferas do conhecimento, o espaço ficcional figurado pelo romance Lavoura arcaica pode ser reconhecido como um dos mais profícuos para a proposição de questões e discussões de ordem estética, discursiva e sociológica. O caráter acentuadamente intimista da obra, potencializado pela dicção poética de Raduan Nassar, permite abordagens analíticas que privilegiam ou problematizam aspectos fundamentais da experiência humana. Diante disso, o presente artigo objetiva refletir criticamente sobre a esfera ética que não apenas regula o comportamento das personagens, mas também condiciona as ações subversivas do protagonista: o núcleo familiar. Complementarmente, será analisado o movimento dialético de contestação e subversão que se estabelece entre as gerações que convivem no topos central da narrativa. Primeiramente, é importante enfatizar que a deflagração do conflito no ambiente familiar assume uma significação ainda mais profunda quando vislumbrada como desveladora de eixos paradigmáticos de identificação e de comportamento inerentes a diferentes modelos de estruturas sociais. Como já afirmava Jean-Jacques Rousseau em Do contrato social, “a mais antiga de todas as sociedades e a única natural é a da família [...] Portanto, a família é, se quiserem, o primeiro modelo das sociedades políticas” (ROUSSEAU, 2010, p. 24). Dessa forma, a problematização da ética reguladora do convívio familiar evidencia as relações de poder, os processos de normalização individual e as transgressões, muitas vezes, tidas como necessárias para a afirmação identitária do sujeito diante da coletividade e de si mesmo. Entretanto, o caráter instrutivo e formativo que irremediavelmente é associado ao núcleo familiar singulariza sensivelmente os aspectos expostos acima e potencializa certos comprometimentos emocionais que, em outros espaços de alteridade, não assumem tal importância. Em síntese, a família é entendida ao mesmo tempo como uma esfera protetora dos indivíduos ligados a ela e um ethos educativo que, supostamente,
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prepara os jovens sujeitos para o universo exterior. Não obstante a aparente clareza desses aspectos na contemporaneidade, apenas a partir do século XVIII, a importância do ambiente familiar como espaço de instrução foi reconhecida e valorizada. Em O malestar na pós-modernidade, Zygmunt Bauman afirma que a partir desse período: A criança era considerada um ser frágil, que requer estreita e constante vigilância e interferência; um ser inocente, mas que, pela própria razão da sua inocência, vivia sob uma constante ameaça de ser “estragada”, incapaz de evitar e combater os perigos por sua conta. O que para os adultos era um desafio a combater ou arrostar, para a frágil criança era um engodo a que ela não podia resistir ou uma armadilha em que ela só podia cair. A criança precisava da orientação e do controle do adulto: uma supervisão refletida e cuidadosamente planejada, calculada para desenvolver a razão da criança como uma espécie de fortificação deixada pelo mundo adulto dentro da personalidade da criança (BAUMAN, 1998, p. 178).
É interessante perceber que o processo de formação individual descrito por Bauman se ramifica em duas instâncias complementares. A primeira se refere à preparação dos filhos para os parâmetros de conduta e de convivência nos modelos sociais específicos em que eles estão inseridos, o que constitui, portanto, uma aprendizagem de ordem ética. Por sua vez, a segunda se caracteriza pela transmissão de valores e ideais que nem sempre estão em conformidade com os paradigmas externos. Especificamente neste caso, a educação parece atender mais a princípios morais que foram erigidos ao longo de décadas ou mesmo séculos de experiência e transmissão. É justamente nesse horizonte de representação ideológica que a força da tradição se manifesta em sua totalidade. Ao comparar os espaços da physis (natureza) e do ethos (núcleos sociais), Henrique Lima Vaz salienta a importância da tradição como elemento que atribui às relações humanas a sua dimensão histórica e preserva a integridade dos sistemas de significação reconhecidos. O filósofo afirma que Elevando-se sobre a physis, o ethos recria, de alguma maneira, na sua ordem própria, a continuidade e a constância que se observam nos fenômenos naturais. Na physis, estamos diante de uma necessidade dada, no ethos tem lugar uma necessidade instituída, e é justamente a tradição que suporta e garante a permanência dessa instituição e se torna, assim, a estrutura fundamental do ethos na sua dimensão
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histórica. Entre a necessidade natural e a pura contingência do arbítrio, a necessidade instituída da tradição mostra-se como o corpo histórico no qual o ethos alcança sua realidade objetiva como obra de cultura (VAZ, 1999, p. 17). Em sua reflexão sobre o ponto de vista moral da literatura, Maria Herrera Lima enfatiza a aparente importância das práticas legitimadas pela tradição na organização e manutenção de certos modelos de comunidades históricas: (...) a idéia da comunidade como suporte de uma tradição, quer dizer, de uma estrutura de crenças, valores e práticas coerente e relativamente constante, serve não apenas de condição de inteligibilidade das crenças e práticas morais, mas também se faz presente na continuidade mesma de sua existência, em sua capacidade de permanecer no tempo, na vitalidade e produtividade de suas crenças (em sua força motivadora) como uma prova de seu valor intrínseco (LIMA In: LÓPES DE LA VIEJA, 1994, p. 48).
Em Lavoura arcaica, a tessitura narrativa caracteristicamente intertextual, sobretudo com a Bíblia Sagrada e o Alcorão, destaca a secularidade do poder regulador da tradição no núcleo familiar. Tais referências servem de base para a figuração do mecanismo pelo qual esses valores são transmitidos de forma mais contundente: o aparato discursivo de Iohána. Em grande medida, é justamente contra o caráter prescritivo e arbitrário dos conceitos presentes nessas pregações patriarcais que a revolta do protagonista-narrador é deflagrada. André tenta afirmar a sua individualidade em um ethos regulado por um discurso unívoco apoiado na tradição, que prevê como uma de suas diretrizes familiares a supressão dos interesses particulares em prol da comunidade. A personagem, na tentativa de encontrar meios para que sua identidade seja reconhecida e a sua voz seja ouvida, desconstrói a ética que tenta rigidamente moldar as ações dos sujeitos ao subverter os princípios da tradição que a sustenta. Os discursos de Iohána são embasados por conceitos como a paciência, a virtude e a temperança, ideais que constituem o próprio âmago dos costumes a serem valorizados e retransmitidos. Em uma metáfora fortalecida pela figuração do espaço na passagem a seguir, o patriarca concentra em torno de si a força estabelecida pelo tempo da tradição e a sabedoria supostamente alcançada pela valorização da virtude. “Que rostos mais coalhados, nossos rostos adolescentes em volta daquela mesa: o pai à cabeceira, o relógio de parede às suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pêndulo,
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e nada naqueles tempos nos distraindo tanto como os sinos graves marcando as horas” (NASSAR, 2001, p. 53). A inevitabilidade e a imponência do tempo que se avulta, mecanicamente, às costas do pai figura a representatividade da sucessão de gerações e da renovação dos costumes, cadenciando as palavras de Iohána e enfatizando a importância do ethos na sua dimensão histórica, que é herdado pelo núcleo familiar. Entretanto, percebemos na inquietação revelada pelo protagonista-narrador um primeiro indício de um desejo latente de contestação da ética patriarcal. A aparente naturalidade dessa resistência juvenil foi percebida por Aristóteles, que afirma que “é difícil receber desde a juventude um adestramento correto para a virtude quando não nos criamos debaixo das leis apropriadas; pois levar uma vida temperante e esforçada não seduz a maioria das pessoas, especialmente os jovens” (ARISTÓTELES, 1987, p. 193). Torna-se evidente, ao longo da narrativa, a importância da reunião da família em torno dessa mesa ancestral como ritual diário de reafirmação dos preceitos que objetivam ordenar o núcleo ético. Não obstante, a mesma figuração da assembléia familiar desvela o comprometimento desses mesmos valores, aspecto que influencia diretamente as decisões e as ações de André. Nesse sentido, em ambas as perspectivas, a mesa da família é a representação do próprio ethos familiar em Lavoura arcaica. Primeiramente, discorreremos sobre a dimensão educadora desse ritual de fortalecimento da tradição. (...) nunca tivemos outro em nossa mesa que não fosse o pão-de-casa, e era na hora de reparti-lo que concluíamos, três vezes por dia, o nosso ritual de austeridade, sendo que era também na mesa, mais que em qualquer outro lugar, onde fazíamos de olhos baixos o nosso aprendizado da justiça (NASSAR, 2001, p. 78).
Ao acompanharmos os sermões patriarcais por meio do relato memorialista de André, é possível distinguir quatro ideais que, segundo a tradição atualizada por Iohána, servem de base para a estrutura da família: o amor, a união, o trabalho e a temperança. O conceito de amor exaltado por Iohána se concretiza no próprio seio da família, por meio da doação e do respeito para com os todos os membros do grupo,
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especialmente os irmãos. Entretanto, a incondicionalidade e a livre aceitação não apenas do amor, mas também do prazer emocional e físico que dele se deriva, constituem riscos para a manutenção da família como espaço de socialização harmoniosa. Assim, amor e austeridade se complementam como forma de proteger o grupo dos desequilíbrios provocado pelas paixões desmedidas. (...) o mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio, é contra ele que devemos esticar o arame das nossas cercas, e com as farpas de tantas fiadas tecer um crivo estreito, e sobre este crivo emaranhar uma sebe viva, cerrada e pujante, que divida e proteja a luz calma e clara da nossa casa, que cubra e esconda dos nossos olhos as trevas que ardem do outro lado (...) e quando acontece um dia de um sopro pestilento, vazando nossos limites tão bem vedados, chegar até as cercanias da moradia, insinuando-se sorrateiramente pelas frestas de nossas portas e janelas, alcançando um membro desprevenido da família, mão alguma em nossa casa há de fechar-se em punho contra o irmão acometido: os olhos de cada um, mais doces do que alguma vez já foram, serão para o irmão exasperado, e a mão benigna de cada um será para este irmão que necessita dela, e o olfato de cada um será para respirar, deste irmão, seu cheiro virulento, e a brandura do coração de cada um, para ungir sua ferida, e os lábios pra beijar ternamente seus cabelos transtornados, que o amor na família é a suprema forma de paciência; o pai e a mãe, os pais e os filhos, o irmão e a irmã: na união da família está o acabamento de nossos princípios (NASSAR, 2001, p. 56, 61).
A passagem acima ilustra como o amor e a união familiar se revelam como inalienáveis da articulação básica do ethos defendido por Iohána no romance, não sendo aparentemente possível separar esses dois valores. É importante perceber que o ideal da união se desdobra em dois níveis da escala comportamental considerada virtuosa: o da doação e o do apagamento das individualidades. O discurso ético-patriarcal não prevê apenas o exercício da práxis em favor do bem estar do grupo, mas também condena a valorização das particularidades individuais. Consequentemente, as contingências da família em Lavoura arcaica devem suplantar as necessidades e os desejos particulares, o que provoca um inevitável esmagamento das individualidades em favor da estabilidade do ethos. (...) a sabedoria está precisamente em não se fechar nesse mundo menor: humilde, o homem abandona a sua individualidade para fazer
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parte de uma unidade maior, que é de onde retira a sua grandeza; só através da família é que cada um em casa há de aumentar a sua existência, é se entregando a ela que cada um em casa há de sossegar os próprios problemas, é preservando sua união que cada um em casa há fruir as mais sublimes recompensas (NASSAR, 2001, p. 148).
Diante disso, a revolta de André se apresenta também como uma busca por um ideal de liberdade física, emocional e discursiva que lhe é negada pelo código moral vigente. Trabalho e temperança completam os quatro pilares que sustentam o espaço familiar, os quais são fortemente abalados pelo comportamento do protagonista. Segundo a tradição ética reiterada diariamente pela figura paterna, as ações dos indivíduos devem ser sempre mediadas pela razão e pelo respeito, de certa forma estóico, ao fluxo do tempo e seus resultados. (...) existe tempo nas cadeiras onde nos sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes de nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil de nossos corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que nos passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia; (...) rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra seu curso (...) o equilíbrio da vida depende essencialmente desse bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é (NASSAR, 2001, p. 55, 57).
É interessante notar que esses ideais parecem estar voltados diretamente para André, numa antecipação dos acontecimentos que se seguirão na narrativa. O protagonista ao desafiar o fluxo do tempo e dar vazão às suas paixões de forma angustiada e enfática não apenas rejeita os conceitos exaltados por Iohána, mas também os subverte e os instrumentaliza em sua tentativa de criar um espaço inerente ao núcleo familiar no qual a individualidade seja possível. (...) por isso, ninguém em nossa casa há de dar nunca o passo mais largo do que a perna: dar o passo mais largo do que a perna é o mesmo que suprimir o tempo necessário à nossa iniciativa; e ninguém em nossa
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casa irá colocar o carro à frente dos bois: colocar o carro à frente dos bois é o mesmo que retirar a quantidade que um empreendimento exige (...) aquele que exorbita no uso do tempo, precipitando-se de modo afoito, cheio de pressa e ansiedade, não será jamais recompensado, pois só a justa medida do tempo dá a justa natureza das coisas, não bebendo do vinho quem esvazia num só gole a taça cheia (...) ai daquele que se antecipa ao processo das mudanças: terá as mãos cheias de sangue (NASSAR, 2001, p. 55, 57).
Devemos ressaltar também o profundo, ainda que disforme, impacto causado pelos discursos patriarcais em seus ouvintes, em particular, André e Pedro. Enquanto o irmão mais novo rejeita e subverte esses paradigmas éticos, o irmão mais velho não só os aceita, mas também os retransmite de forma contundente. Os irmãos corporificam, respectivamente, a antítese e a tese do ethos familiar. No entanto, as palavras do pai não se revelam apenas na fala e nas atitudes de Pedro, mas embasam também o discurso daquele que as desafia. A subversão ética de André é indelevelmente marcada pelos preceitos que ele tenta desconstruir. Contudo, vejamos inicialmente como as vozes fraternal e paternal se misturam no intuito de conduzir o irmão desgarrado de volta ao seio da família. (...) não se constranja, meu irmão (Pedro), encontre logo a voz solene que você procura, uma voz potente de reprimenda, pergunte sem demora o que acontece comigo desde sempre, componha gestos, me desconforme depressa a cara, me quebre contra os olhos a velha louça lá de casa (...) a voz do meu irmão, calma e serena como convinha, era uma oração que ele dizia quando começou a falar (era o meu pai) de cal e das pedras de nossa catedral (...) fui num passo torto até a mesa trazendo dali outra garrafa, mas assim que esbocei entornar mais vinho foi a mão de meu pai que vi levantar-se no seu gesto “eu não bebo mais” ele disse grave, resoluto estranhamente mudado, “e nem você deve beber mais, não vem desse vinho a sabedoria das lições do pai” (NASSAR, 2001, p. 17, 18, 40).
Em relação a André, é importante salientar que o seu comportamento não advém unicamente de sua singularidade, mas de uma influência direta que revela o mito da uniformidade absoluto do ethos figurado no romance. esse domínio ético não atinge uma uniformidade absoluta em todos os membros da comunidade, causando uma cadeia de influências que, em grande parte, explicam a revolta do protagonista. Uma vez mais,
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recorremos à imagem profundamente representativa da mesa ancestral encabeçada por Iohána para ilustrar, da mesma forma como o faz André, a cadeia de relações familiares que geram essa tensão, a qual culmina na transgressão, supostamente libertária, do protagonista. (...) eram esses nossos lugares à mesa na hora das refeições, ou na hora dos sermões: o pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda; à sua esquerda, vinha a mãe, em seguida eu, Ana e Lula, o caçula. O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância mórbida, um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a distribuição dos lugares na mesa (eram caprichos do tempo) definia as duas linhas da família (NASSAR, 2001, p.156-157).
Percebemos, assim, que é o excesso de afeto que, segundo André, deforma eticamente a linhagem que compõe o lado esquerdo da mesa, formando uma reação em cadeia que afeta a todos os indivíduos. Neste momento, é importante enfatizar que o conceito de amor pregado nos discursos de Iohána se refere muito mais a um ideal de compreensão e respeito mútuo do que a quaisquer demonstrações incondicionais de afeto. Todavia, o amor maternal transborda sobre André e relativiza os limites que norteiam esse sentimento. O amor incondicional da mãe se torna um contraponto ao discurso austero que regula o ambiente, sendo que esse comportamento redunda numa autoconsciência crítica que impulsiona André para a rejeição dos valores pregados por Iohána. Como afirma a própria personagem, “se o pai no seu gesto austero quis fazer da casa um templo, a mãe, transbordando no seu afeto, só conseguiu fazer dela uma casa de perdição” (NASSAR, 2001, p. 136). Forma-se assim um novo movimento dialético que se desenvolve pelo lado esquerdo da mesa e que se caracteriza pelo comportamento antitético de André em relação aos dogmas paternos, atitude que redunda no sacrifício da irmã Ana e que, possivelmente, assumirá contornos sintéticos no caçula da família. Da mistura do amor acolhedor da mãe com o amor austero do pai surge em André um sentimento disforme que subverte a ambos. As carícias maternas se misturam
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à doação aos membros da família defendida por Iohána concretizando o incesto, o ápice da busca do protagonista por uma liberdade irrestrita. Em outras palavras, o protagonista subverte o amor familiar ao erotizá-lo. (...) foi um milagre o que aconteceu entre nós, querida irmã, o mesmo tronco, o mesmo teto, nenhuma traição, nenhuma deslealdade, e a certeza supérflua e tão fundamental de um contar sempre com o outro no instante de alegria e nas horas de adversidade [...] foi um milagre descobrirmos acima de tudo que nos bastamos dentro dos limites de nossa própria casa, confirmando a palavra do pai de que a felicidade só pode ser encontrada no seio da família, foi um milagre [...] me ajude a me perder no amor da família com o teu amor, querida irmã, sou incapaz de dar um passo nessa escuridão (NASSAR, 2001, p.120, 129).
Contudo, André é incapaz de construir suas ações para além do sistema de valores no qual e foi criado. Como afirmamos anteriormente, a ética de André, assim como qualquer antítese, se define pelo seu contrário. A personagem não apenas desconstrói o discurso patriarcal, mas também adapta parte dele aos seus interesses, remontando, por exemplo, o processo de apagamento das individualidades praticado por Iohána. O protagonista nega a singularidade dos membros da família e instrumentaliza seus corpos como meio de convulsionar os princípios reguladores daquele núcleo: “preciso estar certo de poder apaziguar a minha fome neste pasto exótico, preciso do teu amor, querida irmã, e sei que não exorbito, é justo o que te peço, é a parte que me compete, o quinhão que me cabe, a ração a que tenho direito” (NASSAR, 2001, p.125126). Assim, o protagonista reconstitui, por meio da liberalização de seu corpo e de seu desejo, o processo de homogeneização do qual ele tenta se afastar. Se nos sermões patriarcais amor e união são exaltados como forças complementares, no discurso subversivo do protagonista essa combinação se deforma. André utiliza o ideal da união como argumento em sua tentativa de subjugar o espírito e possuir novamente o corpo da irmã. O desmoronamento da casa familiar é apontado pela personagem como conseqüência inevitável da rejeição de Ana, o que constitui uma imposição similar àquela postulada por Iohána. Na visão de André, a união e o amor também são complementares, uma vez que um elemento é ameaçado pela negação do outro. Porém, o incesto e a erotização substituem os valores defendidos pela norma familiar.
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(...) e eu, que desde o início vinha armando a minha tempestade, caí por um momento numa surda cólera cinzenta: “estou banhado em fel, Ana, mas sei como enfrentar tua rejeição, já carrego no vento do temporal uma raiva perpétua [...] vou cultivar o meu olhar, plantar nele uma semente que não germina, será uma terra que não fecunda, um chão capaz de necrosar como a geada as folhas das árvores [...] vou dar de ombros se um dia a casa tomba: não tive meu contento, o mundo não terá de mim misericórdia” (NASSAR, 2001, p.138).
É preciso salientar que o trabalho é, claramente, o primeiro dos princípios familiares a ser rejeitado pelo protagonista dom romance. Enquanto Iohána e seus outros filhos retiram incansavelmente o sustento da terra, André se entrega ao ócio e dedica seu tempo às constantes descobertas dos prazeres proporcionados pelo seu próprio corpo. O dever laborioso para com a família ao qual, segundo os sermões diários, nenhum indivíduo deveria furtar-se, é deixado de lado pelo protagonista que encontra em sua individualidade solitária uma forma particular de prazer. (...) na modorra das tardes vazias da fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobria meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho [...] que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda? (NASSAR, 2001, p.13, 14).
Somente quando o protagonista tenta convencer Ana a aceitar o seu amor é que ele admite a idéia de se juntar aos irmãos no ritual austero do trabalho em família. (...) as coisas vão mudar daqui pra frente, vou madrugar com nossos irmãos, seguir o pai para o trabalho, arar a terra e semear, acompanhar a brotação e o crescimento [...] vou fazer como diz o pai que cada palmo de chão aqui produza [...] e a cada tarde, depois de um trabalho de sol a sol, voltarei para casa, lavarei o santo suor do corpo, vestirei roupa grossa e limpa, e, na hora do jantar, quando todos estiverem reunidos, o pão assado sobre a toalha, vou participar do sentimento de sublime de que ajudei também com minhas próprias mãos a prover a mesa da família (NASSAR, 2001, p.120, 121, 125).
O último dos preceitos reguladores do ethos familiar – a temperança – acentua o grau de complementaridade dos conceitos transmitidos por Iohána. Comedimento e paciência não são apenas virtudes a serem exaltadas, mas também elementos
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diretamente envolvidos na prática dos outros princípios. Segundo essa perspectiva, todas as ações devem ser medidas e as mudanças devem ser reservadas para o momento oportuno. Ao subverter os outros valores, André se concentra ao máximo em seus desejos, entregando-se totalmente aos sentimentos individualistas e desconsiderando a suposta autoridade do tempo. Assim, o protagonista deliberadamente transforma a sua inquietude em um processo de contestação subversiva. (...) eu disse cegado por tanta luz tenho dezessete anos e minha saúde é perfeita e sobre esta pedra fundarei a minha igreja particular, a igreja para meu uso, a igreja que freqüentarei de pés descalços e corpo desnudo, despido como vim ao mundo [...] eu tinha simplesmente forjado o punho, erguido a mão e decretado a hora: a impaciência também tem os seus direitos (NASSAR, 2001, p.89, 90).
Entretanto, ao retornar para a casa da família após seu breve auto-exílio, o protagonista não consegue afirmar a liberdade individual que tanto almeja. Ainda que inicialmente resoluto em desafiar a os preceitos da tradição familiar, o impulso André sucumbe diante da autoridade patriarcal e da silenciosa angústia maternal. Em certo sentido, o mesmo afeto irrestrito que abrira os olhos do protagonista faz com que ele se cale ao final da narrativa. (...) senti num momento a presença de minha mãe às minhas costas, trazida à porta da cozinha pelo discurso exasperado ali na copa, tentando com certeza interferir em meu favor; mesmo sem voltar, pude ler com clareza a angústia no rosto dela, implorando com os olhos aflitos para o meu pai: “Chega Iohána! Poupe nosso filho!” [...] Estou cansado, pai, me perdoe [...] daqui pra frente quero ser como meus irmãos [...] vou contribuir para preservar nossa união, quero merecer de coração sincero, pai, todo o teu amor (NASSAR, 2001, p.170).
Assim, André aceita momentaneamente a supressão de seus desejos, atitude que se mostra necessária para a manutenção do bem-estar coletivo, reassumindo o seu lugar à mesa da família. Porém, esse aparente processo de readaptação se mostra efetivo apenas superficialmente, uma vez que André não abandona o desejo por afirmar, ainda que indiretamente a sua individualidade. Quando o protagonista seduz o irmão Lula, ele refaz a mesma prática erotizante e subjugadora anteriormente utilizada com Ana.
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(...) mas não foi para fechar seus olhos que estendi o braço, correndo logo a mão no seu peito liso: encontrei ali uma pele branda, morna, tinha a textura de um lírio [...] Minha festa seria no dia seguinte, e, depois eu tinha transferido só para a aurora o meu discernimento, sem contar que a madrugada haveria também de derramar o orvalho frio sobre os belos cabelos de Lula, quando ele percorresse o caminho que levava da casa para a capela (NASSAR, 2001, p.181, 182).
À guisa de conclusão, o protagonista de Lavoura arcaica desenvolve um movimento de revolta construído a partir da subversão dos princípios reguladores do espaço ético familiar, tendo como objetivo a consolidação de sua individualidade e a realização de seus desejos. Essa atitude contestatória, resultado do amor incondicional oferecido pela mãe, encontra no incesto com Ana o mecanismo de sua realização e na sedução de Lula o instrumento de sua propagação. No entanto, André não consegue construir sua perspectiva e seu discurso de forma completamente alheio aos princípios que o moldaram. Devido a isso, a personagem reproduz, ainda que com outros objetivos, aspectos da tradição da qual ele tenta se libertar, como por exemplo, a homogeneização das vontades individuais. Dessa forma, um círculo dialético de subversão ética se estabelece no núcleo familiar, tendo Iohána como eixo paradigmático, André como antítese e Lula como possível síntese de todo esse processo. Referências: ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. In: Aristóteles. São Paulo: Nova Cultural, 1987. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. LÓPES DE LA VIEJA, María Teresa. Figuras del logos. Entre la Filosofia y la Literatura. México: Fondo de Cultura Económica, 1994. NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Porto Alegre: LP&M, 2010. VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Escritos de Filosofia II: Introdução à ética filosófica. São Paulo: Loyola, 1999.
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O FANTÁSTICO EM SANTA EVITA, DE TOMÁS ELOY MARTÍNEZ Evely Vânia Libanori (UEM) Jéssica Baia Moretti (UEM)
Resumo: O presente trabalho analisa os elementos fantásticos e insólitos no romance Santa Evita, do escritor argentino Tomás Eloy Martínez, e tem como base teórica principal a teoria do filósofo e linguista búlgaro Tzvetan Todorov acerca do fantástico na Literatura. O romance narra a trajetória de Eva Perón antes e depois de sua morte. No romance há, pelo menos, dois perfis diferentes para a mesma personagem: Evita, quando viva, e Evita quando morta. Num primeiro momento temos a personagem-viva como líder da população pobre, que vê na primeira dama a esperança de remissão da condição social. Num segundo momento, temos a personagem-morta como agente de estranhos acontecimentos envolvendo forças militares. Em ambos os momentos, a personagem determina fatos, muda o destino de pessoas e, o que é mais paradoxal, a personagem passa a ter maior força existencial depois de morta. Há um grande mistério ligado ao embalsamamento e à errância da múmia de Evita, e o texto, a todo o momento, expõe ao leitor situações inusitadas envolvendo o cadáver, situações que não podem ser explicadas à luz da razão e da objetividade e que nos remetem ao domínio do fantástico.
Palavras-chave: Fantástico; Eva Perón; Realismo Maravilhoso; Morte; Literatura Latinoamericana.
Introdução
A história de Eva Perón é envolta em fantasias que se cruzam com a realidade factual. E a Literatura argentina e a latino-americana têm, na vida e na morte de Evita, um amplo e farto material para a imaginação e para o fantástico. Com a intenção de recompor
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a vida e a morte de Eva Perón, o autor argentino Tomás Eloy Martínez escreveu o livro Santa Evita, que tem por objetivo recontar a fabulosa história da grande figura política da Argentina Eva Perón e todas as peripécias decorrentes do sumiço de seu corpo embalsamado. O narrador foca a vida, a trajetória da múmia de Evita e a formação do mito que ela se tornou. No plano da expressão, o narrador se utiliza de vários tipos de textos, alguns, inclusive, jornalísticos, que estão impressos na página como se fossem recortes de jornal. No entanto, estamos no universo da ficção e nada há, no texto de Eloy Martínez, que tenha compromisso com a verdade factual. Do mesmo modo, a realidade factual a respeito da morte de Evita é envolta em mistérios e, portanto, não tem explicação lógica. Trata-se de um romance em que realidade externa e ficção se misturam, e o que parece pertencer ao nível da ficção, estranhamente, corresponde ao nível da realidade externa. Um exemplo são as mortes inexplicáveis envolvendo as pessoas que cuidavam do corpo de Evita. No caso dela, existe uma "vida após a morte"; afinal, mesmo e, principalmente morta, ela é peça fundamental na vida daqueles que a rodeiam. A morte e a errância do cadáver são o foco principal do narrador; portanto, o que se conta, no romance, não é a vida de Evita, mas sua morte. Nosso arcabouço teórico para a abordagem acerca dos elementos fantásticos em Santa Evita será o estudo Introdução à Literatura fantástica de Tzvetan Todorov, pois foi ele quem deu início ao estudo sistematizado acerca do fantástico na literatura e sendo assim é imprescindível estudá-lo. Também nos utilizaremos da pesquisa O Realismo maravilhoso, de Irlemar Chiampi, que amplia as considerações de Todorov.
O fantástico na Literatura
Os relatos fantásticos, ou seja, os relatos sobre acontecimentos não explicáveis à luz da razão e que despertam o susto e o medo remontam à Antiguidade. Na Literatura, o fantástico surgiu paradoxalmente no século XVIII, época fortemente marcada pelo racionalismo empirista, que questionava as superstições e crendices e considerava inferiores o conhecimento popular e a metafísica. Tal paradoxo se deve ao fato de o
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imaginário popular nunca ter deixado de se nutrir de crendices, esoterismos e lendas que respondem às suas inquietações existenciais. O livro Introdução à Literatura Fantástica, de Tveztan Todorov é um importante estudo acerca do fantástico na literatura, que deu início a uma série de discussões acerca do tema. O conjunto de textos que apresentam situações que fogem do entendimento racional foi denominado por Todorov como gênero fantástico. Todorov prefere o termo gênero fantástico, pois ele afirma que examinar obras literárias a partir da perspectiva de um gênero é completamente diferente de estudar uma obra fantástica pelo que ela tem em específico. E apenas o estudo do fantástico a partir da perspectiva de gênero possibilita que se descubra uma regra que funcione para muitos textos. Dessa forma, não é necessário que tenhamos lido todas as obras literárias fantásticas existentes para que possamos descrever o gênero fantástico. Todorov exemplifica isso, comparando o estudo de um gênero literário com um experimento científico:
Mas um dos primeiros traços do método científico consiste em que este não exige a observação de todas as instâncias de um fenômeno para poder descrevê-lo. Procede-se melhor por dedução. De fato, destaca-se um número relativamente limitado de ocorrências, extrai-se delas uma hipótese geral que logo se verifica em outras obras, corrigindo-a (ou rechaçando-a) (TODOROV, 2010, p.8).
No excerto acima, Todorov afirma que o estudo do gênero fantástico se dá por meio da dedução, ou seja, a partir do estudo de algumas obras fantásticas é possível extrair uma hipótese geral acerca do gênero. Todorov afirma que o fantástico ocorre quando há algo que não pode ser explicado pelas leis naturais e a ambiguidade, a tensão e a incerteza são elementos constantes em meio a um espaço verossímil. Outra característica é a de que personagem e leitor sentem certo estranhamento com relação ao insólito. No excerto a seguir, Todorov explica como se dá a hesitação em uma obra fantástica: Primeiramente, é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural dos
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acontecimentos evocados. A seguir, a hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem (TODOROV, 2010, p.39).
Dessa forma, quando uma explicação para os fatos sobrenaturais é encontrada (sonho, loucura, drogas etc) ou novas leis da natureza são admitidas, o estranhamento se desfaz e, então, o efeito do fantástico é perdido.
Irlemar Chiampi, estudiosa
contemporânea da Literatura latino-americana, ampliou as considerações de Todorov acerca do fantástico em seu estudo intitulado O Realismo Maravilhoso. Esse estudo analisa a ocorrência de situações fantásticas na Literatura latino-americana por meio de uma perspectiva diferente de Todorov. Nele é enfatizado o realismo maravilhoso, uma tentativa de renovação da ficção latino-americana que surgiu entre 1940 e 1955.
O realismo
maravilhoso é concebido como uma categoria literária que tem como características principais a fundição do universo mágico à realidade e os elementos insólitos e fantásticos representados como corriqueiros e habituais. Chiampi afirma que o fantástico se dá devido à presença do medo inconsciente do desconhecido. Através do fantástico, é possível o despertar dos temores e demais sentimentos inconscientes, pois ele projeta imagens da atmosfera da consciência. Dessa forma, a literatura fantástica funciona como uma válvula de escape para medos, pesadelos, angústias, obsessões e neuroses. A literatura fantástica foi uma resposta à ideologia racionalista iluminista e uma volta aos valores e crendices populares. Isso se faz evidente no maniqueísmo que muitas vezes está presente na literatura fantástica. O maniqueísmo se dá por meio do confronto entre as forças do Mal e as forças do Bem. Nesse confronto, o bem é o vencedor, o que denota a valorização dos valores positivos na literatura fantástica. No excerto seguinte, Chiampi fala acerca do maniqueísmo presente no fantástico: As emoções de medo ou horror, bem como a sensação de nojo dos seres ameaçadores ou monstruosos glorificam uma concepção maniqueísta do mundo: o Bom, o Bem, o São e o Divino saem vencedores no conflito com o Mal. A problematização do real no fantástico assume, neste sentido, o caráter de uma luta primordial entre forças antagônicas, da qual saem vitoriosos os valores que o pensamento logocêntrico aceita como positivos (CHIAMPI, 1994, p. 67).
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O fantástico passou por diversas fases. No século XIX, o gênero fantástico se aperfeiçoou, perdendo a natureza maniqueísta e abordando temas de maior profundidade psicológica como as angústias existenciais e as desigualdades sociais. No século XX, a partir da década de cinquenta, os escritores pressupõem uma nova ordem para a realidade. No nível do texto, por exemplo, escritores como Juan Rulfo e Gabriel García Márquez pressupõem uma nova ordem para a realidade, o que antes causava estranhamento para leitores e personagens, agora só causa estranhamento aos leitores. E m ambos os autores, mortos e vivos convivem, vida e morte não são limites estanques. Santa Evita faz parte da nova Literatura latino-americana em que não há uma ordem fora e dento do texto. No romance, fatos sobrenaturais relacionados à múmia de Evita são constantes, assim como a hesitação entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural para eles.
O insólito em Santa Evita
O romance Santa Evita é permeado por acontecimentos envolvendo a morte e o sepultamento de Eva Perón que não podem ser explicados à luz da razão e nos fazem hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural. Há, no romance, uma prolepse da vindoura morte de Evita que se trata da presença misteriosa de abelhas em lugares indevidos. Esse é um dos elementos do realismo maravilhoso no romance, visto que apesar de ser algo insólito, é também corriqueiro e não é estranhado pelas personagens. No entanto, esse fato leva os leitores a hesitarem entre uma explicação natural (as abelhas estão ali por coincidência) e uma explicação sobrenatural (as abelhas anunciam a morte de Evita). Na cultura ocidental, a abelha simboliza a imortalidade da alma e o cuidado para com os membros da comunidade. No paganismo, a abelha é reverenciada como um animal sagrado e destemido na defesa de sua colmeia e está ligada ao reinado diligente, portanto, ela remete à ação de Evita em favor dos pobres, por mais que a História a tenha pintado
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como uma oportunista. As abelhas sempre aparecem misteriosamente no romance: “Zumbiam abelhas no alto das copas. A paz das colmeias destoava do barulho dos ônibus e dos bondes. Abelhas em Buenos Aires? Era primavera, um despropósito de folhas e papéis entupia os bueiros, as abelhas não interrompiam a ordem simétrica da vida “(MARTÍNEZ, 1996, p. 106). As abelhas estão num lugar que não deveriam estar e fazem barulho. O comportamento das abelhas, associado ao seu simbolismo, anuncia aquilo que acontecerá a Evita. Morta, ela será uma constante inquietação para o poder político. Morta e embalsamada, ela será imortal e assim se explica a misteriosa presença das abelhas. Para atender o desejo de Evita de não ser esquecida, o seu cadáver foi mumificado pelo taxidermista espanhol Pedro Ara. Em 1955, houve o golpe militar, Perón foi destituído da presidência e o novo presidente encarregou o Coronel Carlos Koenig de sepultar a múmia. Koenig se recusou a cumprir sua missão porque ficou enfeitiçado com a visão da múmia e fugiu com ela. O corpo foi levado para muitos lugares. A múmia gerou muito temor aos partidos opositores do peronismo. Os militares consideraram Evita uma ameaça mesmo estando morta. Evita foi adorada pela população menos favorecida e odiada pelos partidos opositores. Depois de sua morte, essa devoção aumentou, tornando-a uma espécie de santa de devoção popular na Argentina e um ser superior que excedia as possibilidades do mundo natural. Evita passou a atuar sobrenaturalmente no destino da vida das pessoas depois de sua morte, tornando-se uma espécie de guia espiritual. O papel de guia espiritual desempenhado por Evita pode ser percebido no comentário a seguir feito acerca de Koenig: “Repetia-se muitas vezes: Ela me guia. Agora ele o sentia nas juntas de seus ossos: Ela era seu caminho, sua verdade e sua vida” (Martínez, 1996, p. 308). Nesse excerto há intertextualidade com o versículo da Bíblia em que Jesus diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim” (BÍBLIA SAGRADA, 2001, p. 1600). Evita é comparada a Cristo em sua função de guia espiritual. Ara conservava o corpo da venerada mãe dos pobres com muito cuidado em uma espécie de santuário por ele adornado: “A sós com o embalsamador no santuário, o Coronel por fim vira o corpo no prisma de cristal” (MARTÍNEZ, 1996, p.104). O fato de o narrador denominar o espaço de "santuário" é uma relação com a ideia de que Evita, agora, passaria a
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ser divinizada e sua beleza protegida pelo cristal. O embalsamamento dela a torna uma espécie de deusa. São muitas as peripécias pelas quais a múmia passa. Primeiramente, o corpo foi escondido no segundo andar da Confederação Geral do Trabalho. Apesar de a população não ter acesso à múmia de Evita, deixavam flores em devoção a ela na CGT. Em seguida, a múmia foi levada para o porão da casa de Astorga, um homem que trabalhava no cinema e também venerava Evita. Yolanda, a filha de Astorga, encontrou a múmia e pensou que se tratasse de uma boneca com a qual brincou sem o pai saber. Certo dia houve outro acontecimento fantástico, Yolanda encontrou misteriosamente a múmia de Evita descoberta e envolta por flores e velas: As árvores estavam peladas, sem pássaros, e pelas ruas cobertas de galhos quebrados não podiam passar nem os bondes, nem os carros. Fiquei com medo e corri para ver se não tinha acontecido nada com a minha Pupê. Graças a Deus, ela estava igualzinha, na caixa, mas alguém tinha deixado seu corpinho a descoberto. A tampa estava de pé, apoiada nas traves da tela. No chão eu vi flores de todo tipo, ervilhas-de-cheiro, violetas, madressilvas, sei lá quantas (MARTÍNEZ, 1996, p.205).
Não apenas nesse capítulo, mas durante todo o romance aparecem flores perto da múmia de Evita e não se sabe quem as deixou. Esse se trata de um acontecimento que não pode ser explicado à luz da razão e faz personagens e leitores hesitarem entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural. Não é possível saber quem depositou essas flores ali, portanto, se trata do fantástico. O cadáver de Evita esteve por um tempo também na casa de Eduardo Arancibia e, em uma noite, ao ouvir um barulho estranho, ele atirou e matou sua esposa grávida que estava lá. Ele justificou o crime dizendo que pensou se tratar de um ladrão. Esse acontecimento levou as pessoas a considerarem o corpo mumificado de Eva Perón. O Coronel Koenig foi encarregado, mais tarde, de levar a múmia de Evita para a Itália e Alemanha, e durante a viagem o espaço do camarote refletia o conturbado estado psicológico dele: “Já no sexto dia de navegação, a estreiteza do camarote o sufocava” (MARTÍNEZ, 1996, p. 278). Moori Koenig foi levado por ordem do ministro do Exército para um lugar frio e isolado no Sul da Argentina, o golfo de São Jorge: “Do lado de fora o vento era sempre turvo.
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O vento soprava com tanta força que parecia fruto da irmandade de muitos ventos que jamais se extinguiam”(MARTÍNEZ, 1996, p. 244) O espaço frio, solitário e cinza e a ventania refletiam o estado emocional de consternação, solidão e inconstância de Koenig naquele momento. Enfeitiçado pela múmia de Evita, Koenig foi perdendo o sentido de sua vida, abandou a família e tornou-se alcoólatra e melancólico. Esse fato leva leitor e personagens a hesitarem entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural para o estado caótico em que Koenig passou a se encontrar depois do contato que teve com o cadáver de Evita. A dúvida é: o cadáver de Evita enfeitiçou Koenig (explicação sobrenatural) ou o que ocorreu com ele se deve simplesmente aos seus próprios problemas psicológicos (explicação natural)? Essa hesitação é de acordo com os estudos de Todorov a característica principal do fantástico, o que comprova que um dos elementos fantásticos em Santa Evita é o enfeitiçamento de Koenig. Quando embalsamada, a múmia de Evita parecia obstinadamente não querer o seu sepultamento, no entanto, o preço que ela paga por isso é o de nunca descansar. Os fatos misteriosos que acontecem após a morte de Evita, as mortes consequentes da presença da múmia parecem advir do fato de ela não ter sido sepultada. Evita não quis ser sepultada, não quis ser esquecida, mas o preço que pagou por isso foi o de nunca ter descanso. De fato, após o seu sepultamento, as ações misteriosas desaparecem. Ela foi mumificada e levada de lá para cá por muitos anos e por muitos anos as ações inexplicáveis ligadas ao cadáver aconteceram. A errância do cadáver parece indicar que os mortos precisam ser sepultados ou, de alguma forma, voltarem a terra.
Considerações finais
A literatura teve início com os relatos fantásticos, que instigavam o susto e o medo e respondiam às perguntas inquietantes cujas respostas não eram encontradas por meio da razão empírica. O gênero foi se aprimorando e hoje não versa apenas o plano metafísico, mas, problemas reais como as injustiças sociais e os conflitos psicológicos. No romance estudado,
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acontecimentos insólitos envolvendo a morte e a errância do cadáver de Eva Perón nos fazem hesitar entre uma explicação sobrenatural e uma explicação natural para os fatos, que nos remetem ao que Todorov e ao que Chiampi compreendem acerca do insólito na literatura.
Referências
BÍBLIA SAGRADA, 2002.São Paulo: Mundo Cristão.
CHIAMPI, Irlemar. O Realismo Maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1994.
ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. Trad. de Fernando Tomaz e Natália Nunez. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
MARTÍNEZ, Tomás Eloy. Santa Evita. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.
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NAS FISSURAS DOS CADERNOS ENCARDIDOS: A ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA DE CAROLINA MARIA DE JESUS Fabiana Rodrigues Carrijo (UFG/Regional Catalão) Principio esta proposição de comunicação, tentando realizar uma alusão ao seu título que, em minha concepção, e, em conformidade com os preceitos dos Estudos Literários (entenda-se, aqui, também o próprio fazer literário), absorvem-se dos problemas correlacionados ao acesso à voz e à representação dos múltiplos grupos sociais, notadamente, aqueles grupos que não possuem uma representatividade1 na literatura contemporânea e, por esta razão, são designados como grupos marginais e/ou ainda intitulados de minorias. Este estudo pretende se ocupar – enquanto trabalho em interface – que abriga estudos/aportes teóricos oriundos de várias instâncias do saber – pois se entende que os saberes não se excluem, mas se interpenetram –, da quase ausência de representatividade da escritura de autoria negra na narrativa contemporânea. Segundo Dalcastagnè, tal como outras esferas de produção de discurso, o campo literário brasileiro se configura como um espaço de exclusão. Nossos autores são, em sua maioria, homens, brancos (praticamente todos), moradores dos grandes centros urbanos e de classe média – e é de dentro dessa perspectiva social que nascem suas personagens, que são construídas suas representações (2007a, p.18) .
Assim, partindo dos aportes teóricos da Análise do Discurso, de base francesa, e tomando o discurso, em uma visão pecheuxtiana, enquanto processo de determinação
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- Cabe analisarmos as acepções que o vocábulo possui no âmbito da literatura, a fim de tornar mais claro o conceito e suas inúmeras implicações. Tendo pesquisado as situações de uso dessa palavra em textos/pesquisa dos principais nomes da crítica literária (inclusive revistas da USP, UnB, UFMG, Cadernos Pagu, dentre outras), encontramos como os mais recorrentes: 1) o sentido de descrição, caracterização, ou seja, o modo como o escritor representa um personagem é o modo como ele o caracteriza física, psicológica, cultural, social e economicamente; 2) o sentido de colocar-se como representante do outro, isto é, representar significa desempenhar uma função ou ocupar um espaço em uma situação em que o representado, encontra-se impossibilitado de fazê-lo. Será a partir desta segunda acepção e em conformidade com os estudos de BORDIEU, em Les régles de l’art que versará esta proposição, ora esboçada.
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histórico-ideológica da produção de sentidos (PÊCHEUX, 1997) espera-se, por meio da materialidade discursiva, delinear a escrita autobiográfica de Carolina Maria de Jesus. Entendemos como discursividade aquela proposta por Orlandi: “Tomamos a discursividade, por definição, como o lugar que nos permite observar os efeitos materiais da língua, enquanto sistema passível de jogo, na história. Resulta desse jogo que a produção de sentidos é marcada necessariamente pelo equívoco” (1996, p. 132). Não há na escolha do termo “encardido” para intitular o referido ensaio nenhuma conotação/acepção pejorativa, só se está cumprindo aqui, uma referência aos cadernos de Carolina que eram, a exemplo de seu sustento e o de seus filhos, retirados do lixo. Talvez por isso, para recorrer a um trocadilho, ainda jazem/permanecem encardidos pelo tempo, pela ausência e, talvez, ainda, pelo silêncio de uma crítica que jamais lhe conferiu o estatuto de uma obra notadamente literária, não nos moldes preconcebidos de nossa crítica literária, que ainda sustenta a imortalidade para os afeitos ao dom da palavra e ocupantes de uma dada cadeira. É revelador, para não dizer intrigante, que a obra completa de Carolina Maria de Jesus só se acha, devidamente reeditada, em língua inglesa. A referida autora é bem mais conhecida/(re)conhecida em país alheio ao seu nascimento. A propósito, segundo Dalcastagnè (2005a, p.17), ao citar os estudos de Bourdieu, o controle do discurso é a negação do direito de fala àqueles que não preenchem determinados requisitos sociais: uma censura social velada, que silencia os grupos dominados. Assim, ao se eleger – entre a pequena “representatividade” dos escritos de autoria feminina e negra – os escritos de Carolina Maria de Jesus pretende-se dar voz e entremostrar as diversas censuras silenciadas pelo discurso dominante. Tanto assim o é, que a obra mais conhecida desta autora – Quarto de despejo – foi apresentada por um jornalista, Audálio Dantas, e recebeu, na época, como continua, de certo modo, recebendo, poucas leituras sob a ótica dos estudos literários. É sobre este não-lugar nos estudos pautados pela crítica literária que se define a apresentação deste ensaio, ainda que de maneira embrionária. Esta obra, Quarto de despejo, obteve alguns estudos e foi mundialmente conhecida como obra de testemunho. O depoimento de uma mulher negra, favelada
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sobre o dia a dia de suas desventuras para obter o seu sustento e o de seus filhos. Houve, na época da publicação do aludido livro – década de 1960 –, suspeitas sobre a veracidade e a assunção de autoria. Foi posto ‘sob suspeição’ a veracidade de seu testemunho; se, efetivamente, os relatos eram tais e quais atribuídos à autora Carolina Maria de Jesus ou foram burilados pelo apresentador da autora e de seu livro, o jornalista Audálio Dantas. Nesse sentido, pode-se deduzir que lhe fora concedida a liberdade de falar, mas esta fala ficou circunscrita ao teor testemunhal, validou-se e tem-se legitimado enquanto testemunho e não como obra literária, ao menos não por uma crítica supostamente literária. Enquanto sucesso editorial da época, a obra tem sido recorrida e recebido acenos de fundamentação teórica de uma crítica cuja base é sociológica. Segundo diversas especulações e até mesmo ao se observar, detidamente, a apresentação do livro, por Audálio Dantas, os originais seguiram ipsis litteris para a editoração do livro, salvo alguns recortes deste ou daquele dia, desta ou daquela data; são fragmentos do real que foram recortados e não vistoriados enquanto objeto estético, plausível, de uma possível correção. Assim, segundo as considerações de Dalcastagnè, o fundamental é perceber que não se trata apenas da possibilidade de falar – que é contemplada pelo preceito da liberdade de expressão, incorporado no ordenamento legal de todos os países ocidentais – mas da possibilidade de “falar com autoridade”, isto é, o reconhecimento social de que o discurso tem valor e, portanto, merece ser ouvido. (2005a, p. 17 – grifos da autora).
Carolina passou o resto de sua vida (e com os parcos recursos financeiros advindos do sucesso editorial de Quarto de Despejo) tentando/tateando ser reconhecida como poeta, mas viu todos os seus esforços fadados ao infortúnio. Não fora reconhecida como poeta que gostaria de ter sido e as suas duas obras publicadas após Quarto de despejo – Casa de Alvenaria e Diário de Bitita – estavam predestinadas ao fracasso editorial, sem contar ainda que seus poemas (Antologia Poética) só foram editados após sua morte. Nessa perspectiva, talvez seja neste silêncio, neste não-lugar para os textos de Carolina Maria de Jesus que se encontra a presente justificativa para a execução/proposição de um ensaio que poderá constituir, ainda que minimamente, um exercício para o falar sobre. O falar de si tão vetado ao público feminino, durante
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séculos e séculos de anonimato – inúmeras mulheres quando escreviam, quando eram dadas à escrita tinham que o fazer sob as penas/sob as vestes de um pseudônimo masculino –, agora encontra voz, ainda que não encontre vez, por ora, especialmente, nos estudos de crítica literária, ficando restrita a sua análise apenas aos estudos históricos e sociológicos2 com que entreabre/sugere/delineia a possibilidade de uma voz oriunda das minorias – uma mulher negra, pobre, mãe solteira, catadora de lixo, favelada, semialfabetizada e a despeito de todas estas “mar/ginalidades”, escritora. Uma mulher que escreve, que conspira e que deposita fichas na palavra. Mais ainda, que vislumbra na escrita uma esperada redenção/uma porta entreaberta para a realização material de seus sonhos que seriam ter as condições básicas que todo ser humano precisa para viver: um lar decente, comida farta, sustentar seus filhos, poder dormir bem e trabalhar dignamente e especialmente, no caso de Carolina, viabilizar o desejo de sobreviver, por meio de sua escrita, por intermédio de sua literatura. O vocábulo “mar/ginalidades” supracitado se encontra assim grafado na tentativa de sugerir/aguilhoar sentidos outros para além da margem, da dita e esperada centralidade. Para recorrermos aqui a um trocadilho... a antiga favela do Canindé onde Carolina Maria de Jesus morava estaria nas proximidades onde hoje fica a Marginal do Rio Tietê. Carolina saiu da margem e pode, ainda que, de maneira passageira, contemplar a outra margem: o sucesso, o breve acontecimento de uma escritora que teve sua obra, no presente caso, Quarto de despejo, como um dos grandes sucessos editoriais de nosso país. É sugestivo o fato de que em uma época (década de 1950, princípio de 1960) esta mulher (Carolina) opte e entreveja na escrita a possibilidade material de um sonho que ainda hoje não é possível concretizar tão facilmente: a publicação de livro no Brasil, onde, para além das indagações que possam ser feitas no tocante às políticas editoriais, há ainda o “silenciamento” para não dizer, certa “suspensão” sobre a quem e a que pode ser dada voz, conferir estatuto de literatura. Ainda conforme Dalcastagnè: Aqueles que estão objetivamente excluídos do universo do fazer literário, pelo domínio precário de determinadas formas de expressão, 2
Conforme apontara um dos maiores estudiosos e, ainda, representante do Núcleo de Estudos em História Oral - USP da obra de Carolina Maria de Jesus, José Carlos Sebe Bom Meihy.
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acreditam que seriam também incapazes de produzir literatura. No entanto, eles são incapazes de produzir literatura exatamente porque a definição de “literatura” exclui suas formas de expressão. Ou seja, a definição dominante de literatura circunscreve um espaço privilegiado de expressão, que corresponde aos modos de manifestação de alguns grupos, não de outros. (2005a, p. 17)
O esperado, o prontamente esperado, era que o desejo desta mulher – oriunda das minorias ambicionasse “pre-concebidamente/preconceituosamente” ser como a sua patroa, vestir as mesmas roupas que ela, ser uma cinderela às avessas da modernidade, ser rica. Contudo o que esta mulher negra, semialfabetizada almejava era ser escritora; mais que isso sobreviver dessa escrita: o real passaporte para a fuga do quarto de despejo. Carolina não almeja as vestes bonitas de suas patroas, quer, tão somente, dar voz, dar estatuto ao seu ato de fala – escrever/se inscrever em um outro espaço, já de antemão interditado para as minorias raciais/culturais/sexuais deste país – para Carolina escrever é a condição sine qua non para a sua efetiva participação em outro mundo, em outro meio. Por intermédio da palavra, do poder da palavra/da escrita, é conferida à Carolina – ainda que minimamente, pois possuía apenas o segundo ano primário – a possibilidade de se mostrar diferente dos demais moradores da favela, de não se identificar com eles, embora o fato de ser escritora a torne porta-voz dessa minoria. Ela ficaria assim em um ‘entre-lugar’: nem totalmente delatora, nem propriamente portavoz dos desvalidos. Conforme assevera Carlos Vogt (1983), em Trabalho, pobreza e trabalho intelectual: é verdade que o documento que nos oferece sobre a pobreza da favela tem um expediente intrínseco de distanciamento que produz no livro uma espécie de duplo complementar e antagônico da realidade que ele retrata. De um lado, autora pertence ao mundo que narra e cujo conteúdo de fome e privação compartilha com o meio social em que vive. Do outro, ao transformar a experiência real da miséria na experiência lingüística do diário, acaba por se distinguir de si mesma e por apresentar a escritura como uma forma de experimentação social nova; capaz de acenar-lhe com a esperança de romper o cerco da economia de sobrevivência que tranca a sua vida ao dia-a-dia do dinheiro-coisa (1983, p.210).
É intrigante que, após a morte de Carolina Maria de Jesus – ocorrida em 1977 – tenham sido encontrados outros 37 (trinta e sete) cadernos encardidos, contendo quatro
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romances, peças teatrais, memórias, poesias entre outros gêneros discursivos. Carolina, conforme já fora dito aqui e, em tantos outros trabalhos que versam sobre sua obra, tinha como aspiração genuína: ser poeta. Contrariamente, não foi este o gênero textual que a fez conhecida no Brasil e, especialmente, no exterior. No presente caso gostaria de deixar evidente que, recorre-se, aqui, ao termo poeta e não poetisa, por entendermos que aquele seja bem mais amplo e não carrega em si, pelo menos, não por ora/neste momento, uma acepção de gênero: feminino e/ou masculino. O escrever é um ofício humano, embora tenha sido utilizado/atribuído a um ofício tipicamente masculino/de homem. Mulheres que escreviam, que tinham o dom da palavra, poderiam conspirar... “o medo de serem pegas em flagrante delito”... afastavam-nas, quando não segregavam... fazendo com que para serem aceitas em um mundo caracteristicamente masculino tivessem que recorrer à pena com pseudônimos masculinos. Por diversas vezes, encontra-se registrado no livro Quarto de despejo3 o anunciado desejo da autora e suas peculiaridades do “eu-que-escreve”, do eu que narra e, ainda, que protagoniza a ação/os feitos narrados – que, na presente obra, parecem, em uma visão simplista, ingênua e desatenta, ser a mesma pessoa – que a mulher que respira escrita, que lê, que escreve não há de ser aceita por um homem. Carolina (des)vela nesta escrita autobiográfica a evidente preocupação com o seu desejo de escritora que precisa estar livre, que precisa estar atenta à palavra: O senhor Manuel apareceu dizendo que queria casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. (QD, p. 50) Eu gosto da noite só para contemplar as estrelas sintilantes, ler e escrever. Durante a noite há mais silencio. (QD, p. 38)
Não é demais acrescentar que todas as citações seguem à risca a edição copilada/pesquisada. Em outro momento encontramos neste mesmo texto, nesta mesma obra o vocábulo “sintilante” registrado com outra grafia, desta feita, “cintilante”: “A 3
A partir deste momento todas as citações referentes a esta obra intitulada Quarto de Despejo serão indicadas pelas iniciais (QD), seguida, posteriormente, pelo número da página.
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noite surge as estrelas cintilantes para adornar o céu azul. (QD, p. 44). Dalcastagnè (2005a) já mencionou a evidente preocupação de autores dito “normais” (entenda-se aqui, portadores de uma dada cultura letrada) que, ao editarem os seus livros, o fazem, após sucessivas revisões gramaticais. Assim, pode-se indagar por que os textos de Carolina não receberam a atenção devida quando se edita um livro, quer seja, a de receberem, ao menos, uma revisão gramatical. Se amarela é a cor da fome, como amarelados/encardidos também são os cadernos escritos por Carolina Maria de Jesus – e isto talvez já tenha sido acolhido por inúmeros estudiosos da obra de Carolina, até mesmo, pelo prefaciador/organizador e responsável pela edição do livro Quarto de Despejo, Audálio Dantas, outra é a cor da vida de Carolina, que, em muitos momentos, talvez em uma sequência de tons, proferira que a vida é roxa, que a vida é preta como a cor de sua pele. “Cor roxa. Cor da amargura que envolve os corações dos favelados” (QD, p.34); “A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro” (QD, p. 168). Ao se circunscrever os textos de Carolina Maria de Jesus, apenas sob os vieses de aportes teóricos, de base sociológica e/ou histórica, perde-se em diversidade, perdese em possibilidades abertas quase ao infinito, pois ao se intitular quem possui ou não legitimidade para produzir literatura, nos afastamos, efetivamente, do palco das discussões, sobre a arte e da diversidade possível em um país como o Brasil, tão diverso em extensão territorial e em produtividade artística. Ao realizar uma análise de Quarto de despejo, Letícia Pereira Andrade pontua: [...]considerando, portanto, Quarto de despejo: diário de uma favelada como literatura e não apenas como “documento”, aceitamos como legítima a dicção da favelada Carolina Maria de Jesus que poderá vir a ser redescoberta pelos leitores de hoje pela força de uma linguagem singular, de uma obra que não apenas fala da miséria, mas que nasceu na miséria e foi escrita por uma miserável. (2006, p.380)
Seguindo este mesmo viés de análise, Marisa Lajolo (1996) assevera que a falta de recursos e a sua luta pela sobrevivência são temas desenvolvidos em Quarto de despejo, a partir de uma linguagem matemática, numa aritmética simples de adição e subtração. O dia a dia de mazelas é relatado por uma narradora que, a propósito, fora esquadrinhada pela escritora, pelo sujeito-escritor Carolina Maria de Jesus ao criar seu
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universo ficcional, e ao criá-lo, essa narradora o faz pensando na mulher negra, pobre e favelada e em suas agruras. A narradora é também protagonista da estória narrada: ela igualmente tem como sonho ser escritora, aliás, é por meio de sua escritura, que ela tenta se diferenciar dos demais protagonistas de sua estória. Se Carolina Maria de Jesus (o sujeito-escritor) também é a personagem principal de Quarto de despejo, ao criar uma narradora para o seu universo ficcional, essa narradora é colocada relatando/delatando todos os infortúnios dos favelados. Na matemática implacável de transformar lixo em dinheiro-moeda, ela deseja realizar, nesta balança infidedigna, sempre a soma: seu coração quer somar, redimensionar, tornar possível o impossível, comprar alimento e sapatos para a menina Vera Eunice, quer um lar, uma vida melhor, mas o dinheiro sempre a subtrair, os preços dos alimentos subindo, subindo. Paralelamente ao relato destes infortúnios dos favelados e da miséria a que se encontra fadada a própria Carolina, tem-se uma linguagem singular, dir-se-á ímpar, sobretudo em se tratando de alguém que, efetivamente, só possuía dois anos de escolaridade. É possível que muitos vocábulos, expressões menos usuais, típicos de uma cultura “letrada”, Carolina os tenha apreendido dos livros, das revistas e jornais que lhe caíam às mãos, seja na ação de retirá-los do lixo, seja ao tomar de empréstimo das patroas nas casas de família por onde trabalhou e passou. Assim, paradoxal é a vida desta narradora-personagem, como paradoxal se faz também o seu dizer, o seu como dizer, que a despeito de estar marcado por frases curtas, relatando o dia-a-dia de desventura dos favelados também (re)nega/ (re) dimensiona as possibilidades de seu existir e se vale desta literatura, de seus escritos e inscritos 4 nas folhas encardidas a metáfora para o seu existir. Lá fora a podridão, a lama, a sujeira. Aqui dentro, no interior de seu barraco, encontra no grafite nº 2 e nos papéis encardidos os alinhavos necessários para cerzir outro curso para a sua vida: procurar na escrita, na escrita em diários – gênero ainda tido naquela época como literatura menor, nãocanônico – sentido, refrigério e possibilidades mais fecundas para esta existência anódina na favela, no quarto de despejo. 4
Recorre-se, aqui, ao vocábulo inscritos a partir das considerações de Pinto para ilustramos que o sujeito se inscreve e é também escrito/lido por meio da linguagem – tomada aqui como prática efetivamente social, política e de gênero: “Para a teoria dos atos de fala, tal qual a entendo aqui, o corpo tem seus limites irredutíveis porque nele estão inscritos as regulações sociais, não como representações das estruturas de poder, mas como parte dessas estruturas” (2002, p.86).
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Ao lado de frases curtas que reproduzem as falas, o burburinho da favela, coexistem nos relatos carolinianos vocábulos raros, atípicos, contraditórios para a sua limitada escolaridade, como sugerem alguns excertos ora apresentados: [...] Várias pessoas afluiram-se. ... Fiquei apreensiva, porque eu estava catando papel, andrajosa (...)... Quando despertei, os raios solares penetravam pelas frestas do barracão. (QD, p.15; grifos meus) [...] A noite está tepida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido. (QD, p.32; grifos meus)5
No emprego da expressão ‘limitada escolaridade’, na acepção que a ela damos, não há nenhuma significação pejorativa. Ao revés, talvez toda a sua leitura Carolina a tenha buscado nos livros encontrados e naqueles emprestados por suas patroas. Há ainda em Quarto de despejo referências a poetas, como Casimiro de Abreu e Castro Alves, e toda sorte de notícias e provérbios (re)colhidos ao sabor do tempo, em jornais e conversas com as pessoas com quem convivia efetivamente. Ao observar detidamente a materialidade discursiva constituinte das narrativas de Carolina Maria de Jesus, notam-se, quase sempre, referências e alusões à palavra escrita, à leitura, à memória. Leituras possíveis e ou interditadas paras as mulheres, personagens de sua ficção e até mesmo para ela Carolina – a escritora/narradora e protagonista. Nessas leituras, e/ou nas leituras realizadas pelas personagens carolinianas, entrevê-se que elas são (re)veladoras de séculos e séculos de preconceito contra as mulheres, quando não destinadas ao anonimato, cerceadas sobre o quê, quando, onde e com que finalidade poderiam ler. Enveredar pelo bosque ficcional de Carolina Maria de Jesus (para recorremos aqui a uma acepção tomada como empréstimo de Umberto Eco) é trilhar por entre caminhos obscuros, não raras vezes interditados até para as próprias personagens e/ou narradoras; quase sempre fadadas ao anonimato. Ou ainda, em alguns casos, o desejo da escrita fica circunscrito ao silêncio, aliás, nele se resguarda; a palavra não-dita, mas sentenciada no gran finale, na hora da partida. Carolina foge à figura dita padrão de mulher branca/escolarizada e escritora. Carolina é preta, como preto são os seus dias... como preta são as suas roupas 5
Aparecem no conjunto da obra Quarto de despejo outros tantos vocábulos, entre eles: sinfonia matinal; sou rebotalho; ablui as crianças; aleitei-as (as crianças); a vida ia ficar insípida.
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encardidas por falta de dinheiro para comprar sabão... como preta é a sua luta para a efetivação/concretização de um sonho... ser poeta/ser escritora, viver de sua escritura. Sua voz é contundente, pungente como a luta pela dura sobrevivência: “Não tenho força fisica, mas as minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrisaveis” (QD, p. 49). Paradoxalmente, Carolina, a despeito de enfrentar bravamente o real – entenda-se aqui o dia a dia sempre igual na luta de uma favelada para sustentar seus filhos –, tenta fugir à realidade circundante. Ambiciona adejar outros mundos. Lançar-se, por meio da escrita, em outro universo material e intelectual. Quase quixotescamente, luta bravamente, para mudar seu cotidiano, contudo ele se revela sempre igual: igual nas misérias, na luta pela sobrevivência, igual no trabalho de catar lixo e de prover a casa, igual no desejo de ser escritora, igual no registro diário de seus cadernos encardidos, igual no uso das repetições para entremostrar aos leitores que sua experiência de favelada só poderia ter sido realizada por uma mulher favelada: “Há de existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira! Mas, as misérias são reais” (QD, p. 47). Idêntico, ainda, no recurso de escolher/catar as palavras como quem recolhe do lixo seu sustento. Escolhe, tenta (re)colher as palavras mais contundentes, e em muitos momentos, lavra como quem lavra/apara pelas mudas mais belas, os cachos mais açucarados, mas nem por isso, menos cáusticos. Porém, segundo assevera Carolina, em uma visão ao revés, já que em nada a vida lhe fora amena. Ao contrário, sempre dura, sempre angustiante, sempre predestinada a catar (catar o quê, onde, em que proporção, com quais recursos?): “Parece que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade” (QD, p. 81). Em consonância com o que já fora dito anteriormente, alguns de seus vocábulos ou expressões são fortemente marcados por um apelo sinestésico e metafórico, atípico para alguém com tão pouca escolaridade, mas que provavelmente tateou inúmeras leituras, sobretudo, aquelas de textos pertencentes à escola romântica, como Casimiro de Abreu e Castro Alves: Deixei o leito às 4 horas para escrever. Abri a porta e contemplei o céu estrelado. Quando o astro-rei começou a despontar eu fui buscar água. (QD, p. 21).
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Os favelados aos poucos estão convencendo-se que para viver precisam imitar os corvos... Duro é o pão que nós comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado. (QD, p. 42).
Só não é igual o fato de Carolina resistir bravamente e não aceitar as submissões que observava/via/ouvia, diuturnamente, outras mulheres acolherem. Carolina não se dobrava frente às dificuldades, sabendo-se segregada, jamais aceitou a condição de submissa, favelada, mãe solteira, inferior, como se entrevê nos versos ‘silenciados’ 6 de uma Carolina Maria de Jesus: “Eu disse: o meu sonho é escrever!/ Responde o branco: ela é louca./ O que as negras devem fazer.../ É ir pro tanque lavar roupa” (Lajolo, 1996, p.43). Nos presentes versos e em toda a obra de Carolina, nota-se que há o desejo intrínseco de ocupar outro lugar, um lugar entre os escritores. Carolina também indica, até mesmo, ao leitor ‘ingênuo’ pretensamente ingênuo, que é possível ocupar outros lugares, que é permitido/necessário/imprescindível sair das “centricidades”, de fora do centro, para contemplar outras margens, outros lugares possíveis. Sua fala é pungente, contundente e entremostra que o não-lugar, o não-dizer também se faz, pretensamente, dizível/audível, ainda que, a contragosto de muitos. Nesse sentido, “falar sobre o nãolugar de Carolina, é falar, especificamente sobre o seu lugar”7. Referências ANDRADE, Letícia Pereira de. Quarto de despejo na linhagem das memórias do Brasil. Anais do I Encontro de Letras: Estudos lingüísticos e literários, maio de 2006. CD-R. DALCASTAGNÉ, Regina. A auto-representação de grupos marginalizados: tensões e estratégias na narrativa contemporânea. Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 4, dezembro, 2007, p. 18-31. ______. Constrangimento discursivo e estratégias de legitimação na literatura brasileira contemporânea. Revista de Pós-Graduação em Letras da UFPB. João Pessoa, vol. 7, n. 2/1, 2005b, p. 65-70. ______. Imagens da mulher na narrativa brasileira. On line. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/poslit. Acesso em outubro de 2009a. 6
Silenciados por um mercado editorial e por uma crítica literária que jamais lhe conferiram o estatuto de uma produtora de literatura, seja lá o que isso for, como bem pontuara Dalcastagnè (2009b). 7 Conforme afirmara Nathércia Silvestre, no texto Carolina de Jesus: a beleza de ser “diferente”.
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______. A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004. On line. Disponível em: http://www.cronopios.com.br/anexos/regina_dalcastagne.swf. Acesso em:2005a. JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 9. ed. São Paulo: Ática, 2007. (Sinal Aberto). _______. Antologia Pessoal. Organização de José Carlos Sebe Bom Meihy; Revisão de Armando Freitas Filho. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. ______. Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1986. LAJOLO, Marisa. Poesia no quarto de despejo, ou um ramo de rosas para Carolina. In: Antologia Pessoal. Org. de José Carlos Sebe Bom Meihy; [revisão de] Armando Freitas Filho. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. MEIHY, José Carlos Sebe Bom. O inventário de uma certa poetisa. In: Antologia Pessoal. Organização de José Carlos Sebe Bom Meihy e Revisão de Armando Freitas Filho. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. ______. Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio. Biblioteca Virtual de Direitos Humanos da USP. On line. Disponível em: http://cefetsp.br/edu/eso/cidadania/meihysp.html. Acesso em: 24 jul. 2009. ORLANDI, Eni Puccinelli. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad, Eni Puccinelli Orlandi. Et al. Campinas, S.P: Editora da UNICAMP, 1997. PINTO, Joana Plaza. Pragmática. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina. (Orgs.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. v.2. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2001. ______. Estilizações de gênero em discurso sobre linguagem. Tese de doutorado. Campinas, S.P, 2002. VOGT, Carlos. Trabalho, pobreza e trabalho intelectual. In: SCHWARZ, Roberto (Org.) Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983.
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CARNAVALIZAÇÃO NA PEÇA LISBELA E O PRISIONEIRO, DE OSMAN LINS Fabrícia Aparecida Lopes de Oliveira Rocha (UFMS)1 Ricardo Magalhães Bulhões(UFMS)2 Lisbela e o Prisioneiro (2003) foi o primeiro texto dramático do escritor pernambucano Osman Lins a ser encenado com grande sucesso de público. A peça, escrita na década de 60, é uma comédia de caracteres sobre o amor insurgente entre uma moça romântica de classe média, Lisbela, jovem educada para um casamento estável, e o prisioneiro Leléu, um malandro conquistador, espécie de Don Juan nordestino. A história se passa na cidade pernambucana Vitória de Santo Antão. A maioria das ações ocorre na cadeia pública da cidade, espaço onde está preso Leléu sob a custódia do pai de Lisbela, Guedes, o delegado do estabelecimento. Antes de se apaixonar pelo transgressor, a jovem, por pressão do pai, era noiva do previsível advogado vegetariano Noêmio por conveniência. Por ser um personagem cômico, portanto burlador por natureza (PALLOTTINI, 1989), o malandro costumava livrar-se das autoridades por conta das pequenas trapaças que praticava. Mas a última denúncia, que resultou em sua prisão, envolvia-o em um relacionamento com uma menor de idade, Inaura, jovem de 16 anos. Essa travessura se coloca como outro grande obstáculo perante o casal, pois, para ficar com Lisbela, além das grades da cadeia, ele terá que enfrentar o desejo de vingança do irmão de Inaura, o matador profissional Frederico Evandro. Um final feliz entre o casal exige ainda vencer o ódio do pai da moça e todos os costumes enraizados no seio de uma sociedade patriarcal. 1
É jornalista e cursa mestrado em Letras na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), campus Três Lagoas. E-mail: [email protected]. 2
Possui mestrado e doutorado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/ASSIS). Professor Adjunto na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em Três Lagoas, onde atua na Graduação em Letras e no Mestrado em Estudos Literários. E-mail: [email protected].
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Arquitetada dentro do ideário do teatro tradicional, por meio da ação e das escolhas dos personagens e, principalmente, por intermédio do confronto entre os caracteres, Lins constrói uma mensagem libertária, pois os obstáculos vencidos pelo casal protagonista, no decorrer da história, revelam uma inversão crítica das formas tradicionais de poder representadas no texto. No universo ficcional “ao avesso” construído pelo autor, uma mulher, em terra de cabra-macho, quebra diversos tabus: enfrenta seus patriarcas (pai e noivo) na busca pela felicidade ao lado de um sujeito transgressor e, mais que isso, torna-se criminosa para livrar o amado da morte. Essas atitudes tão desajustadas, praticadas por Lisbela, carregam uma contestadora poética do avesso e evidenciam, no âmbito da construção do texto, “elementos da percepção complexa e carnavalesca do mundo” (BAKHTIN, 1999, p. 8). Assim, a manipulação artística em torno da ação faz a história de amor entre o casal ficar na superfície do texto, pois o conjunto da obra comunica discussões mais profundas, como, por exemplo, o real valor da liberdade humana, assunto de alcance universal. Nesse sentido, na busca por ampliar a leitura da obra, a perspectiva aqui adotada leva em conta essa poética do “avesso” presente no texto. Para isso, guiar-nosemos pelo conceito da carnavalização na literatura, formulado por Mikhail Bakhtin (1999), e pelos escritos de Antonio Candido (1972) e Renata Pallottini (1989) sobre o personagem de ficção teatral. A perspectiva da carnavalização, além de esclarecedora, é bastante propícia para a compreensão de obras artísticas com mensagens contestadoras, o que é o caso da peça aqui analisada. No entanto, outros estudos sobre a obra ainda não a utilizaram como visão norteadora da leitura até o presente momento. A percepção carnavalesca do mundo e o poder libertador do riso O teor contestador da peça Lisbela e o Prisioneiro pode ser interpretado como um tipo de representação da percepção carnavalesca do mundo, pois as situações ficcionais da peça contrariam padrões oficiais de comportamento, que prevalecem em sociedades hierárquicas. É por isso que, no texto, os personagens mais fracos (econômica e socialmente) receberam tanto espaço para destronar verdades e tabus. Essa inversão crítica das relações de poder tem como fonte a resistência da cultura popular perante o teor opressor manifesto pela cultura oficial. Na obra Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1999), Mikhail
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Bakhtin explica que “as festas oficiais da Idade Média (tanto as da Igreja como as do Estado feudal) não arrancavam o povo da ordem desigual existente. Pelo contrário, apenas contribuíam para consagrar, sancionar e fortalecer o regime vigente” (BAKHTIN, 1999, p. 8). Ele afirma que, em resposta a esse mundo sério, autoritário e desigual, o povo, sempre oprimido ao longo da história, criou uma forma extraoficial de ver o mundo, expressa nos ritos e espetáculos (festejos carnavalescos), obras cômicas verbais (inclusive paródicas) e diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro (insultos, palavrões, juramentos). Para Bakhtin, no Renascimento, com François Rabelais, essa cultura de resistência popular ultrapassa o ambiente festivo e artístico e torna-se uma nova concepção do mundo, mais libertária e questionadora. O escritor francês transpôs essa visão utópica carnavalesca a sua obra, demarcando uma literatura carnavalizada, ou seja, repleta de uma nova consciência histórica expressa pela mediação do riso popular. As formas e símbolos, oriundos da linguagem carnavalesca, estão impregnados do lirismo da alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. A linguagem empregada por Rabelais “caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas ao ‘avesso’, ao ‘contrário’, das permutações constantes do alto e do baixo” (BAKHTIN, 1999, p. 10). Conforme descrito até aqui, o surgimento dessa percepção carnavalesca e libertária do mundo e a natureza do cômico derivam da mesma fonte: do desejo do povo por mais liberdade. Em decorrência desse processo histórico-cultural, “na comédia, diferente do que ocorre no teatro sério e religioso, onde os santos só podem ser bons, há margem para a individualização e para o exercício da vontade do personagem” (POLLATINI, 1989, p. 44). Dentro dessa concepção, a própria escolha do gênero do texto de Lins já aponta o teor contestador da mensagem, pois “a comédia, além de criticar, burla os valores vigentes” (POLLATINI, 1989, p. 43). O registro dramático do texto também foi devidamente ajustado ao tom libertário da obra, uma vez que, no teatro, a ação favorece o confronto de posições antagônicas, contraditórias. É por isso que os personagens de Lisbela e o Prisioneiro, principalmente os mais fracos socialmente e economicamente, confrontam a tradição: “são seres ficcionais, donos do próprio nariz e, consequência disso, eles agem em busca do que ambicionam”
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(POLLATINI, 1989, p. 43). De acordo com o que elucidamos até agora, a poética do “avesso” presente na obra, além de compor a própria linguagem do texto também se constrói pela ação representada, pois o autor pernambucano se apropria da sensação popular do mundo e, a partir disso, discute, por meio do confronto entre os caracteres, o real valor da liberdade humana. A caracterização dos personagens e a percepção carnavalesca do mundo Conforme ensina Antonio Candido (1972), teatro é ação e não existe movimento sem seres vivos que agem, optam. Nesse sentido, de agora em diante, vamos exemplificar como essa inversão crítica aparece por meio da ação dos personagens. Analisaremos apenas os caracteres com maior relevo, aqueles que, de alguma forma, contribuem para a mensagem crítica do texto. A peça é dominada pela presença de personagens masculinos. Além do insurgente casal Leléu e Lisbela, de Noêmio, seu noivo, e do pai da moça, o tenente Guedes, povoam o espaço da cadeia de Vitória de Santo Antão: Jaborandi, soldado e corneteiro, personagem apaixonado por séries; Juvenal, outro soldado; Testa-Seca e Paraíba, presos; Heliodoro, cabo do destacamento, casado, porém apaixonado por uma jovem moça; Tãozinho, vendedor de pássaros, que rouba a mulher de Raimundinho; Frederico Evandro, assassino profissional, que deseja matar Leléu por ele ter deflorado sua irmã Inaura e que, sem saber, é salvo pelo malandro de um ataque de boi; Lapiau, artista de circo, amigo de Leléu, que se passa por padre para casar Heliodoro com sua amante; Citonho, carcereiro idoso que contesta a autoridade de Guedes; mais dois soldados, personagens sem fala. Na condição de protagonista, ao lado de Leléu, Lisbela cumpre um papel fundamental na peça, pois seu caráter e pensamento, princípios básicos da caracterização do personagem teatral (PALLOTTINI, 1989, p.10) revelam, segundo Nitrini, os valores mesquinhos e as fraturas da sociedade patriarcal. Essa jovem romântica, como sugere o próprio nome, toma atitudes em favor de seu desejo amoroso e produz conflito na história. Inclusive o desígnio do delegado e do matador de ver Leléu morto só não se concretiza devido a uma ação inesperada, porém plenamente justificável, da personagem: no dia do casamento com o advogado (homem da lei), na busca por concretizar seu desejo de ficar com o transgressor, além de desobedecer ao
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noivo e ao pai, ela atira no matador profissional Frederico Evandro com uma bala de festim e salva o malandro da morte e das grades da prisão. Vencidos os obstáculos, o casal anticonvencional foge rumo a um futuro incerto. A surpresa foi tanta que, por não saber que a munição era falsa, o assassino durão morre de susto pelas mãos de uma donzela, filha de um homem da lei. Fora de um contexto carnavalizado, uma figura dramática feminina jamais teria espaço para quebrar tantos tabus. Essas ações tão desajustadas praticadas por Lisbela têm como objetivo a contestação das hierarquias e verdades dominantes e expressam o simbolismo carnavalesco da alternância e da renovação, pois a jovem, antes submissa, a partir de seu sentimento por Leléu, passa a questionar a relatividade das verdades e autoridades no poder. É por isso que Lisbela age, sem medir consequências, por aquilo que almeja. Ao conhecer o trapaceador, a moça percebeu a superficialidade e a opressão de seu mundo, e o fato de o malandro ser o oposto de Noêmio, instável, divertido e livre, evidenciou o tédio de sua vida e a mediocridade de seu noivo, que era estável, sério e opressor. Em um dos encontros entre o casal, o malandro afirma: “a senhora não é noiva no coração. Só é noiva na mão e na palavra” (LINS, 2003, p. 55). Ou seja, Lisbela não vivia da maneira que desejava, e a presença de Leléu torna essa realidade evidente. Depois do encontro com o malandro, a moça renasce e decide contestar a “realidade” que lhe apresentaram até então. O pai e o advogado tentam dissuadi-la e afirmam que o trapaceador estava usando-a para fugir, mas ela rebate: “Ele me usou para nada. Vocês é que estavam me usando. Ele me quer, me quer bem. Para ele eu não sou filha, não sou uma mulher casada nem solteira. Era mulher, apenas mulher!” (LINS, 2003, p.84). Essa fala evidencia que Leléu não a olhava por meio da função que ela exercia socialmente, ele a enxergava como igual (neutralização dos papéis sociais), e esse tratamento lhe proporcionou certa sensação de liberdade. Diferente de Lisbela, a existência de Leléu sempre foi avessa às exigências sociais. Como o próprio nome sugere, ele sempre viveu ao léu, solto, sem rumo. No teatro, a construção dos personagens também se elabora pelo contraste, pelo “choque entre dois temperamentos, duas ambições, duas concepções de vida” (CANDIDO, 1972, p.92). Leléu, por exemplo, é o oposto de Noêmio, noivo de Lisbela, e de Guedes, pai da
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moça. Nesse sentido, é impossível entender a função do malandro no texto sem vinculála ao teor opressor presente na construção desses dois personagens, que funcionam como um tipo de representação da cultura oficial, expressa na obra pelos costumes burgueses. Por exemplo, assim como prega essa visão de mundo, em diversas passagens, Guedes e Noêmio afirmam a importância do silenciamento das mulheres e da sua obediência aos homens. O advogado chega a dizer em um dos trechos da obra: “Lisbela, você é minha noiva e não deve opor-se às minhas convicções. As convicções do homem devem ser, optarum causa, as de sua esposa ou noiva” (LINS, 2003, p.26). Diversas passagens da peça reforçam o comportamento opressor do personagem para com a noiva, como esta, por exemplo: “Para você eu sou feito um diploma. Com carimbo, pregado na parede” (LINS, 2003. p. 84). Essa colocação de Lisbela confirma a superficialidade da sua relação com Noêmio e a hipocrisia dos costumes burgueses retratados na peça, uma vez que a maioria dos casamentos desse nível social ocorre mais por conveniência do que por amor, conforme é possível perceber neste trecho: “eu disse ao meu pai que não queria mais você para marido. E ele asseverou que os casamentos felizes são assim. Que o bem querer vem depois” (LINS, 2003, p. 83). Após ouvir isso da filha, Guedes fica furioso e tenta descredibilizá-la, chamando-a de louca e a jovem retruca: Fui com banda de música. Quando vi aquele passarinho na gaiola... Pensei que minha vida inteira, se eu ficasse, ia ser assim, vida de triste, de quem desejou, de quem quis de corpo e alma e, mesmo assim, não fez. Aí eu fui. Fui e vou toda vez que ele me chame. Não precisa nem que ele me fale. Nem que me olhe. Bastar estalar os dedos. Vou feito cão. Mas coroada, vocês me compreendem? Feito uma rainha! (LINS, 2003, p. 84)
A resposta transcrita acima mostra, mais uma vez, que a figura carnavalizada de Leléu a tirou da condição de submissa e a tornou alguém que está acima, reinando, da mesma forma que ocorre na festa carnavalesca, quando o povo assume o controle. O efeito que o malandro provoca nos demais personagens “mostra a eficácia de sua construção, perfeitamente adequada à finalidade da ação, pois o ser ficcional que tem um ethos (caráter) claro, forçosamente terá uma boa diánoia (mensagem/ ideia)” (PALLOTTINI, 1989, p.12). Ou seja, Leléu é um bom personagem não porque seja uma figura exemplar (num sentido positivo), mas sim porque é contraditoriamente humano e,
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a partir disso, carrega em si a mensagem mais global da obra: o real valor da liberdade humana. Principalmente por intermédio da construção ficcional de Leléu, Lins mostra “que essa ordem que conhecemos não é natural nem absoluta, mas apenas uma convenção que pode ser mudada” (SILVA, 2009, p. 147). É por isso que a figura desse malandro, nada exemplar, repercute tanto nos outros caracteres. Noêmio, por exemplo, após ser abandonado por Lisbela, que o trocou pelo transgressor, revela que não comia carne apenas para parecer decente e afirma, depois do ocorrido (abandono na data do casamento), que seria vida torta como o trapaceador. O fato de Guedes dizer, a todo momento, que a autoridade é um peso também revela o aprisionamento desse personagem ao estilo de vida que ele possuía. Ainda no posfácio da obra, Nitrini, ao comentar a presença do delegado no texto, afirma: “mesmo sendo o delegado da prisão, é o mais prisioneiro de todos os personagens” (LINS, 2003, p. 117). Nesse sentido, é possível afirmar que as figuras dramáticas de Noêmio e Guedes se escondiam atrás de um modo de vida sério e opressor com objetivo de disfarçar a falta de liberdade que também os permeava. É possível perceber novamente, com os exemplos acima, que a temática da liberdade e a contestação da cultura oficial, assuntos tão presentes em Rabelais e em sua literatura carnavalizada, também fazem parte do universo da peça de Lins. O autor brinca com os significados e noções de nossas instituições e valores oficiais. Essa inversão carnavalizada passa também pela ambientação da história: nada melhor que uma prisão para passar uma mensagem sobre liberdade. É justamente isso que Lins faz: ele localiza os fatos em uma cadeia para inverter as noções que temos sobre estar livre. Será que de fato estamos em liberdade por não estarmos atrás das grandes? No texto, Lins mostra, por exemplo, que Leléu, mesmo preso, é mais livre que outros personagens soltos. Dessa forma, é possível entender Leléu como personificação da resistência popular frente à tradição oficial. Ele é a expressão mais nítida do riso popular perante o mundo desigual, sério e opressor, mantido pela cultura dominante. Ele não tem um trabalho fixo e vive de diversas ocupações, perambulando pelo mundo. O fato de não ter um emprego formal o livra do tempo sério, opressor e ordinário do relógio. Assim, a postura anticonvencional do malandro evidencia que existe outra forma de viver, outra
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maneira de enxergar a verdade, pois “o tom sério afirmou-se como a única forma que permitia expressar a verdade, o bem, e de maneira geral tudo que era importante, considerável” (BAKHTIN, 1999. p. 63). Sendo assim, o simbolismo em torno da construção de Leléu propõe uma discussão sobre outra forma de apreensão do mundo, a percepção carnavalesca e libertária da vida, fruto da sensação popular do mundo. É tão forte a representação da cultura carnavalesca nesse personagem que, em umas cenas, após dizer que ele era a salvação dos companheiros de prisão, Testa-Seca e Paraíba, para uma possível fuga, o malandro pega um violão e começa a dançar e cantar uma marcha de carnaval. Logo é acompanhado pelos presos e pelos funcionários da cadeia: “O meu urso é estrangeiro/ Ele veio de Portugal/ Vamos todos, minha gente/ Divertir o carnaval” (LINS, 2003, p. 62). Quando o delegado chega e toma conhecimento da folia, dirige-se a Leléu: “Então, o cavalheiro também gosta de música? Ele responde: “E quem é que não gosta, delegado? Quem canta seus males espanta” (LINS, 2003, p. 63). Por meio da citação desse ditado popular, o autor pernambucano faz menção à sensação popular do mundo novamente, atitude coletiva que incorporou o riso, assim como a música, o texto cômico, entre outras manifestações populares, como parte da busca por um mundo mais livre e menos hierarquizado. O carcereiro Citonho, assim como Lisbela e Leléu, é igualmente importante para construção da inversão crítica das formas tradicionais de poder presentes na peça. Lins, além de dar poder e liberdade de expressão a esse ser ficcional, revela ainda, por intermédio de diversos diálogos entre os personagens, os motivos sociais que levaram Citonho e outras figuras do texto a estarem sempre abaixo na hierarquia social. Em uma das passagens, o cabo Heliodoro, outro funcionário da cadeia, diz ao idoso: “eu não entendo como é que você sabendo tanto nunca passou de carcereiro. Porque você é inteligente pra burro” e ele responde: “Ah, meu filho, é porque não tive estudo.” (LINS, 2003, p. 71). Ou seja, o carcereiro não era delegado por uma questão social (falta de acesso à educação formal), mas no ambiente “ao avesso” criado pelo autor pernambucano, mesmo não sendo o comandante policial oficial, ele é a autoridade legítima, pois, de uma maneira extraoficial, funciona como um defensor dos direitos de outros personagens, que também foram privados de voz e mobilidade social. Citonho,
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por exemplo, é cúmplice do amor rebelde do casal protagonista por enxergar Leléu além das aparências que o rotulam como vagabundo. Assim, cansado da realidade desonesta da prisão e de outras injustiças da vida em geral, esse personagem quixotesco deseja endireitar as coisas por conta própria. Dessa forma, sua presença no texto é usada para criticar, desafiar e renovar a ‘justiça’ vigente, pois Citonho, por estar em constante oposição a Guedes, evidencia como as decisões do delegado eram parciais e elitistas por nunca buscarem proteger os mais pobres e fragilizados. O artista de circo e amigo de Leléu, Lapiau, também é um componente importante para a contestação da ordem social expressa na peça. Ele, junto com Leléu, é responsável por uma divertida chacota ao peso exacerbado imposto pela religião. A situação em questão envolve o personagem Heliodoro, cabo da cadeia pública. Numa das cenas, ele conta a Leléu o dilema que o faz se sentir preso: ele é casado e deseja possuir uma moça solteira, mas a mãe dela é caninana (uma cobra brava) e exige um casamento oficial com padre e tudo. Diante da lamúria do cabo, Leléu lhe promete um padre de verdade que possa realizar a cerimônia de casamento com a moça em questão, mesmo ele já sendo casado - Heliodoro já havia recebido diversas negativas do padre local, além de ter recebido um duro sermão sobre moral e decência. Mas, no mundo carnavalizado criado no texto, o conceito de moral e decência é relativo e não pode ser imposto, de cima, pela Igreja. Assim, Leléu, personagem que funciona como contraponto à cultura oficial, brinca com os elementos sérios e formais da religião ao conseguir um falso padre, o transgressor Lapiau, para concretizar uma união não autorizada pela Igreja. A atitude dos malandros, de brincar com a lei religiosa, é provocadora por mostrar que qualquer pessoa pode ter o poder de “abençoar e autorizar uma união”, algo unicamente reservado ao poder oficial da Igreja. Essa mesma postura de ignorar as convenções religiosas e sociais se vislumbra na união de Lisbela e Leléu, uma vez que a opção informal pela fuga revela que o casal não precisa da bênção (aprovação) da Igreja e de todos aqueles que estão no comando ditando as regras. É igualmente importante, na composição da peça, a presença do soldado e corneteiro Jaborandi. A existência do soldado oscila entre chateações (trabalho) e
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diversão (ida ao cinematógrafo). Inclusive, em uma de suas falas, ele afirma: “Ainda vou dar baixa da polícia e vou vender mané-gostoso na feira, só ‘pra’ estar livre na hora da série. Onde já se viu tocar silêncio em cadeia?” (LINS, 2003, p.12). Encorajado por Leléu, ele questiona, pela primeira vez, sua condição e passa a tocar corneta no cinema para não mais perder sua série favorita porque o malandro lhe dissera que essa atividade (tocar corneta) era desnecessária em uma prisão. Não é preciso dizer que esse conselho enfureceu Guedes, que, imediatamente, mandou buscar Jaborandi no cinema para prendê-lo. A relação desse personagem com o malandro levanta, novamente, a discussão sobre uma nova percepção da vida, uma vez que a limitação da liberdade de Jarondi é posta em contraste com o teor libertador das escolhas do malandro. O vendedor de pássaros, Tãozinho, também cumpre função importante na mensagem da peça, pois a presença dele também serve de suporte para criticar as formas tradicionais de poder. O personagem procura a cadeia pública porque sua amada Francisquinha está impedida de pegar suas roupas na antiga casa em que vivia com Raimundinho, seu ex-marido. Ao saber o motivo da queixa, o delegado fica furioso e afirma que uma mulher adúltera não possui direito nenhum e diz ainda que a teria matado no lugar do ‘corno’. Depois de esculachado por Guedes, o vendedor foi expulso da cadeia. Alguns dias depois, Tãozinho volta à cadeia clamando por justiça novamente, mas Guedes não está e dessa vez ele é atendido por Leléu. O vendedor traz uma nova queixa: Francisquinha, enquanto casada, fizera economias e possuía quatro contos de réis, mas o ex-marido, além de não devolver as roupas da ex-companheira, exige metade do dinheiro, mesmo sem ter ajudado no processo de economia. Ao ouvir a história, o malandro afirma: “Leis coisa nenhuma! Não dê um tostão!” (LINS, 2003, p. 51). A decisão do malandro, favorável à Francisquinha, contraria totalmente a visão de justiça de Guedes e, a partir disso, o direito oficial praticado pelo delegado é questionado. Essa passagem exibe outra provocação: uma vez que as leis não servem, de maneira igualitária, aos mais desprotegidos socialmente, qual o motivo de obedecer a elas e qual o limite da sua legitimidade? Ao ouvir a resolução “ao avesso” do malandro, o vendedor de pássaros responde: “Graças ao Deus, meu Deus. Por que é que voincê não assume essa delegacia?” E o malandro ironicamente responde: “Já insistiram. Eu é que não quis”
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(LINS, 2003, p. 51). Todos os presos e Citonho caem no riso ao presenciar esse diálogo. Tãozinho deixa a delegacia feliz da vida com a decisão dada por Leléu, mas essa não foi sua última aparição na história. Ele surge novamente, no típico final feliz da comédia, logo após a fuga de Lisbela e Leléu. Ao chegar à delegacia, Guedes pergunta qual era a queixa da vez e ele responde que não havia reclamação nenhuma: “Vim apenas trazer uma cesta de ovo para o inteligente [Leléu]” (LINS, 2003, p.107). Para riso geral de todos do local, o delegado responde: “Ele foi-se. Pode deixar aqui com o ignorante” (LINS, 2003, p. 108). Por meio dessa engraçada passagem, mais uma vez Lins opera a alternância do alto (Guedes) e do baixo (Leléu), pois, mesmo não sendo a autoridade constituída, Leléu foi reconhecido como tal por Tãozinho por ter-lhe feito justiça, algo que lhe fora negado pelo representante da lei. Ao aliviar o vendedor de pássaros do pesado fardo imposto pela cultura oficial, o malandro não só aponta os abusos dessa visão de mundo como também libera os seres humanos para uma nova existência mais livre: “Pois voincê agora me tirou um peso de cima, seu Leléu” (LINS, 2003, p. 51). Considerações finais O autor pernambucano conseguiu expressar, por meio da construção ficcional de Lisbela e o Prisioneiro, a complexa sensação popular do mundo, atitude coletiva dos seres oprimidos frente à hierárquica cultura oficial. Lins, ao se apropriar dessa resistência expressa, por exemplo, em manifestações populares como o carnaval, criou, no âmbito obra, um “mundo às avessas” no qual todos podem tudo. Com a visão carnavalesca do mundo, “inverte-se a ordem hierárquica e como consequência desaparece o medo resultante das desigualdades sociais” (BARROS, 1994, p.33). A partir dessa perspectiva, os seres oprimidos e silenciados socialmente recebem voz e poder de decisão para renovar os valores e verdades oficiais, pois, no ambiente libertário criado no texto, há permutações entre o alto (aqueles que controlam a sociedade) e o baixo (aqueles que vivem em submissão). Ou seja, a hierarquia social é invertida e, com isso, as regras pesadas e a dura realidade imposta pelos tipos ficcionais mais fortes são anuladas ou subvertidas. Para atingir esse fim, Lins simbolizou, por meio do contraponto entre os personagens, os valores e tabus vigentes na busca por contestá-los e renová-los. Como
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resultado desse processo, as fragilidades e contradições do comportamento da cultura oficial, disseminadas na obra pelos costumes burgueses, foram reveladas e contestadas por meio da debochada percepção carnavalesca da existência. Também é possível dizer que toda a verdade ensinada como eterna foi relativizada. O autor incorporou ao processo criativo da obra o núcleo central da cultura carnavalesca, isto é, a lei da liberdade. Assim, é possível dizer que a contestação da cultura oficial e a busca por um mundo mais libertário, temática tão presente em Rabelais e em sua literatura carnavalizada, também fazem parte do universo da peça de Lins, pois, por meio do riso popular, o autor brinca com os significados e noções de nossas instituições e valores oficiais. Essa estética do avesso, elaborada pelo autor, atende tanto o leitor despretensioso, que busca diversão, como aquele mais exigente, que deseja mensagens mais profundas, pois a maneira como a ação é construída faz emergir uma discussão sobre o real valor da liberdade humana, assunto de alcance universal. Referências BAKHTIN, Mikhail. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1999. BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz (Orgs.). Dialogismo, polifonia e intertextualidade: em torno de Mikhail Bakhtin. São Paulo, 1994. CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1972. LINS, Osman. Lisbela e o Prisioneiro. São Paulo: Planeta, 2003. PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia: construção do personagem. São Paulo: Ática, 1989. SILVA, Marisa Corrêa. Crítica sociológica. In:___. Teoria da Literatura: abordagens históricas e tendências. 3. ed. Maringá: Eduem, 2009.
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AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA VON KANT: O TEATRO CINEMATOGRÁFICO DE RAINER FASSBINDER Fabrício Batista Borges (UEL) Em 1972, o diretor alemão Rainer Werner Fassbinder escreveu a peça As lágrimas amargas de Petra Von Kant. Alguns meses depois, ele roteirizou e levou sua dramaturgia para o cinema. A ponte entre teatro e cinema é umas das suas principais características que o acompanhará durante toda sua carreira. As suas peças possuem elementos do cinema, como cortes de cena, e um forte apelo visual nos figurinos e cenários. Do mesmo modo, o teatro para o cinema, ao propor planos longos, movimentos coreografados e posicionamento estático da câmera. Rainer W. Fassbinder integrou a geração de artistas do Cinema Novo Alemão na década de 1960/70, que teve diretores como Win Wenders e Werner Herzog. Eles se inspiraram em alguns aspectos do teatro de Brecht, como buscar mecanismos para despertar a consciência do público e produzir obras que incentivassem a reflexão sobre a realidade dessas pessoas. A Alemanha naquele momento encontrava-se dividida e a arte era um possível caminho para a unificação de realidades tão distintas. A proposta é formar um espectador consciente, utilizando os "efeitos de estranhamento e distanciamento” descritos por Brecht, que tem como objetivos tornar claro ao espectador que ele está na frente de uma obra de arte, de que a representação teatral é uma ilusão.
Essa consciência faz com que o público não se perca
completamente nas emoções e psicologia das personagens. O espectador é consciente e observa o trabalho, por entender que o mundo diante de si é uma ficção. A forma de provocar o espectador de Fassbinder é o uso da teatralidade para produzir o efeito de estranhamento. As personagens de Fassbinder são carregadas na representação, nos sentimentos e emoções. Assim, Szondi também faz uma interessante observação sobre os diversos tipos de efeito de distanciamento utilizados no teatro épico de Brecht.
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Da mesma maneira, o espectador não é deixado de fora do espetáculo, tampouco é sugestivamente envolvido (“iludido”) nele de modo que deixe de ser espectador, mas é contraposto ao processo como espectador, e o processo lhe é apresentado como objeto de sua consideração (SZONDI, 2003, p.136).
As grandes personagens de Fassbinder são as mulheres e as histórias nascem da inspiração melodramática dos filmes hollywoodianos. O diretor foi atraído para o tema não só pelo valor de entretenimento, mas também por sua representação como forma de repressão e exploração. Um bom exemplo da composição melodramática é a peça As lágrimas amargas de Petra Von Kant (Die bitteren Träner de Petra Von Kant) escrita em 1972 para o teatro, e sete meses depois roteirizada e dirigida por Fassbinder para o cinema. Petra é uma famosa designer de moda, mas vive isolada em seu mundo. Após o fracasso de seu segundo casamento, Petra cai irremediável e obsessivamente apaixonada por Karin, uma jovem ambiciosa advinda da classe trabalhadora. No Brasil, a peça teve grande sucesso com a montagem na década de 1980, pelas atrizes Fernanda Montenegro (Petra) e Renata Sorrah (Karina) com direção de Celso Nunes. Estruturalmente, a peça é composta por cinco atos, um elenco de seis atrizes e unidade clássica de lugar. A ação ocorre no quarto de Petra, onde paira um ar claustrofóbico nos momentos mais tensos da história. Tudo acontece ao redor da cama de Petra. Ela recebe as pessoas, come, dorme e toma decisões importantes. O leito é o núcleo cênico. Além da cama, há uma poltrona, uma mesa, máquina de escrever e um cavalete para os croquis. Pavis define a função do cenário no melodrama e ilustra perfeitamente a atmosfera do quarto-estúdio de Petra: Situado na maior parte das vezes em lugares irreais e fantasiosos (natureza selvagem, castelos, ilha, submundo), o melodrama veicula abstrações sociais, oculta os conflitos sociais de sua época, reduz as contradições a uma atmosfera de medo ancestral ou de felicidade utópica. (PAVIS, 2011, p.239)
É um relacionamento entre duas mulheres, cheio de rejeição, incompreensão e posse. A movimentação das personagens é lenta, todas ao redor de Petra. Ao seu lado está Marlene, uma espécie de empregada e secretária, que desenvolve uma relação de
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submissão. Apesar do sucesso aparente, a vida pessoal de Petra é precária e ela está longe de alcançar a felicidade em seu quarto. Petra está prestes a completar 40 anos, é uma mulher de classe, de origem burguesa.
Seus gestos são perfeitamente estudados, como uma grande atriz
representando a si própria. Ao ser acordada repentinamente por Marlene, que abre as cortinas com força bruta, ela faz sua primeira aparição ao público. Mostra sua fragilidade que se transmutará em leoa colérica no decorrer da trama. Apressada, e, sem dizer uma palavra durante toda e peça, Marlene, ocupa-se em servir aos desejos de Petra. Nas obras do diretor alemão, a protagonista tem características psicológicas mais desenvolvidas e está cercada por figuras mais representativas de pressões e opiniões diversas. Ao despertar, ela resolve todos os assuntos em sua cama, lentamente e revelando aos poucos sua personalidade. Petra acaba de se divorciar e desde então tem uma espécie de repulsa por homens. Lentamente ela se move no quarto, como se estivesse em transe, como um espectro, e a tensão emocional a deixasse incapacitada de esforço físico. A campainha toca. Ela recebe a visita da amiga Sidônia, dama da alta sociedade que mantém uma união feliz. O diálogo das duas personagens, logo é convertido num monólogo sobre seu relacionamento fracassado e o nojo que ela tem dos homens. Sidônia escuta e fala sobre o seu bem sucedido casamento, tentando ensinar truques para a amiga estilista para segurar o marido, como ser humilde para um homem. PETRA: Ele fedia! Fedia a homem. Quer dizer, como fedem os homens. O que eu antes achava delicioso... agora me dava vontade de vomitar, de chorar. E seu modo de me trepar ...” (FASSBINDER, 1983, p.20) SIDONIA: Veja só, Petra, Lester e eu também tivemos um período desses, quando se tem a impressão de que tudo acabou. Havia essa sensação de cansaço, de enjôo mesmo. Mas... é preciso ser muito inteligente, você sabe, muito compreensiva, ter muita humildade. Como mulheres nós temos os meios, é preciso só saber usá-los” (Idem, p.18)
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A campainha toca novamente. É Karina, amiga de Sidônia, que retorna para Alemanha tentar a vida após um frustrado casamento.
Elas são apresentadas por
Sidônia, tomam um conhaque juntas, servido prontamente por Marlene. KARINA: Engraçado eu a fazia bem mais velha, mais aris...tocrática, é assim que se diz? PETRA: É assim mesmo que se diz, sim senhora. Mas por que mais velha? KARINA: Quando se tem tanto sucesso, quando se é tão famosa ... Eu não sei bem, mas comumente as pessoas são mais velhas.
(FASSBINDER, 1983, p.23)
Encantada com a jovem, Petra a convida para retornar no dia seguinte para um jantar. Elas se encontram e o clima é de descontração, iniciam uma descoberta mútua, e imediatamente, como se fosse arrebatada Petra apaixona-se por Karina, a jovem de 23 anos. Duas mulheres estranhas, de classes sociais diferentes em uma Alemanha dividida. Os pais de Karina eram operários e ela carrega uma tragédia em sua vida: o pai perdeu o emprego e, desesperado, matou a mulher e depois cometeu suicídio. Karina casou-se e foi morar na Austrália, mas o casamento não foi bem sucedido e decidiu voltar para a terra natal. Nesse momento há um jogo entre a mais forte e a mais fraca. Karina desperta a piedade de Petra, que se mistura a um sentimento que ela define como amor. Tudo acompanhado por champanhe, servido por Marlene, que continua a realizar seu trabalho, desenhando ou datilografando. Marlene tem o comportamento de uma sombra, ela está por perto, sempre dentro da cena. Uma presença constante ao lado de Petra. “É uma moça excelente. Faz todo meu trabalho.” (p.34). Petra comovida e apaixonada declara-se para Karina e propõe que um pacto entra as duas. Ela quer a outra, seu amor é extremamente possessivo. Petra faz uma declaração: PETRA: Vou te dar tempo Karina. Nós temos tempo. Nós tempos todo o nosso tempo. O tempo de aprender a nos conhecer. Nós nos amaremos! Marlene, traz mais uma garrafa de champanhe. (Marlene sai) Eu nunca tinha tido, eu jamais tinha sentido, tanto amor por uma
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mulher. Eu estou louca, Karina, louca! Mas é lindo estar louca. É loucamente lindo, estar louca.” (p.37)
Petra renasce, o amor que acaba de descobrir incendeia sua alma, como uma embriaguez, que tira sua lucidez para se entregar à emoção momentânea. Uma questão importante para a compreensão da peça é a noção da passagem de tempo. Hans-Thies Lehmann, na obra Teatro pós-dramático esclarece como o tempo vivido, a vivência temporal do teatro não pode ser medida com exatidão, mas pode ser experimentada e elaborar uma distinção conceitual. Lehmann acredita que Fassbinder utiliza em suas peças o chamado “Tempo do drama”, onde a sequência e duração das cenas são concebidas num próprio lapso temporal. A ordem do tempo advém da sequência de cenas e procedimentos escolhidos – como antecipações, reminiscências, saltos temporais – para a compressão do tempo. Essa organização pode ser designada como “tempo do drama”, mesmo quando nela predominam formas de representação narrativas ou “colagens” (...) o autor Fassbinder indica que as partes individuais podem ser representadas em diversas sequências. Em cada caso está implicada a escolha de uma dramaturgia, por mais que seja uma dramaturgia aleatória. (LEHMANN, 2007, p. 289).
No ato seguinte, é de manhã, já se passaram seis meses desde o primeiro encontro. Petra e Karina estão na cama, vivem uma crise no relacionamento. Novamente os homens tornam-se o foco do problema. É interessante notar como a participação do gênero masculino ocorre somente fora da ação cênica, mesmo sendo eles o foco da maioria dos problemas vividos por Petra. Especialmente neste ato (3), as emoções, de aparência artificial, afloram no casal. Ao acordar a jovem folheia uma revista, e Marlene ajuda Petra a vestir-se. É um dia qualquer na vida delas, contudo, no decorrer da conversa Petra descobre que Karina continua saindo com homens. KARINA: Inacreditavelmente. Imagina umas mãos negras enormes em cima da minha delicada pele branca. E ... seus lábios! Você sabe muito bem – todos os negros têm lábios grossos e quentes (Petra leva a mão ao coração). Está desmaiando queridinha (rompe num riso enorme)
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Petra: (A Marlene) Não fica aí com esse olhar de vaca. Vai buscar os jornais! Depressa! (FASSBINDER, 1983, p 47).
Tem início um jogo emocional entre as duas, permeados pelo silêncio e presença cênica de Marlene – uma espécie de testemunha e cúmplice. As duas tomam gin tônica e discutem até que Petra compreende a necessidade dos homens para Karina. Elas se beijam. Um momento de paz. O telefone toca. Petra atende e uma voz masculina pede para chamar Karina. É Fred, o ex-marido. Uma nova crise colérica de ciúmes. Ele quer encontrá-la novamente. Karina desliga o telefone dizendo “Eu te amo”, e implora para Petra uma passagem de avião para ir revê-lo. ‘’Petra: Você é uma putinha escrota!’’ (p.54). Petra resiste, mas liga para a Luftansa e marca uma passagem de primeira classe, além de dar dinheiro para Karina pagar as despesas de Fred. KARINA: Levanta daí. PETRA: Sua porca sórdida (Cospe na cara dela) KARINA: Você vai pagar caro por isso. Você jamais vai esquecer isso (Petra ainda tenta abraça-la, mas Karina a repele) (p.56)
No terceiro ato é evidente a presença da teatralidade do texto, com o diálogo e a movimentação dos atores e a intensidade que a palavra adquire nos lembra do conceito de teatralidade em Barthes, que o define como: Uma espessura de signos e de sensações que se edifica em cena a partir do argumento escrito, é aquela espécie de percepção ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, luzes, que submerge o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior (BARTHES apud PAVIS, 2011).
Petra foi abandonada por Karina. Ela está bêbada em seu quarto e tem apenas o telefone ao seu lado. É seu aniversário de 40 anos e ansiosamente ela espera a ligação de seu amor. Na vitrola toca “The Great Pretender” dos Platters. Ela canta, dança e bebe. Neste momento, a música assume um papel importante na compreensão da personagem principal. O que ela escuta são as músicas de sua juventude. Ela é uma mulher vivida, viúva do primeiro casamento – do qual teve uma filha Gabi, adolescente
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que estuda em um colégio interno e depois na segunda união pediu o divórcio ao perceber que o amor tinha acabado entre o casal. O amor é sofrimento. Petra quer Karina como propriedade, vivendo juntas no claustrofóbico quarto. Mas, o sentimento de posse e dominação funciona e fica explícito na relação de Petra e Marlene. Mas, existe um prazer por parte de Marlene em ser maltratada, em receber ordens. A sua submissão também pode ser entendida uma forma de amar e sentir prazer. Não há inocentes na história, todos estão no jogo conscientes. Talvez por isso Fassbinder consiga criar o distanciamento com a platéia, pois não há uma identificação plena com o amor possessivo de Petra, embora as situações apresentadas sejam de sofrimento e dor. Quando ela liga a vitrola, escuta The Platters, fica bêbada e exagera nas ações e palavras, ela deixa pistas para o que público compreenda seu mundo. É a teatralidade da personagem talvez o aspecto mais interessante e que nos possibilita não entrar em sua trama, apenas observá-la. O pensamento de Sarrazac sobre a teatralidade é esclarecedor para conhecer Petra Von Kant: A pura presença teatral é o que me permite ver um objeto, um corpo, um mundo na sua hiper-sensibilidade fragmentada, na sua própria opacidade, é o que me permite vê-lo e descodificá-lo sem esperança de alguma vez chegar ao fim dessa descodificação (SARRAZAC, 2010, p.29).
Apesar da inspiração no melodrama não há um arrebatamento de emoções que promova lágrimas. O público permanece consciente sem despertar sentimentos de pena e comoção devido à artificialidade da personagem e seus sentimentos exacerbados. O que cria o efeito de distanciamento no público é a artificialidade das personagens em demonstrarem seus sentimentos através de ações melodramáticas. Uma impressão que todos fingem, com “máscaras sociais”, inclusive, Petra em seu amor por Karina devido ao seu exagero na exposição dos sentimentos. Para comemorar seu aniversário de 40 anos, ela recebe a visita de Gabi, a filha; Valéria, a mãe; e Sidônia, amiga. Completamente bêbada e não esconde mais da família seu amor por Karina. Sua mãe fica surpreendida e de certa forma chocada pelo relacionamento lésbico de Petra. As outras personagens aceitam e agem normalmente,
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mas Valéria fica estremecida com a revelação que é feita por Sidônia. Há uma rivalidade entre Sidônia e Petra. A ira é despertada quando a amiga revela para a mãe a homossexualidade de Petra. Como uma metralhadora, ela dispara todas as suas verdades contra a Gabi, Valéria e Sidônia. Marlene neste momento não está em cena, mas a sua presença é constante, é como se ela fosse uma espectadora e nesses momentos evidenciando o pensamento de Roubine: Trata-se de colocar o objeto da representação à distância do espectador para que este experimente a sensação de sua estranheza. Para que o considere não mais como evidente, como “natural”, mas como problemático. Para que provoque sua reflexão crítica. (ROUBINE, 2003, p. 153)
O quarto é seu palco e as visitantes sua plateia. Petra vira a mesa com o bolo de aniversário, joga o copo na parede, enche a cara e não larga do telefone esperando uma ligação de Karina. Neste momento ela quer “a morte lá tudo é calmo, tudo é belo. E tranquilo mamãe. Tudo é tranquilo” (FASSBINDER, 1983, p.73). O ato final acontece algumas horas depois da crise familiar. Valéria põe Gabi pra dormir e vai conversar com filha no quarto. Petra está calma e serena como na primeira cena. Marlene desenha em um cavalete. O clima é de reconciliação, a protagonista parece ter recuperado a razão numa conversa existencialista com a mãe, e, novamente a relação de dois monólogos que se cruzam, a mãe que fala dos próprios arrependimentos e Petra explicando a si própria a razão de tudo e encontrando o entendimento para sua dor. O telefone toca. É Karina. Petra atende calmamente, está serena e consciente dos seus erros. Há uma tensão no ar, porque se espera que Petra voltará ao estado de ira. Contudo, ela está em paz. Ela supera a dor em poucas horas e entende tudo que se passou. Chama Marlene para conversar pela primeira vez. Muitos comparam o amor a uma doença, uma doença cuja recuperação não está totalmente garantida. Mas existem inúmeras maneiras de amar, e a forma cada amor é diferente da outra. Quando o amor é mútuo, expressivo e simbiótico, há uma graça e
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beleza na união de duas almas. Mas quando se ama sozinho, quando se deseja sem recompensa, a dor pode ser cansativa o suficiente para matá-lo. O título da peça As lágrimas amargas de Petra Von Kant é um convite a uma história de amor e sofrimento. Mas, ao entramos no quarto-estúdio da estilista tomamos outro direcionamento, para um caminho de observação das personagens, como um voyeur. Sutilmente, o autor nos convida a espiar a vida de seis mulheres que se relacionam em um quarto. Fassbinder é bem sucedido em sua tentativa, pois revela através dos intensos diálogos a personalidade enigmática de Petra. O uso da teatralidade talvez seja o maior recurso para criar o efeito de distanciamento. As músicas presentes na peça também criam a distância para o espectador refletir e conhecer o passado da personagem. O teatro e cinema de Rainer Fassbinder buscavam alcançar a realidade através da sua subjetividade, muito dos seus filmes e peças são baseados em experiências do próprio autor. A forma dos trabalhos, sempre artificiosa, fazia parte da composição realista “quanto mais verdadeiras são as coisas, mais feéricas são” afirmava o diretor. O melodrama aqui é apropriado, a mise-en-scène do gênero é permeada pelo exagero desde atuação até cenografia. Para Fassbinder as personagens devem trazer a identificação com o público, porém existe o distanciamento para que o espectador mantenha uma lucidez para não se perder na história. A forma de mesclar melodrama com Brecht, duas propostas divergentes, é talvez o modo de conseguir construir um mundo complexo e real. "Eu não acredito que os sentimentos melodramáticos são risíveis, eles devem ser tomados absolutamente a sério." (FASSBINDER, 1983, p.4). Referências
FASSBINDER, Rainer Werner. As lágrimas amargas de Petra Von Kant. Tradução de Millor Fernandes. Porto Alegre: LePM Editores, 1983. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. Tradução de Pedro Süssekind. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
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PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2008. ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. SARRAZAC, Jean-Pierre. A invenção da teatralidade. Lisboa: Deriva, 2010. SARRAZAC, Jean-Pierre (Org), Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012. SZONDI, Peter. A teoria do drama moderno [1880-1950]. Tradução Luiz Sérgio Rêpa. 1. Reimp. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
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O SER NO SER: RELAÇÕES DE PERTENCIMENTO NO ESPAÇO SILENCIOSO DO EU
Fernanda Tonholi Sasso (UEM) Alessandra Regina de Carvalho (UEM) Introdução A narrativa contemporânea enquanto reflexo do espaço sócio histórico do homem é, tal como o ser, ambíguo: de um lado, o romance atual traz ainda muitos elementos herdados do gênero puro, como descrição de espaço e tempo linearmente conforme o desenvolvimento natural da obra. Por outro, a seleção de temas pertinentes ao novo homem e a nova sociedade em que vivemos, exige que muitas vezes estes elementos se consolidem de forma tal que o gênero se dissolve em alguns aspectos, fugindo um pouco da concepção romanesca originada no clássico. Existem alguns títulos que fazem jus a esta hibridização da forma. Em Portugal, a obra de Raul Brandão traz a fragmentação do eu de tal forma que o espaço passa a refratar, da mesma forma, a imagem que o eu tem dos meios e das pessoas, em um tempo difuso ao qual praticamente não há menção. Em nosso país, Clarice Lispector rompeu com todas as barreiras do gênero ao trazer a até então chamada narrativa psicológica. No México, Juan Rulfo transpõe a forma narrativa em uma história em que o real e o absoluto mesclam-se em nuances que anunciam uma verdade: o gênero romance em formato não sustenta mais a necessidade que o homem tem de se contar. Os impactos que a vida cotidiana exerce nas pessoas transpõem-se em linhas artísticas de modo que o eu não se encontra mais em histórias já conhecidas, com tempo, espaço e personagens demarcados em formato como se conhece. As relações político-sociais transformaram não apenas fronteiras geopolíticas, mas tiveram impactos significativos nas relações do homem com o próximo e, também, consigo. Deste modo, não é possível falar no romance da modernidade sem considerar o homem da modernidade. Com tais palavras afirma-se que as inovações encontradas no fazer literário do século XX são consequências das novas visões que o homem somou às suas, de modo que novas descobertas e experiências moldaram o ser, o social e o literato. Neste sentido, este estudo visa demonstrar a interpretação do eu no romance The Secret Life of Bees, de Sue Monk Kidd (2008). Durante a análise, mostrar-se-á como se
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constrói a percepção de mundo e vida da protagonista Lily, ao redor de um universo racista e sexista. Através de um discurso onisciente interno, as relações de opressão vão sendo pouco a pouco quebradas, culminando com um final surpreendente. Este romance reúne uma série de temas polêmicos contextualizados nos Estados Unidos da década de 1960. Deste modo, ao tratar não apenas da questão racial, a escritora utiliza a simbologia das abelhas e do sagrado como meio de superação e resistência para um eu que, além de feminino, está fragmentado por uma trajetória de traumas buscando sua identidade. O livro foi adaptado para o cinema em 2008. Ao longo do estudo, Ashcroft (2001), Lentricchia (1990), Galimberti (2003), Bauman (2005), Hall (2005) e Otto (2005) constituem exemplos de autores que terão suas ideias expressas como suporte ao pensamento interpretativo do universo de Lily e suas simbologias. Espera-se, ao fim da análise, compreender como o sujeito fragmentado em meio a um novo mundo luta para se conhecer e reconhecer seu lugar no mundo, e como o espiritual ou metafísico e o sagrado levam-no à compreensão de si mesmo e de seus erros através do perdão. O contexto: a obra The Secret Life of Bees é um famoso romance da escritora norte-americana Sue Monk Kidd. Seu conteúdo notório e o reconhecido sucesso permitiram que se transformasse em um filme homônimo, tendo como Dakota Fanning a personagem principal. Expoente da literatura na contemporaneidade, esta obra constitui um clássico exemplo da fragmentação do eu. Nesse sentido, para Bauman (2005), o mundo atualmente está fragmentado desordenadamente, e a existência individual reflete uma sucessão de fatos mal conectados. Esta afirmação revela o destaque para o processo de busca do indivíduo. Longe de ideias essencialistas, o sociólogo postula que tudo na vida é fluído, líquido, inseguro, inevitavelmente constituindo um movimento no sentido do indeterminado, ou de uma identidade desconhecida. Assim, Lily é a representação dessa identidade diluída em outras identidades no decorrer do romance. A história se passa no período de 1964, na sociedade americana. Lily, uma menina de quatorze anos cresce em uma fazenda de pêssegos de seu pai, T. Ray, e sua empregada Rosaleen, uma mulher adulta e negra (KIDD, 2008). O romance se destaca ainda pelo argumento que nos traz Ashcroft (2001), ao mencionar que os textos que subvertem a centralidade dos textos canônicos, rejeitam o
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binarismo, revelam alternativas e horizontes diferentes e implodem o discurso universalista tem se destacado no cenário literário contemporâneo. Além da opressão praticada pelo pai, a protagonista cresce sem uma referência materna: Sua memória de sua mãe a leva para uma época em que ela tinha apenas quatro anos, e sua única lembrança é a de ter assassinado sua mãe acidentalmente com um tiro (KIDD, 2008, p.3). Por crescer sem uma referência maternal, e oprimida duplamente pelo pai, sendo uma via pelo sistema patriarcal vigente, e outra, pela culpa que a menina tem por ter matado a mãe, a personagem cresce sem o zelo e o autoconhecimento que uma menina tem passado geralmente pelas representações de gênero ensinadas pela mãe. Somada à ausência opressiva de seu pai, pode-se dizer que Lily foi uma criança que cresceu abandonada. É possível ser esta a razão pela qual o romance ser narrado através da presença onisciente de Lily, em um discurso similar ao de um diário, como se a história fosse narrada pela personagem para si mesma. Essa interiorização se reflete nas relações que ela vai construindo ao longo do romance, sendo que muitas delas são reforçadas pelo silenciamento que a menina se impõe (KIDD, 2008). Os fatos narrados e a busca da menina possuem um ponto de origem. Lily possui, escondido, uma lata com pequenos pertences da mãe, que ela tem como relíquias. Dentre estes objetos, existe um rótulo de mel da cidade de Tiburon, com a imagem da Virgem Maria Negra (KIDD, 2008, p. 14). Este fato dá início a outra presença marcante na obra: as relações raciais. Este assunto começa a ser abordado no romance pela presença da empregada da protagonista: em cenário inicial, Rosaleen vai até a cidade para fazer o equivalente a seu título de eleitor, refletindo o momento histórico no qual ao negro foi permitido o direito de voto nos Estados Unidos (KIDD, 2008). Sendo um ambiente extremamente influenciado pela política do Apartheid, Rosaleen e Lily se vêem envolvidas em um conflito racial neste caminho, que dá sequência a todo o restante da narrativa. O modo como os fatos se desenrolam e as suas significações se construirão nos tópicos a seguir. A simbologia das abelhas
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A narrativa começa em uma introspecção da personagem ao ser suavemente tocada por uma abelha. A experiência da menina lhe dá um sobressalto quando ela escuta um zumbido que a leva a crer que existem mais destes insetos a invadir seu quarto: “Bees!” I shouted. “There´s a swarm of bees in my room!” But when we got there, they´d vanished back into the wall like they knew he was coming, like they didn´t want to waste their flying stunts on him.“Goddamn it, Lily, this ain´t funny” (KIDD, 2008, p. 4.)
A princípio, as abelhas parecem estar presentes apenas na presença de Lily, o que dá a ideia de a garota pode imaginá-las quando acredita as ver. Nas primeiras páginas da narrativa, quando menciona a reviravolta que sua vida teve no verão de 1964, ela atribui às abelhas características sobrenaturais, como pode ser visto em I want to say they showed up like the angel Gabriel appearing to the Virgin Mary, setting events in motion I could never have guessed. I know it is presumptuous to compare my small life to hers, but I have reason to believe she wouldn´t mind; I will get to that. Right now it´s enough to say that despite everything that happened that summer, I remain tender toward the bees (KIDD, 2008, p. 2). Embora tais linhas esbocem o início do romance, ela consegue dar ideia ao tom metafísico presente em todo o enredo contado, ora com seus mistérios atribuídos à Virgem Maria, ora com a transformação interior que ocorre com a menina através de seus contatos com as abelhas. Para Chevalier, (2012), as abelhas evocam o símbolo das massas laboriosas que estão submersas à inexorabilidade do destino. Porém, quando vistas individualmente, podem também representar seu princípio vital, que é materializar a alma. Esta última visão pode ser atribuída à protagonista; a abelha individual que materializa sua alma através de sua autodescoberta. Posto que a alma, perdida pelos preceitos da materialização, a garota se encontra tal como as abelhas, que são nutridas pelo pólen que, nesta comparação, significa a busca pelas suas raízes. Chevalier lembra ainda que, devido ao mel e ao seu ferrão, a abelha pode ser comparada ao emblema do Cristo, pois de um lado a personagem apresenta doçura e compreensão. Porém, por outro, Lily também faz o exercício de sua justiça quando toma a decisão de abandonar seu pai.
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Quando chega em Tiburon e se hospeda na casa da produtora de mel August Boatwright, Lily tem ciência de que deverá trabalhar na produção de mel para poder morar na casa. Contudo, para isso, a única condição que August põe para que a menina possa realizar os trabalhos é uma: amar as abelhas (KIDD, 2008). Isso prova não apenas que o trabalho é que garante os meios de sustentação da menina, mas que a doçura é algo que deve ser presente em seu cotidiano. A relação de fragmentação neste sentido pode ser analisada a partir desta relação de identificação: a menina que não possui relações de identidade marcadas na narrativa se espelha no movimento das abelhas como libertador de seu ser. O não possuir relações de identidade está ligado ao conceito de sujeito pósmoderno, ou seja, segundo Stuart Hall (2005, p. 12-13), o sujeito pós-moderno é conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma 'celebração móvel': formada e transformada continuamente em relação às forma pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um 'eu' coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas.
A vida de Lily é regida pelas relações de identidades múltiplas bem como da subjetividade latente. Não tendo encontrado ainda seu lugar no mundo, Lily recolhe-se à subjetividade de seu ser que, na concepção de Ortner (2007) constitui uma consciência cultural e historicamente específica, lembrando que ainda para esta autora, em nível individual, o sujeito apresenta algum grau de reflexibilidade sobre si e também sobre seus desejos. O sujeito pós-moderno foi drenado de subjetividade no sentido moderno. Formas culturais pós-modernas, incluindo aquelas linhas de teoria cultural que postulam a irrelevância/morte do sujeito, refletem esta subjetividade achatada e ao mesmo tempo aumentam o senso de desorientação do sujeito (ORTNER, 2007, P. 392).
Tratar de desorientação na construção subjetiva da personagem Lily é uma tarefa materializável na obra. Afetada e responsabilizada pela morte da mãe, a orientação da protagonista no sentido de se herdar as características de feminilidade, por exemplo, que toda garota naturalmente aprende com a mãe, é um direito que lhe fora desde tenra idade
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negado. Assim essa identificação seja de gênero ou de posição social familiar é algo subjetivo para a personagem, responsável pela sua desorientação em relação ao social para a menina. Essa identificação ocorre a partir do momento em que Lily se comunga com as abelhas, o que ocorre a partir de sua identificação e intimidade com o inseto trabalhador. Conforme a menina vai trabalhando e se integrando ao meio com qual está em estado móvel de pertencimento, ela vai se identificando com os afazeres das abelhas, de modo que se molda à nova vida e a aceita rapidamente (KIDD, 2008). As abelhas também promovem uma transformação física e simbólica na personagem, como pode ser visto em
We lived for honey.we swallowed a spoonful in the morning to wake us up and one at the night to put us to sleep. We took it with every meal to calm the mind, give us stamina, and prevent fatal disease. We swabbed ourselves in it to disinfect cuts or heal chapped lips. It went in our baths, our skin cream, our raspberry tea and biscuits. Nothing was safe from honey. In one week my skinny arms and legs began to plump out and the frizz in my hair turned to silken waves. August said honey was the ambrosia of the gods and the shampoo of the goddesses (KIDD, 2008, p. 84).
Com base nestas afirmações, constata-se que as abelhas e a produção de seu trabalho constituem mais do que um mero modo de vida em uma propriedade rural. São marcas simbólicas calcadas ao longo do romance que disciplinam o ser a se relacionar e acompanhar o próximo, sem restrições de preconceitos ou outras formas sociais de dominação. O sagrado enquanto princípio de transformação
O ser humano sempre passa por alguma experiência ou tem contato com algo que traz em si uma força ou um significado que foge ao mundo da razão. Tais características remetem aquilo que se tem como sagrado. Evocar-se o sagrado, consequentemente, remete-se a um “deus”, ou a uma religião, sendo que no dizer de Galimberti (2003, p. 11), o “sagrado” significa “separado”, e religião vem do termo latino relegere, significando religar, ou ligar novamente. Para Silva (2013, p. 13), o sagrado significa
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uma crença na existência de forças ou entidades sobre-humanas responsáveis pela criação, ordenação e sustentação do universo e, desse modo, fazendo a conotação entre religião e sagrado como algo que refaz a separação ao contato regularizado por práticas e rituais a fim de evocar a uma divindade. Ao sagrado, são designados deuses, pessoas, espaços, tempos. Assim, a religião, que circunscreve a área do sagrado, leva, por meio de ritos, a uma organização da racionalidade do serhumano, tornando atos conscientes, a fim de introduzir pela percepção a diferença que há entre sagrado e profano. O termo profano surge em oposição ao que é sagrado. Remete à esfera do mal, às impurezas que levam a um contágio, a um estágio de terror. Para se livrar dessa esfera, o ser humano é levado a praticar rituais, magias e sacrifícios e, assim, se afastar dos efeitos maléficos que a contraposição ao sagrado pode causar no ser.
No romance The Secret Life of Bees (A vida secreta das abelhas), há várias nuances da presença do sagrado, principalmente quando a menina tem o primeiro contato com a maior representação desse sagrado, ou seja, quando ela se depara com a imagem de Black Mary, ou seja a Madona Negra (estátua de madeira representando a imagem de uma mulher negra, que era evocada por um grupo de mulheres em momentos de oração e louvor). No encontro da menina com a Nossa Senhora Negra há uma epifania na vida da menina, que passa a vivenciar sentimentos acontecidos no momento em que matou acidentalmente sua mãe. Em um dos momentos na casa das irmãs Boatwright, Lily se reúne com demais mulheres para um culto religioso, em volta da Black Mary. Quando a menina toca a imagem da santa ela desmaia porque vê a representação da mãe na imagem da santa, bem como dentro do contexto da fé, seria a imagem do sagrado como redenção dos pecados da menina. O contexto era de segregação racial, e tem-se a imagem de uma santa negra. Nesse sentido, o sagrado torna-se o princípio da transformação, e símbolo da resistência. A este respeito torna-se pertinente a ideia de Ashcroft (2001) ao mencionar que a resistência, muitas vezes manifestada através da reação violenta pela qual o dominado tenta se livrar da cultura imposta e recuperar a autonomia perdida, pode ser praticado também por outro viés e com mais força: trata-se da resistência sem violência sutil e discursiva chamada ‘transformação’, difícil de combater ou eliminar, e a qual desconstrói o poder dominante. O trabalho com as abelhas e a crença em Black Mary permitem à transformação interior e exterior da personagem:
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We lived for honey. we swallowed a spoonful in the morning to wake us up and one at the night to put us to sleep. We took it with every meal to calm the mind, give us stamina, and prevent fatal disease. We swabbed ourselves in it to disinfect cuts or heal chapped lips. It went in our baths, our skin cream, our raspberry tea and biscuits. Nothing was safe from honey. In one week my skinny arms and legs began to plump out and the frizz in my hair turned to silken waves. August said honey was the ambrosia of the gods and the shampoo of the goddesses (KIDD, 2008, p. 84).
A relação abelhas (trabalho) e Black Mary (fé) são reforçadas pela autora como manifestações do feminino e do poder. A obra traz como primeira descrição do feminino a imagem da abelha rainha. Ícone máximo do poder hierárquico na colmeia. É a força da rainha que unifica a força de sua comunidade. A supressão de sua presença é sentida pelas operárias, de modo que não pode haver o todo sem a presença de sua parte. Ao conhecer a Black Mary, ao mesmo tempo em que vai aos poucos se encontrando, Lily vê uma possibilidade de redenção e acolhimento por parte da Santa. Com o encaminhamento para o fim da narrativa, Lily descobre que August foi a pessoa mais importante na vida de Deborah, sua mãe. E August sabia desde o começo quem era Lily. Este “perdão” e aceitação permitem que Lily comece a constituir sua identidade enquanto algo, possivelmente, fixo e verdadeiro. Quando T-Ray encontra a filha, encontra uma jovem transformada, que o recebe com calma, porém firme em sua decisão de ficar em Tiburon. No decorrer do encontro ele agride a filha, porém as devotas de Black Mary a protegem e asseguram sua permanência na casa. Trata-se do símbolo da resistência suprema: a mulher, a negra, a religião. Por fim, Lily descobre que, apesar de realmente ter matado sua mãe em um terrível acidente do qual não tem culpa, Deborah nunca a abandonou, e voltou à casa do ex-marido justamente para buscar sua filha. Quando há a quebra deste último acontecimento, Lily liberta-se do mundo opressor no qual vivera e perdoa-se. A vida em Tiburon permite então um crescimento feliz e saudável. Considerações Finais Para o ser humano, encontrar-se não é uma tarefa das mais fáceis ou divertidas. Pelos caminhos da vida, todos cometem erros pelos quais se pode pagar por uma vida inteira. Por outro lado, para viver, todos têm que se relacionar através do espaço
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físico que os cerca. Assim, a vida social não é uma opção, mas sim uma imposição à qual o indivíduo deve se render. A história mostra que a expansão mundial levou a uma tensionada relação entre dominante e dominado em territórios de colonização. Porém, com a evolução do tempo, estes lugares tiveram seu povoamento e desenvolvimento, e as relações sociais vigentes, ainda que não se divida mais entre opressor e oprimido, possuem impactos oriundos dos resquícios destas situações. Ao longo da compreensão do mundo e de si, a personagem Lily Owens passa a conhecer a aceitar as situações, de modo que, no fim da obra ela se transforma em uma pessoa pacífica e coerente com o mundo ao seu redor, entendendo na forma pacífica de resistência maior força e marca da vitória do oprimido em meio opressor. A simbologia da vida e trabalho das abelhas é essencial para a compreensão desta personagem: Através da ternura e do amor, travestidos de trabalho intenso, a vida se faz em um meio onde a vida social é perfeitamente possível sem marcas de preconceitos ou modos de hierarquização de raça. Bem como também faz-se importante o momento da menina com o sagrado como forma de transformação e redenção. Referências ASHCROFT, B. Postcolonial transformation. London: Routledge, 2001. BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. GALIMBERTI, Umberto. Rastros do sagrado. O cristianismo e a dessacralização do sagrado. São Paulo: Paulus, 2003. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. KIDD, Sue Monk. The Secret Life of Bees/ by Sue Monk Kidd. New York: Penguin Group, 2008.
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LENTRICCHIA, F. McLAUGHLIN,T. Critical Terms for Literature Study. London: University of Chicago Press, 1990. OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Edições 70, 2005. SILVA, Alcione Carvalho da. O sagrado e o profano na autonomia do homem moderno. Porto Alegre: dissertação apresentada à Faculdade de Teologia, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 2013.
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MEMÓRIAS DA INFÂNCIA: LEITURA, LITERATURA E DESENHOS ANIMADOS. Fernando Teixeira Luiz ( FAPEPE) Introdução A presente pesquisa tem como principal objetivo problematizar as relações entre o educador e o desenho animado, sublinhando as implicações das formas imagéticas no processo de formação de leitores. Parte-se, assim, da tese de que, muitas vezes, o interesse pela narrativa tenha sido despertado não pelos livros introduzidos pela escola – via de regra respaldada no cânone - mas pelo contato diário com as séries de TV, independente de cobranças ou exigências do professor. Para tanto, a investigação, fundamentada no dialogismo bakhtiniano, pretende entrevistar um grupo de professores que estejam atuando no ensino fundamental – de 3ª a 8ª série. Almeja-se, desse modo, averiguar, a partir da história de vida dos educadores, os vínculos mantidos com o cinema de animação durante toda a infância e adolescência, e como lidam com as produções mais contemporâneas, de conduta polissêmica e emancipatória, marcadas pela metalinguagem, pela polifonia, pela incidência de protagonistas excêntricos, pelas múltiplas alusões à cultura pop e, em especial, pela intertextualidade. 1- O desenho animado, a literatura e o educador: três caminhos, um diálogo. O presente artigo pretende analisar, discutir e problematizar os impactos dos desenhos tradicionais e
contemporâneos no processo de formação de leitores.
Nesse sentido, entende-se por tradicional as séries mais antigas, veiculadas pela Disney, pela equipe Hanna-Barbera e pela Warner Bros Entertainment. Por contemporâneo, pontuamos toda a produção lançada no limiar do século XXI, desdobrando-se até os dias atuais. Trata-se de um momento bastante pertinente na história da animação, pois, a partir de então, as efabulações deixam a convencional estrutura baseada nos modelos da narrativa tradicional do século XVII – em especial os contos de fadas – e passam a
2912
empregar uma estética mais emancipatória1, explorando, com maior profundidade, os dilemas que assolam o homem moderno, como a solidão, o abandono, o preconceito e os impasses amorosos. Análogo à literatura, agregariam, com maior ênfase, a função humanizadora2 outrora debatida por Candido (1995), já que proporcionam ao interlocutor uma profícua experiência estética. Acoplado a isso, é oportuno lembrar que, nos anos 70, os quadrinhos, os poemas e as crônicas eram apontados pela crítica textual vigente como gêneros marginais. Na atualidade, é latente a hipótese de que os desenhos animados é quem ocupem esse posto. Em outras palavras, embora se consagrem nas salas de exibição de shoppings com expressivo índice de bilheteria, os docentes, ao que tudo indica, ainda relegam tal modalidade a segundo plano. De acordo com Citelli (1998, p. 17), os meios de comunicação de massa têm provocado uma série de alterações nos modos dos grupos humanos se relacionarem. Em maior ou menor grau, as formas de ver e de sentir a realidade sofrem influências das sequencias fragmentadas, da rapidez, da linearidade, da presença incisiva da imagem. Tal universo, marcado pela predominância do signo visual, ainda esbarra nos muros da escola, que prioriza a escolarização da narrativa em detrimento de outros gêneros. Frente a esse quadro, Citelli sugere a definição do desenho animado como linguagem não escolar, ou seja, aquele que não diz respeito diretamente ao discurso pedagógico, às convenções escolares, às práticas de ensino e aprendizagem. Revela-se, não obstante, um descompasso entre tal retórica e as linguagens não institucionais escolares: “Uma formalizando as ações na sala de aula, constituindo a natureza ‘única e diferenciada’ do discurso escolar; a outra pressionando ‘de fora’, existindo na fala dos alunos, tomando boa parte do seu tempo, circulando de forma subterrânea” (CITELLI, 1998, p. 21). O modelo emancipatório, segundo Zilberman (1985), insere os protagonistas em uma posição de autonomia com relação à instância superior dominadora, representada, na maioria das vezes, pelos adultos. É o que pode ser notado, por exemplo, em A casa monstro (2006), A família do futuro (2007) e, em especial, Paranorman (2012), entre outros. 2 De acordo com Candido (1955), a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser atendida, uma vez que sensibiliza, organiza e liberta o leitor de suas amarras, de suas mazelas, do caos que predomina em seu íntimo. Negar a fruição da literatura seria, assim, mutilar a própria humanidade inscrita no leitor. 1
2913
Faz-se, portanto, necessário uma investigação um pouco mais criteriosa que se aprofunde nessa questão, reiterando ou descartando a hipótese de que os meios de comunicação de massa firmam-se na escola como textos marginais. Para tanto, a pesquisa será delineada, dividida e organizada em duas etapas. Em princípio, com base nas discussões teóricas sobre leitura, literatura e imagem, far-se-á a entrevista com trinta e dois educadores, divididos entre quinze sujeitos em início de carreira (com menos de trinta anos) e dezessete sujeitos com ampla experiência no magistério (e, consequentemente, mais de trinta anos). A opção por esse número devese à necessidade de desenvolvimento de uma discussão mais ampla, atenta e sistematizada, já que as questões serão abertas e ancoradas à memória e à história de vida dos entrevistados. Um número maior inviabilizaria essa discussão e incorreria no perigo de uma análise superficial. Finalizando, teremos o processamento de dados e o debate em torno do material coletado à luz das diretrizes teóricas de apoio. Consiste, assim, no ensejo de discorrer, a partir do discurso do professor, a respeito do processo de recepção dos desenhos animados em sua respectiva biografia, bem como os subsídios oferecidos pela universidade para o trabalho dialógico com tal gênero e, eventualmente, a prática educativa em selecionar, didatizar e conduzir narrativas desse porte com crianças e adolescentes do Ensino Fundamental. 2-A pesquisa: 1-
Cite alguns livros que marcaram sua infância. G1- PROFESSORES INICIANTES: Respostas
Nº
%
Contos de fadas
4
27,0%
2
13,5%
O pequeno príncipe
2
13,5%
Alice no país das
1
6,5%
Histórias em quadrinhos (1943)
2914
maravilhas (1865) (1944)
A ilha perdida
1
6,5%
Série Harry Potter
1
6,5%
Série Vaga-Lume
1
6,5%
Não se lembra
3
20,0%
G2- PROFESSORES EXPERIENTES: Respostas
Nº
%
Caminho Suave
4
23,0%
A ilha perdida
2
12,0%
Meu pé de laranja lima (1968)
1
6,0%
Zezinho, o dono da porquinha preta (1981).
1
6,0%
Poliana (1913).
1
6,0%
A marca de uma lágrima (1985)
1
6,0%
Série O sítio do Picapau amarelo
1
6,0%
1
6,0%
1
6,0%
4
23,0%
(1948) (1944)
(1937)
Capitães da areia
Histórias em quadrinhos Não respondeu
A primeira questão debruça-se sobre os livros aclamados pelos dois grupos. As escolhas, por conseguinte, atestam, muitas vezes, o pouco contato com textos que se inscrevem no gênero literário, seja no que diz respeito ao cânone, seja no que toca a
2915
obras marginais, mas revestidas de valor estético. Nesse sentido, 27% dos leitores sublinham os contos de fadas – reiterando mais uma vez o pouco contato com os escritos de autores emblemáticos como Ziraldo, Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Pedro Bandeira, Sylvia Orthof, Ricardo Azevedo e Fernanda Lopes de Almeida. Por outro lado, revela-se como preocupante o fato de 20% dos leitores não se recordar de nenhum título, superando referências a obras como O Pequeno príncipe (13,5%), Alice no país das maravilhas (6,5%) ou a série Harry Potter (6,5%). O segundo núcleo de entrevistados, nessa linha, apresenta 23% de docentes que se recusou em responder a indagação – valor que se iguala e, em alguns casos, até supera determinados títulos. Ainda nessa perspectiva, vale mencionar que os docentes com maior tempo em sala de aula acabaram contemplando duas produções de ampla repercussão nos anos 60. A primeira, a cartilha Caminho Suave, de Branca Alves Lima, revelou-se como um fenômeno no mercado editorial na esfera da alfabetização. A segunda, o romance A ilha perdida, de Maria José Dupré, registrado como um dos livros de maior circulação entre as décadas de 40, 50, 60 e 70, sendo tributário de um conceito de literatura bastante diferente do que hoje empregamos. Na esteira d’A ilha perdida, outros títulos foram abordados, como Meu pé de laranja lima, de José Mauro Vasconcelos, Zezinho, o dono da porquinha preta, de Jair Vitória, Poliana, de Eleanor Porter, e A marca de uma lágrima, de Pedro Bandeira. Merece ainda destaque o gênero quadrinhos, aclamado pelas gerações contemporâneas, mas que, nos anos 70, figuravam ainda como produções marginais, lidas, na maioria das vezes, fora das unidades de ensino. 2-
Como esses livros eram lidos? G1- PROFESSORES INICIANTES: Respostas
Nº
%
Não se lembra
6
40,0%
Tarefas de casa
2
13,5%
Roda de leitura
2
13,5%
2916
Sem nenhuma atividade posterior
2
13,5%
1
6,5%
meio da com outros
1
6,5%
para
1
6,5%
Por meio do teatro Por comparação livros Leitura redação
G2- PROFESSORES EXPERIENTES:
escola
Respostas
Nº
%
Não se lembra
6
35,0%
Questionário
4
23,0%
Roda de leitura
3
18,0%
Prova
2
12,0%
Cópia
1
6,0%
1
6,0%
Leitura
fora
da
Um tópico que merece atenção está na metodologia empregada perante os textos em questão. Parte expressiva do primeiro grupo (40%) declara não se recordar das práticas metodológicas com leitura, o que permite inferir que, muitas vezes, a literatura infantil e juvenil adentra a sala de aula mediante atividades pouco significativas e distantes da perspectiva dialógica. Tanto é que, entre os que se “lembravam” de como as produções estéticas eram lidas no cotidiano escolar, elencavam-se as trabalho de casa (13,5%) como prática recorrente. A rigor, muitos confessavam que não havia nenhuma atividade posterior à leitura (13,5%), tendo em vista que os textos eram sugeridos como tarefa extraclasse, mas jamais integrando, de maneira efetiva, o conteúdo programático da disciplina. Propostas mais lúdicas, centradas na dramatização ou ancoradas à comparação de livros, pressupondo a dinâmica intertextual e interdiscursiva, são
2917
referenciadas com apenas 6,5% dos votos. O segundo grupo, não destoando dessa vertente, igualmente anunciou não se recordar dos modos de abordagem textual. Assim, enquanto 35% assumiam que o contato com a literatura, por intermédio da escola, foi pouco pertinente em sua trajetória, 23% apontavam os suplementos de leitura e a didatização feita pelos professores e manuais didáticos de Comunicação e Expressão. Não obstante, 12% pontuaram que a literatura era problematizada como pretexto para provas e exames, ao passo que 6% descreviam que os textos eram transcritos no caderno, fazendo, assim, uso da cópia como frequente recurso didático-pedagógico (SILVA e CARBONARI, 1998). 3-
Você assistia a desenhos animados? G1- PROFESSORES INICIANTES: Respostas
Nº
%
Sim
15
100,0%
Não
0
0
Às vezes
0
0
G2- PROFESSORES EXPERIENTES: Respostas
Nº
%
Sim
15
88,0%
Não
2
12,0%
Às vezes
0
0
No que tange, particularmente, à influência da mídia, é oportuno sublinhar a adesão em massa aos desenhos animados. 100% dos professores mais jovens aponta que, durante toda a infância e adolescência, teve bastante contato com as animações. O mesmo vale para o segundo grupo, o que outrossim pode ser verificado na expressiva porcentagem apresentada (88%). Em uma pesquisa coordenada por Nagamine (1998), 41,75% das crianças com menos de dez anos passavam mais de quatro horas em frente à televisão. Esses dados “demonstram que a linguagem televisiva preenche cada vez mais
2918
o dia a dia desses pequenos leitores” (SILVA, 1998, p.111). Tais informações podem ganhar contornos ainda mais nítidos quando entram em pauta as emissoras de maior impacto no universo infantil, como pode ser apurada nas duas tabelas abaixo: 4-
Desenhos animados: emissoras que predominam. G1- PROFESSORES INICIANTES: Respostas
Nº
%
Globo
13
40,0%
SBT
13
40,0%
Cultura
6
20,0%
G2- PROFESSORES EXPERIENTES: Respostas
Nº
%
Globo
15
72,0%
SBT
2
9,50%
Band
2
9,5%
Manchete
1
4,5%
Record
1
4,5%
Visualiza-se, aqui, como a Rede Globo se instaura como a principal mídia nos anos 60 e 70, tendo em vista que abarcavam 72% dos votos. A porcentagem se justifica em razão dos grandes títulos veiculados nesse contexto, rubricados, em maior grau, pela Disney e pela equipe Hanna-Barbera. Tal supremacia ficaria abalada nos anos 80 e 90, com o advento expressivo da concorrência, representadas aqui tanto pelo SBT quanto pela programação alternativa da TV Cultura. Assim, no cenário que abrange toda a década de 90, Globo e SBT dividem o mesmo posto (40%), com programações endereçadas ao público infantil e juvenil. A TV Cultura, por sua vez, foi também citada pelos docentes, abarcando 6% da preferência dos leitores, o que se deve aos desenhos educativos e ao êxito do seriado nacional Castelo Ratimbum.
2919
5-
Desenhos animados que marcaram a infância. G1- PROFESSORES INICIANTES: Respostas
Nº
%
Pica-pau (1942)
10
29,0%
8
23,5%
Caverna do Dragão
6
17,5%
As meninas superpoderosas (1998)
2
6,0%
O fantástico mundo de Bobby (1990)
2
6,0%
Dragon Ball (1986)
1
3,0%
Pokemon (1997)
1
3,0%
1
3,0%
O Máskara (1995)
1
3,0%
Homem-Aranha
1
3,0%
Turma da Mônica
1
3,0%
Ursinhos carinhosos (1981) (1983)
Os cavaleiros do Zodíaco (1986)
(1967) (2004)
G2- PROFESSORES EXPERIENTES:
(1983)
Respostas
Nº
%
Os Smurfs (1982)
8
16,0%
Zé Colmeia (1958)
6
12,0%
He-Man (1983)
5
10,0%
Caverna do Dragão
5
10,0%
2920
She-Ra (1985)
4
8,0%
Ursinhos carinhosos (1981)
4
8,0%
Os
3
6,0%
Pica-pau (1942)
3
6,0%
Popeye (1933)
2
4,0%
2
4,0%
Os Jetsons (1962)
2
4,0%
A turma da pesada
1
2,0%
Scooby-Doo (1969)
1
2,0%
A corrida maluca
1
2,0%
de
1
2,0%
A pantera cor-derosa (1964)
1
2,0%
A família Buscapé
1
2,0%
(1960)
Flintstones
O urso do cabelo duro (1971)
(1987)
(1968)
Os apuros Penélope (1969)
(1964)
Entre os desenhos animados de maior impacto nos dois grupos de entrevistados, observa-se que as escolhas entremostram os títulos de expressivo sucesso em distintos contextos. O núcleo de docentes, cuja infância se encontra nos anos 60, 70 e 80, aponta a série Os Smurfs (16,0%), seguido pelas narrativas de aventura que mesclam elementos futuristas ao universo medieval: He-Man (10,0%), Caverna do Dragão (10,0%) e Shera (8%). A indicação dos Smurfs, possivelmente, deve-se à adaptação para o cinema veiculada em 2012, e que preservava muitos dos duendes azuis da animação transmitida pelo programa Balão Mágico. He-Man e She-Ra, bem como a série Caverna do Dragão, exploram, com base no traço figurativista, o cotidiano de jovens que integram
2921
um mundo povoado por monstros e bestas. Em sintonia com o que salienta Souza (1992), são ficções que se aproximam bastante da estrutura dos contos de fadas, tendo em vista que tematizam conflitos entre heróis modelares e seus respectivos antagonistas. Cumpre ainda destacar que o desenho Zé Colmeia apresenta um expressivo índice de aceitação (12,0%), seguindo como um dos principais ícones criados pela dupla HannaBarbera, representando o que Coelho (1989) problematiza como fábula moderna. Tal fábula se encontraria também nos núcleos protagonizados por Mickey Mouse, dos estúdios Disney, e Pernalonga, da Warnner. Contudo, a acentuada referência ao urso de traço simples e caricato demonstra a pertinência da Hanna-Barbera para uma geração de leitores. Com o grupo de professores mais jovens, Pica-pau está entre os mais vistos (29,0%). Nessa linha, é importante asseverar que o sucesso que o pássaro astucioso conquistou entre as gerações mais jovens deve-se ao diferencial proposto pelo desenho: a ascensão do anti-herói. Em porcentagens inferiores, Os ursinhos carinhosos (23,5%), Caverna do dragão (17,5%) e As meninas superpoderosas (6,0%) dão continuidade à lista, recorrendo a heróis mais convencionais. Nessa ordem, ressaltam-se ainda outras produções bastante previsíveis, como Dragon Ball (3,0%), Pokemon (3,0%), Cavaleiros do Zodíaco (3,0%), O Máskara (3,0%) e Homem-Aranha (3,0%). Merece destaque, nesse rol, O fantástico mundo de Bobby (6,0%), intercalando um protagonista diferente, criativo e inteligente, a explorar o caráter denotativo e conotativo da linguagem. Outro título que gostaríamos de sublinhar é a série Turma da Mônica (3,0%), recentemente adaptada para o gênero animação e que, embora revele pouca preferência, destaca-se como único desenho brasileiro citado. Explorando a mesma dinâmica dos quadrinhos, o desenho se debruça sobre a rotina de quatro garotos – Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali – edificando aventuras a partir do ponto de vista da criança. Enfim... A pesquisa até aqui apresentada pretende discorrer acerca da recepção de textos infantis e de desenhos animados a partir do relato de duas gerações específicas de leitores. O primeiro grupo de entrevistados, composto por jovens com faixa etária entre 25 e 29 anos, conhecia basicamente os contos de fadas, ao passo que o segundo grupo,
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com idade entre 30 e 45 anos, firmou-se como leitor mediante obras bastante conformadoras, cabendo aqui citar a série Vaga-Lume. O método de abordagem textual não se diferenciava, consideravelmente, nos dois contextos, uma vez que ainda se distanciavam de práticas lúdicas e dialógicas. Paralelamente, ao retomarem a infância, as referências às animações são mais incisivas. As produções veiculadas pelos grandes estúdios, como a Disney e a Hanna-Barbera, eram assimiladas fora da escola, e constituíam uma das principais formas de entretenimento para as diversas gerações de leitores. Referências: BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997. BAMBERGER, R. Como Incentivar o Hábito de Leitura. São Paulo: Ática, 1987. CANDIDO, A. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. CHIAPPINI, L. Gramática e literatura: desencontros e esperanças. GERALDI, J. W. O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1999. CITELLI, A. Aprender e ensinar com textos não escolares. São Paulo: Cortez, 1998. NAGAMINI, E. Televisão, publicidade e escola. In: CITELLI, A. Aprender e ensinar com textos não escolares. São Paulo: Cortez, 1998. POUND, E. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 1970. SILVA, A. C. CARBONARI, R. Cópia e leitura oral: estratégias para ensinar? In: CHIAPPINI, L. Aprender e ensinar com textos didáticos e paradidáticos. São Paulo: Cortez, 1998. SILVA, S. T. A. Desenho animado e educação. In CITELLI, A. Outras linguagens na escola: publicidade, cinema e TV, rádio, jogos, informática. São Paulo: Cortez, 2004. ZILBERMAN, R.. Estética da Recepção e História da Literatura. São Paulo: Ática, 1989.
2923
EROTISMO NOS VAMPIROS DE A. TOLSTÓI E M. TEIXEIRA GOMES Fernando Vidal Variani (UFPR)
A princípio, consideramos que colocar no título a proposta de falar sobre erotismo em vampiros pareceria redundante. O caráter erótico parece ter estado sempre ligado a essa figura de longa tradição nas mais diversas (e distantes) manifestações do imaginário e da cultura humana. No entanto, na introdução à antologia Contos Clássicos de Vampiro, em que Alexander M. Da Silva faz uma breve porém consistente história do termo e suas manifestações, desde as aparições de sugadores de sangue em antigas biografias gregas até os filmes contemporâneos, o estudioso aponta Goethe como aquele que introduziu a “ênfase no elemento sexual do vampiro”, no poema A Noiva de Corinto (1797). Nas palavras de Alexander: “Filinion (protagonista do poema) retorna do mundo dos mortos para desfrutar dos prazeres sexuais que não teve em vida. Ela se dirige à pousada de seus pais e seduz o também jovem Machates, que se encontra hospedado local.” (SILVA, 2012, p.25). A relação da filha do hospedeiro com o estrangeiro hóspede será essencial também para o desenvolvimento da Família do Vurdalak de Aleskei Tolstói. Poderíamos, contudo, pensar em personagens citadas pelo próprio autor da introdução, figuras milenares como Lilith e Lamia, que após contrariarem os deuses, têm seus filhos roubados por eles e tornam-se mulheres que tiram a vida daqueles que seduzem. Com essa rápida reflexão, pretendemos apenas apontar como a figura do vampiro, bem como dos elementos e estruturas narrativas que giram ao seu redor, não deve ser considerado apenas um monstro criado com a intenção única de entreter e assustar em histórias que carecem de maiores possibilidades de reflexão. Pelo contrário, seus elementos, nos mais distantes e distintos agrupamentos culturais de narrativas, parecem estar ligados a temas centrais da humanidade como os encontramos, por exemplo, nas considerações de Freud em Totem e Tabu (1913) e Georges Bataille em O Erotismo (1957), mas também naquela que é uma das mais emblemáticas características da literatura romântica do século XIX, a relação entre amor, sensualidade e morte.
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Victor Hugo, um dos grandes mentores do Romantismo francês, já afirmava no famoso prefácio a Cromwell, a necessidade de falar não apenas do sublime, mas também do grotesco, talvez assim dando início a algo que pensamos como uma dualidade encontrada principalmente nas figuras femininas de contos fantásticos, e que a utilização da figura do vampiro por autores do período talvez sirva como exemplo significativo. Ainda que o mestre sugerisse que o grotesco funcionasse principalmente para acentuar a dimensão do sublime, a lição aprendida por autores considerados românticos e mesmo, posteriormente, certa influência renegada entre o que convencionou-se chamar de naturalistas, aponta para uma gradual prevalência do grotesco, do humano em sua animalidade violenta e brutal, em que a sexualidade e seu caráter transgressor também assumem papel de destaque. Dentre os contos que analisaremos, A Família do Vurdalak, de Aleskei Tolstói, escrito em 1839 e publicado pela primeira vez em 1884, talvez seja a que melhor expressa essa dualidade, estabelecendo o “tornar-se vampiro” de sua personagem um marco divisório entre uma representação de pureza e ingenuidade que torna-se sensual e destrutiva no desenvolvimento da personagem feminina Sdenka, explicitando assim dois polos entre os quais muitas vezes oscila esse tipo de personagem na literatura romântica. É esse tipo de jogo que procuraremos delinear nas duas narrativas de que propomos tratar. Porém, para mais conscientemente tratar de como ele se instaura em ambos os contos, é interessante realizar um movimento anterior à análise dessas representações, e fazer algumas observações sobre o que se poderia chamar de “representação” do representador, ou seja, daquele que, no plano da narrativa, será o construtor da representação feminina de que falamos. Portanto, faremos uma breve análise em dois tempos de cada um dos contos, observando num primeiro momento a apresentação da voz narrativa e, em seguida, o modo como ela se utiliza do imaginário romântico e do elemento vampiresco na construção de suas personagens femininas. Em A Família do Vurdalak temos um recurso típico das narrativas fantásticas românticas, em que, numa roda de conversas e histórias assustadoras e “picantes”, um personagem toma a palavra e conta uma aventura ocorrida há tempos, num lugar distante do ambiente considerado civilizado onde se dão as rodas de conversas e
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histórias. Assim, há uma primeira instância narrativa que inicia o texto, fala da época em que reuniu-se em Viena com “o que havia de mais distinto em matéria de erudições europeias, espíritos de sociedades brilhantes e grandes talentos diplomáticos” (TOLSTÓI, 2011, p.26). É nesse ambiente aristocrático, onde a despeito da situação política levemente insinuada (mas onde era proibido falar de política) essa “alegre sociedade” passava momentos de folguedo na casa de uma princesa austríaca, que a primeira voz narrativa se apresenta. Mas o faz apenas para dar voz a uma segunda voz, que se tornará a principal, o marquês de Urfé, narrador da história de vampiros que surgirá dentro do contexto delineado por aquele primeiro narrador. Vejamos como ocorre esse movimento: Nossas manhãs eram dedicadas aos passeios; jantávamos todos juntos, ora no castelo, ora nos arredores, e à noite, sentados perto de um bom fogo de lareira, divertíamo-nos conversando e contanto histórias. Era terminantemente proibido falar de política. Todo mundo estava farto do assunto, e nosso relatos eram emprestados ora das lendas dos nossos países respectivos, ora das nossas próprias lembranças. Uma noite, uma vez que cada um contara alguma coisa e que nossos espíritos se encontravam naquele estado de tensão que a obscuridade e o silêncio, de ordinário, só fazem aumentar, o marquês de Urfé, velho emigrado de quem todos nós gostávamos por causa de sua alegria tão juvenil e pela maneira picante como falava de suas velhas aventuras, aproveitou um momento de silêncio e tomou a palavra: (TOLSTÓI, 2011, p.26)
Salientamos, portanto, alguns pontos no início da narrativa: o contexto de “folguedo” onde ela surge, a presença de uma “narrativa dentro da narrativa”, e o caráter “jovial e picante” do velho narrador que toma a palavra, de modo que as narrativas obscuras, emprestadas ora das lendas dos países dos contadores de histórias, ora de suas próprias lembranças, parecem lidar não apenas com temas obscuros e assustadores, mas também com temas “picantes”, que despertam o interesse dos ouvintes, a quem o marquês de Urfé se dirige como “senhoras”. É nessa moldura que acompanharemos a história contada por ele, na época jovem oficial que, após uma suposta desilusão amorosa com certa “duquesa de Grammont”, parte em uma “missão diplomática junto ao principado da Moldávia” (TOLSTÓI, 2011, p.27). Ao despedir-se da duquesa, ela entrega a ele como presente um pingente em forma de pequena cruz que
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pertencera à sua família. Em meio ao relato da viagem, este alegre narrador brinca com a possibilidade de fornecer uma minuciosa descrição dos lugares e costumes dos povos que o hospedaram, afirmando que não se deterá em detalhes enfadonhos, mas apresenta a crença nos vurdalaks, fenômeno vampírico ocorrido quando um membro da família morre e, tornado vampiro, retorna para transformar a família toda1. É o que acontecerá com a família que o hospeda. Logo ao chegar à casa, é informado pelo filho mais velho de que o pai Gorcha partira com a intenção de capturar um bandido que assolava a região e deixara a advertência de que, caso não retornasse em dez dias, deveriam mandar rezar em seu nome e considerá-lo morto. Caso retornasse após os dez dias, deveriam cravarlhe uma estaca no peito, pois teria se tornado um vurdalak. Justo o décimo dia é aquele em que o marquês de Urfé encontra-se no local, e o velho Gorcha retorna na hora exata em que cumpriria os dez dias fora de casa. Instaurase então uma atmosfera de suspense, e duas linhas principais desenvolvem-se na narrativa. De um lado, a dúvida quanto à transformação ou não do velho em vampiro e, de outro, o desenvolvimento da relação entre Urfé e Sdenka, a única filha, por quem o narrador havia se afeiçoado. O hóspede tem várias vezes a impressão de ouvir a voz do velho Gorcha durante a noite, e de ver seu rosto colado à janela, eventos ligados ao desaparecimento de um de seus netos. Numa dessas noites, quando decide realizar uma caminhada noturna, ouve, vindo do quarto de Sdenka, uma voz doce que canta uma antiga balada sobre um amor que sobrevive à própria morte. Tomado de um impulso tipicamente romântico (usado de forma bastante irônica, é verdade, assim como todos os clichés românticos na narrativa), Urfé adentra o quarto de Sdenka e tenta convencê-la a ficar com ele, nem que seja “por uma hora”. É notável o modo como todos os recursos utilizados por ele para convencê-la nesse momento (o irmão dormindo, o fato de ninguém estar ouvindo, de tratar-se de apenas uma hora, além de frases de efeito como “o meu sangue é teu”, entre outras) serão retomados posteriormente, quando Sdenka já estiver transformada, no momento em que os repetirá exatamente como ouvira dele, tornando-se ela a ameaça que O narrador faz até mesmo menção a textos realmente existentes como o do abade Augustin Calmet, entre outros admiravelmente rastreados na já mencionada introdução de Alexander da Silva para o livro Contos Clássicos de Vampiro da editora Hedra.
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atormenta o protagonista. Uma análise mais acurada desses trechos poderia ser relevante para repensarmos as relações de gênero e a representação da sensualidade sob as luzes (ou as sombras) desta história de horror. No momento, contudo, trataremos especificamente do momento em que Urfé percebe a transformação de Sdenka e de como ela serve de marco divisório entre duas representações bastante distintas. A cena do quarto de Sdenka é interrompida pelo irmão mais velho Georges, que desde a viagem e especialmente desde o retorno misterioso do pai, parece ter assumido a verdadeira posição paterna nos domínios da casa e da família. É ele quem interrompe a sedução de Sdenka por Urfé e ordena ao hóspede que parta ao amanhecer do dia seguinte, embora fique difícil discernir a verdadeira motivação de Georges, se a certeza de que o pai tornara-se vampiro, ou o flagrante do hóspede com a irmã. Urfé obedece à ordem de Georges e vai até a cidade onde tinha negócios a resolver, permanece lá durante vários meses, nos quais afirma ter esquecido completamente a jovem Sdenka, entregando-se à coqueteria das mulheres citadinas (interessante notar a volubilidade com que esse narrador se apaixona “perdidamente” por várias mulheres e as esquece rapidamente ao longo da narrativa). Porém, na viagem de retorno, reconhece a paisagem e resolve hospedar-se novamente na mesma vila para rever Sdenka. Um velho padre o aconselha a não fazer isso, pois a cidade teria sido tomada por vurdalaks. Urfé não dá ouvidos e vai até a casa do velho Gorcha, onde encontra apenas Sdenka, que pede que vá embora. Algo nela está mudado. Urfé se deixa ficar mesmo sob os constantes alertas da agora misteriosa Sdenka. Eis um dos diálogos onde se pode ver mais claramente a dualidade existente em Sdenka a partir da transformação e, finalmente, a sensualidade misteriosa que agora emana dela: - Mas, Sdenka, qual é então esse perigo que me ameaça? Não pode me dar uma hora, não mais do que uma hora para conversar com você? Sdenka estremeceu e toda a sua pessoa sofreu uma estranha mudança. - Está bem – disse ela -, uma hora, uma hora, assim como quando eu cantava a balada do velho rei e você entrou no quarto? É isso que quer dizer? Ora, está bem, eu lhe dou uma hora! Não – disse ela, voltando atrás – vá embora. Vá embora o mais depressa que puder, fuja!... Mas fuja o quanto antes! Uma energia selvagem animava sua fisionomia. Eu não entendia o motivo de ela falar assim, mas estava tão bonita que resolvi ficar, apesar de seus conselhos. Cedendo enfim aos meus pedidos, ela sentou-se perto de mim, conversou sobre os tempos
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passados e me confessou enrubescida que me amara desde o dia de minha chegada. Enquanto isso, pouco a pouco, comecei a perceber uma grande mudança em Sdenka. Sua modéstia de outrora dera lugar a um estranho abandono negligente. Seu olhar, antes tão tímido, tinha algo de atrevido. Enfim, percebi surpreso que em sua maneira de ser comigo ela estava longe da modéstia que um dia a fizera diferente. (TOLSTÓI, 2011, p.45-46)
É justamente esse “estranho abandono negligente”, essa “maneira de ser” que se distancia da modéstia anterior que constituem a primeira percepção da “grande mudança em Sdenka”. Tudo se inicia quando Urfé pede, novamente, apenas uma hora, repetindo parte do discurso de sedução que direcionara a ela antes de partir. Sdenka, tornada vampira, ativa essa lembrança e a volta contra ele, seduzindo-o do mesmo modo. No trecho selecionado é possível ainda perceber um embate entra a antiga Sdenka, que pede que o amado parta, e a nova Sdenka, sedutora, que o faz ficar. É importante notar também o modo como, embora a nova postura possa assemelhar-se à das coquetes citadinas (o ar zombeteiro, o “abandono negligente”, a capacidade de seduzir), Urfé aponta para algo como “uma energia selvagem” por trás da nova atitude de Sdenka. E, como se por trás dessa nova atitude sedutora, negligente e zombeteira, à qual nos momentos seguintes Urfé deixa-se entregar, estivesse o rosto selvagem da morte. É o crucifixo dado pela duquesa de Grammont que “acorda” o protagonista para a verdadeira nova natureza de Sdenka: O forte ímpeto com que abracei Sdenka fez entrar em meu peito uma das pontas da cruz que acabaram de ver e que a duquesa de Grammont me dera quando parti. A dor aguda que senti foi como um raio de luz que me atravessou de um lado a outro. Olhei Sdenka e vi que seus traços, apesar de sempre belos, estavam contraídos pela morte, que seus olhos não viam e que seu sorriso era uma convulsão estampada pela agonia sobre o rosto de um cadáver. Ao mesmo tempo senti no quarto aquele cheiro nauseabundo que exalam os jazigos mal fechados. A verdade terrível se mostrou diante de mim, e me lembrei muito tarde dos conselhos do eremita. (TOLSTÓI, 2011, p.48)
A aparência, o cheiro e a verdade da morte surgem como uma súbita revelação de uma verdade terrível. Sem dúvidas a verdade anunciada pelo eremita que falara da cidade tomada por vurdulaks, mas talvez uma verdade mais profunda, justamente aquela que aproxima, na visão de Bataille, o amor, a sensualidade e a morte. Por ora, cabe-nos
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apontar apenas como a transformação de fato alterou o comportamento de Sdenka, de modo que a recebemos polarizada, inclusive com o registro de um embate entre os dois polos, pela percepção de Urfé. Após essa cena, em que o protagonista precisa ainda dar continuidade à cena amorosa com os rostos do velho Gorcha e de Georges colados à janela do quarto, Urfé consegue finalmente escapar. Num assombro final, fugindo a cavalo pelas florestas desconhecidas da Moldávia, o jovem francês ouve ainda a voz doce de Sdenka, repetindo fragmentos de seu discurso sedutor, e vê uma profusão de assombrações desenvolvendo-se pelo caminho por onde galopa. Assim termina a história, acenando para um possível fim moralizante sobre o jovem citadino que seduz irresponsavelmente as mocinhas do campo (tema também recorrente na literatura romântica do XIX). Mas é o próprio Urfé quem, em suas palavras finais, problematiza essa possibilidade: Acabou assim, senhoras, um namorico que deveria ter me curado para sempre da vontade de procurar outros. Algumas contemporâneas de suas avós poderiam lhes contar se me tornei mais ajuizado com o tempo. De todo modo, estremeço ainda à ideia de que, se tivesse sucumbido a meus inimigos, teria me transformado também em vampiro. Mas o céu não permitiu que as coisas chegassem a esse ponto, e, longe de ter sede do sangue das senhoras, só lhes peço, velho como estou, que aceitem que eu derrame meu sangue a seu serviço! (TOLSTÓI, 2011, p.49-50)
Esse tom que brinca com a própria narrativa e com a possibilidade de um fim moralizante, assim como as relações entre uma atitude ingênua no campo e os jogos de sedução dissimulada nos círculos citadinos (aos quais o próprio relato está sendo apresentado), assim como minúcias como a representação da “boa e honesta” família do velho Gorcha, onde as mulheres dos filhos e as crianças não possuem nome, por exemplo, geram múltiplas possibilidades. Modos diferentes de adentrar o texto, de estabelecer diferentes conexões e possibilitar novas reflexões a partir de um conto pouco conhecido mas que, além de figurar um ótimo exemplar para estudos acerca dos recursos do fantástico (efeito de recuo, sonho, narrativa encaixada, teor erótico, hesitação, etc), pode suscitar importantes reflexões em torno de uma série de outras importantes questões literárias.
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Questões semelhantes podem ser apontadas no conto Sede de Sangue, publicado pelo português Manuel Teixeira Gomes em seu livro Gente Singular, de 1909. Não é nossa intenção um estudo de comparação como se poderia esperar de um artigo que se propõe a tratar de dois contos, especialmente quando produzidos em regiões geográficas e períodos temporais consideravelmente distantes. Nossa intenção é apontar alguns elementos, algumas possíveis linhas que atravessam ambos os textos, especialmente na utilização da figura do vampiro e sua relação com a representação sensualizada de personagens femininas. Conforme mencionado anteriormente, esse movimento nos parece indissociável de uma breve reflexão acerca da voz narrativa, do tipo de narrador que caracterizará as figuras que motivaram este trabalho. Diferente da “roda de histórias” de A Família do Vurdalak é o início de Sede de Sangue. Aqui não temos uma voz que dá voz a outra que relatará, por sua vez, uma aventura. O narrador de Sede de Sangue não tem nome, e embora as primeiras linhas do conto façam referência ao Trovas (personagem especialmente interessante para o narrador), há uma espécie de apresentação de si mesmo nas primeiras frases e parágrafos: Alegrei-me deveras quando me constou que o sr. Trovas alugara casa perto do meu escritório, resolvido a pôr ali venda e a continuar na exploração de todos os ramos do seu comércio. Sempre de emboscada, espreitando a vida alheia, e sempre na vã expectativa de algum acontecimento que me galvanizasse e me arrancasse à modorra ambiente, bacorejava-me que da vizinhança do sr. Trovas algo enfim de emocionante me adviria. Neste vilório marítico onde reformado em capitão, após uma valente campanha de reumatismos em Pangrim – complicada de vírus de baiadeira, cujas dolorosas recordações persistem – definha-se de inacção e tédio. (GOMES, 1974, p.257)
O sr. Trovas faz o papel de personagem misterioso, recém-chegado à cidade, que desperta o interesse dos observadores. Mas é o observador aqui, que mais nos interessa. Assim como no conto de A. Tolstói, a narrativa surge de um contexto de folguedo, como algo para tirar da “modorra”, no caso de Sede de Sangue, até mesmo da “inação e do tédio”. Nessa relação, por um lado tínhamos Urfé, dirigindo-se constantemente às “senhoras” e, por extensão, a nós, leitores. O narrador de Teixeira Gomes, por outro
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lado, declara-se desde as primeiras linhas um observador, talvez se possa dizer mesmo um enxerido, “sempre de emboscada”, “espreitando a vida alheia”, na esperança de algo emocionante. Nesse ponto é possível pensarmos novamente numa forte aproximação com o leitor. Quando abrimos esses dois contos de horror é possível que seja algo muito próximo desse espírito o que nos impele, um desejo de emoção, de algo diferente, talvez até aterrorizante e o aterrorizante costuma trazer também algo de sensual. O narrador de Sede de Sangue em vários momentos reforça essa característica sua, até mesmo relacionando-a com seu “refúgio intelectual”, um suposto escritório que utiliza para observar o misterioso vizinho: Da minha casa, ou, por outra, da casa que me servia de escritório e onde passava os dias e boa parte das noites – pretextando o necessário isolamento a que me forçava a composição das minhas correspondências a “Actualidade” eu obtivera da minha mulher, em cuja dependência permaneço, licença para conservar esse intelectual refúgio – do meu escritório, pois, via-se o que ia por casa do Trovas em condições comparáveis às de um espectador, oculto na sombra do seu camarote, a quem nada do que se passa no palco escapa, escusado será ajuntar com que vigilante cuidado os observei desde que o tive ali à mão... (GOMES, 1974, p.261)
Mas o que afinal havia para ser observado na casa do Trovas? O Trovas é, primeiramente, comerciante, o que por si só daria um bom modo de adentrar a personagem a partir do modo como esse tipo de figura é geralmente visto na literatura portuguesa do período. Sua descrição física é, a exemplo de certos personagens de Sade, a de um velho feio e lascivo, que “de perto incitava a invencíveis desconfianças”. Além disso, “quanto a sentimentos piedosos, se recolhia as órfãs desvalidas era, certamente, para as industriar em artes perversas” (GOMES, 1974, p.258). Eis o tipo de personagem que, para o nosso narrador, “inspira interesse e curiosidade”, pois “por si só era já uma bela figura para estudar sob vários pontos de vista, avultando o ético e o estético” (GOMES, 1974, p.258). A princípio, Trovas e sua esposa, Balbina Catada (que em outra oportunidade mereceria também um estudo mais detido), habitam a vila como todos, abrem uma venda e alugam uma casa na praia, onde apenas um dos integrantes do casal por vez
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costuma reunir-se com grande quantidade de “primos” marinheiros para festas dispendiosas que acabam por levá-los à quase falência. É nesse processo que a venda do Trovas passa a funcionar como uma espécie de taverna e, posteriormente, de prostíbulo. Chegam mulheres de fora que atraem o interesse da população local, como Sancha e Dorotéia. Tudo isso é observado de longe, mas é a terceira a chegar que atrairá verdadeiramente o interesse do narrador, e de nosso estudo: Mas um dia, pela porta da venda entreaberta, na penumbra do interior, divisei, sentada junto ao balcão, no lugar conspícuo e cómodo que o Trovas ordinariamente ocupava, uma criatura de todo em todo extraordinária: mulher ideal, diria se tal epíteto jamais pudesse transpor, com justa aplicação, o limiar do Trovas. Era uma rapariga de aparência franzina que, airosa, de perna cruzada, arcando divinamente o braço nu, fumava cigarros e falava espanhol. Ao expelir o fumo do cigarro em ténues baforadas toda se encostava para trás e o seio entumecia-se-lhe prodigiosamente debaixo do cabelo, que lhe caía sobre os ombros em lustrosas ondas negras, o rosto emergia oval, puro, mate, iluminado por dois olhos babilónicos, imensos olhos ardentes que fascinavam... (GOMES, 1974, p.265, itálicos nossos)
Nessa curiosa descrição, indubitavelmente sensual, o epíteto mulher ideal é o primeiro que o narrador tem vontade de enunciar diante daquela “criatura de todo em todo extraordinária”. Mas logo se convence de que essa caracterização seria impossível no estabelecimento do Trovas. O adjetivo “puro” surge logo adiante, na descrição de um rosto com olhos “babilônicos” e “ardentes”, de modo que os polos de caracterização de que falamos anteriormente aqui aparecem embaralhados. O predomínio, no entanto, ainda é o da sensualidade “largada” e toda a descrição do posicionamento do corpo, de pernas cruzadas, o braço nu, as baforadas de cigarro, o modo como se encosta para trás, realçando os seios, parece aproximar-se do que Urfé chamaria de “abandono negligente” em A Família do Vurdalak. A isso são somados interessantes trechos seguintes em que ela é chamada de cigana, de moura, de castelhana, todos ideais de sensualidade em certa tradição do imaginário português do século XIX, especialmente na literatura fantástica. Quando percebe estar sendo observada, envia um beijo ao nosso narrador, que sente um enorme impulso de abrir a janela “para que a sua imagem pudesse mais facilmente entrar-me por casa dentro” (GOMES, 1974, p.266), evocando assim uma cena emblemática das
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histórias de vampiro. Diz ainda, ao contemplá-la, que “o sangue parecia correr com a abundância do sumo na polpa de certos frutos” (GOMES, 1974, p.265). Ou seja, os temas do sangue, do vampiro, do estrangeiro, todos esses elementos são acionados formando uma constelação imaginária de ameaça sedutora. Na noite seguinte, durante a observação, ocorre uma cena em que predominam diversos elementos do fantástico, como o fato de ser “embalada” por um piano velho e quebrado que toca canções eslavas em vez dos clássicos alemães, um princípio de sonho e a percepção de que tudo, no momento, parecia “fazer-se por música”. De sua janela, o narrador vê o gigante bater à porta do Trovas, que abre-se para revelar “o corpo airoso da cigana, com a brasa do cigarro acesa à altura dos lábios” (GOMES, 1974, p.273). Ela toca com a mão “o peito do monstro” e exibe um “perfil risonho” para a venda, pedindo que fechem a porta (GOMES, 1974, p.273). Então passa a segui-lo para fora da vila. O narrador prontamente os segue também, sem ser visto, e após um momento de suspense em que a perseguição cautelosa é descrita, o casal desaparece num declive em que, próximo à praia, predominam o cheiro de algas e do mar. Ao debruçar-se, diferente do que ocorre no conto de Tolstói, nos deparamos com o momento exato do ato de suposta vampirização, onde prevalecem elementos de sensualidade e violência: Debrucei-me. Os dois corpos estorciam-se um sobre o outro e percebia-se claramente que o monstro beijava com fúria a cigana e, sem lhe despegar os lábios do pescoço, como que lhe sorvia a vida a grandes haustos... Mas pouco a pouco o silêncio fez-se, absoluto; nem a respiração se lhes distinguia: dir-se-ia que na crise do gozo os dois haviam desmaiado... (GOMES, 1974, p.275)
Muitas outras questões poderiam ser desenvolvidas a partir dos temas abordados. Porém, nos propusemos a ver especificamente a questão do elemento vampiresco na representação da sensualidade em duas personagens femininas, e na ligação constante dessa sensualidade com a morte. Para isso, consideramos válida também uma breve análise do tipo de narrador instaurado na narrativa, ampliando as possibilidades de reflexão sobre “de onde” e “como” essas representações são construídas.
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Referências BATAILLE, Georges. O Erotismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. FREUD, Sigmund. Totem e tabu. In: Obras completas, volume II: totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 2012. GOMES, Manuel Teixeira. Sede de sangue. In: Antologia do conto fantástico português. Org. MELLO, Fernando Ribeiro de. Lisboa: Ed. Afrodite, 1974. HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002. SILVA, Alexander Meireles da. Introdução. In: Contos clássicos de vampiro. Org. COSTA, Bruno. São Paulo: Hedra, 2012. P. 9-41. TOLSTÓI. Aleksei. A família do vurdalak. In: Contos de horror do século XIX. Org. MANGUEL, Alberto. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 25-50.
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MEMÓRIAS ENCENADAS PELA ARMAZÉM COMPANHIA DE TEATRO Francieli Oliveira de Paiva (UEL)
Este projeto de Iniciação científica faz parte das atividades de pesquisa sobre dramaturgia e teatro londrinenses, em desenvolvimento na Universidade Estadual de Londrina sob orientação da Profa. Dra. Sonia Pascolati. Tendo como objeto de estudo as peças Inveja dos anjos e Pequenos milagres produzidas por Maurício Arruda Mendonça em parceria com Paulo de Moraes, o presente trabalho discutirá alguns dos elementos em comum entre ambas as peças, focando como o presente dos personagens é assolado pelo passado e como o ser humano é composto por memórias. Colocando
memórias
em
cena,
esses
textos/espetáculos
levam
o
leitor/espectador a perceber os limites entre o ilusório e o real na ação da peça, o que é feito por meio da mescla entre a representação de fatos cotidianos, sem perder de vista o lirismo e a linguagem teatral peculiar da Armazém Companhia de Teatro. Ambas as peças foram idealizadas com o mesmo propósito: resgatar memórias. Tal tema se repete, também, em outras produções, constituindo uma identidade da companhia. A peça Pequenos milagres foi encenada pelo Grupo Galpão e criada a partir de cartas enviadas durante a campanha “Conte sua história”; das quase 600 histórias recebidas, quatro foram selecionadas para inspirar o espetáculo. Já Inveja dos anjos foi encenada pela companhia Armazém que, em 2002, lançou o “Projeto Memória” o qual inclui, além de Inveja dos anjos, as peças: Da arte de subir em telhados (2001/2002); Pessoas invisíveis (2002/2003); Alice através do espelho (2004) e Antes da toda coisa começar (2010). Falar sobre memória é falar sobre uma passagem de tempo, é diminuir a distância entre o que se vive e aquilo que já se foi, porém esse revisitar o passado não é feito apenas pela reconstrução das lembranças na mente de forma imagética, mas aqui são concretizadas e trazidas materialmente para o presente por meio da cena teatral. Tanto em Inveja dos anjos como em Pequenos milagres os personagens são presos às
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suas memórias: na primeira peça, o passado dos personagens é devolvido metaforicamente por meio de um trem, que faz com que as memórias “vivam” novamente e se unam com as dos outros personagens. Na segunda peça, a temática continua em evidência, porém é refletida de outra forma, nessa conhecemos uma síntese de dramas cotidianos de personagens pertencentes a quatro histórias distintas e, como em Inveja dos anjos, ainda enfatizando a conservação da memória. É partindo desses pressupostos e das bases teóricas de Franco Junior (2003), sobre operadores de leitura e Halbwachs (1991) em suas discussões sobre memória coletiva que se desenvolve essa pesquisa de análise do texto dramático. O elemento memória está explicitamente presente tanto em Inveja dos anjos quanto em Pequenos milagres, mas apesar disso, há outros elementos compartilhados por ambas as peças que valem a pena serem ressaltados para que possamos compreender sua organização: 1) A fragmentação: Em ambas as peças a narrativa acontece de forma fragmentada. Em Inveja dos anjos existe mais de um fluxo temporal. Os personagens, ao mesmo tempo em que narram suas histórias particulares (tempo psicológico) nos transportando ao seu passado, não se desprendem da sucessão temporal “real” em que a trama se passa (tempo cronológico). Não há linearidade da narrativa, as histórias de cada personagem são apresentadas e se cruzam durante a peça. As ações acontecem, em alguns momentos, de forma simultânea, cenas diferentes, em tempos diferentes, porém dividindo o mesmo espaço cênico. Já em Pequenos milagres a fragmentação é bem demarcada pela estruturação do texto, pois existe uma “história moldura” que é recortada em quatro partes e, em cada uma dessas rupturas, desenrola-se uma narrativa diferente e independente das demais. 2) Narrações: Em ambas as peças nota-se a presença de narrações, apesar de o gênero teatral não precisar da mediação de narradores, utiliza-se esse recurso próprio de outros tipos de textos, havendo assim uma mistura de gêneros literários. 3) Espaço e memória: Em ambas as peças a composição dos espaços desempenha papel fundamental para a emergência da memória dos personagens: em Pequenos milagres, o espaço contribui para “remontar o passado”, principalmente nas histórias “Os pracinhas da FEB” e “O vestido”. Na primeira, temos uma personagem
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que recorda o passado, e ao fazê-lo, a história recordada é mimeticamente posta em cena, isto é, há uma duplicação da personagem: num espaço, ela está velha, contando o que se passou; no passado, ela está jovem e em campo de guerra, vivendo a situação narrada. Na segunda, um vestido que faz parte do sonho de uma garota a acompanha durante toda a vida, o tempo passa e ela atinge a vida adulta no mesmo espaço caracterizado na infância, carregando consigo a memória de um sonho adolescente. Em Inveja dos anjos, o cenário da linha férrea e a metáfora de um trem é o que movimenta a vida dos personagens, trazendo de volta a lembrança, a memória, o passado, quebrando mais uma vez os limites daquilo que já foi vivido e como isso condiciona o presente. Levando em consideração o que Franco Junior (2003, p. 44) versa sobre espaço e ambiente, podemos dizer seguramente que esses fatores são determinantes à narrativa, mesmo quando se trata de ação dramática, de um texto teatral, pois, “conforme o conflito dramático se desenvolve a partir das ações das personagens, o quadro relacional estabelecido entre elas muda, alterando a situação dramática e, portanto, o ambiente”. Halbwachs (1991, p. 11), em seus estudos sobre “memória coletiva”, explica como essa articulação da memória pode acontecer por meio do espaço geográfico (de coisas estáticas), afirmando que Não é certo que para poder recordar tenhamos que nos transportar com o pensamento para fora do espaço, pelo contrário, é a imagem do espaço que, em razão de sua estabilidade, nos dá a sensação de não mudar através do tempo, e de encontrar o passado dentro do presente: é assim que podemos definir a memória, somente o espaço é tão estável que pode durar sem envelhecer nem perder alguma de suas partes.1
Portanto, o espaço é uma forma de conservação do passado, são as lembranças gravadas naquilo que é estável que possibilitam a ativação daquilo que está na mente, elemento presente em ambas a peças: as possíveis formas de conservação das memórias, 1
Texto original: “No es exacto que para recordar tengamos que transportarnos em pensamiento fuera del espacio; por el contrario, es sólo la imagen del espacio, que em razón de su estabilidad, nos proporciona la sensación de no cambiar a través del tiempo y de encontrar el pasado en el presente: es así como podríamos definir la memória, únicamente el espacio es lo bastante estable para poder durar sin envejecer sin perder ninguno de sus elementos”.
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sejam essas por meio da palavra (escrita) ou do espaço em si. É o reviver das lembranças e o desejo do esquecimento caminhando em direção à necessidade da preservação. Com esse breve paralelo entre as duas peças, podemos começar a esboçar uma identidade da companhia, buscando em cada produção um traço da essência de criação do grupo. Nesta etapa da pesquisa, estamos lendo e discutindo todos os textos disponíveis, alguns inéditos, e comporando-os com a respectiva encenação gravada em vídeo. Apenas ao final desse percurso será possível traçar as linhas gerais do que poderemos chamar de poética dramatúrgica de Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes e de poética cênica da Armazém Companhia de Teatro. Referências ARMAZÉM COMPANHIA DE TEATRO. Disponível Acesso em 18 ago. 2014.
em
FRANCO JUNIOR, Arnaldo. Operadores de leitura da narrativa. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia O. Teoria literária – Abordagens históricas e tendências contemporâneas. Maringá: Eduem, 2003. HALBWACHS, Maurice. Fragmentos da la memoria coletctiva. Seleção e tradução. Miguel Angel AguilarD. (texto em espanhol). Universidad Autónoma MeropolitanaIztapalapa Licenciatura em Psicologia Social. Publicado originalmente em Revista de Cultura Psicológica, Año 1, Número 1, México, UNAM- Faculdad de psicologia, 1991. MENDONÇA, Mauricio Arruda; MORAES, Paulo de. Pequenos milagres. Belo Horizonte: PUC Minas, 2007. ______. Inveja dos anjos. Londrina: Kan, 2010.
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LITERATURA JUVENIL E ASSUNTOS POLÊMICOS, ALCANÇANDO A VOZ DAS MINORIAS Francielli Mendes Pereira (UEM) Uma das questões que merecem a atenção na Literatura produzida na contemporaneidade são as obras voltadas para o público juvenil, segmento que ganha notoriedade a partir da metade do século XX, pois até então estávamos embarcados no estudo da Literatura Infantil. Antes disso a criança e o jovem era educada como adultos em miniatura, da infância ao casamento, não havia uma preocupação com a fase conhecida como infância e tudo que norteia esse universo como conhecemos hoje. Mas obviamente que o jovem do século XX não pode ser encarado como o jovem de hoje, pois várias mudanças significativas fazem parte do cenário pós-moderno e consequentemente da vida do homem dessa época. A urbanização e a tecnologia transformaram em cartão postal da contemporaneidade, sendo assim houve uma expansão dos meios de comunicação que proporcionou o desenvolvimento potencial da livre e democrática expressão, o que deu voz para a minoria da população, ampliando inclusive a cultura de massa com a globalização. Todos esses fatores influenciaram e influenciam as produções artísticas, tendo em vista o cenário e o delineamento do leitor em relação aos desejos e especificidades desenhadas no texto. Esse leitor implícito traz consigo os anseios dessa nova época seja com uma problemática tradicional ou até mesmo uma problemática das discussões vigentes
do
mundo
contemporâneo,
tema
da
discussão
desse
artigo,
a
homossexualidade. Sendo assim, resta à produção literária acolher as expressões dessa minoria que ganha espaço de forma notável no panorama atual, debruçando-se em estudos e compreensão sobre essas obras literárias que vêm surgindo. A obra a ser examinada tendo em vista esses pontos discutidos anteriormente é “Cartas Marcadas: Uma história de amor entre iguais” de dois escritores brasileiros:
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Antonio Gil Neto e Edson Gabriel Garcia, publicada em 2007 que dá voz a um personagem homossexual e sua difícil e poética descoberta. Levando em conta a qualidade estética literária foi dividido o presente artigo em três aspectos que merecem relevância em condição de análise e percepção de aspectos importantes da literatura juvenil compreendendo o caráter emancipador ou não da obra: o primeiro aspecto é do ponto de vista temático e sua construção, o segundo é do ponto de vista da linguagem e possíveis inovações e o terceiro é o foco narrativo e a construção das personagens dentro da obra.
A construção temática sobre a ótica da homossexualidade Não há como fugir da condição emblemática que é falar sobre homossexualidade com jovens entre a idade de 15 a 17 anos, principalmente em sala de aula pelo fato de que muitos em nossa sociedade agem com discriminação em relação a esse assunto. Portanto se trata de um tema polêmico presente em nosso panorama atual que dividem opiniões sobre a ideia de se falar abertamente sobre o assunto ou não nas escolas. Alguns estudos da área da psiquiatria e psicologia apontam o homossexualismo como uma atitude inata de alguns seres humanos, ou seja, o homem ou a mulher que é homossexual não se torna com o tempo, mas nasce com essa inclinação de sentir desejo pelo mesmo sexo. Mas em relação à criança ou jovem nesse embate? Se o jovem sente algo diferente daquilo que perante a condição biológica é anormal, e não consegue explicação, apenas reprovação social e muitas vezes familiar, de que forma esse jovem vai construir sua identidade em meio a situações que não apenas conflituosas, mas também vivenciadas por debaixo do pano negam sua real existência. Esses temas e essas vozes chegam ao mundo ficcional como forma de autoafirmação e busca identitária, enquanto que ao mesmo tempo, uma reflexão gerada no encontro com a história do outro proporcionado pela ficção cria uma vivência com as indagações que não pertencem apenas ao leitor, mas outro alguém, o personagem, que sofre e luta como ele. E é nesse encontro que muitas vezes nos autoanalisamos e solucionamos nossas lutas interiores.
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De fato, nossos jovens vivenciam e sofrem com essas situações, de modo que necessitam desde essa etapa de suas vidas aprenderem a compreender si mesmos, e assim construírem sua própria identidade nesse mundo. Na obra em questão poeticamente os autores criam uma troca de cartas entre dois personagens: Duda e Pedro Paulo. Pedro Paulo se declara apaixonado por Duda, e assim a trama se inicia em um embate de desejos e medos gerando uma indefinibilidade sexual por função desses dois sentimentos, pois Duda sente um desejo de iniciar algo amoroso, porém, o medo da discriminação da família e de amigos o impede e por vezes o força a negar aquilo que acontece com a sua sexualidade, e nesse processo ele não se define e sofre. Os autores lidam com esse tema de uma forma metafórica e poética, há um conflito de vontades que geram a reflexão, porém as personagens são ditadas e crescem na trama de acordo com os conselhos do narrador, “Quanto mais lia, mais a cabeça parecia se abrir a novas descobertas. Quanta coisa para saber... Foi deduzindo que os valores e os conceitos morais vão-se transformando socialmente ao longo dos tempos históricos. Entendeu que houve acontecimentos que colaboram para a ocorrência dessas transformações. Tristemente percebeu que sempre há uma parcela de excluídos nos movimentos históricos” (NETO; GARCIA, 2007, p.63).
Não há uma transformação temática relevante, pois ela é lidada de uma forma conceitual, apesar de haver uma preocupação poética com as relações de trechos de Fernando Pessoa, ela não foge do embate superficial de assumir a homossexualidade ou não. Apesar de as personagens Duda e Pedro Paulo se tratarem de uma única pessoa, essa dualidade de personagens não criam uma tensão psicológica reveladora, mas servem como meio de identificação latente do homossexualismo que já nos é identificado desde o início da narrativa e só ganha uma maior certeza no final. Porém, não podemos negar que é de grande relevância o tema e seu desenvolvimento no universo jovem, pois se trata de uma questão que permeia todas as
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fases do homem, e deve ser escrita e revelada respeitando e correspondendo a maturidade do leitor e o nível de fruição estética do mesmo.
A linguagem e a aproximação do leitor jovem Ao se discutir o gosto do público infantil e juvenil não tem como falar de linguagem e aproximação do leitor jovem sem citar Lygia Bojunga Nunes, a autora consegue fazer isso com uma genialidade que encanta inclusive leitores adultos, pois dentro das narrativas de Lygia é comum o aparecimento de metáforas, metamorfoses ou mudanças rápidas na focalização das cenas, rapto de expectativa, clima de escondeesconde entre personagens e narrador, fantasia enorme, humor característico de desenho animado, ludicidade, atitudes marcadas pela rebeldia, quebra de normas e convenções nas fala com dinamismo, na qual todos esses ingredientes estéticos se configuram de modo a buscar uma cumplicidade com as crianças e os jovens. Portanto ao se fazer “o pacto” com a leitura a linguagem é um fator principal que os jovens observam e isso pode ser detectado quando oferecemos a um aluno de ensino médio a leitura de “O Ateneu” de Raul Pompéia, memórias de um jovem menino chamado Sérgio, mas com uma linguagem rebuscada na qual torna-se difícil para a compreensão e atenção dos alunos que muitas vezes não apresentam o hábito de leitura. Claro que não podemos descartar a ideia de que a obra “O Ateneu” foi publicada em 1888 e está longe do contexto vivido pelos jovens de hoje, e que sua leitura requer um encaminhamento metodológico esclarecedor quanto o contexto histórico da época. Mas vale lembrar que muito dos escritores de hoje ainda mantem-se em uma linguagem muito rebuscada e sob uma ótica adulta em relação aos jovens, não dando espaço para a identificação dos mesmos com os personagens e contexto da obra. A obra analisada em questão não oferece uma inovação no campo da linguagem voltada para o jovem, apesar de em alguns momentos apresentarem uma gíria ou outra, o narrador tem um domínio da norma padrão muito grande, e mesmo quando o jovem troca cartas com ele mesmo a norma padrão também pode ser identificada, vejamos um trecho de uma das cartas:
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“Agora não somos mais tão estranhos um para o outro, nessa nova perspectiva de encarar os sentimentos, senti necessidade de escrever mais uma carta, na certeza de que você vai acabar compreendendo que essas coisas acontecem com as pessoas comuns e com a esperança de que você acabe também criando coragem e aceitando viver esse sentimento amoroso que pode ser nosso e que começo a achar bonito, uma vez sendo de nós dois” (NETO; GARCIA, 2007, p.12).
Há não só um domínio maduro da língua como a escolha semântica de uma maneira inteligente e muito coerente que foge do mundo juvenil. Não que nossos adolescentes não saibam escrever, mas por se tratar do gênero textual carta informal poderia encontrar-se palavras abreviadas como as sempre utilizadas pelo jovem no mundo virtual nas mensagens de chats por exemplo. A linguagem foge desse mundo jovem, fato que pode distanciar esse leitor que espera algo que seria coerente com a intimidade de gênero escolhido pelos escritores e a identificação com a personagem em questão que teoricamente faz parte de um mundo juvenil.
O foco narrativo e a construção das personagens Segundo Vera Teixeira Aguiar no artigo “Literatura Juvenil na voz das minorias” na qual discute a mesma obra do presente artigo diz “A obra é construída segundo a ótica de diversas vozes, em cartas, bilhetes, notícias, depoimentos, páginas avulsas e, sobretudo, pela presença de um narrador onisciente, que conduz a espinha dorsal da narrativa e a orienta para a decisão final da personagem central, dirigindo todas as falas textuais. Acontece que, nesse caminho, sua palavra se sobrepõe à do jovem, denunciando um predomínio do adulto” (AGUIAR, 2010, p. 04).
O discurso como vimos tem a predominância ainda do adulto que se coloca a frente da narrativa, o que acaba não dando espaço para a voz do jovem personagem, vejamos um exemplo: “No pensar de Duda, já havia selecionado alguns itens para suas leituras da tarde na biblioteca. Algo sobre Fernando Pessoa parecia lhe
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despertar o interesse, algo que parecia esconder seu furor sexual, homossexual, pansexual em seus heterônimos ou coisa assim. Algo também sobre mitos, essas alegorias sobre os sentimentos humanos mais profundos (NETO; GARCIA, 2007, p. 43).”
Sem dúvidas a maturidade e o dispor de interpretações sobre o poeta Fernando Pessoa não se encontram em nível de entendimento de um jovem, claro que não está se falando de capacidade, mas como foi dito no tópico anterior o encaminhar da linguagem lado a lado do narrador é fundamental para a adequação ao nosso leitor adolescente. Agora resta-nos a uma indagação, se a escrita e o foco narrativo é estritamente adulterizado, a descoberta da personagem em meio à problematização sobre a homossexualidade é realmente resolvida por ela? Agora adentramos sobre a construção desse personagem duplo que não está se descobrindo por ele mesmo, mas de forma textualmente aconselhado por meio do conhecimento existencial do narrador o melhor caminho a se seguir, não é uma descoberta individual na qual predomine uma literatura intimista. Observa-se que foi um pontapé interessante para uma espécie de narrativa psicológica de grande feitio em relação à posição e construção da personagem (dupla), mas, de certo modo o narrador tomou as rédeas demais dessa situação tirando de foco aquilo que havia de mais importante na obra que era o encontro individual e identitário da personagem em relação a sua sexualidade. De fato a linguagem também faz parte do constructo do personagem, na qual ele ganha voz em seus diálogos e apresenta suas nuances psicológicas, que nessa obra, são importantes para a descoberta interior de si mesmo. O que vemos em Cartas Marcadas: uma história de amor entre iguais é um delineamento de personagem psicológico que ainda segura as mãos de uma narrador adulto a qual determina o caminho a se seguir diante a sua experiência de vida, fato que afasta uma emancipação do leitor jovem e acaba caindo sobre as narrativas tão comuns voltadas para o esse mesmo público.
Considerações finais
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Estamos de frente com as muitas produções voltadas para o público juvenil e principalmente obras que tratam de assuntos polêmicos em nossa sociedade. Sendo assim, sempre há necessidade de analisar esses títulos e compreender como o fenômeno literário se faz presente neles. O presente artigo teve como objetivo estudar e analisar uma obra juvenil na qual discute o tema da homossexualidade em meio ao mundo jovem, buscando observar como a construção dessa obra mantem-se no status quo de obra pedagogizante ou não por meio da linguagem e principalmente do foco narrativo. A compreensão de que muitas vezes a literatura juvenil é tratada como algo menor das demais literaturas adultas, por estar em contato a nível escolar e por consequência como formadora de leitores, não pode esquecer-se da sua concepção como arte e seu lugar como uma modalidade de literatura merecedora de estudos e respeito. Isso pode ser visto em trabalhos que se preocupam em analisar e estudar essas obras não só do ponto de vista metodológico, mas, como objeto estético tão importante quanto qualquer outra obra cânone de nossa história literária.
Referências AGUIAR, Vera Teixeira. Literatura juvenil na voz das minorias. Artigo publicado em IBBY Congresses, 2010. GIL NETO, Antonio. GARCIA, Edson Gabriel. Cartas marcadas: uma história de amor entre iguais, São Paulo: Cortez, 2007.
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ELEMENTOS VISUAIS EM RIO SUBTERRÂNEO, DE O. G. REGO DE CARVALHO Francisca Jheine Andrade Cunha(UESPI) Introdução Em O.G. Rego de Carvalho: fortuna crítica, do jornalista Kenard Kruel, veiculou-se a informação de que, em 1976, o artista plástico piauiense Nonato Oliveira produziu uma série de dez telas após a leitura de Rio Subterrâneo. Desse modo, para interrelacionar as produções artísticas de O. G. e Nonato, teríamos que encontrar as pinturas do artista, o que não foi possível, pois ele afirmou que as obras não poderiam ser localizadas. Portanto, infelizmente, não pudemos efetuar o estudo que pretendíamos. Apesar disso, surgiu outra questão que, de certa forma, faz-nos refletir sobre as pinturas de Nonato: Rio Subterrâneo é um texto plástico (visual)? Para tentar solucionar essa questão, buscamos perceber o texto literário visualmente. Portanto, nossa motivação consiste em encontrar no texto propriedades que provocam a elaboração visual do lido. Para isso, efetuamos um diálogo entre as artes (Literatura/Pintura), em que uma delas não está presente diretamente.
Porém, é
essencial para discutir o que almejamos, posto que nosso objetivo é refletir sobre como os elementos visuais são representados na escrita. A imagem é o ponto de convergência entre a linguagem literária e a pictórica A visualidade na representação pictórica e literária Cada linguagem artística possui uma materialidade particular trabalhada de acordo com as possibilidades de que dispõe. Aristóteles (2004) afirmou que há maneiras distintas de representar artisticamente. Para ele, uns representam por meio de cores e traços, outros pela voz, e, além desses, também há os que utilizam o ritmo, a palavra e a melodia. A partir dessas observações, ressalva a materialidade da pintura, da música e da poesia, mostrando-nos que cada artista possui meios, objetos e maneiras de representar.
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Todas as linguagens da arte representam algo, corporificam um determinado conteúdo de significação. Logo, o pintor, o escultor, o literato, o musicista e os outros artistas representam sentidos em algum tipo de corpus. Esses aspectos evidenciam as divergências entre elas, mas também pontos similares. Por isso, começamos a discussão proposta pelas diferentes formas de provocar a visualidade na pintura e na literatura. O pintor representa com pincéis, cores e suporte. Para compor utiliza imagens não verbais. Certamente a imagem esboçada no quadro, se figurativa, é notada instantaneamente pelo espectador. Então, se o pintor representa uma árvore na tela, espera-se que o sujeito que vê relacione a figura visualizada com os caracteres de uma árvore que conhece empiricamente, pois a representação pictórica deve possuir índices semelhantes a uma árvore real. Por exemplo, o caule pode ser representado por linhas verticais paralelas, e a folhagem por certo volume que indique um conjunto de folhas. Desse modo, ocorre uma identificação imediata entre o que há no quadro e a interpretação do espectador. Em suma, quando um espectador contempla uma tela, busca identificar e interpretar o que vê, e esse processo se dá de maneira imediata. No geral, a consciência/memória humana é composta pelo verbal e pelo nãoverbal. Desde o pensar, a palavra e a imagem são recursos para formular ideias e acessar lembranças. No caso do pintor, ele esboça na mente a representação visual do que quer dar corpo no quadro. Neste sentido, pensa diretamente por imagens. Ocupa-se de figurar e significar o que imagina, relacionando as imagens representadas de acordo com intenções. Segundo Fayga Owstrover (1987), durante o processo criativo o artista plástico elabora o pensamento em termos de imagens. Ele gera, portanto, textos visuais. Representa e estabelece relações significativas entre as “coisas” representadas. O pintor produz textos visuais, utilizando-se de recursos específicos. Cor, linha, superfície, volume e luz são os elementos visuais que geram a textualidade pictórica. No texto visual, a “coisa” pintada é representada singularmente. Desta feita, podemos afirmar que a visualidade para o artista plástico é objetiva, sem deixar de ser subjetiva. Com o intuito de refletirmos sobre a interligação palavra/imagem ou palavra/coisa, pensamos sobre a seguinte questão: Como uma pessoa que perdeu a visão progressivamente pode ver o mundo ao seu redor? Esse sujeito não possui o campo visual com a mesma eficiência de uma pessoa com essa capacidade, mas esboça o
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mundo visualmente através das descrições de outros. Descrever como o mundo é faz com que ele seja percebido, construído visualmente na mente de quem ouve, já que o sujeito que perdeu a visão possui certa experiência com as coisas do mundo, conhece cores, formas etc. No entanto, fará de maneira mais subjetiva do que alguém que realmente vê. Neste caso, o ato de ver é mediado pelas palavras. O verbo torna visível, pois apresenta índices que provocam a elaboração visual. Mesmo para os que podem usufruir da visão, ver é sempre um interpretar e, por isso, envolve a compreensão. Para Rudolf (1984, p. 36), “significa captar algumas características proeminentes dos objetos.”. O olho humano distingue os caracteres dos objetos dentro de suas possibilidades perceptivas. Além disso, a visão é afetada pelos contextos perceptivos e estados de ânimo do sujeito. Como no caso apontado anteriormente, a palavra utilizada para descrever é mediadora da visão, pois suscita imagens. Este fato nos remete a pensar a respeito do signo linguístico saussureano. Saussure (2006, p.81) chama de signo “a combinação do conceito e da imagem acústica.”. A imagem (significante) corresponde à impressão psíquica do som da palavra no pensamento. Trata-se do som configurado em signos verbais, o qual aponta para o significado. Além disso, o linguista francês relata que o signo linguístico é arbitrário. A dualidade significado/significante geralmente não é motivada. Ele considera explicitamente a língua utilizada para fins práticos de comunicação e não os signos gerados a partir dela na arte. Então, o que dizer dos signos literários? Os signos da arte são motivados. Surgem da intenção premeditada do sujeito. As palavras reunidas no texto literário têm seu motivo de ser e são utilizadas de acordo com os procedimentos e intenções do literato. Estes signos formam imagens literárias, que corporificam um modo particular de ver o mundo e significá-lo. As figuras de linguagem são indiscutivelmente importantes para a literatura, mas não são o foco desta reflexão, visto que nos referimos à visualidade suscitada no texto literário. Ou seja, falamos de um texto que provoca a elaboração mental do descrito na narrativa, um texto plástico. Assim, os signos literários, sob a perspectiva que tratamos, apontam primeiro para como as “coisas” são, depois para por que elas são desse modo. Na literatura,
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fala-se do que é, como é e por que é. Uma cadeia que cria uma série de relações de sentidos. Roland Barthes (2004, p.) ressalva que “uma imagem é privada de vetor lógico.”. A não-logicidade das imagens evidencia os complexos fatores que se entrecruzam nas formulações imagéticas, são eles: conscientes, inconscientes, coletivos e individuais. Assim como um sujeito que vê pode ajudar uma pessoa que perdeu a visão a perceber o mundo visualmente, o autor de um texto literário também pode. Ele se utiliza da palavra, signo linguístico, para descrever um mundo imaginário representado no texto. No entanto, o literato não tem como preocupação primeira pensar o mundo através de imagens visuais de tal modo que estas se formem objetivamente na mente do leitor. O escritor não é um pintor, mas pode utilizar a palavra para suscitar imagens plásticas. Isso depende dos procedimentos utilizados pelo literato e dos efeitos que pretende provocar. Para o autor, formar imagens visuais é um objetivo secundário. A visualidade no texto literário No século XXI as artes dialogam continuamente. Muito mais do que divergindo entre si, as linguagens artísticas convergem, interligam-se. Quantas pinturas surgiram de textos ou textos de pinturas?Apesar das diferentes formas de representar a imagem, a pintura e a literatura possuem relações evidenciadas desde a antiguidade. De acordo com Cristiane Nascimento (2008), nos antigos tratados de retórica e poética, utilizava-se uma técnica específica para permear o discurso literário de qualidades visuais e torná-lo similar às pinturas. As representações pictóricas eram consideradas superiores à literatura por figurarem os objetos do mundo como eram na natureza. Para aproximar a técnica literária da pictórica, os escritores descreviam o que representavam de modo que o leitor conseguisse elaborar visualmente o que lia. Concebida assim, a ecfrase era a técnica retórica que possibilitava essa aproximação. O termo de origem grega ekprasis significa descrição. Trata-se da descrição minuciosa do que se vê. Segundo Garcia (2008), essa é a concepção mais antiga do termo. Na concepção moderna, define-se ecfrase como o processo de agrupamentos de “diversas formas de traduzir um objeto visual em palavras.” (YACOBI, 1996, p. 600 apud CAMPOS, 2013, p. 272-273).
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Como mencionado, no sentido mais remoto, a técnica ecfrásica corresponde à descrição verbal do que se vê, de tal modo que se tenha no texto elementos que suscitam a elaboração visual. Essa é a concepção que baseia a discussão, posto que, como apresentamos anteriormente, a palavra escrita também sugere, mas de modo secundário; a elaboração visual do descrito, ao contrário da pintura figurativa que é mais objetiva visualmente. As pinturas revelam um modo de perceber e sentir as coisas do mundo. Evidentemente, o escritor não possui diretamente os mesmos recursos que o pintor. Pincéis e tintas não compõem a “escrivaninha” do literato. Outros recursos estão à disposição dele para a corporificação das imagens no papel. Até o sentido da palavra imagem em ambas as situações é diferenciado. A imagem verbal é diferente da visual, mas podem aproximar-se. Por isso, falamos de imagem visual suscitada através do texto literário. Para compor os textos o escritor utiliza como matéria a língua e a imaginação. Então, de que maneira as linguagens pictórica e literária se entrecruzam? Como um texto pode ser considerado visual? Como vimos, a composição pictórica é um texto formado por imagens objetivadas. Essas imagens são estruturadas e configuradas visualmente. Assim, através de uma ação consciente, o pintor organiza o quadro, criando relações entre as imagens que o compõem. Claro que apreciar um quadro é um feito mais imediato do que apreender o todo de uma narrativa. Em uma tela, as imagens são apreendidas de forma mais instantânea. Identificar a relação entre coisa e palavra é, neste sentido, mais simplório, pois é mais fácil de saber como as coisas representadas são. Ruldolf (1984, p. 99) afirma, em relação à pintura, que “se quisermos criar imagens sobre uma superfície plana, tudo que podemos esperar fazer é realizar uma tradução". Traduzir é interligar um modo de ver geral a um particular, adaptando-os conforme o objetivo pretendido e os materiais disponíveis. Não se traduz o objeto em si, mas um modo de concebê-lo. E no texto literário o que ocorre com a imaginação visual? No texto literário, a visualidade também é explorada, mas, no geral, de modo menos evidente do que nas artes visuais. A descrição é o principal meio de evidenciar os caracteres formais dos objetos. Desse modo, os métodos ecfrásicos detalham o mundo, as coisas e os personagens. No texto escrito, os leitores serão guiados pelo narrador, mas serão eles que configurarão as imagens do narrado.
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As imagens visuais no texto escrito não são simultâneas, mas, de acordo com o procedimento utilizado pelo escritor, podem dar-se quase que simultaneamente. Logo, ver o interior de uma sala pintada em um quadro é diferente de ler linha por linha de uma prosa até que consigamos perceber e montar a imagem mental do interior de uma sala onde a cena da narrativa acontece. No primeiro caso, ocorre a visão imediata, no outro não. Na escrita também há a possibilidade de existirem alguns dos elementos visuais, mas, logicamente, sem que sejam percebidos pelos olhos. Eles são, neste caso, signos verbais que apontam para um conceito. Através das palavras percebemos as cores, o formato das coisas; que podem provocar a pensar nas linhas (contorno imaginário dos objetos), podemos pensar os efeitos de luminosidade, evidenciando nas cenas com os jogos entre claro e escuro, além de criar imageticamente a superfície dos objetos; podemos inferir sobre a textura deles. Tudo isso, através das palavras. A imagem, quando verbalizada, passa por um processo de abstração. Escreve-se sobre o que se cogita ver para provocar outro a ver: a visão do leitor. Na pintura e no texto literário, temos imagens visuais, mas em etapas de estruturação diferentes. Enquanto em uma a etapa é concreta, na outra é abstrata. Elementos visuais em Rio Subterrâneo Um dos procedimentos utilizados por O. G. é a intensa descrição dos espaços do romance, com uma linguagem que consideramos plástica. A narrativa remete-nos às técnicas ecfrásicas em dois casos diferentes: um, em que o espaço sofre distorções; outro, em que é descrito como é na realidade ficcional. Vejamos a seguir: Nessa tarde escura, cor de cinza, a atmosfera parecia fechar-se, impregnando-lhe os sentimentos, já desolados dos tons soturnos da natureza. O vento gelado feria-lhe o rosto, zunindo nos coqueirais e vergando as mangueiras pendentes de frutos. O céu enegrecido por densas nuvens prenunciava desespero[...](CARVALHO, 1976, p. 4)
A tarde referida pelo narrador no trecho acima é escura, cor de cinza, expressões que suscitam a visualidade, posto que estão relacionadas à aparência do ambiente que contextualiza a cena. São cores e tonalidades transformadas em palavras. Assim como a tarde é escura e cinza, a natureza se cobre de tonalidades tristonhas (tons soturnos), como diz o narrador, fala que provoca-nos a imaginar a unidade cromática que circunda
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o ambiente. Além disso, a maneira como são descritas as mangueiras embaladas pela ventania dão certa impressão de movimento nas árvores, delineiam a curva que elas supostamente efetuam durante a cena. As mangueiras se vergam, termo que se suscita a visualidade. Vergar-se é curvar-se, é como se a linha imaginária que verticaliza a árvore tornasse-a curva, movendo-a para baixo. A cena é intensa pela maneira como é narrada, pois repleta de cores tenebrosas e movimentos “desenhados” pelo vento, revela a densidade e sensações que a imaginação visual corporifica. Além disso, o trecho figura a afirmação de Rudolf Arnheim (ANO, p. 453): O espírito humano recebe configura e interpreta a imagem que tem do mundo exterior com todos os poderes conscientes e inconscientes e o domínio do inconsciente nunca poderia entrar em nossa experiência sem o reflexo das coisas perceptíveis.
A visão também é afetada pelo interior humano. Notamos isso no texto, pelo modo como o narrador descreve o ambiente, visto que alguns elementos da cena são distorcidos da naturalidade. Outro aspecto que instiga a reflexão é o modo como a cena muda de foco linearmente. Apesar de cada frase ser lida uma após a outra, o leitor é levado a imaginar todo o ambiente, a partir dos detalhes e dos relances apontados na descrição. Primeiro, lê-se sobre o estado da atmosfera. Depois, sobre a expressão de sofrimento demonstrada pelo rosto do personagem. O movimento das mangueiras delineado pelo vento. E, logo após, volta-se para o céu enegrecido. O olhar do leitor é guiado pelo narrador, quase que simultaneamente. Assim, temos a visão do todo pelas partes, evidências do caráter visual do trecho. Quase se contempla uma pintura, uma pintura de palavras. O romance ogerreguiano está impregnado de trechos visuais. São enunciados que caracterizam os cenários da narrativa. As cenas lembram-nos pinturas impressionistas, mas sem estarem representadas visualmente. Evidentemente, os procedimentos utilizados no texto literário refletem o interior dos personagens e convergem com os sentidos unificadores da obra. Seguem-se outras passagens significativas que provocam a visualidade na mente do leitor: A fumaça branca subia aos poucos, num vivo contraste com as nuvens cinzentas e as águas vermelhas do rio [...](CARVALHO, 1976, p.4) Todo o céu estava envolto de nuvens cinzentas e fecundas, prontas a despejar [...] Figuras sombrias ao lado – espectros de troncos, de
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galhos e folhas e frutos agitando-se CARVALHO, 1976, p.8)
no espesso véu das águas.(
A voz que narra não se contenta em relatar que a fumaça subia aos poucos. Descreve a cor da fumaça, ela é branca. Realça também o contraste que ocorre no encontro da fumaça com as nuvens cinzentas e as águas vermelhas do rio. Águas vermelhas? Como pode um rio ter as águas dessa cor? As cores de um rio pictórico e literário podem divergir da realidade, porque ela não é primazia para a arte. Os sentidos que surgem a partir da relação entre as cores e a matéria representada é que importam, pois em ambos os casos de representação existe o jogo de sentidos entre os elementos representados. Na segunda citação, que segue a comentada acima, destaca-se novamente a atmosfera cinza que permeia o ambiente e a agitação dos elementos dispersos nas águas. O ritmo imagético também é provocado verbalmente. Pois o ritmo visual é a tensão criada entre os elementos dispostos no espaço pictórico. No trecho analisado, quando o narrador diz que os espectros de troncos, os galhos, as folhas e os frutos, estão sendo agitados no espesso véu das águas, podemos inferir que eles arrumam-se em direções diferentes. Com isso, cria-se certo ritmo visual na cena, relacionado à constância de movimentos presentes entre as coisas representadas. Isto é, se as figuras que se movimentam sobre as águas convergem ou repelem-se. À medida que lemos Rio Subterrâneo, notamos a abundante presença de cores narradas. Sim, não são cores pintadas, são cores verbais. Elas são ditas pelo narrador e revelam a palheta utilizada por ele para colorir os espaços onde os personagens circulam, premissas que revelam a presença constante de um dos elementos visuais utilizados pelo pintor: a cor. Neste contexto, utilizada na escrita. A fumaça, como nuvem róseas, dança ao sopro do vento[...](p.11) Cores nostálgicas adormecem a retina, e se acinzentam, e logo se esbranquecem como o gelo dando-lhe sentimentos frios, de solidão e esquecimento.(p. 11) Tudo é branco agora. De longe, do alto talvez, vem uma luz, tênue, esgarça, levemente amarela ou rósea, já não se lembra(p.11)
A presença das cores no texto ogerreguiano ressalta o caráter visual que possui. Evidentemente, este fato, ao tempo que faz refletir sobre a semelhança entre a imagem
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verbal e a visual, provoca a pensar sobre a diferença existente entre elas. Pois a imagem provocada pela palavra é abstrata, e a figurada em uma pintura não, é concreta, possui uma configuração definida. Está lá, já foi pensada e ganhou a forma que alguém atribuiu a ela. As cores narradas no texto de O. G. são caracterizadas de modo notório, visto que o narrador descreve a tonalidade como se conhecesse bem o círculo cromático. Nuvem róseas, cores nostálgicas que se acinzentam e se esbranquecem, a luz esgarça, levemente amarela ou rósea que vem do alto; todos esses signos verbais remetem à visão e instigam o leitor a pensar o texto visualmente. O trecho a seguir também figura a habilidosa maneira de descrever o ambiente através das cores que o permeiam: “Um trovão avermelhado estalou de surpresa; e logo as nuvens fendidas se recompuseram, saindo em fração de segundo, do róseo para o cinzento-escuro.”(CARVALHO, 1976, p. 51) Assim como: E a lembrança de Judite na frincha da porta, subitamente branca à luz nívea do raio que os deslumbra: um todo sanguíneo, verde-garrafa, azul. Agora, mancha violácea com pintas rubras a cobrir os seios dela: corpo que renasce lentamente, ainda ébrio de perfume: as mãos nos olhos, os braços túrgidos os ombros aparentes. (CARVALHO, 1976, p. 52)
Na narrativa, o cinza é a cor mais mencionada. A atmosfera cinza do romance representa a melancolia, a solidão e o clima de penumbra que impregna o ambiente de Rio Subterrâneo e a vida dos personagens. Assim como um pintor significa as cores que utiliza quando pinta, o escritor também o faz. Isso evidencia a intencionalidade dos signos artísticos. Além de a visualidade do romance revelar-se na descrição dos espaços, onde a narrativa acontece, também se corporifica nas feições de alguns personagens, como percebemos na maneira como a personagem Neuza é descrita: “Era mulata e feia: a pele amarelenta, o rosto manchado de espinhas, grossos os lábios, e escuros, o nariz carnoso, respeitável pela saliência.”(CARVALHO, 1976, p. 44). Através dos traços da personagem ditos pelo narrador, o leitor é instigado a pensar a fisionomia de Neuza. Assim, o sujeito que narra guia o que assimila a formar na mente uma imagem visual da personagem. O narrador direciona os olhos do leitor. Como a experiência que
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mencionamos anteriormente, em que uma pessoa que vê auxilia a outra que deixou de ver a elaborar imagens mentais. Neste caso, o verbo torna visível. O olhar é seletivo. Fixa-se em pontos específicos do todo. Também é assim que a plasticidade do texto ogerreguiano se manifesta. Pois a visão do sujeito que narra passeia pelo ambiente, fixa-se em partes diferentes dos objetos e os caracteriza. Assim, as expressões que dizem como eles são separam-se por vírgulas, que dão fôlego ao narrador enquanto descreve. A imagem se forma aos poucos, como a seguir: Olhos fechados, longos cílios recurvos, pretos, um terçol que instrumece a pálpebra superior, levemente vermelha, pés de galinha que já enrugam os cantos, a pele morena e áspera, uma espinha madura no pômulo direito, que uma lanugenzinha enegrece, cravos bons de espremer, respiração ansiosa e quente, o negrume do bigode cheio, sabor de fumo nos lábios, seios comprimidos, mãos que apertam as suas, sensações nervosas, esvanecentes: boca que se despedem com um estalo, olhos bem abertos, brilhantes, imenso,nariz deformado que logo se recompõe.”(CARVALHO, 1976, p. 66)
Aos poucos a cena se esclarece na mente do leitor e descobrimos que o evento descrito se trata de um encontro amoroso . O movimento dos envolvidos na cena, os detalhes físicos, principalmente, da personagem, são aspectos que corporificam a ecfrase. Lentamente a imagem se configura e ganha a forma que o leitor dá a ela. O signo linguístico aponta para a elaboração visual. O conceito traduz o que é e como é. Evidentemente, a experiência do leitor também participa do processo de construção imagética. São inúmeros os trechos da narrativa que nos instigam a pensar visualmente no que é dito. Com isso, podemos questionar: Mas a descrição não é comum a todo texto? Sim, mas varia em graus e intenções. Uns podem descrever ligeiramente como o ambiente é, outros podem detalhá-lo. É nesta diferença que a plasticidade textual se manifesta, ou seja, no modo de detalhar as coisas que compõem o mundo fictício. Imaginemos um pintor lendo tal texto. Certamente, para ele, é mais fácil pensar um texto por imagens. Principalmente, quando o escrito possui elementos que instigam esse tipo de imaginação. Borboletas amarelas nos cachos das marias-moles tenro das folhas que vibram, de leve[...]Em cima, verde rasgado de azul e branco, um ninho de urubu na copa do angico.”( CARVALHO,1976.p.66)
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De tão azul, o céu parecia dilatar-se, abaixando até a cinza torre da igreja e as bandeiras dos telhados antigos.( CARVALHO,1976.p. 83) O sol em pleno domínio, formando um arco-da-velha. Nuvens que se esgarçam, umas brancas, aquelas escuras, chuvosas, quase negras [...](CARVALHO,1976.p. 118) Deparou com um firmamento azul-pérola, incandescido pelo sol. Longe, as torres da igreja apontavam para os flocos das nuvens brancas, com revérberos nos párarraios. (CARVALHO,1976. p.131)
A simplicidade é a característica predominante desses trechos. Os cenários não são detalhados, mas, apesar disso, as cores estão presentes na caracterização dos ambientes. Assim como os elementos mencionados (Borboletas, cachos das mariasmoles, torre da igreja, bandeiras dos telhados antigos e sol) distribuem-se no espaço de forma simplória, mas nem por isso menos visual. Como vimos, o texto ogerreguiano possui inúmeros trechos que provocam a imaginação visual. Assim, o leitor é levado a pensar imageticamente. Isso demonstra a ligação entre as artes, visto que não é só a pintura que trabalha a imagem. O verbo chama a forma não-verbal. Desse modo, a palavra aponta para outras possibilidades de criação. E o texto escrito instiga o surgimento de um texto visual. Considerações finais Assim como uma pintura pode provocar a elaboração de um texto literário, um texto literário também pode culminar em um texto pictórico. Sem considerar fatores de ordens mais subjetivas no processo criativo, a palavra é mediadora do ver e instiga a criação. Desta feita, pela plasticidade e, ao mesmo tempo, pelo caráter abstrato do texto literário, ele provoca a criatividade. Esse é o caso de Rio Subterrâneo. Com esta análise, verificamos que Rio Subterrâneo possui inúmeras passagens em que a palavra é trabalhada de maneira plástica, pois o procedimento empregado na narrativa suscita a percepção visual do leitor. Por meio da descrição ecfrásica, o narrador aponta elementos visuais no texto, predominantemente, as cores dos objetos. Portanto, o romance ogerreguiano figura a reflexão que propomos, visto que, através deste estudo, notamos que uma linguagem artística pode facilitar o caminho para a criação em outro tipo de linguagem. Neste caso, o signo linguístico facilita a
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elaboração da imagem visual no plano bidimensional, fato que demonstra a proximidade entre literatura e artes visuais, pois ambas trabalham com a imagem, mas em etapas de estruturação diferentes. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Gulbenkian, 2004. ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 1984. BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2004. CAMPOS, Nathalia de Aguiar Ferreira. Uma pintura com palavras: reflexões sobre o romance moça com brinco de pérola, de Tracy Chevalier. Revista Virtual de Letras, Goiás,
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RESÍDUOS DA REPRESENTAÇÃO DO DIABO MEDIEVAL NO TEATRO QUINHENTISTA DO PADRE JOSÉ DE ANCHIETA: QUANDO NO ESPÍRITO SANTO SE RECEBEU UMA RELÍQUIA DAS ONZE MIL VIRGENS OU AUTO DE SANTA ÚRSULA. Doutorando Francisco Wellington Rodrigues Lima (UFC/URCA)
O teatro medieval trouxe à cena a representação do Diabo e a do Inferno. O Mal, através das artes cênicas, difundia-se com maior eficiência na mente do povo cristão e, cada vez mais, o pensamento católico cristão se firmava na sociedade medieval. As peças teatrais mostravam representações pavorosas e risíveis sobre a figura do Mal. No teatro vicentino, por exemplo, o Diabo representava, simbolicamente, papéis diversos: era juiz, acusador, relator dos pecados humanos, tentador, ludibriador etc; recebeu caracterizações e denominações, de acordo com o imaginário popular do período medieval, que o marcaram para sempre: Satã, Belial, Satanás, Lúcifer etc; tornou-se ridículo diante dos anjos e outros seres divinos; cômico quando se enredado por causa de sua tolice ou quando se colocava em situações de fracasso, derrota; é ainda causador do riso quando insultado, humilhado e enganado. (COUSTÉ, 1996). As primeiras manifestações do representante do Mal, como vimos antes, surgiram por volta do século VI a.C., na Pérsia. Foi através dos conhecimentos do profeta Zoroastro (Zaratustra) que se chegou à figura de Arimã, descrito por ele como sendo "o Príncipe das Trevas". Arimã, conforme nos relata a mitologia persa, vivia em seu permanente conflito com Mazda, o "Príncipe da Luz". Essas duas divindades expressaram, ao longo dos séculos, a polaridade existente no universo, que regiam o mundo mitológico de Zaratustra. (BRUNEL, 2005). Entretanto, foi por meio do contato com povos inimigos, dentre eles os persas, que os hebreus tiveram uma influência determinante no Mazdeísmo, pois a tradição desse povo foi um elo fundamental para a personificação do que viria a ser a figura de Satã no Judaísmo e no Cristianismo. É importante ainda salientarmos que, na antiga língua hebraica, Satanás quer dizer acusador, caluniador; aquele que põe obstáculos. Dessa forma, através de assimilações da crença entre espíritos benéficos e maléficos, o Diabo ganharia mais tarde um lugar de destaque no Velho Testamento, transformando-se num poderoso anjo de luz. Segundo a tradição mística, Ele agia como uma espécie de
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colaborador que servia a Jeová (Deus), para testar a lealdade ou castigar os seus escolhidos, sob autorização divina, como vimos antes no caso de Jó. (PAGELS, 1996) Na trama do imaginário, o Diabo assumiu uma corporação; qualificou-se num ser emblemático, temido e ao mesmo tempo cômico; tornou-se um “dispositivo oratório” que perpassa por personagens ou figuras históricas ou ainda figuras lendárias; semeia provas nos discursos, constrói verdades, ancora o imaginário no real, como nesses relatos que constituem o acervo popular medieval europeu. No entanto, a figura do Diabo adquiriu, por volta do século XIII, uma importância crescente, inclusive no mundo das artes. Lúcifer cresceu no mesmo momento em que a Europa procurava uma estabilidade religiosa e política, preparando-se para a conquista do mundo, no século XV. O Inferno e o Diabo, a partir de então, deixaram de ser algo metafórico, pois a arte medieval produziu, na visão de Muchembled (2001, p. 22), “um discurso preciso, muito figurativo, sobre o reino demoníaco, colocando detalhadamente, a título de exemplo, a noção de pecado, a fim de induzir o cristão à confissão (...)”. Porém, a acentuação de traços negativos e maléficos de Satã foi assinalada a partir do século XIV, quando as histórias contadas e suas representações artísticas não mais se limitaram ao mundo monástico, entretecendo cada vez mais o universo dos laicos em que se colocou o poder e a soberania acima de tudo. O Diabo adiquiriu proporções no mundo das artes, viu-se adornado com insígnias de um poder soberano, representando quase sempre uma ânsia de subversão que se expressava no registro de seu poder; Lúcifer tornava-se a sombra aterrorizadora da mentalidade cristã medieval. Portanto, sendo o Diabo um Anjo caído, senhor de múltiplas facetas, emblemático, inquietante, eloqüente, tentador, culpado por todo o sofrimento humano; elemento portador do medo e do riso; uma concessão de Deus em seu plano divino, segundo a concepção teológica; ele conquistou uma posição importante na mentalidade e no imaginário cristão medieval. A cultura medieval fez do senhor da noite, segundo Muchembled (2001), o príncipe das trevas, um ser capaz de provocar medo e pavor, de condenar multidões como se pode observar no Malleus Maleficaram, ao inferno; à morte. Ao mesmo tempo, a tradição medieval o ridicularizou através do riso nas artes cênicas, como uma forma de suavização do grotesco que o envolvia. Rir-se do Diabo. Sendo assim, como filho de seu tempo, o Diabo continua a tentar a humanidade, não porque ele é o senhor das artimanhas ou das sombras, mas porque ele é o senhor dos
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seres humanos pecadores, pois o homem “é uma espécie de reflexo do mundo” e “do cosmos”. (BYINGTON, 1991, Prefácio). Foi esse pluralismo diabólico que se projetou na sociedade cristã medieval, através do teatro, que serviu de subsídios para o desenvolvimento desse artigo, uma vez que este transcorrerá em torno de uma das obras mais contundentes do Padre José de Anchieta: “Auto da Pregação Universal”. Para tal, buscamos fundamentação teórica na Teoria da Residualidade Literária e Cultural, elaborada e sistematizada por Roberto Pontes, visando assim, entender a projeção residual do Diabo no teatro quinhentista brasileiro. Roberto Pontes empregou o termo residualidade inicialmente em sua dissertação de mestrado, atualmente publicada em livro, cujo título é Poesia insubmissa afrobrasilusa (1999), tendo por objetivo demonstrar a presença de resquícios do passado que, ao longo do tempo, acumularam-se na mente humana e que são refletidos em textos de forma involuntária através de estruturas atualizadas. Os termos resíduo, residual e residualidade, na concepção de Roberto Pontes, têm sido empregados relativamente ao que resta ou remanesce na Física, na Química, na Medicina, na Hidrografia, na Geologia e em outras ciências, mas na Literatura (história, teoria, critica e ensaística) quase não se tem feito uso dos mesmos (MARTINS, 2000, p. 264). Segundo Roberto Pontes, resíduo é “aquilo que remanesce de uma época para outra e tem força de criar de novo toda uma obra, toda uma cultura” (PONTES, 2006, p. 01). Bem sabemos que na cultura do povo brasileiro, inclusive no período da colonização, muitos resquícios da época medieval cristalizaram-se como elementos vivos na mentalidade da sociedade que aqui se formava, substratos mentais, difundindo, inclusive, uma representação fértil do que remanesceu acerca do Diabo europeu, mesclando-se, engenhosamente, a cultura indígena cá existente, corpus central de nosso estudo, como bem representou Anchieta no Teatro Quinhentista Brasileiro. Ainda conforme Pontes, o resíduo “não é um cadáver da cultura grega ou da cultura medieval que deve ser reanimado nem venerado num culto obtuso de exaltação do antigo, do morto... não é isso... fica como material que tem vida” (PONTES, 2006, p. 02). Após o descobrimento do Brasil, a representação do Diabo criada na Europa medieval ganhou espaço no imaginário popular brasileiro, devido às atividades culturais desenvolvidas pelos padres jesuítas que por nossa terra passaram, em meados do século XVI. Eles se tornaram figuras importantes na cultura brasileira; defensores do Bem e da
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ordem divina, como demonstram as obras encenadas pelos missionários da Companhia de Jesus, em especial, as do Padre José de Anchieta. A Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola em 1534 e aprovada pelo Papa Paulo III através da bula de regimini Militantis Ecclesiae, surgiu no momento em que a Igreja Católica passava por profundas transformações religiosas, confrontando-se com uma nova ideologia criada por Lutero e seus seguidores, o Protestantismo. Segundo Francisco Assis Martins Fernandes (1980), como todas as obras de Deus, a Companhia prosperou prodigiosamente na sociedade européia. Jovens das melhores famílias, sacerdotes exemplares, príncipes ilustres suplicaram por fazer parte de tal movimento religioso que tinha por objetivo difundir a fé cristã e fortificar os dogmas da Igreja Católica. As primeiras manifestações cênicas no Brasil são obras dos jesuítas Manuel da Nóbrega, João Azpilcueta Navarro, os quais utilizaram o teatro como instrumento de educação moral e artística. Mas, segundo José Carlos de Macedo Soares, os colonizadores portugueses trouxeram da metrópole o hábito das representações laicas, mas sem ajustálas totalmente aos preceitos literários. Eles “amavam as representações desde as mais simples como o apropósito, até as comédias de costumes, passando pelos milagres ou mistérios e pelos autos”, inclusive aqueles criados por Gil Vicente em Portugal, na época do descobrimento do Brasil. Entretanto, coube ao Padre José de Anchieta criar as primeiras manifestações da arte cênica religiosa em nosso país, conforme veremos mais adiante. (SOARES, 1957). Seguindo as linhas mestras de Paulo Romualdo Hernandes (2008), Anchieta seria o santo que a Igreja Católica tanto necessitava. Considerado herói nacional, o jovem membro da Companhia de Jesus, segundo a concepção histórica da literatura, foi o “primeiro estrangeiro a escrever em brasileiro” (HERNANDES, 2008, p. 15). Anchieta conviveu com múltiplas culturas (africana, européia, indígena) até os seus 14 anos. Quando chegou à Europa, ainda na juventude, entrou em contato com o período de maior efervescência das idéias humanistas. O convívio com professores humanistas o colocava diante de peças com temas bíblicos, realizadas nos pátios do Colégio das Artes, de peças com tradição estética inspirada em temas da tragédia e da comédia Greco-romana. Nessa mesma época, século XVI, Portugal vivia o período da Santa Inquisição e, os autos, como encenação dramática, se fortaleciam, trazendo elementos da tradição medieval para o teatro renascentista. Com efeito, segundo Eduardo
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Navarro (1999), naqueles anos, eram populares os autos de Gil Vicente, fato que nos revela, na obra de Anchieta, grande influência, seja no conteúdo, na forma ou no uso de alegorias e personagens. (FERNANDES, 1980). Com a produção literária e dramatúrgica de Anchieta, inegavelmente, a história da vida cultural brasileira teve início. Seu interesse pelo nativo aparece não só como “objeto de especulação literária, mas também como condição de pessoa humana, como vínculo de cultura e, mais do que isso, como elemento de fixação de cultura” (FERNANDES, 1980, p. 45). Com o objetivo da evangelização, Anchieta soube explorar as manifestações indígenas, seus hábitos e crenças. Passemos agora ao auto Quando no Espírito Santo se recebeu uma relíquia das Onze Mil Virgens ou Auto de Santa Úrsula. Segundo Leodegário Amarante de Azevedo Filho (1966) e o Padre Armando Cardoso (1977), esse auto é um dos primeiros que se encontra no manuscrito de Anchieta, à folha 33v. Para o Padre Armando Cardoso (1977, p. 90), dos pequenos autos, este é o mais perfeito, todo escrito em português, pois “se destinava à Confraria das Onze Mil Virgens”. Foi representado provavelmente em 1585 ou princípios de 1595, na Vila de Vitória, no Espírito Santo. O enredo do auto dá-se da seguinte maneira: no ato I, Santa Úrsula é saudada por meninos no porto da Vila de Vitória com a canção da Cordeirinha Linda. Depois, é acompanhada em procissão até a Igreja de São Tiago. Na entrada do adro, ato II, um Diabo impede o caminho da santa, afirmando que tudo lhe pertence na vila e, para amedrontá-la, dispara um arcabuz. Intervém o Anjo, que repreende o demônio e trava com ele um diálogo provando que todos na vila querem a nova protetora. O Diabo, ameaçado de ser amarrado, retira-se prometendo voltar. No ato III, vem a Vila de Vitória ao encontro de Santa Úrsula, saudando-a com uma cantiga. No ato IV, São Vital saúda a Santa e a conduz até junto da igreja. Vem São Maurício e dialoga com São Vital sobre a proteção da Santa Virgem; esta se oferece para esse encargo. No ato V, a despedida; cantos e danças de meninos em louvores à Santa. Vejamos então a representação do Diabo nessa obra de Anchieta. Os versos que se seguem nos mostram a figura do Diabo como soberbo, desafiador, peçonhento, mentiroso, astucioso e galhofeiro. Ele tenta impedir a Santa de entrar na vila, no entanto, é impedido pelo Anjo que o afugenta. Leiamos: DIABO Temos embargo, donzela,
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a serdes deste lugar. Não me queiras agravar, que, com espada e rodela, vos hei de fazer voltar. Se lá em batalha do mar me pisastes, quando as onze mil juntastes, que fizestes em Deus crer, não há agora assim de ser. Se então de mim triunfastes, hoje vos hei de vencer. (...) ANJO Ó peçonhento dragão e pai de toda a mentira, que procuras perdição, com mui furiosa ira, contra a humana geração! Tu, nesta povoação, não tens mando nem poder, pois todos pretender ser, de todo seu coração inimigo de Lúcifer. DIABO Ó que valentes soldados! Agora me quero rir!... Mal me podem resistir os que fracos, com pecados, não fazem senão cair! (ANCHIETA, p. 93)
Além disso, o autor, mais uma vez, faz uma alusão metafórica ao momento de quando a Virgem lhe esmagou a cabeça, conforme o fragmento abaixo: DIABO Ó, que cruel estocada me atiraste quando a mulher nomeaste! Porque mulher me matou, mulher meu poder tirou, e dando comigo ao traste, a cabeça me quebrou. (...) Ai de mim, desventurado! ANJO Ó traidor, aqui jarás de pés e mãos amarrado, pois que perturbas a paz deste “pueblo assossegado”! (Anchieta, 95)
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Nessas passagens do texto de Anchieta, o Diabo é representado, assim se pode ver, como um ser ameaçador; ele vai contra aqueles que tentam modificar o seu reinado. Portanto, são resíduos do Diabo medieval e do teatro vicentino os caracteres desse ser como soberbo, desafiador, desdenhoso, peçonhento, mentiroso (pai de toda a mentira), inimigo de Deus (Lúcifer), astucioso e galhofeiro. Ainda como resíduo, destacamos o fato bíblico (Gênesis 3: 14-15) em que a serpente do Jardim do Éden é condenada por Deus assim como a mulher, que sempre a enfrentará, esmagando-lhe a cabeça, como vimos nos autos anteriores que versam sobre a Virgem. Como podemos observar nesse nosso trajeto, os conhecimentos literários e culturais acerca do Diabo, com o passar do tempo, cristalizaram-se na mente do povo cristão durante a Idade Média com uma pluralidade de caracterizações e representações (substratos mentais) que se difundiram e migraram por diversas partes do mundo, portando consigo, traços remanescentes que se resinificaram na “sociedade brasileira” do século XVI através da via oral ou pela via escrita, num sentido espacial e temporal; traços residuais do Diabo que circularam por várias épocas e que chegaram até nós, em pleno século XXI.
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AS ADAPTAÇÕES CINEMATOGRÁFICAS DE THE GREAT GATSBY: CRITICIDADE OU ALIENAÇÃO? Gabriela Bruschini Grecca (UEM) RESUMO: Este artigo é resultado de uma condensação dos resultados obtidos em um projeto de iniciação científica, cuja duração foi de doze meses. Dentro da perspectiva da tradução intersemiótica, buscou-se uma análise da tríade de The Great Gatsby: o romance de 1925 de F. Scott Fitzgerald e duas adaptações cinematográficas – de 1974, dirigida por Jack Clayton, e de 2013, por Baz Luhrmann. O que moveu o interesse do trabalho constituiu-se de indagações não apenas a respeito de literatura e arte, mas também de estruturas mercadológicas e institucionais, como o que leva uma indústria cinematográfica se responsabilizar por se tornar “co-autora”, nos termos de Hutcheon (2011), de uma obra que contém um sutil potencial de crítica ao sonho americano justamente em épocas de crises econômico-sociais em ambas as épocas (do petróleo nos anos de mil novecentos e setenta e da recentíssima recessão de 2008). PALAVRAS-CHAVE: Tradução intersemiótica; cinema; literatura; The Great Gatsby.
INTRODUÇÃO Atualmente, quando se fala sobre quaisquer tipos de adaptação – seja no meio semiótico (do livro para uma versão para crianças) o mesmo ou diferente (da página para tela ou vice-versa) – tem se tornado recorrente a necessidade de ressaltar a característica de duplo condicionamento de contextualização da obra resultante do processo de adaptar. Sendo o meio literário uma forma de recriação da realidade, isto é, uma imagem que determinado autor forma sobre ela, permeado pela perspectiva dominante de seu período (seja para rompê-la ou conformá-la), uma adaptação seria a recriação da recriação, ou a imagem da imagem. O responsável – por vezes, toda uma instituição – pela reescrita do material já existente realiza uma leitura da obra de arte a partir de novos tempo/espaço que o permeiam. Afinal, são esses dois fatores que limitam, junto a suas instituições, sem posicionar deterministicamente, um conjunto de possibilidades interpretativas, já que a estrutura institucional não é fixa nem autônoma,
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como explica Fish (1980, p. 318). Ao contrário, ela depende de variáveis e, por isso, gera diferentes significados a toda nova ocorrência de elocução. Desta forma, estudar o romance The Great Gatsby (1925), de F. Scott Fitzgerald, e as adaptação fílmicas de Jack Clayton (1974) e Baz Luhrmann (2013) na perspectiva de considerar aspectos do processo adaptativo, mais do que categorias que elencam proximidade/fidelidade ao original, dependeu do levantamento de condições de produção que possibilitaram tais releituras fílmicas. A partir disso, foi fundamental observar como elementos da narrativa literária potencializaram os filmes por parte dos setores da indústria hollywoodiana dos dois períodos, observando seus empregos efetivados nos filmes. As comparações, ao motivar as hipóteses sobre os processos, tornam estes últimos uma instância reveladora de possíveis perspectivas das épocas. Dois tipos de instituições, portanto, foram levadas em consideração: a cinematográfica e a social, sendo que as duas estão, sob determinado ponto de vista, interligadas. Assim,
sabendo-se
que
são
influências
inegáveis
a
empatia
do
produtor/diretor/roteirista com o romance e o baixo risco de adaptar romances já tornados clássicos, indagou-se de que maneira os períodos nos quais as adaptações cinematográficas se inseriram contribuíram para a caracterização de seus elementos. Tais períodos abrangeram nada menos do que uma segunda era de crise após vinte e cinco anos de uma nova prosperidade (aproximadamente do início dos anos cinquenta até a crise do petróleo em 1973) denominados anos dourados (HOBSBAWM, 1995, p. 253) e uma terceira, a partir de 2008, cujo evento hoje já recebe o nome de Grande Recessão. Para tanto, outro questionamento foi focalizado e explorado: se a crítica social do romance foi mantida nas adaptações ou se seu potencial de denúncia do exagero e da inconsequência consumista da sociedade estadunidense à época da publicação do romance foi diluído, ressaltando a história romântica entre Gatsby e Daisy. Para isso, cogitou-se a hipótese inicial de os filmes funcionarem mais como um mecanismo de alienação, corroborando a perspectiva crítica que evidencia o caráter de entretenimento da indústria hollywoodiana em detrimento de uma veiculação de reflexão crítica.
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TEORIZAÇÃO ACERCA DO LUGAR DA LITERATURA E DOS LIMITES INSTITUCIONAIS NO PROCESSO ADAPTATIVO Lefevere (2007) define literatura como um sistema artificial, pois nele está não somente o texto, como também as pessoas que o re-significam – editor, leitor, etc. Para que esse sistema funcione, o autor aponta a questão do “duplo fator de controle” (p. 33), isto é, as duas forças que giram em torno dele. A primeira força viria de dentro do sistema, representada pelos profissionais aos quais se atribui uma competência exclusiva para desempenhar suas funções – por exemplo, críticos e tradutores. A função principal deste setor seria a de seus integrantes escolherem determinadas obras e as reescrevem (cada um à sua maneira, ou seja, criticam, traduzem, adaptam) até que se tornem adequadas à poética e à ideologia do meio no qual elas serão divulgadas. À segunda força Lefevere denomina mecenato, ou seja, as instituições ligadas ao poder – não no sentido de opressão, mas, ao citar Foucault, o autor define como aquilo que atravessa e, inclusive, produz discursos. Essa é a força que mais se interessa pela ideologia da obra literária que sofre adaptação e interfere para que ela seja feita de acordo com o sistema de ideias dominante da época, para evitar colisões entre ambos. Hutcheon (2011, p. 156), inserida em uma perspectiva pós-moderna, avança na verificação mais palpável sobre o papel do mecenato na relação com a adaptação cinematográfica de romances. A autora argumenta, a princípio, que nem sempre a fidedignidade de uma obra é o objetivo principal do adaptador e, assim, ela não pode ser a única maneira de se compreender como se dá a recriação de uma obra. Por ser um meio diferente, há recursos e intenções diferentes em jogo. Portanto não é tão relevante somente se ater a medir graus de aproximação da obra com o texto-fonte. A adaptação já existe com o princípio da “relação declarada” (p. 27) a uma obra anterior. Para ela, isso é reforçado, por exemplo, na manutenção do título de algumas obras como ocorre no filme The Great Gatsby. Isso já estabiliza, nas palavras da autora, seu “estatuto adaptativo” (p. 69). Entre as razões que levariam toda uma equipe cinematográfica a entrar no campo polêmico da adaptação de romances canonizados, Hutcheon aponta o fato certo de um “público já pronto” (p.126), pois é exclusivamente para ele que o filme comercial
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é planejado e produzido. Segundo Rodrigues (2002, p. 97), a proposta do filme comercial é levada às instituições que, por sua vez, encaminham-na para a publicidade através da mediação dos custos. Além disso, o reflorescimento das leituras do textofonte por meio de uma nova leva de comercialização do romance também se torna um fator de conivência legal/econômica. Assim, a possibilidade de grandes investimentos não necessariamente gera sucesso, mas reconhece que eles atraem grandes artistas e profissionais – como foi o caso dos prestigiados nomes Robert Redford e Mia Farrow nos anos setenta e Leonardo DiCaprio e Tobey Maguire nos dias atuais. Isso não é fortuito: sendo a maioria do público constituída por espectadores comuns, e não leitores profissionais, a rigidez artística se torna ainda mais diluída e um filme pode se tornar um grande sucesso de bilheteria ao mesmo tempo em que um fracasso de crítica, como foi o caso da primeira obra cinematográfica em questão. A segunda permanece em processo de embate de críticas positivas e negativas até o presente momento. THE
GREAT
GATSBY
(1974):
A
PRIMAZIA
DOS
CONFLITOS
PARTICULARES Tratando-se de um filme que se configura no padrão cristalizado do “modo de narrar” de Hollywood, por motivos que a análise seguinte a este tópico procura demonstrar, The Great Gatsby (1974) se trata de um filme conservador. Mascarello (2006), por sua vez, analisa o desenvolvimento da indústria hollywoodiana através do tempo. O ano de feitura do filme está inserido em uma época de renascimento hollywoodiano após a crise do cinema clássico dos anos sessenta. Esse renascimento se caracteriza por uma revalorização desse antigo modelo antes da explosão dos blockbusters a partir de 1975. Vários autores entram em desacordo com relação aos mecanismos de ruptura ou conservadorismo nas obras do período de renascimento entre 1970 e 1975, mas a conclusão a que se chega é que sua marca é mesmo a instabilidade e a coexistência de forças. Vários traços de adequação da obra ao seu contexto sócio-histórico puderam ser observados durante a análise visual e comparativa do filme (com o romance). Um deles,
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por exemplo, é a transmutação do papel de Nick Carraway, narrador-personagem do romance. Enquanto no livro ele está à parte do estilo de vida da alta sociedade e tem sua diferença enfatizada desde o primeiro diálogo, na adaptação cinematográfica ele foi posto no mesmo meio que os outros. Isso também ocorre com a personagem Myrtle, amante de Tom. Apesar de também ser de uma classe (ainda mais) inferior e, no filme, possuir modos, vestimentas e porte semelhantes ao das mulheres da classe alta, torna-se possível interpretar que, nesse meio semiótico, a constante é de que todas as pessoas têm inevitavelmente alguma participação no American way of life. A única exceção é George Wilson, o marido de Myrtle. Portanto, nesta versão praticamente todas, de alguma forma, fazem parte do sistema que se intensificou com as oportunidades da prosperidade estadunidense dos anos dourados (aproximadamente 1950-73). Outro traço de adequação da obra ao seu contexto sócio-histórico está presente em uma cena na qual, em uma das festas no jardim de Gatsby, há uma mesa em que todos os convidados dedicam sua atenção a conjeturar sobre a origem da riqueza do anfitrião. A maioria dos comentários está também no romance, com especulações sobre Gatsby ser parente do Kaiser Willhem da Alemanha e sobre as farmácias que serviam de fachadas para o armazenamento de bebidas alcoólicas. No entanto, um dos convidados acrescenta que Gatsby talvez estivesse dentro dos negócios da indústria petrolífera, valorizada antes da crise de 1973 e que levou justamente à hegemonia do dólar pelo aumento de sua procura. Este é um exemplo de como podem ser empregados como subsídios de identificação do público com sua própria tradição cultural. Não obstante, as representações cinematográficas que pesam na questão do sentimento que o filme evoca no público estão associadas às transformações da história na finalidade de adequá-la ao gênero melodrama. Conforme relata Burgoyne (2002, p. 89), o gênero é a primeira instância adaptadora de uma obra, pois ela tem um modo determinado de se utilizar do contexto panorama histórico, enquadrando-o a suas estruturas. O autor sustenta que isso já modela boa parte da mensagem guiada ao receptor. O gênero melodramático seria, como relata Burgoyne (ibid, p. 90), um “veículo de ligação popular com o passado”, pois traz a leitura de experiência de uma época a partir de formas cristalizadas. O autor ressalta que em tempos de crise, o melodrama
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ajuda a “moldar e influenciar conceitos de identidade nacional” (p.90) e tem sido utilizado para fins semelhantes desde o advento da Segunda Guerra Mundial. Isso é de extrema importância para entender o papel fundamental que esse gênero tem por trás dos juízos depreciativos à sua estrutura e aos temas por ele tratados. Pode-se afirmar que o papel dos elementos do melodrama em The Great Gatsby foi o de suavização de alguns pontos críticos-reflexivos do texto para que a idealização do passado pudesse ser mantida e romantizada no amor irrealizado do casal principal. Em uma época de crise, a contemplação do passado serve como estratégia para relembrar os bons momentos e fundamentar o sentimento comum de nostalgia da nação. Percebendo o nível de influência da construção da memória cultural nesse momento, ela própria se torna objeto de fetiche da indústria pelos meios de comunicação de massa, a qual rapidamente se empenha em moldá-la. Enaltecendo-se a causa nobre do amor de Gatsby por Daisy e minimizando-se as consequências de suas ações de peso social (contrabando de bebidas e sonegação fiscal, por exemplo) as decisões dos cidadãos comuns estadunidenses da década de mil novecentos e vinte podem ser inocentadas em decorrência da crença no sonho americano e, então, qualquer forma de julgamento presente no romance pode ser dispensada. Dois fatores principais levam a essa conclusão: a construção de Jay Gatsby e a importância da história de amor entre ele e Daisy. Em relação ao primeiro, tudo o que no romance leva à ambiguidade do caráter de Gatsby é suprimido no film. Abandona-se, assim, a sugestão contida no livro de que ele teria tido sonhos megalomaníacos em relação à fama e ao dinheiro desde jovem a fim de sublimar os esforços amorosos do protagonista pela amada. Todo o resto teria caráter infinitesimal comparado ao que seus sentimentos, aparentemente puros, possuíam vitalidade e esperança o suficiente para tentar realizar – ao invés de mostrar como a paixão do protagonista pode ter sido, na verdade, por quem a amada representava socialmente e não por quem ela era. Quanto à história de amor, a ambientação do melodrama é nítida e tudo leva a crer que se trata de uma história de amor e sua tragédia. Um ponto incluso no filme que contribui para essa ideia é a exacerbação da sensualidade do relacionamento extraconjugal entre Myrtle e Tom, opondo-se à sublimação do envolvimento idealizado, voltado mais para o sentimento abstrato, entre Daisy e Gatsby. As cenas de confissões
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do ponto de vista do sofrimento das mulheres da história, Myrtle e Daisy, são feitas com a técnica do close em seus rostos e com o ensurdecimento dos ruídos que compõem a atmosfera nos outros momentos.
De acordo com Panofsky (2010, p. 351), a
aproximação ao rosto do personagem readquire ênfase junto ao conteúdo pronunciado. Assim, traços e palavras se re-significam mutuamente. Para o público daquela época, talvez teria sido mais fácil lamentar o fim doloroso do Gatsby da tela do que do Gatsby de papel. Alguns aspectos dolorosos da sociedade estadunidense são retomados, mas de forma mais branda, diminuindo o impacto que a crítica social possa causar no público pagante. THE GREAT GATSBY (2013): UMA ABERTURA À CRITICIDADE DOS ENVOLVIMENTOS ILEGAIS NO PÓS-I GUERRA Passando para The great Gatsby (2013), deve-se levar em consideração que seu ano de feitura já avançou quase quarenta anos da versão estudada anterior. Há poucos anos, o acúmulo crítico de The great Gatsby se expandiu e deu espaço aos resgates da contextualização da obra utilizando-se do enfoque social. Atualmente, a linha crítica leva em conta não só a história, com a análise biográfica e até mesmo conjugal entre Scott e Zelda (VISCARDI, 2011), pois a tradição materialista da crítica literária brasileira já cristalizou a impossibilidade de dissociação entre conteúdo e forma. A adaptação atual de The great Gatsby é movida, principalmente, pelo estético, revelando como o cinema se tornou, hoje, instrumento análogo à tecnologia. Já se pode notar a indistinção que existe entre cinema e os outros meios, pois as livrarias já contam com imagens do filme como capa de livro. Durante muito tempo, a capa valorizada foi a do artista plástico Francis Cugat, chegando a ser considerada raridade por quem a retinha. Isso significa que agora a arte de valor foi substituída explicitamente pela de massa. Com o 3D, altera-se não somente a aproximação, mas elimina também o tempo que separa audiência e exibição, despertando a mencionada sensação de envolvimento. O que fez com que este filme tornasse refutável a hipótese de que as adaptações de Gatsby sempre são sobrevalorizadas pelo aspecto melodramático e, portanto,
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velassem a crítica social, foi que este não apenas exibe, como reforça em vários aspectos a crítica social. No romance, ao retratar o início da amizade entre Gatsby e Nick, o primeiro convida o narrador-personagem para almoçar com ele em um restaurante com Meyer Wolfsheim, suposto “mentor” do grupo de gângsteres com o qual Gatsby estava envolvido. A presença de Meyer, no livro, já é um indicador suficiente para demonstrar que algo de errado estava envolvido nos negócios misteriosos do milionário em sua fala para Nick: “I understand you’re looking for a business gonnegation” (FITZGERALD, 2004, p. 70). Dada a origem alemã de Wolfsheim, é possível deduzir que ele pronunciou de outra forma a palavra sonnegation (sonegação). Ainda que isso seja suficiente ao leitor atento, o filme faz menção de apontar esta relação ao máximo. Quando Gatsby e Nick estão caminhando, no filme, eles entram em uma drugstore e a percorrem até o fundo dela, deparando-se com uma porta. Em um pequeno espaço, surge um par de olhos que pede por uma senha. Gatsby a pronuncia e eles entram em um bar onde são vendidas bebidas alcoólicas ilegalmente. Isto era extremamente comum na época, porém está ainda mais reforçado no filme do que no próprio livro. Outro fato é de Tom se localizar no mesmo lugar, o que torna seu papel o de tornar Gatsby duplamente seu bode expiatório: por ter uma amante, assim como ele, e por pertencer àqueles envolvimentos ilegais, como é sugerido que Tom também esteja. Mais fatos no filme de 1974 são limitados e, por sua vez, ressaltados no de 2013: o fato de as abotoaduras de Wolfsheim serem feitas de dentes humanos; a ênfase na situação duvidosa na qual se encontram os negócios entre ele e Gatsby; a numerosidade de ligações que Gatsby recebe de suas transações (que merecem até tratamento de close na feição das pessoas que estão por perto sempre que elas ocorrem); a ligação com Dan Cody. O papel de Nick como narrador também envolve mais a atmosfera do filme. Seus comentários funcionam como complemento das cenas – é rara a existência de alguma em que ele não esteja presente ou, ao menos, suas considerações no romance. Estas, por sua vez são postas como letras produzidas por uma máquina de escrever caindo em cima da imagem. Assim, ele não é um “guia” – ele elucida, opina, comenta
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assim como o coro tinha como papel na tragédia grega. Ele, assim, representa mais uma vez as dúvidas e a posição do cidadão comum. Além disso, Luhrmann assume a crítica que diz que Nick Carraway é uma projeção do próprio autor, Fitzgerald. No filme, Nick assume aspectos biográficos do autor, como a internação e o problema com o alcoolismo. Inclusive, uma das primeiras cenas no livro conta como foi a primeira bebedeira do personagem no apartamento de Myrtle (bancado por Tom Buchanan): I have been drunk just twice in my life, and the second time was that afternoon; so everything that happened has a dim, hazy cast over it, although until after eight o’clock the apartment was full of cheerful sun (...) either it was terrible stuff or the whiskey had distorted things, because it didn’t make any sense to me. (FITZGERALD, 2004, p. 29).
Utilizando-se desta passagem, o diretor fez uma ponte para dizer que foi o início dos problemas do personagem, dando a ele um desdobramento inexistente no livro. A disputa final entre Tom e Gatsby não segue a mesma vertente da primeira adaptação estudada, na qual Daisy parece ter saído correndo com medo de um confronto físico. O domínio de Tom como um homem bruto e opressor explicitado por várias palavras durante o livro como hard mouth, supercilous manner, arrogant eyes, always leaning aggressively forward (ibid, p. 7) é retomado pela confiança que ele adquire ao perceber que Daisy não consegue deixar de lado o fato de que Gatsby, por mais que houvesse enriquecido, não tinha “sangue azul” como ela e Tom. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como conclusão, tornou-se nítido na pesquisa que, nas duas releituras fílmicas do romance de Fitzgerald, a apropriação da atenção e da emoção do público corrobora com essa necessidade de estimular uma identidade nacional a partir da figura de Jay Gatsby e de sua história e que a intencionalidade de uma adaptação intencionalidade varia quando um aspecto temático ou formal (ainda que ambos sejam dialeticamente inseparáveis) é ressaltado mais do que o outro junto pelo cálculo da viabilidade que isso resulta para uma audiência hoje extremamente democratizada. Assim, levando-se em
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consideração o contexto social da adaptação cinematográfica em questão, de 1974, pode-se afirmar que o caráter de denúncia social do romance The Great Gatsby foi minimizado na produção hollywoodiana, enquanto no de 2013 ele ficou bastante explícito, o que refutou a hipótese inicial da tendência da utilização do romance no cinema como mecanismo de alienação. Pode-se especular que a primeira adaptação torna-se um melodrama que evidencia a fantasia do resgate do personagem principal e seu amor sublime pela moça inatingível e, de seu ponto de vista, indefesa. Tal construção do personagem e de sua história tornou-se mais vendável para a indústria cinematográfica: os expectadores teriam suas possíveis participações nos modos de agir sociais criticados no romance diminuídas em sua culpa, já que a luta por um amor sublime tudo perdoa e justifica. Para o público daquela época, talvez teria sido mais fácil lamentar o fim doloroso do Gatsby da tela do que do Gatsby de papel. Alguns aspectos dolorosos da sociedade estadunidense são retomados, mas de forma mais branda, diminuindo o impacto que a crítica social possa causar no público pagante. Já a técnica da segunda adaptação deixou o público em contato com uma forma mais realista no espaço da narrativa cinematográfica. Não há tentativa de redimir o passado ou torná-lo mais nostálgico do que o usual. O risco tomado foi maior talvez pelas condições nas quais ele foi feito, para um público já preparado para o tipo de exibição realizada. O espírito do tempo, apesar de não ser homogêneo, é passível de ser identificado em ambos, mesmo tratando da mesma obra de Fitzgerald. Assim, o trabalho com todo o processo deu um novo olhar à pesquisadora envolvida. Se análises semelhantes forem feitas com as adaptações atuais (muito em voga, por sinal), é possível descobrir recursos incríveis capaz de garantir não só a sobrevivência da obra, mas também a exploração de substituições/transmutações/somas/reduções criativas que potencializam e valorizam o processo interpretativo envolvido no meio cinematográfico. Não se quer com isso dizer que ele possa substituir a literatura, mas que ele é invariavelmente um dos modos de circulação da mesma e – positivo ou negativo seja o resultado – gera expectativas. Resta esperar pelas críticas que estão sendo construídas e por análises que podem ser proveitosas provenientes dos estudiosos da Estética da Recepção.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BURGOYNE, R. A nação do filme. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. FISH, S. Is There a Text in This Class? The Authority of Interpretive Communities. Cambridge: Harvard University Press, 1980. FITZGERALD, S. The Great Gatsby. New York: Scribner, 2004. _____. O grande Gatsby. Rio de Janeiro: Record, 1995. HOBSBAWM, E. Os anos dourados. In: Era dos extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 253-281. HUTCHEON, L. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. Florianópois: Ed. da UFSC, 2011. LEFEVERE, A. O sistema: mecenato. In: Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. Bauru: Edusc, 2007. p. 29-49. MASCARELLO, F. (org) Cinema hollywoodiano contemporâneo. In: _________. História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006. p. 330-357. PANOFSKY, E. Estilo e meio no filme. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Saga, 2010, p. 319-38. RODRIGUES, C. O cinema e a produção. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. VISCARDI, Roberta Fabbri. A posição do narrador em The great Gatsby de F. Scott Fitzgerald. 2011. 80 p. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo: São Paulo, 2011.
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MULHER-OBJETO X MULHER-SUJEITO: AS REPRESENTAÇÕES FEMININAS EM O PINTOR QUE ESCREVIA, DE LETICIA WIERZCHOWSKI
Gabriela Fonseca Tofanelo (UEM) 1 Para iniciar Tendo em vista que o movimento feminista e as constantes mudanças que este conquistou na/para a sociedade alterou profundamente a realidade histórica relacionada à invisibilidade e ao silenciamento da mulher em todos os âmbitos (social, econômico, políticos, entre outros) e, consequentemente, na literatura, é que atualmente o campo dos estudos literários dedicados à crítica feminista é cada vez maior e muito discutido nas universidades. Para iniciar, é relevante periodizar o percurso histórico da escrita literária feminina. A pesquisadora americana Elaine Showalter (1985) dividiu a literatura inglesa em três etapas: a feminina (1840-1880), em que eram repetidos os padrões tradicionais ainda vigentes na sociedade, ou seja, masculinos, em que a escritora via-se, não raro, obrigada a adotar pseudônimos; a feminista (1880-1920), marcada pelo protesto das escritoras em relação à dominação masculina e à opressão feminina; e a fêmea, desde 1920 até a atualidade, que eclodiu com a conscientização de sua autorrealização. Adaptando para a literatura de autoria feminina brasileira, segundo Zolin (2005, p. 335), com algumas modificações, tem-se: a fase feminina, a partir de 1859, com o romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, no qual a mulher obtinha um caráter pejorativo, frágil e indefeso; a fase feminista, em 1944, com Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector, em que a mulher passa a questionar sua situação já evidenciada no movimento feminista; e a partir de 1990, surge a fase fêmea ou mulher, com uma literatura voltada para a autonomia da representação feminina, sem mais serem necessários os questionamentos anteriores em que a mulher tem uma chance nunca antes permitida para que “expresse a sua sensibilidade a partir de um ponto de vista e de
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um sujeito de representação próprios, que sempre constituem um olhar da diferença” (Lobo, 2010). Na contemporaneidade, a mulher possui direito à voz, ou seja, oportunidade de ela mesma representar e dar voz a seus personagens. Por isso, o interesse nessa área de estudo, principalmente por ser contemporânea, a fim de verificar como a mulher escritora de hoje em dia está escrevendo, quais as escolhas que faz ao caracterizar seus personagens. Nesse sentido, tendo em vista a representação de personagens na literatura, partimos dos resultados da pesquisa desenvolvida pela professora Regina Dalcastagnè (UNB), denominada “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”, iniciada em 2003, que buscou analisar todos os romances publicados entre 1990 e 2004, por três grandes editoras do Brasil: Record, Companhia das Letras e Rocco. A conclusão é a de que tais representações, com raras exceções, ainda são reduzidas a estereótipos tradicionalmente reproduzidos na literatura, ou seja, a grande maioria das personagens são homens, brancos, de classe média, heterossexuais, entre outros. A partir disso, a professora Lúcia Osana Zolin (Lafeb-UEM) propôs
uma
continuidade à pesquisa de Dalcastagnè, pensando, por sua vez, nos romances de autoria feminina de 2003 a 2013, também publicados pelas mesmas três grandes editoras do país. O projeto de pesquisa está em andamento e este trabalho é decorrente da participação em tal projeto. A escritora escolhida para esta análise foi Leticia Wierzchowski, cuja carreira iniciada em 1998, com o romance O Anjo e o Resto de Nós, já percorreu um longo percurso. Ficou famosa com A Casa das Sete Mulheres, escrito em 2002 e adaptado para a televisão em uma minissérie. Foi, ainda, traduzido para diversos idiomas. O romance analisado aqui, O Pintor que Escrevia, é de 2003. Porém, o enredo se passa em dois capítulos históricos. O primeiro em 1958, e o segundo somente 20 anos depois, em 1978. A intenção é estudar as duas personagens femininas da obra: Antônia Maestro e Amapola Maestro, mãe e filha, respectivamente. 2 As Mulheres
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Trata-se da história de Marco Belucci, um pintor que comete o suicídio logo no início da narrativa e deixa uma extensa obra dupla: telas pintadas e, no verso de cada uma delas, uma espécie de diário íntimo, e é por meio delas que conhecemos os acontecimentos do enredo bem como as representações das personagens, envoltos por um grande mistério imposto na narrativa acerca do amor exacerbado do pintor por Amapola, sua esposa, que o leva ao suicídio. Suas telas e as confidências presentes nelas são reveladas ao leitor por um merchand de artes, Augusto Seara, contratado pela Amapola para analisar os valores das obras, 20 anos após a morte do marido. Mãe e filha. As duas representações de personagens femininas presentes no romance e que interessam a esta pesquisa. É necessário ressaltar que a perspectiva a partir da qual ambas são apresentadas ao/a leitor/a, em sua grande maioria, é a de Marco Belucci, sintetizada em seus escritos no verso das telas. Pelo viés da Crítica Feminista, pode-se classificar essas duas representações femininas analisadas pelo binômio: mulher-sujeito e mulher-objeto: “A mulher-sujeito é marcada pela insubordinação, por seu poder de decisão, dominação e imposição; enquanto a mulherobjeto define-se pela submissão, pela resignação e pela falta de voz. (ZOLIN, 2009, p.219)
Amapola Maestro foi representada como a mulher-objeto, e sempre sob o viés da sensualidade e de seu corpo desejado, apenas como objeto de desejo sexual. Enquanto Antônia maestro é a mulher-sujeito, que faz a ação, que é viúva, não é marcada pelo patriarcalismo e sim pela mulher que age, que pensa e que faz de tudo para conseguir o que quer. Tal análise é permitida por uma série de evidências apresentadas no romance. Antônia Maestro é a mulher rica e poderosa que não mede esforços para ver cumpridas suas ambições. É descrita como uma mulher inteligente, determinada, que pensa muito, lê muito. “Seu quarto... É ali que pensa, que planeja, que escreve suas cartas para a Europa, é ali que lê”. Portanto, uma mulher sempre ocupada, com muitos afazeres. As descrições físicas sempre mostram o quanto ela fora uma jovem belíssima, e mesmo agora, já com mais idade, ainda é muito bonita. “Sua beleza, antes gritante como
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a tarde lá fora, transformou-se em um sereno entardecer, um entardecer irretocavelmente belo” (WIERZCHOWSKI, p. 12, 2003). Era “alta, elegante, bela e severa, muito séria, muito reservada”. A empregada doméstica diz que tinha medo dela. O seu desfecho é somente retratado com boatos de que morreu louca, falando o tempo inteiro com o pintor já falecido, seu genro. A única tela em que Marco Belucci a retrata, deu o nome de “Fantamasgoria”, o que evidencia muito esse medo que todos têm dela. É descrita pelo merchand de artes da seguinte maneira: “O fundo é cinzento e denso, a mulher como que flutua dentro do espaço da tela, como uma espécie de criatura pictórica. Um demônio, talvez” (WIERZCHOWSKI, 2003, p. 80). A alusão à imagem de Antônia como um fantasma relaciona-se ao grande segredo do pintor, o qual Antonia conhece, que está sempre o perturbando, assombrando, fazendo com que se lembre constantemente de seu passado cheio de pecados. Era uma mulher muito rica, conforme atesta as descrições de sua casa com inúmeros empregados/as e com um legítimo quadro de Renoir na parede, o luxo em que vivem seus moradores sem desempenharem nenhuma ocupação, embora em momento algum é feita alguma menção a isso. O fato de ser muito rica parece impelir a personagem a realizar todos os seus desejos, inclusive o de convencer Marco Belucci a pintar sua filha, Amapola, criando a situação ideal para os dois se apaixonarem, sem saberem que eram irmãos, ambos filhos do mesmo pai, tendo Amapola nascido de um adultério de Antônia Maestro. A ambição da protagonista era casar os dois, para terem filhos igualmente belos. Marco Belucci ficou sabendo disso, mas Antônia o convenceu e o chantageou para que ele se casasse com ela, e ninguém nunca saberia desse pecado, desse incesto. E assim o fez, porém, odiou muito Marco Belucci, quando o único filho que chegaram a gestar, teve aborto espontâneo, como se ele fosse culpado. A respeito desse fato ele escreveu: “Eu não precisava de um filho, mais um peso na minha alma que apenas quer se ocupar de você, Amapola (...) Eu não matei o meu filho, apenas o vi morrer com certo alívio” (WIERZCHOWSKI, 2003, p. 74-75).
Já Amapola Maestro é representada como a menina frágil e bela que viveu sob os cuidados e vítima das ambições da mãe. Nunca fez questão de fazer muitas coisas, não se importava com isso. Vivia à sombra dos outros. Ou a Amapola é retratada com a
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mulher bela, sensual, vista somente pelas incríveis descrições de seu corpo, este na maioria das vezes retratado nu, ou é vista como a menina mimada que não faz nada, somente existe, deitada em seu quarto, esperando os outros fazerem por ela. “Amapola gosta de gastar seu tempo debruçada sobre o quintal. Ali ela resta por horas, perdida em pensamentos enquanto o marido, no sótão, pinta” (WIERZCHOWSKI, 2003, p. 11). Até mesmo o narrador descreve com certa ironia essa questão: “Tão pura, pobre Amapola, que dorme em seu quarto o sono vespertino e sem angústias” ( WIERZCHOWSKI, 2003, p. 14). Esta fala, “pobre Amapola”, chega a ser irônica, tendo em vista que está representada como sem angústias, nada a se preocupar, dormindo durante a tarde, sem muitos afazeres. O próprio Marco Belucci chega a escrever certa vez: “Amapola não sabe mais viver sem mim, sem as cores que lhe dou e com as quais a recrio diariamente em busca da magia que dos seus olhos se derrama […] Minha flor, feita para viver à míngua” (WIERZCHOWSKI, 2003, p.76). E o narrador, compadece dessa opinião de Marco Belucci ao dizer “talvez Amapola, sua musa, estivesse-lhe ao encalço, rindo, brincando, embelezando-lhe a vida” (WIERZCHOWSKI, 2003, p. 41). Há um trecho que chega a ser inquietante sobre esse assunto, escrito pelo pintor: “Não hei de vê-la envelhecer. Não quero dizer do nosso imenso pecado.. E mais: não quero vê-la gasta; não mais esse frescor e essa perfeição que me assustam.” (WIERZCHOWSKI, 2003, p.115). Claro que aqui, o pintor já havia se decidido pelo suicídio, e por isso diz que não irá vê-la mais, porém ao mesmo tempo, diz que não quer vê-la gasta. Portanto, deixa a entender que somente a atração física o interessa, e só por isso que existe esse amor incrível.
“A mulher que eu amei foi a mais bela sob o céu. Perfeitas, as curvas do seu corpo, as linhas do seu rosto; perfeito, o seu sorriso, o brilho agudo dos seus olhos de água-marinha. Nunca houve outra como ela. Talvez por isso eu me perdoe. Quem resistiria ao seu amor? Qual homem, tendo ele sangue nas veias, viraria o rosto para Amapola, conteria seus impulsos, seu desejo, seu prazer...” (WIERZCHOWSKI, 2003, p. 115)
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Durante o romance inteiro tem-se descrições que retratam a Amapola sempre sem muitos afazeres, somente esperando o marido. Sua função parece ser exatamente essa: ser linda, bela e desejada. É de se ficar pensando em como ela se sente em relação a isso, se é realmente dessa forma. Porém, ao chegar mais ao final do romance, uma carta dela é encontrada, única parte do romance inteiro que dá voz à Amapola e confirma, pela sua própria voz, tudo que os outros retratam dela: “De dia, a verdade é que me contento em apenas existir ao lado dele, como um vulto, não muito necessário, mas agradável talvez, até mesmo decorativo, por que não? Eu aceito esta discrição de ser coisa e não gente. Um alívio, confesso. Deve sempre haver um momento na vida em que é necessário não pensar apenas existir. Durante o dia sou apenas isto: uma bela mulher exatamente igual a um troféu ou uma jóia ou uma tela. Um adorno (WIERZCHOWSKI, 2003, p 122).
A fala de Amapola acaba remetendo a uma visão já há muito ultrapassada da mulher, que Simone de Beauvoir evidenciava: “a mulher reduzida em ser para o outro” Portanto, temos essa combinação bem diferente entre as duas representações femininas no romance. Mãe e filha, tão iguais em uma beleza incomparável, porém, diferentes no modo de ser. Uma muito ativa, outra passiva, vivendo uma vida que os outros quer que viva. Fica evidente também no romance os pressupostos de Pierre de Bordieu quanto à dominação masculina. O autor afirma que é um fato tão impregnado na sociedade que já é considerado como parte da “ordem natural das coisas”. E ainda, chama de violência simbólica, pois está cristalizada na sociedade, visto em falas das próprias mulheres (2005).
Considerações finais Pensando na perspectiva dos Estudos Culturais e, principalmente, da Crítica Feminista, e em relação ao o projeto supracitado, ao analisar a literatura de autoria feminina contemporânea, a hipótese levantada, tendo em vista o contexto em que emergem, problematizador das verdades estabelecidas por ideologia hegemônicas, é
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que se encontrasse personagens e enredos que fujam do comum, subvertam diversas ideologias e estereótipos impostos na sociedade, como forma de retratar e representar diversos perfis antes silenciados, condizendo com os pressupostos da terceira fase da autoria feminina no Brasil colocada por Zolin. Verifica-se que essa análise não ocorre inteiramente neste romance estudado. Porém, primeiramente, faz-se necessário destacar alguns pontos. A época da narrativa está situada no passado e não contemporâneo ao ano em que autora está retratando, portanto o contexto é outro. Porém, outro ponto extremamente importante é que esses ideais não são mesmo o objetivo da obra. O interesse principal é a temática e a forma como esta é desenvolvida no romance. Trata-se de uma família extremamente rica, totalmente diferente do que se vê, a par da sociedade comum. Tal fato é evidenciado constantemente com diversos aspectos da narrativa. Por esses motivos, parece que o interesse de Leticia Wierzchowski está no enredo, na história que quer passar e no modo como esta é contada. E quanto a isso, não pode-se tirar seu mérito. Há certo tom de crítica, sim, à visão que o romance passa de Amapola Maestro, somente evidenciada pelo seu corpo e beleza gritante. Antonia Maestro ainda quebra um pouco a visão de mulher, conforme evidenciado na análise, em que temos uma mulher que faz de tudo para conseguir o que quer, não vive à sombra de homem, pelo contrário, é sozinha, viúva. Porém, por mais que ainda tenha um tom de crítica quando à visão de Amapola Maestro, pelo menos por parte do narrador, não dá pra negar o fato de que muitas opções são deixadas de lado, e algumas representações continuam silenciadas, no sentido de ainda continuar reproduzindo os principais os estereótipos culturais citados e percebidos durante a pesquisa supracitada de Regina Dalcastagnè.
Referências BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira 7ª ed. , 1980.
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BORDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Trad. Maria Helena Kühner-4ªed.-Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005 DALCASTAGNÈ, Regina. A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n.o 26. Brasília, julhodezembro de 2005, pp. 13-71 LOBO, Luiza. A literatura de autoria feminina na América Latina. Disponível em: . Acesso em: 8 agosto. 2014. SHOWALTER, R.T. A literature of their own: British Women Novelists from Brontë To Lessing. New Jersey: Princeton UP, 1985 ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica Feminista. In: ZOLIN, Lúcia Osana; BONNICI, Thomas. Teoria Literária. 3. ed. Maringá: Eduem, 2009 WIERZCHOWSKI, Leticia. O Pintor que Escrevia. Rio de Janeiro, RJ – Ed. Record, 2003
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PERFORMANCE SOCIAL x ARTE: HIBRIDAÇÕES POÉTICAS
Profa. Me. Gabriela Fregoneis (UEM); Prof. Me. Élder Sereni Ildefonso (UEM)
Resumo
A proposta desta escrita discute questões relevantes sobre problemáticas referentes ao campo da performance social, mais especificamente as derivações e zonas de fronteira com a arte, visto o crescente número de ações e a densidade político social de tais propostas no momento em que vivemos. É fator relevante nas as argumentações, um olhar para a América Latina, tão produtiva neste campo de ação e ainda com pouca visibilidade em nosso território. Para tal abordagem, a temática norteadora será o pensamento sobre a importância de engajamento entre arte e sociedade. Na composição teórica serão utilizados os conceitos “chaveamento” de Erving Goffman e ideias que tangenciam a “liminaridade” Victor Turner.
Palavras-chave: performance social, intervenções artísticas, arte e sociedade.
Não é recente o campo de estudo associando a arte. Muitos têm sido os estudos sobre esse entrelaçamento entre arte/vida e arte/sociedade. O maior objetivo que tange a escrita desse artigo, diz respeito à análise de algumas performances políticas realizadas na América Latina e seus possíveis embasamentos em torno das performances sociais. Dentre as inúmeras performances realizadas recentemente, acabamos escolhendo duas que mais nos chamaram a atenção por seu caráter singular e seu viés político social: a performance Mugre (1999) do performer colombiano Rosemberg Sandoval e proyecto Filoctetes (2002) do grupo El Periférico de Objectos, dirigido por Emilio García Wehbi. Para dar conta de tão vasto campo de investigação, utilizaremos dois conceitos chave para auxiliar na pesquisa: o conceito de chaveamento” do sociólogo canadense Erving Goffman e de “liminaridade” de Victor Turner.
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O professor e pesquisador americano Marvin Carlson (2009) diz que: "se perguntarmos o que faz das artes performáticas serem performáticas, eu imagino que a resposta sugerirá, de algum modo, que elas requerem a presença física de seres humanos treinados ou especializados, cuja demonstração de certa habilidade seja a performance” (CARLSON, 2009, p.13). Carlson toma como base um dos princípios básicos da performance, o estado de "presença". Se colocar presente, por meio da arte performática, vai além da relação entre corpo/tempo/espaço. A presença aqui é tomada como um ato político e de compartilhamento entre os indivíduos. Rosemberg Sandoval, em sua performance Mugre, trabalha sobre este viés, ou seja, o performer colombiano desloca a "presença física" do mendigo (tradução em português para mugre) do seu território liminar para um território "divino" tais como os museus e salas de exposições. Profana esse novo espaço (termo usado por Agamben em sua obra Profanações), gerando um deslocamento entre objeto e lugar. As experiências performativas em Mugre e El proyecto Filoctetes, interessam a esta pesquisa sob a perspectiva da existência em um espaço - tempo, quais seriam as perspectivas de dois trabalhos efêmeros in natura, que optam por uma associação ao que Dewey (2010) diz: “uma iniciação e uma consumação”? Não há em si uma definição que restrinja o início e fim da experiência, ela evolui de acordo com as eventualidades que a concernem e assim se distribuem na relação espaço/tempo, viabilizando a insurgência poética de tal arte que cria uma fricção com o simulacro social, desvelando outras possibilidades relacionais a partir a ação artística. Para refletir sobre a obra de Sandoval e os processos e procedimentos artísticos que nos conduzem às zonas liminares, nos recorreremos as inflexões de Victor Turner, para desenvolver paralelos entre uma arte de resistência e que questiona a esfera social, criando deslocamentos referenciais da esfera pública, assim viabiliza terreno fértil de discussões entre a performance e sociedade. Victor Turner, antropólogo escocês inspirou-se no o conceito de liminaridade de Arnold Van Gennep, antropólogo alemão, sobre os ritos de passagem, estes que se dividem em separação, margem e agregação, sendo que a margem é caracterizada com certa autonomia dos outros dois momentos, devido ao que Gennep desenrola como liminar, que caracteriza o ideal próprio de passagem do rito em questão.
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Para este entendimento sobre a complexidade da limininaridade, é importante a compreensão de que em seus instantes de existência se revela potencialmente estranha e familiar, assim põe a prova a própria sistematização da vida em um fluxo normativo, de modo a tornar complexa justamente as eventualidades transitórias de um sujeito ou grupo perante vida. Por esta guia, nossa pesquisa se afeiçoa com o que é marginal, por ser neste lugar da borda que se discutem a instabilidade dos sistemas ou um contínuo transitar que cria fricções na tessitura social. Um não-lugar é o termo adequado às pesquisas artísticas que estabelecem diálogo nesta zona liminar de discussão da esfera pública. Assim se destina a criar interfaces com a performance social. Para que esta reflexão ocorra com proximidades aos pensamentos sobre liminaridade, faz-se necessário uma mudança de perspectiva em uma transgressão na recepção do mundo a partir de um olhar performativo, no deslocamento semântico que equivale ao poético/reflexivo no fazer artístico. Estar deslocado ou transgredir o simulacro social é criar oportunidades de observar as forças que subjazem o indivíduo em situações liminares. A experiência se potencializa na presença quando articula realidades por meio do discurso artístico efêmero. Nesta reflexão, o pensamento sobre a formação do indivíduo ocorre não em uma estrutura, mas na fricção entre estruturas, prevendo constantes trânsitos de entendimento e ação sobre a vida individual e social. A reflexão sobre esta busca por zonas liminares é fortuito para o artista, visto que quanto mais ele estiver deslocado em relação a norma e conseguir compreender as zonas de intersecção entre sistemas vigentes, será mais viável a rearticulação de seu lugar de ação na esfera pública. A obra, Mugre, consiste em legar um mendigo para dentro da galeria de arte e esfregá-lo na parede e no chão e finaliza-se ao devolver ele à rua. Mugre, transborda este contorno teórico que nos impele a pesquisa, sendo que um estado liminar é evocado na sugestão do olhar performativo do público. Deslocar-se com alguém nas costas não é algo que passe despercebido aos olhares mais atentos no ambiente público, no entanto algo se potencializa no momento em que este alguém é caracterizado como um “esquecido” pela conjuntura social. Sendo assim, Sandoval retoma a discussão sobre os “desaparecidos” urbanos, os que não são vistos mas que sempre estiveram lá, como uma
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mancha na reputação da presunção capitalista. Pessoas que não são identificáveis pelos quesitos impelidos ao cidadão, pois não funcionam em favor da produtividade. Neste ponto os mendigos são um câncer1 estrutural, pois ocupam o espaço e vivem as cidades com maior potência comparado aos que ali transitam visto sua relação vital com a urbe. Câncer também no sentido de uma proliferação interna aos sistemas e que resistem nos interstícios ou zonas de fricção entre sistemas, neles está contida a desestruturação no tocante à sobrevivência sem a convocatória contínua do “dever contas” ao tempo organizacional capitalista. Sandoval ao carregar essa potência (mendigo) que – por opinião coletiva é um ser não funcional – na arte subjaz um ser que detém em sua pele e roupagem, as marcas da falência do capital, toda a sujeira que ele contém são impregnâncias das problemáticas do constructo intelectual e da práxis da edificação urbana. Nesta pele que contém o descaso, está a arte de Mugre. Esfregar o corpo, em geral, é uma ação de limpeza corporal, a qual todos os dias é feita pelos cidadãos “de bom tom”. No caso de Mugre, esta ação não se localiza na ideia de retirar a sujeira do corpo, mas em Foto 1- Mugre
imprimir esta sujeira na parede
e chão brancos, imaculados pela tinta mesma que cobriu toda a falha estrutural reflexiva do projeto arquitetônico moderno, que necessita de constantes reformas por ter a necessidade de sempre estar intocável.
Aqui entendido como um ente com todas as características dos demais entes similares e que ocupam urbe, mas que em diferenciação aos demais que auxiliam na manutenção do sistema, assim como as células do corpo humano, estes têm uma inserção diversa da produtiva, criando uma potencial instabilidade na organização social produtivista.
1
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No tocante a arte, historicamente o cubo branco foi de grande temática para os questionamentos, principalmente a partir da segunda metade do séc. XX, alguns dos debates se apresentavam na reflexão deste lugar sem identidade poder receber as qualidades alheias, ou seja, da obra em si, e deste modo viabiliza o controle sobre os ruídos neste espaço sem características que separa arte e vida. Sandoval retoma essa discussão, justapondo cidade, galeria e artista, em que o terceiro se adequa a discussão referida, justamente por usar roupa branca o que potencializa a discrepância entre o artista e o mendigo, já que há apenas esse diferencial entre artista, espaço e material de trabalho (mendigo), essa diferenciação toma sua exponencial amplitude. Esfregar um ser humano no espaço é uma ação simples, mas que em Mugre é ressignificada, esfrega em nossa cara a condição social atual e a necessidade de que se multipliquem as abordagens artísticas de imediato cunho político, revisando o olhar sobre o fazer artístico por meio da conexão liminar com a sociedade. A liminaridade, neste caso em específico, se encontra no fazer artístico, também na criação de diálogo com o mendigo e na concretização da obra de arte que deixa o olhar em suspensão daqueles que presenciam a performance. Em paralelo a obra Mugre
Foto 2- El Proyecto Filoctetes
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de Sandoval, engajamos na discussão o trabalho El proyecto Filoctetes, do grupo El Periférico de Objectos, dirigido por Emilio García Wehbi. O projeto se trata de uma intervenção urbana, utilizando 25 bonecos de látex de formas e tamanhos reais humanos e localizados em lugares estratégicos da via pública em Buenos Aires. Os bonecos eram colocados em posições de abandono e acidente. Cada boneco era acompanhado de um grupo de pessoas que registravam as reações dos espectadores que transitavam por essas vias públicas, fazendo suscitar uma reflexão acerca da relação existente entre os indivíduos e as circunstâncias em que eles se encontravam. Segundo Wehbi, o trabalho partiu de três pontos bases: a) Sua experiência com os objetos, como um dos fundadores do grupo El Periférico de Objectos; b) A dolorosa crise social, política e econômica que havia eclodido em dezembro de 2001 na Argentina e que encheu as ruas da cidade com pessoas sem teto; c) Seu interesse é indagar e sacudir as relações
entre
espectador
e
espetáculo.2 Podemos ver, por meio dos registros fotográficos apresentados no site do grupo, que as reações dos transeuntes eram bem diversas. Uns fingiam que não viam a situação de crise Foto 3- El Proyecto Filoctetes
apresentada,
disponibilizavam
outros a
se
ajudar
diretamente, tocando os objetos e
alguns, por não se sentirem a vontade em enfrentar a realidade apresentada sozinhos, denunciavam o acontecido chamando policiais (super-homens sociais) para resolverem Acesso pelo site: http://hemisphericinstitute.org/journal/4.2/eng/en42_pg_persino.html. Tradução dos autores. Texto original: a) su experiencia con objetos, como uno de los fundadores del grupo El Periférico de Objetos, b) la dolorosa crisis social, política y económica que había eclosionado en diciembre del 2001 en Argentina y que sembraba las calles de la ciudad de personas sin techo, c) su interés en indagar y sacudir las relaciones entre espectador y espectáculo. 2
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o problema. Afim de instigar ainda mais as relações entre a obra e os espectadores, Wehbi utilizou de recursos cênicos hiper-realistas como vômitos e sangue nos bonecos. Por meio de uma experiência estética, Filoctetes busca associar a experiência política/social do sujeito com as situações liminares vividas e apresentadas na vida cotidiana dos argentinos. No livro A representacão do eu na vida cotidiana, Goffman apresenta a ideia de "definição da situação"3, ou seja, a pessoa se pergunta: o que está acontecendo aqui? A partir deste questionamento o indivíduo toma sua decisão e consequente reação frente a situação, buscando sempre uma ação adequada à situação apresentada. A obra Filoctetes trabalha diretamente com essa noção de Goffman, visto que o intuito central do artista é causar um choque entre a intervenção urbana realizada por meio dos bonecos e o registro das possíveis reações dos indivíduos que transitavam nesse espaço urbano. Sob o olhar da performance social para a performance transformativa, Goffman apresenta a noção de "chaveamento", que se enquadra nas discussões aqui apresentadas. Segundo o sociólogo, os acontecimentos sociais apresentam "faixas de experiências" e que para análise, deve-se realizar o isolamento dessas sequências e assim compreender melhor seu conjunto de ocorrências. Para tanto, Carlson diz que: o chaveamento está muito mais diretamente conectado com o que normalmente se entende por performance e envolve uma faixa de atividade tão significativa sobre alguns termos que é transformado pela recontextualização em algo com um sentido diferente. Entre as 'chaves' básicas da sociedade, Goffman menciona os refazeres lúdicos, como o 'faz de conta’ (CARLSON, 2009, p.63).
É possível associar a concepção de Emilio Wehbi e a obra Filoctetes sob o viés apresentado por Goffman, no que diz respeito a recontextualização de um acontecimento real por meio de uma prática lúdica, neste caso os bonecos de látex, tendo como foco a tessitura dentro de uma performance transformativa. O perceber. O deslocar. O agir e reagir. O impactar-se com o deslocamento liminar e seu contato com o Mundo. Goffman define performance como "toda atividade de um indivíduo, que ocorre durante um período marcado por sua presença contínua perante um conjunto GASTALDO, Édison. Goffman e as relações de poder na vida cotidiana. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 23. N.68, outubro/2008.
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particular de observadores, e que tem alguma influência sobre esses observadores" (CARLSON, 2009, p.49). É importante lembrar que Goffman fala em observadores e não em espectadores, pois ao observar e perceber o comportamento do performer este compartilha do momento e da experiência proporcionada pela obra artística, tirando-o da zona passiva do assistir ou simplesmente ver a obra. Escolhemos trabalhar com Goffman, pois ele considera o comportamento social como performance. O sociólogo canadense define uma visão de performance que estabelece sua raiz mais ao contexto social em que o indivíduo/receptor está envolvido do que as atividades específicas da performance. Foi por esse viés de olhar que dedicamos a escolha das duas performances para análise, pois ambas debruçam-se sobre problematizações do contexto social mais do que o ato performático em si. O relevante nestas performances é perceber as possíveis relações que se estabelecem entre os sujeitos sociais e a obra performática. Goffman enfatiza que todo comportamento social tem uma audiência, e causa um “efeito” sobre a mesma, ao mesmo tempo que visa uma transformação em si. Desta maneira, busca-se destacar as relações entre os papéis sociais e a interação humana. Para dar continuidade na reflexão acerca das obras Mugre
e Filoctetes,
recorremos a Dawsey, estudioso de Turner que descreve os cinco momentos da experiência vivida: 1) algo acontece ao nível da percepção (sendo que a dor ou o prazer podem ser sentidos de forma mais intensa do que comportamentos repetitivos ou de rotina); 2) imagens de experiências do passado são evocadas e delineadas – de forma aguda; 3) emoções associadas aos eventos do passado são revividas; 4) o passado articula-se ao presente numa “relação musical” (conforme a analogia de Dilthey), tornando possível a descoberta e construção de significado; e 5) a experiência se completa através de uma forma de “expressão”. (DAWSEY,
2006, p. 19).
Tanto a performance de Sandoval como a de Wehbi buscam o caráter de "experiência" com a obra, de vivência por meio de percepções, sensações, emoções, etc. Desta maneira, ambos artistas utilizam de maneira direta ou indireta os cinco momentos citados por Dawsey, relacionando a arte com os acontecimentos sociais. A performance defende o olhar da presença como resistência.
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Em síntese, este artigo visou associar as ideias tangentes entre arte e sociedade, mais especificamente as relações imbricadas nas performances de cunho social e político realizadas na América Latina. Para tanto, a escolha das duas obras performáticas Mugre e Filoctetes vieram como suporte para discutir conceitos chave que tem permeado as práticas no universo da performance na contemporaneidade, tais como "liminaridade" e "chaveamento". A convergência temática, bem como o modo de relacionar a obra com o espectador, seja por meio do mugre (mendigo) ou bonecos de látex, traz uma reflexão social/política acerca dos sujeitos situados nas "margens", trazendo uma nova maneira de olhar e experienciar essa presença em situação liminar. Tendo em vista tais reflexões apresentadas ao longo do artigo, é possível afirmar que a fronteira entre arte e vida nas práticas contemporâneas tem sido cada vez mais "borradas", hibridadas, possibilitando novos meios de convívio com a arte. Referências CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica. Belo Horizonte: editora UFMG, 2009. GASTALDO, Édison. Goffman e as relações de poder na vida cotidiana. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 23. N.68, outubro/2008. SARTIN, Philippe Delfino. Sobre liminaridade: relendo Victor Turner em chave pós-estrutural. Revista de Teoria da História, v. 6, n. 2, p. 139-149, 2011. DEWEY, J. 2010. Arte como experiência. São Paulo, Martins Fontes, 646 p. DAWSEY, John C. Turner, Benjamin e antropologia da performance: o lugar olhado (e ouvido) das coisas. CAMPOS-Revista de Antropologia Social, v. 7, n. 2, 2006. Imagens (Todos direitos reservados aos artistas) Foto 1:http://www.helenaproducciones.org/festival04_16.php Foto2:http://emiliogarciawehbi.com.ar/performativa/int_urbana/2002_proyecto_filoctet es_buenos_aires/es.php Foto3:http://hemisphericinstitute.org/journal/4.2/eng/images/42_lg_persino_04.jpg
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MEMÓRIA E HISTÓRIA PARA ALÉM DA FRONTEIRA ENTRE A ITÁLIA E A ANTIGA IUGOSLÁVIA Gabriela Kvacek Betella (UNESP) Muitas manifestações literárias (romances, contos, memórias, cartas, diários) trataram e continuam abordando a Segunda Guerra Mundial e seus desdobramentos nos anos seguintes ao final do conflito. Sabemos que o biênio 1943-1945 carrega episódios diferenciados e marcantes que, pela singularidade ou aberração, não deixaram de aparecer em muitas representações artísticas. Na Itália, a Resistência ocupou lugar importante na literatura e no cinema, em parte devido às marcas deixadas no povo italiano, mas principalmente porque a Resistência italiana atuou numa situação diferente daquela dos outros países da Europa. A luta pela libertação do país toma corpo após o armistício assinado com as forças aliadas, em setembro de 1943. Enquanto isso, os anglo-americanos invadiam a península e seriam tropas de libertação. Os alemães se tornavam tropas de ocupação por todo o país. Mussolini, libertado da prisão pelos alemães, instaurava a República Social Italiana (RSI), ou República de Salò, materializando o alcance sanguinário do fascismo. Com o caos instaurado, devido ao atraso da Itália em declarar guerra contra a Alemanha (exigência dos Aliados), o exército italiano, sem comando, se dispersou em deserções e adesões aos grupos de guerrilha contra os alemães e seus aliados fascistas. Os grupos de partigiani libertaram muitas regiões da Itália, especialmente no norte, combatendo o inimigo estrangeiro ou os compatriotas fascistas. Portanto, na Itália não houve propriamente um inimigo invasor antes da chegada dos Aliados, e isso configura a ausência de um fato elementar, o ódio pelo estrangeiro a partir do impacto inesperado de tropas militares inimigas. È possível dizer que a Resistência italiana não se consuma como ato de resistir ou de não ceder, na defesa de um patrimônio. Na Itália, a resistência foi essencialmente um ataque contra o nazifascismo, não contra o estrangeiro. À parte daquilo que o cinema italiano conseguiu representar ou documentar levando para as telas a temática da guerra ou do pós-guerra, com o propósito de mostrar a luta pela libertação do país, a literatura revelou obras muito significativas e diversas, como o romance de forma renovadora Uomini e no (1945), de Elio Vittorini, o primeiro romance de Italo Calvino, Il sentiero dei nidi di ragno (1947), as suas narrativas curtas recolhidas em Ultimo viene il corvo (1949) e o representante de uma saga editorial, Il partigiano Johnny (1968), de Beppe Fenoglio. As obras autobiográficas ou de inspiração memorialista são bastante conhecidas, como L’Agnese va a morire (1949), de Renata Viganò.
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A partir dos anos de 1950 algumas iniciativas recolhem testemunhos de combatentes, revelando não somente o profundo sentimento de resistência dos que lutaram, como certos detalhes da ocupação nazifascista e da organização das forças de Resistência italiana. Obras como Lettere di condannati a morte della Resistenza italiana (1952), o diário de Ada Gobetti, Diario partigiano (1956), e as edições mais recentes das memórias de Carla Capponi, Con cuore di donna (2000) e dos depoimentos recolhidos em iniciativas como Io sono l’ultimo (2012), entre inúmeros outros, ampliam o conjunto de representantes das memórias do período, manifestando um tipo de literatura bastante ligada à cultura oral, se consideramos o caráter de testemunho e, em alguns casos, a urgência do relato. De qualquer modo, o efeito estético do fragmento e os conteúdos incompletos são os reflexos verbalizados da experiência de trauma e, além disso, são formas literárias que estabelecem ligações mais imediatas com o seu contexto, mesmo que o destaque recaia sobre a dificuldade de narrar certos fatos (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 382). Ao lado disso, observa-se, conforme considera Giorgio Agamben (2008) uma necessidade extrema de testemunhar, capaz de levar o narrador à vontade de sobreviver para contar. A relação entre os discursos e os efeitos dos períodos traumáticos que revivem também configura um aspecto singular para o estudo dessas narrativas, possibilitando novas formas de entendimento do resultado estético. A chamada literatura de testemunho passa a ser nossa referência e, como uma espécie de paradigma da memória traumática da Segunda Guerra mundial não podemos deixar de mencionar o romance e o autor Se questo è un uomo (1947), de Primo Levi. Sobrevivente de Auschwitz, convicto “de que nenhuma experiência humana é vazia de conteúdo, de que todas merecem ser analisadas; de que se podem extrair valores fundamentais (ainda que nem sempre positivos) desse mundo particular” (LEVI, 1988, p. 88), o autor nos oferece material para as discussões sobre o testemunho de guerras, sobre experiências de segregação, vivências da tortura, da violência e exclusão social. Não é novidade afirmar que o registro de Levi compartilha com testemunhos de combatentes da Resistência italiana algumas propriedades de objetos de investigação de grande proveito para os estudos literários e historiográficos, cuja integração vem sendo especialmente rediscutida nos últimos anos. O testemunho pode ter importância tanto pelo valor estético (quando se observam os elementos da narrativa convocados e manipulados pelo discurso) quanto pela relevância do debate (acerca dos direitos desrespeitados, da imposição de supremacias, de ideologias, de interesses materiais) em que se insere. O relato também se torna instrumento de resistência, porque impõe a forma aparentemente despretensiosa como adequada (selando um compromisso estético) para registro de um contexto de conflito, pautado pelo autoritarismo, abuso ou violência (cumprindo um compromisso ético) contra o próprio narrador e contra o outro. Isso nos faz recordar a perspectiva de Paul Ricoeur, segundo a qual o dever de justiça pode recrutar o trabalho de memória e o trabalho de luto, ou seja, “o dever de memória é o dever de fazer justiça, pela lembrança, a um outro que não o si”
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(RICOEUR, 2007, p. 101). Lembrar é se dispor a fazer justiça ao infortúnio do outro, pois a memória dos que contribuíram para transformar a sociedade deve ser exposta. Uma discussão teórica sobre o modo de abordar as manifestações que vão da literatura de testemunho à ficção com traços autobiográficos pode se alongar muito em uma pesquisa, risco que corremos nesta fase. Por ora, ficamos com a constatação de que hoje em dia está muito em moda afirmar que as memórias possibilitam o questionamento do discurso universalizador da história e, consequentemente, divulga-se a ideia de que podem existir várias histórias plausíveis, legítimas, funcionando como memória, reivindicando o absoluto, eliminando as rupturas, e não as continuidades. Desse modo, fica cada vez mais complicado visualizar os limites da dicotomia entre memória e história nos “lugares” da história. Michael Pollak (1990) apontou o desafio dos trabalhos no sentido de questionarem a força da memória coletiva sobre o indivíduo com base no caráter capaz de sufocar as memórias “inferiores”. O sociólogo austríaco que passou pelo Brasil em 1987 argumenta que o esquecimento não significa necessariamente desapego ao grupo. O esquecimento pode ser uma forma de expressar o dizível e o indizível em cada época. Ao defender a ligação entre memória e identidade social, sobretudo em situações limite, Pollak deu destaque ao âmbito das histórias de vida, que passaram a configurar a área de pesquisa conhecida como história oral. Segundo o ex-aluno de Pierre Bourdieu, algumas designações remetem mais diretamente a fatos de memória (ou seja, a percepções da realidade) do que a fatos históricos não trabalhados por memórias e nesses casos, portanto, as noções de memória prevalecem sobre a factualidade positivista (POLLAK, 1992, p. 2). Em uma das disciplinas que ministrei no curso de Letras, em 2012, inseri um tópico tratando da Segunda Guerra na Itália através de documentários, com objetivo de aproximar os alunos da história do país do qual estudavam a língua e a literatura. Para explicar a atuação dos partigiani e do movimento da Resistência, selecionei algumas cartas-depoimentos de ex-combatentes recolhidos na edição recente, organizada por Stefano Faure, Andrea Liparoto e Giacomo Papi, Io sono l’ultimo (2012). Meu critério de seleção foi casual, porém não imaginava que estaria promovendo um recorte preciso. Eu havia percebido alguns sobrenomes familiares entre os ex-partigiani depoentes, provavelmente de origem iugoslava. E a minha seleção de meia dúzia de textos trazia histórias de homens e mulheres que lutaram na região de Trieste, com origens italianas e iugoslavas. Os testemunhos me levaram a muitos outros relatos e a uma vasta pesquisa histórica. O objeto do plano de pesquisa que se desenvolveu não se restringe às memórias do final da Segunda Guerra e, embora valorize os acontecimentos no nordeste da Itália, sobretudo na fronteira com a atual Eslovênia, passou a incluir os romances de Carlo Sgorlon (1930-2009) e Fulvio Tomizza (1935-1999). A análise deverá contemplar aspectos de literatura de fronteira e de testemunho, a saber, as imagens percebidas além dos limites da Itália norte-oriental, ponto de encontro com as culturas eslavas, sobretudo
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com relação aos acontecimentos históricos e políticos entre a década de 1940 e o final do século XX. Os autores repercorrem fatos que determinaram uma complicada convivência entre nacionalidades, etnias, religiões e ideologias políticas, especialmente quando agravada pelo fascismo, no período 1943-1945. Nas décadas seguintes, como se sabe, o território balcânico fermentou diferenças que culminaram na guerra dos anos de 1990 e a divisão da Iugoslávia, e tanto os autores quanto alguns cineastas não se esquivaram da representação dos eventos e de seus antecedentes históricos e antropológicos. Pretendemos incluir na pesquisa a análise de algumas produções audiovisuais. Assim como Trieste pode ser o parâmetro espacial do período, pois foi atravessada pelas maiores atrocidades dos últimos anos da guerra, há depoimentos que registram vidas intensamente modificadas por esse tempo. Como coletânea de testemunhos, Io sono l’ultimo tem origem curiosa. Após o depoimento de uma expartigiana ser publicado num grande jornal italiano em 2010, a redação recebeu muitas cartas, muitas de outros partigiani, contando suas histórias de cerca de sessenta anos. As revelações que motivaram os organizadores do volume estavam ligadas a dois fatos essenciais: o primeiro, relacionado à urgência: a guerra partigiana do biênio 1943-1945 possui histórias trágicas e maravilhosas, na iminência de desaparecerem. Um dos expartigiani utiliza a afirmação “Eu sou o último” quando dá palestras nas escolas, estabelecendo uma relação de identidade com o testemunho do judeu polonês Chil Rajchman, na edição italiana, Io sono l’ultimo ebreo: Treblinka, 1942-43 (Eu sou o último judeu, na edição brasileira), escrito em iídiche, e publicado em alemão e francês em 2009. Em segundo lugar, os motivos de dar a público os depoimentos relacionam-se à recuperação do frescor e da coragem que o tempo pode ter esfumado: a Resistência havia sido um movimento conduzido por jovens, pessoas que naqueles anos de 1940 tinham mais ou menos vinte anos. Ouvir ou ler essas histórias, portanto, é adotar o olhar desses jovens recém-saídos da adolescência, muitos dos quais provavelmente se apaixonando pela primeira vez em plena guerra (FAURE, LIPAROTO e PAPI, 2012, vi). Entre os depoimentos, chama a atenção o de Milka Cok (nome de guerra “Ljuba”), nascida em Trieste em 1928, estudante e mensageira na atividade partigiana em sua cidade. Seu testemunho se destaca como fonte em outras obras, pois já era mencionado por Claudia Cernigoi (1997). O texto da ex-partigiana Ljuba se abre com o relato do gatilho da memória dos tempos da guerra. Ela conta que teve uma hemorragia cerebral poucos anos antes, e as consequências a levaram a pensar que estivesse vivendo os tempos da prisão. “Novamente me salvei: tudo é passado, mas a lembrança permanece.” (FAURE, LIPAROTO e PAPI, 2012, 171, tradução nossa) Assim dá início ao relato da época em que contava 17 anos de idade, e o episódio escolhido foi a busca efetuada pelos guardas da banda Collotti, que despertou certa manhã toda a sua família, cujos nomes estavam registrados com os oficiais.
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Ljuba e os seus foram levados de casa, interrogados, torturados. A moça foi levada para reconhecer partigiani mortos e, ameaçada, resistiu: “Dentro de mim havia um único pensamento: ‘Caros companheiros, se não os traí enquanto vivos, tanto menos o farei agora que estão mortos. Morrerei com vocês.’” (FAURE, LIPAROTO e PAPI, 2012, p. 172, tradução nossa). Após assistir aos saques ou recolhimento dos bens confiscados, no caso, alimentos e animais, Ljuba segue com cerca de 40 conterrâneos para a sede central do Ispettorato Speciale di Pubblica Sicurezza, conhecido ali através de seus representantes na chamada banda Collotti. Era 1945 e o comandante Gaetano Collotti, já respondendo à República de Salò, praticava ele próprio as sessões de tortura, como descreve Ljuba. Depois de uma série de violências, enquanto sua mãe a ouvia na cela vizinha à sala de tortura, o escrivão teve de pegar na mão da moça para ajudá-la a assinar a declaração. Um dos fragmentos mais tocantes é este: “Depois da tortura, me jogaram no cômodo ao lado, no meio de um amontoado de trapos ensanguentados. Sangrava por todas as partes. Depois, Paolino, um jovem soldado calabrês, me acompanhou à cela. Ajudou a me lavar e a me pentear.” (FAURE, LIPAROTO e PAPI, 2012, p. 173, tradução nossa) Ljuba foi presa no Coroneo, prisão em que estavam muitos eslovenos. Não bastasse tanto, ainda corria o boato de que todos poderiam ser levados a Risiera di San Sabba ou para a Alemanha, ou mesmo eliminados. “Os detentos eram levados às escondidas durante a noite. A cada noite se ouvia levarem as pessoas. As mulheres rezavam para são Floriano por medo de terminarem nos fornos da Risiera.” (FAURE, LIPAROTO e PAPI, 2012, p. 174, tradução nossa) “Os carnífices” tinham pressa em se livrar dos prisioneiros. Ljuba segue a pé para o outro lado da cidade, onde seguirá de caminhão para a Alemanha. No entanto, não partem, voltam ao Coroneo e ficam sabendo que a Alemanha estava vencida. Eram os últimos dias de abril, e os triestinos rebelados libertam os prisioneiros. Em maio chegam os partigiani e Ljuba termina seu relato. Diante de certos testemunhos de sobreviventes de violência sofrida pela repressão de regimes autoritários, o relato de Ljuba não chega a ser exatamente impressionante, porém estabelece uma ordenação muito bem pensada para o texto, como se a memória organizada buscasse o efeito crescente no leitor. Em nosso presente, é inevitável não associarmos alguns fatos e imagens aos episódios de violência relatados por sobreviventes de outros regimes autoritários. E, sem exageros, em muito graças ao efeito estético, pensamos no torturador italiano nazifascista que fez escola cerca de vinte anos depois na América Latina. Sutilmente, o depoimento de Ljuba revela aspectos pouco tocados diretamente nos testemunhos recolhidos no volume: o comando nazifascista, por exemplo, já perdia o controle absoluto e não agia incisivamente com os prisioneiros, algumas vezes deixados à própria sorte. Esta observação de entrelinhas marca uma lacuna significativa no testemunho de Ljuba, que não segue uma linha temporal nem encadeia os fatos com proporção de causa e efeito. Por outro lado, o requinte da tortura é marcante no texto,
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assim como era regra nas sedes do Ispettorato, chamadas de Villa Triste. A mãe que ouve a tortura da filha é um detalhe marcante, coincidentemente relatada pela mãe de uma prisioneira na Villa Triste de Firenze, em depoimento no documentário La donna nella Resistenza (Liliana Cavani, 1965). Esse tipo de tortura psicológica e seus requintes aberrantes parece ter sido um dos mais populares nos regimes totalitários. Cabe dizer, finalmente, que depoimentos da coletânea Io sono l’ultimo recolocam o debate sobre as atrocidades fascistas na região de Trieste. Com as forças do Marechal Tito às portas naqueles últimos anos da Segunda Guerra, o anticomunismo patriótico chegou a ofuscar o antifascismo e a Resistência. Os depoimentos poderiam ser classificados no bloco dos resultados da história oral testemunhal. São declarações solicitadas pelos organizadores, algumas obtidas através de entrevista. O volume possui, no entanto, o sugestivo subtítulo “Lettere di partigiani italiani” (Cartas de partigiani italianos). De acordo com o propósito do livro – recolher o maior número possível de depoimentos e documentar da melhor maneira as experiências dos indivíduos nascidos e atuantes nos mais diversos lugares – ele também não deixa de ser um conjunto de cartas endereçadas aos jovens, a quem são confiados o testemunho e a herança da Resistência. Em contraponto às cartas dos partigiani condenados à morte, recolhidas nos anos de 1950, cujo impacto ainda respirava a tensão do final do conflito mundial, é possível examinar alguns dos mais recentes testemunhos diretos de alguns protagonistas da guerra de libertação na Itália. Ganhamos, além da elaboração do discurso no presente, também o benefício da organização do relato na maioria dos textos de modo a pressentir o efeito da memória sobre a linguagem. Uma das marcas é o desejo de redenção a prevalecer sobre a constatação da liberdade, no plano coletivo imediato aos acontecimentos, e sobre a consciência da superação individual. Muitos depoentes, como Ljuba, assumem a palavra dos que morreram ou dos que sofreram nas mesmas condições, como se manifestassem o desejo de dar voz ao testemunho de outros. Ao atravessar sua velhice e sentir a cognição ameaçada pelo problema de saúde, Ljuba tenta preservar o sentido do sofrimento e a memória dele. Com isso, conserva o sentido de “testemunha” em sua completude, isto é, mantém o correspondente de testemunha em grego, denominado martis (em português, mártir), cuja raiz é a mesma de “recordar”. Giorgio Agamben (2008) considera que os fatos passados em campos de concentração nazistas pouco têm a ver com martírio, podendo significar a exposição do corpo e da alma sofridos para recordar uma convicção. Testemunhar sobre o acontecimento traumático da guerra, da tortura, do sofrimento, quase sempre, é sofrer um martírio, que não se realiza sem a memória, muitas vezes descontínua, com lacunas, dissociações discursivas, relato interrompido e retomado – “o testemunho vale essencialmente por aquilo que nele falta” (AGAMBEN, 2008, p. 43). O texto escrito se esforça na reconstrução dessas interrupções, no preenchimento das lacunas, porém o discurso permanece desarticulado como uma linguagem da qual foi retirada alguma coisa, por vezes se mantendo “uma linguagem mutilada e obscura” (AGAMBEN, 2008, p. 46).
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Sabemos que a memória oral é mais espontânea que a memória escrita. Quando o estímulo (como a entrevista) provoca a expressão, no caso da primeira, pode-se observar a liberdade e a menor ocupação com a forma do discurso. A memória escrita implica certas preocupações, pois reorganiza a lógica expressiva. Há sérias considerações, por exemplo, quando se transcrevem depoimentos, para que a identidade do depoente seja preservada, assim como o sentido da sua fala, especialmente em certas marcas, como sotaque, emprego da sintaxe, repetições, ênfases. Quando os testemunhos são escritos, a forma pode e deve ser observada por meio da análise do discurso ou da (nova) expressão literária latente. Se pensamos nas narrativas de Io sono l’ultimo como depoimentos, temos um problema se queremos vê-las como literatura, analisá-las segundo os parâmetros convencionais da Teoria Literária. O valor estético dos testemunhos não se pontua exclusivamente pelas categorias aristotélicas relativas à mimese. Lembrando o que argumenta Márcio Seligmann-Silva (2003), os testemunhos apresentam uma voz traumatizada, um tom de lamento e de denúncia que se fazem presentes e dispostos a narrar uma experiência vivida, malgrado todas as dificuldades de expressão. Se a Resistência italiana mereceu muitas representações através dos romances, dos poemas, das canções, das memórias e do cinema (a partir do neorrealismo), o território que escolhemos concentra uma mitologia ainda mais vasta (embora ainda pouco explorada), devido à quantidade de episódios ligados ao fenômeno de mobilização civil e aos contrastes presentes na constituição de seus habitantes. Não seria justo deixar de confessar que nossas origens também justificam o interesse despertado pelo período e pelo território modificado ao longo daqueles anos e em seguida. Existem algumas questões de identidade a mais, em nosso caso.
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A EXPERIÊNCIA ESTÉTICO-LITERÁRIA COMO POSSIBILIDADE DE AMPLIAR O HORIZONTE DE SENTIDO DO DIREITO A PARTIR DO ENCONTRO COM A OTREDAD (OCTAVIO PAZ) E DO RECONHECIMENTO DA COMPLEXIDADE DO REAL Gabriela Simões Pereira (FURG) Este trabalho questiona a possibilidade, a partir da experiência estético-literária, de ampliar o horizonte de sentido do Direito. Analisar-se-á o conceito de razão instrumental de Horkheimer para, depois, apontar como o Direito tornou-se mero juízo de cálculo incapaz de reconhecer a complexidade do real. Pretende-se evidenciar a necessidade de uma nova epistemologia que subverta a lógica binária e a disjunção sem união (MORIN, 1998), aloque no cerne do pensamento a descontinuidade, a incerteza e a diferença. Para tanto, visando a refletir como pode ser esta epistemologia, recorre-se à ideia de poesia como experiência da otredad e ao método analógico de Octavio Paz. Para Horkheimer (2002), à medida que o conhecimento técnico e o domínio da natureza expandiram-se objetivando o progresso, “a autonomia do homem enquanto indivíduo, a sua capacidade de opor resistência ao crescente mecanismo de manipulação de massas, o seu poder de imaginação e seu juízo independente” (ibidem, p. 07) foram amortizados. A racionalização da vida obliterou a própria razão: a partir do Iluminismo, a razão objetiva foi obscurecida, processo corroborado pelo positivismo e pelo pragmatismo. O eclipse da razão objetiva ocasionou a vacuidade do conteúdo objetivo dos conceitos, o que foi possível mediante a gradual formalização e instrumentalização da razão. Formalização é o processo de modificação dos sentidos atribuídos à razão, pelo qual se renuncia o vínculo desta com os fins objetivos e vinculaa à ideia de conservação individual. A formalização trouxe a redução da razão a uma função de instrumento para obtenção de fins particulares e tornou-a imersa na lógica do mercado: refém da utilidade e do critério de eficiência. Pelo processo de reificação, a vida tornou-se um insumo industrial. E qual é a implicação da formalização e da instrumentalização da razão para o Direito? A formalização permitiu o entendimento do Direito como razão autônoma, como um em-si-mesmo desvinculado dos fatos e conflitos sociais que lhe são conexos, ao ponto de a
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realidade social ser negada como importante para o Direito. Entendido como sinônimo de instrumento de administração e cálculo da vida, o Direito foi reduzido a capacidade do operador de dominar o léxico da ciência e repetir discursos. Não se pergunta o que isto, o Direito?; apenas para que serve isto? O eclipse da razão objetiva possibilita que o Direito sirva – e serviu em Auschwitz, nas ditaduras e nas atuais práticas totalitárias dos Estados – a fins irracionais se os compararmos com as premissas do projeto moderno. A cisão epistemológica entre sujeito e objeto produz efeitos no e por meio do Direito, que se constitui enquanto saber pela oposição irreconciliável de pares de ideias, ou seja, baseia-se no princípio do terceiro excluído e na lógica binária, resultando na disjunção entre homem e realidade, questões de direito e de fato e teoria do direito e teoria política. Ocorre que essa lógica do ou isto ou aquilo reduz a complexidade dos fenômenos e gera imagens maniqueístas do mundo. A redução e fragmentação da complexidade dos fenômenos imposta pelo cientificismo mostrou-se incapaz de conceder uma visão aceitável dos “objetos” do conhecimento (MORIN, 1998) porque o estudo das partes é importante enquanto um dos aspectos da realidade, mas é imprescindível o reconhecimento sistêmico das múltiplas implicações entre os elementos que compõe o todo. É necessária a superação da distinção sem união (idem) dos “objetos” do conhecimento, pois a fragmentação e o binarismo condena o saber jurídico ao em-simesmamento. Dito isso, o Direito deve buscar outra epistemologia que coordene partes/todo; a distinção, a união e a totalidade (idem), a fim de chegar a imagens menos imprecisa dos objetos. Precisa emergir uma nova epistemologia a partir de uma compreensão do Direito apoiada nas condições históricas, nos conflitos sociais e nas práticas políticas. Para “tirar a epistemologia de uma situação catastrófica em torno da produção e verdades e vê-la somente como os fundamentos dos diferentes modos de pensar o mundo e suas várias realidades” (ibidem, p. 03), é necessário assentar o paradigma da descontinuidade, da incerteza, da falta de linearidade e da diferença, que integre a contradição e as ideias dissimiles como fundantes do pensamento e reconduza a razão especulativa para o centro do Direito. Conforme Warat (ibidem, p. 01), a partir do esgotamento do cientificismo, destacou-se “a importância para a ciência de temas tradicionalmente vinculados à arte, tais como a subjetividade, a criatividade, a singularidade e os espaços gerais para o encontro com o outro”. Inteiramente vinculada à arte, a epistemologia emergente necessita pensar as relações humanas como fonte de
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metáforas para refletir acerca da ciência, e não esquadrinhar o mundo sob o crivo da ciência. É no sentido de necessário diálogo com a arte para construção de novas bases epistemológicas do Direito que o pensamento de Octavio Paz mostra-se apropriado. Paz emprega em seus ensaios o que Maciel (1995) denomina de método analógico. Neles, convivem pares de ideias que tanto se opõe quanto se complementam num jogo de afirmações e negações concomitantes que se interligam e geram novos pares de ideias aparentemente dissimiles, as quais, paradoxalmente, complementam-se. Haroldo de Campos define a razão analógica paziana como a “não-lógica do terceiro incluído, onde uma coisa pode deixar de ser igual a si mesma para incorporar o outro, a diferença, desde que postulada uma relação de similaridade” (1993, p. 149 apud MACIEL, 1995, p. 102). O poeta desafia a lógica binária: enquanto afirma que isto é aquilo, nega-o, construindo uma dialética da contiguidade (ibidem, p. 68). No raciocínio de Paz, o movimento em espiral se faz presente, uma vez que também sugere um movimento dialético entre os termos que vão se desdobrando sucessivamente em outros pares contrários que os metaforizam. Só que, pelo uso criativo do paradoxo, a presença simultânea da tese, da antítese e do estado intermediário entre elas, longe de apontar para uma unidade, mantém, em tensão, o jogo. A contiguidade, neste caso, triunfa sofre a continuidade (ibidem, p. 75)
Para Paz, a poesia é a experiência da otredad, na perspectiva do autor e do leitor. O autor, no ato da escrita, é tradutor/leitor, o Eu que se reconhece como Outro, na medida em que traz consigo a tradição e, igualmente, pois, enquanto ser histórico, está imerso num processo de subjetivação que é, ao mesmo tempo, aniquilação do Eu e construção de outros Eus. O autor só existe momentaneamente na e pela linguagem e logo que enuncia seu discurso, dissipa-se “Isso, porque não só a voz que ele deixa no poema vai se revelar em ‘outra voz’, como o seu próprio lugar na enunciação passa a ser ocupado por outro eu, o do leitor, que, por sua vez, submete-se ao mesmo processo (ibidem, p. 124). O autor, ao pronunciar as palavras ao mundo, apaga-se enquanto indivíduo pela linguagem – a enunciação – e, simultaneamente, torna-se o ele feito de palavras – o enunciado. O leitor depara-se com a otredad¸ uma vez que, no ato da leitura, faz da palavra encarnada o diálogo com o Tu, transformando-se em sujeito que pronuncia o já dito, presentifica e temporaliza o Outro. Experiência da otredad é a “percepção simultânea de que somos outros sem deixar de ser o que somos, sem deixar
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de estar onde estamos, o nosso verdadeiro ser está em outro lugar. Somos outro lugar” (PAZ, p. 272-273). A experiência da otredad pode ser contraposição ao obscurecimento da razão e reencontro com a dimensão humana. Uma chance de defrontar-se com o que se situa à margem da linguagem científica por não se amoldar à razão instrumental; mas, que pode ser imaginado por meio do simbólico. A Literatura pode ser a oportunidade de reestabelecer ao Direito a sua complexidade, instaurando a riqueza humana como critério de valor (FLORES, 2009). Portanto, a partir da Literatura podem-se pensar novas bases epistemológicas para o Direito. Além disso, a obra de arte é aberta permite múltiplas interpretações criativas: faz perguntas ao receptor, esperando que este devolva mais questionamentos para serem, dialogicamente, rediscutidos e reperguntados. Assim, a experiência estético-literária pode ser, também, lugar de desassossego e questionamento dos valores e sentidos da vida e, consequentemente, do Direito. Referências FLORES, Joaquin Herrera. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Boiteux. 2009 HORKHEIMER, Max. O eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2002 MACIEL, Maria Esther. As vertigens da lucidez: poesia e crítica em Octavio Paz. São Paulo: Experimento, 1995 MORIN, Edgar. Complexidade e Liberdade. In Ensayos Thot, Associação Palas Atenas, nº 67, p. 12-19. São Paulo: 1998 PAZ, Octavio. Os signos em rotação. In O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify, 2013 WARAT, Luis Alberto. Metáforas para a ciência, a arte e a subjetividade. Revista Sequência, v. 16, n. 30, p. 01-10, junho de 1995
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OS DIÁLOGOS ENTRE “FLANAR”, A HISTÓRIA E A LITERATURA EM O CANTOR DE TANGO, DE TOMÁS ELOY MARTÍNEZ Gabrieli Borges dos Santos (UNICENTRO) Considerações iniciais Na esfera das produções literárias contemporâneas produzidas na América, em língua espanhola, vislumbram-se as obras e, em uma perspectiva mais ampla, a arte, como partícipe de múltiplas possibilidades, compreendendo, até mesmo, diálogos metanarrativos, que articulam a estética, a escritura e o seu fazer, colocando o texto mediante a contemplação de sua tessitura. Tendo em vista o exposto, um campo ainda não completamente explorado se projeta, possibilitando (re)leituras de textos e autores, observando, incluso, escritores fora do cânone, ou que ainda, no conjunto de sua obra, não despertaram interesse da crítica acadêmica. Como partícipe do âmbito já mencionado está o escritor argentino Tomás Eloy Martínez. Martínez nasceu em Tucumán, Argentina, em 1934, e morreu em 2010. Ademais de escritor, foi jornalista, crítico de cinema e literatura, professor, roteirista e diretor do Programa de Estudos Latino-Americanos da Ruthers University, colaborando, além disso, com os jornais The New York Times, La Nación, El País e O Estado de S. Paulo. Entre suas obras, especialmente literárias, destacam-se: Sagrado (1969), Lugar común la muerte (1979; coleção de relatos), La novela de Perón (1985); La mano del amo (1991); Santa Evita (1995); Las memorias del general (1996); El vuelo de la reina (2002); El cantor de tango (2004); Purgatorio (2008), em meio a diversas outras. No leque das produções do autor, obtém, haja vista os objetivos da presente pesquisa, atenção especial El cantor de tango (2004). A obra narra a busca pela voz inatingível de Julio Martel, exímio cantor de tangos antigos, por Bruno Cadogan, doutorando de Nova Iorque, que escreve sua tese acerca dos ensaios que Borges dedica à gênese do tango. Ao chegar à Buenos Aires, descobre a cidade transcendendo às imagens pré-existentes, desvelando a literatura, as ruas, parques, praças, bairros, as
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cicatrizes históricas, as pessoas, a multidão que é a cidade. De tal modo, a cidade, descentrada, cosmopolita, contemplando diversas manifestações, ergue-se como grande protagonista, observada e percorrida pelos olhos do flâneur. Nesse sentido, visa-se, de modo particular, refletir acerca da noção de cidade e sua constituição no flanar por ela, considerando, sobretudo, a representação de Buenos Aires, em El cantor de tango (2004), de Tomás Eloy Martínez. Para a execução do exposto, parte-se de um recorrido teórico a respeito do conceito de cidade na obra do crítico Angel Rama (1998), aliando ao diferenciado desenvolvimento do romance nos países hispano-americanos, articulando pressupostos de Walter Benjamin (2000), relativos ao flâneur, enlaçando, quando necessário, à característica amalgamada entre o bailar dos labirintos do espaço físico e o confronto histórico. De modo posterior, passase às análises do corpus, contemplando as reflexões propostas. A cidade e sua representação na América Latina A cidade, composta em sua dimensão histórica, meio das expressões artísticas e, além disso, políticas, que acolhe as distintas formações humanas; em certas vezes, alcança tal dimensão na literatura que deixa de ser “somente” espaço, abalizando-se como ambientação, abrangendo, por vezes, a posição de protagonista, como pode ser vislumbrado em El cantor de tango (2004), de Tomás Eloy Martínez. Em termos conceituais, a cidade está para além das edificações, calcadas nas pedras, das casas, das praças, das ruas; as construções etéreas são insípidas na configuração da cidade. Torna-se imperativo, na instituição da cidade, os processos da formação histórica, a origem, o olor da memória que influi o discurso, os signos, os símbolos, insuflados nas estruturas pétreas. Pela perspectiva do exposto, observam-se duas noções que se afrontam, a saber: a primeira, que parte da cidade como produto da inteligência, aludido por Angel Rama (1998) e a outra, que ilustra a cidade a partir dos diversos discursos que a constitui, com refere Ítalo Calvino. De acordo com Calvino, a exposição e as narrações da polis não são a cidade, todavia, ela é as “relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado: a distância do solo até um lampião e os pés pendentes de um usurpador enfocado;” (1995, p. 14).
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Fundadas nas pedras, as cidades alcançam grandiosidade e requerem discursos acerca de si no âmbito do século XIX. As ideias do progresso e da imponência dos espaços urbanos dotam-se de novidades e se caracterizam na efemeridade social e das tendências de pensamento. Mesmo que as cidades sejam oriundas à gênese humana, a urbanidade, assim como as grandes cidades, estabelece-se na compleição da polis, vivenciada pelas inúmeras pessoas, advindas de diversos locais, dentro de um país. O aglomerado humano é regulado pela cadência determinada pelo relógio e pelo capital; as individualidades, anônimas, a miséria humana, a cólera, o passo acelerado, não podem ser descritos nas cidades do século XIX. De igual maneira, os processos metafóricos e o ritual representam o acontecimento urbano em seu semblante do terror, do estonteamento, no deslumbre, em seu aspecto grotesco, estupefato, que esgota o vocabulário possível; os conceitos são escassos à cidade. Associando a cidade da América Latina à europeia, avistam-se diferenças no que toca à forma da modernização e a cidade; no entanto, compartilha-se a aceleração e a angústia, a renovação e o retorno à tradição, o campo e as vanguardas (SARLO, 2005). Considerando o processo de olhar à cidade e, também, de representá-la, o poeta Charles Baudelaire (1996), em Sobre a modernidade, apresenta um trato singular à temática em questão. Na obra, Baudelaire parte de um narrador, “eu-lírico”, que está imerso nos diminutos sucessos que pululam pela cidade, retirando significados da aparência humana. O olhar, lançado à cidade moderna, participa da experimentação do espaço urbano e aparta-se, em uma oscilação que gera a reflexão do visto e do vivido, visando uma inquietação racional. Mergulhada no cenário moderno, a narração impregna-se do caráter dúbio, que seduz e ocasiona, pela consciência, as circunspecções no que toca às oscilações do mundo na cidade, com suas desigualdades, exploração do trabalho, do tempo e dos espaços. Na grande cidade, propícia para a circulação de um sem número de pessoas, a multidão, que já foi entendida enquanto massa coletiva, sem forma e personalidade, e as novas configurações arquitetônicas se acomodam à nova realidade de intensa demografia, como postula Walter Benjamin (2000), surgindo, ainda nas palavras do filósofo, os panoramas, as fisiologias, de caráter descritivo. Na multidão, o flâneur é
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introduzido, obtendo funcionalidade de ser o outro anônimo, sem deixar de ser ele mesmo, dotado de um caráter especial pela escritura e descrição da representação do que vê e de seu itinerário. Paris, sobretudo no século XIX, foi espaço benfazejo para este tipo de experiência. Nos labirintos urbanos, como é o caso de Paris e, no contexto latino-americano, Buenos Aires, compõem-se como território da observação da multidão, da multiplicidade fugaz, da perambulação, da divagação. Na multidão, a cidade é ora paisagem, ora ninho acolhedor. Em um processo quase prófugo, as galerias, os mercados e demais paisagens urbanas são cenários para a exploração do flâneur, que olha o mundo de modo particularizado, indicando e imputando vivacidade aos espaços da cidade, sem que tenha como objetivo explicá-los. Nesse sentido, tomando especificamente Buenos Aires, que cresceu vertiginosamente no início do século XX, Beatriz Sarlo, em ensaio, Buenos Aires, cidade moderna (2005), pondera que “[a] nova cidade torna possível, literariamente verossímil e culturalmente aceitável o flâneur que lança o olhar anônimo de quem não será reconhecido por aqueles que observa, o olhar que não supõe a comunicação com o outro.” (2005, p. 202). Restringindo as considerações, em específico, da formação da ideia de cidade na América Latina e, de um modo de cidade particular, a letrada, Angel Rama (1998), traça um roteiro circundante à cidade e as cidades que habitam o interior da cidade. Para isso, perpassa a cidade ordenada, a letrada, a escriturada, a modernizada, a que se politiza e a revolucionada. A cidade, composta pelos ensejos de urbanidade, pela densidade populacional, pelos critérios legais de definição, considera uma entidade de ordem política e administrativa da urbe, aglomera, ainda, a sobreposição de ofertas funcionais, agrupando centros culturais, religiosos, de consumo, congregando sorções de atividade humana. Contudo, sendo um conceito, a cidade também é forjada, cunhada nas convenções sociais e na história. Aludindo acerca da gênese da cidade latino-americana, o crítico uruguaio Angel Rama versa que ela “ha venido siendo básicamente un parto de la inteligencia, pues quedó inscripta en un ciclo de la cultura universal en que la ciudad pasó a ser un sueño de un orden y encontró en las tierras del Nuevo Continente, el único sitio propicio para encarnar” (1998, p. 17). Por essa perspectiva, a cidade, imaginada no/para (o) “Novo
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Continente”, a América, está calcada no idílio europeu da ordem, do trabalho e na exploração dos bens. Ainda no que toca às proposições de Rama, vislumbra-se que no processo de transposição de uma ordem social, visando se atingir a realidade física, fez-se necessário “el previo diseño urbanístico mediante los lenguajes simbólicos de la cultura sujetos a concepción racional. Pero a ésta se le exigía que además de componer un diseño, previera un futuro.” […] (1998, p. 20). Assim sendo, os símbolos culturais e as ramificações discursivas se assomam à racionalidade, apontando tanto a conceituação do passado, como construindo o leito do rio pelo qual passará a história no futuro, parafraseando Tomás Eloy Martínez (1996). A palavra, e seus símbolos, começam a se delinear e se tornar imanentes na latino-américa, compondo os espaços urbanos. Articulada à ideia de cidades plurais dentro de uma mesma cidade, que se expande em múltiplas perspectivas, depara-se, no texto ficcional As cidades invisíveis (1995), de Ítalo Calvino, algumas produtivas considerações a esse respeito. Na concisão da reflexão a respeito das cidades, na obra já citada, observa-se que: “[a]ssim – dizem alguns – confirma-se a hipótese de que cada pessoa tem em mente uma cidade feita exclusivamente de diferenças, uma cidade sem figuras e sem forma, preenchida pelas cidades particulares.” (CALVINO, 1995, p. 34). Pela perspectiva do exposto, a cidade, não só absorta em seu centro urbano, canaliza aspectos não somente materiais, ou físicos: detém a memória que circula entre o povo, o planejamento idealizado, a imaginação, as narrações, a história, as peculiaridades, as diferenças, os mitos e símbolos que representam as pessoas e, de modo mais complexo, o emaranhado de olhares que são lançados à cidade. Forjada no leito dos desejos e dos sonhos, a cidade coloca-se como espaço privilegiado da construção das possibilidades para além das ruas, casas, muros, materiais; configura-se como um labirinto da imaginação ou não, um Aleph, da experimentação humana. Na sessão seguinte, passar-se-á às considerações acerca do romance El cantor de tango (2004), de Tomas Eloy Martínez, bem como sua análise. Os caminhantes e a cidade
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Em El cantor de tango, de Tomás Eloy Martínez, publicada em 2004, observa-se a busca pela voz sobrenatural de Julian Martel, cantor sublime que recuperaria a “pureza” dos tangos gênicos argentinos, por Bruno Cadognan. O personagem parte de sua cidade, Nova Iorque, para Buenos Aires, almejando encontrar inspiração para finalizar sua tese a respeito da origem do tango, a partir de Jorge Luis Borges. Sem registros da voz sem precedentes, sua fama prolonga-se de forma oral, por meio do contato de quem já a ouviu, atraindo à Buenos Aires, cidade que é palco para, em locais específicos, os espetáculos urbanos aconteçam, o narrador do romance. Todavia, não se volve como tarefa simples ouvir a Martel, visto que ele sempre se apresenta em locais não agendados previamente. Em um esforço hercúleo, a peregrinação, por vezes sem nenhum objetivo ou dado concreto, traz à baila a cidade e sua multidão, suas ruas, referentes literários, estéticos e cafés. Buenos Aires, em um emaranhado em constante transformação, mostra-se para além do maniqueísmo, em sua face múltipla e amalgamada aos caminhantes de suas ruas. Com referentes mais precisos, vislumbra-se a cidade portenha a partir de setembro de 2001, sendo local de uma crise política, que modifica, dia a dia, o status nacional. Neste contexto, o exímio cantor emprega espaços urbanos, pouco convencionais ou dedutíveis, para seus espetáculos, intrigando a Bruno Cadogan e o transfigurando em um investigador do espaço urbano, mimetizando, Lönnrot, personagem de Borges em La muerte y la brújula (1986). No caminhar, com passos perdidos, o tango fica em segundo plano em prol da cidade, grande protagonista, e seus vértices labirínticos no tempo e no espaço, bem como sua gente, entrecruzada pela história. Por meio da luz e da sombra, do belo e do grotesco, do erótico e do sacro, diversos feitos históricos são representados como: as fundações de Buenos Aires, o sangue, ainda fresco, da ditadura, a exploração de mulheres, a Semana Trágica e as diversas trocas de presidente, em 2001. A primeira referência a Buenos Aires que se pode observar em El cantor de tango (2004), encontra-se nas linhas iniciais da obra, descrevendo que: “Buenos Aires fue para mí solo una ciudad de la literatura hasta el templado día de invierno del año 2000 en que escuché por primera vez el nombre de Martel.” (p. 13). Desse modo, a representação da cidade, evocada no início do romance, deslinda uma característica
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eminentemente vinculada à produção de signos da urbe, seu aspecto da memória literária que, até este momento, seria mais forte que as construções, a arquitetura, as pedras inertes que compõem a capital argentina, destacando, como propõe Rama (1998), a cidade letrada. Ademais, um narrador em primeira pessoa, ainda não nomeado, aparece, o qual situa o seu distanciamento de Buenos Aires, já que conhecia tão somente a sua literatura, e apresenta a primeira demarcação temporal da obra, 2000, ainda que esteja um ano antes do tempo que inicia a narração, setembro de 2001. Nas primeiras linhas, ainda não se sabe quem seria Julio Martel que, no decorrer da obra, é pseudônimo de um magnífico cantor de tangos antigos, que não costuma se apresentar em locais previamente marcados e nem a sua voz ser gravada. Escolhido pelo personagem “Esteban Caccace” apenas pela morte temprana, admite-se que dentro da tradição literária argentina, um autor precursor literário do momento finissecular, foi o poeta, escritor e jornalista José Maria Miró (1867-1896), que adotou “Julio Martel” ou “Julián Martel” como nome para assinar as suas obras, compartilhando o momento de maturação e consolidação das narrativas na América Hispânica, sobretudo, no que concerne ao romance. Nesse sentido, pode-se vislumbrar a primeira alusão literária na obra de Tomás Eloy Martínez, a qual articula, ainda que não de modo explícito, a tradição literária local argentina à cidade, enquanto centro que emana textos literários ao ocidente. A partir de a tese do narrador do romance acerca da origem do tango não avançar, ele é aconselhado, por um de seus professores, a viajar a Buenos Aires, o que foi recebido com um aceno negativo, pois, segundo Cadogan, já havia visto um número adequado de fotos e filmes acerca da cidade. O narrador imagina “la humedad, el Río de la Plata, la llovizna, los paseos vacilantes de Borges por las calles del sur con su bastón de ciego.” (MARTÍNEZ, 2004, p. 13-14). Uma cidade a priori, pela imaginação, guiada pelo visto e não vivido, é descrita; logo, o clima e, novamente, a figura de Borges é trazida à baila, bem como seu vagar pelas ruas da cidade portenha, mesmo que não possa vê-la. No que toca à constituição estabelecida “pré-experimentação” da cidade, Buenos Aires é aproximada à Kuala Lumpur, sendo designada como quente, excêntrica, ilusoriamente modernizada e habitada por pessoas, de linhagem proveniente da Europa, que se habituaram à barbárie.
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Com a rápida narração da viagem e da chegada à Buenos Aires, o narrador descobre que não poderia se hospedar no local indicado por sua universidade, conhecendo Omar ou Oscar, que todos chamavam de “Tucumano”. Este, ouvindo que o narrador não possuía onde ficar na cidade, indica uma pensão que se localizaria na rua Garay, paragem na qual se passa El Aleph (1986), conto célebre de Jorge Luis Borges. Por essa perspectiva, o interesse literário, despertado pela cidade, é invocado, e o narrador decide se instalar na pensão do “Ale”, modo pelo qual o Tucumano, pessoa que parecia não conhecer o conto de Borges, toma o referente e designa o local que recebe visitas de diversas pessoas. A partir disso, as primeiras imagens da cidade se apresentam. A fugacidade de Buenos Aires e suas constantes transformações são representadas no texto literário. A paisagem, de modo primeiro, é postulado como: “[u]na suave neblina se alcanzaba, inmóvil, sobre los campos, pero el cielo era transparente y por el aire cruzaban ráfagas de perfumes dulces.” (MATÍNEZ, 2004, p. 19). Juntamente a isso, as construções urbanas começam a ser discriminadas, acenando ao que seria Buenos Aires. A visão, aguçada pelas imagens urbanas, em primeira pessoa é interpelada por igrejas, prédios, o subúrbio, parques; pelas construções, a cidade não se parecia à representação pré-concebida, ela poderia ser articulada às diversas cidades já visitadas pelo narrador, no entanto, ainda assim, não se assemelhava a nada. A continuação, há o choque entre a imagem literária do local, a rua Garay, escrito por Borges e “o real” da cidade, visto pelo narrador e o cenário de sua procura insólita pela voz perdida de Julio Martel. Ver a cidade, assim como caminhar por ela, observando e tecendo ponderações, coloca-se como dado primário da flânerie que começa a ser delineada, pelo intrincado das ruas de Buenos Aires. Tal experiência pode ser aproximada à experimentação do flâneur francês, que é conhecedor legitimo do solo sagrado da cidade (BENJAMIN, 2000). Como o olhar perspicaz do “mirão” urbano, nas palavras de Beatriz Sarlo (2005), a descrição de Buenos Aires, a partir da experimentação dupla da arte de flanar, começa a delineia-se. De tal modo, vislumbra-se: [a] las siete y media caía sobre las fachadas una luz rosa de otro mundo y, aunque el Tucumano me dijo que la ciudad estaba vencida y
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que debía haberla conocido un año antes, cuando su belleza se mantenía intacta y no había tantos mendigos en las calles, yo sólo vi gente feliz. (MARTINEZ, 2004 p. 21-22).
O panorama urbano, em seus aspectos sensoriais, é trazido à baila, a luz rosada, com ares para além do humano e, as pessoas que dissimulam estarem felizes. A continuação, as grandes avenidas, os cafés e os diálogos do fazer literário, percorridos na observação da cidade, são evocados, assim como os dois elementos básicos do flâneur, como propostos por Benjamin (2000), os olhos e as pernas. Considerando o labirinto urbano, representação da própria condição do ser humano, há a integração entre o meio, o sujeito e o elemento histórico, como inerente ao fazer
literário,
o
qual
renova
estruturas
tradicionais,
comprometendo-se
a
experimentação estética e seu compromisso com a sociedade. Dentro da cidade modernizada, a aceleração do movimento e a transfiguração do espaço urbano, sua memória e locais de ritualização, podem ser notadas nas cidades latino-americanas atuais e, logo, na construção representativa de El cantor de tango (2004). Assim como, vislumbram-se os passeios incertos, sem objetivos definidos, como na escritura das lembranças de Bruno Cadogan: “[a]penas recuerdo el largo paseo que emprendimos más tarde el Tucumano y yo. Nos movíamos de un sitio a otro de la ciudad, en lo que él llamaba ‘la peregrinación de las milongas’.” (MARTÍNEZ, 2004, p. 26). Assomado à noção dos passos errantes, está a noite e uma categoria que se aproxima da boêmia parisiense, com a perambulação pelos bailes, propiciados pela ambientação de Buenos Aires. Como a eminência do cantor que podia não existir, a falta de apreensão de Martel é estendida a cidade toda, sintetizando Buenos Aires em um pequeno ambiente que circula em diferentes locais, sem que se saiba, previamente, onde estará. Com o avanço da narração de El cantor de tango (2004), a figura de Julio Martel e a cidade do presente são retomadas, bem como o itinerário urbano, desenhado em um rito secreto de Martel, ao escolher onde cantaria. Do mesmo modo, é referida a urbe por meio das ruas e estabelecimentos, tais como San Telmo, Villa Urquiza, um local ao ar livre, a sacada do hotel à rua Azcuénaga, perto de La Recoleta, estação do Retiro, canal sob a avenida Juan B. Justo, articulando a atividade de descrição da cidade pela flânerie.
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Um mês após a chegada de Bruno Cadogan à Buenos Aires, observa-se a transformação da imagem da cidade na voz do narrador. De tal modo, nota-se que “[c]on el paso de los días, fui aprendiendo que Buenos Aires, diseñada por sus dos fundadores sucesivos como un damero perfecto, se había convertido en un laberinto que sucedía no sólo en el espacio, como todos, sino también en el tiempo.” (MARTÍNEZ, 2004, p. 49). Partindo da premissa das duas fundações que incidiram sob a cidade de Buenos Aires, a noção do labirinto das ruas é retomada, em uma dupla perspectiva: a do espaço, que refere ao imbricado de ruas que nunca está do mesmo modo, a circulação das multidões, as mutações das casas, fachadas, feiras, praças, a dificuldade de se encontram no espaço urbano e seus arredores, que possui diferentes passagens, construções; já no tempo, o Dédalo se fortifica nas ramificações da história no presente, na oralidade, que muitas vezes foi negada na constituição urbana, de acordo com Rama (1998), que conta passagens marginalizadas à história oficial e que se reconstrói, repetindo signos da memória. A adiposidade da grande Buenos Aires comporta à(s) pequena(s) cidade(s) que vivem nela, sem perder de vista seu aspecto trágico como o sacrifício de animais sem piedade, os desaparecidos, as pessoas que se atrevem a existir demais. A nostalgia, que acompanha quase todas as obras de Tomás Eloy Martínez, com relação à Argentina, que o despojou, como ele mesmo profere, dos anos mais férteis de sua vida, traz o “nãolugar” da cidade, ilumina o niilismo que não é exterior, adquirindo contornos quase escatológicos. Na mesma linha do exposto, o espólio nacional é elencado, as ruas mudam de lugar, regiões são ocultadas ou desaparecem dos mapas, o lar é aniquilado; o país está no horizonte, sempre à frente, ou ao lado ou em todos os lugares, quiçá em nenhum. Na “embriaguez anamnéstica”, mais do que fatos, a flânerie capta as narrações descentralizadas à história oficial, como as feitas por Alcira Villar, companheira de Julio Martel, as notícias, as mobilizações sociais, os tons que são a vivacidade ao espaço urbano. A busca do flâneur “encerra-se” num leito de hospital, com uma despedida, não de Martel com relação à cidade ou os fatos que rememorava cantando tangos antigos e, muitas vezes, sem sentido linguístico. Os passos de vagamundo do flâneur, na cidade,
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encontraram seu objetivo. Afastando-se da imagem da cidade, em seu retorno para casa, o narrador constata, rematando a estrutura labiríntica, os círculos e a própria ciclicidade, inerente à obra, que se expandem, que “[...] el verdadero laberinto no estaba marcado por las luces, donde sólo había caminos que llevaban a ninguna parte, sino por las líneas de oscuridad, que señalaban los espacios donde vivía la gente.” (2004, p. 251). Enquanto elemento de significação, como os círculos de um Dédalo, uma voz palpável, sem precedentes, que traz a magia impura dos tangos antigos, conduz a peregrinação pelas ruas e a memórias da cidade. Considerações Finais Buenos Aires, cidade que é seus habitantes, é representada em suas múltiplas perspectivas, em sua exuberância, instabilidade, em seu caráter cambiante, mítico, amargo e sem cidades que se equiparem, exceto, por questões cosmopolitas, Paris ou Londres. A literatura, com seus autores, sobretudo Jorge Luis Borges, em seu Aleph, esfera de luz eriçada que contem todos os pontos do universo sintetizam a “essência” da cidade, local que contem todos os países, desfilando as temáticas universais, os amores infrutíferos até chegar ao fim possível, com a demolição que cria novas possibilidades. Ademais de literária, as feiras, o cinema, as exposições, as manifestações artísticas de rua, as canções, os cantores, a arquitetura da cidade oportuniza um espaço propicio ao caminhar pela cidade, que, além de tudo, detém o regaço de um dos mitos mais fortes do século XX, Eva Perón. Em um país tão idílico, Tomás Eloy Martínez recria os mitos nacionais, revisita a história, dota-a de novas cores e vozes, rompendo com as zonas limítrofes entre a ficção e o “real”. Como toda imagem é um simulacro, as simulações do país, a realidade em eterna transformação, esfacela-se ao tocar das mãos, os locais e as pessoas que somem dos mapas coloca-se como um dos eixos de Buenos Aires. Os labirintos, constantemente associados às ruas da cidade e às pessoas, metaforiza a própria urbe: apenas os iniciados podem caminhar por ela sem se perder, ainda que, andando pelo Dédalo, novos objetivos podem ser criados ou se desvia deles. No esfacelamento do presente, Bruno Cadogan faz de Buenos Aires ambiente sagrado da flânerie, emparelhada à Paris, no século XIX. De tal modo, peregrinando
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pelas ruas, pelos cafés, compartilhando jantares com diretores de cinema, cantores, artistas de modo mais geral, bem como ouvindo os marginalizados, observando a multidão, perdendo-se de si, em determinados momentos, o botânico do asfalto, nas palavras de Benjamin, descreve a Buenos Aires, servindo-se de sua sutileza, de seus parques, praça, cemitério, de sua história, ventilada na cidade do presente, nos monumentos etéreos, nas pessoas que são a cidade. Referências BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade (O pintor da vida moderna). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense. 2000. BORGES, Jorge Luis. Ficções. Rio de Janeiro: Globo, 1986. CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. 8 re. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. MARTÍNEZ, Tomás Eloy. El Cantor de Tango. Buenos Aires: Planeta, 2004. ______. Ficção e história: apostas contra o futuro. O Estado de S. Paulo, 05/10/1996. p. 60-61. RAMA, Angel. La ciudad letrada. Montevideo: Arca, 1998. SARLO, Beatriz. Paisagens Imaginárias: artes e meios de comunicação. Tradução de Rubia Prates Goldoni e Sérgio Molina. 1 ed. 1 reimpressão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005.
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A MEMÓRIA CULTURAL DE SÃO LUÍS – MA EM NOITE SOBRE ALCÂNTARA DE JOSUÉ MONTELLO
Géssica da Silva Pereira (UEMA) Co-autora: Profa. Dra. Silvana Maria Pantoja dos Santos (UEMA) 1.Introdução A memória cultural favorece a transmissão e difusão do conhecimento. Constitui-se de uma memória arraigada de herança simbólica materializada em documentos, monumentos, edificações, espaços sociais, objetos, ritos, dentre outros. “[...] o que interessa a nós, quando pensamos o monumento como um traço de uma cidade, é a sua capacidade de evocar sentidos, vivências e valores” (PESAVENTO, 2002, p. 16). Os sentidos aos quais Pesavento se refere estão relacionados ao que o monumento ou outro elemento da cultura representa aos sujeitos sociais. Desse modo, pode-se dizer que a cidade contempla a memória cultural com forte presença em elementos urbanizados. De acordo com Halbwachs (2006), a memória individual diz respeito a impressões particularizadas das lembranças, enquanto a memória coletiva abarca as lembranças dos membros do grupo. Com a dinâmica da cidade e os impactos da vida moderna, fortes alterações vêm ocorrendo nas formas urbanas, apagando referências individuais e coletivas, alterando também as formas de interação do homem com as marcas sociais, ainda possíveis em elementos urbanizados. Assim, percebe-se a presença da memória cultural que se fixa em formas urbanas que guardam a memória citadina. Desse modo, objetiva-se com este trabalho, analisar a memória cultural que resiste nos espaços da cidade, a partir da leitura da obra Noite sobre Alcântara (1984) do ficcionista maranhense Josué Montello. 2. Josué Montello e a obra Noite Sobre Alcântara O escritor maranhense Josué de Sousa Montello (1917-2006) é romancista, jornalista, cronista, ensaísta, historiador, teatrólogo e professor. É autor de uma vasta produção literária. Conquistou 12 prêmios literários. É autor de mais de 160 livros como
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romancista, crítico literário, ensaísta e poeta. Exerceu cargos notórios no Brasil e no exterior. Foi o fundador do conselheiro cultural da Embaixada do Brasil em Paris (1968 a 1970) e embaixador do Brasil junto à UNESCO. Na obra Noite sobre Alcântara, Josué Montello situa a trama na realidade maranhense, em especial na cidade de Alcântara em um contexto em que a cidade é marcada pelo atraso econômico e sócio-cultural em relação a outras cidades do país. A cidade é localizada a 58 Km da capital São Luís, sendo o acesso, por São Luis, realizado por barco ou avião. A trama torna evidente a decadência da Monarquia, o banimento da família real e a proclamação da República, acontecimentos de tamanha importância para a cidade. A obra é representada por um tempo em ruína, cujos espaços gradativamente vão se tornando esvaziados. Com a decadência econômica, os poderosos de Alcântara se desfazem de seus bens com a venda de imóveis e objetos de valor, desencadeando o abandono dos sobrados e mudanças para a capital, São Luís, a procura de melhores condições de vida. O romance narra a história de Natalino, um jovem rapaz, Major e sedutor, filho de Visconde e Baronesa, família de grande importância para a região. Natalino representa o homem moderno, em combate na guerra do Paraguai acaba convivendo com novos espaços, diferentes dos de sua provinciana cidade. Nessa convivência, absolve outros costumes e culturas, no entanto, Natalino não se desvincula de suas referências. De acordo com Silva (2008), a identidade cultural está relacionada a identidade humana, partindo de que esta sucede de culturas éticas, linguísticas, religiosas, raciais e nacionais. A identidade faz o sujeito perceber-se um ser integrante do social. Em Noite sobre Alcântara percebe-se nas personagens uma identificação com o grupo ao qual pertence. 3. Ressignificação da memória cultural na obra Noite sobre Alcântara A cultura implica que os indivíduos de uma mesma comunidade deem continuidade à tradição, de forma que compete às gerações futuras disseminar o legado. Desse modo, entende-se que a cultura é um processo ativo e permanente, porém sensível às alterações impostas no corpo social. A cultura é arbitrária e consagrada, a mesma atribui identidade aos indivíduos, mantendo estreitos os vínculos entre os membros de uma dada comunidade.
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Silva (2008) afirma que a memória cultural se refere primeiramente ao Eu, ao olhar que o sujeito cria sobre si mesmo, reconfigurando sua identidade, dilatando-se para abarcar o outro. Percebe-se na obra Noite sobre Alcântara de Josué Montello uma forte referência à cultura da capital maranhense a incidir, neste particular, sobre a reprodução do acervo arquitetônico do centro histórico de São Luís: são igrejas seculares, sobrados antigos, de arquitetura colonial em que residiam os moradores nobres da cidade e que Alcântara se apropria para que seus ilustres habitantes se equiparassem à vida da capital. “O olhar de Natalino dominava-lhe facilmente o conjunto arquitetônico, e ele ia reconhecendo os sobrados, os palacetes, as casas solarengas, as velhas igrejas” (MONTELLO, 1984, p.46). As diversas construções resguardam a memória cultural, que por sua vez complementa o acervo histórico-cultural do Estado. São formas urbanas resistentes à decadência. Em contrapartida, o êxodo e o retrocesso da cidade impulsionados pelo mundo moderno deixaram muitas construções arquitetônicas em ruína, no entanto, o olhar de Natalino revitaliza a cultura do Maranhão diluída em meio aos restos. A dança do bumba-meu-boi, tradição da cultura maranhense, é também representada na obra: “ E numa fria madrugada de junho, quando se ouvia o bater das matracas do bumba-meu-boi [...] ” (MONTELLO, 1984, p.24). Essa manifestação mostra a riqueza da cultura maranhense, bem como o espaço urbano onde elas ocorriam e a relação com as pessoas que lá viviam. Os tambores envolvem outra dança popular do Maranhão. Está presente nos ritos católicos de louvação a São Benedito, mártir negro do catolicismo. É uma dança corporal em forma de círculo, em geral formada por mulheres. A dança se processa por meio de um cumprimento abdominal, sendo que uma pessoa mantem-se dentro do círculo e convida uma outra para entrar na roda, de modo sucessivo. A obra também reporta-se à forma de atuação rotineira do homem rural, abrangendo não somente a constituição social, mas também histórica. Dessa forma, o narrador lamenta a decadência econômica da cidade, motivo da desvalorização do setor social. Mostra a riqueza da produção de outrora das fazendas de Alcântara e ressente-se pelo colapso da região e, com ele, a evasão dos ricos proprietários de terra. 4- Considerações finais
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As marcas da cultura presente nas formas urbanas resistem ao tempo e dão conta de resguardar a memória cultural da ilha de São Luís, que por sua vez complementa o acervo histórico-cultural do Estado. Em Noite sobre Alcântara, o olhar de Natalino reelabora a memória do espaço da cidade. O personagem adentra os espaços com olhar de intimidade e percorre com familiaridade becos, ruas, esquinas e ladeiras em busca dos sentidos perdidos. A partir do que o olho abarca, dá visibilidade a lugares prenes de significado: os mistérios em torno dos mitos, festividades, danças folclóricas, vivência de famílias seculares em tempos longínquos condensadas em marcas e fissuras de prédios deteriorados, a decadência senhoril em fachadas de mirantes silenciados pelo tempo. Com isso, constatou-se que a memória cultural do lugar resiste a passagem do tempo e da ação do homem. Referências ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 2004. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. Centauro, 2006. MONTELLO, Josué. Noite sobre Alcântara. Nova Fronteira. 2. ed. : 1984. PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre. 2.ed. Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS, 2002. SILVA, R. M. C. Cultura popular e educação, Salto para o Futuro. Brasília: Salto para o Futuro/TV Escola/SEED/MEC, 2008.
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AS MÁSCARAS SINGULARES OU A TOPOGRAFIA URBANA DE LUIZ RUFFATO? Gislei Martins de Souza (UNESP/Assis)
Resumo: O trabalho faz um estudo dos poemas que projetam um olhar de desencanto sobre a cidade presentes na seção “As máscaras singulares”, do livro de título homônimo (2002) escrito por Luiz Ruffato. Observa-se em que medida o autor projeta uma perspectiva sobre a cidade como metonímia das contradições da modernidade no Brasil. Para tanto, verticaliza-se a tópica da fantasmagoria (Benjamin, 1994; Hardman, 1988) que discute a imagem obsoleta da cidade como rastro deixado pelas tentativas de sincronizar as regiões mais atrasadas do Brasil com o movimento universal da modernização. A sucessão de imagens construídas por Luiz Ruffato mostra o efeito espectral lançado sobre a cidade que sugere como as relações sociais encontram-se desterritorializadas com a voga da modernidade. A cidade passa a ser vista como um abismo no qual os sujeitos vivem a crise de um imaginário citadino pósutópico (GOMES, 2008). Nossa hipótese, portanto, está pautada na consideração de que a cidade configurada por Luiz Ruffato em “As máscaras singulares” revela a perda da experiência a que o homem encontra-se submetido no mundo hodierno. Palavras-chave: cidade, modernização, As máscaras singulares.
Escutai, homens, a mensagem: Nos escuros becos da cidade Prepara-se a sedição dos mitos. (Ruffato, Luiz. As máscaras singulares)
Para iniciar nossa discussão trazemos o argumento de Willi Bolle (1994), para quem a consciência urbana moderna prefigura na literatura brasileira no início do século XX, momento em que São Paulo passa a ser vista como centro industrial e comercial do país em virtude das suas vantagens geográficas, da imigração e da infraestrutura. O debate proposto por este autor mostra-nos em que medida o desenvolvimento
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socioeconômico está ligado à construção do espaço urbano. Nesse sentido, desenvolver um debate sobre os modos de representação da cidade no mundo hodierno consiste em delinear a forma pela qual o homem contemporâneo organiza os espaços e como tal organização produz o deslocamento na configuração histórico-social do urbano. Jacques Le Goff (1998) ressalta a similaridade entre a cidade contemporânea e a medieval que, segundo ele, é mais expressiva do que a relação desta com a cidade antiga. O argumento de Le Goff leva-nos ao seguinte questionamento: Quais dispositivos estão sendo mobilizados pelo homem para que a contemporaneidade seja afetada pelos modos de organização citadinos da Idade Medieval? Saber que lastros de antiguidade cerceiam a percepção da cidade contemporânea torna-se pertinente quando lançamos nosso olhar sobre a poética de Luiz Ruffato na obra As máscaras singulares (2002). Primeira e, até o momento, única produção poética deste escritor, As máscaras singulares chamou-nos a atenção por conter uma seção, de título homônimo, em que a temática do urbano se faz presente no que diz respeito aos resquícios de ancestralidade que o advento da modernidade procurou apagar por meio da ideologia do progresso. Temos, então, a contradição sendo posta como âmago do universo contemporâneo, a saber, o passado, que outrora se buscava manter distante, agora se torna a mola propulsora da vida hodierna. Para estabelecermos de que modo a produção poética de Ruffato singulariza o urbano na atualidade, trazemos o poema de abertura da seção “As máscaras singulares”:
Abertos os braços o mapa sobre a escrivaninha solidário oferece-se: fios azuis da lívida mão sob a pele, contornos às margens – cidades, vilas, povoados. Buscam os olhos a mágica palavra, dentre a constelação de topônimos, que, quando recitada, da caverna a oculta porta abre. E do fundo da úmida penumbra, lá fora, a desfilar, veremos sombras. O cortejo: o tesouro. (RUFFATO, 2002, p. 39).
A estratégia de personificar o mapa produz a ideia de que os espaços geográficos possuem uma humanidade que subsiste por si mesma. A configuração do mapa, cheio
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de entranhas e contornos, torna-se metáfora da vida que pulsa nas cidades e que tem a capacidade de se constituir como um corpo/organismo, cujos membros procuram a capacidade de linguagem para adquirir o poder da comunicação. Somente por meio da linguagem existe a possibilidade de entrar no fundo daquilo que o poema chama de “penumbra”, mas que pode ser interpretado como a própria alma cujas sombras fazem do homem apenas um simulacro da cidade. O sentido quase platônico da configuração geográfica faz do urbano o cenário no qual prevalece o paradoxo, pois a imagem do cortejo alça um efeito lúgubre que, contudo, diz respeito à celebração da vida. Como se o citadino renascesse das cinzas, como a ave de fênix, o sujeito lírico estende um convite para que o leitor participe deste cortejo na tentativa de festejar a descoberta daquilo que vale como um tesouro, no caso, a vida que reluz dentro das cidades e afasta as sombras que impediriam o aflorar da linguagem. Desse modo, o poeta nos mostra que a cidade não se compõe apenas de imagens, mas principalmente de uma linguagem cujos signos clamam por serem interpretados. Cidade que fala e que deseja ser ouvida! Le Goff (1998, p. 29) destaca que “[...] as funções essenciais de uma cidade são a troca, a informação, a vida cultural e o poder”. Para ele, mesmo com as mudanças históricas como, por exemplo, a desruralização e a desindustrialização, a cidade contemporânea mantém a essência de antes, a saber, a função da troca. Esta, por sua vez, só ocorre quando o homem entra em contato com o Outro por meio da linguagem. Essas considerações fazem-nos pensar que a imagem trazida pelo poema da caverna, na qual uma “porta oculta se abre”, sugere que o homem contemporâneo precisa sair da clausura em que está para se comunicar com o universo à sua volta. Há, portanto, uma necessidade de sair de dentro das muralhas que cercam a cidade medieval e circular pelas vielas que são construídas nos seus arredores para conhecer a vida dos que estão à margem. Nas palavras de Le Goff, “A cidade da Idade Média é um espaço fechado. A muralha a define. Penetra-se nela por portas e nela se caminha por ruas infernais que, felizmente, desembocam em praças paradisíacas.” (1998, p. 71). Zigmunt Bauman (2006) também exibe que a cidade contemporânea está cercada por uma atmosfera de insegurança e medo que faz os seus habitantes se
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trancafiarem em grandes aglomerações de edifícios e condomínios fechados. Para este autor, prevalece nessa situação a concepção do individualismo que levou os sujeitos a ocuparem-se de si próprios e deixarem de lado a vida coletiva. A perspectiva do medo e insegurança que rege a contemporaneidade, ainda na argumentação de Bauman, surgiu com a modernidade sólida, cuja “[...] desgraça mais temida era a impossibilidade para o indivíduo de se adequar à norma geral [...]” (2006, p. 18). Dialogando com Bauman, Renato Cordeiro Gomes (2008) assegura que o progresso fez com que a urbanização expandisse ainda mais os limites da metrópole, que agora se dispersa por outros espaços. Nesse caso, o homem citadino vive em um labirinto, para usar a expressão de Gomes, no qual ele se perde em meio ao imaginário arquitetado sobre as cidades que, mesmo sendo distinto, mantém-se idêntico em sua essência. Esse efeito de similitude, nas palavras do autor, foi consolidado pela mídia que rotulou a imagem da cidade fazendo dela um cartão-postal. Assim, o que estava relacionado com uma imagem utópica e infernal, hoje tal acepção da cidade caiu por terra, pois, nas palavras de Gomes, a cidade das cidades ideias já não existe. Diante da quebra do paradigma citadino, o homem contemporâneo deseja ter seu lugar reconhecido, mas vê-se impossibilitado de compreender a cidade que habita nele e que ele habita:
Esfinge, decifra-me desta cidade o mistério. De Níobe minha mãe, um coração de pedra herdei. E de meu pai, o capacete de Treva. Invisível, por mil noites arrastaram-se meus pés e agora advém a fadiga. Sequer avoengas máscaras singulares deparei. Oh! Devora-me, devora-me, pois o enigma decifrar é a punhal fender meu peito. (RUFFATO, 2002, p. 42).
A figura emblemática da esfinge não apenas trata do modo como o sujeito contemporâneo encontra-se perplexo frente aos enigmas da cidade, como também retoma a relação edipiana daquele que deseja descobrir sua história e/ou origens. Contudo, a origem aqui se transforma naquilo que atemoriza o sujeito na medida em
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que apenas revela o seu anonimato em meio aos milhões de seres que habitam a cidade. O sentir-se anônimo no seio de sua cidade pátria mostra a relação incestuosa do homem contemporâneo que sente os efeitos da negação do sentimento maternal que deseja ser resgatado. Willi Bolle (1994), com base no estudo da obra de Walter Benjamin, aponta como este autor pensou a cidade, à época da modernidade, como palco de conflitos sociais e de uma multidão erotizada, que o homem daquele tempo procurava decifrar. Bolle ainda pondera que “O habitante da metrópole moderna, incessantemente submetido à ‘vivência de choque’ [...] vive por reflexos e não tem tempo para formar sua experiência, um eidos de vida, uma imagem de si.” (1994, p. 345). Vemos, entretanto, que o homem contemporâneo figurado pelo poema de Ruffato, diferentemente do sujeito moderno, vê-se diante de um passado que não pode ser decifrado e, sem uma imagem de si, sofre as consequências de sentir-se impotente diante das aventuras propostas pelo conhecimento da cidade. A experiência que anteriormente era de choque, agora está relacionada ao trauma de não compreender o universo que o circunda e sobre o qual se torna difícil fazer uma representação simbólica1. O diálogo que este poema estabelece com a tradição clássica encena uma das estratégias encontradas por Luiz Ruffato para situar sua produção no rol da literatura ocidental. O efeito trazido por este recurso também sugere a relação que a cidade contemporânea estabelece com o passado. Isso pode ser visto pela imagem do vazio encontrado no âmbito da cidade, já que o sujeito lírico em sua busca nem ao menos consegue encontrar “avoengas máscaras singulares”. Desse modo, além de anônimo o homem contemporâneo torna-se um ser que prefere o isolamento à vida em comunidade. Vejamos abaixo o poema de Luiz Ruffato que tematiza a solidão do homem na contemporaneidade:
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Entendemos o conceito de trauma conforme a formulação de Jeanne Marie Gagnebin (2006, p. 110), segundo a qual “O trauma é a ferida aberta na alma, ou no corpo, por acontecimentos violentos, recalcados ou não, mas que não conseguem ser elaborados simbolicamente, em particular sob a forma de palavra, pelo sujeito.”.
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Onde quer que estejas, em teu país ou em outro, és estrangeiro: ninguém tua língua compreende. Só, o deserto de estranhas veredas percorres. Conservas, no entanto, dos primeiros anos o albor, quando tua cidade, madrasta e mãe, teus sonhos na noite fresca velava. A grande mão que afagou-te esmaga o peito agora. Ah! Somos apenas o que somos. Apenas. (RUFFATO, 2002, p. 43).
Observamos que o sentido do ser estrangeiro ultrapassa a própria solidão na medida em que alça o sentimento de não possuir uma língua capaz de estabelecer uma comunicação com os demais. Nas palavras de Bauman, o estrangeiro constitui o sujeito que encarna uma espécie de ameaça ao homem contemporâneo, pois traz em si a marca do inquietante, estranho e, principalmente, daquele que possui outros costumes. Sendo assim, “Expulsando das suas casas e lojas certo tipo de estrangeiros, consegue-se exorcizar por algum tempo o fantasma aterrador da incerteza e esconjura-se, assim, o monstro medonho da insegurança.” (BAUMAN, 2006, p. 33). A cidade contemporânea consiste no espaço que consegue acolher sujeitos dos mais variados gêneros, o que provoca medo e insegurança nos que estão acostumados com a mesmice do cotidiano. Vemos também o poema adjetivar a cidade como “madrasta e mãe”, dando ênfase no fato de ela proteger os filhos que estão ausentes da figura materna, a saber, ser matriarca de filhos postiços. Na parte final deste poema, o sujeito lírico ainda ressalta o isolamento do homem contemporâneo com o advérbio “apenas”, que aparece duas vezes no mesmo verso. Este recurso poético está relacionado ao modo como os sujeitos contemporâneos encontram-se conectados às mídias virtuais sem, contudo, se comunicarem por meio da presença física com os seus semelhantes. A hipótese de Bauman ajuda-nos a entender como a sociedade criou gente supérflua, que agora não tem para onde ser despejada:
A modernização, enquanto novo estilo de vida que engendra gente supérflua, limitou-se nos primeiros tempos a certa fracção da Europa: era um privilégio, e o resto do mundo podia servir de depósito de despejo para o supérfluo que se produzia, de começo na Europa e, mais tarde, nos seus prolongamentos. (BAUMAN, 2006, p. 77).
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Torna-se pertinente retomarmos o pensamento de Bauman segundo o qual a necessidade de se construir determinada ordem, indispensável para o ingresso na modernização global, fez com que a sociedade produzisse meios para suprimir aqueles que não faziam parte desse novo modo de vida. O que Bauman chama de “gente supérflua” nada mais é do que a eliminação daqueles que não conseguem integrar-se aos meios de produção capitalista nem mesmo por meio da mão-de-obra barata. Para este autor, durante muito tempo, a Europa fez do restante do mundo o lugar para onde eram enviadas as gentes supérfluas. Contudo, com a modernidade líquida, todos os espaços foram habitados devido à implantação do modelo produtivo moderno em todos os países. Diante disso, Bauman argumenta que a gente supérflua está em toda parte o que contribuiu para a construção de uma verdadeira arquitetura do medo. Não apenas os ambientes privados transformaram-se em redes de segurança, mas principalmente os lugares públicos das cidades, que mais parecem uma zona de vigilância constante. Le Goff afirma que essa obsessão urbana por segurança (1998, p. 72) cai em contradição, pois, desde a Antiguidade Clássica, o policiamento era delegado “a pessoas em certa medida menosprezadas. Satisfaz-se àquilo que se considera uma necessidade, a segurança, mas, ao mesmo tempo, essa função não parece muito honrosa: em Atenas, os citas são bárbaros”. Sem ter a segurança que satisfaça o seu desejo de proteção maternal, um dos poemas de Luiz Ruffato, presente na seção “As máscaras singulares”, mostra-nos que o recurso encontrado pelo homem contemporâneo seria o de abrigar-se na memória que possui da cidade:
Habitam as sombras a cidade que habita um corpo nela habita num momento, esse. À cidade retornar é diverso de nela permanecer, mesmo que em pensamento. Volver: nas ruas subsumir a própria face espelhada. Estar no porão da cidade todo tempo: ela mesma reconhecer-se, objetos olvidados na memória reordenar. Os olhos de medusa enfrentar e torná-la pétrea. (RUFFATO, 2002, p. 40).
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Reaver o passado consiste a tentativa encontrada pelo homem contemporâneo para entender o presente, no qual ele não consegue ter uma experiência concreta de si com a cidade. A possibilidade de manter uma relação de identidade já não funciona mais no universo cada vez mais fechado, cujos sujeitos se debatem para encontrarem uma posição de abrigo e segurança. Diante do caos, apenas o regresso aos porões da memória permite ao homem hodierno reconhecer-se como tal e construir sua identidade. Os valores de outrora já não condizem com a velocidade de informações que rege o mundo contemporâneo. Resta apenas petrificar a imagem de segurança trazida pelo passado, para que se possa atingir a imagem de si mesmo e enfrentar as sombras que, conforme nossa leitura do poema, podem ser interpretadas como a condição do ser contemporâneo. Homens que vestem suas “máscaras singulares” para conseguir encarar a ausência de uma identidade estável e segura a que possa se apegar diante da falta de sentido do mundo moderno norteado pela representação e objetividade. Depreendemos disso que Luiz Ruffato em As máscaras singulares alça uma discussão de nível universal quando tematiza a construção de uma imagem idealizada de ordem e segurança para a vida contemporânea. Andrea Saad Hossne (2007) aponta o viés da degradação urbana nas narrativas de Ruffato como a tomada de consciência de uma questão universal. Segundo ela, “[...] os personagens, apesar de parecerem comuns, na verdade, revelam um microcosmo da nossa sociedade, são universais no que têm de regionais, e não regionalistas.” (HOSSNE, 2007, p. 20). Outra crítica que destaca a relevância da produção literária de Ruffato é a de Giovanni Ricciardi (2007), para quem a linguagem deste escritor está enraizada em uma condição humana e social desvairada e esquizofrênica. Já no argumento de Ivete Lara Camargos Walty, a literatura de Ruffato:
O texto desmanchado metaforiza a história desmanchada da cidade, que traz no lixo contemporâneo não apenas o que se costuma atribuir ao lixo, mas pedaços dessa ordem social excludente nos signos da riqueza e do poder, que insistem em permanecer acima do que consideram um país podre [...]. (2007, p. 62).
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Sendo assim, não é por acaso que Karl Erik Schollhammer (2011) avalia a linguagem de Ruffato como contemporânea e inovadora, pois foge dos formatos tradicionais da literatura do século XIX na medida em que glosa a atual realidade social do país por meio da recriação de várias estéticas, como as do Modernismo e Realismo brasileiros. Com tal intuito, podemos dizer que a literatura de Ruffato revela aquilo que Theodor Adorno (2003) considera como a mais alta composição lírica, a saber, a capacidade de a linguagem poética verter o social até que ela por si mesma ganhe voz:
A idiossincrasia do espírito lírico contra a prepotência das coisas é uma forma de reação à coisificação do mundo, à dominação das mercadorias sobre os homens, que se propagou desde o início da Era Moderna e que, desde a Revolução Industrial, desdobrou-se em força dominante da vida. (ADORNO, 2003, p. 69).
Ao proceder contra o sistema simbólico, que faz do homem contemporâneo um ser aprisionado em si mesmo, o poema abaixo configura um eu cuja linguagem deseja o encontro com a Alteridade:
Séculos e séculos caminhamos e na encruzilhada Tu e eu novamente. A tiara em teus cabelos, um halo na triste paisagem. O oráculo de Delfos pressagiou: andaremos, andaremos, e no princípio chegaremos. Mas já não há lugar para calos nas mãos, uma pedra ensanguentada rola. Onde estão todos? Onde estão, ó Demiurgo? Estamos sós? (RUFFATO, 2002, p. 45).
Contudo, o sujeito lírico mesmo clamando por alguém que lhe acompanhe nessa jornada não consegue estar totalmente liberto da ideologia que o mantém a cada dia mais preso em uma subjetividade vazia de experiências. Diante do abandono, portanto, observamos que o sujeito lírico vê a cidade somente como uma imagem de fantasmagoria, pois não é possível encontrar seres que tragam também o mesmo desejo pelo retorno a um mundo repleto de experiências. Para Francisco Foot Hardman (1988),
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a projeção de figuras de fantasmagoria possuía, desde o início do século XIX, um enorme lastro histórico-cultural deixado pelo projeto de modernização inacabado na sociedade brasileira. Um projeto que mais fez produzir gente supérflua que já não tinha/tem mais onde se refugiar. Dessa forma, o homem citadino já não vive mais em liberdade, pois se sente refém dentro de sua própria moradia no que diz respeito aos diversos marginais que estão sendo fabricados, cada vez mais, pela cidade contemporânea. De acordo com Le Goff, “As cidades são, portanto, uma revolução, porque, como já se disse, sua aparência torna os homens livres e iguais, mesmo que a realidade, com frequência, permaneça longe do ideal.” (1998, p. 91). Assim, a poética de “As máscaras singulares” projeta um ser humano frustrado quando, a todo despertar, se reveste de uma máscara, que precisa ter sua singularidade para conseguir ao menos se diferenciar das demais, para poder enfrentar os perigos e armadilhas da cidade contemporânea.
Referências ADORNO, Theodor. Palestra sobre lírica e sociedade. In:_____. Notas de Literatura I. Trad: Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003. BAUMAN, Zigmunt. Confiança e medo na cidade. Trad: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2006. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad: Sérgio P. Rouanet; Prefácio: Jeanne M. Gagnebin. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994 BOLLE, Willi. Figsionomia da Metrópole Moderna: Representação da História em Walter Benjamin. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, Escrever, Esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006. GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. HARDMAN, Francisco Foot. Engenheiros, Anarquistas, Literatos: sinais da modernidade no Brasil. In: FUNDAÇÃO CASA RUI BARBOSA. CENTRO DE
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PESQUISAS. SETOR DE FILOLOGIA. Sobre o pré-modernismo. Rio de Janeiro: 1988. HOSSNE, Andrea Saad. “Degradação e acumulação: considerações sobre algumas obras de Luiz Ruffato”. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade em camadas – ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. Vinhedo: Editora Horizonte, 2007. LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades. Trad: Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: Editora Unesp, 1998. RICCIARDI, Giovanni. “Pedras para um mosaico”. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade em camadas – ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. Vinhedo: Editora Horizonte, 2007. RUFFATO, Luiz. As máscaras singulares. São Paulo: Boitempo, 2002. SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. WALTY, Ivete Lara Camargos. “Anonimato e resistência em Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato”. In: HARRISON, Marguerite Itamar. Uma cidade em camadas – ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. Vinhedo: Editora Horizonte, 2007.
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O CONTO NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES NO CURSO DE LETRAS Gislene Aparecida da Silva Barbosa (UNESP) O relato de experiência sustenta-se nas ações desenvolvidas, em 2013, na disciplina Leitura e Produção de Texto I, realizada no curso de Letras da Faculdade de Presidente Prudente/SP. O objetivo é o de apresentar a ação formativa realizada na disciplina, mostrando como a leitura literária foi tratada durante a formação inicial de professores, qual abordagem metodológica foi utilizada e como os alunos envolvidos reagiram diante do texto. Para isso, são socializadas as práticas de ensino e de aprendizagem, realizadas com alunos do 2º semestre do curso de licenciatura, a partir das atividades com o conto “Uma Galinha”, de Clarice Lispector, apresentando, especialmente: o uso das estratégias de leitura no processo de compreensão do texto, com base em Girotto e Souza (2010) e o estudo dos elementos da narrativa, sustentados em Gancho (2006). O caminho indicado por pesquisadores para o desenvolvimento de leitores e escritores competentes na escola básica baseia-se na sistematização das atividades de leitura e escrita. Soares (2003) afirma que este processo de sistematização ou escolarização é necessário para organizar o trabalho educativo e inevitável na escola, cuja essência sustenta-se em procedimentos formalizados e organizados em categorias. Não há como ter escola sem ter escolarização de conhecimentos, saberes, artes: o surgimento da escola está indissociavelmente ligado à constituição de “saberes escolares”, que se corporificam e se formalizam em currículos, matérias e disciplinas, programas, metodologias, tudo isso exigido pela invenção, responsável pela criação da escola, de um espaço de ensino e de um tempo de aprendizagem. (SOARES, 2003. p. 20) Visto que o curso de Letras tem como tarefa central a formação de professores para ensino da leitura e da escrita na escola básica, torna-se importante encontrar possibilidades de realizar a transposição didática sem desprezar o dinamismo da linguagem e a reflexão sobre os usos sociais da língua e dos textos.
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A transposição didática é inevitável, mas deve ser rigorosamente controlada. É inevitável porque o propósito da escola é comunicar o saber, porque a intenção de ensino faz com que o objeto não possa aparecer exatamente da mesma forma, nem ser utilizado da mesma maneira que é utilizado quando essa intenção não existe [...]. Como o objetivo final do ensino é que o aluno possa fazer funcionar o aprendido fora da escola, em situações que já não serão didáticas, será necessário manter uma vigilância epistemológica que garanta uma semelhança fundamental entre o que se ensina e o objeto ou prática social que se pretende que os alunos aprendam (LERNER, 2002, p. 35). Diante disso, uma das nuances da disciplina mencionada anteriormente foi enfocar a leitura do texto literário, uma vez que, a arte da palavra é capaz de trabalhar não apenas com os sentidos linguísticos, mas também com a essência humana, no processo dialético e humanizador da literatura. “A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas” (CANDIDO, 1995, p.175). Neste sentido, foi selecionado um gênero textual: Conto “Uma galinha”, de Lispector. A seleção, feita pela docente da disciplina, considerou a brevidade característica dos contos, a temática feminina recorrente em Lispector (já que a maior parte dos alunos é do gênero feminino) e a aparente clareza dos elementos da narrativa dispostos no texto. Considerando que o aluno de Letras será professor de leitura, a disciplina enfatizou a formação do professor leitor como sujeito que usa as Estratégias de Leitura em seu cotidiano e também faz reflexões metacognitivas, a fim de que possa intervir eficientemente sobre o processo de ensino e de aprendizagem da leitura nos anos da escolaridade básica. Foram realizadas atividades com as Estratégias de Leitura, abordando as seguintes etapas do processo de compreensão textual: “conexões, inferência, visualização, questionamento, sumarização e síntese” (GIROTTO e SOUZA, 2010, p. 47). De acordo com Girotto e Souza (2010, p.50), a compreensão de um texto não se dá apenas no final da leitura, mas também durante a leitura. Assim, as aulas podem,
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intencionalmente, levar o aluno a pensar, a estabelecer um processo metacognitivo a serviço da significação. Para as autoras, as estratégias são: Conexão (GIROTTO e SOUZA, 2010, p. 66) – usar tudo o que se sabe para entender o texto lido – Há 3 tipos: a) texto-texto: relacionar eventos, ideias, informações do texto com outros textos já lidos; b) texto-leitor: relacionar eventos, ideias, informações do texto com vivências do leitor; c) texto-mundo: relacionar eventos, ideias, informações do texto com acontecimentos do mundo. Para tanto, é sempre necessário ativar o conhecimento prévio – levantar o que o leitor conhece sobre o tema, o gênero textual, o autor do texto; Visualização (p. 83) – inferir significados através de imagens mentais, pensar, por exemplo, nas características das personagens, nas cores, nas formas etc; Questionamento (p. 91) – perguntar ao texto em busca da descoberta de informações que estão no texto (questões magras) ou que podem ser compreendidas a partir do texto (questões gordas); Inferência (p. 74) – questionar o que é lido para tirar conclusões, fazer previsões, antecipar ações, refletir sobre a leitura; Sumarização (p. 92) – aprender a buscar a importância das informações no texto, buscar a essência do texto; Síntese (p. 101) – resumir, recontar, parafrasear o texto, acrescentando também a visão particular sobre o que foi lido. Assim, o primeiro passo foi ler o conto com os estudantes, aplicando as Estratégias de Leitura. Para ativar o conhecimento prévio foram expostos alguns objetos dentro de uma caixa. Cada participante tinha de escolher um objeto e falar o que sabia sobre ele. Em seguida, poderiam juntar os objetos e tentar “descobrir” como seria a história. Os objetos faziam parte do enredo do conto: um ovo; uma telha; uma faca, uma boneca. Ao comentar sobre os objetos, cada aluno colocava em prática o seu conhecimento prévio. A maioria associou a telha à boneca, como se a boneca de alguém tivesse sido arremessada no telhado; quanto à faca e ao ovo, grande parte dos estudantes pensou em uma refeição que usa a faca para cortar um ovo frito; unindo as duas possibilidades
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surgiram diferentes versões, mas uma agradou a vários estudantes: um suposto irmão mais velho teria jogado a boneca da irmãzinha no telhado na hora do almoço. Até esse momento, os alunos não sabiam o título do conto. Quando o título do texto e o nome do autor foram apresentados, para que o levantamento de conhecimento dos leitores se ampliasse, surgiram novas versões para os objetos, tendo prevalecido a seguinte: uma galinha que não botava ovo foi morta na frente de uma menina que ficou assustada e subiu em cima da casa, já que Lispector costuma retratar os sentimentos das personagens. Quando a obra começou a ser lida, logo de início, havia a descrição do espaço da narrativa. Neste momento, apenas a professora lia a história para os alunos, que ficavam de olhos fechados. Depois da leitura de um trecho, a professora parou a leitura e perguntou o que as pessoas “viram” e “sentiram” com a leitura: quais eram as cores, os tamanhos, os cheiros etc. Com a socialização, estava se confirmando a estratégia de visualização. Além disso, quando cada pessoa falava sobre suas sensações, fazia referência a outros textos lidos, a experiências vividas e a fatos noticiados na televisão. Estavam se manifestando as conexões – muito importantes para que o leitor atribua sentido ao que está buscando compreender. Duas alunas se lembraram de uma cena do filme A Fuga das Galinhas; um aluno comentou que teve um galo como animal de estimação. À medida que a obra continuava a ser lida coletivamente, o a professora propôs algumas perguntas que retomavam o que tinha sido lido, questionava sobre as ações das personagens, propunham a compreensão das ações. Esta etapa é a dos questionamentos, que ajuda a colocar ordem na história, a dar sentido às ações. Uma das questões feitas foi: “Como o chefe da família se comportou diante da fuga do animal que seria servido no almoço?”. Algumas respostas, dadas às questões feitas pela professora, pressupunham como a história iria terminar, ou o motivo de o narrador valorizar alguma informação, para justificar uma possível conclusão do texto – estavam se manifestando as inferências. Nesta etapa, a professora perguntava: “O que vocês acham que vai acontecer agora? Por quê? Que trecho da história permite fazer essa conclusão lógica?”.
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Quando a história acabou, novos questionamentos e inferências foram feitos para construir uma ideia global do texto. Em seguida, os alunos montaram um esquema hierarquizando as ações e personagens do texto, evidenciando o evento desencadeador do conflito, as personagens principais, as secundárias etc. Com isso, acontecia a sumarização. Foi nesse momento que coube o estudo dos elementos da narrativa, com base nas considerações de Gancho (2006). O estudo permitiu retomar a organização do ato de narrar, bem como ajudou os estudantes a identificarem os diferentes pontos de vista presentes no conto, seja na interferência do narrador, seja na manifestação das personagens. Além disso, a constituição do tempo e do lugar ajudaram os alunos a reconhecerem relações simbólicas entre a personagem feminina (mãe) e a galinha. Toda narrativa se estrutura sobre cinco elementos, sem os quais ela não existe. Sem os fatos não há história, e quem vive os fatos são os personagens, num determinado tempo e lugar. Mas para ser prosa de ficção é necessária a presença do narrador, pois é ele fundamentalmente que caracteriza a narrativa. (GANCHO, 2006, p. 15) Para que a última Estratégia de leitura pudesse ser trabalhada, os estudantes leram as Teses sobre o conto (PIGLIA, 1994), considerando que todo conto apresenta duas histórias. Para Piglia (1994), o conto narra em primeiro plano a história 1 e constrói em segredo a história 2, ou seja, há uma história 1, que vai se evidenciando aos olhos do leitor, é a história mais aparente, aquela que parece ser o motivo da escrita do conto. Contudo, para o mesmo autor, a história 2 é uma história secreta, que não se mostra totalmente, mas que vai se construindo paralelamente à história 1, é a história 2 a chave do conto, o que revela um segredo, uma sutileza característica do gênero conto. Os estudantes ficaram intrigados com essas considerações de Piglia e releram o conto em busca das duas histórias. Chegaram ao seguinte pensamento: a história 1 é a história da galinha, a qual seria servida como refeição de uma família num domingo, contudo tal galinha foge, é capturada, bota um ovo e, por este gesto, passa a ser considerada uma mãe e não se transforma em refeição naquele instante; contudo, tempos depois, a galinha perde seu “valor” na família e é devorada.
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A história 2 causou mais polêmica e “demorou” mais para ser encontrada. Por fim, os alunos consideraram que a chave do conto está nas relações familiares e sociais evidenciadas pelas personagens na interação com a galinha. O pai se comporta como chefe da família e sai em busca da galinha, buscando retirar dela a liberdade da fuga. A mãe/mulher da casa não fala, não reage, não se mostra, parece que, assim como a galinha, está presa aos valores e convenções sociais, sendo inferiorizada no lar. A filha reage com sentimentalismo diante do ovo botado pela galinha e só vê o animal quando ele se “transforma em mãe”. Para a maioria dos graduandos, o conto tematiza a condição social da mulher das décadas de 60 e 70, questionando a “coisificação” feminina e falta de liberdade vivida por muitas mulheres. A galinha seria um símbolo desta situação feminina restrita a servir o lar. Assim, por último, a estratégia da síntese aconteceu quando cada estudante recontou a história em uma linguagem: imagens, reescrita etc. Os alunos construíram cartazes para o mural da faculdade, nos quais recontavam o conto nos dias atuais ou questionavam a visão social sobre a mulher hoje. Para finalizar as ações, a turma de graduandos estudou sobre o gênero conto e suas principais características: brevidade, unidade de efeito, tensão. A autora de referência foi Gotlib (2004). Como a disciplina acadêmica é semestral, com 4 aulas semanais, as ações aqui apresentadas ocuparam 1 mês (20 aulas). Para perceber que a brevidade, a unidade de efeito e a tensão se manifestam nos contos contemporâneos, os alunos analisaram mais dois contos de autores brasileiros. Em linhas gerais, a receptividade dos alunos ao trabalho de leitura literária foi muito boa, pois todos se envolveram com as aulas, realizarem as atividades, participaram oralmente e avaliaram as ações como significativas na trajetória de estudante e futuro professor. A maioria afirmou que embora tenha se matriculado no curso de Letras, nem sempre tinha o hábito de ler textos literários, muitos dos alunos não fizeram tais leituras ao longo do Ensino Médio. Considerando que serão professores, ensiná-los a ler e apreciar literatura se transforma em uma responsabilidade do curso de Letras. A disciplina de Leitura e Produção de Texto I tem o compromisso duplo de ensinar a ler, na perspectiva da formação docente, portanto, o uso das Estratégias de
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Leitura se mostra bastante adequado. As Estratégias de Leitura são uma oportunidade de sistematizar o ensino, portanto acrescentam muito na qualidade formativa dos alunos, pois elas são didaticamente organizadas para fazer o estudante pensar em cada etapa de significação do texto. A partir das reflexões construídas os estudantes de Letras perceberam que o desenvolvimento da capacidade de compreensão dos textos não é espontâneo nos sujeitos, mas fruto de intervenções pedagógicas intencionais e planejadas. Referências: CANDIDO, A. O direito à literatura. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995. GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. 9 ed. São Paulo: Ática, 2006. GIROTTO, C. G. G. S. e SOUZA, R. J. Estratégias de leitura: para ensinar alunos a compreender o que leem. GIROTTO, C. G. G. S.; SOUZA, R. J.; MENIN, A. M. C. S.; ARENA, D. B. Ler e compreender: estratégias de leitura. Campinas: Mercado de Letras, 2010, p. 45-114. GOTLIB, N. B. Teoria do conto. 5ª ed. São Paulo, Ática, 2004. LERNER, D. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed, 2002. LISPECTOR, C. Laços de família. Rio, Francisco Alves, 2ª ed., 1961. PIGLIA, R. Teses sobre o conto. In: O laboratório do escritor. São Paulo: Iluminuras, 1994. pp. 37-41. SOARES, M. A escolarização da literatura infantil e juvenil. A escolarização da leitura literária. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
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POÉTICA DAS MARGENS: MULHERES RECONTANDO A HISTÓRIA EM DESMUNDO, DE ANA MIRANDA E F INISTERRE, DE MARÍA ROSA LOJO 1 Gracielle Marques (UNIR/ UNESP- FCL/Assis) Intr odução O conceito de entrelugar, discutido por Silviano Santiago na década de 70 no Brasil, assim como outros termos semelhantes presentes em outros contextos literários, tais como lugar intervalar (E. Glissant), in-between (Walter Mignolo e S. Gruzinski) espaço intersticial (H. Bhabha), zona de contato (M. L. Pratt), fronteira (Ana Pizarro, Pasavento) propostos por diversos críticos para designar o espaço criado pelos descentramentos, os deslocamentos humanos e a cultura advinda das margens (HANCIAU, 2007, p.127) são o ponto de partida de nossa reflexão sobre o universo literário da escritora brasileira Ana Miranda e da escritora argentina María Rosa Lojo. Desta maneira, este trabalho propõe a leitura comparada das obras Desmundo, de Ana Miranda (1996) e Finisterre, de Mar ía Rosa Lojo (2005), privilegiando os seguintes aspectos: ambas as obras apresentam uma atitude escritural que toma a história como intertexto ativo e questionador dos discursos fundadores da nação na América Latina, construindo, a partir da expressão feminina, um espaço de confrontação e resistência para se expressar uma realidade “outra”, feita de intercâmbios e negociações. Em Desmundo, a narradora-protagonista Oribela é uma das sete órfãs enviada ao Brasil a pedido do jesuíta Manoel da Nóbrega, que as solicitou ao rei Dom João III, em 1552. O envio de mulheres órfãs e brancas tinha a finalidade de servir os colonos portugueses e com isso evitar práticas sexuais polimorfas. Além disso, garantir com o matrimônio entre brancos a alvura dos descendentes. Narrado em primeira pessoa por Oribela, que juntamente com as demais personagens, excetuando Dona Brites Albuquerque, Pero Vaz de Sardinha e o próprio Manoel da Nóbrega, são criações ficcionais. Obrigada a casar-se, a jovem enfrentará, além de seus traumas interiores, o mundo hostil que a rodeia. Alimentando sempre o desejo de regressar a Portugal, tenta 1
Este texto representa uma pequena parte da pesquisa de Doutorado que está sendo desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP/ FCL-Assis.
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fugir duas vezes do marido, mas sem sucesso. Em uma das tentativas conhece o mouro Ximeno Dias, por quem se apaixona e com quem tem um filho, que representa simbolicamente o começo de uma nova vida e amplia as misturas culturais presentes em nossas origens. Em Finisterre, a narrativa é em terceira pessoa com longas inserções em primeira pessoa, através de cartas. Nelas acompanhamos a trajetória da narradoraprotagonista Rosalind, que desvela um dos lados de uma história entrecruzada. Por meio das cartas lidas por sua destinatária, a jovem Elisabeth Armstrong, ela lhe conta sua origem omitida por seu pai, o rico inglês Olivier Armstrong. Rosalind é a esposa do médico Tomás Farrell, filho de irlandeses e galegos como ela. Ambos partem de Finisterre, Galícia, para a Argentina em 1832, voluntariamente, em busca de melhores condições de vida. Em Buenos Aires, as personagens partem em caravana para Córdoba, interior do país. Entre as pessoas que seguiam na mesma direção, se encontrava o comerciante inglês Olivier Armstrong e a atriz espanhola dona Ana Cáceres. No entanto, no caminho, são atacados por um malón (ataques realizados por indígenas aos brancos para adquirir todos os tipos de pertences, incluindo mulheres) de índios ranquéis. Seu marido é morto no ataque enquanto ela é ferida no ventre e levada cativa. Como em suas malas se encontram os instrumentos de seu marido é confundida com uma machi (curandeira) dos brancos, pelo machi ranquel Mira Más Lejos. Ao despertar para a nova realidade descobre que perdeu o filho que esperava e que se encontra estéril. Nos confins do território argentino juntamente com o inglês Armstrong, a atriz espanhola dona Ana de Cáceres e o militar unitário exilado entre os ranquéis Manuel Baigorria, responsável por suas capturas, vive uma experiência que desborda os preconceitos da visão eurocêntrica finissecular, que conduziu a construção do discurso da nação em termos excludentes, como os de civilização/barbárie, centro/periferia e próprio/alheio. O que aproxima essas duas personagens femininas é o fato de se tratar de sujeitos migrantes com seus destinos traçados pelo discurso patriarcal, porém graças ao desvio das normas impostas elas conseguem instituir um novo lugar, um entrelugar que une as memórias do velho e novo continente.
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Assim, tomadas como verdadeiros sujeitos culturais, essas mulheres são colocadas no centro de uma narrativa que toma a memória da nação como escritura que forja significados simbólicos, em torno dos quais se cria o sentimento de pertencimento dos indivíduos, a que se refere Stuart Hall (2005), ao emprestar a expressão “comunidade imaginada” de Benedict Andersen. Nesse sentido, os romances de extração histórica de Lojo e Miranda subvertem e descentralizam a pretensa homogeneização da narrativa da nação ao valorizar as margens, ou os ex-cêntricos, na terminologia de Linda Hutcheon (1991), que podem ser identificados com as personagens femininas. Nas palavras de Hutcheon: Ser ex-cêntrico, ficar na fronteira ou na margem, ficar dentro e, apesar disso, fora é ter uma perspectiva diferente, que Virginia Woolf(1945,96) já considerou como sendo "alienígena e crítica", uma perspectiva que está "sempre alterando seu foco" porque não possui força centralizadora. (HUTCHEON, 1991, p.96)
Por isso, o ex-cêntrico pode, por meio desse pertencimento duplo e paradoxal, realizar a crítica ao centro desde a margem ou o centro, como é o caso de muitas das personagens de Miranda e Lojo. Ambas as narrativas destroem sistematicamente alguns conceitos como homogeneidade, unidade e pureza. Nas obras estudadas, o espaço criado entre uma margem e outra nos convida a analisar a pretensa rigidez dos pares história e ficção, além dos os espaço geográficos dos deslocamentos provocados com a viagem das protagonistas. Por outro lado, as margens são projetas na própria estrutura do texto, por meio dos paratextos (títulos e epígrafes) que manifestam essa condição limiar. Limiar es do texto Pela leitura que propomos, observamos que muito mais do que acompanhar o texto, os títulos e as epígrafes se constituem em um espaço no qual o discurso literário demarca sua posição ideológica antes do início da narrativa propriamente dita (GENETTE, 2009). Em Desmundo, dividida em dez capítulos, a narrativa começa com duas citações em forma de epígrafe indicando o intertexto e o diálogo com o discurso literário e histórico. A primeira que aparece são os versos do português Fernando Pessoa: “Ir para
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Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata, Indefinidamente, Pelas noites misteriosas e fundas. Levado, como poeira, pelos ventos, pelos vendavais”. O “longe”, o “fora”, a “distância abstrata”, “indefinida” parece convergir para a descrição do que seria o outro lado da fronteira, mas que não assume uma conotação negativa devido à imperiosa necessidade do ir, do ser errante, isto é, da vagância. O local de onde se parte é relativizado a partir do momento que se realiza o deslocamento, pois o dentro/fora depende do ponto de onde se encontra o sujeito. Dessa maneira, esse espaço pode ser tanto o Brasil quanto Portugal, uma vez que a esperança de retornar é, de maneira geral, o desejo de todos os imigrantes, manifestado nas tentativas de fuga de Oribela. A narrativa exalta o cruzamento da fronteira em direção ao outro em busca da complicada fusão entre culturas, tempos e espaços. Em um primeiro momento, as narradoras-protagonistas de ambos os romances se veem presas em um destino que as obriga a viver na América do Sul. Entre o desejo de regressar e a falta de esperança, a imposição da difícil realidade e o aprendizado marcado pela perda lhes indica a paradoxal saída, como lemos na resposta de Rosalind à espanhola dona Ana, que lhe havia rogado abandonar a viagem ao interior da Argentina: “la única salida es hacia adelante”. O “sair” pressupõe o entrar, por isso para libertar-se será necessário penetrar “la tierra ade ntro”. A segunda epígrafe de Desmundo traz o fragmento da carta de Manoel da Nóbrega ao rei Dom João III. Por meio dessa brecha Miranda conta o que Nóbrega calou, imagina o que ele não escreveu e cria a sua personagem recordando o passado. Deste modo, o romance expõe a tensão limiar entre história e ficção no paratexto, apontando sua relevância na organização e estrutura da matéria literária. Antecipando e ampliando o texto literário em si, que repousa no uso primoroso de técnicas narrativas como a do pastiche e da paródia, da imaginação e fantasia, de sensibilidade poética combinados com os acontecimentos históricos. Por sua vez, Finisterre, dividida em quatro capítulos, se abre com a epígrafe dos versos da poetisa galega Rosalía de Castro (1837-1885), em língua materna e com tradução ao espanhol: “¡Ánimo, compañeros!/Toda la tierra es de lo hombres./Aquel que no vio nunca más que la propia/ La ignorancia lo devora. Rosalía de Castro (“Las
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viudas de los vivos y las viudas de los muertos, Hojas nuevas)” (LOJO, 2006, p.5). Como sabemos, a poetisa e novelista Rosalía de Castro teve um papel importante no processo de ressurgimento da língua e da cultura galega. O remoto noroeste da Espanha emerge do esquecimento que se encontrava Galícia, sua cultura, sua paisagem, suas festas, sua fala, suas alegrias e sofrimentos, suas romarias, imigração, seus homens e suas mulheres, que se veem retratados nos versos e na prosa da escritora. O tema, nesses versos, é o do imigrante galego que com a mesma esperança de um dia regressar se lançam ao oceano. Vemos a história de Portugal e Espanha essencialmente vinculados ao tema da viagem através do mar desde sua fundação. O conhecimento da terra que não lhe é própria, mas que também nos pertence (es de los hombres) se encontra no olhar de quem evoca o próprio do alheio, ou seja, que busca uma identidade na alteridade. Assim, o deslocamento, o cruzar as fronteiras físicas são chaves temáticas pelas quais podemos ler as narrativas de Maria Rosa Lojo e Ana Miranda. Podemos pensar, também, o termo fronteira como equivalente do vocábulo finisterre, título do romance de Lojo, já que se trata de um limite a ser transposto físico e subjetivamente. Como desvenda a narradora das epístolas a sua interlocutora na última carta que lhe envia: “Al Finis Terrae: al límite del mundo familiar , de la realidad que creemos conocer, por dentro o por fuera de nosotros mismos” (LOJO, 2006, p.11). A segunda epígrafe, na sequência que são apresentadas no livro, é a de um fragmento de La vida es sueño, de Pedro Calderón de la Barca: “Aun no sé determinar me /si tales sucesos son/ ilusiones o verdade s” (LOJO, 2006, p. 7). O texto de Calderón aponta para a porosa relação entre ficção e história, porém que não se opõe e sim que se resolve na possibilidade de síntese. Essa leitura não esclarece todos os sentidos da epígrafe, mas é indicativo de uma constante na obra lojiana, de reformulação das dicotomias, entre elas as de civilização-barbárie, como explicita Marcela Crespo Buiturón: “Lojo impone otro modo de abor dar la dicotomía civilización-bar bar ie. […] no son dos términos opuestos que se anulan entre sí, sino elementos solidar ios que conviven en el seno de cada cultura alterándose y evidenciando la realidad facetada del mundo”(BUITURÓN, 2010, p.289). A autora torna visíveis essas múltiplas faces da alteridade ao virar as páginas da ficção e da história.
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Outras epígrafes surgem no inicio dos três capítulos posteriores, extraídas dos textos de Oscar Wilde e William Shakespeare. No último capítulo e único em receber título, En el fin de la tierra, aparecem os versos de Castro do poema Extranjera en su pátria e um fragmento de De profundis, de Wilde. Ambas as epigrafes tocam um tema em comum o de expor uma condição irresolúvel experimentada pelos deslocamentos espaciais e também pelo não reconhecimento e marginalidade, imposta por uma ordem dominante à sujeitos ex-cêntricos como uma mulher escritora ou por um escritor que transgrediu as convenções de gênero de sua época. Assim, o paratexto aponta para a leitura crítica de temas presentes na obra das escritoras: a das fronteiras entre história e ficção, dos exílios e trânsitos de personagens, especialmente femininas, que por sua vez transgridem os limites imposta ao gênero, classe e etnia. Ficção e histór ia: as fr onteir as discur sivas Ao falar em discursos, nos referimos aos discursos constitutivos da nacionalidade brasileira e argentina em torno da elaboração das noções de fronteira geográfica, política e militar enquanto constitutivas dos traçados físicos que definiram o espaço territorial desses países. A construção desses estados nacionais, no século XIX, é o produto histórico de dois movimentos opostos gerenciados pelo Estado, que por um lado delimita e diferencia a cultura nacional em relação ao exterior, e por outro lado unifica e homogeneíza internamente suas representações em torno a uma ideia de nação. A concepção de fronteira, no entanto, não implica somente o espaço físico, mas fundamentalmente o humano, pois à medida que novos territórios eram incorporados a cartografia nacional as diferentes formas e tipos humanos passaram a ser indesejados e destruídos pelo projeto civilizador, em detrimento de outros sujeitos. Esse projeto nacional que lutou para suplantar a condição fronteiriça e suas diferenças temporais, culturais e sociais é resgatado pelas autoras a partir dos interstícios da história e da ficção com o intuito de indagar a identidade nacional. Como vemos, o termo fronteira e outras acepções possíveis do termo se instalam nos discursos sobre a identidade latino-americana, em constante discussão na literatura e nas produções culturais, de maneira geral. Torna-se a fronteira, o limiar, o entre-lugar um lugar de tensão, de conflitos, mas também de negociação, de tradução, de
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solidariedade, e fundamentalmente permite desbordar as linhas das posições binarias opositoras entre ser e ser o outro. Retomando os questionamentos de muitos intelectuais brasileiros, especialmente os modernistas, Miranda explora as brechas desses textos para alterar as dicotomias colonizador/colonizado, homem/mulher, porém evitando uma inversão oposta. O diálogo com a história coloca as diferentes vozes em um jogo de confrontações no qual a construção da identidade é evidenciada enquanto conflito, situando, para tanto, o sujeito em uma condição dilacerado entre duas ou mais culturas. O pano de fundo histórico que ressoa das páginas de Desmundo diz respeito aos conflitos entre os colonizadores europeus e os habitantes nativos, que com o tempo levou ao extermínio de grupos indígenas que habitavam a costa brasileira. A ação está ambientada nas décadas do Governo-Geral (1549-1580), mais precisamente em 1552, no litoral pernambucano, cenário das primeiras atividades evangelizadoras da Companhia de Jesus e do conhecido episódio da antropofagia do Bispo Dom Pedro Fernandes Sardinha em 1556. O romance inicia-se com o relato da chegada de Oribela ao Brasil, mais exatamente no momento em que avista a terra: Ali estava bem na frente a terra Brasil, eu a via pelos estor es tr eliçad os, lustrada pelo sol que deitava Uxtix, uxte, xulo, cá! Verdadeira? Tão pequena quanto eu podia imaginar, lavada por uma chuva de inverno, verde, umas palmeiras altas no sopé, por detrás de nuvens de tapeçaria, véu de leve fumo. (MIRANDA, 1996, p.11)
Como percebemos, esse momento do reconhecimento da nova terra nos remete a Carta do Achamento de Pero Vaz de Caminha e das possíveis inversões operadas pelo texto de Miranda. A protagonista narra a realidade a partir do que vê e pelo ângulo dos “estores treliçados”, pelas frestas. O espaço das mulheres nessas travessias se resume ao confinamento nos camarotes, com as exceções de saírem para assistir a missa e autos religiosos. Se há grandes dificuldades e perigos para homens e mulheres nessas viagens, para elas é ainda mais grave. Nessa sociedade fortemente segregada pela divisão de gênero a mulher é a fonte de todos os males: louvaram a Deus chegar vivos, que não esperavam, em naus, mulheres são mau agouro, em oceanos, fêmeas são baús cheios de pedras muito grandes e pesados, sem serventia nem a ratos a não ser turbar as vistas, nausear as tripas, alevantar as mãos em súplicas e trombetear
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por causa alguma, só pelo prazer, feito os demos. (MIRANDA, 1996, p.14).
Nessa passagem, assim como em muitas outras, o discurso patriarcal quinhentista irrompe. A intolerância à diferença de gênero revela as suas estratégias discursivas. Diante da mesma ação vivida por homens e mulheres, ou seja, a travessia transatlântica, elas são despreciadas e pretendesse anular sua participação em tal empreitada. São apresentadas como presença temerária e inútil, contudo, a protagonista se desvia constantemente desses obstáculos guiando o leitor na direção dos vãos para que este realize a leitura pelas gretas abertas pelo seu olhar. Portanto, nesse contexto repressivo, o olhar pelos vãos do acontecimento histórico será um dos lugares de rebelião e resistência. Desse modo, fica clara desde o inicio a perspectiva e a estratégia feminina da reescrita da história, pois embora seja negada a mulher a posição e visão de um “descobridor”, como Pero Vaz de Caminha ou a de qualquer marujo, aquela à diferença destes, faz um balanço entre o que vê e a realidade, entre o que deseja e o que a rodeia: “Verdadeira? Tão pequena quanto eu podia imaginar”. A aparente certeza do que se vê é posta em dúvida, tal como a imagem da terra embaçada pela chuva. Assim como as imagens relacionadas ao tópico idílico das terras brasileiras e os conhecimentos científicos sobre a região, também os sonhos e as expectativas se ancoram na incerteza: “ia eu ter uma cama onde pudesse estirar minhas pernas e sem me acordarem coro velos alheios, nem o medo, nem o suor, nem as vacas batendo os chifres nas cavernas, será?” (MIRANDA, 1996, p.11). Nesse jogo intertextual está presente a retomada que faz Ana Miranda da “teoria antropofágica dos vanguardistas brasileiros dos anos 20 para fazer valer a possibilidade de leitura antropofágica: aproveitar-se do modo ritual dos elementos bons da cultura do outro para construir seu próprio universo” (ESTEVES, 2010, p.197). A representação europeia do Outro reconstruída pela narradora feminina se transforma à medida que vivencia e contrasta o que se dizia do “Novo Mundo” e o que fato ela observa. Pela voz da narradora culminam dialogicamente essas vozes e discursos como o religioso, paternalista, determinista que a exilam de sua terra, e da terra a que pertence
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agora: “Este mundo é um desterro e nos, estrangeiros” (MIRANDA, 1996, p.181). A tensão da identidade feminina, excêntrica socialmente, que vaga sobre a fronteira. Levando em conta isso, penetramos o complexo mundo desta mulher do século XVI na constatação de um mundo totalmente estranho e que não têm nada a ver com o idílico “Novo Mundo” descrito pelos navegantes portugueses: “Aquele era o meu destino, não poder demandar de minha sorte, ser lançada por baías, golfos, ilhas at é o fim do mundo, que par a mim par ecia o começo de tudo” (MIRANDA,1996, p.15, grifo nosso). Podemos observar o espaço imaginário da zona fronteiriça criadora de identidades plurais. O centro foi transladado e o olhar agora é des-centralizado. Não é casual, seguindo nossa leitura, que o “desmundo”, embora acione uma rede de sentidos, possa ser entendido como “o desembocar” nos limites entre a Europa e a América précolombiana, o lócus de onde se pode assimilar o dinamismo de distintas culturas. Essa ideia se aproxima do termo “finisterre” como sendo metaforizações da possibilidade de uma linha limite onde o fim representa também o começo. A obra Finisterre revisa os conflitos entre a classe dirigente argentinarepresentada pelas facções dos unitários e federais- e a população indígena do país ao longo do século XIX, período pós-independentista e de formação da República. A autora traz para a literatura um aspecto fundamental da fronteira, isto é, o discurso do estabelecimento do território e da formação da nação argentino nesse período. A fronteira, no século XIX na Argentina, tinha a acepção que encontramos no Dicionário da Real Academia Espanhola de “confín de un Estado”, assim como a de “frontis, fachada ”. No contexto finissecular, essas fronteiras não se movem sobre outro estado, mas sim sobre o que se chamou naquele então de “desierto”, e que se referiam as regiões não colonizadas pela civilização argentina. A releitura do discurso histórico acompanha a do discurso literário, que considerou em diferentes períodos as representações do outro do discurso e do imaginário social vigente, em seu contexto de produção. Tal revisão traz para o centro da trama o mito da cativa branca que surge na literatura argentina no começo do século XVII na lenda de Lucía Miranda, elaborado na popularmente conhecida “La Argentina manuscrita”, do historiador Ruy Díaz de
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Guzmán. Embora não cabe a nós, nesse momento, aprofundarmos na releitura desse mito, é importante assinalarmos que o processo de releitura do passado operado pela narrativa de extração histórica em questão busca nesse mito reavivar a memória dos traumas do passado que persistem no presente: o da barbárie, o da exclusão e do extermínio do outro. A partir da percepção feminina, são narrados os episódios históricos nacionais resgatando as vozes dos relatos orais da “historia sin libros de los ranqueles” (LOJO, 2006, p.109). Enquanto cativa do líder unitário Baigorria, Rosalind vive a história de perseguição sofrida pelos ranquéis e mapuches durante o governo de Juan Manuel Rosas. Todas as peripécias vividas pelos indígenas além das fronteiras dominadas pelo Estado lhe afeta. Conforme destaca Gloria Videla de Rivero Lojo não idealiza um dos lados desse binômio índio/branco, ao contrário oferece uma visão imparcial e transcendente: “el tema de civilizados y bár bar os, de culturas en contacto pero también en conflito transcende así el de la relación índios-blancos par a adquirir um valor mucho más amplio” (VIDELA DE RIVERO, 2007, p.249) Esse olhar plural revaloriza um tema marginalizado e o aproxima de outras bordas sociais, por exemplo, os habitantes da periferia da Espanha, a Galícia e da periferia da Inglaterra, Irlanda. São as fronteiras que adquirem o significado de “frontis, fachada” ou começo. Como fruto da dinâmica da fronteira surge o híbrido, o mestiço e a convergência de dois mundos passam a ser o cerne das preocupações a ser problematizado pelas propostas de um fazer literário que questiona a identidade cultural argentina. Lojo explora a vivacidade da aglutinação dos contrários para a construção de uma identidade expressiva, como notamos no conselho que Manuelita Rosas, filha do ex-governador de Buenos Aires Manuel Rosas, da à Elizabeth, no momento e que esta já conhece sua história mestiça: -Pues será usted una india inglesa[ ...]. Así se ha hecho América. Mezclando y revolviendo sangres y cuerpos, entrelazando lenguas. No renuncie a nada. Quédese con sus dos herencias, aprenda de los unos y de los otros (LOJO, 2006, p. 154). As questões da constituição identitária necessárias à nova nação, ainda não resolvidas, se afirmavam pelo extermínio dos índios realizado pelo exército durante a
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Campanha do Deserto, no século XIX. No final do século XIX, marcados pelas novas ondas de migração europeia surgem novos protagonistas que são destacados na narrativa em seu convívio com as culturas locais. O duplo pertencimento favorece a existência de uma fronteira intercultural sustentada pela obra. Assim, a convivência e aceitação dessa condição, instaurada pelo trânsito, se revela consciente da necessidade de um caminho que compartilhe diferentes margens. Como lemos essa condição dilacerada entre dois permite que a cativada e quem a cativa compartilhem o mesmo sofrimento, pois pertencer a esses “dois mundos” significa estar atravessado pela tensão de estar na fronteira. Fr onteir as fluidas Rosalind e Oribela invertem uma imagem feminina presente nos discursos que idealizam uma nação branca, racional, centralizada e civilizada, que as toma como instrumento de branqueamento e homogeneização. Reclamam em uma abordagem que privilegia o lugar intermédio, ex-cêntrico como uma nova via para se pensar o passado e o presente e modificar o futuro. Nesse sentido, a mestiçagem é a condição mediadora entre os diferentes mundos culturais representados pelo filho fruto da união entre Oribela e o mouro Ximeno, ou seja, se rompe a imposição dos propósitos do discurso colonizador, patriarcal e religioso que a obrigara a casar-se. Elisabeth, a índia inglesa, também forma essa diversidade exaltada por Lojo que se abre para a convergência do próprio e do alheio, do racional e da magia, da palavra e o gesto, enfim, a terceira margem, ficcionalizada por Guimarães Rosa. Entre
esses
pares,
apenas
aparentemente
opostos,
se
alcança
a
complementariedade no discurso ficcional pela experiência e visão da mulher sobre a construção da identidade nacional. Na sexta parte do livro intitulada “desmundo”, a relação da protagonista com o mundo ao seu redor é transformada pela amizade com a índia Temericô. Depois de uma fuga mal sucedida o marido a mantém presa sendo a índia a encarregada de cuidá-la. Assim, cria-se um espaço de contato e troca com a cultura ameríndia: “Faz frio, faz calor, faz lua, chove e um dia ela disse, pe-î-é tenhé peîabap -a, que era, Fugiste à toa, sem necessidade. Que nunca se podia fugir de nada que
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estava dentro de nós, doinha Oribela, dissesse, ai virgem sagrada e eu a ensinava a cantar” (MIRANDA, 1996, p.127). Enfim, esse entrelugar fronteiriço, marginal se constitui, também, o lugar de enunciação através do qual as escritoras expressam, releem as representações da colonização paralela à subordinação sexual imposta por uma ordem patriarcal, no qual as diferenças de gênero são (des) articuladas e são reveladas em uma atmosfera de conciliações e também de crise e tensão. Refer ências CRESPO BUITORÓN, Marcela. La crisis del pacto identitario a finales del los últimos dos siglos en Argentina: Libro extraño de Francisco Sicardi en el XIX y Finisterre de María Rosa Lojo en el XX. In: A contracorriente. Volumen 8, número. 1, otoño de 2010, 277-297. GENETTE, G. Par atextos editoriais. Trad. Álvaro Faleiros, Cotia: Ateliê Editorial, 2009. ESTEVES, Antonio R. O romance histórico brasileiro contemporâneo (1975-2000). São Paulo: Ed UNESP, 2010. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. HANCIAU, Nubia Jacques. Entre-lugar. In: FIGUEIREDO, Eurídice (Org.). Conceitos de literatura e cultura. Rio de Janeiro: UFJF/EdUFF, 2010. HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo:história, teoria e ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. LOJO, María Rosa. Finisterre.2. ed. Buenos Aires: Sudamericana, 2005. MIRANDA, Ana. Desmundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. VIDELA DE RIVERO, Gloria. Ojos que miran el todo: en torno a la narrativa histórica argentina reciente. In: ARANCIBIA, Juana A., FILER, Malva A. y TEZANOS-PINTO, Rosa. (eds.). Mar ía Rosa Lojo: la r eunión de lejanías. Buenos Aires: ILCH, 2007.
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O NEGATIVO DA MORTE EM “A MÁSCARA DA MORTE RUBRA”, DE EDGAR ALLAN POE Gregg Bertolotti Stella (UFPR) Edgar Allan Poe abre o conto “A Máscara da Morte Rubra”, de 1842, com uma espécie de parágrafo explicativo, que em tom frio e imparcial enumera os sintomas da Morte Rubra – peste que “por muito tempo devastara o país” (POE, 2013, p.126) – e descreve suas ações sobre o corpo do doente. Apesar do “tom matemático” que domina o início texto, seria exagerado defender que se trata de uma “descrição científica”, uma vez que não há nem uma única menção aos pormenores fisiológico decorrentes do contágio. As sensações que os infectados invariavelmente enfrentam são citadas vagamente, mas a descrição dos efeitos da moléstia sobre o corpo é minuciosa. O narrador nesse momento se põe na posição de espectador e sua visão se aproxima daquela que seria a nossa. Esse movimento inaugural é uma demonstração de algo que permanecerá durante todo o conto: sim, estamos falando de uma doença rápida e fatal, mas o ponto central da narrativa não é a relação dos moribundos com a morte certa, e sim a relação daqueles que estão saudáveis com o terror que sentem ao ver a morte dos outros como um prenúncio terrível da própria morte. No segundo parágrafo somos apresentados ao príncipe Próspero que, já de saída, aparece como uma espécie de avatar daquilo que poderíamos chamar de “negativo da morte”. O narrador nos informa, no final do parágrafo inicial, que “a irrupção, o progresso e o desenlace da moléstia eram coisa de apenas meia hora” (POE, 2013, p.126), e logo em seguida nos apresenta ao príncipe: “mas o príncipe Próspero sabia-se feliz, intrépido e sagaz” (POE, 2013, p.126). Imediatamente se evidencia o brutal contraste entre as imagens da aterrorizante doença que se espalha rápida e livremente, e do príncipe que convoca “um milheiro de amigos sadios e frívolos, escolhidos entre os fidalgos e damas da corte, e com eles se encerra numa de suas abadias fortificadas” (POE, 2013, p.126). Além do jogo de negativos, o cenário que Poe constrói num piscar
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de olhos propõe uma visão bastante aguda sobre a índole do príncipe e sua relação com os desdobramentos do avanço da doença, o que é por si só combustível suficiente para empreender combate direto a toda e qualquer leitura que defenda que o caráter gótico/fantástico de sua obra (e do fantástico em geral) é sinônimo de “fuga da realidade” e alheamento. A mando do príncipe, os ferrolhos dos portões da abadia são rebitados, para impedir de forma permanente não apenas a entrada dos mais desesperados ou raivosos, mas também a fuga dos que estavam do lado de dentro, o que acaba criando dois espaços estanques e, ao mesmo, a impossibilidade do trânsito entre eles. Mas não deixemos de notar que o ato do príncipe – movido pelo afã de criar a sensação de segurança, opondo um “espaço doente” a um “espaço sadio” – torna semelhante a situação de todos os envolvidos: a partir desse momento todos estão trancados, alguns para fora, alguns para dentro. E ambos os grupos têm que lidar com ímpetos irrefreáveis. Do lado de fora “a peste campeia”, prostrando aqueles que toca e tomando deles aquilo que, no limite, os irmana aos enclausurados: a vida. Do lado de dentro, a furiosa vontade do príncipe dita as regras: os portões estão trancados, ninguém sai, haverá diversão. “Beleza, vinho e segurança estavam dentro da abadia” (POE, 2013, p.126), “o mundo externo que se arranjasse” (POE, 2013, p.126). Isso quem nos diz é o narrador. É possível certamente defender aqui a presença do discurso indireto livre, que estaria neste caso dando voz à opinião do príncipe – pois certamente é assim que ele pensa – ou de um de seus frívolos amigos, mas também podemos, e parece mais frutífero, pensar numa espécie de contágio (o que é, inclusive, bastante adequado) do narrador, que acaba se aproximando daqueles que estão presos na abadia e se contaminando por sua visão. Não que haja elementos na composição do conto que possibilitem a defesa da ideia de que o narrador é um sobrevivente, uma testemunha ocular do que aconteceu na abadia, quando falo em “proximidade”, me refiro a uma espécie de “aproximação psicológica”. Todo enunciado pertence a um local de enunciação, sempre que dizemos algo, o dizemos “de algum lugar”. O narrador se coloca, consciente ou inconscientemente, do
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lado de dentro, o que poderíamos chamar de “deslize”, pois parece buscar a todo momento um “local nulo” – emprestando à própria voz certo ar de indiferença – intento realizado com satisfatório sucesso na maior parte da narrativa. Mas os deslizes estão lá, seja quando seu discurso se aproxima daquele que seria o discurso dos envolvidos diretos (como no caso mencionado acima), seja quando a frieza de uma narração distanciada é explicitamente abandonada para dar lugar a um juízo de valor claramente enunciado: “que cena voluptuosa, essa mascarada!” (POE, 2013, p.127), exclama a respeito do baile de máscaras que o príncipe organiza para seus convivas. A aproximação se torna mais evidente quando ele nos diz que “ao fim do quinto ou sexto mês de reclusão, quando mais furiosamente lavrava a pestilência lá fora, o príncipe Próspero decidiu entreter seus amigos com um baile de máscaras de inédita magnificência” (POE, 2013, p.127). Atenção para a imprecisão (nada sutil) no momento de indicar a passagem do tempo. O erro é absolutamente incompatível com um “narrador organizador” que se põe afastado dos fatos narrados, mas está perfeitamente de acordo com aquela que poderia ser a percepção dos enclausurados. O narrador está “do lado de dentro” e é com a visão dos enclausurados que a sua se mistura, o que significa que é “de dentro” que vemos o que acontece. Seguindo por esse caminho, temos ainda outro dado interessante para analisar, afinal de contas, a percepção da passagem do tempo por parte dos enclausurados está severamente comprometida, o que indica que a vida no monastério, apesar da suposta segurança, é uma vida de condenado, presa demais a uma rotina, ou absolutamente livre de qualquer rotina. O baile é anunciado, mas antes de se dedicar a ele, o narrador dedica algumas linhas aos salões nos quais aconteceria a festa. Os salões funcionam como espaços independentes, conectados, mas muito diferentes entre si, o que torna um pouco incômoda a ideia de que juntos eles compõem um todo. Esse, inclusive, parece ser um grande ponto de interesse dentro da economia geral do conto, a ideia de um grupo de coisas que compõe uma unidade aparece com certa frequência (os sintomas da doença, os salões, os cortesãos), mas sempre carrega em si um desconforto, seja porque o resultado é terrível, seja porque persiste a sensação de que não há coesão e de que a
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visão organizadora é muito mais uma vontade externa do que o alinhamento de elementos internos presentes no conjunto. No caso dos salões, já que é deles que estávamos falando, o estilo da decoração varia muito de um para outro, bem como a iluminação que, filtrada por vitrais, confere a cada um deles uma diferente cor predominante. No final das contas a descrição desse ambiente tem um quê de paradoxo: embora haja detalhes e seja possível montar uma imagem satisfatoriamente consistente de como seria cada um dos salões individuais, a descrição do modo como se conectam uns aos outros é bastante nebulosa. Os corredores, apesar de certa regularidade, parecem compor um labirinto. O salão que nos interessa mais diretamente, já que é aquele que interessa mais diretamente ao próprio conto, é o sétimo – “completamente revestido de veludo preto, que, pendendo do teto e ao longo das paredes, caia pesado sobre um tapete de mesmo estofo e cor” (POE, 2013, p.127), banhado pela “cor sanguínea” dos vitrais vermelhos – , que não é somente o mais assustador dos cômodos (os amigos do príncipe não ousam sequer entrar), mas também aquele que será palco do clímax da história. É também nesse salão que se encontra o robusto relógio de ébano que, de hora em hora, soava e interrompia o baile e toda e qualquer atividade que estivesse em curso ao longo dos sete salões. Os músicos paravam de tocar, os dançarinos paravam de dançar, fazia-se o mais completo e absoluto silêncio. “Os mais afoitos empalideciam, os mais idosos e sensatos passavam a mão pela fronte como em sonho ou meditação confusa. Tão logo se esvaiam os ecos, um riso ligeiro percorria a assembleia” (POE, 2013, p.128) e marcava o recomeço da festa. É com um “riso ligeiro” e compartilhado que os festeiros fidalgos afastam o silêncio e os próprios pensamentos a fim de mais uma vez se entregar ao esquecimento da festa. Festejar é, portanto, um ato de defesa, é proteger-se de si mesmo e calar a própria consciência. As fantasias desempenham o papel de verdadeiros disfarces, auxiliando no processo de construção de uma farsa que tira de foco, mesmo que momentaneamente, o medo que os fazia se apegar tão inescrupulosamente à vida (e talvez até a vergonha de fazê-lo). O narrador informa que as tais fantasias eram “grotescas” (POE, 2013, p.128),
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“capazes em não pouca medida de provocar aversão” (POE, 2013, p.129), “delirantes invenções de um louco” (POE, 2013, p.129), compunham, no final das contas, uma “multidão de sonhos” (POE, 2013, p.129). A presença do grotesco é muito significativa, pois temos aqui o ataque direto ao corpo, ou pelo menos à “normalidade” do corpo. Muitas das fantasias, segundo o narrador, representavam membros disformes e desmesurados, uma série de caricaturas brutais do corpo humano. As fantasias, portanto, não são simples adornos, funcionam como um manifesto de abandono do próprio corpo e de aceitação/apropriação de um corpo que não é seu. Mas não de um corpo qualquer, trata-se de um corpo em que estejam salientes as imperfeições, um corpo que torne imediatamente apreensível qualquer monstruosidade. E não seria justamente esse o movimento empreendido pela literatura de Poe? Os elementos fantásticos com os quais trabalha não funcionariam como uma fantasia posta sobre a realidade a fim de salientar suas deformidades? Uma boa chave de entrada para pensarmos o cenário composto pelo baile é o conceito de erotismo, de Georges Bataille. Segundo ele, “o erotismo é a afirmação da vida mesmo na morte”. Somos seres descontínuos, finitos, quem têm que viver o opressivo dia a dia de tal condição, agravada pela consciência de seu caráter inescapável. A Morte Rubra não passa da manifestação terrível de uma verdade que espera por todos nós, é apenas uma dentre as várias faces (ou máscaras) com as quais a morte se nos apresenta. Vivemos num pendular movimento entre a consciência de nossa irremediável descontinuidade e o renitente desejo da conquista da continuidade, de uma espécie de unidade com o mundo que nos cerca, movidos pela nostalgia de uma lembrança que não temos, mas que nunca deixamos de projetar. A morte rubra funciona, portanto, como perfeito resumo daquela que vem a ser a parte mais sombria da nossa convicção sobre o porvir, ela representa a morte certa, que se anuncia momentos antes de sua definitiva deflagração, como se sadisticamente mostrasse o luzir da lâmina antes de desferir o golpe. E é isso, exatamente, o que ela vai fazer no final do conto.
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Diante da percepção, ainda que fugidia e relutante, da impossibilidade de fuga (da “fuga final”, a fuga da descontinuidade), fazemos o que é possível fazer para experimentar as sensações que nos aproximariam daquilo que seria a continuidade. No erotismo estará esse movimento de busca da continuidade, de pertencimento a uma unidade, do abandono de um “eu” fixo e constrito (ou pelo menos da suavização de suas fronteiras), enfim, da dissolução. Eis aí o baile de máscaras e a “confusão identitária” que as fantasias representam, tudo somado ao vinho, à música, à dança, às cores e, principalmente, às máscaras. É o narrador quem nos diz: não são pessoas que se movimentam pelos salões, são sonhos. Meia noite é a hora fatal, como não poderia deixar de ser. É claro que a “convenção fantástica” tem aqui seu peso, mas não é só isso. Meia noite é o momento do desfecho, o momento em que a morte rubra, “em pessoa”, faz sua aparição na festa e caminha entre os convivas. Quando os ponteiros do relógio de ébano se unem apontando para cima, se iniciam as doze badaladas, justamente o período mais extenso pelo qual o retumbar do relógio ocupará os salões e, por extensão, o maior período ao qual os festivos cortesãos estarão entregues à influência das próprias mentes, como que petrificados, impossibilitados de defender-se. Não é por acaso, portanto, que a aparição chega à meia noite. Não é por acaso que ela, assim como os demais, usa uma máscara. A “longa” interrupção da festa cria a oportunidade para a morte se fazer presente, o que indica que, de fato, a festa servia como uma espécie de escudo que a mantinha afastada. Mas não se pode festejar para sempre, uma hora será necessário tirar a fantasia e reassumir o próprio corpo, será necessário abandonar a máscara e reassumir o próprio rosto. A luta para manter-se submerso no inebriamento da festa, livre de si, era a afirmação do vibrante desejo de descontinuidade que mantinha a morte afastada. O príncipe Próspero é a personificação dessa luta. Ele não era apenas “mais um” na festa, era o orquestrador, aquele que impôs a festa aos outros. O narrador nos informa que ele havia não só cuidado pessoalmente da decoração de cada um dos salões, mas também havia escolhido pessoalmente as fantasias. Ele é o negativo da morte e sob nenhuma circunstância se deixará abater sem
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luta. Numa das cenas finais do conto essa luta se trona corpórea e ele, com um punhal, tenta matar a morte, a própria morte. Mas o príncipe Próspero, mesmo sendo príncipe, é um de nós e, no final das contas, e não importa a ferocidade com que tentemos disfarçar nossa condição, somos seres descontínuos, e, dentro ou fora da abadia, seremos devorados pela morte, seja ela rubra ou de qualquer outra cor.
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RESSONÂNCIAS BÍBLICAS NA NARRATIVA BRASILEIRA MODERNA Gregory Magalhães Costa (UFRJ) Já no título de seu ensaio, Bernard Mcginn (1997) ressalta a tradução da palavra grega apocalipse, αποκαλιψιs, com o significado principal de revelação. Já na tradução da Bíblia de King James a palavra grega possui esse significado, embora seu sentido tenha depois variado de acordo com a interpretação da igreja, passando “a designar a manifestação gloriosa de Jesus Cristo, o Messias, no final dos tempos” (2007: 591). O fundamental para este presente trabalho é que o apocalipse se consuma como revelação e fim, dos tempos, do mundo, consistindo em princípio e fim: “E declarou-me ainda: Tudo está realizado! Eu Sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim” (21.6) (2007: 626). A literatura brasileira, embora possa não parecer à primeira vista, é pródiga em representar de forma inovadora apocalipses bíblicos. Isso está em nossa literatura ao menos desde Machado de Assis, com o apocalipse de um homem medíocre, Brás Cubas, a quem seu fim aparece como revelação de sua vida a ser salva pelo dom curativo da palavra poética, seu verdadeiro emplasto. Assim, a literatura brasileira se tornou moderna de forma apocalíptica, simbólica e poética. Como o apóstolo João, que tem visões dos séculos, do futuro, percorrendo-o nos céus, assistindo de lá fim e recomeço do mundo, Machado, com sua pena da galhofa, faz Cubas viajar pelos séculos montado num hipopótamo, tendo, época após época, a visão da exploração do homem pelo homem, a mesma que ele viu em sua vida e que ele mesmo praticou. Com sua palavra poética, do mundo dos mortos, ele purgará essa Babilônia de depravações que foi a sociedade em que viveu, incluindo ele mesmo, um devorador social, qual a teoria do Humanitismo do filósofo louco Quincas Borba. No século XX, nossos modernos artistas da prosa continuaram a representação do apocalipse de diversos modos, introduzindo novos significados, mas sempre como fim e revelação, com a estrutura simbólica requerida por esse estilo: sobretudo em Os sertões de Euclides da Cunha, com seu apocalipse de Canudos, sumo da identidade
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nacional, que ele preserva em sua poética; Vidas secas de Graciliano Ramos, com o apocalipse humano de uma família que representa todas as famílias da caatinga; e Grande Sertão: veredas de João Guimarães Rosa, com seu apocalipse jagunço, fim e revelação da mentalidade, sensibilidade, capacidade poética de nosso povo. Um dos grandes intérpretes bíblicos Frank Kermode infere que “o apocalipse é sempre uma literatura de crise” (1997: 414). N‟Os sertões, Euclides encena o apocalipse de Canudos. O arraial autônomo do interior sertanejo do país conteria o sumo da identidade cultural brasileira, identidade tipicamente poética e assim lembrando a linguagem e psicologia dos primeiros homens do mundo e neste sentido sim primitiva. Se o litoral supostamente civilizado se encontra em crise por motivos políticos, supostamente revolucionários, do apocalipse da monarquia e revelação da república do Brasil, os sertanejos, supostamente bárbaros, estão em crise por conta da miséria, do martírio da seca, da fome, de sua terra. Como um cordeiro de Deus, os Sertões precisam sofrer o sacrifício ritual para purgar os males da sociedade da metrópole. Antonio Carlos Secchin sintetiza brilhantemente essa questão da tensão entre moderno e antigo na visão de Euclides: “Ele insiste nessa tecla... da diferença de séculos, e não só de quilômetros, entre os adeptos do Conselheiro e a modernidade que estaria no litoral. Examina a história brasileira a partir do antagonismo entre forças renovadoras e forças da reação” (2010: 70). O fim do mundo antigo proporcionará o surgimento do mundo novo, como no apocalipse bíblico: “Então vi o novo céu e a nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra haviam passado; e o mar já não mais existia” (21.1) (2007: 625). Portanto, o apocalipse do arraial de Canudos representa uma tentativa de destruição da nossa própria identidade cultural, múltipla e heterogênea, com seu fim proporcionando a própria revelação de nossa identidade multifacetária. O líder de Canudos, Antônio Conselheiro, é pintado como um verdadeiro profeta apocalíptico. Mcginn já havia assinalado que “o apocalipse foi... concebido como um livro profético” (1997: 565). O narrador euclidiano, ao falar de como Conselheiro era visto por fora, o descreve assim: “Imagine-se um bufão numa visão do Apocalipse” (1984: 97). Logo em seguida aparecem as profecias apocalípticas do Messias sertanejo:
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Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão; então o certão virará praia e a praia virará certão. Em 1897 haverá muito pasto e pouco rasto e um só pastor e um só rebanho. Em 1898 haverá muitos chapéus e poucas cabeças. Em 1899 ficarão as águas em sangue e o planeta hade apparecer no nascente com o raio do sol que o ramo se confrontará na terra e a terra em algum lugar se confrontará no céu... hade chover uma grande chuva de estrellas e ahi será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes. Deus disse no Evangelho: eu tenho um rebanho que anda fora deste aprisco e é preciso que se reúnam porque há um só pastor e um só rebanho! (1984: 99).
A profecia apocalíptica de Conselheiro acaba se consumando, ao menos para os canudenses. Na quarta expedição, as tropas enviadas pela metrópole litorânea, europeizada, conseguem covardemente dizimar a Terra Sagrada e prometida de Canudos. Jerusalém sertaneja? A vitória da metrópole consiste simultaneamente em sua derrota, uma vez que o vencer a batalha final acabou concretizando a profecia de Conselheiro, comprovando seus dons proféticos de Messias. Já em Vidas secas, de Graciliano Ramos, há a via crúcis de Fabiano e sua família de retirantes pelo inferno da seca não só da caatinga, mas a que se tornou sua própria vida. Os personagens se resumem a pensamentos e sentimentos secos de modo que quase não falam, no máximo emitem sons guturais. Como um Cristo, a família sertaneja carrega sua cruz e seu sofrimento se consumará na consciência crítica de ser explorado; consciência essa que a libertará de seu trabalho de Sísifo. Trabalho quase escravo que os transforma nas encarnações do cão sem plumas, de quem é tirado até o que não se tem. Num raro momento de expressão própria, tal o nível de sujeição a que estão submetidos, o menino mais velho fica curioso a respeito de uma das poucas palavras que ouvira e que achara linda e misteriosa, a palavra inferno. Ele pergunta à sua mãe, Sinhá Vitória, sobre essa palavra encantadora: “A mãe se referira a um lugar ruim, com espetos e fogueiras” (1976: 59). O personagem infantil chega a pensar que “existiam sem dúvida em toda a parte forças maléficas, mas essas forças eram sempre vencidas” (1976: 60). A parte adversativa da oração expressa a ingenuidade da visão infantil. Porém, ao fim, o menino vence a ingenuidade e percebe que o inferno é a própria caatinga seca que se tornou sua vida, que se expressa no seu pensamento de criança dentro de sua realidade infantil: “O inferno devia estar cheio de jararacas e 3
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suçuaranas, e as pessoas que moravam lá recebiam cocorotes, puxões de orelhas e pancadas com bainha de faca” (1976: 64). Desse modo o narrador não diz, sugere que a caatinga é o próprio inferno em terra que seca a vida de seus personagens martirizados como sua terra. Também o crítico literário brasileiro Álvaro Lins havia percebido que “a paisagem exterior torna-se uma projeção do homem” (1963: 145). Adonias Filho avança um pouco ao afirmar que Graciliano “não subordina apenas o cenário ao homem, mas no homem penetra em busca dos grandes problemas” (1969: 77). Já Ronaldes de Melo e Souza (2010: 186) observa que a poética seca prima pela preservação incondicional da liberdade humana através do narrador que não se permite falar em nome do personagem, silenciando-lhes a voz. Para o crítico, “o autor se irmana aos deserdados” (2010: 184). O narrador se cala para narrar a interioridade seca dos personagens, narra suas reflexões e seus sentimentos, todos secos como a terra. O apocalipse do interior sertanejo do Brasil ao representar a heroicidade da resistência poética do homem do interior, do país e de si mesmo, a revela. Mais uma vez o fim proporcionado pela exploração total e absoluta do homem pelo homem gera a revelação da identidade que subjaz escondida no interior do homem explorado e submisso de nosso país. Ele apresenta aos brasileiros a capacidade de resistência poética de nossa gente, mesmo quando totalmente submetidos a uma exploração absoluta e infinita que os torna verdadeiros cães sem plumas conseguem sobreviver. Assim se confirma a percepção do grande romancista e crítico Adonias Filho (1969: 76) de que Ramos parte do localismo para o universal. Em Grande Sertão: veredas, Guimarães Rosa interpreta o apocalipse jagunço. Toda a narrativa se passa na tensão harmônica entre Deus e Demo. Logo de cara Riobaldo anuncia que “a jagunçada se findou” (2006: 19). Esse apocalipse tem alguma simetria com o euclidiano, pois também representa o fim de uma parte da cultura, acarretando na sua revelação e salvação. Indo mais fundo, esse apocalipse representa a revelação da capacidade poética da interioridade humana de imaginar e criar mundos, renovando-os constantemente num processo metamórfico equivalente ao da natureza.
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Em Os sertões, o narrador-personagem, o próprio Euclides da Cunha, anda pelo Sertão plural anotando as suas histórias, que passam pela sua reflexão crítica de homem da metrópole litorânea. Já em GSv Riobaldo conta suas estórias ao doutor letrado, interlocutor oculto, que as vai anotando em seu caderninho. Assim, Rosa inverte o ponto de vista na literatura brasileira em relação a Euclides. Embora Euclides sintonize emocionalmente com os sertanejos, ele conta a história de um ponto de vista “estrangeiro” para o Sertão. Embora ele narre o impacto emocional dos eventos nos personagens, ainda é ele, um citadino, quem narra. Riobaldo inverte essa perspectiva e narra ao “estrangeiro” a história sertaneja do seu ponto de vista sertanejo. Já em Vidas secas a situação narrativa é bem distinta, pois o narrador se cala de modo a deixar o sertanejo falar por meio de seus pensamentos e sentimentos. Enquanto Riobaldo narra o protagonista que foi, o ponto de vista de todos os outros personagens, fazendo constante crítica e autocrítica; Euclides reflete todos os eventos na sua própria percepção de observador itinerante; e Graciliano oculta, cala o narrador para deixar os personagens falarem por si. Se em Graciliano todos os personagens contam sua via crúcis por si mesmo, em GSv todos os personagens falam autonomamente, mas pela boca de Riobaldo. Comentário semelhante ao de Walnice Nogueira Galvão, para quem “pela boca de Riobaldo, são todas as personagens do romance que falam” (1989: 165). Também Riobaldo sofre sua via crúcis da perda do amor de sua vida, Diadorim, nas veredas infernais e paradisíacas do Sertão primitivo civilizado. É o Sertão do pacto com o Demo, o pacto com o invisível, com nossa racionalidade fria, mas também é o pacto ficcional que o autor estabelece com seu oposto invisível, o leitor, e o leitor com o autor por intermédio da obra literária. No pacto sertanejo o Diabo aparece somente sob a forma invisível de vento. Northrop Frye já havia atentado para as significações do vento na Bíblia: “„Espírito‟ é uma concepção identificada com o Espírito Santo da doutrina cristã, e o „vento‟ é uma ilustração concreta desta concepção. Mas no texto grego a mesma palavra, „pneuma‟, vale para espírito e para vento” (2004: 34). Por meio do símbolo Rosa une o que a racionalidade diabólica separou. O Diabo vige dentro do homem e fora dele, o Diabo é o grande separador, e dicotomizante como a tradição filosófica racionalista do ocidente. O símbolo é a capacidade de unir aquilo
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que a racionalidade fria separou. A própria Bíblia King James indica que “os leitores ocidentais, especialmente, devem estar atentos ao estilo apocalíptico (simbólico) desta obra, muito comum no Oriente ainda hoje” (2007: 594). Portanto,
os organizadores da Bíblia King James consideram o estilo
apocalíptico como simbólico. Se Rosa vai encenar o apocalipse jagunço ele tem de usar o estilo correspondente, e esse estilo é o simbólico. O próprio Deus remete ao seu estilo simbólico ao revelar a João: “Este é o mistério das sete estrelas, que viste na minha mão direita, e dos sete candelabros de ouro: as sete estrelas são os anjos das sete igrejas, e os sete candelabros são as sete igrejas” (1.20) (2007: 595). Além de revelar o homem humano, o homem preso em sua mera racionalidade narcísica, o próprio Diabo, o apocalipse sertanejo também revela o homem integral, aquele que a partir de sua capacidade poética une em si todos os opostos. Diabólico e simbólico é o narrador rosiano. Deus e o Diabo. Oculta e revela, revela e oculta, revela o oculto. Outra recriação bíblica de Rosa consiste justamente no dom curativo da palavra de Riobaldo. Mais uma vez é Frye quem faz menção a essa magia das palavras: A articulação das palavras pode dar corpo a este poder comum; daí emana uma forma de magia, em que os elementos verbais, como „fórmulas‟ de feitiço ou de encantamento, ou coisas parecidas, ocupam um papel central. Um corolário deste princípio é o de que potencialmente pode haver magia em qualquer uso que se faça das palavras. Em tais contextos as palavras são forças dinâmicas, são palavras de poder (2004: 28). Toda a narração do protagonista-narrador do Grande Sertão é tecida justamente para exorcizar o Diabo que vige nele por meio do pacto demoníaco feito nas veredas mortas, para expulsar os erros da sua vida de jagunço, sob o poder de mando e comando e posteriormente exercendo ele mesmo tal poder hierárquico. Em Rosa, o Diabo é o poder de mando e comando, a exploração do homem pelo homem, a opressão e repressão do outro e de si mesmo. O Diabo é o homem humano, egoísta e individualista, capaz de explorar um irmão. Sua narração busca por fim exorcizar sua dor infinita pela perda irreparável do amor de sua vida, Diadorim. Diadorim vige dentro de Riobaldo, vive dentro dele e por meio de sua obra oral-escrita.
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Segundo Mcginn, “muitos especialistas modernos [...] consideram o apocalipse de João uma apresentação cíclica de visões que representem [...] a mesma mensagem básica de perseguição presente, destruição iminente dos maus e recompensa dos justos”. É neste sentido que a visão de mundo de Riobaldo, sua psicologia e seus sentimentos parecem seguir essa sintonia, esse fluxo e influxo. Primeiramente Riobaldo apresenta uma espiral cíclica de visões de mundo e de práxis, verdadeiro redemoinho, sempre com o Diabo no meio. Uma hora o Demo é o protagonista, outra o Satanás é o narrador, outra Diadorim, Zé Bebelo, Joca Ramiro, Hermógenes... Cada hora um personagem, coprotagonista, é o Diabo, cada hora um jagunço: Joca, Ricardão, Hermógenes, Titão Passos, Medeiro Vaz, etc. é o Diabo. Todos no meio do redemoinho que é a memória caleidoscópica e labiríntica de Riobaldo, traduzida na sua narração espiral. O Diabo, então, é o jagunço, confirmando que o Demo é o poder de submissão, o poder de mando e comando. É a destruição da cultura sertaneja original e originária, da épica guerra dos opostos e da linguagem poética, expressa na visão de mundo poética da eterna criação, da constante metamorfose barroca, telúrica e cósmica. Deus organiza o caos em cosmos, em Genesis catártico. A narrativa sertaneja organiza em cosmos literário universal a mente caótica, labiríntica e misteriosa de Riobaldo. Todas essas partes dispersas, todas as vozes que vigem e vivem dentro de Riobaldo estão dispostas em estrutura paratáxica: em que nenhum ponto de vista é totalmente verdadeiro, nem totalmente falso e todos se completam em harmonia solidária pelo dom curativo da palavra. Na narrativa de Riobaldo a obra aberta, permitida pela parataxe, se dá pela equivalência das cenas, episódios e atos pelo processo de uma estória sair de dentro da outra e dessa sair outra e assim por diante. É como se toda a obra se estruturasse em forma de construção em abismo em que uma parte sai de dentro da outra, contém a outra, sintetiza a outra. Como cada cena, episódio e ato sintetiza o outro, ele “puxa” o outro, se encadeando pela justaposição das camadas narrativas isomórficas. Walnice Nogueira Galvão já havia percebido esse processo, chamando de “coisa que sai de dentro da outra”, ao analisar a estrutura da obra rosiana: “Uma coisa sai da outra, e dessa outra sai outra, e assim sucessivamente” (1986). José Carlos Garbuglio nota uma dimensão semelhante ao interpretar que “palavra desentoca fato” (1972: 28).
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Já Mary Lou Daniel (1968: 104), ao falar da gramática e sintaxe do Grande Sertão, usa exatamente o termo parataxe. Em Vidas secas há uma apresentação cíclica de diversos pontos de vista diferentes sobre um mesmo evento, neste caso, a peregrinação de uma família pobre em sua via crúcis pela secura que se tornou a caatinga e suas próprias vidas. É como se cada personagem fosse um apóstolo em que cada um conta a história de sua via dolorosa, de seu sacrifício ritual de travessia seca pelo inferno seco e de sua salvação pelo dom poético da criação mesmo que sem palavras, só pela sabedoria advinda do sofrimento dos eventos secos. Nenhum ponto de vista contém a verdade absoluta sobre os eventos que se passaram. Cada um conta como viu, sentiu, sofreu e como refletiu criticamente sobre cada um desses eventos. Cada um conta a experiência que conquistou pelo sofrimento de ser submetido para além de qualquer capacidade de suportar tamanha opressão. Todos contêm pontos convergentes e divergentes, todos contêm verdades e fatos questionáveis, todos são imaginação, a assimilação criativa do mundo proporcionada pela nossa captação sensível do que chamamos convencionalmente de realidade. Lapidar a esse respeito são as diferentes visões dos personagens sobre a morte do papagaio de estimação da família, parte integrante dela como qualquer humano, que serviu de refeição para ela. Primeiramente o narrador conta que o papagaio morreu pela seca e com isso foi aproveitado como refeição para a família: “Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio...: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida” (1976: 11). Essa primeira passagem sobre a morte do papagaio é ambígua, pois diz que ele morreu à beira do rio, mas não diz se ele morreu de causas naturais ou se foi morto. Essa mesma história volta a aparecer, agora do ponto de vista de Fabiano, que conta uma nova versão que ainda não esclarece a causa da morte do papagaio, mas mostra que Fabiano se sente culpado por ter comido um membro da família: “Na beira do rio haviam comido o papagaio, que não sabia falar. Necessidade” (1976: 39). Fabiano parece se justificar para si mesmo, com sua seca reflexão crítica, de que só comeu o papagaio por necessidade e porque, afinal, ele nem sequer sabia falar.
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A seguir vem a visão da Sinhá Vitória sobre a morte do louro. Primeiro o evento é refletido na percepção da personagem que sofre o impacto emocional, sofrendo com o fato que gostaria de esquecer. Entramos dentro dos sentimentos e sensações de Sinhá: “Pobre do papagaio... Coitado! Sinhá Vitória nem queria lembrar-se daquilo” (1976: 45). Adiante aparece a nova versão da morte do pássaro, do ponto de vista de Sinhá, que enfim revela ao leitor que a família matou o papagaio para comer: “Pobre do louro. Na beira do rio matara-o por necessidade, para sustento da família” (1976: 46). Talvez Sinhá tenha matado o louro e escondido o fato da família para eles não se sentirem culpados. Talvez só ela soubesse do assassinato. Também n‟Os sertões de Euclides da Cunha há uma espiral cíclica de pontos de vista. Antônio Conselheiro é mostrado por doze perspectivas distintas, algumas contrastantes. A dialética mais geral constitui-se no fato de ele ser visto no litoral, capital, centro do poder nacional, como um monstro, um restaurador monarquista, um louco, bandido e ser visto nos Sertões como um profeta, um Messias, um curandeiro, líder religioso, social e político. Outros pontos de vista tecidos sobre Antônio Conselheiro são: o de que ele é um homem primitivo, bárbaro, atrasado, representante de uma época remota da psicologia e costumes humanos: “Um documento raro de atavismo” (1984: 86). Euclides o vê como um homem humilde, que recusava qualquer excesso ou conforto: “Vivia de esmolas, das quais recusava qualquer excesso, pedindo apenas o sustento de cada dia... Não aceitava leito algum, além de uma tábua nua e, na falta desta, o chão duro” (1984: 94). Porém, Conselheiro é visto, sobretudo, como síntese da cultura sertaneja: “Mas, posto em função do meio, assombra. É uma diátese e é uma síntese” (1984: 86). Como o sertanejo é o sumo da identidade nacional, já que não se vê contaminado com a cultura europeia, Conselheiro se torna “elemento conservador formando o cerne da nossa nacionalidade nascente” (1984: 127). A professora e estudiosa de Euclides Anélia Pietrani alerta para esse fato: “Impossível não parar para lustrar as lentes dos óculos que desembaçam nossa visão míope, a visão de um país que insiste no olhar transatlântico, estranho ao interior, ao cerne da nacionalidade – diria Euclides” (2010: 14). A narrativa euclidiana muda o tempo todo de perspectiva, sempre a partir do direcionamento dado à cabeça, à visão, do personagem-narrador, o próprio Euclides.
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Ora ele aparece como historiador, ora como sociólogo, repórter, como pessoa sintonizada emocionalmente com o martírio dos sertanejos. Ronaldes (2009) delimita seis máscaras narrativas usadas ciclicamente pelo narrador euclidiano. São elas a de observador itinerante, que funciona como uma câmera de cinema apontando para onde o leitor deve olhar, nos detalhes que deve observar por meio de seus olhos de personagem narrador que peregrina pelo Sertão em busca de sua identidade; a de pintor da natureza, que pinta as cenas metamórficas do mundo telúrico; o encenador teatral representa o drama fitomórfico, da luta pela sobrevivência, isomórfico ao drama humano do engano e da guerra; a do investigador dialético, que revela um estado de confusão que requer uma elucidação, que harmoniza e organiza os pontos de vista; o de refletor dramático a fim de representar a impressão de aflição e terror; e na do historiador irônico que denuncia os desmandos do litoral e o massacre imposto a Canudos, e sintonizado com o drama dos sertanejos. Também as três partes do livro, terra, homem e luta, estão estruturadas pela justaposição descontínua dos capítulos. As três partes são isomórficas. Na primeira parte o embate, a luta, conflito, dos elementos naturais diversos, opostos, formará a terra martirizada, em conflito consigo mesma. Na segunda parte o embate genético das diferentes raças faz surgir o homem sertanejo, que por seu insulamento no deserto está livre da contaminação da cultura europeia, constituindo-se, assim, no sumo da identidade nacional. Na terceira parte a luta entre os sertanejos e a metrópole revelará a identidade nacional multifacetária e metamórfica. Toda essa espiral cíclica de pontos de vista está estruturada em parataxe, não sendo nenhum mais importante do que o outro, sem que nenhum se sobreponha ao outro, se coadunando à poética da solidariedade entre as partes distintas e se conformando no ponto bíblico comum de toda a moderna literatura poética brasileira. Jesus já professara que o reino dos céus seria dos pobres e que os últimos seriam os primeiros. A ressonância bíblica na literatura brasileira moderna parece basear-se nesse princípio cristão, parece ter como centro irradiador esse ensinamento fundamental de Jesus e na sua estrutura paratáxica, de solidariedade fraterna entre as partes heterogêneas que ganham unidade na harmonia cósmica e musical permitida por essa estrutura igualitária e cíclica em espiral.
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Referências
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AFRICANIDADE E RELIGIÃO: A RELAÇÃO DO HOMEM COM O DIVINO EM OS FLAGELADOS DO VENTO LESTE Hélio Márcio Nunes Lacerda (UFT) Nosso trabalho discute a relação de alteridade do homem com o Divino, mediada pela fé, tendo este elemento como o epicentro norteador da nossa análise. Propomo-nos estabelecer uma relação dialógica e comparativista da obra Os Flagelados do Vento Leste, de Manuel Lopes, com a narrativa Bíblica do Livro de Jó e o livro de Hebreus, mais especificamente o capítulo 11, conhecido como “A galeria dos Heróis da Fé”, o que não nos impedirá, se preciso for, de buscar outros textos para fundamentar o nosso dizer. Mobilizaremos a narrativa Bíblica porque ela apresenta uma saga de vínculo humano com o Divino no decurso da história dos Judeus e, posteriormente, do Cristianismo. Jó, assim como “os Heróis da Fé”, mesmo em meio a penumbra, a desgraça e os dissabores que lhe acomete de ordem “sobrenatural”, e sem aparente causa e/ou explicação racional, permanece leal a sua fé, seguindo incólume [a carreira que lhe(s) fora proposta, olhando para o alto, para Cristo, autor e consumador da nossa fé] como nos sugere o escritor da epístola universal de Hebreus (HEBREUS, 12;2). Algo parecido também acontece com José da Cruz, protagonista da obra. Este, assim como Jó, parece não vacilar na sua fé, na esperança de dias melhores. A sua odisseia, espiritual e particular, o guia a um desfecho trágico contado nas minúcias pelo narrador neo-realista. O narrador onisciente perscruta e desvela a alma e a subjetividade angustiante de José da Cruz, descrevendo (quase) visceralmente seus diálogos introspectivos que aos poucos o corroem. Com acesso às entranhas do personagem, podemos, assim, acompanhar a dor, o sofrimento e os infortúnios que lhe sobreveem. No do romance em análise, a narrativa gira em torno de José da Cruz e família que, acometida por, e em meio a inúmeras catástrofes naturais, tais como a seca, a fome, a escassez de água, alimentos, o sofrimento e a fatalidade, tentam sobreviver em meio a aridez e aos dissabores da terra. José da Cruz tipifica o humano que, sem condições mínimas de sobrevivência, faz de tudo para vencer as intempéries da seca e suas
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variantes, resultado da „Lestada‟ que castiga a ilha onde habita com outras centenas de pessoas. Nesta obra, selecionamos como objeto de estudo a relação do homem com o Divino como relatado anteriormente. Tal escolha justifica-se pelo invólucro místico e por uma espécie de áurea mítica que perpassa o humano estando presente no nosso diaa-dia, e, também, pelas diferentes formas que diferentes sociedades tem de se relacionarem com as divindades, dependendo do tempo e do espaço em que se ancoram o seu existir. Tal relação pautada na fé entre aquele que crê (humano) e aquilo em que se é acreditado e/ou cultuado, [a(s) divindade(s)], parece ser uma constante na história humana marcada por uma relação de alteridade que constantemente se mostra conflituosa. Essa relação aparece carregada de sentimentos e conceitos dicotômicos, tais como o bem e mal, santo e profano, celestial e terreno, corpo e alma, céu e inferno, dentre outros elementos que atravessam o vínculo entre o humano, finito, previsível, mortal, falho, mas que carrega dentro de si alguma coisa que aponta para a transcendência da matéria e, do outro lado, o Divino, eterno, imortal, onisciente, onipotente, pleno de virtudes, isso em se tratando da Divindade judaico-cristã. Tal relação tem deixado marcas indeléveis na trajetória do homo sapiens desde os mais remotos tempos. Como tal relação é construída e apresentada nOs Flagelados do Vento Leste é o nosso mote teórico. A fé é o objeto que dá sentido à existência de José da Cruz e o motiva para não desistir da vida em meio a tantas intempéries e tribulações. É recorrente no desenlace narrativo a presença desse poderoso elemento sobrenatural que o norteia e lhe dá ânimo. Parece-nos pertinente trazermos à baila alguns conceitos no que diz respeito a fé. Para o escritor aos Hebreus (11:1), “a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam e a prova das coisas que não se veem”. Nessa perspectiva, parece ser possível estabelecer uma relação de diálogo entre o humano e o Divino, uma vez que, para o primeiro se aproximar do segundo, é suficiente apenas acreditar que este último existe e que “é galardoador dos que o buscam” (HEBREUS 11:6). Pereira (2012) ao analisar os fundamentos mitológicos presentes na narrativa do Livro de Jó parece discordar de que seja a fé que o homem possui que o leva a se
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entregar livre e voluntariamente, e a se submeter aos éditos divinos. Assim o autor ora referendado se posiciona sobre a relação do humano com o Sagrado: Encontramos na subordinação da vida do indivíduo a éditos divinos, um impedimento que cerceia a ascensão da vontade, deliberando sobre seus atos, reafirmando um universo destituído de conflitos obscurecendo a tragicidade reclamada no Livro de Jó (PEREIRA, 2012, p. 89).
Evocados essas duas percepções relacionadas a fé, é possível percebê-la, implícita e explicitamente, nos diálogos tanto de José da Cruz quanto na fala do narrador e dos personagens. Vejamos o seguinte excerto: Havia ansiedade nos seus olhos, mas também dureza e persistência. E havia esperança, coragem, e medo. A esperança nas águas e o temor da estiagem faziam parte de um hábito secular transmitido de geração a geração. (...) A esperança descia em socorro daqueles que tinham medo na alma. Por isso, ela era a última luz a consumir-se (LOPES, 1979, p. 13).
A sensação de aflição e agonia são uma constante na vida das personagens que vão se definhando aos poucos bem como as suas possibilidades de sobrevivência. Essa passagem externa tanto os anseios dos antepassados da ilha quanto os temores dos que vivem o presente. Ambas as partes comungam do sentimento inquietante que se apresenta diante do perigo, da ameaça à vida e da morte que se mostra anunciada, sendo isto, ao que parece, apenas uma questão de tempo. Apesar de todos os pesares, o relato que se segue deixa claro que os sujeitos daquela localidade não têm em mente entregar-se a morte sem antes lutar e defender a qualquer custo o sopro de vida que neles ainda habita. Mais adiante, temos a declaração do narrador de que “a chuva era um símbolo de fé” (LOPES, 1979, p. 13). A chuva não representa apenas um fenômeno ligado à presença de certos tipos de nuvens responsável pela precipitação do vapor de água da atmosfera, condensado ao se resfriar. Mais que isto, a chuva representa a possibilidade da renovação das forças esvaídas, a restauração
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da esperança e a regressão da morte que ameaça a continuação da existência e o fio condutor da vida. Crer nela [na chuva] ou não crer, a enviada de nosso Senhor”. Entre esta fé e a escuridão, entre a coragem e o pânico, o povo escolhia a coragem e a fé porque eram tocadas pela luzinha da esperança. Perante a grandeza e o poder do céu, a esperança era o melhor compromisso dos homens para com a vida. Não seria a melhor forma de fazer o Céu devedor dos homens? (LOPES, 1979, p. 13-14).
Como dito anteriormente, a dicotômica relação entre o humano e o sagrado não é uma relação tranquila, uma vez que o primeiro por ocupar uma posição de submissão e subserviência, agarra-se as migalhas de qualquer possibilidade que o oportunize transcender os limites de sua vida impostos pela natureza. Hebreus 11, conhecido pelo epíteto de “Os heróis da Fé”, narra, em linhas gerais, a trajetória daqueles que, abandonando e enfrentando todos os tipos de perigos que no mundo há, decidiram abraçar, pela fé, a promessa do Deus-judaico-cristão. Consta no referido livro o seguinte trecho: “apagaram a força do fogo, escaparam do fio da espada, da fraqueza tiraram forças, na batalha se esforçaram, puseram em fuga os exércitos dos estranhos” (HEBREUS, 11:34). Nessa perspectiva, a narrativa de Manoel Lopes não apenas dialoga, mas parece comungar da mesma força motriz que move o homem através das adversidades, intempéries e vicissitudes da vida, conduzindo-o a transpor as barreiras naturais e/ou sobrenaturais. O protagonista da história é apresentado da seguinte forma: José da Cruz era homem de bom pensar e de bom conselho, homem de sacrifício quotidiano; dessa raça de gente direita que sabia diferenciar as coisas, pão-pão, queijo-queijo, e sabia também estudar no tempo e confiar no tempo. “Milho de sementeira é divida sagrada”, dizia. “Homem direito não põe a boca na dívida sagrada, pra não virar nem ladrão de deus, nem ladrão da família”. Como esses tamarindeiros do caminho do Porto Novo assim era ele. Dava coragem aos fracos de espíritos, e esperança aos desesperançados. Dava ânimo pelo incentivo do seu exemplo de homem afeito às bordoadas da vida e pela firmeza da sua fé. E não saía do caminho traçado. (LOPES, 1979, p. 15)
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O conjunto de características que o narrador atribui a José da Cruz coloca-o em posição de destaque em relação aos demais. Ele é um homem “de bom conselho”, “direito”, “de sacrifício quotidiano” que “inspirava coragem nos fracos”. José da Cruz parece ser construído como sendo um arquétipo de herói que serve de exemplo para os demais membros daquela localidade. Sempre firme em seus propósitos, vive de modo honrado e virtuoso não dando espaço para que, em momento algum, sua índole seja coloca em dúvida. O caráter imaculado de José da Cruz nos remonta a forma como o narrador bíblico apresenta Jó. A semelhança daquele, assim este é descrito: “havia um homem na terra de Uz, cujo nome era Jó; e era este homem íntegro, reto e temente a Deus e que se desviava do mal” (Jó 1:1). A construção da personagem Jó se dá por meio da representação de um ethos que aventa qualidades invejáveis a qualquer mortal, colocando-o, assim como José da Cruz, em posição privilegiada na sua comunidade. Mais adiante na narrativa, nos deparamos com os filhos de Jó que se banqueteavam com certa frequência. Lemos: “E iam seus filhos à casa uns dos outros e faziam banquetes cada um por sua vez; e mandavam convidar as suas três irmãs a comerem e beberem com eles” (Jó 1:4), somando-se a isso, Jó era bem afortunado tanto em número de filhos, o que era uma riqueza invejável no Oriente, quanto em recursos materiais. Esse fato fica explícito quando lemos: “E o seu gado era de sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois e quinhentas jumentas; eram também muitíssimos os servos a seu serviço, de maneira que este homem era maior do que todos os do oriente” (Jó 1:3). A semelhança de Jó, José da Cruz é construído como alguém honrado, respeitado e admirado pelos que lhe conhecem. A sua construção literária nos remete ao indivíduo que se quer dentro dos moldes e dos parâmetros da narrativa bíblica, tipificando o ideal de pessoa apta para servir a Deus e obter o Céu por herança, como recompensa de uma vida abnegada e devotada ao Senhor, “procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar”, já admoestara Paulo escrevendo ao jovem Timóteo (2Tm 2:15). Posteriormente, retomaremos essa discussão para verificar em que medida José da Cruz se aproxima ou se distancia do perfil de Jó, uma vez que a certa altura do
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romance o narrador explicita certo orgulho em José da Cruz quando da sua obstinação em permanecer ali em meio ao imensurável infortúnio, a ponto de dizer que “estupidamente” José da Cruz se agarrara a esperança da chuva que não veio e se mostra um pouco indiferente de modo a não “perceber a desolação e o inverno à sua volta” (LOPES, 1979, p. 148). Posto isto, lemos: “Sonhei com água no céu esta madrugada e quando me levantei senti umidade na cara. (...) Eu tava num entre-sono quando vi um anjo descer montado numa nuvem” (LOPES, 1979, p. 21). Este excerto nos mostra que José da Cruz se relaciona com as divindades de modo que essas últimas lhe agraciam com um lampejo futurístico do que está por vir. Em meio ao longo período de estiagem e o tempo das águas que não chega, nosso protagonista não desanima e segue incólume sua trajetória apresentando alguma indiferença no que tange àquela dramática situação de extrema escassez material. Enquanto as outras pessoas da ilha estão desesperadas, José da Cruz se mostra manso e confiante de que a providência Divina está a caminho, bastando tão somente algum tempo para chegar. Como uma espécie de profecia anunciada em sonho, temos adiante a realização da mesma para espanto de todos. Pois quando o sol raiou na madrugada do sonho, José da Cruz não hesitou em pôr mãos à obra, ou melhor, à sementeira, e lançar os grãos na terra. “Depois do almoço, com o sol a pino, José da Cruz provou a todo o mundo que ele tinha fé” (LOPES, 1979, p. 21). Ao que nos parece, José da Cruz sentia uma leve necessidade de mostrar aos demais que ele não apenas “tinha fé”, mas que também entendia do tempo, detendo alguma „sabedoria‟ que o diferenciava dos demais. “A fé é o firme fundamento das coisas que não se veem e a prova das coisas que se esperam” (HEBREUS, 11:1), todavia nem todos comungam do(a) mesmo(a) credo/fé na mesma proporção e da mesma determinação de José da Cruz. Pois, ao verem-no enfiando a semente na terra, o narrador assim nos relata: O resto do povo que descria, olhava meneando a cabeça, sem coragem, para esses poucos homens curvados e calados na sua ingrata tarefa; miravam-nos quase com dó, como para uns irmãos infelizes condenados pela justiça divina a enterrar o próprio destino.
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Cobiçavam os litros de milho que esses homens desperdiçavam nas covas” [...] (LOPES, 1979, p.23).
“O resto do povo descria”. Esse trecho parece constatar que a fé é algo muito particular e variável, se mostrando mais consistente em alguns, em menor medida e/ou ausente em outros. “Olhava meneando a cabeça” (grifo nosso), o termo em destaque, dá indícios de certa falta de apreço e menosprezo por parte da multidão que assistia ao trabalho de José da Cruz e seus companheiros, labor este que segundo “o resto do povo”, estava fadado ao fracasso em decorrência da estiagem que a todos castigava. Percebemos que José da cruz no transcorrer narrativo, não poucas vezes, se encontra rodeado de olhares curiosos que dialogam com ele com e/ou sem palavras. Em alguns momentos há um „diálogo mudo‟ como no excerto supracitado. Algo parecido também é verificável em Jó. No momento em que este é acometido pelas fatalidades do “destino”, e vê-se sem recursos, pois salteadores deram sobre os seus animais e os roubaram matando os servos a fio da espada, aparece-lhe alguns “amigos” para testemunhar o que se passa. Vejamos o que o texto bíblico nos diz: E sucedeu um dia, em que seus filhos e suas filhas comiam, e bebiam vinho, na casa de seu irmão primogênito, que veio um mensageiro a Jó, e lhe disse: Os bois lavravam, e as jumentas pastavam junto a eles; E deram sobre eles os sabeus, e os tomaram, e aos servos feriram ao fio da espada; e só eu escapei para trazer-te a nova. Estando este ainda falando, veio outro e disse: Fogo de Deus caiu do céu, e queimou as ovelhas e os servos, e os consumiu, e só eu escapei para trazer-te a nova. Estando ainda este falando, veio outro, e disse: Ordenando os caldeus três tropas, deram sobre os camelos, e os tomaram, e aos servos feriram ao fio da espada; e só eu escapei para trazer-te a nova. Estando ainda este falando, veio outro, e disse: Estando teus filhos e tuas filhas comendo e bebendo vinho, em casa de seu irmão primogênito. Eis que um grande vento sobreveio dalém do deserto, e deu nos quatro cantos da casa, que caiu sobre os jovens, e morreram; e só eu escapei para trazer-te a nova. Então Jó se levantou, e rasgou o seu manto, e rapou a sua cabeça, e se lançou em terra, e adorou. E disse: Nu saí do ventre de minha mãe e nu tornarei para lá; o SENHOR o deu, e o SENHOR o tomou: bendito seja o nome do SENHOR. (JÓ 1: 13-21) [grifo nosso]
O conjunto de fatalidades ora relatadas que seucedem a Jó, compungem-no a uma miséria impensável para quem fora, há instantes, o homem mais rico do Oriente. A
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situação de calamidade enevoada de obscuras causas, causam uma sensação de desepero em Jó. Abate-o um estresse profundo que mais tarde se caracteriza em uma espécie de depressão aguda como resultado dos fatos catastróficos. Como se não bastasse e, também, por ser (ou ter sido, ao menos enquanto tinha posses) alguém muito influente e conhecido, três sujeitos atendendo respectivamente por Eliú, Bildade e Zofar vieram ter com ele: “Ouvindo, pois, três amigos de Jó todo este mal que tinha vindo sobre ele, vieram cada um do seu lugar: Elifaz o temanita, e Bildade o suíta, e Zofar o naamatita; e combinaram condoer-se dele, para o consolarem” (JÓ 2:11). A priori, quando eles se aproximam de longe não reconecem Jó, este estava irreconhecível, pois fora também acometido por chagas por todo o corpo. Os supostos amigos de Jó que, a semelhança da multidão “meneavam a cabeça” para José da Cruz e os seus compadres, parecem agir também com certa indifença apesar de chorarem e passarem os primeiros sete dias sentados com Jó sem dizer uma única palavra, apenas contemplando a sua dor. Senão, vejamos: E, levantando de longe os seus olhos, não o conheceram; e levantaram a sua voz e choraram, e rasgaram cada um o seu manto, e sobre as suas cabeças lançaram pó ao ar. E assentaram-se com ele na terra, sete dias e sete noites; e nenhum lhe dizia palavra alguma, porque viam que a dor era muito grande. (JÓ 2:12-13 )
Nesse momento de agudo pesar e turbulências que acometeram Jó, seus amigos lhe vieram ao encontro enternecidos pelo que se passava. Chorar por e/ou com alguém nos tempos bíblicos, era uma indicação de que aqueles que choravam estavam dizendo sem palavras que partilhavam da dor e do sofrimento daquele que fora acometido por algum problem fosse de ordem material e/ou espiritual, algo semelhante às carpideiras de outrora. O “rasgar o manto e lançaram pó ao ar” nos remete à ideia de humildade e despojamento em virtude da priorização da espiritualidade. Ao “assentarem-se com ele na terra” nos remonta a ideia de igualdade e compartilhamento da desgraça do outro. Ao que parece, aos poucos a solidariedade dá, então, lugar a uma espécie de soberba, uma vez que nos desenlaces seguintes começam a perquerir e insunuar que Jó é o único responsável por aquele quadro degradante e aterrador que agora se lhe descortina.
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Elifaz, o temanita, faz a seguinte declaração: “Segundo eu tenho visto, os que lavram iniqüidade, e semeiam mal, segam o mesmo. Com o hálito de Deus perecem; e com o sopro da sua ira se consomem” (JÓ 4:8-9). Parece ficar explícito que o que elifaz está dizendo é que se há algum culpado por tudo, este culpado só pode ser Jó. Pois para Elifaz, “os que semeiam o mal, segam o mesmo e com o hálito de Deus perecem”, Elifaz sugere que em algum momento Jó semeou joio e, que agora apenas ceifa a sua colheita. Em se tratando da teologia da retribuição, o Apóstolo Paulo escrevendo aos Romanos diz: Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Crsito Jesus (ROMANOS 6:23). Todavia, não nos parece razoável a acusação de Jó por parte de Elifaz, pois nas filigranas subsequentes, vemos que não há uma causa plausível e passível de explicação para a situação de Jó. Ele está sofrendo porque todos que veem ao mundo sofrem, sejam bons sejam maus, ninguém está isento. No que diz respeito a essa questão, Cristo disse que (...) “Ele [Deus] faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre os justos e injustos” (MATEUS, 5:45). Igualmente todos estão sujeitos às mesmas desgraças sem que haja, necessariamente, uma explicação racional. Já se encaminhando para o ápice do romance, o narrador começa a demonstrar que José da Cruz não é tão “abnegado” e de “caráter imaculado” quanto aparentava ser quando do início da narrativa. A essa altura, ele se mostra não apenas obstinado, mas, também, orgulhoso de alguma maneira. Assim, o narrador declara: Digam o que disserem – afirmou de si para si – pensem o que pensarem, eu daqui não saio. Nem dado de vidro. Nem posto lume. Nem que viesse soldado com espingarda e baioneta. Não largo a ourela da minha casa. O tempo ainda vai virar. Eu digo ocês. O tempo vai virar. Ocês caminharam todos um a um. Só fiquei eu e a família. Ocês vão ver o tempo virar (LOPES, 1979, p. 148).
As qualidades que enobreciam o caráter de José da Cruz a ponto de se comparar com o arquétipo cristão semelhante a Jó, parecem definhar, naufragando em meio ao oceano do orgulho e da obstinação que se desvela nele, haja vista a situação paupérrima
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que lhe aflige bem como a sua família, e que, ainda assim, ele insiste em permanecer no seu torrão, não cogitando, em hipótese alguma, desertar do seu lugar. Ao passo que Jó se mantém imaculável em seu propósito apesar de amaldiçoar o dia e a noite em que nasceu: Pereça o dia em que nasci, e a noite que se disse: Foi concebido um homem! Converta-se aquele dia em trevas; e Deus, lá de cima, não tenha cuidado dele, nem resplandeça sobre ele a luz. Reclamem-no para si as trevas e a sombra da morte; habitem sobre ele nuvens; espante-o tudo o que escurece o dia. Quanto àquela noite, dela se apodere a escuridão; e não se regozije ela entre os dias do ano; e não entre no número dos meses. Ah! que estéril seja aquela noite, e nela não entre voz de regozijo (JÓ 3:3-7).
Apesar de proferir palavras carregadas de cólera, aversão e desilusão para com seu dia de nascimento; arrepender-se profundamente de ter tido seios que o amamentasse; um colo que o acalentasse e todo um conjunto feliz de possibilidade que lhe permitiu crescer saudável e chegar ao presente momento, (...) “em tudo isso não pecou Jó com os seus lábios” (JÓ 2:10). Na contramão, temos José da Cruz que “na sua estúpida e mecânica” opinião não retrocede da decisão, pois comentava ao ver passar as gentes que se dirigiam ao Porto: “O posto de cada um era lá onde assentara os frechais do seu teto e armara as três pedras do fogareiro, e cozinhava a cachupa do dia-a-dia” (LOPES, 1979, p. 125). José da Cruz segue a passos largos rumo a própria morte que, anunciada, vemlhe ao encontro como paga da sua teimosia e intransigência por não agir com o bomsenso. O que não acontece no desfecho da história de Jó, que está longe de ser trágico, uma vez que há reparação ao seu sofrimento. Sobre a possibilidade do livro de Jó ser uma tragédia, George Steiner (1993 apud Pereira, 2012, p. 98-99): Nega a tragicidade requerida pelo livro de Jó: [uma vez que] endossando a balança da retribuição, o Senhor devolve todos os seus bens, compensando suas agonias. E onde há compensação inexiste tragédia. Como haveria de ser, no final do relato Jó reconcilia-se com Deus e o mundo, diferindo do desespero que acompanha o Édipo sofocleano, fadado a enxergar o futuro pelas sombras da culpa e da desrazão.
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Para haver tragédia, haveria de ter uma não-compensação pelo seu sofrimento, o que não se verifica. Pelo contrário, lemos no último capítulo que “O Senhor, pois, virou o cativeiro de Jó (...); e o Senhor deu a Jó o dobro do que antes possuía” (JÓ 42:10). Mais a seguir, o narrador relata, em linhas gerais, como o Senhor restabeleceu a riqueza de Jó por intermédio daqueles que dantes o conhecera: Então vieram ter com ele todos os seus irmãos, e todas as suas irmãs, e todos quantos dantes o conheceram, e comeram com ele pão em sua casa; condoeram-se dele, e o consolaram de todo o mal que o Senhor lhe havia enviado; e cada um deles lhe deu uma peça de dinheiro e um pendente de ouro. E assim abençoou o Senhor o último estado de Jó, mais do que o primeiro; pois Jó chegou a ter catorze mil ovelhas, seis mil camelos, mil juntas de bois e mil jumentas. Também teve sete filhos e três filhas (JÓ 42:11-13).
As riquezas de Jó foram devolvidas em dobro, passou a ter seis mil camelos, catorze mil ovelhas, mil juntas de bois, mil jumentas mais os filhos que vieram posterior a toda a provação que ele atravessara e saíra afortunado, incólume e bem-aventurado. O que infelizmente, não se pode dizer de José da Cruz. Este após a morte de Zepa, quando: (...) Foi levada, na noite negra, pelo penedo da beira do barranco, José da Cruz perdeu a orientação da vida, passou uns dias tontos à roda da casa, vazia, da Terranegra, esquecido da existência dos filhos, Mochinho e Lela. Abandonara-os no esteirado da cama entre as roupas. No seu desvairamento, a morte de Zepa representava o fim de tudo. Um e outro arrefeceram sem gemido, e quando o pai se lembrou de os procurar, e puxou as roupas que os envolviam, já não eram deste mundo” (LOPES, 1979, p. 213).
Após a morte de Zepa, José da Cruz perdeu os sentidos, esqueceu do mundo e dos filhos que morreram de inanição, havia dias não comiam. Então José da Cruz “foi sem mulher, sem filhos, sem pilão nem esteira nem nada, na mais completa penúria e na solidão mais negra que o velho meeiro das terras de Jaime Álvaro se arrastou, durante dois dias e meio” sem encontrar efetivo auxílio, ou melhor, comida que lhe saciasse. A partida obrigada pelas intempéries da natureza força José da Cruz a deixar o seu tão precioso torrão de mãos vazias. Além da família, o pilão que figurava a esperança de comida é, também, deixado para trás. Assim, a fé esperançosa que este
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cultivou e que o motivou a fazer tudo o que fez desde o início da narrativa, esvai-se de todo. Após o episódio da triste partida, José da cruz segue cambaleante pelo caminho até encontrar um tronco de árvore para se apoiar. Nesse momento, o narrador opta por dar a narrativa um tom de tragicidade detalhando minuciosamente o seu estado físico. Os pés de José da Cruz assim são descrito: Nas extremidades das pernas esqueléticas, eram belos, belos, como duas batatas sazonais, a sair da terra, prontas a serem colhidas. (...) Suspendeu o gesto como que ia colher as duas batatas sazonadas. Deixou a cabeça cair para trás até tocar o tronco. Começou a bater os queixos. O estômago tinha uma brasa dentro, a queimar, a queimar. Mas a pele toda estava fria. (...) O próprio sangue arrefecera. Agora nada lhe importava. Não sabia para que lado estava a vida, não sabia por que se tinha sentado ali à sombra daquela árvore, que caminho seguir. (...) Se estendesse o corpo, pensou, não acordaria nunca mais (LOPES, 1979, p. 213-214).
Essa descrição detalhada do estado em que se encontra José da Cruz no fim do romance cria um ar de desalento, pobreza e desolação ainda maior. Talvez, este fato se explique por ser a obra um romance neo-realista, e como característica dessa tendência literária o romance se quer como tal para, provavelmente, causar no leitor um estranhamento visceral pautado na denúncia social de uma literatura engajada a serviço da dignidade humana, bem como dos direitos universais do indivíduo de viver com o mínimo de condições que lhe assegure a possibilidade de uma existência digna. Se para haver tragédia é necessário a presença de infortúnios e a ausência da justiça e suas variantes, talvez possamos cogitar a possibilidade de Os Flagelados do Vento Leste ser a materialização inegável da verdadeira tragédia não apenas literária, mas sobretudo, humana. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Bíblia de Estudo Aplicação Pessoal. Tradução de João Ferreira de Almeida. Casa Publicadora das Assembleias de Deus. 2003.
http://clubedapoesia.com.br/V1/espanhois/espbloco01.htm: Acessado em 16/04/13.
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LOPES, Manoel. Os Flagelados do Vento Leste. Ática. São Paulo. 1979.
PEREIRA, João Batista. Jó, I. In: Philosofare: Ensaios sobre literatura, arte e filosofia. SEVERO, Sulenita et al. João Pessoa: Ideia. 2012.
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O DISCURSO MEMORIALISTA E A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO NO CONTO “UM CINTURÃO”, DE GRACILIANO RAMOS Helton Marques (UNESP/Assis)1
No ensaio intitulado “Brincando na História”, do livro História das crianças no Brasil, organizado por Mary Del Priore, a pesquisadora Raquel Zumbano Altman apresenta algumas reflexões relevantes para um melhor entendimento do papel do brincar e dos brinquedos durante a vida infantil, recuperando, para tanto, registros de brincadeiras típicas desde a época da colonização do Brasil, quando os pequenos indiozinhos nadavam, pescavam e caçavam de maneira lúdica e integrada à natureza, até chegar aos primeiros anos do século XXI, quando os diversos recursos tecnológicos, como a televisão, o videogame e o computador, por exemplo, passam a fazer parte do mundo infantil como novas formas de brincar e interagir com o outro. Algumas atividades lúdicas e muitos bons momentos da infância certamente fazem parte das lembranças de todo ser humano, como conclui Altman, mas devemos levar em consideração que todo sujeito é constituído também de experiências relativamente negativas e, em muitos casos, traumáticas, que podem, portanto, gerar consequências e se transformar em características (sintomas) individuais. Um exemplo desse fato ocorre no conto “Um cinturão”, de Graciliano Ramos, que constitui um capítulo do romance Infância, publicado em 1945, ou seja, há quase 70 anos. Este conto também pode ser encontrado no livro Os Cem melhores contos brasileiros do século, organizado por Ítalo Moriconi e publicado em 2001. Graciliano Ramos era um escritor muito cuidadoso quanto à forma literária e reescrevia seus livros sem cessar, só os publicando quando estivessem enxutos, livres de quaisquer excessos. Foi justamente com esse cuidado que o escritor alagoano escreveu o conto “Um cinturão”, com o propósito de representar o encontro do menino protagonista com a violência no contexto da família patriarcal brasileira. A partir da 1
Doutorando em Letras (Área de conhecimento: Literatura e Vida Social). O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Brasil.
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reelaboração literária de sua própria experiência, o autor procura refletir sobre a difícil existência da criança e sua relação com o Poder e a rigidez da Lei, seja esta paterna ou social, retratando as formas de sociabilidade e os modos de subjetivação próprios de um contexto marcado pela violência e opressão. É importante considerar, antes de tudo, que o conto analisado apresenta uma história contada por um narrador autodiegético2, o qual relembra fatos ocorridos em sua infância, marcada pelos signos da violência e da opressão. A narrativa do conto mostra como o protagonista, ainda um menino, é castigado violentamente pelo pai, simplesmente porque este não encontra seu cinturão e põe a culpa no filho, o qual não sabe onde o referido objeto está: “Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficoume na lembrança: parece que foi pregada a martelo (...). A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor.” (RAMOS, 1953, pp. 32-33, grifos meus). No entanto, o próprio pai é que havia perdido o cinturão, quando lhe desprendeu a fivela ao deitar-se na rede para dormir. E esse fato, quando se torna conhecido pelo pai, em nada muda sua atitude para com o filho, nem mesmo uma pequena demonstração de arrependimento ou vergonha por ter incriminado um inocente e o punido severamente é descrita pelo narrador: “Não se aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.” (RAMOS, 1953, p. 33). Outro fato importante é que o narrador afirma que a pergunta sobre “onde estava o cinturão” do pai ficou-lhe “pregada” na lembrança, como se os gritos do pai furioso ecoassem pelos tempos e retornassem como memória desagradável para o sujeito adulto que narra. A propósito, esse “pregar” é formalmente representado na narrativa literária por meio da repetição da pergunta “onde estava o cinturão?”, a qual aparece cinco vezes ao longo do enredo, o que revela que o conteúdo tematizado é também formalizado e, portanto, constituinte da estrutura narrativa do conto. Também é importante destacar que as consequências da surra de cinturão sofrida pelo menino protagonista da narrativa constituem o sujeito narrador adulto, determinam alguns de seus comportamentos e definem características intrinsecamente relacionadas 2
Segundo definição de Gérard Genette, o narrador autodiegético é aquele que narra a história e participa da narrativa como protagonista, revelando suas próprias vivências. (GENETTE, 1989, p. 47).
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ao trauma vivenciado na infância. Tais consequências aparecem como relato do sujeito adulto que narra, em meio a suas lembranças do episódio traumático, como evidencia o seguinte excerto: Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha infância e as consequências delas me acompanharam. (...) Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro. (RAMOS, 1953, p. 30, grifos meus).
Como é possível observar, o advérbio temporal “hoje” e os verbos conjugados no tempo presente do modo indicativo referem-se ao tempo da enunciação, isto é, ao momento em que o narrador encontra-se narrando um episódio traumático de sua infância, e este episódio, por sua vez, configura o tempo do enunciado, ou seja, a experiência traumática vivenciada pelo menino protagonista da narrativa. Com isso, o sujeito que narra é e ao mesmo tempo não é o mesmo sujeito que protagoniza a história do conto, uma vez que o narrador adulto e o menino protagonista são o mesmo indivíduo em fases diferentes de sua evolução e aparecem literariamente circunscritos, cada qual, por um tempo, espaço e poder de voz específicos. Um dado interessante apontado pelo historiador francês Philippe Ariès, em seu livro História Social da Criança e da Família, refere-se ao fato de a infância na Idade Média ter sido considerada como o período da primeira idade, do nascimento até os sete anos, ocasião durante a qual o sujeito era chamado de “enfant” (criança), que significa, etimologicamente, não-falante, justamente pelo fato de a criança não conseguir expressar-se muito bem e nem articular suas palavras por não possuir seus dentes firmes e bem formados. Desse modo, é possível concluir que a etimologia da palavra criança em francês (enfant) representa, por si mesma, a condição de não detentora do poder de voz própria da criança, desde a Idade Média, fato que se relaciona explicitamente com o menino protagonista do conto analisado, para quem o pai pergunta, gritando, sobre o cinturão, mas para a criança, por ser “débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa”, era
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“impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria (...)” (RAMOS, 1953, pp. 31-32 , grifos meus). Além dessa passagem referente ao cinturão, há também o episódio em que a mãe do menino maltratado castiga-o violentamente, usando uma corda de nó para surrá-lo e deixando hematomas no corpo da criança: “Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. ”. (RAMOS, 1953, p. 30). Como é possível observar, o menino protagonista da narrativa é alvo da violência dentro do próprio espaço familiar, sendo vítima de agressões físicas e, consequentemente, psicológicas pelos próprios pais. A propósito, em certo momento do romance Infância, do qual faz parte o episódio “Um cinturão”, o narrador adulto elabora um retrato do pai e da mãe, demonstrando que se trata de duas figuras que marcaram sua infância de modo negativo, por apresentarem características agressivas e hostis: “(...) conservavam-se grandes, temerosos, incógnitos. Revejo pedaços deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem lábios, mãos grossas e calosas, finas e leves, transparentes (...). Foi o medo que me orientou nos primeiros anos, pavor.” (RAMOS, 1953, p. 12); “[Meu pai era um] Reprodutor mesquinho, sujeitava-se à moral comum (...). Era um patriarca refletido e oblíquo, escriturava zeloso os seus escorregos sentimentais.” (RAMOS, 1953, p. 152). Além dessas passagens, há o episódio em que o menino maltratado contrai uma conjuntivite que o impede de enxergar durante semanas. Momentaneamente cego, o protagonista então reflete sobre a visibilidade de seu corpo, desajeitado ao vestir-se e tateante ao dar passadas pela casa. É importante destacar que, mesmo em tais condições, ele era verbalmente agredido e humilhado pela mãe, que o chamava de “bezerro encourado” e “cabra cega”: Sem dúvida o meu aspecto era desagradável, inspirava repugnância. E a gente da casa se impacientava. Minha mãe tinha a franqueza de manifestar-me viva antipatia. Dava-me dois apelidos: bezerroencourado e cabra-cega (...). Essa injúria revelou muito cedo a minha condição na família: comparado ao bicho infeliz, considerei-me um pupilo enfadonho, aceito a custo. Zanguei-me, permanecendo extraordinariamente calmo, depois serenei. (RAMOS, 1953, pp. 131132).
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Como o próprio narrador adulto revela, a comparação com o “bicho infeliz” o deixou zangado quando criança, mas, como era um sujeito oprimido e não possuía poder de voz, permaneceu “extraordinariamente calmo”. No entanto, esta calma representa, na verdade, uma espécie de zanga reprimida3 pelo menino humilhado, o qual retorna na vida adulta com o poder da palavra escrita e o desejo de gritar e se vingar, narrando o que sofreu, de todos aqueles que o oprimiram e o violentaram quando criança. Surgem, assim, os episódios de violência física e psicológica que constituem a memória de um narrador que se “cura” pela palavra, por meio de uma narrativa memorialista sobre todos os males que sofreu na infância. De modo geral, como afirma Octavio de Faria, em “Graciliano Ramos e o sentido do Humano”, a criança protagonista da narrativa analisada não é alvo de nenhuma afetividade, mas vivencia, “pelo contrário, o mais ferrenho regime de patriarcado, rigoroso e cego, fechado a qualquer compreensão e simpatia mais humana e generosa.” (FARIA, 1970, p. 09). A propósito, para reelaborar o episódio presente no conto “Um cinturão”, o narrador utiliza-se de um léxico que destaca a ferocidade da cena vivenciada quando era criança. Os sintagmas apresentados vão progressivamente substituindo a concepção inicial de surra, apontada pelo narrador, para se transformar em algo desumano, como demonstram, por exemplo, as expressões “os golpes”, “violentamente”, “modos brutais, coléricos”, “os sons duros”, “a zanga terrível”, “a horrível sensação”, “a fúria louca”, “as pancadas”, “o martírio”, “fustigou-me”, “um homem furioso”, “açoitando-me”, “desespero”, “o suplício”, “a mortificação”, “o olho duro”, “gestos ameaçadores”, “cruel e forte”. Desse modo, é possível afirmar que no conto “Um cinturão” a narrativa concentra-se nos momentos difíceis vivenciados pelo pequeno protagonista, um menino fraco e tímido, o qual, como ilustram as várias passagens transcritas, se vê
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De acordo com a psicanálise freudiana, a repressão é um mecanismo de defesa por meio do qual se afastam da consciência os impulsos indesejáveis ou socialmente inaceitáveis, que são transformados em conteúdos inconscientes. No entanto, para Freud, esse conteúdo não deixará de fazer parte da psique e, dessa forma, poderá retornar por meio de algum sintoma, seja através de sonhos, taras, manifestações de violência, fobias, histeria, dentre outros possíveis sinais. (FREUD, 2010, p. 69).
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constantemente humilhado e batido pelos mais velhos, inclusive e de modo especial pelos próprios pais. Outro ponto que merece destaque é que a violência sofrida e reprimida pela criança protagonista da história retorna como narrativa memorialista com tom de denúncia, uma vez que, com o poder da palavra, o narrador adulto “grita” o que não conseguiu “gritar” quando criança, vingando-se por meio do contar o que sofreu. Tratase, como define o próprio narrador, da “explosão do medo reprimido”. (RAMOS, 1953, p. 32, grifo meu). Assim, a narrativa escrita do conto “Um cinturão” representaria o retorno de uma experiência infantil negativa para o sujeito que narra, uma circularidade, representada inclusive formalmente, uma vez que o conto se inicia com o narrador destacando que suas “primeiras relações com a justiça foram dolorosas” e se encerra com o parágrafo “Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça”, que retoma a afirmação do início do conto e conclui a narrativa através de uma figura circular, a qual se relaciona com a circularidade representada pelo retorno de uma lembrança de infância desagradável para o sujeito adulto que narra. Assim, conteúdo temático e forma literária novamente completam-se ao longo da narrativa. Essa estrutura formal esférica e fechada do conto, a propósito, aproxima-se da conhecida imagem criada por Julio Cortázar, no ensaio “Do conto breve e seus arredores”, do livro Valise de cronópio. Trata-se da imagem de uma “bolha de sabão”, pois, segundo Cortázar, o conto é esférico, fechado e “vive” por si só, com máxima tensão e significado, como se fosse solto de um pito de gesso pelo autor e tivesse autonomia para a manutenção de sua própria “vida”. Nádia Battella Gotlib, em seu livro Teoria do conto, destaca inclusive que Cortázar concorda com o 10º mandamento do “Decálogo do perfeito contista”, de Horacio Quiroga, segundo o qual, “para se escrever um conto, é necessário o autor pressupor um pequeno ambiente, fechado, esférico, do qual ele mesmo poderia ter sido uma das personagens.”. (GOTLIB, 2006, p. 70). No conto “Um cinturão”, é possível perceber a configuração desse ambiente pequeno e fechado a que se refere Quiroga, pois a cena principal da narrativa, ou seja, o episódio da surra, se passa na sala onde se encontram o menino protagonista e seu pai.
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Com isso, esse ambiente fechado e limitado garante a circunscrição das personagens em um único espaço, contribuindo com a unidade de ação, a manutenção da tensão e com a unidade de efeito. Outro fato importante é que o retorno e a reelaboração através da linguagem de um episódio negativo ocorrido na infância pode representar o início de processamento do trauma vivenciado pelo sujeito, em que nós, na escuta/leitura, realizaríamos o papel de quem recebe os despojos desse processo de cura pela fala/escrita. E essa reelaboração do passado, portanto da memória, por meio de uma narrativa pode ser entendida com base nos estudos desenvolvidos por Jacques Le Goff, em História e Memória, em cujo capítulo intitulado “Memória” afirma que Pierre Janet, um dos principais estudiosos da Psicologia Mental dos séculos XIX e XX, considera que “o ato mnemônico fundamental é o ‘comportamento narrativo’ que se caracteriza antes de mais nada pela sua função social, pois que é comunicação a outrem de informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui o seu motivo.” (JANET apud LE GOFF, 1994, pp. 424-425, grifo do autor). Desse modo, a memória pode manifestar-se por meio da linguagem oral ou escrita, a qual possui, em primeira instância, “função social”, visto que configura um ato de comunicação. De certa forma, portanto, a memória do narrador conduz toda a narrativa do conto, selecionando cenas e reelaborando o episódio traumático, com seus sujeitos e coisas, através da linguagem verbal escrita, o que confirma a ideia de que a linguagem é parte constituinte do sujeito e proporciona a reelaboração e narratividade de episódios positivos ou negativos presentes na memória de todos os indivíduos. Além disso, segundo Le Goff, “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje [meados do século XX], na febre e na angústia.” (LE GOFF, idem, p. 476, grifo do autor). Assim, é viável afirmar que o narrador do conto “Um cinturão” busca, através de sua narrativa memorialista, o reconhecimento de si mesmo, principalmente quando observamos o conto inserido no romance do qual faz parte, intitulado Infância, cuja história é construída cronologicamente, como se o narrador adulto almejasse reelaborar sua infância e compreender sua formação de maneira sequencial e organizada, uma vez
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que “o processo da memória no homem faz intervir não só a ordenação de vestígios, mas também a releitura desses vestígios.” (CHANGEUX apud LE GOFF, 1994, p. 424). De modo geral, portanto, é possível afirmar que todo sujeito é, antes de tudo, constituído em meio aos vários discursos e práticas discursivas, como corroboram as palavras do filósofo Yamandú Acosta: El sujeto de la enunciación es un sujeto de discurso. Sin olvidar que el discurso es una práctica que hace parte de un universo que puede identificase como universo discursivo, no debe perderse de vista que este último hace parte de un universo histórico-social, por lo que está atravesado por las relaciones, tensiones y conflictos de las prácticas constitutivas de esa totalidad, las que expresa y en las que interviene desde su propio nivel. Claramente no es un sujeto trascendente, esencial o metafísico, sino que es empírico e histórico, y su condición de sujeto de la enunciación hace que, sin dejar de ser individual, sea al mismo tiempo colectivo, en razón de las mediaciones y relaciones que hacen a la complejidad de la dialéctica histórica entre lo social y lo individual. (ACOSTA, 2010, p. 09).
Segundo as conclusões de Acosta, todo sujeito é inquestionavelmente histórico e, com isso, toda enunciação sempre carrega marcas do contexto de produção, sendo, desse modo, enunciação individual e coletiva ao mesmo tempo, como é o caso do narrador adulto do conto “Um cinturão”, o qual, através de uma narrativa memorialista, apresenta uma infância contextualizada na época em que a sociedade brasileira era organizada segundo os princípios da família patriarcal, cujo núcleo de referência era o patriarca, detentor do poder de voz e comando. Paula Sibilia, no capítulo “Eu narrador e a vida como relato”, do livro O show do eu: a intimidade como espetáculo, também desenvolve algumas reflexões relevantes sobre a importância das narrativas para o sujeito, e essas reflexões certamente podem contribuir para um melhor entendimento do conto analisado. Segundo Sibilia, a linguagem verbal constitui subjetividades, pois viabiliza a construção de significações pessoais, a reelaboração de experiências passadas e a organização de eventos cronologicamente, pondo certa “ordem” no caos, além de possibilitar também a autorreferenciação, na medida em que o sujeito narrador pode, por meio de uma narrativa, fazer referência a si mesmo e se situar em um tempo e espaço diferentes do momento em que se encontra quando narra.
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De acordo com a autora, “é justamente nesses discursos auto-referentes, aliás, que a experiência da própria vida ganha forma e conteúdo, adquire consistência e sentido ao cimentar em torno de um eu.” (SIBILIA, 2008, p.32). Com isso, é possível afirmar que o sujeito narrador do conto “Um cinturão”, ao tomar-se como referência de sua própria narrativa, busca uma melhor compreensão de si mesmo com base em um episódio de sua infância que certamente o marcou profunda e negativamente, já que foi alvo de uma manifestação de violência pelos próprios pais. Com relação a essa violência sofrida pela criança protagonista do conto, é importante lembrar novamente que a narrativa é ambientada no contexto da família patriarcal brasileira, quando o patriarca era uma figura respeitada, que detinha o poder de voz e de comando. Sobre a criança inserida nesse contexto sócio-histórico, Gilberto Freyre, no capítulo “O pai e o filho”, de sua obra-prima Sobrados e Mucambos, tece algumas considerações que merecem destaque. De acordo com o historiador, Towner lembra que nas sociedades primitivas o menino e o homem são quase iguais. Dentro do sistema patriarcal, não: há uma distância social imensa entre os dois. (...) No Brasil patriarcal, o menino – enquanto considerado menino – foi sempre criatura conservada a grande distância do homem. A grande distância do elemento humano, pode-se acrescentar. (FREYRE, 2006, pp. 177-178).
Essa distância social entre a criança e o adulto podia ser observada não somente dentro dos limites da casa-grande, entre o pai e o filho, o avô e o neto, onde tal distância concretizava-se nos momentos em que a criança era castigada com surras e pancadas pelos membros da própria família, mas também nos demais locais por onde ela transitava. Por exemplo, nos colégios de padres ou de mestres, a criança era submetida a um regime de tortura física e psicológica, sendo alvo de longos jejuns e das terríveis palmatórias e varas de marmelo. Toda essa violência praticada contra a criança na sociedade patriarcal brasileira, explica Freyre, pode ser entendida com base nos próprios princípios do patriarcalismo, repleto de antagonismos, como, por exemplo, a casa-grande e a senzala, o senhor e o escravo, o pai e o filho, em que dominadores e dominados, poderosos e oprimidos, (con)vivem no mesmo espaço, o que acentua as diferenças sociais entre os extremos e
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contribui para as práticas de violência pelos detentores do poder sobre os mais fracos, e dentre estes, a criança. Outro pesquisador que organizou uma série de ensaios sobre o tema da infância no Brasil é Marcos Cezar de Freitas, no livro História Social da Infância no Brasil. Neste livro, estudiosos de diversas áreas apresentam suas reflexões sobre o assunto, seja pela via historiográfica, sociológica, psicológica e até mesmo política e literária. Segundo Freitas, existe uma forma de violência simbólica contra a infância que acompanha a história social do Brasil, sobretudo na sociedade brasileira patriarcal, época em que a violência era constante. Para o autor, “a criança pode ter sido uma metáfora viva da violência numa sociedade que proclamou em inúmeras ocasiões sua destinação à civilização, mas que, via de regra, não cessou de embrutecer-se”. (FREITAS, 2011, pp. 252-253). Além disso, a infância é sempre explicada e definida por um olhar de fora, que não é o do próprio sujeito que vivencia a infância, ou seja, a criança. Com isso, segundo Freitas, em seu texto inicial intitulado “Para uma sociologia histórica da infância no Brasil”, a criança é sempre “apresentada com as práticas narrativas e discursivas do psicólogo, do médico, do jurista, do pedagogo, do assistente social, do sociólogo etc.” (FREITAS, 2011, p. 13). Com base nessa premissa, Freitas então ampliou o leque das possibilidades de estudar a infância, pois também introduziu em sua coletânea ensaios sobre a criança no universo literário brasileiro, revelando que a Literatura, além de ser o lugar da estética verbal, das imagens e jogos construídos pelas palavras, também é um espaço de conhecimento e fonte de informações relevantes para a (re)construção da História do Brasil. Assim, aparecem dentre os ensaios títulos como Infância de papel e tinta, de Marisa Lajolo, e A infância no Brasil pelos olhos de Monteiro Lobato, de Ivan Russef, que são exemplos de estudos realizados com base na arte literária, demonstrando que a ficção pode não estar tão longe da realidade.
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Referências ACOSTA, Yamandú. La constituición del sujeto em la filosofia lationoamericana. Revista Dialéctica, Nueva Época, número 42, 2010. ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Tradução Dora Flaksman; Pref. Maisons-Laffitte. Rio de Janeiro: Livros técnicos e científicos, 1981. CORTÁZAR, Julio. Do conto breve e seus arredores. In: ________. Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 2006. FARIA, Octávio de. “Graciliano e o sentido do humano”. Prefácio. In: RAMOS, Graciliano. Infância. 8. ed.. São Paulo: Martins, 1970. FREITAS, Marcos Cezar de (org.). História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011. FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. In:__________. Obras completas (vol. 12). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. São Paulo: Global, 2006. GENETTE, Gérard. Figuras III. Tradução de Carlos Manzano. Barcelona: Lumen, 1989. GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 11. ed. São Paulo: Ática, 2006. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução de Bernardo Leitão et al. 3. ed. Campinas: UNICAMP, 1994.
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PRIORE, Mary Del (org.). História das crianças no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2010. RAMOS, Graciliano. Infância. 3. ed. Rio de Janeiro: Martins (Record), 1953. RAMOS, Graciliano. Um Cinturão. In: Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século. Org. MORICONI, Ítalo. Rio de Janeiro: OBJETIVA, 2000, pp.144-146. SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
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RECEPÇÃO DO TEXTO LITERÁRIO POR ALUNA DO ENSINO MÉDIO: A IMPORTÂNCIA DE SE VALORIZAR AS PRIMEIRAS IMPRESSÕES DE LEITURA Hiudéa Tempesta Rodrigues Boberg (UENP) Preliminares É preciso inicialmente esclarecer a inclusão desse trabalho no Simpósio “Literatura Infantil e ensino de literatura”, embora se trate de uma exposição sobre o envolvimento de aluna do ensino médio com a leitura literária. O conjunto de textos lidos por ela, durante a investigação aqui descrita, constituiu-se de contos infantis adaptados em diferentes gêneros textuais e em diferentes suportes. Em virtude dessas características e da importância de tal repertório no processo da pesquisa se justifica demonstrar o tratamento do tema nesse Simpósio. A matéria em pauta é fruto dos estudos empreendidos pelo Grupo de Pesquisa Literatura e Ensino, do Centro de Letras, Comunicação e Artes da Universidade Estadual do Norte do Paraná, campus de Jacarezinho. Embora seus integrantes tenham se dedicado a investigar, entre 2003 e 2011, como a literatura poderia ser apreciada na educação básica, priorizando o conhecimento de metodologias e a proposição de sequências didáticas, desde 2012, movidos por notícias nada animadoras vindas dos professores1, passaram a examinar com cuidado o fato de não haver leitura efetiva de literatura, em particular no ensino médio, ocorrência comum em todo território nacional. No Paraná, vários motivos são apontados, de ordem estrutural e até política, para inviabilizar a convivência com a literatura. Dentre as reclamações alinhavadas, sobressaem críticas ao sistema educacional, como a redução da carga horária da disciplina de língua portuguesa e a manutenção de salas superlotadas.
Na condição de docente da disciplina de Prática de Ensino e Estágio Supervisionado de Literatura, no CLCA-UENP/CJ, foi possível conviver com dúvidas e apreensões dos docentes da rede pública, por via dos depoimentos dos graduandos que estagiavam nas escolas. Desses debates e reflexões surgiam propostas de auxílio aos professores, divulgadas em eventos ou em encontros de extensão.
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O suporte teórico e a mudança de enfoque O problema de não haver espaço para a leitura literária nessa etapa do ensino encontrou eco numa série de publicações a que o grupo teve acesso, também a partir de 2012, abrangendo artigos de periódicos ou livros recém-lançados de estudiosos franceses, como Vincent Jouve, Gérard Langlade e Annie Rouxel, além de produções de pesquisadoras brasileiras, também responsáveis pelas traduções. No convívio com essas ideias, surgem expressões como “leitor real” e “sujeito leitor” ligadas à perspectiva da leitura subjetiva e à tentativa de se ter em sala uma “comunidade interpretativa”. Ao justificar o uso da “leitura cursiva”, adotada pelos programas dos liceus na França, a partir de 2001, Annie Rouxel argumenta sobre a necessidade de se assumir esta prática a par das técnicas tradicionais, comumente utilizadas no secundário: Doravante, ao lado do exercício codificado de leitura analítica, surge outra prática de leitura, mais flexível, a leitura cursiva. Descrita como “a forma livre, direta e corrente” da leitura, ela se define por seu “tempo” rápido e por sua função: “apreender o sentido a partir do todo”. Leitura autônoma e pessoal, ela autoriza o fenômeno da identificação e convida a uma apropriação singular das obras. Favorecendo outra relação com o texto, significa um desejo de levar em conta os leitores reais. (ROUXEL, 2012, p. 276)
Não obstante divulgado no Brasil em 2012, originariamente o artigo foi publicado em Paris, em 2007, portanto, com os estudos em curso, segundo comenta a autora: Na verdade, conforme as classes e os docentes, a leitura cursiva revela práticas muito heterogêneas que vão desde a quase autonomia do aluno – até mesmo com o abandono do jovem leitor a ele mesmo –, à orientação mais ou menos precisa da leitura por meio de instruções. Acompanhamento muito variado, portanto, em sua forma e suas exigências. No entanto, essa breve experiência de seis anos trouxe à luz o interesse de abordagens mais livres da leitura. Nesse sentido, os diários de leitura mantidos pelos alunos permitem observar a existência de uma relação pessoal com a obra lida e de traços do processo de elaboração identitária. O jovem leitor exprime suas reações diante do texto e se interroga sobre aquilo que sente. (ROUXEL, 2012, p. 276, grifo nosso)
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O experimento levado a efeito pela pesquisadora francesa tem hoje resultados substanciosos, com adequações efetuadas no decorrer do processo, inclusive aprimorando conceitos e ajustando as práticas a eles vinculados. Chama a atenção o fato de ser adotado o “diário de leitura” (ou “de bordo”) como recurso que enfim pudesse revelar a subjetividade numa experiência de leitura “verdadeira”, efetuada por um “leitor real”, sobretudo quando a sua formação está em andamento: É possível modificar a relação com o texto construído por meio da leitura escolar desenvolvendo uma “didática da implicação” do sujeito leitor na obra. Para isso, convém incentivar a expressão do julgamento estético, convidando o aluno a se exprimir sobre seu prazer ou desprazer em relação à leitura, evitando censurar os eventuais traços, em seu discurso, de um investimento por demais pessoal, imaginário e fantasmático. Não se trata, portanto, de renunciar ao estudo da obra em sua dimensão formal e objetivável, mas de acolher os afetos dos alunos e de incentivá-los na descoberta de dilemas pessoais na leitura. [...] Esse advento do leitor como sujeito pode sobrevir ainda mais se a classe for pensada como lugar de emergência e de confrontação de leituras subjetivas. (ROUXEL, 2012, p. 281)
A ideias recém divulgadas no Brasil, atualmente são objeto de análise do Grupo de Pesquisa Literatura e Ensino, que ora busca assimilá-las, verificando a pertinência e o adequado ajuste das ações sugeridas ao contexto das salas de aula. Logo, a adoção do Diário de Leitura constituiu uma primeira experiência, cujos resultados estão sendo avaliados, e inclusive serão discutidos no âmbito dessa realidade, especialmente com docentes. Tais concepções, colocadas em diálogo com outras referências adotadas, proporcionaram novas reflexões e estímulos. Dentre as referências, além daquelas tributárias da estética da recepção, destacam-se os fundamentos pedagógicos da literatura, propostos pelo educador alemão Hans Kügler, de onde deriva a expressão “primeiras impressões de leitura”2. Compreende-se aqui a concepção de “leitura primária”, proposta por Kügler, como a recepção do texto pelo leitor no momento em
As concepções de Kügler foram divulgadas por membros do Grupo de Pesquisa Leitura e Literatura na Escola, da UNESP/campus de Assis.
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que ela ocorre, quando efetivamente se dá a interação entre o leitor e o texto e acontece uma “silenciosa compreensão afetiva do texto pelo leitor” (FANTINATI, s.d., p. 1). A mudança do foco das investigações do Grupo de Pesquisa ocorreu, portanto, em razão de se pretender auxiliar o docente da educação básica a abrir um espaço na rotina escolar, seja durante as aulas ou em atividades extraclasse, para a leitura acontecer de modo efetivo, assegurando ao leitor real seu lugar de manifestação, tanto voluntariamente quanto interagindo numa comunidade interpretativa. Segundo os estudiosos citados, é preciso primeiro garantir que haverá leitores, e então se projetar a perspectiva de que haverá leitores que estudarão literatura, como pedem os currículos oficiais do ensino médio. Dos propósitos da pesquisa aos ajustes de percurso Em princípio concebida para coletar informes sobre o acolhimento de textos literários em turmas do ensino médio, a investigação acabou ganhando novos contornos, ao ser aplicada com a participação de apenas uma estudante, dadas as dificuldades de acesso às salas de aula e aos rumos tomados em função da possibilidade de concorrer a bolsas de Iniciação Científica da Fundação Araucária. Considerando essa probabilidade, foram criados dois projetos complementares, denominados respectivamente “Recepção do Texto Literário no Ensino Médio: Análise de Impressões de Leitura”, depois aplicado por graduandas de Letras, bolsistas PIBIC, e “Impressões de leitura literária em ambiente virtual: dois contos, duas memórias para contar”, realizado por uma aluna que, por sua vez, foi bolsista PIBIC Jr. A equipe envolvida definiu o objetivo de focar apenas a recepção inicial de cada texto, pretendendo com isso colher as primeiras impressões da adolescente e analisá-las a partir das suas anotações num Diário. Propunha-se enfatizar a importância desse momento de envolvimento prazeroso, captado no ato da leitura, levando em seguida ao docente da classe a alternativa de lançar mão de uma nova ferramenta que promovesse a leitura efetiva e o seu melhor aproveitamento. Os encontros, realizados no colégio, eram agendados em período de contraturno, com o objetivo de se estabelecer um elo entre os dois projetos. Nessas ocasiões, a adolescente recebia orientações para a realização das leituras em casa e imediatamente
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fazia os seus apontamentos. Nas reuniões com as graduandas e com a orientadora, entregava o Diário para a coleta dos dados e se envolvia com outros encaminhamentos e em entrevistas. Na primeira etapa, as tarefas consistiram em: registrar as memórias de alguns contos infantis pré-selecionados, ouvidos na infância, realizando em seguida a leitura deles em livro ilustrado; depois, leitura dos originais, a par da elaboração de breve estudo sobre os Irmãos Grimm. Na segunda etapa foram escolhidos Cinderela e Chapeuzinho Vermelho, os referenciais que deveriam ser objeto de apreciações em definitivo, cabendo à estudante conhecer adaptações juvenis e em HQs, em sua maioria lidos em ambiente virtual. Quanto ao trabalho realizado por graduandas de Letras, com o apoio de uma bolsa PIBIC, também transcorreu em duas etapas, cada uma com um semestre de atividades. Atuaram como observadoras e organizadoras dos informes coletados, acompanhando o programa executado pela adolescente, além de colaborarem nas análises das anotações e do conteúdo das entrevistas. Suas participações serão tratadas em outro artigo, oportunamente. As leituras empreendidas e o estranhamento inicial Não se pode negar a importância da escolha do Diário de Leitura como instrumento de registro das primeiras ideias e consequentemente de coleta das informações. Trata-se de uma circunstância peculiar: uma garota se predispõe a ler, mas com uma timidez própria da idade, reluta em expressar-se oralmente na presença de adultos, sabendo de sua responsabilidade como participante de um projeto de iniciação científica. No capítulo intitulado “Aspectos metodológicos do ensino da literatura” (2013), Annie Rouxel reconhece as dificuldades do professor, no sentido de instituir o aluno sujeito leitor, ao afirmar: Isso significa, em primeiro lugar, tanto para o professor quanto para o aluno, renunciar à imposição de um sentido convencionado, imutável, a ser transmitido. A tarefa, para ambos, é mais complexa, mais difícil e mais estimulante. Trata-se de, ao mesmo tempo, partir da recepção do aluno, de convidá-lo à aventura interpretativa com seus riscos,
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reforçando suas competências pela aquisição de saberes e de técnicas. (ROUXEL, 2013, p. 20)
A pesquisadora francesa identifica os saberes adquiridos no âmbito da leitura como sendo de três ordens: aqueles sobre o texto, sobre si mesmo e sobre a própria atividade lexical. Ao tratar dos saberes sobre si mesmo, a estudiosa faz a distinção entre os comportamentos dos alunos do fundamental, que são capazes de revelar abertamente suas emoções e pensamentos, e os do secundário: os adolescentes resistem a revelar aquilo que consideram sua intimidade. Pudor ou medo do contrassenso, do erro de interpretação que os desacredita diante da classe e de seu professor? Eles se refugiam num silêncio obstinado, às vezes no psitacismo ou em observações sem risco para eles. (ROUXEL, 2013, p. 21-22)
Propondo contornar o impasse, Rouxel sugere o uso dos diários como alternativa capaz de inspirar confiança nos alunos, e assim “fazer emergir sua subjetividade, para que aprendam a escutar a si próprios” (2013, p. 22). Portanto, o Diário foi o instrumento apropriado para colher as impressões de leitura da estudante, o espaço de manifestação de sensações, mas também de algum desconforto sobre o que lhe foi solicitado e de opiniões sobre as tarefas agendadas. Sem dúvida, ele lhe permitiu organizar melhor as ideias e então expô-las com cuidado, embora de forma enxuta, como foi o seu caso. Os primeiros registros das lembranças das histórias ouvidas na infância e lidas em livro ilustrado – Chapeuzinho vermelho, Cinderela, A bela adormecida – são apenas narrativas, pois ela se limitou a reproduzi-los, em especial por não se recordar perfeitamente das histórias. Caprichando na escrita sem desvios da linguagem formal, usando concordâncias e recursos coesivos adequados, tudo foi feito a lápis, naturalmente sujeito a algumas correções reveladas por pequenos borrões. Dada a dificuldade inicial de se desinibir, a forma de se expressar pela narrativa não foi rejeitada, mas foi estimulada a referir pensamentos e emoções percebidos no ato da leitura e identificados durante as entrevistas. Aos poucos, ganhando confiança nas suas interlocutoras, passou a exprimir-se de modo espontâneo, sem todo o cuidado com a linguagem formal.
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A leitura dos originais e uma apreciação breve sobre os Irmãos Grimm contribuíram muito para o novo tom adotado na escrita. Conforme revelou numa entrevista, a princípio ficou bastante chocada com aqueles enredos, mas em seguida, ao fazer a avaliação sobre seu percurso, escreveu: Gostei muito das originais, são um pouco rústico em relação aos que conhecia, com mais mortes que lembrava e o quanto a mulher era dependente. Recomendaria para minhas amigas passarem pelo mesmo: ler os contos de fada “alegres” e os originais depois, para compará-los.
Nesse tópico, foi interessante encontrar juízos de valor como: Em relação as leituras posso dizer que subestimei os contos de fada achando que histórias boas são aquelas de 300 páginas. Eu achava que pela minha idade não me interessaria mais em contos de fadas. Achei que seria tudo igual, que todos viveram felizes para sempre, quase sem punições.
Em entrevista à bolsista de Letras, confidenciou não ter muita vontade de ler enquanto faz o seu curso, pois a escola não a estimula. É uma circunstância bem diferente daquela escrita a respeito das leituras feitas na infância: Tive o hábito de ouvir histórias quando era criança e isso me influenciou a ler cada palavra dos meus livrinhos e não só ler pelas imagens. Por isso acho importante as crianças também terem esse hábito.
Já na segunda etapa, ao passar a ler as histórias em suportes virtuais (sites e ebooks), necessitando acessar endereços eletrônicos, a par de outras versões em livro juvenil, suas anotações começam a ganhar substância, misturando emoções, juízos de valor e especialmente estabelecendo contrapontos com aquelas lidas na primeira etapa. Ao ler Mônica em Chapeuzinho Vermelho3, de Maurício de Sousa, afirmou ter gostado dessa adaptação porque No início da pesquisa, constavam no site de Maurício de Sousa os gibis selecionados da Turma da Mônica. No entanto, quando a bolsista precisou acessar o endereço, os exemplares de Mônica em Chapeuzinho Vermelho e de Mônica Adormecida não estavam mais disponibilizados, em virtude do site passar por reformulação. Em outro endereço, foi encontrada apenas a primeira HQ.
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foge da versão que conheço. Tive surpresa com o papel do lobo, que além de apanhar, suplica por ajuda para sair vivo da história e ainda diz virar vegetariano. O final da história foge do conto, esse foi o único estranhamento que tive, pois a cesta nunca foi entregue e a comida dentro dela foi devorada por outra personagem. [...] Minha versão favorita, de todas que li até hoje, essa da turma da mônica (sic) me agradou mais.
Em entrevista, a jovem lamentou a segunda história selecionada não estar também disponível no site do cartunista. Nesse meio tempo percebe como os contos infantis podem ser revisitados e recontados ao sabor da imaginação criativa dos autores. Em HQs, o autor tem liberdade de reinventar o tema, introduzir personagens com perfis contemporâneos, inovar a linguagem dos diálogos, além da vivacidade das imagens muito cativantes, no caso da Turma da Mônica. Em seguida, lhe foi apresentada a recriação de Cinderela, feita por Pedro Bandeira, sob o título “Um par de tênis novinho em folha”, disponível no livro Sete faces do conto de fadas (1993). Eis as considerações apontadas: Esse conto tem relação a um clássico, Cinderela. No começo, imaginei que fosse coincidência. Posso dizer que esta é uma versão mais realista para o nosso dia a dia. Uma garota pobre, uma “madrinha” que a ajuda, voltar antes da meia noite e um par de sapatos, que no caso eram tênis. Fiquei surpresa ao saber que o “príncipe” era um garoto pobre que trabalhava como office-boy. Esse final foi o que mais me chamou atenção, pois é a parte que mais foge do conto Cinderela.
Conforme as experiências transcorriam, a jovem se mostrava curiosa por conhecer outras recriações das duas narrativas selecionadas, sempre manifestando nas entrevistas a preferência pela última leitura em relação à anterior. Nesta altura, era incontestável o seu engajamento e o empenho em ler. Do livro, a aluna leu ainda “Chapéu Vermelho II – as bocas do lobo”, de Orlando Miranda, uma adaptação de maior fôlego, redundando nas seguintes observações: Essa versão do conto Chapeuzinho Vermelho, como o (sic) anterior, também é vivido no mundo de hoje. Vi a garota sendo a mesma do
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conto infantil, só que crescida. A cada medo que ela sentia, fazia alguma relação a (sic) quando a mesma era criança. Achei muito legal. O conto que conheço desde criança mostra a inocência e a dependência que a menina tem, logo esse também, assim não deixa de levar consigo a moral da história. [...] O que mais me chamou atenção foi o vício em remédio para dormir da avó. Já em [relação a] outras versões, essa foi a que mais gostei. Entre todas que li, preferi essa.
Como se percebe, enquanto tem acesso às variantes, igualmente elas lhe agradam e de modo espontâneo vai recorrendo à história de vida ou ao seu repertório, nos momentos de confronto entre as sensações agora amealhadas com aquelas que fazem parte da sua cultura literária. Tal comportamento se repete ao ler Chapeuzinho amarelo, do Chico Buarque de Holanda, visivelmente encantada, ao se desdobrar em comentários com maior conteúdo: Uma história inocente e mais engraçada. Não tive surpresa ou estranhamento, porque já conhecia essa versão, mas imagino que na primeira vez que eu li senti muita diferença, já que essa adaptação foca no medo que a Chapeuzinho Amarelo tinha e como deixou de têlo. Era amarela de tanto medo. Conheci esse conto na escola, no fundamental, se não me engano a professora que leu. [...] Pra tudo foi novidade, com a Chapeuzinho com nova personalidade a história não toma o mesmo fim. A cada história se transmite algo diferente: os medos, os perigos, o humor. Essa versão foi a mais leve possível para as crianças, não vi uma cena de violência física, o oposto dos outros contos que conheço, principalmente o original.
As impressões alinhavadas nesta altura vão continuar a produzir alguns resultados, conforme se poderá constatar na última entrevista realizada com a orientanda, tratada à frente. Por enquanto, esses contrapontos parecem sinalizar que a leitora acompanha o próprio envolvimento com as leituras, sabendo poder extrair delas os fundamentos de seus argumentos, opiniões, suas reflexões enfim. Encerrando o seu percurso, a aluna recebeu o e-book O livro das princesas (2013), da autoria de duas norte-americanas e duas brasileiras, contendo contos de fadas em vestes contemporâneas. Do livro, deveria ler “Princesa Pop”, adaptação de Paula Pimenta para Cinderela. Embora mais extensa, tem os bons ingredientes que caem bem no gosto dos leitores adolescentes: uma heroína a enfrentar mil dificuldades, um enredo envolvente, com desencontros surgindo num crescendo, o resgate da história conhecida,
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convidando ao jogo das descobertas dos novos perfis dos personagens. Com essas tintas, se expressa sem receio de demonstrar o envolvimento afetivo com a história narrada: Gostei da história, é divertida e se encaixou perfeitamente na atualidade, com todo aquele drama da mídia. Houve muita surpresa, quase o conto todo, é até difícil citar. Não houve estranhamento, eu acho que demoraria tanto para ler um conto com mais de 100 páginas, mas gostei muito da história, fiquei ansiosa durante a leitura. Não conhecia a versão. Permaneceu praticamente o principal da história, a personagem, o príncipe, a madrasta e suas filhas, o sapato, claro que um pouco diferentes. O que não faz parte são a mãe e a tia, DJs, internet, mídia, quase tudo. Se não me engano, no conto infantil o pai morreu, não tenho certeza. De todos que li, acabei gostando mais dessa, senti mais emoção e ansiedade a cada capítulo do que qualquer outro conto da Cinderela. Mesmo não tendo toda aquela magia do conto de fada ou as estranhezas do conto original. (Grifo nosso)
Eis aqui o “sujeito leitor” registrando sua “compreensão silenciosa e afetiva do texto”, a subjetividade emergindo espontaneamente e revelando o gosto, o encantamento e a emoção ou a sua identificação com o narrado. De permeio, surgem as opiniões – não muito distantes das resenhas do livro, desconhecidas pela leitora – e também a evocação do repertório cultural, tudo convergindo à apropriação singular da obra. De fato, esta é a leitura que lhe faz sentido, porque lhe tocou a emoção legítima, lhe proporcionou a ampliação dos saberes e a projeção de sua humanidade. Na última entrevista, voltou a falar sobre sua experiência de leitora. Afirmou gostar de participar dessa experiência, porque voltou a ler. Ainda sente um pouco de preguiça, mas lê “livros não muito grandes”. Tinha um livro em casa, lido anteriormente, Sonho de uma noite de verão, de Shakespeare, em versão adaptada. Está gostando de lê-lo novamente com olhos atentos. Quando lhe foi perguntado sobre qual recriação lhe agradou, disse gostar bastante de “Princesa Pop”, de Paula Pimenta, “pela curiosidade de saber se tudo iria dar certo, a adaptação do tema”, “um livro que faz muito sentido, porque é uma coisa que pode acontecer de verdade”, e o recomendaria às colegas. Contudo, do qual
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realmente gostou, olhando agora o percurso empreendido, foi de Chapeuzinho amarelo, do Chico Buarque, que já conhecia, mas que depois de lida novamente é a melhor versão, parece que você está lendo uma música. Não é uma historinha assim pequenininha, é diferente! É um poema que você está lendo, uma coisa que você já conhece, só que no final é diferente e tudo fica legal! É muito lindo!
No Relatório Final de sua Bolsa PIBIC Jr, deixou o comentário: No começo, estranhei um pouco o fato de ter que ler contos tradicionais infantis, mas depois, com o desenvolvimento do projeto, fui compreendendo que posso ler adaptações dos mesmos contos para várias possibilidades de leitura: em quadrinhos, na forma de poema, em ambiente virtual, em e-book. Também eles podem deixar de ser infantis e ganharem versões para adolescentes e mesmo para adultos.
Considerações finais A conclusão dos dois projetos produziu um conjunto de informações que começam a ser processadas. Aqui foi tratada apenas uma vertente, envolvendo uma série de procedimentos: a seleção de contos infantis para leitura e o acompanhamento sobre como permanecem no imaginário até serem revisitados em novos formatos e suportes, disponibilizados inclusive em ambiente virtual; a escolha de uma aluna do ensino médio como leitora e a observação sobre seu convívio com as narrativas; o registro de suas impressões, o acompanhamento do percurso empreendido e da construção de sua identidade de sujeito leitor; a opção por conhecer como se dá a recepção pela leitora, por meio de sua expressão escrita e também nas entrevistas; a indicação de um modo de registro, fundamental para colher os dados da investigação. Os procedimentos adotados foram vinculados às concepções teóricas e metodológicas que privilegiam a recepção do texto por um leitor real, cuja leitura subjetiva demonstrou haver realmente envolvimento afetivo e aproveitamento, dadas às circunstâncias propícias criadas. Ainda há muito por conhecer sobre as informações coletadas, mas as transcrições feitas demonstram a importância de se valorizar o sujeito leitor, para ele deveras existir, bastando apenas criar oportunidades paralelas ao cumprimento dos
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currículos, se a prioridade é realmente alcançar as metas neles definidas quanto à efetiva leitura literária no ensino médio. Referências BUARQUE, C. Chapeuzinho amarelo. Il. de Ziraldo. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006. Disponível em: . Acesso em abril de 2013. GRIMM, J. Contos de fadas / Irmãos Grimm. Trad. de Celso M. Paciornik. 5. ed. São Paulo: Iluminuras, 2005. KÜGLER, H. O ensino da literatura hoje: porque e como? In: FANTINATI, Carlos Erivany. Mini antologia de textos teóricos. Assis: UNESP. (fotocópia) PIMENTA. P. Princesa Pop. In: CABOT, M. et al. O livro das princesas. Trad. Ryta Vinagre. Rio de Janeiro: Galera Record, 2013. Disponível em . Acesso em maio de 2014. (Recurso eletrônico – formato PDF) ROUXEL, A. Práticas de leitura: quais rumos para favorecer a expressão do sujeito leitor? Cad. Pesqui. São Paulo, v. 42, n. 145, abr. 2012, p. 272-283. Disponível em . Acesso em jul. 2012. ______ . Aspectos metodológicos do ensino da literatura. In: ROUXEL, A.; LANGLADE, G.; REZENDE, N. de L. de (Orgs.) Leitura subjetiva e ensino de literatura. São Paulo: Alameda, 2013. SOUSA, M. de. Mônica em Chapeuzinho Vermelho. Disponível em . Acesso em março de 2014. TELLES, C. Q. e outros. Sete faces do conto de fadas. 5. ed. São Paulo: Moderna, 1993 (Coleção Veredas).
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PERSPECTIVAS HISTÓRICO-DISCURSIVAS DA IDENTIDADE DO SUJEITO NIPO-BRASILEIRO PELA LITERATURA E PELO CINEMA Hugo Hajime Kimura PG/UEM/Gpleiadi-Cnpq/Capes-DS Introdução Na Análise do discurso francesa, muito se discute a respeito da noção de arquivo, conceito que abre múltiplas possibilidades de interpretação dentro de um campo discursivo. Partindo-se da noção do arquivo, procura-se analisar com esse trabalho as obras artísticas, mais especificamente filme e romance, que abarcam a trajetória que permeia o acontecimento que foi a imigração japonesa. Este trabalho analisará o romance Haru e Natsu, de Sugako Hashida, traduzido para o português e os filmes Gaijin: caminhos da liberdade e Gaijin: ama-me como sou, ambos de Tizuka Yamasaki, buscando discutir o arquivo que compõe a imigração japonesa no Brasil nesses meios, procurando-se fazer uma relação não somente entre as obras, no que elas se regularizam, mas também a relação existentes com discursos encontrados em documentos oficiais e históricos, tendo como base a análise do discurso. Sobre a noção de arquivo Aiub (2012) descreve que quando mobilizamos essa palavra é possível imaginar diversas situações como: o arquivo do computador, da internet, armários com documentos, arquivos disponíveis em museus e bibliotecas além de outros. Aiub (2012), partindo de Mittmann (2008) faz um comparativo do arquivo com a informática. Dentro desse contexto existem arquivos digitais que podemos criar e depois acessar com o mouse, como por exemplo, um documento do Microsoft Word e/ou BrOffice ou qualquer outro programa de textos, imagens. O autor classifica-o como arquivos de uso comum. Mas existem também os arquivos que fazem parte da estrutura de um computador, mas são ininteligíveis para grande parte dos usuários, mesmo apresentando certa organização, com linguagem específica, não sendo fácil identificar a sua funcionalidade. Se existem arquivos que são mais comumente acessados já na sua forma de documento e que produzem certas evidências de sentido, fazendo com que se estabeleça uma espécie de memória coletiva (todos sabem que...) é justamente porque existem
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aqueles outros arquivos, quase nunca acessados ou lidos, que são subjacentes e fundamentais para que estes sejam interpretados como têm sido ao longo dos anos. Trata-se aqui de uma espécie de apagamento de outras leituras possíveis. (AIUB, 2012, p.64) Dito de outro modo, nos diversos discursos, observamos que o arquivo apresenta uma parte que sempre são acessadas, o âmbito do presente, o verdadeiro da época, as memórias coletivas e as tradições cultivadas em um determinado tempo, porém existe a outra parte do arquivo que está compondo o todo, mas são poucos acessados porque sofreram ou estão sofrendo apagamento ou estão sendo esquecidas ao longo dos anos, embora seja fundamental para o processo interpretativo de um determinado tema. E isso também ocorre nos discursos sobre a imigração. No romance Haru e Natsu, há aqueles arquivos que são mais acessados, que também pode se encontrar em outras materialidades, porém há aqueles discursos poucos acessados, que estão sendo esquecidos embora relevantes e significativos. Para Pêcheux (1997, p. 57), o arquivo “é entendido no sentido amplo de ‘campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão’ ”. Dessa forma, reflete-se sobre a noção de arquivo como um conjunto de textos ou documentos que fazem parte a um mesmo tema. Logo, quando pensamos no arquivo, ele apresenta certa organização de leitura, revelando se um documento pertence a um tema ou outro, havendo diferentes arquivos, de acordo com a sua temática. Se voltarmos para o objeto de análise que são os romances e filmes que retratam a imigração japonesa no Brasil, existem os acontecimentos discursivos que foram materializados retratando o tema. Porém, dentro desse grande leque sobre a imigração, conseguimos ir além, se estudarmos a relação com outros textos que o abarcam, por meio, por exemplo, de documentos históricos, biografias, diários, documentários, aumentando cada vez mais esse arquivo. Nota-se que analisar o arquivo por completo seria algo impossível, o que explica o recorte em literatura e romance. Entretanto, em alguns momentos, para se observar a produção de sentidos, vê-se a importância de fazer um paralelo, estabelecendo um diálogo com a historicidade, não ficando preso somente aos filmes e ao romance. Para Foucault, o arquivo é a soma de todos os textos, mas não pensando em alcançar descrevendo essa sua totalidade, pois dessa forma o analista do discurso
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conseguiria chegar à interpretação de todos os sentidos, o que seria impossível. Assim como para Pêcheux (1997) o arquivo também é um grupo de documentos referentes a um tema, porém analisa o aparecimento e o apagamento dos arquivos. Para Foucault (2013, p.158), O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa. Segundo Aiub (2012, p.67), para Foucault (2013), os enunciados estão relacionados com um conjunto de formulações possíveis e que pelas condições de existências fazem com que os enunciados estejam imersos dentro de um campo enunciativo, que fazem aparecer novos enunciados além de também poderem se modificar. O arquivo, como também as condições de produção, são os principais responsáveis para fazerem com que determinadas práticas discursivas sejam esquecidas, e quando o discurso já não nos pertence, ele passa a ocupar parte do arquivo como uma possibilidade de existência, em que se observa uma fragmentação, não conseguindo descrever em sua totalidade, pois o presente é somente um fragmento do arquivo. Entre a tradição e o esquecimento, ele faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente. É o sistema geral da formação e transformação dos enunciados. (FOUCAULT, 2013, p. 159) Tanto Haru e Natsu como os filmes de Tizuka Yamasaki são textos que abordam a questão da imigração japonesa no Brasil. A partir deles, podemos observar a maneira como um acontecimento é discursivisado. Entre esses meios artísticos que iremos analisar observaremos o que existem de regular e no que eles se dispersam. Pela relação de regularidade e dispersão podemos observar os discursos que foram repetidos, esquecidos ou apagados com o tempo. Há a discursivisação do passado no presente que poderá desencadear os discursos futuros. Processo de fixação no país estrangeiro: entre a regularidade e a dispersão Por meio da leitura de Haru e Natsu e dos filmes Gaijin-Caminhos da liberdade e Gaijin-Ama-me como sou existem as regularidades encontradas nesses meios que
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compõem parte do arquivo sobre a imigração japonesa no Brasil: famílias que deixam suas terras de origem para trabalhar como colonos no ciclo do café; e as dificuldades e principais barreiras para a inserção dos imigrantes e seus filhos na sociedade brasileira. Se tratando do processo imigratório no romance, Chuji Takakura, natural da província de Hokkaido, emigra com a família para o Brasil. No filme, Titoe junto com seu irmão, primo e marido se aventuram em uma terra totalmente desconhecida. Nesses meios de produção a imagem projetada parte do ponto de vista do imigrante que se instala no Brasil. Há todo um choque de valores culturais em jogo, porém nesse processo a visão do brasileiro que vê o imigrante fica em um segundo plano. No primeiro plano está a imagem que o imigrante faz dele e de outros sujeitos que não fazem parte da sua formação discursiva. Assim, o arquivo que abarca o filme e o romance possui a regularidade em representar os combates e as dificuldades de adaptação e as barreiras de inserção desse imigrante e seus descendentes dentro do contexto do país de chegada. A primeira regularidade vista no filme e no romance é a imagem que o imigrante tem do Brasil e do brasileiro. Partindo disso, observam-se os valores e o verdadeiro da época afetando o indivíduo. Os textos reproduzem a imagem de um sujeito que tinha a crença em enriquecimento rápido para depois voltar ao país de origem; o desconhecimento do país do outro lado do globo resulta na decepção futura. Naquela época, o Brasil parecia ser um paraíso. Acreditávamos que sairíamos da vida pobre de Hokkaido, em que não havia comida suficiente para uma família grande, comeríamos sem preocupações e levaríamos uma vida feliz... (HASHIDA, 2005, p. 32)
O trecho descrito por Haru aponta o desconhecimento do país onde iriam habitar. Havia uma imagem de esperança, pensamento de melhores condições de vida, quando comparada à vida que levavam. “No Japão, existia uma infinidade de pessoas na miséria, que não tinham como viver senão indo ao Brasil” (HASHIDA, 2005, p.22). Por outro lado, tinha-se o medo, a insegurança e a desconfiança no total desconhecimento da terra, preocupação diante do que poderia acontecer. A fala de Yozo, irmão de Chuji, tio de Haru, ilustra essa situação. “Você está confiando muito na propaganda de recrutamento a imigração. Será que existe uma conversa tão boa?” (HASHIDA, 2005, p.24)
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Mas é somente após o desembarque que aos poucos se tem a “realidade” no Brasil e o sentimento de esperança cada vez mais vai sendo tomado pelas preocupações, aflições e desespero. No primeiro filme de Yamasaki o primeiro obstáculo observado foi no âmbito da culinária, na qual um personagem come o sanduíche de mortadela e passa mal, já que o povo japonês era “acostumado com arroz sem gordura, peixe e verdura”. Isso gerou uma séria de reflexões: Personagem 1: Será que aqui realmente ganha dinheiro? Como faremos se não conseguirmos voltar ao Japão? O que faremos se não conseguirmos voltar? Personagem 2 : Até acostumar com país vai ser duro. Temos que suportar. (YAMASAKI, 1980 – traduções nosso)
Embora a mortadela do sanduíche tenha provocado mal estar, causando enjoo no personagem, a pinga servida pelo administrador da fazenda é aceita, sem grandes problemas. Nos dois meios artísticos os imigrantes, depois de desembarcarem no Porto de Santos, são enviados às respectivas fazendas, onde eram buscados na estação de trem pelos seus fazendeiros. A língua era uma das barreiras que dificultava a comunicação. Porém, o choque maior e a decepção foram quando chegaram a fazenda e os japoneses veem a casa onde iriam morar e a realidade local: Personagem 1: Aqui que vamos morar? Personagem 2: E aqui dá para morar? Personagem 3: Mas não tem nem janelas. Personagem 4: A promessa foi outra. (YAMASAKI, 1980)
Em Gaijin (1980) a câmera é focalizada na casa, que aparecia em condições precárias. Geralmente as casas que eram ocupadas por imigrantes vieram do tempo da escravidão. O imigrante como substituição da mão de obra escrava era submetido também a condições precárias deste período. Além disso, a forma de viver do imigrante japonês era diferente da forma Brasil. O costume era andar descalço, existindo-se um assoalho, o que não era possível nessas primeiras situações. Quanto aos trabalhos nas lavouras cafeeiras a regularidade encontrada é a divisão de terras em que cada família era destinada a cuidar na fazenda, para realizar a colheita e afazeres. Os salários vinham após a época da safra, recebendo por sacas colhidas de café. Como não tinham dinheiro e meio de transporte para realizar as
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compras, as fazendas vendiam fiado nas vendas, a preços elevados, fazendo os imigrantes não terem noção do que tinha sido gasto. Sofriam também quando recebiam o pagamento, que não sobrava e com isso o imigrante não tinha certeza para voltar ao país de origem. Além disso, o trabalho na colheita do café é representado como árduo e cansativo. No dia seguinte da chegada, papai, Shigueru e Minoru fizeram as camas e pudemos dormir melhor. Desde então, a família inteira está colhendo frutos de café. Aqui o sino toca às cinco horas, e temos que acordar. Com o toque do sino das seis horas, partimos para o cafezal. O serviço termina às seis ou seis e meia da tarde. Temos que trabalhar sem descanso, sob o sol escaldante. Por isso, no fim do dia, estamos tão cansados que quase não temos forças para voltar para casa. (HASHIDA, 2005, p. 83)
Pouco a pouco os utensílios domésticos são construídos para a melhor convivência. Nesse trecho da carta de Haru escrita à irmã há a descrição da confecção de colchões. Em outros momentos são feitos outros materiais de necessidades pessoais relativos à comunidade japonesa, como por exemplo, o ofurô visto tão claramente, em Haru e Natsu e em Gaijin. A carta também mostra o sino que é tocado no início e final do expediente de trabalho. O sino representa a memória da escravidão, o mesmo objeto que era usado com os escravos era usado agora com os imigrantes. O que mudou dessa época para a dos imigrantes é que estes eram assalariados. Entretanto, as condições de trabalho, a exploração e a dura jornada de trabalho estavam bem presentes, produzindo-se sentimento de sofrimento nos imigrantes. Dentro da afirmação "sob um sol escaldante" (HASHIDA, 2005, p.86) observa-se o choque em relação ao clima quente, que queimava a pele, sentida principalmente por parte de Haru e familiares, que morava na região mais fria do Japão, consumindo as suas energias. Em Gaijin, por volta do minuto 28 há a representação de um dia de trabalho, passado por vários momentos do dia, em que sempre os japoneses estão trabalhando. Conforme o tempo passa as cenas ganham acompanhamento da música de fundo, que toca de maneira mais forte e fúnebre, produzindo sentido de esgotamento e de cansaço. A total perda de força dos colonos no fim do dia. Com o passar dos dias, o sentimento esperançoso que os imigrantes tinham antes de virem ao Brasil são substituídos por desilusões e descontentamentos. Além desses
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problemas, nesses dois meios de produção artística observa-se o conflito com o capataz ou o administrador que a função era fiscalizar os trabalhadores; o problema das terras ficarem distantes comparadas aos colonos de outros países, conseguindo-se consequentemente colher menos, por causa do deslocamento ser maior e demorar mais; outro conflito foi a alimentação. Evitavam produtos caros, como a carne do armazém. Os filhos de Chûji já haviam enjoados de comer feijão com mandioca todos os dias. Isso estava relacionado às economias para poderem voltar ao Japão o mais rápido possível. Procurava-se também a criação de suas próprias hortas para o consumo próprio, sonhando um dia vender esses produtos, como argumentam Haru e Kobayashi (irmã de Titoe). A decepção dos imigrantes vinha quando recebiam os salários. Ao contrário de outros imigrantes, os japoneses objetivavam juntar dinheiro rapidamente. Porém, o salário não era compatível com o que se esperava. Muitas vezes ao invés de saldo positivo restavam dívidas. Gerava-se uma grande revolta por parte dos trabalhadores japoneses. Acordamos às cinco da manhã, ao toque do sino, e saímos às seis horas para o trabalho. Depois, trabalhamos o dia inteiro debaixo de um sol escaldante, voltando para casa às seis, seis e meia... Não comemos nada que preste, nem fazemos nada que seja divertido. Voltando do serviço, todo mundo está tão cansado que só quer dormir. Vivemos só para o trabalho e no fim, sobram dívidas? Afinal, o que viemos fazer no Brasil? (HASHIDA, 2005, p.146-147)
O trecho acima representa o desabafo de Yozo (irmão de Chûji) após receber a notícia de baixo salário que iriam receber. Em Gaijin também, no final da safra as famílias de japoneses revoltam-se por causa das dívidas. O discurso produz o sentido de que todo o esforço, o cansaço, o trabalho árduo não trouxeram resultados esperados, observando-se a exploração, a decepção e a desilusão em poderem voltar ao país de origem. As doenças e as mortes de familiares também ocorrem em Haru e Natsu e Gaijin. Em Gaijin, uma imigrante acaba sofrendo surto de loucura, em que comete suicídio. Já um dos personagens principais, Yamada (marido de Titoe) adquire uma doença contagiosa da fazenda e no fim também acaba falecendo. Todos esses fatores geram muita revolta para os familiares que permaneceram, além de todos os problemas
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tinham que enfrentar a perda de entes queridos, falta de médicos, remédios e infraestrutura. No romance, o irmão de Haru, Shigueru, contrai a malária, tendo febre alta, acarretado pelo cansaço, pela desnutrição e pelo calor. Depois de alguns dias não consegue sobreviver e é tomado pela doença. Havia o receio de chamar o médico pela família, pelo preço elevado da consulta, pela distância da fazenda e pelo fato de a cidade ser longe e o medo de acumular mais dívidas. Diziam que o sofrimento do colono japonês ultrapassava o limite da paciência quando algum parente, descendente ou cônjuge falecia. Quando a morte vinha pela providência divina ou pelas regras da natureza, ainda era possível se conformar. O inconformismo chegava ao auge quando se desperdiçava uma vida que poderia ter sido salva, se tivessem levado o doente ao médico, ou tivessem-no tratado com uma alimentação nutritiva. Era exatamente o caso de Shigeru. (HASHIDA, 2005, p.167)
A solução nessas duas materialidades para todos esses problemas é a fuga da fazenda, onde já não viam esperanças. Outra regularidade observada entre os meios de produção. Procuravam-se, dessa forma, melhores condições e perspectivas de vida. A fuga geralmente ocorria no período noturno, pois dessa forma estariam longe das fiscalizações dos capatazes, que durante o dia andavam na fazenda. Em Gaijin, Titoe, vira uma funcionária de fábrica, em um lugar que aparenta ser a cidade de São Paulo. Já no segundo filme de Yamasaki (2005), Titoe parte para a colonização da cidade de Londrina, localizado no estado do Paraná. Em Haru e Natsu, após a fuga, a família de Chûji resolve arrendar uma terra. O local de plantio pertencia aos americanos, mas o lucro da produção cafeeira poderia ficar para a família dos imigrantes. Nota-se que aos poucos os objetivos de trabalhar, ganhar dinheiro e voltar para o Japão não era tão simples como imaginavam, passando para outra fase em que os imigrantes adquirem um pedaço de terra, mas que não pertencesse a outra pessoa, como no caso dos fazendeiros, senão a si mesmo. A visão dos brasileiros acerca do imigrante japonês Por meio da leitura dos meios de produção artística analisada, observamos que por se tratar de um arquivo sobre a imigração japonesa, a imagem projetada parte da visão dos imigrantes. Refletindo-se sobre os levantamentos de Aiub (2012), existem
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aqueles arquivos que são acessados a todo o momento. Se tratarmos do tema da imigração dos nipônicos, com certeza se recuperará essas imagens vistas em Gaijin ou Haru e Natsu. Porém, a outra parte do arquivo que é a visão dos brasileiros ou a imagem do outro, não é tão recorrente. Pode-se dizer que os arquivos existem, são fundamentais para compreendermos o funcionamento, mas estão silenciados ou em um processo de apagamento, ocupando o arquivo. Para se observar a visão do outro ou a visão que não são dos imigrantes japoneses, dos brasileiros, serão utilizados alguns materiais da época relacionada ao início do processo de diáspora dos nipônicos, para depois se comparar com o filme e o romance. O primeiro é uma charge da Revista “O Malho”, que focava os valores políticos, a cultura e os costumes da época. A revista carioca corresponde à edição número 325, de cinco de dezembro de 1908.
Nesse recorte, nota-se a imagem caricaturada de Manual Joaquim de Albuquerque Lins, na época governador do estado de São Paulo. Vestido de trajes a moda japonesa, com a roupa tradicional kimono e o calçado de madeira geta, o governador segura uma cesta, representando a imigração japonesa, em que os imigrantes são descritos como se fossem sementes, para uma posterior plantação a ser feita, dessas sementes-pessoas. As formações discursivas que circulavam nessa época são fundamentais para se entender a produção de sentido. As condições de produção
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permitiam que circulassem, no final para o início do século XIX, discursos sobre os estudos das raças, em que os brancos são os superiores, já os amarelos e negros ocupavam uma posição inferior. Dessa forma, havia toda uma preocupação sobre a entrada dos imigrantes japoneses, por atrapalhar o processo de branqueamento de raça que estava sendo feito no Brasil. A imagem da direita mostra essa preocupação em que são colocados um brasileiro e um japonês lado a lado. Outro discurso que influenciava para circulava era o expansionismo militar japonês, o qual cada vez ganhava mais força. Em 1895 o país derrotou a China, em 1905 vence o Império Russo, começando-se a levantar o temor contra as conquistas, sobre o Perigo Amarelo. O governador de São Paulo vestido de kimono produz o sentido da assimilação da cultura japonesa, a dominação dos nipônicos tanto etnicamente, pela imigração, como culturalmente através da indumentária. Como argumento para a não aceitação dos japoneses é descrito na imagem da revista, esquerda abaixo, como “raça diametralmente oposta a nossa”, na cultura, na religião e na fisionomia, criticando os paulistas, que aceitavam os imigrantes nas lavouras da plantação do ciclo de café. No início São Paulo foi o único estado a aceitar o fluxo de entrada do país do sol nascente. Na charge descreve-se que “o governo de São Paulo é teimoso”. De fato a primeira leva de imigrantes japoneses foi de fracassos e insucessos. Após o término da safra agrícola, poucos permaneciam nas fazendas de café. Handa (1980, p.71) escreve que “do total de 772 japoneses distribuídos a fazendas, 430 haviam-se retirado depois de seis meses”. Entretanto, por outro lado o estado de São Paulo precisava de mão de obra para as lavouras cafeeiras, trabalho anteriormente ocupados por escravos, justificando a entrada de imigrantes de vários países, que também contribuíram para o “branqueamento” do Brasil, no caso dos europeus. Um dos grandes ideólogos sobre o “branqueamento” do Brasil foi Oliveira Viana. O livro “Populações Meridionais do Brasil” publicado no ano de 1918 teve grande influência na sociedade. Nele o autor propagava o antiniponismo, argumentando que “o japonês é como enxofre: insolúvel”. O discurso de Oliveira Viana é constituído de uma formação discursiva da ciência da época, da raça pura. A imagem do japonês como uma comunidade fechada, que não se mistura traz um efeito de sentido que se
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deve ser repudiado. Pois além de avessos a assimilação, podendo ser perigoso para o país, era uma “raça inferior” a desejada. Essa visão política que os brasileiros tinham dos japoneses em torno das discussões acerca do branqueamento de raça e do Perigo Amarelo não são retratadas em nenhuma das materialidades. Em Haru e Natsu o conflito com o Brasil somente ocorre com a entrada do Japão na Segunda Guerra Mundial, quando a família de Haru teve que se retirar da fazenda de café por essas terras pertencerem aos americanos. Já no filme de Tizuka Yamasaki o único momento em que se observa a visão do outro, acontece por meio do dono da fazenda de café, pouco antes da chegada dos imigrantes no ano de 1908. O expansionismo militar japonês também aparece, mas a partir de Titoe, que relata sobre o marido Yamada, que participara da Guerra contra Rússia. Elementos como a tenacidade e garra são usados no sentido de lutar contra as barreiras e choques culturais, suportar os obstáculos que virão para vencerem e prosperarem. O trecho a seguir ilustra a visão que o dono da fazenda Santa Rosa tinha dos imigrantes. Eles também têm seus problemas. Estejam certos. A substituição de escravos negros por trabalhadores europeus é um bom negócio em longo prazo, mas isso não resolve. Estou cansado de brigar com italianos e espanhóis. Para a minha fazenda estou contratando os japoneses. São mais disciplinados, mais trabalhadores. (YAMASAKI, 1980)
Nota-se o problema que os fazendeiros tinham com imigrantes europeus, como os baixos salários, as greves, dura jornada de trabalho entre outros. Voltando para a questão da visão do brasileiro, tem-se a descrição dos japoneses como “mais disciplinados, mais trabalhadores.” Assim, além da visão crítica ou preconceituosa sobre o imigrante japonês que foi visto na charge da revista “O Malho”, há também a imagem dos fazendeiros que olham como disciplinado, apesar de ainda não terem a experiência desses imigrantes em suas fazendas. No jornal Correio Paulistano do dia 25 de junho de 1908, há toda uma descrição de um jornalista que está vendo pela primeira vez a entrada de imigrantes japoneses, com um olhar de curiosidade. Um dos fatos que o impressionou foi após chegarem à hospedaria dos imigrantes:
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Depois de estarem uma hora no refeitório, tiveram de abandonal-o, para saberem quaes eram as suas camas e os quartos, e surprehendeu a todos o estado de limpeza absoluta em que ficou o salão: nem uma ponta de cigarro, nem um cuspo, perfeito contraste com as cuspinheiras repugnantes e pontas de cigarro esmagadas com os pés dos outros immigrantes. (SOBRAL. 1908 apud HANDA, 1980, p.7)
Observa-se novamente o discurso de disciplina por meio da organização dos quartos, o estado de limpeza que diferiam dos outros imigrantes, o que supunha também serem trabalhadores também, apesar de não o conhecerem completamente. Assim, quando voltamos para a questão da visão que os brasileiros tinham sobre os japoneses, observa-se de um lado a imagem do preconceito e de medo do Perigo Amarelo. Por outro lado há a imagem da disciplina e do trabalho sendo abordados. Nos meios artísticos analisados, raros são os momentos em que o olhar é direcionado ao brasileiro. Em Gaijin temos somente a cena descrita acima sobre a visão em que os fazendeiros tinham acerca do japonês, já em Haru e Natsu, em nenhum momento o olhar se volta ao Brasileiro. Considerações finais: Tanto o filme Gaijin como o romance Haru e Natsu traz a representação da imagem que o imigrante japonês tem em relação aos acontecimentos. Em contrapartida a imagem que os brasileiros têm dos japoneses, nesses meios artísticos, ficam em segundo plano, mas são elementos importantes para a produção de sentido. Sobre a construção de identidades do sujeito nipo-brasileiro, a visão política que os brasileiros tinham sobre os japoneses, nesse primeiro momento, desconstrói a imagem de um Brasil como um país cordial, receptivo, que aceita todas as etnias, discursos que circulam até os dias de hoje. A questão sobre a disciplina e organização dos japoneses ainda são observados aos olhos de curiosidade pelos brasileiros. O recolhimento do lixo e a limpeza do estádio de futebol após o jogo da seleção japonesa na Copa do Mundo ocorrido no Brasil, por exemplo, mesmo depois de derrotas, foi alvo de repercussão nacional nas mídias, por ser algo incomum no país. O romance e o filme focalizam no sofrimento, no choque cultural e nas barreiras o efeito de sentido de engrandecimento da cultura e do nipo-brasileiro, que em sua jornada sofre exploração e trabalha arduamente. É importante também observamos por quem e para quem foram produzidos esses meios. Haru e Natsu foi escrita por Sugako
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Hashida, que é uma autora japonesa; primeiramente a minissérie era voltada para os japoneses conhecerem o que foi a imigração para o Brasil. Gaijin, da nipo-brasileira Tizuka Yamasaki, foi produzido para os brasileiros, na qual a cultura japonesa fica mais valorizada no país depois da repercussão nacional do filme. Portanto, o arquivo em sua formação e transformação dos enunciados está em uma relação de regularidade e dispersão. A partir disso, observamos na prática discursiva, o verdadeiro de uma época, as memórias coletivas e as tradições cultivadas. Por outro lado, há também os discursos que são pouco acessados, que compõe o todo, mas esquecidos ou silenciados. Nos meios artísticos, romance e filmes, tem-se tematicamente uma regularidade, pelo processo de fixação do imigrante japonês no Brasil. Já pela charge observamos a dispersão, em que outros sentidos são construídos por meio de um mesmo acontecimento, porém construídos em diferentes práticas discursivas e formação discursiva, que constitui o extenso arquivo do sujeito Nipobrasileiro. Bibliografia AIUB, Giovani Forgiarini. Arquivo em Análise do Discurso: uma breve discussão sobre a trajetória teórico-metodológica do analista. Maceió: Leitura-Maceió n. 50, 2012. P.61-82. BHABHA, Homi. K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2003. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2013. HANDA, Tomoo. Memórias de um imigrante japonês no Brasil. Trad. Antônio Nojiri. São Paulo: T.A. Queiroz, 1980. HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000. HASHIDA, Handa. Haru e Natsu: as cartas que não chegaram. Trad. Masato Ninomiya. São Paulo: Kaleidos-Primus Consultoria e Comunicação Integrada, 2005. NAKASATO, Oscar Fussato. Imagens da integração e da dualidade: personagens nipo-brasileiros na ficção. São Paulo: Blucher Acadêmico, 2002.
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O TERC EI RO ESP AÇO E M BORD ERL ANDS / LA FRONTERA, DE G LORIA ANZALDÚA Humberto Igor Kudo (UFGD) Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (UFGD) Em 1987, quando Gloria Anzaldúa lançou Borderlands / La frontera: the new mestiza, a autora não só construiu um discurso que buscava representar e libertar o seu povo, mas também para representar a cultura chicana. O que torna Borderlands uma obra fértil para múltiplas leituras e análises é a sua atualidade narrativa: a figurativização da fronteira, que se desdobra em fronteiras geográficas, políticas, sociais e de gênero; o discurso de uma narradora lésbica, oprimida por seu povo e pela nação patriarcalista em que vive; a representação dos chicanos por meio da voz da narradoraprotagonista que luta não somente pelo seus direitos individuais, mas pelo coletivo que a identifica culturalmente como chicana; a mestiçagem, presente em todos os temas anteriores. É importante sublinhar que a análise da obra e as considerações feitas neste trabalho perpassam o espaço fronteiriço ali representado, a fronteira México – Estados Unidos. O tema da fronteira, em Borderlands, vai além das linhas geográficas que dividem dois territórios: essas linhas são realçadas em suas formas reacionárias e excludentes, criando dentro de uma mesma nação novos territórios, ou centros e periferias. O povo chicano, por décadas, tem estado à margem dentro desta nação, representados nestas condições por Anzaldúa, que resgata em sua narrativa passado, presente e lança algumas perspectivas para o futuro de seu povo. Em síntese, Borderlands trata deste espaço conflituoso, porém rico culturalmente, que é a fronteira, palco de lutas e de encontro com o diferente, de um espaço em que culturas se chocam ou que por vezes se entrecruzam. Interessa-nos lembrar que e a narrativa de Borderlands é híbrida, caracterizada assim por alguns elementos particulares em sua forma textual. A começar pelo título, Borderlands / La frontera: the new mestiza, paradigmático para a leitura da narrativa,
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que explora as duas fronteiras, o lexema Borderlands, em língua inglesa, representando o território americano, e o lexema frontera, em espanhol, representando o território mexicano.
Fig. 1 Capa de Borderlands, segunda edição, Aunt Lute Books (1999)
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Este espaço, que separa dois países, é ainda reforçado pelo uso da barra, mostrando-se um espaço hifenizado, que ao longo da obra é explorado como local do nascimento de uma nova cultura, o que também é chamado por Bhabha (2012) de terceiro espaço. A barra que separa Borderlands de La frontera é o espaço privilegiado que irá testemunhar o nascimento de uma nova raça, ou, da new mestiza, a nova mestiça, aqui já apresentada como uma figura híbrida, resultado do encontro de duas culturas, duas línguas distintas. Ainda sobre a textualidade da narrativa, a autora recorre à mescla do inglês e do espanhol, ou seja, da língua híbrida dos chicanos para assim representar seu povo e sua cultura. Para efeito de nossa análise, evoquemos o seguinte questionamento: como pensar a cultura na contemporaneidade e nos diferentes lugares em que ela se manifesta? Para responder à essa pergunta, recorremos ao jogo de perguntas e respostas sobre o “viver nas fronteiras do ‘presente’” trilhado pelo pensador Homi Bhabha, que faz um desenho teórico de uma realidade polimorfa e em constantes transformações. Como coloca em sua introdução em O local da cultura , é em tempos de questionamentos, de incertezas amparadas pelo prefixo “pós” que atualmente rotulam e sustentam o pensamento humano que “[...] encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão” (BHABHA, 2013, p.19). Este momento de trânsito hoje descontrói binarismos e coloca a humanidade em um novo patamar onde sujeitos são confrontados com a problematização de conceitos desestabilizados como identidade e nacionalismo, guiados por uma sensação de desorientação. Revela-se ainda que em tempos de “crise do sujeito moderno” há uma necessidade de transpor o foco das narrativas de subjetividades originárias para processos narratológicos articulados em diferenças culturais. Segundo Bhabha: Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade (BHABHA, 2013, p. 20)
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Como aponta o teórico, é dos interstícios que se originam sobreposições e deslocamentos nos domínios da diferença, advindos de experiências intersubjetivas do coletivo, de modo que se produzam estratégias de representação ou aquisição do poder. Especificamente no caso dos chicanos ou daqueles que vivem entre a fronteira México – Estados Unidos, Gloria Anzaldúa, em sua narrativa literária, discursiviza este interstício por meio da metáfora da ferida aberta, criando um espaço em que há o intercâmbio de valores e significados: The U.S -Mexican border es una herida abierta where the Third World grates against the first and bleeds. And before a scab forms it hemorrhages again, the lifeblood of two worlds merging to form a third country – a border culture (ANZALDÚA, 1999, p. 25. Grifos do autor)1
Assim como o faz Anzaldúa, os problemas culturais e fronteiriços têm sido tematizados em diversas obras literárias como forma de articular as diferenças a partir das perspectivas de uma minoria, além de procurar conferir autoridade aos hibridismos culturais de diversas situações históricas. Portanto, veremos que as condições da produção discursiva do povo chicano é originada de um espaço intervalar e produzidos em um determinado contexto, refletindo as condições de uma minoria. A citação acima, de Borderlands, é paradigmática nesta narrativa, já que traduz a atual condição do povo chicano dentro dos Estados Unidos, haja vista que a fronteira citada não é somente geográfica, mas cultural e política, pois separa dois povos distintos, criando um fosso social que reforça as diferenças, excluem o outro, o diferente. A metáfora da ferida aberta, escrita em espanhol, em um parágrafo em sua maior parte em inglês, representa o incômodo que o latino, o chicano, e todos os imigrantes sul–americanos causam no norte–americano, ou em uma parcela xenófoba que busca reforçar as fronteiras já existentes. A autora descreve esse encontro como um ranger, um raspar do Terceiro Mundo (aqui preferencialmente marcado por ela como o Outro, e não o “outro”) contra o primeiro, um encontro que não é harmonioso e que
A fronteira Estados Unidos–México é uma ferida aber ta onde o Terceiro Mundo range contra o primeiro e sangra. E antes que uma ferida se forme vem a hemorragia novamente, o sangue da vida de dois mundos unindo-se para formar um terceiro país – uma cultura de fronteira. (Tradução livre)
1
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provoca uma ferida que sangra, onde a partir de uma “hemorragia” ergue-se um terceiro espaço, de onde surge uma terceira cultura, uma cultura de fronteira, que é representada pelo povo chicano. Esta representação metafórica pode ser averiguada nas palavras de Homi Bhabha: A nação preenche o vazio deixado pelo desenraizmento de comunidades e parentescos, tra nsfor mando esta per da na lingua gem da metáf or a. A metáfora, como sugere a etimologia da palavra, transporta o significado de casa e de sentir-se em casa através da meia-passagem [...] através daquelas distâncias e diferenças culturais, que transpõem a comunidade imaginada do povo-nação (BHABHA, 2013, p. 228. Negrito nosso).
A metáfora da herida abierta é a significação do embate de duas culturas e da formação de um novo povo, além de ser representativa para a ideologia dos chicanos. Ela também carrega em seu bojo a ideia de ponte, do elo entre as duas culturas que se chocam em seus embates ideológicos, resultando no que Bhabha chama de “meiapassagem”, e na formação de uma comunidade imaginada. Esta formação cultural já carrega em seu núcleo um passado histórico conturbado, uma vez que em 1846 o território que compreende os atuais estados do Texas, Novo México, Arizona, Colorado e Califórnia foram tomados do povo mexicano (ANZALDÚA, 1999, p. 29). Os povos que ali permaneceram, com a promessa de segurança política, aos poucos foram reduzidos pela falta de assistência ou pelas dificuldades impostas pelo governo americano, forçando muitos a venderem suas terras e abandonarem seu próprio espaço. Os poucos que resistiram a essas condições foram obrigados a sofrer as dificuldades impostas, e, neste tempo, enquanto a sociedade norte–americana se fortalecia como nação, os chicanos com todos os reveses se fortaleciam como povo, por meio do que Bhabha chama de movimento nar rativo duplo, ou seja, povo enquanto “objeto histórico” que se configura através de um discurso preestabelecido ou na origem histórica, e povo como “sujeitos” que obliteram a presença anterior de povo-nação (no caso dos chicanos, o povo mexicano) para constituir um signo do presente, o povo como contemporaneidade. Nas palavras do pesquisador:
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É precisamente na leitura entre as fronteiras do espaço-nação que podemos ver como o conceito de “povo” emerge dentro de uma sér ie de discursos como um movimento narrativo duplo. O conceito de povo não se refere simplesmente a eventos históricos ou a componentes de um corpo político patriótico. Ele é ta mbém uma complexa estr atégia retórica de r eferê ncia social: sua alegação de ser re pre senta tivo pro voca uma cr ise dentro do pr ocesso de significação e inter pelação discur siva (BHABHA, 2013, p. 237. Negritos nosso).
Depreende-se desta passagem que dentro do espaço intervalar da formação cultural situam-se, além dos diversos discursos que constituem a ideia de um “povo”, novos discursos de autorreferência que legitimam a identidade chicana, de indivíduos que vivem sob a mesma condição e que possuem o mesmo passado histórico. Para efeito de nossa análise, e considerando que é a partir de uma série de discursos que se forma o movimento narrativo duplo, vale sublinhar que, segundo Maingueneau, o discurso
“não
intervém
num
contexto:
só
há
discurso
contextualizado”
(MAINGUENEAU, 2012, p. 42), daí a relevância de situar em nossa análise a formação e o contexto de vida dos chicanos. Apesar de discursos serem contextualizados, eles são caracterizados pelo não pertencimento a um lugar, fadados ao não lugar, o que remete novamente à metáfora da ferida aberta e ao não lugar dos chicanos. No que concerne ao discurso literário, ele se caracteriza como um discurso constituinte, e por discurso constituinte entende-se aqueles que conferem sentidos a uma coletividade: Aquele que enuncia no âmbito de um discurso constituinte não pode situar-se nem no exterior nem no interior da sociedade: está fadado a dotar sua obra do caráter radicalmente problemático de seu próprio pertencimento a essa sociedade. Sua enunciação se constitui mediante a própria impossibilidade de atribuir a si um verdadeiro “lugar”. Localidade pa radoxal , par atopia, que não é ausênc ia de lugar , mas uma difícil negociação entr e o lugar e o não lugar , uma localização par asitária, que retira vida da pr ópr ia impossibilidade de esta bilizar-se. (MAINGUENEAU, 2012, p. 68. Negrito nosso)
Novamente a ideia de um não-lugar ou entre-lugar pode ser retomada no que se refere ao discurso literário, ou na narrativa de Gloria Anzaldúa. A formação do povo chicano está na origem deste não pertencimento, em um espaço intervalar de duas
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culturas, formando um terceiro espaço cultural que só acontece a partir da formação de um discurso chicano, do movimento narrativo duplo. É indissociável a ideia de formação cultural e formação discursiva ao abordar a temática dos chicanos ou de qualquer outro povo. Essa formação, que ocorre dentro de um espaço já configurado como nação (Estados Unidos), é conflituosa e geradora de novos discursos: Estamos diante da nação dividida no interior dela própria, articulando a heterogeneidade de sua população. A nação barrada Ela/Própria [It/Self], alienada de sua autogeração, torna-se um espaço liminar de significação, que é marcado internamente pelos discursos de minorias, pelas histórias heterogêneas de povos em disputa, por autoridades antagônicas e por locais tensos de diferença cultural (BHABHA, 2013, p. 240. Grifo do autor).
Por conseguinte, é importante sublinhar que essas diferenças sociais não são dadas às experiências por meio de uma tradição cultural autenticada, mas, como enfatiza Bhabha, são “[...] signos da emergência da comunidade concebida como projeto, – ao mesmo tempo uma visão e uma construção – que leva alguém para ‘além’ de si para poder retornar, com um espírito de revisão e reconstrução, às condições políticas do presente” (BHABHA, 2013, p. 22). Este retorno é também a intervenção criativa de Anzaldúa em Borderlands, que representa o espaço intervalar acolhendo a diferença sem impor uma hierarquia, resgatando em sua narrativa o passado histórico dos chicanos para reconstruir a história de seu povo nos signos do presente. Parte-se então para o pressuposto de que, na condição pós-moderna, residem limites epistemológicos de ideias etnocêntricas que são também fronteiras enunciativas de outras vozes e histórias dissonantes, ou como sugere Bhabha, as “histórias alternativas dos excluídos”. Daí erigem as narrativas da diáspora cultural e política, assim como deslocamentos sociais onde, segundo o pesquisador, “[...] a fronteira se torna o lugar a partir do qual algo começa a se fazer presente [...]” (BHABHA, 2013, p. 25). Conclui-se então que a obra Borderlands se inscreve neste tempo presente por meio do terceiro espaço que é a cultura chicana. Bhabha aponta que residir no “além” é ser parte de um tempo revisionário, ou seja, um retorno ao presente que redescreve a contemporaneidade cultural. É por meio desta premissa que se pode ler o título da obra
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de Gloria Anzaldúa, Borderlands / La Frontera, e deste trabalho. Aqui representado pelo uso da barra, o terceiro espaço vai além da representação fronteiriça, mas simula um encontro com o novo, que não é parte do continuum de passado e presente. Segundo Bhabha: [o trabalho fronteiriço] cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético; ela renova o passado, refigurando-o como um “entre-lugar” contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O “passado-presente” torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver (BHABHA, 2013, p. 29).
Em consonância com as ideias de Bhabha, em trabalho intitulado “Questões de identidade contidas nos ditos e escritos de Gloria Anzaldúa e Gómez-Peña” (2011), a pesquisadora Maria José Terezinha Malvezzi faz alguns apontamentos da produção dos dois autores chicanos. Segundo Malvezzi, Peña e Anzaldúa narram um coletivo intercultural circundado pela memória e que: [...] no caso presente da cultura chicana, há uma multiplicidade de mundos narrados e uma alegorização que une a tipologia histórica chicana a uma imaginação criadora, uma vez que se concebe a pluralidade textual entre relatar sobre a história dos chicanos e o narrar imagético marcando a experiência subjetivada de toda uma memória historicizada. A transformação física do patrimônio territorial confirmando que nem o passado nem e ta mpou co o pr esente se encontra m term inados apresenta partes do intertexto perpetuado nas implicações culturais que levam a memória de um povo a expressar-se por meio de objetos relacionados com o mundo artístico e intelectual (MALVEZZI, 2011, p. 116. Negrito nosso).
Deste modo, a memória cultural dos chicanos ajuda-os a construir a ideia de identidade própria, bem como operar nos interstícios de sua prática discursiva a encenação destas identidades. Refer ências Sobre Anzaldú a
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Túlio.
O
Álamo
–
EUA
X
México.
Disponível
em:
. Acesso em: 20 jan. 2014.
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O LETRAMENTO LITERÁRIO E A FORMAÇÃO DO LEITOR NA ESCOLA
Iara Lopes Maiolini (PG-UFMT, UNEMAT/SINOP-MT)
Considerações iniciais Neste trabalho, apresenta-se um recorte dos resultados de uma pesquisa de mestrado (MAIOLINI, 2013) sobre a formação do leitor literário na escola. Enfatizamse, dessa forma, as práticas de leitura e letramento literário dos alunos dos 7º e 9º anos do Ensino Fundamental de uma escola pública estadual de Cuiabá, Mato Grosso. O instrumento de coleta de dados usado foi um questionário composto por 34 perguntas fechadas e uma aberta, feito a alunos do 7º (28 alunos) e 9º ano (26 alunos). A aplicação desse questionário permitiu conhecer as diversas práticas de letramento desses sujeitos, o que eles costumavam ler e o que gostavam de ler e sua opinião sobre a leitura. Para a análise e discussão dos dados, a referente pesquisa fundamenta-se teoricamente no pensador russo Mikhail Bakhtin e o Círculo (1929a; 1929b; 1926; 1928; 1952-1953/1979; 1934-1935/1975). Os dados desse questionário revelaram que os alunos estavam inseridos em diversas e variadas práticas de leitura e letramento (contação de histórias, liam poemas, letras de canções, contos, iam ao cinema, à biblioteca, utilizavam computadores, acessavam redes sociais etc.). Os gêneros discursivos, habitualmente, lidos e mais apreciados para a leitura e para a produção escrita era notadamente poema, letra de canção e conto. Dessa forma, entende-se que o gênero conto deve ter mais espaço nas práticas prática de leitura nas escolas, visto que tal prática se configura como experiência(s) a ser vivida pelo aluno-leitor e, portanto, possibilitando a ele uma experiência estética. A leitura literária como espaço de construção de sentidos
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Entendemos
a
leitura
literária
como
uma
experiência
de
vivenciar
acontecimentos sócio-históricos e culturais, por exemplo, desta ou daquela sociedade. É, portanto, uma prática social que exige do leitor participação e envolvimento criativo com o texto - Bakhtin chama isso de contrapalavra. A leitura literária é também um retorno às memórias históricas, culturais e ideológicas de uma determinada comunidade; é, assim, experiências mediadas pelas várias formas de expressão cultural. Desde a antiguidade a humanidade tem contato com o mundo fabuloso, com algum tipo de material literário. A narrativa (ou o conto), por exemplo, cuja origem é incerta, figura-se como “dimensão estruturante da condição humana” (SILVA, 2013, p.53). O mito, a lenda, a poesia, o conto, as narrativas heroicas etc., tornaram-se em histórias que foram e, até hoje são, passadas de geração em geração, de tal forma que são constitutivas da memória coletiva do homem em sociedade. Candido (2011) argumenta que a leitura literária (a literatura) possui um caráter potencial de confirmar no homem a sua condição humana, de sujeito participativo da atividade leitora. Isso é possível pelo fato de que o sujeito ao apropriar-se da linguagem literária “é capaz de inventar para além dos usos cotidianos da língua, imaginar situações jamais vivenciadas, transferir-se para os papéis representados pelos personagens, além de outras dimensões próprias do fazer literário e de sua recepção” (SILVA, 2013, p.54). E, além disso, é capaz de compreender a si mesmo por intermédio dos tantos outros que podem ser assumidos via texto literário. Em pesquisa recente, Maiolini (2013, p.93) assevera que “é por possuir esse caráter emancipatório e de tornar o mundo compreensível por meio das palavras e das linguagens - transformadas em cores, dores, odores, dissabores, sabores e amores - que a leitura literária, a nosso ver, deve e precisa manter um lugar relevante no espaço escolar” (MAIOLINI, 2013, p. 93). É importante chamarmos a atenção para o aspecto emancipatório da literatura, da leitura literária e, portanto, da relevância do letramento literário na escola. Várias pesquisas (PAES DE BARROS, 2005; NEVES-SANTOS, 2011; PADILHA, 2005) têm revelado o baixo índice de proficiência de leitura e da escrita dos nossos alunos. Além disso, vários documentos oficiais (PCN,1998; OCEM, 2006; PNLL, 2012) têm focado como principal objetivo o desenvolvimento crítico e reflexivo dos discentes brasileiros. A este respeito Pereira (2007, 41) afirma que,
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Num país com fortes desigualdades econômico-sociais, um dos mais seguros mecanismos de ascensão social é o desenvolvimento de competências de leitura e produção de variados textos sociais, os quais, espera-se, possam ser desenvolvidos nas práticas escolares. Inversamente, um dos mais eficientes sistemas de exclusão do mundo contemporâneo localiza-se nos baixos níveis de leitura/escrita (PEREIRA, 2007, p.41).
Nesse sentido, entendemos que o domínio da leitura literária e da escrita são práticas imprescindíveis para que o aluno venha a desenvolver-se criticamente e, assim, ser participativo na sociedade. Dessa forma, a discussão travada aqui figura como pano de fundo para a nossa pesquisa, tendo em vista que assumimos a leitura como um processo criativo e dialógico, contrapondo-se, assim, a concepção de práticas didáticas relacionadas à visão de leitura como mera decodificação dos componentes linguísticos do texto que influenciou - e ainda influencia - as atividades de leitura nas escolas. As práticas de leitura e letramentos dos alunos Faremos um recorte da nossa pesquisa de mestrado (MAIOLINI, 2013). Assim, atentaremo-nos ao seguinte questionamento: Quais práticas de leitura têm os discentes da etapa final do ciclo do Ensino Fundamental da escola pesquisada nos contextos escolar e extraescolar? Para tanto, analisaremos algumas das questões que compuseram o questionário aplicado aos alunos do Ensino Fundamental (doravante EF) de uma determinada escola pública1. Tal discussão será travada à luz do pensamento bakhtiniano.
1
A escola escolhida para a aplicação de questionários com uma pergunta aberta foi a “Escola Estadual F. A. F. M.” localizada em Cuiabá, capital de Mato Grosso. Esta pesquisa contou com a participação de 54 alunos, sendo 28, do 7º ano; e 26, do 9º ano do Ensino Fundamental. A escolha por esses anos ocorreu por causa do trabalho didático com o gênero conto nos LD dessas etapas, como bem sugerem os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa de 3º e 4º ciclos. Além disso, gostaríamos de propor um trabalho que discutisse a formação do leitor literário na escola fundamental. Para maiores informações conferir o trabalho da Iara Lopes Maiolini (2013) intitulado “Um proposta enunciativo-discursiva de leitura de contos para o Ensino Fundamental”.
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Tabela 1 – Materiais escritos existentes na residência Bíblia, livros sagrados ou religiosos, livros didáticos, dicionários. Agenda de telefone, livros de receita de cozinha. Livros de literatura/romances, enciclopédia. Álbum de família, fotografias. Calendários e folhinhas. Não respondeu. Livros infantis.
53,80% 11,54% 9,62% 9,62% 7,69% 5,77% 1,92%
Na tabela 1, observamos que, no que se refere aos materiais escritos, 53,80% dos sujeitos entrevistados possuem em suas residências: Bíblia (livros sagrados ou religiosos), livros didáticos e dicionários. A forte presença do livro didático e do dicionário pode resultar das ações educacionais e dos programas governamentais como: PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) e do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento Escolar). Já a presença da Bíblia (livros sagrados ou religiosos), provavelmente, seja fruto de ações sociais nas comunidades e da religiosidade dos familiares. Entendemos que tal incidência é importante, na medida em que figura como práticas de letramentos para o aluno. Os dados apontam, por outro lado, uma incidência bem menor, 9,62%, para livros de literatura/romances e enciclopédia. Podemos pensar que isso se justifique pelo fato destes materiais impressos em nossa sociedade serem caros, embora nos anos de 2002, 2003 e 2004, o Ministério da Educação (MEC), por meio do Fundo de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), tenha distribuído gratuitamente, junto às escolas públicas do país, uma coleção denominada Literatura em minha casa que continha diversos gêneros da esfera literária, por exemplo: conto, peça teatral, poema, crônica, novela. Executado no ano de 2011, o objetivo desse projeto era entregar a cada aluno um “kit” contendo cinco livros de diferentes gêneros literários. Nesse sentido, entendemos que o fato de um aluno da rede pública ganhar uma obra literária nos parece relevante para o aprimoramento do letramento literário. Compreendemos, no entanto, que apenas a posse de livros não determina a formação do leitor literário, visto que para isso é preciso professores e mediadores de
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leitura capacitados e apreciadores da leitura literária. Além disso, para o aprimoramento da formação literária, necessita-se de espaços públicos, por exemplo, bibliotecas adequadas e equipadas. Tabela 2 – Tipo de livro que costuma ler, ainda que de vez em quando Romance, aventura, policial, ficção Bíblia, livros sagrados ou religiosos Não costuma ler livros Biografias, relatos históricos Autoajuda, orientação pessoal
46,15% 30,77% 13,46% 5,77% 3,85%
Os dados da tabela 2, contudo, mostram que 46,15% desses alunos disseram ler – ainda que de vez em quando – livros de romance, aventura, policial e ficção. Nossos dados analisados corroboram com os da pesquisadora Paes de Barros (2005) porque se assemelham com esse contexto, isto é, 51,6% disseram ler livros de romance, aventura, policial e ficção. Tabela 3 – Textos lidos na escola Livros didáticos Matérias, textos ou exercícios no quadro negro Seus próprios textos ou dos colegas Textos e exercícios em folhas avulsas Revistas Jornais Sites ou páginas na internet Folhetos e cartazes
42,31% 32,69% 7,69% 5,77% 5,77% 1,92% 1,92% 1,92%
Tabela 4 – Atividades realizadas na escola Copiar matérias, textos e exercícios do quadro negro Fazer redação ou trabalhos, responder a questionários ou fazer exercícios Copiar textos dos livros Apresentar seminários ou trabalhos, participar de debates ou discussões Fazer anotações sobre as aulas
73,08% 15,38% 5,77% 3,85% 1,92%
No atinente às práticas escolares, nossos dados revelam uma grande incidência de 73,08% de atividades voltadas para copiar matérias, textos e exercícios do quadro de giz. E, ainda revelam que 5,77% das atividades estão relacionadas às práticas de cópias
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de textos dos livros. Podemos compreender que essa incidência alta de exercícios escolares de cópias ou de identificações nos remete a possíveis práticas docentes cristalizadas e sedimentadas e práticas similares do livro didático que colaboram para a promoção da cópia e identificação de informações. Os dados apontam um percentual de 15,38% de resposta com “fazer redação ou trabalhos, responder a questionários ou fazer exercícios”. Para a questão “textos lidos na escola”, o livro didático apresenta uma incidência de 42,31%, em seguida vem o ato de copiar matérias, textos ou exercícios do quadro negro com 32,69%. Essas são, assim, as principais atividades de leitura realizadas em sala de aula pelos alunos entrevistados. Entendemos que tais práticas não são suficientes para a formação de um leitor crítico que seja capaz de dominar a palavra escrita. Por conseguinte, não está em consonância com as ideias dos PCNLP (BRASIL/MEC/SEF, 1998, p.19) que asseveram: “cabe à escola promover sua ampliação de forma que, progressivamente, [...] cada aluno se torne capaz de interpretar diferentes textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão, de produzir textos eficazes nas mais variadas situações”. Algo semelhante acontece nos dados de pesquisa de Paes de Barros (2005, p. 119), a qual afirma que as atividades mais realizadas nas práticas escolares são caracterizadas pela cópia de matérias e exercícios do quadro negro, verificamos, assim, também, em nossos dados, grande incidência dessas atividades. Diante desse quadro, concordamos com Azevedo (2003, p.79) que os “textos literários são essenciais para a formação das pessoas, têm seu sentido e seu lugar, mas não formam leitores. É preciso que, concomitantemente, haja acesso à leitura de ficção, ao discurso poético, à leitura prazerosa e emotiva”. Em boa medida, podemos inferir que, provavelmente, ao invés de uma prática de leitura para formação de um leitor crítico, há práticas, na escola, para formar sujeitos meramente “copistas” ou sem “voz apreciativa”.
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Tabela 5 – Gêneros habitualmente lidos Poesia Letra de canção Conto Artigo de jornal/revista Crônica Não respondeu Romance
26,92% 21,15% 17,31% 11,54% 11,54% 7,69% 3,85%
Tabela 6 – Gêneros mais apreciados para leitura Poesia Letra de canção Artigo de jornal/revista Conto Romance Crônica Não respondeu
23,08% 19,23% 17,31% 15,38% 9,62% 7,69% 7,69%
Os dados referentes às tabelas 5 e 6 revelam que gêneros discursivos da esfera literária encabeçam as listas dos textos que os alunos costumam ler e mais gostam de ler. A poesia é o gênero discursivo com maior incidência, 26,96% e 23,08%, respectivamente para as referidas questões. Os dados apontam o gênero discursivo letra de canção como o segundo mais lido entre os discentes, com 21,15% para o que costumam ler e 19,23% para o que mais gostam de ler. Por sua vez, o gênero discursivo conto, também da esfera literária, apresenta um índice interessante 17,31% para o que os alunos costumam ler; 15,38% para o que mais gostam de ler. Os dados revelam, portanto, que os alunos entrevistados apreciam os gêneros discursivos da esfera literária. Possivelmente, isso se deve pelo fato de que os gêneros da esfera literária se constituem numa experiência a ser realizada pelo leitor, ou seja, o texto literário tem o caráter de dizer o que somos de maneira tal, que nos leva a desejar expressar o mundo ao nosso modo. Considerações Finais
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Nesse sentido, o letramento literário é relevante porque amplia o nosso universo, o nosso olhar sobre o mundo (e sobre nós mesmos), de tal forma a nos incitar a imaginá-lo e compreendê-lo, concebê-lo e organizá-lo de outras maneiras. A leitura literária provoca em nós inquietações, sensações, experiências que, de certa forma, não nos permite o esquecimento ou apagamento delas. Assim sendo, entendemos que é função da escola proporcionar aos alunos, principalmente aqueles oriundos de bairros populares, eventos e promoções que sejam capazes de estimular e aprimorar o letramento literário na escola; uma vez que é por meio da escola que esses mesmos alunos têm a oportunidade de ascenderem social e economicamente. A escola com vistas à formação do leitor literário deve desenvolver um Projeto Pedagógico que vise: existência de espaços de leitura; biblioteca (fundamental para a iniciação literária); acervos (significativos e disponíveis para todos); outros ambientes de leituras e circulação de livros. Nessa perspectiva, a escola será um espaço propício para trocas literárias e experiências reais com os textos literários. Referências Bibliográficas AZEVEDO, R. A didatização e a precária divisão de pessoas em faixas etárias: dois fatores no processo de (não) formação de leitores. In: PAIVA, A.; MARTINS, A. (Orgs.). Literatura e letramento: espaços, suportes e interfaces – o jogo do livro. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. BAKHTIN, M. M. [1934-1935/1975]. O discurso no romance. In:______. Questões de Literatura e Estética (A Teoria do Romance). São Paulo: Editora da UNESP, 1993. _____________.
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FORTUNA LITERÁRIA DE ODETTE DE BARROS MOTT Ieda Maria Sorgi Pinhaz Elias (UEM/SEED) Resumo: A escritora Odette de Barros Mott produziu obras literárias para crianças e jovens brasileiros por quase 50 anos, entre as décadas de 1950 a 90. Nas livros destinadas ao público jovem, procurou incorporar em seus textos temas e conflitos que permeiam o cotidiano destes leitores. Frente à importância dessa produção, o objetivo deste artigo é levantar aspectos da fortuna crítica da escritora relevantes para compreender o fenômeno de venda de suas obras, pois 1atingiu em 1981, a marca de um milhão de livros vendidos para crianças e jovens. Apesar de lhe serem atribuídas algumas críticas contundentes em relação à qualidade de seus textos, é significativa sua participação no mercado editorial brasileiro, considerando o momento de produção de suas obras. Palavras chave: Literatura juvenil, Odette Mott, Fortuna crítica. 1. Introdução
Odette de Barros Mott (1913-1998), nasceu em Igarapava, interior paulista. Frequentou o Instituto de Educação Caetano de Campo, tornando-se professora. Lecionou por quatro anos, sendo que, com o casamento, abandonou a profissão para dedicar-se à condição de esposa e posteriormente, mãe (Coelho, 1983, p.743). No entanto, a vocação para as letras era latente em sua vida, então, mesmo com cinco filhos pequenos, iniciou sua carreira de escritora, com obras voltadas ao público infantil, estreando como escritora de literatura juvenil com a publicação da obra Aventuras do escoteiro Bila, em 1964. Este artigo centra-se na crítica especializada no campo da literatura infantil/juvenil brasileira, buscando situar a escritora no contexto da produção nacional de acordo com os discursos correntes sobre Mott. 2. A crítica especializada
1
De acordo com carta da escritora com a editora Brasiliense, através do diretor Caio Graco Cerquinho Prado. (IEB/USP. Fundo OBM, código: OBM-CAB-02 )
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2.1 – O silêncio em “Literatura infantil Brasileira” A obra Literatura infantil brasileira de Leonardo Arroyo, pode ser considerada como vanguardista em nosso país, considerando a escassez de trabalhos que abordassem sobre esta temática naquele momento histórico. Lançada em 1968, traça um vasto panorama desde o período colonial, com a literatura oral até a produção de Monteiro Lobato, concluindo o estudo em 1966. No capítulo, “Tentativa de um panorama atual” (Arroyo, 1968, p. 210), o pesquisador apresenta uma ampla relação de autores que produziram obras voltadas para o público infantil. A lista é composta por 109 escritores, destes, 76 são escritores e 33 são escritoras. Ao final da lista Arroyo informa que aos nomes citados soma- se um número indefinível de escritores. Como o pesquisador conclui este trabalho em 1966, até o final dos registros considerados por ele, a escritora Odette de Barros Mott já havia publicado 210 obras, inclusive já estreara com a obra Aventuras do escoteiro Bila (1964), livro que teve expressiva aceitação do público, inclusive pela escassez de obras nacionais para o público jovem naquele momento. No entanto, o nome da autora não está dentre os destacados por Arroyo, tão pouco é citado em algum momento desta obra produzida por ele. 2.2 – O verbete sobre autora no Dicionário crítico da literatura infantil/juvenil brasileira: 1882-1982 Na apresentação da obra, Nelly Novaes Coelho informa que as leituras analíticas e crítica que integram a livro 3“tiveram, como objetivo fundamental organizar, segundo determinados conceitos teóricos e critérios pessoais, a massa heterogênica da produção literária infantil e juvenil, em um século de existência: de 1882 a 1982”. A autora inicia suas considerações sobre Odette de Barros Mott fornecendo informações sobre a biografia da escritora. A seguir, apresenta uma divisão do acervo 2
De acordo com a lista bibliográfica da autora em ZILBERMAN, R.; LAJOLO, M. Um Brasil para crianças: para conhecer a literatura infantil brasileira: histórias, autores e textos. 2.ed. São Paulo: Global, 1988, p. 241. 3
Informações que constam na “Apresentação” da obra, COELHO, Nelly Novaes. Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira. 2.ed. São Paulo: Quíron, 1984, p. IX.
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bibliográfico de Odette, em “Literatura Infantil” e “Literatura Juvenil”, considerando as obras de acordo com a idade do leitor preferencial. Na sequência, apresenta três subdivisões temáticas: “O Mundo Natural e a Vida Rural”, “O Mundo Urbano e seus Problemas” e “O Mundo de Aventuras (históricas, policiais ou de pura ficção)”. A partir delas, discorre sobre os livros juvenis da escritora, produzidos entre 1964 a 1982, tecendo considerações sobre 20 deles, como veremos a seguir. 2.2.1 – O Mundo Natural e a Vida Rural 2.2.1.1 – Aventura do escoteiro Bila (1964) Coelho ressalta a carência de livros juvenis brasileiros na época de publicação da obra e informa que o livro foi recebido com sucesso pelo público leitor, desencadeando edições sucessivas. Apresenta também um breve comentário sobre o enredo da história. Comenta ainda que Odette se mostra bastante informada sobre o Escotismo e menciona sobre a linguagem, ressaltando que atende à norma padrão da língua, mesmo nas falas do personagem Bila e demais garotos. 2.2.1.2 – Justino, o retirante (1970) Este é o livro que o Coelho dedicou maior fôlego para comentários. Destaca os vários prêmios concedidos à escritora devido a essa obra. A seguir, apresenta alguns pontos de uma entrevista de Odette de Barros Mott, concedida à Maria Vera Siqueira, na qual sintetiza suas intenções ao escrever o livro Justino, o retirante. Retomando suas considerações, Coelho lembra que nesta obra, a autora reitera uma denúncia feita nos anos 20, 30 e 40, por romances regionalistas, que procuravam chamar a atenção dos “brasileiros para as calamidades da miséria, atraso e Injustiça Social que escravizam o Brasil, principalmente da Bahia para cima” (Coelho, 1982, p. 745). Apesar de comentários bastante positivos, a pesquisadora também observa que no texto estão presentes valores tradicionais “e que lhe dão base ideológica”. Na tentativa de detectar as causas desta literatura conservadora, Coelho destaca aspectos que evidenciam o alicerce tradicional. 2.2.1.3 – Marco e os índios do Araguaia (1971)
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Coelho transcreve um recorte da fala de Odette de Barros Mott que confirma o conhecimento dela em relação às dificuldades enfrentadas pelos índios. Lembra que a partir das palavras da escritora fica claro sua “profissão de fé”, e a “defesa daquilo que precisa ser alterado na dura realidade brasileira”. A seguir tece um breve comentário obre o enredo. 2.2.1.4 – A grande ilusão – A transa-amazônica (1973) De acordo com Coelho, a obra foi inicialmente publicada com o segundo título apresentado acima, após a 6.ª edição passou a chamar-se A grande ilusão. Aponta
que
Odette de Barros Mott apresenta, de modo bastante intenso, preocupação documental, “um excelente registro de certa realidade brasileira que, pela primeira vez, foi transformada em literatura” (Coelho, 1982, p. 749). Retoma a história narrada no livro afirmando que há um momento em que o texto incorpora um tom autobiográfico, no instante que a escritora expõe sua viagem ao lugar que serve de cenário à história contada. Lembra também que a obra reformulada, A grande ilusão, apresenta desfecho menos otimista que a primeira versão, A transa-amazônica. 2.2.1.5 – Esta terra é nossa (1982) Segundo Coelho, nesta obra Odette de Barros Mott apresenta uma narrativa melancólica, tendo em vista que retrata a miséria sem fronteira. Afirma que apresenta uma solução humanitária e idealizante. 2.2.2 – O Mundo Urbano e seus problemas Segundo Coelho, a partir dos anos 70, Odette de Barros Mott dá início à narrativa de tom urbano, ousando tratar em seus livros juvenis, temas tidos como tabus. 2.2.2.1 – A rosa dos ventos (1972) A historiadora tece comentários sobre o enredo, espaço, e apresenta alguns personagens quem vivenciam a trama. De acordo com Coelho, o livro teve dúbia
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recepção, sendo que agradou a alguns e desagradou a outros, pelo fato de a autora ter permitido que o personagem Luiz, garoto que se envolve com drogas, não tenha sido capaz de romper com o meio promíscuo. 2.2.2.2 – E agora? (1974) Afirma que nesta obra a autora aborda, de modo tradicional, sobre o preconceito racial, sendo que, na busca da valoração do negro, atribui a ele características de branco, fazendo um desserviço, pois ao invés de dar voz à injustiça do racismo termina por ratificá-lo. 2.2.2.3 – A 8ª série (1976) Reafirma que Odette de Barros Mott se apega à “intenção realista documental”. Lembra que a autora, no geral, atinge na obra seu objetivo: retratar o mundo escolar. 2.2.2.4 – O clube dos bacanas (1977) Para Coelho, esta obra não apresenta grande novidade, “seguindo o mesmo estilo ágil do anterior e no mesmo espaço cotidiano” (Coelho, 1982, p. 756). Afirma que a enfabulação não se caracteriza pela riqueza de imaginação, mas a ideia é boa. 2.2.2.5 – Os dois lados da moeda (1978) Afirma que nesta obra a escritora novamente volta seu olhar para a classe desprotegida e carente, destacando a questão dos favelados. A escritora utiliza um personagem, menino da favela, ótimo comportamento, como seu “porta-voz ideológico”. 2.2.2.6 – Pedro pedreiro (1979) De acordo com Coelho, o cenário privilegiado na obra são as construções imobiliárias na capital paulistana, feitas por quem “vive de construir casas e não tem
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um teto para morar” (Coelho, 1982, p. 756). A obra trata ainda da questão dos “grileiros” e da exploração da miséria. A seguir, apresenta uma sinopse da obra. 2.2.2.7 – Mistério? Misterioso amor (1980) Classifica a obra como novela autobiográfica. Para ela “livro ingênuo e poético que, sem dúvida, agradará a uma determinada faixa de leitoras” (Coelho, 1982, p. 757). 2.2.2.8 – As empregada (1981) Afirma que, além da temática, empregadas domésticas, a escritora também insere no livro outros quesitos pertinentes à mulher moderna. 2.2.3 – O Mundo de Aventuras (históricas, policiais ou de pura ficção) 2.2.3.1 – A montanha partida (1964) Comenta que a obra trata das aventuras de um estudante de medicina, de 17 anos, que busca, junto com um grupo de cientistas, local na selva brasileira para instalarem um Observatório Astronômico. Informa que o livro é narrado em forma de diário e cita brevemente sobre o enredo. 2.2.3.2 – No roteiro da coragem (1975) Coelho destaca nesta novela histórica, a “linguagem literária tradicional e visão de mundo idealizada” (Coelho, 1982, p. 758) 2.2.3.3 – O caminho do sul (1975) Afirma que a obra trata da colonização italiana no Brasil, sendo que para a historiadora, o “livro se integra perfeitamente no já conhecido universo de ficção criado pela autora: muito respeito humano, amor, idealismo construtor e auto-doação” (Coelho, 1982, p. 759)
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2.2.3.4 – O mistério da boneca (1977) Explana concisamente sobre o enredo do texto e afirma que “Ao nível do literário, a narrativa é ágil e prende a atenção do leitor. Há, porém, uma falha do tratamento do foco narrativo” (Coelho, 1982, p. 759) 2.2.3.5 – O mistério do botão negro (1977) Aponta que nesta obra a escritora retoma o estilo detetivesco, em que o garoto Cuco vive uma “série de aventuras com ladrões de sacola do correio”. Segundo Coelho, com uma travessura qualquer, tudo acaba sendo resolvido. “Diverte o jovem leitor...” (Coelho, 1982, p. 759) 2.2.3.6 – O caso da ilha (1978) Trata-se de uma trama policial. Coelho faz uma breve síntese do enredo e afirma “tudo bem encadeado, em ritmo fluente, numa atmosfera que faz lembrar os filmes aventurescos da TV. A linguagem ágil como sempre, explorando uma trama ingênua, mas que deve atrair o pequeno leitor” (Coelho, 1982, p. 759). 2.2.4 – Vinda com a neve Esta obra se ambientaliza na China, história infantil, voltada para o conto maravilhoso. Segundo Coelho, uma bela história, pautada por amizade, amor e generosidade na busca pela superação da miséria. 2.2.5 – Nota final do capítulo Em nota, a historiadora fornece alguns dados sobre o último livro recebido de Odette de Barros Mott, A Muiraquitã, e justifica que este não foi comentado junto aos demais tendo em vista que o “dicionário já estava em provas” quando do recebimento deste último texto literário da escritora. Informa ainda que em breve a escritora apresentará o livro infantil O primeiro sorriso de Jesus.
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2.3 – Literatura Infantil: Autoritarismo e Emancipação Regina Zilbermam e Ligia Cademartori objetivam através dos ensaios contidos neste trabalho, “considerar metodicamente a literatura infantil”, apresentando considerações sobre o “lugar da literatura infantil na vida da criança” e ainda propõem “análise de obras” que permeiam o cenário nacional. Não há menção à escritora ou a suas obras. 2.4 - O percurso para o meio urbano em Literatura Infantil Brasileira: História e Histórias Na obra Literatura Infantil Brasileira: História e Histórias, as autoras comentam que com Justino, o retirante (1970), “a literatura infantil brasileira passa a apontar crises e problemas da sociedade contemporânea” (Lajolo e Zilbermam, 1984, p.126-126). Para as autoras, a obra publicada na abertura da década de 1970, apresentase como inovadora em relação à temática abordada. Destaca a contribuição não só na inovação da temática, mas também por colocar em pauta problemas sociais brasileiros. Outro livro de Odette de Barros Mott citado pelas autoras é A rosa dos ventos (1972). Segundo Lajolo e Zilbermam, nesta obra a escritora “é menos otimista”. No capítulo que tratam da “narrativa infantil em tom de protesto”, as pesquisadoras comentam sobre Aventuras do escoteiro Bila (1964). Ainda neste capítulo, retomam considerações sobre Justino, o retirante. Destacam que em ambas as obras, há mito em relação à realidade urbana, pois o primeiro livro encerra antes de Bila mudar-se para a cidade, o segundo, Canindé não representa a realidade de um considerável centro urbano. Apontam que “o registro de uma realidade urbana mais degradada vai ocorrer”, em A rosa dos ventos (1972). Afirmam que “as várias situações de enredo fazem o livro avançar um passo em relação aos anteriores, na medida em que o povo pobre e sofrido participa da história” (Lojolo e Zilberman, 1984, p 138). Mesmo não sendo um avanço tão considerável “um passo”, as autoras acenam para a evolução na narrativa da escritora. No final da obra Literatura Infantil Brasileira: História e Histórias há um capítulo destinado à Cronologia histórico-literária, em que apresentam anualmente, de 1880 a 1980, de forma breve, fatos importantes do contexto histórico e lançamento de
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obras de literatura infantojuvenil brasileira que se destacam em cada ano. Neste panorama, obras de Odette de Barros Mott são destacadas nove vezes, entre o período de 1964 a 1980. 2.5 – Um Brasil para crianças Zilbermam e Lajolo apontam na obra Um Brasil para crianças, no capítulo em que tratam “A literatura infantil brasileira: arte, pedagogia, indústria (1965-1980)”, que entre os períodos indicados, o fato de a legislação recomendar a adoção de livros infantis, sua divulgação direta no ambiente escolar e ainda, "seu marketing visa diretamente o professor e já se tornou familiar, na sala de aula, a figura de um autor visitante que discute com os alunos os textos seus previamente adotados naquela escola”, indicarem que as obras tem um itinerário pedagógico. Outra comprovação para esta afirmativa vem das fichas de leitura que acompanhavam o livro e traziam sugestões para o trabalho em sala de aula. Neste cenário, citam a obra A 8ª série C, que retrata “ a modernização por que passou a imagem da escola no interior da literatura infantil de hoje” (Zilbermam e Lajolo, 1988, p. 174). Esta leitura dirigida estaria a favor da “inculcação de certos valores, comportamentos e atitudes”, contribuindo com a prática civilizatória e educativa. Ainda nesta obra, as autoras reafirmam o caráter inovador dos livros Aventura do escoteiro Bila e de Justino, o retirante. Apresentam também uma bibliografia da autora, nomeando cada obra publicada e informando a data de publicação, de 1951 a 1985, de acordo com dados fornecidos por Odette de Barros Mott. 2.6 – A presença de Odette de Barros Mott no O caminho das águas Edith Piza trata nesta obra de quatro escritoras brasileiras, oriundas do meio doméstico, brancas, que se dedicaram à produção de literatura infantojuvenil, representado em algum momento de suas produções, a mulher negra. É por esse motivo que Odette de Barros Mott é uma dentre as quatro escritoras relacionadas por Edith Piza. A pesquisadora resgata a biografia de Odette de Barros Mott desde a infância, dando ênfase ao modo como desencadeou o processo de produção de literatura, inclusive com trechos transcritos de entrevista concedida pela escritora. De acordo com Piza, a receptividade das obras da escritora “estava garantida por uma temática centrada
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no ‘educativo’, com soluções ‘róseas’ e um tratamento linguístico ‘apropriado’ para crianças e adolescente” (Piza, 1998, p. 151). Piza observa ainda, que Odette procura assumir o papel de orientadora, da juventude dos anos 60. De acordo com a autora, Odette assume seu novo perfil literário a partir do momento que passa a ouvir os questionamentos dos leitores adolescentes, sobre “drogas, sexualidade, política, etc”, e assim afirma que “Odette é, sem dúvida, pioneira no panorama da literatura juvenil brasileira, por ter introduzido temas vigorosos, capazes de suscitar polêmicas” (Piza, 1998, p. 153). Segundo Piza, Camila, personagem de E agora? (1974), introduz o tema preconceito racial na literatura de Odette. 2.7 – E no séc. XX..., em Literatura Infantil: teoria, análise e didática. As obras de Odette de Barro Mott são citadas por Nelly Novaes Coelho no capítulo que trata sobre “A literatura infanto/juvenil brasileira no século XX”. No ponto em
que
discorre
sobre
“Linhas
e
tendência
da
Literatura
infantil/juvenil
contemporânea”, como proposta didática, sugere cinco linhas básicas para o estudo da desta temática. Considerações finais: Tendo em vista as impressões da crítica especializada citadas até este momento do trabalho, julgamos que, apesar de Odette de Barros Mott apresentar obras inovadoras quanto à temática e ainda ousadas quando aborda questões pouco discutidas de conflitos da sociedade, seus livros não foram capazes de romper com a literatura pedagogizante, utilitarista, como podemos confirmar nas palavras de Coelho ao apontar que a intencionalidade básica da arte narrativa de Odette seria “levar o jovem leitor a se interessar por uma leitura que, para além de ser uma diversão, lhe ensine algo de útil, belo ou bom”. Por vezes, a escritora também reforça em suas obras a falácia de que a ascensão social na sociedade moderna é conquistada a partir de dedicação e estudo, como podemos observar nas obras Justino, o retirante e em Rosa dos Ventos. Quanto à postura de Arroyo de não considerar as obras da escritora, podemos inferir que as primeiras publicações de Odette de Barros Mott não foram significativas e apesar da expressiva aceitação do livro Aventuras do escoteiro Bila (1964), a obra ainda
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era bastante recente em relação à época de publicação do trabalho citado de Arroyo, assim, a autora pode ter sido considerada por ele como incipiente. Depois de 14 anos da publicação da obra de Arroyo, Nelly Novaes Coelho apresenta ao público o Dicionário Crítico da Literatura Infantil/Juvenil Brasileira 1882-1982. Apesar de Coelho enaltecer certas habilidades de Odette, apresenta também suas fraquezas discursivas, confirmando-se a ideia de que a autora não atinge a maturidade esperada para a produção literária que realiza. Visto as colocações dos especialistas citados neste trabalho e ainda a importância de Odette de Barros Mott para a consolidação da literatura juvenil brasileira, notamos que as vozes soam em tom uníssono quanto ao pragmatismo de seus textos. Esta situação nos remete a considerações apresentadas pelo sociólogo Antônio Candido sobre dois tipos de arte, sobretudo na literatura, que seria a arte de agregação de arte de segregação. Ele afirma: [...] arte de agregação e arte de segregação. A primeira se inspira principalmente na experiência coletiva e visa a meios comunicativos acessíveis. Procura, neste sentido, incorporar-se a um sistema simbólico vigente, utilizando o que já está estabelecido como formas de expressão de determinada sociedade. A segunda se preocupa em renovar o sistema simbólico, criar novos recursos expressivos e, para isto, dirige-se a um número ao menos inicialmente reduzido de receptores que se destacam enquanto tais, da sociedade. (CANDIDO, 1976, P. 23)
Assim, a arte da escritora estaria voltada para agregação, que permeia os meios de massa, atendendo ao sistema simbólico vigente, não sendo capaz de romper com o mesmo. Considerando os estudos desenvolvidos por Jauss (1984), afirmamos que as obras escritas por Odette de Barros Mott não representam ruptura com o horizonte de expectativas do público de sua época de publicação, não haveria distancia estética entre as obras de Odette em relação às antecessoras. Ao invés de romper com o horizonte de expectativa, suas obras atendem ao que já está consolidado. Dessa forma, o valor literário de seus textos é questionável, sendo que estes se aproximam do que Jauss denomina de arte “culinária” ou ligeira, obras que reforçam o que já está posto, reiteram o conhecido, não abrem perspectivas inovadoras, simplesmente satisfaz a demanda do usual, “confirmando sentimentos familiares, sanciona as fantasias do desejo, [...] lança
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problemas morais, mas apenas para “solucioná-los” no sentido edificante” (Jauss, 1994, p.32). Referências ARROYO, Leonardo. Literatura Infantil Brasileira. 10. Ed. São Paulo, 1990. CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Nacional, 1976. COEHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: teoria, análise e didática. 7.ed. São Paulo, 2005. _______, Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira. 2.ed. São Paulo: Quíron, 1984. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. de Sérgio Tellaroli. São Paulo; Ática, 1994. LAJOLO, M. ZILBERMAN. Literatura Infantil Brasileira: História & Histórias. São Paulo: Ática, 1984. PIZA, Edith S. P. O Caminho da Águas: Estereótipos de Personagens Negras por Escritoras Brancas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Com-Arte, 1998. ZILBERMAN, R.; LAJOLO, M. Um Brasil para crianças: para conhecer a literatura infantil brasileira: histórias, autores e textos. 2.ed. São Paulo: Global, 1988. _______, Como e porque ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Avalmat/pnbe_2006.pdf: acesso em 12 de março, 2014.
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A LITERATURA E SEUS DESDOBRAMENTOS: ESTIMULANDO O SENSO CRÍTICO-LITERÁRIO DOS ALUNOS Igor Dessoles Braga (UFRN) Buscando abranger o conceito do termo literatura, podemos explaná-lo, sob a forma de “todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações” (CANDIDO, 1995, p.174). Decerto a definição apesentada é vasta, porém, necessária para compreender os processos cognitivos que envolvem esse tipo de leitura. Sobretudo no ensino de literatura, como afirma Costa (2005), não há como excluir a bagagem histórico-cultural que os textos literários fornecem. Explorar um texto de cunho literário, buscando-se construir sentido, envolve a recepção plena dos elementos que contribuem para a formação de sentido, demandando, por consequência, o aprofundamento na sua temática. Por conseguinte, durante um processo de aquisição dos sentidos, faz-se necessária uma fase de problematização. Essa, deve proporcionar uma reflexão entre os sentidos dentro e fora do texto, para que nada do que se leia seja apreendido como verdade absoluta. Além dessa prática de questionamento, a problematização, como foi destacado anteriormente, também contribui para a fixação dos conteúdos abordados. Os parâmetros curriculares brasileiros (1997) demonstram que é um equívoco acreditar que a literatura deve ser meio, em sala de aula, para o ensino de boas maneiras ou dos deveres do cidadão e que, postos de forma descontextualizada, os procedimentos pouco ou nada contribuem para a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias. Aparentemente, a visão reflexiva acerca dos textos literários parece estar em oposição à dos parâmetros. Mas se a contextualização que os últimos propõem está relacionada às especificidades desses textos, que levam em conta, por exemplo, o contexto histórico-cultural, então a reflexão encontra-se inerente a eles.
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Sgrilli (2008) mostra que, os alunos devem ser encorajados a pensar por si mesmos, a elaborar suas ideias de forma consciente e crítica. No entanto, através da literatura, percebe-se que esse encorajamento normalmente não ocorre, uma vez que seu próprio ensino é negligenciado. São poucas as vezes em que há uma procura por aspectos singulares nos textos literários, devido a procura por questões mais basilares de reestruturação, como o próprio despertar da leitura. Espera-se que os professores consigam aproximar o texto literário do aluno sem esquecer das peculiaridades que ele comporta. Abrangendo-se a discussão, pode-se pensar nas dificuldades enfrentadas pela educação contemporânea. Para ilustrar, aponta-se, como exemplo, a disparidade entre os conteúdos teorizados e estudados, amplamente difundidos no meio acadêmico, e os que ocorrem na prática, expostos em sala de aula, que raramente proporcionam aos alunos as competências esperadas. O ensino de língua portuguesa, em geral, comporta diversos guias curriculares que incitam a percepção da linguagem com bases pragmáticas, focadas no uso, mas centra-se, cotidianamente, no ensino da gramática normativa como uma lei, irrefutável. Nesse contexto de desestruturação do ensino, vê-se a importância da literatura para a formação de sujeitos pensantes, dotados de um senso reflexivo. Um dos maiores teóricos da literatura brasileira, Antônio Cândido, é exposto por Rezende (2007) como produtor de uma intensa reflexão sobre a vida social brasileira, que culminou em várias contribuições acerca da cultura, da identidade e da sociabilidade. A literatura supre “a necessidades profundas do ser humano, a necessidades que não podem deixar de ser satisfeitas sob pena de desorganização pessoal, ou pelo menos frustração mutiladora” (CANDIDO, 1995, p.174). A perspectiva defendida por ele, propõe-nos a pensar literatura como uma necessidade do homem, no que concerne à sua utilização diária, mesmo que seja em momentos de devaneio. Por exercer uma influência, no subconsciente e no inconsciente, torna-se imprescindível discutir sobre como ela fornece meios se de se pensar dialeticamente, isto é, através da contraposição de ideias. Defende ainda não haver, sequer, equilíbrio social sem a literatura. Isso porque ele a encara como um instrumento para humanizar-se, promovendo o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo
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e dos seres, o cultivo do humor. Antônio Cândido cita ainda três faces da literatura. São essas: 1) ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado; 2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos; 3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente. (CANDIDO, 1995, p.176). Pode-se pensar que, segundo as discussões elencadas, a única face da literatura que contribui verdadeiramente no processo de humanização é a terceira. No entanto, ele ocorre mediante a atuação conjunta das três. A primeira, relativa à estrutura do texto literário, parece a mais distante de exercer alguma influência social no indivíduo. Mas ao pensar na estrutura, por exemplo, de um texto poético, percebe-se que ela parece estar contraposta à largamente difundida cotidianamente. O leitor, assim, defronta-se com o inesperado, uma organização que não havia tido contato. É facilmente perceptível a relação entre a construção de sentido do poema e a maneira como é estruturado. Analisar o quanto da forma consegue atuar no inconsciente a longo prazo é uma tarefa difícil de se avaliar, mas assim como nas demais faces, como Cândido afirma “ocorre humanização e enriquecimento, da personalidade e do grupo, por meio de conhecimento oriundo da expressão submetida a uma ordem redentora da confusão” (CANDIDO, 1995, p.180). Assim, conclui-se que a literatura está intrinsecamente ligada a um senso de humanização, que percorre consiste na junção das faces listadas e envolvidas nos processos mais íntimos do homem. O aluno, ao tomar conhecimento das propriedades que ela contém, pode fazer uso desses conhecimentos ligados a sua subjetividade e atuar como um ser sensível, capaz de se reconhecer como um indivíduo questionador, dotado de um senso político e reflexivo.
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Referências BRASIL. Secretaria de educação Média e Tecnológica. PCN+; Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais; Linguages, Códigos e suas Tecnologias. Brasília: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Média e Tecnológica, 2002. CANDIDO, A. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. COSTA, S. S. G. O. Texto literário na perspectiva histórico-cultural. Nucleus (Ituverava. Impresso), v. 3, p. 89-92, 2005. REZENDE, M. J. A análise de Antônio Cândido: o papel das idéias e do pensamento no processo de geração da mudança social no Brasil. Cinta de Moebio, v. 29, p. 194-210, 2007. SGRILLI, H. A formação para autonomia: contribuições da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Revista de Iniciação Científica da FFC, Vol. 8, No 3, 2008.
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HISTÓRIA E LITERATURA: DO SUPLÍCIO Á GUILHOTINA NA OBRA O ÚLTIMO DIA DE UM CONDENADO Á MORTE, DE VICTOR HUGO.
Ingrid Carolina Ávila (UEM) A gazeta de d´Ammesterd relatava no dia 2 de março de 1757, que o parricida Damiens foi intimado a: Pedir perdão publicamente diante da porta principal da igreja de Paris (aonde devia ser) levado e acompanhado num carroça, na Praça de Gréve e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barriga das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e ás partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumido ao fogo, reduzidos a cinzas lançadas ao vento. (FOUCAULT, 1987 p- 8).
O caso de Damiens foi um dos casos de parricídio na França, prática que consistia na morte do pai ou da mãe. O exercício do parricídio era judicialmente executado com uma das mais duras penas (como vemos a cima), no caso de Damiens, pode-se observar a falência de um sistema judiciário que priorizava a mutilação do corpo para a extração de confissões. Fala-se de uma França que presencia a violência. Como espetáculo, as execuções eram realizadas em praça pública (no caso de Damiens na praça de Gréve)
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verdadeiras multidões se reuniam para prestigiar o evento. Além disso, a finalidade dos suplícios em praça pública era doutrinar os demais cidadãos, assim a violência como espetáculo auxiliava na contenção do crime. Entretanto, no século XVII e XVIII, a França vivia um momento de penúria, pois havia um monopólio, visto que a renda estava concentrada nas mãos da Nobreza e do Alto Clero. Aos pobres (vilãos), só restava cultivar seus próprios alimentos, trabalhar
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para os nobres para obtenção de moedas de ouro e prata e com essas moedas comprar alimentos nas feiras. Contudo, nesse período histórico, a moeda não circulava como conhecemos hoje, ela era propriedade das altas camadas da sociedade, assim muitas vezes os mais humildes enxergam no banditismo uma saída pra sua sobrevivência e da família. No caso do suplício de Damiens, não sabemos muitas informações, pois os acusados não tinham dados sobre o processo e nem podiam apelar na sentença, quem tinha ciência dos processos era apenas o juiz. Havia advogados que entravam com recursos pedindo anulação da sentença, contudo as leis do período davam margem a interpretações e os juízes podiam ou não aceitá-las e, na maioria das vezes, eles não as aceitavam. Além da precariedade do sistema judiciário, havia também uma deficiência muito grande dos mecanismos de punição. Victor Hugo cita no prefacio do livro O último dia de um condenado á morte alguns casos de suplícios que não saíram conforme a prática convinha. Foram buscar o homem na prisão onde estava tranquilamente jogando cartas, notificam-no que ele tem que morrer dentro de duas ou três horas, com o que ele começa a tremer da cabeça aos pés, pois, depois de seis meses no mais completo esquecimento, já não contava mais com a morte; raspam-no, tosam-no, amarram-no, confessam-no jogam-no em um carrinho de mão entre quadro gerdarmes e levam-no ao lugar da execução e, passando pela multidão, levam-no ao lugar da execução. (...) Chegando no cadafalso, o carrasco toma-o padre, levao amarra-o no básculo (...) e solta a lâmina. O pesado triângulo de ferro desprende-se com dificuldade, cai aos solavancos entre os trilhos, e aqui começa o horrível, corta o homem sem mata-lo O homem dá um grito medonho. Desconcertado, o carrasco puxa a lâmina e solta-a novamente. A lâmina entalha o pescoço do paciente dá urros, a multidão também. O carrasco torna a levantar a lâmina, esperando sair- se melhor da terceira vez, nada. O terceiro golpe faz jorrar um rio de sangue do pescoço do condenado, mas não trincha a cabeça. Para encurtar, a lâmina subiu e desceu cinco vezes, por cinco vezes cortou o condenado, por cinco vezes, por cinco vezes, o condenado soltou urros sob o golpe e sacudiu a cabeça gritando, pedindo perdão. (HUGO, 1997 P -23)
Victor Hugo cita acima o episódio Pierre Hébrard, executado no dia 12 de Setembro de 1831. Nesse caso, é possível observar a falta de preparação dos carrascos e
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a desorganização para os testes do maquinário de decapitação. Como os suplícios eram realizados em praça pública (assim como discutimos acima), era necessário reunir a população para assistir os espetáculos de horror, a forma encontrada para atrair a população era vincular a informação ao jornal local no caso a Gazzete des Tribunax. Contudo, estamos falando de um momento em que a França está renovando o corpo judicial, a pena contestada continua sendo a mesma, entretanto o suplício passa a ser substituído pela guilhotina. Não sabemos ao certo se a máquina foi desregulada de propósito ou se queria prejudicar um dos executores, mas essas são hipóteses que podem ser consideradas. Victor Hugo cita também o caso de uma mulher que teria sido desmembrada: Em Dijon, há três meses, uma mulher foi levada ao suplício (uma mulher)! Mais uma vez, a faca do Doutor Guillotin fez um serviço mal feito. A cabeça não foi totalmente cortada. Então, os ajudantes do executor puxaram a mulher pelos pés e, no meio dos urros da coitada, e de tanto puxar e sacolejar, separaram a cabeça do corpo por arrancamento. (HUGO, 1997 p-24)
Esses são alguns exemplos de suplícios realizados na França no período absolutista. Após expor alguns desses casos, propomo-nos discutir a violência no sistema condenatório francês. Para tanto, elegemos o livro O último dia de um condenado á morte, de Victor Hugo. O livro aborda as angústias de um homem que só tem uma certeza, a morte. Inicialmente, Victor Hugo não se declara autor da obra, portanto a população francesa o leu como o diário de um condenado. Ele se declara autor do livro alguns anos depois e escreve um prefácio em que se coloca como defensor da extinção da morte e da tortura. Ao realizar a leitura, não sabemos seu nome e nem seu crime, apenas que está condenado a morte. Sua condenação é iniciada em uma manhã de Agosto: De repente, vi de novo como na luz de um raio, a escura sala do tribunal, a mesa dos juízes carregada de farrapos ensanguentados, as três fileiras de testemunhas de rostos estúpidos, os dois gendarmes nas duas pontas do meu banco e a as becas pretas a agitar-se, e as cabeças da multidão a formigar no fundo, na sombra e deter-se sobre mim um
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olhar fixo desses doze jurados que tinha feito serão enquanto eu dormia! (HUGO, 1997 p. 44-45).
O direito produz uma literatura cientifica, enquanto os romances produzem páginas de sensações, páginas essas que nos permite analisar os procedimentos de ação da corte judicial e o processo pelo qual o individuo percorre até a hora final. Nessa passagem da obra, o autor-personagem descreve sua chegada ao tribunal, uma hierarquia de papeis esta estabelecida. Os juízes prontos para delegar a sentença, suas becas são a representação da morte, fúnebres e decisivas. Os gendarmes prontos para conter o condenado caso haja tentativa de fuga e, por fim, uma multidão para presenciar a desgraça. Após a sentença, o condenado é levado para Bicêtre (um antigo hospital psiquiátrico que virou uma prisão): Mal chegara, umas mãos de ferro apoderaram-se de mim. Multiplicaram as precauções: nada de faca, nada de garfo para as minhas refeições: a camisa de força, uma espécie de saco de pano de vela aprisionou-me os braços; respondiam pela minha vida. (HUGO, 1997, p. 48).
Nele, esse indivíduo deixa de participar do mundo exterior para admissão em uma instituição total; aqui o condenado vai partilhar do fracasso de sua vida no mundo social, as prisões proporcionam uma espécie de conflito entre o mundo doméstico e o mundo institucional. Além da desconstrução identitária, o condenado é colocado em uma condição de infantilidade, pois ações que antes da admissão no mundo prisional eram normais (como o fato de se alimentar sozinho portando ferramentas adequadas para tal atividade) na prisão ficam a mercê de uma responsável que dirigi tal atividade. A prisão não representa somente a perda da liberdade, mas também dos direitos individuais que são cassados. Ao longo da narrativa a ansiedade e angustia de um homem que espera pela morte fica cada vez mais explicita. Privação da liberdade, ausência de informações sobre seus processso e esperança em um por vir que o livre da morte são elementos que
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se encontram em sua experiência no cárcere. A respeito da sua vida cotidiana sabe- se pouco. Esse homem sem rosto, sem nome possuía uma mulher doente e uma filha, Marie. Esta vai lhe visitar poucas horas antes de sua morte: << Marie >> disse, << Minha pequena Marie!>> Apertei-a mais violentamente contra meu peito cheio de soluços. Deu um gritinho. << Ai! Está me machucando, senhor>>, disse. Senhor! Já faz quase um ano que ela não me vê, coitadinha. Ela esqueceu-se de mim, rosto, palavras, sotaque; e afinal, quem poderia reconhecer-me com esta barba, estas roupas e esta palidez? Como? Já apagado dessa memória, a única onde teria querido viver! Como! Já sem pai! Estar condenado a não ouvir mais esta palavra, esta palavra da sem pai! Estar condenado a não ouvir mais esta palavra, esta palavra da língua das crianças, tão doce que não pode ficar na dos homens: papai! (HUGO, 1997, p 88).
A morte não é só uma morte no sentido literal, mas refere-se também a uma morte social. Além disso, ele morre também na memória de sua filha, único local no qual, segundo ele, poderia viver; resquício sobre a sua existência não hão de existir, proporcionando a leitura de que não há morte pior que o esquecimento. Depois desse golpe brutal ele é conduzido até a graça de Grève, local no qual sua execução seria realizada. O povo já está reunido para o nefasto (as execuções penais eram realizadas em praça pública, dessa forma assumiam uma função pedagógica). O desfecho dessa história se encerra : Oh, O horrível povo com seus gritos de hiena! Quem sabe se não vou escapar dele? Se não serei salvo? Se meu indulto? ... É impossível que não seja agraciado! Ah Ah miseráveis! Parece que já estão subindo a escada... QUATRO HORAS. (HUGO, 1997, p 95).
A morte dá o enlace final, esse homem até os últimos minutos crê que ira ser salvo, uma multidão acompanha sua execução. Condenado por um tribunal inquisitorial,
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a possibilidade da apelação, de provar a sua inocência já não são mais válidas. Seu processo está consolidado, mais uma morte foi realizada. Segundo Georg Rusche e Otto Kirchheimer (2004), o caráter das penas em relação aos valores culturais do Estado e os suplícios deixam de ser penas viáveis, pois os burgueses, com a entrada do capitalismo, necessitavam de mão de obra. Diante disso, punir o corpo com a morte não é uma alternativa inteligente, já que a Europa do século XVII estava sofrendo constantes modificações, necessitando, assim, de força de trabalho. Além disso, a interface História e Literatura vem rendendo frutos, Historiadores como Sidney Chalhoub (1998), passaram a trabalhar intimamente com a literatura enquanto testemunho histórico, denotando que mais do que reflexo, a literatura cria, constrói e intervém no real, sendo, portanto, mais um elemento constituinte do mesmo. Para Abreu (2004), a literatura é um objeto cultural e histórico. Esta referência consente identificar a expressão de uma época, permitindo, assim, situar a obra historicamente. Com isso, a dimensão social se torna um fator de arte. Destarte, é possível uma abordagem do Direito a partir da literatura, pois ao exprimir a visão do mundo, a literatura traduz o que a sociedade pensa sobre ele. Além disso, essa manifestação artística fornece subsídios para compreensão da Justiça, uma vez que textos literários criticam, satirizam, motejam com ela, denunciando corrupção, violência, truculência, maldade, temas tão íntimos à existência cotidiana.
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REFERÊNCIAS ABREU, Márcia. Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: Unesp, 2004. BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das penas. São Paulo: Editora CD, 2002. BARRETO, Junia. Disponível
Literatura e História: crime e pena capital no século XIX. em:
http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Aletria%2020/n%203/03Junia%20Barreto.pdf
CAMPOS, Maria Tereza. Literatura, Arte e Cultura. São Paulo: Editora Ática S.A., 1988. CHALHOUB, Sidney. História social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987. GOFFMAN, Erwing. Manicômios, prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva,1974. HUGO, Victor. O último dia de um condenado a pena de morte. Curitiba: Editora Posigraf,1997. HUNT, LYNN. A invenção dos direitos humanos uma história. São Paulo: Editora Scharwz, 2009. RUSCHE, Georg. KIRCHHEIMEIR, Otto. Punição e Estrutura Social. Trad. Gizlene Neder, 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004. VOLTAIRE. Tratado sobre a intolerância. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1993.
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MAITENA E FOTONOVELA: CONSTRUINDO PRÁTICAS DE ESCRITA E ORALIDADE ATRAVÉS DE ESQUETES DE HUMOR Isandra Cristiane Ramalho de Aquino (UEL)1 Introdução Os quadrinhos da escritora argentina Maitena Burundarena são conhecidos mundialmente por sua característica cômica e irônica sobre as ações e reações da mulher moderna diante de diferentes situações da vida cotidiana. O humor e a ironia diários também estão presentes no Esquete, um gênero discursivo que se caracteriza em pequenas peças dramáticas com menos de dez minutos de duração e que está se tornando frequente em nossa vida através de programas televisivos, stand-up comedy, entre outros. A fotonovela, sendo um gênero discursivo semelhante à HQ em sua estrutura, porém, também com características teatrais em sua composição; possibilita o seu aproveitamento em conjunto com o gênero Esquete na produção de textos escritos e orais. Este artigo apresenta uma proposta de trabalho realizada em sala de aula utilizando os quadrinhos de Maitena como exemplos de HQ com características de esquete de humor para o estudo e prática de produção de fotonovelas para alunos do ensino fundamental, de forma a estimular a construção da expressão escrita e dos elementos extralinguísticos presentes na oralidade. A expressão escrita e os elementos extralinguísticos As Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná orientam o ensino e aprendizagem do aluno a partir de três focos: a escrita, a leitura e a oralidade. Sobre a análise linguística, conforme as DCE “[...] O ensino da nomenclatura gramatical, de definições ou regras a serem construídas, com a mediação do professor, deve ocorrer somente após o aluno ter realizado a experiência de interação com o texto. [...]” (DCE, 2008, p. 60-61); por isso o trabalho realizado com ela não será considerado neste artigo, mas o estudo desenvolvido visando a prática da escrita e da oralidade. Sobre a importância da linguagem em nossa prática social, Cardoso afirma:
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Mestranda do Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Línguas Estrangeiras Modernas da Universidade Estadual de Londrina.
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[...] com base em Fiorin, podemos afirmar que a linguagem reflete a realidade, na medida em que ela condensa, cristaliza e reflete as práticas sociais. Ao mesmo tempo em que ela é determinada por formações ideológicas, é determinante, pois impõe ao indivíduo uma maneira de ver a realidade, constituindo sua consciência. (CARDOSO, 2010, p. 124).
Com relação à escrita, os itens tratados foram: A intencionalidade do texto. Analisou-se que possíveis intenções teve a autora Maitena ao produzir determinados quadrinhos. Que intenções tiveram os redatores dos Esquetes apresentados ao produzirem seus roteiros e, na produção individual e coletiva dos alunos, que percepções buscavam alcançar em seus leitores. Para este item, fez-se a pergunta-chave: que reflexão você pretende conseguir do leitor com este diálogo? O discurso ideológico presente no texto. Com o questionamento sobre as intenções a serem alcançadas, discutiu-se a influência de afirmações ideológicas que podem ou não gerar um conflito (des)necessário; a interpretação positiva/negativa sobre uma declaração bem/mau elaborada; opiniões de cunho pessoal se sobrepondo ou não em questões ideológicas historicamente construídas. Portanto, textos que podem ou influenciar o leitor, tanto na obra de Maitena, quanto nos vídeos de humor e na produção escolar do aluno. Sobre a construção do discurso ideológico, Cardoso alega que: [...] numa formação social existem tantas visões de mundo quantas forem as classes sociais. [...] não há conhecimento neutro, já que ele sempre expressa um ponto de vista de determinada sociedade. A ideologia constitui e é constituída pela realidade. Ela não é um conjunto de ideias que surge da mente de alguns pensadores, mas é determinada pelo modo de produção de uma sociedade. (CARDOSO,
2010, p. 124).
Os elementos composicionais do gênero. Foram estudados de maneira geral afunilando-se para estruturas específicas que compõem os três gêneros apresentados conforme o grau de relevância na proposta de trabalho. Acerca da oralidade, os objetos abordados foram: O papel do locutor e do interlocutor. Foram analisados exemplos de relações de empatia.
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A entonação. Observaram-se modelos de tons adequados na construção de frases. Frases interrogativas (dúvida, ironia), exclamativas (espanto, surpresa, medo), afirmativas (confirmação, negação, conclusão de diálogo). A expressão facial e corporal. Refletiu-se sobre as expressões faciais e corporais nas HQ, nos Esquetes e nos próprios alunos que, junto com a entonação, constroem o texto oral, tornando-o convincente e autêntico. A adequação da fala ao contexto. Ponderou-se sobre os diferentes discursos sociais encontrados no convívio dos alunos e o seu uso ajustado a esses ambientes. Maitena e seus quadrinhos Conhecida mundialmente por produzir temas relacionados à mulher e sua relação com a sociedade, Maitena faz uso do humor para expor sábia e delicadamente questões que poderiam tornar-se conflitivas. Souza e Fernandes afirmam que “o humor desmascara assuntos e trata de temas tabus que se instauram histórico-socialmente, tendo o objetivo de dizer a ‘verdade’ sobre algo utilizando o riso” (SOUZA E FERNANDES, 2000, p. 1). Entretanto, não somente questões femininas ou de gênero são tratadas em seus quadrinhos, outros temas como educação/formação dos filhos, boas maneiras, família, relações sociais, trabalhistas, cotidiano, também são abordados e, para esta proposta de trabalho, foram selecionadas cinco tiras do livro Curvas Peligrosas que tratam destes outros assuntos. A justificativa para tal escolha foi a escolaridade, a faixa etária dos alunos envolvidos e a sua possível interação sobre as questões. As tiras escolhidas foram: Cosas típicas de una madre, Cosas que no se puede evitar decirles a los hijos, Dime quién eres y te diré de qué sos el último en enterarte, Cuando la ansiedad te tiene em sus brazos, Dime cómo te portas y te diré de quién eres hijo, nas quais se observa o humor irônico nas relações entre pais e filhos e também entre indivíduo e sociedade. Na primeira tira, a autora trata de algumas atitudes comuns à maioria das mães com relação a seus filhos; na segunda, apresenta frases típicas que os pais usam com os filhos para determinar quem “dá a última palavra” nesta relação; no terceiro exemplo, apresenta diferentes situações de sujeitos com expectativas frustradas com relação às suas possíveis conquistas; no quarto exemplo demonstra situações de ansiedade comuns em nossa sociedade como apertar o botão do elevador, quando ele já foi acionado, acelerar o carro antes do semáforo abrir, etc. e, por último, trata da culpabilidade dos pais diante de determinadas ações de seus filhos. Sobre o trabalho de Maitena, Ghilardi-Lucena afirma que: O humor possibilita que se tenha uma ampla dimensão dos conflitos. Ao exagerarem, as histórias de Maitena expõem características
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femininas de modo que as leitoras possam perceber que, em muitos casos, não necessitariam sofrer por pouco e que aquilo que as aflige é comum a tantas outras mulheres. (GHILARDI-LUCENA, 2009, p. 5)
Mas não somente às mulheres, pois na charge que trata da ansiedade nas ações, ela apresenta atitudes comuns a mulheres e homens, assim como a charge que trata da culpabilidade dos pais sobre as ações dos filhos, os discursos apresentados são tanto masculinos quanto femininos. Agregados ao discurso, os desenhos caricaturados expressam nitidamente o pensamento das personagens tornando-os muito próximos aos sentimentos reais. Como exemplos, temos o desespero na expressão da esposa que descobre a traição do marido: olhos esbugalhados, dentes cerrados, puxando o cabelo e a angústia no paciente que descobre que seu resultado é maligno: as mãos segurando firmemente o envelope do resultado, olheiras profundas, testa franzida, suando, boca entreaberta mostrando os dentes. E foram esse discurso irônico junto com essa expressividade muito próxima ao real os principais estímulos para sua comparação com a fotonovela, o produto final dessa proposta. Esquete: um gênero discursivo (re)descoberto O gênero Esquete é uma representação teatral cômica de curta duração. Para Spagnol et al “[...] é uma técnica teatral caracterizada sobretudo por uma apresentação ligeira capaz de promover entendimento e suscitar humor, a partir da sátira, às vezes literária, às vezes grotesca, da vida contemporânea ou de uma realidade.” (SPAGNOL ET AL, 2013, p. 186). Esse gênero existe desde a origem dos programas televisivos, porém, conforme Rosa “até meados dos anos 80, os programas de humor televisivos no Brasil se baseavam, de forma geral, em esquetes com personagens caricatos que representavam de maneira bastante limitada os ‘tipos’ sociais.” (ROSA, 2004 p.581). Isto é, o que estava fora do enquadramento dito como aceitável era motivo para piadas. As personagens eram parodiadas por sua raça, etnia, sexualidade e classe social diferente do que era considerado o padrão da época (ocidental, masculino, branco, cristão, heterossexual). Ainda, segundo a autora, a partir da década de 90 surgiu uma alternativa para esse humor conservador, a piada autocrítica “[...] o riso autocrítico da pósmodernidade é nervoso porque expõe a ferida social sem retoques”. (ROSA, 2004, p. 584). Nele, não se faz a caricatura de tipos humanos, a crítica está voltada para a reflexão e questionamento sobre as representações culturais do senso comum. Partindo deste novo viés é que se observam as produções de Maitena para serem trabalhadas em sala. Não é a simples caricatura de tipos sociais, mas o humor reflexivo sobre temas pessoais e sociais pois, de acordo com Spagnol et al “[...] as encenações ressaltam as diferentes interpretações de um mesmo gesto, um olhar ou uma atitude,
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conscientizando sobre a importância da relação com o outro [...]”. (SPAGNOL, 2013, 186). Sobre o humor, Barreto afirma que ele“[...] serve como uma forma de crítica do modo real ao compor uma realidade alternativa e, ao fazê-lo de forma ambígua, acaba servindo às mais diversas funções conversacionais além de simplesmente fazer as pessoas rirem” (BARRETO, 2012, p. 24). A autora também comenta os quatro tipos de interações humorísticas: as piadas prontas, as conversacionais, a provocação e as ritualísticas. Para a produção dos Esquetes, considerou-se somente a provocação que, de acordo com Barreto, “[...] se diferencia de outras interações humorísticas uma vez que traz em si um elemento de ‘crítica’ em relação a alvo da provocação [...]” (BARRETO, 2012, p. 21). Assim, essa provocação irá propor uma realidade alternativa que servirá como um agente reformulador do discurso e das ações do outro. A fotonovela: dois gêneros em um Originada na década de 40, a fotonovela foi inovadora, pois, segundo Candido era a: [...] combinação das técnicas de cinema, uma vez que elas são construídas por fotos, mesclando o texto escrito com o imagético, o que dava uma dinamicidade às ações, semelhante à impressão tida pelo telespectador diante da tela de cinema. Embora, a princípio, as gravuras que acompanhavam os diálogos fossem desenhadas, elas já constituíam um importante elemento na interpretação da história. (CANDIDO, 2011, p.12).
As fotonovelas têm características semelhantes à HQ, por utilizar enquadramento, plano visual, balões, narrador. E semelhantes ao cinema por conter textos narrativos com um tema específico: o romance, no qual existem um herói, um vilão, uma heroína (geralmente simplória, inocente, humilde e sonhadora), um conflito e um desfecho (feliz e/ou trágico). Mesmo sendo essa a referência original da fotonovela, para este trabalho foi desenvolvido com os alunos somente a sua característica estrutural, aproveitando apenas da sua relação com o cinema a interpretação teatral, tendo em vista que os textos produzidos por eles têm cunho cômico e crítico-reflexivo. Metodologia Apesar das atividades terem sido sequenciais, pode-se dividir a proposta de trabalho em três etapas: identificação e caracterização da Fotonovela (gênero principal); reconhecimento e análise dos gêneros de apoio (HQ e Esquete), comparando-os com a Fotonovela. Produção em grupo de Esquetes e Fotonovela.
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Sobre a Fotonovela, as indagações dirigidas foram: o que é, como se caracteriza, sobre o que trata. Para isso foram elaboradas duas atividades: a primeira com imagens contendo quatro gêneros discursivos (Fábula, Fotonovela, HQ e Anúncio) para que os alunos identificassem a fotonovela descrevendo suas características e tema. A segunda, exibindo três imagens diferentes da cantora Rihanna comprando biquínis na praia de Copacabana, sugeria aos alunos criarem diálogos entre ela e o vendedor ambulante. Com respeito a HQ e ao Esquete, os questionamentos trataram das características comuns e diferenciais entre eles e entre a Fotonovela. Sobre a HQ foram oferecidas duas atividades. A primeira retomou a atividade com os diferentes gêneros e nela também foram apontadas as características da HQ. A segunda foi recortar em gibis distintos tipos de balões. A terceira foi ler e analisar o quadrinho Cosas típicas de uma madre de Maitena, assinalando o seu tema geral, as situações apresentadas, a comparação entre o real e fictício, o humor e a ironia presentes no texto. Sobre os Esquetes, as atividades foram: primeiramente, a apresentação, análise e caracterização de três Esquetes (dois do site Porta dos Fundos e um comercial) tratando o humor, a ironia e a temática dos vídeos. A segunda, a sugestão de possíveis situações para a produção de um Esquete. A terceira, a leitura, teatralização e filmagem dos quadrinhos de Maitena: Cosas que no se puede evitar decirles a los hijos, Dime quién eres y te diré de qué sos el último en enterarte, Cuando la ansiedad te tiene en sus brazos, Dime cómo te portas y te diré de quién eres hijo, observando as expressões faciais, entonação, caracterização das personagens e ações representadas. Para a produção da atividade final foi feito, ao longo das aulas, a escolha de um tema relacionado a questões sociais ou familiares, a produção do diálogo, a representação caracterizada desse diálogo e, por fim, a produção fotográfica dessa representação para a elaboração da fotonovela. As tarefas sugeridas durante a resolução das atividades foram as pesquisas: biografia da escritora Maitena, conceito de ironia, exemplos de Esquetes no site de vídeos Youtube. Resultados Sobre o gênero HQ, os alunos o reconheceram facilmente, assim como a identificação do gênero Fotonovela, com incertezas apenas na sua finalidade. A análise temática dos quadrinhos de Maitena foi feita com mais facilidade pelas alunas, apesar de que para o quadro Cuando la ansiedad te tiene en sus brazos foram sugeridas pelos garotos outros tipos de ansiedade relacionados ao universo masculino como conferir a amarração do cadarço antes de entrar no jogo de futebol. O gênero Esquete, aparentemente desconhecido, foi rapidamente assimilado, pois os alunos já o conhecem através de vídeos no YouTube, como o Porta dos Fundos, Galo Frito, Olivias na TV entre outros.
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Os temas selecionados pelos alunos foram as relações entre pais e filhos, as questões de gênero (diferenças entre homem e mulher) e o racismo na escola. Do início das atividades até a sua conclusão (produção da fotonovela) foram utilizadas nove aulas, distribuídas da seguinte maneira: duas aulas para a identificação e caracterização da Fotonovela; três aulas para o reconhecimento e análise dos gêneros de apoio e quatro aulas para a produção em grupo. A produção final foi apresentada ao colégio através de painéis montados no corredor de entrada. Considerações finais A possibilidade de extravasar o pensamento, caricaturando ou parodiando uma atitude ou opinião foi o que marcou nesta proposta de trabalho. Os alunos aproveitaram os tipos humanos apresentados nos quadrinhos de Maitena para criarem seus próprios personagens, ressaltando características específicas para marcar bem a estas figuras de forma a relacioná-las com a crítica ou a reflexão que foi feita. Referências BARRETO, Krícia H. A co-construção do humor como macro-estratégia de envolvimento em um Talk show. 129 fls. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora. 2012. BURUNDARENA, Maitena. Curvas Peligrosas 1. Buenos Aires. Lumen. 2004. 72p. CANDIDO, Daniela M. N. S. Fotonovelas: espaço de construção de sentidos e as leitoras dos anos 60 e 70. 217 fls. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Estadual de Londrina. Londrina. 2011. CARDOSO, Ana C. S. Linguagem, discurso e ideologia. Revista Linguagens e Diálogos. v. 1. n. 1. p. 122-127. 2010. Disponível em Acesso em 13 mar. 2013. GHILARDI-LUCENA, Maria Inês. Mulheres Alteradas: conflitos do gênero feminino. III SIDIS. PUC. Rio de Janeiro, 2009. Disponível em Acesso em 15 mar. 2013. PARANÁ, Governo do. Diretrizes Curriculares da Educação Básica. Curitiba. SEED. 2008. 101p.
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ROSA, Renata. Humor pós-moderno: no rastro do movimento multiculturalista. Revista Contrapontos. Itajaí. v. 4. n. 3. p. 579-588, set/dez. 2004. Disponível em Acesso em 10 abr. 2013. SOUSA, Waldênia K. M. V. FERNANDES, Eliane M. da F. O humor: enunciado, enunciação e produção de sentido. Revista Linguasagem. São Carlos. 16ª Ed. Jan-jun. 2011. Disponível em Acesso em 18 mar. 2013 SPAGNOL, Carla A. et al. Vivenciando situações de conflito no contexto da enfermagem: o esquete como estratégia de ensino-aprendizagem. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, UFRJ Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 184-189, jan/mar. 2013. Disponível em Acesso em 20 abr. 2013.
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PROMETHEA E OS 12 PASSOS DO HERÓI Ivan Carlo Andrade de Oliveira (UFG - UNIFAP) Resumo Promethea é uma história em quadrinhos escrita por Alan Moore e desenhada por J.H. Williams III e publicada pelo selo norte-americano ABC. A personagem principal é uma garota normal que se transforma em uma entidade mítica capaz de transitar entre a nossa realidade e o reino da imaginação, chamado de imatéria (equivalente aproximadamente ao mundo das ideias, de Platão). O objetivo deste trabalho é analisar essa série relacionando-a com os estudos sobre os mitos de Joseph Campbell em especial com relação aos doze passos da jornada do heroi (publicado no livro O herói das mil faces): o chamado, a recusa à aventura, o encontro com o mentor, os testes, aliados e inimigos, depuração, até o retorno transformado. O trabalho também irá analisar como Alan Moore trabalha os conceitos de mito e imaginação e como esses fatores interferem na história, principalmente na confeção e na estrutura do roteiro. Da mesma forma, esta série será relacionada às ideias de Alan Moore da arte e da escrita como uma forma de magia, capaz de interferir no mundo, expostas em entrevistas e no documentário "The Mindscape of Alan Moore".
1 Introdução Promethea é uma história em quadrinhos dividida em 32 partes de autoria de Alan, J. H. Williams III e Mick Gray e publicada pelo selo ABC (America's Best Comics), da editora WildStorm. A série conta a história de uma super-heroina que lida com poderes relacionados à imaginação. Mas, por trás da camada mais simples, de uma narrativa super-heroiesca, esconde-se uma discussão profunda sobre nossa psiquê e nossa relação com os mitos. Analisar esse aspecto, tendo como foco as ideias de Joseph Campbell, é o objetivo deste artigo. É importante destacar, no entanto, que as reflexões aqui apresentadas não pretendem reduzir a obra de Campbell a uma fórmula de sucesso, como tem sido feito por vários autores, mas, ao contrário: pelo prisma apresentado aqui, a arte é vista como
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uma forma de reflexão profunda sobre o mundo em que vivemos e nossa necessidade de mitos, refletidos em nossas necessidades psicológicas. Assim, o artigo irá destrinchar a forma como Alan Moore usa, ainda que de maneira velada, as ideias de Campbell para construir uma história sobre renovação espiritual.
2 A Jornada do herói O herói das mil faces foi um livro escrito por Joseph Campbell e publicado nos EUA em 1949. Influenciada pelas ideias de Freud e principalmente Jung a respeito das mitologias clássicas, a obra revolucionou os estudos sobre o assunto, oferecendo uma nova perspectiva para o mesmo. Campbell vasculhou dezenas de mitos e lendas ao redor do mundo procurando semelhanças entre eles. Graças a suas intensas leituras, obras e viagens, além da convivência com várias personagens das mais influentes do século, descobriu notáveis paralelos na herança mitológica do nosso mundo, ao mesmo tempo que reforçava sua profunda convicção, desde jovem estudante, de que há uma unidade fundamental no seio da natureza. (COUSINEAU, 1994, p. 11)
Seu objetivo era lançar uma ponte sobre o abismo entre a ciência e religião, a mente e o corpo, o ocidente e o oriente. Para isso ele inverteu a ênfase normalmente utilizada pelos acadêmicos na análise de culturas, centrada nas diferenças e concentrouse nas semelhanças entre essas culturas. Na sua percepção, os mitos eram uma metáfora da busca pela realização espiritual: “Os mitos são as ‘máscaras de Deus’ (...) através dos quais os homens de todos os lugares procuravam relacionar-se com os mistérios da existência”. (CAMPBELL apud COUSINEAU, 1994, p. 12) Para Campbell, as histórias clássicas e seus heróis representavam um processo mental e espiritual de validade universal: Os dois – o herói e seu deus último, aquele que busca e aquele que é encontrado – são entendidos, por conseguinte, como a parte externa e interna de um único mistério auto-refletido, mistério idêntico ao do mundo manifesto. A grande façanha do herói supremo é alcançar o conhecimento dessa unidade na multiplicidade e, em seguida, torná-la conhecida. (CAMPBELL, 2007, p. 43)
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Campbell, assim como Jung, percebeu que a racionalidade contemporânea nos afastava cada vez mais da compreensão dos mitos e seus heróis. Perdemos o sentido de metáfora dessas histórias: Não sabemos desvelá-las e as achamos primitivas. Por outro lado, vemos que as religiões transformaram os mitos em histórias, que têm que ser interpretadas literalmente. Para Campbell, “quando o mito é confundido com a história, ele deixa de aplicar-se à vida interior do homem”. (PEDRO, 2014)
Nesse mundo corrido, de materialidade, o sentido do oculto se perde e passa a ser ou desprezado ou interpretado literalmente em uma separação entre racionalidade e mito. Derrotados os mitos seculares, e como a ciência não preenche a necessidade dos sonhos, levando-nos para um mundo estéril – sem criatividade, sem perspectiva de um futuro que não seja dentro dos parâmetros da sociedade de mercado –, caminhamos para sociedades erigidas em torno da fé, e por consequência, da intolerância. (PEDRO, 2014)
Essa quebra com o mundo mitológico é também uma quebra com o mundo da imaginação, tem central da história em quadrinhos Promethea. Segundo Eliade (apud Hollanda, 2014, p. 33): (...) a vida do homem moderno está cheia de mitos semi-esquecidos, de hierofanias decadentes, de símbolos abandonados. A dessacralização incessante do homem moderno alterou o conteúdo de sua vida espiritual; ele não rompeu com as matrizes de sua imaginação: todo um refugo mitológico sobrevive nas zonas mal controladas. (...) O homem moderno é livre para menosprezar as mitologias e as teologias; isso não o impedirá de continuar a se alimentar dos mitos decadentes e das imagens degradadas. A mais terrível crise histórica do mundo moderno – a Segunda Guerra Mundial e tudo o que ela desencadeou com ela e depois dela – mostrou suficientemente que a extirpação dos mitos e dos símbolos é ilusória. (...) Toda essa porção essencial e imprescindível do homem – que se chama imaginação – está imersa em pleno simbolismo e continua a viver dos mitos e das teologias arcaicas.
Esse resgate do aspecto mitológico e imaginativo como forma de mudar o mundo configurar-se como a espinha dorsal da série Promethea. Nesse sentido, embora Campbell não seja citado nominalmente na história em quadrinhos, há diversos indícios, proximidades, entre as ideias de Alan Moore as expostas no livro O herói de mil faces, similaridades que serão melhor exploradas nos capítulos seguintes.
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3 Promethea Promethea é uma série em quadrinhos, criada por Alan Moore, J. H. Williams III e Mick Gray e publicada pelo selo ABC (America's Best Comics), da editora WildStorm. A série foi pulicada de agosto de 1999 a abril de 2005, perfazendo 32 edições. A revista surgiu do interesse de Moore a respeito da magia, em especial após suas pesquisas para escrever From Hell. Ela apresenta um universo alternativo retrofuturista em que Nova York é defendida por heróis científicos e o gibi do Gorila Chorão é um fenômeno de vendas (a metalinguagem é um dos elementos básicos da série, já que mais de uma Promethea será uma personagem de quadrinhos). A história inicia em Alexandria, no ano 411 DC. Um grupo de fanáticos cristãos se aproxima para matar um mago. A história se passa pouco depois da morte da filósofa Hipátia por hordas igualmente fanáticas. Sabendo que irá morrer, o mago envia sua filha para o deserto. Depois de muito andar, a menina encontra uma figura composta de dois deuses, um grego, Hermes, e um egípcio, Toth. Hermes segura o Caduceu, o cetro com duas cobras que se tornará símbolo da heroína. Eles oferecem à menina a chance de sobreviver na Imatéria, onde ela viverá como uma história. Essa pequena sequência é repleta de simbologias. O nome em si da personagem carrega dois significados distintos. Promethea é uma versão feminina de Prometeu, o ser mitológico que roubou o fogo dos deuses e deu tal conhecimento para os seres humanos. A outra referência é a borboleta Callosamia promethea. Como um animal que se transforma de larva em borboleta, o nome Promethea aqui representa a renovação espiritual. Campbell (2007, p. 77) explica que na maioria dos mitos o herói tem uma ajuda sobrenatural, de um ser que faz a ponte entre o mundo dos mortais e o mundo dos deuses: “No mito clássico, esse guia é Hermes-Mercúrio; no mito egípcio, costuma ser Tot (...); e, na mitologia cristã, o Espírito Santo”. A primeira Promethea conta com a ajuda dos dois primeiros, unidos em um único ser. O caduceu é um símbolo muito antigo, que pode ser encontrado na tumba do rei Gudea de Lagash, 2600 anos AC. Na mitologia grega, o caduceu é o símbolo do deus Hermes:
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La serpiente posee un doble aspecto simbólico, benéfico y maléfico, cuyo antagonismo y equilibrio presenta el caduceo; tal equilibrio o polaridad es propio sobre todo de las corrientes cósmicas, figuradas más generalmente por la doble espiral. Mercurio, dice Saint-Martin, «mantiene el equilíbrio entre el agua y el fuego». Nicolás Flamel y los alquimistas llaman Mercurio y Azufre a los dos principios. La leyenda del caduceo se relaciona claramente con el caos primordial (dos serpientes se baten), con su polarización (separación de las serpientes por Hermes) y con el enrollamiento alrededor de la varita que realiza el equilibrio de las tendencias contrarias alrededor del eje del mundo, lo cual permite a veces afirmar que el caduceo es símbolo de paz. Hermes es el mensajero de los dioses y también el guia de los seres en sus cambios de estado, lo quecuadra, observa Guénon, con ambos sentidos ascendente y descendente de la corrientes figuradas por serp serpientes rampantes y simétricas. (CHEVALlER, 1986 p. 227)
Da mesma forma, Anubis, que na HQ aparece segurando um cetro com a ankh, símbolo da vida, é também considerado uma ponte entre o mundo dos homens e dos deuses, uma vez que na cultura egípcia era responsável pela mumificação. Assim, na HQ, Anubis e Hermes representam a ponte entre o mundo mortal e um outro mundo, de imaginação e mitos.
4 Os passos da heroína As mitologias são de fato os sonhos públicos que movem e modelam as sociedades; de modo inverso, os nossos sonhos são pequenos mitos dos deuses particulares, antideuses e forças protetoras que nos movem e modelam: revelações, medos, desejos, aspirações e valores reais que ordenam subliminarmente a vida da gente. (CAMPBELL apud COUSINEAU, 1984, p 186)
Embora a história inicie no Egito, nos primeiros anos da era cristã, sua trama se desenvolve no ano de 1999, em uma realidade alternativa em que existem carros voadores, Nova York é governada por um prefeito com múltiplas personalidades e o gibi do Gorila Chorão é um sucesso de vendas. Sophie Bangs é uma jovem estudante realizando uma pesquisa sobre Promethea e procura Bárbara Shelley, esposa de um quadrinista responsável pela última encarnação ficcional de Promethea. Ao ter a entrevista recusada, ela acaba sendo atacada por uma criatura das trevas, um Smee e é salva pela antiga Promethea, agora já gorda e fora de forma e que acaba sendo ferida no confronto: “Acho que não tá parecendo. Não consigo manter a forma, sabe? Era meu Steve quem tinha imaginação. Ele morreu em 91. Desde
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então, Promethea tem ficado cada vez mais como eu. Não consigo imaginá-la diferente disso” (MOORE; WILLIAMS III, 2008, p. 33) Escondidas e fugindo da criatura, Sophia precisa usar sua imaginação para se transformar em Promethea e a salvar as duas, embora duvide que seja capaz de fazê-lo. Esse primeiro momento da série representa aquilo que Joseph Campbell nomeou de Chamado à aventura e recusa do chamado. A crise desencadeada pelo aparecimento do perigo é, segundo Campbell, uma alvorada da iluminação religiosa, um início do “despertar do eu”, que igualmente desencadeia um processo de individuação: “Freud sugeriu que todos os momentos de ansiedade reproduzem os dolorosos sentimentos da primeira separação da mãe (...) Inversamente, todos os momentos de separação e de novo nascimento produzem ansiedade” (CAMPBELL, 2007, p. 61). Essa crise é desencadeada por um elemento sombra, um representante da camada profunda do incosciente, rejeitado pelo consciente. Não por acaso, o Smee vem da Imatéria, mundo de imaginação, magia e arquetípicos. “O arauto ou agente que anuncia a aventura, por conseguinte, costuma ser sombrio, repugnante e aterrorizador, considerado maléfico pelo mundo” (CAMPBELL, 2007, p. 62). A recusa representa a recusa de aceitar o renascimento e, portanto, renunciar àquilo que a pessoa considera de interesse próprio, às comodidades de sua vida. Aceito o chamado, o herói passa pelo primeiro limiar. No caso de Promethea esse momento-chave é representado pela sua primeira ida à Imatéria. Promethea e sua amiga Stacia são atacadas por dois demônios e, no processo, Stacia é arrastada pra outra realidade. Ao procurar Bárbara, Sophie é orientada a esquecer a magia física (sempre meio brutal e desnecessária) e se concentrar na magia verdadeira: a imaginação. Isso se relaciona às ideias de Moore a respeito da magia. Segundo ele, a magia, nas suas versões mais antigas, era chamada de “a arte”. Assim, a arte é, como a magia, uma forma de manipular símbolos para operar mudanças na consciência. Ao retratá-la dessa forma, Moore quebra com a imagem comum da magia nos quadrinhos: “I wanted to be able to do an occult comic that didn´t portray the occult as a dark, scary place,
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because that´s not my experience of it. I could see a way that it would be possible to do a new kind of ocult comic (...)” (MOORE apud MILLIDGE, p. 236) A ida para a “Misteriosa terra encantada” dá o tom psicodélico e arquétipo da série. Sophie vai parar em um mundo em que olhos surgem nos céus como astros, pombas nascem de pombas e peixes voam. Ali, ela encontra Chapeuzinho Vermelho em uma versão vinda diretamente de seu subconsciente, de um desenho feito após o filme Cães de aluguel, que fuma e usa uma arma que não funciona. “Você é exatamente do jeito que eu te imaginava!”, exclama Sophie. Ao saber que a protagonista está em busca de sua amiga, a Chapeuzinho lhe indica a floresta negra, numa nítida referência aos conceitos de Campbell: “Então é tipo uma jornada perigosa, né? Você quer a floresta negra. Bem ali. Estou indo para lá também.”. “Mas como sabe que é lá onde ela está perdida?” “Ah, qual é? Onde mais as crianças se perdem nas histórias? Quem já ouviu falar do ‘Mundo encantado do supermercado’? Ela tá na floresta negra, confie em mim”. (MOORE; WILLIAMS, 2008, p. 81)
Na floresta as duas se deparam com o lobo, um lobo arquétipo, de puro pavor infantil, sem distanciamento adulto. Promethea salva Stacia, que estava presa num vértice de auto-depressão com o Gorila Chorão, as duas voltam para o mundo concreto e Sophie passa a pesquisar sobre as Prometheas anteriores. Embora ao longo da série Moore dê a entender que existiram diversas outras Prometheas, ele destrincha apenas algumas, inclusive em texto introdutório em que simulacro se confunde com realidade (uma técnica já usada por Moore em Watchmen e 1963). Assim, o primeiro registro moderno da personagem seria o poema Um romance de fadas, de Charlton Sennet (1751-1803). Nesta obra, Promethea era uma serviçal de Titânia, de Sonhos de uma noite de verão: O que começa como um idílio com Titânia e seu séquito de fadas vagando por um recanto campestre do mundo natural rapidamente desvia para uma longa narrativa que detalha um intenso e (para a época) apaixonado romance entre a ninfa Promethea e “um jovem pastor mortal, com olhos como filhos da lua. (MOORE; WILLIAMS III, 2008, P. 4)
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Como consequência do poema, Sennet transforma sua criada em Promethea e se relaciona com ela, deixando-a grávida. Mas essa união de um humano com uma história é fatal para a moça, que morre no parto. Em seguida a heroína aparece como personagem secundária na tira Pequena Magie na misteriosa terra encantada no início do século XX. A partir da popularidade das revistas pulps surge a nova versão da personagem, com histórias produzidas por escritores fantasmas e capas chamativas de Grace Brannagh. A editora detentora da personagem é comprada por uma editora de quadrinhos e em 1946 a personagem ganha seu próprio gibi, escrito e desenhado pelo ex-professor de literatura clássica William Woolcott, que acaba sendo assassinado por um agente da FBI (descobre-se depois que Woolcott, através da força da imaginação, transformava-se em Promethea, tendo um caso com o tal agente). A encarnação seguinte, surgida na década de 1970 é a de Steven Shelley, cuja esposa Bárbara, Sophie conhece no início da série. Toda essa pesquisa configura uma espécie de preparação para a jornada da heroína. Isso inclui a descoberta de Jack Faust, personagem que incialmente aparece como vilão, mas logo se revela um mentor espiritual, iniciando Sophie nos mistérios da magia tântrica. “O chamado foi, na verdade, o primeiro anúncio do aparecimento desse sacerdote iniciatório”, afirma Campbell (2007, p. 77). Jack Faust mantém relação sexual com Sophie, transformada em Promethea, e lhe ensina os mistérios da união do cálice e o bastão (ou receptáculo e haste), os elementos masculino e feminino: “O herói, deus ou deusa, homem ou mulher, a figura de um mito ou o sonhador num sonho, descobre e assimila seu oposto (...) Então descobre que ele seu oposto são, não de espécies diferentes, mas de uma mesma carne” (CAMPBELL, P. 110). Todo esse conhecimento adquirido permite à personagem retornar à Imatéria, o ventre da baleia, o caminho das provas, onde ela encontra a Deusa, os Deuses, reconcilia-se com o pai (tanto da Promethea original quanto de Sophie Bangs) e, terminada sua jornada, retorna ao mundo, provocando o apocalipse. A metamorfose da personagem torna-se a metamorfose do mundo.
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Como a maioria dos heróis, Promethea encontra resistência, seja de agentes públicos, heróis ou sociedades místicas conservadoras. Mas a experiência adquirida no caminho das provas lhe dá sabedoria para provocar a transformação necessária. Campbell (p. 231) assim descreve essa mudança espiritual e psicológica: O indivíduo, por meio de prolongadas disciplinas espirituais, renuncia completamente aos vínculos com suas limitações e indiossicrasias, esperanças e temores pessoais, já não resiste à auto-aniquilação, que constitui o pré-requisito do renascimento na percepção da verdade, e assim fica pronto, por fim, para a grande sintonia.
Mas antes de realizar esse “apocalipse”, Sophie se recolhe à condição humana, vítima de perseguição do FBI. Quando até mesmo Tom Strong, outro herói, se volta contra ela, Sophie é obrigada a retornar sua vida como Promethea e a provocar o fim do mundo como o conhecemos. Campbell já havia previsto essa resistência da sociedade: O herói moderno, o indivíduo moderno que ousa atender ao chamado e procurar a morada desse espectro que temos de expiar por todo o nosso destino, não pode nem realmente deve esperar que a comunidade jogue fora seu despojo de orgulho, medo, avareza racional e santificado desentendimento (...) Não cabe à sociedade guiar e salvar o herói criador, mas precisamente o contrário. (CAMPBELL apud COUSINEAU, 1984, p 222)
No entanto, o fim do mundo que Promethea traz não é o apocalipse imaginado, é mais uma revelação, uma alteração de consciência que produz mudanças em cada pessoa e, ao mesmo tempo, munda o mundo. Nesse contexto, realidade e ficção se misturam na história em quadrinhos, a ponto de Promethea se ver nas páginas de um gibi, assim como o desenhista e o roteirista parecem ser vislumbrados pelos personagens. Em consonância com as ideias de Moore sobre magia, o fim do mundo fictício é o fim do mundo para os leitores e seus criadores, a mesma mudança de percepção se espalhando pelas páginas em policromia para nosso mundo concreto. A tomada de consciência dos personagens se reflete nas palavras de Campbell: Quando todas essas ideias protetoras a respeito da vida vêm abaixo, compreendemos o horror da situação e o horror somos nós. Está aí o êxtase da tragédia grega, aquilo que Aristóteles chamava de “catarse”. Catarse é um termo ritual, correspondente à eliminação da perspectiva do ego, do seu sistema, das estruturas racionais. Rompê-lo para que a vida se imponha. (CAMPBELL apud COUSINEAU, 1994, p. 97)
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5 Considerações finais Promethea é mais do que uma história em quadrinhos que utiliza elementos mitológicos em sua narrativa. Também não é uma história de fórmula, que usa os passos do herói, de Campbell como forma de produzir algo que fará sucesso. É, antes, uma reflexão complexa sobre os elementos da mitologia e da imaginação em nosso mundo contemporâneo e sobre os males da perda desses elementos. Sophie Bangs é o ser humano atual, perdido num mundo de racionalidade, redescobrindo o poder dos mitos e se redescobrindo. Ao usar a mitologia de forma visível em sua obra, Moore constrói uma de suas obras mais importantes de sua carreira, em especial com relação à reflexão sobre o ser humano no mundo contemporâneo. Embora a história se passe em um universo alternativo, os dilemas dos personagens são os dilemas do homem atual.
Referências CAMPBELL, Joseph. O herói das mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007.
COUSINEAU, Phil. A jornada do herói: vida e obra de Joseph Campbell. São Paulo: Saraiva, 1994.
DANTON, Gian. A jornada do herói. Digestivo Cultural. Disponível em: http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=4037&titulo=A_jornad a_do_heroi. Acesso em: 02 ago. 2014.
HOLLANDA, Carlos. O Reencantamento do mundo em quadrinhos uma análise de Promethea,
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MILLIDGE, Gary Spencer. Alan Moore storyteller. Nova York: Universe, 2011.
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MOORE, Alan; WILLIAMS III, J.H. Promethea: livro 1. Rio de Janeiro: Pixel, 2008.
PEDRO, Arlindenor. Joseph Campbell, que ajudou a ver além da razão. Outras palavras. Disponível em: http://outraspalavras.net/brasil/joseph-campbell-que-ajudoua-enxergar-alem-da-razao. Acesso em: 02 set. 2014.
THE
MINDSCAPE
of
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Moore.
Disponível
em:
https://www.youtube.com/watch?v=4Uh2jaFPM-E. Acesso em: 03 set. 2014.
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ANTES QUE O MUNDO ACABE CABE NA SALA DE AULA: MECANISMOS DE TRANSCRIAÇÃO FÍLMICA E FORMAÇÃO DE LEITOR Jaime dos Reis Sant’Anna (UEL)1 Introdução Esse estudo reflete preocupações com as práticas docentes de Língua Portuguesa no Ensino Básico, sobretudo no que tange à formação do leitor literário como parte essencial do trabalho do professor de língua materna. Refletindo as propostas presentes nos principais documentos norteadores do ensino de Língua Portuguesa, tais como PCNs (1998), OCEMs (2006) e, no caso do estado do Paraná, as Diretrizes Curriculares para o Ensino de Língua Portuguesa no Ensino Básico (2008), o artigo visa à discussão acerca da formação do leitor literário crítico, aquele que ao mesmo tempo em que usufrui os aspectos lúdicos do texto também se torna capaz de perceber as diversas vozes sociais e ideológicas que subjazem todo discurso e, em particular, nas sutilezas da linguagem artística. Para nos atermos a um objeto específico de estudo, elegemos a relação dialógica entre cinema e literatura – notadamente as produções voltadas para o público adolescente –, buscando compreender os mecanismos intertextuais que atuam na construção da transcriação de um romance classificado como infantojuvenil para o gênero roteiro de filme e o resultado final da película cinematográfica. O objetivo principal é proporcionar ao professor de Língua Portuguesa um instrumental teórico metodológico que lhe possibilite aprimorar seu trabalho de formação de leitor literário, ampliando-o para a leitura interartes. Por isso, sugerimos ao professor a apropriação dos postulados de Linda Hutcheon concernentes ao processo paródico comum a esse tipo de produção intertextual, apontando-os como ferramentas teóricas na busca da compreensão do trabalho de transcriação do romance juvenil para o cinema. A partir dos estudos 1
Professor de Metodologia e Prática de Ensino de Língua Portuguesa e Literaturas e de Literatura Infantojuvenil e Ensino na Universidade Estadual de Londrina. Coordenador do Projeto de Pesquisa “Ideologia e literatura juvenil brasileira contemporânea: contribuição para a formação do leitor crítico no Ensino Básico”. Autor de Literatura e ideologia (São Paulo: Novo Século, 2003) e O sagrado em José Saramago (São Paulo: Fonte, 2009). [email protected]
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voltados para a transcriação (ou adaptação) do texto literário para o teatro, e em especial o trabalho teórico de Claude Bouchè (1974), procuraremos observar a maneira como alguns mecanismos intertextuais, tais como a supressão, o acréscimo, a condensação, o deslocamento, a inversão e a translocução, também podem ser percebidos na migração dos elementos narrativos do texto literário para a linguagem do cinema, revelando motivadores ideológicos que norteiam as escolhas de certos mecanismos em detrimento de outros, e cujo resultado reflete a mundividência particular do cineasta. Por fim, e apoiado nas contribuições de Robert Stam (2006; 2003; 1981) acerca do diálogo intertextual travado entre literatura e cinema, pretendemos demonstrar as particularidades da linguagem cinematográfica quando da apropriação desses elementos narrativos nos processos de migração de uma linguagem para outra. Com vistas à aplicação dos princípios dialogais de intertextualidade entre as linguagens literária, teatral e cinematográfica, apontados por Hutcheon, Bouchè e Stam, abordaremos o romance Antes que o mundo acabe, de Marcelo Carneiro da Cunha, publicado em 2000, cotejando-o com o roteiro do filme, publicado em 2010, e com o filme homônimo, lançado nas telas também em 2010, ambos os trabalhos coordenados/dirigidos por Ana Luíza Azevedo. Os objetivos específicos, para além de tão somente desvendar os mecanismos intertextuais presentes neste tipo de “narrativa migrante”, visam à capacitação do alunado do Ensino Básico em direção ao “reconhecimento das vozes sociais e das ideologias presentes no discurso e que ajudam na construção de sentido de um texto e na compreensão das relações de poder a ele inerentes” (DCEs, 2008, p.57). Nesse sentido, o estudo pretende contribuir para a construção de um instrumental teórico que capacite o professor de língua materna do Ensino Básico no trabalho de formação de leitores críticos e, em especial, no diálogo interartes como o cinema e a literatura. Por isso, mais que a análise comparativa de Antes que o mundo acabe, em suas três expressões artísticas – romance, roteiro e filme –, o artigo se propõe a apresentar um percurso com o qual o professor de língua materna possa trabalhar outros textos. Para a fundamentação teórica acerca da literatura voltada para o público infantojuvenil, lançamos mão de Teresa Colomer (2003) e Zilberman (2003); e para a crítica sobre a literatura infantojuvenil brasileira contemporânea, dialogamos com Vera
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Teixeira Aguiar e Lidia Cadermatori. Vale registrar que a análise literária do romance Antes que o mundo acabe apoiou-se, sobretudo, no artigo de Maria Alice Faria, intitulado “O literário e o pedagógico no fio da navalha”, derradeiro da produção bibliográfica de uma acadêmica comprometida com a pesquisa da literatura infantojuvenil brasileira e com a formação do leitor literário, e à qual o presente texto presta uma singela homenagem. Literatura infantojuvenil e o cinema da retomada: o boom dos anos 1990 Desde a primeira década do século XX, a literatura e o cinema brasileiros têm uma relação estreitada. A começar pelas adaptações de obras de José de Alencar e de outros românticos ocorridas ao longo dos anos 10, até o final dos anos 80, também já foram para as telas os romances de Machado de Assis, Visconde de Taunay, Aluísio Azevedo, Mário de Andrade, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Diná Silveira de Queirós, Nelson Rodrigues, Clarice Lispector, José Louzeiro, João Ubaldo Ribeiro, dentre outros, em produções dirigidas por cineastas como Joaquim Pedro de Andrade, Eduardo Escorel, Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos, Suzana Amaral, Walter Lima Júnior, Leon Hirszman, Bruno Barreto, Arnaldo Jabor, Francisco Ramalho Júnior, Hector Babenco, Hermano Penna. Trata-se, em sua maioria, de clássicos da literatura que, migrando para a linguagem cinematográfica, tornaram-se clássicos do cinema. Assim como para Calvino (1997, p.10) “os clássicos da literatura são obras que exercem influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória”, também as transcriações cinematográficas mencionadas se inserem nas “dobras da memória” como novos clássicos e se impõem como inesquecíveis. O início dos anos 90 assiste à derrocada da produção cinematográfica brasileira; e os esforços para alavancar novos filmes criaram uma nova produção que ficou conhecida como Cinema da Retomada. Essa nova safra de cinema também dialogou com a literatura. Dos anos 90 até 2014, tiveram suas obras adaptadas para o cinema, tanto os autores canônicos já mencionados quanto novos autores. Dentre os novos, destacam-se Austregésilo Carrano Bueno, José Clemente Pozenato, Fernando Gabeira, Marçal Aquino, Rubem Fonseca, Raduan Nassar, Chico Buarque de Holanda, Fernando
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Bonassi, Patrícia Melo, Tony Belloto, Osman Lins, Garcia-Roza, Jô Soares, Paulo Lins, Dráuzio Varella, dentre tantos. No cinema hollywoodiano, buscar na literatura a fonte apropriada para encontrar as histórias que se pretende contar é muito comum. Por décadas seguidas, a Academia de Cinema vinha concedendo o prêmio de melhor roteiro para trabalhos que, em sua maioria, adaptaram para o cinema obras literárias consagradas. Nada mais natural para o cinema do que buscar a ficção onde ela já estava, antes de ele encontrar as suas próprias formas de contar histórias criadas por ele, ou para ele. O caso se tornou tão recorrente que a Academia decidiu, emblematicamente, criar nova categoria de premiação – melhor roteiro original – para desvincular a premiação do roteiro adaptado, frequentemente vencedor. No entanto, quando se trata de literatura infantojuvenil brasileira e a parceria com o cinema brasileiro – não obstante ambos viverem momentos de intensa produção e de efervescência mercadológica, depois de terem passado por dificuldades, especialmente esse último – a cena é deprimente. Segundo Pedro Carlos Rovai, em palestra proferida no Seminário Cinema Infanto-juvenil Brasileiro: Trajetória e Futuro, realizado em 2011, “menos de três por cento da produção [cinematográfica] anual brasileira é direcionada para o público infantojuvenil”. Desse pequeno percentual, pouquíssimos títulos da literatura infantojuvenil têm sido trabalhados pelo cinema brasileiro. Apesar da esterilidade desse segmento do cinema brasileiro, do conúbio entre a literatura infantojuvenil e o cinema rebentaram alguns rebentos, dos quais destaco aqueles cuja importância se deve tanto pela recepção junto ao público quanto pela influência sobre escritores e cineastas: nos anos 70, “Meu pé de laranja lima”, dirigido por Aurélio Teixeira e baseado no romance de José Mauro de Vasconcelos; nos anos 90, “O Menino Maluquinho”, do cartunista Ziraldo, e dirigido por Helvécio Raton. No século XXI, mesmo com o aquecimento do mercado devido à inserção de milhões de brasileiros no mundo do consumo, promovida pelos governos Lula e Dilma (2003-2014), ainda são poucos os títulos da literatura infantojuvenil que migraram para a produção cinematográfica. Da primeira década, destacamos “Xuxa em o Mistério de Feiurinha” (2009), dirigido por Tizuka Yamazaki e baseado na obra O Fantástico
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Mistério de Feiurinha, de Pedro Bandeira. Da produção finalizada em 2013-14, temos “O menino no espelho”, do romance homônimo de Fernando Sabino e dirigido por Guilherme Fiúza Zenha; “As Aventuras do Avião Vermelho”, do romance homônimo de Érico Veríssimo e dirigido por Frederico Pinto e José Maia; e “O Escaravelho do Diabo”, do romance homônimo de Lúcia Machado de Almeida e dirigido por Carlos Milani. Parece que, paulatinamente, a situação começa a mudar. Todavia, faz-se necessário considerar que autores premiados, como Lygia Bojunga, Ana Maria Machado, Marina Colasanti e Bartolomeu Campos Queirós, ainda não tiveram a migração de suas obras para o cinema brasileiro. Não obstante as diversas adaptações de suas obras para o teatro e de algumas filmagens para cinema e TV, realizadas na Suécia, Alemanha e Holanda, uma premiada autora como Lygia Bojunga não teve uma obra adaptada para o cinema brasileiro. Antes que o mundo acabe: romance, roteiro, filme Segundo Robert Stam (2006, p.14), de fato, “algumas adaptações falham em realizar o que mais apreciamos nos romances-fontes ou perdem alguns dos aspectos salientes de suas fontes”. No entanto, a discussão acerca da fidelidade do cinema ao texto original perde força junto à crítica, pois toma lugar a compreensão de tratar-se de linguagens diferentes e cujos resultados devem ser avaliados separadamente. No caso da migração do romance Antes que o mundo acabe para o cinema, o processo ocorreu com a participação – ou, pelo menos, com o acompanhamento crítico – do autor. Se os para-textos do romance trazem boas informações para o uso em sala de aula – especialmente as que se referem às técnicas da fotografia – também os paratextos do Roteiro do filme contribuem para a construção de um projeto de leitura de Antes que o mundo acabe. Marcelo Carneiro da Cunha, autor do romance, ao escrever a apresentação do Roteiro do filme “Antes que o mundo acabe” para a “Coleção Aplauso”, da Imprensa Oficial do estado de São Paulo, aponta que curiosamente, dos meus livros, seguramente, o menos fílmico é justamente Antes que o Mundo Acabe. Ele é construído com fotografias e cartas, em boa parte do tempo, para começar o problema. Ele é feito de diálogos entre pessoas que não se conhecem, em
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mundos distantes no tempo e no espaço. Ele foi criado por encomenda da minha editora, que queria um livro com fotos de culturas do mundo. Era para ser um álbum de fotos, acabou um romance recheado com uma estrutura narrativa com uma forte tensão emocional, para ligar pontos tão distintos e não conectáveis. (CUNHA, 2010, p.12)
As personagens principais do romance são Daniel (filho), Lucas, Mim, Daniel (pai), Mãe (sem nome, no romance; no filme, Elaine), Antônio, Dona Glória, Padre Euzébio e Professora. No filme, acrescenta-se Maria Clara (irmã) e suprime-se a Vó Mila. Antes que o mundo acabe é narrado por Daniel, um narrador autodiegético. Para Colomer (2003, p.372), o narrador autodiegético é “um recurso de utilização evidente para a novela juvenil, já que lhe permite distanciar-se da voz adulta de um narrador que dificultaria o tipo de proximidade identificadora buscado por estas obras”. No filme, as atribuições do narrador são transferidas para a menina Maria Clara. O enredo é simples e foi bem sintetizado por Benedito Antunes: É a história de Daniel, adolescente que vive com a mãe e o padrasto. Não conheceu o pai natural. Há um cruzamento da história de um amigo, suspeito de ter roubado equipamentos do laboratório do colégio, com o inicio da correspondência com o pai verdadeiro, que é fotógrafo e vive fora do Brasil. O aparecimento do pai tantos anos depois provoca o começo de uma crise familiar que vai sendo administrada pelo jovem com a ajuda de Antonio, o padrasto. A amizade com o pai vai-se consolidando por meio da troca de experiências e principalmente de fotografias entre eles. O pai participa de um projeto que pretende preservar a memória visual de diferentes povos antes que a padronização mundial acabe com as diferenças. (ANTUNES: 2006, p.18)
Segundo Faria (2008, p.230), diversos temas são abordados no romance: abandono de crianças; a injustiça praticada contra as classes menos favorecidas, como a de Lucas; a efetiva paternidade não exercida, como ocorre com Daniel; a crítica aos movimentos feministas e hippies, com os quais a Mãe está ou esteve envolvida; a condenação das guerras, e em especial, a do Vietnã; a condenação da prostituição infantil, do tráfico de drogas, da miséria mundial e seus causadores; a denúncia do neonazismo praticado pelo colega de escola Strossman; a denúncia à desigualdade social. Para a pesquisadora, o tema principal da obra são “as transformações por que passa um adolescente de classe média alta, em consequência de situações conflituosas que surgem em sua vida, equilibrada até então – e seu consequente amadurecimento”. O
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tema mais importante, entretanto – e que imprime originalidade ao romance – são as denúncias das mazelas da globalização e a defesa do multiculturalismo, a razão a existência do projeto fotográfico “Antes que o mundo acabe” com o qual está envolvido Daniel, o pai. Tantos temas abordados numa obra de pouco mais de 130 páginas poderiam afundar o romance de Cunha na viscosidade macilenta daquela literatura infantojuvenil que Zilberman (2003, p.175) e Aguiar (1999, p.96), dentre outros, chamaram de “pedagogizante/moralista”. Não obstante, como bem observa Faria (2008, p.253-254), o autor de Antes que o mundo acabe “anda no fio a navalha, quase sem se cortar, equilibrando pedagogia e literatura”. Ainda segundo Faria, tal feito se dá, sobretudo, por sua capacidade de “recriar a linguagem comum do adolescente, numa narrativa em primeira pessoa”: Assim, a narrativa de Daniel é o coloquial escrito literário, ou seja, um aproveitamento da sintaxe e do vocabulário usado normalmente nas conversas, mas longe da simples transcrição da fala real, com sua sintaxe rompida, seus hiatos, pausa, entonação, frases fragmentadas, anacolutos, etc., e os elementos gestuais. (FARIA, 2008, p.249)
Ana Luisa Azevedo (2010, p.15), por sua vez, na entrevista que acompanha a publicação do Roteiro, confessa que “dois elementos suficientemente desafiadores” a preocupavam quanto à migração do texto literário para o cinema: o primeiro – e segundo ela, o mais grave –, era reconhecer que o livro era marcantemente epistolar e exigia transformar as cartas em material audiovisual; o segundo, consistia em explorar o potencial cinematográfico do rito de passagem representado pelos múltiplos olhares do protagonista sobre as fotografias enviadas por seu pai biológico e as fotografias tiradas por ele mesmo. Para Azevedo, foi importante decidir sobre os mecanismos intertextuais de migração do romance para o filme: a supressão da personagem Vó Mila (diminutivo de Milosevic, o ditador-genocida, do conflito Sérvio-Bósnio, nos anos 90); e o acréscimo da personagem Maria Clara, a meia-irmã de Daniel (inexistente no romance), filha de António. Segundo diretora-roteirista (2010, p.20), por meio da personagem infantil pode-se aproximar o filme do público-alvo adolescente com o qual se pretendia dialogar, sobretudo no que se refere à relação entre irmãos que costuma se dar em
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termos recorrentemente conflituosos: “ao mesmo tempo de um amor quase incondicional e também de um ódio incondicional”. Com o acrescentamento da personagem Maria Clara, o filme passa a ser narrado em off, imprimindo uma perspectiva crítica ao pathos discursivo do protagonista, que no romance é o narrador com visão unilateral dos fatos. O principal efeito é retirar do narrador-protagonista o aspecto avaliador que ele exerce de forma tão marcante no romance e transferir para outro narrador em primeira pessoa, com menos idade que todos e que, paradoxalmente, talvez por estar fora dos conflitos do protagonista, detenha o olhar mais crítico. Giba Assis Brasil (2010, p.16), coautor do Roteiro, destaca que seu interesse na produção recaiu especialmente sobre a possibilidade de construir um personagem como o garoto Daniel, que estivesse vivendo um “momento de passagem e de descoberta da vida e do mundo, a relação dele com os amigos, com a namorada e com o pai que ele nunca conheceu”. A figura do pai – distante, porém útil, ainda que tardiamente, no processo de emancipação do menino – e o tema da globalização cultural, eram os principais elementos a serem trabalhados: Esse pai fotógrafo, ligado à diversidade do mundo e das pessoas, à maneira como vivem, se vestem, lidam com a música e com o dia a dia, e o seu relacionamento familiar também nos atraiu muito. E o livro insiste muito nisso. Estamos nos tornando cada vez mais iguais. A diversidade está virando coisa de almanaque, deixando de ser real, concreta. (BRASIL, 2010, p.16)
Ainda segundo Assis Brasil – e esse ponto é profícuo para o trabalho em sala de aula –, foi a partir daí que começamos a pensar em como poderia ser o Antes que o Mundo Acabe em outros sentidos, para além daqueles explicitados na obra: O mundo acaba quando tu rompes um relacionamento e a tua namorada não quer mais saber de ti, quando tu fazes tudo certo e tem alguém te acusando de ladrão, quando tu tens toda uma estrutura familiar e descobres um pai que não sabias que existia, quando passas uma vida inteira dentro de um colégio e aí termina aquele período e tens que encarar o mundo lá fora, sair da tua cidade sem saber o que vais encontrar. Mundos que estão acabando. (BRASIL, 2010, p.17)
De acordo com Jorge Furtado (2010, p.17), o terceiro roteirista, as questões de natureza ética e aquelas de cunho existencial, presentes no romance de Cunha, são as
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que o moveram na construção do Roteiro do filme, pois elas revelam, em síntese, os conflitos com os quais o público adolescente se identificará. Para ele, a construção do Roteiro deve alcançar esses conflitos que permeiam o cotidiano adolescente: Há diferenças entre roubar uma bala do supermercado, um computador da escola, dinheiro de uma bolsa ou ações da bolsa? Se o seu amigo não diz a verdade, ou mente, ou comete um crime, pode continuar sendo seu amigo? Se a garota que você ama não lhe ama, a vida continua? Se o seu pai não está bem certo se foi, é ou será bom ser seu pai, você ainda assim pode amá-lo? Acho que uma boa história deve fazer perguntas, e Antes que o Mundo Acabe é uma boa história, que começou no livro do Marcelo e passou pelas mãos dos roteiristas a caminho do filme. (FURTADO, 2010, p.17),
Para Paulo Halm (2010, p.19), o quarto co-roteirista, o trabalho consistiu em adensar (condensar, na nomenclatura proposta por Bouchè) o protagonista Daniel até torná-lo “quase um pequeno Hamlet, cheio de angústias e problematizado”. Mas para que ele não parecesse um “monstrinho”, uma caricatura enlouquecedora de adolescente insuportável, a personagem ganhou novos contornos, a fim de construí-lo como “um ser em transformação e que não consegue entender direito o que está acontecendo”. Por isso, decidiram mostrar também o lado lúdico, alegre, sensual e libertador desse momento único e, ao mesmo tempo, universal de nossas vidas. Seguimos trabalhando, suavizando algumas coisas, aprimorando outras, humanizando o personagem, e também os seus amigos, de modo que fosse legal e chato, carinhoso e ríspido, corajoso e egoísta, esperto e babaca, um garoto capaz das piores mesquinharias e também um herói capaz de se sacrificar pelos demais. (HALM, 2010, p.20),
Até aqui, podemos elencar questões pertinentes ao universo adolescente e cuja discussão a partir da leitura do tríplice Antes que o mundo acabe coloca o alunado numa zona de desconforto que, ao mesmo tempo em que alarga seu horizonte de conhecimentos e amplia sua mundividência, possibilita-lhe múltiplas perspectivas. Do ponto de vista estético, existem decisões de caráter intertextual (linguagem epistolar, inércia da fotografia) presentes no romance e que dificultam a construção do roteiro; do ponto de vista temático, os efeitos devastadores da globalização sobre as culturas de povos economicamente inferiores; do ponto de vista das relações interpessoais, a metáfora do “antes que o mundo acabe” com aquilo que dá sentido à
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vida adolescente (pais, amigos e colegas, namorada) e o inadiável enfrentamento de cotidianos conflitos familiares. Tais conflitos são intensificados pela descoberta de um pai que se imaginava inexistente (ausente ou inútil?) e cujo epifânico aparecimento implica em amadurecimento do garoto; o conflituoso namoro com Mim e o sempre unilateral pé-na-bunda; e as acusações de furto que atribuem na escola a seu melhor amigo o qualificativo de ladrão o fazem desacreditar na justiça. Pergunta, então, o adolescente: o que fazer, então, antes que o mundo acabe? Antes que o artigo acabe: considerações finais Todas as perspectivas alistadas, e tantas outras que os limites desse artigo impedem a abordagem, revelam a natureza ideológica do diálogo intertextual. E cabe ao professor – antes que o mundo (ou a aula?) acabe – mediar as discussões em torno desse material, usando ferramentas das diversas linguagens do romance, do roteiro e do filme. Para finalizar, aponto algumas atividades que podem ser trabalhadas em consonância com as três expressões de Antes que o mundo acabe, e que me parecem pertinentes no que tange à formação do leitor literário. Eis algumas: estudo dos mecanismos de intertextualidades no romance, roteiro e filme (supressão, acréscimo, condensação, deslocamento, inversão e translocução); produção da sinopse do romance e da sinopse do filme; produção de crítica do filme para jornal impresso ou blogue especializado; pastiches a partir do romance ou do filme; produção de ensaio acadêmico sobre as obras; produção de anúncios publicitários do filme, do romance e do roteiro, ou de materiais presentes nas obras; produção de clipe sobre as obras; debate sobre temas pertinentes, tais como a globalização e a (re)existência das culturas locais; e a dramatização de cenas de Antes que o mundo acabe.
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“TRÊS CAPÍTULOS INÉDITOS DO GÊNESIS”: A APROPRIAÇÃO PARÓDICA DE TEXTOS BÍBLICOS NA OBRA DE MACHADO DE ASSIS
Jaison Luís Crestani (USP/FAPESP) Em setembro de 1877, Machado de Assis finalizaria a elaboração de seu quarto romance, Iaiá Garcia, composto para o fim de participar do lançamento de um novo órgão editorial: o jornal O Cruzeiro, que passaria a circular em 1º. de janeiro de 1878. Concebida sob um acordo prévio com os gestores do periódico, a narrativa marcaria presença, desde o número de abertura, no rodapé destinado ao folhetim. Essa publicação parcelada se estenderia até 2 de março de 1878, quando o último fragmento traria estampada a data final da escrita da obra: “setembro de 1877”. Além da divulgação do seu quarto romance, Machado de Assis publicou em O Cruzeiro o conjunto de 14 crônicas da série “Notas semanais”, as apreciações críticas das obras de Eça de Queirós sob o título de “Literatura realista” e uma série de produções ficcionais de difícil classificação em termos de gênero literário, tais como “O bote de rapé”, “A sonâmbula”, “Um cão de lata ao rabo”, “Filosofia de um par de botas”, “Antes da missa”, “Elogio da vaidade”, “O califa de Platina”, “Na arca” e “O caso Ferrari”. Embora essa colaboração no periódico apresente uma constituição bastante variada, percebe-se uma expressiva unidade estilística, firmada pela identidade autoral do pseudônimo Eleazar, com o qual o escritor assinou todos os textos, e corroborada pela conformidade assumida para com os propósitos humorísticos previstos para o espaço do folhetim na proposta programática do jornal: “Regularmente daremos aos domingos uma crônica, e durante a semana um ou mais folhetins humorísticos, conforme a oportunidade e o espaço” (O Cruzeiro, 1º. jan. 1878, p.1, grifo nosso). Situada num período crucial do processo de transformação da escrita machadiana, a importância irrefutável da atividade criativa que resultou nessa coleção heterogênea de textos veiculada em O Cruzeiro pode ser aferida por um simples
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contraponto entre o convencionalismo que ainda domina a sua primeira composição – os folhetins do romance Iaiá Garcia – e a desenvoltura experimentalista das últimas manifestações inscritas no periódico, especialmente as crônicas de “Notas semanais” e narrativas como “Na arca”, “Um cão de lata ao rabo” e “Elogio da vaidade”. A atividade criativa desenvolvida em parceria com O Cruzeiro resultaria em uma contribuição singularmente significativa para a gênese do conjunto de contos reunido na coletânea mais prestigiada pela crítica machadiana, Papéis avulsos (1882). As poucas palavras que Machado de Assis proferiu a respeito do volume, em carta a Joaquim Nabuco, datada de 14 de abril de 1883, fornecem informações fundamentais para se compreender e situar a concepção inicial da composição dessa coleção: “Não é propriamente uma reunião de escritos esparsos, porque tudo o que ali está (exceto justamente a “Chinela turca”) foi escrito com o fim especial de fazer parte de um livro” (ASSIS, 2008, v. 3, p. 1358). Cumpre rememorar que a publicação de Papéis avulsos congrega em sua constituição um período de transição da carreira do autor, tanto no que diz respeito à mudança de vínculos jornalísticos, quanto à complexa passagem a um novo estilo de criação literária, que corresponderia à maturidade artística de Machado de Assis. Nesse volume, foram reunidos textos de diferentes épocas e contextos; o mais antigo deles retrocede ao ano de 1875: “A chinela turca” (Manassés. A Época, 14 nov. 1875); na sequência, está o conto “Uma visita de Alcibíades” (Victor de Paula. Jornal das Famílias, out. 1876); a seguir, “Na arca” (Eleazar. O Cruzeiro, 14 maio 1878); por fim, são acrescentados dois contos da revista A Estação: “O alienista” (1881) e “D. Benedita” (1882); as sete narrativas restantes tiveram sua publicação original na Gazeta de Notícias, uma delas em 1881 e as outras seis no ano de 1882. Se o conto “A chinela turca” não foi escrito com o fim de fazer parte do livro, conforme declarou Machado na carta a Nabuco, a narrativa subsequente, “Uma visita de Alcibíades”, poderia corresponder ao marco inicial da gênese da coleção, caso não tivesse sido completamente reformulada para a sua inclusão no volume, como o autor indicou em uma das notas que acompanha a publicação de 1882: “Este escrito teve um primeiro texto, que reformei totalmente mais tarde, não aproveitando mais do que a ideia. O primeiro foi dado com um pseudônimo e passou despercebido” (ASSIS, 1882,
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p. 300). Desse modo, o conto “Na arca”, escrito e publicado na sequência, assume uma importância decisiva, uma vez que sofreu apenas a supressão do trecho introdutório em que o autor-editor explica como o manuscrito contendo três capítulos inéditos do Gênesis chegou-lhe às mãos. Nesse preâmbulo suprimido, indica-se também a posição que esses fragmentos deveriam ocupar no texto bíblico e alude aos esforços que lhe custaram a tradução e a modernização desses escritos para viabilizar a sua publicação. Assim, de acordo com John Gledson e Lúcia Granja, isso significa que “Na arca” constitui, portanto, “o primeiro material extenso em prosa publicado a ser julgado pelo seu autor como merecedor da inclusão em um dos volumes da sua maturidade, e reconhecido por ser representativo do seu espírito” (GLEDSON; GRANJA, 2008, p. 19, grifo dos autores). Com a designação de “Três capítulos inéditos do Gênesis”, a narrativa apresenta-se como complementação inédita de uma obra preexistente e encena uma fantasia mitológica elaborada em termos ironicamente sérios, que empresta a linguagem e a fórmula textual da estruturação bíblica em versículos. No episódio representado, dois filhos de Noé, Jafé e Sem, antes mesmo de descer da arca, lutam violentamente por causa dos limites das terras que ainda não possuíam. Sob uma perspectiva paródica, própria da tradição menipeia, o texto machadiano promove uma reinvenção mitológica, de conotação irônica, sobre as origens da ganância humana, que remonta às fontes bíblicas dos conflitos desencadeados pelo instinto de posse e por questões de fronteiras, e preanuncia, por meio da inspiração profética de Noé, as guerras futuras que viriam a incidir sobre a Turquia e a Rússia.1 O subtítulo da narrativa – três capítulos inéditos do Gênesis – dá abertura para se entender o texto machadiano como precursor da “técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas”, representada por Jorge Luis Borges no conto “Pierre Menard, autor del Quijote”: Menard (talvez sem querê-lo) enriqueceu, mediante uma técnica nova, a arte retardada e rudimentar da leitura: a técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas. Essa técnica de aplicação 1
A guerra russo-turca, originada pelo desejo da Rússia de obter acesso ao mar Mediterrâneo, ocorreu entre os anos de 1877 e 1878, e recebeu uma ampla cobertura do jornal O Cruzeiro, onde o conto foi originalmente publicado.
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infinita não leva a percorrer a Odisseia como se fora posterior à Eneida e o livro Le jardin du Centaure de Mme. Henri Bachelier como se fora de Mme. Henri Bachelier. Essa técnica povoa de aventura os mais plácidos livros. Atribuir a Louis Ferdinand Céline ou a James Joyce a Imitação de Cristo não é suficiente renovação dessas tênues advertências espirituais? (BORGES, 1976, p. 38).
Assim como Menard, que se empenhou na escrita dos “capítulos nono e trigésimo oitavo da primeira parte do Dom Quixote e de um fragmento do capítulo vinte e dois”, o narrador-autor machadiano apresenta três novos capítulos a serem acrescentados ao corpus bíblico. A diferença essencial está no fato de que a personagem borgiana intenta produzir, sem copiar ou reproduzir mecanicamente, “páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes”, enquanto a narrativa machadiana vislumbra uma contribuição inédita e adicional à obra imitada. Os propósitos das duas operações deixam entrever, no entanto, uma expressiva coincidência: a aplicação da técnica do anacronismo deliberado e da atribuição errônea com o intuito de promover a renovação artística e a atualização dos modelos evocados. Observa-se, portanto, que o método criativo utilizado por Machado de Assis considera a leitura e a escrita como atividades congêneres, duas faces de uma mesma moeda: o autor é, acima de tudo, um leitor crítico da tradição; a leitura afirma-se como princípio de composição, que se empenha na coleta dos elementos preexistentes para uma escrita-colagem inovadora; escrever é inegavelmente uma forma de ler ou reler, sobrepor um texto novo a um texto antigo, dotar uma estrutura antiga de um novo efeito de sentido. Como leitor criativo da tradição literária, Machado compreende o texto como um “palimpsesto”, em que várias escrituras se comunicam e interagem mutuamente. Nessa perspectiva, a diferença essencial entre as diversas manifestações literárias é estabelecida fundamentalmente pela proposição de novas maneiras de se ler a biblioteca universal, conforme apontou Borges: “una literatura difiere de otra, ulterior o anterior, menos por el texto que por la manera de ser leída; si pudiéramos leer cualquier página actual como la leerán en el año dos mil, sabríamos cómo será la literatura en el año dos mil” (BORGES, 1953, p. 218). Sob uma perspectiva teórica similar, Afonso Romano de Sant’Anna, em Paródia, paráfrase & cia (1985, p. 31), afirma que “o que o texto parodístico faz é a reapresentação daquilo que havia sido recalcado. Uma nova e diferente forma de ler o
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convencional. É um processo de libertação do discurso. É uma tomada de consciência crítica”. Desse modo, a paródia levada a efeito no conto machadiano, não só assimila, subverte e transforma a fonte bíblica, como prolonga o seu alcance, acrescentando-lhe uma nova possibilidade de leitura. Num primeiro sentido, pode-se dizer que o conto machadiano executa uma apropriação profana do texto bíblico, uma vez que indica a lacuna do corpus e a possibilidade de uma complementação extemporânea. A narrativa se apresenta como adendo à lenda bíblica do dilúvio, narrada nos capítulos 6, 7, 8 do livro de Gênesis. No texto bíblico, Noé, e seus filhos, Sem, Cam e Jafé, são totalmente submissos à vontade divina, sem sequer possuírem voz própria. Estando a humanidade corrompida pelos desejos carnais, Deus decidiu punir os desobedientes e corruptos com a morte: “exterminarei da face da terra o homem que criei, e com ele os animais, os répteis e até as aves do céu, pois estou arrependido de tê-los feito. Mas Noé encontrou graça aos olhos do Senhor” (Gn. 6, 7-8). Apenas a família de Noé seria salva, graças à sua obediência. Deus o exorta a construir uma arca e ordena-lhe que nela introduza, além de sua família, um casal de cada espécie de animais, répteis e aves. Durante quarenta dias e quarenta noites, a arca de Noé permaneceria sobre as águas do dilúvio, até que “no décimo sétimo dia do sétimo mês a Arca parou sobre as montanhas do Ararat” (Gn. 8, 4). O desfecho lacônico da narrativa bíblica é prolongado pelo texto machadiano, que tematiza os últimos dias do dilúvio e dá voz aos personagens dessa lenda antiga. O texto dá abertura não só para o diálogo, como concede a Noé a função de narrador. Além do papel de sujeito da enunciação discursiva, atribui-se a Noé uma autoridade comparável ao poder divino. Portanto, de acordo com Elálio Vilmar Weschenfelder, em A paródia nos contos de Machado de Assis (2000, p. 21), “se o texto bíblico é taxativamente coordenado por um narrador que permite somente a voz de Deus, mandando e desmandando sobre as criaturas, o texto machadiano vem estabelecer uma tensão que opera a libertação das vozes recalcadas dos personagens bíblicos”. Essa tensão permitirá a amplificação do texto bíblico, entendida como “transformação do original por desenvolvimento de suas virtualidades semânticas” (JENNY, 1979, p. 39).
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Nessa apropriação paródica da narrativa do dilúvio, outros eventos bíblicos são integrados ao processo de tessitura intertextual. Na dissolução da luta corporal travada entre os irmãos, Noé profere uma maldição à semelhança da condenação de Caim, incorporando, simultaneamente, a dinâmica do perdão, proposta por Jesus no Novo Testamento, com uma ampliação de seu sentido original: “Maldito seja o que me não obedecer. Ele será maldito, não sete vezes, não setenta vezes sete, mas setecentas vezes setenta”.
Além disso, evidencia-se o nítido propósito de estabelecer uma combinação despropositada entre a solenidade da linguagem bíblica e o rebaixamento do tema, estampado na baixeza dos sentimentos humanos manifestados pelas personagens. A reiteração da frase que encerra todos os capítulos – “A arca continuava a boiar sobre as águas do abismo” – atua no sentido de salientar a dimensão da ganância humana, que se mostra extemporânea e intempestiva. O rebaixamento da condição humana é levado a efeito também por meio do contraponto com a relação pacífica do lobo e do cordeiro: “Enquanto o lobo e o cordeiro, que durante os dias do dilúvio, tinham vivido na mais doce concórdia, ouvindo o rumor das vozes, vieram espreitar a briga dos dois irmãos, e começaram a vigiarse um ao outro”. Nessa comparação, tem-se a impressão de que a rivalidade humana é concebida como precursora da relação predatória entre as espécies.
O resultado substancial da experiência literária fecundada nessa narrativa consistiu no aprendizado e na opção decisiva pela prática da paródia como forma de criação artística e de renovação estética: “Cada palavra em ‘Na arca’ é paródia, escrita em um estilo que imita outro e zomba dele; nesse caso, o estilo da Bíblia” (Idem, p. 19, grifo dos autores). Esse investimento no exercício da paródia constituiu, provavelmente, um recurso criativo eficaz para contornar um dilema crucial que se depreende das preocupações do autor nesse estágio decisivo de sua carreira intelectual: a conciliação entre o cultivo da tradição literária, que ele tanto prezava, e a exigência de inovação e originalidade requerida por todo trabalho de criação que pretende firmar-se como obra desafiadora no conjunto das manifestações artísticas. Para além das enfermidades fisiológicas, – referidas pela crítica machadiana anterior a 1970 como fenômeno desencadeador da mudança de orientação literária do escritor, – a crise vivenciada por Machado de Assis no final da década de 1870 apresentaria também uma contraparte estritamente literária, decorrente de um impasse
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teórico que, na apreciação de Paulo Franchetti (2007, p. 191), poderia ser sintetizado na seguinte questão: “como abandonar a linha romântica desenhada de Ressurreição (1872) até Iaiá Garcia sem adotar a forma e o estilo do romance realista?”. Disseminado em toda a produção machadiana divulgada em O Cruzeiro, esse entrave pode ser apreendido nas controvérsias levantadas em torno das tendências realistas do romance queirosiano,2 nas suas severas reprovações à ingênua inclinação da nova geração a instaurar uma ruptura radical com a tradição literária e a adotar acriticamente a torrente de ideias novas importadas da Europa,3 na recorrência do repertório semântico relacionado à questão da originalidade e no seu persistente investimento na experimentação de encenações genéricas e procedimentos formais inovadores no âmbito da literatura brasileira de seu tempo. Portanto, é no contexto de produção de O Cruzeiro que se processam a experimentação, o aprendizado e o domínio da habilidade humorística, do exercício da técnica da paródia e da assimilação de soluções genéricas e formas literárias apropriadas à representação da conjuntura estrutural da realidade brasileira nesse período histórico. Consolidados pelo processo criativo das Memórias póstumas de Brás Cubas, dos textos de Papéis avulsos e das obras posteriores, o humor, a paródia, a mistura de gêneros e a incorporação da sátira e da ironia ao procedimento discursivo teriam uma participação decisiva no delineamento da transformação da escrita machadiana e na definição dos aspectos que propiciaram a Machado de Assis uma posição de destaque no contexto da literatura brasileira. Esses procedimentos literários estariam estreitamente associados à tradição luciânica ou sátira menipeia, que, conforme o esboço conceitual traçado por Ivan
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Para além dos ensaios críticos, essa aversão ao Realismo é reafirmada também nas “Notas semanais”, como se observa na crônica de 7 de julho de 1878, em que o cronista comenta o insucesso da adaptação teatral de O primo Basílio, promovida por Cardoso de Menezes: “Se o mau êxito cênico do Primo Basílio nada prova contra o livro e o autor do drama, é positivo também que nada prova contra a escola realista e seus sectários. Não há motivo para tristezas nem desapontamentos; a obra original fica isenta do efeito teatral; e os realistas podem continuar na doce convicção de que a última palavra da estética é suprimi-la. Outra convicção, igualmente doce, é que todo o movimento literário do mundo está contido nos nossos livros; daí resulta a forte persuasão em que se acham de que o realismo triunfa no universo inteiro; e que toda a gente jura por Zola e Baudelaire” (O Cruzeiro, 7 jul. 1878, p. 1). 3 Antecipando as considerações do ensaio crítico “A nova geração” (1879), as crônicas de “Notas semanais” censuram energicamente os descaminhos da juventude intelectual, “mais cobiçosa de devassar do que paciente em discernir” (O Cruzeiro, 9 jun. 1878, p. 1).
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Teixeira (2005, p. xxvii-xxviii), pressupõe o abandono do equilíbrio previsto pelos gêneros puros da tradição clássica, a combinação extravagante de elementos contrários, o humor disparatado e a paródia ou imitação burlesca das formas consagradas da cultura. Para o crítico, os reflexos do investimento machadiano na apropriação dessa linhagem literária constituem “a diretriz construtiva de Memórias póstumas de Brás Cubas e Papéis avulsos – verdadeiros programas de uma incrível investigação alegórico-fantástica dos modos de comunicação social do Segundo Reinado brasileiro” (Idem, p. xxix). Referências bibliográficas ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Tipografia e litografia a vapor. Encadernação e livraria Lombaerts & C., 1882. ______. Iaiá Garcia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975 (Edições críticas de obras de Machado de Assis). ______. Obra completa. 4.ed. Rio de Janeiro: Aguilar, 1979, 3 vols. ______. Obra completa em quatro volumes. Rio de Janeiro: Aguilar, 2008, 4 vols. BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1995. BORGES, Jorge Luis. Historia de la eternidade. Buenos Aires: Emecé, 1953. ______. Pierre Menard, autor do Quixote. In: ______. Ficções. 2.ed. Tradução de Carlos Nejar. Porto Alegre: Globo, 1976. FRANCHETTI, Paulo. Estudos de literatura brasileira e portuguesa. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007. GLEDSON, John; GRANJA, Lúcia. Introdução. In: ASSIS, Machado de. Notas semanais. Campinas-SP: Ed. UNICAMP, 2008.
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DISCURSO ARTÍSTICO DO CORPO FEMININO EM OBRAS DA IDADE MÉDIA Janaina de Andrade (UEM) Renata Marcelle Lara (Orientadora – UEM) Resumo Este texto apresenta o percurso e os resultados centrais de uma pesquisa de iniciação científica1 cujo objetivo foi analisar as representações discursivas sobre a mulher em obras artísticas (pintura de afresco, têmpera e gravura) do corpo na Idade Média e os efeitos advindos desse funcionamento. Pelo referencial da Análise de Discurso pecheutiana foram visibilizadas regularidades discursivas que apontavam para a presença de discursos instituídos na e pela igreja católica, tidos como legítimos, e discursos ligados ao sujeito pagão, institucionalmente negados, funcionando por um jogo de extremos na representação e significação do corpo feminino. Introdução O interesse pelo objeto discursivo surge das possibilidades que a Análise de Discurso francesa pecheutiana oferece às Artes Visuais em se compreender o discurso artístico pela observação do seu funcionamento, na produção de determinados efeitos de sentido. Tendo como objetivo a análise de representações discursivas sobre a mulher em obras artísticas (pintura e gravura) do corpo na Idade Média, assim como os efeitos advindos desse funcionamento, que as três obras artísticas selecionadas para análise são tomadas, em nossa investigação, como geradoras desses efeitos, considerando as condições de produção do discurso artístico no período medieval e os discursos instituídos que se põem em funcionamento nas obras e por meio delas. Para tanto, 1
O projeto é intitulado “Representações discursivas sobre a mulher em pinturas artísticas do corpo na Idade Média”, e foi desenvolvido vinculado ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica, na Universidade Estadual de Maringá, de 1 de agosto de 2013 a 31 de julho de 2014.
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partimos da pergunta: como representações discursivas da mulher na Idade Média significam em obras artísticas do corpo nesse período? Ao buscarmos compreender as possíveis significações do corpo feminino por meio das obras no período medieval, trabalhamos, além de Pêcheux (1997a, 1997b), com pesquisadoras dessa vertente teórica que investigam objetos analíticos de relevância à nossa pesquisa. Ao reconhecer, no processo de análise, os discursos instituídos nas e pelas obras, utilizamos como referência teórica Eni Orlandi (1996), que discorre sobre o discurso religioso, baseada em Althusser, sendo este autor ALTHUSESSER, 1980) também base para nossa investigação. Para compreensão do discurso do corpo e sobre o corpo, tomamos como referência estudos da pesquisadora Maria Cristina Ferreira (2013). Por fim, para conhecer como esses discursos funcionam nas obras e pelas obras analisadas, recorremos a Neckel (2007), que investiga o discurso artístico. A relação teórico-analítica permitiu observar que o discurso artístico colocava outros discursos em funcionamento, por meio de extremos que geravam, ao mesmo tempo, abertura e interdição dos sentidos, permitindo a compreensão das relações discursivas presentes nas obras, no corpo feminino e na mulher medieval. Materiais e métodos Como material de análise, foram pré-selecionadas, ainda no projeto, obras do período histórico medieval, mais especificamente o que vislumbrávamos como sendo pinturas representativas do corpo feminino e, assim, da mulher nesse período. Durante o desenvolvimento da pesquisa, encontramos divergências nas técnicas de composição das obras selecionadas. Vimos que elas não se resumiam em pinturas e sim em têmpera, afresco e gravura. Por esse motivo, passamos a adotar o termo obras ao invés de pinturas, para abranger as técnicas das obras utilizadas, tendo em vista suas condições de produção. Decidimos manter as três obras de técnicas distintas, pois já dialogavam com a proposta temática que se desenvolvia. As obras selecionadas para análise foram: Christ in Limbo – Friedrich Pacher (têmpera), The Damned – Signorelli (afresco) e por fim The Four Witches – Dürer (gravura).
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O método empregado, em diálogo constitutivo com a teoria já explicitada, foi a Análise de Discurso, na abordagem de Michel Pêcheux, pondo em relação estrutura e acontecimento, no batimento entre descrição e interpretação. O percurso analítico partiu de um trabalho com a superfície linguística, identificando as marcas que apontaram regularidades discursivas, e assim, para as formações discursivas e ideológicas em funcionamento. Em nosso percurso, observamos as relações entre a composição das obras tomadas para análise e as condições de produção artísticas do período medieval e dos artistas no/do período medieval. Isso foi possível pelo cruzamento discursivo dos dados coletados no percurso da pesquisa bibliográfica com os dados presentes nas obras. Chegamos assim à identificação das regularidades discursivas entre as obras, quando observamos discursos outros funcionando no e pelo discurso artístico. Resultados e discussão Baseando-nos nas condições de produção encontradas nas obras, notamos que no período medieval existiam discursos institucionais legitimados na época e pela época medieval, ligados à Igreja Católica, e discursos não reconhecidos como legítimos, ligados ao sujeito pagão, que funcionavam, pela e na negação/interdição, nesses discursos instituídos presentes no discurso artístico. Os discursos em funcionamento foram observados a partir de regularidades presentes nas obras, ao considerarmos as suas condições de produção no processo de análise. Vimos funcionar a todo o momento um jogo de extremos (bem X mal, sagrado X profano, Deus X diabo, entre outros) nesses discursos que falhavam ao advir no discurso artístico, que se constitui polissêmico. Pela análise discursiva que se põe em relação constitutiva com a teoria, observamos que pelas representações de extremos e de contradição de sentidos, a figura do corpo feminino foi se formando na sociedade medieval segundo os padrões religiosos baseados na fé cristã e nas crenças pagãs. No discurso artístico, o corpo feminino é constitutivamente sacralizado e profanado, resultante de processos de
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interpelação ideológica que ora associam esse corpo a dogmas cristãos católicos, ora a práticas religiosas pagãs. Conclusões O trajeto teórico-analítico aponta que o discurso artístico significa a mulher, por meio da representação de seu corpo, na e pela época medieval, em uma disputa de sentidos ora se impondo, sobrepondo, apagando e silenciando sentidos outros, ora reivindicando tais mecanismos discursivos. É por essa disputa de sentidos que buscam se impor que o discurso artístico, ao mesmo tempo em que faz ver determinados sentidos, por uma tentativa de administrá-los, abre-se ao non-sens. Referências ALTHUSSER, Louis, Ideologia e aparelhos ideológicos do estado. 3 ed. Lisboa: Editorial Presença/São Paulo: Martins Fontes, 1980. FERREIRA, Maria Cristina Leandro. O corpo como materialidade discursiva. Redisco – Revista Eletrônica de Estudos do Discurso e do Corpo, v. 2, p. 77-82, 2013. Disponível
em:
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Acesso em: 19 jun. 2014. NECKEL, Nádia Régia Maffi. A tessitura da textualidade em “Abaporu”. Linguagens, Blumenau, v.1, n.1, p. 145-157, maio/ago., 2007. ORLANDI, Eni Pulccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 1996. PÊCHEUX, Michel. Discurso: estrutura ou acontecimento. 2 ed. Campinas: Pontes, 1997a. ______. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Edunicamp, 1997b.
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CRIAÇÃO AUTORAL E LITERATURA JUVENIL – ESCRILEITURAS: TRANSCRIAÇÕES ADOLESCENTES Janete Marcia do Nascimento (UNIOESTE) Andréia de Oliveira A. Iguma2 Ester Maria Dreher Heuser3 Introdução O projeto de pesquisa elaborado para fundamentar a criação desse artigo final, cujo título inicial foi “Das possibilidades de Escrileituras: oficinas de criação autoral em literatura infantojuvenil” consistiu em estudar sobre as intensidades e ressonâncias do texto literário na adolescência. Pretendeu-se, portanto, investigar os usos do texto literário no âmbito escolar com adolescentes do Ensino Fundamental – Anos Finais – em turmas de 7°s Ano. Objetivou-se criar e desenvolver oficinas de leitura e escrita com textos literários, acompanhando vivências textuais, identificando as ressonâncias desses textos na vida dos alunos da turma pesquisada, considerando atos de leitura e escrita simultâneas. A escolha desse tema deve-se à experiência adquirida como pesquisadora na área de leitura, atualmente, como integrante bolsista pesquisadora do projeto de pesquisa do Observatório de Educação INEP/CAPES, intitulado Escrileituras: um modo de lerescrever em meio à vida. Desse modo, o referencial teórico, as obras literárias, bem como as oficinas, constituir-se-ão em possibilidades de concretização deste projeto que ora se inicia. Pretende-se, então, escrever sobre as possibilidades de criação autoral por meio de obras literárias infantojuvenis, criando oficinas de leitura e escrita, vivenciando-as com os adolescentes nas aulas de Língua Portuguesa, em parceria com a professora da referida disciplina na turma. O problema a ser pensado neste trabalho de pesquisa é a leitura de obras literárias infantojuvenis, como disparadoras4 de escritas criativas, no sentido de enaltecer o leitor adolescente como um potente autor de textos literários. Considera-se, portanto, que o texto literário infantojuvenil escrito, apresenta-se atualmente por meio de diferenciados suportes, além dos livros de literatura, há outras possibilidades de veiculação a que os 2
Professora Orientadora do TCC II / UNIGRANET. Professora Doutora em Filosofia. Coordenadora de Núcleo do Projeto Escrileituras: um modo de lerescrever em meio à vida. UNIOESTE/Toledo – Paraná. 4 Disparador será tratado aqui como termo que designa desejo, ideia, vontade. No tocante à literatura, considera-se que esta pode ser usada como motivo, pretexto e aporte criador para a escrita criativa. 3
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adolescentes têm acesso, tópico este que será discutido no decorrer do texto. Visando conhecer os contextos de leitura dos estudantes com os quais vivenciaremos esta experiência de pesquisa, os principais questionamentos pautar-se-ão nos seguintes aspectos5: Os adolescentes da turma pesquisada leem? Que gêneros textuais costumam ler? Que elementos textuais nestes gêneros podem ser considerados atrativos por eles? Como elaborar percursos de escrita, no sentido de que o leitor possa ser também um autor? Esses tópicos serão discutidos e analisados por meio dos instrumentos a serem utilizados na pesquisa, bem como a análise sobre os resultados obtidos. Quanto aos objetivos a serem contemplados, consistem em: a) Investigar sobre os usos de textos literários infantojuvenis com alunos do Ensino Fundamental (uma turma de 7º Ano); b) Criar e desenvolver atividades de escrita e leitura por meio de oficinas de Escrileituras, visando apresentar os textos literários escolhidos para a criação das oficinas; c) Elaborar oficinas de leitura e escrita – Escrileituras; d) Instigar a criação autoral, de modo a possibilitar escritas adolescentes. Observou-se em conversa com a professora da turma que as aulas na biblioteca para leitura e trocas de livros, ocorrem uma vez por semana, de acordo com horários pré-estabelecidos e têm duração de quarenta e cinco minutos (45min.) para cada turma. A professora afirmou que há algumas dificuldades nesses momentos, como a concentração dos alunos por estarem juntos nas mesas de leitura. Mesmo assim, as referidas aulas são planejadas de acordo com os gêneros que constam no conteúdo programático de Língua Portuguesa, de acordo com a DCE (Diretriz Curricular Estadual). Quanto às atividades, a professora costuma variar entre as de leitura, escrita, registro de troca de ideias sobre os textos lidos, de modo a integrá-las aos objetivos da disciplina, ao longo do ano letivo. Justifica-se, portanto, esse trabalho pelo desejo de convalidar a importância da leitura e da escrita, considerando-a fator determinante na constituição da subjetividade no mundo contemporâneo, em adolescentes do Ensino Fundamental. Desse modo, com base na perspectiva teórica da Filosofia da Diferença e Literatura Infantojuvenil, pretende-se pensar a leitura de textos literários também como possibilidades de escrita que atravessem vidas, de modo que se possam notar traços e sentidos de tais escritas e leituras e suas possíveis ressonâncias.
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Perguntas feitas aos adolescentes da turma de 7º Ano, aqui denominada “Turma Y” em Anexo I, cujos resultados serão expostos e analisados em tópico específico para tal fim. 2
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Do ponto de vista teórico-prático, considera-se a relevância deste projeto na discussão sobre o lugar e o valor do texto literário na vida escolar dos adolescentes sujeitos da pesquisa que aqui se apresenta. Assim, tratar-se-á sobre a importância da leitura na vida desses adolescentes, considerando que em certa medida, esta se faz presente de diferenciadas formas. Observa-se que hoje o acesso à leitura se dá, quase sempre por meio de textos midiáticos, no contato com jogos eletrônicos, sites da Internet, mensagens e jogos dispostos em aparelhos de telefonia móvel. Existem também outros suportes que têm sido repaginados com grande rapidez e aprimorados a cada curto espaço de tempo, com mais tecnologia, dentre outros veículos textuais próprios da era contemporânea. O texto literário apresenta-se por meio de diferenciados suportes, seja através de filmes criados especificamente para o público adolescente ou nos livros, cujas narrativas são instigantes. A abordagem da temática vampiresca, zumbis, monstros e bruxos, dentre outros personagens e gêneros que possam vir a incitá-los a adentrar o mundo fantástico da criação literária, também tem dado novas conotações e possibilidades para este cenário. Pretende-se nesse projeto investigar tal universo e pesquisar sobre as leituras que têm sido veiculadas nesse meio, além de estimular a criação autoral por meio de oficinas de Transcriação – escrita e leitura. A hipótese aqui construída baseia-se na ideia de que, pesquisar sobre o lugar da leitura de textos literários na adolescência em contexto escolar parece afirmar que os alunos leem menos textos literários, independente do gênero, devido aos motivos já expostos acima. Considera-se, entretanto, que devido a tais fatores, os textos literários contidos nos livros de literatura infantojuvenis, dentre outros gêneros e suportes textuais, acabam por ser ignorados e até mesmo desconhecidos dos referidos adolescentes, que dispõem, na atualidade, de outras opções e possibilidades para / de leitura. Buscar-se-á, portanto, investigar tal hipótese, experimentando vivências de leitura de texto literário infantojuvenil por meio do suporte livro. A escolha da metodologia consistiu na pesquisa bibliográfica experimental qualitativa, visando compreender o universo leitor dos sujeitos pesquisados em relação à literatura infantojuvenil, a partir da observação das aulas de leitura realizadas com a turma pesquisada. Pretendeu-se utilizar inicialmente, instrumentais de coleta de dados como entrevistas, questionários, observação, dentre outros. Entretanto, tal pesquisa definiu-se ainda de acordo com o desenrolar das etapas a serem seguidas, como pesquisa participante. Houve também criação e desenvolvimento de entrevista, cujo instrumento 3
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de coleta de dados foi um questionário escrito, com o desenvolvimento de duas oficinas de leitura e criação de textos com os sujeitos da pesquisa. O local definido para a pesquisa foi o Colégio Estadual Senador Attílio Fontana, localizado no município de Toledo – Estado do Paraná / Brasil. A turma foi um 7°Ano do turno vespertino, composto por (26 alunos), aqui denominada “Turma Y”. Tratar-se-á então, sobre a invenção de Oficinas de Transcriação [OsT: são oficinas processuais de Pesquisa, Criação e Inovação (PeCI)] In: Heuser (2011: p.34), cuja ideia é Transcriar em leitura e escrita – escriler textos literários, buscando encontros entre literatura e filosofia; leitura e escrita. São obras de referência filosófica: Barthes (1980); (2006), Cosson (2011), Corazza (2006); (2010); (2011) e (2014). São obras de referência literária: Nunes (1974) e Machado (1979). Olhar para o universo a ser adentrado – (re) significar a leitura e a escrita adolescente – Oficina de Transcriação É sabido que uma boa escrita depende de diferenciados atos de leitura. Escreve melhor quem lê mais e desenvolve suas habilidades de leitura. Nessa perspectiva, olhar para a escrita adolescente, considerou, dentre outras possibilidades a de que a escrita nasce com maior facilidade quando há motivos para que ela se realize. Nas práticas escolares, observa-se que em geral, os alunos resistem às práticas de escrita, alegando não saber sobre o que escrever. Nas atividades de produção textual, é frequente a reclamação de professores sobre o fato de que os alunos apresentam dificuldades em criar escritas coerentes. Ao pensar sobre os encontros literários na filosofia e filosóficos na literatura, nota-se que deve haver nos atos de leitura, em ambas as áreas, certa diversão, como em Barthes (2006, p. 20) “texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura”. Ao mesmo tempo em que desafia o leitor, o posiciona num lugar desejável, em que ele queira estar. Desse modo, ao pensar e instigar a escrita-artista adolescente percebe-se certa diversidade de gosto, sensação, sentido e reação, aspectos estes modificáveis a cada novo leitor, a cada nova leitura, que como em Corazza (2006, p. 25) é possível que assumam diferentes traços. Intempestiva: mais profunda que o tempo e a eternidade. A escrita luta pelo tempo por vir, em que sejam revigorados os modos de expressão da educação e pode afirmar ao futuro autor, que vivências do cotidiano tornar-se-ão escritas. Nesse sentido, 4
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há vida na escrita que vive e há escrita na vida que escapa, pois uma vida pode ser biografada, a qualquer momento em qualquer tempo e em qualquer lugar. Assim, Bedin (2011, p.52) dirá que “esta vida – antes de ser biografada da forma como é – não era. Não há vida pregressa à vida posta pela escritura”. Pode-se pensar, portanto, que não há limites temporais, didáticos, sociais ou culturais para o nascimento de alguém que cria a própria escrita. Esta pode estar naquilo que escapa do real, do visível, uma vez que a escrita pode estar no incompreensível, portanto, no invisível. A invenção dos atos de escrita aqui propostos necessitou criação de percursos para o desenvolvimento das oficinas. Portanto, optou-se inicialmente pela formação de um grupo participante, composto por três alunos de cada turma – das cinco turmas de 7° Anos. Como percebeu-se a dificuldade de retirar de turmas diferentes os alunos, após o primeiro encontro, passou-se a trabalhar com apenas uma turma completa, aqui denominada “Turma Y”, durante as aulas de Língua Portuguesa, com a participação da professora que ministra tal disciplina. Criou-se a partir de então, a súmula da Oficina “Raul da Ferrugem Azul e outras intensidades”, da seguinte forma: 1° momento – “A vida escrita – pelo caminho da leitura”: O livro tem quarenta e sete páginas, organizadas em oito capítulos; Formamos oito grupos para fazer a leitura da obra. Em seguida, socializamos oralmente para conhecimento de todos; Fizemos conversações sobre a leitura realizada por cada grupo, visando trocar ideias sobre a obra, bem como sobre aspectos do vocabulário, dos acontecimentos, dos temas abordados, do enredo, dentre outros elementos textuais. O segundo momento foi dedicado à “busca pela ferrugem que mora no outro e em mim”. As etapas seguintes consistiram em: pensar numa “ferrugem”. Listar todas as ferrugens pensadas para serem escritas no quadro. Conversar sobre o sentido dessas ferrugens. Explicar por meio da escrita, o porquê dessa ferrugem – criação autoral individual. Para finalizar, discutimos sobre os fatos do texto, as decisões tomadas pelo personagem principal – Raul e relacionamos tais fatos com os da vida real, expondo situações parecidas e já vivenciadas por todos nós. A segunda oficina intitulada “A troca e a tarefa – morte e vida na escrita” teve a seguinte súmula: Leitura do Conto “A troca e a tarefa” (Lygia Bojunga); Conversações acerca das situações vivenciadas pela escritora – personagem no conto; Discussões sobre o que a personagem fazia no conto com seus medos, suas dores – a fuga pela escrita; Propostas de escritas, desenhos e registros sobre as impressões e sentimentos que a leitura
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do conto despertou em cada aluno; Socialização das criações; para finalizar, deu-se o esperado momento da escrita autoral. O trabalho de conclusão das oficinas deu-se por meio de conversações sobre como Raul enfrentou sua ferrugem com coragem agindo coerentemente diante dos obstáculos da vida, tentando acertar suas angústias, e do mesmo modo, a forma como a escritora personagem transformou sua dor, seu ciúme e seus medos em escrita. A proposta consistiu em tentar algo inquietante! Tornar-se autor. Escrevler angústias, medos. Tornar ferrugens escritas. Inventarem-se escritores. Pois, mergulhar no texto literário é como adquirir o poder de ser autor. É tornar-se autor! E eis que desses exercícios de pensamento, dos devires escritores, nasceriam escritas! Para definir o percurso das oficinas de Escrita/Leitura, inicialmente, por indicação dos professores de Língua Portuguesa, escolhemos três alunos de cada uma das cinco turmas de 7ºs Anos. Fomos até a biblioteca conhecer os critérios de escolha dos alunos participantes do trabalho e discutir a importância de criarmos possibilidades de escritas para as coisas que, em geral, falamos o tempo todo. Conversamos sobre a Oficina de Transcriação na qual estávamos metidos a partir daquele momento. Conversamos sobre o porquê do nome ‘oficina’. As respostas foram em geral: ‘grupo de pessoas’; ‘num lugar específico’; ‘fazer alguma coisa’; ‘oficina de origami’; ‘oficina de artesanato’; ‘oficina de carros’; ‘de reparos’ e ‘outras que fazem outras coisas’. Combinamos pensar a ideia de oficina como ‘oficinar é fazer’. Em seguida, conversamos sobre a palavra ‘Transcriação’. Ficaram pensativos e acabaram concluindo – alguns – que, transcriar é ‘recriar’, ‘inventar’, ‘criar nossas próprias criações’. Passamos a um exercício de pensar sobre a palavra ‘Transcriação’, no qual foram orientados a guardá-la num lugar seguro, para que pesquisassem durante a semana. Combinamos voltar à conversa noutro momento. ‘Transcriaríamos’ com leituras e com escritas. Os adolescentes gostaram de vivenciar a Transcriação. A oficina segue. As descobertas também. Foi certamente um encontro riquíssimo. Entretanto, devido a organização do colégio e a greve dos professores estaduais no Paraná, que ocorreu no final do mês de abril, optamos por desenvolver as oficinas em apenas uma turma de 7° Ano, aqui denominada “Turma Y”. As obras escolhidas e seus enredos – das Transcriações escritas dos alunos. O autor! Foram escolhidas duas obras literárias para a criação das OsT. A primeira delas, Raul da ferrugem azul (Ana Maria Machado – 1979), inquietante narrativa, trata da 6
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identidade, a omissão de determinadas responsabilidades, que impostas socialmente, quando ignoradas por Raul – a personagem principal – tornam-se ferrugens azuis suas indignações que passam a estampar sua pele, deixando-o aborrecido, perdido, sem saber o que fazer. Raul sai à procura de solução para fazer sumir suas ferrugens, sem ao menos dar-se conta de que estas não poderiam ser vistas por mais ninguém, além dele. A história segue questionando ideias e pensamentos do menino Raul, que descobre indícios identitários nas coisas da vida em sociedade. Instigou-se então, o pensamento dos alunos sobre as ferrugens – as de Raul e as suas próprias, no sentido de discutir e pensar sobre a linguagem metafórica expressa no texto literário. Para a segunda oficina, lemos o conto A troca e a tarefa de (Lygia Bojunga, 1994) cujo enredo narra a história de uma menina a que cedo conheceu o ciúme. Tinha ciúme de sua irmã mais velha, de tanto que ouvia todos elogiarem-na. O ciúme cresceu ainda mais quando esta menina conheceu um rapaz chamado Omar, por quem se apaixonou. Era tamanho o amor, que por não suportar ver a forma como a irmã olhava para Omar, a garota decidiu se mudar para um colégio interno. Lá, de longe, o ciúme quase não a visitava. Aos quinze anos, quando retorna para casa para sua festa de aniversário, que ocorreu junto com a festa de noivado da irmã, a garota descobriu que o noivo é seu amado Omar. A dor foi insuportável! Ela foge para o mar e lá chegando, acaba adormecendo e tem um sonho, no qual se depara com duas portas. Numa delas está escrito a troca. Na outra, a tarefa. Apenas a porta da troca se abre. A troca seria trocar tudo que é dor noutra coisa. Ela decide que será a escrita. A partir de então, se torna escritora. Escreve sem parar. Tudo na vida ela torna escrita. Até que um dia, quando está para escrever seu vigésimo sétimo livro, torna a repetir o tal sonho. Nele se abre a porta da tarefa. No sonho, a personagem é avisada que sua tarefa findará ao término desse livro, assim como sua vida. Começa então a viver um drama insuportável. Bojunga narra com maestria angústias da escritora, que após longos anos de luta, adoece e morre. Desiste de lutar. Entrega-se ao término de sua escrita. Encerra a vida na tentativa de finalizar seu último livro. Considerando que o objetivo desse trabalho é instigar a criação autoral adolescente, após a leitura da primeira obra, para realização da primeira oficina, realizouse conversações acerca da mesma e das possibilidades de pensar os eventos que nela ocorrem, na vida real. Observou-se então, durante a realização desse ponto do trabalho, grande entusiasmo dos alunos durante a leitura, pois comentaram que poucas vezes haviam sido instigados a relacionar histórias lidas a eventos já vivenciados. Afirmaram 7
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ler por obrigação e poucas vezes se lembram do enredo das histórias. Nesse sentido, trabalhamos com esses alunos tentando desconstruir a ideia do não lido e da memória que não fica pelo percurso da leitura. Conversamos sobre a importância que uma leitura tem em nossas vidas, pelo simples fato de que esta pode muito por nós. Pode, dentre outras coisas, nos fazer pensar sobre como tudo o que ocorre em nossas vidas, é passível de escrita. Há muitos motivos para ler. Há mais motivos ainda para escrever. Na maioria das vezes, não o fazemos. Não somos levados a isso e quase nunca pensamos nos motivos que levam escritores a escrever o que escrevem do modo como escrevem. Em geral, não nos preocupamos com as ideias que passam a morar nos livros, sem nos darmos conta de que tais ideias foram, ou podem vir a ser vivenciadas por quaisquer pessoas. Por todos esses motivos é que instigamos o pensamento acerca da leitura da obra Raul da ferrugem azul, como pensamento a ser escrito. Os adolescentes passaram a pensar sobre o que então pode ficar de uma leitura. Ideias nasceram e pensamos juntos sobre o que pode uma literatura, uma leitura, uma oficina! O maior objetivo desse trabalho foi instigar o pensamento para as possibilidades que o texto literário traz. Pensamos na ferrugem, tentando trazê-la para a realidade. Tivemos ótimas ideias no decorrer dessas conversações. Então sugeri listar no quadro, as ideias que estes atribuíam à sua compreensão sobre o que pode ser uma ferrugem na vida real. Conversamos sobre todas as ideias que surgiram. Em seguida, pedi que cada um escolhesse uma ou mais das ferrugens que estavam escritas no quadro, pensasse na leitura da obra e escrevesse os motivos pelos quais considerava aquela ideia / palavra, uma ferrugem. Seguem abaixo, as escritas dos adolescentes: Escritas nascidas da OsT Raul da ferrugem azul: somente vícios bons, mas também os vícios ruins, que são vícios em: computador, televisão, que pode ter consequência de deixar de ter amigos e de se divertir fora de casa. Vício é uma ferrugem que demora muito para sair. Só pode sair com ajuda, dos pais e dos amigos”.
Vício “Porque hoje em dia é a coisa que mais afeta as pessoas por causa das drogas e a tecnologia, pois ela te prende em um lugar difícil de sair e a recuperação não é fácil de se conseguir buscar. Mas a maioria que busca o tratamento, consegue sair”.
“É uma coisa que estraga a pessoa, deixa a pessoa “Eu passo muito tempo mexendo no computador, com uma vontade louca daquele tipo, como drogas, assistindo TV, andando de bicicleta. Gasto meu dinheiro em bala”. bebida, etc.”. “O vício é uma ferrugem difícil de sair. Pode ser um “É uma ferrugem porque você fica vidrado naquilo e vício bom como: vício em exercícios, e estudar, até não sai enquanto não consegue. Às vezes irrita e dá raiva”. um vício insaciável de aprender. Mas não são 8
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“Eu acho que o vício é minha ferrugem. Eu tenho
“A preguiça para mim é uma ferrugem porque na minha casa tenho preguiça de ajudar a limpar a vício de roer unha, chupar bala, jogar CS, gastar, louça, às vezes eu nem ajudo. Agora ela tá grávida, andar de bike e só”. eu tenho que ajudar porque ela está para ganhar minha irmã no mês que vem. Minha mãe me dá muitos conselhos para nunca ter preguiça, pois isso Amor “O amor é uma coisa boa pra quem sabe amar. E o atrapalha muitas vezes na fase adulta”. problema é pra quem ama uma pessoa e a outra “Porque às vezes atrasa minha vida, às vezes não dá pessoa não ama”. para fazer nada, não dá vontade de ir pra escola, de arrumar a casa, de fazer as tarefas, não dá vontade de fazer nada. E por esses motivos ela atrasa minha “Porque é muito complicado e gera sofrimento”. vida”. “Porque é um sentimento que uma pessoa sente pela outra. Eu escolhi o amor porque uma pessoa gosta Raiva da outra mas não quer se declarar para a outra “Para mim, raiva é quando alguém me provoca à toa, pessoa porque tem vergonha. Coração fechado. sem eu fazer nada a ninguém para mim isso é raiva”. Coração partido”. “Deixa as pessoas com raiva das outras pessoas que “Porque você nem sempre pode vivê-lo, às vezes faz raiva pra elas. A raiva faz perder o controle. Não você é impedido por alguém ou por você não ter se dá bem com as outras pessoas”. aquela pessoa, por ela estar longe e às vezes até pode estar perto mas tem um motivo que não deixa você desfrutar. Às vezes um amor familiar que a gente não tem ou de uma pessoa que você ama mas não pode. Nem sempre o amor é bom e nem sempre ele é ruim. Quando o amor é impedido pode haver muita dor quando ele é verdadeiro”.
“Só porque briga com uma pessoa já tem raiva. Quando deve pra alguém mas não tenho como pagar, porque não tem condição a pessoa pega raiva. Quando briga, fica com raiva e também fica com inveja.
Corpo travado “É uma ferrugem que não te deixa se mexer, essa “Em relação ao amor a única coisa que eu tenho é ferrugem pode ser uma dor nas costas ou no pescoço medo de me declarar”. que não te deixa ir em um lugar especial, não te deixa fazer exercícios físicos”. Preguiça “A preguiça pode atrapalhar a gente quando formos Medo adultos, porque quando nós formos procurar trabalho “Porque às vezes eu fico pensando eu tenho um nós vamos ter que deixar a preguiça de lado, porque monte de coisas pra fazer e tenho medo de fazer. Por a gente vai ter que acordar cedo, não ter preguiça e isso que eu escolhi o medo. Daí eu fico pensando se se dedicar ao serviço”. eu faço sim ou não”. “Às vezes eu tenho preguiça até de ir ao banheiro, de Má vontade comer, de pegar o controle da TV e até de andar eu “Eu acho que má vontade é uma ferrugem porque tenho preguiça”. quando você faz algo com má vontade fica tudo mal feito, mal limpado, mal organizado, mal ajeitado, “A preguiça é uma ferrugem porque quando você não fica aquela coisa bonita, bem limpada, ou seja, o tem preguiça ela domina todo o seu corpo e você que você fazer com má vontade fica mal feito! E se é não quer levantar de manhã, não quer fazer tarefa, pra fazer uma coisa mal feito é melhor deixar sem não quer ir pra escola, e muitas outras coisas”. fazer”. “Meus pais mandam eu fazer muitas coisas em casa “Porque é ruim. Não faz as coisas do jeito certo. É e me dá preguiça de fazer isso e eu falo: depois. Isso feio”. deixa meus pais irritados, pelo menos eu acho que é uma ferrugem”.
Escritas nascidas da oficina A troca e a tarefa “MENTE PERTURBADA. Era noite, numa sexta-
feira. Não sei se era sexta-feira 13, mas era uma 9
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Luís. Mas eu falei que não ia porque eu tinha medo de enterro. Minha mãe foi. A minha tia ligou e queria falar urgente com ela e daí me obriguei a ir lá. Quando coloquei o pé na porta eu não consegui entrar e minha mãe falou: __ Chega mais perto! E eu chorei muito. Fui para casa correndo chorando e fui dormir. No dia seguinte foi o dia do enterro. Eu não fui no enterro. Até hoje eu me arrependo de não ter ido. Às vezes eu choro. Só de lembrar.”
sexta-feira! No relógio marcava 10h55min, eu era pequena, tinha uns 5 ou 6 anos de idade. Nessa noite estava eu e minha mãe sem sono, procurando algo para assistir na televisão, meu pai estava dormindo. Até que achamos um canal que aparentava ser legal o filme, para minha mãe tudo bem, mas eu era uma criança, mal sabia o que vinha adiante! Pois era um filme de terror. Não gosto nem de me lembrar. Aterrorizada depois de terminar de ver o filme fui dormir, ou digo, tentar dormir! Porque naquela noite não dormi nada, nada mesmo. Fiquei a noite inteira acordada com aquelas imagens horrorosas me perturbando, passando em minha mente, chorei baixinho, mas com vontade de gritar. Tive um pesadelo baseado no filme, e outros pesadelos em outros dias. E assim foi durante mais de uma semana, acordava desesperada chorando, corria para o quarto dos meus pais, via vultos, gente à noite em minha casa que não existe, ouvia também, pessoas no banheiro, sons de torneira aberta, chuveiro ligado, algo se rastejando pelo chão, barulhos embaixo de minha cama... coisas assim, sinistras! Um dia teve que chamar minha avó para dormir comigo. Até que um dia eu cansada disso me perguntei: __ Quando é que esse inferno vai acabar?!!!... E isso só acabou quando minha avó materna veio e fez uma oração para mim! Deus é o maior! Só basta ter fé!”
“Quando eu era pequena eu tinha um ursinho que eu não largava por nada, nem para ir no banheiro. Ele era muito bonitinho, era de pano e por dentro tinha areia. Minha avó que tinha feito para mim. Eu pegava uma caixa de sapato e fingia que era um carro e colocava o urso para mim brincar. Quando eu tinha 3 anos eu coloquei um nome nele. O nome dele era Tutu, o nome mais fofo da minha casa. Eu adorava, amava o Tutu. Quando eu ia dormir eu pegava e colocava ele do meu lado e colocava o cobertor nele e falava: durma com Deus, Tutu. E daí eu dormia, daí quando eu acordava e me vestia com ajuda da minha mãe para ir a escola, eu não deixava o Tutu em casa porque a minha irmã Daniely pegava e estragava porque ela tinha 6 anos e ela estragava minhas coisas. Agora eu tenho 12 anos e minha irmã tem 15 anos. Agora eu estrago as coisas dela.” “O CIÚME. Eu tinha ciúmes da minha irmã pois ela tinha uma bicicleta e eu não. Então um dia me disseram que isto era mal, resolvi melhorar e me livrar dele. Peguei um papel, imaginei que ele era meu ciúme, escrevendo meus sentimentos nele. Rasguei e o joguei no lixo, meus ciúmes foi junto com os pedacinhos de papel. Depois disso nunca mais tive ciúmes de nada. Afinal, agora percebo o meu erro, ciúmes não leva a nada.”
“O CACHORRO DAS TREVAS. Era uma vez uma menina ganhou um cachorro dos pais dela. Essa menina amava esse cachorro por muito tempo ficou com ele, quando um dia ela ganhou um irmão. Ela ia para a escola e quando voltava ia direto para ele e o cachorro só olha pensando que iria falar com ela, mas não acontecia. Um dia derrubaram uma química no cachorro e daí em diante o cachorro virou do mau, atacava todo mundo que ia na casa deles. Muito tempo se passou, eles cresceram e a menina se mudou de lá. Os pais dela já estavam querendo sacrificar o animal, quando um dia o dono dele voltou para casa e o cachorro saiu correndo e atacou o pescoço da dona dele. Os pais deles saíram correndo e levaram ela para o hospital. Mas já era tarde, ela tinha morrido. O cachorro fugiu e nunca mais acharam ele. Esse cachorro está vagando o mundo atacando e matando pessoas. Que medo!”
“A TAL DA DOR. Um dia desses eu sentada na cadeira da escola, meio desligada do mundo pensando na vida, nos problemas que ela traz e como a gente se faz de forte, mas sabemos que no fundo não aguentamos enfrentar essa tal ‘DOR’, um sentimento que pode se ter quando temos a saudade de alguém que já morreu ou está longe de nós, ou até um sentimento de amor por uma pessoa mas você não pode, um sentimento de ciúmes de um irmão, pai, mãe ou namorado... Resolvi tentar transformar esse sentimento tão grande em palavras para expressá-lo, queria ver se eu escrevendo ele, ele podia sumir. Peguei uma folha e comecei a escrever o que sentia, o que era aquela dor e acabei percebendo que se expressando essa dor, a gente se sente mais livre. Essa dor que eu sentia era por causa de problemas familiares, com meu pai e minha mãe. Essa tal ‘DOR’ sumiu, me senti mais tranquila.”
“A MORTE. Eu acordei num dia normal, as pessoas falaram que o seu Luís tinha sido internado porque ele tinha batido a cabeça na cômoda. O dia passou normal para amanhecer sábado a minha mãe me acordou para falar: o seu Luís morreu. Eu fiquei meio sem reação. Eu levantei, fui até a casa da minha vizinha e eles estavam todos chorando pela morte dele. Todas as pessoas que conheciam iam chegando. Havia muitas pessoas, o dia passou. Minha mãe me convidou para ir lá dar adeus ao seu 10
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Depois de cair, o meu vizinho que passava por ali me ajudou a voltar para casa. Eu avisei meu pai que havia caído e ele me levou ao hospital. Ainda bem que isso não foi grave e então voltamos para casa. Minha bicicleta estragou bastante, tive até que comprar outra. Meu medo que tenho até hoje é que imagino que eu poderia ter batido a cabeça no poste e ter causado um grave acidente. Esse é um dos meus medos.”
“A PRIMEIRA NÃO SAIU DA CABEÇA. O nome dela era Maressa, cabelo cor de vespa e voz de menina preta. Uma voz grossa que nem eco de poça. Pedi a ela pra namorar. Até decidimos se casar. A Maressa era muito grandona, parecia até uma valentona. Me protegia de todos os valentões, e apesar de tudo, ela era a menina mais linda do primário. E no momento que ela me beijou, aquilo me marcou. E minha maior tristeza foi quando ela foi embora. Não sei onde ela mora. E nos dias de hoje, eu vou procurar até achar.”
“ESTER NUM PASSEIO. Ester estava cursando o 5° Ano e ela foi passear em Foz do Iguaçu em vários lugares. Foi no parque das aves lá ela ficou encantada com as aves. Foi na Itaipu e lá ela andou pela Itaipu inteira, e por fim ela foi para Cataratas e lá ela ficou muito, muito encantada com aquelas águas caindo. Parecia que não era água, que ela estava sonhando. Era muito lindo, depois ela tirou foto com uma arara e com uma cobra. Ela ficou encantada com tudo e isso foi a história de Ester.”
“UMA VEZ, quando eu tinha 9 anos de idade, eu estava andando de bicicleta onde eu não poderia, era para eu andar só em frente de casa mas eu fui dar uma volta na quadra. Nisso, um amigo meu havia me chamado e eu olhei para trás, quando eu olhei novamente para a frente, eu já estava muito perto do meio fio e bati e caí. Eu quase que bati de cabeça bem no meio de um poste.
Das ressonâncias das escritas adolescentes – o sentido das OsT O trabalho com as OsT de Escrileituras, aqui denominado Escrileituras – leitura e escrita simultâneas – teve ressonâncias importantíssimas. O desejo inicial de vivenciar escritas a partir da leitura de obras literárias culminou em intensa atividade de criação autoral, uma vez que apresentar aos estudantes da turma de 7º Ano obras de literatura infanto juvenil desconhecidas para tais sujeitos da pesquisa, visando a criação autoral resultou em interessantes atividades de leitura e escrita, nunca antes vivenciadas pelos referidos alunos. Observa-se nos textos criados, grande relevância na relação que os mesmos estabeleceram entre os textos lidos e as escritas que criaram, uma vez que as duas OsT objetivaram instigar a escrita dos adolescentes, priorizando o poder que a literatura infanto juvenil tem de fazer pensar, de intensificar vivências de escrita, que talvez, por outros vínculos, não fossem possibilitadas. Considera-se que as criações escritas atenderam ao objetivo primeiro elaborado para a realização desse trabalho de pesquisa, uma vez que os alunos expressaram em suas escritas, traços de pensamento acerca das obras lidas, relacionando-os com vivências de suas vidas. Consistiu, pois, esta atividade em grande êxito, abriram-se novas possibilidades de pensamento literário filosófico por parte dos alunos, bem como instigou o desejo dos professores, de que estas e outras oficinas possam ser elaboradas para outras
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turmas de 7º Ano. A proposta de desenvolvimento de outras oficinas será levada a cabo, e o desejo de seguir buscando encontros entre literatura e filosofia segue, de forma intensa! Considerações Finais Na realização desse trabalho de pesquisa, foi possível notar que há nos atos de leitura certa diversão, contentamento por parte daqueles que leem, pois uma vez instigados pelas conversações acerca das obras literárias, percebeu-se que estas atravessam sentimentos variados instaurando novos sentidos para a vida e para os atos adolescentes. Desse modo, transcriar escritas adolescentes nos apontou possibilidades de aprimoramento autoral, ao percebermos que houve nas tentativas de escritas, traços das obras lidas. Isso fortaleceu nossos objetivos ao iniciar esse trabalho, cujo desejo maior pautava-se na constatação de que é possível que a leitura torne-se pretexto para a criação escrita. Nos textos acima, coletados como resultado da finalização das duas oficinas, objetivou-se instigar a escrita autoral nos adolescentes sujeitos da pesquisa. É notável o empenho que todos tiveram no sentido de tentar elaborar suas escritas relacionando-as com a leitura das obras literárias. Portanto, considera-se oportuno o resultado, uma vez que comprovamos a hipótese de que o trabalho com o texto literário possibilita atravessar vivências, por vezes ignoradas pelos alunos com os quais desenvolvemos as atividades aqui apresentadas. Constatou-se que encontros filosóficos representados pelas atividades de leitura e escrita tornam-se possíveis escritas, portanto, transcriações. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2006. CORAZZA, Sandra Mara. Artistagens: filosofia da diferença e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. _____. Introdução ao método biografemático. In: COSTA, Luciano Bedin da; _____ (Org.). Fantasias de escritura: filosofia, educação, literatura. Porto Alegre: Sulina, 2010. _____. Notas. In: HEUSER, Ester M. D. (Org.) Caderno de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011, p.31-96. MACHADO, Ana Maria. Raul da ferrugem azul. Rio de Janeiro: Ed. Salamandra. 1979. TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Tradução: Caio Meira. – 4ª ed. – Rio de Janeiro: DIFEL, 2012. NUNES, Lygia Bojunga. A troca e a tarefa. In: Tchau. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Agir, 1994. 12
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FITZGERALD E PETRÔNIO: DIALOGISMO E INTERTEXTUALIDADE Jassyara Conrado Lira da Fonseca (Unesp-Araraquara) O presente trabalho integra uma pesquisa de doutoramento que investiga as relações intertextuais entre as obras Trimalchio de F.Scott Fitzgerald e o episódio Cena Trimalchionis1 do Satyricon de Petrônio. O foco deste artigo é mostrar como o estilo de Fitzgerald formou-se durante seus anos de trabalho em diálogos contínuos com sua contemporaneidade e como seu deu a intertextualidade com o texto latino, na obra mais celebrada do autor americano: The Great Gatsby – que aqui será analisada em publicação mais recente, intitulada Trimalchio, ainda sem tradução para língua portuguesa. Para estudar o estilo bastante característico de Fitzgerald, que traça um vívido retrato de época em sua prosa, conta-se com o suporte de cartas trocadas por ele com seu editor, críticos, amigos e com sua filha. Portanto, a pesquisa busca pilares em fontes biográficas e epistolares como elementos para a construção do perfil do autor e de sua obra. Partindo de uma descrição mais genérica da obra de Fitzgerald para então focalizar-se em Trimalchio e posteriormente em suas relações intertextuais com Cena Trimalchionis. Analisando aspectos biográficos disponíveis a cerca de Fitzgerald podese inferir na importância do ouvinte, como uma espécie de consciência artística, nas relações dialógicas que procura construir em sua arte literária e com algumas das cartas analisadas nesta pesquisa, observa-se o papel deste ouvinte como crítico e leitor.
A década de 1920 e o estilo fitzgeraldiano: a construção de uma arte dialógica. Iniciava-se o ano de 1920 quando F. Scott Fitzgerald publicou o seu primeiro romance – This side of paradise2– e com ele o autor experimentou um sucesso imediato. Em poucas semanas, muito em razão da atmosfera do pós-guerra, seu feito literário espalhara-se pelo país, bem como histórias de jovens inconsequentes que procuravam 1
O Banquete de Trimalquião.
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Este lado do paraíso.
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levar a vida de forma hedonista, valorizando a arte e a cultura, assim como a diversão. Assim, o autor soube que a década de 1920 transformar-se-ia na sua fonte de inspiração, e em consequência, de fortuna. Há evidências de que Fitzgerald utilizou-se de sua própria vida e experiência como tema de seus livros, e por isso sempre foi criticado. Mas os críticos que tendem a avaliar uma obra literária com critérios biográficos devem lembrar-se da advertência de D. H. Lawrence de não confiar no artista, mas sim, na obra. Charles Shain (1961) em sua obra dedicada à biografia de Fitzgerald comenta esse caráter de retratista que o autor assumiu em sua época, considerando a colocação de Lawrence: A devoção à sua obra, que manteve até o fim, demonstra o quanto o seu trabalho fluía, tanto de seu caráter quanto de seu talento. È difícil concordar que Fitzgerald seguisse o conselho de Lawrence: confie na obra, não no autor. Mas, se o fizermos, verificaremos que os vários aspectos de si mesmo, que ele continuamente imprimia aos personagens de sua ficção, são vidas americanas imaginosamente recriadas. Em tudo o que escreveu, encontra com frequência aquela rara qualidade de auto-revelação, que é também uma revelação de humanidade. (p.88)
Ao revelar-se em sua intimidade, ao recriar nas personagens diálogos e situações reais, Fitzgerald sai de seu microcosmo e atinge uma dimensão maior, mais genérica e humana. Este trabalho procura mostrar como o estilo de Fitzgerald – cujo ápice foi atingido justamente com a obra The Great Gatsby – utiliza-se das crônicas cotidianas como fermento para suas histórias. Sua ficção parte do real, mais avança de maneira livre e certeira e assim integra o imaginário de toda uma geração. Em texto intitulado A ficção (2007) Stirle apresenta a distinção feita por Iser entre fictício, real e imaginário, como visto a seguir: (...) enquanto no entendimento tradicional o fictício era tomado como conceito contrário ao real e a ficção como contrária à realidade, Iser vê o fictício como parceiro do imaginário e a ambos compreende como momentos de transgressão do real. Em Iser, a tríade realidade – fictício – imaginário enuncia que o fictício se torna um conceito de relação entre realidade e imaginário. Enquanto o imaginário (...) é conceituável apenas em si mesmo e não dispõe de um fundamento compreensível, do que derivam as concretizações imaginárias, o fictício é uma instância da transformação que dá ao imaginário a sua determinação e, deste modo, ao mesmo tempo conduz ao real. (p.9)
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Como Iser explica, e Stirle sintetiza, o fictício e o imaginário se originam do real. Fitzgerald faz da realidade o seu ofício, todavia de maneira ficcional. Se ele fizesse simplesmente uma descrição de espaços e pessoas seus conhecidos e reproduzisse alguns diálogos que teceu com amigos, estaria apenas reportando e não criando obras literárias. Podemos dizer que ele olha para o mundo exterior como quem observa a vida através de uma vidraça, mas o enxerga de forma plural, cheio de cores, sons e palavras diferentes das originais. Como ensina Bosi, o trabalho com a literatura depende da perspectiva, se esse leitor do mundo não é experiente e sensível certamente incorrerá no erro ao “ perder a visão da floresta
contando as nervuras das folhas.” (1988, p279) Bosi ao falar da importância da perspectiva concorda com Henry James, a quem Fitzgerald sempre admirou e procurou seguir em seus preceitos sobre a escrita literária. James em seus prefácios aconselha o uso de linguagem simples e clara – econômica, intensa e misteriosa – assim como discorre sobre a importância de determinadas personagens, que precisam ser prestigiadas na narrativa. James fala sobre esse olhar que o autor direciona para o mundo por meio de janelas enfileiradas. Escrever, portanto, constitui-se em escolher uma dessas janelas, uma dessas cenas e se dedicar a essa abertura para a vida real. Em suma, a casa da ficção não tem uma, mas um milhão de janelas – ou melhor, um número incalculável de possíveis janelas. Cada uma foi aberta, ou pode ser aberta, na vasta fachada, pela urgência de uma visão individual ou pela pressão de uma vontade própria. Com essas aberturas, de tamanho e formato variáveis, debruçam-se todas juntas sobre a cena humana, seria de esperar que nos fornecessem uma maior semelhança informativa do que a encontrada. (...) O campo extenso, a cena humana, é a “escolha do assunto”; a abertura perfurada, seja ela ampla, com sacada, ou estreita e de mau gosto, é a “forma literária”; mas elas nada significam, juntas ou isoladamente, sem a presença alerta do observador – em outras palavras, sem a consciência do artista. (JAMES, p.161)
Fitzgerald olhou para o mundo através dessas um milhão de janelas. E procurou sempre sua arte por elas. E assim como James previa a imensa abertura que o observador encontra, define sua “forma literária”. E sendo detentor da “consciência do artista” criou belos textos, que retratam sim uma década, mas ultrapassam o datado e descrevem a humanidade de maneira atemporal. No entanto, nosso autor não é singular,
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é plural como ele mesmo afirma. E o seu nome antecipa algumas características; e isso que o leitor espera encontrar diz respeito ao estilo do autor. Que se algo tem de singular é uma particularidade inconfundível, nada que o restrinja nem em relação a temas, nem em relação à forma. Como afirma Foucault no texto que discute a questão da autoria “todos os discursos que são providos da função autor comportam esta pluralidade de “eus”. ( p.55) E o caráter pluridiscursivo e dialógico que Fitzgerald estabelece entre a sua obra, seu tempo e suas influências funcionam como incremento de sua pluralidade.
Trimalchio Fitzgerald ao conhecer a obra de Petrônio – Satyricon – estabelece com ela uma relação intertextual. Inspirando-se em um dos episódios da obra latina – Cena Trimalchionis – cria a personagem principal de sua obra mais conhecida do público e aclamada pela crítica. Antes do lançamento da obra com o título The Great Gatsby, o autor travou uma batalha com seus editores para nomear o livro. Alterou o título cinco vezes, mas foi convencido por Max Perkins que se desejasse intitular a obra Trimalchio precisaria adicionar uma nota explicativa, o que acabou por dissuadi-lo, e o livro, em 1925, foi finalmente lançado com o título The Great Gatsby. No ano 2000, a editora da universidade de Cambridge em posse dos manuscritos de Fitzgerald, na pessoa de James L. W. West III, lançou uma publicação intitulada Trimalchio. O texto é anterior a The Great Gatsby e apresenta-se de forma diferente, principalmente nos capítulos seis e sete. Neste trabalho de doutoramento interessanonos, particularmente, pela relação intertextual existente entre a obra norte-americana e a latina, e por isso o texto utilizado durante a pesquisa é a publicação de 2000. A escolha foi feita em razão do título que não deixa dúvidas sobre a possibilidade de um estudo comparado das obras. Para o leitor familiar com a obra The Great Gatsby a edição intitulada Trimalchio soa como algo conhecido ainda que seja diferente. Algumas passagens estão ausentes e algumas descrições apresentam-se de forma mais extensa. Fundamentalmente é o mesmo texto, ainda que com certo gosto de ineditismo. Nesse romance, Fitzgerald
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atingiu um grau de excelência ainda não atingido em seus dois primeiros livros; os pontos mais elogiados pelo editor eram a ironia e o caráter simbólico da história. As diferenças mais evidentes entre as duas obras, como já foi dito, encontram-se nos capítulo seis e sete. Nick Carraway também é apresentado em Trimalchio de maneira um pouco diferente do que é em The Great Gatsby. O narrador em Trimalchio domina mais a história, no entanto é uma personagem menos simpática do que se tornou no texto publicado em 1925. O livro que celebrizou o autor é tido como uma obra prima de revisão, e Fitzgerald certamente altera bastante o texto em busca de uma versão mais acabada e elegante. No entanto, Trimalchio é uma valiosa fonte para o estudo sobre o autor e isso justifica a publicação tardia e, de certa forma, independente de The Great Gatsby. E para nossa proposta de investigação intertextual é fundamental.
Trimalchio e Cena Trimalchionis: uma relação dialógica Em 1922, ao publicar The Waste Land3, T. S. Elliot (1888-1965) faz uma citação de Satyricon em epígrafe. Este acontecimento isolado acabou por ter uma grande projeção entre os intelectuais seus contemporâneos, visto que mais tarde no mesmo ano, a obra latina foi censurada pela Society of Suppression of Vice e o processo enfrentado pelo editor Tom Smith, levado a julgamento. Nesse momento Fitzgerald já havia publicado seu primeiro romance, no qual faz uma pequena menção ao autor do século I, quando coloca a personagem principal, Amory Blaine, lendo o Satyricon. É provável que a censura sofrida por Smith (amigo de Fitzgerald) tenha incitado sua curiosidade, levando-o a ler a obra na íntegra e que, em especial, o episódio Cena Trimalchionis tenha-lhe influenciado a criação de Trimalchio. A idéia de uma análise em paralelo das duas obras parte da própria narrativa de Fitzgerald. Ao declarar o fim da temporada de festas na mansão Gatsby, o narrador do romance – Nick Carraway – evidencia a semelhança entre Gatsby e Trimalquião: “It was when the curiosity about Gatsby was at its highest that the lights in his house failed 3
A terra devastada.
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to go on one Saturday night – and, as obscurely as it had begun, his career as Trimalchio was over.” 4(FITZGERALD, 2000, p. 119) A análise comparada iniciada no mestrado e que vem sendo aprofundada na pesquisa de doutorado, mostra diversas semelhanças entre as duas narrativas não apenas em se tratando das personagens principais – dois emergentes sociais que adotam uma postura ostensiva e extravagante – mas que também se estende a outros temas nas histórias, à contextualização das obras, à construção dos cenários e à composição de outras personagens. E por meio de exemplos de análise que comparam as duas obras, pretende-se mostrar que por mais afastadas que estejam cronologicamente, existe um elo forte entre elas. O interesse do autor pela cultura clássica manifestara-se inicialmente em seu primeiro romance. O trecho da carta a seguir, destinada a Gertrude Stein, datada de 1925, comprova o interesse de Fitzgerald pela língua, e consequentemente pela literatura, latina. Certa vez, no meu segundo ano em Princeton, o reitor West levantouse e recitou grandes versos de Horácio. E soube no meu coração que tinha perdido algo por ser um péssimo estudante de latim, como uma noite abençoada com uma garota encantadora. Uma grande experiência humana que eu tinha rejeitado por preguiça, por não ter semeado a semente dolorosa. (FITZGERALD, 2007, p.323)
A cultura clássica exerce grande influência em escritores modernos, muitos exemplos comprovam este fato. Talvez um dos mais óbvios deles seja também de língua inglesa, a obra Ulysses de James Joyce. Precisamente, em Fitzgerald, existem sinais de que os autores da Antiguidade sempre estiveram rondando a sua prosa. Mais um exemplo do autor seria o conto “Bernice bobs her hair” 5, aparentemente inspirado em uma tradução do poeta Catulo para o poema “A Cabeleira de Berenice” do poeta grego Calímaco. (ONELLY, 2010) 4
Foi quando a curiosidade acerca de Gatsby atingiu o ápice, que as luzes de sua casa deixaram de acender-se em uma noite de sábado – e, tão obscuramente como começara, sua carreira como Trimalquião estava terminada. (Todas as traduções da obra Trimalchio são de nossa autoria.) 5
Bernice corta o cabelo.
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A relação dialógica que Fitzgerald estabelece com as obras que leu, com o seu tempo e com os ouvintes que o leram dá origem a um conjunto de escritos que embora restrinjam-se tematicamente abrangem muitas das questões que norteiam a humanidade. Este trabalho de análise comparada procura revelar diferentes nuanças da prosa fitzgeraldiana e atestar que as associações intertextuais mostram aos estudiosos de literatura o quão dinâmico, fascinante e inesgotável pode ser este ofício.
Ouvintes ilustres No excerto a seguir do texto “Discurso na vida e discurso na arte”, Bakhtin discorre a respeito do ouvinte como uma espécie de consciência artística: Este ouvinte pode ser apenas o portador dos julgamentos de valor do grupo social ao qual a pessoa consciente pertence. Neste sentido, a consciência, desde que não percamos de vista seu conteúdo, não é apenas um fenômeno psicológico, mas também, e sobretudo, um fenômeno ideológico, um produto de intercâmbio social. (BAKHTIN, 1996, p.17)
Mesmo com a interferência da vaidade característica do artista, Fitzgerald prezava o comentário sobre seus textos. E quando considerava a crítica justa, procurava ouvir e acatar como sugestão. Algumas pessoas como Gertrude Stein, Ernest Hemingway, John Peale Bishop e Max Perkins exerceram uma influência bastante intensa na escrita de Fitzgerald. O autor considerava uma felicidade poder ouvir a opinião de pessoas tão ilustradas sobre sua obra. Como mostraremos a seguir em trechos de algumas dessas cartas trocadas durante a escrita e publicação de The Great Gatsby: I think the novel is a wonder. I’m taking it home to read again and shall then write my impressions in full; - but it has vitality to an extraordinary degree, and glamour, and a great deal of underlying thought of unusual quality. It has a kind of mystic atmosphere at times that you infused into parts of “Paradise” and have not since used. It is a marvelous fusion, into a unity of presentation, of the extraordinary
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incongruities of life today. And as for sheer writing, it’s astonishing. (PERKINS;FITZGERALD, 2000, p.185)6
O editor continua a carta falando sobre o título e a necessidade de mudá-lo, mas se ainda assim Fitzgerald desejasse mantê-lo deveria esclarecer tratar-se de uma personagem da história de Satyricon através de nota explicativa. O que na opinião de Perkins aniquilaria a beleza do título. Uma outra consideração é feita pelo editor: pede a Fitzgerald que delineie melhor o protagonista, que na opinião dele está pior descrito do que Tom Buchanan. Pede que o autor que forneça ao leitor algumas informações sobre a maneira como Gatsby enriqueceu e ainda que acrescente detalhes sobre as características físicas da personagem, bem como que fornecesse alguns gestos ao protagonista. Conhecendo o romance, sabe-se que o autor acatou a maioria das sugestões do editor. O autor escutou crítica semelhante de seu amigo, a quem a arte muito admirava, John Peale Bishop que reclamou, entre outras observações, por informações a cerca de Gatsby, e Fitzgerald lhe respondeu em carta datada de 1925: Só vou antes meditar, ou meditei, no que você diz sobre a precisão: receio que ainda não atingi completamente a arte cruel que me deixaria cortar um texto refinado que não tinha lugar no contexto. Posso cortar o quase refinado, o adequado, até o brilhante, mas uma verdadeira precisão ainda está, como você diz, em um futuro distante. Você também está certo em dizer que Gatsby é indistinto e desigual. Eu próprio não o vi com clareza em nenhum momento – pois ele começou como um homem que eu conhecia e se transformou em mim mesmo... o amálgama nunca se completou em minha mente. (FITZGERALD, 2007, p.291)
No entanto, nem todos os ouvintes tinham críticas e recomendações a fazer sobre o romance. Em livro de publicação póstuma Paris é uma festa, Hemingway fala sobre a facilidade com que Fitzgerald alcançou as graças de Gertrude Stein – que exercia uma influencia muito grande em vários artistas, aos quais ela mesma deu a alcunha de 6
Eu acho que o romance é uma maravilha. Estou levando para casa para lê-lo novamente e então escreverei minhas impressões de forma mais completa; mas ele tem vitalidade em um grau extraordinário e glamour, e uma dose de pensamentos velados em qualidade anormal. Tem um tipo de atmosfera mística que às vezes você acrescenta a partes do Paraíso, de um modo inédito para você. È uma fusão maravilhosa, em uma apresentação única, das incongruências da vida de hoje. E quanto à escrita pura é surpreendente. (Tradução nossa.)
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geração perdida. Podemos perceber no trecho da carta a seguir, como essa afirmação é verdadeira, ela foi bastante complacente com o terceiro romance do autor: Gosto da melodia de sua dedicatória, e ela mostra que você tem uma formação de beleza e ternura, o que é um conforto. O outro aspecto positivo é que você escreve naturalmente as frases, e isso também é um conforto. Você cria um mundo moderno e uma orgia moderna que bastante estranhamente nunca tinham sido criados antes até você inventá-lo em Este lado do paraíso. Minha crença em Este lado do paraíso estava certa. Este livro é tão bom quanto o outro e diferente e mais velho, e isso é o que acontece, ninguém se torna melhor, mas diferente e mais velho, e isso é também um prazer. (STEIN;FITZGERALD, 2007, p.330)
Claro que temos aqui uma pequena amostra da crítica que Fitzgerald sofreu durante toda a carreira. O sucesso relâmpago de This side of Paradise, de certa forma o colocou em uma situação de contínua busca por repetir aquele sucesso de público, no entanto, com a qualidade literária de The Great Gatsby, muito embora isso jamais tenha acontecido. Ao lançar Tender is the night 7 as críticas negativas superaram às positivas e colocou o autor em uma situação defensiva que o abalou muito. Nesse mesmo ano, The Great Gatsby foi relançado pela Modern Library, que solicitou que o autor prefaciasse a publicação, ao que ele prontamente atendeu, pois enxergara nesse pedido uma possibilidade de responder às críticas impiedosas que seu quarto romance vinha sofrendo. Essas críticas referiam-se principalmente ao tom confessional do romance, nessa ocasião ele ouviu de Hemingway “ninguém quer saber de sua tragédia pessoal”, tal afirmação, como outras do amigo, teve um enorme e melancólico efeito sobre ele. A seguir, temos trechos do prefácio encomendado pela Modern Library: How anyone could take up the responsibility of being a novelist without a sharp and concise attitude about life is a puzzle to me. How a critic could assume a point of view with include twelve variant aspects of the social scene in a few hours seems something to dinosaurian to loom over the awful loneliness of a Young author. (...) (FITZGERALD, 1991, pp.223-4)8
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Suave é a noite.
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Como alguém pode levar a responsabilidade de ser um romancista sem uma postura nítida e concisa em relação a vida é algo que me deixa perplexo. Como um crítico poderia assumir um ponto de vista
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Durante toda a sua vida Fitzgerald refletiu muito sobre o fazer literário. Hemingway lhe disse que a tarefa do escritor era escrever, da melhor forma que pudesse. Mas a personalidade atormentada de Fitzgerald o impedia de agir assim, ele escrevia da melhor forma que podia, mas reconsiderava a todo momento. Até mesmo chegou a reescrever de forma mais simplificada – ou talvez inferior – alguns de seus contos a fim de aumentar-lhes o valor de vendagem. No último ano de sua vida escreveu à sua filha Frances Scotty Fitzgerald uma série de cartas com as quais pretendia deixarlhe uma espécie de legado, e são essas cartas que nos revelam um pouco da personalidade angustiada e inquieta do autor, em relação à vida, mas principalmente em relação à arte, que para ele, era uma única coisa. Em uma dessas cartas, pouco tempo antes de morrer, ele afirma à filha: O pouco que realizei foi pelo trabalho mais exigente e árduo, e desejaria que nunca tivesse relaxado ou olhado para trás – mas declarado ao fim de O Grande Gatsby: “Encontrei o meu caminho – de agora em diante isso vem em primeiro lugar. Este é o meu dever imediato – sem isso nada sou. (FITZGERALD, 2007, p.316)
Aqui, Fitzgerald enxerga a vida de excessos como um erro, que se houvesse sido corrigido há tempo, teria lhe permitido mais obras apreciáveis, o teria mantido no nível de excelência de Gatsby. É triste pensar que ele sentia-se assim, pouco tempo antes de morrer, pois se o livro publicado em 1925 foi o seu grande marco literário, a obra na qual ele pensa – e a crítica concorda – ter atingido o seu ápice como escritor, então os últimos quinze anos de sua vida teriam sido desperdiçados com roteiros de Hollywood, contos comerciais e com festas e bebidas. Todavia, felizmente para o leitor, não foi assim, talvez o “dever imediato” que o perseguia o manteve vivo e por mais quinze anos ele foi plural. A utilização das cartas trocadas entre Fitzgerald e alguns amigos e familiares funciona como ferramenta para esta pesquisa. Já que muitos desses ouvintes puderam entrar em contato com Trimalchio, ajudando o escritor a chegar no resultado final,
que incluem dúzias de aspectos variantes do cenário social em algumas horas, parece algo muito arcaico para pairar sobre a terrível solidão de um jovem autor. (Tradução nossa.)
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conhecido por The Great Gatsby. A demorada angústia de Fitzgerald em decidir-se pelo título a vontade (finalmente atendida) de nomeá-lo Trimalchio – registrada na correspôndecia trocada entre autor e editor – nos faz crer na veracidade de sua relação com Cena Trimalchionis e de forma mais geral, as cartas, nos permite documentar a legitimidade do diálogo que Fitzgerald travou com a antiguidade.
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DEFICIÊNCIA MENTAL NA LITERATURA JUVENIL: UM ESTUDO SOBRE A OBRA TANTÃ. Jéssica de Barros Franciscati
Resumo: O presente estudo visa contribuir com a sociedade no que cerne à educação, haja vista as políticas públicas de incentivo a leitura. Para tais efeitos, iniciamos nosso estudo apresentando qual é a forma de participação social a que esses jovens são convidados e como o mercado tem influenciado suas escolhas e a maneira como os mesmos são vistos pela sociedade. Seguindo a mesma linha de raciocínio este estudo adentra parte do universo juvenil no que tange ao ambiente escolar e como este por meio da leitura pode auxiliar esses jovens e adolescentes a compreenderem seus conflitos internos, inseguranças e inquietações. Embasando os tópicos anteriormente expostos, apresentamos a obra Tantã, escrito em 2011 por Marie Aude- Murail, na França, conduzido às escolas de nosso país, pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola, cujo enredo representa parte dos conflitos e constantes descobertas cotidianamente vivenciadas pelos jovens de nossa sociedade. PALAVRA-CHAVE: Juventude; Leitura; Literatura juvenil.
Introdução O estudo que se segue é fruto de reflexões germinadas ao longo da graduação. Pretendemos, por meio dele, contribuir com a sociedade no que cerne à educação, haja vista as políticas públicas de incentivo a leitura e assim, mediar à aproximação entre jovens e livros. Trataremos da identidade juvenil e como o mercado tem influenciado e definido o lugar destes jovens perante a sociedade. Na mesma esteira de pensamento, segue o segundo tópico que adentra parte do universo juvenil no que tange ao ambiente escolar e como este por meio da leitura pode auxiliar esses jovens e adolescentes a compreenderem seus conflitos internos, inseguranças e inquietações. Para corroborar os tópicos que já foram expostos, encerramos nosso estudo com a análise da obra Tantã que consta no acervo do ano de 2011, no Programa Nacional Biblioteca da Escola, direcionado ao Ensino Médio. Escrito na França por Marie- Aude Murail e, em 2009, traduzido por Rita Jover. Tantã, protagonista da obra, é um jovem
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de vinte e dois anos com idade mental de uma criança de apenas três anos; Por meio da vivência dos conflitos por ele enfrentados, é possível vislumbrar e compreender os jovens por esse estudo representados, que assim como ele buscam definir-se e consequentemente estabelecer seu lugar na sociedade. Pretendemos, por meio de nossa escrita e reflexões, difundir o acesso à leitura literária nas escolas e, assim, contribuir para a maturação desses jovens e adolescentes, pois acreditamos que a representação de nossas inquietações expostas pela leitura por meio de protagonistas como Tantã, que aparentemente nada tem em comum em relação a nós, podem ser pontes para nossa própria compreensão e, por conseguinte, melhor aceitação de nosso próximo. Entrelugar: Qual é o lugar do jovem na sociedade? Observamos, na figura do jovem, o alvo ideal para o sistema mercadológico. A indagação que inaugura esta escrita automaticamente nos remete às inúmeras propagandas que assistimos diariamente, que vendem à imagem de pessoas a flor da idade, felizes, sem nenhuma crise existencial e com disposição para mudar o mundo. Antes de respondermos à indagação que intitula este subitem, há, porém, uma questão anterior a ser feita: O que é um jovem? Segundo Ligia Cademartori, o adolescente é definido como um indivíduo entre 10 e 20 anos, que passa por modificações corporais e por adaptações a estruturas psicológicas e ambientais, que irão conduzi-lo à vida adulta. A definição do que seja um adolescente é, portanto, de natureza biopsicossocial. Já a definição de juventude parte de um enquadramento social e engloba parte da adolescência e o início da vida adulta. Corresponde a uma faixa etária que vai dos 15 aos 25 anos. Nesse período, espera-se que ocorra a maturação da personalidade do sujeito e o início de sua integração na sociedade a que pertence (BIANCULLI, 1997, p.31-39). Em suma, entre os 15 e 20 anos, não se é adolescente como também não se é jovem. Espera-se do candidato a adulto que suas atitudes sejam maduras o suficiente para lidar com as adversidades cotidianas e que esta mesma maturação não elimine totalmente sua pureza de criança interior, e assim sendo é sobrecarregado de ambivalências e de inseguranças, ao contrario do que possam sugerir as gloriosas imagens juvenis da publicidade (CADEMARTORI, 2009, p. 65).
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Contraditoriamente, as propagandas exibidas pelos meios de comunicação, várias são as dificuldades enfrentadas por estes jovens até sua fase adulta. O jovem ocupa na sociedade o que se convém denominar „entrelugar‟; ou seja, alguém que não ocupa um lugar definido. Não se é criança muito embora ainda sintam insegurança, medo, fragilidade, entre tantos outros sentimentos adversos, como também ainda não há a maturação necessária para esses serem considerados como adultos. Ora então que papel estes indivíduos ocupam na vida em sociedade? Segundo Afrânio Mendes Catani e Renato de Sousa Porto Giglioli: Igualmente, a juventude adquiriu relevo na esfera do consumo e da indústria cultural, em que o avanço técnico e a expansão dos meios de comunicação contribuíram para incorporar os jovens como protagonistas nos mercados da moda, da música e do esporte, entre outros (CATANI; GIGLIOLI, 2008, p.11). Aos olhos do mercado, os jovens são clientes em potencial. A moda é ditada para eles e por eles, e, assim sendo produzem-nas para atender às suas necessidades e, por sua vez, estes a consomem. Isso se dá em todos os setores: musical, esportivo, tecnológico, artístico e mesmo acontece em nos demais ramos da moda. De acordo com Ligia Cademartori: A grande forma de participação, a que o jovem hoje é convocado, resume-se ao consumo de moda, equipamentos eletrônicos, produtos da indústria cultural, ambientes de convivência e lazer juvenil. Logo, a participação que lhe oferecem relaciona-se essencialmente a dinheiro e ao poder que este oferece (CADEMARTORI, 2009, p. 64).
O jovem é bombardeado pelos constantes lançamentos ofertados pelo mercado com forte apelo midiático; ganha mais destaque aquele que segue as tendências e, estes, em uma busca incessante por aceitação, as consomem cada vez mais, afinal, estar conectado é preciso e, assim, grupos vão sendo formados. Vale mencionar que, ao se falar sobre juventude, cabe lembrar que estes indivíduos pertencem a camadas diferentes e, por conseguinte, possuem mais ou menos poder aquisitivo, o que leva os jovens de camadas menos privilegiadas não usufruírem das mesmas oportunidades e condições de vida. Dadas às circunstâncias, jovens menos abastados veem no seu próprio trabalho a oportunidade para também usufruírem desses bens ofertados pela mídia. É nesta fase da vida em que estes jovens mais sentem a sensação de pertencerem a este entrelugar:
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O consumo cultural destinado à juventude tem característica peculiar, pois nesse caso a condição juvenil é, em geral, vista de forma positiva. Isso é o contrário das situações nas quais o jovem vive problemas sociais que dificultam seu acesso à escolaridade ou está procurando trabalho, contexto em que é visto com frequência como imaturo, rebelde, delinquente, pouco qualificado e inexperiente. Na esfera do consumo, há uma imagem construída da condição juvenil como etapa áurea da vida, idade na qual se pode desfrutar do tempo livre, do lazer, do vigor, dos esportes, da sexualidade e da criatividade artística (CATANI; GIGLIOLI, 2008, p.20).
Para os autores, o desafio da sociedade é definir o jovem, enquanto que, para o jovem, é definir-se. Nesta fase tão transitória, de tantos descobrimentos e consequentemente cobrança, o jovem, como fuga a estas regras, experimenta então, outros tipos de relacionamento e vê no convívio com outras pessoas uma libertação das cobranças que o cercam; O jovem salta da família para as formas de inserções na sociedade, em que experimenta, com pessoas da mesma idade, relações sem hierarquia (CADEMARTORI, 2009, p.64) em que a sensação de igualdade é recíproca e por esta relação à sensação de domínio próprio e autoconfiança é sentida com plenitude. No convívio das chamadas turmas, ou hodiernamente, como se convém chamar, tribos, esta fase da vida se faz menos sentida ou talvez mais compreendida, afinal, esses pertencem em sua maioria à mesma faixa etária e estão matriculados em escolas. Destarte, acreditamos que a instituição de ensino possa ser então capaz de nivelar estes jovens, no sentido de colocá-los em igual posição e, por conseguinte a leitura pode ser um eficaz instrumento de maturação e compreensão de si mesmos. A Formação do jovem leitor: entre dores e prazeres A literatura pode ser um eficaz instrumento para permearmos o universo juvenil, porque expande as mentes e permite a vivência do novo. Citando a biografia de Luiz Ruffato, Ligia Cademartori nos descreve segundo a sua percepção àquilo que a leitura propicia a aqueles que dela se apropriam. A expansão dos horizontes. Expressa de forma poética está diretamente ligada à expansão da mente proporcionada por meio dos novos aprendizados permeados pela leitura. Como isso, pode ser trabalhado com estes jovens, que na flor da idade têm tantos planos, sonhos e conflitos e por esta razão possuem tantos questionamentos internos?
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A formação de leitores não implica apenas em seres felizes e realizados, no sentido corriqueiro da palavra, mas sim em seres intelectuais, críticos, capazes de formular questões para a melhor compreensão e transformação do meio em que vivem. O leitor é, portanto, um ser de coragem, que mesmo sabendo que pode encontrar dentro dos livros, palavras que o incomodem e evidências que o afetem; mesmo sabendo que poderá vir a perder o sono diante do livro que está lendo, atreve-se a continuar esta leitura e a enfrentar seus medos e inquietações. A respeito destes dois lados da literatura, convém lembrar que ela não é uma experiência inofensiva, mas uma aventura que pode causar problemas psíquicos e morais, como acontece com a própria vida, da qual é imagem e transfiguração. Isto significa que ela tem papel formador da personalidade (CANDIDO, 1995, p.175).
São entre dores e prazeres que se formam leitores. Entre as primeiras leituras ainda maçantes para alguns que posteriormente se encontra o prazer escondido entre as letras, os benefícios que a leitura proporciona. E o perfil deste leitor vai sendo construído. Capaz de ler o mundo e de ler, igualmente, a letra, este é o indivíduo que escreve e que encontra na leitura a fonte de um trabalho que cabe a ele desenvolver com esforço e fundamentação nas suas próprias inferências. A leitura crítica é um processo que se desenvolve no espaço contemplativo e que revela sua dimensão mais generosa ao propiciar a transformação do pensamento em ação (PROUST, 1989, p.36).
A capacidade de leitura não somente das letras, mas também do mundo é o maior bem que a leitura literária propicia. É por meio desta leitura que os jovens podem desfrutar da humanização que a leitura oferece e assim tornar-se-ão indivíduos mais sensíveis às angustias, dificuldades e dilemas de seus semelhantes. Nesse sentido a leitura é um bem, capaz de transformar a vida deste leitor, não por atribuir valores financeiros, mais por atribuir valores intelectuais. O leitor não é um indivíduo em treinamento, mas um sujeito em contato com materiais de leitura, e essa condição o habilita a se tornar autor de sua própria existência. A leitura como bem social o atinge
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individualmente e, desse prazer, dessa angústia, crescem as perguntas que animam todo leitor, o germe das ações criativas e transformadoras: por quê? Por que não? (PROLER, 2009, p. 23).
Não há quem já nasça leitor como por vezes se quis fazer crer. Ler, como as demais práticas da vida, requer empenho, determinação e dedicação. É preciso que haja esforço mútuo e unificado para que nossos jovens “percam-se” no mundo da leitura e que através dela encontrem-se no mundo social, como cidadãos de bens, escritores e detentores do próprio destino. [...] O desafio de mostrar a leitura como um bem capaz de promover melhorias materiais nas condições de vida, de facilitar a inserção das pessoas no mercado de trabalho, de fazer efetivo o exercício da cidadania. A leitura permite muitas vezes encontrar saídas nos momentos críticos, por meio do levantamento de questões pertinentes ao próprio modo de vida – das pessoas, do país, do mundo – e da reformulação de valores e propósitos (PROLER, 2009, P.14).
Mais do que isso, a leitura nos transporta a um mundo de possibilidades. Nela, e por meio dela, podemos sonhar com uma sociedade mais humana, pessoas mais justas e um mundo mais feliz e realizado. Um país desenvolvido se constrói com a força de pessoas bem sucedidas; pessoas bem sucedidas se formam por meio da educação propiciada pela fruição da leitura. Literatura e juventude: um encontro na obra Tantã Nesse sentido, a leitura é um bem capaz de transformar a vida deste leitor, não por atribuir valores financeiros, mais por atribuir valores intelectuais. Esse discurso vem corroborar o corpus desse estudo que trata das produções literárias voltadas ao público jovem e por meio dela a construção de jovens leitores literários. Além dos inúmeros benefícios proporcionados pela leitura, ela nos transporta a um mundo de possibilidades. Nela, e por meio dela, podemos sonhar com uma sociedade mais humana, pessoas mais justas e um mundo mais feliz e realizado. Um país desenvolvido se constrói com a força de pessoas bem sucedidas; Essas se formam por meio da educação propiciada pela fruição da leitura.
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Indivíduos educados valorizam o seu próximo sem dificuldades em aceitar as diferenças. Esse estudo nasce por meio das leituras semeadas pelo Programa Nacional Biblioteca na Escola, onde nos deparamos com as peculiaridades do mundo juvenil, enfatizadas pelo nosso protagonista Tantã e da inquietação de possibilitar a representação de pessoas com deficiência mental por meio de nossas obras literárias, haja vista a escassa publicação de produções nesse sentido. Uma pesquisa rápida na internet revela a nova tendência vigente: filmes estrelados por deficientes físicos e mentais em sua maioria portadores de síndrome de Down; Mas, no que tange as produções literárias com este repertório, sua avassaladora maioria ficam a cargo das demais áreas do conhecimento como a saúde, a pedagogia e a ciência. No entanto, não há protagonistas com deficiência mental, com exceção de Tantã, de Marie-Aude Murail, destinada ao público jovem, a qual integra o acervo de 2011 do Programa Nacional biblioteca da Escola – PNBE. A pensar nos direitos que todos nós, enquanto cidadãos temos, germina a inquietação da falta de representação na literatura para esse público e como ela pode auxiliar essas pessoas na sua formação enquanto leitoras. Por acreditarmos que a literatura seja um canal de transformação social, bem como de denúncia e representação, nosso protagonista ganha espaço e voz fugindo dos padrões convencionais apresentados pelas demais obras do Programa Nacional Biblioteca na Escola – PNBE. Deficiência Mental na literatura juvenil um estudo da obra Tantã A pensarmos nas necessidades do nosso próximo e em consonância aos estudos expostos até aqui, iniciamos esse tópico como a escrita de Marie-Aude Murail, autora francesa, da obra Tantã, corpus de nosso estudo que em 2008 em sua versão alemã recebeu o Deutscher Jugendliteraturpreis, Prêmio Alemão de Literatura Juvenil. Essa obra é catalogada entre as pertencentes ao Programa Nacional biblioteca da Escola – PNBE, e faz parte do acervo disponibilizado em 2011. Barnabé Maluri, nosso protagonista, é um jovem de vinte e dois anos, cuja mentalidade é de uma criança de apenas três anos e como tal, sente medo, insegurança e uma vontade imensa de descobrir o mundo.
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Tais características tão comuns a qualquer pessoa ganham ênfase na vida de Barnabé: Ele é deficiente mental. Por fora um grande homem, por dentro um pequeno menino. Tantã, como é carinhosamente chamado por Kleber, seu irmão mais novo de dezessete anos, a quem compete seus cuidados, tem seu mundo todo apoiado na coragem do irmão, um jovem adolescente que abdicara sua vida em prol do irmão; Após a morte da mãe, o pai de Kleber, decide refazer sua vida com outra mulher e julga que Tantã seja um fardo muito pesado a ser carregado. Sem a presença da mãe e a indiferença do pai, Kleber sente-se na obrigação de tomar os cuidados de do irmão para si, muitos foram os desafios enfrentados por ele para manterem-se próximos: Tantã, bem como as crianças „de sua idade‟ julga-se autossuficiente em determinadas situações, bem como pequeno demais para outras; gosta de inventar novas palavras e novos significados para as já existentes: Palavras como vervóler (revólver), remédico (remédio), tefelone (telefone), e homininhos (homenzinhos que para ele moram dentro dos aparelhos eletrônicos, cuja função é fazerem as “luzes brilharem”) apenas para citar algumas fazem parte do vocabulário habitual de Tantã e consequentemente do cotidiano de Kleber. Não bastasse todos os obstáculos enfrentados pelos irmãos, estes se veem desabrigados. Por infortúnio do destino Kleber, após inúmeras tentativas de alugar uma casa para morarem juntos, depara-se com um anúncio de jovens em busca de companheiros para uma república estudantil, o que para o irmão caçula seria ideal, pois ratearia as despesas com os demais, haja vista que sobrevivia da pensão deixada pela falecida mãe. Mas aceitariam a Tantã? Seriam solidários as suas necessidades? E Tantã? Adaptar-se-ia? A admissão dos irmãos Maluri na república dos amigos, Corentin e Enzo e do casal de namorados Ária e Emmanuel, concede-nos espaço para inúmeras discussões. Está a sociedade em pleno século XXI adaptada realmente as diferenças? E no que tange o contexto escolar e juvenil está preparado para estes jovens? Para Olga Maria Bastos e Suely Ferreira Deslandes: A participação nas atividades diárias estaria sendo privilegiada em detrimento das intervenções que focalizariam, principalmente, a promoção da independência. Entretanto, para a maior parte dos
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adolescentes do nosso país, não é esta a realidade encontrada; eles precisam se ajustar às exigências sócias em uma sociedade que em nada favorece esta adaptação. (BASTOS; DESLANDES, p.11).
Para as estudiosas, jovens como Tantã não encontram o espaço e a aceitação necessária na sociedade, a respeito, Murail evidência isso em sua obra quando os demais jovens moradores da república deixam claro que não se responsabilizarão por Tantã, enquanto Kleber estivesse fora, e a enfática insistência por parte do próprio pai para que o filho mais velho fosse internado em Malicroix, um clínica psiquiátrica, na qual Tantã já havia sido interno e para onde tinha pavor de voltar. No decorrer de sua estória, Murail traz na fala de seu protagonista questionamentos pertinentes a morte, à vida e, curiosidade sobre garotas ao despertar de uma sexualidade que pressupomos anuladas em jovens como ele. A presente obra, por nós analisada, vem corroborar o que já mencionamos nos subitens anteriores: A literatura em seu caráter denunciador expõem nossos medos, preocupações e preconceitos por meio de livros como Tantã. Ele não está entre os clássicos, nem tão pouco no ápice das listas dos best sellers, mas vai além, por que revela aquilo que a todo tempo tentamos esconder. A personagem de Kleber vivencia na distância de seu irmão muitos dos dilemas enfrentados por jovens de sua faixa etária. A sensação de impotência frente a algo que muito se quer e que não pode obter devido a sua idade. Dentro de si, tinha a perfeita consciência de que possuía a devida capacidade para cuidar de Tantã, mas como provar isso a sociedade. Alguns jovens, assim como Kleber, travam o confronto diário de comprovar sua capacidade. Seja na escola, no mercado de trabalho, no seio familiar; Toda sociedade sujeita esses indivíduos às roupas que vestem as músicas que escutam, o modo como se comunicam e exigem, por algumas vezes, que amadureçam rápido demais, que em sua maioria são pais, patrões e professores; os adultos de hoje, esquecem-se que já foram os jovens de ontem, com os mesmos dilemas e mutações e presumem-se diferentes sobre o pressuposto de que em sua época tudo era diferente. Tantã, como jovem que é também não resiste às pressões de Malicroix. Novamente evidenciando sua posição no entrelugar, arquiteta seu plano de fuga como
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um homem e como criança se amedronta ao se deparar com a cidade grande. Aquela não era a mesma Paris em que passeava com seu irmão. Sem Kleber, sabe que precisa se virar sozinho, mas ainda não sabe como: [...] Ao se encontrar em plena noite, no meio da cidade, o sentimento de ser bem pequeno apertou seu coração. - É o Sr. Mutchbinguem. Ele vai a Paris. [...] A verdade vinha à luz no meio da noite: era dele, não dos coelhos, que as pessoas não gostavam [...] (MURAIL, 2009, p. 175-178). Mutchbinguem é uma personagem que Tantã utiliza para se sentir adulto. De terno e gravata incorpora o adulto que sente vontade de ser. A perca da inocência de Tantã quebra a escrita singela que a autora nos concede até aqui. O sofrimento encarado durante o período de internação traz, dentro do possível, haja vista suas limitações, o amadurecimento e junto a ele a desconfiança dos adultos. Ao sentir-se abandonado por seu irmão e os demais companheiros de república, passa a acreditar que não pode confiar em mais ninguém. A pureza do mundo vivido por Tantã é acinzentado pelas ações mais vis dos indivíduos “normais”. Essa quebra de paradigmas é feito propositalmente pela autora que nos conduz a refletir sobre nossas ações e escolhas e como essas podem interferir no ciclo de vida do outro, mesclando em um único texto a inocência e a malícia. Por meio da escrita de Marie- Aude Murail, pessoas marginalizadas ganham vozes. Isso é o que de mais precioso à literatura pode oferecer a esses jovens: sensibilidade. Após uma leitura como da obra Tantã, é impossível visualizarmos aqueles que junto a ele toleram o mesmo mal, não com olhos de pena e sofrimento, mas com olhos de igualdade. Ao conhecermos os seus anseios e sentimentos, descobrimos que eles nada diferem de nós. Kleber e Tantã de mãos dadas nos permitem acreditar em uma sociedade aberta as diferenças, em que elas sejam mais respeitadas e as simplicidades da vida mais sentidas. É por meio da literatura que todas essas sensações podem ser vivenciadas ainda que tão distante da nossa realidade. A literatura abre as janelas da alma. Ora entre dores, ora entre prazeres, conserva a inocência necessária bem como a cede-nos uma dose marotagem. Aventurar-se nela requer coragem e paciência, mas muitos são os frutos que esta pode germinar a vida de todos aqueles que concederem lugar a ela. Em um mundo que cresce em velocidade
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frenética, repleto de desamores, desventuras e a literatura nos garante a fruição necessária para alimentarmos nossas almas por que a realidade não basta. A literatura não nos torna mais felizes, pelo simples fato de lermos, torna-nos mais realizados por nos tornarmos pessoas melhores. Considerações finais Retomando nosso percurso até aqui, destacando seus pontos principais. Iniciamos apresentando o Programa Nacional Biblioteca na Escola - PNBE, que distribui livros às escolas da rede pública de ensino, cadastradas no censo escolar, sendo hoje o maior semeador de livros. O que se torna muito caro ao constatarmos que a instituição de ensino ainda é, para muito jovens, o primeiro e único contato com a leitura literária. Nosso estudo vem corroborar a importância desse programa, haja vista a qualidade dos livros por ele ofertado, tanto em seu conteúdo quanto esteticamente. Falando em cifras, destacamos o papel do jovem frente ao consumismo e os desafios por eles enfrentados na sociedade, e por esse viés, permeamos o universo juvenil no tocante aos diversos sentimentos e sensações por eles sentidos nessa fase tão transitória e por isso tão sentida. Destacamos assim, o „entrelugar‟ por eles ocupados no corpo social e as adversidades em estabelecer sua personalidade. Contamos que o maior ponto em comum entre eles é que em sua maioria, esses ocupam ou já ocuparam carteiras em nossas escolas e por essa razão, acreditamos que a escola seja a ponte mais eficaz entre esses jovens e a literatura e em consonância, a literatura pode ser o caminho para a compreensão de si mesmo, auxiliando a maturação da personalidade, melhor percepção de seus conflitos internos e maior aceitação do seu próximo ao sentir as dores e dilemas dos outros por meio da leitura. Obras como Tantã, vêm corroborar para embasamento tudo aqui já mencionado. Demonstra como as publicações ofertadas pelo PNBE, em muito contribuem para construção de jovens leitores e daí a relevância social, e a necessidade de expansão do programa. Tantã ainda é um delicioso exemplar do universo juvenil. Seus dilemas, suas necessidade, suas vidas em grupo, em família e a divergências por eles vividas ao longo de todo enredo escrito por Marie- Aude Murail.
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Porém mais que isso, Tantã nos proporciona humanização, conscientização e sensibilização pelas dores e alegrias do nosso próximo, mesmo que esse não seja portador de nenhuma deficiência mental. A leitura mais que nos conceder a compreensão de nós mesmos, permiti-nos vivenciar outras vidas, sentir as dores e as dificuldades por outros vivenciadas e por meio delas curar nossas próprias dores. Referências Bibliográficas BASTOS, Maria Olga & DESLANDES, Suely Ferreira. Disponível em: (Acesso em: 26.10.2013). BIANCULLI, C. H. Realidad y propuestas para continência de La transición adolescente em nuestro médio. Adolescencia Latino Americana, Buenos Aires: CENESPA/ EDISA, v. 1, p. 31-39, 1997. CADEMARTORI, Ligia. O Professor e a Literatura para pequenos, médios e grandes. 2009. CANDIDO, Antônio. O Direito à Literatura. In.:___. Vários Escritos. 3a ed., revista e ampliada. São Paulo: Duas Cidades, 1995. Disponível em: http://(www.ceale.fae.ufmg.br. Dentro do PNBE, o Ceale é um dos centros responsáveis pela avaliação de obras literárias, que serão destinadas aos alunos da Educação Infantil, dos anos iniciais do Ensino Fundamental e da Educação de Jovens e Adultos. (Acesso em 10-08-2013). Disponível em: http://www.fnde.gov.br/programa/biblioteca-da-escola/biblioteca-daescola-funcionamento. (Acesso em 07.07.2013). Disponível em: http://www.portal.mec.gov.br (Acesso em 06-07-2013). PROLER, Bens de Leitura. 2009. Disponível http://www.bn.br/proler/images/PDF/cursos4.pdf acesso em 05 de junho de 2012.
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CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: AMPLIANDO POSSIBILIDADES DE REFLEXÃO E (DES)CONSTRUÇÃO DO CÂNONE Jéssica Kurak Ponciano (UNESP – Presidente Prudente) Arilda Ines Miranda Ribeiro (UNESP – Presidente Prudente) Introdução Ao longo da história das artes e da literatura é possível observar um veemente silenciamento das minorias sexuais. Tal mutismo acontece pelo fato de que, essas minorias evocam em sua simbologia a inferiorização; oriunda da idéia de que o conceito de gênero funciona como sentido e essência, situada numa antiga tradição de hierarquias (BUTLER, 2003). As obras designadas para a composição do cânone literário, bem como os sujeitos que as elegem foram e ainda são, em sua considerável maioria, procedentes de uma tradição estética sistematizada em concepções patriarcais. Os movimentos de resistências, lutas e correntes teóricas da contemporaneidade muito contribuíram para a desconstrução destes padrões hegemônicos. As diversas correntes feministas iniciaram um processo de desbravamento dos horizontes do pensamento ocidental, questionando o papel da mulher na sociedade. Os estudos feministas preocuparam-se com reflexões acerca da importância histórica e artística, bem como as diferentes nuances que perpassam as vivências dos sujeitos femininos inseridos no universo cultural e literário. Outro importante avanço ocorrido no cerne do pensamento feminista foi o entendimento do “gênero” como uma construção cultural, social e simbólica da masculinidade e da feminilidade, colocando o sexo na categoria de identidade biológica dos sujeitos (SCOTT, 1990). O trabalho em questão é proveniente de uma pesquisa de mestrado em andamento, e tem como objetivo analisar os textos literários que compõe o material didático do Ensino Médio da Rede de Ensino do Estado de São Paulo à luz da Crítica Literária Feminista. Parte-se do princípio de que, as minorias sociais, aqui mais especificamente as mulheres, foram por longo tempo e ainda são silenciadas dos campos políticos, sociais e artísticos, (BEAUVOUIR, 1980; MILLET, 1970; FRIEDAN, 1971; JAGGAR &
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BORDO, 1997) incluindo a produção literária e a crítica. Às mulheres foi/é negado o lugar de destaque tanto na produção literária quanto o direito de atribuírem valor às obras que pertencem ao cânone. As “Ondas do Feminismo” no Brasil e no mundo O movimento feminista, devido a sua complexidade e caráter revolucionário em relação aos acontecimentos e mudanças que ocasionou no pensamento ocidental, passou a ser dividido em três fases distintas, chamadas também de “ondas do feminismo”. Constância Lima Duarte (2003) explica que o pensamento feminista no Brasil originouse por volta das primeiras décadas do século XIX e conheceu pelo menos quatro grandiosos momentos ao longo de sua história (DUARTE, 2003). Duarte (2003) relata que o primeiro propósito buscado pelas mulheres na primeira onda do feminismo brasileiro, ocorrido no início do século XIX, é a conquista do direito à leitura e à escrita. Nesse período a maioria das mulheres viviam uma extrema privação cultural (DUARTE, 2003, p. 153). Nesta etapa destaca-se, como cita Duarte (2003), a autora identificada com o pseudônimo de Nísia Floresta Brasileira Augusta. Esta autora foi responsável pela produção da primeira obra brasileira a tratar de temas referentes ao direito da mulher à educação científica e ao trabalho; sendo também uma das pioneiras na publicação e veiculação de seus escritos em grandes jornais da época (DUARTE, 2003, p. 154). A segunda onda feminista surgida por volta de 1870 no Brasil teve, segundo Duarte (2003), um caráter muito mais jornalístico do que literário, visto que o número de jornais e revistas que esboçavam um posicionamento feminista cresciam imensamente. Nesse período, muitos veículos de comunicação escrita divulgavam as vitórias feministas em outros países. Nessa etapa discutia-se, ainda que de modo tímido, o direito das mulheres à participação na vida política do país, bem como temáticas referentes ao direito a um ofício com remuneração justa para ambos sexos; à inserção feminina no ensino superior e o direito ao divórcio (DUARTE, 2003, p. 156). A jornalista destacada por Duarte neste período foi Josefina Álvares de Azevedo, militante assídua das reivindicações feministas da época, questionou de modo enfático a opressão sofrida pelas mulheres(DUARTE, 2003, p. 156).
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Na terceira onda feminista brasileira que despontou em meados do século XX, onde, segundo Duarte (2003), as mulheres encontram-se relativamente organizadas, almejando o “direito ao voto, ao curso superior, e à ampliação do campo de trabalho, pois queriam não apenas ser professoras, mas também trabalhar no comércio, nas repartições, nos hospitais e indústrias.” (DUARTE, 2003, p. 160). Nesta etapa, de acordo com Duarte (2003) muitas mulheres podem ser destacadas, entre elas Bertha Lutz, considerada uma das mais expressivas lideranças na luta pelo direito ao voto feminino no país. Também nesse período destaca-se Maria Lacerda de Moura, que com uma proposta mais ousada, buscava a “libertação total da mulher”, em sua obra ‘A mulher é uma degenerada?’, obteve três edições e grande notoriedade, repercutindo em várias polêmicas (DUARTE, 2003, p. 160). Somente nos anos 1970 o movimento feminista conheceu seu período mais profícuo no país. As reivindicações feitas pelas mulheres nas “ondas” antecessoras tomaram, nesta fase, um caráter de regularidade (DUARTE, 2003). Nesse período o Brasil assistia a uma luta das mulheres que, ao invés de concentrar forças nas lutas pelos direitos femininos, se vêem compelidas a posicionarem-se diante de questões políticas referentes à ditadura militar, à censura e a redemocratização do país, visto que o Brasil encontrava-se em uma peculiar circunstância histórica. Apesar do fator histórico descrito, nota-se nesse período acaloradas discussões acerca da sexualidade e da autonomia do corpo feminino (DUARTE, 2003, p. 162). Nesta etapa, Duarte (2003) destaca Rose Marie Muraro, pela postura assumidamente feminista e pelas inúmeras obras publicadas pela autora sobre a temática. Muraro, além de sua consistente produção científica e assídua militância, foi responsável pela vinda da feminista norte-americana Betty Friedan, evento que provocou grande alvoroço no país, o que Duarte (2003) descreve como “um maremoto de proporções inimagináveis” (DUARTE, 2003, p. 166). Os movimentos intitulados “ondas do feminismo” descritos acima, e recorrentes no Brasil, não possuem necessariamente a mesma paridade de lutas e períodos temporais daqueles ocorridos em alguns países da Europa e na America do Norte. O século XIX, responsável por delinear a modernidade conheceu primeira onda feminista, que perdurou até o início do século XX. Essa geração tem como principal característica
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a reivindicação pela igualdade dos direitos entre mulheres e homens (NARVAZ; KOLLE, 2006, ; MURARO, 2001). Nesse período a grande preocupação das mulheres girou preferencialmente em torno das diferenças de remuneração salarial em relação aos homens, mesmo quando estes ocupavam a mesma função. Outras preocupações latentes do movimento feminista nessa época são as questões referentes à conquistas de patrimônios privados e da privação de escolha que a mulher tinha sobre o seu próprio casamento, entre outras opressões patriarcais sofridas pelas mulheres (NARVAZ; KOLLE, 2006, p 647). Outra forte reivindicação do movimento feminista durante sua primeira fase foram as questões de participação política das mulheres, o que até então lhes era privado. Com relação a este direito, as lutas foram travadas até que o mesmo fosse obtido. Após a obtenção do direito à participação na vida política, as lutas referentes à liberdade sexual, econômica e reprodutiva seguiam adiante. A primeira fase do movimento feminista foi duradoura, visto que as reivindicações das mulheres rompiam de modo radical aos diversos padrões vigentes na época. Várias das reivindicações realizadas nesta fase demoraram a serem conquistadas, como por exemplo o direito ao voto (ALVES; PITANGUY, 1981). O reconhecimento dessa etapa de luta como “Primeira onda Feminista” só veio após algum tempo, quando o ocidente assistiu à entrada de uma nova tendência dentro do movimento feminista. Esta nova tendência foi intitulada “Segunda onda Feminista”. A segunda onda feminista ocorreu entre as décadas de 1960 e 1980. Nesta fase a ênfase da luta feminista é a ruptura completa com a discriminação que pesava sobre homens e mulheres, e a busca pela igualdade plena entre os sexos e a inserção integral da mulher na sociedade. Nesta fase, as militantes reconhecem e associam a opressão feminina à um conjunto de fatores culturais, imposição histórica e cultural do patriarcado que prosseguia com a opressão (FRASER, 2007, p 292). Há também o reconhecimento dos fatores políticos como responsáveis pela invisibilidade feminina. Os espaços políticos eram dominados pelos homens, que julgavam e faziam tudo em seu favor e ao seu bel prazer, excluindo as mulheres de seus direitos e lugares de liderança e de decisão. (BEAUVOIR, 1980)
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Se na primeira fase do movimento feminista as preocupações voltavam-se para as questões afetivas dos casamentos que não eram autônomos para as mulheres, a segunda fase avançou a medida que propôs não só a livre escolha das mulheres em relação aos seus parceiros, mas também com relação ao papel que lhes era designado: papel referente aos cuidados domésticos e a maternidade. Nessa fase o movimento ganha legitimidade maior em meio às produções científicas, seu fim culmina com a entrada do movimento numa nova fase, a “Terceira onda Feminista”. Segundo Narvaz & Kolle (2006) : A terceira fase do feminismo (terceira geração ou terceira onda), cuja proposta concentra-se na análise das diferenças, da alteridade, da diversidade e da produção discursiva da subjetividade. Com isso, desloca-se o campo do estudo sobre as mulheres e sobre os sexos para o estudo das relações de gênero. Neste sentido é que algumas posições, ainda que heterogêneas, distinguem os Estudos Feministas - cujo foco se dá principalmente em relação ao estudo das e pelas mulheres, mantidas as estreitas relações entre teoria e política-militância feminista - dos Estudos de Gênero (...).(NARVAZ; KOLLE, 2006, p. 649)
A principal função da terceira onda feminista foi a correção de lacunas que não haviam sido abordadas pelas fases anteriores. Essa etapa surgiu por volta da década de 1990, buscando questionar algumas das assertivas impostas nos outros períodos, dentre elas as definições essencialistas de feminilidade, que apoiavam-se nas vivências de mulheres brancas e pertencentes a uma condição econômica semelhante entre si (classe média alta). A terceira onda feminista, fortemente marcada pelo pensamento pósestruturalista, busca aprofundar seus questionamentos e problematizações em questões micropolíticas, refletindo de modo mais específico sobre as demandas de diferentes tipos de mulheres (negras, orientais, trans, etc). Na metade da década de 1980 os primeiros sinais da nova tendência do pensamento feminista já despontavam, porém, historicamente a terceira onda feminista é registrada com seu início da década de 1990. Nesse período o mundo ocidental conheceu um avanço também nas questões referentes ao desenvolvimento das ciências humanas (NARVAZ; KOLLE, 2006). Como foi dito, a terceira onda feminista levou a indagações mais profundas e amplas sobre a condição dos diferentes segmentos sociais, religiosos e étnicos de variados tipos de mulheres. Com isso, iniciam-se diferentes questionamentos internos, colocando em problematização quesitos ideológicos do próprio movimento. Nessa etapa
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histórica surge o que se chamou “Feminismo da Diferença”, as mulheres começam a reconhecer as significativas diferenças entre e sexos e surgem ramificações distintas dentro do próprio movimento feminista. Como foi discutido acima, a terceira onda feminista reelaborou uma série de pensamentos internos do próprio movimento. Essa resignificação fez com que, aos poucos, surgissem diferentes ramificações, contendo suas características peculiares dentro do próprio movimento. A resignificação e a reivindicação das mulheres pelo seu lugar, direitos e protagonismos nas várias esferas sociais fez com que o feminismo buscasse também a sua autonomia nas artes, expandindo suas preocupações para o universo da literatura. A literatura sob a influência do feminismo Assim como as três fases que nortearam o movimento social denominado feminismo, a literatura também acompanhou essa movimentação. Desse modo, na literatura pode-se observar que as tendências de produção e valoração do cânone acompanharam as questões ideológicas reivindicadas pelas mulheres. Fato ocorrido após o surgimento e consolidação do pensamento feminista, que expandiu também suas influências na produção literária, desembocando esse efeito na chamada crítica feminista. Em consonância com o pensamento de Elaine Showalter (1986) crítica literária feminista conheceu três fases: feminina, feminista e fêmea. Na fase feminina, a literatura produzida pelas mulheres contava com a imitação e a internalização dos valores estéticos patriarcais (SHOWALTER, 1986; ZOLIN, 2009). As autoras buscavam escrever como os homens. A ideia era a negação dos valores próprios do espaço feminino, ao negar o seu universo e adequar-se à esfera patriarcal, as mulheres acreditavam ser capazes de obter aceitação tal qual os artistas do sexo masculino. A fase que precede a produção literária feminina é a fase de produção de uma escrita feminista. Na etapa da produção literária feminista, as obras procuravam demonstrar um teor de transgressão aos padrões vigentes, buscando em seus escritos a expressão dos valores difundidos pelas correntes de pensamento feminista. Nesta etapa as mulheres reiteravam em suas obras, as opressões oriundas do sistema patriarcal (SHOWALTER,
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1986). Posterior ao momento de produção literária voltada às denúncias das insatisfações geradas pelo sistema social e político até então vigente, e que prevalecia sob o poder dos homens, inicia-se uma fase de reconsideração e apreço pelas características genuinamente femininas, a esta fase Showalter (1986) dá o nome de fase fêmea e/ou “da mulher”. A terceira fase da crítica literária feminista buscou, em sua execução, realizar a autodescoberta da identidade da mulher. Nesse período a produção literária voltou-se para a realização de uma literatura que fosse genuinamente feminina, sem negar as diferenças existentes entre os gêneros / sexos (ZOLIN, 2009). Nesse período, ao invés de negarem a sua subjetividade, as mulheres orgulham-se dela, há uma busca pela autenticidade feminina através da escrita. A literatura busca retratar o universo feminino despida de preconceitos, as mulheres começam a assumir suas peculiaridades, não mais com acanhamento e complexos de inferioridade, mas sim veracidade e orgulho, dando às suas obras um tom muito mais verossímil.
Considerações finais A partir das reflexões e fatos descritos acima pode-se concluir que o movimento feminista operou de modo fundamental na renovação do pensamento político, científico e artístico, sobretudo no campo literário, executando a desconstrução do cânone e dos padrões estéticos de produção literária que relegavam as mulheres e minorias ao ostracismo. O pensamento feminista trouxe a tona a potencialidade de obras literárias produzidas por mulheres, mostrando lhes as qualidades estéticas, e questionando a sua ausência do cânone. Em consonância com o advento da inserção feminina no universo literário, fazse igualmente necessário levar à percepção das instituições de ensino a importância dos avanços obtidos nas ciências humanas, visto que, as descobertas, evoluções e avanços das outras áreas do conhecimento são normalmente difundidas, valorizadas e contempladas pelas mais diversas disciplinas escolares. O trabalho de reflexão acerca do cânone literário que aqui se desenrolou pertence à um trabalho maior, que busca problematizar a importância de um olhar feminista para os textos literários que compõe material didático da rede pública de ensino paulista.
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Acredita-se que a democratização e o conhecimento dos fatores que levaram as mulheres e minorias a conquista de um espaço nos mais diversos meios, inclusive no meio literário e artístico deve ser reproduzido afim de garantir-lhes uma inserção ainda maior nos espaços públicos, democratizando ainda mais o ensino e levando às(aos) excluídas(os) maior altivez e consciência de suas legítimas identidades. Referências Bibliográficas BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo: a experiência vivida; tradução de Sérgio Millet. 4 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1980. COLLING, Ana. A construção histórica do feminino e do masculino. In: STREY, Marlene Neves; CABEDA, Sônia T. Lisboa; PREHN, Denise Rodrigues. Gênero e cultura:questões contemporâneas. Porto Alegre: Edipucrs, 2004. Cap. 1. p. 13-38. DUARTE, Constância Lima. Feminismo e literatura Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, p.151-172, set. 2003.
no
Brasil. Estudos
FRASER, Nancy. Mapeando a imaginação Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao da redistribuição ao reconhecimento e à reconhecimento e à representação representação. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 2, n. 15, p.291-308, ago. 2007. FRIEDAN, Betty. Mística feminina. Petrópolis: Vozes, 1971. JAGGAR, Alice. e BORDO, Ssusan. R. Gênero, corpo e conhecimento. Rio de Janeiro: Record e Roda dos Tempos, 1997 LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pósestruturalista. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. MILLETT, Kate. Política Sexual. Tradução de Alice Sampaio et.al. Lisboa: Dom Quixote, 1970. NARVAZ, Martha Giudice; KOLLE, Sílvia Helena. Metodologias feministas e estudos de gênero: articulando pesquisa, clínica e política. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 3, p.647-654, set. 2006. SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, p. 71-99.
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SHOWALTER, Elaine. A Literature of Their Own. In: EAGLETON, M. Feminist literary theory: a reader. Cambridge, Mass.: Blackwell, 1986. ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica Feminista. In: BONNICI, Thomas e ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria Literária. 3 ed. Ver. Ampl. Maringá: EDUEM, 2009.
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O FANTÁSTICO E O ALEGÓRICO EM AS FORMIGAS, DE LYGIA FAGUNDES TELLES
João Batista Pereira (UNILAB)
Nominar coisas e entes, classificando-os por parâmetros que tornem sua compreensão mais aceitável ou familiar, tem sido uma prática recorrente ao homem com o intuito de tornar concreto o que se lhe mostra abstrato. Promovendo tangibilidade a ideias e conceitos, corporificando identidades e tornando real o que fica difuso no reino dos pensamentos, as propriedades portadas pelo nome permitem a apropriação de universos desconhecidos, redimensionando o valor e as características do que constitui o mundo. Como caminho para tornar reconhecível o que usualmente se cristaliza pela apreensão dos sentidos, a literatura foi uma das áreas do conhecimento que criou e classificou diversas modalidades da expressão humana. Diante da diversidade de tipologias que englobam os discursos poéticos e narrativos, especificamente aqueles que concernem aos gêneros literários, este trabalho se restringirá a um recorte limitado: refletir sobre alguns fundamentos definidores do fantástico e como a teoria pode auxiliar na compreensão de sua eficácia estética na modernidade. O escopo a que nos ateremos para desenvolver essa discussão acoberta duas abordagens: a leitura que Tzvetan Todorov faz da alegoria no livro Introdução à literatura fantástica, e as possibilidades oferecidas por o componente alegórico como categoria hermenêutica antevista por Walter Benjamin na obra Origem do drama trágico alemão. Das ideias contidas nesses livros, deriva o nosso percurso, cujo embasamento propiciará a leitura do relato “No riacho da Prata”, parte da coletânea Assombrações do Recife velho, de Gilberto Freyre.
I.
In media res, lembramos que Vladimir Propp foi pioneiro na taxonomia literária ao estabelecer os conceitos de gênero e espécie, inspirado nas Ciências Naturais, fazendo analogias da literatura com a botânica e a zoologia. Simplificando o que
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exigiria uma reflexão mais acurada sobre essa classificação, a ótica sob a qual Todorov antevê a origem dos gêneros literários é permeada por uma faceta utilitária e pragmática: eles facilitariam, em suas mais variadas faces, a apreensão da realidade pelo homem. Pautados, em seu sentido lato, no estabelecimento de regras e/ou normas que funcionam para uma gama de textos, e não pelo que cada um deles teria de singular, o autor requisita a concepção de gênero, levando-nos a entender que toda obra pertencente à literatura deve obedecer a uma dupla exigência: aceitar que ela manifesta propriedades comuns ao conjunto dos textos literários, ou a um dos seus subconjuntos, e que ela não seria somente o produto de uma combinatória preexistente, constituída por propriedades estáticas, pois seria, também, uma transformação dessa combinatória (Cf. TODOROV, 1975, p. 10-11). Embasado no que aqui se principia, recuperemos o cerne das ideias todorovianas: apropriando-se dos registros preconizados por Northrop Frye no livro Anatomia da crítica, busca-se aclarar o que distingue os gêneros no âmbito da literatura, definindo características e emoldurando o que os qualifica. Todorov os divisa sob três aspectos: o verbal, baseado nas frases concretas que constituem o texto; o sintático, centrado nas relações que as partes de uma obra mantêm entre si, e o semântico ou temático, todos manifestados numa inter-relação complexa. De maneira injusta com os objetivos buscados pelo crítico em suas proposições, pode-se dizer que ele conceitua os gêneros a partir desse prisma para instrumentalizar o que advogará a seguir: assinalar o que modela o fantástico, o estranho e o maravilhoso, seus temas mais recorrentes, e destacar os vedações que a poesia e a alegoria provocam na apreensão da resultante estética no discurso da literatura fantástica (Cf. TODOROV, 1975, p. 13). Feitas essas remissões, centremos a atenção nas objeções quanto à impossibilidade de existir o fantástico quando apreciado à luz da alegoria. Para desenvolver sua argumentação, Todorov rememora o significado dos termos alegórico e literal. Considerando este como o que designa um sentido próprio, opondo-se ao figurado, no que consistiria o alegórico? Seguindo um percurso diacrônico para oferecer respostas a essa indagação, ele requisita o conceito de alegoria utilizado pela poética na Antiguidade Clássica, quando seu uso foi frequente pelos mestres da retórica, a exemplo de Quintiliano. Assimilada à época em similaridade com a metáfora, ela indicaria
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apenas uma maneira figurada de falar e, quando classificada como uma metáfora contínua, revelaria, também, a intenção de falar de outra coisa, além do objeto primeiro do enunciado. O endosso que Todorov propugna – referindo-se ao perigo de a alegoria impor restrições para a ocorrência do fantástico – continua com a menção do livro Allegory: the theory of a symbolic mode, de Angus Fletcher, de 1964. Relativizando o que seria bem mais complexo, ele justifica que a alegoria diz uma coisa e significa outra. Sem deflagrar nenhum tipo de problematização para essa afirmação e sem referências de fontes ou autores, menciona-se, uma concepção moderna de alegoria pela qual ela continuaria sendo uma proposição de duplo significado, cujo sentido literal se apagaria mediante o processo interpretativo. Por fim, reforçando a perspectiva que encapsula a alegoria nas limitações impostas por funções retóricas, são retomadas postulações do francês Pierre Émile Fontanier, que assevera ser ela uma proposição portadora de duplo sentido: o literal e o espiritual, simultaneamente (Cf. TODOROV, 1975, p. 69). O excerto de um poema extraído de A arte poética, de Boileau, citado no livro Introdução à literatura fantástica, serve para justificar essa assertiva:
Prefiro um riacho que, sobre a mole areia Num prado cheio de flores lentamente passeia Do que uma torrente transbordante que num curso tempestuoso Rola cheio de saibro num terreno pantanoso (Fontanier apud TODOROV, 1975, p. 70)
Em uma leitura ligeira, percebe-se que o poema não objetiva descrever as propriedades constitutivas de um riacho, mas a de dois estilos contrapostos no meio literário francês, ressaltando a importância da razão e do bom senso para alcançar um estilo ornado e polido, preferível ao impetuoso, desigual e desregrado. Sem que haja detalhadas explicações, lembra Todorov, a significação presente no quarteto de alexandrinos surge como uma obviedade, de forma quase explícita: por se encontrar em A Arte Poética, de Boileau, suas palavras deverão ser tomadas, obrigatoriamente, como uma alegoria da crítica feita pelo poeta aos excessos formais de uma corrente literária que vigia na França em meados do século XIX.
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Após expor as possibilidades hermenêuticas permitidas pela alegoria, Todorov divisa subgêneros para a literatura fantástica, sugerindo que os textos que os compõem poderiam ser lidos, ainda que parcialmente, no sentido literal e alegórico. Neste, eles guardariam apenas a conotação figurada, constituída em função de dois fatores: o caráter explícito da indicação feita e o desaparecimento do sentido primário. Com essa distinção, a presença da alegoria é assegurada a partir de uma perspectiva que é menos de natureza e mais de grau, mais adjetiva do que substantiva. Haveria a alegoria evidente ou pura (perceptível nos fábulas de Charles Perrault), a ilusória (a exemplo do conto “O nariz”, de Gogol), a indireta (nas obras de Honoré de Balzac) e a hesitante (nos textos de E.T.A. Hoffmann e Edgar Allan Poe), cada uma delas pondo em questão a validade do fantástico como gênero (Cf. TODOROV, 1975, p. 73-81). Com esse panorama, avizinha-se uma síntese: o registro da alegoria implica na existência de pelo menos dois sentidos, indicados explicitamente na obra, independendo de interpretações exteriores, sejam elas arbitrárias ou não: quando o primeiro deve desaparecer e quando ambos permanecem para o entendimento do que é lido. O que deve ser assegurado prioritariamente nessas conclusões do crítico é que não haveria lugar para o fantástico em uma obra que descreve um acontecimento sobrenatural, cujo texto não seja tomado no sentido literal, mas em outro que a ele não remeta.
II.
Podemos perguntar como essas propostas dialogariam com a alegoria benjaminiana, expondo novos vislumbres para uma figura de linguagem outrora alicerçada sob a égide da retórica e, principalmente, o que as afastaria. Lembramos que a discussão sobre a pertinência de dispor da alegoria para análise das narrativas literárias alcançou o século XX, buscando conciliar o campo ideológico, no qual ela se encontrava, e credenciando-a como artifício para assimilar um universo social contraditório, dependente de um lastro histórico. Em meio às incertezas vivenciadas pelo homem na atualidade, sua ascendência surge como consequência de condicionantes estéticos e ideológicos, por absorver novas formas de apreensão da arte e por predominarem os paradigmas marxistas, norteando uma visão política do fazer literário.
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Ao conjugar as propriedades que enlaçam essas duas abordagens, Walter Benjamin assimila o tempo social como um fator determinante para uma correta fruição da arte, em cuja interpretação a alegoria se consubstancia como vetor elucidativo de passado da e na história. O crítico conjectura sobre essa questão no livro Origem do drama trágico alemão, ao lembrar que a alegoria se consolida como componente hermenêutico a partir do século XVI, distinguindo-se da conotação perpetuada no medievo. Em sua leitura, esse ressurgimento se insere na estética quando a dramaturgia barroca é contraposta à clássica, concebidas como expressões situadas em universos espirituais distintos, carecedoras de valorações diferenciadas. O corpus analisado por Benjamin foram peças teatrais alemãs do século XVII, desconhecidas e nominadas de literaturas mortas, haja vista nunca terem sido encanadas, nas quais ele buscou distinguir o drama trágico da tragédia. O descentramento e o desengano do homem na modernidade ofereceram o escopo para sua reflexão: a tragédia, por meio da piedade e do terror, provocava a catarse purificadora; no palco, um acontecimento único manifestava um conflito que estava sendo julgado por uma instância mais alta por deuses que manietavam os destinos humanos. O drama trágico, ainda mobilizado em sua composição temática pelos ditames da alegoria cristã, oferece a visão de finitude do homem marcado pela morte, encenado em um palco que não é um lugar real, sem portar nenhuma relação com o divino. Vivenciam esses dramas espectadores inseguros, submergidos na iminência do movimento da história, condenados a direcionar os seus pensamentos para problemas para os quais não vislumbram solução. A instância cósmica e os deuses, guardiões outrora capazes de formular julgamentos e proferir vaticínios, definham, revelando o desespero do homem com a derrocada dos valores que antes o guiavam. Ausente a cosmogonia implicada na tragédia clássica, a alegoria barroca encontra sua força na metamorfose e na mutabilidade de expressão, invadindo o mundo moderno sob nova roupagem. É-lhe intrínseca a ambivalência entre perda e salvação, fragmento e totalidade, unidade e diversidade no dialético entrecruzar os caminhos híbridos por ela promovidos. Nessa configuração contraditória, “o universo concreto parece desvalorizado: seus elementos valem uns pelos outros; nada merece uma fisionomia fixa. Mas essa mesma alusividade aos objetos torna-os magnos e atraentes; o
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mundo indiferenciado se converte num tesouro de sentidos” (MERQUIOR, 1969, p. 105). Com a imagem da caveira e o divagante estado saturnino do melancólico, a alegoria revela um modo ambíguo de ser por meio da concentração de estados emocionais marcados pela instabilidade, alternados entre a tristeza e a ostentação. Sérgio Paulo Rouanet lembra a pertinência do pensamento de Benjamin ao aproximar o olhar alegórico do perfil divagante e atrabiliário do homem, quando dialoga com “Luto e melancolia”, texto de Freud: “morrendo enquanto objetos do mundo histórico, as coisas ressuscitam enquanto suportes de significações alegóricas” (ROUANET, 1981, p. 11). A letargia do melancólico no enfrentamento do presente derivaria de uma relação mal resolvida que o acompanha: sua incapacidade de libertação do passado o leva a se sentir culpado, preservando uma incessante lutuosidade:
Quando o objeto se torna alegórico sob o olhar da melancolia, deixa escapar a vida, fica como morto, fixado para a eternidade. Assim se depara ao artista alegórico, a ele destinado para a glória ou infortúnio: quer dizer, o objeto é totalmente incapaz de irradiar sentido ou significado, apenas lhe cabendo como sentido aquele que o alegórico lhe conceda (BENJAMIN, 2004, p. 147).
À luz dessa manutenção de vínculos incessantes do melancólico com o passado, Benjamim elabora conjecturas para consolidar sua leitura da alegoria como meio de recuperar outros ecos e versões de fatos petrificados pela história. Diferentemente do que a timbrava no didatismo medieval, na estética barroca, ela se assume como a expressão de uma convenção teológica já consolidada, monotematizando a dicotomia do Bem contra o Mal, cuja ocorrência se pautava na necessidade de ser uma convenção e uma expressão, e codificando uma instável mensagem cristã. A alegoria não é mais utilizada para disseminar e tornar hegemônico um culto religioso: há tempos, havia sido superada a diversidade de componentes sociais, ideológicos e culturais com que se debatera a Igreja Católica na Idade Média, consolidada como uma visão de mundo já construída. A questão não era tornar cristão quem ainda não o era, mas, sim, eliminar o choque que perdurava entre a proposta reformista e a contrarreformista com a arte; não havia mais uma única convenção cristã a ser imposta, mas a expressão mutável de uma
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crença já assimilada, questionada pela reforma luterana. Em resposta a esse contexto e contestando uma hegemonia religiosa agora abalada, a centralidade da alegoria barroca se desloca de Satã, que ficou represado na Idade Média, para invocar outro protagonista. A História, que, “em tudo quanto tem desde o início de inoportuno, de doloroso e de errado, se configura em um rosto, ou melhor, na caveira de morto” (BENJAMIN, 2004, p. 174), assume novos patamares na modernidade. Segundo Benjamin, dispor da alegoria como suporte analítico nesses novos tempos se impõe, considerando as condições históricas com que o homem se defronta. Ele lembra que, desde o Barroco, nos damos conta de que estamos longe da interioridade não contraditória do Classicismo, espelho de um mundo fechado e uniforme em seus valores e conceitos, capaz de se expressar na singeleza e na luminosidade do símbolo. Somos sobreviventes da destruição paulatina dos grandes valores antigos, aviltados e transformados pela mercantilização da vida, envolvida, agora, pela efemeridade que a caracteriza. O indizível que assedia o homem, sem que o qual não encontra respostas para as perguntas que o atormentam, sugere que cada fato notado, cada fulguração sentida, pode ter outros significados. Para se expressar coerentemente nesse universo de incertezas, a alegoria se configura, portanto, como um recurso de natureza exemplar: diz-se uma coisa sabendo que ela significa outra; remetese, com frequência, a outros níveis de significação, quase sempre distintos daquele em que se situam os emissores e receptores nos atos comunicativos. A alegoria ascende na modernidade expressando a convenção concreta e material dos fatos assumidos pela história. Ela renasce sob o signo de um tempo em que variadas formas de violência levaram ao declínio da experiência e intensificaram a vivência: aquela, vinculada à memória coletiva e à tradição, e, esta, relacionada à existência privada do individuo e à sua solidão. Dissociada da imagem mantida na Antiguidade, no medievo e no Romantismo, ela se converte em mantenedora da memória do mundo, tornando manifestas algumas ações reprimidas e apagadas em cada época, utilizando resíduos e fragmentos abandonados no tempo histórico. Tendendo a operar em intimidade com o elemento deslocado, perscrutando a contingência e o que foi esquecido na versão dos vencedores, enfatiza-se a principal função da leitura alegórica nessa simbiose entre a estética e o social: valorar a arte, inserindo-a no curso
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da história, revelando como seus procedimentos desnudam ruínas e escombros culturais que o símbolo tende a ocultar, como se portassem valores eternos, imutáveis e universais (Cf. HELENA, 1985, p. 23; BENJAMIN, 2004, p. 180). Feitas essas conjecturas acerca dos propósitos perseguidos por Todorov e Benjamin, voltamo-nos para o que pode surgir como modesta contribuição ao que propomos neste trabalho: considerar a possibilidade de a alegoria se converter em suporte analítico complementar no âmbito em que se situa a literatura fantástica, sem que sejam perdidos os fundamentos que a caracterizam como gênero. Lembremos a definição todoroviana para o fantástico: a imersão do leitor em um mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, no qual se produz um acontecimento inexplicável pelas suas leis. Ao percebê-lo, opta-se entre duas soluções possíveis: o acontecimento se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação, levando a crer que as leis do mundo continuam a ser o que são; ou ele realmente aconteceu, situação em que essa realidade seria regida por leis desconhecidas. Ao escolher uma ou outra resposta, deixa-se o fantástico para entrar em outro gênero: o estranho ou o maravilhoso. A sua permanência ocorreria na hesitação experimentada por um ser que só conhece e admite as leis naturais face a um acontecimento aparentemente sobrenatural. À luz dessas considerações, indagamos: quais aspectos poderiam ser destacados na alegoria benjaminiana que possibilitem vinculá-la ao fantástico? Ao rememorar o embasamento teórico utilizado por Todorov para argumentar sobre a configuração e as funções assumidas pela alegoria, é inescapável lembrar a perspectiva que permeou sua leitura, a qual foi amparada em acepções retóricas da Antiguidade, um universo que buscava alcançar as verdades do mundo, como assevera Antoine Compagnon, interessada na literatura em sua generalidade, a fim de deduzir regras ou leis (Cf. COMPAGNON, 2012, p. 59). Uma vez que a etimologia do termo “alegoria” ultrapassa uma conceituação estrita – ela fala de outra coisa, e não de si mesma – alos, outro; agorin, falar – o crítico, para mensurar os critérios que caracterizariam os impedimentos para a realização do fantástico, deveria descortinar seu emolduramento na modernidade. Ao se ater a um ponto de vista normativo, escapam-lhe as múltiplas concepções interpretativas que a envolvem, destacando seu poder de
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transformação, a forma móvel e cambiante de um recurso hermenêutico que permite representar o mundo em constante processo. Esse delineamento permitiria compreender o impacto da sua presença no contexto em que o fantástico se insere na contemporaneidade, desfigurado em suas causas e motivos quando comparado às feições que portou ao longo do século XIX. Nesse mesmo sentido redutor, surge a abordagem imanentista das ideias apresentadas no livro Introdução à literatura fantástica. Elaborado quando a rigidez estruturalista ignorava que o texto, para além de uma representação sígnica e linguística, deriva e encontra sua causa sempre na realidade, alude-se à impossibilidade de vislumbrar a alegoria como categoria explicativa do fantástico. As alegações que justificariam tal afirmação exigem que dela se encontrem indicações textuais explícitas, vedando o surgimento de espaços ou informações da exterioridade para interpretar o sobrenatural ou o insólito que mantém a hesitação do leitor. Desde Antonio Candido, sabe-se que os caminhos para absorver literariamente os elementos da diegese nas análises literárias implica em tê-los dependentes da forma como são inseridos no texto. Sem que esse movimento ocorra de forma arbitrária ou dissociada da obra, o aporte que alguns aspectos da realidade podem oferecer ao crítico não surgiria como um fato concorrente ou
diluidor da natureza hesitante própria do
fantástico, mas
complementando-o e convergindo para um entendimento mais completo do que se deseja interpretar. É patente nas concepções de alegoria mencionadas por Todorov a ausência da conotação histórico-social, reverberando apenas regras e formatos gramático-normativos. Distintamente, a alegoria resgatada por Benjamin, por sua natureza plural, quando utilizada, não fica restrita apenas ao que é sugerido no texto: ela o ultrapassa, escavando reminiscências aprisionadas pelo tempo e explorando expressões e atitudes recorrentemente apagadas pela história.
III.
Findamos estas reflexões vislumbrando a alegoria como um recurso para compreender o alcance e os limites do fantástico na modernidade, cuja propriedade de redimir camadas de vida submersas nas ruínas desprezadas pelo tempo permite que sua
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utilização encontre relevo naquele gênero literário. Na revisão empreendida da obra todoroviana, endossamos o mérito do autor em estabelecer seminalmente os pressupostos exigidos para análise dos textos situados no universo da literatura fantástica. A originalidade de sua abordagem reside no pioneirismo ao apontar parâmetros para formular, no livro Introdução à literatura fantástica, um mosaico que contempla obras e autores e que determina os pilares teóricos, temáticos e estruturais do gênero. Todavia, ao ser assediado por condições sociais, políticas e econômicas que definiram novas formas de perceber a realidade na contemporaneidade, convém relativizar a afirmação de Todorov de que o uso da alegoria como suporte interpretativo inviabilizaria a existência do fantástico. No âmbito do que pretendemos desenvolver neste artigo, supomos que, ao restituir importância ao contexto e ao explorar expressões apagadas pelo tempo, ela contribui para amplificar o sentido da arte literária, cujos códigos sensorial, imaginário, convencional e conceitual dialogam continuamente, efetuando intercâmbios e fundindo elementos que repousam, sempre, nos escaninhos da história.
Referências
BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Lisboa: Assirio & Alvim, 2004. COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê?. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. HELENA, Lucia. Totens e tabus da modernidade brasileira. Símbolo e alegoria na obra de Oswald de Andrade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro / CEUFF, 1985. MERQUIOR, José Guilherme. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969. ROUANET, Sérgio Paulo. Édipo e o anjo. Itinerários freudianos em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1981. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.
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DIÁLOGOS DE BRECHT COM O TEATRO INFANTIL BRASILEIRO Joaquim Francisco dos Santos Neto (UEM) Este trabalho é parte de uma pesquisa maior que investiga o teatro para crianças e jovens no Brasil a partir de peças teatrais publicadas. De início já se pode perceber por essa afirmação as lacunas que esse posicionamento abre, sendo a principal delas a recuperação dessa dramaturgia em acervos, arquivos, bibliotecas e lojas de livros usados. Assim, pela metade em que se encontra o processo de investigação, foi possível identificar, entre mais de 130 textos lidos, um diálogo explícito entre Brecht e o teatro infantil e juvenil brasileiro em autores como Oscar Von Phul, Walter Quaglia, João das Neves, Ilo Krugli e ainda Chico Buarque. Quando se trata das relações de Brecht com o teatro brasileiro, como resume Bader (1987), o dramaturgo alemão chega ao Brasil por diferentes caminhos nos anos 40, torna-se robusto e cresce nos anos 50, consagrando-se nos anos 60. Para Bader, “o sucesso de Brecht nos anos pós-64 se deve, sobretudo, à sua capacidade de corresponder à politização do teatro brasileiro e à capacidade dos grupos teatrais de adaptá-lo com sucesso à situação brasileira” (BADER, 1987, p. 17). É nesse contexto de consagração e capacidade de adaptação de Brecht à situação brasileira que se registram as marcas do encontro entre o autor alemão e o teatro infantil brasileiro. Isso porque nos anos 60, tal como o teatro para adultos, o teatro infantil passa pelo processo de politização a que se refere Bader. Exemplo disso é a obra de Oscar von Pfuhl, um pioneiro na abordagem de temas políticos e sociais para crianças. Pfuhl iniciou-se como escritor para o público infantil em companhia de Tatiana Belinky e Júlio Gouveia, adaptando e escrevendo roteiros para o Programa Teatro da Juventude, na TV Tupi. Suas primeiras peças infantis foram dirigidas por Plínio Marcos, em 1959, em Santos. Tais peças, como Um lobo na cartola e A árvore que andava, seguem a linha de adaptação e redimensionamento dos contos maravilhosos e tradicionais, vertente essa iniciada por Lúcia Benedetti, quando, em 1948, escreveu O casaco encantado e
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entregou à Companhia Artistas Unidos, da atriz e diretora Henriette Mourineau, para representação. Essa forma, via de regra, pauta-se pelo desenvolvimento de conflitos intersubjetivos e diálogos interindividuais, visando à identificação da plateia com as personagens. No entanto, gradativamente, Pfuhl vai incluindo em suas peças elementos que ampliam o drama de personagens em choque, circunscritas aos limites de sua moral individual. Passa a inseri-las em contextos mais amplos, revelando a historicidade de suas relações, o que é uma marca essencial em Brecht (ROSENFELD, 2012). O próprio Pfuhl (1968, p. 135) se refere às peças O circo dos bonecos, Romão e Julinha e A bomba do Chico Simão como uma “trilogia de teatro, na qual se tenta colocar à altura do interesse das crianças certos assuntos transcendentais”. Assinala ainda o autor que a primeira “focaliza a criação do Homem, o problema da exploração do seu trabalho e a conscientização de sua situação social”. A segunda “joga com as questões da paz e da guerra e dos preconceitos raciais como entrave à felicidade e ao amor”. A última, por sua vez, “finalmente trata da terra e da sua posse por quem nela trabalha”. Esses “assuntos transcendentais” a que se refere Pfuhl, como se sabe, eram amplamente discutidos à época em que suas peças foram escritas. Remontam ao espectro de um amplo movimento que envolvia a sociedade e as reformas de base propostas pelo então Presidente, João Goulart. Ao levar para o teatro infantil tais assuntos históricos, o dramaturgo abre desse modo o caminho para um terreno que ainda não tinha sido cultivado na dramaturgia destina às crianças: a discussão de problemas sociais e políticos. Contudo, voltando a Brecht, não basta apenas que determinada dramaturgia apresente temas que estejam na direção a que se orientava o Autor para relacionar-se a sua teoria teatral. É preciso ainda que revelem elementos que configure – abreviadamente – um teatro didático, épico, narrativo, ou dialético, como é conhecida a forma teatral elaborada por Brecht. Tal forma é marcada pela utilização de elementos que visam ao “efeito de distanciamento”, ou seja, “um alegre efeito didático (...) suscitado por toda a estrutura épica da peça” (ROSENFELD, 1985. p. 152). Dito de outro modo, é procurando realizar
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tal efeito de distanciamento que Brecht, usando recursos que interrompem a ilusão cênica, tem como objetivo “estimular no público uma atitude de crítica e vigilância, propícia ao raciocínio e à análise dos problemas sociais” (ROSENFELD, 2012. p. 51). Por outras palavras ainda, “através da mediação estética” trabalha “pela apreensão crítica da vida e, deste modo, pela ativação política do expectador” (ROSENFELD, 1985, P. 153). De forma sucinta, tais recursos, considerados didáticos pelo autor, podem ser definidos como cênicos e literários. Entre os literários, destacam-se os processos cômicos, como a ironia, a paródia e a utilização do grotesco. Destaque-se ainda a utilização da parábola. Entre os recursos cênicos, podem ser citados a utilização no palco de títulos e cartazes, projeção de textos, uso do coro e cantores, conversas entre atores e plateia e a participação dos espectadores no desenrolar da ação. Tudo isso para introduzir uma estrutura narrativa em cena em substituição aos diálogos intersubjetivos. Dado o assunto deste artigo, convém aqui uma nota. Como se pode perceber, por sua ligação com termos como épico, narrativo e ainda dialético, complexa é a discussão sobre o qualificativo didático à obra de Brecht e tentador é investigá-lo quando se o relaciona a obras destinadas a crianças e jovens. No entanto, não haveria aqui espaço para tanto. Por isso, este trabalho se limita a apontar, além de temas, procedimentos utilizados por Brecht e por autores de teatro infantil brasileiro que resultem intencionalmente no efeito de distanciamento. Dito isso e retomando Pfuhl, A bomba do Chico Simão, escrita em 1962, foi a primeira peça publicada para o público infantil brasileiro, na qual se podem perceber, além do tema social em torno do qual gira a trama – a terra e sua posse por quem trabalha nela –, a utilização pelo autor de recursos que resultam em distanciamento. Nela a encenação de um tribunal é o procedimento empregado para que, de repente, participantes da plateia abandonem o posto de espectadores e passem a ser integrantes de um júri. Sabe-se que tribunais de júri são cenas marcantes nas peças de Brecht. A exceção e a regra e O círculo de giz caucasiano são dois exemplos da dramaturgia do autor alemão que se utilizam desse procedimento. Um juiz em cena já poderia ser motivo para estabelecer relações entre Pfuhl e Brecht, mas a partir do momento que
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espectadores são chamados a participar da ação no palco esse diálogo se estabelece completamente. A intriga de A bomba de Chico Simão se apropria da configuração da fábula e envolve o Urubu que quer se apropriar da chácara em que mora Dona Coelha e seus três filhos, alegando o motivo de que aquela terra pertencera a seus antepassados. É claro que, em uma época transição de modelos, além do conflito com o Urubu, os coelhos têm outra pendência doméstica a resolver. Entre os filhos de Dona Coelha, Orelhudo e Zé pulinho são trabalhadores e adoram distribuir chocolates para as crianças, mas Coelhoso só quer saber de dormir. Um ponto alto da peça é quando então oito crianças da plateia são estimuladas, por influência dos atores, a constituir o júri. Um garoto faz a vez do juiz e outros sete, dos jurados. A posse é dada novamente aos coelhos e o Urubu declara guerra aos posseiros. No processo de deflagração da luta, o conflito entre o Urubu e os coelhos se resolve através da bomba do Chico Simão, restando apenas o drama privado da família para ter seu termo. Contudo, se Pfuhl, a partir do modelo introduzido por Benedetti, utiliza-se, por um lado, do conflito interindividual doméstico a que estava ligado o moderno teatro infantil brasileiro e, por outro, introduz a novidade da dinâmica das forças históricas e sociais, mantendo as duas linhas de força para chegar ao final da peça, Walter Quáglia, que vinha encenando textos de Pfuhl desde 1963 e que, em 1964, já havia escrito e encenado Viagem ao faz de conta, explorando o modelo dos contos maravilhosos, em 1965, traz à cena O patinho preto, baseado no conto de Andersen. A problemática, contudo, Quáglia avisa na rubrica inicial, é intencionalmente diversa da do contista. Assim, já de início, o conflito se traduz num embate entre grupos, o que transforma o drama da personagem protagonista em algo maior que ele, um dilema social. O patinho preto, Chico, nasce, por um incidente, em um grupo arrogante de patos brancos, detentores do poder sobre um lago. Expulso de lá, deixa o único amigo, o patinho branco Pedro e vai, por artimanha de um narrador que explica para a plateia a necessidade de seu ato, em direção ao grupo dos patos amarelos, detentores do poder sobre as moradias. Impedido de se relacionar com Sônia, a princesa do lugar, chega ao reino dos patos pretos, que não abrem mão do poder que têm sobre os alimentos. Lá é
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reconhecido por sua mãe e refaz o caminho de volta convocando todos ao entendimento e à socialização de seus bens. Contribuindo naturalmente para afetar as três comunidades, está a amizade de Chico, Pedro e Sônia. O conto tradicional se adapta então às necessidades da época, traduzindo numa postura ideológica que marcou as utopias juvenis dos anos 60. A possibilidade de mudar o mundo apoiada no nacional-populismo e a tentativa de conscientizar os menos favorecidos socialmente parece ser a investida do autor, assim como de muitos jovens da época. A música assinada por Chico Buarque é mais um elo importante de ligação entre o teatro infantil e a efervescência política e cultural em meio à juventude daquele momento. Não há como deixar de relacionar o trabalho do compositor na peça de Quáglia com o êxito de Morte e Vida Severina, montagem do Teatro da Universidade Católica, também em 1965, cuja música foi assinada por ele. A relação do trabalho de Quáglia com Brecht, além da ampliação do contexto de ação das personagens, como se pode perceber pelos parágrafos anteriores, se estabelece principalmente através de um narrador que já em sua primeira fala avisa para a plateia que a história desse patinho feio “não se passou exatamente como todos contam. Nela, os detalhes são muito importantes, por isso vou interromper a toda hora” (QUÁGLIA, 2001, p. 55). Por essa atitude da personagem narradora já se pode perceber a relação da peça com o teatro pedagógico do autor alemão. Procedimento distinto do uso de uma personagem narradora para se obter o distanciamento, porém, é o modo como, em 1970, Walter Quáglia apresenta O gigante. O enredo gira em torno de um menino que, a pedido da mãe, sai para vender um boi, o qual é apreendido pelo rei – um impostor. Ao final, a menina que acompanha o garoto em sua trajetória é que se revela a verdadeira herdeira do poder. Tem-se assim, um conflito doméstico e interindividual que se amplia para a dimensão social. Para que o desfecho da peça aconteça, é importante a quebra da representação no momento de maior tensão da narrativa. Quando todas as personagens se encontram presas por ordem do tirano, inclusive o Bobo, o qual tentou ajudar as personagens a fugirem, os atores, interrompendo a encenação, chamam a plateia para o diálogo a fim de opinarem sobre o absurdo de um usurpador exercer com arrogância o poder.
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Como se pode perceber, a temática da peça também está inequivocadamente ligada ao período em que foi escrita: a legitimidade de um governo de exceção e as artimanhas que se utilizaram para o impor. Desde a rubrica inicial, descrevendo o cenário, é clara a intenção do Autor em envolver emocionalmente a plateia. Essa tentativa de envolvimento dos expectadores se amplia através de um processo em que vários elementos do conto maravilhoso tradicional são trabalhados. No entanto, a quebra da ilusão cênica, quando as luzes da plateia se acendem e os atores tiram suas caracterizações para discutir com os espectadores a ação das personagens, não deixa dúvida sobre a presença de Brecht como matriz. Também afinado com propostas artísticas e ideológicas ligadas a movimentos juvenis e populares, João das Neves, membro ativo do Grupo Opinião, com ampla atuação durante a Ditadura Militar, escreve peças para o teatro infantil. O leiteiro e a menina noite, em 1970, e A lenda do vale da lua, em 1974, são dois trabalhos que apresentam marcas que podem ser lidas na esteira de Brecht. O leiteiro e a menina noite também pode ser lida em intertextualidade com o poema A morte do leiteiro, de Carlos Drummond – publicado em A rosa do povo, em 1945. Uma personagem narradora contextualiza a história, dando subsídio para a ação. O leiteiro é um trabalhador alegre e pobre, entende as vozes das ruas, das árvores, dos animais e tem a noite como namorada. Essa dimensão pessoal rapidamente evolui para a sócio-histórica, pois entra em cena o patrão, Gordinho, dono de todas as vacas, da carroça, das garrafas e que ainda exige que o empregado misture água ao leite. Na sua vigilância contra o empregado, Gordinho conta a ajuda de Misterioso, ou Mister. Os dois querem acabar com a alegria do leiteiro e do povo que recebe o leite. Transformam tudo em dinheiro, inclusive as estrelas, ou seja, os olhos da noite. Isso porque constroem arranha-céus e vendem milhões de lâmpadas, prendendo dentro delas os olhos da noite. Vários são os elementos que provocam o distanciamento entre plateia e palco nessa peça de João das Neves. Já em sua frontalidade, pode-se apontar o recurso literário. Dentro dessa extensão, Gordinho e Mister são emblemáticos como imagens representativas do capitalismo se impondo sobre o mundo. A utilização de músicas que comentam a ação é outro elemento. Um exemplo é quando Gordinho canta: “É preciso
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ser esperto / ter o olho bem aberto / a bondade é desperdício / a amizade um malefício / pois quem dá tudo o que tem / morre cedo e sem vintém / vamos tudo aproveitar / pro dinheiro aumentar / o trabalho do leiteiro / vou barato alugar” (NEVES, 1970, p. 8). Ou ainda: “Quem quer enriquecer comigo? (para as crianças que responderem – eu –) Aqui, oh. (Indicando os olhos) Esse é o irmão desse, mas todos dois são meus / Ninguém divide o dinheiro com os outros / Eu fico rico sozinho / Eu mereço, ora essa.” (IDEM). Em A lenda do vale da lua, o procedimento musical que comenta a ação, uma personagem narradora e atores pontuando a encenação são destaques que ligam a peça à obra de Brecht. Os atores, identificando-se como tais, representam um grupo que brinca e aos poucos vão construindo a ilusão da representação, transformando-se em personagens. Utilizando-se de elementos cênicos, a trupe acaba por realizar um folguedo de bumba-meu-boi. A dimensão social da brincadeira amplia o caráter restrito do grupo para problemas que opõem o espaço rural do vale ao espaço urbano, pois o boi sai em direção à cidade. Lá, encontra a violência, a pobreza, a miséria e é morto. Os atores então convocam personagens folclóricos e da cultura popular para ressuscitá-lo. É Desse modo, o boi volta a circular pelo palco: ressuscitado pela sabedoria do povo. Se, como afirma Bader (1987), a politização do teatro no país e a capacidade de Brecht se adaptar à situação local, é a principal causa do sucesso do dramaturgo alemão durante a Ditadura Militar no Brasil, Krugli, é o autor que mais evidentemente sintetiza esse processo no teatro infantil brasileiro. Procedimentos utilizados pelo autor alemão são redimensionados em História de lenços e ventos, escrita em 1974; Da “metade do caminho” ao “País do último círculo”, premiada no I Concurso do Teatro Guaíra em 1975; Andando e voando com alguém e ninguém, premiado no II Concurso do Teatro Guaíra de 1976; As quatro chaves, escrita em 1983 e Labirinto do Januário, uma homenagem explícita a Brecht, que recebeu o primeiro prêmio no concurso de dramaturgia infantil pelo Serviço Nacional do Teatro de 1983-1984. Histórias de lenços e ventos é encenada até hoje pelo grupo de Ilo Krugli, o Ventoforte, nas ruas e praças das cidades brasileiras, mas a rubrica caracteriza o espaço em que a peça acontece como um quintal. Os atores se comportam como se estivessem preparando uma encenação a partir de coisas abandonadas nesse quintal. A primeira
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questão a se notar aqui é o espaço de encenação desse teatro, ruas e praças em contraposição ao palco tradicional, propício à ilusão. Ademais, o quintal sendo um espaço intermediário entre o público e o privado materializa também a dialética entre o conflito interpessoal e as questões coletivas que já vinham sendo tratadas nas peças já comentadas. É nesse quintal que a história de azulzinha se constrói na interação narrativa entre atores e a plateia. Nessa construção, os ventos são perigosos para os lenços e o drama de Azulzinha resvala para o social, quando um deles provoca o sumiço da personagem e coloca outras em seu encalço. Quem luta para salvá-la das mãos do Rei Metal Mau é uma folha de jornal, que acaba queimada pelo Soldado Medieval. Não fosse a intromissão dos atores, estaria acabada a história, mas estes conclamam a plateia a rever o desfecho de derrota e reconstroem das cinzas o herói, que desta vez derrota o opressor. Maria Lúcia de Souza Barros Pupo (2013, p. 430), em História do Teatro Brasileiro, afirma que em Histórias de lenços e ventos, estamos, pois, diante de um espetáculo que dribla a censura ao se estruturar em termos de um conto mágico endereçado a todas as crianças e a todas as faixas de idade e tem como ponto de partida não exatamente uma destinação de caráter etário, mas a inquietação de um artista preocupado em encontrar um tratamento poético para levar à cena as relação de poder vividas no momento.
Em Da “metade do caminho” ao “país do último círculo”, de 1975, a proposta de Krugli se radicaliza em dois aspectos: o espaço cênico e a exigência de que o público volte no dia seguinte para com os atores construir a história de um gigante. O Autor classifica o texto como “peça para bonecos e atores em duas jornadas”. As rubricas exigem uma arena circular e sugerem que as crianças fiquem no centro, como em um picadeiro, e os adultos ao fundo. Atravessando esse lugar, duas passarelas cruzadas. As cenas acontecem nas passarelas e no círculo em volta do espaço. Para que isso aconteça, os atores surgem de diferentes cantos e carregam malas e caixas que são colocadas sobre um praticável com rodas que se desloca para vários pontos cênicos. Um prólogo introduz a história de um gigante, uma criança que cresce rápido e é levada pelos guardas para um Centro de Pesquisa e Controle de Coisas Estranhas e Diferentes do País. Quando volta já não cabe mais na casa dos pais. Foge pelo mundo e
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passa a ser o vigia contra as guerras em um determinado país. Enxerga longe, por isso pode avistar os exércitos se aproximando. O prólogo permaneceria com o final feliz não fosse um mágico e três crianças que ficam sabendo que o gigante está triste. Para descobrir as causas do choro do gigante, as três crianças: Ibeji, Niná e João João devem viajar a outros países e trazer a bandeira deles. Niná vai ao “país do sim”, Ibeji ao “país do não” e João João ao “país do silêncio”. Descobrem então que o motivo por que o gigante chora é que uma guerra assola o país que ele guardava. Na viagem que empreendem, duas crianças não voltam e a plateia é conclamada a resolver o problema. A solução remete a um diálogo com Brecht, quando se relembram títulos. O círculo de Giz Caucasiano, para Brecht, e Da “metade do caminho” ao “país do último círculo”, para Krugli. Aqui, no entanto, o teatro, encarado como algo que traz consigo a magia para a resolução dos problemas, rompendo o círculo de giz da dominação burguesa a que se refere Brecht, recontextualizando e reconstruindo a referência, fazendo atores, personagens e plateia girarem por círculos, misturarem o “sim”, o “não” e a “guerra” e chegarem juntos ao último deles, onde todos podem conviver de forma justa e pacífica. Cenicamente, outras relações entre a obra de Brecht e Da “metade do caminho” ao “país do último círculo” podem ser apontadas além do prólogo e do título. A utilização de cartazes, filmes, atores que narram a história em vez de representá-la, a sucessão de quadros como motor do enredo em vez da sucessão causal e temporal, a interrupção da ação pelos atores, músicas que comentam as ações. Esses recursos cênicos, ao lado dos literários, misturam os conflitos individuais de cada personagem com os sociais, ampliando a metalinguagem já encontrada em Histórias de lenços e ventos. Importante é notar que a partir de Da “metade do caminho” ao “país do último círculo” o jogo entre a ilusão cênica e a quebra da representação assume caráter complexo na obra de Krugli. O caráter metalinguístico de suas peças se alia de tal forma à fantasia e à imaginação, quesitos fundamentais para a literatura infantil e juvenil, que o universo de Brecht passa a dialogar com outra área de atuação de Krugli, a ArteEducação. Nessa perspectiva, lacunas fundem e separam expectativas e realidades.
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Provocam o expectador, quer do texto, quer do espetáculo, não apenas em sua percepção racional, mas também sensorial. Essa postura é que destaca Krugli como um dos autores que consagram a capacidade de adaptação de Brecht à realidade da cena brasileira É preciso continuar ressaltando, todavia, que, em Krugli, a utilização do espaço de encenação é o elemento capital que evidencia o caráter ilusório da representação teatral, ao mesmo tempo que procura explorar múltiplas possibilidades de relacionamento com o expectador. As anotações iniciais de Andando e voando com Alguém e Ninguém, de 1976, por exemplo, descrevem um palco vazio com uma cortina ao fundo. Essa cortina separa a encenação de uma plateia imaginária. Isso coloca os reais espectadores da peça em uma situação de voyeurismo bastante incomum no teatro. Passam a presenciar desse modo os bastidores do palco. Quanto às questões históricas e sociais, uma rápida sinopse da peça já é o suficiente para apontar que nessa peça, o conflito intersubjetivo entre duas personagens se ampliam para o plano coletivo. O enredo se desenvolve em torno de um Diretor que exige ações de uma personagem designada por Soldado. Depois de cumprir algumas partes do roteiro que lhe é imposto, Soldado se rebela contra quem o dirige. No processo de se livrar de quem lhe dá ordens, encontra então com Alguém e Ninguém, uma garota e um garoto, e juntos tomam um caminho para fora dos campos de guerra. Em As quatro chaves, de 1983, o deslocamento da plateia por espaços diferentes continua fazendo parte da experimentação de Krugli. A rubrica inicial alerta para o fato de que a peça é um roteiro que privilegia a participação do público, por isso a ação se desenrola em dois espaços diferentes: aquele em que se inicia a ação pode ser um palco italiano; o outro, um local livre e aberto, um pátio ou um quintal. Encarada como uma brincadeira em um parque diversões simples e improvisado, As quatro chaves apresenta, por intermédio de um Narrador e uma trupe de atores, quatro personagens. O desenrolar da peça se relaciona com as ações para satisfazer os desejos dessas personagens. Joana deseja ter muitos filhos; o Gigante, um enorme coração vermelho; João, dar pão aos filhos de Joana, seus filhos também; um Desconhecido deseja uma conhecida para lhe fazer companhia.
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Satisfeitos os desejos das personagens, eles são roubados. Os atores então conclamam a plateia a sair em busca da recuperação desses desejos, como numa brincadeira de caça ao tesouro. Ao final, a recuperação desses desejos é motivo para a festa com que se encerra o espetáculo. O universo individual de cada personagem é, desse modo, motivo para o desencadeamento do interesse coletivo pela resolução de problemas, os quais adquirem dimensão social. Labirinto do Januário é a história de um garoto, Januário, que sonha em participar de cavalhadas, mas precisa resolver um problema. As roupas dele e de seus pais, as únicas que tinham, estavam secando no varal e foram roubadas, logo o deslocamento não é possível sem que se resolva a questão. Porém a peça é fragmentada como é fragmentada a vida de Januário na cidade, em seus labirintos. Ele consegue ir à festa, mas nela é acusado de roubar as roupas de um dos exércitos. A solução vem através de um julgamento à semelhança de Brecht, inclusive com uma personagem chamada Seu Bertoldo em cena. Em relação aos fatos do contexto histórico, esses dois últimos trabalhos de Krugli parecem já não refletir mais questões que envolveram a implantação do Regime Militar no Brasil e na América do Sul, tais como a violência, o desaparecimento de pessoas, a morte de jornalistas e as demandas por habeas corpus. Faz remissão a outros problemas decorrentes da política dos militares, especialmente as que se referem aos resultados do “Milagre Econômico”: pobreza, individualismo, crescimento urbano desordenado e o esfacelamento das relações e manifestações da cultura popular. Para finalizar, é preciso lembrar ainda de Chico Buarque e Os saltimbancos, adaptação do texto de Sérgio Bardotti, encenada em 1977. Um burro, um cachorro, uma galinha e uma gata fogem de seus patrões por causa dos maus tratos. Encontram-se no caminho e resolvem se unir para resolver os problemas. Além do modo alegórico das como a peça pode ser lida e também das músicas que servem como comentários à ação, um efeito didático explícito é conseguido por Chico Buarque (2012, pp. 12; 26; 28) com três lições, na voz do Jumento: “Primeira lição do dia: ‘O melhor amigo do bicho é o bicho’”. “Segunda lição do dia: ‘Um bicho só é só um bicho’”. “Última lição do dia: ‘Os homens voltam sempre’”.
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Assim, conforme se procurou demonstrar pelo relato acima, Oscar Von Pfuhl, Walter Quáglia, João das Neves, Ilo Krugli e Chico Buarque desenvolveram, entre 1962 e 1985, trabalhos em que é possível estabelecer um diálogo evidente entre Brecht e o teatro infantil brasileiro. Mais do que isso, é possível tratá-lo como legado que se construiu historicamente com especificidades próprias, em conversação com uma matriz. Desse modo, não apenas pelos temas, mas também pela forma como se construiu, percebem-se forças sociais e históricas se revelando nas estruturas das obras. Nesse sentido é que se revela o objetivo primordial desse trabalho: a observação das relações entre as obras artísticas e a sociedade na qual foram produzidas. Assim, o que se procurou demonstrar é que a capacidade do dramaturgo alemão de se adaptar às terras brasileiras acabou por dar origem a um conjunto de peças infantis que revelam dinâmicas sociais na composição das obras. E nesse processo, um jogo dialético se realizou. A se reinventarem, houve o encontro entre Brecht e teatro infantil brasileiro e, nisso, ambos continuaram a fazer sentido na História. Referências BADER, Wolfgang. (Org.) Brecht no Brasil: experiências e influências. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. KRUGLI, Ilo. De “metade do Caminho” ao “país do último círculo”. In: PARANÁ. Fundação Teatro Guaíra. Cinco textos para teatro infantil; coletânea das peças premiadas no Concurso Nacional de Textos para teatro infantil. Curitiba: GRAFIPAR, 1975. ___________. Andando e voando com alguém e ninguém. In: PARANÁ. Fundação Teatro Guaíra. Cinco textos para teatro infantil, coletânea de peças premiadas no II Concurso Nacional de textos para teatro infantil. Curitiba: RAPI-SET, 1978. _________. Labirinto de Januário. In: BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Trilogia de Teatro Infantil. Rio de Janeiro: FUNARTE/SNAT, 1986.
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As Vítimas-Algozes e o perfil de escravo inspirado n’A Cabana do Pai Tomás. José Carlos Patrício (UFMT)
Resumo: A escravidão, como uma das maiores vergonhas históricas praticadas pela nossa sociedade durante quase quatro séculos, além da violação do direito de liberdade dos povos africanos, legou-nos, entre outros males, o estereótipo de negros passivos. Desse modo, a escravidão figura como natural, e em alguns casos, como tributo pelo mito cristão da criação do mundo, a saber, maldição de Cam. A solidificação desse imaginário,
em
parte,
foi
promovida
pela
literatura
e
pelo
teatro,
descrevendo/representando essa submissão. A inserção do negro nas artes brasileiras está relacionada ao movimento abolicionista. Assim, por volta de 1850, quando o Brasil proíbe o tráfico de escravos diretamente da África, o chamado tráfico transatlântico, a causa abolicionista fica mais evidente, a ponto de ser discutida não só pela política, mas também pela literatura. Nesse interim, nossos escritores se voltaram para os cativos e as primeiras personagens negras serão caracterizadas com uma mistura de piedade e desgosto. Nas décadas seguintes, 60 e 70, quando o movimento abolicionista, e as revoltas dos cativos, começam a ganhar corpo, o negro sai da condição passiva para a de indivíduo perigoso. Com base no debate sobre as influências causadas/sofridas pelos autores, o presente trabalho tem como objetivo verificar a influência de A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe, em As Vítimas-Algozes, de Joaquim Manuel de Macedo, ao traçar o perfil dos escravos em fiéis e demoníacos. Palavras-chave: Literatura abolicionista, representação do negro, escravo fiel.
A escravidão, como uma das maiores vergonhas histórica praticada pela sociedade durante quase quatro séculos, se deu de forma imposta e teve o reconhecimento das leis por meio de instâncias detentoras de poder, por exemplo, a igreja e o governo. Além da violação do direito de liberdade dos povos africanos, legou-
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nos, dentre outros males, o estereótipo dos cativos como passivos, naturalizando a escravidão. A solidificação desse imaginário, em parte, foi promovida pela literatura e teatro, na descrição/representação do negro em condição de submissão. Cabe-nos nessa perspectiva histórico-literária, determos a alguns pontos que compõe o painel analítico que este artigo propõe. Desta forma, começamos com a atenção dispensada ao negro que está relacionada ao movimento abolicionista, o qual ganha força na Europa e repercute, marcadamente, em solo brasileiro no inicio do século XIX. A Europa, tendo a frente países como Inglaterra, França e Espanha, que pressionados por correntes liberais e humanitárias, tomou para si a tarefa de impor ao mundo a abolição da escravatura. No início do século XIX, as colônias britânicas no Caribe e as francesas puseram fim ao regime servil. Portugal, em 1817, foi pressionado pela Inglaterra a abolir o tráfico de escravos. O governo brasileiro, como parte do reconhecimento de nação livre, se compromete a por fim ao sistema escravocrata em terras tupiniquins. O negro torna-se um problema para o então Brasil independente que precisava de um representante para seu novo status. Os românticos elegeram o índio como modelo de nacionalidade. O negro, mesmo superior em quantidade, não condizia com o sentimento de nação livre, pois ainda estava sob o regime de cativo, ou seja, representava a colonização, situação que o Brasil havia mudado com a independência. Outro fato pode ser a coisificação imposta ao negro, já que para a sociedade o escravo não passava de mercadoria. Portanto, falar de escravidão era falar de um sistema que beneficiava os vários setores da sociedade, da qual nenhum segmento queria ser vanguarda. Segundo Brookshaw (1983, p.27) esse fato fazia com que a escravidão fosse: (...) aceita por todos, inclusive a maior parte dos escritores que, geralmente, surgiam pelo interesse dominante dos proprietários de escravos, ou dependiam do amparo de instituições escravocratas. Não existia classe média afastada de interesses na escravidão como houve na Inglaterra ou devia haver nos Estados Unidos, a qual poderia ter levantado vozes em oposição à escravatura; e, quando esta classe desenvolveu-se o suficiente para formar um grupo de opressão, não foi tão influenciada pelo humanitarismo de homens como Victor Hugo, quando pelo ponto de vista dos discípulos de Darwin e pelas ideologias raciais de imperialistas europeus.
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Desse modo, apenas com o fim do tráfico de escravos transatlântico, imposto pela Inglaterra, a causa abolicionista ficou mais evidente, a ponto de ser discutida não só pela política, mas também pela literatura. Ainda no rastro teórico de Brookshaw (1983), o romance O Comendador, de Pinheiro Guimarães, lançado em 1856, por exemplo, é um dos primeiros a retratar o negro, caracterizando-o com uma mistura de piedade e desgosto. Na dramaturgia, Joaquim Manuel de Macedo, com a peça O cego (1849), apresenta uma personagem de índole branda, passiva e totalmente fiel (MENDES, 1982). Outro destaque de submissão no teatro, ficou a cargo da personagem Joana, da peça Mãe (1860), de José de Alencar. A saber, a escrava suicida-se para que seu filho não descubra sua procedência, renunciando assim, sua condição de mãe e de indivíduo. Do escravo fiel passa-se ao escravo que vence o sistema pela sua nobreza. Enquanto o primeiro se submete ao sistema, o segundo almeja sair de sua condição, porém, ambos não o questionam. Um clássico exemplo de escravo nobre nos é dado pela literatura com o romance A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, lançado em 1875. Além de não questionar a escravidão, a personagem é dotada de atributos que lhe garantem se sobressair a sua condição. Nesse caso Isaura vence o sistema que a oprime tendo características que desde o inicio a favorece: a pele clara, educação nos moldes de uma sinhá, entre outros. Para Brookshaw (1983, p.30) outra personagem que não tivesse essas características não teria o mesmo êxito que Isaura, pois: (...) a equivalência de negritude com beleza, inocência ou pureza moral era inimaginável pela sociedade branca do século XIX, a qual estava completamente condicionada ao simbolismo tradicional de branco e preto. Além disso, Isaura vence seu amo cruel. A combinação de beleza negra e vitória negra teria sido, portanto, subversiva moral e socialmente. Em qualquer situação literária na qual o escravo estava em condições de superar o branco ou de mostrar um grau de integridade moral ou educação, então sua cor não era mencionada, ou se salientava que era branca.
Na condição de nobre havia sempre a descaracterização do negro, já que o mesmo teria necessariamente que possuir atributos que lembrassem a cor branca. Partindo de novas perspectivas do movimento abolicionista, muda-se a representação do cativo. Nas décadas de 60 e 70 dos oitocentos, o Brasil assiste a movimentos de revoltas arquitetados, em parte, pelos próprios escravos. Há fugas,
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formação de quilombos e assassinatos de senhores, familiares e capitães do mato. No campo político, em 1871, aprova-se a lei Rio Branco, ou do Ventre Livre. Incorre que nessa representação, em geral, o negro tornava-se carrasco de seu amo. A rigor, essa literatura se pautou em dois tipos de escravos: o escravo imoral e o escravo demônio. O primeiro compreendia, em sua maioria, nas negras que, movidas por lascívias, perseguiam seu senhor com a finalidade de manterem relação sexual. Ao segundo couberam os negros fugitivos que se abrigavam em refúgios e atacavam as fazendas e casas. Uma das obras mais famosa a abordar essa temática é o compêndio de novelas As Vítimas-Algozes: quadros da escravidão, de Joaquim Manuel de Macedo. Lançada em 1869, as novelas retratam o mal que o negro, pela ótica do narrador, causa a família senhorial. Flora Süssekind (1988) classifica a obra como romance de tese, pois tira toda e qualquer perspectiva de interpretação que não a do autor: a escravidão desmoraliza a família. Nesse mesmo viés, O Escravocrata (1884), de Artur Azevedo e Urbano Duarte, apresenta um escravo que possuía relações sexuais com a esposa de seu senhor, degradando, assim, a família senhorial. A peça sofreu censura do conservatório dramático por conter lições de adultérios (BROCA, 1979). Pinheiro Guimarães também tematizou o adultério entre negros e brancos, com a peça História de uma moça rica (1861), onde uma escrava interfere diretamente em um casamento, devido à sedução do marido (MENDES, 1982). É interessante notar que o estereótipo do escravo fiel ou nobre não desapareceu completamente com a nova classificação do negro em imoral e demoníaco. Haja vista que A Escrava Isaura apareceu seis anos após Macedo traçar, em seu compêndio de novelas, o perfil malévolo dos escravos. Essa transição da figura dos negros na literatura evidencia a influencia que o romantismo teve em solo brasileiro. Influência, causadas/sofridas por autores que evidenciaremos para traçar o perfil comparativo das personagens em análise nesse artigo. A literatura mundial no Brasil
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Nesse processo de analise que figura como outro ponto fucral à estabilidade desse estudo, compreender a forma como a literatura se emaranha no social, penetrando nesse lóbulo social que é o tema da escravidão se mostra imperante.
Portanto,
percorrendo esse entrecho, notamos que com a emancipação política e administrativa do Brasil em 1822 em relação à Metrópole, há também o intento de se fazer o mesmo nos moldes culturais. Um item considerado importante nessa independência cultural é o papel da impressa. A Família Real Portuguesa, ao mudar para o Brasil em 1808, traz em suas bagagens, prelos e materiais tipográficos. Assim, lança-se a Impressa Régia, atendo-se a assuntos políticos e econômicos. Tentando compensar esse déficit cultural, o governo brasileiro isenta de taxas alfandegárias, em 1820, ficções estrangeiras. Apenas em 1836, em Paris, Gonçalves de Magalhães lança Suspiros poéticos e saudades (1836) que passará a ser, oficialmente, o primeiro livro de poesias românticas brasileiras. O nascimento da literatura propriamente brasileira não significou a abolição total da influência estrangeira. Analisando o que liam os nossos escritores românticos, Brito Broca (1979) afirma que nossa tendência é os inserirmos em um período de relativa calma cotidiana, o que lhes propiciariam fazer todas as leituras possíveis e disponíveis. Isso considerando que o Brasil pós-independência ainda não havia se modernizado. O crítico (1979, p.98) argumenta que se “Não havia cinema, rádio, futebol... (...)”, por outro lado também não havia os recursos que hoje nos poupam tanto tempo. Da esfera individual para a social não havia mudança significativa, pois segundo Broca: (...) a sociabilidade que prevalecia na Corte, sem falarmos na província, o hábito das visitas continuas e recíprocas, das reuniões familiares, dos saraus, a atração do teatro, tudo isso equivalia ao cinema, ao rádio e ao futebol. Quando surgiu então o Prado Fluminense foi pior do que o futebol, segundo os cronistas da época. O velho livreiro Martins chegou a dizer que o advento das corridas de cavalo datou a decadência da leitura, entre nós. (1979, p.98).
Curioso notar que, mesmo diante do exposto, ainda tendemos para uma nostalgia ao passado como um período de ouro, ou da infância do homem, onde as atribuições eram para se obter o necessário para a sobrevivência (BROCA, 1979). Dessa falta/sobra de tempo, Broca (1979) passa a elencar os supostos autores que nossos românticos leram. Teodomiro Alves Pereira, no volume 2º da primeira
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edição do Genesco, por exemplo, cita em poucas páginas, autores como: Perrault, Bürguer, Tieck, Rabelais, Lautréamont, Figaro, Sand, Julieta, Ofélia, Miranda, Cordélia, Marion de Lorme, Werther, o Bispo de Hipona, entre outros. Álvares de Azevedo, a exemplo do autor citado acima, também na segunda parte da Lira dos Vinte Anos, cita autores e personagens, tais como: Dom Quixote, Sancho, Panúrgio, Falstaff, Randolph, Cervantes, Shakespeare, Werther, entre outros. Seguindo o exemplo de Teodomiro Alves pereira e Álvares de Azevedo, muitos autores românticos citaram personagens e escritores em seus prefácios. Diante dos inúmeros autores citados, tendemos a acreditar que os escritores românticos liam muito. Porém, Broca (1979, p.97) constata que alguns autores, ou personagens citados, ficavam soltos nas obras, sem a coerência necessária, o que o leva a concluir haver mais “desejo de mostrar literatura” do que as leituras mencionadas. Entretanto, temos relatos de obras que marcaram contundentemente seus respectivos contextos, como, por exemplo, Os Sofrimentos do Jovem Werther (2001), de Goethe, e A Cabana do Pai Tomás (2004), de Harriet Beecher Stowe. O livro de Goethe, diz-se, foi responsabilizado de levar vários jovens ao suicídio; quanto ao de Harriet, é tido com um dos responsáveis pela Guerra Civil americana que culminou com a abolição da escravatura. (MELLO, 2010, p.86). A Cabana do Pai Tomás A história se passa nos Estados Unidos, antes da Guerra Civil americana, retratando o drama do comércio legal de africanos e a forma brutal e cruel com que os senhores os tratavam, a fim de obter cada vez mais lucros. Tomás, o protagonista, tornase propriedade de três senhores diferentes. Ao sair da fazenda dos Shelbys, amos bons, Tomás passa para o domínio de Augustino St. Clare. O novo amo possui uma relação muito estreita com seus servos. Maria St. Clare, com pretexto de inúmeras moléstias, deixa a casa a cargo dos escravos. Dessa maneira, há por parte dos negros tanta liberdade que dois cativos chegam ao ponto de se nomearem pelos sobrenomes dos senhores. No entanto, com a morte de St. Clare, sua esposa volta para a casa dos pais e vende alguns escravos, entre eles Tomás. Sob o domínio do último amo, Tomás
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experimentará o castigo físico empregado pelo perverso Simeão Legree, que na tarefa de feitorar os cativos, contava com a ajuda dos malvados Sambo e Quimbo. Em face dos três amos, Tomás mantém a mesma fidelidade, respeito e temperamento, chegando ao ponto de sua bondade influenciar outros negros. Escrita em 1856, sua influência foi tanta que grande parte da literatura abolicionista só apareceu após seu lançamento. Traduzido para o português e publicado duas vezes nos anos 50 dos oitocentos, sua reedição se deu mais por ser um best-seller do que por seu conteúdo abolicionista. Em nossa literatura, na novela Lucinda – a mucama, o autor Joaquim Manuel de Macedo faz referências ao livro de Stowe: Meia hora depois, Lucinda atravessa plácida e alegremente a sala de jantar, onde Florêncio e Liberato acabavam de ouvir com Leonídia a leitura do último capítulo da Cabana do Pai Tomás. (MACEDO, 1989, p.200)
Por seu trabalho, a autora foi recebida na Casa Branca, pelo então presidente Abraham Lincoln, em 1862, que a ela se referiu como a pequena mulher que causou a grande guerra. (MELLO, 2010). Merecidas ou não, o fato é que Stowe construiu sua história pautada em um abolicionismo romântico, procurando falar ao coração, com sentimentalismo que propunha o horror do sistema por meio da exaltação do cativo (BROCA, 1979). Dessa maneira, o escravo a ser exaltado será servil, fiel, o escravo que age dentro do esperado pela classe senhorial. Ao contrário de Stowe, Macedo constrói suas histórias pautadas em um abolicionismo realista, intentando mostrar os possíveis danos que os senhores sofriam devido ao contato com os cativos (BROCA, 1979). Intenção que consta no prefácio da obra: Trabalhar no sentido de tornar bem manifesta e clara a torpeza da escravidão, sua influência malvada, suas deformidades morais e congênitas, seus instintos ruins, seu horror, seus perigos, sua ação infernal, é também contribuir para condená-la e para fazer suave e simpática a ideia da emancipação que a aniquila (MACEDO, 1988, p.4)
Assim, as novelas pautam-se em senhores bondosos e escravos maléficos. As Vítimas-Algozes
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No primeiro quadro de Macedo, Simeão, filho de escravos, cresce junto à família do fazendeiro como se fosse um filho. Insta acrescentar que os senhores são advertidos do erro que cometem ao criar o cativo como um integrante da família. Com o passar do tempo, o negro percebe a diferença entre eles e seus amos. Diante dessa tomada de consciência, Simeão teme por sua liberdade, o que o faz odiar seus senhores. A promessa de alforria sem data marcada e a aplicação do primeiro castigo corporal, somados a ociosidade, determinam o crioulo ao crime e ao roubo. O mesmo perigo é exposto no segundo quadro da escravidão de Macedo, que apresenta o escravo feiticeiro Pai-Raiol. A partir do momento em que é arrematado por Paulo Borges, e muda para a fazenda do novo amo, misteriosamente o gado morre e o canavial é completamente destruído por um incêndio. Esméria, comparsa de Pai-Raiol, também é arrematada no mesmo leilão e passa a trabalhar dentro da casa senhorial cuidando das crianças. Sob a influência do amante, seduz Paulo Borges e mantém com ele uma relação extraconjugal, na qual acaba por destruir sua família. A última, a mais longa e a mais folhetinesca novela d’As Vítimas-Algozes é Lucinda – a mucama, enredado nas influências que a cativa exerce sobre sua dona. Cândida, em virtude de seu décimo primeiro aniversário, ganha de seu padrinho, Plácido Rodrigues, uma mucama, Lucinda. A negra torna-se confidente de Cândida e desvenda-lhe, por exemplo, o mistério que cerca a passagem da infância para a adolescência. Inicia-a na arte da sedução, flerte e namoro. Induz sua ama a acreditar ser mais divertido namorar vários rapazes ao mesmo tempo, entre outros. O aparecimento de um jovem francês, Souvanel, por quem Cândida se apaixona, consolida o drama. A escrava e o francês tornam-se amantes. Souvanel, acordado com Lucinda, consuma o ato sexual com Cândida com o intuito de força-la ao casamento. Desse modo, a escrava ficaria livre e fugiria com o francês. A trama é descoberta por Frederico, que é apaixonado por Cândida, livrando-a da difamação e consumando o casamento, reparando, assim, as falhas da sinhazinha. As obras, mesmo apresentando pouco mais de uma década de diferença entre seus lançamentos, mostram a estreita relação entre senhores e cativos. E é com base
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nessa relação que os autores traçarão os perfis de escravos submissos, leais e perturbadores da ordem social e familiar. O protagonista de Stowe, Tomás, por ser um escravo fiel, não apresenta alteração no tratamento aos amos no decorrer do romance. De índole submissa, além de atestar o sistema, trabalha em favor de sua manutenção. Como no caso em que Cloé, ao saber da venda do marido, revolta-se com os amos. Numa atitude de lealdade, Tomás a adverte com o seguinte argumento: “(...) Se você me ama não fale desse modo, principalmente agora que vamos separar-nos, talvez para sempre! Quem ofender meu amo e senhor, ofende a mim mesmo.” (STOWE, 2004, p.81). A relação de fidelidade com o segundo amo continua, no entanto, alguns escravos desenvolvem certa liberdade. É o caso de Adolfo e Joana. Cativos pessoais do casal St. Clare, os negros são conhecidos como Sr. St. Clare e Srta. Benoir, a saber, sobrenome dos patrões. Essas regalias são permitidas pelo fato de Augustino St. Clare, consciente do problema do cativeiro, não fazer nada de concreto para sua extinção. No entanto, o amo acredita que concedendo algumas benesses aos cativos, amenizará sua parcela de culpa: E graças às sistemáticas providências do Sr. Adolfo, St. Clare, após pagar o cocheiro, viu diante de si somente o mulato, com sua corrente de ouro, a sua jaqueta de cetim e as suas calças brancas, que se inclinava com a intraduzíveis graças e suavidade. (STOWE, 2004, p.137)
Em outra ocasião, Adolfo vai a cozinha buscar água para Augustino fazer a barba, no entanto, trava um diálogo com Joana que, vaidosamente, exibe seus brincos novos: -Srta. Benoir, diga-me, será possível saber-lhe se esses brincos figurarão no baile de amanhã? – prosseguiu Adolfo. – São maravilhosos! (STOWE, 2004, p.180).
Dos cativos fiel e vaidoso, Stowe chega aos negros malvados, Sambo e Quimbo. No entanto, essa maldade não chegar a por em xeque a harmonia social ou familiar. Na última fazenda pela qual passa Tomás, além da intimidade entre o amo, Simeão Legree, e os escravos Sambo e Quimbo partilham também a maldade:
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– Eu já a faço tornar a si – acudiu Sambo, soltando uma gargalhada feroz. – Vou administrar-lhe um remédio mais eficaz que a cânfora. E tirando um alfinete da manga da jaleca, enterrou-lhe no braço. A mulher deu um grito de dor e fez um esforço ingente para se levantar. (STOWE, 2004, p.291-92)
A relação senhor/escravo em Macedo tomará outros rumos. Com a tese de que o contato entre as duas classes prejudica a primeira, o autor traçará negros possuídos de luxúria, inveja, promiscuidade, dissimulação, malícia, orgulho e ingratidão, tornando-se assim, algozes de seus senhores. Desse modo, mesmo que um escravo apresente indícios de fidelidade, seus defeitos são evidenciados, deixando clara a natureza do cativo: Alberto era um homem negro de natureza nobre e altiva, mas já estragada pelos venenos da escravidão: como os outros escravos seus parceiros, já tinha manchado as mãos com o furto, os lábios com a mentira, o coração com o desenfreamento da luxuria torpe, o estômago e a cabeça com o abuso da aguardente (MACEDO, 1988, 131)
Simeão, o crioulo, como escravo criado junto à família senhorial, acostumado a receber dinheiro de suas senhoras, quando se vê privado dessa regalia, tomado por fúria pelo fim da manutenção de sua vaidade, injuria, calunia e revela segredos familiares de seus senhores na venda onde se encontra com outros escravos. Essa atitude demonstra a ingratidão natural do negro. Comportamento semelhante ao de Joana apresenta Lucinda. A mucama ostenta com vaidade os vestidos que ganha da sinhá, demarcando sua superioridade em relação às demais escravas. Quando a família de Cândida muda para a cidade do Rio de Janeiro, tentando com isso afastá-la do amante estrangeiro, Lucinda vê nessa mudança a realização de seus desejos. A relação entre a sinhá e a mucama é tão estreita que Cândida praticamente acata todos os conselhos de Lucinda. Escravos vaidosos, ingratos e perversos. Assim Macedo chega a Pai-Raiol – o feiticeiro. A maldade do escravo não se detém a uma classe específica, os senhores. Assim, o negro sente prazer em atormentar psicologicamente sua amante, Esméria, e quando recebe de seu senhor a função de feitorar seus parceiros, materializa no açoite sua raiva para com os outros escravos:
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“Na fazenda de Paulo Borges Pai-Raiol ainda não tinha sofrido castigo algum; e seu senhor, embora não lho dissesse, estava tão satisfeito dele, que já por duas vezes o mandara feitorar os parceiros: no desempenho dessa tarefa requintara de severidade, e os pobres escravos viram-se de contínuo excitados ao trabalho a golpes de açoite manejado por mão também de escravo. Pai-Raiol os flagelara por sistema (...).” (MACEDO, 1989, p.92)
Considerações Finais
A representação do negro na literatura variou à medida que o movimento abolicionista ganhou proporções. Se no início do movimento, em parte por sua timidez, o negro é representado como estático, com as pressões internas e externas, o movimento abolicionista e a representação do negro mudam. A partir do momento em que há um questionamento do sistema pelo próprio cativo, a literatura o vê como perigo, seja no que concerne à integridade física, fazer mal ao senhor, seja na condição de mácula, ou degeneração da raça, dita superior; atitude que, para Brookshaw (1983), revestiu-se de racismo, não tão explicito quanto na Europa. A submissão do cativo, além de não questionar o sistema escravocrata, muitas vezes o endossando, ainda desqualifica toda e qualquer forma de resistência. Essa ação, segundo Rodrigues (2003), reafirma a teoria de que da África vieram apenas escravos bestializados, nada fazendo para se libertar. Os escravos descritos por Stowe, em consonância com a proposta da obra, expor a brutalidade do cativeiro, serão em sua maioria fieis. Assim, não há um questionamento dos cativos, ao contrário, ou os escravos são apresentados como bons ou como seres conscientes de sua inferioridade. Intentando expor a brutalidade do negro e o perigo que a escravidão causa ao senhor, Macedo trará todos os personagens principais como escravos maléficos. Diante disso, mesmo quando há um principio de fidelidade, as ações terão sempre a finalidade do beneficio próprio, provando que, pela tese do autor, a escravidão torna os negros egoístas e ingratos.
Referências Bibliográficas
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PIXOTE, DO LIVRO AO FILME: UMA LEITURA DO ABANDONO DO COTIDIANO
José Rogerio da Silva (UNIMAR/FACCAT) Quando publicou o livro Infância dos Mortos, em 1977, obra baseada em fatos reais, o jornalista e escritor maranhense José Louzeiro o fez devido às circunstâncias políticas vividas no país naquele momento. Escalado como repórter para cobrir o caso dos meninos de Camanducaia – MG, acompanhou de perto a triste história de um grupo de adolescentes paulistas que, após serem torturados por policiais, foram levados à cidade mineira e abandonados na estrada durante a madrugada, jogados à própria sorte. Com os fatos em mãos, o jornalista não encontrou espaço e muito menos disposição na imprensa para que tal narrativa ocupasse as páginas dos jornais. Louzeiro sabia que dificilmente sua reportagem seria publicada. A censura acontecia não apenas com ele, mas com vários profissionais, que, não se intimidando com a censura, buscaram alternativas para contar suas histórias, como retrata Dantas (2001): A fim de tornar públicos os acontecimentos que os jornais estavam impossibilitados de divulgar, jornalistas e escritores, que dividiam as salas de redação, sentiram na pele a necessidade de um novo veículo de comunicação para transmitir ao público o que se mantinha encoberto. A notícia, fórmula básica do jornalismo, não era a mais apropriada forma discursiva para representar o que há anos estava silenciado. (DANTAS, 2001, p.53)
Partindo deste impedimento, Louzeiro abriu mão de um expediente ao qual vinha se tornando “habitue”, devido também a sua veia literária, o chamado romancereportagem, expressão cunhada em obras do gênero lançadas anos antes no Brasil, que tinha no jornalista um de seus expoentes. O que a grande imprensa não descrevia ou narrava coube a literatura comunicar. Surge, então, uma espécie de narrativa denominada de romance-reportagem. Aliás, esta expressão apareceu pela primeira vez em 1975, como título de uma coleção lançada pela editora Civilização Brasileira. Entre as obras editadas encontram-se, por exemplo, três projetos editoriais bem sucedidos junto ao público – Lúcio Flávio, o
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passageiro da agonia (1975), Aracelli, meu amor (1976) e Infância dos Mortos (1977), todos do jornalista/escritor José Louzeiro. A proposta dos escritores desse tipo de romance era contar uma história baseada em fatos reais e possíveis de verificação por parte do leitor, se assim o desejasse. (DANTAS, 2001, p.53-54)
Louzeiro, um exímio repórter policial, e, por conseguinte, um contador de histórias, ao mesmo tempo em que via os órgãos de censura e repressão da época voltarem seus olhos de forma mais intimidadora para suas reportagens em jornal, também sofria com a busca da objetividade jornalística e o espaço cada vez mais escasso para suas narrativas longas e carregadas de nuances e detalhes. Encontrou na junção entre jornalismo e literatura o formato ideal para realização do seu trabalho, o campo fértil para espalhar sua criatividade. Louzeiro estava praticando o que Bulhões (2007) chamou de hibridismo perseguido pelos gêneros de jornalismo e literatura em justaposições. Se, em uma perspectiva histórica, de início coube a literatura ser a matriz fornecedora de sugestões formais à narratividade jornalística, o desenvolvimento do jornalismo foi aos poucos construindo uma autêntica e nada desprezível tradição de textualidade que também se ofertou à realização literária. Com isso, sugestões e procedimentos típicos de uma vivência calcada na factualidade jornalística podem ser assimilados pelo aparato ficcional da literatura, o que faz supor uma relação interdependente. (BULHÕES, 2007, p.46)
Infância dos Mortos possui uma narrativa direta, objetiva, característica do texto jornalístico, ao mesmo tempo em que apresenta os elementos de transcendência próprios da obra literária, com força textual para envolver e demonstrar ao leitor toda realidade e veracidade dos fatos narrados, como diz CANDIDO (1985). Se as coisas impossíveis podem ter mais efeito de veracidade que o material bruto da observação ou do testemunho, é porque a personagem é, basicamente, uma composição verbal, uma síntese de palavras, sugerindo certo tipo de realidade. (CANDIDO, 1985, p.78)
Assim como ocorrera com seu primeiro romance-reportagem, Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1975), seu novo livro, Infância dos Mortos também despertou interesse cinematográfico. Lucio Flávio narra a história real de um jovem de classe média que, envolvido com a marginalidade, transformou-se em chefe de quadrilha e assaltante de bancos. Morreu na cadeia, assassinado por outro detento. Pelas lentes do
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diretor argentino Hector Babenco e tendo o ator Reginaldo Faria, um dos galãs televisivos e cinematográficos a época vivendo o protagonista, “Lúcio Flávio”, o filme, bateu recordes de bilheteria, situando-se, ainda hoje, na lista dos dez filmes brasileiros de maior público de todos os tempos. Hector Babenco tornou-se um cineasta conhecido por retratar assuntos polêmicos, envolvendo em seus filmes as mazelas do ser humano. Transformou o título Infância dos Mortos, de conotação genérica e mais abrangente em Pixote, a Lei do Mais Fraco, transferindo à personagem que dá título ao filme o protagonismo das ações e o foco da narrativa. O cartaz do filme, com o menor Pixote correndo, nu, fugindo das luzes que o perseguem é impactante e tem forte apelo social. Todavia e ao mesmo tempo, o apelo comercial aparece logo abaixo, com os nomes e fotos de artistas conhecidos do grande público integrando o elenco. A temática foi retratada no formato de documentário em um filme ficcional, mostrando uma realidade possível de existir. Babenco procurou com isso criar uma representação da realidade social, econômica e política do Brasil no final dos anos 70, onde o país vivia sob uma forte ditadura militar. Inspirando sua obra no neo-realismo italiano, não utiliza efeitos especiais, procurando fazer com que a realidade seja representada o mais próximo possível do cotidiano daquelas pessoas. Seguindo nesta linha, a maioria dos atores escolhidos pelo diretor não são atores profissionais, mas sim moradores de favelas e bairros da periferia da grande São Paulo, que tem a vida muito parecida com aquela retratada no filme. Essas observações remetem ao que se classifica como componentes essenciais para a “penetração em profundidade proporcionada pelo cinema” (BENJAMIN, 2000, p.243), na busca da construção do real: Para o homem de hoje, a imagem do real fornecida pelo cinema é infinitamente mais significativa, pois – se ela atinge este aspecto das coisas que escapa a qualquer aparelhagem (o que é uma exigência de toda obra de arte) – ela só o consegue precisamente à medida que usa aparelhos para penetrar, do modo mais intensivo possível, no próprio coração desse real. (BENJAMIN, 2000, p.243)
Mesmo buscando-se manter no filme a proposta original e a linha mestra do romance, observa-se que são mídias distintas, cada qual com seus sistemas próprios de signos, que, mesmo sobrepondo-se e misturando-se, possuem características próprias e
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diferenciadoras desde sua concepção, referenciando o que afirma Benjamin, que “mesmo a mais perfeita reprodução, sempre falta alguma coisa”. (BENJAMIN, 2000, p.224) A mídia livro, ou seja, o romance é o resultado da produção de uma única pessoa, levado a cada leitor também de forma única e individual. Já o cinema é o resultado de um trabalho conjunto, que envolve muitas pessoas durante todo o processo de elaboração. Torna-se o filme, portanto, uma releitura do romance, oferecendo ao receptor outras formas de interação, como efeitos e trilha sonora, posicionamento de câmeras, close e visões panorâmicas das personagens e locais: Adaptação pressupõe uma transformação de ordem semiótica. Podemos interpretá-la como, antes, uma forma de leitura por parte do autor (no caso, o cineasta, o roteirista, o realizador cinematográfico) que busca empreendê-la. Assim, o produto cinematográfico será sempre uma releitura, com os “ruídos” e concepções incorporadas, resultando numa obra que, para além das divergências do trânsito entre texto escrito e a imagem, terá uma série de implicações e naturalmente colocará em dúvida qualquer noção afeita à “fidelidade” (EDUARDO, 2013, p.11)
Conclui-se, portanto, que o cinema é uma atividade de equipe e existem elementos específicos do cinema, que mesmo o diretor buscando a composição de cenas, personagens e narrativas fiéis ao romance, o resultado de todo este trabalho passa por várias etapas e cada etapa incorpora vários profissionais, conforme cita Sueli Flory: Cada filmagem resulta num produto com características próprias, decorrentes de um trabalho coletivo, onde pessoas distintas trabalham em conjunto. O figurino e a maquiagem pertencem, igualmente, à arte do diretor, do ator, do maquiador e do diretor de arte; o iluminador auxilia o cinegrafista, o texto dos roteiristas presentifica-se através dos gestos, movimentos e interações entre atores e câmera. Os processos de edição e montagem influenciam decisivamente, o significado dos elementos que estruturam a mise-en-scène1 do filme. (FLORY, 2010, p.112)
Ao levar Infância dos Mortos para o cinema e transformá-lo em Pixote, A Lei do Mais Fraco, o diretor Hector Babenco precisou adaptar sua obra não apenas à nova linguagem audiovisual, ou aos novos receptores de sua obra, também chamados de
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Mise-em scène – Termo usado no sentido de colocar em cena uma imagem da ação total, criada por elementos constitutivos da peça (filme) tais como os atores, iluminação, cenografia, vestuário e adereços, decoração de cenas e ambientes. (FLORY, 2010, p.114).
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espectadores, precisou ainda suprir a necessidade dos investimentos e custos financeiros, que se apresentam como pré-requisito para viabilizar uma produção neste tipo de plataforma comunicacional e comercial. Babenco precisou, por meio de técnicas específicas do cinema, tornar a trama simpática ao grande público. Precisaria chocar as pessoas, quanto mais, melhor, mas sem afastá-las. Babenco usaria uma fórmula, em substituição à forma. Diferentemente do que ocorre na literatura ou na pintura, a técnica de reprodução não representa para o filme uma simples condição exterior que permitirá a sua difusão em massa; sua técnica de produção funda diretamente sua técnica de reprodução. Ela não permite apenas, do modo mais imediato, a difusão em massa do filme: exige-a. Os custos da produção são tão elevados que, se ainda é possível a um indivíduo, por exemplo, comprar um quadro, não lhe é possível comprar um filme. (BENJAMIN, 2000, p.230)
A migração da obra literária para o cinema criou, ainda, a necessidade de se pensar a produção dentro de um novo contexto, do antes, o durante e o depois da obra finalizada, culminando todas estas mudanças ao ponto em que a “criação tende a se tornar produção”, na definição de MORIN (2002). Estabelece-se assim, uma nova relação, onde o trabalho executado em grupo forjou uma linha de produção cinematográfica, com suas diversas etapas, a obrigação de se utilizar técnicas e equipamentos cada vez mais modernos e sofisticados, além do trabalho de edição e finalização. Soma-se a isto a não menos e importante campanha comercial desta produção junto ao grande mercado consumidor, também com suas técnicas de persuasão. Tudo isto para contemplar a tendência das grandes massas que “exigem, por um lado, que as coisas se lhes tornem, espacial e humanamente, mais próximas”. (BENJAMIN, 2000, p.227-228) Quando se lê Infância dos Mortos, ou se assiste Pixote, facilmente cria-se uma identificação e até certo carinho pelas personagens. No filme dirigido por Babenco, Pixote, o protagonista tem sempre olhar triste, gestos de carinho, atenção e preocupação para com os demais adolescentes. É difícil não procurar nas desigualdades sociais ou na falta da família entender o que leva estes adolescentes a cometer pequenos furtos, tráfico de drogas e assassinatos. Na obra de Louzeiro não é diferente, a maioria dos
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crimes cometidos é sempre acompanhada por uma justificativa, como se a personagem Dito, protagonista e autor da maioria dos crimes fosse o anti-herói da trama, vingando seus amigos traídos ou injustiçados por traficantes ou policiais: Dito não sabe mais o que perguntar. O homem, esvaindo-se em sangue, entende isso. Faz uma careta. – Colaborei com você, não me mate. Dito torna a sorrir. Sente a mesma alegria de quando pegou Débora pelos cabelos e ela começou a berrar e a implorar. Depois a alegria foi se convertendo em ódio, com muitas lembranças. Da armadilha que lhe preparou Cristal, do carro com a roda parada no seu pé, das algemas prendendo-o na cama, a sede o enlouquecendo. A cicatriz por cima do olho ardendo, os dedos segurando fortemente o cabo da faca, o golpe brusco. O Gordo fez apenas um gemido e fecha os olhos, filetes de sangue escorrendo-lhe pelo canto da boca. (LOUZEIRO, 1977, p.138)
Colabora para a formação de uma visão menos crítica dos espectadores sobre os crimes cometidos pelos adolescentes a maneira como são tratados pelas autoridades, que são quem os deveriam acolher e devolver um pouco da dignidade perdida pelo distanciamento familiar. Nota-se claramente o preconceito dos setores dominantes da sociedade para com estes adolescentes, até em se tratando do termo pelo qual são tratados, “menores”, que segundo FRONTANA (1999), foi criado para diferenciar os filhos dos pobres e negros: Em outras palavras, o termo “menor” constitui-se na maneira como os setores dominantes da sociedade fazem seu reconhecimento da condição específica de crianças e adolescentes pertencentes às classes trabalhadoras de baixa renda –, que carregam as marcas e os estigmas da exclusão, que exibem, enfim, os signos da discriminação que recaem sobre sua classe social. (FRONTANA, 1999, p.22)
Ao
utilizar
personagens
desconhecidas,
Babenco
direciona
o
foco
prioritariamente para as ações destes adolescentes, o que já fora percebido por meio da escolha do neo-realismo italiano como modelo de produção para esta trama. Mas, ao utilizar adolescentes que, potencialmente, poderiam viver ou estarem vivendo situações próximas às retratadas no filme, o diretor foi além, rompendo as barreiras do real e do imaginário. O que seria real, o que seria ficção e o que poderia sair da ficção e tornar-se referência do real, como na obra originária de Louzeiro, baseada em acontecimentos reais e transportados para o romance-reportagem.
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Se hoje, após muitos anos do lançamento de Pixote, os crimes cometidos por crianças e adolescentes chocam tanto as pessoas, assistir a estas cenas protagonizadas por moradores de favelas e bairros periféricos de São Paulo, local de origem dos acontecimentos, tornava o enredo surreal, espetaculoso. Segundo BENJAMIN (2000), ao nos depararmos com um filme –“eu já não posso pensar o que quero. As imagens em movimento substituem meus próprios pensamentos”. O que dizer então de mais carga realística nas retinas e nas mentes: Na época de Homero a humanidade se oferecia em espetáculo aos deuses do Olimpo; ela agora se converteu no seu próprio espetáculo. Tornou-se tão alienada de si mesma que consegue viver sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem. (BENJAMIN, 2000, p. 254)
Outro expediente utilizado é a supressão ou junção de personagens. Elimina-se algumas personagens, ao mesmo tempo em que se nota nitidamente as características de várias outras em apenas uma. Busca-se com isto não apenas imprimir maior dinâmica à trama, mas criar a polarização entre algumas personagens, o antagonismo entre o bem e o mal, mesmo que em muitas vezes o espectador tenha a impressão de que as maldades são praticadas por quem deveria fazer o bem e os que transgridem as leis, tornam-se boas pessoas aos olhos do grande público, “acentuam-se traços simpáticos e traços antipáticos, a fim de aumentar a participação afetiva do espectador, tanto no seu apego pelos heróis, como na sua repulsa pelos maus”. (MORIN, 2000, p.55) O papel do herói simpático, ou do anti-herói, não menos simpático ao público, é ressaltado com força tanto em Infância dos Mortos, como em Pixote. A felicidade destes heróis, ou o happy end (MORIN, 2000, p.92), pode ser percebida, mesmo em suas tragédias pessoais e sociais e até mesmo quando são conduzidos ao fundo do poço, em total fracasso, ou mesmo a uma saída que se apresente como trágica. Em maior ou menor grau, o happy end está presente nas duas obras. Em Pixote, após viver suas aventuras e desventuras, a personagem principal termina solitária, deixando para trás todas as mazelas que viveu, representado, inclusive, pela morte dos companheiros. O filme termina com Pixote caminhando pela linha férrea, com a nítida impressão de que em outra oportunidade sua vida sofrerá uma reviravolta e o
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adolescente sofrido, atormentado por seus fantasmas durante toda a trama, ressurgirá fulgurante e viverá novas e emocionantes aventuras. Já em Infância dos Mortos, o grau de happy end da personagem principal, Dito, leva-o à morte nos instantes finais da narrativa, mas à morte que antes de significar punição por seus atos, o liberta da vida de perseguições e sofrimentos que viveu em apenas seus dezessete anos de existência. Há vários graus de happy end, desde a felicidade total (amor, dinheiro, prestígio), até a esperança da felicidade, onde o casal parte corajosamente pela estrada ao encontro da vida. Raros e marginais são os filmes que acabam com a morte ou, pior ainda (pois a morte sempre tem virtudes tônicas), com o fracasso do herói. (MORIN, 2002, p.93)
Mas, ao nos depararmos com os diferentes finais, percebemos também a força da cultura de massa por meio do happy end, ao introduzir no filme uma segunda chance ao protagonista, na medida em que termina vivo, e, portanto, passível de mudanças, podendo encontrar dentro de si, e nas oportunidades que ainda terá, a chance de redenção. Isso nos mostra, apenas e tão somente “a força constrangedora do happy end, que se manifesta de maneira reveladora na adaptação das obras romanescas para o cinema”. (MORIN, 2002, p. 94) Os conceitos de liberdade e vida em grupo também aparecem no romance e em sua adaptação para o cinema. Nos estudos sobre cultura de massa no Século XX, Morin chamou os grupos de gang e identificou três modelos de liberdade, a extra, das viagens no tempo e espaço, a liberdade aventurosa, existente nos grandes conflitos a serem resolvidos entre o indivíduo e a lei e a liberdade denominada infra, que mais identifica as personagens tanto no romance quanto na produção cinematográfica, pois é uma liberdade “que se exerce abaixo das leis, nos submundos da sociedade, junto aos vagabundos, ladrões, gangsters. Este mundo da noite é, talvez, um dos mais significativos da cultura de massa” (MORIN, 2002, p.112). Ao mesmo tempo, o grupo, ou gang, também fascina, também penetra na alma humana, pois enaltece a liberdade de ações dentro de um chamado clã, onde não se tem identidade, mas identificações, ideais, projetados em ações grupais, fortalecidas por
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suposta liberdade verdadeira e ao mesmo tempo obscura, equilibrando-se entre a força dos instintos e do interdito. Percebemos que a violência exercida pelos grupos, pela gang, expressa em filmes como Pixote, se aproxima cada vez mais da violência real das ruas, da periferia, dos acidentes, dos assassinatos e do espaço que este tipo de comportamento social ocupa nos veículos de comunicação e de diversão de massa. A gang exerce fascinação particular, porque responde a estruturas afetivas elementares do espírito humano: baseia-se na participação comunitária do grupo, na solidariedade coletiva, na fidelidade pessoal, na agressividade em relação a tudo que é estrangeiro, na vindita (vingança em relação ao outro e responsabilidade coletiva dos seus), para realização dos instintos predadores e depredadores. (MORIN, 2002, p.112)
Na procura por modelos de sucesso, que despertem o interesse dos espectadores e garantam bons públicos nas salas de cinema, a felicidade, ou a busca constante e permanente pela felicidade é um ingrediente sempre presente. Mas é preciso entender que a felicidade que se busca na cultura de massa não é apenas a felicidade do happy end, em que se batalha, busca e ao final tem-se a satisfação pela conquista, pela possibilidade da felicidade. O que se busca na felicidade da cultura de massa “é a felicidade de ação de uma vida vivida na intensidade”. (MORIN, 2002, p.125) O tema da felicidade trazido às telas pela cultura de massa é a busca da felicidade no momento presente, seja a felicidade individual, seja a felicidade desfrutada em grupo. O que importa mais é a absorção dos momentos de prazer, do recebimento das benesses, da busca excessiva pelo prazer como o propósito mais importante da vida, ou seja, o hedonismo. Na moderna concepção de valores, a felicidade divide suas prioridades entre a conquista dos valores afetivos, sem esmaecer da busca pelos valores materiais, símbolo de status, de poder, de vencedor, flertando entre “a prioridade do ser e a prioridade do ter” (MORIN, 2002, p.127), ao mesmo tempo em que exige um empenho para que haja um equilíbrio entre estas duas posturas, para que as conquistas e os valores sejam as únicas possibilidades aceitáveis: A felicidade é, efetivamente, a religião do indivíduo moderno, tão ilusória quanto todas as religiões. Essa religião não tem padres, funciona industrialmente. É a religião da terra na era da técnica, donde sua aparente profanidade, mas todos os mitos caídos do céu são
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virulentos... Constituem o que, a rigor, podemos chamar de ideologia da cultura de massa, isto é, a ideologia da felicidade. (MORIN, 2002, p.130)
Na cultura de massa, o tema Amor toma contornos próprios, na medida em que aparece em situações inesperadas, sempre a humanizar um cowboy, um aventureiro, um homem de coração rude, que nos lugares mais insólitos se depara com a presença do amor. Não mais o amor de mãe para filho, nem o amor de um filho como Édipo, que ao matar o pai e desposar sua mãe, assume o lugar paterno em busca de sua real identidade. Em Pixote, o tema amor nada se relaciona com visões de família, de padrões estereotipados onde os adolescentes, assim como seus pais, possuem lugares bem definidos na sociedade. A obra mostra que as figuras paternais são inexistentes. Decerto que até “os heróis mitológicos são órfãos, os bastardos de deuses” (MORIN, 2002, p.151), mas na temática focalizada em Pixote, as origens familiares desaparecem quase que por completo, ressurgindo em poucos momentos, onde nada acrescentam à trama. O deslocamento da temática amor para os heróis, sem as perspectivas familiares também reflete na questão do aparecimento de um novo modelo de homem, sempre jovem, buscando tornaras personagens eternamente jovens, criando um novo homem e esse novo modelo é o homem “em busca de sua auto-realização, através do amor, do bem estar, da vida privada. É o homem e a mulher que não querem envelhecer, que querem ficar sempre jovens para sempre se amarem e sempre desfrutarem do presente”. (MORIN, 2002, p.151) Em Pixote, os adolescentes são os novos jovens e enfrentam nas prisões, nas sessões de tortura, na lógica cruel das ruas os seus ritos de passagem para a juventude precoce da cultura de massa. “A adolescência, de fato, a idade da busca individual da iniciação, a passagem atormentada e de uma infância que ainda não acabou e uma maturidade que ainda não foi assumida” (MORIN, 2002, p.151), tirando destes adolescentes o período de pré-sociabilidade, marcado pela aprendizagem e os estudos, tornando extremamente turbulento o período de socialização, que congrega o trabalho, o conhecimento e cumprimento das leis e normas sociais.
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Ante ao exposto, ao analisarmos a adaptação ou releitura de Infância dos Mortos para Pixote, A lei do Mais Fraco, sob a ótica da cultura de massa, é preciso observar que a finalidade principal da trama é trabalhar, de forma direcionada, o rompimento da linha tênue existente entre o real e o imaginário, ao mesmo tempo em que é preciso tornar o produto final, o filme, em uma obra que será vista por centenas de pessoas com diferentes ideais, classes sociais, formação, pontos de vista e interesses. A fórmula adotada para se alcançar o sucesso é buscar o ponto médio, o equilíbrio e a noção de até onde se pode chegar para agradar um espectador e ao mesmo tempo não desagradar outro com pontos de vista totalmente diferentes, tornando o imaginário de um, a realidade do outro: Na cultura de massa, a união entre o imaginário e o real é muito mais intima do que nos mitos religiosos ou feéricos. O imaginário não se projeta no céu, fixa-se na terra. Os deuses – estrelas, olimpianos – os demônios – criminosos, assassinos – estão entre nós, são de nossa origem, como nós mortais. A cultura de massa é realista. (MORIN, 2002, p.168)
Parte desta conquista e fidelização dos espectadores é facilmente alcançada na medida em que os autos custos da produção, aliado a estratégias específicas, torna a reprodução acessível à maioria das pessoas, enquanto a obra de arte e a produção literária tornam-se inacessíveis à maioria das pessoas, que além dos custos mais elevados na aquisição de um livro ou de um quadro, necessitam também de uma bagagem cultural mínima para penetrar e decifrar os códigos destas obras. O cinema, por sua vez, a cada dia entra mais e mais no cotidiano das famílias, nos corações e mentes, utilizando-se de técnicas que facilitam o entendimento e o tornam democrático e popular: Assim como a água, o gás e a corrente elétrica vêm de longe às nossas casas satisfazer nossas necessidades, por meio de um esforço quase nulo, assim também seremos alimentados por imagens visuais e auditivas, nascendo e evanescendo ao mínimo gesto, quase um sinal. (VALÉRY, 1934, p. 1052)
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VALÉRY, Paul, Piècessur I’art, “Conquête de I’ubiquité”, Paris, 1934. p.105. In: BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. p.224. In: Adorno et alii. Teoria da Cultura de Massa. Comentários e seleção de Luiz Costa Lima. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 221-254.
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A SÁTIRA NAS REDES SOCIAIS: MEMÓRIA, LINGUAGEM E CRÍTICA SOCIAL Josemara Stefaniczen (UNICENTRO) No contexto eloquente da cibercultura temos a influência da tecnologia no cotidiano das pessoas e com isso o aumento de atividades no universo digital, essas transformações culminaram em alterações significativas no comportamento humano principalmente no quesito comunicação; e um exemplo disso são as redes sociais, que permitem a interação dos usuários no sentido de tecer comentários e ter uma suposta “aproximação e intimidade” por meio da página na internet. Para tanto, é importante destacar o conceito de redes sociais, desse modo: Redes sociais complexas sempre existiram, mas os desenvolvimentos tecnológicos recentes permitiram sua emergência como uma forma dominante de organização social. Exatamente como uma rede de computadores conecta máquinas, uma rede social conecta pessoas, instituições e suporta redes sociais. (WELLMAN, 2002b, p.2).
Destarte, são novas identidades, novas linguagens e concepções constituídas pelas emaranhadas relações na rede e que ocasionaram em intricadas transformações para a sociedade. Frente a essa perspectiva, elencamos como corpus para esse artigo três páginas da rede social intituladas de “Dilma Bolada”, “Gina Indelicada” e “Humor Vintage” que utilizam a sátira como recurso de crítica social. Por se tratarem de páginas humorísticas as mesmas têm uma linguagem peculiar e retratam situações do cotidiano explorando satiricamente o contexto exposto. Assim, compreende-se que a sátira tem uma identificação estrutural com o presente – com o efêmero, portanto – ainda que, na superfície se apresente como uma abordagem do passado, e está ligada diretamente à ação política (BOSI, 1977, p. 172).
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A linguagem utilizada demonstra a evidente comicidade entre o contexto exposto e a imagem veiculada nas páginas. É enfocada desde a questão política até o cotidiano de pessoas comuns e também da Presidente da República. Ou seja, a linguagem está plenamente inserida em um contexto de crítica, onde a palavra tem o objetivo de ser um mecanismo para levar a reflexão de determinadas situações. Sendo assim, ela se torna ostensivamente política, no sentido de haver uma vontade subjacente em todo texto satírico de que aquela situação narrada leve o leitor a olhar sua história com olhos menos inocentes, e ria daquela situação com o riso constrangido de quem agora sabe mais sobre si mesmo e seu mundo do que antes da leitura, o que torna esse riso um gesto social (BERGSON, 1983).
Nesse enfoque, cabe ao leitor compreender o texto em todos os seus aspectos, ou seja, realizar uma leitura que contemple não somente a imagem mas toda a memória que envolve determinada charge, pois as charges trazem à tona a relevância de sobressair o elemento memória desde a Antiguidade até a contextualização nos dias de hoje atuando como parte do processo cognitivo de compreensão. De acordo com Foster (2011, p. 19): A memória, no entanto, não é somente mero “registro”, talvez seja mais apropriado ponderar a respeito dela como uma impressão do mundo sobre as pessoas. Nas páginas selecionadas como corpus é nítida o recurso da memória em muitos registros, no entanto, para um entendimento satisfatório é necessário ativar o conhecimento prévio, pois em muitos casos o recurso da memória está interligada no âmbito exemplificado. [...] considerando a restrição de seu domínio: os discursos estão imbricados em práticas não-verbais, o verbo não pode mais ser dissociado do corpo e do gesto, a expressão pela linguagem conjugase com aquela do rosto, de modo que não podemos mais separar linguagem e imagem. (COURTINE, 2011, p. 150)
Tal concepção ilustra a ampla exploração dos recursos interativos propostos pelas redes de relacionamentos utilizadas pelos indivíduos, porque dessa maneira os possibilita atuar ativamente da mídia, assim, as suas imagens, suas palavras, seus corpos, seu gestual são partes que compõem as suas personalidades e expõem indicativos de suas identidades.
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Portanto, analisar imagem é seguir sua errância, é passear com ela “entre imagens”, não é possível detê-la. (RIVERA, 2008). Muitas imagens quando julgadas como engraçadas e irônicas apenas tem sentido cômico exatamente por relacionar-se a outros sentidos de acontecimentos anteriores. Corresponde ao enunciado devido estar imerso em relações interdiscursivas complexas, reiterando memórias discursivas, no lugar de somente tomar o sentido como um contento pronto ou refletir que o sentido se dê exclusivamente pela instantaneidade do enunciado. Assim, como efeito de sentido na imagem ocorre apenas se a leitura permanecer relacionada a uma situação/contexto de sentido antecedente à posição. Por conseguinte, a imagem é o enunciado e está associada a um acontecimento, a uma memória discursiva que determina efeitos de sentido (o riso/cômico, sátira à leitura da imagem), instigando e renovando discursos. O riso resultante do aspecto satírico da imagem denota que se transmite, entre falante e interlocutor, uma memória discursiva mesmo que se aprove ou discorde desse conhecimento, tal condição é essencial, pois em sua perspectiva é característica de cada enunciação a abertura de uma consonância de sentidos. Dessa maneira, o leitor nunca é um simples receptor dessas imagens, pois a ele implica a compilação de sentidos e a ativação da memória discursiva frente ao objeto analisado. A imagem veiculada na rede social Facebook sobre a presidente Dilma promove esse percurso interpretativo, pois contém a memória como embasamento para a composição do processo discursivo e os enunciados incorporados pelos eventos históricos criam diálogo não com os episódios passados, mas com as marcas enunciativas existentes na memória social dos sujeitos que os interpretam. No âmbito midiático a imagem é a linguagem que melhor demonstra os jogos de sentidos e a rede social Facebook dispõe de vários tipos de imagens discursivas, e dentre elas há as denominadas charges políticas assinaladas pelo humor, sátira e ironia. A imagem em estudo foi enunciada sobre o sujeito social e político Dilma e expõe determinados enfoques em comum e os fundamentais são demonstrados pela utilização da memória em seus vários sentidos e o ponto principal em relacionar discurso e
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imagem, adotando a imagem na qualidade de item decisivo para a constituição do novo sujeito político da contemporaneidade. Assim, conforme Maingueneau (2002, p.12): “um texto publicitário, é fundamentalmente imagem e palavra; nele, até o verbo se faz imagem”. Dessa forma, os enunciados vinculados nas referidas páginas nos permitem além de analisar as imagens, refletir sobre o discurso apresentado na rede social. Segundo Foucault (1996, p. 26): “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”. Nesse pressuposto, o enunciado se torna um já dito, recorrendo a memória discursiva, contornando como um enunciado verdadeiro possibilitado a estar na ordem discursiva de um período. E dessa forma, percebemos no caso das charges nas redes sociais que é preciso um empenho com a linguagem, pois além do domínio do código linguístico e das estratégias satíricas, toda uma ação de dizer e não dizer, entre o que foi dito e o que se acreditava, o que estabelece uma dinâmica discursiva do sujeito. Essa dinâmica discursiva do sujeito nos contextos adotados nas redes sociais exemplificam o humor, do mesmo modo que a moral e a ética diferenciam-se na sua abrangência em espaço e tempo. Portanto, as formas cômicas e satíricas que induzem o riso mudam conforme os contextos históricos, sociais, culturais, políticos e éticos, assim como os conteúdos éticos ou cômicos são de natureza social e humana racional. As referidas páginas das redes sociais contém relevantes traços de crítica social atrelado às inovações na linguagem e nas imagens selecionadas. Esse espaço estabeleceu-se como “um novo lugar de crítica, de transversalidade dos acontecimentos sociais, políticos e culturais” (JANOVITCH, 2006, p.19). A crítica social presente nas charges veiculadas nas redes sociais induzem o leitor a reflexão sobre os momentos vividos na sociedade e sobretudo os comportamentos humanos. Dessa maneira, o estilo satírico possibilita de forma contundente o uso de determinados mecanismos para efetuar a crítica em nome da ética, concebendo desempenhos de atividade catártica como meio de protestar de forma humorística contra as ordens ou excessos, representar um personagem ou uma cultura.
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De acordo com Bergson (1987), o riso, além de ser um fenômeno social, é um fenômeno psíquico, pois o sujeito ri de situações embaraçosas pelos quais não tem envolvimento afetivo, assim, o cômico é instigado pela observação dos erros humanos em um entendimento corretivo, frente ao observador/leitor. O estudo sobre o humor no cenário virtual ainda é pouco discutido, portanto, essas contribuições são de extrema valia para pesquisas nessa área. O humor mesmo estando presente em blogs, sites, redes sociais não é frequentemente debatido como sendo um fenômeno da comunicação intermediada por computador. O humor tem participado das práticas cotidianas no ambiente virtual, no entanto, nem sempre provoca o riso nas pessoas, pois, para que isso aconteça de forma satisfatória é necessário que haja um entrelaçamento entre a cultura de quem está recebendo essa mensagem, o contexto no qual o sujeito ou a situação está inserido (a) e o discurso que deve fazer uma referência aos pontos de vista dos sujeitos envolvidos. O corpus selecionado para esse estudo trata da sátira especificamente nas imagens publicadas em determinadas páginas na rede social Facebook e nesse contexto é importante destacar o papel da imagem selecionada na rede social, pois uma imagem para tornar-se aparente é manifestada por meio da interpretação e do efeito de sentido instituído entre a imagem e o olhar. Para que aconteça essa conexão entre imagem e olhar é necessário destacar o olhar de cada leitor, pois dependendo de seus conhecimentos prévios e de suas ideologias a interpretação poderá ser distinta, ou seja, para que haja uma leitura coerente e eficiente é fundamental considerar a relação dessa imagem com a cultura, o social, o histórico e especialmente com a formação social dos sujeitos envolvidos.
Toda imagem se inscreve numa cultura visual e essa cultura visual supõe a existência para o indivíduo de uma memória visual, de uma memória das imagens. Toda imagem tem um eco. Essa memória das imagens se chama a história das imagens vistas, mas isso poderia ser também a memória das imagens sugeridas pela percepção exterior de uma imagem. Portanto, a noção de intericonicidade é uma noção
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complexa, porque ela supõe a relação de uma imagem externa, mas também interna. As imagens de lembranças, as imagens de memória, as imagens de impressão visual, armazenadas pelo indivíduo. Imagens que nos façam ressurgir outras imagens, mesmo que essas imagens sejam apenas vistas ou simplesmente imaginadas. (MILANEZ, 2006, p. 168)
Nessa perspectiva compreende-se que no momento que uma imagem é vista, outras são relembradas, ou seja, toda imagem se une ao que lhe é externo e se conecta a itens difundidos no âmbito social, pois do mesmo modo que um enunciado pertence a uma determinada rede formulação, a imagem está registrada entre um agrupamento de imagens. Por conseguinte, quando pensamos uma memória das imagens podemos relacionar a uma história das imagens vistas que são implicadas pela impressão externa da mesma. Frente a esse panorama, podemos compreender que as redes sociais têm uma influência direta no cotidiano das pessoas que as utilizam, pois, através dessas redes sociais as pessoas se conectam a um mundo de possibilidades, seja para entretenimento, cultura, aprendizado ou interesse próprio. E outro fator interessante a ser destacado durante a realização desse estudo é o fato das pessoas se sentirem “aceitas” dentro de determinado contexto social, por exemplo, na página “Dilma Bolada”, os leitores têm a oportunidade de participar ativamente das charges que são publicadas, pois podem dar opiniões, fazer perguntas e dessa maneira passam a sentir-se mais “próximos” da figura pública da Presidente da República. Dessa forma, fica evidente que através das redes sociais, especialmente as charges, os leitores são muitas vezes conduzidos a refletir, pois se observarmos o funcionamento das imagens nesse meio virtual, pode-se perceber que as mesmas nem sempre se expressam sozinhas, portanto, a linguagem utilizada no contexto da sátira reforça a memória coletiva dos sujeitos inscritos e aliado à crítica social conduzem a reflexão dos momentos vividos na sociedade, sejam momentos de crises, eventos, eleições, ou seja, tudo que seja relevante contestar de forma contextualizada e assim permitir considerações acerca do exposto possibilitando que as pessoas tenham uma mais crítica da sociedade em que vivem.
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Portanto, o riso pode ser representado como uma demonstração de identidade conforme existe um método de identificação de uma opinião crítica e a apresentação de algo a ser ponderado como risível diante de uma parte da sociedade. Sendo assim, a sátira tem a função de representar a hipocrisia da sociedade, as fraquezas humanas ou mesmo os erros cometidos pelos indivíduos quando representam as instituições sociais e apresenta-se com um caráter cômico mas contendo fortemente uma crítica social.
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MILANEZ, N. O corpo é um arquipélago – memória, intericonicidade e identidade. In: NAVARRO, Pedro (Org.). Estudo do texto e do discurso: mapeando conceitos e métodos. São Carlos: Editora Claraluz, 2006. p. 153-179 RIVERA, T. Cinema, imagem e psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. WELLMAN, B.; BOASE, J.; CHEN, W. The Global Villagers: Comparing Internet Users and Uses Around the World. In: WELLMAN, b.; HAYTHORNTHWAITE, C. The Internet in Everyday Life. (p.74-113). Oxford: Blackwell, 2002. ______. b The Networked Nature of Community Online and Offline. IT & Society n.1, vol 1, p.151165. Summer, 2002
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O TEXTO POÉTICO TROVADORESCO E SUAS MARCAS LINGUÍSTICAS Karin Elizabeth Rees de Azevedo (UTAD)
A Linguística Textual apresenta-se como um referencial teórico importante, porque se baseia em um estudo linguístico centrado no texto. Por ser este uma unidade básica de manifestação de linguagem, parte-se do pressuposto de que o homem possui uma competência textual sócio comunicativa, o que permite uma abordagem qualitativa do texto. Assim, a consideração sobre o que se entende por texto se impõe, uma vez que o mesmo é o lugar por excelência onde se manifestam as operações de construção e reconstrução dos sentidos. Embora a Linguística Textual centre seus estudos sobre o texto e todos os estudiosos compartilhem esse mesmo objeto como fundamental, é importante conhecer sua significação dentro de campos teóricos, pois apenas na medida em que a língua é abordada dentro de uma visão textual é que se torna possível esclarecer suas marcas e seu mecanismo de funcionamento. As diferentes vertentes de estudo propõem conceitos diferentes em relação ao texto, e a respeito disso Bernandez enuncia: La definición de una unidad fundamental, como es el texto, parece de importancia esencial para la teoria. Porque si queremos estudiar el texto, será preciso saber de antemano qui significa exactamente ese término. Sin embargo, al igual que sucede con otros conceptos básicos de la lingüística, su definición no es en absoluto sencilla.
BERNARDEZ (1982, p.75).
Anteriormente à visão que se tem hoje na Linguística Textual, a palavra “texto” era usada como qualquer produto da fala ou como produto escrito. No entanto, essas definições não servem para o objeto “texto” enfocado pelos estudos da Linguística Textual, pois não se pode limitar o texto apenas ao escrito, já que o falado também o é, e limitar a visão apenas à fala não permitiria distinguir texto de uma palavra, ou frase. Bernardez (1982) apresenta onze definições acerca de texto de acordo com as diversas tendências que a Linguística Textual desenvolveu e as classifica tomando critérios que, segundo o autor, podem aparecer separadamente ou em combinação, da
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seguinte forma: texto como unidade comunicativa; texto como produto de atividade; texto como sucessão de orações; texto como signo linguístico; e, ainda, de acordo com outros critérios semânticos e a existência de relações internas. Baseado nesses critérios, mas ressaltando que não há uma definição precisa, BERNARDEZ (1982, p. 83) propõe que “el texto es la unidad comunicativa del lenguaje, que se manifesta en forma de sucesión coherente de oraciones”. Acrescenta o autor que para esta definição ser válida seria necessário especificar os termos unidade, sucessão de orações e coerente. Em sua exposição, o autor afirma que, para se realizar uma definição de texto, se deve ter em conta um conjunto de múltiplos fatores, assim, declara que não irá apresentar uma definição, mas um conjunto de características que demonstram ser o texto fruto da atividade verbal humana, em caráter social por ter um aspecto semântico e comunicativo, com coerência em face das estruturações apresentadas por meio de regras aplicadas em nível textual. Várias foram as formas de abordagem utilizadas pelos estudos linguísticos em relação ao conceito de texto. Fávero & Koch (1988) apontam que essas diferentes concepções acabaram usando os termos texto e discurso como algo sinônimo, em uma visão em que esses não se distinguem e, ao mesmo tempo utilizando-os para designar entidades diferentes. A Linguística Textual, por sua vez, emprega o termo em duas acepções. A primeira, designando toda e qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano, ou seja, qualquer tipo de comunicação realizada por meio de um sistema de signos. A segunda acepção envolve a linguagem verbal, em que o discurso é visto como uma atividade comunicativa em uma situação específica, envolvendo o conjunto de enunciados produzidos e o evento de sua enunciação. Nesse aspecto, o discurso é manifestado linguisticamente por meio do texto, que é entendido como um todo significativo, independente de sua extensão. Assim, o texto é visto como uma unidade de sentido em um contínuo comunicativo que se caracteriza por um conjunto de relações responsáveis pela tessitura do texto. Apresentando as considerações acerca da Linguística Textual e seu objeto o texto, Marcuschi (1983) o define como uma ocorrência de comunicação em um complexo de ações humanas, que deve ser visto como uma sequência de atos de
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linguagem, não só de frases de algum modo coesas. Recomenda o autor, nestas considerações, que para a análise geral do texto se observem tanto as condições gerais dos indivíduos como os contextos de produção e recepção. Dessa forma, pode-se tomar o texto como uma ocorrência de comunicação, em que se apresentam os componentes linguísticos revelados pela superfície textual por meio dos critérios de coesão e coerência e ligados aos fatores sócio-histórico-culturais de produção. Nesta comunicação, escolheu-se o texto poético para objeto de estudo, representado pelas cantigas de amigo de Dom Dinis. Como afirma Nascimento: Como todo texto, o poético é alicerçado na e pela linguagem, embora, ao mesmo tempo, a transforme para produzir os efeitos desejados. A especificidade do texto poético percebida, intuitivamente, pode ser reconhecida se o efeito de sentido produzido por ele for justificado por sua organização interna peculiar, que revele sua superestrutura. (NASCIMENTO (1984, p. 88).
Acrescenta, ainda, o autor que o texto poético projeta suas articulações no plano da expressão linguística e formal e também no plano do conteúdo por meio de recursos retórico-pragmáticos, a partir do momento em que se organizam na superfície textual. A conceituação do texto poético fundamenta-se no princípio teórico que o trata como unidade comunicativa que, assim, pode se revelar como um instrumento da poeticidade. Esta poeticidade revelada na textualidade construída por meio das marcas linguísticas é que se apresentam como foco de interesse, pois o texto poético é um fato social que se inscreve na história e se apresenta como reflexo da realidade penetrado pelo contexto sócio-histórico. Nesse sentido, a textualidade que se estabelece pelo poético é concretizada pela obra, segundo Zumthor, quando enuncia: Meu ponto de vista aqui é o da obra inteira, concretizada pelas circunstâncias de sua transmissão pela presença simultânea, num tempo e num lugar dados, dos participantes dessa ação. A obra contém e realiza o texto; ela não suprime em nada porque, desde que tenha poesia, tem, de uma maneira qualquer, textualidade. (ZUMTHOR, 1993, p. 10).
Seguindo essa abordagem acredita-se existir uma relação intrínseca entre a linguagem poética e o contexto situacional capaz de possibilitar ao poético revelar-se como instrumento de comunicação e informação. Nesse sentido, ao se considerar o texto poético como uma unidade de comunicação, possibilita-se a extensão deste caráter
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comunicativo ao poeta, pois a informação parte de si como modelo para a criação. Nessa visão, o que o poeta fala (texto poético) revela a história e o homem, conforme Paz: O poeta fala das coisas que são suas e de seu mundo, mesmo quando nos fala de outros mundos: as imagens noturnas são compostas de fragmentos das diurnas, recriadas conforme outra lei. O poeta não escapa à história, inclusive quando nega ou a ignora. Suas experiências mais secretas ou pessoais se transformam em palavras sociais, históricas. Ao mesmo tempo, e com as mesmas palavras, o poeta diz outra coisa: revela o homem. (PAZ, 1996, p.55).
Colocar a linguagem poética em sua situação de comunicação é dizer que a língua ali utilizada reúne sequências textuais capazes de produzirem efeito de sentido e significa apresentar o funcionamento deste tipo de texto, expondo os processos de significação que o constitui. Assim, para revelar a especificidade do texto poético trovadoresco medieval e sua organização interna é necessário inseri-lo no contexto de uma tipologia textual que dê conta de sua coesão e coerência e de suas condições de produção. No dizer de Nascimento: O texto poético apresenta-se como uma entidade comunicativa, de linguagem própria e suficiente, a partir de articulações específicas, com intuito de transformá-la em objeto estético. Por incorporar os conhecimentos de mundo e a experiência quotidiana, o poético abarca muito mais que a simples soma de expressões lingüísticas que o constituem(NASCIMENTO, 1984, p.104).
Embora se saiba que o texto poético obedece, por assim dizer, a uma sintaxe poética, que inclui os expedientes retórico-formais e as marcas linguístico-textuais que visam a constituí-lo em um evento comunicativo, ao mesmo tempo sonoro e significativo, é preciso observá-lo no contexto social para que essas marcas evidenciem sua textualidade. Paz (1996) apresenta a visão de que o poema é histórico de duas maneiras, como produto social e como criação que transcende o histórico, pois as palavras do poeta, ou seja, o texto poético é histórico ao pertencer a um povo e a um momento da fala desse povo. Além disso, como todo texto, o texto poético trovadoresco medieval é alicerçado na e pela linguagem, em que os expedientes sonoros e rítmicos conjugam-se aos linguísticos e formais e se organizam na superfície textual estabelecendo dois níveis: o
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linguístico textual e o retórico-formal. Assim, o poeta ampara-se na linguagem e a distingue da usada cotidianamente, ao se apropriar destes níveis para construir seu texto, tendo lugar, neste momento, a metáfora, que, embora de pouca utilização na lírica trovadoresca galego-portuguesa, implica uma comparação explícita ou implícita entre vocábulos e frases, o que resulta em um sentido construído pela utilização que faz o poeta-trovador destes elementos linguísticos. A eficácia textual resulta, portanto, do uso dos expedientes retóricos e linguísticos adequados à situação cultural da época. Em síntese, o texto poético trovadoresco medieval pode ser considerado um espaço em que a linguagem poética, em sua situação de comunicação, reúne sequências textuais capazes de por em evidência o funcionamento deste tipo de texto, o qual não se instaura apenas pela forma, mas pelo entrelaçamento desta com a linguagem que constitui a própria essência do poético, enquanto manifestação linguístico-textual. Nesse sentido, Nascimento enuncia: ... compreendemos o texto poético como resultante do entrelaçamento do nível lingüístico-textual e do retórico-formal, que lhe define a superestrutura, visto que podemos reconhecer nela a estrutura global e a marca dos níveis na organização textual. (NASCIMENTO, 1984 p. 124).
Neste trabalho, a proposta implica avaliar a organização textual das cantigas de amigo de Dom Dinis, e assim apresenta-se como exemplificação a análise da cantiga de número XXV, por meio da articulação dos elementos disponíveis na língua com o contexto histórico-cultural do século XIII. A análise destes elementos será feita com relação àqueles que a caracterizam como texto e identificam o período a que pertencem como medieval. Importa ressaltar que essa numeração é correspondente à seleção organizada por Pimpão (1960), de acordo com o Cancioneiro Colocci-Brancuti, correspondendo neste ao número 553 e o texto da cantiga segue transcrito para facilitar o entendimento da análise. CANTIGA – XXV
Bem entendi, meu amigo, que mui gran pesar ouvestes, quando falar non podestes
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vós noutro dia comigo; mais certo seed’, amigo, que non fui o vosso pesar que s’ ao meu podess’ iguar. Mui bem soub’ eu por verdade que erades tan cuitado que non avia recado; mais, amigo, acá tornade, sabede bem por verdade que non fui o vosso pesar que s’ ao meu podess’ iguar Ben soub’, amigo, por certo que o pesar d’aquel dia vosso, que par non avia; mais pero foi encoberto, e por en seede certo que non foi o vosso pesar que s’ ao meu podess’ iguar Ca o meu non se pod’osmar nem eu non no pudi negar
Observa-se, na cantiga, que o texto se insere em um momento histórico, em que a oralidade era mais forte que a escrita, uma vez que a escrita era privilégio de poucos. Sendo assim, o texto da cantiga de amigo traz em sua constituição uma marca de oralidade que o identifica, como se observa pela quebra oracional de forma a marcar as rimas pelas palavras finais – amigo/ comigo /amigo e ouvestes/ podestes no primeiro grupo de versos que constitui a estrofe, e pesar/ iguar nos refrães. Esta cantiga apresenta o seguinte esquema de rimas: abbaaCC, constituindo o efeito sonoro que se produz pela organização em versos.
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Característica do texto poético, enquanto ritmicamente marcado, é sua relação com a música, que se constitui na forma sobre a qual as palavras atuam impondo as determinações do sonoro à linguagem, observado, por exemplo, na organização das sílabas métricas que nas estrofes são setessílabos graves e nos refrães octossílabos agudos, impondo um ritmo musical diferenciado no momento da enunciação dos refrães. Como objeto cultural, o texto poético encontra na linguagem uma matéria construída em consonância com o sistema musical. A cantiga XXV, em sua forma escrita, se apresenta como texto poético e se revela como tal, por diferenciar-se em sua organização formal de outros tipos textuais, uma vez que as linhas são tipograficamente separadas, realçando a métrica, o ritmo e as rimas ao final da linha e, assim denunciam o processo de versificação. Esse processo versificatório se transforma pela reunião dos versos em estrofes constituindo a cantiga em um texto poético composto de três estrofes de cinco versos cada, intercaladas por um outro conjunto de versos que se repetem ao final de cada estrofe, que se denomina refrão. Há, ainda, um outro conjunto de versos ao final que é chamado de finda. Embora esteja apresentado seguindo essa constituição em três estrofes, seguidas de refrão e finda, a cantiga se constitui em texto por ser resultante de uma produção linguística que se caracteriza por ser espaço de construção de sentidos. Outra evidência que nos possibilita caracterizar a cantiga em estudo como texto poético é o material linguístico-formal que utiliza para alcançar seu objetivo, bem como a visão de mundo que revela. Essa visão de mundo é compreendida por meio do refrão que indica do que a cantiga trata, ou seja, do pesar tanto do trovador como do amigo. Esse contexto de pesar surge como resultado das imposições socioculturais do século XIII, que distanciavam pela guerra ou romaria ao amigo e, pela visão religiosa que propunha o celibato ao cavaleiro – amigo – gerando uma condição de pesar por não ser possível estar com a amiga. O levantamento dessa situação revela que o texto em estudo produz efeitos de sentido, porque apresenta em seu funcionamento interno uma seleção lexical que estrategicamente apresentada reflete esse contexto de imposição. O uso do advérbio de negação – non - anteposto aos verbos –podestes – fui – avia – pod’ – pudi – demonstra
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claramente que há uma restrição cultural em relação ao que o amigo pode ou não realizar. Importa acrescentar que a cantiga em estudo está escrita em português arcaico ou galego-português, o que propicia a relação linguística entre os elementos lexicais e o contexto sociocultural. Segundo Hauy (1989), a língua era escrita para os ouvidos, pois os textos tinham uma tradição oral em função do número reduzido de cópias e as características pessoais dos escribas, muitas vezes representando foneticamente um som o representavam de diferentes maneiras. Em relação ao uso do alfabeto se pode demonstrar que ocorria o desaparecimento de letras chamadas inúteis, e apresenta-se na cantiga XXV a grafia de avia, sem o h inicial, confirmando essa tendência. Há, na cantiga, também a escrita aglutinada de palavras, indicando o acento frásico, ou mesmo para informar aos cantores a distribuição musical. Na cantiga em análise essa abreviação surge no uso do apóstrofo para suprimir a vogal final de uma palavra quando a seguinte vem iniciada por vogal. No quinto verso da primeira estrofe ocorre com a palavra seed’, amigo, também nos refrães se repete de duas formas: que s’ao meu podess’iguar. Na segunda estrofe se tem: mui bem soub’eu por verdade. Na terceira estrofe se encontra soub’, amigo e pesar d’aquel dia, e ainda, na finda: se pod’osmar. A presença deste recurso indica que a norma poética revela, sem dúvida, uma realidade linguística em que fatos fonéticos/ortográficos demonstram a ligação musical vigente. Essa ligação musical é demonstrada por meio da organização rímica das estrofes, em que a rima encontra na língua e no uso que o trovador, especialmente Dom Dinis, faz para elaborar o seu texto como um reflexo da cultura de seu momento, sendo tal esquema rímico classificado como abbaaCC, que se alterna fonicamente a cada estrofe, demonstrando uma organização fônica rica para os padrões da época, considerando-se a língua em formação, que opera e produz um paralelismo sonoro entre as rimas, e demonstra também o uso variado de estruturas formais à moda dos cantos populares da península. Com isso se quer dizer que a marca do oral, acrescida do paralelismo, do refrão, do esquema rímico e da sonoridade busca exprimir o lirismo, o sentimentalismo, a repetição de ideias, a memorização e essa oralidade revela, nesse contexto, que o texto
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em estudo produz efeito de sentido, marcado em seu funcionamento interno, em que os mecanismos linguístico e retórico-formais perpassam o texto como um todo, revelandoo como unidade comunicativa. A cantiga, por ser estruturada, produz comunicação e opera com a argumentação, como qualquer texto, sendo a argumentação um ato constitutivo linguístico fundamental também do poético. Na cantiga em análise, o pesar, que constitui o assunto do qual o poeta argumenta, é característica do momento em que se insere, pois as imposições culturais em decorrência da expansão do sistema feudal e monárquico reúnem os cavaleiros para a defesa do senhor, impondo uma forma de conduta que prega o celibato, tornando qualquer tipo de relação amorosa um motivo de pesar. Quer-se, com o exposto, confirmar que a cantiga, como texto que é, se insere em um contexto cultural específico que é marcado pelas suas condições de produção, as quais imprimem nesse texto suas marcas. Os mecanismos pelos quais o texto se organiza refletem suas condições de produção, confirmando que os expedientes sonoros, rítmicos e todos os demais se organizam no nível retórico-formal e linguístico para que a referência tematizada seja mantida coesa e coerente, como mensagem poética. Importa também notar que a linguagem poética não se submete aos princípios gramaticais nem aos determinismos da lógica, mas claro é que, segundo Nascimento: ...o texto poético se submete a outras regras, isto é, ele, obedece, por assim dizer, a uma sintaxe poética, que inclui os expedientes retóricoformais e as marcas lingüístico-textuais que visam indubitavelmente a constituí-lo um evento comunicativo ao mesmo tempo sonoro e significativo. Por sua competência textual, o interlocutor capta as subversões sintáticas e suas implicações que funcionam como um controle interpretativo do texto como um todo. (NASCIMENTO,1994, p. 209).
Assim, pode-se perceber que os elementos sintáticos e linguísticos aliados aos aspectos socioculturais e pragmáticos instauram o texto poético como um todo, pois forma e fundo se integram para revelar o sentido estético, que leva ao estabelecimento de sentido textual, por meio de uma rede de significações em que as sequências significativas vão se construindo linearmente, através de unidades informativas, pois o poético existe sempre e, especialmente, no contexto social e nas situações mais
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correntes, e se caracteriza por sua organização linguística formal, integrando as suas possíveis condições de produção. A linguagem do texto poético possui, dessa maneira, uma forma específica de estruturação, que se define pelas particularidades no relacionamento estabelecido entre os elementos do sistema linguístico. A cantiga em estudo pode, por esta visão, ser entendida como texto poético, pois retrata, através de seus mecanismos internos, a organização linguístico-formal. Essa organização é a que possibilita perceber a expressividade, pela maneira como a mensagem é apresentada para depreender efeitos de sentido. Assim sendo, abordar as cantigas de amigo de Dom Dinis, enquanto texto poético trovadoresco medieval, bem como inserir o estudo do poético na visão da Linguística Textual é possível, uma vez que se pode analisar este tipo de texto em uma dimensão textual em que os elementos de conexão sequencial fazem parte da constituição da textualidade. Esse tipo textual se instaura como texto comunicativo e expressivo, resultante da linguagem e forma, em que as relações formais e linguísticas, intimamente correlacionadas, permitem explicar o funcionamento do texto poético, e com isso, afirmar que o esquema gramatical constituído por marcas específicas faz parte do corpo linguístico e define como particular um tipo de texto.
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A VONTADE DE VERDADE EM A CAVERNA DE JOSÉ SARAMAGO Karina Luiza de Freitas ASSUNÇÃO- (UFU/LEDIF-UEMG) Para o desenvolvimento da presente proposta de pesquisa pautaremos nos estudos da análise do discurso (AD) de linha francesa e nos estudos realizados por Michel Foucault que, apesar de não ser analista do discurso, suas discussões são relevantes para as pesquisas realizadas a partir desse escopo teórico. De acordo com a AD o sujeito é descentrado, clivado, heterogêneo, apreendido em um espaço coletivo e não é constituído em uma individualidade e sim a partir de uma coletividade que o subjetiva. Dessa forma, os discursos estão sempre em movência, pois sofrem a todo o momento alterações decorrentes das mudanças históricas e das transformações sociais. Percebemos que a constituição dos discursos é envolvida por uma gama de aspectos que apontam para a sua complexidade. Assim, Foucault, no decorrer de suas discussões esclarece que não existem objetos pré-estabelecidos, tais como a loucura, a sexualidade e outros. Isso quer dizer que eles são construídos discursivamente e que obedece a determinadas regras que são constituídas historicamente. Com isso, não existe uma “verdade” verdadeira ou falsa, o que temos é uma construção discursiva. A partir das considerações proferidas acima, o objetivo da apresentação será problematizar como se articula a constituição da subjetividade do sujeito Cipriano Algor, personagem central do romance A caverna (2000) de José Saramago, bem como a construção discursiva da “verdade”. Nesse momento, buscaremos compreender como a constituição da subjetividade desse personagem está relacionada com uma vontade de verdade, visto que no momento são questionadas algumas verdades e outras são postas no lugar. O sujeito Cipriano Algor e a construção discursiva da verdade Para a AD o discurso implica uma exterioridade à língua, pois as palavras ao serem pronunciadas carregam em si aspectos que remetem para o lugar social e histórico no qual o sujeito está inscrito; sendo assim, os discursos estão sempre em movência, pois sofrem a todo o momento alterações decorrentes das mudanças
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históricas e das transformações sociais. O discurso deve ser considerado como um lugar do não estável, do não lógico, do não aparente, podendo ser verificado no seu próprio funcionamento. Ele é produzido historicamente e disperso ao mesmo tempo, é peculiar no sentido de que sua historicidade é única e não se repete. O acontecimento que permeia a produção discursiva também não é algo factual, datado cronologicamente, mas disperso e descontínuo. Para a realização da presente proposta partiremos do pressuposto que Foucault (2006) menciona em sua aula inaugural do Collége de France. Ele assevera que não queria ter que entrar na ordem daquele discurso, pois o discurso é muito mais que enunciar algumas palavras sobre um determinado assunto. De acordo com ele, o discurso não é livre, ele obedece a leis que estão fora do seu projeto e do próprio discurso. suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certos números de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, do minar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 2006, p.9)
Foucault (2006, p. 9) menciona que esse controle é exercido a partir de vários “procedimentos de exclusão”, destacaremos inicialmente a interdição. Ele assevera que “não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um enfim, não pode falar de qualquer coisa.” (FOUCAULT, 2006, p.9) Ele aponta três tipos de interdição, são elas: “tabu do objeto”, a interdição sobre o tema do discurso, isso quer dizer que de acordo com ele terei ou não a interdição; “ritual de circunstância”, de acordo com o lugar ocupado pelos sujeitos termos um determinado ritual que deverá ser obedecido; e “direito privilegiado e exclusivo do sujeito que fala”, de acordo com a situação em que o sujeito se encontra o discurso será ou não aceito. Foucault (2006, p.9) afirma que “temos aí o jogo de três tipos de interdições que se cruzam, se reforçam ou se compensam, formando uma grade complexa que não cessa de se modificar”. Ao atentarmos para as considerações acima notamos que a constituição dos discursos não é transparente, nem tão pouco neutra. Foucault (2006, p.9) assevera que:
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Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e o poder. [...] O discurso [...] é também, aquilo que é objeto do desejo; e visto que __ isto a história não cessa de nos ensinar __ o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nós queremos apoderar.
Como afirmou Foucault (2006), o discurso passa inicialmente a impressão de que ele não tem tanta importância, mas que essa afirmação não se confirma uma vez que o discurso carrega em seu interior marcas que mostram a sua complexidade. Juntamente com o discurso outra questão chama a atenção de Michel Foucault que é a vontade de verdade. Foucault (2006, p.10) afirma que o discurso não pode ser considerado apenas “aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominação”, mas o que os sujeitos desejam tomar para si, “o poder do qual nós queremos apoderar.” Concomitantemente a esse desejo temos a produção da verdade que não deve estar relacionado com o verdadeiro ou falso, mas sim com a vontade de saber e, consequentemente, com a vontade de verdade. Ela exerce sobre os discursos uma influência, Foucault (2006, p.19) menciona, por exemplo, o sistema penal que “procurou seus suportes ou sua justificação, primeiro, é certo em uma teoria do direito, a partir do século XIX, em um saber sociológico, psicológico, médico, psiquiátrico: como se a própria palavra da lei não pudesse mais ser autorizada em nossa sociedade, senão por um discurso de verdade.” De acordo com o estudioso isso ocorre no sistema prisional e em outros pelo fato de que
o discurso verdadeiro não é mais, com efeito, desde os gregos, aquele que responde ao desejo ou aquele que exerce o poder, na vontade de verdade, na vontade de dizer esse discurso verdadeiro, o que está em jogo, senão o desejo e o poder? O discurso verdadeiro, que a necessidade de sua forma liberta do desejo e libera do poder, não pode reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade, essa que se impõe a nós há bastante tempo, é tal que a verdade que ela quer não pode deixar de mascará-la. (FOUCAULT, 2006, p.20)
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Foucault (2006) logo a seguir afirma que temos acesso a uma verdade fecunda e universal e ignoramos o outro lado da verdade uma “prodigiosa maquinaria” destinada a excluir os sujeitos que, de alguma forma, tentam burlar essa vontade de verdade, ele cita como exemplo de “excluídos” Nietzsche, Artuad e Bataille. Nas sociedades existem textos, conjunto de rituais e discursos narrados que podem ter sido proferidos e algum motivo se conservam e passam a ser considerados de riqueza inquestionável. Foucault (2006, p.22) aponta os seguintes exemplos: “são os textos religiosos ou jurídicos, são também esses textos curiosos, quando se considera o seu estatuto, e que chamamos de “literários”; em certa medida textos científicos.” O autor afirma que não temos categorias de discursos que podem ser considerados fundamentais e outros que apenas repetem e interpretam, pois muitos discursos que eram considerados de suma importância foram esquecidos e outros, de menos prestigio, se fazem presente ao longo da história e assumem um lugar de destaque. Foucault (2006) salienta que apesar da mudança de posição entre os discursos a função social assumida por eles continua a mesma. Como exemplo aponta o fato de uma mesma obra literária pode apresentar sentidos contraditórios e as diferenças assumidas entre o discurso religioso e o jurídico, nas palavras do autor “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta.” (FOUCAULT, 2006, p.26) Percebemos, através das palavras do autor, que as questões relacionadas com a verdade e a vontade de verdade não tão simples de serem delimitadas, uma vez que elas envolvem uma gama de fatores que estão relacionados com relações de poder e saber. Foucault (2006) assevera que a medicina e a botânica, por exemplo, não tem condições de dizer “tudo” sobre uma dada doença ou todas as verdades sobre as plantas. Isso ocorre, primeiramente, pelo fato de que uma disciplina é constituída tanto de verdades como de erros, esse último tem uma função positiva e histórica e em muitos momentos indissociável da verdade. Nas palavras do autor uma proposição para ser considerada, por exemplo, pertencente a botânica não tem necessariamente ser uma verdade, ela precisa responder a questionamentos que vão além da verdade. Ela deverá focar dados objetos, na botânica do século XVII, por exemplo, uma dada afirmação deveria estar relacionada com a estrutura da planta que pudesse ser vista, as semelhanças e diferenças entre grupos de plantas e a “mecânica de seus fluídos,” diferentemente do século XVI
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que considerava como um dos atributos das plantas seus “valores simbólicos”, “em resumo, uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de poder ser declarada verdadeira ou falsa, deve encontrar-se, como diria M. Canguilherm, ‘no verdadeiro.’” (FOUCAULT, 2006, p.34) Tomando como base as considerações acima podemos observar que considerar um dado discurso verdadeiro não está relacionado apenas com o fato de que ele é “realmente verdadeiro”, mas sim ele obedece as regras existentes do momento histórico no qual ele está inserido. Foucault (2006) cita como exemplo Mendel, que no século XIX teceu uma teoria sobre os traços hereditários que não foi aceita na época por utilizar metodologia de pesquisa que era estranha para a época, assim, “não nos encontraremos no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma “polícia” discursiva que devemos reativar em cada um dos nossos discursos.” (FOUCAULT, 2006, p.35) Assim, podemos afirmar que o que Foucault chama de verdade é um conjunto de regras estabelecidas por intermédio da ordem do discurso. A constituição da verdade no discurso não está na sua materialidade linguística, mas sim na sua exterioridade que determina as regras do que pode e vai ser dito. Dessa forma, a vontade de verdade está relacionada com relações de poder e saber que constituem o sujeito e não apenas no desejo de produzir um discurso verdadeiro, ou seja, a vontade de verdade está acondicionada a elementos que estão aquém do sujeito, no caso, na história que perpassa a sua constituição e que determina o que pode ou não ser dito. Escolhemos como corpus de nosso trabalho fragmentos do romance A caverna (2000), pois acreditamos que através da literatura podemos apreender um pouco ou até mesmo um ínfimo fragmento da exterioridade que nos subjetiva a todo instante. A quantidade não importa, pois o texto literário é um espaço no qual deparamos com a dispersão das subjetividades e a tentativa de reconstrução das mesmas. É um espaço de lutas e embates que trazem à tona, em sua constituição, um pouco do que fomos, somos e ainda seremos Introduziremos brevemente a temática do romance supracitado com o objetivo de apresentar a obra aos leitores e como se constitui essa trama. Cipriano Algor, personagem central da narrativa, é um oleiro, morador de uma aldeia e fornecedor de
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louça de barro para o “Centro de Compras”, que, em determinado momento, vê-se diante de uma crise não apenas financeira, mas também existencial. O “Centro de Compras” recusa sua mercadoria porque outra entra no mercado mudando, assim, a preferência dos consumidores, os quais passam a comprar as peças de plástico. Cipriano encontra-se diante de um dilema: a desvalorização mercadológica do trabalho artesanal pela supervalorização do trabalho industrial. De um lado, o mundo do barro, que provém da terra, da natureza; de outro, o plástico, que a tecnologia oferece como meio de facilitar a vida dos sujeitos inseridos em um mundo capitalista. Atrelado a isso, seu genro Marçal, segurança do “Centro”, é promovido à guarda residente, sendo convidado a morar no “Centro” junto com a esposa, filha de Cipriano e sua ajudante na olaria. Inicialmente, Cipriano não aceita a ideia de morar no Centro, porém termina por concordar, pois sua profissão, e consequentemente suas mercadorias, tornaram-se obsoletas. A partir desse momento, sogro e genro vão descobrir as mazelas do “Centro”, e Cipriano, principalmente, reflete e questiona a contemporaneidade e tudo o que ela implica. Notamos que Cipriano Algor, protagonista de A caverna (2000), contrapõe-se aos padrões sociais vigentes, uma vez que não aceita as normas ditadas pelo poder representado pelo “Centro de Compras”. A constituição desse sujeito decorre das interrelações com diferentes discursos, que trazem em si marcas próprias do lugar social e histórico no qual está inserido. Por se tratar de uma obra que oferece a possibilidade de ser analisada a partir de várias perspectivas, elegemos fragmentos da obra em questão que possibilitam atentarmos para a “verdade” e como a mesma constitui a subjetividade de Cipriano, ressaltamos que a narrativa apresenta outros, mas tendo em vista a proposta do presente artigo eles não serão apontados. O primeiro fragmento retrata o momento que Cipriano Algor chega no “Centro de Compras” para entregar sua mercadoria. Ele entra na fila, mas percebe que é o décimo terceiro da fila e isso o incomoda. Saiu da furgoneta para ver quantos outros fornecedores tinha à sua frente e assim calcular, com maior ou menor aproximação, o tempo que teria que esperar. Estava em número treze. Contou novamente, não havia dúvidas. Embora não fosse pessoa supersticiosa, não
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ignorava a má reputação deste numeral, em qualquer conversa sobre o acaso, a fatalidade e o destino sempre alguém toma a palavra para relatar casos vividos da influência negativa, e às vezes funestas, do treze. (SARAMAGO, 2000, p. 20)
Essa passagem chamou muito a nossa atenção, pois percebemos nela a preocupação de Cipriano Algor com o lugar ocupado na fila e o que ele representa. O sujeito discursivo do enunciado, em questão, mostra os atravessamentos discursivos constitutivos de Algor, embora não se considere pessoa supersticiosa. A retomada do sentido negativo no numeral foi possível graças à memória discursiva do sujeito Cipriano que buscou em suas recordações o sentido para aquele lugar ocupado por ele na fila do desembarque de mercadorias. O sujeito tem seu discurso constituído pela memória discursiva, pois ele traz em seu discurso marcas de algo já vivenciado. Isso fica muito claro na passagem acima, pois percebemos que apesar de Cipriano não ter vivenciado nenhuma situação que ele fosse vítima de algo negativo relacionado com o numeral, ele buscou em sua memória relatos de outros sujeitos que tivessem passado por essa experiência. O fato de recordar casos assim fez com que essa situação produzisse sentidos e consequentemente uma tomada de nova atitude por parte do sujeito discursivo Cipriano Algor, como veremos a seguir. O medo é constitutivo do sujeito, entretanto, ele não é considerado positivo, pois geralmente os sujeitos tentam controlá-lo, mas em alguns casos essa tentativa de controle é em vã. O próximo fragmento é um bom exemplo para o que acabamos de afirmar. “Tentou recordar se alguma ocasião lhe calhara este lugar na fila, mas, de duas uma, ou nunca tal acontecera, ou simplesmente não se lembrara. Ralhou consigo mesmo, que era um despropósito, um disparate preocupar-se com algo que não tem existência na realidade.” (SARAMAGO, 2000, p.20) O medo de o número treze ser portador de algo negativo tomou conta do Cipriano chegando ao ponto de Cipriano tomar a seguinte atitude: Estão muito enganados se julgam que vou ficar aqui, disse Cipriano Algor em voz alta. Fez recuar a furgoneta como se afinal de contas não tivesse nada para descarregar e saiu do alinhamento, Assim já não serei o décimo terceiro, pensou. Passados poucos momentos um camião desceu a rampa e foi parar no sítio que a furgoneta tinha
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deixado livre. [...] Quando desapareceu no alto da rampa, o oleiro manobrou rapidamente e foi colocar-se atrás do camião, Agora sou o catorze, disse, satisfeito com sua astúcia. (SARAMAGO, 2000, p. 21)
Esse fragmento chamou muito a nossa atenção, pois ele é um exemplo perfeito para problematizarmos o fato de sermos constituídos por “verdades” que não sabemos a sua origem e muito menos se realmente estamos lidando com situações que podemos considerar como “verdades” em dados momentos. Cipriano, um oleiro atormentado pela possibilidade de ter algum problema consequência de ser o número treze toma a atitude de sair da fila, esperar outro tomar o seu lugar e retornar logo a seguir para ser o décimo quarto e não mais o treze, portador de azar. Cipriano toma atitudes com base em algo que não sabe sua origem e pelo observado na narrativa também não apresenta o interesse de descobrir. Foucault, no decorrer de seus textos, afirma que somos constituídos por relações de poder, produzindo sentidos e coadunando na produção de “verdade”. No fragmento acima, essa afirmativa pode ser exemplificada, pois Cipriano é impelido por algo, no caso o fato do número treze ser negativo,1 a tomar uma atitude que foi sair da fila e retornar somente quando fosse o número quatorze. Consideramos essa observação muito interessante, pois ela abre precedente para refletirmos acerca de como somos constituídos. São tantas pequenas “verdades” nos
As três explicações mais conhecidas para o fato do número treze ser considerado negativo são: “a crença de que o dia 13, quando cai em uma sexta-feira, é dia de azar, é a mais popular superstição entre os cristãos. Há muitas explicações para isso. A mais forte delas, segundo o Guia dos Curiosos, seria o fato de Jesus Cristo ter sido crucificado em uma sexta-feira e, na sua última ceia, haver 13 pessoas à mesa: ele e os 12 apóstolos. Mas mais antigo que isso, porém, são as duas versões que provêm de duas lendas da mitologia nórdica. Na primeira delas, conta-se que houve um banquete e 12 deuses foram convidados. Loki, espírito do mal e da discórdia, apareceu sem ser chamado e armou uma briga que terminou com a morte de Balder, o favorito dos deuses. Daí veio a crendice de que convidar 13 pessoas para um jantar era desgraça na certa. Segundo outra lenda, a deusa do amor e da beleza era Friga (que deu origem palavra friadagr = sexta-feira). Quando as tribos nórdicas e alemãs se converteram ao cristianismo, a lenda transformou Friga em bruxa. Como vingança, ela passou a se reunir todas as sextas com outras 11 bruxas e o demônio. Os 13 ficavam rogando pragas aos humanos.” Fonte: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/origem-da-sexta-feira-13/index.php, acesso, 28/04/12. 1
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compondo que chegamos considerá-las absolutas, mas que, entretanto, não paramos para refletir acerca de suas origens e se realmente podemos considerar sua veracidade. A subjetividade de Cipriano, no início da narrativa, é constituída por algumas “verdades”, que como já vimos no fragmento acima, tem uma origem indeterminada. Cipriano apesar da troca na fila, não consegue mais vender todos os seus produtos para o “Centro de Compras”, entretanto, mesmo após a negativa ele ainda está preso à “verdade” produzida pelo “Centro” como poderemos ver no seguinte fragmento do romance: “poderei começar a vender aos comerciantes da cidade, é questão de o Centro autorizar, se compram menos não têm o direito de proibir-me de vender a outros.” (SARAMAGO, 2000, p.34) Seus produtos tornaram-se obsoletos, entretanto, ele ainda continua “preso” à “verdade” produzida pelo “Centro”. Afirmamos inicialmente, a partir das considerações de Michel Foucault, que a “verdade” é uma construção discursiva que em um dado momento pode ser considerada como algo realmente “verdadeiro”, tendo em vista as condições de sua produção, e em outro não ser mais. A enciclopédia que pai e filha acabam de abrir sobre a mesa da cozinha foi considerada a melhor na época de sua publicação, enquanto hoje só poderá servir para indagar em saberes fora de uso ou que, nessa altura, estavam ainda a articular as suas primeiras e duvidosas sílabas. [...] A enciclopédia comprada pelo pai de Cipriano Algor é tão magnífica e inútil como um verso que não nos conseguimos lembrar. (SARAMAGO, 2000, p.74)
A não aceitação mais da enciclopédia é um reflexo do que está acontecendo com Cipriano, pois ele no início da narrativa tinha um trabalho que era aceito, mas que no decorrer da trama não é mais, pois assim como a enciclopédia comprada pelo seu pai tornou-se obsoleta, o seu trabalho também não tem mais utilidade, assim, o que Cipriano considerava uma “verdade” absoluta passou a ser instável. As “verdades” consideradas “concretas” e “duradouras” por Cipriano não são mais assim, elas agora são moventes e isso para o sujeito discursivo Cipriano é um processo extremamente dolorido, pois ele não é mais o Cipriano oleiro e sim outro que ele ainda não conhece.
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[...] mas há razões, se as procurarmos encontramo-las sempre, razões para explicar qualquer coisa nunca faltaram, mesmo não sendo as certas, são os tempos que mudam, são os velhos que em cada hora envelhecem um dia, é o trabalho que deixou de ser o que havia sido, e nós que só podemos ser o que fomos, de repente percebemos que já não somos necessários no mundo, se é que alguma vez tínhamos sido antes, mas acreditar que éramos parecia bastante, parecia suficiente, e era de certa maneira eterno pelo tempo que a vida durasse, que é isso a eternidade, nada mais do que isso. (SARAMAGO, 2000, p.107)
Cipriano não acredita mais em sua utilidade, assim como suas peças de barro, ele é obsoleto, não tem mais serventia. Isso é um processo muito sofrido não só para Cipriano, mas também para qualquer outro sujeito que não consegue vislumbrar a proficuidade de seu trabalho. Isso acontece, pois os sujeitos sentem a necessidade de acreditar na relevância de seu trabalho, ou seja, precisa considerar “verdade” o papel que desempenham na sociedade. Sua mudança é tão acentuada que tece a seguinte observação: “[...] nunca nos deveríamos sentir seguros daquilo que pensamos ser porque, nesse momento, poderá muito bem suceder que já estejamos a ser coisa diferente.” (SARAMAGO, 2000, p.121) A subjetividade de Cipriano não é mais a mesma apresentada no início da narrativa, pois ela perde a centralidade. Pensou em muitas coisas, pensou que seu trabalho se tornara definitivamente inútil, que a existência de sua pessoa deixara de ter justificação suficiente e mediatamente aceitável, Sou um trambolho para eles, murmurou, nesse instante um fragmento do sonho apareceulhe com toda a nitidez, como se estivesse sido recortado e colado numa parede, era o chefe do departamento de compras que lhe dizia. (SARAMAGO, 2000, p.188)
Essas mudanças são provenientes do momento histórico no qual estamos inseridos, que tem como referencial a transitoriedade e a diluição das “verdades” que perpassavam a constituição das subjetividades. Como já mencionamos no início do texto, Cipriano, tendo em vista sua situação, é “obrigado” a residir no “Centro de Compras”. Nesse momento ele reflete muito a respeito dos últimos acontecimentos e também acerca do local. Ele começa a questionar
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as propagandas, os hábitos e atrações que são oferecidas aos sujeitos frequentadores. Todos os dias ele “passeia” pelo “Centro” com o objetivo de investigar e conhecer o que acontece a sua volta, entretanto, ele não fica só na superficialidade do espaço, ele busca outros lugares e em uma dessas visitas descobre uma porta secreta que é vigiada. Ele tenta entrar mas é impedido pelos guardas, mas não desiste e descobre que à noite seu genro será o guarda da mesma. Cipriano entra pela porta que o leva até o subsolo do prédio e depara com alguns homens e mulheres acorrentados e petrificados. Desculpa, Eu compreendo que tenha sido um choque para si, como também, mesmo sem ter lá estado, o foi para mim, compreendo que aqueles homens e aquelas mulheres são muito mais do que simples pessoas mortas, Não continues, por eles serem muito mais do que simples pessoas mortas é que não quero continuar a viver aqui, E nós perguntou Marta, Decidireis da vossa vida, eu já decidi da minha, não vou ficar o resto dos dias atado a um banco de pedra e a olhar para uma parede. (SARAMAGO, 2000, p. 337)
A visão dessa cena causa um estranhamento muito grande e, consequentemente, uma mudança substancial em sua subjetividade a ponto de tomar uma atitude que difere dos demais sujeitos que queriam estar no “Centro” o máximo de tempo possível. Finalizando os dizeres ... O presente texto possibilitou que visualizássemos como se articula esse sujeito, seu discurso e a historicidade que o permeia. Atentamos para a constituição discursiva de Cipriano Algor, personagem central do romance A caverna (2000), de José Saramago, partindo da relação de poder estabelecida entre ele e o “Centro de Compras”. Enfatizamos que a relação de poder não pode ser entendida como uma relação na qual existe uma “instituição” superior que detém o poder. Segundo Foucault (2005), o poder é exercido em rede, pois os sujeitos recebem, mas também o exercem. O poder não é algo a ser aplicado a alguns sujeitos, ele na verdade transita entre eles. Atentamos para a constituição de sua subjetividade a partir dessa “rede” de poder, que acumula, circula e faz funcionar um discurso “verdadeiro”, pois, segundo Foucault (2005, p.29), “somos
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submetidos à produção da verdade e só podemos exercer o poder mediante a produção de verdade”. A partir do mencionado no decorrer do presente texto, notamos que ao apontarmos uma “verdade” como sendo absoluta estamos encobrindo o fato de não a termos concretamente. O que temos são “jogos” de poder ditados por uma minoria com o objetivo de manipular uma maioria, levando-a pensar que suas atitudes e escolhas são provenientes de si. Cipriano, através dos questionamentos constituídos no decorrer da narrativa, “foge” a essa modulação, pois ele questiona a padronização dos sujeitos, sua inconstância, bem como o fato de aceitarem a “verdade” dos outros como sendo constitutiva da sua subjetividade. Referências
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ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE AS NARRATIVAS LITERÁRIAS E OS JOGOS ELETRÔNICOS: POSSIBILIDADES PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO Kátia Caroline de Matia (UEM) Introdução Urge àqueles que se propõem a pensar sobre o enfurecido emaranhado das inovações tecnológicas e os estudos literários que renovem suas habilitações, revendo as normas, protocolos e técnicas que regem as novas demandas nas infovias do literário, antes de se imiscuírem positivamente e inadvertidamente pela contramão da tecnofobia (ARANHA, 2006, p. 97).
Compreender as produções que se vinculam ao “emaranhado das inovações tecnológicas”, tais como os jogod eletrônicos, sobretudo aqueles que são adaptações de obras literárias, de que trataremos neste trabalho, requer pensar e, conforme Aranha (2006), rever “as normas, protocolos e técnicas que regem as novas demandas nas infovias do literário”. Na introdução de A leitura rarefeita, Lajolo e Zilbeman (1999) propõem que são várias as instâncias a partir das quais o literário se constrói. As autoras ressaltam que a literatura deve ser vista enquanto prática social específica de escrita e leitura. “Prática que, se supõe a existência de um texto que recebe o atributo de literário, supõe, aquém e além dele, uma rede cujas malhas, menos ou mais cerradas, proporcionam intercâmbio entre diferentes esferas, instâncias, que integram e delimitam o campo onde um texto se literariza ou desliterariza” (LAJOLO; ZILBERMAN, 1999, p. 9) As autoras tratam justamente do que diz Candido (1993) em relação ao “sistema literário”, constituído pela tríade autor – obra – leitor. De acordo com Lajolo e Zilberman (1999), as instâncias que compõe tal sistema literário ou suas “malhas”, suas “infovias”, são compreendidas, a) pela adequação a uma determinada tecnologia de produção e distribuição da literatura, de modo que é necessária a consolidação da comercialização de tais objetos; b) pelo desenvolvimento da legislação que regule o funcionamento das diferentes e sucessivas etapas do processo econômico de produção,
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comercialização e circulação do literário; c) pela formulação de uma política educacional que promova o letramento necessário para o consumo dos textos literários, e promova a criação do público; e d) pela “formação discursiva coesa e unitária, embora às vezes polêmica, que legitima a literatura”, seja “atribuindo à literatura características de entidade autônoma e auto-suficiente”, seja “identificando nela marcas do desenvolvimento histórico das forças produtivas”, tais práticas discursivas legitimam o valor da literatura, institucional e socialmente. Tais práticas discursivas permeiam as mais diversas esferas e mídias, sobretudo o universo virtual, como novo espaço, que articula o sistema literário a partir de novas funcionalidades. Desse modo, pretendemos discutir, neste trabalho, alguns aspectos que envolvem a produção de jogos eletrônicos que objetivam o letramento e a valorização da obra literária enquanto bem cultural e procuramos apontar alguns elementos desafiadores que permeiam o processo adaptativo de uma obra literária para um jogo eletrônico, em termos de essência e funcionalidade dentre os objetivos propostos.
Jogos eletrônicos e literatura
Desde o início do cinema, conforme Dinis (2005), verificou-se que a nova arte tinha a capacidade de narrar, com seus próprios recursos, uma história anteriormente contada em romances ou contos. A partir daí, a prática de transformar uma narrativa literária em narrativa fílmica espalhou-se a ponto de boa parte dos filmes ter atualmente, como origem, não um script original, criado especialmente para o cinema, mas uma obra literária (2005, p. 13).
Tal como o cinema, os jogos eletrônicos também têm a capacidade de narrar, e de contar e recontar uma história, ou histórias, advindas do universo literário. Aranha (2008, p. 33) destaca que o surgimento dos jogos eletrônicos deve-se muito a um projeto em que se tinha a ideia de tornar o aparelho de televisão em algo que fosse passível de interferências com a participação dos telespectadores. Atualmente há um novo conjunto de leitores e autores habituados ao paradigma do “interativo”, e não mais somente ao paradigma da “construção mental de um filme” (idem, p. 31). Tal como o cinema, portanto, os games, narrativas em multimeios, evocam a ideia de
3337
transferência de algo existente em um meio para outro, ou a apropriação de elementos adaptando-os para outro. Bolter e Grusin (1999 apud ARANHA, 2008, p. 41) têm denominado esse processo de remediação, ou seja, um processo que se daria por meio de imediações com o intuito de produzir no jogador o sentimento de experiência e participação,
de
“realidade”
no
“virtual”,
para
maior
aproximação
entre
autor/conteúdo/forma/leitor. De acordo com Janet Murray (2004), os games são um novo gênero que cresce a partir de uma comunidade de práticas de elaboração de convenções expressivas. Ela defende que devemos parar de tentar assimilar os novos artefatos a partir de categorias do texto impresso, ou do cinema. Segundo a pesquisadora, devemos pensar as características de histórias e jogos e como essas características separadas estão sendo recombinadas e reinventadas no mundo surpreendentemente plástico do ciberespaço. Muray (2004) acredita que a mente humana, os protocolos das relações humanas são todos elementos de uma improvisada e coletiva história-jogo, ou seja, uma agregação de sobreposições conflitantes, sempre transformando as estruturas que compõem as regras pelas quais atuamos e interpretamos nossas experiências. Segundo ela, nós precisávamos de um novo meio que expressasse essa história, que nos permitisse jogar este novo jogo, e encontramos o computador. O meio digital é o locus adequado para explorar os conflitos e os puzzles da nova comunidade global e da vida pós-moderna. Um meio que permite o desenvolvimento de “habilidades de autoria multimidiática” (Lemke, 2010, p. 5) que consistem na incorporação do uso de outros sistemas semióticos: visual, verbal, sonoro, digital que contribuem para a formação de letramentos diversos, ou seja, práticas sociais da escrita que ultrapassam o verbal escrito, e possibilitam a elaboração de formas ficcionais tais como os jogos eletrônicos. Sob uma perspectiva narratológica, Janet Murray (2003) observa algumas propriedades essenciais das narrativas nos games. A primeira propriedade seria procedural, ou seja, a materialização do texto se impõe por determinados protocolos e regras estruturais. A segunda propriedade seria o caráter participatório, pois envolve a capacidade de resposta do sistema narrativo ao imput do leitor, criando a sensação de efetiva participação material, quando de fato se trafega por caminhos pré-estabelecidos. O enciclopedismo seria outra propriedade caracterizada pelo gerenciamento de
3338
informações do computador. E a espacialidade seria uma propriedade que tem papel fundamental nos jogos eletrônicos, segundo ela, pois está relacionada à criação de uma ilusão que ditaria os eventos das narrativas, tais como o tempo, o local onde o jogador deixa de ser apenas observador e passa a ser agente, da mesma forma que os leitores agem quando realizam o ato da leitura. Murray (2004) infere que a experiência humana demanda todas as modalidades de narrativa possíveis. As histórias que nós contamos refletem e determinam como nós pensamos sobre nós mesmos e sobre os outros. Um novo meio de expressão nos permite contar histórias de uma maneira que nós não podíamos contar antes desse novo meio, ou recontar histórias antigas de um novo modo. Nós podemos nos imaginar, segundo Murray, como criaturas de um mundo parametrizado com múltiplas possibilidades para compreender a nós mesmos como autores de sistemas de regras que dirigem o comportamento e moldam possibilidades. Diante desses apontamentos, e em confronto com afirmações de que os jogos e as histórias são opostos e o que faz uma boa história faz um jogo ruim e vice-versa, a autora questiona: na prática dos “new media”, como podemos narrar bem ou mal? Como é que podemos tornar melhor aquilo que não conhecemos? E, a partir disso, podemos ainda indagar: com o foco nos estudos literários, como podemos compreender um jogo eletrônico? O conceito de agência nos jogos eletrônicos e um gameplay1 sobre “O Cortiço” Os estudos literários, estando preparados ou não para os desafios conceituais das narrativas das novas mídias, se deparam com dados que evidenciam o quanto os jogos eletrônicos são grandes possibilidades de letramento. O Brasil é o quarto maior mercado do mundo no segmento de jogos eletrônicos, com 35 milhões de usuários. O mercado nacional de games movimentou R$ 5,3 bilhões em 2012, com crescimento de 32% em relação a 20112. Esse crescimento de público tem feito com que as empresas 1
A própria palavra “análise” parece não dar conta quando nós, do campo dos estudos literários, olhamos para um jogo eletrônico. Gameplay parece mais adequada. 2
Disponível em: http://www.sebrae2014.com.br/Sebrae2014/Alertas/Brasil-tem-o-maior-mercado-degames-no-mundo-em-2012#.UiTHA5x69Ik. Acesso em: set. 2013.
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desenvolvedoras de jogos invistam, cada vez mais, em legendas, menus, ou mesmo em dublagens em português. Os jogos eletrônicos, em termos de mídia comercial, são muito mais bem sucedidos do que o cinema, conforme infere Lemke (2004. p.4). O autor destaca que muitos discursos concretos de globalização cultural comercial de hoje, e seu conteúdo sócio-ideológico, são co-distribuídos em vários meios de comunicação. O autor tem denominado esses fenômenos de “formações temáticas particulares” que podem ser protegidas por direitos autorais, tornando-se “propriedades intelectuais”, que, posteriormente, tornam-se “franquias” e são distribuídos através de diferentes meios de comunicação sob o logotipo de uma empresa, uma “marca”. Alguns desses mundos franqueados começaram com ficções impressas, alguns como filmes, programas de televisão ou vídeo-games. Segundo Lemke, esses mundos franqueados se estendem não só ao mercado infantil e adolescente, mas também são voltados a uma média de idade de consumidores superior a trinta anos. Cada novo filme de sucesso ou videogame é o progenitor potencial de uma grande franquia de cross-media. Projetos para filmes se iniciam a partir da co-produção de vídeo-games, além de serem associados a sites comerciais. Lemke comenta que as franquias de sucesso podem gerar rapidamente sites de fãs e comunidades on-line, que podem ser suportados pelos proprietários da franquia ou se tornarem independentes. Nesse sentido, Jenkins (2009, p. 161) esclarece que “as narrativas estão se tornando a arte da construção de universos, à medida que os artistas criam ambientes atraentes que não podem ser completamente explorados ou esgotados em uma única obra, ou mesmo, em uma única mídia”. Além
disso,
conforme
a
Abragames
-
Associação
Brasileira
dos
Desenvolvedores de Jogos Digitais, todo o potencial econômico gerado pela indústria de jogos eletrônicos ainda segue aliado a um enorme potencial tecnológico e cultural. Os jogos eletrônicos já são amplamente reconhecidos como objetos culturais, que precisam ser incentivados. Conforme a Portaria nº 116/2011 do Ministério da Cultura,3 que vigora desde o início de 2012, há incentivo por meio da possibilidade de
3
Disponível em: http://www2.cultura.gov.br/site/2011/12/01/portaria-n%C2%BA-1162011minc/. Acesso em: set. 2013.
3340
investimentos na produção de jogos eletrônicos advindos da dedução no imposto de renda. Há também o incentivo do setor privado na produção de jogos, com o caráter de promoção social e cultural, como é caso, por exemplo, da Fundação Telefônica. Em 2011, a Fundação Telefônica lançou seu PROGRAMA DE ARTE E TECNOLOGIA4 para patrocínio de projetos enquadrados nos termos da Lei Rouanet (Lei Federal Nº 8.313/91) com o objetivo de fomentar a cultura digital no Brasil. O projeto se propôs a apoiar oito iniciativas, em todo o Brasil, totalizando R$ 1,8 milhão em investimento. A escolha contemplou, de acordo com os organizadores, propostas que fomentassem e facilitassem a acessibilidade, combinando o uso de tecnologia, tanto no suporte, quanto na linguagem ou como ferramenta de distribuição e democratização do acesso à cultura para o público infanto-juvenil. Ao todo, foram recebidos 306 projetos. Um dos projetos selecionados, a saber, “Jogos: Clássicos da Literatura”, também intitulado “Livro e Game” - disponível em: se propõe promover o acesso à literatura brasileira por meio da cultura digital, por meio da adaptação de três obras clássicas para jogos eletrônicos: “O Cortiço” (Aluizio de Azevedo), “Dom Casmurro” (Machado de Assis) e “Memória de um Sargento de Milícias” (Manoel de A. de Almeida). Tomemos como objeto de discussão somente o primeiro
desses
jogos,
“O
Cortiço”,
disponível
em:
5. Partindo do conceito de remidiação, “enquanto um meio que se apropria de outros que o antecederam, adaptando-os às demandas de transferência de experiências sensoriais entre dois ou mais agentes em seu contexto sócio-econômico-cultural” (ARANHA, 2008, p. 40-1), podemos olhar para o jogo “O Cortiço”, como remidiado, no entanto, em termos de ferramenta voltada para a leitura da obra literária, e deve ser olhado sob a perspectiva de que os jogos e as narrativas têm, sobretudo, uma estrutura em comum: o conflito, ou uma situação agônica.
4
Edital disponível em: http://www.fundepes.br/privado/anexos/fomentos/fomento_18/edital.pdf Vale destacar a repercussão midiática dessa produção. “Livros nacionais clássicos ganham versão em game” (Folha de São Paulo - 09/02/2013); “Clássicos da literatura brasileira viram jogos virtuais” (UOL Educação - 17/05/2013); “Projeto ‘Livro e Game’ moderniza literatura brasileira” (Blog Educação em Foco – 31/05/2013), dentre outras matérias. 5
3341
No caso da narrativa d’O Cortiço essa relação se estabelece entre João Romão e Miranda. Mas, no caso do jogo, isso se modifica. Vejamos por partes. Logo na introdução, o jogo fornece ao jogador algumas informações para auxiliar nas respostas de um quiz inicial referente à obra. Antes do quiz há alguns esclarecimentos/metas, tais como: No século 19, a cidade do Rio de Janeiro se urbanizava. Na baía da praia de Botafogo, nascia um novo bairro, distante do centro da cidade. É nessa paisagem que você construirá o cortiço, administrando simultaneamente vários negócios. As famílias moradoras são seus locatários. Ao mesmo tempo, os homens são funcionários de sua pedreira e, as que têm contas no armazém, são as mulheres lavadeiras. Periodicamente, você vai receber pelos aluguéis, pela produção da pedreira e pelas contas pagas pelos produtos do armazém, e pagará os salários dos funcionários da pedreira, e também pela compra de produtos para o armazém. Também, vai ampliando os negócios e investindo na construção de novas casinhas. Com as novas moradias, poderá abrir novas vagas e contratar outros funcionários e aumentar as vendas no armazém, aumentando o seu patrimônio, reinvestindo e assim por diante (Texto extraído do jogo “O Cortiço”).
Após responder ao quiz, e acertar um número razoável de questões, o jogador passa a ser, em última instância, João Romão. Este deve, na estrutura do jogo, a partir de seu capital inicial, construir as casas do cortiço, e visar o lucro. No entanto, a relação de conflito da narrativa com o personagem Miranda é perdida na estrutura do jogo. Isso se explica pelo conceito de agência de Janet Murray (2003). Agência é “a capacidade gratificante de realizar ações significativas e ver os resultados de nossas decisões e escolhas”, é a “capacidade de agir, de se desincumbir de uma tarefa” (MURRAY, 2003, p.127). O prazer da agência não é a mera habilidade de utilizar um joystick ou um mouse, mas há o prazer característico daquilo que fazemos e que traz resultados. A agência permite, vivenciar prazeres específicos da navegação intencional: orientar-nos por pontos de referência, mapear mentalmente um espaço que corresponde à nossa experiência e admirar as justaposições e mudanças de perspectiva resultantes de nossa movimentação por um ambiente complexo.” (MURRAY, 2003, p.129).
Assim, inserida na navegação espacial a agência proporciona “histórias que sejam suficientemente impulsionadas por objetivos para guiar a navegação, mas
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também que mantenha o final aberto o bastante para permitir livre exploração” (MURRAY, 2003, p.134). No caso de um romance não há agência, pois a narrativa não pode ser alterada. Já no ambiente digital a participação influencia efetivamente o resultado. É possível, por exemplo, orientar um novo roteiro a cada vez que se joga o mesmo jogo, e assim ocorre a agência. Murray explica que se um jogador de jogos de azar manipular peças, trocar dinheiro, rodar a roleta, o efeito gerado é simplesmente uma reação à ação de manipular, trocar, rodar. Essas ações podem não ser as intenções dos jogadores, e, portanto, seriam jogos com pouca agência.
Já os jogos de xadrez, por exemplo,
possuem um número reduzido de movimentação, mas contém um elevado grau de agência, uma vez que se tem autonomia diante das diversas possibilidades que o jogo pode apresentar, resultantes das escolhas dos jogadores. No caso do jogo “O Cortiço”, que se propõe, teleologicamente, ferramenta para a leitura de uma obra literária, emerge em um ponto de tensão, pois sua agência é limitada. Por um lado, o game sacrifica sua jogabilidade, sua agência, em prol do seu objetivo, o foco no romance. O jogo procura performatizar o que já está posto no enredo da obra literária e isso limita, evidentemente, a agência. Por meio do “avatar” de João Romão, o jogador manipula determinada quantidade de casas que pretende construir, com as opções de materiais apresentadas e de acordo com o capital que tiver em seu crédito. Ao se vincular ao romance, há a necessidade de o jogo apresentar um quiz inicial referente às informações sobre o romance e seu autor, uma HQ produzida a partir de trechos da obra, e um escritório, em que há o próprio romance disponibilizado na íntegra. Por outro lado, para que se tenha um pouco de agência, o romance em si não é totalmente privilegiado no jogo. Por isso a relação agônica do romance – conflito com Miranda – não ser utilizada. A situação conflituosa passa a ser a necessidade de o jogador não ter prejuízos, e as dificuldades que surgem são as tempestades e os vendavais que destroem as casas, a fiscalização, o incêndio, revoltas entre os trabalhadores, a invasão da polícia, ou seja, fatores que interferem na acumulação rápida de lucros para a construção de novas casas. Ao concluir grande parte do cortiço, João
3343
Romão (jogador) recebe o título de Barão, que, tal como o fim do romance, é o fim do jogo. É evidente o grau de dificuldade que envolve a elaboração de um jogo como ferramenta de leitura para uma obra literária, uma vez que deve articular a agência, como sua condição sine qua non enquanto jogo, e deve considerar também, não só a estrutura narrativa e seus elementos, mas seu aspecto enquanto ferramenta que promove a valorização de uma obra literária enquanto bem cultural, e que pretende levar o jogador a ser um eventual leitor da obra “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo. O fato de um jogo eletrônico levar ou não à leitura do livro é bastante controverso. Bogusz (2011), ao analisar a recepção de leitores e/ou usuários de quatro livros de Agatha Christie e quatro jogos de computador que foram criados com base em seus livros, verificou que, ao jogar, os termos de passar de fases somente com a aquisição e descoberta de pistas e evidências são aceitos tal como a participação do texto enquanto um dos personagens da trama do livro impresso. A pesquisadora verificou que o enredo faz-se presente nos jogos quase da mesma maneira que no impresso, embora sua ordem mude devido ao andamento de cada jogador quando faz uso do game, visto que é o indivíduo que libera as fases de acordo com as pistas que encontra. Dessa forma, segundo ela, mesmo que o jogador não tenha lido a obra impressa, as informações de que precisa estão presentes no jogo, e facilitem, portanto, a compreensão da obra virtual por aqueles que fizeram a leitura do texto impresso. Bogusz (2011) percebeu que nem todos os voluntários de sua pesquisa jogaram e leram. Os que leram afirmaram que a utilização da obra impressa antes do uso do aplicativo virtual poderia ajudar na compreensão da obra virtual, mas que não há necessidade da leitura, pois é possível entender a trama virtual sem o conhecimento prévio da história impressa. Já os que não leram mencionaram que a leitura poderia facilitar o entendimento do jogo quando utilizado após o conhecimento da trama e dos personagens pelas obras impressas. No entanto, segundo a pesquisa, também afirmaram que não leriam as obras, uma vez que já haviam feito uso do jogo. Diante desses dados a pesquisadora acredita ser possível que os indivíduos que leram a obra impressa tenham interesse em conhecer a obra virtual por curiosidade. Enquanto que aqueles usuários que conhecem apenas as obras virtuais podem sentir desinteresse em saber como se deu a
3344
construção da trama e dos personagens no formato impresso, por terem passado por todas as fases nos jogos, e já terem desvendado o crime e revelado o culpado, ou seja, pelo fato de a trama já ser conhecida. Tal como no caso do jogo “O cortiço”, este pode impulsionar ou não o leitor a ler as HQs e a consultar outros paratextos (a “HQ” e o “escritório”), e até mesmo a ler o romance, disponíveis no mesmo ambiente em que está o game. As possibilidades estão abertas, mas, como evidenciou a pesquisa de Bogusz (2011), não há relação de necessariedade entre jogar o game e ler o texto.
Considerações finais
Como salienta Lemke (2010, p. 6), “o ciberespaço será muitas coisas: o último dos shopping centers, o parque de diversões mais sedutor, a universidade das universidades e principalmente, do ponto de vista do letramento, a biblioteca das bibliotecas”. Práticas sociais realizadas antes em espaços e tempos demarcados têm agora sua contrapartida no ciberespaço (compras, troca de correspondências, publicidade, entretenimento e outros). Da mesma forma, a produção e o consumo de arte, entre elas a literária, desenvolve-se nas telas de computadores. A porta de entrada para o letramento de crianças e jovens é e será cada vez mais o ciberespaço. O que precisamos articular, da melhor maneira possível, e ao mesmo tempo valorizando as propostas até então elaboradas, é pensar o letramento literário por meio das possibilidades que temos. E os jogos eletrônicos criados a partir de obras impressas estão tornando-se, cada vez mais, práticas de letramento que não podem mais ser ignoradas por nós, estudiosos da literatura, e, sobretudo, educadores, pois, conforme Gumbrecht, Não é impossível que a sobrevivência da mídia ‘literatura’ dependa inteiramente da questão de saber se a conjectura clássica [...] de uma mais-valia inerente a ela pode ser deslocada para novos eixos de associação e de funcionalização (1998, p. 318, grifo do autor).
Aranha (2006) defende que não basta ficarmos mirando nossos esforços num devir, mas devemos sim, mapear as experiências já em curso, ao invés de assumir uma
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prévia postura de rejeição. O universo acadêmico, segundo ele deve se colocar diante de tais objetos com a consciência de que estamos diante de algo que ainda é estranho, e que nossas ferramentas teóricas podem não estar adequadas aos novos objetos e não o contrário, uma vez que, “as poéticas da cibermídia (narrativas em jogos de computador, poemas multimidiáticos, dramaturgia on-line, etc.) são proeminentes sinais rumo a um futuro para a Literatura” (ibidem).
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A ENUNCIAÇÃO NO TEXTO DE TEATRO Katiuscia Cristina Santana (USP) O texto de teatro define-se por uma finalidade vocal e representativa. Há uma grande diferença entre o texto escrito e o oralizado no palco. O primeiro demanda um esforço de imaginação do leitor, enquanto o segundo implica uma experiência sensorial entre as personagens e o público. São dois tipos de mimetização do real, porém com um impacto diferente para o leitor/espectador. Há um aumento da espontaneidade, quando o texto é encenado, uma vez que existe uma presença direta do ator perante o público. Os movimentos corporais garantem a dinamicidade de uma cena. Todas as hesitações, as repetições e as interrupções presentes no teatro oralizado no palco fazem parte da natureza da troca verbal de um diálogo comum real. Segundo Urbano (2008), as falas fabricadas para um script teatral moderno e as mesmas
falas
posteriormente
dramatizadas
no
palco
evidenciam
estratégias
conversacionais idealizadas, mais artificiais no texto escrito e mais naturais quando oralizadas em cena. O autor teatral dá um texto escrito ao ator e este deve retribuir um texto oralizado (com todas as implicações fonéticas e prosódicas, compreendidos ainda os gestos e a proxêmica1) ao texto daquele. Os atores, assim, vivificam suas falas e os gestos encaminham e complementam para a direção desejada da “conversação”. De acordo com o mesmo pesquisador, a obra de ficção é como um grande e complexo enunciado, resultado de uma complexa enunciação. Entendemos, neste trabalho, que a enunciação é “o ato de produção do discurso, é uma instância pressuposta pelo enunciado (produto da enunciação)” (FIORIN, 2006, p.55). Neste trabalho, entendemos que o discurso é um conceito idealizado a partir de uma dupla perspectiva, primeiro enunciativa e depois material, o espaço e o tempo da enunciação. Para compreendermos o significado de discurso no texto teatral, utilizamos os estudos conduzidos por Issacharoff em Le spectacle du discours (1985). O autor salienta que é necessário entender o que singulariza o uso teatral da linguagem, a partir de enunciados (sua dimensão verbal) até a dimensão não verbal (sua dimensão visual, ou seja, gestos, mímicas, movimentos, roupas, corpos, acessórios, cenários). No teatro, o discurso é literalmente posto em cena.
1
Segundo o dicionário Houaiss, a proxêmica é o “estudo das distâncias físicas que as pessoas estabelecem espontaneamente entre si no convívio social, e das variações dessas distâncias de acordo com as condições ambientais e os diversos grupos ou situações sociais e culturais em que se encontram.”
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Dessa maneira, assumimos como discurso toda manifestação concreta da atividade da linguagem (verbal e não verbal), realizada em situações e contextos diversos. O texto teatral caracteriza-se, sobretudo, pela sua polifonia2. Há várias maneiras de se emitir uma mensagem ao público, seja pela voz3, seja pelos gestos corporais. Para Pavis (2008), o discurso teatral distingue-se do literário ou “cotidiano” por sua força performática de levar a cabo uma ação e de ser o lugar da inscrição da representação virtual. O discurso teatral é instável, uma vez que o ator e o diretor têm a liberdade de distanciar-se do texto. Nesse sentido, Issacharoff (1985, p.11), com base em Émile Benveniste (1966), entende que
[...] o texto teatral não é um discurso oral, propriamente falando, é evidente: é uma forma escrita convencional que representa4 o oral. Assim, o discurso5, segundo Benveniste, pode corresponder à “massa dos escritos que reproduzem discursos orais ou que deles empresta o contorno e os fins: correspondências, memórias, teatro, obras didáticas – em resumo, todos os gêneros nos quais alguém se dirige a alguém, se enuncia como locutor e organiza aquilo que diz na categoria da pessoa”6. (ISSACHAROFF, 1985, p.11)
No teatro, trata-se de uma representação do discurso do que seria uma enunciação real, ordinária. Os enunciados de uma personagem são emprestados de um autor que atribui à personagem réplicas de outra personagem virtual, cuja identidade efetiva não é estável. O diálogo teatral toma lugar num dispositivo comunicacional complexo, em que se sobrepõem instâncias e níveis enunciativos, o que influi no seu funcionamento. Para situar o discurso teatral em seu espaço físico, podemos considerá-lo de forma concreta: temos o palco dividindo o espaço do público, os enunciados do palco relacionam-se com os atores que, por sua vez, tomam emprestada a palavra do autor da
2
Entendemos por “polifonia” as muitas vozes que se encontram e se fazem sob a tessitura do texto. Aqui, “voz” é entendida como o canal fisiológico. 4 Grifo do original. 5 Grifo do original. 6 […] le texte théâtral n’est pas un discours oral, à proprement parler, est évident : c’est une forme écrite conventionnelle qui représente l’oral. Ainsi, le discours, selon Benveniste, peut correspondre à « à la masse des écrits qui reproduisent des discours oraux ou qui empruntent le tour et les fins: correspondances, mémoires, théâtre, ouvrages didactiques, bref tous les genres où quelqu’un s’adresse à quelqu’un, s’énonce comme locuteur et organise ce qu’il dit dans la catégorie de la personne » (Problèmes de linguistique générale I. Paris : Gallimard, 1966, p.242) 3
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peça teatral. Em seguida, podemos situar o discurso de maneira referencial: o contexto espaço-temporal de tal representação. A cena teatral, lugar da enunciação fictícia, situa toda a enunciação sob o conceito do discurso falso, concebido para escutar, mas não idealizado para agir sobre o público ou espectador na sala graças à função perlocutória7. Assim, por exemplo, quando uma personagem está prestes a assassinar outra personagem no palco, ninguém sairá de seu lugar na plateia para impedi-la e ninguém sairá da sala para chamar a polícia. No teatro, então, um diálogo é endereçado a um destinatário múltiplo: atores no palco, público na sala. Em seu estudo, Issacharoff (1985) questiona: Mas se os enunciados não provêm dos atores (eles não o escolhem), quem fala? No teatro, quem fala não é o ator e nem o diretor da peça e sim o autor. As personagens tornam-se, dessa forma, seu porta-voz. Esse canal de transmissão é ao mesmo tempo instável e imprevisível, ou seja, os portavozes não serão sempre os mesmos, o que faz com que nada garanta a enunciação e a elocução. O locutor é, então, o autor, por intermédio dos atores que, por sua vez, são conduzidos por um diretor. Para compreendermos a complexidade do processo enunciativo tal como concebe Issacharoff (1985), elaboramos o seguinte esquema:
Texto teatral escrito não oralizado
Autor
interlocutorn (leitor(es))
Em um texto teatral escrito não oralizado, temos o autor e como receptor do texto (ou interlocutor), o leitor. Aqui, caracterizamos como interlocutorn, uma vez que são n interlocutores que entram em contato com a peça teatral, ou seja, vários tipos de leitores. Em seguida, enumeramos as várias instâncias comunicativas de locutores e interlocutores no texto teatral oralizado8:
7
Segundo Armengaud (2008), a Teoria dos Atos de Fala de J.L Austin compreende o ato locutório, isto é, o ato de pronunciar um enunciado; um ato ilocutório, que corresponde ao ato em que o locutor realiza no momento de produção do enunciado para atingir uma intenção em uma determinada condição comunicativa e um ato perlocutório, que são os efeitos produzidos por nossas sentenças em nossos interlocutores, tais como emoção, irritação e intimidação. 8 Por questões de espaço, abreviamos o termo locutor para “loc.” e o termo interlocutor para “interl.” no esquema.
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Texto teatral oralizado
loc.1 (autor)
interl.1(diretor) loc.2
interl.2(ator(es))
interl.3(público)
loc.3
interl.4 (ator(es)) Primeiramente, o locutor1 (o autor que escreve a obra) comunica-se com um diretor (o interlocutor1), que lê a peça e pensa na encenação da peça. O diretor, por sua vez, é um meio de divulgação da obra para os atores que devem encená-la, nomeados aqui de interlocutor2. Os atores, que eram interlocutores2, transformam-se em locutores3, que repassam o texto oralizado para o público, interlocutor3, e para os outros atores, interlocutor4. Kerbrat-Orecchioni (1984) também destaca a polifonia no texto teatral e elabora um esquema - representado a seguir - para a cadeia de emissores/receptores: Polo de emissão
Polo de recepção
Autor/personagem/ator
ator/personagem/público Comunicação simétrica Actantes reais
Comunicação dissimétrica; actantes ficcionais
Comunicação
dissimétrica
actantes
reais
N.B: A autora entende por “actante” todo indivíduo que se encontra implicado no circuito comunicacional.
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Para Kerbrat-Orecchioni (1984), a única instância conversacional pertinente é aquela das personagens, tendo em vista que é em relação às personagens que funcionam os dêiticos, por exemplo. O teatro faz dialogar as personagens que constituem o equivalente e o espelho das pessoas que, na vida cotidiana, entram em interação. A teórica também questiona: como receptor do texto teatral, qual estatuto recebe o público? Para responder a essa questão, ela lembra-nos que, em todo tipo de interação, podemos distinguir três categorias de receptores: 1) Destinatário direto, aquele que o emissor considera explicitamente, que testemunha certos índices de alocução de natureza verbal e paraverbal, como seu parceiro na interação. 2) Destinatário indireto, aquele que funciona como uma testemunha da troca verbal, e cuja presença é conhecida pelo emissor da troca verbal, sem ele ser verdadeiramente integrado à relação de alocução, daí seu papel de testemunha dessa troca verbal, e 3) Um receptor adicional se a presença no circuito comunicacional foge totalmente à consciência do emissor. Em relação a esta tricotomia, o público tem o seguinte estatuto para KerbratOrecchioni (1984): I) É um destinatário indireto tanto para o autor quanto para o ator; II) Para a personagem, no entanto, é um receptor adicional: um intruso, um voyeur, um espectador que “surpreende” indiscretamente as conversas às quais ele não pertence. Para Issacharoff (1985), os atos de fala (a enunciação) do discurso literário ou não literário estão subordinados aos dados textuais anteriores ou posteriores. A partir de uma série de significantes, o enunciado do texto literário transforma-se em enunciação na dramatização, transmutando-se, assim, em um ato de fala. Isso implica a presença de um locutor, de um interlocutor e de um contexto espaço-temporal específico. Segundo Ryngaert (1996, p.110):
[...] Em outros termos, mesmo o teatro não sendo conversação, é importante para muitos autores buscar nela seus materiais sem filtrálos nem edulcorá-los em demasia, mas antes “combiná-los”. [...] Claro que o teatro não registra todas as vicissitudes da fala viva proferida por sujeitos ativamente envolvidos na conversação, mas ele encontra nesta seu alimento.(RYNGAERT, 1996, p.110) É importante salientar que essa observação do autor diz respeito à criação de
textos teatrais escritos e não em relação ao texto oralizado no palco. Issacharoff (1985)
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sustenta que a referência no teatro é de dois tipos: intratextual, isto é, orientada no universo fictício (do texto literário) ou extratextual, nesse caso, orientada fora do contexto textual. Quanto à representação do referente, quatro possibilidades estão disponíveis ao dramaturgo: a primeira seria não visível (exclusivamente verbalizada); a segunda parcialmente visível (figuração de um conjunto não mostrado integralmente); a terceira visível (visualizada somente) e a quarta representação seria visível e referida no diálogo. O espaço (o perceptível) depende da referência. Há, desse modo, duas possibilidades: dependência integral, se os objetos, móveis, decoração, não são mostrados no palco. Nesse caso, os elementos do cenário são somente uma existência verbal; dependência parcial, se estes elementos são visualizados. Nesse caso, a referência do diálogo suscita a atenção dos espectadores. Além da interação entre as personagens, é importante destacar outros elementos presentes na cena teatral. Para Pavis (2008) a cenografia insere o espaço cênico em um determinado meio. O cenário também pode ser construído por meio dos sons, para complementar o visual. Pode ser um dispositivo para esclarecer o texto e a ação humana. Neste sentido, Ingarden (1988) destaca que a linguagem é auxiliada pelo aspecto visual no teatro, especialmente no que concerne aos estados psíquicos das personagens representadas: A constatação essencial que nos introduz em toda a problemática da linguagem no teatro é que o “texto principal9”, tomado em seu conjunto, constitui um elemento do universo representado no espetáculo teatral. A enunciação de cada palavra, de cada frase, tornase logo um processo que se desenvolve neste universo e, em especial, uma parte do comportamento da personagem representada. (INGARDEN, 1988, p.153)
Para Ingarden, embora no teatro os atos das personagens sejam fundamentais na dramatização, os elementos complementares do universo representado podem ter tal importância que sua ausência não só tornaria o espetáculo teatral incompreensível, como o privaria de momentos essenciais para a ação dramática. O autor ainda afirma: O diálogo, entretanto, muito raramente se reduz a uma pura comunicação: o jogo é muito mais vital, pois se trata de exercer uma influência sobre aquele a quem o discurso se dirige. Em todo o conflito “dramático”, que se desenvolve no universo representado no espetáculo teatral, o discurso endereçado a uma das personagens é uma forma de ação do locutor e só tem, no fundo, uma significação 9
Ingarden (1988) entende por “texto principal” as palavras pronunciadas pelas personagens no teatro enquanto as didascálias (indicações cênicas do autor para o leitor/diretor) formam um texto secundário.
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real nos eventos apresentados no espetáculo, quando contribui de modo decisivo para impulsionar a ação. (INGARDEN, 1988, p.157)
Pavis (2008), por exemplo, define a ação como uma sequência de acontecimentos cênicos produzidos em função do comportamento das personagens. A ação se situa também no interior da personagem e influencia as personagens em decisões e em seus discursos. Assim, a enunciação literária não pode ser considerada como uma troca linguística comum, uma vez que exclui o caráter imediato de uma conversação. O texto escrito e o dramatizado no palco, juntos, mostram modelos de interação. Sob essa perspectiva, em comum, o leitor de um romance, de um poema e o espectador de uma peça de teatro não têm contato com o autor. Neste sentido, o texto literário aparece como uma “pseudo-enunciação”, nas palavras de Maingueneau (1990, p.10). Essa especificidade do texto literário afeta, particularmente, a noção de situação de enunciação, em suas três dimensões: pessoal, espacial e temporal. No teatro, a situação de enunciação é determinada pelas indicações cênicas, ou seja, as rubricas. Elas descrevem o local e as circunstâncias da produção de um ato de enunciação tanto na leitura de um texto dramático quanto em sua encenação, segundo Pavis (2008). Enquanto um enunciado comum remete diretamente a um contexto físico perceptível, os textos literários constroem cenas enunciativas por meio de um jogo de relações internas no próprio texto. O narrador de ficção é um ser textual, pois as características são definidas somente pela narrativa. No teatro, por outro lado, dizer é fazer, pois a palavra dramática é posta em serviço da ação por meio da linguagem.
Referências
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HOUAISS, Antônio; VILLAR, M.S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. INGARDEN, Roman. As funções da linguagem no teatro. In: GUINSBURG, Jacó et alii (Org.) Semiologia do teatro. São Paulo: Perspectiva, 1988. ISSACHAROFF, Michael. Le spectacle du discours. Paris: Corti, 1985. KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. Pour une approche pragmatique du dialogue théâtral. Pratiques, Metz: CRESEF, n.41, p.46-62, 1984. MAINGUENEAU, Dominique. Éléments de linguistique pour le texte littéraire. Paris: Bordas, 1990. PAVIS, Patrice.Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008. RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1996. URBANO, Hudinilson. Oralidade na literatura (O caso Rubem Fonseca). São Paulo: Cortez, 2000. __________. O diálogo teatral na perspectiva da Análise da Conversação. In: PRETI, Dino (Org.). Diálogos na fala e na escrita, vol.7. São Paulo: Humanitas, p.195-223, 2008.
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CHAPEUZINHO VERMELHO E O NASCIMENTO DE CRIANÇAS LEITORAS Kenia Adriana de Aquino Modesto Silva (UFG) O presente texto reconstrói as atividades de leitura da obra Chapeuzinho Vermelho realizadas com vinte e oito crianças de cinco anos, em uma escola municipal de Rondonópolis/MT. O trabalho objetivou desenvolver nos alunos imagem positiva de si, proporcionando confiança; aumentar as possibilidades de interação; utilizar múltiplas linguagens; estabelecer vínculos afetivos e brincar com a oportunidade de expressão de seus sentimentos, necessidades, pensamentos e desejos. Por meio de pesquisa-ação e da narração autobiográfica, o trabalho foi dividido em seis partes. Viajar pelas antigas histórias é fascinante em qualquer idade. E a este respeito, Machado (2002) comenta que é um crime negar às crianças da contemporaneidade o acesso às maravilhosas narrativas escritas há muito tempo. “Entendidas e aceitas em sua linguagem simbólica, essas histórias de fadas tradicionais se revelam um precioso acervo de experiências emocionais, de contatos com vidas diferentes e de reiteração da confiança em si mesmo” (MACHADO, 2002, p. 80). Além disso, muitas obras que são produzidas atualmente são intertextos do que já foi contado ou escrito há muitos séculos e o não conhecimento das versões originais impossibilita ao leitor/ouvinte de compreender alguns textos contemporâneos, se não conhecer as fontes clássicas. Ademais, os textos clássicos lidos na infância “passam a ser parte indissociável da bagagem cultural” (MACHADO, 2002, p. 11) que o leitor ou ouvinte incorpora durante sua vida e o auxilia a ser quem é e o que se tornará. Chapeuzinho Vermelho: parte 1 Inicialmente, as crianças foram convidadas a contar a história sem o livro nas mãos. Uma criança se prontificou. Todavia, quando o suporte livro foi introduzido na atividade, outras três “leram” e eu mesma li a história na versão de Charles Perrault. Depois de todas estas leituras, as crianças, uma a uma, pegaram e olharam o livro.
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Todos esperavam ansiosos até chegar sua vez de manuseá-lo. Provavelmente porque a leitura sensorial, que surge bem cedo e nos acompanha por toda a vida, caracteriza-se pela leitura que fazemos com nossos sentidos, conforme descreve Martins (1997). Também porque, o livro, além de ser um texto escrito e talvez, antes de o ser, é um objeto com forma, cor, textura, volume, cheiro ou barulho ao se folhear suas páginas. “Para muitos adultos e especialmente crianças não alfabetizados essa é a leitura que conta.” (MARTINS, 1997). Coelho (2004) registra que a história nunca acaba quando chega ao fim. Afinal, ela permanece na mente da criança, servindo de alimento a sua imaginação e criatividade. E acrescenta que, sempre que possível, é conveniente sugerir atividades subsequentes à narração. A história seria, assim, um alimento para a criação, inspirando cada criança a se manifestar e expressar-se de acordo com suas experiências e preferências. Então, para finalizar a atividade, sugeri que fizessem pinturas com tinta gauche. Para motivá-los, avisamos que os trabalhos seriam expostos, embora tenhamos falhado no sentido de não ter promovido a exposição logo em seguida aos trabalhos. Em relação aos momentos em que as crianças se prontificaram a contar as histórias, cada um dos “leitores” se portou de uma maneira. O que me remete a questionamentos feitos também por Darnton (1990): Como eles entendem os sinais gráficos impressos na página? Quais os efeitos sociais do ato de leitura? Como a experiência de leitura varia? O primeiro a se encorajar e contar a história sem o livro em mãos foi Mário, embora estivesse muito envergonhado, apoiando-se no quadro com os braços abertos e balançando-se. Outro detalhe curioso, mas que faz despertar uma reflexão é que enquanto o Mário contava, por estar nervoso, falando baixo, os colegas, aparentemente, não prestavam atenção, não conversavam tanto, mas se dedicavam a inúmeras outras atividades simultâneas como desenhar, brincar, manusear o próprio caderno, olhar pela janela. Porém, quando ele chegou na parte da história em que Chapeuzinho pergunta: “E essa boca tão grande?” a sala se uniu a ele para responder, gritando “É para te comer!”. De forma também curiosa, a intervenção das demais crianças não parou por aí, pois antes que o Mário tivesse tempo para respirar, alguém já gritou: “E tinha o caçador”. Outro complementou: “Aí o caçador matou o lobo”.
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Eis a história contada pelo Mário, transcrita da gravação de áudio: Era uma vez a Chapeuzinho Vermelho. A mãe dela falou pra ela levar, ir na vovó levar doce e na floresta o lobo mau encontrou com ela e disse: - “O que tem dentro da cesta?” - “Doce para vovó”. Depois ela foi caminhando de novo, e chegou lá, e depois, e depois ela chegou e disse: - “Pra que essas orelhas tão grande?” - “É pra te ouvir melhor!” - “E esse, e esse olho tão grande?” - “É para te ver melhor” - “E esse nariz tão grande?” - “É pra te cheirar melhor” - “E essa boca tão grande?” A sala se uniu ao Mario e inúmeras vozes gritaram: É para te comer!!! Alguém gritou: E tinha o caçador! Outro gritou: Aí, o caçador foi matar o lobo. Mário continua: Aí, o caçador passou lá em frente e depois, matou o lobo. Juliana conclui: E a vovozinha foi livre pra sempre!
Percebe-se que o Mário usa de seu repertório cultural ao “ler” pela primeira vez no dia, sem ninguém ter lido ou contado a narrativa, e sem ele ter o livro nas mãos e, consequentemente, o apoio imagético. E sabendo que o repertório de um leitor seja criança ou adulto está em formação contínua, notei que, posteriormente, conforme as outras crianças iam lendo com o apoio do suporte livro, as imagens lhes proporcionavam novos dados ao seu repertório. O segundo a “ler”, tendo em vista que agora o suporte livro estava à disposição, foi o Vitor Antônio. Um tanto nervoso ou envergonhado, ficou muito atrapalhado com o livro, pegando-o de trás pra frente, de cabeça para baixo, e para conseguir “iniciar a leitura”, solicitou minha ajuda na organização espacial do livro em suas mãos. E entre inúmeros embaraços, análises das imagens e das letras (e também posso dizer depois de sentir minha confiança nele), Vitor concluiu a história e ainda quis mostrar para os colegas as imagens do livro, assim como eu fiz algumas vezes. Foi, na verdade, um grande desafio para ele. Superado. Vencido. Eis, agora, a transcrição da “leitura” do Vitor:
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Era uma vez , Chapeuzinho Vermelho. O lobo e a Chapeuzinho... Era uma vez, não, a Chapeuzinha e a o vovózinha, não a mamãe, a mãe da Chapeuzinha Vermelho falou pra ela vestir o casaco dela. Aí, achei uns doces para levar para a vovozinha... virou a página, demorou um pouquinho e continuou Ela tava andando e o lobo mau falou assim: - O que tem dentro desta cestinha? demorou mais um pouquinho enquanto tentava se ajeitar com o livro nas mãos e tentava “entender” as imagens - Hum... doces pra vovozinha. sem muito jeito, vira a página e timidamente continua E o lobo foi lá na vovozinha e chamou ela, aí a Chapeuzinha foi lá, não... o lobo mau colocou ela dentro do armário, pegou a roupa dela e vestiu. Aí, a Chapeuzinha Vermelho: suaviza a voz e diz de forma quase inaudível - Abre essa porta. Aí ela entrou e a Chapeuzinha falou: - Que nariz grande é esse? - Que olhão grande é esse? - É pra te ver melhor. - Que nariz grande é esse? - É pra te cheirar melhor. - Que boca grande é essa? - É pra te comer. Aí, ele comeu a Chapeuzinho, ficou cheio foi numa árvore e deitou. Aí veio um caçador e comeu, não. E segurou o lobo porque ele tava muito cheio. Aí, ele aí, comeu... hum... (se embaralhou um pouco) o caçador pulou no meio da barriga dele e tirou... Aí... o lobo tava lá... ficou olhando e tentando “ler” as imagens.... por alguns segundos. Aí... a casa... a cama da vovó... Aí ela foi pra cama deitar como ela ficou cansada, e tirou o seu casaco e foi pra cama... Aí, o lobo tava lá... (analisando as pinturas, diz:) Ela encontrou o lobo... junto com a vovozinha. Aí o lobo saiu... falou baixinho, embolado... como se não soubesse o que estava acontecendo: Aí ele comeu ela toda... o lobo... falou mais alguma coisa emboladamente e já tentando virar o livro, olhando para mim disse: Aí, eu vou mostrar essas fotos para eles.
O Vitor teve uma vantagem em relação ao Mário, pois teve a oportunidade de ter o livro em suas mãos. Afinal, durante os instantes que não conseguia prosseguir fluentemente na “leitura”, fixava por minutos os olhos na página onde havia escritos, como se esperasse ou procurasse entender o que as letras diziam. Talvez reproduzindo o comportamento adulto de ler. Depois dele, foi a vez da Júlia.
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Ela leu “fluentemente” a história, acrescentando, inclusive, algumas reflexões no decorrer da “leitura”, como por exemplo: “Ele tava encostado lá na, na árvore. Por que será?”, ou “E daí Chapeuzinho Vermelho estava lá e tirou o casaco para entrar na casa da vovó. Para que será que ela tirou?”, conversando com os ouvintes. Lippman (1990) assegura que é necessário iniciar o processo educativo que ensina a pensar desde a infância e que o caminho para se chegar a isso é o filosofar. E o filosofar nada mais é do que pensar a respeito do sentido do mundo e da vida, considerando-se suas problemáticas e coisas fantásticas; viver com sabedoria. Büttner (1999) descreve, então, algumas atitudes básicas do filosofar como o questionamento crítico de princípios considerados universais, de causas e efeitos; o discernimento do falso, do verdadeiro, do que é válido ou não; o concluir depois de investigar de estabelecer relações. Foi exatamente o que presenciei: uma menina com habilidades de filosofar, com características de quem não se contenta apenas com o visível e o explícito. Observei naquele momento a importância de se oportunizar momentos de leitura, que instigam por si só o pensamento das crianças, conforme se vive as palavras das histórias, ouvidas, lidas e inventadas. Afinal, percebe-se que Júlia é uma menina que demonstra familiaridade com os livros e com o questionar. Apesar de ter pulado algumas páginas e passado outras juntas, percebe-se a “maior bagagem” de Júlia em relação ao Vitor e ao Mário. Aliás, há repertório até neste selecionar de folhas, pois o que é a leitura se não uma junção dos sentidos? Afinal, como descreve Martins (1997), a primeira leitura é a sensorial, aquela que passa pelos nossos sentidos como a visão e o tato. Outro dado interessante é que Júlia preocupou-se, durante sua “leitura”, em intercalar às suas falas a apresentação das imagens do livro, mostrando-o constantemente para as outras crianças. Ou por que ela já experimentou isso várias vezes, ou por que por ser criança reconhece em si (e automaticamente nos outros) a necessidade de visualizar o lido/contado. Outro detalhe a ser observado é que esta leitora mirim apresentou noção de temporalidade, em especial quando o grau de cansaço de Chapeuzinho (após caminhar até a casa da vovó) se intensifica: primeiramente, Chapeuzinho estava “cansada”, depois “cansaaaaada” e, por fim, cansadíssima. O que indica que conforme a personagem
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andava, Júlia sabia que seu cansaço aumentava e expressou isso por meio das palavras (usando o grau superlativo). Analisando com mais atenção, pode ser que, justamente o fato de andar, andar e andar, cansando a menina, tenha feito-a suar a ponto de tirar o casaco, não? Para encerrar a tarde, li a versão escrita por Charles Perrault. Como se soubessem que eu acrescentaria informações ou contaria “como deve ser” porque eu sei ler, as crianças, embora me tenham “ajudado” a narrar, prestaram muita atenção a minha leitura. Surpreendendo-se com trechos ou demonstrando satisfação a cada passagem da história que já era de seu conhecimento. Foi uma experiência gratificante. Diante desta primeira etapa de atividades com Chapeuzinho Vermelho, compreendo melhor a fala de Charmeux (2000) quando ela diz que: Auxiliar as crianças a se apropriarem pela reflexão da especificidade de cada uma das situações de leitura, a perceberem as variáveis que entram em jogo: diferenças nos objetos materiais, diferenças nas formulações, diferenças nas posturas, nas condutas etc.; aprender a ler é isto! [...] não é situação que faz aprender a ler, e ainda menos a vigilância do professor, é todo o trabalho em torno das situações, e, antes de mais nada, o fato de falar delas, de compará-las, de analisálas, de buscar caracterizá-las, classificá-las... Um trabalho como esse pode e deve aparecer desde os primeiros anos da escolaridade, desde o começo do maternal. É claro que ele não irá muito longe nessa idade, mas isso importa pouco: o essencial é que a criança se habitue a ele, e que tente fazer coisas que não sabe fazer bem: trata-se, para ela, do único meio de tornar-se capaz de fazê-lo! (CHARMEUX, 2000, p. 89).
Sendo, necessário, portanto, partir do que a criança sabe e tirando proveito de suas experiências anteriores e de sua predisposição em ser ativa, como foi feito com esta proposta. Ao planejar, desenvolver, descrever e analisar esta primeira atividade tive como procurei permitir liberdade às crianças para se expressarem e serem espontâneas. Propus que elas contassem/lessem suas histórias antes que eu fosse “modelo”. Procurei, assim, respeitar suas vozes. Considero, portanto, acertada esta possibilidade concedida a elas, já que tiveram a oportunidade de se expressar, de ouvir, de falar. Mas além de me ver executando uma atividade importante à formação integral das crianças como esta, também eu fui alvo de aprendizagem. Pude aprender na prática, por exemplo, que as crianças mesmo que aparentemente desordenadas, são capazes de
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se concentrar e prestar atenção ao que lhes é partilhado. E que a atenção e a concentração não estão, necessariamente, vinculadas ao silêncio. Outro dado que pude confirmar é a importância do afeto e do aspecto humano no trato com as crianças como com o Vitor, muito tímido, se sentiu encorajado pela “força” que dei a ele ao acreditar nele. Deste modo, propiciei a ele a criação de vínculo, alcançando um dos objetivos gerais da Educação Infantil proposto no RECNEI (1998) que é estabelecer vínculos afetivos e de troca entre alunos e professor, favorecendo o fortalecimento de sua autoestima e ampliando paulatinamente suas possibilidades de comunicação e colaboração. Chapeuzinho Vermelho: parte 2 Outra atividade realizada neste bloco sobre a obra Chapeuzinho Vermelho foi por meio de um livro de imagens grafitadas. Esta contação foi feita a partir dos desenhos do livro e de minhas intervenções e das crianças. Optei também por um livro de imagens, mesmo a narrativa sendo conhecida das crianças porque, de acordo como Faria (2007), o trabalho com livros de imagem é minucioso e faz as crianças descobrirem elementos que permitem a progressão da ação, que explicam o espaço, o tempo, além de características de personagens, entre outras possibilidades. Ao mesmo tempo, elas desenvolvem “a capacidade de observação, análise, comparação, classificação, levantamento de hipóteses, síntese e raciocínio” (FARIA, 2007, p. 59). Importante acrescentar que escolhi uma metodologia que permitia interferências minhas e das crianças porque embora elas precisem se habituar a ouvir sem falar e sem interferir, Coelho (2004) também assegura que o momento da interferência, nesse caso, o auxílio das crianças ouvintes, é resultado da criatividade do narrador que a incorpora ao texto para tornar a narrativa mais atraente. E é ainda um recurso excelente para ser usado com um público numeroso, porque propicia a concentração dos ouvintes. Após a nossa contação coletiva, dividi a história de Chapeuzinho Vermelho em partes e solicitei que, em duplas, desenhassem uma cena. A ideia era unir as cenas e montar um livro. Afinal, na escola, com cinco anos, a criança é capaz de participar de
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atividades dirigidas e também começa a cooperação entre elas, que é importante ser estimulada e vivenciada. Vejo esta atividade com mais pontos positivos do que falhas. Afinal, como bem esboçam Nunes e Ramos (2007), é possível que a criança interaja com o texto desde que com a mediação de um adulto. E que essa mediação é, na verdade, uma forma de emprestar o olhar de adulto para a criança ver, ou seja, se a criança tem a oportunidade de ler um livro, acompanhada de um leitor proficiente, vivencia o processo de aprendizagem da leitura, aprendendo, assim, a cultura do ler. Além disso, Nunes e Ramos (2007) apontam que a narração de histórias permite às crianças, principalmente aquelas que não são capazes de decodificar os símbolos alfabéticos, de exercitarem o hábito de ouvir e de participar da narração de uma história, já que podem se preparar para produções textuais futuras ao interagirem com uma linguagem diferente daquela ouvida em seu dia a dia. Chapeuzinho Vermelho: parte 3 Selecionei três versões distintas de Chapeuzinho Vermelho para ler às crianças. Em uma das tardes, então, eu li as três versões diferentes da história de Chapeuzinho Vermelho e, para finalizar, as crianças criaram a sua própria versão. Na primeira interpretação que li nesse dia, além de Chapeuzinho encontrar animaizinhos diversos pelo caminho como coelhinhos e brincar com eles, o lobo não come a vovó e prende-a no armário. Quando terminei, a professora regente fez um paralelo entre ela e a contada no dia anterior, na versão de Perrault, na qual o lobo come a vovó e a Chapeuzinho. E eles se olharam como que surpresos por haver duas histórias diferentes de Chapeuzinho. Entretanto, demonstraram nítida preferência pela versão em que o lobo consegue comer a vovó. Exatamente porque a vida é frequentemente desconcertante para a criança, ela precisa ainda mais ter a possibilidade de se entender neste mundo complexo com o qual deve aprender a lidar. Para ser bem sucedida neste aspecto, a criança deve receber ajuda para que possa dar algum sentido coerente ao seu turbilhão de sentimentos. Necessita de ideias sobre a forma de colocar ordem na sua casa interior, e com base nisso ser capaz de criar ordem na sua vida. [...]
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A criança encontra este tipo de significado nos contos de fadas. (BETTELHEIN, 2002)
É provável que justamente por isso, as crianças tenham preferido a versão “má” da história, aquela em que o lobo é devorador. Na segunda, a concentração das crianças já não estava tão “boa” quanto na primeira. Porém, ainda assim colaboraram. Nesta versão, há diferentes falas do lobo para a Chapeuzinho Vermelho e o caçador corta a barriga do lobo após comer a vovó e sua netinha. E, ao perceberem as diferenças nas histórias, o interesse das crianças aumentou. Após essa segunda leitura, também foi realizado um feedback, comparando-a com a primeira contada nesta tarde, bem como à do dia anterior. Na última versão, a história foi contada a partir da visão da vovó, na qual ela diz que Chapeuzinho era malcriada e desobediente e que ela se uniu ao lobo para dar uma lição na neta. No entanto, houve um tumulto e o lenhador chegou, espantando o lobo para longe. Nessa história a vovó conta que só aceitou deixar a culpa no lobo porque ele rasgou seu vestido preferido na confusão e afirmou que ele é inocente e vegetariano. Para finalizar esse bloco de atividades propus à turma criar sua própria versão da história, a professora regente escreveria no quadro o que eles “ditavam”. Não é preciso dizer que, ao contar a terceira versão da tarde, o nível de concentração das crianças já não era mais o mesmo. Maior do que a vontade de ficarem sentados ouvindo versões da menina de capuz vermelho era a sede ou a vontade de ir ao banheiro. Compreendo, então que, talvez por estarem um pouco cansados pela “overdose” de Chapeuzinho Vermelho, nem todos participaram da atividade de reescrita / recriação da história. Por outro lado, nem todos somos escritores. E nem sempre nos interessamos por criar, às vezes, preferimos ouvir, ler, reproduzir o que foi criado. Além disso, se a “overdose” fosse a causa do não envolvimento de todos, por que alguns desejaram contar suas próprias versões deste clássico na frente para a sala? Como o desejo de (re)contar a história partiu deles sentiam-se, no geral, muito motivados. Se eu tentar me distanciar da professora/pesquisadora/autora naquele momento, eu mesma percebo que se exagerei no número de atividades correlatas para uma mesma tarde, também criei inúmeras possibilidades de deleite e aprendizado às crianças.
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Chapeuzinho Vermelho: parte 4 Em um encontro posterior, houve a leitura da história criada por eles. Fo i gratificante a confirmação que a atividade de reescrita deu certo, afinal, pude perceber que várias partes da história eles sabiam “de cor”. Esta é a versão que a sala criou: Era uma vez Chapeuzinho Vermelho, o lobo, a vovó, a mamãe, o caçador, os passarinhos, as borboletas e o coelhinho que viviam na floresta. Chapeuzinho saiu de casa, a pedido da mamãe, para levar torta, Todynho e mel para a vovó. Ela foi pela floresta e não pelo caminho do rio. Na floresta, encontrou os coelhinhos e brincaram de roda. Enquanto isso, o lobo foi pelo caminho do rio, tropeçou em uma pedra e caiu na água. Quase engoliu um peixinho e depois acabou engolindo outro com espinha e tudo, sem mastigar. O lobo chegou na casa da vovó e encontrou a vovó e sua netinha. Comeu primeiro a vovó e depois a Chapeuzinho, sem mastigá-las. O caçador procurava pelo lobo e encontrou-o na casa da vovó. Pegou uma tesoura, cortou a barriga do lobo, que vivia comendo as ovelhinhas do caçador. E para sua surpresa, a vovó e a Chapeuzinho estavam lá dentro da barriga do lobo. Então, o caçador colocou pedras dentro da barriga dele. Quando acordou, o lobo foi beber água, pois estava com muita sede e acabou caindo de novo dentro do rio e morreu afogado. Depois disso, a vovó e sua netinha, fizeram uma surpresa para o caçador com tortas e doces.
Um fato curioso é que apesar de terem se mostrado cansadas ao ouvir três histórias numa mesma tarde, ao criarem sua versão, os alunos aproveitaram fragmentos de todas as histórias ouvidas, além de acrescentarem dados extras. Chapeuzinho Vermelho: parte 5 Em uma tarde em que eu não estava presente, na sala de vídeo, as crianças assistirem ao filme: Deu a louca na Chapeuzinho. Posteriormente, em um momento que eu estava, sentamos em círculo e estabelecemos uma roda da conversa a respeito do filme assistido. De maneira geral, todos gostaram muito do filme. Gostaram em especial de verem o coelho que lutava caratê com as orelhas e pulava de paraquedas. Durante a roda de conversa, fiz um feedback de todas as versões lidas/contadas de Chapeuzinho. Propus, então, que somente aquelas crianças que desejassem poderiam
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desenhar algo a respeito do filme. E, para minha surpresa, praticamente todos quiseram, mesmo sendo a outra opção brincar. Este envolvimento com a atividade muito me encantou e trouxe gratificação, pois quanto mais autoconfiante for a criança, mais ela se arrisca a criar e também a se envolver com o que faz. Chapeuzinho Vermelho: parte 6 Na última atividade desta série, quando li a história Chapeuzinho Vermelho e o Arco-íris: uma história sem lobo, um fato é que o Guilherme, que inicialmente não queria ouvir, por vários motivos como: não gostar da Chapeuzinho e porque queria ter saído para beber água, foi um dos alunos que mais prestou atenção e se interessou, participou a ponto de, após o término, da história, exclamar com espontaneidade: “tia, eu amei essa história!”. Provavelmente ele tenha amado, porque sem conhecer a história, acabou “adivinhando” muitas partes da narração e a presença do arco-íris nela e ficou muito feliz por isso. Eis mais uma prova da importância ativa do “leitor” e o fascínio que a literatura pode causar. Ele, é provável, sentiu-se um leitor eficiente, que antecipa fatos e estabelece relações com outros aspectos do conhecimento (KRIEGL, 2002). Considerações finais Os diferentes suportes e gêneros usados com a temática Chapeuzinho Vermelho foram enriquecedores e oportunizaram observação, análise e criação artística, bem como que as crianças “cutucassem” sua imaginação e desejassem vivenciar outras leituras, favorecendo, assim, o nascimento de leitores. Afinal, quanto mais leio, melhor ficam minhas leituras, mais formas de apresentar as palavras escritas às crianças eu crio, adapto, uso, encantando quem me ouve e a mim mesma. Sujeito que sou dessa e de tantas outras histórias. Referências:
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BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 16 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002. BÜTTNER, Peter. Mutação no educar: uma questão de sobrevivência e da globalização de vida plena – o óbvio não compreendido. Cuiabá: EdUFMT, 1999. CHARMEUX, Eveline. Aprender a ler: vencendo o fracasso. Trad. de Maria José do Amaral Ferreira. 5 ed. São Paulo: Cortez, 2000. COELHO, Betty. Contar histórias: uma arte sem idade. 10 ed. São Paulo: Ática, 2004. DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. FARIA, Maria Alice. Como usar a literatura infantil na sala de aula. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2007. KRIEGL, Maria de Lurdes de Souza. Leitura – um desafio sempre atual. In: Rev. PEC: Curitiba, v. 2, n. 1, p. 1-12, jun. 2001-jul. 2002. LIPPMAN, Matthew. A filosofia vai à escola. São Paulo: Summus Editorial, 1990. MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. 19 ed. São Paulo: Brasiliense, 1997. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Referencial curricular nacional para a educação infantil. 3 vol. Brasília – DF: MEC/SEF, 1998. NUNES, Marília Forgearini. & RAMOS, Flávia Broccheto. Como lê a criança não alfabetizada?
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AS PERSONAGENS FEMININAS AUTÔMATAS EM “O CAPITÃO MENDONÇA” DE MACHADO DE ASSIS, E O HOMEM DA AREIA, DE HOFFMANN: UMA ANÁLISE COMPARATIVA Laura Geraldo Martins Marafante (UEL) A figura do autômato tem se tornado bastante presente no imaginário humano (tanto relacionado à literatura, como à religião e misticismo), sobretudo a partir do século XVIII, em virtude do avanço do número de elementos mecânicos e sonoros. Diante desse cenário, “a metáfora do entrelaçamento entre homem e ciência referenciase tanto em Blade Runner quanto em Leonardo da Vinci. Fantoche, autômato, robô, andróide, ciborgue, humano.” (BUENO; MARTINS, 2012, p.01-02). Na literatura, a temática envolvendo a criação de seres humanos artificiais, ou autômatos, tem sido recorrente desde a Idade Antiga. A exemplo disso, pode ser citada Ilíada, de Homero, quando Hephaestus, cria virgens de ouro para servi-lo, como também Metamorfoses, de Ovídio, onde Pigmalião esculpe uma mulher pela qual se apaixona e em decorrência desse amor, dá vida à sua obra de arte. Ainda em Metamorfoses, há Prometeu, que cria homens e mulheres feitos de água e argila e posteriormente lhes concedem vida (FAUZA, 2008, p.01). O tema da máquina que assume sua própria consciência na literatura européia ocorre já no início do século XIX, no momento em que a Revolução Industrial dominava a Inglaterra e tomava conta do continente (FAUZA, 2008, p.01). Grande parte dessas narrativas cuja temática é a humanização das máquinas, de acordo com Michel Fauza (2008, p.04), “está situada dentro da literatura fantástica, embora a concepção artificial de um homem segundo pretensos métodos científicos desponte com a publicação de Frankenstein, de Mary Shelley”. Fauza (2008, p.05) aponta ainda que: A máquina, dessa forma, surge na literatura européia como agente estranho e fora do mundo natural, agindo na ficção do século XIX ao lado de figuras perturbadoras que colocam em cheque a suposta harmonia do homem com o meio que já lhe era peculiar até então. No lugar, portanto, de personagens como o Horla, de Guy de Maupassant,
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ou o Diabo de Jacques Cazotte e de tantos outros, está a máquina, no papel de personificar o inverossímil. Isto, pelo menos, é o que poderemos notar em E. T. A. Hoffmann (Os autômatos e O homem da areia), Herman Melville (The Bell-Tower) e Ambrose Bierce (Moxon’s Master).
Do mesmo modo que Hoffmann em O homem da areia, Machado de Assis também apresenta em sua narrativa criada a partir dos elementos fantásticos, uma personagem feminina autômata, denominada Augusta, a qual se apresenta como uma referência evidente no que diz respeito à personagem também autômata de Hoffmann, a boneca Olímpia, ambas com nomes que simbolizam a beleza, a perfeição e o despertar da paixão. O conhecimento do funcionamento do corpo humano e novos meios de exercer a medicina; as possibilidades tecnológicas para a criação de um autômato mecanizado que são fruto da imaginação tecnicista das revoluções industriais; a magia ritual ainda resguardada na memória das audiências são alguns dos elementos que fizeram com que as representações pululassem constantemente em obras de ficção, quer fosse na literatura, no teatro, na dança ou no cinema. (BUENO;MARTINS, 2012, p.07)
O conto “O Capitão Mendonça” é um dentre vários contos nos quais podemos reconhecer marcas da literatura fantástica, como “Um esqueleto”, “Decadência de dois grandes homens”, “Sem olhos”, entre outras obras, e ele se insere no início da carreira daquele que viria a se tornar um grande nome da literatura brasileira. O conto “O Capitão Mendonça” foi publicado originalmente em formato de folhetim em 1870 no Jornal das Famílias, um periódico destino às famílias brasileiras, marcado pelo conservadorismo: [...]como tal, exigia de seus colaboradores narrativas bastantes sentimentais com finais condizentes com a moral da elite brasileira da época. Uma carta da redação destinada ao seu público, publicada em 1869, revela não só a tendência moral do periódico como os temas escolhidos para desfilar por suas páginas: romances amenos e anedotas pueris, de pura distração; conselhos domésticos e distintos trajes da última moda parisiense. (PEREIRA, 2012, p.280).
Assim como os autômatos, a figura do cientista também se faz muito presente enquanto tema na literatura fantástica, e também estão presentes na obra de Hoffmann e de Machado de Assis, o qual faz referência ao cientificismo da época por meio da figura do militar e também cientista, Capitão Mendonça, enquanto em “O Homem da Areia”
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temos a presença dos cientistas, Coppelius/Coppola, o pai de Natanael e Spallanzani, podendo associar a figura do Capitão Mendonça à de Spallanzani no que diz respeito à construção de mulheres artificiais, a do pai de Natanael devido a condição de pai e cientista, e à de Coppelius uma vez que ambos demonstram admiração pelos olhos. De acordo com Hentz (2011, p.04): Assim como os de Lilia Moritz Schwarcz, os homens de ciência de Machado também têm diversas profissões: médicos, filósofos, viajantes, militar aposentado... São homens (porque esses personagens não são, em nenhum dos contos selecionados, mulheres) que dizem trabalhar ―a serviço da ciência. Além disso, são, acima de tudo, homens influentes que modificam os lugares e as pessoas com os quais entram em contato, sempre com o discurso científico como legitimador de suas ações.
Seguindo a mesma estrutura de outros contos machadianos do mesmo período nos quais também podemos reconhecer elementos fantásticos, essa narrativa divide-se no que Todorov irá descrever como “narrativa encaixante” e “narrativa encaixada”, esta última sendo, portanto, uma história contida dentro da outra história, a chamada “encaixante”. De acordo com Todorov (1969, p.123-127), os encaixes se dão sempre que há introdução de uma nova personagem com sua nova história dentro de uma narrativa maior, ou narrativa encaixante. As narrativas encaixadas, imersas na narrativa encaixante, são representações do ato de narrar e do processo de ligações, de elos ilimitados, que se constituem numa longa tradição de histórias narradas. Amaral, protagonista do conto narrado em 1ª pessoa, se dirige ao teatro para a fuga do tédio e da tristeza, sentimentos relacionados a um conflito amoroso que é somente mencionado por ele, ao relembrar da feição rude de sua amada. É no intervalo do teatro que surge a figura do Capitão Mendonça, momento que irá marcar o início da “narrativa encaixada”, exposta no trecho a seguir: Apenas caiu o pano houve a balbúrdia do costume; os espectadores marcavam as cadeiras e saíam para tomar ar. Eu, que felizmente estava em lugar onde não podia ser incomodado, estendi as pernas e entrei a olhar para o pano da boca, no qual, sem esforço da minha parte, apareceu a minha arrufada senhora com os punhos fechados e ameaçando-me com olhos furiosos. - Que lhe parece a peça, Sr. Amaral? (ASSIS, 1998, p.181)
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O Capitão Mendonça se apresenta à Amaral como sendo amigo de seu falecido pai, convidando-o para ir até sua casa jantar. Ao adentrar a casa, Amaral conhece então Augusta, a filha do Capitão Mendonça, pela qual se apaixona, sem se dar conta de que se trata de uma obra de alquimia. O encanto de Amaral pela beleza de Augusta é imediato, assim descrito: Augusta levantou para mim dois belíssimos olhos verdes. Depois sorriu e abaixou a cabeça com ar de casquilhice ou de modéstia, porque ambas as coisas podiam ser. Contemplei-a nessa posição: era uma formosa cabeça, perfeitamente modelada, um perfil correto, uma pele fina, cílios longos, e cabelos cor de ouro, áurea coma, como os poetas dizem do sol [...] — Então acha esses olhos bonitos? — Já lho disse; são tão formosos quanto raros.” (ASSIS, 1998, p.186-188)
O encanto de Amaral recai, sobretudo, sobre os belos olhos de Augusta, estes que vêm a ser o principal enfoque do conto “O Homem da Areia” , de Hoffmann”, bem como outros contos de Machado de Assis como “Sem olhos”. Essa “paixão à primeira vista” de Amaral por Augusta, marcada, sobretudo, pelo fascínio pelos olhos, também está presente em “O homem de areia” entre os personagens Natanael e Olímpia, personagem feminina autômata, admirada por Natanael ao ser espiada por um binócolo, despertando nele o mesmo encanto que Augusta causara em Amaral, como pode ser visto no trecho a seguir dessa obra de Hoffmann(2006, p.96): Era a primeira vez que Natanael contemplava o semblante de Olímpia, de maravilhosos traços. Apenas os olhos pareciam-lhe estranhamente hirtos e mortos. Mas à medida que a contemplava com mais cuidado, tinha a sensação de que dos olhos de Olímpia saíam úmidos raios de luar. Parecia que só agora o seu poder de visão fora estimulado; cada vez mais vivos flamejavam os seus olhares. Natanael ficou à janela como que enfeitiçado, admirando sem cessar a divina e bela Olímpia.
A cena de fascínio, beleza e delicadeza sofre na sequência, uma quebra, transformando toda a descrição de beleza em uma cena de horror, pois os tais olhos que Amaral tanto admirou, são arrancados de Augusta, e em seguida, oferecidos a ele pelo Capitão Mendonça: O velho fez um pequeno movimento, a moça ergueu a cabeça, o velho apresentou-me nas mãos os dois belos olhos da moça. Olhei para
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Augusta. Era horrível. Tinha no lugar dos olhos dois grande buracos como uma caveira. Desisto de descrever o que senti; não pude dar um grito; fiquei gelado. A cabeça da moça era o que de mais hediondo pode criar imaginação humana; imaginem uma caveira viva, falando, sorrindo, fitando em mim os dois buracos vazios, onde pouco antes nadavam os mais belos olhos do mundo (ASSIS, 1998, p.188).
Os olhos de Olímpia, assim como os de Augusta, também são arrancados, em virtude da disputa ocorrida entre Coppelius e Spallanzani, seu criador, surtindo o mesmo efeito de horror e espanto em Natanael, que atônito, observa a cena, desconstruindo também a bela imagem da mulher, agora revelada como autômata: “[...] o rosto de cera mortalmente pálido de Olímpia era desprovido de olhos, cavidades negras ocupavam seu lugar; era uma boneca inanimada [...] então percebeu no chão um par de olhos ensangüentados fitando-o fixamente.” (HOFFMANN, 2007, p. 102). Nas duas obras em questão, o conhecimento por parte dos homens apaixonados de que suas encantadoras mulheres são na verdade autômatas, ocorre no momento em que os olhos delas são arrancados. Toda a humanidade concebida a elas está atrelada sobre o olhar, principalmente no caso de Natanael, que mesmo diante de tantos indícios de artificialidade no comportamento de Olímpia, se deixa enganar pelos olhos, como se de fato o amor fosse cego, fazendo com que reconhecesse somente a perfeição sugerida pelo olhar. É curioso pensar que em muitas outras histórias envolvendo não somente autômatos, mas, seres sobrenaturais, há um grande enfoque sobre os olhos como determinante de mudanças de comportamento, ou transformação, como é possível ver, por exemplo, na figura do Lobisomem, cujos olhos são um dos primeiros elementos a se modificar quando ele se transforma de homem para lobo ou vice e versa, ou no caso do Vampiro, cujos olhos ficam avermelhados. Esse detalhe é muito explorado em narrativas literárias e cinematográficas que trabalham com o terror ou o sobrenatural. O momento em que Augusta tem seus olhos arrancados, marca de fato a presença do fantástico no conto de Machado de Assis, já sinalizado anteriormente por detalhes que sugeriam a hesitação da narrativa, elemento característico do fantástico, que ocorre, de acordo com Cilene Pereira (2012, p.34), por meio da utilização dos verbos no pretérito imperfeito, gerando a sensação de incerteza, obscuridade como: “parece o corredor do inferno” (ASSIS, 1998, p.184); “suspeitei que o capitão estivesse
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doido” (ASSIS, 1998, p.184); “pareciam acompanhar todos os movimentos que a gente fazia” (ASSIS, 1998, p.187); “parecia ter uma ideia fixa” (ASSIS, 1998, p.188). Além disso, temos também a presença do medo vivenciado pela personagem, que se releva em virtude do desconhecido. O medo sempre está atrelado àquilo que não conhecemos. Esse desconhecido está marcado no texto por meio das descrições relativas à escuridão, que justamente impede o indivíduo de ver com clareza: “casa velha e escura” (ASSIS, 1998, p.184), “corredor escuro e úmido” (ASSIS, 1998, p.184). A presença do fantástico é então reconhecida nesse conto a partir do que Todorov aponta: Chegamos assim ao coração do fantástico. Em um mundo que é o nosso, que conhecemos, sem diabos, sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Que percebe o acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade, e então esta realidade está regida por leis que desconhecemos. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário, ou existe realmente, como outros seres, com a diferença de que rara vez o encontra. O fantástico ocupa o tempo desta incerteza. Assim que se escolhe uma das duas respostas, deixa-se o terreno do fantástico para entrar em um gênero vizinho: o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural. (TODOROV, 2006, p.15-16).
Ao falarmos sobre o aspecto humano dessas duas personagens autômatas, tratamos, pois, do ponto em que divergem. Apesar das duas personagens enganarem seus respectivos amantes, revelando-se como autômatas somente perante a falta dos olhos, elas possuem características diferentes quanto ao comportamento. Olímpia executa gestos extremamente mecânicos, que causam estranhamento: “Seu andar e sua postura pareciam ter algo de comedido e rígido que a alguns era desagradável, o que foi atribuído a sua timidez frente aos convidados” (HOFFMANN, 2006, p.97). Diferentemente de Olímpia, a autômata Augusta do texto machadiano, se apresenta como uma figura muito mais humanizada, sem tal artificialidade na locomoção e na postura, e ainda dotada se sentimentos, o que remete a grandiosidade da criação do Capitão Mendonça, como pode-se notar na cena do jantar: - Estás mudas, Augusta? Perguntou o capitão servindo-a de peixe.
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- Qual, papai! Estou triste. - Triste? Então que tens? - Não sei; estou triste sem causa (ASSIS,1998, p.186)
Augusta, além de diferenciar de Olímpia no que diz respeito à humanização, é uma autômata que tem voz perante os demais, que se coloca na conversa durante o jantar, emite opiniões e toda uma postura mostrando uma autonomia que encanta Amaralm justamente por se contrapor às mulheres daquela época, havendo uma ironia na escrita machadiana em relação ao comportamento das próprias mulheres leitoras do Jornal das Famílias, destinadas aos afazeres domésticos e subordinadas aos seus maridos, não possuindo o espaço necessário para a expressão de sua voz. Olímpia estaria, então, mais próxima dessa mulher desconstruída por Machado de Assis em seu conto: comedida, calada, manipulada. Dando continuidade à narrativa, que apresenta no arrancar dos olhos de Augusta o elemento sobrenatural, temos um breve estranhamento de Amaral que logo se desfaz, assim, mesmo diante do espanto e da artificialidade da mulher pela qual se encantara, decide-se por pedir sua mão ao Capitão Mendonça. A condição, porém, para que ele lhe conceda a mão de sua obra de genialidade, é justamente que Amaral se transforme em um gênio, por meio de uma cirurgia, para então ser merecedor de Augusta, além de conceder a oportunidade do Capitão Mendonça se consagrar com a genialidade do uso da ciência. A cirurgia é então explicada de maneira natural por Mendonça: - Depois de profundas e pacientes investigações, cheguei a descobrir que o talento é uma pequena quantidade de éter encerrado numa cavidade do cérebro; o gênio é o mesmo éter em porção centuplicada. Para dar gênio a um homem de talento basta inserir na referida cavidade do cérebro mais noventa e nove quantidades de éter puro. É justamente a operação que vamos fazer. Deixo a imaginação do leitor calcular a soma de espanto que me causou este feroz projeto do meu futuro sogro; espanto que redobrou quando Augusta disse: — É uma verdadeira felicidade que papai houvesse feito esta descoberta. Faremos hoje mesmo a operação, sim? (ASSIS, 1998, p.200).
Mesmo perante a resistência de Amaral diante desse assustador procedimento, Amaral é levado à força para a cirurgia por Augusta e pelo Capitão Mendonça, que inicia e descreve todo o procedimento, gerando a sensação do horror experimentado por Amaral, que se mantém acordado, assistindo a todo o processo cirúrgico, descrito pelo
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Capitão Mendonça: “Eu vou furar-lhe a cabeça. Apenas sacar o estilete, introduze-lhe o tubo e abre a pequena mola. Bastam dois minutos; aqui tens o relógio. Ouvi aquilo tudo banhado em suores frios” (ASSIS, 1998, p.202). Nesse momento, Amaral descreve seus olhos como que pesados, indicando para uma sonolência, tendo uma visão distorcida do capitão e do ambiente: as feições do capitão assumiram proporções descomunais e fantásticas; uma luz verde e amarela enchia todo o quarto; pouco a pouco os objetos iam perdendo as formas, e tudo em volta de mim ficou mergulhado numa penumbra crepuscular. Senti uma dor agudíssima no alto do crânio; corpo estranho penetrou até o interior do cérebro. Não sei de mais nada. Creio que desmaiei. (ASSIS, 1998, p.202).
É a partir desse momento que a narrativa encaixada se encerra, havendo o retorno à narrativa encaixante, situada no teatro, no qual somente agora se revela que Amaral ali esteve todo o tempo, caindo num sono profundo, este sendo então, o gerador de toda essa história marcada pelo sobrenatural: Quando dei acordo de mim o laboratório estava deserto; pai e filha tinham desaparecido. Pareceu-me ver em frente de mim uma cortina. Uma voz forte e áspera soou aos meus ouvidos: (fim da narrativa encaixada, retorno à narrativa encaixante) — Olá! acorde! — Que é? — Acorde! quem tem sono dorme em casa, não vem ao teatro. Abri de todo os olhos; vi em frente de mim um sujeito desconhecido; eu achava-me sentado numa cadeira no teatro de S. Pedro. — Ande, disse o sujeito, quero fechar as portas. — Pois o espetáculo acabou? — Há dez minutos. — E eu dormi esse tempo todo? — Como uma pedra.
(ASSIS, 1998, p.202).
O fantástico ocorrido na narrativa é então justificado mediante o pesadelo de Amaral. A justificativa racional para o evento sobrenatural caracteriza o conto como “fantástico-estranho”, conforme aponta Todorov (2007, p.25). Nota-se o efeito de realidade dado por Machado de Assis por meio de exemplos concretos, de modo a não tornar previsível ao leitor o fato de tudo não se passar de um sonho: “ Rua da Guarda
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Velha” (ASSIS, 1998, p.191), “edifício da câmara dos deputados” (ASSIS, 1998, p.191), e ainda a sucessão temporal noite-dia, com forte presença do sol. Frases como: “Não tardou que fosse despertado” (ASSIS, 1998, p.183), “Abriu os olhos” (ASSIS, 1998, p.183), “Não dormi” (ASSIS, 1998, p.191) e “No dia seguinte saudei o Sol” (ASSIS, 1998, p.191), o que, conforme aponta Pereira (2012, p.33), levam o leitor a crer que Amaral está acordado quando, na realidade, está dormindo. O fantásticoestranho reconhecido em “O Capitão Mendonça”, em virtude do sonho como justificativa racional, assim como a loucura justifica os eventos sobrenaturais de “O Homem da Areia”, é assim definido por Todorov (2007, p.24): Se decidir que as leis da realidade ficam intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra pertence a outro gênero: o estranho. Se, pelo contrário, decide que é necessário admitir novas leis da natureza mediante as quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso
Ao final do conto, são mencionados os dramas ultra-românticos, Machado de Assis os ironiza, caracterizando-os como dramas cujos lances são previsíveis, ao gosto dos leitores de folhetim: “E saí protestando não recorrer, em casos de arrufo, aos dramas ultra-românticos: são pesados demais” (ASSIS, 1998, p.203). Esse detalhe colabora para dois aspectos do conto: enfatizar o tédio pelo qual Amaral passava e a própria história que viria a seguir, misturando também amor e terror. E então finaliza a narrativa encaixante, que propiciou o sonho, ou melhor dizendo, o pesadelo: Quando ia por o pé na rua, chamou-me o porteiro, e entregou-me um bilhete do capitão Mendonça. Dizia assim: “Meu caro doutor – Entrei há pouco e vi-o dormir com tão boa vontade que achei mais prudente ir-me embora pedindo-lhe que me visite quando quiser, no que me dará muita honra.”(...)Apesar de saber que o Mendonça da realidade não era o do sonho, desistir de o ir visitar. Berrem os praguentos, embora, - tu és a rainha do mundo, ó superstição” (ASSIS, 1998, p.203)
O conto “O Capitão Mendonça”, nos revela por meio dos elementos fantásticos que o constitui, a forte influência que teve das obras de Hoffmann, especificamente de “O Homem da Areia” na composição desse conto, de modo que a comparação entre as personagens femininas autômatas das respectivas obras comprovam essa referência explicitamente anunciada dentro da própria narrativa machadiana: “Ocorreu-me um
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conto fantástico de Hoffmann em que um alquimista pretende ter alcançado o segredo de produzir criaturas humanas” (ASSIS, 1998, p. 191). Ainda que a personagem autômata de Machado de Assis, Augusta, beire mais a perfeição propriamente dita do que Olímpia, como fora anteriormente abordado, ambas, filhas da ciência, trazem nos olhos o ponto fraco dessa artificialidade, pois são eles que ao mesmo tempo em que cativam, denunciam a ausência do humano.
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ASPECTOS TEMÁTICOS E FORMAIS DA CONTÍSTICA INICIAL DE SAMUEL RAWET: UMA LEITURA DE “O PROFETA” (1956) E “DIÁLOGO” (1963)
Leandro Henrique Aparecido Valentin (UNESP/IBILCE/FAPESP) O presente trabalho propõe um estudo temático-formal dos contos “O profeta” e “Diálogo”, publicados, respectivamente, em Contos do imigrante (1956) e Diálogo (1963), os dois primeiros livros do escritor Samuel Rawet (1929-1984). Pretendemos, com isso, identificar e analisar os procedimentos literários e os valores temático-formais da escrita de Rawet em sua produção inicial no gênero conto. “O profeta” é o conto que abre o livro Contos do imigrante”. Sua fábula é a seguinte: um velho senhor judeu imigra para o Brasil para viver com seu irmão e seus familiares. Aos poucos, ele passa a se isolar e a sofrer por causa do preconceito e da falta de identificação com a sua família, que, em vez de oferecer acolhida para o velho homem, o marginaliza. O isolamento também se dá por causa da dificuldade de comunicação que a nova língua impõe ao imigrante. Diante de tal situação, o senhor decide retornar, sozinho, para o local de onde viera. onde seu irmão, seus filhos e os demais membros de sua família vivem. O conflito dramático (intriga) do conto pode ser definido como Alteridade X Marginalização/Solidão. O cerne desta intriga é a relação eu-outro marcada pelo signo da diferença: há um choque entre as experiências do protagonista e dos seus familiares que o marginalizam, o que causa indignação nele. O tema, por sua vez, pode ser definido como Solidão, e os motivos mais relevantes que a ele se vinculam são: a incomunicabilidade, o silêncio, a indiferença e a incompreensão. Essas unidades temáticas são reiteradas ao longo da narrativa e afetam a intensificação da angústia do protagonista. A reação dos familiares ante as tentativas de testemunho do velho pode ser lida como o silenciamento do protagonista, aqui entendida com uma prática social e política
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de emudecimento daquele que é considerado indesejável e/ou incômodo por alguma razão.. De fato, imediatamente após as tentativas frustradas de testemunho, o velho é silenciado: “Calou. E mais que isso, emudeceu. Poucas vezes lhe ouviram a palavra, e não repararam que se ia colocando numa situação marginal” (RAWET, 2004, p. 29). Ou seja, o velho não apenas tem sua voz surprimida como, também, não tem sua situação adversa notada pelos familiares. Ressalte-se, entretanto, que esse silenciamento no conto, não se resume a um dado da fábula, de uma característica da personagem. Tratase, na verdade, de um construto linguístico formado a partir da articulação entre forma e tema. Por exemplo, após o narrador informar que a personagem emudeceu, a personagem não profere mais murmúrio algum em discurso direto até o final do conto 1. Ou seja, o velho judeu se cala não só no nível da narrativa, mas também no nível da narração. Vejamos um trecho do conto que apresenta alguns procedimentos narrativos empregados por Rawet e os efeitos de sentido que eles geram:
O mar trazia lembranças tristes e lançava incógnitas. Solidão sobre solidão. Interrogava-se, às vezes, sobre sua capacidade de resistir a um meio que não era mais o seu. Chiados de ondas. Um dedo pequeno mergulhado em sua boca e um riso ao choque. Riso sacudido. Poderia condenar? Não, se fosse gozo após a tormenta. Não, não poderia nem condenar a si mesmo se por qualquer motivo aderisse, apesar da idade. Mas os outros? Cegos e surdos na insensibilidade e auto-suficiência! Erguia-se então. Caminhava pelos cômodos, perscrutando no conforto um contraste que sabia de antemão não existir (RAWET, 2004, p. 29).
Neste trecho, é palpável o trabalho de linguagem desenvolvido na narrativa e a expressividade do monólogo interior. Interrogações intercaladas por frases curtas que aparecem como flashes, como “chiado de ondas”, que evoca a sensação, constroem um processo mental marcado pela inquietação e pela angústia, tal como os movimentos 1
A não ser na prolepse presente no início da narrativa, que corresponde, cronologicamente, a momentos que precedem o desfecho narrativo. Destaque-se, também, que a expressão verbal da personagem se restringe, a partir de então, a pensamentos construídos por meio do monólogo interior em discurso indireto.
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inquietos que o protagonista faz no interior do apartamento. O conto “Diálogo”, publicado no segundo livro de Rawet, apresenta fabulação mínima: a história narrada é o confrontamento de pai e filho cujo diálogo iminente durante uma viagem de trem não se concretiza – ou pelo menos não é verbalizado oralmente. Desse modo, o conto se constitui, em sua quase totalidade, de representações dos processos mentais das personagens. Esse dado é traço recorrente na obra de Rawet e marca o conflito dramático Silêncio X Fala, que emerge, neste conto, da relação problemática do indivíduo com o uso da linguagem. O protagonista de “Diálogo”, o pai, vive uma constante experiência de tensão no contato com a palavra: Os ruídos nunca o perturbavam, as palavras, sim. [...] Com a palavra a reação era outra. Desarticulava-se. Perdia o controle (RAWET, 2004, p. 91). É nesse contexto de conflito com a linguagem que o contato entre pai e filho ocorre:
Frente a frente. A cabeça do pai oscila, descola-se da mão e tomba de leve para a frente. Olhos nos olhos. Afinal, imbecil, o que queres? Esses teus livros o que te ensinaram? Gostaria de usar contigo outra linguagem, se não te desses esse ar de presunção e firmeza. Cretino, olha-me bem! [...]. Num gesto automático, o filho imita-o, e as pálpebras se comprimem ante o insulto. Mesmo que eu pudesse lhe falar com franqueza, de que serviria? Presunção minha saber que não pode compreender, apesar de sua intenção? Ou que me compreenderia, se outro eu fosse, como me quer? Se às vezes exibo nas irritações, e apenas no olhar, termos como os que poderia estar ouvindo agora, não vê que me arrependo logo? (RAWET, 2004, p. 93-94 – grifos nossos).
Note-se que não há propriamente um diálogo entre pai e filho. As vozes das personagens são, na verdade, monólogos interiores, procedimento empregado ao longo de toda a narrativa. Desse modo, o título do conto que dá nome ao livro se torna uma ironia amarga: o diálogo iminente entre pai e filho não ocorre, e o conflito dramático não é resolvido. Por fim, destacamos que tanto em “O profeta” quanto em “Diálogo” o silêncio não se caracteriza como apenas um aspecto temático. É, também, um construto
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linguístico formado a partir da articulação entre forma e tema. As personagens de ambos os contos apresentam dificuldade de comunicação e são também silenciadas no nível da narração – um dado recorrente na obra de Rawet, pois são raras as narrativas em primeira pessoa ou o uso de diálogos em seus textos. A manifestação da voz de tais indivíduos se restringe a representações dos seus processos mentais, que são construídos por meio de recursos de subjetivação como o monólogo interior e o fluxo de consciência. Falar, e, por extensão, estabelecer contato com o outro, é um obstáculo de difícil superação para as personagens rawetianas (Proc. FAPESP nº 2013/25390-6).
Referências bibliográficas RAWET, S. Contos e novelas reunidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
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NARRADOR, FOCALIZAÇÃO E TEMPO: DESVENDANDO SENTIDOS Leila Aparecida Cardoso de Freitas (UFMS) Como o narrador de “A Metamorfose” de Franz Kafka relaciona-se com o narratario e o universo diegético? De que maneira o ponto de vista escolhido pelo ficcionista interfere no entendimento do texto? Mediante a proposta de um olhar mais atento em direção aos estudos de focalização, tais perguntas nos nortearão neste estudo, pensando por hora, na novela “A Metamorfose” de Franz Kafka, e mais adiante no conto “Insônia” de Graciliano Ramos. Não obstante, deve-se esclarecer que as reflexões aqui apresentadas acerca das categorias de narrador e focalização estarão diretamente ligadas ao elemento tempo, devido ao grau de aproximação que este mantém com o foco narrativo, sobretudo quando o narrador se coloca em primeira pessoa. Em “A Metamorfose” tem-se a presença de um narrador, de acordo com Gérard Genette, heterodiegético que estando fora do universo diegético, naturalmente, não se apresenta no nível da trama. A despeito de sua ausência este narrador é responsável pela transmissão do enredo, que por sua vez trata-se de uma história aparentemente surreal de um homem que ao acordar em uma manhã, vê-se transformado em uma grande e asquerosa barata. Gregor Samsa, então metamorfoseado em inseto, era caixeiro viajante responsável pelo sustento de sua família – pai, mãe e irmã, porém tamanha era a força do compromisso com seu trabalho e, sobretudo com a família que Gregor parece, nesta situação inusitada, muito mais preocupado em levantar-se e apresentar-se no trabalho do que com sua atual condição. A título de esclarecimento, estamos comentando brevemente o enredo, pois a ênfase no texto de Kafka não está necessariamente na história, mas na angustiosa reflexão que este acontecimento provoca no leitor. Neste sentido, o enredo segue com o sofrimento da família de Gregor que se apresenta muito maior do que o sofrimento do próprio protagonista.
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Embora estejamos partindo dos estudos de Gérard Genette, não se pode esquecer, principalmente nesta novela, a contribuição da teoria de Norman Friedman (2002), haja vista a presença decisiva da onisciência seletiva por parte do narrador, que invade a mente de Gregor de tal forma que consegue apropriar-se de seus mais profundos sentimentos: “Ali passou toda noite, (...), preocupando-se ocasionalmente com sua sorte e alimentando vagas esperanças (...)” (KAFKA, s.d, p.7) Sendo assim, este narrador embora não seja uma das personagens da trama exerce forte domínio no que se refere ao mundo diegético, posto que se por um lado a presença dos verbos e pronomes em terceira pessoa distancia o leitor do mundo narrado, devido a identificação que este costuma manter com o narrador, que por sua vez está distante do discurso, por outro o poder deste narrador sobre a mente do protagonista traz de volta este leitor que passa a identificar-se com sofrimento vivenciado por esta personagem ao tomar contato com seus mais íntimos medos e angústias. Prosseguindo nesta mesma linha, atentemo-nos ao seguinte fragmento do texto: Voltou a deixar-se escorregar para a posição inicial. Isto de levantar cedo, pensou, deixa a pessoa estúpida. (...) Se não tivesse de me aguentar, por causa dos meus pais, há muito tempo que me teria despedido; (...) Bem, ainda há uma esperança; depois de ter economizado o suficiente para pagar o que os meus pais lhe devem – o que deve levar outros cinco ou seis anos -, faço-o, com certeza. Nessa altura, vou me libertar completamente. Mas, para agora, o melhor é me levantar, porque o meu trem parte às cinco. ( KAFKA, s.d, p. 1)
Nota-se neste fragmento, um narrador que se faz presente no mais íntimo da personagem dominando seus pensamentos, sentimentos e perspectivas. Desta forma, muitos estudiosos diriam que esta focalização afasta de si qualquer possibilidade de confiabilidade em relação ao discurso do narrador, haja vista a impossibilidade de um indivíduo conseguir adentrar a mente de outro apreendendo exatamente tudo aquilo que ele pensa. Neste sentido, pode-se dizer que devemos desconfiar deste narrador? Ou de repente, se ele narrasse sob um ponto de vista diferente sua credibilidade
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aumentaria? Para conduzir melhor tais reflexões convidemos Massaud Moisés a discussão: Sabemos todos que um romance (...) formula as próprias leis (...) leis essas que cumprem ao leitor conhecer e aceitar. Por outras palavras ao iniciar o contato com um romance (...), o leitor é obrigado a concordar com as normas estabelecidas pelo ficcionista (...) Por ‘verdade’, ou verossimilhança, não se entenda que a ação reproduza literalmente ocorrências da vida real (...) portanto, verossimilhança interna à própria obra, não enquanto relação com o mundo real. ( MOISÉS, 2004, p. 90)
Mediante as palavras do crítico seguramente pode-se afirmar que nem o fato de Kafka criar um enredo no qual a personagem protagonista transforma-se em inseto, tampouco a possibilidade de um narrador penetrar no interior desta personagem desvendando assim seus medos e angústias não devem ser classificados inverossímeis, uma vez que fazem parte da proposta ficcional do escritor, da qual o leitor tem plena liberdade para aceitar ou não – ler uma obra literária ou um jornal. Não obstante, a verdade é que não se deve confiar em nenhum narrador, seja qual for a focalização, posto que este manipula o universo diegético dirigindo a trama como bem lhe convier; assim, percebe-se no trecho anteriormente apresentado, um narrador assumindo um discurso tendencioso no sentido de demonstrar o quanto um indivíduo, em pleno século XX, ainda se mantém escravizado, se não pelo regime escravocrata tradicional, pelas convenções sociais camufladas atrás de relações de uma família aparentemente unida e feliz. “(...) depois de ter economizado o suficiente para pagar o que meus pais lhe devem – o que deve levar outros cinco ou seis anos (...) Com efeito, é através do narrador herodiegético, porém onisciente, que se pode chegar na macroestrutura do texto de Kafka, sendo que se afirmamos que nenhum narrador é digno de confiança é no sentido de que não se deve considerar apenas os elementos internos, mas a partir de tais elementos alcançar um sentido mais amplo. Sendo assim, percebe-se numa história aparentemente fora de qualquer aspecto da realidade que poderia inclusive assemelhar-se a um sonho, um narrador utilizando um discurso incrivelmente verossímel que pela naturalidade das afirmações e do comportamento do protagonista afasta a possibilidade de atribuir ao conto um
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caráter onírico. Deste modo, a angústia de Gregor prossegue numa narrativa igualmente angustiante que vai desmascarando aos poucos o suposto afeto e união da família de Gregor. “(...) o pai resolvera bombardeá-lo. Tinha enchido os bolsos de maçãs (...) A que se seguiu penetrou-lhe nas costas. (KAFKA, s.d, p.11) Contudo, pensando nas implicações que o elemento tempo acrescenta ao narrador heterodiegético, passaremos em seguida a refletir sobre tal fato. “A Metamorfose”: o paradoxo temporal Em O tempo na narrativa, Benedito Nunes cita Santo Agostinho num momento de autoindagação em que o autor se pergunta o que seria o tempo, respondendo em seguida que se ninguém lhe perguntar ele saberia a resposta, mas diante de uma pergunta não saberia explicar. Na verdade, estas palavras do autor nos remetem à complexidade que encontramos quando o assunto recai sobre o elemento tempo, pois de acordo com Gérard Genette se por um lado é relativamente fácil medir o tempo da diegese, por outro, no tempo do discurso o desafio intensifica-se. Deste modo, na novela “A Metamorfose” o ficcionista opta em criar um narrador que tome a ação in medias res, assim a narrativa inicia-se pelo momento em que Gregor surpreende-se metamorfoseado e, mais adiante o narrador realiza analepse para situar o leitor sobre o trabalho do protagonista, bem como sua responsabilidade em relação ao sustento da família. Percebe-se, neste sentido, que devido a presença das analepses e digressões, as anacronias são depreendidas no texto, além das anisocronias, uma vez que se pensarmos no tempo em que Gregor se vê transformado em inseto, até o momento em que seu chefe corre assustado e seu pai consegue fechá-lo no quarto, pode-se dizer que passaram-se apenas minutos, porém estes pormenores são narrados em várias páginas no nível do discurso. Entretanto, direcionando o elemento tempo para a problemática da focalização,
alguns
questionamentos
fazem-se
necessários:
Este
narrador
heterodiegético encontra-se no mesmo tempo da personagem, comportando-se como um deus que invade sua mente a sua própria revelia? Ou de repente este narrador
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encontra-se num tempo diferente do protagonista contando uma história que ouviu de Gregor com requinte de detalhe? Pode-se pensar diante de tais reflexões que seja muito óbvio que o narrador está no mesmo tempo da personagem, pois se assim não fosse seria impossível adentrar em sua mente, contudo, vimos anteriormente nas palavras de Massaud Moisés, que o romance ou texto ficcional formula suas próprias leis e, portanto, nada impede que este narrador comporte-se com total onipotência quando na verdade tudo o que sabe dos pensamentos e sentimentos do protagonista foram fatos vivenciados no passado, então reportados ao narrador, que este, no presente, resolve narrar como se estivesse no passado. Na verdade, semelhantes reflexões podem prosseguir muito além, pois mesmo assumindo a possibilidade do narrador invadir a mente da personagem, isto não significaria, necessariamente, que ele estivesse no mesmo tempo da personagem, posto que ele poderia reservar o relato para o futuro, sendo que, neste caso a personagem estaria no tempo do enunciado (passado), ao passo que o narrador estaria no tempo da enunciação (presente); além disso, quem nos garante que este narrador não seja, de fato, quem vivenciou esta história, mas por algum motivo resolveu contá-la em terceira pessoa? Faz-se necessário esclarecer, no entanto, que estamos comentando hipoteticamente a microestrutura da novela no intuito de refletir acerca de certas possibilidades de análise que culminariam na macroestrutura e, então chegaríamos na totalidade de sentido do texto. Sendo assim notemos o fragmento que se segue: -E agora?, perguntou Gregor a si mesmo (...). Pensou na família com ternura e amor. (...) Uma vez mais, os primeiros alvores do mundo que havia para além da janela penetraram-lhe a consciência. Depois, a cabeça pendeu-lhe inevitavelmente para o chão e de suas narinas saiu um último e débil suspiro. (KAFKA, s.d, p.15)
Neste momento o narrador contrapõem os sentimentos de Gregor que até o último suspiro pensou na família com amor, à frieza de sua família, sobretudo de seu pai, que valorizou o protagonista somente enquanto em este garantia seu sustento e, portanto era útil, a partir do momento que já não podia trabalhar, gerar lucro e, como
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se não bastasse passou a ser empecilho para que outros lucros viessem, sua morte tornou-se um grande alívio. Percebendo, no entanto, a presença dos verbos no passado pode-se deduzir que de fato o narrador não se encontra no tempo da personagem, sendo que esta se encontra no passado, ao passo que aquela está no presente; porém a riqueza nos detalhes e, sobretudo, a transmissão fiel da angústia de Gregor que traz ao nível da trama certa dose de lirismo, leva-nos a crer que somente quem vivenciou esta dor ou compartilhou intimamente semelhante situação, é capaz de transmiti-la com tamanha veracidade. Desta forma, pode-se dizer que o tempo certamente provocou ligeiras modulações entre as visões de mundo do narrador e da personagem, visto que penetrando na mente de Gregor no passado e só relatando os fatos posteriormente, o narrador teve tempo de adquirir um olhar mais crítico em relação à história, enxergando situações que o próprio protagonista não enxergava. Assim, Franz Kafka, cria um discurso metafórico transmitido pela voz de um narrador consciente, posto que este homem metamorfoseado em barata e, no epílogo, uma menina que parece estar pronta para outra metamorfose, “(...) o senhor e a senhora Samsa notaram, (...) a crescente vivacidade de Grete, (...) aproximava a altura de lhe arranjar um bom marido (...)”(KAFKA, s.d, p.17) não passam de alegorias para demonstrar a relação caótica entre os seres humanos, pois já dizia Antonio Candido (2004), quando um homem se torna instrumento de outro homem, “cai praticamente no nível do animal violentado”. Acrescentemos, então, que a focalização heterodiegética e também onisciente sofreu modulações mediante o efeito do tempo, contribuindo relevantemente para o entendimento do texto. Duas faces de um eu em “Insônia” de Graciliano Ramos Sim ou não? Eis a pergunta que invade a mente do narrador autodiegético do conto “Insônia” de Graciliano Ramos, momento em que já se pode perceber por meio de uma antítese inicial o conflito interior que perpassa o narrador protagonista. Neste sentido, temos um enredo que passa pelo fluxo de consciência da personagem, assim
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pode-se dizer que a força deste conto, a exemplo do que ocorre com o texto de Kafka também não está no enredo, mas na reflexão que o conflito no qual se encontra a personagem é capaz de gerar no sujeito empírico. Realizando, contudo, um breve comentário acerca deste enredo que, na verdade, é uma tarefa mais complexa do que no conto anteriormente discutido, devido a presença do fluxo de consciência; têm-se um homem que não se sabe necessariamente se acordou no meio da noite ou se vive um pesadelo, refletindo de forma paradoxal sobre aspectos importantes de sua vida que refletem na vida de muitos outros indivíduos. Conforme já mencionamos o ponto de vista escolhido pelo ficcionista é de acordo com Gérard Genette autodiegético, neste sentido pode-se averiguar separadamente os comportamentos do eu narrador e do eu narrado, será que se conservam idênticos por se tratarem de uma só personagem? Sabe-se que tal exercício faz-se mais complexo pela opção do escritor pelo sumário em detrimento da cena, porém observemos alguns fragmentos do conto: Sim ou não? Estarei completamente doido ou oscilarei ainda entre a razão e a loucura? (...) (RAMOS, 1927, p.18) Sim ou não? Quem me está fazendo na sombra esta horrível pergunta? Com a golfada de luz que penetrou a vidraça, alguém chegou, pegou-me os cabelos, levantou-me do colchão.(...) (RAMOS, 1927, p.18) Sim ou não? Um relógio tenta chama-me à realidade. (...) (Ramos, 1927, p. 19) (...) Como é possível uma voz apertar o pescoço de alguém? (...) explico a mim mesmo que o que aperta o pescoço não é uma voz: é uma gravata. A voz diz apenas: - ‘Sim ou não?’ (RAMOS, 1927, p. 24)
Atentemo-nos, então, nos seguintes significantes: “sim, não, voz, relógio, gravata”. Estas palavras carregam toda a carga semântica do conto, porém antes de refletir sobre elas faz-se necessário discutir, ainda que brevemente, cada trecho apresentado. No primeiro o narrador liga sua eterna incógnita “sim ou não” a uma outra antítese; “razão, loucura”. Na verdade estes substantivos, se analisarmos detidamente, ligam-se a sentimentos do eu narrador e do eu narrado, sendo que a
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razão estaria intimamente ligada ao eu narrador, ao passo que a loucura seria o estado de espírito no qual se encontraria o eu narrado. No segundo fragmento permanece o jogo das antíteses “luz/sombra”, no entanto, a voz que chama o eu narrado, que o obriga a levantar-se e que insiste na mesma pergunta pertence ao eu narrador. No terceiro fragmento um relógio chama o eu narrado à realidade, porém esta realidade não pertence à realidade do eu narrador. Finalmente no quarto fragmento o eu narrado percebe que não é a voz do eu narrador quem realmente o enforca, mas sua gravata usada todos os dias quando o relógio desperta. Para Schuler (2000), o narrador está sempre envolvido por um jogo de palavras e de gestos, neste sentido pode-se perceber este jogo de palavras no conto em questão, uma vez que certas palavras estão diretamente ligadas ao eu narrador, ao passo que outras ao eu narrado. Desta forma, a pergunta que sustenta o discurso narrativo do conto “Sim ou não” liga-se ao eu narrador, pois pertence a sua voz, chamando com certa violência o eu narrado a refletir. Já o relógio está interligado ao eu narrado, visto que funciona como símbolo da sua escravidão em relação aos compromissos sociais. No que se refere à gravata, liga-se igualmente ao eu narrado, posto que também simboliza o homem enforcado e aniquilado pelo grande esquema social. Sendo assim, entende-se que embora no nível da trama, eu narrador e eu narrado resumam-se ao mesmo ente fictício, certos elementos extrínsecos que somente pode ser alcançado, considerando os elementos intrínsecos, mostram que existe um eu dividido em dois, pois ninguém melhor para trazer um eu à razão do que sua outra metade. Prosseguindo nesta linha de reflexão, passemos em seguida a discutir sobre os efeitos que o elemento tempo provoca entre um eu e outro. O eu através do tempo
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Pensando em Benedito Nunes (1995), que afirmava que presente, passado e futuro são igualmente deslocáveis na ficção e são de grande “docilidade” capazes de unir entre si momentos que a vida real separaria; remetemos ao conto “Insônia”, uma vez que a presença, conforme já foi dito, do fluxo de consciência, traz ao nível do discurso toda confusão mental da personagem, sendo que no interior de uma mente, torna-se muito difícil depreender passado, presente ou futuro. Com efeito, separemos alguns fragmentos para estabelecer a discussão: Nada sei: estou atordoado e preciso continuar a dormir (...) (RAMOS, 1927, p. 18) Sim ou não? Esta pergunta surgiu-me de chofre no sono profundo e acordou-me. (RAMOS, 1927, p. 18) Amanhã comportar-me-ei direito, amarrarei uma gravata ao pescoço, percorrerei as ruas como um bicho doméstico (...) (RAMOS, 1927, p. 25)
Nota-se que no primeiro fragmento, os verbos estão no presente, “sei, estou, preciso”. Já no segundo, o tempo verbal é o passado, surgiu-me, acordou-me”; enquanto no terceiro os verbos saltam ao futuro, “amarrarei, percorrerei”. Diante disso, certas perguntas nos ocorrem: Se o presente pertence a enunciação, então o eu narrador encontra-se no presente? Isto implicaria dizer que o eu narrado estaria no passado? E quanto ao futuro seria o tempo do eu narrador ou do eu narrado? Direcionando novamente o olhar para os trechos apresentados, percebe-se que o eu narrador encontra-se no presente, olhando criticamente para o passado recente do eu narrado, alimentando uma esperança que no futuro, as ideologias do eu narrado possa alcançar as suas e então, finalmente, os dois eus possam unirem-se na mesma visão de mundo. Deste modo, notemos as palavras de Anatol Rosenfeld: Na dimensão mítica, passado, presente e futuro se identificam: as personagens são, (...) abertas para o passado que é presente que é futuro que é presente que é passado – abertas não só para o passado individual e sim o da humanidade (...) (ROSENFELD, 1996, p. 90)
Transportando a ideia de Rosenfeld para o conto de Graciliano Ramos encontramos melhor embasamento para o que já vínhamos discutindo, posto que o passado do eu narrado é também o presente do eu narrador que será o futuro, no qual
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ambos se encontrarão, porém ao relacionar sua vida com os conflitos sociais que muitos enfrentam no dia a dia, o passado do eu narrado e o presente do eu narrador, abandona seu aspecto individual e torna o passado e o presente da própria humanidade. Semelhante fato pode-se observar neste fragmento: “Amanhã comportar-me-ei direito, amarrarei uma gravata ao pescoço, percorrerei as ruas como um bicho doméstico, (...) dizendo frases convenientes. Feliz, completamente feliz.” (RAMOS, 1927, p. 25) Neste momento, o conto chega no seu ápice crítico por meio de uma forte carga de ironia, assim este narrador autodiegético utilizando sua possibilidade de maior aproximação do narratario, pelo fato de apresentar seus próprios sentimentos, mostra que o tempo não deixou que ele passasse pela vida em estado total de alienação, visto que se uma parte sua, comporta-se como um “bicho domestico”, um homem que usa uma gravata para parecer politicamente correto e feliz, a outra parte consegue perceber esta situação e reage duramente contra ela. Relembrando, todavia, as discussões acerca de “A Metamorfose”, percebe-se que embora o tempo atue diferentemente em tais focalizações, as reflexões geradas em ambos os contos em muito se assemelham, pois quando citamos Antonio Candido a respeito do que ocorrera com Gregor, entendemos a barata como a grande metáfora do homem que cai no nível do inseto, em contrapartida, o narrador de “Insônia” vivencia situação semelhante, haja vista a luta contra sua outra metade para que a escravidão que sustenta as relações sociais não consiga animalizá-los definitivamente. As várias faces de um eu: na ficção e na vida O interesse pelos estudos de focalização e tempo levou-nos a refletir acerca do narrador heterodiegético e onisciente de “A Metamorfose” de Franz Kafka e do narrador autodiegético de “Insônia” de Graciliano Ramos. Iniciando assim as discussões pelo texto de Kafka entendemos a escolha do ficcionista em construir uma focalização onisciente, visto que desta forma, o leitor passou a vivenciar a angustiosa situação de Gregor, como se ele próprio a contasse. Não obstante, levantando certas
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hipóteses acerca do elemento tempo, notamos que este alterou a visão de mundo do narrador, que adentrando à mente do protagonista no passado, com o passar do tempo adquiriu maturidade para enxergar o que Gregor não enxergava – sua escravização crescente que culminou em reduzi-lo a um inseto. Direcionando o olhar para o conto de Graciliano Ramos, pudemos constatar a força da focalização autodiegética, no que diz respeito a possibilidade de estreitar as relações entre o leitor e o mundo narrado, haja vista que por intermédio do recurso de fluxo de consciência este narrador lançava fatos diegéticos no nível da trama tais quais iam surgindo em sua mente, este pormenor, contudo, em muito contribuía com a atmosfera de incerteza que perpassava todo enredo. Neste sentido, quando passamos a refletir sobre o tempo, notamos que nesta focalização este elemento assume uma característica distinta: separando o eu narrador do eu narrado entendemos que o tempo mudou ideologicamente o eu narrador, porém o eu narrado ainda apresentava grande relutância em acompanhar sua outra metade. Diante disso, reforçamos a ideia de que se pode partir da microestrutura de um texto para atingir sua macroestrutura, visto que partindo dos estudos de narrador, focalização e tempo, pudemos averiguar o discurso metafórico de Kafka, apresentando sutilmente uma trama, na qual um homem transforma-se numa barata sem comprometer a verossimilhança, visto que esta barata funcionava como uma metáfora cruel do excessivo interesse econômico em detrimento de qualquer forma de afeto. Com efeito, em Graciliano Ramos notamos uma situação semelhante, posto que as relações sociais vão da escravização do indivíduo até sua animalização iminente. Acrescentemos, assim, que através de uma abordagem estrutural, chega-se a uma crítica ferrenha que não se limita à ficção, refletindo na própria vida. Referência CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: _______ Vários escritos. 4ª ed. São Paulo: Duas Cidades/Ouro sobre azul, 2004.
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FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico. Trad. De Fabio Fonseca de Melo. Revista USP, São Paulo, n. 53, p. 166-182, 2002. GENETTE, Gérard. O discurso da narrativa. Trad. De Fernando Cabral Martins. Lisboa: Arcadia, s.d. KAFKA,
Franz.
A
Metamorfose.
Disponível:
WWW.culturabrasil.org/ametamorfose.htm. acesso em: 10/06/2014. MOISÉS, Massaud. A análise literária. 11ª ed. São Paulo: Cultrix, 2004. NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1995. RAMOS, Graciliano. Contos Insônia. São Paulo: Martins, 1927. ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: Texto/contexto I. São Paulo: Perspectiva, 1996. P.75-97.
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A “CONFISSÃO” POLIFÔNICA DE LUIZ VILELA Lígia Ribeiro de Souza Zotesso (UEM) Em Problemas da Poética de Dostoievski (2002), Mikhail Bakhtin descreve a polifonia como uma estrutura dialógica em que várias vozes equipolentes se manifestam em um único texto. Dessa forma, o discurso se constitui a partir de outros discursos, ambos relacionados ao caráter ideológico representado pelos sujeitos em interação. A partir da polifonia, nos termos conceituais propostos por Bakhtin, empreendemos análise acerca do processo polifônico presente no conto “Confissão”, do livro Tremor de Terra (1967), de Luiz Vilela. Assim, as informações implícitas em um texto, são como dispositivos que proporcionam ao leitor possibilidades de conexões e de hipóteses a respeito do objeto intencionado. No conto "Confissão", as vozes são representadas e demarcadas ideologicamente através da perspectiva do leitor e designadas como tema central: a confissão. Com isso, nossa proposta visa identificar, também, como a polifonia se instaura diante da recepção estética do conto em questão. Nossa fundamentação teórica, além do conceito de polifonia (BAKHTIN, 2002), se volta para as Teorias da Recepção, em especial para a Estética da Recepção (JAUSS, 1994) e a Teoria do Efeito Estético (ISER, 1996; 1999). Um Breve Olhar Sobre o Conto Em Dicionário de Termos Literários (2004), Massaud Moisés apresenta uma concepção histórica acerca do conto. Durante a Idade Média até o século XIX, o conto não é vinculado à expressão literária, apenas a relatos de acontecimentos. A literatura, por sua vez, fica por conta das fábulas e apólogos. A partir do século XIX, o conto conquista espaço como arte literária; porém, alguns exemplares são localizados antes mesmo do nascimento de Cristo, como: os episódios de Salomé, Rute, Judite (Bíblia); Os Dois Irmãos e Setna e o Livro Mágico (Antigo Egito); os trechos da Odisséia, A Matrona de Éfeso, de Petrônio, as fábulas de Fedro e Esopo (Antiguidade Clássica); As
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Mil e Uma Noites, Simbad, Os Quarenta Ladrões (Pérsia e Arábia) e a Panchatandra (Índia). Na Era Medieval, o conto é cultivado na Itália e Inglaterra. Com a Renascença, surge uma série de contistas, sob influência de autores italianos, dentre os quais se destacam: Matteo Bandello, Francesco Doni e Celio Malespini. Na Espanha: Cervantes e Quevedo e na França: Margarida de Navarra, La Fontaine, d’Ouville, Perrault e Madame d’Aulnoy. Somente no século XX, o conto toma forma em sua estrutura narrativa retratando cenas do cotidiano. Daí, aparecem os novos contistas: Guy Maupassant, Edgar Alan Poe, Anton Tcheckov, dentre outros. Essa expansão do conto se consolida pelo próprio despontar da imprensa que, a partir de publicações, possibilitou o acesso e o registro desses documentos. Com isso, surgem também os paradoxos acerca do conceito de conto. Para Moisés (2004), a estrutura do conto não pode ser confundida com outras narrativas, como o epílogo ou como a novela, pois “se um conto se amplifica até às dimensões da novela ou do romance, é porque não se trata dum conto, mas dum embrião de novela ou de romance” (MOISÉS, 2004, p. 88). Além disso, Moisés (2004) defende que o conto é de cunho dramático, apresenta um único drama, um único conflito, uma única ação. Sua origem parte de um único objetivo. A densidade é o ponto chave do conto, ou seja, o espaço, o tempo e os personagens estão interligados num momento único. Por isso, o conto, dificilmente, apresenta ações de personagens secundários. Grabo (1913, p. 198), classifica o conto em cinco grupos: conto de ação; conto de personagem; conto de cenário; conto de ideia e conto de efeito emocional. O conto de ação é o mais popular pelo fato de atrair maior atenção do leitor deixando o personagem e o cenário em segundo plano. O conto de personagem é o menos apreciado porque a ação permanece em segundo plano e a personagem se destaca. O conto de atmosfera é considerado raro, pois o cenário sobressai os personagens e o enredo. O conto de ideia visa a doutrina filosófica, estética e política. E, por fim, o conto de emoção se associa às emoções causadas no leitor por meio de histórias de terror, de medo e de mistério.
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Para Mario de Andrade, a estrutura do conto é indefinível, ou seja, sua classificação não se limita à estrutura. Desse modo, o autor é responsável por classificar seu texto como um conto. Assim, nota-se que definir o conto não se trata de propor estratégias para compô-lo. O conto é uma forma de relatar histórias com personagens em ação e num dado momento de tempo. Reis (1987, p. 10), por sua vez, conceitua o conto como “uma forma simples, expressão do maravilhoso, linguagem que fala de prodígios fantásticos, oralmente transmitidos de gerações a gerações”. Nessa perspectiva, o conto não deixa de ser uma alusão a contextos sociais e que se constitui pelo relato composto sob um olhar de quem conta, neste caso, o contista. A seguir, breves conceitos sobre a Estética da Recepção a fim de compreender os recursos que direcionam o olhar do leitor à presença do discurso polifônico do conto “Confissão”, de Luiz Vilela. A Recepção Estética de “Confissão” As Teorias da Recepção se dividem em três linhas: Estética da Recepção, Reader-Response Criticism e a Sociologia da Leitura, porém nossa pesquisa se fundamenta na Estética da Recepção. Essa corrente surgiu na Alemanha, em 1967 com a apresentação de uma palestra proferida por Hans Robert Jauss, seu precursor. Na ocasião, o tema discutido foi a importância do leitor na constituição do sentido do texto. Jauss (1994) propõe um perfil de leitor com conhecimento prévio a partir de um sistema de referências incluindo as suas habilidades de leituras específicas acerca do tema tratado no objeto intencionado e, ainda adaptado as estruturas do campo literário. Isto significa que o autor, enquanto “criador” do texto, perde o papel até então considerado “controlador” do efeito estético. Logo, o leitor passa a responsável na produção de sentido e efeito do texto, posto que o autor, no momento da criação estética, estabelece informações necessárias para a compreensão textual – autor implícito. Por conseguinte, o leitor ativa dispositivos de sua consciência e estabelece uma interação dinâmica entre texto e leitor. De forma sucinta, a estrutura do texto conduz o ato de leitura.
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A estrutura do texto e a estrutura do ato constituem portanto os dois polos da situação comunicativa [...] Tal transferência do texto para a consciência do leitor é frequentemente vista como algo produzido somente pelo texto. Não há dúvida de que o texto inicia sua própria transferência, mas esta só será bem-sucedida se o texto conseguir ativar certas disposições da consciência – a capacidade de apreensão e de processamento. [...] o texto estimula os atos que originam sua compreensão (ISER, 1999, p. 9).
Diante disso, as estruturas textuais impostas pelo autor implícito propõem um público de acordo com o tema proposto pelo objeto estético. O que não significa que o autor tenha controle sobre o perfil de leitor de seu texto, mas a estrutura textual afeta na interação entre texto e leitor. Por isso, a contracapa de um livro apresenta a faixa etária ou a classificação do leitor. Isto é, no momento da criação do objeto estético, o autor utiliza estratégias de leituras, cujo público é internalizado – leitor implícito. Por exemplo: se o livro é infantojuvenil e sua recepção é realizada por um público adulto, o efeito corre o risco de ser alterado. Logo, o leitor implícito é quem direciona o leitor real que, por meio de seus repertórios textuais compreendem a mensagem transmitida pelo texto. [...] o leitor implícito não tem existência real; pois ele materializa o conjunto das preorientações que um texto ficcional oferece, como condições de recepção, a seus leitores possíveis. Em consequência, o leitor implícito não se funda em um substrato empírico, mas sim na estrutura do texto. [...] A concepção do leitor implícito designa então uma estrutura do texto que antecipa a presença do receptor. [...] Desse modo, a concepção do leitor implícito enfatiza as estruturas de efeitos do texto, cujos atos de apreensão relacionam o receptor a ele (ISER, 1996, p. 73).
Dessa forma, o leitor apresenta um perfil de coprodutor, ou seja, durante o processo de leitura, a concretização do texto é resultado do preenchimento de seus espaços e de suas lacunas. Por isso, a busca pelo repertório: conjunto de regras sociais, históricas e culturais, pois o conhecimento do receptor por determinado assunto, possibilita uma percepção para além do texto. Logo, a recepção é um fato social devido o momento histórico influenciar na recepção. (JAUSS, 1994). Diante do exposto, a proposta deste trabalho parte do pressuposto de que a estrutura do conto “Confissão” está organizada de forma que o leitor estabelece o significado para cada voz presente. Visto que, o conto apresenta uma dinâmica de vozes sociais, representadas pelo padre, o penitente e a jovem moça.
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Luiz Vilela: o Mineiro de Ituiutaba Luiz Vilela, mineiro de Ituiutaba, nasceu em 31 de dezembro de 1942. Sob influência do hábito de leitura de sua família, adquiriu o interesse pelos livros e aos treze anos, começou a escrever. Aos quatorze, teve suas primeiras publicações em jornais e aos quinze, já escrevia, semanalmente, crônica para o jornal Folha de Ituiutaba. Cursou Filosofia, na atual Universidade Federal de Minas Gerais e com seus contos, venceu o concurso do Correio de Minas. Criou, aos vinte e um anos, a revista de contos, Estória e o jornal Texto, em parceria de outros jovens escritores mineiros. Em 1967, publica, sob benefício próprio, o livro de contos, Tremor de Terra, que, recusado por editores, venceu o Prêmio Nacional de Ficção. A partir de então, outros trabalhos foram publicados tornando-o conhecido em todo o país1. Como a proposta visa a análise do conto “Confissão”, compete uma breve apresentação do livro Tremor de Terra, de Luiz Vilela, sendo o conto abordado, uma das vinte narrativas que o compõem. Em Tremor de Terra as narrativas estão construídas com tempo e espaço não definidos e com linguagem coloquial permitindo uma leitura cujo efeito fica por conta dos temas abordados: religião, sexualidade, morte, silêncio, diálogo, relacionamento conjugal, pecado, solidão, frustação, amizade, o duplo, a fuga social, lembranças, medo. “Confissão”, por sua vez, é o conto de abertura de Tremor de Terra, o qual retrata um diálogo entre um padre confessor e um penitente cujos nomes não são divulgados. O conto ocorre na igreja, num confessionário, onde um suposto garoto ingênuo confessa o ato de presenciar sua vizinha sem roupa. Durante a confissão, o padre, numa posição de autoridade, ordena que o rapaz relate detalhes do ocorrido. Por fim, o padre propõe o Ato de Contrição como absolvição de tal pecado. O título “Confissão” remete o leitor para um ato religioso. Confessar significa declarar os pecados para um representante da igreja, autorizado a ouvir e absolver o penitente. A confissão encenada no conto refere-se à uma circunstância real. O ato de confessar é presente na igreja, mais frequente em Tempo de Quaresma 2. 1
Informações obtidas no blog Grupo de Pesquisa Luiz Vilela. Disponível em: http://gpluizvilela.blogspot.com.br/p/noticias.html. Acesso em: 31 de jul. 2014. 2 Período que antecede a Páscoa Cristã, celebrado pelas igrejas Católica, Ortodoxa, Anglicana e Luterana.
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Visto que o conto é constituído apenas pelo diálogo, não há um narrador. O conto “Confissão” apresenta uma dinâmica de vozes sociais. Quem estabelece o significado de cada voz presente é o leitor. São três vozes em interação, porém cada uma representa ideologias próprias. Por exemplo, o padre ocupa a posição de autoridade religiosa, pronto a orientar os cristãos da igreja. O jovem representa o cristão que segue os mandamentos da igreja, enquanto instituição superior. Por sua vez, a moça que, apesar de não se “fazer ouvir”, está presente no diálogo. A sua participação ocorre de modo que o leitor a compreenda como vítima, representante de uma sociedade em que, muitas vezes, homens acreditam possuir direitos sobre a mulher. Nota-se essa representação da mulher marginalizada no diálogo do confessionário quando padre e penitente pressupõem um comportamento desonesto por parte da jovem indicando que a sua nudez, supostamente “inocente”, é proposital. A Confissão Polifônica de Luiz Vilela O romance polifônico é criado pelo escritor russo Fiódor Mikhailovich Dostoievski sendo, na concepção de Bakhtin (2002), uma estrutura em que a voz do herói se manifesta com autonomia assumindo independência “como se soasse ao lado da palavra do autor” (BAKHTIN, 2002, p. 5). Com isso, o conceito de polifonia apresentado por Bakhtin em O Romance Polifônico de Dostoievski e seu enfoque na crítica literária, no livro Problemas da Poética de Dostoievski (2002), designa as várias vozes em pé de igualdade (equipolentes). Assim, a polifonia se estrutura a partir das vozes que representam ideologias relacionadas aos personagens de determinado texto. Em linguística, a polifonia é apresentada por Bakhtin (2002) como a harmonia de vozes em pé de igualdades – equipolentes, presentes em um único texto. Nestes textos polifônicos, “os diálogos entre discursos mostram-se, deixam-se ver ou entrever; nos textos monofônicos eles se ocultam sob a aparência de um discurso único, de uma única voz” (BARROS, 1999, p. 36).
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Com base na teoria bakhtiniana, surgiu o interesse em analisar como a polifonia se instaura em “Confissão”, do livro Tremor de Terra (1967), de Luiz Vilela. Além disso, a elaboração deste trabalho consiste na recepção estética do conto. Em “Confissão”, nota-se duas possíveis leituras no personagem do jovem penitente. Primeiro, o jovem não compreende a lógica de algumas questões feitas pelo padre, como: (penitente) - Eu vi minha vizinha...sem roupa... (padre) - Completamente? (penitente) - Parte... (padre) - Qual parte, meu filho? (penitente) - Para cima da cintura... (padre) - Sim. Ela estava sem nada por cima? (VILELA, 2003, p. 7)
E, as responde com receio de que, sem perceber, tenha cometido uma falta grave. Daí, direcionando o olhar do leitor para um perfil de cristão que segue os princípios morais da igreja, enquanto instituição suprema. Isto é, para o leitor, o padre aproveita de seu cargo de confessor ao incitar o jovem a declarações indecorosas. A segunda leitura retrata o jovem como um pecador. Neste caso, o penitente compreende as intenções do padre e, numa tentativa de fingir inocência, direciona o leitor à confissão como um interrogatório. Por isso, o jovem apresenta respostas incompletas e, por isso, o leitor as compreendem como atitudes de pecador. Nesse sentido, a perspectiva do leitor se organiza de acordo com a sua leitura. A “estrutura” do texto proposta pelo autor implícito conduz o ato de leitura. Assim, o leitor preenche as lacunas, os vazios, os pontos de indeterminações devido à perspectiva que ele seleciona sobre o texto. Neste caso, o leitor tem a possibilidade de julgar o penitente como responsável ou não por presenciar a sua vizinha nua. Logo, o ato de leitura depende de tema e horizonte, como representado na concepção de Iser (1996, p. 179): a própria organização interna do texto é um sistema da perspectividade. Pois apenas esse sistema é capaz de combinar as visões perspectivísticas de um objeto intencionado de tal modo que esse objeto, que não é dado enquanto tal, é representável. [...] são quatro as perspectivas através das quais os elementos são selecionados; daí resulta a primeira combinação do repertório. Tratase da perspectiva do narrador, da perspectiva dos personagens, da
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perspectiva da ação ou enredo e da perspectiva da ficção marcada do leitor.
Mediante o exposto, constata-se que a “concretização” da obra literária se realiza na convergência entre leitor e texto. A saber, o objeto literário é dinâmico; a sua constituição se realiza por meio da recepção e, principalmente através dos efeitos que provoca no leitor. Em virtude disso, a estrutura imposta pelo autor implícito funciona como um processo de comunicação entre o leitor e o conto recorrente. Visto que o leitor compreende o/no texto sendo que a representação social de um personagem causa inquietações devido sua proximidade com a realidade. O que de fato não significa que a literatura tenha um compromisso com a verdade histórica. O seu status de ficção se define por não ser verdadeira e nem falsa (HUTCHEON, 1988). Por exemplo, os personagens do conto “Confissão” – padre, penitente e moça - existem no mundo ficcional, mas os seus sentimentos, as suas ações e as suas ideologias pertencem ao mundo real e, é neste meio, entre mundo ficcional e mundo real que se encontra o mundo epistemológico. Por isso, o leitor compreende o texto literário como ficção. Outrossim, o conto “se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade secreta” (PIGLIA, 2001, p. 24). Logo, o conto “Confissão” se estabelece sob essa perspectiva em que o autor transforma o ato de confissão num momento de reflexão. No seguinte trecho, nota-se, como primeira voz, o padre. Isto é possível devido a estratégia utilizada para atrair o penitente a confissão chamando-lhe de meu filho. Além disso, o padre, recorre a presença de Deus para conduzir a confissão de modo que o penitente não sinta receio de sua confissão. (padre) - Conte os seus pecados, meu filho. (penitente) - Eu pequei pela vista... (padre) - Sim... (penitente) - Eu... (padre) - Não tenha receio, meu filho; não sou eu quem está te escutando, mas Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, que está aqui presente, pronto a perdoar aqueles que vêm a Ele de coração arrependido. E então... (VILELA, 2003, p. 7)
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Em seguida, ao confessar ter presenciado sua vizinha nua, o jovem desperta a curiosidade do padre representada na voz social da repressão internalizada, do desejo, da dissolução, do mexerico. (penitente) - Eu vi minha vizinha...sem roupa... (padre) - Completamente? (penitente) - Parte... (padre) - Qual parte, meu filho? (penitente) - Para cima da cintura... (padre) - Sim. Ela estava sem nada por cima? (penitente) - É... (padre) - Como aconteceu? (penitente) - Como? (padre) - Digo: como foi que você a viu assim? Foi ela quem provocou? (penitente) - Não: ela estava deitada; dormindo... (padre) - Dormindo? (penitente) - É... (padre) - Quer dizer que ela não te viu? (penitente) - Não... (padre) - Ela não estava só fingindo? (penitente) - Acho que não... (padre) - Acha? (penitente) - Ela estava dormindo... (VILELA, 2003, p. 8)
Outrossim, comentários vão se formulando acerca do episódio. Nota-se que no âmbito pleno da polifonia, o conto apresenta vozes dialógicas individuais que representam ideologias e evocam constructos sociais estratificados, e tal dialogismo configura a polifonia. Desta maneira, nota-se que no conto “Confissão” a presença da polifonia se instaura mediante o conceito de Dostoievski (2002), ao afirmar que o personagem de um texto polifônico é um ser autônomo e com visão própria de mundo. Em “Confissão”, os personagens apresentam posicionamentos próprios diante do fato exposto. Nota-se que a voz do padre representa a voz milenar censória da igreja. Isto significa que o padre, na posição de autoridade cristã não aprova tal episódio de nudez, porém numa posição de homem público, se permite tal atitude. Daí, o “apagamento” da fala do padre, enquanto autoridade virtuosa cristã e apropriação da posição de homem “comum”, pecador, lúbrico. Neste caso, subentende que o padre profere uma proposição, porém não se responsabiliza e, ainda condena-a.
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Por conseguinte, nota-se que o penitente confessa o desejo pela nudez da moça, porém se mantem na posição de vítima atribuindo culpa ao demônio. Assim, o penitente recorre ao “suposto” feitiço como pretexto para sua inocência. Além disso, o penitente recorre ao ato de contrição para se posicionar, diante do leitor, como um cristão arrependido, enfatizando sua inocência. (penitente) - Eu queria continuar olhando... (padre) - Sim. (penitente) - Era como se eu estivesse enfeitiçado... (padre) - O feitiço do demônio. O demônio torna o pecado mais atraente para cativar as almas e levá-las à perdição. Era o demônio que estava ali, no quarto, no corpo da moça, meu filho. (penitente) - Na hora eu não pensei que era pecado; eu fiquei olhando feito a gente fica quando vê pela primeira vez uma coisa bonita... Depois é que eu pensei... (padre) - É uma manobra do demônio: ele queria que você ficasse olhando, para conquistar seu coração; por isso é que você não sentiu que estava pecando. Ele faz o pecado parecer que não é pecado e a gente pecar sem perceber que está pecando. O demônio é muito astuto. (penitente) - Depois me arrependi e rezei um ato de contrição... (VILELA, 2003, p. 10)
Para finalizar, o convite feito pelo padre ao penitente, para pedir perdão a Deus, possibilita que o leitor compreenda uma “confissão” implícita do padre. Para isso, o padre volta a condição de autoridade cristã, já que num dado momento observa-se o distanciamento de sua voz do discurso para dizer o contrário do que se pretendia, enquanto padre. (padre) - Pois vamos pedir perdão a Deus e à Virgem Santíssima pelos pecados cometidos e implorar a graça de um arrependimento sincero e de numa mais tornarmos a ofender o coração do seu Divino Filho, que padeceu e morreu na cruz por nossos pecados e para a nossa salvação. Ato de contrição. (VILELA, 2003, p. 11)
Com isso, a leitura do conto se concretiza a partir de sua recepção polifônica. Em outras palavras, o leitor segue as dicas propostas pelo autor implícito. Luiz Vilela, ao compor o conto “Confissão”, estabelece uma série de particularidades em sua estrutura que direciona o leitor a mensagem pretendida. Isto não indica que o autor controla os sentidos, porém as informações expostas por ele, servem como pontos de
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indeterminações, lacunas e vazios que conduzem o leitor a compreender o sentido e efeito do objeto literário em questão. Considerações Finais Diante do exposto, a polifonia se instaura de modo que a constituição ideológica dos personagens dependem das vozes em interação. Caso alguma dessas vozes se “apague”, a recepção estética do conto pode se desestruturar. Assim, o receptor decodifica a mensagem polifônica do conto pelo fato de compreender a mudança de posição que determinada voz ocupa para se “fazer entendida” sob outro aspecto que não ao formato original. Portanto, nossa proposição é de que as vozes polifônicas do conto reverberam ideologias socialmente disseminadas no mesmo passo em que rompem estereótipos e denunciam a hipocrisia de certos papeis sociais institucionalizados e cristalizados. Referências ANDRADE, Mário de. Contos e contistas. O Empalhador de Passarinho. 3. ed. São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1972. p. 5-8. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Tradução de Paulo Bezerra. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Diálogos com Bakhtin. Curitiba: UFPR, 1999. GRABO, Carl Henry. The Art of the Short Stories. Charles Scribner’s Sons. 1913. HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro, Imago, 1988. p. 146. ISER, Wolfang. O Ato da Leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes Kretschemer. São Paulo: Ed. 34, 1996. V. 1. _______. O Ato da Leitura: uma teoria do efeito estético. Trad. Johannes Kretschemer. São Paulo: Ed. 34, 1999. v.2. JAUSS, Hans. Robert. A História da Literatura como Provocação à Teoria Literária. Trad. Sérgio Tellaroli.São Paulo: Ática, 1994. MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix. 1974. p. 86.
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PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o Conto. Caderno MAIS, Folha de São Paulo, domingo, 30 de dezembro de 2001. REIS, Luzia de Maria R. O Que é o Conto. São Paulo: Brasiliense, 1987. p.10. VILELA, Luiz. Tremor de Terra. São Paulo: Publifolha, 2003.
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SRA. JORGE B. XAVIER: A PROCURA DE SI Lílian Lima Gonçalves dos Prazeres (UFES) O conto A procura de uma dignidade, apresenta ao leitor uma personagem central marcada pelo anonimato; “de pé no banheiro era tão anônima como uma galinha” (LISPECTOR, 1997, p. 18). Sem nome próprio, a Sra. Jorge B. Xavier percorre uma saga à procura de sua identidade, no afã de algo que a torne digna de viver. Este conto participa do livro Onde estivestes de noite, que seria a junção de contos, crônicas, reflexões de outros livros. Compõe-se por títulos como, além do conto em análise, A partida do trem, Onde estivestes de noite que intitula o livro, As maniganças de Dona Frozina e outros. Esses contos, em sua maioria, como revela Nádia Gotlib (1995), tratam de senhoras que são tomadas por um mal estar, por um desejo profundo e pelo receio do nojo da juventude que almejam. Renato Gomes (1997), autor que apresenta a obra Onde estivestes de noite de Clarice Lispector, afirma que os contos A partida do trem e A procura de uma dignidade apresentam a crise interior que permeia a vida das mulheres dos contos e a ruptura de suas vidas até então marcadas pela ordem, a partir de pontos circunstanciais, comuns, mas causadores de um desequilíbrio. Narrado em terceira pessoa, contendo um narrador reflexivo que, como no romance Perto do Coração Selvagem, está muito perto dos personagens, chegando a se identificar com eles, o conto A procura de uma dignidade apresenta ao leitor a Sra. Jorge B. Xavier, uma senhora idosa de quase setenta anos, que, ao procurar o local onde aconteceria uma conferência, um dos muitos eventos sociais dos quais participava, entra no Estádio do Maracanã. Perdida no Estádio, sem achar uma saída e nem as pessoas que procurava, sentese como num labirinto, “[...] era muito desatenta. [...] no entanto o seu pequeno destino quisera-a perdida no labirinto” (LISPECTOR, 1997, p. 9). Sem nome próprio, designada sempre pelo nome do esposo, a senhora percorre, até a exaustão, os corredores do Estádio. Este caminhar da personagem consiste num momento de reflexão
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acerca de si e de sua vida. Durante a caminhada encontra com alguns homens, a quem pergunta sobre as pessoas que deveria encontrar. Os homens dizem que as procurariam e logo somem nos corredores do Maracanã. Num determinado momento, a Sra. Jorge B. Xavier lembra-se que, na verdade, a reunião seria num local próximo ao Maracanã e não no próprio Estádio. Recobrada a memória, reencontra o homem que a conduz até a porta de saída. Toma um táxi e mais uma vez se perde no labirinto das ruas, pois não sabia indicar, ao certo, o endereço para onde deveria ir, até que avista as pessoas na porta do local onde seria a conferência, que já deveria estar no final. Lá, não se sentindo bem, pede a uma amiga que permita que seu chofer a leve em casa. A amiga chama um táxi que deveria conduzir a personagem até sua residência, porém, mais uma vez, ela se perde nos labirintos da rua, muda de táxi e este, finalmente, a conduz até sua casa. Em casa, nua na cama, lembra-se da paixão que tinha por Roberto Carlos, o pensamento no cantor acaba por envolvê-la em desejo e fazê-la pensar na vida e no seu anonimato. Considerava-se ninguém. A verdade é que sempre fora conhecida pela imagem do esposo e não por ela mesma. Via, como o clímax de sua existência, o cantor Roberto Carlos, que a levava a subverter a disciplina de toda uma vida. Na busca de uma saída, ao final do conto, cantando Quero que vá tudo pro inferno, a Sra. Jorge B. Xavier se suicida. A sra. Jorge B. Xavier: corpos em cena A personagem do conto A procura de uma dignidade, apresenta características tanto do corpo disciplinado quanto do corpo envelhecido, ambos de grande relevância para o estudo da representação do feminino. A sua identificação com a disciplina liga-se às posturas da personagem diante da vida e da sociedade, mostrando-a como alguém que sempre esteve presa aos modos de agir, considerados aceitos pelas convenções sociais. Já a questão da velhice permeia a preocupação que a personagem tem com a idade. Ela lastima os seus quase setenta anos, ficando feliz com o fato de ninguém desconfiar de sua juventude, por isso mantém-se presente em diversos compromissos,
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que por sua opinião garantem a sua jovialidade. Demonstra certo repúdio para com a velhice, o que lhe deixa num permanente conflito estético. A Sra. Jorge B. Xavier consiste na disciplina em pessoa, sempre muito educada, sempre dependente e submissa ao homem com quem havia casado. Este só é citado para dizer que se encontra numa viagem, mas que é uma marca presente e constante na identificação da personagem. O Sr. Jorge B. Xavier detém, segundo Elódia Xavier (2007), sobre a esposa uma “força simbólica”, pois exerce a dominação única e simplesmente pelo nome. Além disso, a personagem central do conto está envolta a uma série de compromissos sociais que a fazem sentir-se útil, cumprindo os papéis que a mulher deveria exercer, papéis estabelecidos por uma sociedade segregadora. A conferência é um exemplo contundente do cumprimento desses papéis, e da ocupação de um lugar que lhe foi destinado. Não ocorre aqui uma violência direta para que haja o disciplinamento e sim simbólica: [...] A violência simbólica, porém, tem uma ação transformadora que se manifesta de maneira invisível e insidiosa, através de interações prolongadas com as estruturas de dominação. [...] As instituições – Família, Igreja, Escola e Estado – são agentes que contribuem para a dominação, que se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante (XAVIER, 2007, p. 59).
É pertinente lembrar, como ensina Michel Foucault (2008), que a disciplina tem como procedência inicial a divisão do indivíduo no espaço, garantindo a cada ser um lugar e papel específico. No entanto, muitas vezes, é necessária a menção à cerca, espaço fechado, para que o processo de disciplinamento seja garantido e a disciplina já obtida seja mantida. Percebe-se, com relação a Sra. Xavier, que um espaço lhe é destinado, o espaço dedicado ao lar e a manutenção da boa aparência familiar, isso garantia a ideia de prosperidade do marido, pois “[...] na sociedade burguesa, um dos papéis reservados às mulheres é representar; sua beleza seu encanto, sua inteligência, sua elegância são os sinais exteriores da fortuna do marido” (BEAUVOIR, 1980, p. 219, grifo da autora). Nesse contexto é pertinente ressaltar que foi na época clássica, que vai desde meados do século XVI até o final do século XVIII, que o corpo foi representado como um objeto visível de poder. Nessa época, surgiu o que Foucault (2008) chamou de
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teoria geral do adestramento de onde se pode extrair a condição de docilidade, tão atribuída ao sexo feminino. Um corpo dócil seria, portanto, um corpo facilmente manipulável, “que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2008, p.118), ou seja, disciplinado, compreendendo-se que a disciplina tem o papel de promover submissão. Outra compreensão desse corpo apto à disciplina e similar à ideia do que preconiza Foucault (2008) é o corpo disciplinado de Elódia Xavier (2007). Para a estudiosa, o corpo disciplinado compreende aquele que se adequa perfeitamente aos processos de disciplinamento, apreende todas as regras e guia-se por meio delas. A regra torna-se uma norma a direcionar todos os setores da vida dos sujeitos dóceis. Como revela Foucault (2008), a norma se constitui na nova lei da disciplina na sociedade moderna, assim, “[...] O Normal se estabelece como princípio de coerção” (Foucault, 2008, p.153). Essa norma estabeleceu-se nos colégios internos, nas escolas para moças, todas intencionadas em mostrar ao sexo feminino qual o seu lugar na esfera social. As muitas convenções sociais e o encontro com senhoras importantes implicam na reafirmação do papel da mulher que, dependente do companheiro, se dedica ao rotineiro trabalho doméstico e ao corrosivo ócio, enquanto o homem estaria cuidando de questões supostamente relevantes para o desenvolvimento social. Essa condição não parecia agradável à Sra. Xavier. Na verdade, o trabalho doméstico preenchia o vazio que a vida, a partir de uma identidade forjada pela sociedade – a de esposa educada e perfeita - lhe conferira. A narrativa apresenta características da personagem como a extremamente educada, delicada, não disposta a reclamar. Revelando um perfil perfeito de mulher que se conforma e detém as características de fragilidade, docilidade que uma “esposa” ideal deveria apresentar, isto é, estava a Sra. Jorge B. Xavier totalmente disciplinada. Então a senhora, cansada pelo esforço de ter ficado de quatro, sentouse na cama e começou muito à toa a chorar de manso. [...] Há 30 anos não chorava, mas agora estava tão cansada. Se é que aquilo era choro. Não era. Era alguma coisa (LISPECTOR, 1997, p. 16).
A citação acima revela toda a resignação e falta de vontade própria que envolviam a personagem. Nem sentir lhe era permitido. Além disso, a Sra. Xavier
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apresenta-se extremamente conformada com sua vida, afirmando “que „era assim mesmo sua vida‟.” (LISPECTOR, 1997, p. 15). Nesse contexto, ressalta-se o fato de nunca questionar a autoridade, seja a implícita socialmente, seja a que o marido retém sobre ela, característica marcante do corpo disciplinado como revela Xavier (2007). Mais do que qualquer outro personagem clariceano, a Sra. Jorge B. Xavier negligencia a própria vida, e adentra profunda e exclusivamente a vida do marido. É extremamente carente e isso é acentuado pela ausência constante dele no conto. Sonha com Roberto Carlos, talvez seja uma forma de fugir da solidão, de sentir desejo, já que não vê a possibilidade de ser desejada. Vale ressaltar que a carência é uma característica permanente do corpo disciplinado. Esse sentimento é efeito da disciplina, da imposição de regras, do molde que se faz para as identidades. A carência, portanto, configura-se num dos efeitos no indivíduo que garantem que a disciplina se perpetue. O fato de não ser ninguém, de não ter uma identidade além da que o casamento lhe conferiu torna o fato ainda mais grave. Assim, “[...] a não permissão de uma biografia própria faz parte do processo disciplinar, que impede a mulher de viver sua própria vida para viver a do marido, provedor e construtor da realidade” (XAVIER, 2007, p. 64). A ausência do marido faz com que a Sra. Xavier quebre a rotina de submissão e caia no labirinto que é a própria vida, se perca nos vários caminhos sem saída que adentrou na busca por uma solução, na busca de si e algo de que lhe seja próprio. Essa entrada no labirinto permite pensar no ser humano que ela não conseguiu ser, na mulher que lhe foi imposta e que ela deixou moldar, sente a falta de sentido de si e das coisas que viveu até então. Eis a procura da Sra. Jorge B. Xavier por sua identidade e o grito que Clarice faz vibrar de suas personagens em prol da dignidade humana e feminina. Sobre o corpo envelhecido, observa-se que a velhice é uma fase da vida que, apesar da beleza e sabedoria conquistada com a experiência dos anos passados, não é bem recebida por todos. Esta etapa acaba sendo entendida como uma fase de sofrimento, de declínio do vigor físico e da ousadia da juventude, atributos valorizados pela sociedade capitalista que prioriza o corpo jovem e forte para atender às necessidades do mercado.
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O envelhecer significa, sobretudo, transformar-se fisicamente, implica numa perda de forças, de agilidade. Esse fator para mulher acaba gerando uma aflição gigantesca, já que os discursos midiáticos exigem um padrão de beleza e uma juventude que não são mais possíveis de se manter com a velhice. A sociedade marginaliza o idoso e penaliza nesse processo de exclusão, ainda de forma mais cruel, o sexo feminino. Como afirma Xavier (2007) a literatura veicula de modo recorrente a questão da velhice, principalmente em narrativas produzidas por mulheres. A Sra. Jorge B. Xavier vê a sua idade como um martírio, pois dizia que “[...] cada vez mais a cruz dos anos pesava-lhe” (LISPECTOR, 1997, p. 13), com quase setenta anos, sofre com as mudanças de seu corpo e com o desejo que a toma, vendo-o como algo que não poderia ocorrer a uma mulher velha. Por isso, “[...] que se forçava a não perder nada de cultural porque assim se mantinha jovem por dentro, já que até por fora ninguém adivinhava que tinha quase 70 anos, todos lhe davam uns 57” (LISPCETOR, 1997, p. 8, grifo da autora). O livro Onde estivestes de noite é composto por uma coletânea de contos cujo tema recorrente é a velhice. Têm-se como exemplos as senhoras D. Maria Rita Alvarenga Chagas Souza Melo e Ângela Praline, personagens que passam por experiências de fuga e rejeição no conto A partida do trem; Dona Frozina, protagoniza a crônica As maniganças de dona Frozina, em que Clarice brinca com o mistério do cotidiano, banal, da velha. Outra obra clariceana que traz a questão da velhice é o livro Laços de família, onde figura o conto Feliz Aniversário, em que há a comemoração do aniversário de dona Anita. Esta senhora vive de favor na casa de sua filha, por necessidade da família, que na narrativa é considerada hipócrita, pois se obriga a comemorar o aniversário de oitenta e nove anos da senhora, afinal não há por parte dos parentes de D. Anita nenhum interesse real de cuidar ou prestigiar a senhora. Os textos de Clarice denunciam o quanto a velhice representava um peso para a sociedade de sua época. O ente idoso era maltratado, visto como alguém que incomodava e que era proibido de ter certos sentimentos, de fazer determinadas coisas, sendo colocado totalmente à margem da vida social, e muitas vezes é totalmente rejeitado pelos familiares.
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A velhice foi valorizada em algumas sociedades, em sua maioria no oriente, onde houve uma espécie de domínio social dos mais velhos. Essa era reconhecida, pelos que a exaltavam, como uma fase da sabedoria. Até o século XIX, o ente idoso detinha uma espécie de valor simbólico para tais culturas. De acordo com Eliane Blessmann (2004): Na sociedade moderna predomina a racionalidade e o trabalho produtivo e criativo próprio para os mais jovens, então a velhice passa a ser reconhecida pela decadência física e ausência de papéis sociais. Esta é uma imagem negativa da velhice com a qual convivemos no século XX, pautada, sobretudo na fragilidade biopsíquica e na decadência, resultante da perda do status, de poder econômico e social, quando o mundo passa a ser dominado por quem detém a ciência e a técnica, ou seja, os mais jovens (BLESSMANN, 2004, p. 03).
O corpo envelhecido, segundo Xavier (2007) é aquele que vive plenamente o drama da velhice, sofre com as transformações do corpo, com a impossibilidade de realização dos desejos sexuais, haja vista que, pela idade, julga-se que eles já não deveriam existir. Prevalece a ideia de proximidade do fim da vida com a morte. É a noção de velhice como decadência que aflige a Sra. Xavier. A imagem de seu corpo, debilitado pela ação do tempo, a angustiava, sobretudo porque, em seu pensamento, prevalecia a ideia de não ter sido ninguém e de nunca ter feito nada de extraordinário ou de próprio, pois só era possível ver nela a educação e a disciplina que a controlaram por toda vida. “Por fora – viu no espelho – ela era uma coisa seca como um figo seco. Mas por dentro não era esturricada. Pelo contrário. Parecia por dentro uma gengiva úmida, mole assim como gengiva desdentada” (LISPECTOR, 1997, p. 17). Tal visão de si reflete a frustração das mulheres idosas que não atendem mais aos estereótipos de beleza: [...] o corpo, produzido pela mídia, corrobora esses princípios, transformando a vida das mulheres idosas numa eterna frustração. Ao vincular sua auto-estima aos padrões impostos, perdem-se de si próprias e mergulham no vazio existencial (XAVIER, 2007, p. 85).
É, pois, na velhice que a imagem corporal que cada um tem de si transforma-se mais drasticamente. Ocorre nessa fase uma dificuldade em aceitar-se pelo simples fato de se viver numa sociedade em que o mito da beleza e juventude é muito aclamado.
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O outro drama do corpo envelhecido apresentado por Xavier (2007) é a questão do desejo sexual ter perdurado até certa idade. A sexualidade, aqui, ainda é encarada como um tabu, a mulher idosa não consegue lidar com ela de modo natural, pois o fator sexual tornou-se algo que não lhe cabe. Mas tudo o que lhe acontecera ainda era preferível a sentir „aquilo‟. E aquilo veio com seus longos corredores sem saída. „Aquilo‟, agora sem nenhum pudor, era a fome dolorosa de suas entranhas, fome de ser possuída pelo inalcançável ídolo de televisão. Não perdia um só programa dele (LISPECTOR, 1997, p. 16).
Percebe-se a atitude de rejeição da personagem para com sua libido, a preferência pela fuga. Para a Sra. Xavier as velhas encontram-se fora de estação, sentiase viva, mas não se considerava alguém para senti-lo. Sua postura em relação a sexualidade do homem idoso era bem diferente, “[...] nos homens mais velhos bem vira olhares lúbricos. Mas nas velhas não” (LISPECTOR, 1997, p. 18). A atitude perante a sexualidade masculina diverge e muito em relação à feminina, já que sua virilidade é pouco ou quase nada questionada com a velhice e com os cabelos brancos, além disso a mulher é vista como um objeto sexual, o que se esvai com a velhice, pois seu corpo não atende mais aos padrões do desejo masculino, como revela Xavier (2007). O objeto de desejo da protagonista da narrativa é o cantor Roberto Carlos, alguém inatingível, pois a realização do desejo sexual não consiste em algo permitido ao corpo envelhecido. Assim a imagem do cantor levava-a para um mundo de sensualidade. Então quis ter sentimentos bonitos e românticos em relação à delicadeza de rosto de Roberto Carlos. Mas não conseguiu: a delicadeza dele apenas a levava a um corredor escuro de sensualidade. E a danação era a lascívia. Era fome baixa: ela queria comer a boca de Roberto Carlos (LISPECTOR, 1997, p. 18).
Observa-se nessa citação uma inversão de valores pela Sra. Xavier, ao menos no modo de lidar com o sexo, já que ela foge do ideal romântico geralmente atribuído à sexualidade feminina, e é representada pelo desejo carnal, desprezando a delicadeza, também elemento de inversão de valores, que compõe a característica do ídolo. A personagem em questão sentiu que o clímax de sua vida era Roberto Carlos, e nesse ápice de vida “entendeu que morreria, secretamente” (LISPECTOR, 1997, p. 19). A
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morte futura estava sempre acompanhada da imagem do cantor em torno dos desejos dela. Chegou a se questionar se “[...] era nojento beijar boca de velha?” (LISPECTOR, 1997, p. 19), frisando o preconceito para com a terceira idade. No clímax de sua vida, no ápice do desejo e cantando um dos sucessos de Roberto Carlos, a Sra. Jorge B. Xavier se suicida. A sra. Jorge B. Xavier em seus labirintos A Sra. Xavier demonstrou no conto estar destinada a se perder no labirinto, adentrando nele por diversas situações, no Maracanã, depois nas ruas da cidade. A entrada no labirinto a fazia pensar em sua vida, em como estava perdida e no quanto deveria se encontrar, mas para isso era preciso percorrer os caminhos confusos que a vida lhe oferecia. O mito do labirinto se entrelaça na vida dessa personagem clariceana, fazendo-a pensar na sua condição de ser humano e de mulher. Ana Melo (2007) define o labirinto como “uma construção arquitetônica complexa, obscura, aparentemente sem finalidade, com inumeráveis corredores, que conduzem a múltiplos quartos e a falsas portas” (MELO, 2007, p. 372). Esse espaço marcado pela complexidade representa um recomeçar constante, a possibilidade de perder-se e de sair à procura de um caminho novo. Tal construção foi vista pelo mundo e pela literatura de formas múltiplas, nos diferentes tempos. A ideia mais recorrente do uso do labirinto encontra-se no mito do minotauro1, o que torna recorrente no meio literário a alusão ao tema a partir desse mito. Passam a ser atribuídos aos labirintos a noção de defesa, tanto de algo muito precioso, sagrado quanto de territórios como afirma Jean Chevalier (1998). Sua estrutura física faz com que as pessoas se confundam, se percam, caracterizando-se num grande desafio humano. De acordo com André Peyrone (1998), ele se configuraria primeiramente numa imagem mental, e se concretizaria numa construção artificial. O teórico revela, ainda 1
O minotauro é fruto da união da Pasifae com um touro branco surgido do oceano. O touro, presente de Posídon, deveria ter sido sacrificado pelo Rei Minos de Creta, que fascinado pela beleza do animal não o fez. Assim, o Deus Posídon lançou uma castigo sobre Minos fazendo sua esposa se sentir atraída pelo touro, dessa relação nasceu Minotauro. Minos mandou construir o labirinto de Dédalo e prendeu lá o mostro com corpo de homem e cabeça de touro. MELLO, Ana Maria Lisboa de. Labirinto. In: BERND, Zilá (org.). Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas: DFMLA. Porto Alegre: Tomo editorial/Editora da Universidade, 2007.
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que a literatura se utilizou do labirinto de modos diferentes em cinco períodos da história, todos vinculados à condição humana. O primeiro momento liga-se à antiguidade, o segundo à idade média; em seguida tem a renascença e a época clássica, o último período corresponde à idade moderna. Nesses períodos, a imagem do labirinto variou de positiva a negativa, passando de prisão do amor a espaço que torna possível a realização amorosa. É importante salientar que a sua concepção sempre esteve ligada a algo espiritual, sagrado aos olhos humanos. Uma perspectiva de pensamento importante para pensar o labirinto que marca a trajetória da personagem, a Sra. Jorge B. Xavier, é apresentada por Chevalier (1998). Para ele o labirinto leva o homem ao próprio interior, onde habitaria o que há de mais misterioso na alma humana. Este interior só seria alcançado depois de percorridos os longos e tortuosos caminhos, encontrando-se assim a unidade, a identidade do ser que nele adentra. Outra obra clariceana que traz a noção de labirinto, segundo Ana Maria Mello (2007), é o romance A paixão segundo G.H., no qual há um percurso da protagonista G.H. tanto pelos espaços de sua casa quanto ao seu interior. Ela tinha a sensação de ter perdido algo e é a partir do encontro com a barata, representando um monstro, que acontece o processo de renovação epifânica. Acontece, aqui, uma “irrupção da consciência de que a vida é uma totalidade muito maior, exigindo uma ruptura com a ilusão do „eu‟” (MELLO, 2007, p. 375). Existem duas tendências em que se emprega a imagem do labirinto na literatura, como afirma Mello (2007). De certo modo, ambas as imagens podem ser atribuídas à personagem central de A procura de uma dignidade. A primeira noção liga-se ao amadurecimento dos que percorrem o labirinto. Trata-se da travessia de um percurso solitário que possibilita o contato consigo mesmo, com a sua própria consciência e que dá início a um processo de transformação. A Sra. Jorge B. Xavier entrou no subterrâneo do Maracanã e não sabia explicar como o fizera. O fato é que se perdera lá e que um caminho sempre levava a outro igual. Durante esse percurso, ela desistiu da conferência e passou a pensar na própria vida. Tentava seguir algumas pessoas que apareciam, mas essas logo sumiam pelos corredores, buscava a porta de saída e não a encontrava. A sua peregrinação lembra a
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impossibilidade de fuga que o labirinto reflete. “A Sra. Xavier era muito desatenta. Então, pois, não era no Maracanã o encontro, era apenas perto dali. No entanto o seu pequeno destino quisera-a perdida no labirinto” (LISPECTOR, 1997, p. 9). Há por parte da senhora uma intensa reflexão sobre a vida, sobre os acontecimentos, pois julgava não saber e nem conseguir explicar nada dela. Percebe que sempre esteve num labirinto e sente-se cansada pelo longo caminho sem saída que vinha percorrendo até então. O labirinto seria sua via crucis. Entendia que a impossibilidade de encontrar a saída implicava na necessidade de percorrer um caminho interminável, pensava ela, de autoconhecimento. Recebe ajuda de um homem, representando este o fio de Ariadne, e consegue sair da Maracanã. Pode-se observar que o homem continua a aparecer como um fio condutor de seus caminhos e a passagem para uma nova realidade não se efetua. A Sra. Xavier perdeu-se novamente nas ruas da cidade, pois o taxista não encontrava o caminho; este fato a faz relembrar do Maracanã e de quanto a sua vida estava envolta nesses caminhos confusos. Enfim, consegue chegar em casa, porém uma espécie de labirinto interno a persegue. Sente-se anônima e indigna-se com isso. Chegase à segunda noção de labirinto apresentada por Mello (2007): A segunda representação do labirinto surge por analogia à condição humana, vista como absurda. Viver é percorrer solitariamente o labirinto, sem porta de saída e sem nenhuma possibilidade de um ato heróico que coloque o ser humano acima dos demais seres ou que dê um significado especial à errância. O heroísmo é aceitar as condições resignadamente e esperar a única porta de saída possível, que é a morte (MELLO, 2007, p. 378).
Resignar-se foi o que sempre fez a Sra. Xavier, passou de forma dócil, tolerante por todos os caminhos que lhe foram permitidos. Era um ser que não chorava, não reclamava, o perfil ideal de mulher. A entrada no labirinto a fez buscar sua consciência, refletir sobre a vida, mas não fazer a passagem, tão ligada ao espiritualismo que permeia o mito. Pelo contrário, sempre retornou à condição de disciplina que a sociedade lhe impusera. Na impossibilidade de ser alguém, de viver um ato glorioso, a morte lhe aparece como uma saída válida do labirinto da vida.
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Referências BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. BLESSMANN, Eliane Jost. CORPOREIDADE E ENVELHECIMENTO: o significado do corpo na velhice. Estud. interdiscip. envelhec., Porto Alegre, v. 6, 2004. Disponível em:
http://www.seer.ufrgs.br/index.php/RevEnvelhecer/article/viewFile/4737/2661.
Acesso: 04 nov. 2009. CHEVALIER, Jean. Labirinto. In: ____. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). 12 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 35 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. GOMES, Renato Cordeiro. Apresentação – Errâncias, labirintos, mistérios. In: LISPECTOR, Clarice. Onde estivestes de noite. 8. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997. GOTLIB, Nádia Batella. Clarice. Uma vida que se conta. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1995. LISPECTOR, Clarice. Onde estivestes de noite. 8. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997. MELLO, Ana Maria Lisboa de. Labirinto. In: BERND, Zilá (Org.). Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas: DFMLA. Porto Alegre: Tomo editorial/Editora da Universidade, 2007. PEYRONIE, André. Labirinto. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários. 2 ed. Brasília: UNB; José Olympio, 1998. XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2007.
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O PAPEL DA REVISTA JOAQUIM NO CENÁRIO LITERÁRIO NACIONAL - DÉCADA DE 1940
Lincoln Raniere Porto Schwingel (UNICENTRO)
O presente trabalho visa investigar o papel da revista Joaquim para a construção dos ideais advindos da modernidade. O periódico, que surge em 1946 e dura até 1948, representa uma ruptura com a tradição paranista e a manifestação tardia do modernismo no Paraná. Criada por Dalton Trevisan, Joaquim reúne uma geração de artistas calejada pelas duras experiências da Segunda Guerra Mundial e do regime de Getúlio Vargas. Joaquim modifica o panorama artístico e intelectual do Paraná, negando o espírito provinciano e conservador da elite pensante local. As partes envolvidas no projeto não aceitam mais o ideal de arte pela arte, e reivindicam uma maior participação dos artistas em questões sociais. A busca pela liberdade apresenta uma consonância com os circuitos de pensadores nacionais, engajados no projeto de avanço rumo à modernidade. Abordar Joaquim implica deixar de lado o leitor comum e concentrar-se na crítica literária. Isso se deve por dois motivos principais. Primeiramente porque, embora o nome da revista remeta ao homem comum – o próprio slogan: Para todos os Joaquins do Brasil –, seu conteúdo tem um certo grau de dificuldade de compreensão para o público em geral, os temas abordados exigem do leitor um conhecimento prévio em literatura, teatro, artes plásticas, música, ciências humanas e sociais, etc. A circulação acaba sendo restrita ao leitor culto. Em segundo lugar, mesmo que Joaquim tivesse uma alta aceitabilidade entre o público em geral, ainda assim seria impossível ao pesquisador obter registros de receptividade. Os únicos registros ao alcance são do meio acadêmico e da imprensa da época.
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Joaquim foi uma revista dinâmica, que se construiu através do diálogo com os meios intelectuais regional e nacional. A recepção que cada volume da revista tinha nesses meios era determinante para a elaboração do volume seguinte. Por isso, não podemos ignorar o papel social que o periódico exerce sobre a sociedade. Nas sociedades civilizadas a criação é eminentemente relação entre grupos criadores e grupos receptores de vários tipos. Isto quer dizer que o escritor, numa determinada sociedade, é apenas o indivíduo capaz de exprimir sua originalidade (que o delimita e o especifica entre todos), mas alguém desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores. A matéria e a forma de sua obra dependerão em parte da tensão entre as veleidades profundas e a consonância ao meio, caracterizando um diálogo mais ou menos vivo entre criador e público. (CANDIDO, 2006, p.83-84)
Essa reflexão contrapõe a ideia tradicional de que apenas o meio age sobre o artista. O processo é mais dinâmico, a ação é exercida tanto sobre o público quanto sobre o autor. E ele também se dinamiza historicamente em relação ao momento da criação. Os primeiros registros de Joaquim na imprensa aparecem no dia 24/04/1946. O Diário do Paraná traz uma pequena nota anunciando o surgimento de uma nova revista “mais ou menos irreverente” (Diário do Paraná, 23 de abril de 1946, p.2); criada por “jovens idealistas que pretendem criar um novo ambiente literário nestas plagas provincianas”, a revista seria, segundo a nota, a satisfação de uma necessidade de Curitiba em ter revistas artísticas. Nesta mesma data O Dia reproduz uma entrevista publicada na primeira edição de Joaquim, na qual Erasmo Pilotto entrevista Poty Lazzarotto. Em Joaquim havia uma seção com o título Oh! as idéias da província..., que trazia comentários dos principais jornais de Curitiba, fragmentos de textos que expressavam ideias consideradas ultrapassadas ou reacionárias; o objetivo era o de ridicularizar. Como o comentário do Barão de Serro azul na Gazeta do Povo em que ele afirma: “O Senhor Valfrido Piloto é o maior prosador paranaense.” (Joaquim, vol.2, p.5). Em resposta, Valfrido Piloto publica, também na Gazeta do Povo, no dia 27/04/1946, uma carta intitulada: Joaquim, um pobre diabo. A carta é direcionada a seu
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primo Erasmo Pilotto, um dos principais organizadores de Joaquim. Valfrido ironiza a situação: “essa coisa de 'melhor', de 'maior', de 'grande', de 'inconfundível', é a mais gozada comédia que o diabo inventou” (PILOTO, Gazeta do Povo, 27 de abril de 1946, p.3). No segundo volume de Joaquim, Dalton Trevisan publica um artigo polêmico desde o título: Emiliano, poeta medíocre. Trevisan critica a excessiva devoção que as letras paranaenses têm com a poesia de Emiliano Perneta, que, segundo o idealizador de Joaquim, o que era tratado como poesia simbolista não passava de fórmula acadêmica. Para Trevisan, o único poeta brasileiro que contribuiu para o simbolismo universal foi Cruz e Sousa. A mística em torno da figura de Emiliano é encarada como um equívoco: Emiliano Perneta foi uma vítima da província, em vida e na morte. Em vida, a província não permitiu que ele fosse o grande poeta que podia ser, e, na morte, o cultua como sendo o poeta que não foi. Há, no Paraná, por razões sentimentais, a mística de Emiliano, que não tem raízes na admiração dos moços; eles não a aceitam e repudiam. Não é em vão que a nossa geração, com sua mentalidade formada entre o suor, o sangue e as lágrimas de duas gerações mundiais, sofrendo a sua inquietude tremenda, a provar experiências decisivas na própria carne, procedeu como um motivo de sobrevivência a subversão de todos os valores. (TREVISAN, Joaquim, vol.2, p. 16)
A data em que o artigo foi publicado coincide com o período em que a Editora Gerpa lança o livro Prosa, uma coletânea de textos de Emiliano Perneta. A obra foi elogiada pelos jornais paranaenses, como na edição 187 do Diário do Paraná, no dia 02 de junho de 1946. Dalton Trevisan, ao criticar Emiliano, estava andando na contramão da crítica literária. Essa postura foi encarada como agressiva e inconsequente por parte da imprensa conservadora. No dia 29 de janeiro de 1947, O Dia traz uma nota criticando a postura de Trevisan: Ninguém aqui jamais agrediu JOAQUIM. Discutiu JOAQUIM. Ridicularizou JOAQUIM. JOAQUIM é quem tem investido, até aqui não contra os velhos mas contra os mortos!
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Para o intrépido autor de SONATA AO LUAR, precisamos arrasar os nossos desincarnados. Daí suas investidas contra Emiliano Perneta, Andersen e naturalmente contra outros. Parece estar o ardente moço a perder seu tempo nessas agressões contra os que já passaram para a outra margem, principalmente quando um deles é Alfredo Andersen e produziu cerca de 2000 obras, espalhadas pelo mundo e que nem bombas atomicas serão capazes de destruir! (O Dia, 29 de janeiro de 1947, p. 4)
Após a publicação acima não houve mais referências a Joaquim no jornal O Dia. A Gazeta do Povo, por sua vez, anunciava sempre em tom elogioso cada nova edição da revista. Ao analisar as publicações referentes a Joaquim, a impressão que se tem é de que havia maior aceitação por parte da Gazeta em relação aos outros dois jornais. A proximidade é evidente pois havia nos dois periódicos (Joaquim e Gazeta do Povo) colaboradores em comum, com destaque para Wilson Martins e Temístocles Linhares. Embora seja uma produção coletiva, não dá para analisar a trajetória de Joaquim desconsiderando a de Dalton Trevisan. Wilson Martins publica, na Gazeta do Povo, o artigo Primeiras considerações sobre o contista Dalton Trevisan no qual destaca o humanismo presente nos textos do jovem contista: A humanidade nos contos do sr. Dalton Trevisan é a dos pequenos e humildes, quase sempre um pouco frustrados: […] os suicidas e assassinos, os que realizam o mal e o bem como uma imposição de que não se podem livrar, os condenados pela doença, os recalcados... É notável a fascinação que essa pobre fauna exerce sôbre o contista: e tudo exclusiva e rigorosamente debaixo de um interêsse de análise psicológica, de conhecimento do homem. (MARTINS, Gazeta do Povo, 5 de agosto de 1948, p. 7)
Joaquim também repercute em outros estados. Artistas e críticos nacionais publicam diversas críticas à revista. Muitos destes textos eram publicados na própria Joaquim. Reuni adiante alguns desses artigos e cartas que nos ajudam a ter um panorama da receptividade da revista nos centros artísticos nacionais. Carlos Drummond de Andrade é o primeiro a se manifestar em uma carta dirigida a Dalton Trevisan, na qual ele comenta sobre o primeiro volume de Joaquim. Eis a carta na íntegra: RIO, 5 maio 1946.
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Dalton Trevisan: Estou recebendo o primeiro volume de “Joaquim”. Ainda bem que continuam a surgir no Brasil as revistas dos moços. Porque os velhos e os simplesmente maduros estão calados, e na sua plenitude parece que desistiram mesmo dessa tarefa que tôda geração se impõe quando está nascendo: reformar a vida, ou simplesmente a literatura (deixar de conseguí-lo não tem importância; o lamentável é desistir de tentá-lo). Encontro em vocês do Paraná êsse fermento da “coisa nova” que é tão precioso e passa tão rápido. Se dêle sairá ou não sairá uma expressão diferente, o tempo é que vai dizer, mas também com o tempo, a aplicação e a capacidade de pesquisa, de teimosia, de desinterêsse de vocês, qualidades de que a gente se desfaz tão depressa... em nome da obrigação de viver. Que delícia uma revista cuja redação é na rua Emiliano Perneta, 476, e que promete publicar em seu segundo número um artigo sob o título “Emiliano, poeta medíocre”! Nosso poder de admiração vai se tornando tão familiar e nosso poder de destruição tão débil, que a insubordinação dos moços, neste ano de 46, é quase um espanto. Mas espero que vocês nos darão sensações mais duradouras do que o espanto. O caso de Poty está reclamando outros casos irmão na poesia e na ficção. Pessoalmente, tenho esperanças no Paraná. Mandem-me sempre a revista e recebam um abraço de (a) CARLOS DRUMMON DE ANDRADE (ANDRADE, Joaquim, vol. 2, p. 17)
Antonio Candido publica, em julho de 46, um artigo no Diários Associados um artigo destacando três revistas produzidas por jovens artistas da época: Magog (Rio de Janeiro), Edifício (Belo Horizonte) e Joaquim (Curitiba). Ele classifica Magog como a mais “sofisticada” das três, Edifício a mais “desencorajada e indecisa” e Joaquim a mais “irreverente e heroica”. A explicação para tais adjetivos é a de que os cariocas já haviam conquistado tudo para os moços, podendo dar-se ao luxo de maior sofisticação. No caso dos mineiros, segundo Candido, alguma coisa já tinha sido conquistada, mas havia ainda o que fazer. Já para os paranaenses de Joaquim encontravam-se em um lugar onde nada havia sido conquistado e por isso a necessidade de “educar o gosto dos leitores (CANDIDO, Joaquim, vol. 3, p. 11). Imagino daqui o santo impeto dos jovens paranaenses, empenhados em divulgar ideias modernas sobre o teatro, pintura, música, poesia, sem esquecer a política. Pela energia de sua investida, pressinto a
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vastidão da inércia local, o academismo frio, dessorado, reduzido a poesia de sobremesa pôr-do-sol que impera no gosto. Aliás, o Paraná tem uma “amende-honorable” a fazer para a a literatura nacional. De lá, com efeito, partiu um dos movimentos mais medíocres que a tem infestado, apadrinhado por Nestor Vitor, Rocha Pombo, Emiliano Perneta e logo acolitado por uma série de então jovens poetas e escritores, logo tornados paranaenses honorários quando não o eram de nascimento. O seu vago espiritualismo, o seu desfibramento criador, unido, aliás, às melhores intenções e, geralmente, aos melhores caracteres pessoais, deram cabo de nosso pobre simbolismo nacional e, felizmente, enfraqueceram os arrancos néocatólicos e reacionários a que se atrelou a maioria daqueles excelentes rapazes. […] Os jovens de “JOAQUIM” […] me parecem o oposto dessa literatura raio-de-luar. Têm músculos para a luta e olhos abertos para a vida. (Ibidem, p. 11)
Tristão de Ataíde também ressalta a importância de Magog, Edifício e Joaquim no novo cenário artístico proporcionado pelo espírito do pós-guerra. Um trecho de um artigo seu, publicado no jornal A Manhã é reproduzido em Joaquim: ...tudo indica que há uma nova geração ávida de afirmação, neste após guerra, que está sofrendo com a lenta eclosão de uma nova ordem social. No plano econômico é a passagem do capital ao trabalho, como fundamento da riqueza. No plano político, é a passagem da ditadura pessoal à democracia social. No plano estético, a procura de uma nova liberdade e também paradoxalmente de uma nova disciplina. Liberdade nos tema. Disciplina na expressão. É nas revistas de novos que podemos encontrar esses sinais. Edifício, Magog, Joaquim. Otimismo marxista. Pessimismo místico. Persistência suprarealista. Alguns traços entre outros, que exigiriam longas explicações. (ATAÍDE, Joaquim, vol. 4, p. 12) Álvaro Lins, assim como Carlos Drummond de Andrade, escreve uma carta elogiosa para a organização da revista destinada a Dalton Trevisan e Erasmo Pilotto: Tenho recebido o Joaquim, a sugestiva revista que vocês publicam aí no Paraná; se a palavra “mensagem” não estivesse meio gasta, eu a empregaria aqui para exprimir que Joaquim é a mensagem da nova geração, cujo primeiro sinal de vida literária normalmente é a publicação de uma revista, de uma revista realmente moderna e inconformada, de um inconformismo que se em alguns casos pode vir a ser abatido ou desbastado pela vida, em outros casos é sinceramente um roteiro, um caráter firme e irredutível. (LINS, Joaquim, vol. 4, p. 17)
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Tasso da Silveira, através do jornal A Manhã, elogia o espírito adolescente de Joaquim, embora repudie os ataques feitos contra antigos escritores paranaenses. Em algum de seus números sucessivos Joaquim publicou certas coisas que não poderia considerar agradáveis. O ataque a Emiliano Perneta, por exemplo, levado a efeito por simples prurido de irreverência, tão natural nos moços, mas que os pulhas da crítica esquerdista receberam como sintoma expressivo de um novo gênio criador no Paraná. Esse ataque, no entanto, era firmado por Dalton Trevisan. A um poeta da qualidade de Trevisan perdoam-se impertinências. O autor de “Sonata ao Luar”, novela tão densa de poesia, e que li com o mais alto encantamento, verá mais tarde como seu gesto foi pobre de sentido. (SILVEIRA, Joaquim, vol. 8, p. 13)
José Lins do Rego enxerga nos jovens envolvidos com Joaquim capacidade crítica e amadurecimento de uma geração que conseguiu superar os dramas do romantismo, e que agora busca uma solução racional. Eu, que sou do tempo das descobertas, à louca, das sondagens sem instrumentos de precisão, tenho quase que medo destes meninos que andam com “radar” no senso crítico. E, porque não negar, temo-os quase como se fôssem eles os mais velhos, os que sabem os segredos das coisas, os que promovem a revisão dos acontecimentos e dos juizos. […] Joaquim não brinca com a vida. Joaquim quer rever, situar, corrigir. […] Joaquim é assim o homem que calcula a resistência dos materiais, o que usa os números, as palavras, a água, a terra e as pedras, medindo e pesando com a sensibilidade de um aparelho diabólico. Joaquim é a inteligência. (REGO, vol. 15, p. 9)
De todas as citações acima, depreende-se a ideia comum de que Joaquim preenche uma necessidade de inovação artística e que ela representa o amadurecimento cultural da província. Se essa era a intenção inicial de Trevisan e seus colaboradores, pouco importa, o que nos é relevante é a forma como o periódico tem sido lido e interpretado. É possível detectar que a reação da crítica paranaense foi diferente de outros centros do país. Primeiro porque Joaquim rompe com o conservadorismo tão presente no meios artístico e intelectual de Curitiba, refletido nos jornais e revistas da região. Além disso, as provocações a autores paranistas, como Emiliano Perneta, é encarada como uma afronta aos costumes e às tradições da arte paranaense.
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Na crítica nacional a reação é outra. Em uma geração pós-guerra, que acabava de sair de uma tradição nacionalista imposta pelo regime de Getúlio Vargas, a ideia de que novos centros do país passassem a protagonizar os caminhos da arte e da cultura era pertinente aos anseios dos artistas da época. Joaquim representa, sobretudo, os ideais da Terceira Geração Modernista: a liberdade nas artes, o descontentamento com a ideologia dominante, o ideal revolucionário, a atitude crítica em detrimento da atitude inventiva e, acima de tudo, o comprometimento do artista com questões sociais. Referências CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9º ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006. Diário do Paraná. Curitiba, 01 abril de 1946 a 31 dezembro de 1947. Gazeta do Povo. Curitiba, 01 abril de 1946 a 31 dezembro de 1948. Joaquim. Nº 1-21. Curitiba, abril de 1946 a dezembro de 1948. O Dia. Curitiba, 01 abril de 1946 a 31 dezembro de 1948.
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A METALINGUAGEM DA FÁBULA: UMA LEITURA DE FÁBULAS DE MONTEIRO LOBATO Loide Nascimento de Souza (PG-UNESP/Assis) Narrar uma fábula ou discorrer sobre suas características específicas são práticas que fazem parte da competência de muitos falantes, sejam eles escolarizados ou não, especialistas no assunto ou não. Esse fenômeno talvez possa ser explicado pela popularidade do gênero, cuja presença pode ser constatada nos mais variados ambientes sociais. A fábula também pode ser apreciada por pessoas de diferentes faixas etárias e esteve presente na situação primitiva de narração oral de histórias de diversos povos. Por essa razão, ela pode ser considerada, segundo Dezotti (2003, p. 21), ― um modo universal de construção discursiva‖. Embora seja versátil, a fábula traz, no entanto, uma essência inconfundível que a distingue de outros gêneros. Grosso modo, ela é reconhecida por ser uma narrativa breve produzida com finalidade ética, cujas personagens são, na maioria das vezes, animais. Ainda que a expressão ― fábula‖ possa trazer alguma variação de sentido de acordo com o contexto em que ela se insere, o seu sentido mais popular constitui-se como uma herança da tradição esópica. E é justamente pelos caminhos dessa tradição que ela se legitima como gênero literário autônomo e garante a sua permanência. Mas para Alceu Dias Lima (1984), a popularidade e a subsistência da fábula advêm de seu caráter discursivo e de seu princípio estrutural sólido. O reconhecimento do primeiro, sua discursividade, contribui para que o leitor não observe apenas a substância de conteúdo da fábula, mas vislumbre as marcas da presença do enunciador, aquele que narra a fábula para supostos ouvintes. Reconhecido o aspecto discursivo, consequentemente será possível identificar a interligação entre história e moral que se estabelece por meio do discurso metalinguístico, o qual, em sua forma mais simples, se manifesta em expressões como ― Moral da história‖, ― A fábula mostra‖, ― A fábula se aplica‖, entre outras. Portanto, estruturalmente, segundo Lima, a fábula é formada por três discursos mínimos: o figurativo (história), o metalinguístico, e o temático (moral). Esta forma da fábula está consolidada de tal forma, que o gênero pode ser reconhecido
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em qualquer contexto ou discurso, pela presença de qualquer uma das três partes que o constituem. Por essa razão, conclui Lima (2003, p. 13), a presença da fábula é tão ― verificável nos hábitos discursivos das pessoas em todos os tempos e nos mais diversos lugares e ocasiões‖. Como é possível notar, a fábula tem um nítido aspecto didático que a encaminha para o alcance de um objetivo imediato. Mas, no caso de Monteiro Lobato (1882-1948), não foi somente a utilidade da fábula que o fez lançar mão do gênero. Diante da escassez de obras destinadas para a criança no começo do século XX, o autor realiza um trabalho de investigação e encontra as respostas para o problema no próprio ambiente doméstico. Ele relata o episódio na famosa carta que escreve ao amigo Godofredo Rangel em 1916: Ando com várias ideias. Uma: vestir á nacional as velhas fabulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisa para crianças. Veiu-me diante da atenção curiosa com que meus pequenos ouvem as fabulas que Purezinha lhes conta... Guardam-nas de memoria e vão reconta-las aos amigos — sem, entretanto, prestarem nenhuma atenção á moralidade, como é natural. A moralidade nos fica no subconciente para ir se revelando mais tarde, á medida que progredimos em compreensão. [...]. (LOBATO, 1948, t. 2, p.104, carta escrita a Godofredo Rangel em 8/9/1916)
Fruto de um projeto longamente pensado, somente em 1921 é que Lobato publica Fábulas de Narizinho, contendo 29 fábulas. Pelo título atribuído, tornava-se evidente o direcionamento para um público específico e o sucesso foi garantido. O projeto de reescritura das fábulas, no entanto, ocupou quase toda a carreira de Lobato como escritor para crianças. A cada nova edição que lançava, o escritor realizava modificações na organização e na quantidade dos textos; também fazia alterações no vocabulário e no título das fábulas e incrementava as ilustrações. Em 1943, entretanto, Monteiro Lobato opera uma modificação estrutural em suas fábulas e imprime-lhes a marca registrada de sua originalidade. Após a fábula propriamente dita, o autor acrescenta um segundo espaço narrativo vinculado ao primeiro espaço: trata-se dos comentários das personagens do Sítio do Picapau Amarelo. Por meio desse artifício, o autor produz um duplo efeito: revela o caráter enunciativo do texto e simula o ambiente primitivo de narração oral da fábula. É exatamente nos comentários, que
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tomamos conhecimento da identidade da narradora e do grupo de ouvintes que com ela interagem. As fábulas de Lobato, portanto, são narradas por Dona Benta a uma plateia fixa de ouvintes: seus netos Narizinho e Pedrinho, os bonecos falantes Emília e Visconde e, eventualmente, tia Nastácia. São muitos os questionamentos levantados pelas personagens do Sítio nos comentários das fábulas. Tendo em vista o caráter didático do gênero, era de se esperar que o principal assunto das discussões fosse a temática da moral. No entanto, o que se verifica já, de início, é uma tendência avaliativa expressa na primeira participação dos ouvintes. Após ouvir a narração da primeira fábula, Narizinho intervém: ― — Esta fábula está errada [...]‖ (LOBATO, 1973, p. 12).1 É também a mesma Narizinho quem classifica a fábula ― A coruja e a águia‖ de ― a rainha das fábulas‖ (p. 12) e atribui conceito máximo para a fábula ― As duas cachorras‖: ― Esta fábula merece grau dez‖ (p. 37). Já a fábula ― O lobo e o cordeiro‖, ocupa o topo da fama, segundo Dona Benta: ― Estamos diante da fábula mais famosa de todas — declarou Dona Benta‖ (p. 42). Ao lado desse exercício de avaliação que, como se verifica, é realizado inclusive pelas crianças, as discussões realizadas no espaço do ouvinte também giram em torno de outros assuntos, como: arte, literatura, cinema, língua, gramática e fatos do cotidiano. Mas cumpre salientar que Lobato inova, também, quando inclui, entre os tópicos dos debates pós-fábula, questões relacionadas à especificidade do gênero. Se, para Alceu Dias Lima, como visto há alguns parágrafos, a popularidade da fábula justifica-se pela solidez de seu princípio estrutural, é possível deduzir que esse mesmo fator favorece a teorização do gênero pelos ouvintes e comentaristas das fábulas narradas por Dona Benta. Os mesmos picapauenses que ousam avaliar a fábula, também são capazes de discutir a pertinência de suas propriedades. Quanto a isso, vale lembrar que as fábulas são narradas do ponto de vista da criança e, nesse sentido, conclui-se que, para Lobato, a fábula é tão popular que, até mesmo, as crianças são capazes de assumir um ponto de vista metalinguístico em relação ao gênero em suas análises. Considerando justamente a forma da fábula proposta por Lima (1984), entendese que o discurso metalinguístico estabelece a conexão entre história e moral.
Como serão muitas as referências, nas próximas citações dessa mesma obra será informado apenas o número da página. A bibliografia completa, como é de praxe, encontra-se no final do texto. 1
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Entretanto, na forma tradicional, aquele discurso estaria restrito apenas à função de interligar os discursos figurativo e temático e ― escamotear‖ a presença de um narrador. Em Lobato, entretanto, ele ganha uma nova configuração. Em primeiro lugar, a porção do enunciado metalinguístico ― A fábula mostra‖ e suas variações são substituídas pelo recurso semiótico do itálico. Em ― A cigarra e as formigas‖, por exemplo, logo após o desfecho da história (ou resultado), lê-se a seguinte moral: ― Os artistas — poetas, pintores, músicos — são as cigarras da humanidade‖ (p. 12). Por outro lado, os comentários narrados no segundo espaço amplificam o discurso metalinguístico fabular quando tematizam as características do próprio gênero fábula. Além disso, desnudam ainda mais a natureza discursiva da fábula ao colocar em cena os atores da enunciação, que antes pareciam estar camuflados pelo desenvolvimento natural da narração, como ocorre em outros gêneros da literatura, como o romance, por exemplo. Em Fábulas de Lobato, portanto, no desenrolar dos comentários pós-fábula, há uma extensão do que se pode chamar de discurso metafabulístico e, nele, é possível verificar a concepção específica do gênero defendida pelas personagens do Sítio. Tratando-se da forma tradicional de transcrição do discurso metalinguístico como analisa Lima, vale frisar que algumas fábulas de Lobato o apresentam embutido em meio aos comentários dos ouvintes. Em ― A coruja e a águia‖, por exemplo, Dona Benta afirma: ― E essa fábula se aplica a [...]‖ ( p. 12). Em ― Mal maior‖, novamente Dona Benta afirma: ― O que a fábula quer dizer é que [...]‖ (p. 52). Tanto num caso como no outro, as expressões destacadas poderiam estar situadas na posição introdutória do epimítio (moral após a fábula). Mas no que se refere às discussões específicas relacionadas à metalinguagem do gênero, o primeiro tópico a ser debatido pelos ouvintes das fábulas de Lobato é a questão do pseudocientificismo das histórias. Historicamente, este sempre foi um dos pontos de maior polêmica entre os estudiosos que se dedicavam a analisar a natureza da fábula. Movidos pelo racionalismo dominante no século XVIII, pensadores como Rousseau questionaram duramente o descompromisso com a verdade científica existente nos textos fabulares. No entanto, o reconhecimento da fábula como gênero literário ajuda a superar o dilema. Além disso, a sua própria constituição interna apresenta a dualidade real versus ficção. Enquanto o plano da história (discurso
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figurativo) situa-se na fronteira do imaginário e dispensa o rigor da ciência, o plano da moral (discurso temático) está relacionado ao plano real das relações humanas. Todavia, embora sejam diferentes, os dois discursos se autocomplementam para formar a unidade da fábula. Conforme antecipa o parágrafo anterior, nos comentários, a primeira referência a aspectos característicos da fábula põe em foco a questão da falsidade científica. Assim que Dona Benta conclui a narração de ― A cigarra e as formigas‖, Narizinho faz o seguinte comentário: ― — Esta fábula está errada — gritou Narizinho. Vovó nos leu naquele livro de Maeterlink sobre a vida das formigas — e lá a gente vê que as formigas são os únicos insetos caridosos que existem. Formiga má como essa nunca houve‖ (p.12). Dona Benta, por sua vez, inaugura o seu segundo papel, o de comentarista, para explicar a diferença entre o texto do dramaturgo Maurice Maeterlink e o texto da fábula: Dona Benta explicou que as fábulas não eram lições de História Natural, mas de Moral. — E tanto é assim — disse ela — que nas fábulas os animais falam e na realidade eles não falam. (p. 12)
A explicação de Dona Benta focaliza justamente a natureza inventiva e ficcional da fábula que, por isso mesmo, permite a inclusão de episódios irreais ou impossíveis de serem observados na realidade. Também na fábula ― O ratinho, o gato e o galo‖, quando Emília estranha o fato de um rato não conseguir farejar o cheiro de um gato, um de seus instintos mais primitivos, Dona Benta, agora acompanhada por Narizinho, resolve a questão: Dona Benta explicou que os fabulistas não têm o rigor dos naturalistas e muitas vêzes torcem as coisas para que a fábula saia certa. — Boa moda! — exclamou Emília. Errar dum lado para acertar do outro... Narizinho disse que os poetas usam muito êsse processo, chamado ― licença poética.‖ Eles sacrificam a verdade à rima. Os fabulistas também são poetas ao seu modo. (p. 36)
O pseudocientificismo da fábula, entretanto, também se explica em função de sua origem primitiva e oral. Embora não trate o tema neste sentido, Lobato, por meio de
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suas personagens, aborda a origem e a permanência do gênero ao longo dos séculos. Em ― O corvo e o pavão‖, questionada por Narizinho ao concluir a fábula com a moral: ― não há beleza sem senão‖ (p. 31), Dona Benta esclarece:
senão?
— Mas é verdade, vovó, que não há mesmo beleza sem
— A fábula diz que não há e as fábulas sabem... — São sabidíssimas, sim! — continuou Emília. E a dos filhos da coruja é a mais sabida de tôdas. Quem é que andou inventando as fábulas, Dona Benta? Foram os animais mesmo? Dona Benta riu-se. — Não Emília. Quem inventou a fábula foi o povo e os escritores as foram aperfeiçoando. A sabedoria que há nas fábulas é a mesma sabedoria do povo, adquirida à fôrça de experiências. (p. 31)
Como se vê, enquanto Emília supõe uma origem completamente ilógica para a fábula, Dona Benta sinaliza a sua origem popular e a veiculação de conhecimentos adquiridos por meio das experiências cotidianas. Assim, por mais que o registro escrito e o ― aperfeiçoamento‖ de inúmeros escritores tenham garantido a expansão e a atualização da fábula, ela sempre guardará resquícios de sua primitividade. Certamente, por isso, muitas fábulas, trazem pensamentos contraditórios ou que contemplam apenas uma faceta da realidade. Em ― Os dois pombinhos‖, os ouvintes discutem exatamente essa contradição. Diante da moral ― Boa romaria faz quem em casa fica em paz‖ (p. 36), Pedrinho e Emília, coerentes com seu histórico de aventuras, acreditam haver possibilidades mais interessantes para a conclusão temática. E é, então, que a narradora elucida o problema da dubiedade de alguns ensinamentos veiculados por alguns provérbios que, em Lobato, desempenham a função de moral: Dona Benta explicou que a sabedoria popular é uma sabedoria de dois bicos. Muitos ditados são contraditórios. — Há um que diz: ― Quem espera sempre alcança‖ e outro diz: ― Quem espera desespera.‖ Conforme o caso, a gente escolhe um ou outro – e quem ouve elogia a sabedoria da sabedoria popular. (p. 36).
Há, no entanto, ainda outra explicação para a parcialidade dos ensinamentos da fábula. O motivo seria a sua breve extensão. Por ser um texto curto, não apresenta o detalhamento dos fatos e nem o aprofundamento dos temas. Quanto a isso, ressalte-se
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que esta é mais uma das características iminentes da fábula, responsável por praticamente garantir a sua identidade. Os comentários da fábula ― Mal maior‖, que reprisa os ensinamentos de ― A rã sábia‖, apresentam uma discussão sobre essa regra. Diante de uma moral que estimula os ouvintes do Sítio a respeitar a ordem do mundo, mantendo-o equilibrado como está, Emília refuta o ensinamento e diz: ― [...] As coisas não são tão simples como as fábulas querem [...]‖ (p. 52). Dona Benta, então, novamente intervém para explicar e cumprir o papel de mediadora dos debates: Tôdas as coisas têm modos, ou medidas. Mas as fábulas não podem expor todos os modos das coisas — só expõem um, o principal, ou o mais freqüente. — Por que não podem? — Porque ficariam compridas demais. Virariam tratados de filosofia. (p. 52)
Portanto, para Lobato (via Dona Benta), assim como defendia Lessing (Todorov, 1980), a coerência interna da obra é uma das regras formais do gênero. No caso da fábula, mais do que abranger a totalidade do tema, importa o equilíbrio de seus elementos internos que se sustentam a partir da brevidade da narrativa. Aliás, este é também um dos atributos valorizados pela turma do Sítio. Ao concluir a sua participação, no final da sessão de fábulas, Pedrinho diz: ― Concluo, vovó, que as fábulas, mesmo quando não valem grande coisa, têm sempre um mérito: são curtinhas‖ (p. 54). No que se refere ao surgimento da fábula, como aqui já fora abordado, não é difícil que se reconheça a sua antiguidade e filiação a Esopo. No entanto, esse mesmo consenso pode fortalecer a ideia de que a fábula deve ser reescrita ou atualizada, mas nunca produzida. Quanto a isso, depois colocar em pauta a origem popular do gênero em ― O corvo e o pavão‖, em ― O cavalo e as mutucas‖, Lobato desmistifica a ideia da criação de fábula, mostrando que ela pode surgir da observação de fatos corriqueiros da vida cotidiana. Quando termina a narração da história, Dona Benta ouve as interrogações de Pedrinho para as quais dá as seguintes respostas:
Esopo?
— De quem é essa fábula, vovó? De Mr. de La Fontaine ou de
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— De nenhum dos dois, meu filho. É minha... — Sua?... Pois a senhora também é fabulista? — Às vêzes... Esta fábula me ocorreu no dia em que o compadre estêve aqui montado naquele pampa. Êle não apeou. E enquanto falava ia chicoteando as mutucas gordas, só as gordas. Ao ver aquilo, a fábula formou-se em minha cabeça. (p.35)
Em ― O jabuti e a peúva‖, Pedrinho novamente descobre a autoria de Dona Benta que, por sua vez, dá o passo-a-passo de sua estratégia na criação de fábulas: — Essa fábula está com cara de ser sua, vovó — disse Pedrinho. Eu conheço o seu estilo. — E é, meu filho. Inventei-a neste momento, e sabe por quê? Por que me lembrei daquela peúva caída lá no pasto e dum jabuti que estava escondido debaixo dela. Sei quanto dura a madeira da peúva e sei quanto vive um jabuti — e a fábula formou-se em minha cabeça. E tôdas as fábulas foram vindo assim. Uma associação de idéias sugere as històrinhas. (p. 47)
Portanto, para um texto que frequentemente é classificado como simples, Monteiro Lobato tenta estabelecer a simplicidade de sua criação. Bastam a observação do fato e a ― associação das ideias‖para que a fábula ― forme-se na cabeça‖. Nesse sentido, se é comum a retomada dos textos dos grandes fabulistas da tradição, como Esopo e La Fontaine, também é natural a produção de novos textos. Assim, pelo viés da focalização da metalinguagem, é possível observar que o autor promove a internalização das regras do gênero pelos ouvintes picapauenses e, em consequência, pode atingir os seus leitores virtuais. Tratando-se da simplicidade da criação da fábula segundo Lobato e da internalização de suas regras, a atitude de Emília, como é de seu perfil, será mais irreverente e, talvez, mais contundente que a de Dona Benta. Como a narradora, ela também se arrisca no ofício de criar fábulas. Em ― O touro e as rãs‖, perante um questionamento de Narizinho sobre a origem da expressão ― pagar o pato‖, Emília encontra uma resposta marcada pelo seu habitual nonsense: — Pagar o pato! Donde viria essa expressão? — Eu sei — berrou Emília. Veio duma fabulazinha que vou escrever. ― Dois fortes é um fraco foram a um restaurante
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comer um pato assado. Os dois fortes comeram todo o pato e deram a conta para o fraco pagar...‖ (p. 20)
Uma rápida análise da ― fábula de Emília‖ permite constatar que ela traz elementos que se situam na essência do gênero: a brevidade, o contraste das personagens e a desvantagem do mais fraco. No limite da ficção, certamente por ter sido bem sucedida na primeira experiência, Emília promete escrever outras fábulas. Em ― O corvo e o pavão‖, ao ouvir Dona Benta dirigir um elogio a Narizinho, a boneca ― torceu o nariz. Depois prometeu escrever uma fábula com o título: ‗Os Netos da Coruja‘‖ (p. 31). Já em ― O lobo velho‖, reprova o comportamento traidor da raposa e, como forma de contestar o tradicional sucesso dessa personagem na trajetória da fábula esópica, promete escrever uma história com desfecho diferente: ― — Isso é verdade. Para uma rapôsa dessas, só tiro na orelha. Vou fazer uma fábula em que a raposa, em vez de sair ganhando, perde. Uma fábula assim.... /E começou inventar a fábula da ‗raposa que levou na cabeça‘‖ (p. 41). Se os acontecimentos cotidianos, como exemplifica principalmente Dona Benta, podem inspirar a criação de fábulas, as tradicionais fábulas também podem e devem ser aplicadas à vida cotidiana. Para compreendê-las em sua totalidade, o ouvinte, e possível leitor, deverá desenvolver a capacidade de fazer essa correspondência. É o que faz Pedrinho, por exemplo, em ― Os dois ladrões‖. Comprovando sua compreensão da história e da moral ― quando dois brigam, lucra um terceiro mais esperto‖, ele conta a seguinte experiência: ― Isso já me aconteceu uma vez — disse Pedrinho. Briguei lá na escola por causa duma pêra, e quando terminou a briga, que é da pêra? Estava no papo do Zézico, filho do Totó padeiro‖ (p. 38). Em Fábulas, há ainda outros exemplos de aplicabilidade da fábula ao cotidiano. Em ― A gralha enfeitada com penas de pavão‖, Dona Benta não receia em relacionar o conteúdo figurativo da fábula à desventura ocorrida com um de seus velhos conhecidos, revelando, inclusive, o seu nome, o Coronel Teodorico: — Esta fábula é bem boazinha — disse Dona Benta. Quem pretende ser o que não é, acaba mal. O Coronel Teodorico vendeu a fazenda, ficou milionário e pensou que era um homem da alta sociedade, dos finos, dos bem educados. E agora? Anda de novo por
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aqui, sem vintém, mais depenado que a tal gralha. Por quê? Porque quis ser o que não era. (p. 15)
Já em ― O automóvel e a mosca‖, é a vez de Narizinho aplicar a fábula. Ao ouvir a história de uma mosca que se sente a responsável por desatolar um carro, quando, na verdade, o trabalho fora de homens e bois, a menina observa: ― — A Joana Baracho é assim — comentou Narizinho. Lá na casa dela as irmãs fazem tudo, mas quem finge que sua é ela. Certas fábulas são retratos de pessoas‖ (p. 46). Sem esgotar os exemplos de aplicabilidade da fábula, vale a pena destacar ainda o episódio de ― A raposa e as uvas‖. Depois de ouvir a fábula e a conclusão temática ― Quem desdenha quer comprar‖, Narizinho conta uma experiência vivida, cujos detalhes refletem perfeitamente os elementos do discurso figurativo da história: — Que coisa certa, vovó! — exclamou a menina. Outro dia eu vi essa fábula em carne e osso. A filha do Elias Turco estava sentada à porta da venda. Eu passei no meu vestidinho novo de pintas côr-derosa e ela fez um muxôxo. ― Não gosto de chita côr-de-rosa.‖ Uma semana depois lá a encontrei tôda importante num vestido côr-de-rosa igualzinho ao meu, namorando o filho do Quindó... (p. 47)
Nas palavras de Narizinho, portanto, os fatos do cotidiano, aos quais a fábula pode ser aplicada, são a ― fábula em carne e osso‖. Nesse sentido, compreende-se que, para as personagens do Sítio, esse aspecto do gênero fábula também é efetivo: os fatos narrados na história refletem o plano humano das relações. Outra propriedade da fábula valorizada por Monteiro Lobato e internalizada pela turma do Sítio é a moral ou, nas palavras do autor, moralidade. A fábula ― A menina do leite‖, além de apresentar uma definição sobre o tema, ainda acrescenta a moral que, no primeiro espaço narrativo, fora omitida: ― — Que é moralidade, vovó?/ — É a lição moral da história. Nesta fábula da menina do leite a moralidade é que não devemos contar com uma coisa antes de a têrmos conseguido...‖ (p. 23). Outro exemplo de valorização dessa propriedade ocorre em ― O rato e a rã‖. Ao ouvir a fábula, os ouvintes a rejeitam por não apresentar a conclusão moral: ― — Essa fábula, vovó, não me parece fábula — parece històrinha que não tem moralidade. ‗Passo‘‖ (p. 41).
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Conforme está expresso na carta que Lobato escreve a Godofredo Rangel em 1916, vista no início deste texto, ao escolher as fábulas para a iniciação literária de seus filhos, Lobato admite que o primeiro objetivo não era o inculcamento da moral. O fim da sessão de fábulas em sua obra específica, entretanto, é sinalizado por Pedrinho, que diz: ― — Chega de fábulas, vovó — disse Pedrinho. Já estamos empanturrados. A senhora precisa nos dar tempo de digerir tanta sabedoria popular. Estou com a cabeça cheia de ‗moralidades‘‖ (p. 54). Para Pedrinho, portanto, digerir fábula é digerir ― sabedoria popular‖, digerir ― moralidade‖. Logo, para a personagem (e através dele Lobato), a essência da fábula é a moralidade. A conclusão de Pedrinho, entretanto, não contraria totalmente o que fora proposto por Lobato no início de seu projeto. Embora, naquele momento, a moral não estivesse situada no primeiro plano dos interesses, havia uma consciência clara de sua atuação na formação imperceptível do caráter. Quanto a isso, a conclusão de Narizinho ajuda a equilibrar o debate e retoma o curso da carta de 1916: ― — Para mim, vovó, as fábulas são sabidíssimas. No momento a gente só presta atenção à fala dos animais, mas a moralidade nos fica na memória e de vez em quando, sem querer, a gente aplica ‗el cuento‘, como a senhora diz‖ (p. 55). Nessa abordagem, verifica-se, portanto, que o segundo espaço narrativo das fábulas acrescentado por Lobato comporta não só a apreciação e a interpretação das histórias, mas apresenta uma visão metalinguística do próprio gênero praticado. Dos comentários, é possível extrair a concepção picapauense de fábula. E mais: essa concepção está em perfeita consonância com que se preconiza para a tradição esópica. A fábula é um texto curto, de origem primitiva e popular, cujas personagens geralmente são animais que falam, e deve finalizar com uma moralidade. Além disso, não tem compromisso absoluto com os princípios da ciência e tanto ilustra os fatos do cotidiano como pode ser a eles aplicada. Levando-se em consideração o cenário de narração das fábulas de Lobato (Dona Benta rodeada pelos ouvintes Narizinho, Pedrinho, Emília, Visconde e, às vezes, tia Nastácia), é possível fazer uma aproximação desse mesmo cenário com o ambiente da sala de aula. Aqui, entretanto, não seria tolerada a exclusão de qualquer elemento, como ocorre com tia Nastácia que fica afastada da roda de ouvintes a maior parte do tempo.
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No Sítio do Picapau Amarelo, Dona Benta é a detentora de um saber que é compartilhado com os seus netos e agregados. Ela apresenta as fábulas clássicas e as aproxima da realidade de seus ouvintes. Da mesma forma, o professor pode atuar como mediador de conhecimento e leitura de seus alunos. Inspirando-se em Dona Benta, ele pode explorar todas as possibilidades oferecidas pelo gênero escolhido e, ainda, discutir e analisar coletivamente a sua metalinguagem. Referências DEZOTTI, Maria Celeste C. (Org.). A tradição da fábula: de Esopo a La Fontaine. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003. LIMA, Alceu Dias. Prefácio. In: DEZOTTI, Maria Celeste C. (Org.). A tradição da fábula: de Esopo a La Fontaine. Brasília: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003. p. 11-15. _____. A forma da fábula: estudo de semântica discursiva. Significação. Revista Brasileira de Semiótica, São Paulo, n.4, p. 60-69, 1984. LOBATO, Monteiro. Fábulas. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1973. v.3. (Obras Completas - Série a) _____. A barca de Gleyre. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1948. 2.t. (Obras completas de Monteiro Lobato, 2.v.). SOUZA, Loide Nascimento de. Nas raias de um gênero: a fábula e o efeito fábula na obra infantil de Monteiro Lobato. São Paulo: Editora Unesp, 2013. TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. Tradução Elisa Angotti Kossovitch. São Paulo: Martins Fontes, 1980.
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O MÉTODO DE ANÁLISE ATIVA COMO BASE PARA A LEITURA DE O CONHECEDOR, DE LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO: PONTO DE PARTIDA PARA UMA PRÁXIS DE DIREÇÃO TEATRAL
Lucas Martins Néia (UEL) O presente estudo, desenvolvido em 2012 como um dos resultados de minha práxis da disciplina Direção Teatral I e do projeto de ensino EncenaAção: Estudos Teórico-Práticos em Direção Teatral – ambos coordenados pela Professora Mestre Adriane Maciel Gomes e direcionados ao terceiro ano da graduação em Artes Cênicas da Universidade Estadual de Londrina –, utilizou o método de análise ativa, formulado por Konstantin Stanislávski, como ferramenta para análise do conto O conhecedor, de Luís Fernando Veríssimo; procurou-se, a partir disso, investigar o processo de desenvolvimento de vida da obra através de subterfúgios pertinentes a tal método, tais como seus elementos estruturais e a criação da “novela da vida” das personagens sob a óptica do diretor teatral. Trata-se do início da de um processo de construção cênica que buscou transcender a mera ilustração da palavra, cujo desenvolvimento comprova a individualidade de cada espetáculo, reforçando ideias presentes no conceito “fenômeno teatral” a partir da relação única entre autor, diretor e ator. Sobre o método O método de análise ativa propõe o exercício do trabalho criativo do diretor e do ator a partir das ações percebidas no material textual e tudo o que a elas está subjugado. Para isto, é necessária uma profunda leitura deste material, sendo capaz de se chegar ao seu subtexto. Através deste caminho, nega-se a ilustração da obra quando transposta para a cena: procura-se captar o seu sentido primordial e utilizá-lo como força motriz durante todo o processo de criação.
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Nair D’Agostini ressalta que “o método constitui-se num paradigma do diretor teatral para a análise da obra do autor, através da ação, e é um meio para o ator recriar, em seu sentido mais profundo, a atualidade da obra” (2007, p. 22). Assim, o método, sob a óptica da direção, se mostra eficaz quando é capaz de ativar o pensamento criativo do diretor por meio do desdobramento da estrutura da ação; esta, gérmen do teatro, é também impulso para a criação do ator, que, a partir dela, atira-se à investigação de elementos que envolvam todo o seu aparato psicofísico. Será através do desvelamento das ações que se chegará ao substrato da obra. Segundo D’Agostini, “é nele que está contida a verdade que ainda pode nos encantar e revelar algo sobre nossa atualidade” (2007, p. 23). Ao se debruçarem sobre o impulso primeiro do texto, ator e diretor terão em mãos um genuíno e precioso material para estruturarem seus trabalhos. O “sistema”, resultado da investigação e inquietação de toda uma vida, complementa-se com a sistematização do método de análise ativa, que contém em si o método das ações físicas. Este permanece em aberto como meio e possibilita chegar à essência da obra dramática, ao núcleo que determina o sentido da criação, a ação e sua recriação pelo ator. Neste processo, é promovido o desenvolvimento psicofísico integral do ator em seu papel, resultando no espetáculo, uma unidade da criação do autor, do diretor e do ator. (D’AGOSTINI, 2007, p. 23-24)
Complemento para o sistema stanislavskiano – concretizando o seu ideal de buscas –, o método de análise ativa contém, em seu processo, a ideia de unicidade do espetáculo, e é nessa ideia que está contida a magia do teatro. A cena nasce da relação única entre todos os que a compõem e organizam: a ideia original do autor, a interpretação sugerida pelo diretor e o trabalho do ator. Diretor e ator terão resgatadas suas individualidades, pois, obrigatoriamente, recorrerão aos seus conhecimentos e às suas vivências para compreensão do texto e criação. No caso do diretor, ao eleger quais circunstâncias e acontecimentos são deveras importantes para a obra e ao criar a “novela da vida”, a qual contemplará os elementos ausentes da obra e que explicarão as nuances da ação e os “íntimos movimentos da alma” (D’AGOSTINI, 2007, p. 38), ele estará utilizando sua subjetividade, residindo aí
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texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto text sua força de individualidade artística, ponto de vista inerente a qualquer outra criação; “cada diretor inclui, nesse processo, aquilo que a ele lhe interessa e lhe é valioso como artista” (KNÉBEL, 1976 apud D’AGOSTINI, 2007, p. 42). A individualidade cara a cada espetáculo, gerada a partir de seus componentes, e a noção da ação que gera a palavra são elementos ligados ao método e ao sistema stanislavskianos que serão corroborados por Anatol Rosenfeld em ensaio no qual o próprio discorre sobre o fenômeno teatral: O texto projeta um mundo imaginário de pessoas e situações que sugere ao ator certa realidade humana que lhe é acessível à mercê da sua experiência externa e interna e conforme o nível e riqueza espirituais próprios. À base disso, verifica-se o ato criativo: a reconversão da experiência humana – de certo modo, da própria realidade íntima –, em imagem, em síntese, em Gestalt que possibilite a composição simbólica em termos de uma arte diversa daquela do autor. Já não se tratará de encontrar as palavras que constituam a imagem vislumbrada pelo poeta, e sim de compor com o material do próprio corpo a imagem de uma pessoa que seja capaz de proferir estas palavras ou, melhor, de que tais palavras, em tais situações, defluam com necessidade. Ao fim, a imagem será dele, ator (e diretor) – transfiguração espontânea, imagem da própria experiência e das próprias virtualidades dentro das coordenadas propostas pela peça. [...] Será a formulação simbólica, a transposição imaginária das próprias [auto-expressão biográfica ou psíquica] e, portanto, das potencialidades humanas que são de todos nós, como seres humanos, e de que todos nós podemos participar. (ROSENFELD, 1973, p. 34-25)
O método exige, portanto, a investigação da obra e de suas nuances pelo diretor desde o início do trabalho com os atores. Esta investigação se inicia desde a primeira leitura, fundamental para todo o processo. D’Agostini (2007, p. 35-36) recorda que Stanislávski dizia ser desta primeira leitura que se depreenderia uma primeira impressão da obra, a qual tocaria o diretor de acordo com a experiência de vida do próprio, tanto humana quanto artística; sua individualidade, enfim. A partir da primeira leitura é que se começará a traçar a direção da análise; deve-se, portanto, evitar uma primeira visão ligada ao vislumbre inicial sobre como a obra pode se transformar em cena, um primeiro impacto visual que pode ser nocivo ao trabalho por beirar a banalidade, a superfície.
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O conhecedor: investigação dos elementos da análise ativa Ao iniciar sua análise, o diretor deve partir “do geral para o particular e para o singular” (D’AGOSTINI, 2007, p. 50), realizando-a, assim, por camadas. Mergulha-se, portanto, no universo da obra, seu grande círculo, traçando-se um estudo detalhado de suas características e seus caracteres, completando pontos que se mostram “nebulosos” durante a interpretação do material textual – sem, obviamente, desfigurar a obra, sempre estabelecendo um diálogo com o autor; pensando no afunilamento do todo para o único é que, posteriormente, investigar-se-ão os chamados pequenos círculos de situações. Ao nos debruçarmos sobre o universo do autor, estaremos, também, dando um primeiro passo para a investigação do superobjetivo da obra; este representa sua principal finalidade, o que quer dizer o autor por meio de sua criação, suas intenções, suas forças motrizes, e comprova a atualidade de sua obra; é por ele que o trabalho de criação do diretor e dos atores deve se guiar (D’AGOSTINI, 2007, p. 27). Pois bem, dediquemo-nos a isto a partir de O conhecedor. [...] podemos dizer que nela [toda a obra de Luís Fernando Veríssimo] avulta um cronista tão brilhante no domínio da sintaxe como Paulo Mendes Campos, tão disputadamente lido como foi Rubem Braga e com humor cotidiano superior ao de Fernando Sabino. Sua escrita é oposta à seriedade de Otto Lara Resende, com este formando também uma curiosa oposição no humor, Otto Lara britânico, Luís Fernando Veríssimo nova-iorquino. Embora tenha um certo parentesco de zombaria com Carlinhos de Oliveira, sua emoção desenvolveu-se na cidadania, enquanto o cronista do Rio de Janeiro passava pela dramatização pessoal. Talvez o lado carioca de Stanislaw Ponte Preta saiba ser uma aproximação mais justa, o que traz à luz a vocação zombativa, pícara e crítica de Luís Fernando Veríssimo – na sempre santa campanha contra as farsas e as ideologias, vocação de todo humor. O interessante, seja nas crônicas, seja nas tiras, é a sua exuberância na criação de personagens; são infindáveis: Ed Mort, o analista de Bagé, a velhinha de Taubaté, Mack, Queromeu, Boca, Família Brasil, as cobras, etc. (SOUZA, 1995, p. 391-392)
Temos um autor satírico brilhante. No conto objeto de nossa análise, muitas das características dispostas na citação acima estão presentes: uma personagem exuberante como Peter Vest-Pocket, espécie de Ed Mort que deu certo, envolto em uma história de
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texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto text mistério muito comum aos thrillers ingleses; esta história, no entanto, está inserida em uma moldura: a de um escritor, cronista do JB, que tem por intuito criar um romance policial aos moldes ingleses e, a partir desta obra, conquistar o mercado nacional e internacional. Um conto, portanto, metalinguístico e que sugere sutis pontos autobiográficos; a genialidade de Luís Fernando Veríssimo e a chave para a interpretação deste conto estão contidas nestes pontos. Através deste escritor com algumas características muito semelhantes às suas, Veríssimo cria uma espécie de alter ego; a figura nos remete imediatamente à sua pessoa, mas não a é. Este escritor é mais um da linhagem de Ed Mort, um detetive brasileiro que não encontra sucesso em suas missões justamente pelo peso de sua nacionalidade (cria-se, aí, um interessante contraponto com o Peter Vest-Pocket presente neste e em outros contos do autor: um detetive culto, munido das habilidades mais absurdas e que encontra somente o sucesso em seu caminho; ora, mas é claro, ele é inglês!). No caso de O conhecedor, há este escritor que jura não ser detido pela condição “dominar o português” para exercer o cargo de cronista, mas “falha” ao escrever um romance aos moldes ingleses; é mais um a possuir a “ineficiência” comum a todos os heróis brasileiros de Veríssimo – que, sob este aspecto, mais uma vez satiriza a ânsia da classe média dos anos 1980 pelo que é importado, embutida em uma espécie de “não-orgulho” coletivo em ser brasileiro (coloquialmente falando, uma espécie de “síndrome de Odete Roitman”). Delimitamos, portanto, que o escritor é uma personagem de Veríssimo, não a personificação do próprio; adquire características do cronista gaúcho, mas não o é propriamente; um tênue caractere entre a realidade e a ficção, portanto – tal qual a personagem de Burt Lancaster em Gruppo di famiglia in um interno (1974), de Luchino Visconti; ou, para não nos enlevarmos ao plano do drama, uma espécie de Marcello Mastroianni em 8½ (1963), de Fellini. Esta personagem será, portanto, fundamental para se desvendar os outros elementos desta análise, pois, como todas as outras, também terá objetivos e enfrentará obstáculos; possui, portanto, uma linha de ação própria. Dirijamo-nos, agora, para o “trecho do romance” que nos é apresentado por este escritor: temos um herói, Peter Vest-Pocket, infiltrado em um jantar promovido por
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texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto text Lorde Graverly; este, como todo vilão bem afortunado, é temido por todos, déspota ao extremo e, claro, inimigo profundo do detetive. O Lorde desafia Peter ao questioná-lo sobre as características que o tornam um exímio sommelier; nosso herói, no entanto, faz com que os questionamentos quanto à sua habilidade caiam por terra: identifica, com precisão, o vinho servido durante o jantar. Colérico, Graverly ainda é confrontado pelo investigador sobre o desaparecimento de sua mulher, ocorrido em uma viagem para a França. Ora, o vinho procede da mesma região que abrigou o casal e, segundo Peter, apresenta um “estranho componente” no sabor: ossos humanos, provavelmente de uma inglesa... Se este fosse um típico romance made in England, estaríamos em seu clímax! Nosso escritor, porém, o interrompe bruscamente: Graverly bem poderia, em uma atitude desesperada, arrancar uma arma e fazer de refém um dos cavalheiros presentes no ambiente, admitindo sua culpa; o Lorde, contudo, apenas muda de assunto. Vejam só, o escritor não deu conta deste “romance à inglesa” – tal qual Ed Mort, que sempre acaba mal em suas missões, restando-lhe apenas se entregar novamente às suas elucubrações com Voltaire, o “ratinho que sempre volta”. Não cumpriu seu objetivo, o de nos apresentar um thriller legítimo, à la Agatha Christie ou Hitchcock. É perceptível que já se iniciou o trabalho da “novela da vida”, a qual “obriga o diretor a entender os motivos dos atos e das ações das personagens” (D’AGOSTINI, 2007, p. 38). As “lacunas” apresentadas ao decorrer do conto aos poucos se preenchem – tudo, é claro, em comum acordo com o estilo irônico apresentado durante a obra. Outros fatores ainda estão implícitos: Peter realmente não teria um motivo aparente que o fizesse estar no jantar? Ora, é óbvio que nosso herói tinha objetivos claros ao se fazer presente na casa do corpulento Lorde. Teria Graverly realmente matado sua esposa? Estamos falando do grande e temível vilão! Seria um acinte ao grande público se tudo que nos foi apresentado sobre Graverly fosse em vão: é claro que ele é o assassino, o que comprova seu caráter vil e não foge às regras do thriller inglês. Nosso escritor se trata de um homem frustrado? Profundamente. Mas quem disse que ele possui a noção de que fracassou? Não há certa alienação, aquela ressaca tão presente nos idos de 1980 – teria esta ressaca, aliás, persistido até nossos dias?
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Delimitamos, portanto, a circunstância anterior da obra, a qual é ampla e abrangente: um mundo no qual se valoriza o que vem de fora em detrimento da produção local, considerada “inferior”. O típico pensamento da classe média brasileira – ou talvez um mal que atinja todos os estamentos... Assim Nair D’Agostini discorre sobre o universo da obra: Saber determinar o universo da obra, o solo no qual ela vai germinar e se desenvolver, é de importância fundamental, pois é nele que as personagens tecem a sua vida. [...] Esse universo deve ser concretizado cenicamente, no espetáculo, através da construção dos acontecimentos ou acontecimento inicial. (2007, p. 50)
O próximo passo, portanto, é determinar o acontecimento inicial (também chamado de situação anterior) e o acontecimento final (situação principal). Em uma primeira análise, poderíamos estabelecer o primeiro como o desaparecimento da mulher, que geraria toda a trama, e o segundo como o momento em que Peter constata a procedência do vinho; estaríamos excluindo, no entanto, o escritor como personagem, e isso
poderia
nos
prejudicar
no
estabelecimento
de
um
superobjetivo
(e,
consequentemente, no desenvolvimento da cena). Um equívoco. Podemos instituir como situação anterior, aquela na qual o universo da obra se concretiza, o fato de nosso escritor estar disposto a desenvolver um romance policial inglês; corrobora, imediatamente, o pensamento contido na circunstância anterior. Como situação principal, a quebra contida no findar da história: segundo o escritor, Lorde Graverly muda de assunto como se nada tivesse acontecido. É para aí que convergirão as forças da história e esta será refletida, pensada, tanto no plano da moldura (escritor) como no plano de encaixe (Graverly, Peter e convidados) – levandose em consideração o caráter metalinguístico do conto. A noção de acontecimento final, assim, é amplamente satisfeita. Discorramos, agora, sobre a principal circunstância dada, o acontecimento ou situação fundamental e o acontecimento ou situação central. A principal circunstância dada é na qual surge, de fato, o problema. D’Agostini texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto
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texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto text retoma o que Stanislávski chama de “suspensão” do acontecimento1 para se ter certeza de que o fato escolhido como principal circunstância é realmente determinante para a história, “se ele envolve todas as personagens e se o que vai transcorrer se estabelece como antagônico ao mundo existente, como contra-ação da linha transversal de ação que está nascendo” (D’AGOSTINI, 2007, p. 53). No caso de O conhecedor, o problema nasce a partir do instante em que nosso escritor coloca Peter na casa de Graverly sem um motivo aparente. A presença do investigador incomoda em demasia o lorde, que se lança ao desafio de provocá-lo; sendo provocado, é óbvio que Peter não poderia ficar de mãos cruzadas! A situação fundamental, que levará ao clímax, é consequência direta da principal circunstância dada; estamos falando, portanto, da provocação do Lorde para com Peter. A situação central será, então, aquela na qual Peter não se curva perante o anfitrião e o afronta com o objetivo de revelar a todos que Graverly é o assassino de sua esposa. Partamos, agora, aos elementos finais da análise: a linha transversal de ação, o tema, a ideia e, finalmente, o superobjetivo. A linha transversal ou linha direta de ação é a coluna vertebral da história, o que mantém o texto em pé; percorre, portanto, um extremo a outro da narrativa, e é formada pelo que fazem as personagens a partir da principal circunstância dada para atingirem seus objetivos. Gerará, obrigatoriamente, uma linha de contra-ação, a qual apresentará obstáculos no caminho das personagens; estes obstáculos, por sua vez, serão responsáveis por novas ações por parte das personagens, e assim por diante (D’AGOSTINI, 2007, p. 31-33). Se não existisse a linha transversal de ação, todas as unidades e os objetivos da obra, as circunstâncias dadas, a relação, a adaptação, os movimentos de verdade e fé ficariam inativos; separados entre eles, não teriam nenhuma possibilidade de reviver. (STANISLÁVSKI, 1954 apud D’AGOSTINI, 2007, p. 32) 1
Para determinar a principal circunstância que ocorre no universo inicial, [...] é necessário fazer perguntas sobre sua importância e do acontecimento por ela gerado na vida das personagens envolvidas. Se, sem o acontecimento, a história igualmente se desenrolaria, ele não pode ser considerado o acontecimento gerado pela principal circunstância dada. Aqui se trata da aplicação do princípio de “suspensão” do acontecimento, recomendado por K. Stanislávski. (D’AGOSTINI, 2007, p. 54-55)
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Ao analisarmos O conhecedor sob este aspecto, concluímos outro dado já citado: a linha transversal de ação se dá pela busca por se formatar um thriller policial inglês; o escritor construirá sua obra a partir disso, fazendo com que suas personagens ajam a fim de cumprir este objetivo, ou seja, como se fossem verdadeiros ingleses misteriosos e com um passado rebuscado. Lembremo-nos do insucesso desta busca: não se consegue um thriller legítimo; lembremos, também, que a linha transversal de ação apresentará o que as personagens querem, não o que as impede. Isto fica por conta da linha de contra-ação: o fato de nosso escritor e suas criações estarem profundamente arraigados ao Brasil – mergulhando-se no subtexto, fadados ao fracasso, segundo o pensamento corrente. Para investigarmos o tema, “é necessário ligá-lo ao enredo, ao argumento, chamado siujet em russo, entendido como o conjunto de ações e de acontecimentos que se desenvolvem concretamente na obra” (D’AGOSTINI, 2007, p. 49). É também a partir deste que a linha de ação se dá. Estabelecemos como tema, portanto, a sátira ao conceito de que só se obtém o sucesso se o caminho trilhado for algo estranho aos costumes nacionais exatamente no momento em que esse conceito se faz válido. Grosso modo, é como se Veríssimo quisesse dizer “brasileiro fracassa? Fracassa mesmo!”; é através deste embate, é o confronto a partir da resposta inesperada que provoca a reflexão. Nisso, chega-se à ideia, “aquilo que o autor quer expressar com ela [a obra], seus conceitos, sua visão de mundo, sua posição” (D’AGOSTINI, 2007, p. 49). Esta sátira é o perfeito conceito que se pode extrair a partir da fórmula matemática de ideia (circunstância anterior + linha transversal de ação + acontecimento principal). O “tapa na cara” proposto por Veríssimo supre o conceito de superobjetivo da obra: ele quer zombar dessa gente “convalescente” da tal “síndrome de Odete Roitman”. O superobjetivo deve conter a ideia do autor, que surge do seu conteúdo mais profundo, pressupondo um mergulho no universo espiritual do escritor, em suas ideias, nos motivos impulsores de sua obra. [...] O trabalho criativo do diretor e do ator, quer seja a partir de uma obra dramática, quer literária ou de outro material textual, deve orientar-se pelo superobjetivo. (D’AGOSTINI, 2007, p. 27)
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Será a ampliação do conceito do superobjetivo, ou seja, a sua universalidade perante os aspectos humanos, sociais e filosóficos, que garantirá profundidade à obra (tanto ao material textual quanto à cena) e justificará sua existência. Anatol Rosenfeld destaca essa universalidade como fator essencial à concepção do fenômeno teatral – ainda na relação texto e espetáculo, ligando este à força motriz daquele, à sua compreensão (e não ilustração): [...] o teatro vivo tem direitos em face do texto. Deve respeitá-lo enquanto se trata de uma grande peça, mas deve interpretá-lo e assimilá-lo segundo as concepções de uma arte viva e atual que, a não ser em casos específicos, não se satisfaz em ser museu, visando, ao contrário, a comunicar-se intensamente com o seu público. (ROSENFELD, 1973, p. 36)
Considerações finais Retomando o conceito de explorar a obra do todo para o particular, partiu-se, após todo este trabalho, para a exploração das particularidades de cada situação, investigando um objetivo que justificasse sua existência, a circunstância na qual cada uma destas situações foi submetida e que dava origem aos conflitos entre os caracteres e os obstáculos pelos quais estes teriam que passar, além, é claro, de suas ações. Estes pequenos círculos de acontecimentos, ao serem esmiuçados, contribuem para o mote geral da obra, revelando-a como uma “unidade intrínseca” (D’AGOSTINI, 2007, p. 56). Tendo realizado o diretor todos estes procedimentos conforme o material textual analisado, deve-se iniciar o trabalho com os atores; estes, a partir das ações investigadas, terão enormes subsídios para uma criação orgânica e intimamente ligada às nuances mais sutis da obra escolhida como ponto de partida. No presente caso, todo este processo gerou a prática Mise en sogno, levada a público em outubro de 2012 sob minha direção e com atuação de Danilo Neiva, Lucas Canito, Otávia Silla e Rafael Gatto. Corroborou-se a noção de criação artística única a partir das relações entre autor, diretor e atores. A partir de um tênue limiar entre ilusão e realidade, o processo de Mise
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texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto text en sogno se desenvolveu sob as máximas “o mundo é palco; a vida, sonho”: o “Lorde” era um “ator” com as características de Danilo Neiva; a femme fatale, de peruca Chanel e vestido vermelho, muito possuía da própria Otávia Silla (era “mais atriz do que personagem”, inclusive). O detetive de Lucas Canito não era propriamente um Peter Vest-Pocket: devido à “hipoatividade” do rapaz, sob forte influência do inspetor Clouseau de A pantera cor-de-rosa (1963), de Blake Edwards – referência na construção de nosso trabalho –, tínhamos um investigador um tanto quanto atrapalhado e passivo perante algumas situações. E Rafael Gatto? Acompanhávamos seu processo, sua realização, suas frustrações, seus delírios e devaneios. Ordenava, construía, regia; controlava a música, arrumava o cenário. Sonhava, idealizava. Fazia as vezes de mestre de cerimônias e até mesmo de mordomo, tudo pela obra! Tudo... Por sua obra. Gatto era praticamente minha personificação em cena, tal qual aquele escritor brasileiro frustrado para Veríssimo! Ora, sou um diretor teatral com referências majoritariamente cinematográficas, como um escritor brasileiro que deseja fazer sucesso para inglês ver... O próprio título possuía esta ironia: corruptela de mise-en-scène, termo francês que significa encenação, e sogno – afinal, a pronúncia deste vocábulo é muito parecida com scène, tínhamos uma música italiana no repertório, nossa femme fatale da peça de encaixe desaparecia na Itália... O termo dava margem a diversas interpretações: o que foi apresentado era real ou apenas idealização do diretor? Seriam Danilo Neiva, Lucas Canito e Otávia Silla também atores ou somente personagens? Entidades? Ou seria este título apenas uma crítica à mania que brasileiro tem de utilizar nomes estrangeiros para sofisticar as coisas – o que gera esta “salada globalizada”, mescla de francês, italiano –, um viés que o próprio Veríssimo percorreu no conto do qual partimos? É importante frisar, ainda, que a análise ativa não aponta somente para uma via de encenação; neste caso, devido às nossas referências e universos (afetos, vivências e/ou processos anteriores), optamos por uma estrutura cênica mais tradicional e que flertava, por exemplo, com o cinema de Hitchcock – da trama a outros aparatos cênicos, tais como cenografia e iluminação. Munido do substrato, a essência primordial da obra, o diretor tem uma gama enorme de poéticas cênicas a percorrer com total liberdade texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto
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texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto texto text artística e sem correr o risco de “trair” os ideias e o universo do autor do material textual do qual ele partiu para a construção de sua obra teatral.
Referências BIZZOTTO, Lúcia Helena Junqueira Maciel. A metalinguagem como estratégia de sedução na leitura de crônicas de Luís Fernando Veríssimo. In: CONGRESSO DE LEITURA
DO
BRASIL,
14º,
2003,
Campinas.
Disponível
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http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais14/Sem13/C13036.doc. Acesso em 15 jun. 2014. D’AGOSTINI, Nair. O método de análise ativa de K. Stanislávski como base para a leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator. São Paulo, 2007. 251 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura Russa, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. ROSENFELD, Anatol. O fenômeno teatral. In: __________. Texto e contexto. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 21-43. SOUZA, Enéas Costa de. Luís Fernando Veríssimo e as múltiplas faces da economia. Ensaios FEE. Porto Alegre: vol. 16, nº 2, 1995, p. 391-452. Disponível em http://revistas.fee.tche.br/. Acesso em 15 jun. 2014. VERÍSSIMO, Luís Fernando. Ed Mort e outras histórias. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
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REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO DE CANONIZAÇÃO: UM OLHAR PARA O ESCRITOR ROSÁRIO FUSCO Lucas Toledo de Andrade (UEL)
1. Introdução A formação do cânone literário e os processos de canonização são temáticas bastante discutidas nos últimos tempos, já que se passou a levar em conta os fatores que influenciam esses processos e a partir disso difundiu-se a ideia de lançar um olhar crítico ao cânone consolidado para assim perceber as especificidades históricas e ideológicas que contribuíram para a construção do mesmo. Para a construção e consolidação de um cânone literário nacional considera-se as relações de poder, as instâncias de legitimação, como universidades, escolas, revistas literárias, o mercado editorial e as regras de interpretação tidas como corretas por críticos literários e outros intelectuais. Para contribuir com as discussões pretendidas serão usados inicialmente textos de Pierre Bordieu (1974) e Frank Kermode (1979) que tratarão de questões voltadas às relações de poder mantida pelas instâncias legitimadoras, bem como a importância do controle da interpretação para a manutenção da tradição literária e do cânone. Serão utilizados também textos de Vanderléia da Silva Oliveira (2007) e Zahidé Lupinacci Muzart (1997) que tratam, entre outras coisas, dos aspectos que colaboram para a formação do cânone brasileiro e da importância de um olhar crítico às histórias literárias e à crítica literária produzida no Brasil, considerando seus aspectos ideológicos e o período histórico em que foram produzidas. Após a discussão obtida por meio dos autores já citados e outros, será revisitada de forma breve a vida e a obra de Rosário Fusco para que se busque a compreensão dos possíveis fatores que o mantiveram afastado das histórias literárias nacionais, da atenção da crítica e consequentemente do cânone brasileiro. Nesse sentido, esse artigo pretende discutir a respeito do poder das instâncias legitimadoras, responsáveis pelos processos de canonização e refletir sobre a vida e obra do escritor Rosário Fusco buscando entender as peculiaridades que contribuíram para a pouca atenção dada ao autor no cenário cultural e literário brasileiro.
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2. Reflexões sobre o cânone literário brasileiro As questões que envolvem cânone literário e os processos de canonização são bastante discutidas nesses tempos, “afinal, em tempos pós-modernos, percebe-se, cada vez mais que a própria instituição literatura e seus critérios de valor são relativizados” (OLIVEIRA, 2007, p. 36). Por isso, alguns estudiosos dessa área vêm olhando de forma crítica o cânone e buscando entender quais fatores influenciaram e continuam a influenciar a formação do cânone literário nacional. Sabe-se que os processos de canonização levam em conta aspectos ideológicos, políticos, econômicos e relacionam-se diretamente com instâncias de poder e legitimação, como universidades, editoras, revistas literárias, além do papel dos críticos literários, as histórias literárias, a ementa dos cursos de Letras e a lista de obras para vestibular. Sendo assim, é possível afirmar que não é simples pensar e discutir questões relacionadas ao cânone, como mostra Oliveira (2007, p. 51): Não é tarefa fácil pensar o cânone. Debater sobre ele implica em discutir, de modo integrado, permanência e mudança, tradição e presente, valor e historicidade, bem como a questão de que as histórias literárias demonstram a problemática das abordagens ideológicas subjacentes na autoridade do critico literário. Daí falarmos em instâncias de legitimação incluindo os aparelhos de Estado, tais como a universidade, além das resenhas em jornais e revistas de grande circulação, fundações e associações que concedem bolsas de criação literária ou atribuem prêmios valorativos, bem como antologias e livros didáticos.
Percebe-se pela citação acima que pensar em cânone é pensar também em relações de poder, em ideologias, em formas de legitimação e afirmação da tradição de determinada cultura, ou seja, refletir sobre a canonização é lançar um olhar para processos de exclusão e inclusão e da força que instâncias dominadoras possuem para dizer o que deve ser lido, o que merece atenção ou não. Pode-se recorrer a Pierre Bordieu (1974) para falar a respeito dessas instâncias de poder e legitimação e a relação das mesmas com a literatura. As ideias trazidas por Bordieu em A economia das trocas simbólicas (1974), especificamente no capítulo “O mercado dos bens simbólicos” permitem que se pense a literatura canonizada com um dos bens culturais produzido pelo campo de produção erudita que é um “sistema que
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produz bens culturais [...] objetivamente destinados [...] a um público de produtores de bens culturais” (BORDIEU, 1974, p. 105), ou ainda, um sistema que produz bens para serem avaliados e legitimados pelos pertencentes do próprio sistema e, assim, excluem aqueles que não pertencem a ele. Esses excluídos seriam o não-produtor de arte, o nãointelectual e o não-artista. Como consequência disso, só é reconhecido aquilo que é produzido pelo campo de produção erudita, pois o mesmo possui regras próprias de aceitação e legitimação: [...] o campo de produção erudita tende a produzir ele mesmo suas normas de produção e os critérios de avaliação de seus produtos e obedece à lei fundamental da concorrência pelo reconhecimento propriamente cultural concedido pelo grupo de pares que são, ao mesmo tempo, clientes privilegiados e concorrentes. (BORDIEU, 1974, p. 105)
Esse campo de produção erudita estabelece sua força simbólica e seu poder cultural por meio da tradição, do cânone, do julgamento estético e da autoridade de interpretação de suas instituições, são elas que elegem o que deve ser incluído ou excluído da tradição cultural e literária. Nesse sentido, os pensamentos de Pierre Bordieu aproximam-se àquilo que Frank Kermode traz em “O controle institucional da interpretação” (1979) ao dizer que o cânone é mantido pelo domínio da interpretação das instituições. A manutenção e continuidade da interpretação é que garante a sobrevivência de certas obras na tradição literária de determinadas culturas e consequentemente no cânone (KERMODE, 1979). É possível compreender que as regras de interpretação do campo de produção erudita (BORDIEU, 1974) são definidas e mantidas pelos próprios membros desse campo. Kermode (1979) mostra que os mais experientes pertencem à comunidade profissional e passam a “posse do poder interpretativo” aos ensinados por eles e assim conservam os valores que consideram necessários para o pertencimento ao cânone literário: Tal comunidade pode ser descrita como uma comunidade autoperpetuadora, sempiterna. Ela é – por menos ênfase que se ponha nisso, por mais modestamente que se considere a situação – hierárquica em sua estrutura, porque sua continuação depende do
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direito dos velhos a instruírem os jovens; os jovens se submetem porque não há nenhum outro caminho para a sucessão. Os velhos, ou os mais experientes, aplicam segundo sua própria discrição certos controles sobre a competência daqueles que querem participar e, em algum momento do futuro, substituí-los. O direito de fazer isto é acompanhado pela suposição de que eles possuem um grau de competência, que é reconhecida em parte tacitamente e em parte pela amostragem de técnicas que podem ser examinadas e aprendidas. A aquisição destas técnicas é algo que pode ser testado de maneira direta e imediata; mas a posse do poder interpretativo, poder de divinação; só pode ser testada pela referência ao conhecimento tácito dos mais experientes [...] (KERMODE, 1979, p. 2)
Nota-se a partir dos textos de Bordieu e Kermode que para pertencer ao cânone literário é necessário estar na “sociedade de admiração mútua” (BORDIEU, 1974, p. 104), nas associações, “seitas” ou comunidades e ir de acordo com o que é imposto pelos que detêm o poder da interpretação, se submetendo às regras dos que produzem a cultura no campo erudito. A partir dessas discussões acerca das relações de poder, políticas e ideológicas é possível olhar para o cânone literário brasileiro e sua construção.
A Prof. Dra.
Vanderléia da Silva Oliveira em sua tese História Literária nos Cursos de Letras: Cânones e Tradições (2007) propõe-se, entre outras coisas, a pensar no cânone brasileiro e em sua formação e apoiando-se nas ideias de Cairo (2001) revela que o cânone nacional “foi criado por críticos brasileiros a partir da segunda metade do século XIX, quando estes escreviam bosquejos, florilégios, além de antologias, mais tarde biografias e edições de obras [...]” (OLIVEIRA, p. 55-56). A formação desse cânone era influenciada pela crítica romântica europeia que buscava a configuração de uma literatura que representasse a nacionalidade, por esse motivo o cânone brasileiro está intimamente ligado à visão que se tinha da nação, isso explica a utilização das peculiaridades nacionais, como o índio, a fauna, a flora na primeira geração romântica (OLIVEIRA, 2007). Dessa forma, entende-se que o cânone brasileiro formou-se a partir daquilo que os críticos literários viam como objeto que deveria ser elevado ao cânone, sendo assim, aquilo que não “agradava” o julgamento desses críticos era excluído, já que era a autoridade de interpretação (KERMODE, 1979) desses indivíduos que era levada em conta.
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As histórias literárias nacionais produzidas pelos historiadores de literatura e/ou próprios críticos traziam à tona àquilo que era determinado por eles próprios, a partir dos critérios por eles levantados e entendidos como corretos. Esses critérios contribuíram para a constituição do cânone brasileiro e são utilizados atualmente, apesar das constantes discussões sobre a revisão do cânone, nos dizeres de Oliveira (2007, p. 56): [...] o cânone erigido pelas histórias literárias brasileiras permanece vivo até hoje, sustentado, sobretudo, pelas instituições pedagógicas universitárias [...]. Este cânone, formado sob uma perspectiva histórico positivista, funciona como uma linha de tempo narrativa, estabelecida por princípios de seleção e exclusão selecionados por aqueles críticos que tinham autoridade para determiná-los, a partir de análises pautadas em aspectos a eles familiares. [...] Logo, é possível dizer que as questões envolvidas na escolha do cânone literário pertencem ao espaço do poder.
Ao levar em conta a ideia de que a escolha do cânone pertence ao espaço do poder, muitos estudiosos de literatura estão buscando e revisitando a obra de autores que foram excluídos por diversas razões, percebendo que o não pertencimento desses indivíduos no cânone e na história da literatura brasileira deve-se a vários fatores, como, por exemplo, o fato de ir na contramão da dominante literária da época, além da questão da raça, sexo e religião. Esses autores que ficam à margem do cânone literário e são desconhecidos da literatura na maioria das vezes pertencem a segmentos sociais de minoria, ou ainda, produzem um discurso incompreendido na época em que escrevem, já que vão contra as dominantes ideológicas e literárias do período, é o caso de Qorpo-Santo, Sousândrade, Lima Barreto, Cruz e Souza, entre outros que já foram resgatados em outro tempo por pesquisadores e estudiosos de literatura. Zahidé Lupinacci Muzart em seu artigo Questão do cânone (1997) traz um importante apontamento a respeito do pertencimento de alguns nomes no cânone e da exclusão de outros. A autora revela a necessidade da sociabilização de diversos autores com críticos literários, a importância de frequentar as reuniões nas “rodinhas da Garnier ou cafés da moda” (MUZART, 1997, p. 87). Para ela muitos dos autores esquecidos não participaram desses rituais de sociabilidade e inclui neles Cruz e Souza, mostrando
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como o coleguismo colocava autores na Academia Brasileira de Letras e deixava outros fora da instituição: Machado de Assis coloca na Academia seus amigos Urbano Duarte e Garcia Redondo, mas ignora os simbolistas, entre os quais devo destacar Cruz e Sousa que, morando no Rio de Janeiro há sete anos, já havia publicado Missal e Broquéis, em 1893. Como diz seu biógrafo, R. Magalhães Júnior, até hoje parece inexplicável a ausência de Cruz e Sousa na Academia. Mas se examinarmos a vida do poeta, a época, o país, isso não parecerá tão inexplicável. Em primeiro lugar, a questão da cor é importante, mas não é a razão primordial, pois Machado de Assis era mulato, mesmo disfarçando muito esse fato, e José do Patrocínio, negro. Mas é claro que não dá para esquecer que Cruz e Sousa era um negro (nascido filho de escravos) num país que abolira a escravidão há apenas nove anos. A segunda razão que me parece importante é o fato de ser pobre. E isso Cruz e Sousa o era. Extremamente pobre. Morreu miserável. Além de negro e pobre era provinciano, vindo lá dos longes de Santa Catarina, província das mais provincianas, se assim posso dizer... E, além de tudo isso, outra razão, talvez a mais importante, Cruz e Sousa era simbolista. Na Academia Brasileira de Letras entrou um mulato, entrou um negro, mas não entraram os simbolistas. Grupo marginal e marginalizado, enfrentava o preconceito literário dos grupos dominantes, entre os quais os aindaparnasianos, unha-e-carne como Poder. Negro, pobre e orgulhoso, Cruz e Sousa mantinha-se distante das rodas dos intelectuais. E um solitário é sempre um ser meio à margem, secreto, diferente, perigoso... Ficou fora da Academia. (MUZART, 1997, p. 88)
Esse estudo crítico e revisão de determinado período histórico sobre cânone literário faz-se necessário e importante, pois ele permite a descoberta e a pesquisa de autores desconhecidos, que possuem uma produção literária interessante e de qualidade, assim esses nomes passam a figurar no cenário literário e cultural do Brasil (OLIVEIRA, 2007). Contudo, deve-se atentar para o perigo desse revisionismo proposto ser feito sem juízo crítico, como ocorre em alguns casos. Deve-se saber que o cânone literário já erigido merece o respeito, uma vez que o mesmo é um documento histórico. Modificar substancialmente o cânone é ignorar a própria história da nação. Subjugá-lo a jogos particularistas, políticos, ideológicos é o mesmo que apagar um fragmento da realidade existente no contexto histórico brasileiro, nos dizeres de Perrone-Moisés (1998, p. 198):
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[...] há um contra-senso histórico no desejo de modificar o cânone passado, para nele incluir os então excluídos. Houve historicamente, a opressão e o silenciamento das mulheres, dos não-brancos, dos colonizados. Isso é lamentável e deve ser apontado para que não continue a ocorrer. Quando possível, o que foi ocultado deve ser revelado. Mas não se pode mudar a história passada; que a literatura tenha sido, em nossa tradição, uma prática de homens brancos das classes dominantes é um fato histórico documentado.
O reconhecimento de autores desconhecidos, a revisitação e revisão das produções em outras épocas e a implantação de outros nomes no cânone é possível e já ocorreu. A ideia de que o cânone é totalmente fechado e imutável, é algo defendido por aqueles que pretendem inclusões de todo e qualquer autor de minoria, simplesmente pelo fato de serem da minoria (PERRONE-MOISÉS, 1998). Perrone-Moisés (1998) revela ainda que essas exclusões e inclusões instantâneas, propostas por particularistas e movidas por ideologias vão contra a própria ideia de cânone, já que o próprio marca-se pela tradição e ela só se faz por meio da duração. Por todos esses aspectos apontados o estudo do cânone é algo sempre polêmico e problemático, que esbarra em opiniões de conservadores como Harold Bloom, que desconsidera essas relações de poder e a força de instituições para a formação do cânone, já que para ele o aspecto decisivo para essa formação está na tradição literária em si mesma e no leitor individual (JIMÉNEZ, 2001), de outros que defendem o alargamento do cânone considerando as especificidades históricas e ideológicas por trás da formação do mesmo e daqueles que movidos por particularismos e ideologias pretendem a exclusão de nomes importantes do cânone literário e a inserção de injustiçados pela história sem o juízo de valor necessário. Mediante ao que foi apontado é valido dizer que a reflexão sobre o cânone literário faz-se importante, devido a toda complexidade já mencionada. Além disso, é inevitável desconsiderar as relações de poder e outras peculiaridades que estão em torno da formação do cânone brasileiro, já que existem mecanismos e regras necessárias para o processo de canonização (GRUIA, 2007), a partir disso será possível pensar em Rosário Fusco. 3. O caso de Rosário Fusco
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A partir das questões levantadas a respeito da formação do cânone literário brasileiro e das relações das instâncias de poder com o processo de canonização pode-se compreender a trajetória de Rosário Fusco (1910 – 1977) bem como o seu quase total esquecimento do cenário cultural e literário brasileiro, apesar da vasta produção. Para levantar esses questionamentos e refletir sobre o processo de canonização faz-se necessário conhecer e compreender a biografia de Rosário Fusco e as características de sua produção literária. Fusco nasceu e cresceu no interior de Minas Gerais e foi um talento precoce contribuindo para a fundação e organização da Revista Verde com apenas dezessete anos. Rosário Fusco é brevemente lembrado em algumas histórias literárias devido a essa participação no periódico modernista Verde, que chamou muito atenção da crítica do período e chegou a ser considerada uma das melhores revistas modernistas que mesmo sendo lançada e originada no interior do Brasil, fora do eixo Rio- São Paulo, recebeu atenção dos Grupos Modernistas dos grandes centros (OLIVEIRA, 2002) , locais em que os pensamentos e as discussões acerca das mudanças propostas por esse movimento borbulhavam. Todavia, a produção intelectual e literária de Rosário Fusco não se encerra com as publicações da Verde e nem se resume apenas àquilo que está publicado nesse periódico. Fusco foi um escritor, crítico literário e um dos tradutores brasileiros de Dostoievski, o mineiro escreveu peças, poemas, ensaios e também romances, nesse gênero ele destaca-se pela linguagem e pela experimentação utilizada, como revela Nelson de Oliveira (2002) e Fábio Lucas (2003). O Fusco romancista de O agressor (1943), a.s.a – associação dos solitários anônimos (publicado postumamente em 2003), além de outros títulos inéditos, ou publicados uma única vez é desconhecido das histórias literárias nacionais, apesar de ser o precursor da literatura fantástica brasileira, antes mesmo de José J. Veiga e Murilo Rubião (OLIVEIRA, 2002). Rosário Fusco foi um “agitador cultural rebelde e escandaloso, deixou uma dezena de livros de diferentes gêneros” (OLIVEIRA, 2002, p. 46) e ainda assim está fora do cânone modernista e esquecido na história literária do Brasil.
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A vida de Rosário Fusco ajuda a compreender os possíveis motivos que contribuíram para que o legado desse autor fosse de certa forma “escondido” do espaço literário e cultural do Brasil. Isso contribui para se pensar na discussão já feita a respeito das instâncias de legitimação, do poder da interpretação e das instituições que controlam as regras da arte, no caso da literatura. O mineiro Rosário Fusco possuía uma relação bastante conflituosa com as instituições de poder, com a política e com própria a literatura que era produzida e reconhecida pela crítica no momento em que ele produzia e publicava seus escritos. Ronaldo Werneck (2013) revela que Fusco era avesso a bajulações aos críticos literários e a intelectuais da sua época e não participava das reuniões promovidas por eles. Além disso, trabalhou como funcionário público federal durante o governo de Getúlio Vargas, assim como Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade, contudo Fusco foi visto como um dos ideólogos do getulismo e defensor da ditadura implantada por esse governo, pois escrevia em órgãos oficiais, revelando sua simpatia pelo ditador. O escritor era ainda mulato, pobre e boêmio, características que eram “graves estigmas para os padrões da acanhada sociedade brasileira dos anos quarenta do século 20” (CURVELLO, 2003, p. 24), possuía textos considerados indecentes e pornográficos, carregados de ironia e sarcasmo e usava ainda um linguajar popularesco, que beirava ao vulgar, mas não se tratava de narrativas populistas, indulgentes com o público massificado (LUCAS, 2003). Segundo o crítico literário Aricy Curvello (2003, p. 24), Rosário Fusco “incomodou a muito mais gente, com certeza, do que ocorreu com Lima Barreto em sua época”. É preciso considerar também que no contexto histórico em que Rosário Fusco produzia a voga literária eram os romances regionalistas e psicológicos (BOSI, 1994), devido a isso ele ia na direção oposta da ordem do discurso (FOUCAULT, 1996), já que trazia em sua ficção aspectos que não interessavam a sociedade brasileira e a crítica literária do período, prova disso é o fato do crítico Antonio Candido publicar um pequeno texto intitulado “Surrealismo no Brasil” (1992) em A brigada ligeira revelando que O agressor (2000) era um excelente romance surrealista, contudo trazia uma realidade que não era a nacional e que tinha “uma tentativa de transplantar a planta estrangeira para a terra pátria” (CANDIDO, 1992, p. 97) e dessa forma reduzia a
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importância e o valor desse escrito de Fusco no panorama nacional ao utilizar-se do controle interpretativo que a crítica literária possui para legitimar ou deslegitimar obras. A breve exposição da biografia de Rosário Fusco permite refletir sobre os aspectos já levantados inicialmente nesse trabalho e a compreensão de que modo inúmeros fatores contribuem para o processo de canonização de um autor. Vê-se que Fusco era um mulato, pobre, oriundo do interior do país, além de não ter relações amistosas com intelectuais, críticos literários, apoiar a ditadura Vargas e ainda escrever um discurso que ia na contramão daquilo que vinha sendo produzido com predominância em sua época, não recebendo a devida atenção da crítica literária do seu período. Isso posto, é notável a importância da revisitação de obras de autores desconhecidos e o resgate dos mesmos para o cenário literário e cultural do país. Bem como um olhar crítico para o cânone nacional, para que nele se incluam obras e autores que possuem uma produção de qualidade, sendo que esses foram esquecidos pelo fato de serem vozes dissonantes das especificidades que eram tidas como importantes e aceitáveis pelas instâncias de poder de suas épocas. Por meio do que foi exposto, podese reconhecer a força que as instâncias legitimadoras possuem e também a importância das relações de poder para o processo de canonização de autores e para a formação do cânone literário de uma nação. 4. Considerações finais Mediante as discussões levantadas e a revisitação breve da vida e obra de Rosário Fusco torna-se inevitável um olhar crítico à formação do cânone literário brasileiro, percebendo a influência das relações de poder, dos jogos políticos e ideológicos para a construção do mesmo. Por esse motivo, foi importante buscar as referências teóricas trazidas por Bordieu e Kermode, já que ambos tratam da força das instituições, do controle da interpretação e como esses aspectos afetam a construção e consolidação do cânone e da tradição literária. É importante perceber que o cânone literário brasileiro começou a formar-se a partir da segunda metade do século XIX (OLIVEIRA, 2007), quando os críticos começaram a trazer suas impressões a respeito de autores e obras e nessas impressões
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estavam presentes posturas ideológicas, visões de mundo de determinada época e a ideia de que tipo de literatura deveria ser levada em conta para ser reconhecida como parte da tradição literária brasileira. Sendo assim, naturalmente, outros textos ficavam esquecidos e fora da apreciação crítica e reconhecimento de intelectuais. Tendo como base essas discussões e esses referenciais foi possível observar a vida e a obra de Rosário Fusco e levantar quais os possíveis motivos que o mantiveram grande parte de sua produção literária esquecida na história literária nacional. Viu-se que Fusco vivia no interior do país, fora do eixo Rio – São Paulo e teve alguma notoriedade devido ao fato de participar ativamente das publicações da Revista Verde (1927 – 1929), um dos principais periódicos modernistas. Todavia, a produção de Fusco vai além da Verde, o autor possui diversos romances, alguns inéditos, que se marcam pela experimentação surrealista, pelo uso do fantástico, sendo precursor desse tipo de escrita, antes de J. J. Veiga e Murilo Rubião (OLIVEIRA, 2002), autores reconhecidos pela crítica nacional. Logo, percebe-se a importância da revisitação de obras e de autores que produziram em outros períodos históricos e tiveram a sua obra deixada de lado por vários fatores. O olhar atento a isso, bem como a percepção da importância dessas obras para o cenário literário brasileiro, possibilita um olhar mais crítico ao cânone e a história da literatura brasileira. Referências BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. BOURDIEU, Pierre. O mercado dos bens simbólicos. In:______. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 99-181. CANDIDO, Antonio. Surrealismo no Brasil. In: Brigada ligeira. São Paulo: Editora UNESP, 1992. CURVELLO, Aricy. Um escritor maldito? Jornal da UBE. São Paulo, n. 104, p. 23, 2003.
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FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. FUSCO, Rosário. a.s.a-associação dos solitários anônimos. 1ª ed. São Paulo: Atêlie Editorial, 2003. ______. O agressor. 3ª ed. Rio de Janeiro: Ao livro técnico, 2000. GRUIA, Ioana. Canon literario: reglas del juego. Sociocriticism, v. 22, n. 1, p. 295-332, 2007. JIMÉNEZ, David. Harold Bloom: la controversia sobre el Canon. Literatura: teoría historia y crítica, v. 3, p. 15-62, 2001 KERMODE, Frank. Institutional control of interpretation. Salmagundi, p. 72-86, 1979. LUCAS, Fábio. A volta de Rosário Fusco. Jornal da UBE. São Paulo, n. 104, p. 24, 2003. MUZART, Zahidé Lupinacci. A questão do cânone. Mulheres e literatura, Porto Alegre, p. 79-89, 1997. OLIVEIRA, Nelson de. O século oculto e outros sonhos provocados: crônicas passionais. São Paulo: Escrituras Editora, 2002. OLIVEIRA, Vanderléia da Silva. História literária nos cursos de Letras: cânones e tradições. 2007. 410 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários). Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2007. PERRONE-MOISÉS. Leyla. A modernidade em ruinas. In: ______. Altas literaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 174-215. WERNECK, Ronaldo. Rosário Fusco: a tênue densidade dos corpos. A modernidade perene de Cataguases. Belo Horizonte, novembro, 2013.
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CONSTRUÇÃO DO SUJEITO FEMININO NA FAMÍLIA PATRIARCAL EM MORTOS OS PAIS, DE SONIA COUTINHO
Luciana Asadczuk1 (UEPG) Marly Catarina Soares2 (UEPG) Resumo: Até meados do século XIX, quando o patriarcalismo era dominante, a condição feminina se resumia em dona de casa, dama ou então procriadora. A ela eram privados os direitos ao voto, à educação e ao reconhecimento social, enquanto os homens eram privilegiados com incentivos aos estudos e formação profissional, pois seriam chefes de família ou então grandes estudiosos reconhecidos na sociedade. A partir do século XIX, acontecimentos como o surgimento do feminismo, a conquista do direito ao voto, deram à mulher a possibilidade de traçar, aos poucos, seu próprio destino, podendo assim negar-se ao casamento, estudar e ocupar lugares privilegiados na sociedade. Importante ressaltar que hoje, em pleno século XXI, nem todas as mulheres têm este privilégio. Muitas famílias continuam seguindo a tradição patriarcal. Partindo deste viés, analisaremos, neste artigo, a construção do sujeito feminino no conto Mortos os pais, de Sonia Coutinho, publicado em 2005. Na condição da mulher nos tempos coloniais serão observados os conceitos de Mary Del Priore (1995) e Ana Neotti (1973) seguindo para os conceitos de Stuart Hall (2005) na questão da construção da identidade e Cecil Jeanine Albert Zinani (2006), mais especificamente na construção da identidade feminina. Palavras – chave: Identidade; Mulher; Patriarcalismo; Segundo o dicionário3 patriarca significa chefe de família, velho que tem muitos descendentes. Patriarcado quer dizer regime em que o chefe de família ou patriarca tinha poder absoluto em sua casa. Nos tempos de Brasil colônia o patriarcado foi muito 1
Graduada em Letras Português/Francês pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Professora Adjunta da Universidade Estadual de Ponta Grossa. 3 Michaelis: dicionário escolar de língua portuguesa. – São Paulo: Editora Melhoramentos, 2002. – (Dicionários Michaelis). 2
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forte. As famílias, principalmente rurais, tinham como chefe o pai, aquele em que todos deviam respeito e obediência. As mulheres, principalmente, deviam obediência ao homem e eram vistas como objetos e não como sujeitos4. Muitos são os estudos a respeito da era patriarcal, mas aqui vamos nos deter a apenas alguns conceitos, como os de Mary Del Priore (1995) acerca da condição feminina na família patriarcal. Del Priore (1995) aborda a questão da mulher na família patriarcal como um processo de adestramento5 da mulher. De acordo com a autora, isto ocorreu por meio de “um discurso de padrões ideais de comportamento [...] sermões dominicais [...] palavras ditas pelo padre no confessionário”, e o “discurso normativo médico, sobre o funcionamento do corpo feminino” (DEL PRIORE, 1995, p.27), afirmando que a função natural da mulher era a procriação. Ainda segundo Del Priore (1995, p. 27), “adestrar a mulher fazia parte do processo civilizatório, e, no Brasil, este adestramento fez-se a serviço do processo de colonização”. Portanto, o homem e a igreja tinham poder sobre as mulheres e estas deviam zelar pela sua reputação na sociedade, cuidar do marido e obedecer às ordens “divinas”. Del Priore (1995) reforça melhor a condição da mulher naquela época: A relação de poder já implícita no escravismo reproduzia-se nas relações mais íntimas entre marido e mulher, condenando esta a ser uma escrava doméstica, cuja existência se justificasse em cuidar da casa, cozinhar, lavar a roupa, servir ao chefe da família com o seu sexo, dando-lhe filhos que assegurassem a sua descendência e servindo como modelo para a sociedade familiar com que sonhava a Igreja”. (PRIORE, 1995, p. 29)
Sobre a mesma questão Ana Neotti (1973) afirma que a família constituía a unidade econômico-social. A herança por progenitura masculina, ou vínculo matrimonial muito rígido, tornava a mulher um ser menor, incapaz de possuir, de tutelar os filhos em caso de viuvez. Só não era desprezada porque se atribuía grande importância à descendência. (NEOTTI, 1973, p. 42)
Com o passar do tempo o patriarcado foi se desintegrando, mas os costumes patriarcais continuaram, não só nas áreas rurais, mas também no meio urbano. Segundo Neotti (1973) e Del Priore (1995), os pensamentos e costumes do patriarcado ainda continuam até hoje na mentalidade de muitas famílias, “pois marcou profundamente o direito familiar contemporâneo” (NEOTTI, 1973, p. 42). Apesar de todas as mudanças 4
Mary Del Priore Adestrar: (a+destra+ar) vtd e vpr 1 Amestrar, treinar. Vtd 2 Guiar, exercitar (p ex, o cavalo). Michaelis: dicionário escolar de língua portuguesa. – São Paulo: Editora Melhoramentos, 2002.
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sociais, muitas famílias preservam os costumes do Brasil colônia, principalmente na questão da liberdade feminina e do seu papel na sociedade. Na mentalidade de muitas famílias, muitas vezes as próprias mulheres acreditam que devem se casar e cuidar do marido, pois este é o papel designado a elas. Esta problemática é recorrente nas obras da escritora Sonia Coutinho. Dentre os assuntos mais encontrados em sua obra estão a mulher submissa e aquela que sai em busca de sua liberdade, pois enquanto continuam com os pais são “forçadas” a seguir as tradições, geralmente nos moldes patriarcais. Obra de Sonia Coutinho Nascida em 1939, na Bahia, Sonia foi escritora, tradutora e jornalista. Vencedora de importantes prêmios de literatura, entre eles o jabuti. Faleceu em 23 de agosto de 2013. Suas obras retratam a condição da mulher em diversas situações, desde aquela condenada a viver os costumes tradicionais da família até aquela que saiu de seu local de origem em busca de novas oportunidades. As consequências das atitudes tomadas por elas são retratadas de diversas formas pela autora. Algumas com a vida de ilusão, outras felizes por terem se libertado das tradições. A questão dos costumes e sofrimentos da mulher na época do patriarcado, por exemplo, pode ser observada claramente no conto Mortos os pais, objeto de estudo deste artigo. Mortos os pais, construção da identidade feminina Mortos os pais é um conto do livro Os venenos de Lucrécia publicado em 2005 pela autora Sonia Coutinho. Narrado em 3ª pessoa, o conto gira em torno do velório dos pais de um casal de filhos. Estes apresentados apenas como Ela e o Irmão, assim como também os pais, Pai e Mãe. Os personagens não trazem nomes, portanto são chamados desta forma. A narrativa se faz através do ponto de vista de um narrador onisciente, descrevendo a personagem principal, a Filha. A ação se passa em uma capela mortuária, na qual estão sendo velados o Pai e a Mãe, vítimas de um acidente de carro. No decorrer da narrativa são descritos pensamentos da personagem Ela, bem como lembranças de sua vivência com os Pais, a sua “fuga” de casa através de um casamento precoce e a
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convivência com eles. O único ausente no velório é o Irmão, que segundo o narrador, está estudando em Paris às custas dos pais. As personagens femininas, a Mãe e a Filha são apresentadas como sendo um peso uma à outra. Nas lembranças da Filha, a mãe parecia viver o casamento por conta dela, já que engravidou e teve de se casar muito nova. Já a Filha precisou sair de casa, viver longe da Mãe para que pudesse viver sua vida como queria, pois sua Mãe tentava moldá-la aos costumes patriarcais. A Mãe Vista como a Bela Senhora e elegante, casou cedo, na época em que se casavam virgens. Detestava a Filha, achava-a fraca demais, esquisita, sem capacidade de saber onde meter as mãos, de encontrar seu caminho, desajeitada, feia, magra demais, incapaz de construir a vida longe da mãe. Preferia o irmão, que apesar dos 34 anos era ainda sustentado pelos pais: Longe dela, que ignorando sua muda adoração dos primeiros anos, sempre preferiu o “menino louro”, seu irmão que nunca deu trabalho, o que comia com gosto, em vez de passar os dias chorando pelos cantos, ah, ele, o alegre, o simpático, o risonho e o afetivo, ele em quem a Mãe encontrara “todo o consolo para uma vida sacrificada”: uma Vida de Mulher. (COUTINHO, 2005, p. 49)
A preferência da Mãe pelo filho caçula deve-se aos costumes patriarcais, na qual as mulheres deviam respeito aos homens da casa. Quando solteiras viviam sob obediência do pai e após o casamento sob obediência do marido, como afirma Neotti (1973, p. 43), “o matrimônio passa a ser instituição econômica e a mulher não muda de condição ao passar do poder do pai para o do marido”. A Mãe tinha o filho como “consolo para uma vida sacrificada”, talvez devido ao sofrimento que as mulheres eram “condenadas” a passar, e naquela época ter um filho homem era visto como orgulho pelos pais, pois este não teria uma vida de sacrifícios como as mulheres e continuaria sua descendência. Ao ter um filho homem, a mãe poderia ser menos punida pelo esposo. Outro motivo que pode ter levado à Mãe a odiar a Filha deve-se à forma como a Filha foi concebida: Pois a você ela parira jovem demais, tinha apenas 17 anos e então (ela própria lhe contou, sorrindo como de uma criancice), quando se descobriu grávida de um homem a quem nunca amara (sempre deixou isto bem claro, ficou com o marido só por causa dos filhos), com o qual se casara ainda
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menina para satisfazer os pais (eram gente humilde, o rapaz tinha um diploma de advogado e, no entender deles, um “futuro”), então pulava interminavelmente, na vã esperança de perder a criança – ela). (COUTINHO, 2005, p.51)
A Mãe, na visão da Filha, se mostrava forte ao aconselhá-la a seguir os costumes da família, como nesta passagem do conto: “a Mãe que tanto se esforçou para enquadrála em seus moldes (as prendas domésticas a adquirir, o bom marido rico a conquistar)” (COUTINHO, 2005, p.47). Mas a Filha tinha consciência do sofrimento da mãe ao ouvir seus desabafos às amigas: ‘-Que horror, ser mulher! Nascemos para sofrer!’- e se esforçando (por que não?) para o marido dar um pouco mais de dinheiro, queriam um sapato novo, uma bolsa nova, quem sabe um colar de pérolas e rezavam, quando nada conseguiam e enfim se submetiam (que outra saída?), coisas de fêmeas frágeis/feridas. (COUTINHO, 2005, p.49-50)
Ao se casar, a Mãe se viu obrigada a seguir sua sina de mulher e mesmo se mostrando ser forte diante do marido e da Filha, numa noite a Filha a ouve chorando em seu quarto “a repetir, no escuro: Até quando terei de suportar tudo isso calada?” (COUTINHO, 2005, p. 50). Mesmo com seu sofrimento, pelos costumes que adquiriu em sua vida, a Mãe tenta enquadrar a Filha nos mesmos moldes. Ao perceber que de nada adiantava tentar moldar a Filha, esta que tinha um comportamento difícil, um dia lhe deu um conselho: “Case, se quiser, mas nunca tenha filhos, às vezes é a pior coisa que pode acontecer com uma pessoa” (COUTINHO, 2005, p, 51). Desde seu nascimento, a Mãe “internalizou seus significados e valores” passados pelos seus pais. Os costumes, as tradições foram construindo sua identidade durante seu crescimento. Nesse sentido, a personagem da Mãe pode ser vista como “sujeito sociológico”, na definição de Hall (2005), o qual afirma que: A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. Estabilizar tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis. (HALL, 2005, p. 11-12)
A identidade construída pela Mãe durante o crescimento na família foi moldada a partir dos princípios dos pais e da sociedade da época, portanto, uma identidade
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unificada, pois os costumes patriarcais impunham comportamentos às mulheres, estas não tinham autonomia para mudá-los. A Filha Fruto de um casamento infeliz, a Filha tem um comportamento visto pela Mãe como esquisito por não brincar com as crianças e viver escondida pelos cantos. Odiada pela Mãe e agredida pela “ternura viscosa” do pai, agora está diante dos corpos frios, imóveis, relembrando tudo o que passou. Nesta passagem do conto, o narrador expõe, em destaque, os pensamentos e lembranças da Filha sobre a mãe deitada imóvel sobre o caixão: O quanto você me repetiu que eu era uma fraca e acreditei, que eu jamais saberia encontrar sozinha o meu caminho e achei ser verdade, que eu seria incapaz de tomar conta de mim mesma e [dei isto como certo, eu, que acordava de súbito, no meio da noite, banhada [em frio suor Tentando inutilmente lembrar do sonho ruim, eu, a feia, eu, a desajeitada, eu que nunca soube onde [meter as mãos e os pés, eu, a magra demais, eu que nunca quis me alimentar [direito, eu, a hipersensível, a esquisita, ah, eu que só fiz dar desgosto, e sem saber ao certo por quê, ah, era mesmo muito difícil você imaginar que eu [pudesse, como fiz, Construir minha vida longe de você. (COUTINHO, 2005, p.49)
Ao lembrar de toda a batalha com a Mãe quando a mesma estava viva, a Filha sente compaixão olhando os corpos ali, agora indefesos, mas ao mesmo tempo sente uma libertação, um fim daquele sofrimento, “era o final de uma longa batalha, sua infância/sua vida, num súbito (agora) entrechoque de emoções emergentes/sufocadas (vai gritar – não vai gritar)” (COUTINHO, 2005, p.52). Depois de tudo o que passou saindo de casa “para travar uma batalha de homem e ganhou” (COUTINHO, 2005, p. 54), a personagem faz referência aos costumes da Mãe que diziam que mulher não tinha a capacidade de viver sozinha. Casou-se só para sair de casa e separou do marido para viver livre: Casou-se com 20 anos só para sair de casa, veio para o Rio sozinha quando se separou do marido, trabalhou em escritório para custear a Universidade, nada quis receber da família, formou-se em Engenharia pelo seu próprio esforço, tornou-se enfim uma profissional conceituada, dona do seu nariz, ninguém
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poderá jamais tolhê-la/ feri-la assim outra vez, não se entregará, nesse momento, a uma idiota ameaça de mal-estar, sentimentos de culpa seriam hipocrisia, culpados foram eles, está um pouco tonta, é apenas isso, o calor e toda essa gente em redor. (COUTINHO, 2005, p. 52).
Agora é uma mulher independente, “dona do seu nariz”, portanto, não se deixa levar pela tristeza ao ver os pais mortos, agora impossibilitados de insultá-la. A representação da Mãe e da Filha no conto se dá apenas por características ou qualidades, boas e ruins, não cabendo a elas um nome. A mãe, por vezes é chamada de “Bela Senhora” e a filha de “Eterna Filha Condenada”. A mãe que nasceu em uma família com tradições mais rígidas teve de se casar muito nova, por conta de uma gravidez. Casou-se, portanto, com quem nunca amou. Vivia então, uma vida de sacrifícios, uma “Vida de Mulher”, como apresentado na narrativa. Mesmo após o fim do patriarcado, a personagem Mãe nasceu de uma família que ainda preservava as tradições e, portanto, continuou seus costumes na família que constituiu, por obrigação. Já a Filha, sendo odiada pela família e tendo a oportunidade de mudar de vida, decide se casar para poder se ver livre da família, não necessitando assim, seguir as tradições, já que após o casamento, mudou para o Rio e separou do marido. Agora é a “Veloz Engenheira ao Volante”, não mais a “Eterna Filha Condenada”. De acordo com Zinani (2006, p. 24), “a análise da situação cultural da mulher é relevante no sentido de verificar como ela vê o outro, como é vista pelo grupo dominante e, consequentemente, por si mesma. Essa perspectiva é representada na obra ficcional por meio da ação das personagens”. Portanto, ao vivenciar o sofrimento da Mãe, a Filha decide seguir um conselho que a Mãe lhe dera um dia, não se casar e viver livremente cuidando de sua própria vida, mas é vista pela família como desobediente, a esquisita, por vezes é comparada com o pai, o rude, o sofredor. As ações da personagem Mãe, descritas na visão da Filha, deixam claro que tendo vivido da forma que foi educada, acreditava que a Filha também deveria viver daquela forma. Agora, a Filha, ao se divorciar, construiu sozinha a sua vida longe de suas origens. Formou-se em engenharia sem a ajuda dos pais, comprou um apartamento no Rio e planeja viajar ao exterior a fim de aprofundar seus conhecimentos. Isso foi
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possível devido às transformações que ocorreram na sociedade, fruto da modernização e das lutas feministas. Segundo Hall (2005), as transformações associadas à modernidade libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas. Antes se acreditava que essas eram divinamente estabelecidas; não estavam sujeitas, portanto, a mudanças fundamentais. (HALL, 2005, p. 25)
Diferentemente da Mãe, que não teve o privilégio de escolher sozinha o seu caminho, a Filha pode construir sua própria identidade, pois vive em uma época em que as mulheres tem a livre escolha de seus destinos, graças às mudanças na sociedade, dentre elas, as conquistas do feminismo. Considerações finais Com as mudanças ocorridas na modernidade, as identidades se tornaram “fragmentadas”, como afirma Hall (2005), dando às mulheres possibilidades de escolha. Isso se deu através de grandes avanços na teoria social e nas ciências humanas ocorridas na segunda metade do século XX, dentre eles o feminismo. Segundo o autor, o feminismo “politizou a subjetividade, a identidade e o processo de identificação (como homem/ mulher, mães/ pais, filhos/ filhas)”. (HALL, 2005, p. 45). Ainda de acordo com Hall (2005, p. 12) esses processos produzem o “sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente”. Sendo assim, as personagens femininas aqui analisadas representam os dois lados, o anterior e o posterior ao feminismo. Importante ressaltar, que as atitudes anteriores ao feminismo, representadas pela personagem Mãe ainda podem ser encontradas na sociedade moderna, devido às tradições que foram sendo preservadas durante as transformações da sociedade. Referências COUTINHO, Sonia. Os venenos de Lucrécia. 2.ed. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005. 95 p. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós - modernidade. 10.ed. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: DP&A, 2005. 102 p. ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Literatura e gênero: a construção da identidade feminina. Caxias do Sul: EDUCS, 2006. 198 p.
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NEOTTI, Ana. A mulher no mundo em conflito. Ponta Grossa: UEPG, 1973. 104 p. DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil colônia. 2.ed. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1995. 358 p.
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O TRÁGICO EM SAPATO DE SALTO DE LYGIA BOJUNGA Luciana Ferreira Leal (FACCAT/SEDUC)
Introdução Neste texto, apresentam-se resultados parciais de pesquisa de pós-doutorado em Literatura. O objetivo é o de discutir aspectos do trágico presentes em Sapato de Salto de Lygia Bojunga. Publicada em 2006 e merecedora do prêmio FNILIJ em 2007, considerada altamente recomendável para o jovem, a obra retrata a trajetória de Sabrina, criada em orfanato, que é resgatada para trabalhar como babá em troca de casa e comida na casa de uma família burguesa. A menina, com apenas 10 anos, pensa ter encontrado uma família, até ser estuprada recorrentemente pelo patrão. O destino de Sabrina começa a ser traçado, principalmente, pela impossibilidade de lutar contra ele (RICHE,2011, p.94). O erro de Inês precisa ser reparado e a personagem trágica sente o peso do destino. O assassinato acontece na casa onde moram. A teatralidade da cena provoca terror e compaixão no leitor, que se sente impotente diante da reviravolta do destino das personagens. As simbologias, presentes na narrativa, figuram-se, principalmente, no sapato de salto e na pedra. Ao mesmo tempo em que os elementos trágicos levam as personagens à degradação, a partir do décimo primeiro capítulo, denominado ”Novos caminhos”, Andrea Doria, Leonardo e principalmente Paloma atuam como mediadores, auxiliando Sabrina em seu relacionamento consigo mesma e com o outro. O trágico em Sapato de Salto O leitor, por meio de analepses, principalmente de personagens rememorando seu passado, sabe que Inês de dançarina transformou-se em prostituta e usuária de drogas por se apaixonar por um homem dez anos mais velho que ela. Sabe também que Maristela, mãe Sabrina, aos quinze anos, após dar à luz, atirou-se num rio com uma
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pedra atada ao pescoço, porque o pai da criança, um homem mais velho e casado, não queria saber dela nem da menina. Aspectos do trágico se fazem presentes neste texto. O erro de Inês precisa ser reparado e a personagem trágica sente o peso do destino. O assassinato acontece na casa onde moram no momento em que o explorador vem cobrar satisfações de Inês por ter abandonado o serviço. Ele atira a queima roupa contra toda a sua indignação. A teatralidade da cena provoca terror e compaixão no leitor, que se sente impotente diante da reviravolta do destino das personagens. O destino de Maristela, assim como o da irmã, carrega a tragicidade das personagens que caem em desmedida e por isso são punidas por um destino trágico, contra o qual não conseguem lutar. As simbologias, presentes na narrativa, figuram-se, principalmente, no sapato de salto e na pedra. O sapato de salto alto é o símbolo de transfiguração tanto de tia Inês quanto de Sabrina. A pedra que Dona Gracinha segura sempre em sua mão é a pedra que Maristela atou ao pescoço ao se suicidar. Segundo o Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2000), existe entre a alma e a pedra uma relação estreita. Intitulado “O segredo azul fraquinho”, o primeiro capítulo se mostra e mostra também a história de Sabrina. Já em casa de Seu Gonçalves e Dona Matilde, a menina dedica-se a cuidar das crianças e de alguns afazeres da casa. Matilde é áspera desde o primeiro contato, nega-lhe o mínimo gesto de carinho, não admite sequer ser chamada de tia. Já Gonçalves é solícito, examinador e gosta de Sabrina. Já nas primeiras páginas do livro, o indício de possível relação entre Sabrina e Gonçalves: Matilde, “de noite tinha um sono de pedra” (BOJUNGA, 2011, p. 13). Gonçalves dá presentes a Sabrina, mas pede-lhe segredo. O título faz alusão à cumplicidade que se estabelece entre os dois. No dicionário de símbolos, o azul representa a pureza e é a cor do manto da virgem Maria. É a cor da imensidão, da água, do céu. É com essa conotação positiva que Sabrina deseja a relação entre os dois. Bala, sabonete, bombons, aulas – a protagonista feliz, pensa que ganhou um pai. Mal sabe ela das intenções do patrão: “Seu Gonçalves ficava cuidando ela com o olho, examinando braço, cabelo, pescoço.” (BOJUNGA, 2011, p. 20).
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Sabrina progredia nos estudos, e Gonçalves estava desejoso para saber se em “outras aulas iam ser tão bem assimiladas assim”. Aqui nos deparamos com mais um indício do abuso e, na sequência, a realização do mesmo. Cena patética é desvelada ao leitor. Diante dos apelos de Sabrina, - Que que há, seu Gonçalves? Não faz isso, pelo amor de deus! O senhor é que nem meu pai. Pai não faz isso com a gente. _ Conseguiu se desprender das mãos dele. Correu pra porta. Ele pulou atrás, arrastou ela de volta para a cama: _ Vem cá com o teu papaizinho. _ Não faz isso! Por favor! Não faz isso! _ Tremia, suava. _ Não faz isso! _ Fez. (BOJUNGA, 2011, p. 22).
A cena é patética, digna de terror e piedade. Diante dela, o leitor se abate, pois se dá conta de que há incesto, não no sentido literal do termo, mas há incesto psicológico e afetivo, uma vez que, para Sabrina, Seu Gonçalves é um pai e um pai, teoricamente, não faria o que ele fez. O desejo de Sabrina era o de sumir, mas, como não tinha para onde ir, era mais fácil ficar: “e o grande segredo dos dois passou a animar a vida dele, a botar sombra nos dias dela.” (BOJUNGA, 2011, p. 23). Não mais conseguia se concentrar nos estudos. Gostava tanto de desenhos coloridos, mas nunca mais desenhou. A tensão de Sabrina é constante. Tem medo de ser flagrada por Dona Matilde e só faz pensar na maçaneta branca rodando. Até que uma noite, Sabrina percebe os chinelos de salto na fresta da porta. Mas Dona Matilde é conivente. Não expulsa Sabrina, não revela nada ao marido, porém trata-a muito mal e a agride fisicamente. Por ter medo de apanhar mais, não conta para Seu Gonçalves. Ele, por sua vez, visita-a em seu quarto constantemente e leva-lhe bala, bombom, fruta cristalizada, calcinha de renda, revista em quadrinho, dinheiro. Por ironia, quando ele se esquece dos mimos, ela lhe cobra: “ _ Ei!! E o dinheirinho?” (BOJUNGA, 2011, p. 28). Gonçalves induz Sabrina à prostituição e a menina de 10 anos, inconsciente, se prostitui. O Capítulo segundo, denominado de “A tia Inês” funciona como o divisor de águas na história de vida de Sabrina. A descrição de Inês é feita aos moldes do Realismo. Essencialmente minuciosa, com destaque ao corpo e a à roupa, ressaltando o aspecto sensual, Sabrina começa a conhecer sua história. Sabe, agora, que tem uma tia e uma avó por ela. Na despedida, Sabrina recebe uma bofetada de Dona Matilde: “_ É pra
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você não se esquecer que eu não vou me esquecer. _ E bateu a porta com a mesma força da bofetada.” (BOJUNGA, 2011, p. 38). Se restava alguma dúvida ainda para o leitor se a esposa era ou não conivente com a traição e abuso do marido, aqui ela se desfaz. Encontro e reconhecimento de Sabrina e Inês. Palavras e gestos de carinho conquistam o coração de Sabrina, que nunca tinha vivenciado isso. Sabrina saboreia o carinho e o conforto de não se ver mais sozinha no mundo: tinha uma tia e uma avó. Inês conta-lhe da mãe que se lançou ao rio com uma pedra amarrada ao pescoço, logo após deixá-la na casa dos abandonados. Ambas sabiam que a vida não era uma festa, entretanto, “na hora de atravessar a rua a tia Inês pegou a mão da Sabrina. De rua atravessada, seguiram do mesmo jeito: mão dada.” (BOJUNGA, 2011, p. 39). A cena é forte para o leitor, afinal, apesar da vida não ser uma festa, tia e sobrinha caminham de mãos dadas. E será essa união, essa força que acompanhará Sabrina ao longo do enredo. O primeiro encontro entre Andrea Doria e Sabrina, encontro esse que será fundamental para o desfecho da história, se dá quando tia e sobrinha estão chegando em casa. Com treze anos, alto e magro, o garoto é apaixonada por dança e procura a tia Inês para lhe ensinar. Volta, no outro dia, e desperta a atenção de Sabrina que se sente totalmente atraída pela sua singularidade. É importante ressaltar que tal singularidade incomoda Rodolfo. O pai não compartilha das opções sexuais do filho nem se sente agradado por elas. Acusa a mãe pela escolha do nome que considera feminino, sem levar em conta a origem histórica do mesmo. A relação que Andrea Doria tem com Rodolfo, o pai, e Joel, o namorado, é bem conturbada. Oprimido pelo pai, não encontra apoio do namorado, que o humilha por sua suposta ignorância. O único vínculo afetivo com o sexo masculino que constrói é com Leonardo, o irmão gêmeo da mãe que vive em São Paulo. Andrea deseja que Leonardo seja seu pai. Essencialmente sensível, o tio entende a paixão de Andrea por um jovem do mesmo sexo, sem ser isso decisivo para sua opção sexual. O encontro de neta e avó é também emocionante: “ _ Neta! Minha boneca! _ E colheu a Sabrina num abraço apertado, repetindo: _ Neta! Minha boneca!” (BOJUNGA, 2011, p. 51). Ninguém a tinha visto como tanta delicadeza. A leveza das palavras e da cena revela o aconchego do lar e o amor da família, que, agora, Sabrina tem.
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Vale ressaltar que, apesar da insanidade de dona Gracinha, avó e neta constroem vínculo afetivo surpreendente. Enlouquecera após sucessivas decepções e amarguras e depois de uma queda, um empurrão de Inês, que resultou em perda de consciência e efetivou a loucura. Na casa amarela, Sabrina sente felicidade plena ao lado da tia e da avó. Sabrina experimentava o gosto que a liberdade tem, tomava consciência de que era bom ser feliz. Sabrina conta à tia do abuso que sofrera. Com medo de a tia ficar triste, não entender, a garota adiou a revelação. Sabrina também se preocupa em saber se a mãe dela, se viva estivesse, entenderia o que lhe aconteceu. A tia, ao perceber o tratamento de Matilde quando foi buscar a Sabrina, já pressente o que Sabrina acaba de revelar. Inês fica triste com a situação, com a atitude de seu Gonçalves, mas entende as condições de Sabrina. Maristela, segundo Inês, também entenderia. Afinal, quando grávida, se prostituiu para não passar fome. As condições adversas que as quatro mulheres dessa família enfrentam desolam o leitor. Em se tratando dos presságios e simbologias, elementos do trágico, devemos considerar que os mesmos são fundamentais, visto que personalizam o ambiente trágico que envolve a intriga. Os presságios são constituídos por todo o tipo de afirmação e acontecimento susceptíveis de fazer prever uma fatalidade inevitável. Os presságios são, na análise estrutural da narrativa, indícios, unidades narrativas que prognosticam fatos que se concretizarão. O primeiro presságio envolvendo a vida/morte de Betina ocorre quando, um mês antes de seu nascimento, Paloma se despede de Leonardo e sente muito medo, chega ao pânico: De repente ela se agarra com tanta força no braço de Leonardo, que ele se volta surpreso. E se surpreende ainda mais ao ver o medo que tomou conta da cara de sua irmã. (BOJUNGA, 2011, p. 80). _ Eu tô com medo, Léo, eu tô com muito medo! (BOJUNGA, 2011, p. 81). _ Eu tô com medo, Léo, eu tô cheia de pressentimentos ruins [...]
(BOJUNGA, 2011, p. 82).
É necessário, pois, analisar, as simbologias presentes no livro em questão. O sapato de salto aparece como a mais significativa delas. Dessa perspectiva, conforme o
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Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2000, p. 799), para os celtas, “o salto é uma proeza guerreira, fazendo parte dos recursos utilizados pelo herói, seja para escapar de um adversário, seja para derrotá-lo. Também pode estar ligado à expressão de uma afronta”. Inês tem muitos adversários: as adversidades da vida, o sonho frustrado de bailarina profissional, a droga, a prostituição. Todavia, o seu maior adversário é o assassino que, depois de viciá-la e aliciá-la, mata-a, sem dó nem piedade, quando se vê abandonado por ela. Alguns dos intérpretes
do conto Cinderela, fizeram do sapato, símbolo de
identificação, símbolo sexual, de desejo despertado pelo pé: “aqueles que consideram o pé como um símbolo fálico verão facilmente no sapato um símbolo vaginal e, entre os dois, um problema de adaptação que pode gerar angústia.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2000, p. 799). Adolescente, Inês compra o seu primeiro sapato de salto de verniz com as economias que recebe da patroa da mãe. Depois foram muitos outros. E o salto aumentava a cada sapato comprado. Aumentava também a distância entre mãe e filha, esta, cada vez mais deslumbrada por Copacabana, pelo mar. Mas o que sustentava esse deslumbre era a prostituição, as drogas e o fascínio por um vigarista sedutor, dez anos mais velho que ela, que a explora sexualmente e a vicia, tornando-a totalmente dependente dele. O sapato de salto é a marca da elegância de Inês. Ela dança com ele e é também no sapato que guarda as economias com as quais Sabrina e a avó vivem algum tempo após sua morte. Sabrina, ao se prostituir, usa os sapatos da tia. Com eles, parece mais velha e mais alta. A simbologia da pedra é por demais significativa. Consoante à lenda de Prometeu, “procriador do gênero humano, as pedras conservaram um odor humano”. Talvez por isso Dona Gracinha trazia sempre consigo a pedra que Maristela usa para afundar. Ainda para Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, “a pedra e o homem apresentam um movimento duplo de subida e de descida. O homem nasce de Deus e retorna a Deus”, simbolizado assim, a morte. (2000, p. 696). Quando encontram Maristela, o corpo já não existia mais, estava decomposto: “quinze anos! Recém se preparando pra
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vida; e aquela risada gostosa que ela tinha ... quinze anos! E nada mais dela sobrando; só uma pedra e nada mais?” (BOJUNGA, 2011, p. 94). Um grande indício de que a tragicidade envolverá também a tia, se dá após Inês revelar à Sabrina as circunstâncias do seu nascimento e da morte da mãe. Entretanto, a garota deseja saber mais de tudo, principalmente da vida de Inês. Em nota de rodapé figura: “mal podia imaginar que poucos dias depois ia saber de muita coisa – mas de maneira tão trágica, que era melhor não ter sabido.” (BOJUNGA, 2011, p. 120). Quando Maristela consegue reorganizar a família, na casa amarela, na cidadezinha de infância, a felicidade das três é destruída pelo antigo namorado de Inês. Denominado “O Assassino”, o capítulo oitavo carrega em seu título intensa carga pressagiosa. Ele chega à casa das três e “como a Sabrina não sabia que ele ia ser o assassino, resolveu perguntar”. Antes mesmo do assassinato se efetivar, o leitor pressente o que acontecerá, mesmo torcendo para que nada de mal aconteça às três. O clima é de tensão e de muitos presságios. Sabrina sente nervoso e chega a perder a fome. O termo presságio será compreendido enquanto qualquer tipo de afirmação e ocorrência capaz de prever infortúnio inevitável. Os diversos presságios representam manifestações encobertas da força do destino, bem como indicações sutis para um epílogo em que a destruição e o sofrimento caminhem juntos. O futuro revelado durante a narrativa faz-se presente quando os presságios, espalhados no decorrer da ação transformam-se em realidade. Os indícios, que edificam a previsão da fatalidade, conquistam forte efeito, particularmente nos momentos em que se prepara ou realiza o trágico. (LEAL, 2006, p. 73). Em se tratando do patético, consideramos que ele deve ser entendido como a habilidade de provocar, no leitor, estado de ânimo despertado por sentimento estético – melhor dizendo – a capacidade de produzir, no leitor, sensação de sentir o que sente a personagem, caso esteja na situação experimentada por ela. O patético é capaz de despertar a comiseração, a piedade, a pena, a condolência diante da aflição da personagem. Despertar esse sentimento é capacidade artística de comover poderosamente por meio da palavra. Muitos são os elementos que contribuem para a
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expressão do patético, entre eles, podem-se destacar determinados acontecimentos da história, os diálogos e também a narração. (LEAL, 2006, p. 72). O patético – a emoção provocada por espetáculo onde se participa – como entende Aristóteles (1973), é figurado em Bojunga pela utilização competente do terror, da angústia e também da piedade. A primeira referência patética da obra trata do bilhete que Maristela escreve, mas que chega à sua mãe apenas depois de alguns anos: “Minha mãe, Pari. É uma menina. Quem me botou prenha não quer mais saber de mim e não quer ver a filha que fez, só disse, vire-se. Eu queria ser professora, feito a senhora sempre quis. Mas agora eu só quero morrer. Não tenho coragem de pedir para a senhora tomar conta da menina. Vai dar despesa. Vai dar trabalho. Vai dar ainda mais chateação do que eu já dei. Acho melhor levar a minha filha comigo. Só que eu não sei se eu vou ter coragem, quem sabe um dia ela pode ser feliz. Desculpe qualquer coisa, viu? Bênção. Maristela.” (BOJUNGA, 2011, p. 96).
A leitura do bilhete toca o coração do leitor, que se enternece diante de um destino trágico, de uma vida destruída em tão plena juventude, de um amargor tão profundo sentido pela personagem. É patético também a cena em que figura Dona Gracinha e Maristela, em que a mãe descobre que a filha está grávida de seis meses. O pai da criança é mais velho, casado e pobre, por esse motivo não há perspectiva de que assuma a gravidez e a namorada, nem proporcione vida digna às duas. Dona Gracinha se desespera, é dura com as palavras. Fala-lhe de todo o sacrifício que faz, do intenso trabalho para dar vida digna às filhas. Não se conforma em receber a gravidez da filha como paga a tantas abnegações: “quanto mais o desespero ia ganhando forma na fisionomia de Dona Gracinha, mais o choro ia lavando a cara de Maristela.” (BOJUNGA, 2011, p. 99). Nunca mais Dona Gracinha viu a filha. O terror e a piedade que o espectador sente diante do que pode suceder ao herói trágico, diante do destino que o espera, nada tem de abnegação ou desprendimento – esse terror trágico é egoísta: o espectador não receia apenas pelas personagens que assiste, mas também por si próprio. (LEAL, 2006, p. 72). Nesse sentido, ressaltamos que o que mais toca o leitor é a condenação de Dona Gracinha a si própria, ao
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arrepender-se de ter sido tão dura com a Maristela, ao atribuir a si própria a culpa pelo suicídio de filha. É patética a cena em que Inês, decidida a morar com o explorador, comunica à mãe já com a mala na mão. Agarrada e puxada pela Dona Gracinha, livra-se dela com um empurrão, que a impulsiona para o chão. Mais tarde, Inês vem a saber que aquela queda fora a causadora da quase morte de Dona Gracinha se não tivesse sido socorrida pela patroa. O tombo lhe custou a insanidade e o internamento em um asilo psiquiátrico. Todavia, o que de mais patético existe na narrativa é o assassinato de Inês. Ao recusar viver novamente com o antigo namorado que julgava morto, a discussão inicia plena de ofensas, xingamentos, deboches e presságios de um final trágico. Na briga travada entre os dois, socos e pontapés também atingem Sabrina que tenta proteger a tia. É patético porque o leitor sente comiseração, sente piedade. Inês consegue se livrar da droga, da prostituição, do homem que a explorava. Consegue reorganizar a família, dar uma vida decente para a mãe, um lar para a Sabrina e amor para as duas. No entanto, a paz familiar dura pouco e ela é tentada pelo demônio e por ele é morta. O que se passa depois consterna o leitor, faz-lhe doer o coração. Sabrina aperta com força a mão da tia e pede em pensamento para ela não morrer: “não adianta nem querer dizer alguma coisa: a garganta está trancada e a Sabrina só consegue pedir rezando: me ajuda, tia Inês, me ajuda, não deixa a tua mão esfriar mais.” (BOJUNGA, 2011, p. 142). Ao leitor, resta a melancolia ao constatar que toda a perspectiva de vida feliz de Sabrina é destruída em tão pouco tempo. Não bastasse viver sem família num lar de órfão, ser abusada pelo patrão quando tem a esperança de ter encontrado uma família, uma proteção, quando tem a ilusão de que Gonçalves poderia lhe suprir a carência paterna, perde a tia violentamente e agora está só, mas, desta vez, com a avó demente. Aristóteles (1973) acredita que a tragédia provoca terror e piedade – elementos cruciais do fenômeno trágico. Tal provocação tem como consequência a obtenção do efeito catártico, que é a purgação das emoções. O patético manifesta-se nessa narrativa de diferentes formas. Tem-se, por exemplo, a desgraça motivando cenas patéticas; a paixão expressa por palavras e gestos patéticos; a infelicidade, o sofrimento, o pathos provocando o impacto do leitor e da personagem.
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Sabrina se prostitui para comprar comida, é flagrada por Andrea Doria. Ela lhe conta parte de sua história. A expressão doída do seu semblante é a mesma do semblante da Inês durante a discussão com o Assassino. O diálogo entre os dois é comovente, como comovente é essa história em si, e ao mesmo tempo choca, emociona: _ Ela dizia que... que... – Já não havia mais desafio nem revolta no olhar de Sabrina. Na cara toda agora só tinha tristeza. Tanta! Que olho começou a despejar lágrima e a voz foi saindo cada vez mais fraquinha: _ Ela dizia que ia me transformar na dançarina que a vó Gracinha queria que ela fosse e que ela nunca chegou a ser. Ela queria pra mim o que ela ... Ah, era tão bom, todo dia lá com a tia Inês! Eu gostava tanto dela, era tão bom! Dançando... brincando com a vó Gracinha... tão bom que era... Na geladeira sempre tinha comida, era tão bom... _ A voz trancou; a boca se apertou pra não deixar sair soluço nenhum. Andrea Doria começou a ficar também com vontade de chorar (não sabia se por ela ou por ele). Quis saber: _ Agora não tem mais? Ela ficou sacudindo a cabeça até a voz confirmar: Não tem mais. Não tem mais. Não tem mais a tia Inês. _ E um soluço escapou. _ Não, eu quis dizer se não tem mais comida. E do mesmo jeito ela fez que não, que não. (BOJUNGA, 2011, p.
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No que diz respeito à hybris, deve-se ressaltar que ela tem importância fundamental no pensamento e na ação dos gregos. Trata-se justamente do oposto àquilo que por eles é buscado nos mais diversos planos. Tal noção condensa o conjunto de vícios humanos segundo a noção clássica: a exacerbação, o exagero etc. A hybris passa a constituir, ao lado de seu contrário, a justa medida, o centro das atenções e dos debates. (LEAL, 2006, p. 69). Na tragédia grega, o herói traz consigo a falha de ser dotado de hybris. Relacionada ao equilíbrio e à racionalidade do século V a.C., a hybris representa a desmedida do individualismo. Nessa tragédia, a hybris é normalmente seguida da hamartia, erro sem culpa, pois é cometido inconscientemente, mas capaz de provocar a desordem no universo social. (LEAL, 2006, p. 60). Não é preciso dizer que o leitor se depara, nesta obra, com personagens dotadas da hybris própria do herói trágico. Paloma, a mãe do Andrea Doria, perde Betina no parto. Apesar de orientada pelo médico e pelo marido a marcarem uma cesárea, ela insiste no parto natural.
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Apesar dos maus pressentimentos, Paloma só permite a cesárea quando é informada que Betina corre risco de morte. Entretanto, há uma explosão no hospital quando se é necessário tentar a respiração artificial em Betina e ela não resiste. Rodolfo a acusa pela morte de Betina, a acusa por ter cometido um crime. No Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano, o termo hybris é definida como “uma qualquer violação das normas da medida, isto é, dos limites que o homem deve encontrar em suas relações com os outros homens, com a divindade e com a ordem das coisas.” (ABBAGNANO, 1970, p. 495). A hybris deve ser considerada em confronto com a “medida”, que é tida como justiça, com a qual o herói dominado pela hybris e com comportamento excessivamente individualista rompe. A dissolução do trágico e a perspectiva de novos caminhos Desde o dia em que vê a Sabrina pela primeira vez e sabe parcialmente de sua historia, Leonardo, o irmão de Paloma, insiste que a mesma deva conhecer melhor a Sabrina e essa insistência é já um presságio de que há planos para as duas: “é conversando que uma amizade começa.” (BOJUNGA, 2011, p. 157). A idéia de adoção de Sabrina parte de Leonardo, é o encorajamento que Paloma precisa para pensar durante dias na proposta do irmão: “se algum dia você resolver adotar a Sabrina, pode contar comigo para tudo o que for necessário pras duas. Pra Sabrina e pra Dona Gracinha.” (BOJUNGA, 2011, p. 207). Na visita à casa amarela, com o pretexto de levar-lhes panquecas ou bolo, intensa amizade se sela. Sabrina abre o coração para Paloma: a prostituição, a necessidade, o medo de se separar de sua avó e voltar ao orfanato, a saudade doída de tia Inês, a história sofrida da mãe, o seu desejo de ser bailarina. O trato é estabelecido entre as duas. Sabrina não mais precisará vender seu corpo para comprar comida. Paloma providenciar-lhe-á o que precisar. Muitos diálogos interiores foram precisos para Paloma ter a coragem de adotar Sabrina e avó. Mas, como tinha de ser, comunicar essa decisão ao marido não foi nada fácil. O enfrentamento de Rodolfo fortaleceu Paloma. Apesar das críticas, ironias e acusações do marido, ela está resoluta e firme em sua decisão e é apoiada por Andrea.
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Paloma revela suas intenções à Sabrina. Emocionada, as lágrimas chegam, crescem, transbordam. Paloma e o leitor contempla a emoção muda da menina e a preocupação da mesma com a avó. O final é aberto e surpreende o leitor. Enunciadora de um “nada é para sempre.” (BOJUNGA, 2011, p. 222), Paloma pronuncia: _ Vamos levar ela também, Sabrina; vamos ver se dar certo. Mas se
não der, eu te prometo que arrumo um bom lugar para ela se tratar. Sabrina se levantou num pulo. Abraçou a Paloma; abraçou o Andrea Doria; abraçou a Dona Gracinha; correu pro som, botou música; pé, braço, cabelo, corpo, tudo desatou a dançar, celebrando a nova estação de vida que ia começar. (BOJUNGA, 2011, p. 262)
Rodolfo sai de casa. Mas, como nada é para sempre: “ _ É: o tempo tem sempre a última palavra. Quem sabe um dia as tuas idéias mudam? Ou, quem sabe até, as minhas?” (BOJUNGA, 2011, p. 272). A dissolução do casamento infeliz é a libertação de Paloma e a salvação de Sabrina. Dona Gracinha não conseguiu fazer de Inês a dançarina profissional que desejou. Já Inês foi impedida de proporcionar para Sabrina a formação em dança. Quem sabe agora, Paloma conseguirá contribuir para que o sonho da avó e da tia se efetive em Sabrina. Pois, a dança, a liberdade de expressão corporal, é a alegria de Sabrina, é a arte que a liberta e transforma sua vida. O final permanece aberto para futuras mudanças e rumos inusitados. Referências ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973. BOJUNGA, Lygia. Sapato de Salto. 2 ed. Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga, 2011. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Trad.Vera da Costa e Silva et al. 15 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000. LEAL, Luciana Ferreira. Elementos do trágico em Eça de Queirós: A tragédia da Rua das Flores e Os Maias. 2006. 275 p. Tese. Doutorado em Literatura e vida social. Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho. Unesp, Assis, 2006. RICHE, Rosa Maria Cuba. A presença do trágico como contraponto ao insólito. Anais do VII Painel Reflexões sobre o insólito na narrativa ficcional. UERJ, 2011.
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RELIGIOSIDADE E A IMPORTÂNCIA DOS ANIMAIS NAS TRADIÇÕES XAMÂNICAS
Luciana Lupi Alves (PG-UEM) O presente trabalho tem como objetivo discutir a relevância dos animais e suas estreitas ligações com a religiosidade nas tradições xamânicas. Para tanto, a análise partirá de três poemas da escritora americana Linda Hogan. Em “The Bear” (O Urso), “Mountain Lion” (Leão da Montanha) e “The Fallen” (O Caído) podemos verificar como os animais são vistos como símbolos de energias que se manifestam dentro dos seres humanos. O urso, o leão e o lobo, presentes respectivamente nos poemas, são exemplos de arquétipos de forças da natureza que precisam ser trabalhadas para que haja harmonia e unificação entre todas as formas de vida. De início, é necessário para a compreensão do tema, discorrer brevemente sobre a escritora Linda Hogan. Hogan é uma indígena americana Chickasaw nascida em Denver, no ano de 1947. Além de escritora, é poeta, professora e defensora da causa indígena. Desde a infância sofreu forte influência da família acerca da luta dos índios. Em 1950, por exemplo, seu tio Wesley Henderson colaborou na formação no Conselho do Búfalo Branco, que tratou sobre o Ato de Realocação e encorajou o povo indígena a migrar em busca de novas oportunidades e trabalho. A produção literária da autora é lírica, incluindo temas históricos e políticos. Os temas centrais abordados tratam dos povos nativos, tanto na perspectiva indígena quanto na visão dos demais americanos. Hogan é a escritora oficial da nação Chickasaw e seu trabalho ficcional e não ficcional expressa o ponto de vista nativo sobre os fatos desde a colonização europeia na América do Norte. Em dezembro de 2009 participou do Congresso do Parlamento sobre as Religiões do Mundo em Melbourne, Austrália, e foi moderadora do painel “Soberania Tribal”. Atualmente Hogan leciona workshops de escrita criativa e leituras e assiste escritores e editores na elaboração de seus próprios livros.
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Inseridos no rico contexto cultural indígena da autora estão os três poemas que são objeto de análise neste artigo. As sociedades indígenas baseiam-se essencialmente na tradição oral, bem como possuem formas de subsistência baseadas na caça, na pesca ou ainda no plantio de terras, dependendo da região em que se localizavam. Faz-se necessário esclarecer que o conceito de religiosidade dos nativos é, de uma forma ampla, consideravelmente difuso. Não existe uma estruturação religiosa fixa, na qual certas pessoas sejam detentoras do conhecimento religioso. As crenças de um grupo são herança de todos, normalmente ensinadas de pai para filho ao longo de cerimônias de iniciação ou ritos de passagem. O escritor americano Vine Deloria Jr. narra na visão indígena o encontro entre as crenças dos colonizadores e as crenças dos nativos. O continente europeu, tendo como base o cristianismo, acreditava na existência de dois mundos: o céu, para onde todos aqueles tementes a deus vão após a morte, e a terra. A colonização, entretanto, mostrou ao nativos um novo contexto: Um dia esse povo encontrou um povo que falava na existência de dois mundos. Eles não acreditaram. Todos sabiam que existia apenas um mundo e que ele foi criado por uma mudança de eixo do mundo, de modo que o gelo, a substância original do universo, gradualmente derreteu para produzir o mundo atual. (DELORIA JR., 2003, p.138) O embate entre a cultura dos índios e dos colonos foi marcado por muita tensão. Os europeus não aceitavam e tampouco entendiam a importância da terra, da natureza e dos animais como fonte e símbolos da religiosidade indígena. Como forma de educar e dominar os índios, os colonizadores adotaram um discurso de catequização. Pagãos, eles gritam. As histórias do mundo único são interpretadas como criancices de um povo se recusando a acreditar que a natureza primária do mundo. Medidas são tomadas para se ter certeza de que as pessoas que acreditam no mundo único serão convertidas para a crença de que a verdade absoluta foi revelada pelo próprio Deus. (DELORIA JR., 2003, p.138)
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Torna-se claro, pois, que os colonizadores não compreendiam a religiosidade indígena como expressões de ética e códigos morais como os índios entendiam. O discurso indígena possui dois temas fundamentais: a terra está viva e tudo relacionado a ela também está vivo, e a terra consagra atividades humanas e as torna algo mais do que temos o poder de produzir (DELORIA, 2003, p.146). Dentre os nativos, o xamanismo é tido como uma prática ancestral tão distante quanto à consciência do próprio homem. Em que pese muitos acreditem que o xamã é uma figura indígena, ela remonta ao período Paleolítico, no qual os homens viviam nas cavernas. A cultura xamânica compreende as práticas medicinal, mágica, religiosa e filosófica. Seu exercício reúne atos de cura, variações e interação entre os participantes e espíritos. Nesse contexto, os animais e as plantas de poder fazem parte do conceito de ancestralidade totêmica de inúmeras culturas. Assim, excluindo-se conhecimentos característicos sobre plantas curativas e/ou alucinógenas, o restante reside na cultura de toda a comunidade e não em um único xamã. Verifica-se nos poemas de Hogan uma estreita ligação com os animais. O primeiro dos poemas selecionados trata da morte de um urso, um dos animais mais sagrados para os nativos americanos. O URSO O urso é um continente escuro Que anda ereto Como um homem. Ele mora por entre o rio descongelado Eu o vi além da água além do conforto. Na noite passada deixou uma marca na minha porta que dizia que o inverno era uma longa e faminta noite de sono Mas eu não tive medo; Eu colecionei outras noites de medo sabendo que as coisas andam no limite do meu sono,
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eu me lembro do homem que atirou no urso, como ele chorou e na sua própria voz, como ele rastreou a canção vermelha na floresta de braços magros onde o urso deita chorando na Terra ardente, suas mãos negras cobrindo sua face do céu onde humanos acreditam que deus vive acima da morte. Esse homem, a loucura o lembra. Uma canção em sombras famintas Em noites de sono. Ela o segue. Até quando as pedras cantam.. O faz querer ajoelhar e deitar suas mãos sobre sua face e virar para o céu onde deu vive acima do céu. Loucura é seu próprio país, desesperado e arruinado. É um coletor de vidas. É um homem que teme o que fez e o que ele vive. Seguros, nós estamos seguros do urso e nós temos uns aos outros, temos uns aos outros para temer. (HOGAN, 1993, p.25-26) No poema acima há ênfase no desespero do homem que atirou no urso e em como ele teme um castigo da natureza. O narrador, entretanto, teme o próprio homem. Trata-se de uma metáfora de como os índios, tal como o urso, temem os brancos e as armas desmedidas que eles usam para se sobressair.
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De acordo com a crença indígena, a força do urso reside em seu poder de introspecção. Diversas tribos designaram essa capacidade interior de conhecimento como a morada dos sonhos. Neste espaço a ilusão da realidade física tem fim e é substituída pela consciência da imortalidade. É na morada dos sonhos que os ancestrais se reúnem em conselho para indicar os caminhos alternativos que permitirão atingir metas (SAMS & CARSON, 2000, p. 61). Esta é a força da figura do urso na religiosidade indígena, tal como indica o poema. Em seguida, Hogan narra o encontro da personagem com um leão: LEÃO DA MONTANHA Ela vive no lado perigoso da clareira na sombra de olhos amarelos de um medo mais escuro. Nós vimos um ao outro dentro do anoitecer mortal, e o que se passou entre nós foi o caminho fantasmas viajam quando não podem descansar na terra do terrível outro. Espíritos vermelhos de caçadores caminharam entre nós do local onde o sangue volta a sua ferida antes de fogo antes de armas. Nada foi escondido aos nossos olhos. Eu era a coisa selvagem Ela tinha aprendido a temer. Seu poder viveu em um sonho de minha partida. Foi da mesma forma Eu olhei tantas vezes os outros em luz clara antes de baixar os olhos e afastando-se a partir do que vive dentro daqueles que têm encontrado dois mundos não podem viver dentro de uma única visão. (HOGAN, 2003, p.27)
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O leão não luta em prol da luta, de acordo com a simbologia. Ele evita confrontos e deixa a cena de perigo, se possível. Há nessa imagem uma oportunidade de despertar para um novo sol. Criatividade, intuição e imaginação fazem parte desse poema e do encontro entre a personagem e o animal, que representa a força da natureza. Novamente há uma metáfora entre a realidade indígena e o outro. Trata-se de uma forma de resistência ao discurso que aponta a cultura europeia como superior e recria o Outro ideológica, sociológica e politicamente. Assim, justaposto à realidade americana, o índio é o Outro, o colonizado, aquele cuja cultura é inferior e que deve se adaptar à cultura “válida”, ou seja, a cultura branca (SAID, 2007, p. 29). Por fim, o último poema selecionado trata do lobo. O CAÍDO Era noite um cometa com a cauda de prata caiu através da escuridão no campo da terra corroído, a noite eu encontrei o lobo, faminto na armadilha de metal, dentes quebrados da mordida dura, sua barriga inchada com nascituro jovem. Em nossa astronomia a Grande Loba viveu no céu. Foi a mãe de todas as mulheres (...) (HOGAN, 1993, p.42) Na perspectiva lunar, a morte do homem, bem como a morte periódica da humanidade, são necessárias, como o são os dias de trevas que precedem o renascimento da Lua. A morte do homem e da humanidade são indispensáveis à sua regeneração (ELIADE, 1985, p.95). A loba representa esse renascimento no trecho do poema. Com os sentidos muito aguçados, ela e tem na lua a sua aliada de poder. A lua simboliza a energia psíquica, e também o inconsciente que conserva os mistérios do
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saber e do conhecimento. Há também o respeito à ancestralidade e ao sentimento de família em relação aos demais membros da alcateia, sem que isso afete, no entanto, o forte individualismo característico da espécie. Referidas características assemelham-se aos ensinamentos que são transmitidos de geração em geração nas tradições religiosas indígenas. O liame entre os poemas aqui brevemente abordados é a incompletude, ou seja, uma propriedade do sujeito, e o anseio de completude é que permite, ao mesmo tempo, o sentimento de identidade, assim como o efeito de literaridade no domínio do sentido: o sujeito se lança no seu sentido (paradoxalmente universal), o que lhe dá o sentimento de que este sentido é uno. (ORLANDI, 1997, p. 81) Por fim, podemos verificar que a ideia de Deus perpassa todas as formas de religiosidade, porém no universo indígena não há uma separação entre o sagrado e o profano. Os elementos e seres da natureza são tidos como nossos irmãos e como fontes de aprendizado. Na visão xamânica, os animais propiciam uma ligação com a Mãe Terra e seus padrões de comportamento são capazes de nos transmitir mensagens ocultas e lições de vida. Referências ANDREWS, Ted. Animal Speak: The Spiritual & Magical Powers of Creatures Great & Small. Minessota: Llewellyn Publications, 2007. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 2001. SAID, Edward. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. SAMS, Jamie; Carson, David. Cartas Xamânicas: a descoberta do poder através da energia dos animais. Trad. Pedro Karp. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
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ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. Campinas: Unicamp, 1997.
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A LITERATURA EXIGENTE EM Ó (2008), DE NUNO RAMOS Luis Eduardo Veloso Garcia (UNESP/Araraquara) RESUMO: O artigo em questão buscará uma reflexão sobre os pontos de vista levantados por Leyla-Perrone-Moisés em “Literatura Exigente” dentro da obra literária Ó (2008), de Nuno Ramos. Tais pensamentos convergem para características comuns das quais a literatura contemporânea brasileira vêm apresentado atualmente, e que na obra de Nuno Ramos podem ser devidamente ilustradas. PALAVRAS-CHAVE: Ó; Nuno Ramos; literatura exigente.
Segundo a autora Leyla Perrone-Moisés no texto intitulado “A Literatura Exigente”, publicado no caderno Ilustríssima, da Folha de São Paulo de 25 de março de 2012, a literatura brasileira contemporânea exibe um traço recorrente em seus autores, traços estes que ela busca teorizar através deste conceito da literatura exigente. Nesta literatura, além do nome de Nuno Ramos como um dos destaques, encontram-se também outros escritores desta geração como Carlos de Brito e Mello, Evandro Nascimento, André Queiroz, Julián Fuks e Alberto Martins. O primeiro ponto fundamental desta linha de pensamento literário destacado por Leyla Perrone-Moisés é a dificuldade de classificar tais obras conforme um gênero préestabelecido, afirmando o valor de uma alta bagagem de conhecimento destes autores sobre a atividade artística que exercem: São obras de gênero inclassificável, misto de ficção, diário, ensaio, crônica e poesia.São livros que não dão moleza ao leitor; exigem leitura atenta, releitura, reflexão e uma bagagem razoável de cultura, alta e pop, para partilhar as referências explícitas e implícitas. A linhagem literária reivindicada por esses autores é constituída dos mais complexos escritores da alta modernidade: Joyce, Kafka, Beckett, Blanchot, Borges, Thomas Bernhard, Clarice Lispector, Pessoa...
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Os autores dessas novas obras nasceram quase todos por volta de 1960, a maioria passou por ou está na universidade, como pósgraduando ou professor, o que lhes fornece boa bagagem de leituras e de teoria literária; alguns são também artistas plásticos, o que acentua o caráter transgenérico dessa produção. (PERRONE-MOISÉS, 2012)
A obra Ó de Nuno Ramos está diretamente ligada ao confronto com os limites do gênero, sendo este o principal destaque da fortuna crítica referente ao livro, que o considera uma obra difícil de classificar, pois apresenta em seu formato estruturas de conto, ensaio, crônica, sem deixar espaço para conseguir delimitar qual gênero predomina. Entre alguns dos pontos que dificultam a tarefa de definir o gênero, Alexandra Lucas Coelho aponta em entrevista com o próprio autor para a Revista Ipsilon que a obra “não é um romance, mas tem uma espécie de protagonista do começo ao fim, e não é um livro de contos, mas está dividido em capítulos que se podem ler separados”. Nuno Ramos reafirma essa dificuldade ao definí-lo como “algo entre a poesia e pensamento”, destacando seu hibridismo – característica esta, também, muito forte em qualquer área de atuação de Nuno –, como podemos perceber em sua fala numa entrevista para o portal O Globo: Funciono por hibridismo em tudo o que faço como artista plástico ou escritor. Em "Ó" o passo inicial era o ensaio. Mas a incapacidade de ficar em um gênero só cria uma certa estranheza, uma incompatibilidade que são interessantes (RAMOS, 2009, online)
José Antônio Pasta também reafirma este princípio de incapacidade de definição de gênero em Ó no texto escrito para a orelha deste livro. Segundo o autor, a confluência de gêneros e hipóteses que marcam a obra são inúmeras, como podemos perceber em sua definição: De fato, olhando bem, os textos que compõem em sua unidade tão estrita quanto desatada não são contos, nem poemas em prosa, nem crônicas, nem ensaios, nem crítica, nem romance, nem autobiografia etc., sendo, no entanto, tudo isso e mais uma coisa incerta e nãosabida, que o leitor nomeará. Uma vasta fantasia antropológica? Uma crítica da percepção? Um De senectude precoce? Uma meditação sobre a ruína? Uma reflexão espectral da forma-mercadoria? O transe
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brasileiro no seu limite? Epifania negativa? Uma Carta ao pai, que dói e estala em toas as suas juntas? Uma tese de doutoramento impossível, apresentada a um Departamento de Filosofia do Além? De novo, nenhuma dessas coisas e, ao mesmo tempo, todas elas e mais algumas etc. (PASTA, 2008, s/n)
Além do confronto com os limites dos gêneros e a bagagem literária, a autora discorre sobre a desconfiança, outra característica importante que conflui entre estes autores: “Desconfiam do sujeito como "eu", do narrador, da narrativa, das personagens, da verdade e das possibilidades da linguagem de dizer a realidade” (PERRONEMOISÉS, 2012). Nesta desconfiança com o “eu”, com a narrativa e com a história, observa-se o quanto “desconfiam da literatura como instituição e repetição de fórmulas” e, principalmente, como “desconfiam da escrita como representação” (PERRONEMOISÉS, 2012). Se na afirmação de Leyla Perrone-Moisés esta desconfiança geral passa por autores que “desconfiam do sujeito como "eu", do narrador, da narrativa, das personagens, da verdade e das possibilidades da linguagem de dizer a realidade”, em Ó, assim como em outras obras de Nuno Ramos, o inimigo declarado de sua desconfiança é claro: a linguagem e todo o peso de ordem que ela carrega. Para o autor, a linguagem aparece aqui como o peso de uma tradição, algo que “impregna as palavras de sentidos antigos, gastos”, aproximando-se da fala de Stuart Hall em A Identidade Cultural na Pós-Modernidade, no capítulo “Nascimento e Morte do Sujeito Moderno”, no qual o autor aponta cinco acontecimentos responsáveis pelo descentralizamento do sujeito moderno - pensamento marxista, inconsciente de Freud, linguística de Saussure, filosofia de Foucault e feminismo -, neste caso especifico com as palavras, aparecendo na analise sobre Saussure: O significado das palavras não são fixos... as palavras são multimoduladas. Elas sempre carregam ecos de outros significados que elas colocam em movimento, apesar de nossos melhores esforços para cerrar o significado... o significado é inerentemente instável: ele procura o fechamento (a identidade), mas ele é constantemente perturbado (pela diferença). Ele está constantemente escapulindo de nós. (HALL, 2004, p. 40)
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Por isso, os textos de Ó são carregados do exercício de buscar na cosmogonia (termo utilizado para determinar uma ou mais teorias sobre a formação do nosso universo) as origens de hábitos que são considerados domesticadores pelo narrador, como a criação de túmulos, a relação do ser humano com a morte, a tecnologia, o tempo, a arquitetura urbana, as manias, a televisão, e, principalmente, a linguagem, aproximando-se esta ultima da visão do critico francês Roland Barthes no livro Critica e Verdade, que relaciona tal embate como o mais importante serviço da literatura, pois é com essa primeira linguagem [a linguagem original da comunicação humana], esse nomeado, esse nomeado demais, que a literatura deve debater-se: a matéria-prima da literatura não é o inominável, mas pelo contrário o nomeado. (BARTHES, 2007, p. 22)
Numa entrevista para a Revista Cult, Nuno Ramos explica qual o valor dessa cosmogonia para a obra, reafirmando sua desconfiança com o peso da linguagem: Todo esse clima do que era antes dos homens e do que era antes da linguagem, toda a evocação das matérias, das pedras, dos animais. Mas depois, também, o mundo da lei, da forma como os homens se organizam. Uma recosmogonia. (RAMOS, 2010, online)
Essa recosmogonia, parte do principio já conhecido por nós, para redefinir seu valor através do confronto do narrador com a não aceitação destes costumes, desconfiando da linguagem por sua atuação no decorrer dos tempos capaz de controlar o homem de seus impulsos reais. A própria ideia do título Ó está relacionada a este conflito com a linguagem por ser esta uma expressão que carrega inúmeras significações, mesmo sem ter uma definição completa como uma palavra fechada. É o poder inominável desta expressão que valoriza a desconfiança do autor contra a linguagem como um meio opressor de significados para as palavras. Outra característica comum está na preocupação em transformar o que poderia ser considerado restos e detritos sem importância literária visualmente em fundo primordial com “textos que, em vez de descrever grandes paisagens, concentram-se
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frequentemente em coisas minúsculas: restos, resíduos, cantos, cacos, lixo” (PERRONE-MOISÉS, 2012). Para a autora, quem mais se destaca por este viés são os escritores envolvidos com as artes plásticas, caso de nosso autor estudado aqui Nuno Ramos e Alberto Martins, demonstrando-se “mais sensíveis ao apelo sensorial desses detritos” (Idem, ibidem, 2012). Tal sensibilidade para os detritos é gerada nas seguintes bases: Perpassam, nessas enumerações de restos e detritos, tanto a preocupação ecológica quanto a memória de tantas ruínas históricas e culturais sobrevoadas pelo anjo de Klee (via Benjamin), familiar a todos esses escritores. Mas as preocupações apenas perpassam, porque eles também não acreditam na literatura de mensagem, na literatura engajada. Apenas registram, com lucidez e desgosto, o estado lamentável de nossa "civilização”. (PERRONE-MOISÉS, 2012)
De todo os esforços do detrito transformado em literatura, o que fica como “resultado dessa atenção é poesia” (PERRONE-MOISÉS, 2012). No caso de Ó, assim como em outras obras do autor, temos algumas obsessões temáticas que se baseiam diretamente em objetos e imagens que podem ser considerados como restos e detritos, principalmente se encarados como o ponto central de textos como faz Nuno Ramos. Na lista destes objetos temos pedra, areia, pele, juncos, sal, piche, cachorros mortos, corvos, vidros e paredes, objetos estes que aparecem de algum modo em todos os textos de Ó. O trabalho com a linguagem também merece a devida atenção da autora, considerando que apesar da reflexão implícita nas obras desses escritores ser complexa, “seus textos são despojados, sem pirotecnias verbais como as dos modernistas” (PERRONE-MOISÉS, 2012). Entre os destaques desta linguagem, Leyla PerroneMoisés sublinha em suas palavras alguns pontos: É a procura de dizer o que ainda não foi dito, com vocabulário e sintaxe conhecidas. Em geral, eles preferem dizer menos do que mais, pressupondo que tanto já foi dito e redito que o leitor entende por meias palavras. Do mesmo modo, quando narram, evitam explicar as implicações psicológicas dos fatos para não cair em clichês, coisa que eles temem mais do que tudo. Os fatos e sentimentos são dados a partir de índices. (PERRONE-MOISÉS, 2012)
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As narrações de Ó, por mais complexos que possam parecer seus temas, não se torna em nenhum momento rebuscada ou pesada, pois o narrador é claro com a sua intenção de confrontar os caminhos da linguagem. O “dizer menos” que destaca Layla Perrone-Moisés torna-se, neste caso, uma afirmação da desconfiança perante a linguagem que limita o valor das palavras. Para finalizar o modo que a autora abrange o trabalho desta corrente literária, o texto aborda ainda algumas considerações sobre duas temáticas recorrentes destes autores em seus textos: a morte e o pai. Na reflexão temática sobre a morte, a aparição desta é movida como um tema constante em suas obras não apenas porque ela é o tema humano por excelência, tratado em toda a história da literatura, mas porque, em nosso tempo, ela está onipresente nos noticiários, nas imagens e até mesmo na recusa em aceitá-la. Nesses escritores, o sentimento de que talvez estejamos numa época terminal da humanidade se mistura à reflexão sobre a morte individual. (PERRONE-MOISÉS, 2012)
No livro de Nuno Ramos esta obsessão pela morte aparece em diversos textos, como é o caso de “Túmulos”, no qual o autor reflete sobre a significação da prática de construir túmulos, ou “Tocá-la, engordar, pássaros mortos”, na qual vemos a história de um louco que assassina todos os pássaros da praça de uma cidade do interior. A morte também se faz presente em seus textos através do peso da perenidade das coisas e situações, como podemos perceber nos títulos e ideias de “Perder tempo, vontade, uma cena escura”, “Prédios vazios, contra fatos, arquitetura ruim, simultaneidade”, “Coisas abandonadas, gargalhada, canção da chuva, previsão do tempo, ida à lua, ida a Marte” No caso da temática do pai, Leyla Perrone-Moisés a concretiza como uma marca da geração, refletindo por isso os embates com os representação de quaisquer modelos pré-estabelecidos, como pode-se exemplificar com a literatura ou a linguagem: A geração a que pertencem esses escritores é composta de órfãos: órfãos dos grandes modelos literários e artísticos, órfãos da proteção do Estado, órfãos de ideologias e, já há muito tempo, órfãos de Deus. A carta ao pai, de Kafka, às vezes referida nesses textos, é o atestado de nascimento dessa tribo de órfãos. (PERRONE-MOISÉS, 2012)
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No livro em questão, além da confusão de gêneros que se apresenta como um exercício de orfandade em relação aos modelos literários, temos também a figura do pai frio e distante assim como no caso da Carta ao Pai, de Kafka. Como o próprio título deixa claro, o texto “Sinais de um pai sumido, canção” é baseado nesta dor de um filho que por falta do modelo paterno forte em sua vida acaba por atacá-lo com rancor. Resume-se, então, o conceito da “literatura exigente” de Leyla Perrone-Moysés pelo confronto com os limites dos gêneros e a bagagem literária de seus autores, assim como vemos na dificuldade de definição da fortuna crítica de Ó em relação ao que se tratam os textos deste livro; somado ao sentido de desconfiança geral, sendo no livro em questão direcionado ao peso da linguagem perante os costumes e limitações da palavra; a valorização dos restos e detritos, que aparecem aqui nas figuras emblemáticas da areia, sal, piche e muitos outros objetos considerados descartáveis; numa linguagem despojada sem afrouxamento na densidade da trama, com destaque para as temáticas da morte, que para Nuno Ramos reflete-se tanto por seu sentido simbólico quanto pela perenidade das coisas, e do pai, que é afirmado na obra pelo desabafo do filho abandonado que procura os “sinais do pai sumido”. Portanto, mais do que um livro que reflete os conceitos básicos elencados por Leyla Perrone-Moisés em sua teoria da literatura exigente, a compreensão de Ó passa pelos reflexos diretos apontados na produção literária contemporânea no Brasil, sendo não só um modelo de reflexão destes princípios, mas também uma das melhores obras deste período.
Referências BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva, 2007. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. DP&A, Rio de Janeiro:2004. PASTA, José Antonio. Apresentação a Ó. In: RAMOS, Nuno. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2009.
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PERRONE-MOYSÉS, Leyla. “A literatura exigente”. Folha de São Paulo. Caderno Ilustríssima, 25 de março de 2012. RAMOS, Nuno. Com ó, nuno ramos vence prêmio portugal telecom 2009. Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/com-nuno-ramos-vence-premio-portugal-telecomde-literatura-3160260. Entrevista concedida a Marcia Abos. RAMOS,
Nuno.
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http://ipsilon.publico.pt/livros/entrevista.aspx?id=252364.
mundo.
Disponível
Entrevista
concedida
em: a
Alexandra Lucas Coelho. RAMOS, Nuno. Nuno Ramos: entre a matéria e a linguagem. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-com-nuno-ramos/.
Entrevista
concedida a Ivan Marques. RAMOS, Nuno. Ó. São Paulo: Iluminuras, 2008.
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PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM: O DISCURSO LIRÍCO NA NARRATIVA DE CLARICE LISPECTOR Maiara Cristina Segato (PG-UEM) Milton Hermes Rodrigues (OR-UEM)
Introdução O surgimento de Clarice Lispector no cenário literário brasileiro com o romance Perto do coração selvagem, publicado em 1944, representou um verdadeiro impacto para os críticos da época, desestabilizando as referências romanescas instituídas até então. A autora, já em sua estreia, surpreendeu, entre outros fatores, pela reorientação do psicologismo, pela intensificação da “prosa poética” e pelas inovações formais como, por exemplo, a fragmentação e a descontinuidade “motivacional”. Tais aspectos balizaram de forma contundente todo o projeto literário da autora, ou seja, tudo o que ela ainda viria a produzir. Assim, Perto do coração selvagem aparece como uma obra completamente inovadora dentro do quadro da produção literária brasileira. Desse modo, críticos literários, como Sérgio Milliet, Antonio Candido e Álvaro Lins, surpresos com a ficção de Clarice Lispector, por fugir do padrão estandardizado, se debruçaram sobre sua obra, em busca de parâmetros para classificá-la. Para Benedito Nunes (1995, p. 14), Perto do coração selvagem abriu um novo caminho para a nossa literatura, “na medida em que incorporou a mimese centrada na consciência individual como apreensão artística da realidade”, ou seja, Clarice abre espaço para o método de mimese introspectiva, a qual a autora exterioriza a experiência interior em palavras. Nesse sentido, a autora opta por uma postura estilística permeada por reflexões instauradas pela linguagem poética, uma vez que uma narrativa no molde tradicional, com estruturas sintáticas bem definidas, não daria conta dos conteúdos mais profundos da protagonista Joana. Com efeito, o maior impacto da crítica inicial certamente se deu naquilo que concerne à descontinuidade do espaço e do tempo e personagens mais definidos. No entanto, isso ocorre no romance justamente por tratar da mais profunda sensação de
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existência, de forma a estruturar o mundo na impossibilidade da linguagem, pois a fragmentariedade do texto mostra a fragmentariedade do sujeito e da própria vida “que valem como sintomas de crise da ficção introspectiva” (BOSI, 1989, p. 474), isto é, uma tensão psicológica que reflete na tensão linguística, visto que “o envolvimento do personagem com a linguagem expressa um ritual presente” nas narrativas clariceanas (SANT’ANNA, 1973, p. 196). Sendo assim, no decorrer deste trabalho além de observar a partir da ótica de alguns teóricos da literatura, a relação entre a prosa e a poesia, os fatores que aproximam ou distanciam os dois gêneros, visto que a escritura de Clarice Lispector transita entre eles, analisaremos o capítulo “O banho”, que integra a primeira parte de Perto do coração selvagem, levando em consideração o aspecto inovador na linguagem empregada pela autora, ou seja, uma prosa pulverizada pela poesia. Prosa e poesia: discussões teóricas O ser humano sempre teve a necessidade de classificar a realidade ao seu redor. Desse modo, por meio de distintos critérios de classificação, reuniu-se em diversos grupos. Na literatura não foi diferente, uma vez que a partir de Aristóteles, em sua Poética, a qual se propôs a definir e a classificar as diferentes formas de textos produzidos, também foram agrupadas as várias formas de discurso, segundo as suas estruturações tipológicas. Vale ressaltar que, no tratado sistemático de Aristóteles, o vocábulo “Poética” tratava-se de literatura, em oposição a retórica, a qual se preocupava com a oratória e o raciocínio. Ao longo dos tempos, muitas discussões têm sido feitas para demarcar a distinção entre os gêneros prosa e poesia. Conforme Aguiar e Silva (1983, p. 599) a prosa ou texto narrativo literário caracteriza-se fundamentalmente pela presença de um narrador, como a instância enunciadora que conta uma história, e por relatar uma sequência de eventos ficcionais individuais ou coletivos. O mesmo crítico, fazendo a distinção dos gêneros, pontua que o texto lírico não representa dominantemente o mundo exterior e objetivo nem a interação do homem com o mundo. Para ele, o acontecimento exterior, quando está presente num texto lírico, permanece sempre literalmente como um pretexto em relação à estrutura e ao significado desse texto:
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O episódio e a circunstância exteriores podem funcionar como elementos impulsionadores e catalíticos da produção textual, mas a essencialidade do poema consistirá, graças à fulguração da palavra, na emoção, nas vozes íntimas, na meditação, na ressonância mítica e simbólica, enfim, que tal episódio ou tal circunstância suscitam na subjectividade do poeta. (AGUIAR E SILVA, 1983, p. 584)
Para Massaud Moisés (1970, p. 56), a poesia se define pelo fato de o “eu” assumir-se como espetáculo e espectador ao mesmo tempo. Por esse motivo, o comportamento poético seja “essencialmente vago e metafísico, anti-histórico, antidescritivo e antinarrativo”. Em contrapartida, a prosa se caracteriza a partir de um “movimento do “eu” para fora de si, na direção do “não-eu”, ou seja, do mundo concreto, físico, de que lhe “promana o caráter histórico, descritivo e narrativo”. Anazildo Vasconcelos da Silva (1984), ao tratar da Semiotização literária do discurso, teoria que se configura como um meio de se investigar a construção do texto literário enquanto signo, se propõe a abordar no texto literário aquilo que faz dele um objeto literário em si, daí a natureza semiológica. Posto isso, pensando a natureza mimética e o investimento semiológico do processo literário, ele faz uma reflexão quanto ao gênero narrativo e gênero lírico: Enquanto o discurso narrativo realiza a mimesis literária através dos discursos ficcionais do espaço, do personagem e do acontecimento, o discurso lírico a realiza através duma instância literária do discurso, o eu lírico. O discurso narrativo elabora uma imagem do mundo ficcional como proposição de realidade. O espaço lírico, concebido como realização estrutural da matéria lírica, é uma estrutura particular e subjetiva, elabora signicamente pela instância literária do eu lírico, que pressupõe uma imagem de mundo. (SILVA, 1984, p. 84-85)
Na idade média, o romance e a poesia eram a mesma coisa, só mais tarde esses dois gêneros ganharam distinção. No entanto, o romance, hoje, não poderia deixar de conter os traços de sua origem poética. Tanto pode haver poesia na prosa de ficção quanto em um poema pode haver narrativa. Nesse sentido, Cassiano Ricardo (1953, p. 11) afirma que no Brasil o romance já nasceu lírico, é só observamos as primeiras produções romanescas de nosso país. Com efeito, o autor resume o lirismo brasileiro no romance em quatro aspectos diferentes: o lirismo primário de Bernardo Guimarães ou Joaquim Manoel de Macedo; o lirismo de José de Alencar, decorrente do seu
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indianismo; o realismo lírico de Aluízio de Azevedo e Raul Pompéia; e o lirismo de Machado de Assis, com sua complexidade e lucidez poética. Seguindo sua exposição, Ricardo (1953, p. 14) aponta que na Semana de Arte Moderna é justamente a poesia que abre caminho ao romance, fazendo surgir experiências romanescas mais ousadas, as raízes líricas da nossa realidade humana e social, visto que o poético não é uma negação do real. Para Ricardo (1953, p. 40), a poesia está presente ao romance sob várias formas, pois um retrato da realidade não exclui a poesia inerente à própria vida. O crítico deixa claro que entre prosa e poesia há apenas uma diferença técnica, porém essa independência dos dois gêneros literários é necessária para que haja a sua interdependência (RICARDO, 1953, p. 47). Essa interdependência aponta para o hibridismo dos gêneros, ou seja, fenômenos poéticos na tessitura da prosa. Temos, então, a prosa cuja base estrutural se apoia nas categorias da narratologia; e a poesia, com suas figuras de linguagem, musicalidade, ritmo e etc., formando, assim, a “prosa poética”. Tal gênero caracteriza-se, segundo Moisés, pela “transfusão do lirismo” para a “textura do enredo” (MOISÉS, 2005, p. 23), daí o hibridismo que marca esse tipo de texto, uma vez que o enredo é o traço distintivo da prosa e o lirismo o elemento caracterizador da poesia. Para Moisés (2004, p. 354) “existem poemas sem poesia, e a poesia pode surgir no âmbito de um romance, de um conto, de uma novela, de uma crônica”. No momento em que se percebe, tanto na prosa quanto no poema, uma atmosfera de “beleza”, revestindo-se de conteúdo subjetivo e emotivo, tem-se a poesia. O brilho poético na extensão de um texto, além de outros elementos, ocorre por sua liricização. A linguagem lírica é, por excelência, a linguagem da poesia. O teor do lirismo não é o mundo objetivo, real, palpável, mas a matéria lírica é o mundo subjetivo. O textos líricos concretizam um processo de ‘interiorização’, centrada num sujeito poético eminentemente egocêntrico; os textos líricos representam uma atitude marcadamente ‘subjetiva’, com consequências no plano técnico-compositivo; do ponto de vista semântico e técnico-compositivo, os textos líricos regem-se pelo princípio da ‘motivação’. (REIS, 1997, p. 314)
A fronteira entre poesia e prosa, de fato, é bastante fluida, uma vez que “poesia e narrativa tendem igualmente à presentificação e visam à realidade estética, mesmo que
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as suas estruturas, e por consequência o seu funcionamento, difiram” (LEFEBVE, 1980, p. 156). Podemos dizer que a poesia é comunicação com a essencialidade humana que se dá por meio de recursos linguísticos expressivos. A forma da prosa parece mais discursiva e linear. Quando, porém, a linguagem da prosa se mostra altamente figurativa e polissêmica, atravessada pela poesia, temos a “prosa poética”. Percebemos que ao iniciarmos uma reflexão acerca do parentesco entre prosa e poesia, esbarramos em uma vasta terminologia. Não é de hoje que os críticos e historiadores literários vêm procurando estabelecer distinção entre os dois gêneros, sem alcançar resultados definitivos. Para muitos, a distinção entre prosa e poesia constitui uma questão fechada. Ao situar uma obra dentro de um quadro de referências, estamos estabelecendo um ponto de partida, mas nunca de chegada. Seja como for, é insuficiente marcar os limites entre prosa e poesia, pois o discurso da poesia e o discurso da narrativa, embora com estruturas diferentes, são capazes da mesma “poesia”. Perto do coração selvagem: a poesia na técnica do romance1 Em Perto do Coração Selvagem (1944), Joana, a protagonista, ainda criança perde os pais e passa a morar com os tios. Contudo, a tia não gostava da presença de Joana e isso se intensifica depois de a menina ter roubado um livro, enquanto elas faziam compras. Assim, Joana é mandada para um internato. E, quando já fora do internato, Joana casa-se com Otávio, o qual tinha uma amante, Lívia, sua ex-noiva. Após romper com o marido e o amante, a quem estranhamente surgiu e também estranhamente partiu, Joana resolve fazer uma viagem sem destino e não definida, objetivando resgatar o seu eu. Em meio a esses acontecimentos, que não ocorrem de forma linear, observa-se a todo o momento o fluxo de consciência, uma procura constante de Joana em descobrir e encontrar a razão de ser de sua existência. Conforme Emil Staiger (1977), o aspecto liricizado da narrativa torna os seres difusos e indefinidos em seus contornos, importando o seu estado de introspecção, fato que ocorre com a personagem Joana, que vive em uma atmosfera nebulosa. Joana expressa, por fluxos de consciência, sua vida interior, contrapondo suas experiências de
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Expressão empregada por Cassiano Ricardo em seu ensaio A poesia na técnica do romance (1953)
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menina às de adulta, mergulhando ora no passado, ora no presente, segundo o fio condutor de sua memória. Por conta disso, a linguagem da narrativa espraia-se no poético, já que a poesia é capaz de sugerir o inexprimível e comunicar emoções, porque consiste em uma forma especial de linguagem, carregada de sentido. A linguagem da poesia explora o sentido conotativo das palavras, alterando o significado cristalizado dos vocábulos. É claro que o fato de conjugar mundo interior e mundo exterior não transforma o romance em prosa poética. Para que essa modalidade seja configurada, entram em cena diversos recursos da expressão poética. Conforme Tavares (1991), as principais características que tornam uma narrativa em prosa poética são o conteúdo lírico emotivo, a recriação lírica da realidade, utilização artística do poético e linguagem conotativa. Joana em toda a obra volta para si, para o seu psiquismo. No romance centrado na prosa poética, a personagem revela-se como a busca do desdobramento do eu. Eis aí o motivo pelo qual a narrativa exige a presença da poesia. É preciso traduzir em palavras as sensações pertencentes ao momento de introspeção. Além disso, Em Perto do coração selvagem as barreiras temporais são quebradas, perde-se a noção do tempo. A fusão dos tempos passado, presente e futuro presentifica na mente todos os acontecimentos, sentimentos e pensamentos. Portanto, um clima propício para a eclosão do lirismo. Quando em uma narrativa a linguagem figurativa extrapola o convencional na utilização de uma linguagem condensada, empregando os recursos da expressão poética, como metáforas, antíteses, paradoxos, gradação, repetição, sinestesia, entre outros, pode-se dizer que a narrativa romanesca apresenta traços poéticos. A linguagem figurada É o reflexo do poder da imaginação artística. Através dela, o poeta estabelece ou acentua correlações na vida despercebidas pelos outros homens, que assim se tornam aptos a perceberem-lhes o sentido profundo. Do mesmo modo, por meio das ‘alegorias’ (metáforas alongadas) e dos símbolos (um objeto por outro, ou ideia) ou descobrindo valor simbólico em certos elementos, o poeta alarga a visão comum. E fornece uma interpretação imaginativa às eternas questões humanas (bem, mal, morte, Deus). Por esse misterioso processo de criação de imagens – consciente e inconsciente – o poeta consegue dominar e transfigurar a realidade da experiência. (COUTINHO, 1976, p. 66-67)
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Esse uso se justifica em “O banho”, porque esses elementos poéticos, as figuras de linguagem, são as bases de sustentação do fluxo de consciência e da epifania, ponto crucial nas narrativas clariceanas, o qual muitos estudiosos, como Benedito Nunes e Affonso Romano de Sant’Anna, denominam “tensão conflitiva”, “instante existencial”, “momento privilegiado”, isto é, uma espécie de descortinamento interior, um momento revelador que “ilumina” a vida da personagem. Olga de Sá (1979) utiliza-se do conceito exegético para explicar a transfiguração que os acontecimentos cotidianos sofrem nos textos de Clarice e sua transformação em meios para uma “efetiva descoberta do real”. É um instante existencial, em quem as personagens clariceanas jogam seus destinos, evidenciando-se por uma súbita revelação interior que dura um segundo fugaz como a iluminação instantânea de um farol nas trevas e que, por isso mesmo, recusa-se ser apreendida pela palavra. Esse momento privilegiado não precisa ser excepcional ou chocante; basta que seja revelador, definitivo, determinante. Atinge a escritora o anelo de todo ficcionista: o momento da lucidez plena, em que o ser descortina a realidade íntima das coisas e de si próprio. (SÁ, 1993, p. 165)
Nesse sentido, na narrativa em questão, em especial o capítulo selecionado para análise, “O banho”, há uma pulverização de linguagem poética ocasionada pelas figuras de linguagem, gerando uma imagística. Para tanto, Clarice lança mão de metáforas, expressão que produz uma comparação implícita. O único meio de colocar, diante do leitor, a relação de dois objetos, é a metáfora, que empresta de uma coisa estranha uma imagem natural e sensível da verdade. A metáfora deve ajudar o autor e o leitor a evocar uma coisa não conhecida, ou um sentimento difícil de descrever, recorrendo à sua semelhança com objetos conhecidos (RICARDO, 1953, p. 25)
A estrutura metafórica de Clarice Lispector (1998) perpetua-se no jogo semântico das palavras no decorrer da narrativa: “É uma víbora fria [...] É um bicho estranho” (p. 51); “O quarto de banho é indeciso, quase morto” (p. 65); “[...] esse brilho é o mistério impassível que ouço fluir dentro de mim” (p. 66). Poderíamos definir o estilo de Clarice como centrado no pólo metafórico da linguagem. Isto significa que predominam nele as operações situadas no eixo da seleção-substituição. A metáfora
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estranhada, opostas aos lugares comuns, constitui um momento privilegiado na escritura de Clarice Lispector. Há, no seu texto, preferência pelos jogos metafóricos, em que se criam as associações de similaridade, em prejuízo das operações estilísticas, fundadas na contiguidade. É claro que as duas atitudes não se excluem, mas, como diz Jakobson, manipulando esses tipos de conexão, uma pessoa revela suas predileções espontâneas e seus esforços voluntários. Manifesta-se todo um modo pessoal de estruturar a frase e o discurso, de organizar a sintaxe, de dar relevo a certos aspectos da enunciação. (SÁ, 1979, p.143)
Outro recurso próximo à metáfora empregado pela autora é a comparação, que visa confrontar as ações dos elementos: “E amava aquele homem como se ela mesma fosse uma erva frágil e o vento a dobrasse, a fustigasse” (p. 55); “Esta se aproximara, pousara a mão branca e longa, como de cera” (p. 56); “Os cabelos dele ainda negros, seu corpo enorme como o de um animal maior que o homem” (p. 56); “[...] viveria dagora em diante como flores sobre o túmulo” (p. 62); “[...] bebeu água com os olhos fechado como se fosse vinho, sangrento e glorioso vinho, o sangue de Deus” (p. 62); “A toalha fumegava docemente como restos de um incêndio” (p. 64); “Ri de novo, em leves murmúrios como os da água” (p. 65); “Seres nascidos no mundo como a água” (p. 65); “E essa palavra é paz, greve e incompreensível como um ritual” (p. 65); “[...] um milagre partido em estrelas grossas, sérias e brilhantes, como um aviso parado: como um farol” (p. 66). Podemos notar que no momento de maior introspecção essas comparações são ainda mais intensas, provocando uma verdadeira eclosão de sensações: Na verdade estou ajoelhada, nua como um animal, junto à cama, minha alma se desesperando como só o corpo de uma virgem pode se desesperar. A cama desaparece aos poucos, as paredes do aposento se afastam, tombam vencidas. E eu estou no mundo solta e fina como uma corça na planície. Levanto-me suave como um sopro, ergo minha cabeça de flor e sonolenta, os pés leves, atravesso campos além da terra, do mundo, do tempo, de Deus. Mergulho e depois emerjo, como de nuvens, das terras ainda não possíveis, ah ainda não possíveis. (LISPECTOR, 1998, p. 67)
Além das metáforas e comparações, aparecem, de forma contundente, no capítulo, as antíteses, que se configuram como a aproximação de dois pensamentos contrários, refletindo o conflito interior da personagem ao exprimir a coexistência angustiada de sentimentos contraditórios: “[...] o seu rostinho angustiado e poderoso” (p. 54); “[...] sua promessa de juventude, aquele talo frágil e ardente” (p. 58); “[...] ficou
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pequena e escura diante daquela pele brilhante” (p. 59); “Amor tão grande que só esgotava sua paixão na força do ódio” (p. 61); “Prisão, liberdade. São essas palavras que me ocorrem” (p. 70). As repetições e gradações também são bastantes empregadas no capítulo “O banho”. As repetições causam um sentido de agonia na personagem: “O teto era branco, o teto era branco” (p. 51); “Não sei... Não sei, quase dói. É tudo... É tudo.” (p. 54); “como a chuva que rebenta, como a chuva que rebenta” (p. 61). Já as gradações apresentam as ideias e os sentimentos de forma progressiva, também gerando um aspecto agônico. Os dois recursos também sugerem uma espécie de ritmo, conferindo certa musicalidade para a narrativa: “Até seus ombros, que ela sempre considerara tão distantes de si mesma, palpitavam vivos, trêmulos” (p. 51); “Ela assentiu com a cabeça, emocionada, misteriosa, intensa: tudo...” (p.54); “Fugir, correr para a praia, deitar-se de bruços sobre a praia, esconder o rosto, ouvir o barulho do mar” (p. 59); “Era estranho, silencioso, ausente [...]” (p. 60). Um aspecto muito marcante na narrativa em questão é a utilização de sinestesias, figura de linguagem que se configura por exprimir a junção de planos sensoriais distintos, bem como a simbologia da água. Neste capítulo, “O banho”, à área semântica da água, pertencem o banho, o mar, os vapores, a sede, a chuva, e os verbos mergulhar, flutuar, deslizar, afogar, enxugar, brilhar, borbulhar. Esses dois elementos, sinestesia e simbologia da água, os quais traduzem o imaginário no qual Clarice envereda-se, um mundo de sonho e devaneio, se fundem e fulguram no momento de densidade máxima do capítulo que é a epifania. A água cega e surda mas alegremente não-muda brilhando e borbulhando de encontro ao esmalte claro da banheira. O quarto abafado de vapores mornos, os espelhos embaçados, o reflexo do corpo já nu de uma jovem nos mosaicos úmidos das paredes. A moça ri mansamente de alegria de corpo. Suas pernas delgadas, lisas, os seios pequenos brotaram da água. Ela mal se conhece, nem cresceu de todo, apenas emergiu da infância. [...] Imerge na banheira como no mar. Um mundo morno se fecha sobre ela silenciosamente, quietamente. Pequenas bolhas deslizam suaves até se apagarem de encontro ao esmalte. [...] O que houve? Os olhos abertos e mudos das coisas continuam brilhando entre os vapores. Sobre o mesmo corpo que adivinhou alegria existe água — água. Não, não... Por quê? Seres nascidos no mundo como a água. Agita-se, procura fugir. Tudo — diz devagar como entregando uma coisa, perscrutando-se sem se entender.
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Tudo. E essa palavra é paz, grave e incompreensível como um ritual. A água cobre seu corpo. Mas o que houve? Murmura baixinho, diz sílabas mornas, fundidas. O quarto de banho é indeciso, quase morto. As coisas e as paredes cederam, se adoçam e diluem em fumaças. A água esfria ligeiramente sobre sua pele e ela estremece de medo e desconforto. Quando emerge da banheira é uma desconhecida que não sabe o que sentir. Nada a rodeia e ela nada conhece. Está leve e triste, move-se lentamente, sem pressa por muito tempo. O frio corre com os pés gelados pelas suas costas mas ela não quer brincar, encolhe o torso ferida, infeliz. Enxuga-se sem amor, humilhada e pobre, envolve-se no roupão como em braços mornos. Fechada dentro de si, não querendo olhar, ah, não querendo olhar, desliza pelo corredor — a longa garganta vermelha e escura e discreta por onde afundará no bojo, no tudo. Tudo, tudo, repete misteriosamente. Cerra as janelas do quarto — não ver, não ouvir, não sentir. Na cama silenciosa, flutuante na escuridão, aconchega-se como no ventre perdido e esquece. Tudo é vago, leve e mudo. (LISPECTOR, 1998, p. 64-66)
Essa perspectiva de escrita introspectiva ultrapassa os domínios da expressão verbal pelo fato de exprimir o que não pode ser inteiramente verbalizado, instaurandose, portanto, o “drama da linguagem”, tão bem apontado por Benedito Nunes (1995). Por meio de reflexões que tem como seu centro irradiador, a poesia, ou seja, por meio da linguagem liricizada é possível externar emoções, sensações, sentimentos e reflexões. Sendo assim, os elementos poéticos são, de fato, inerentes a qualquer expressão artística que tem como prioridade a exploração da subjetividade. Considerações finais Mais de meio século após a publicação de Perto do coração selvagem, podemos dizer que Clarice Lispector cumpriu à risca o seu propósito literário inicial, o qual, por meio do discurso permeado de reflexões centrado na poesia, não consistia em dar unidade aos fragmentos de sua prosa. Sendo assim, Clarice Lispector renovou os ideais literários e exerceu significativa contribuição para a Literatura Brasileira, pois inaugurou uma outra linha de tradição literária, sendo provavelmente a origem das tendências “desestruturantes”, no âmbito da elaboração estilística da linguagem. De um modo generalizado, Clarice, com seu romance de estreia, se torna inovadora no quadro nacional devido à diluição dos gêneros, a quebra do processo narrativo, a rarefação e a minimização do enredo, a ruptura do tempo linear e do espaço físico, conforme já previamente mencionado na introdução deste trabalho.
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Ao analisarmos o capítulo “O banho”, conseguimos compreender que o diferencial promotor da inovação da escritora vem a ser, justamente, a incorporação das reflexões filosóficas, instauradas pelo fluxo de consciência, e, consequentemente, da linguagem poética, como o uso intensivo de figuras de linguagem próprias da poesia. Nesse
sentido,
notamos
que
esses
elementos
os
quais
chamamos
filosóficos/poéticos não estão diluídos, mas sim intrinsecamente ligados à temática e a estrutura textual. Assim, o processo de “liricização” do capítulo ora analisado pode ser identificado na desagregação dos elementos componentes da diegese, sendo que este nos fornece um paradigma ao que ocorre em todo o livro. Referências AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel. Teoria da literatura. 5ª edição. Coimbra: Almedina, 1983. BOSI, Alfredo. Clarice Lispector. In: ________. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1989. CANDIDO, Antônio. No começo de fato era o verbo. In: LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH/ Clarice Lispector. Brasília: Editora Crítica, 1988. COHEN, Jean. Estrutura da linguagem poética. 2 ed. São Paulo: Cultrix, 1978. DINIS, Nilson. A arte da fuga em Clarice Lispector. Londrina: Ed. UEL, 2001. LEFEBVE, Maurice Jean. Estrutura do discurso da poesia e da narrativa. Coimbra: Almedina, 1980. LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de janeiro: Rocco, 1998. MOISÉS, Massaud. A criação literária: Introdução à problemática da Literatura. 3 ed. São Paulo: Cultrix, 1970.
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________. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004. ________. A criação literária. Prosa II. São Paulo: Cultrix, 2005. NUNES, Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1995. REIS, Carlos. O conhecimento da literatura. Introdução aos estudos literários. Coimbra: Almedina, 1997. RICARDO, Cassiano. A poesia na técnica do romance. Ministério de Educação e Cultura. Serviço de Documentação, 1953. SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1979. SANT’ANNA, Affonso Romano de. Análise estrutural de romances brasileiros. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1973. STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de poética. Tradução Celeste Aida Galeão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977. TAVARES, Hênio Último da Cunha. Teoria literária. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Vila Rica, 1991.
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A TRANSFORMAÇÃO DO HERÓI PARADIGMÁTICO NO POEMA NARRATIVO MODERNO LAMPIÃO E LANCELOTE DE FERNANDO VILELA
Maisa Cristina Santos (UFMS)
1.Uma breve introdução Conforme se verifica nos poemas narrativos de origem clássica, o herói é a representação paradigmática das idealizações sociais e morais de uma determinada época. Com o passar do tempo, entretanto, as incursões teóricas acerca da existência humana destituem do herói clássico seu traje sócio-simbólico dando vazão a uma perspectiva humano existencial. Literariamente, essa transformação ocorreu de forma tênue, gradual, delineando os avanços e retrocessos de uma sociedade que sempre esteve em busca de uma espécie de paladino que a representasse qualitativamente. Apropriando-se dessa característica evolutiva do herói, Fernando Vilela em sua obra Lampião e Lancelote, voltada para o público infanto-juvenil, apresenta o perfil desse tipo de personagem em seus extremos temporais. De um lado, como expoente do período clássico, encontra-se Lancelote com todos os atributos característicos de um cavaleiro do Rei e, de outro, Lampião, da qual não se sabe se foi criminoso ou justiceiro. O duelo travado entre ambos desemboca na alteração do herói clássico em cômico, como uma forma representativa de adequação daquele herói idealizado em um personagem mais humano e, por derradeiro, passível de existir. Mencionada transformação acaba por demonstrar a mudança do poema narrativo no tempo, desconstruindo afirmação de que esse tipo poético deixou existir sendo absorvido pelo romance. Ao analisar a obra de Fernando Vilela é possível entrar em contato com a vertente moderna desse gênero poético e por meio dos dois tipos de herói nela existentes compreender como se deu a adequação do clássico ao moderno.
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2. O poema narrativo e seus heróis Atentando ao tipo poético são parcas as definições sobre o que vem a ser um poema narrativo. Na grande maioria dos casos ele é definido como um poema longo. Todavia, a extensão do poema é uma delimitação insuficiente para conceitua-lo. Conforme esclarece Otavio Paz em La outra voz: Poesia y fin silgo, existem poemas, como por exemplo, A divina comédia, que contam com quinze mil versos, enquanto o poema Uta considerado pelos japoneses como um poema longo, tem apenas cerca de trinta a quarenta versos. (PAZ, 1990, p. 11). Tendo em conta que sua extensão não é fator determinante para caracterizá-lo, Otavio Paz pontua que uma das características mais relevantes ao tipo poético é a sua fragmentariedade, ou seja, “en el poema extenso cada parte tiene vida propia [no poema extenso, cada parte tem vida própria] (PAZ, 1990, p. 12). Sob esse diapasão, José Batista Sales1 enriquece essa conceituação abordando outras características relevantes ao tipo: O poema narrativo caracteriza-se como a manifestação literária em verso na qual se realiza a narração ficcional de fatos ou de ações antropomorfizadas, com traços dramáticos, cômicos ou sérios e pode ser de alcance universal, regional ou local, dada a presença ou a ausência de grandiosidade. Dessa forma, o poema narrativo pode ser classificado como épico, heróico ou herói-cômico. (SALES, 2014).
Como se pode verificar, o autor destrincha o poema narrativo em três espécies: o épico, heroico e herói-cômico. Analisando sob a perspectiva Aristotélica, os três tipos poéticos realizam a mimese da realidade dos homens superiores (epopeia/heroico) e inferiores (herói-cômico). A que trata dos homens superiores divide-se em dois tipos, a epopeia e o heroico, aquele segundo José Sales “se constitui na narração de um fato grandioso e de claro interesse nacional e social” e esse “é a narração de um fato menos grandioso ou de importância e interesse apenas nacional” (SALES, 2014).
1
SALES, José Batista: s.v. "Poema narrativo", E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, http://www.edtl.com.pt, consultado em 05/06/2014.
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Como se pode notar, ao abordar a caracterização do poema narrativo, desemboca-se inevitavelmente no ser objeto dessa mimese da realidade, o herói. Nas palavras de Empédocles2, sendo a arte “a mimese da ação de agentes humanos”, traçar a caracterização do herói é optar por trilhar os caminhos do épico sob a perspectiva do humano. Ao se enveredar na inconstância desse ser mutante, percebe-se a criação de um espelho projetivo, cuja época é mecanismo determinante para se traçar um perfil que refletirá a personagem como sendo aquilo que seu público gostaria de ser, ou, que realmente é. Esse dualismo projetivo traçou diversos contornos ao longo dos anos que delineiam como a sociedade se enxerga na arquitetura de sua história. De Vasco da Gama a Macunaíma, a literatura reverbera por meio do herói o retrato da sociedade que ora traja-se de hombridade, outra, despe-se de sua hipocrisia. Cada época ecoará a beleza ou a contrariedade de ser humano, corroborando com a premissa de que o poema narrativo não se extinguiu com o nascimento do romantismo, mas apenas se aperfeiçoou na arte prismática de refletir as várias facetas do homem. 3. Herói e anti-herói: Lancelote e Lampião Artista plástico, designer, professor, escritor e ilustrador de livros, essas são as habilidades elencadas pelo próprio Fernando Vilela em seu blog, espaço em que divulga suas exposições e apresenta um pouco do seu labor artístico. A qualidade de seus trabalhos lhe renderam fama internacional e uma série de exposições tanto no Brasil como no exterior. Dentre seus trabalhos destacam-se Lampião & Lancelote, publicado no ano de 2006 pela editora Cosac Naify e ganhador dos prêmios: Fernando Pini de Excelência Gráfica (2008), Prêmio Jabuti (2007) nas categorias capa, melhor livro infantil e melhor ilustração, Prêmio FNLIJ nas categorias escritor revelação, melhor ilustração, melhor poesia e melhor projeto editorial, Prêmio Ibby (2007) nas categorias catálogo White Ravens e Honour List – ilustrador e o Prêmio Bologna Ragazzi (2007) na categoria novos horizontes (menção honrosa). 2
ARISTOTELES, apud, Empédocles, 1990, p. 290.
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No livro, a bruxa Morgana lança um feitiço contra Lancelote que vai para outra “dimensão” e acaba dando de cara com Lampião. No encontro, ambos trocam faíscas e decidem duelar e, no meio do alvoroço, ambos tiveram suas roupas trocadas gerando o riso de todos que estavam a lutar. Nesse momento, Lampião declara que a luta agora era outra, pega sua sanfona e passa a cantar. Assim, o exército de Lampião e Lancelote baixam as armas e todos dançam ao som da música. A composição textual da obra é definida nas páginas finais e reverenciam o cuidado no desenvolvimento de cada parte do poema: [texto] Dividido em três partes – a apresentação dos personagens, a travessia de Lancelote e o duelo –, o livro mistura os registros literários, mantendo a rima e o improviso do cordel, além do léxico medieval. Nas falas do cangaceiro, Fernando usou a métrica mais tradicional do cordel, a sextilha heptassilábica, composta de seis versos com sete sílabas poéticas cada, e esquema de rimas A B C B D B. Já nas falas do cavaleiro, foi empregada a sextilha, sete versos de sete sílabas poéticas e rima A B C B D D B, consagrada nos duelos escritos por José Costa Leite. Por fim, para a travessia de Lancelote, Vilela apropriou-se dos termos e estrutura de sentenças de novela de cavalaria. (_____, 2006, p. 51).
Sua formatação, como se pode notar amolda-se ao gênero poema narrativo, não pela sua extensão, mas pela vida própria que cada parte do poema detém. A leitura de um ponto sem acesso ao todo desvirtua a logicidade diegética impedindo a compreensão plena da obra. Cada uma dessas divisões é realizada não apenas pela alteração da estrutura poética, que se adequa aos heróis por ela representados, mas por um conjunto de ilustrações e tonalidades que cingem a narrativa dando início a um novo momento. O poema narrativo é composto por 282 versos heptassílabos divididos em estrofes com seis e sete sílabas poéticas. A primeira parte detém cento e quatro versos divididos dezesseis estrofes, oito destinadas a descrever cada personagem. Quando se trata de Lancelote, as estrofes são compostas por sete versos, enquanto as de Lampião detêm seis versos cada, o esquema de rimas conforme descrito no próprio livro, obedece ao esquema A B C B D D B na descrição de Lancelote, e A B C B D B quando diz respeito a Lampião. Exemplificando o disposto, seguem duas estrofes, sendo a primeira pertencente a Lancelote e a segunda a de Lampião:
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Es/te /gran/de/ ca/va/lei/ro (A) Ao/ Rei/no/ ser/viu/ le/al (B) Im/ba/tí/vel/ nas/ ba/ta/lhas (C) Pe/lo/ Bem/ e/ com/tra o/ Mal (B) Ar/ma/do/ de/ lan/ça e / cruz (D) Lu/tou/ pa/ra o/ Rei/ Ar/thur (D) So/be/ra/no/ sem/ i/gual (B) (VILELA, 2006, p. 04) A/go/ra eu/ lhes/ a/pre/sen/to (A) Um/ gran/de/ can/ga/cei/ro (B) Nas/ci/do em/ nos/so/ pa/ís (C) Le/al/ e/ bom/ com/pa/nhei/ro (B) Pa/ra /uns/ foi/ cri/mi/no/so (D) Pa/ra ou/tros/ jus/ti/cei/ro (B) (VILELA, 2006, p. 08).
Na estrofe pertinente ao cavaleiro, a estrutura métrica é a mesma consagrada nos duelos de cordel, conhecidos como pelejas ou desafios e caracterizam-se por ser uma disputa poética em que se transmite uma “performance” oral (REZENDE apud, CURRAN, 1998, p. 17). A utilização dos versos heptassilábicos vai ao encontro dessa tradição popular oral e, concomitantemente, ao abordarem uma figura de traços épicos, travestem-na com o ar desafiador próprio da peleja e característico ao herói invencível. Essa visão do herói-cavaleiro como ser inabalável traduz o labor poético do épico clássico que embutia no herói força e coragem animada de fúria física e sobrenatural, sendo que seu caráter, pensamento e ação eram exteriores a ele mesmo, evidenciando sua adesão objetiva aos valores de seu mundo (HANSEN, 2008, p. 61). Sobre esses valores, são as palavras de Angélica Varandas: De facto, o herói incorpora os valores da comunidade que pertence, pelo que os seus feitos se tornam dignos de ser cantados ou recitados. A divulgação desses feitos fomenta o sentimento de união e de pertença e aviva a coragem e o espírito guerreiro, pelo que os poemas heroicos são parte integrante e fundamental da vida quotidiana. São apelidados de épicos, pois ao organizarem-se ao redor de um herói, de uma civilização ou de ambos, constituem-se como registros visíveis da história, tradições e costumes de um povo ou de uma comunidade. (VARANDAS, 2013, p. 33).
Note-se, portanto, que o herói é um ser paradigmático do período que representa. A personagem Lancelote, a quem Fernando Vilela reverencia em sua obra, era,
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enquanto integrante do romance Os cavaleiros da Távola Redonda de Thomas Malory, um verdadeiro modelo representativo dos valores da comunidade inglesa. Adentrando em suas características, Varandas afirma: Também por essa razão, alguns dos mais paradigmáticos heróis do período medieval adquirem uma função messiânica, pois enquanto figurações do próprio Cristo, actuam no sentido de salvar a corte, o reino e a própria humanidade. A vertente messiânica do herói atinge o seu auge na figura de Arthur – REX QUONDAM REXQUE FUTURUS [aqui jaz Arthur, Rei uma vez, Rei no futuro] , como afirma Thomas Malory, em Le Morte d’Arthur – o rei que foi e um dia será, o rei que não morreu, mas que aguarda adormecido numa ilha encantada fora do tempo e do espaço, o momento ideal para, mais uma vez, lutar pelo Bem contra os inimigos da Fé e salvar a terra natal. [...] O herói medieval enquanto nobre guerreiro, conjuga assim dois ideias à partida antagônicos: o ideal religioso em que o cavaleiro se pauta pela imitiatio Christi e um ideal secular que lhe permite ser corajoso no campo de batalha, feroz contra os inimigos, amante cortês e fiel. Isto significa que o herói deve sempre ser bem virtuoso em todas as esferas de sua vida pública e privada. (VARANDAS, 2013, p. 37).
Ao longo da descrição realizada por Fernando Vilela, na primeira parte do poema, Lancelote é detentor desse perfil idealizado de herói, “bom e nobre cavaleiro/ Valoroso e altaneiro” (VILELA, 2006, p. 02). A fim de ilustrar essa caracterização, Vilela faz uso da cor prata ao abordar a personagem, cor essa que segundo Ad Vries, citado por Zanotti “significa a pureza, a inocência, uma consciência pura, como pode ser verificado, na utilização do cálice de prata nas cerimônias religiosas, e também sabedoria a língua do justo tem a cor” (AD VRIES, apud ZANOTTI, 2011, p.2). De forma diversa, a cor que representa Lampião é a dourada, rememorando a cor da coroa que nesse caso pertence ao Rei do cangaço e o sol que açoita a região nordestina. As sextilhas heptassilábicas característica dos cordéis trazem as características daquele que segundo o narrador, “para uns foi criminoso/ Para outros justiceiro” (VILELA, 2006, p. 08). Divergindo do herói medieval, Lampião é um típico anti-herói, um paradigma da mudança de consciência sobre o humano. Nas palavras de Antonio Moniz3:
3
Antonio Moniz: s.v. "Anti-herói", E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, http://www.edtl.com.pt, consultado em 12/0/2014.
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Enquanto protagonista da história narrada ou encenada, o anti-herói reveste-se de qualidades opostas ao cânone axiológico positivo: a beleza, a força física e espiritual, a destreza, dinamismo e capacidade de intervenção, a liderança social, as virtudes morais. Uma vez que a avaliação do herói, feita pelo leitor/espectador, assume sempre aspectos subjectivos, uma vez que, no quadro da apreciação humana das situações de vida e dos acontecimentos, a ambiguidade dos pontos de vista é uma constante, que se inscreve no carácter dialéctico da condição humana, qualquer reacção do protagonista é sempre susceptível de interpretações antagónicas. (MONIZ, 2014, s/p).
Diferentemente de Lancelote, Lampião é personagem da vida real. Virgulino Ferreira da Silva, nasceu em 07 de julho de 1897 em Vila Velha, Pernambuco. Ao ser retratado nos cordéis como Lampião, o Rei do cangaço opõe-se diretamente à configuração do cavaleiro da Távola Redonda, por aproximar-se da figura humana. O cangaceiro, despido das virtudes que moldavam o cavaleiro medieval, caracteriza-se por ser um guerreiro temido, porém corajoso como Lancelote. O herói clássico é dotado de uma perfeição inumana por ser ele uma projeção ficcional de uma gama de valores pertencentes a uma sociedade em um determinado período. No caso do anti-herói como Lampião, entretanto, as qualidades são opostas a esses valores, por ser o personagem um paradigma da controversa condição humana. 4. A transformação do herói em anti-herói: Novos paradigmas Com a maldição da bruxa Morgana, Lancelote encontra-se com Lampião, Rei do cangaço, de cujo embate resulta na colisão dos paradigmas representados por ambos. Lancelote, enquanto modelo dos valores de uma época, demonstra sua valentia ao enfrentar o desconhecido que lhe impede de seguir seu caminho, e Lampião, refletindo a prepotência humana, desafia o cavaleiro por deter a sensação de posse daquelas terras. É o trecho que representa o perfil de ambas as personagens: Lampião sorriu de lado E quedou-se analisando Aquele homem invocado Que já chegava ordenando E de um nada entendia Do chão que estava pisando
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“Ó donzelinho enfeitado Todo coberto de ferro Você nem sabe quem eu sou E já vai me dando berro Se eu quiser te mato agora Neste chão eu te enterro” Lancelote sacudiu-se Como que se preparando Deu um pulo do cavalo E a espada foi tirando Mas no lugar de atacar Com esperteza no olhar preferiu ir perguntando “Que sujeito doido és tu Com esse jeito de anão Essa roupa toda em couro É de vaca ou de bisão E o ar caipira e tacanho Mais este chapéu estranho Que lembra Napoleão” (VILELA, 2006, p. 26, 29).
Há a manutenção da figura paradigmática pertencente a ambas as personagens durante o encontro e a batalha, porém, quando há a troca de roupa, a seriedade característica a um combate cai por terra momento em que ocorre a ressignificação de Lancelote. Lampião, enquanto paradigma humano, não tem embutido em sua caracterização um comportamento uniforme, razão pela qual a transformação da batalha em festa não gera estranheza, porém, quando Lancelote adere à proposta do cangaceiro percebe-se uma mudança de paradigma. São os trechos que refletem esse estágio de transição: Quando a poeira baixou Estava tudo muito estranho Lampião numa armadura Que não tinha seu tamanho E Lancelote trajava Um uniforme tacanho Lampião sacou a sanfona E bateu o pé no chão “a batalha agora é outra” Bradou o Rei do Sertão
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“Vamos cantar Lancelote Você agora é meu irmão” [...] Percival toca sanfona E Corisco violino Maria Bonita requebra De sapato bico fino Lancelote rodopia Lampião vira menino (VILELA, 2006, p. 38,42).
A transformação do herói paradigmático proveniente do épico clássico foi gradual, externando a modificação quanto à forma de projeção humana das personagens nos poemas narrativos. Esse tipo de protagonista enquanto detentor de um valor sócio simbólico reverberava o perfil axiológico de uma determinada época e sociedade, porém “todas as incursões teóricas acerca da existência humana ratificaram e, de certo modo, impulsionaram, o processo de refragmentação de identidades já fragmentadas pela incongruência entre o individual e o social” (SILVA, 2007, p. 228). Percebe-se, portanto, que com o transcorrer do tempo a adaptação do poema narrativo aos dias atuais demandou a modificação da personagem, consolidando seu perfil humano-existencial. Em Lampião & Lancelote as personagens são apresentadas sob a perspectiva literária original, ou seja, Lancelote como herói épico medieval e Lampião como anti-herói. Há, porém, há uma quebra abrupta nessa formatação em decorrência de um acontecimento inusitado, a pausa na batalha por um motivo cômico. Lancelote vestido com as roupas de Lampião e ao entrar com ele na dança, apresenta a sua reconfiguração na história adquirindo uma faceta de anti-herói, corrompendo seu traje sócio-simbólico de origem épica-medieval, trazendo à tona seu perfil humanoexistencial. Sobre o assunto José Hildebrando Dacanal explicita: O fluir do tempo, dentro da qual o herói agia e completava seu caminho, passa, na crise do gênero, a determinar a consciência do herói, em outros termos, a problematizar, a colocar em xeque sua ação, enfim, a destruí-lo como portador da ação épica, a destruí-lo simplesmente. (DACANAL, 1988, p. 33).
Ambas as personagens de Fernando Vilela são paradigmas da trajetória do épico e a distância secular entre um e outro intensifica a diferença de suas configurações. Nota-se que Lancelote representa tanto o herói épico como, ao final da história, o
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moderno, pois ao viver uma situação cômica, desce de seu patamar humano-idealizado e se reformula enquanto herói. A necessidade de modificação para fins de adequação a nova situação por ele vivenciada reflete, ainda que de forma abrupta, como se deu a modificação do poema narrativo no tempo. Ou seja, pela necessidade de adaptar-se a nova realidade, Lancelote pode ser visualizado, portanto, como uma metaforização da transformação do poema narrativo sob uma perspectiva temporal. Referências ARISTÓTELES. Poética. Ética a Nicômaco; Poética. Trad. VALANDRO, Leonel; BORNHEIM, Gerd. V.2. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
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IDENTIDADE, LEITURA E MEMÓRIA COLETIVA EM “O OUTRO PÉ DA SEREIA” DE MIA COUTO
Marcelo Franz (PUCPR) O romance que tomamos como objeto de estudo, O Outro Pé da Sereia (2006), do escritor moçambicano Mia Couto, nos chama a atenção pela forma como representa a experiência leitora em sua relação com a memória sendo ato leitor entendido como ato ressignificador de experiências passadas. O pressuposto de nossa suposição, com base no que traz o enredo do romance, é o de que a leitura e a memória – vistas como experiências correlatas - são formadoras das identidades individual e coletiva. Maurice Halbwachs define as diferentes vertentes do termo memória (memória coletiva, memória pessoal e memória histórica) a partir do estabelecimento das relações sociais. Segundo o estudioso, a lembrança subjetiva não existe sem a memória coletiva. A própria forma como selecionamos e nos comportamos diante das nossas lembranças mais íntimas é, por essa medida, definido pelo nosso pertencimento a uma memória do grupo. Para Halbwachs: Se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo. [...] cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes (HALBWACHS, 2006, p.69).
Em linha de consonância com esse conceito, Vincent Jouve nos ensina, em sua teoria da leitura, que o leitor, ao ressignificar o lido restabelece vínculos com a memória de seu grupo cultural, sendo a leitura a vivência da rememoração de leituras anteriores originadas do coletivo (JOUVE, 2012, p.17). É de memória e de leitura que, em linhas gerais, trata O Outro Pé da Sereia. Caberia recuperar alguns incidentes do enredo a fim de melhor situar essas ocorrências.
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O romance passeia por contextos históricos, políticos e sociais distintos, que têm como espaço principal a terra natal do escritor, Moçambique. A ação transcorre em duas épocas diferentes, num interessante jogo de sobreposição de tempos intercalados ao longo dos capítulos, o que induz à leitura dos reflexos do passado nos dias atuais: num primeiro plano, temos a ação posterior ao fim da guerra civil de Moçambique, em 2002, com a reestruturação de um país sedento por uma identidade própria reconhecida. Num segundo plano, a ação é situada no momento da colonização portuguesa no continente africano, em 1560, quando o padre D. Gonçalo da Silveira é enviado com a missão de catequização e conversão do rei de Monomotapa. Na história de 2002, o enredo gira em torno da personagem Mwadia Malunga cujo nome tem origem na língua si-nhungwé falada no noroeste de Tete, em Moçambique, e significa “canoa”. Sua aventura se inicia quando ela, junto com seu marido, Zero Madzero, encontra nas margens de um rio, próximo do lugar onde vivem (curiosamente chamado de Antigamente) diários de uma viagem de navegação portuguesa dos tempos de colonização, juntamente com uma imagem de Nossa Senhora com um dos pés arrancado. Intrigada e comovida, Mwadia se impõe a missão de providenciar um destino para a santa e, para isso, retorna a sua cidade de origem, Vila Longe, a qual havia abandonado para viver com seu marido e para onde não retornara. A segunda história é uma narrativa histórica que conta como a imagem de Nossa Senhora – a mesma que Mwadia encontrou mais de 400 anos depois – chegou a Moçambique, vindo na embarcação portuguesa Nossa Senhora da Ajuda, em 1560, sob os cuidados de D. Gonçalo da Silveira, que viajava junto com outros tantos marinheiros e escravos a serviço dos interesses de colonização do Império de Portugal. Nesse plano de ação, um dos pontos mais importantes é o modo como a imagem de Nossa Senhora é venerada pelo escravo Nimi Nsundi, prisioneiro capturado na costa do Congo, supostamente cristianizado, que servia aos portugueses na viagem. Para Nsundi – que tem o acesso à Santa autorizado pelos religiosos da embarcação, que o veem apenas como um pacífico africano convertido – a imagem é ressignificada e, em seu culto, assume a representação da deusa Kianda (nomeada de Nzuzu na tradição moçambicana), a deusa das águas. Segundo Nsundi, “O que sucedeu é que a nossa deusa ficou prisioneira na estátua de madeira dos portugueses.” (COUTO, 2006, p.208).
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Nessa ressignificação, proporcionada pelo sincretismo religioso, a imagem da Santa (cujo culto “blasfemo” resultará numa severa punição a Nsundi) é, simbolicamente, o elo capaz que ligar passado e presente, unindo também, pelo seu conteúdo místico, povos distantes. Cremos que a abordagem de alguns pontos teóricos se fez necessária devido ao fato de eles iluminarem a compreensão de ocorrências que nos chamaram a atenção em nossa leitura de O Outro Pé da Sereia. Sabe-se que a colonização obrigou o povo Moçambicano a se adaptar à religião imposta pelo Império Português: o Cristianismo. O povo foi obrigado a abandonar costumes milenares e se adequar a uma nova realidade. Os Nyangas, curandeiros ou feiticeiros, foram proibidos de realizar qualquer tipo de ritual. Quando o colonizador impede manifestações religiosas do colonizado está caracterizando uma defesa de si e de sua ideologia. Apesar de todas as proibições impostas pelos colonizadores, alguns grupos moçambicanos continuaram a manter suas crenças de forma subversiva, e a partir disso, estabeleceram relações sincréticas com os santos católicos. A igreja adaptava os mitos cristãos para pedagogizar os nativos e assim converter a muitos. Essas relações sincréticas, ao invés de levar o povo a seguir uma nova religião, em muitos casos, ajudaram o povo a manter seus deuses, mitos e crenças. Assim as religiões africanas sobreviveram aos tempos de colônia (PARADISO, 2010). Tocar nessas questões é dialogar com a história. Trabalhando ao mesmo tempo com a ficcionalização da história oficial e com a busca do africano por sua real identidade, e não as visões estereotipadas e ideias eurocêntricas cristalizadas, a literatura é o veículo de que Mia Couto se vale para restaurar memórias esquecidas. As vivências de seus personagens frequentemente se centram na definição de suas identidades em face do coletivo, e o recurso ao histórico (e ao historiográfico) é, no romance que aqui analisamos, uma forma complexa de se chegar a isso. Mas o conceito de história para Couto, no modo como ele a ficcionaliza, corre ao largo da discussão sobre a verdade dos fatos historiados. Suas narrativas não pretendem a expressão de “realidades” e sim a compreensão (mediada pelas palavras e sua capacidade de (re)invenção) dos incidentes da história. Marilene Weinhardt salienta que a ficção não é uma concorrente da história e também ressalta a diferença existente entre o processo utilizado pelo escritor ficcional,
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definido por ela como ‘meta-historiador’. Sua criação é um processo cujo “trabalho é dedutivo, impondo uma forma a seu objeto, em função da qual o escolhe”. Já a criação do historiador implica um processo que é “indutivo, a forma sucedendo a pesquisa” (WEINHARDT, 2002, p.107). Por não exigir veridicalidade, a literatura se fixa como o campo onde a memória poderá viajar e ser livre, seguindo caminhos desprendidos da restrição criativa que a história impõe. Em textos ficcionais que se referem à realidade histórica (notadamente o romance histórico), é sempre tênue a distinção entre história e estória, já que, segundo Antoine Compagnon, a linguagem ficcional está sempre no limite entre uma representação carregada do senso de abstrato e o que vemos como referente real, ou seja, a escrita ficcional é oriunda de uma realidade concreta exterior que, por sua vez, é transfigurada pelo artista da palavra (COMPAGNON, 2012, p. 51). No livro de Mia Couto, a reconstrução ficcionalizada da história se liga ao conceito de memória, termo que, seja no plano individual, seja no coletivo, refere-se a faculdade de reter ideias e sensações e também, segundo o filósofo Paolo Rossi, a uma realidade de alguma forma intacta e contínua. É de se ressaltar que por meio do compartilhamento de vivências do passado relembradas no presente, contribui-se para a formação de um “sentimento de pertinência a um grupo de passado comum, que compartilha memórias” (KESSEL, 2012, p.3), ou para a formação de uma identidade própria. Paolo Rossi afirma: “A memória tem algo a ver não só com o passado, mas também com a identidade e, com a própria persistência no futuro” (ROSSI, 2010, p.24). Deve-se considerar também que a memória é seletiva e variável, pois é próprio dela (seja de modo intencional, seja pelos meandros do inconsciente) registrar somente vivências que se tornarão parte do acervo identitário de determinado sujeito ou grupo. No plano coletivo, é essa seleção – estabelecida tanto pela dinâmica social como pelo substrato simbólico do grupo - que decide o que é relevante o suficiente para ser rememorado de geração a geração e o que deve ser esquecido, sendo, portanto, o ato de “lembrar” tão importante quanto o ato de “esquecer”. No plano das experiências sociais, o que se denomina “cultura” está intimamente relacionado ao conceito de memória coletiva construída pelo complexo balanço entre o esquecer e o lembrar daquilo que forma um grupo social.
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O sociólogo francês Maurice Halbwachs contribuiu para a compreensão do aspecto social da memória que encontra, principalmente na linguagem, o seu instrumento socializador. É por meio da linguagem que os membros de determinado grupo trocam experiências e são sociáveis por partilharem de pensamentos e ideias em comum (HALBWACHS, 2006, p. 76). A memória coletiva é formada a partir de uma relação de aceitação de pertencimento a um grupo, sendo que ela contém as memórias individuais, mas não se confunde com essas. Não há possibilidade de existência de uma memória exclusivamente individual, pois as lembranças se inserem em relações sociais, e não se restringem a vivências isoladas. A memória coletiva se beneficia de experiências que resultam numa espécie de acervo de lembranças que, quando compartilhadas, são o real conteúdo da cultura do grupo. A memória individual, então, pode ser entendida como o resultado de diferentes influências sociais que se articulam entre si. Para os interesses de nossa pesquisa, cumpre ressaltar a relação entre memória e leitura. Em muitas culturas que se afastaram do estágio do “agrafismo” (que também não deixa de propor narrativas que se apresentam à “leitura”), o acesso à memória do coletivo se dá por meio de textos que, em diferentes direções, sistematizam e erigem essa memória. Desse modo, a vivência realizadora de sentido dos textos da comunidade (sendo que esses textos se encarregam de constituir a identidade do coletivo) constitui a identidade pessoal dos leitores na sua relação com a memória do grupo. O termo latino legere, forma antecessora do verbo ler, denominava o ato de colher e armazenar. Ler é uma operação de percepção, de identificação e de memorização de signos (JOUVE, 2012, p.17), uma atividade complexa de interpretação capaz de provocar diversos tipos de emoções a quem se dá a tal experiência. Assim como a memória coletiva, a leitura é formadora de identidades, pois o leitor não pode ser visto somente como quem cria os sentidos da leitura, mas também como alguém que se forma por esses sentidos. O leitor amplia seu acervo a cada nova leitura e, como todo texto se alimenta de outro, torna-se impossível ler um texto sem, mesmo que inconscientemente, relacioná-lo com experiências de vida e com leituras passadas. Dessa forma, o ato leitor memorialístico em essência, já que, por um lado, se operacionaliza ora como recurso, ora como constituinte, de um “acervo” e, por outro,
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nos liga a camadas de memória dos sentidos lidos que vêm de todas as leituras – feitas por membros das comunidades interpretativas de que fazemos parte – que se realizaram antes. Para além dos textos escritos, qualquer criação simbólica é passível de leitura. Peter Burke, em sua obra Testemunha Ocular (2004), reflete sobre o uso das imagens como fontes históricas e, testemunhos de uma época. Burke apropria-se de uma frase do historiador cultural Jacob Burckhardt para descrever imagens e monumentos como testemunhas do passado e como objetos “através dos quais é possível ler as estruturas de pensamento e representação de uma determinada época” (BURKE, 2004, p.13). No romance de Mia Couto, na parte que retrata a viagem do navio Nossa Senhora da Ajuda, observamos que as estruturas de pensamento dos portadores da imagem da santa, os padres, continham intenções implícitas de dominação. Segundo D. Gonçalo, “A estátua de Nossa Senhora, benzida pelo Papa, é o símbolo maior desta peregrinação.” (COUTO, 2006, p.51). Nas mãos de Nsundi e, séculos depois, nas de Mwadia, a imagem altera sua significação, revelando a estrutura de pensamento deles no contexto em que a leem. Diz Nsundi: “A minha Kianda, essa é que não pode ficar assim, amarrada aos próprios pés, tão fora do seu mundo [...] O meu pecado, [...] foi retirar o pé que desfigurava a Kianda [...] só peço que alguém mais [...] decida decapitar o outro pé da sereia” (COUTO, 2006, p.208). Há na imagem da santa um encontro de culturas, pois o mesmo objeto sacro sugere diferentes leituras. Essa multiplicação de significações se dá como reposta à imposição da cultura ocidental europeia sobre a África nos tempos de colonização. Nos termos de Serge Gruzinski ter-se-ia verificado nesse contato de culturas a “colonização do imaginário”, caracterizada pela imposição de elementos simbólicos que sugerem ou ordenam a supressão de uma cultura por outra (GRUZINSKI, 2003). Sob essa ótica, as imagens sacras não seriam peças neutras ou meros ornamentos de igreja, e sim instrumentos de sujeição do universo cultural do colonizado pelo do colonizador. Todavia a complexidade do sincretismo religioso subverte essa ordem, pois aparentando acatar o universo imagético que lhes é imposto, os dominados procedem a isso leituras ressignificadoras. É um modo astuto de, pela via aberta pelo dominador, se preservar o mundo cultural que este rejeita.
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No plano da ação presente, quando retorna a Vila Longe após ultrapassar o rio Mussenguezi, Mwadia Malunga sabia do espanto que sua chegada causaria e que “as vozes e os olhares lhe iriam certamente devolver a familiaridade perdida” (COUTO, 2008, p.68). Mas ela não esperava encontrar sua antiga vila num estado tão decadente em decorrência da guerra ocorrida durante sua ausência. A igreja, na qual Mwadia intencionava abrigar a santa, estava destruída. Assim o seu retorno é um mergulho em memórias e constatações de perdas pessoais e coletivas. É também um modo de visitar, sob o signo da crise, uma identidade possível em meio aos destroços paisagísticos e humanos com que se depara. De todo modo, Mwadia relê sua historia e sua condição em face da comunidade que reencontra. Sua mãe, Constança Rodrigues, engordara e acusara a filha pelo seu aumento de peso, dizendo que desejava afogar a tristeza de sua partida se alimentando em excesso. Seu padrasto, que altera seu nome a cada aniversário, acreditando assim enganar a morte, agora se chama Jesustino. Sua tia Luzmina, irmã de seu padrasto, falecera e agora fazia parte da parede dos ausentes, onde eram fixadas as fotografias dos parentes falecidos para que não fossem esquecidos. Casuarino, tio de Mwadia, chega à cidade e reúne os habitantes (entre eles, o barbeiro Arcanjo Mistura e o agente dos correios, Matambira) para comentar sobre a vinda de um casal de americanos, o historiador afro-americano Benjamin Southman e a socióloga brasileira Rosie, que tinham o intuito de conhecer a verdadeira África e vinham recolhendo dados para a escrita de um estudo sobre o tema. Casuarino propôs que os habitantes forjassem histórias e memórias sobre a “verdadeira, primitiva e selvagem mãe África” para satisfazer o casal, pois eles se dispunham a pagar por isso e, isso auxiliaria no desenvolvimento da vila: “Eles gostam de pagar [...] gostam porque sentem-se culpados [...] saíram daqui, deixaram a malta a sofrer com o colonialismo e, agora, regressam engravatados, cheios de inglesuras, e a gente ainda passando fome. (COUTO, 2006, p.131). Nesse ponto, o texto mostra como o relato da memória da comunidade pode ser seletivo e manipulado conforme os interesses dos envolvidos. Além disso, há por meio da ironia a desmoralização do estereótipo da “mãe África”, uma construção ideológica
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ocidental vista como deslocada da realidade atual do continente e que nem sempre é leal ao que os próprios africanos consideram a sua cultura. Fora decidido que Mwadia teria um importante papel nesse plano de seus conterrâneos, sendo a encarregada de encenar sessões de encarnações de espíritos antepassados. Mas, em um contexto de tantas falsificações, a “performance” de Mwadia é por demais comovente, amedrontadora e verossímil, surpreendendo a todos, até mesmo aos que sabiam do plano, chegando esses a se indagar se ela estaria sendo possuída de verdade por espíritos. Mwadia parecia ter incorporado o espírito do escravo Nimi Nsundi, deixando os americanos estarrecidos. Benjamin observa que tudo o que ela falava correspondia à realidade histórica. Mas o que ninguém sabia era que essa atuação de Mwadia era induzida pela sua leitura. Durante o dia, ela lia os documentos de D. Gonçalo da Silveira que encontrara junto à santa e, durante a noite ia ao quarto do casal de historiadores visitantes para ler seus papéis, além de visitar a biblioteca do padrasto. A leitura desses textos e a ressignificação do que eles lhes informam, junto com a leitura da simbologia da santa e sua história – que é a complexa ponte espiritual e cultural entre os anseios de dominação dos colonizadores e a luta de resistência dos colonizados – é o que lhe proporciona o confronto com a memória de seu povo e dá sentido à viagem que fez de Antigamente a Vila Longe. Mwadia Malunga, então, faz uma descoberta: “[...] um livro é uma canoa. Esse era o barco que lhe faltava em Antigamente. Tivesse livros e ela faria a travessia para o outro lado do mundo, para o outro lado de si mesma” (COUTO, 2006, p.238). A capacidade leitora e a oralidade (presente no modo como oferece à comunidade o que leu) fez com que Mwadia cumprisse a vocação de seu nome. Como canoa, ela liga, pelo ato leitor, dois mundos, dois povos, duas culturas, duas histórias, revisitando e reconstruindo o passado para descobrir a si mesma e movimentando a memória coletiva entre os seus com a importante função de contribuir com um sentimento de pertinência a um grupo de passado comum. É certo que isso não a livra da percepção de uma ausência de saídas para sua comunidade no presente. Sem encontrar um lugar seguro para o repouso da imagem da Santa, Mwadia é aconselhada por Arcanjo Mistura a deixar Vila Longe. Arcanjo
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também pondera que Mwadia nunca encontrará uma igreja para a Santa, pois mesmo havendo igreja, faltava crença. O barbeiro explicou-se: ele seria um crente, sim, no dia em que a igreja morasse perto de cada um. Em miúdo, tal como Mwadia, deixara-se encantar pela solenidade dos rituais. Mas depois a igreja perdera tudo isso: em nome de um maior contacto com a gente perdera-se ocontacto com o divino. - É o que digo, Mwadia: não leve essa Virgem para nenhuma igreja. - Levo para onde? - O que tem a fazer é o inverso do que tem feito: deixar que a Santa a conduza a si, ela é que anda procurando um lugar seguro para si. (COUTO, 2006. p.318)
Pelo que é expresso em O Outro Pé da Sereia, percebemos que a viagem de Mwadia às voltas com a procura de um lar para a santa é também o que desencadeia o reencontro com suas origens. Mais do que reencontrar uma religião, a forma como ressignifica a imagem a faz voltar as suas raízes moçambicana e africana, carregando o fardo (mas também a honra) de pertencer a uma terra de tantas contradições. Ao iniciar sua viagem de volta para Vila Longe, Mwadia reconstrói sua relação com sua comunidade. Mas, além disso, ela revê o passado de Moçambique por meio do que a leitura lhe oferece. Opera-se uma renovação de sua vocação de ser uma canoa que liga os tempos e as culturas, compreendendo o impacto do que, no choque de culturas entre colonizador e colonizado, subsiste como hibridismo e mútua transformação. Acrescente-se que, sendo a encarnação da canoa, Mwadia projeta-se (a ponto de viver uma plena dramatização) na figura de um escravo, Nimi Nsundi, cujo culto sincrético à imagem de Nossa Senhora ocorre – em um ato de transgressão - durante uma viagem de navio, uma nau de exploração colonial. Desse modo, na vivência leitora e memorialística da protagonista os símbolos aquáticos e náuticos assumem uma grande e intensa força poética que sinaliza tanto para elementos vitais como para a perdição, o desconsolo e a resistência. Voz africana e lusófona destacada, Mia Couto é um escritor relevante no cenário da literatura mundial contemporânea porque os temas abordados em seus livros são, sim, os de sua aldeia, mas também são universais.
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Referências Bibliográficas: BURKE, Peter. Testemunha Ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004. COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: UFMG, 2010. COUTO, Mia. O Outro Pé da Sereia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. GRUZINSKI, Serge. A Colonização do Imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. HALBWACHS, Maurice. A memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: Unesp, 2002. KESSEL, Zilda. Memória e Memória coletiva. Disponível . Acesso em: 20 de outubro de 2012.
em:
PARADISO, Silvio Ruiz. A imagem do Feiticeiro pós-colonial em Mia Couto. Anais do 4º CELLI, Maringá, jun. 2010. ROSSI, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento: seis ensaios da história das ideias. São Paulo: Unesp, 2010. WEINHARDT, Marilene. Ficção e História: retomada de antigo diálogo. Revista Letras, Curitiba, n.58, p.105-120. Jul/dez. 2002.
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1 Apresentação Esta comunicação apresenta uma parte de meu projeto de pós-doutorado, que consiste na edição da correspondência entre João Guimarães Rosa e seu tradutor francês, Jean-Jacques Villard, que estou fazendo com a orientação da professora Gloria Carneiro do Amaral, da USP, e do professor Michel Riaudel, da Universidade de Poitiers. Meu contato com a correspondência de João Guimarães Rosa e de seu tradutor francês, Jean-Jacques Villard, se deu na época em que eu fazia meu doutorado, que abordou as duas versões francesas de Grande sertão: veredas. Naquele momento, li grande parte da correspondência do escritor com os seus tradutores, buscando precisar a poética do autor e o modo como seus intérpretes, particularmente Jean-Jacques Villard, a viam e procuravam traduzi-la em suas línguas. É para esses aspectos da correspondência, importantes tanto para os estudos sobre Guimarães Rosa quanto para os estudos da tradução, que Paulo Rónai (cf. RÓNAI, 1971) já chamava a atenção. Atualmente, preparo as notas a essa correspondência, e à medida que vou explicitando quem eram as pessoas e instituições ali representadas, percebo que se vai formando uma cartografia da “odisseia de leitura” – o termo é de Pierre Rivas (RIVAS, 1990) - de Guimarães Rosa na Europa e nos Estados Unidos da época. Vou mostrar um pouco do ambiente que acolheu a obra de Guimarães Rosa através de uma única nota a essa correspondência, a que se refere a Armand Guibert. A rede que se forma em torno deste poeta, crítico e tradutor põe em evidência alguns dos atores que, durante esses anos do pós-guerra, que foram tão abertos ao “outro” em termos de literatura, música, cinema, tornaram concreto o acolhimento desse outro, por meio de traduções, livros publicados, críticas, divulgação em jornais e rádio e “boca a boca”. Isso vai lançar luz, ao mesmo tempo, para esse próprio momento histórico. Antes de começar, uma pequena observação sobre esse trabalho das notas: às vezes os personagens revelam-se tão ricos que frequentemente é difícil estabelecer limites na redação das notas, para que elas não virem “um monte de mato”, como escreve Edoardo Bizzarri a Guimarães Rosa sobre o possível glossário da edição italiana de Corpo de baile (Edoardo Bizzarri a João Guimarães Rosa, 07/11/1963 – ROSA,
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1981, p. 41), e invadam a correspondência. O que ressalta também Marcos Moraes em artigo sobre a edição da correspondência reunida de Mario de Andrade. Citando Colette Becker, ele diz: Colette Becker, por fim, adverte futuros organizadores de correspondência para o tênue fio entre o uso e o abuso deste tipo de anotação: “O perigo é obscurecer (écraser) o texto epistolar com informações e interpretações, deixar-se levar pelas descobertas que resultaram de longas horas de pesquisa [e acabar fazendo] uma edição de notas... e não mais de cartas.” (MORAES, 2009, p. 126)
Cada nota é um mundo que se abre, e nem sempre é fácil fechá-lo. Aqui eu vou mostrar uma nota “aberta”. Muito do que vou falar não constará dessa nota, mas vai aparecer de modo “estourado” nas outras. 2 Armand Guibert
O nome de Armand Guibert aparece na primeira carta que Villard (Jean-Jacques Villard a João Guimarães Rosa, 07/07/1961) envia a Guimarães Rosa. As edições Albin Michel haviam sugerido a ele que traduzisse Grande sertão: veredas junto com Armand Guibert, mas ele não aceita a proposição e o caso morre por aí. O nome de Armand Guibert aparece essa única vez nas cartas. Armand Guibert (1906-1990), como explicita o cartaz de uma exposição organizada em sua homenagem em Montpellier em 20071, é conhecido como o “poeta nômade” por ter viajado e vivido em muitos países do mundo, entre eles Tunísia, Senegal, Portugal e Brasil. Porém, mais do que como poeta, Armand Guibert é conhecido, na França, por suas traduções de Fernando Pessoa. Desde 1944 até o final dos anos 1970, foi o único tradutor desse poeta, tendo sido responsável pelo livro que o apresentou para os leitores franceses: “Fernando Pessoa”, da coleção “Poètes d’aujourd’hui” publicado nas edições Seghers em 1960. Foi também ele que fez o
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. Exposição "Armand Guibert, le poète nomade", Bibliothèque Raimond Llul, 2007, por ocasião do colóquio "La Méditerranée d'Audisio à Roy" e da jornada Armand Guibert da Universidade de Montpellier.
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público francês descobrir Federico Garcia Lorca e Léopold S. Senghor, entre muitos outros. Considerava-se um “passador”, um “desbravador”, “propagador de confluências e trocas” (GUIBERT, 1978, p. 189) e buscava descobrir novos talentos, franceses ou não, e divulgá-los nos países de língua francesa, interessando-se por “tudo o que não é daqui” (GUIBERT, 1978, p. 189), pelo outro. Entre os escritores brasileiros, traduziu Érico Veríssimo (A noite) e sobretudo poetas. A ele devemos a tradução da parte dedicada aos poetas brasileiros da Anthologie de la poésie ibero-américaine publicada em 1956 com o financiamento da UNESCO. Esse panorama da poesia brasileira comportava desde poemas de José de Anchieta, Gregório de Matos, até textos de autores contemporâneos como Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meirelles, Jorge de Lima, passando por Gonçalves Dias, Castro Alves, Cruz e Souza, Olavo Bilac, entre outros. O volume impressiona: são quase 400 páginas dedicadas à poesia hispânica e brasileira, o que dá uma ideia do interesse por essa literatura naquela época do pós-guerra. Em 1964, Guibert publica Poètes brésiliens, exclusivamente com poetas mais recentes como Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Mario de Andrade, Augusto Federico Schmidt, Ledo Ivo, Vinícius de Moraes e Ribeiro Couto. Guibert participa também da divulgação dos autores. Quando o segundo volume de Corpo de baile, Les nuits du sertão, é publicado na França, ele apresenta na OCORA, rádio com transmissão para os países africanos, Guimarães Rosa e o livro. 3 Rede em torno do nome de Armand Guibert 3 1 Pierre Seghers Esse grande “passador” de literatura não estava, contudo, sozinho na liça. Se observarmos as publicações de Armand Guibert que citei, podemos começar a estabelecer a rede de pessoas e de instituições que também estavam implicadas nessa difusão do outro, do diferente, do novo. Outros tantos desbravadores, como ele.
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Voltemos, primeiro, aos volumes de “Poètes d’aujourd’hui” cuja introdução e tradução ficaram a seu encargo. Já pelo nome da coleção, podemos ver que se tratava de publicar poetas contemporâneos do mundo inteiro. Foram 270 autores publicados, entre poetas de língua francesa e de outras línguas, entre eles Aragon, Desnos, Bretton, Queneau, Iqbal, Pound, Whitman, Cummings, Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes, Marti, Neruda, Vallejo, Asturias, Guillén, Ruben Dario, Carrera Andrade, Octavio Paz, Borges. O nome do editor é importante: Pierre Seghers. O cartaz de uma exposição em sua homenagem montada em 2011 no Musée du Montparnasse exibe como os franceses o definem: editor, resistente e poeta. Durante a guerra publicou revistas de poemas, desafiando o governo colaboracionista de Vichy, fazendo parte da chamada Resistência literária. A primeira revista dirigida por Seghers, quando ele é convocado no final de 1939, chamava-se Les poètes casqués (Os poetas soldados), e tinha entre seus fundadores e no seu comitê de redação Armand Guibert. Essa revista, que recebeu depois o nome de Poésie, continuou durante toda guerra. Depois da guerra, Seghers viajou pela Europa, Egito, África Negra, Líbano e continuou a divulgar, em edições acessíveis ao grande público, poetas contemporâneos, independentemente de sua nacionalidade. O escritor que inaugurou a coleção “Poètes d’aujourd’hui”, cujo primeiro número saiu ainda durante a guerra, em 1944, foi muito significativamente Paul Éluard que com seu poema Liberdade se tornara o poeta símbolo da resistência. Em um cartaz manuscrito de Pierre Seghers, para o lançamento do número 200 dessa coleção em 1971, dedicada a Jorge Luis Borges, ele diz: Le 10 mai 1944, le premier exemplaire de la collection “Poètes d’aujourd’hui” sortait des presses de l’Imprimerie du “Salut public”, à Lyon. Salut public? On en avait bien besoin en ce temps-là, quand les prisons étaient pleines, les rues pas sûres du tout et qu’on échappait aux raffles par miracle! [Em 10 de maio de 1944, o primeiro exemplar da coleção “Poètes d’aujourd’hui” saía das prensas da Gráfica “Salut public” [Salvação pública], em Lyon. Salvação pública? Era bem disso que precisávamos naqueles tempos, em que as prisões estavam cheias, as ruas nem um pouco seguras e que se escapava das batidas policiais por milagre!]
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Essa participação de Seghers e de Guibert na Resistência nos coloca frente à guerra e ao pós-guerra, época que foi uma importante abertura da Europa para as culturas do mundo inteiro. A Europa queria se reconstruir e para isso era importante formar laços econômicos e culturais com os outros países, e a América Latina era considerada fundamental nesse sentido. Em outras notas, essa abertura cultural vai aparecer também de modo bastante claro. Assim, a revista Planète vai publicar Borges, Cortázar e um conto de Guimarães Rosa, A terceira margem do rio. O Instituto Columbianum de Gênova vai divulgar todo o Cinema Novo do Brasil e todos os novos cineastas da América Latina. Seghers publicou também, em 1958, uma coletânea de contos intitulada Les vingt meilleures nouvelles de l’Amérique Latine, em que encontramos duas estórias brasileiras: A hora e a vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa e Nízia Silveira, ao seu dispor de Mario de Andrade. Se seguirmos a pista de Juan Liscano, vamos ver outro aspecto dessa valorização da cultura no pós-guerra. Juan Liscano, escritor e crítico literário venezuelano participou, com dois etnomusicólogos, do resgate do folclore venezuelano, como Mario de Andrade fizera em 1938 no Brasil, com sua Missão de Pesquisas Folclóricas, e como o músico Corrêa de Azevedo fará entre 1942 e 1946. Os fios vão assim se interligando e percebemos o grande movimento, que começou antes da guerra e que continuou depois dela, do conhecimento do “outro”. Fosse o “outro” dentro de seu próprio país, fosse o “outro” de outros países. Pierre Seghers queria publicar Grande sertão: veredas e montar, para traduzi-lo, uma equipe. Mas Guimarães Rosa já havia cedido os direitos do romance para a Albin Michel. 3 2 Federico de Onís, Harriet de Onís, Knopf Incorporation Voltemos agora à Anthologie de la poésie ibero-américaine. Esse volume de poesia foi organizado por Federico de Onís, professor espanhol especialista das literaturas sul-americanas e grande difusor das literaturas hispânicas nos Estados Unidos. Era marido de Harriet de Onís, tradutora americana de Grande sertão: veredas e Sagarana.
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Harriet de Onís era não apenas tradutora mas consultora das edições norteamericanas Knopf Incorporation. Ela “descobre” Guimarães Rosa em 1958, ao ler “La oportunidad de Augusto Matraga”, na tradução argentina de Juan Carlos Ghiano e Nestor Kraly e logo aconselha a editora Knopf a entrar em contato com o autor. Essa editora caracterizava-se pela busca de bons autores desconhecidos do público americano. Seus proprietários, Alfred e Blanche Knopf, viajavam desde a década de 1920 para a Ásia e a Europa em busca de novos talentos. Com a política de “boa vizinhança” instaurada pelo governo Roosevelt em 1933 e posteriormente com o advento da Segunda guerra mundial, passam a vir também à América Latina. Em 1942, Blanche Knopf, em visita ao continente sul-americano, firma contratos com o historiador e ensaísta colombiano Germán Arciniegas, com o escritor e crítico argentino Eduardo Mallea e com os brasileiros Gilberto Freyre e Jorge Amado, de quem a Knopf se torna a editora oficial. Quase vinte anos depois, em 1961, à época da tradução de Grande sertão: veredas, de Sobrados e Mocambos, de Gilberto Freyre, e de Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, Alfred Knopf visita o Brasil. É recepcionado por Gilberto Freyre, encontra-se, em Salvador, com Jorge Amado, de quem se tornara amigo e, no Rio de Janeiro, com Guimarães Rosa, que escreve a Harriet de Onís:
Imagine quem esteve aqui, no Rio, por uma semana, autêntico e esplêndido? Mr. Alfred Knopf, o próprio. Gostei imediata e imensamente dele; todos gostaram; ficou na nossa estima e admiração. Achei-o notável personalidade e pessoa, que vale mesmo a pena conhecer de perto e apreciar. Estivemos várias vezes juntos, falamos afetuosamente na Senhora. E do nosso livro. (João Guimarães Rosa a Harriet de Onís, 15/01/1962)
4 Conclusão Como vemos, os fios que puxamos a partir de um único nome, Armand Guibert, podem ir se estendendo e se entrelaçando para mostrar que muitos passadores acolheram não apenas Guimarães Rosa, mas a literatura do “outro” (fosse esse “outro” francês ou estrangeiro) na França daquele período. Eram pessoas de fato interessadas na
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formação de uma literatura mundial, sem fronteiras. O mercado editorial, hoje em dia, é bastante diferente. Um pouco dessa rede vai entrar de modo alusivo na nota sobre Armand Guibert. Mas como muitas dessas pessoas e instituições que “puxei” a partir do nome de Armand Guibert vão aparecer também ao longo da correspondência, vamos encontrá-los, com mais detalhes, em outras notas, caso de Harriet de Onís e da editora Knopf. A nota sobre Armand Guibert ficará provavelmente como se segue: Esse poeta, editor e jornalista, nascido em Tunis em 1906, nunca chegou a traduzir Guimarães Rosa, mas transpôs para o francês o livro A noite, de Érico Veríssimo. Grande viajante, Armand Guibert morou por períodos mais ou menos extensos em muitos países, como Senegal, Madagascar, Ilhas Maurício, Malta, Inglaterra, Espanha, Itália, França, Brasil. Qualificava-se como um “desbravador”, “propagador de confluências e trocas” (Fernando Pessoa, Visage avec masques, Notice biographique d’Armand Guibert, p. 192) dedicandose a apresentar jovens escritores ao público. Na França, introduziu, entre outros, Léopold S. Senghor e Garcia Lorca, na coleção “Poètes d’Aujourd’hui” de Pierre Seghers, e publicou Patrice de la Tour du Pin e Paul Valéry. Sua grande paixão, que fez também seu renome, foi a poesia de Fernando Pessoa, cujas obras se dedicou a traduzir para o francês e a comentar até sua morte, em 1990. Considerava o Brasil como “um mundo a parte, todo de ritmo e de irradiação” (Fernando Pessoa, Visage avec masques, Notice biographique d’Armand Guibert, p. 192), e a ele devemos parte importante da divulgação de nossa poesia nos países de língua francesa nas décadas de 1950 e 1960. Traduziu a seção dedicada à língua portuguesa da Anthologie de la poésie ibero-américaine, publicada em 1956 com o patrocínio da UNESCO e organizada por Federico de Onís. Esse panorama da poesia brasileira inclui desde poemas de José de Anchieta e Gregório de Matos até textos de escritores modernos e contemporâneos como Mario de Andrade, Manuel Bandeira, Cecília Meirelles, Jorge de Lima, passando por Gonçalves Dias, Castro Alves, Cruz e Souza, Olavo Bilac. Em 1964, Guibert publica Poètes brésiliens, exclusivamente com poetas mais recentes como Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Augusto Federico Schmidt, Lêdo Ivo, Vinicius de Moraes e Ribeiro Couto. Atento à difusão da literatura brasileira na França, Armand Guibert, durante uma estada no Brasil, em 1962, declara ao Jornal do Brasil (29/07/1962), que a literatura e a arte de nosso país poderiam ser mais conhecidas na França se a Embaixada Brasileira tivesse um adido cultural: “Não há uma só pessoa na França de hoje que não conheça tudo sobre Brasília e, se houvesse um pouco de propaganda do Brasil, tenho certeza de que haveria uma imensa receptividade do público, pois todos têm curiosidade de conhecer a literatura, a arte e a
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arquitetura brasileiras, mesmo no que elas possam ter de mais regional, e a prova disto é o sucesso das obras de Guimarães Rosa.” Ele contribuiu para esse sucesso apresentando, em 1963, no Office de Coopération Radiophonique, Ocora, rádio criada pela RTF com transmissão para a África, o livro Nuits du sertão.
Referências GUIBERT, Armand. Notice biographique d’Armand Guibert in Fernando Pessoa, Visage avec masques. Lausanne : Alfred Leibel Éditeur, 1978, p. 189) LISCANO, Juan (seleção e prefácio). Les Vingt meilleures nouvelles de l’Amérique latine. Paris: Seghers, 1958. MORAES, Marcos. Edição da correspondência reunida de Mario de Andrade: histórico e alguns pressupostos. Patrimônio e Memória, UNESP – FCLAs – CEDAP, v.4, n.2, p. 115-128, jun. 2009. ONÍS, Federico (seleção, introdução e notas). Anthologie de la poésie iberoaméricaine. Paris : Nagel, 1956. RIVAS, Pierre. Réception critique de Macunaíma de Mário de Andrade en France. Fragmentos, revista de língua e literatura estrangeiras da Universidade Federal de Santa Catarina, v. 3, n. 1, 1990. Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/article/view/5501/4951 . Acesso em 23 de agosto de 2014. RÓNAI, Paulo. Guimarães Rosa e seus tradutores. O Estado de São Paulo, São Paulo, 10 out. 1971. Suplemento Literário, n. 741, p. 1.
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ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor francês, Jean-Jacques Villard. Fundo Guimarães Rosa do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo, [1961-1967]. ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri. São Paulo: Queiroz; Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1981. VERLANGIERI, Iná Valéria Rodrigues. J. Guimarães Rosa: correspondência inédita com a tradutora norte-americana Harriet de Onís. 359 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, Campus de Araraquara, Araraquara, 1993.
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A NARRATIVA INFANTOJUVENIL DE MARK TWAIN: UM ESTUDO SOBRE AS AVENTURAS DE TOM SAWYER
Márcia Hávila Mocci (UEM) RESUMO: Observando a complexidade da obra As Aventuras de Tom Sawyer e as limitações de um trabalho tão breve, o presente artigo visa analisar aspectos da narrativa que dizem respeito às características da personagem juvenil, à figura do herói e ao papel do leitor. Para fundamentação, serão utilizados conceitos de teóricos da literatura juvenil e textos de autores que abordam as narrativas contemporâneas, uma vez que a obra de Mark Twain, embora escrita ao final do século XIX, apresenta, à frente de seu tempo, características do adolescente que vive a contemporaneidade. O relato das aventuras de um protagonista que rompe com padrões pré-estabelecidos personifica a figura de um herói que, através de um comportamento irrequieto, rebelde e contestador conduz à reflexão sobre questões que contribuem para aumentar a consciência do leitor frente à discriminação social e ao papel do adolescente e do jovem num mundo governado pelo adulto. Escrito em estilo claro e instigante, o romance contém críticas à sociedade da época, utilizando para tanto, recursos como a fantasia e o humor. A narrativa contribui para a formação do leitor na medida em que adota o ponto de vista juvenil representando e valorizando a forma de pensar e agir dessa faixa etária em específico. PALAVRAS-CHAVE: As Aventuras de Tom Sawyer. Formação do leitor. Narrativa infantojuvenil
Introdução A literatura infantojuvenil é uma modalidade artística escrita para a criança e para o jovem e lida por eles, porém, é o adulto quem está no comando das ideias, da produção, divulgação e mercado. Isso ocasiona uma certa assimetria, qual seja, a influência ideológica do adulto, autor da criação literária e o papel do receptor, que ainda não possui critérios precisos de julgamento e de análise havendo, portanto, uma disparidade em relação à posição privilegiada de um sobre a do outro. A criança e o jovem sozinhos não são capazes de ordenar suas experiências e vivências, por isso, de acordo com Zilberman (2003), necessitam de um suporte fora de si que lhes sirva de auxílio para a experimentação do mundo. É esse o lugar que a literatura preenche, porque lida com elementos adequados à compreensão do real. Utilizando a palavra para recriar a realidade, o texto literário cria um mundo imaginário, porém, de acordo com Culler (1999), o universo da ficção mantém relações vivas com o
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real. A fantasia torna-se um subsídio para entendimento do mundo, ocupando as lacunas existentes durante a infância e juventude e ajudando seus receptores a ordenar novas experiências, frequentemente fornecidas pelo próprio livro. Desde sua origem, a literatura infantojuvenil, pelo fato de ter a escola como sua principal propagadora, vinculou-se ao caráter didático e pedagógico, criando uma tensão entre o mundo real, retratado pela literatura, e o mundo ideal, proposto pela pedagogia. Esse fato explica o comprometimento do gênero com a doutrinação de normas e valores e o silenciamento, por muito tempo, de obras literárias voltadas a assuntos polêmicos como sexo e racismo. Antonio Candido, no ensaio Educação pela noite (2003), aborda a questão da ideologia manifesta através da intencionalidade do autor ao compor uma obra literária. Candido cita os estudos realizados pelo estudioso norte-americano, Arthur Jerrould Tieje que, em prefácios e trechos de várias obras, investigou o intuito de diversos autores, em romances escritos até o ano de 1740. O resultado da investigação revelou que, ao escrever uma obra, o autor tem propósitos definidos, sendo os principais deles: 1-divertir, 2- edificar e 3-instruir o leitor. A respeito das intenções expressas pela tríade, Candido tece considerações relevantes, pois, através de análise crítica, conclui que cada um dos elementos triádicos possui um objetivo ideológico: “Edificar” significa elevar a alma segundo as normas da religião e da moral dominantes; “instruir” significa inculcar os princípios e conhecimentos aceitos; “divertir” significa quase sempre facilitar as operações anteriores por meio de um chamariz agradável. (CANDIDO, 2003, p. 84)
A citação nos leva a inferir que o objetivo dos romances analisados, assim como de muitos ao longo do tempo, é conduzir o leitor ao patamar ideológico e moral almejado pela sociedade; adequá-lo às normas e regras e doutriná-lo a não-contestação, a não-reflexão e ao não-questionamento. No Brasil, as justificativas triádicas citadas por Candido estiveram presentes nas obras literárias destinadas à infância e à juventude por muito tempo, pelo menos até a década de 1920, quando se propagaram os ideais revolucionários do movimento modernista. Coelho (2000) enfatiza que, até então, a literatura infantojuvenil, atrelada às reformas educacionais, era limitada a suporte pedagógico e reforçava os valores tradicionais. Assim como o romance em seus primórdios, a literatura para crianças e jovens sempre foi vista como algo de menor valor e cuja existência justificava-se pelos
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objetivos educacionais veiculados pela a escola. Por muito tempo criou-se, através da literatura, uma imagem estereotipada da criança, a de uma criatura virtuosa, de comportamento exemplar e retratada em situações edificantes. Apresentada dessa forma, as obras literárias destinadas ao público mirim não propunham o diálogo necessário entre texto e leitor, apenas um discurso persuasivo, que, além de não abrir espaço para o leitor se posicionar, buscava uma resposta única e doutrinária. Sobre esse aspecto, Cademartori (1986, p. 24) ressalta: Tradicionalmente, a literatura infantil apresentou, por determinação pedagógica, um discurso monológico que, pelo caráter persuasivo, não abria brechas para interrogações, para o choque de verdades, para o desafio da diversidade, tudo se homogeneizando numa só voz, no caso, a do narrador.
Dessa forma, através de um discurso comprometido com a transmissão de valores morais, a literatura infantojuvenil não permitia o entrecruzamento das vozes do narrador, do leitor e de outras evocadas pelo texto. Contrapondo-se a essa perspectiva, o romance As aventuras de Tom Sawyer* (2002), de Mark Twain, rompe o elo com o didatismo e, através das ações do herói, revela a não conformidade da personagem em relação às manipulações impostas pela sociedade e pelos adultos. O uso de personagens crianças como protagonistas das obras literárias é fator de grande relevância. Estudos da pesquisadora espanhola Teresa Colomer (2001) revelam que uma das formas de desenvolver a consciência narrativa do jovem leitor é através das expectativas que este tem em relação às personagens; “Los personajes forman parte del mundo real de los niños y permanecen em sus referencias sobre el mundo como uma herencia cultural compartida com los adultos”. (COLOMER, 2001, p. 10) Zilberman (2003) atesta que a presença de tais personagens é um fenômeno recente na literatura para crianças e jovens. Os primeiros livros do gênero continham, além dos contos de fadas, adaptações de obras que, embora lidas pelas crianças, eram destinadas aos adultos, como Robinson Crusoé e Viagens de Gulliver ou ainda narrativas de cunho moral como A bela e a fera. Somente a partir da segunda metade do século XVIII, as histórias passaram a ser protagonizadas por personagens infantis; meninas, como Alice em Alice no país das maravilhas e Tom Sawyer, do romance em questão. *
A primeira edição do romance As aventuras de Tom Sawyer data de 1876. Utilizamos, para este trabalho, a edição de 2002, da Coleção Obra-prima de cada autor, da Editora Martin Claret.
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O autor e sua obra Ao analisarmos uma obra literária, torna-se necessário considerarmos os acontecimentos que influenciaram em sua produção, o universo contextual do autor e o tipo de reprodução ou contestação que este realiza. Estilos individuais, de época, conceitos e preconceitos necessitam ser confrontados, pois, assim como a arte, a literatura carrega as marcas da humanidade. Mark Twain (1835-1910), pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens nasceu e viveu grande parte de sua infância e juventude às margens do rio Mississipi, local que forneceria temas para várias de suas histórias e responsável pelo fato de suas personagens sempre carregarem um caráter simples, rude e correto. Órfão de pai, Samuel Langhorne tornou-se aprendiz de tipógrafo, pesquisador de ouro, jornalista e aprendiz de piloto de barcos a vapor, provindo daí seu pseudônimo, Mark Twain, expressão que, entre os marinheiros, significava “marca duas ondas”. O escritor viveu uma vida de intensas aventuras que lhe forneceu material empírico para suas obras. As narrativas de Mark Twain são permeadas pelo humor e pela sátira, porém não se pode deixar de perceber as críticas de um escritor inconformado com a hipocrisia da sociedade de sua época. O autor não se deixa levar pela tendência européia na literatura e cria obras genuinamente norte-americanas. Demonstrando estilo próprio e original, Twain utiliza linguagem coloquial e gírias de seu país e da região onde viveu grande parte de sua vida. Considerado por muitos críticos um contador de histórias, Mark Twain remete às considerações de Walter Benjamim (1994, p. 201), quando este diz que “O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros”. Nessa medida, o romance As aventuras de Tom Sawyer pode ser considerado uma reconstituição da infância do autor, mas também uma resposta ao estilo açucarado, artificial moralista da literatura difundida na época. Publicado em 1876, o romance As aventuras de Tom Sawyer foi escrito em linguagem fluente e simples e narra as aventuras do protagonista Tom Sawyer e seus amigos, assim como as relações destes com o mundo adulto, nem sempre regido pela coerência. A obra apresenta uma crítica velada à sociedade provinciana dos Estados Unidos, reflexões sobre a condição humana e sobre o papel de instituições como a família, a escola e a igreja. A intencionalidade de romper com estereótipos e criticar a
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hipocrisia presente na sociedade deixa-se transparecer, sutilmente, através dos diálogos e ações das personagens principais. Tais aspectos contribuem para o aprimoramento da visão crítica do leitor infanto-juvenil, assim como para a permanência e atualização da obra. Segundo a crítica, existem traços comuns entre a vida aventureira do autor e as peripécias de Tom Sawyer. Lembranças da infância de Twain, assemelham-se aos episódios narrados às margens do Mississipi, no romance. Hannibal, a pequena cidade onde Samuel viveu a partir dos quatro anos, por analogia, seria São Petersburgo, local onde se passam As aventuras de Tom Sawyer. Em princípio, considerado um simples humorista profissional, Mark Twain alcançou um lugar de honra entre os grandes escritores. À obra As Aventuras de Tom Sawyer segue-se As Aventuras de Huckleberry Finn (1884) e Viagens de Tom Sawyer (1894), narrativas que, consideradas suas obrasprimas, constituem a epopéia da adolescência. Análise de alguns aspectos da obra No prefácio do romance, Mark Twain relata que, grande parte dos acontecimentos narrados de fato aconteceram e que a personagem Tom Sawyer foi a união das características de três garotos que o autor conheceu quando criança. Ainda no prefácio, o autor esclarece que gostaria que sua obra, escrita “para meninos e meninas”, fosse lida pelos adultos, pois um dos objetivos ao escrevê-la era, além de despertar recordações, expor como os crianças e os jovens falavam, pensavam e sentiam num mundo dominado pelos sonhos, pelos adultos e pelas convenções. A história se passa na pequena cidade de São Petersburgo, junto ao rio Mississipi, por volta da segunda metade de 1800. A personagem principal, como o título declara, é Tom Sawyer, órfão que mora com sua tia Polly, o meio irmão Sid, que vive denunciando as traquinagens de Tom e por isso é odiado por ele, e a prima Mary. Huckleberry Finn é o companheiro de aventuras de Tom e Becky, filha do juiz Thatcher, sua namorada, porém os dois estão sempre brigando. Completa a narrativa Injun Joe, mestiço que comete um assassinato e coloca a culpa em Muff Potter, o bêbado da cidade. A história se divide em quatro partes. Na primeira, há o relato dos amores e das brigas entre Becky e Tom. Na segunda, os dois garotos assistem a um assassinato praticado por Injun Joe. A terceira parte relata as aventuras na ilha Jackson, onde Tom e
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Huck buscam alívio para as pressões da sociedade e, na quarta e última parte, Tom e Huck descobrem o tesouro enterrado pelo mestiço. A posição do narrador é de onipotência, pois apresenta uma visão irrestrita, tanto da narrativa, como do pensamento das personagens. A sua ótica predomina durante a narrativa toda, especialmente ao relatar o que se passa na mente das personagens, como na passagem em que demonstra estar ciente dos conflitos internos de tia Polly em relação à educação do sobrinho Tom: “Será que eu nunca vou aprender? Depois de me aprontar tantas como esta, já devia saber como lidar com ele (...) Sempre que o deixo escapar, pesa-me a consciência, se bato nele me dói o coração”. (TWAIN, 2002, p. 14) Como se pode observar, a obra apresenta uma linguagem coloquial e cativante, fato que propicia a identificação com a criança e com o jovem. De estilo leve e sem rebuscamentos, a narrativa cativa o leitor ao apresentar muita ação, brincadeiras e humor, componentes que despertam interesse e curiosidade. Ao apresentar as aventuras dos garotos e suas soluções inteligentes para situações embaraçosas, o narrador passa ao leitor a noção de superioridade da inocência e da imaginação dos adolescentes sobre os métodos adultos. No decorrer da narrativa, há diversos indícios e pistas sobre os próximos acontecimentos, fator que desafia e instiga à continuidade da leitura. Vários episódios se passam à meia-noite, recurso utilizado pelo autor para, além de aumentar a verossimilhança, provocar expectativas no leitor. O romance As aventuras de Tom Sawyer possui cenas cômicas que remetem à presença do ridículo, componente frequente no cotidiano da vida. Ao rir-se de um acontecimento inusitado, o leitor infantojuvenil toma consciência e passa a refletir sobre as situações grotescas das quais, muitas vezes, também ele participa. Tia Polly exemplifica uma dessas situações, quando se dispõe a debater com o sobrinho Tom e, em vez de repreendê-lo, omite-se rindo-se da própria conduta: A velhota abaixou os óculos e, por cima deles, olhou ao redor do quarto; tornou a puxá-los para cima e olhou através deles. Raramente ou nunca precisava de óculos para procurar alguma coisa, mas este par era o de luxo, o seu orgulho; serviam apenas como ornamento, pois via tão bem por eles como através das portas do fogão. Durante um momento pareceu indecisa, e, por fim, disse, não muito alto, o suficiente forte para os móveis a ouvirem: - Se eu pego você, eu ...” (TWAIN, 2002, p. 13).
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Além do ridículo da situação, a forma como o narrador coloca os fatos, faz com que o leitor perceba certa fragilidade nas atitudes do adulto, desmistificando a visão que este tem, de que, por deterem o poder de decisão, os adultos estejam sempre certos. Dessa forma, o narrador se solidariza com a perspectiva do adolescente. Outra passagem exemplificadora das considerações expostas é aquela em que Tom aparece com as mãos e a boca sujas de doce e, mesmo assim, nega ter comido uma das compotas da tia. Esta, simplesmente exclama: “Que menino danado!” (TWAIN, 2002, p. 14) A representação do herói O relacionamento da literatura infantojuvenil com o leitor, segundo Zilberman (2003), supõe a constituição de um universo ficcional centrado na personagem, ou seja, o herói atua como indicador da condição do leitor. De um lado estão as relações entre o protagonista e o mundo, de outro, os confrontos do adolescente com a realidade. A identificação com o herói da narrativa, além de fornecer um elo de ligação entre o leitor e a obra, permite à criança e ao jovem confrontar seu mundo com o universo adulto. Sobre esse aspecto, Zilberman se manifesta: Na medida em que se propicia a identificação entre a criança e os heróis [...] o livro confere ao narratário um importante espaço em seu interior; e ainda lhe oferece meios de reflexão sobre sua condição, enquanto ser carente de autoconfiança e na busca de reconhecimento pelo grupo. (ZILBERMAN, 2003, p. 77)
A identificação com o protagonista do romance As Aventuras de Tom Sawyer torna-se fácil para o leitor infantojuvenil, uma vez que este representa a figura de um garoto comum, com qualidades e defeitos, o que o torna muito “real”. Tom Sawyer, em alguns episódios, contraditoriamente, transforma-se em anti-herói, pois mostra-se inconformado e rebelde, entrando em conflito com a sociedade em que vive. Irrequieto e teimoso, faz apenas aquilo que quer e obedece aos adultos e regras quando lhe convém. A ficção, ao longo do tempo, tem criado vários tipos de heróis. Na epopeia, o destino do herói já estava predestinado pelos deuses e suas lutas e vitórias tornavam-se possíveis graças à intervenção dos mesmos. O herói épico representava os anseios de uma coletividade em detrimento de suas aspirações pessoais, “o herói da epopeia nunca é, a rigor, um indivíduo. Desde sempre considerou-se traço essencial da epopeia que seu
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objeto não é um destino pessoal, mas o de uma comunidade”. (LUKÁCS, 2000, p. 87) Já o herói do romance, vive em uma sociedade heterogênea, contraditória e descontínua e demonstra disposição pela busca de seus interesses e a conquista de um lugar de destaque. Contrapondo-se ao herói épico, que vive os anseios da coletividade, o romanesco mostra-se alheio ao mundo exterior na procura da resolução de seus próprios conflitos. Enquanto o herói da epopéia possui características sobrenaturais que o tornam superior aos demais homens, o herói do romance mostra-se semelhante à maioria dos seres humanos, com as mesmas qualidades e vícios. Apesar de Tom Sawyer ser considerado um líder, ele não possui dons divinos, porém apercebe-se das desigualdades sociais, injustiças e preconceitos e coloca-se ao lado dos marginalizados tentando, à sua própria maneira, ajudá-los. A figura do herói, de acordo com estudos de Aguiar e Silva (1974), pode ser criada em conformidade com os códigos da sociedade em que vive e da cultura de sua época, ou transgredindo esses códigos e transformando-se em anti-herói, como o caso do protagonista, em vários episódios da narrativa. Tom Sawyer, nessas ocasiões, mostra-se rebelde e inconformado, não se adequando aos padrões familiares, educacionais e religiosos da sociedade de sua época. Ao resolver seus conflitos através da inteligência e da esperteza, Tom Sawyer demonstra astúcia e criatividade e faz com que o leitor perceba também ser capaz de agir da mesma forma. Por meio de suas ações, o herói acaba se tornando um modelo de comportamento para o leitor e, nesse aspecto, o coletivo cede espaço ao particular. A cena da pintura da cerca, ocorrida no segundo capítulo do romance, ilustra a astúcia do menino. Como castigo por uma de suas travessuras, tia Polly manda-o pintar, em pleno sábado, a cerca da casa. Como não era afeito ao trabalho, Tom “olhou para a cerca e toda a alegria de seu espírito deu lugar à mais profunda melancolia” (Twain, 2002, p.19). Ao ver os outros garotos passarem para brincar, sua tristeza aumenta consideravelmente, porém Tom tem uma súbita inspiração; começa a pintar a cerca lentamente, demonstrando o quanto aprecia o serviço e que o faz com prazer. Ao ser interrogado por um dos garotos se o que faz é trabalho, Tom continua a caiar e responde despreocupadamente: “Talvez seja, talvez não. O que eu sei é que é muito do agrado de Tom Sawyer!” (Twain, 2002, p.22). Dessa forma, todos os garotos querem pintar a cerca e Tom, sabiamente, “deixa-os” pintarem em seu lugar, em troca de alguns
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“presentes”. Como se pode observar, o “herói” é duplamente recompensado: não pinta a cerca e ainda recebe dos amigos. Quando pressente estar em perigo ou ameaçado, Tom Sawyer demonstra seu lado negativo, ardiloso, porém característico do ser humano, e acaba se transfigurando em anti-herói. Observamos esse procedimento no dia da prova, em que o protagonista se mostra orgulhoso de seus conhecimentos e, intempestivamente, começa um discurso que, movido pela vergonha, não é capaz de concluir: Tom Sawyer adiantou-se, afetando uma grande serenidade, e começou com enorme fúria de gestos o inextinguível discurso: ‘Daime liberdade’ ou antes a morte’, mas parou no meio. Apossou-se dele o pavor do palco, tremeram-lhe as pernas e parecia-lhe que ia sufocar. A verdade é que toda a assistência teve pena dele, mas ficou em silêncio, o que era o pior de tudo. O mestre franziu o sobrolho, e o desastre foi completo. Tom lutou para se dominar, mas por fim retirou-se, completamente derrotado. (TWAIN, 2002, p. 119).
A partir da citação, podemos inferir que Tom Sawyer apresenta um lado frágil, humano, demonstrado através do medo de ser ridicularizado em público. O leitor, através desse episódio, amplia a simpatia pela personagem, pois afinal, quem já não viveu uma situação semelhante? Dialeticamente, Tom Sawyer possui um lado solidário, que deixa transparecer ao defender seu melhor amigo, Huckleberry Finn. Huck, como é chamado pelos amigos, é um garoto marginalizado pela sociedade local; sendo filho de um bêbado, não possui quem o eduque ou discipline; não vai à escola, nem à igreja, dorme ao relento, fica na rua até tarde e vai pescar sempre que tem vontade. Essa liberdade intensa fascina Tom Sawyer, que alia-se ao amigo em muitas aventuras. Em consequência, o herói acaba sendo marginalizado também, pois, além de cair no desagrado das mães, encontra-se do “lado errado” da sociedade. Segundo a concepção da escritora Linda Hutcheon (1991), o romance pósmoderno apresenta tendência em confrontar e questionar a diversidade cultural e étnica, abrindo espaço para dar voz aos excluídos e às minorias: Os negros e as feministas, os etnicistas e os gays, as culturas nativas e do “Terceiro Mundo” não formam movimentos monolíticos, mas constituem uma diversidade de reações a uma situação de marginalidade e excentricidade percebida por todos (HUTCHEON, 1991, p.90).
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Observa-se que, nesse sentido, a obra de Mark Twain demonstra estar à frente de seu tempo, pois apresenta um protagonista que, através do comportamento pouco convencional, rebelde e contestador, conduz à reflexão sobre questões que contribuem para aumentar a consciência do leitor frente à discriminação social.
Considerações finais O romance As aventuras de Tom Sawyer, através do entrecruzamento das vozes da criança e do adulto permite a interação entre o ponto de vista de cada um. Por meio da identificação com o “herói”, o leitor passa a visualizar soluções para seus conflitos interiores, pois a obra apresenta respostas que diminuem o poder do adulto sobre si. O romance propicia abertura ao diálogo com a presença da voz minoritária, oferecendo à criança e ao jovem espaço para agir e buscar novos caminhos rumo à sua emancipação. Mark Twain, por meio de sua obra, rompe com estereótipos e questiona o poder estabelecido, possibilitando à criança e ao jovem a convivência com pontos de vista diferentes. Nessa mediada, o romance As aventuras de Tom Sawyer contribui para formar a consciência crítica do leitor, tornando-se grande, na medida em que toma o partido do adolescente, reproduzindo, de forma admirável, seus anseios e busca de identidade.
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A DESMONTAGEM DO HERÓI: ELEMENTOS DO ÉPICO BRECHTIANO EM RODA VIVA E O BERÇO DO HERÓI Marcio da Silva Oliveira (UEM) 1 Introdução O propósito de desconstrução do herói em prol da formação de uma consciência voltada à transformação social torna-se relevante para a estruturação do moderno teatro brasileiro. Nesse período, influenciados pela dramaturgia e pela teoria do teatro épico, muitos dramaturgos procuraram responder às grandes inquietações sociais que eclodiam por todo o país. Além disso, via-se a necessidade da revolução através da arte, que passou a se contrapor aos estreitos limites das comédias de costumes. Partindo dessas afirmações, delineiam-se os propósitos do presente artigo: uma análise do processo de desmontagem do herói no teatro brasileiro moderno, tendo como suporte teórico as características do teatro épico formulado por Brecht. Para isso, servem como objetos de análise as peças O Berço do Herói, de Dias Gomes e Roda Viva, de Chico Buarque. Essas peças desmascaram o mito do herói trágico e caracterizam o novo tipo de herói: o sujeito fragmentado, manipulável, que é despersonalizado aos olhos do público. Em O Berço do Herói, o herói de guerra, morto em batalha, forjado e elevado à categoria mítica é gradativamente desmontado quando regressa à cidade e conta a verdadeira história do seu desaparecimento. Em Roda Viva presencia-se o movimento contrário. O herói não é desmontado, mas fabricado aos olhos do público como ídolo de acordo com os ditames da nascente indústria televisiva. 2 Brecht e o Moderno Teatro Brasileiro ...De um homem tudo se pode fazer./ Aqui, hoje à noite, um homem é transmontado como um automóvel. Brecht
A década de 1930 significou para o teatro brasileiro o ponto de partida para um
processo de modernização e transformação. Com as mudanças políticas trazidas pelo Estado Novo, o teatro mudou o foco de suas representações. Deixou de retratar as chamadas “comédias de costume”, com personagens e situações tipo, para focalizar os problemas políticos e econômicos contemporâneos do país.
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Entre os anos de 1930 e 1970, o teatro brasileiro passa a tematizar, “a representação das classes subalternas e toda a problemática em torno disso, refletindo assim um contexto em que a dramaturgia brasileira vivencia problemas atrelados ao avanço do crescimento, imposto pelo capitalismo tardio” (MACIEL, 2004, p. 21). Ao trazer para o palco as problemáticas sociais, o teatro aproxima espectador e espetáculo, consolidando no Brasil as características do teatro épico-dialético. Dentro desse contexto destacam-se Dias Gomes e Chico Buarque, em cuja produção o herói forjado nos moldes clássicos cede espaço ao herói fabricado, desconstruído, desmontado, adequado à realidade contemporânea. Tal desconstrução do herói clássico é teorizada por Brecht, em seu teatro épico1. Ao desconstruir a figura do herói, esse teatro propõe uma “desmistificação, a revelação de que as desgraças do homem não são eternas e sim históricas, podendo por isso ser superadas” (ROSENFELD, 2011, p. 150). O teatro épico de Brecht se contrapõe ao teatro clássico aristotélico por apresentar um novo panorama das relações sociais. Enquanto o herói da tragédia, teorizado por Aristóteles, é atemporal, universal e assume para si os eventos trágicos, o sujeito do teatro épico é fruto de um momento histórico e movido por determinantes sociais. Para Brecht, o teatro tradicional faz com que os personagens vivam no lugar do público e experimentem o evento trágico para que o espectador não precise experimentá-lo. Já o teatro épico relata uma ação, despertando a atividade do espectador. Brecht, assim, delimita as novas bases para a dramaturgia moderna, como reação ao fascínio catártico do público. Desse modo: O teatro épico mostra-se, logo, narrativo; diverge totalmente do teatro dramático, no qual não havia um deus ex machina e ninguém contava a história; as personagens a viviam, em vez de contá-la. O autor, no teatro épico, manipula a ação, faz saltar o tempo, seleciona os acontecimentos, cenas e lugares. (ROSENFELD, 2009, p. 300).
A escolha formal de Brecht para a teorização do teatro épico parte do raciocínio de Marx, para quem as forças produtivas e as relações de produção estão em contradição.
A forma épica brechtiana tenta mostrar que o indivíduo do mundo
moderno constitui sua identidade entre determinações de forças sociais amplas e uma 1
O termo épico, aqui, quer dizer “narrativo”, nada tem a ver com epopeia. (ROSENFIELD, 2009, p. 298)
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tentativa de autodeterminação no diálogo com essas forças. De um lado, desmascara a farsa do mundo burguês, com sua ideia mentirosa de mobilidade social ao alcance de todos. De outro, desmitifica a ideia de fatalismo e imutabilidade do sujeito diante do sistema. É a arte voltada à construção de uma atitude que “se dialetiza com a história presente e com o refluxo da luta” (CARVALHO, 2009, p. 193). No processo de dialetização do sujeito na história, desconstrói-se, na dramaturgia brechtiana e, posteriormente na brasileira, a figura do herói que só pode ser entendido com base nessa dialética histórica. A peça Um homem é um homem, escrita por Brecht em 1926, destaca essa característica épica de desconstrução. Trata-se de uma peça importante por tratar-se de uma obra de transição e de formação inicial da teoria sobre o teatro épico. Nela, o personagem Galy Gay, retrato do poder da manipulação, é inserido num contexto de exploração do homem pelo homem no frenético e conflituoso processo de modernização. Ao sair de casa para comprar um peixe, acaba ludibriado por uma vendedora que lhe vende um pepino e, posteriormente, é submetido a um falso fuzilamento, que o leva a assumir uma identidade de soldado sanguinário. Nessa peça, Brecht quebra a ilusão do teatro tradicional mantendo em destaque o aspecto narrativo, que leva os atores a dialogarem com o público, como no trecho abaixo: O sr. Bertolt Brecht afirma: homem é homem./ Isso é algo que qualquer um é capaz de afirmar./ Mas o sr. B. B. chega a provar em seguida/ Que de um homem tudo se pode fazer./ Aqui, hoje à noite, um homem é transmontado como um automóvel/ Sem que perca qualquer peça na operação. (BRECHT, 1987, p. 182).
A peça caracteriza uma situação em sua relatividade histórica, que deve ser vista pelo olhar épico do distanciamento. Esse distanciamento é responsável por provocar o efeito de estranheza. Uma situação corriqueira, quando tornada habitual se afigura como eterna e faz com que nos tornemos identificados com ela, o que conduz à alienação da força criativa do sujeito. O movimento causado pelo distanciamento faz com que esse sujeito resgate seu senso crítico e desenvolva seu potencial transformador da realidade. A despersonalização do sujeito, presente em Um homem é um homem é retomada de modo peculiar no teatro brasileiro pós década de 1930. É o que se comprovará na análise sobre das peças O Berço do Herói e Roda Viva.
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3 O herói no Moderno Teatro Brasileiro Notícia de falecimento: morreram todos os heróis. Dias Gomes
A partir de Brecht, inicia-se um frutuoso processo de rompimento com os ideais clássicos de heroísmo e o surgimento de um novo herói tornado histórico, cuja personalidade se fragmenta de acordo com as relações sociais que ele estabelece. Tal dramaturgia encontra expoentes no teatro brasileiro, sobretudo em Dias Gomes e Chico Buarque que ‘desmontam’ seus heróis para desmascarar as viciosas relações de poder da sociedade moderna. 3.1 O Berço do Herói: a desconstrução de um mito Dias Gomes, em sua dramaturgia, empenha-se em apresentar uma visão crítica do homem não satisfeito com a realidade política e social na qual está inserido. Seus personagens, constantemente, conflitam com valores vigentes e desmascaram certas hipocrisias que servem de sustentação às ideologias dominantes. O Berço do Herói, escrita em 1963 e montada pela primeira vez em 19652, desmascara de modo contundente as relações que se estabelecem por meio de tradições cerceadoras da sociedade. O enredo se constrói ao redor da figura de Cabo Jorge, pracinha da Força Expedicionária Brasileira (FEB), cuja morte na Itália ganha contornos de heroísmo elevado à mitização. Diante do inimigo nazista, o pracinha paga com a vida o direito à liberdade e, ao fazê-lo, transforma-se em Soldado da Democracia, enchendo de orgulho a pátria querida. Sua cidadezinha natal, outrora arcaica e atrasada, perdida no interior do nordeste, adota o nome do herói e passa a sustentar-se do mito, o que favorece o enriquecimento de certos personagens que sustentam a ideologia burguesa. Coronelismo latifundiário, militarismo, religião, política e comercialização da prostituição são colocados em xeque mediante o desmascaramento desses discursos. A peça inicia-se justamente com a quermesse em honra ao soldado e a inauguração de uma estátua em sua homenagem, o que acentua o caráter mítico do 2
Montada em 1965, a peça foi censurada por ser considerada ofensiva às autoridades instituídas, principalmente a autoridade militar.
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herói. Entretanto, Cabo Jorge, outrora elevado ao panteão dos heróis, retorna à cidade. Ao contrário do divulgado, fora ferido na guerra e, amedrontado, fugiu do palco do combate, vivendo como desertor até a anistia geral. Ao tomar conhecimento do mito que se criou ao redor de sua imagem, às gargalhadas e ironicamente apresenta sua opinião sobre o heroísmo: Senhoras e senhores, aqui está o batuta, de corpo inteiro. Não morreu, como julgam porque não há nada de heróico na morte. Está vivo! Vivo graças à sua inteligência e a uma qualidade fundamental de todo ser humano, o cagaço! Teve medo. Mas não um medinho bocó, como qualquer babaquara é capaz de ter. Teve um medo enorme, um medo danado, um medo pai-d’égua como só um herói era capaz de sentir. (GOMES, 2005, p. 79-80).
O retorno à cidadezinha natal demarca o início do drama e o ponto de partida para a desmontagem do mito: a verdadeira versão dos fatos, narrada por Jorge, conflita com o discurso dos beneficiados por seu pseudo-heroísmo. Tudo isso alicerçado no caráter didático-narrativo que acompanha todo o desenrolar da trama. Os contornos épicos brechtianos são demarcados na peça com forte presença do aspecto narrativo, corporificado pela figura do coro. No prólogo, o ator (não o personagem)3, ao microfone, anuncia ao público: “Transmitimos a notícia de falecimento de todos os heróis” (GOMES, 2005, p. 17). Trata-se do ponto de partida para a desconstrução do herói, forjado nos moldes clássicos. O coro, continuando o discurso iniciado pelo ator, arremata: “Morreram, morreram todos/ de ridículo e de vergonha/ ante o advento do herói definitivo;/ humilhados, ofendidos,/ morreram, morreram todos/ os personagens da tragédia universal” (GOMES, 2005, p. 17). Ao retomar a palavra, o ator acentua ainda mais a característica de teatro épico na peça. Surgindo na boca da cena e portando uma lanterna, se direciona ao público, lançando-lhe um jato de luz, em busca de respostas às suas indagações: “Atenção, atenção. Se há algum herói na plateia, queira subir ao palco, por favor. [...] Nenhum herói? Nenhum herói? Obrigado. Temos então de nos arranjar com o que nos resta.” (GOMES, 2005, p. 19).
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Ao demarcar a separação entre ator e personagem, Dias Gomes já deixa claro o efeito épico do distanciamento, fazendo com que se quebre a ilusão do teatro tradicional.
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O que se segue, após o ator apagar a luz, enfatiza o aspecto didático do teatro épico: uma tela e a projeção de imagens apresentam o herói ao povo. É a história de Cabo Jorge, forjada em tempos de guerra. Em poucas linhas, apresenta-se o passo-apasso da criação de um mito: seu posicionamento inicial na trincheira, seu soterramento causado pela explosão de uma granada, sua incrível capacidade de liderança, sua precipitação heroica contra as linhas inimigas e seu fuzilamento como incentivo à marcha dos soldados brasileiros rumo à vitória. Eis os contornos do herói trágico, tornando mítico pela fusão de seu caráter com os valores vigentes. O Berço do Herói é uma peça dividida em dois atos, o primeiro contendo seis quadros e o segundo, sete. O primeiro ato apresenta, primeiramente, os personagens e a trama tecida para a construção do herói. Nesse momento, acontece o retorno de Jorge à cidade e, quando esse se encontra com Antonieta, a figura do herói clássico cede lugar ao sujeito histórico, fruto da concepção épica brechtiana: “Um pouco de anjo, um pouco de verme, mas, sobretudo o homem, em sua concepção mais autêntica, na consciência de sua fraqueza e na determinação de usar de sua liberdade” (GOMES, 2005, p. 98). A transição do herói clássico ao sujeito histórico aponta a derrocada do mito e a importância da contextualização histórica para explicar a realidade contemporânea no teatro moderno brasileiro, nos moldes do teatro épico. Ao contrário do que se propagava, Jorge, ferindo-se na guerra, fugiu da batalha, trocou sua farda pelas roupas de um camponês morto e assumiu nova identidade. O segundo ato desenvolve-se através do embate de dois discursos conflitantes: de um lado, o discurso tradicional, do poder que luta para conservar a falsa ideia de herói e que, ao mesmo tempo garante o progresso da cidade e justifica o enriquecimento ilícito de certos personagens; de outro lado, o discurso épico do herói tornado homem, desmontado, que reivindica para si o direito de não ser herói. Os elementos do épico brechtiano podem ser notados já no início do ato quando os personagens são exageradamente desfigurados para demarcar o efeito do distanciamento. O ato se abre com a recitação do coro: “à sombra desta estátua/ uma cidade cresceu,/ cresceu, cresceu, cresceu,/ à sombra dela cresceu./ Barriga também cresceu/ de muita gente cresceu.” (GOMES, 2005, p. 111). A seguir, o major, o vigário, o prefeito e a viúva aparecem em cena com enormes barrigas, que representa o
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enriquecimento dos mesmos ao alimentarem-se do mito durante tantos anos. Esses personagens buscam o tempo todo por soluções para o restabelecimento da ordem, enquanto Jorge procura livrar-se do estigma de herói a ele imposto. Ao final, com a morte de Jorge, se dá o restabelecimento da ordem, anseio dos demais personagens. Porém, sua morte não lhe garante um lugar ao lado dos grandes heróis clássicos. Assumindo um caráter tragicômico, a morte do nosso herói acontece num bordel, onde Matilde, em conluio com os demais personagens, o envenena e o esfaqueia, depositando a culpa nas beatas que protestam e apedrejam seu estabelecimento. Enterrado em segredo, Jorge permanece herói aos olhos da cidade Porém, aos olhos do público, a farsa do herói é desmontada, numa crítica direta ao falseamento da realidade utilizado pela sociedade capitalista para se manter no poder. Para Rosenfeld, Jorge é a figura que desmascara o falseamento do heroísmo, “ao lutar pela liberdade de não ser herói e ao combater uma engrenagem que se alimenta da mentira” (ROSENFELD, 1996, p. 72). E assim, sem a presença do herói forjado e comercializado, desmoronam-se os mecanismos de dominação da classe burguesa. Daí a importância de utilizar-se do elemento épico brechtiano para desmascará-lo perante o espectador, incitando-o a transformações sociais sempre mais significativas. 3.2 Roda Viva: A Fabricação de um ídolo Chico Buarque lança-se como escritor teatral em 1967 com a peça Roda Viva4. Dialogando com um período de grande mobilização popular, Buarque retrata a trajetória de um indivíduo que se submete à esmagadora engrenagem da indústria televisiva. Trata-se aqui do processo de fabricação de um ídolo, de um herói capaz de arrastar as massas ao fascinante (e perigoso) mundo do showbiz. O enredo de Roda Viva se constrói ao redor da figura de Benedito da Silva, sujeito simples que vê sua vida transformada pela possibilidade de se tornar ídolo das 4
Essa peça foi encenada pela primeira vez no Teatro Princesa Isabel do Rio de Janeiro, GB, em janeiro de 1968, sob a direção de José Celso; Direção Musical: Carlos Castilho, Direção de Produção: Renato Corrêa de Castro e Rony Nascimento, e com o seguinte elenco: Heleno Prestes, Antonio Pedro, Marieta Severo, Flávio São Tiago e Paulo César Pereio.
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massas. Para isso, sofre a despersonalização provocada pelos mecanismos da televisão. Na peça, que critica duramente a superficialidade da cultura do entretenimento, Buarque desmascara as relações de poder existentes nesse meio. O teatro épico exerce grande influência no desenrolar do enredo, seja pela desconstrução da figura do herói clássico, seja por seu caráter histórico-dialético ou ainda pela interação constante dos atores com o público. Evidencia-se nessa interação a separação ator/personagem que, no teatro épico, quebra a ilusão e ressalta o caráter narrativo da peça. Assim, “o ator tende a marcar sempre dois horizontes de consciência, o amplo do autor/narrador e o restrito do personagem” (ROSENFELD, 1996, p. 17). Alguns aspectos presentes no início da peça funcionam como ponto de partida à crítica construída por Buarque: o coro de esfarrapados, em procissão, entoando um canto religioso destaca o caráter sagrado atribuído à indústria televisiva, o que é enfatizado no embate entre o Anjo e o Capeta e na adoração ao sistema televisivo: “Creia na televisão/ como seu anjo aconselha/ pois é ela que vai julgá-lo/ ela vai observá-lo/ por todos os cantos, ângulos e lados/ e às trevas condená-lo/ se cometeres pecado” (BUARQUE, 1968, p. 37). A perda da naturalidade do discurso de Benedito quando diante das câmeras denota a superficialidade desse mecanismo. O avanço de figurantes rumo à plateia com gritos de “Comprem! Comprem!” acentua a intenção comercial do aparato. Acrescentese a isso o desnudamento de Benedito, pelos figurantes, e que dá início à fabricação do herói. Assim: “o prólogo de Roda Viva tenta, como no cinema, enquadrar a realidade que constitui o pano de fundo do fenômeno a ser examinado” (COSTA, 1996, p. 178). Roda Viva é uma peça dividida em dois atos: o primeiro é dedicado à ascensão do ídolo e o segundo focaliza o embate entre o Anjo (personificação do empresário mercenário) e o Capeta (personificação da imprensa sensacionalista) ao redor da figura do ídolo. No seu conjunto evidencia-se a superficialidade venal do mundo televisivo que situa, de um lado, o coro de esfarrapados e as massas facilmente manipuláveis e, de outro, os empresários e patrocinadores que enriquecem explorando essas mazelas. No primeiro ato, utilizando-se de cortes e flashbacks, Buarque mostra a progressão na construção do ídolo. Segundo Costa (1996. p. 179), “esse prólogo indica
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que o dramaturgo estreante já captara muito bem as lições do teatro épico, entendendo que, além do texto, a cena e a música fazem parte da narrativa com iguais direitos”. Do prólogo com o coro, corta-se para o protagonista que, narrativamente, apresenta ao público as particularidades do espetáculo: um programa de televisão que demarca sua trajetória como ídolo e rei: “Aos caros e ilustres telespectadores/ [...] Mas peço licença só por um minuto que aí vem um simpático comercial” (BUARQUE, 1968, p. 16). O primeiro passo para a fabricação do herói e sua consequente perda de identidade se dá na mudança do nome. De Benedito da Silva, o protagonista se transforma em Ben Silver. Trata-se aqui da assimilação e submissão à cultura estrangeira em detrimento aos valores da cultura nacional. Ao final do primeiro ato, o ídolo já está devidamente fabricado, desfrutando junto aos mecanismos que o criaram da efêmera sensação de poder que a fama proporciona. O segundo ato apresenta um ídolo já consolidado pela indústria televisiva e, ao redor de sua figura, o ferrenho embate entre o Anjo e o Capeta (empresário e imprensa) para a extração do lucro. Destaca-se aqui a situação de controle imposta ao ídolo para que ele continue ‘desfrutando’ da fama. A perda da privacidade acentua a despersonalização do herói, uma vez que o leva a agir de acordo com os ditames da televisão: “Segundo enquete realizada por nosso jornal, as fãs condenam unanimemente a atitude traiçoeira do seu rei, casando-se à revelia [...]. É o povo que faz um ídolo! É ao povo que ele pertence!” (BUARQUE, 1968, p. 56). A manipulação da personalidade do herói e sua consequente descaracterização enquanto sujeito conflita, nesse segundo ato, com a relação de Ben Silver com o amigo Mané, que lhe cobra uma atitude. Mané lembra ao herói o seu passado como militante político: “Benedito e Mané são veteranos das lutas políticas do tempo de estudantes, perderam alguns amigos (mortes, prisões), o Partido faliu, etc.” (COSTA, 1996, p. 181). O diálogo entre Mané e Ben Silver conclui-se com a bebedeira de ambos, marcada pela crise de consciência do herói. O discurso superficial do ídolo fabricado pela televisão se choca com o discurso político, voltado ao debate acerca das reais condições sociais do Brasil. Tal entrechoque discursivo aumenta a fragmentação de Ben que, de um lado, alimenta reminiscências de um passado ativo e, de outro, deixa-se conduzir pela ilusória sensação de poder, marcada pela passividade do presente. Com a
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crise de consciência e as bebedeiras a imagem de ídolo começa a ser destruída. Como a indústria televisiva se alimenta do ídolo fabricado, torna-se necessária a sua reconstrução, ou seja, é preciso que Ben Silver morra para, de suas cinzas, nascer o novo herói: Benedito Lampião, “um Benedito bem brasileiro, bem violente, desde a apresentação até o próprio nome!” (BUARQUE, 1968, p. 58). A fabricação de um herói genuinamente brasileiro demarca o caráter irônico da peça, pois essa nova personalidade é formada a partir da leitura, pelo Anjo/empresário, de um artigo da revista Time: “nesse último número ela explica direitinho como deve ser a legítima música brasileira.” (BUARQUE, 1968, p. 60). A ascensão de Benedito Lampião é marcada no texto por sua turnê internacional e pelo conflito com a agitação política no país que o acusa de vender a cultura nacional ao imperialismo ianque. As características épicas são evidenciadas através da discussão acerca da figura do herói moderno, do contexto político e da interação com o público. Quando a imagem de representante da cultura brasileira é esgotada no estrangeiro, esvazia-se novamente a figura do ídolo, que precisa ser reconfigurada. O último passo nessa trajetória é a morte de Benedito e, dessa vez, a morte real, aquela que mitifica. Assim, para se tornar mito, Benedito, o herói, precisa morrer. Entretanto, dada a efemeridade da indústria televisiva, a morte do ídolo o lança ao esquecimento. Enquanto o povo se amontoa ao redor do morto, a imprensa divulga o nascimento de uma nova heroína, a viúva Juliana: “Extra! Extra! Suicidou-se Benedito Lampião! Rei morto, rainha posta” (BUARQUE, 1968, p. 74). E, vestida à moda hippie, movimento de contracultura que despontava no Brasil, a nova heroína é carregada nos ombros do povo como a nova peça na implacável indústria do entretenimento. 4 Considerações Finais A influência épica de Brecht no Brasil impulsionou a consolidação de uma nova mentalidade teatral, que lançava os pilares modernos da dramaturgia nacional. De um lado, impulsionou o texto voltado ao engajamento social e, de outro, foi o causador de certas controvérsias quando esses textos ganharam sua efetivação no palco. É o caso do espetáculo Roda Viva, dirigido por José Celso cujas leituras ora o valorizam como a
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consolidação no palco do elemento épico ora destacam o descompasso na proposta cênica com a teoria do dramaturgo alemão. De acordo com Armando Sérgio da Silva (2008, p. 60), o espetáculo de José Celso levou ao palco um ritual de desmistificação de uma cultura, procurando destacar o público como elemento revolucionário. Para ele, o espetáculo efetiva o diálogo com a plateia através da radicalidade do diretor que extrapola os limites dessa relação. Iná Camargo Costa e Robert Schwarz, ao contrário de Silva, não veem o envolvimento palco/plateia proposto por Celso como a efetivação em cena dos elementos épicos, mas como uma manifestação voltada à irracionalidade, desprovida de uma concepção estética e social. Para Costa, texto e cena tomaram direções opostas após o espetáculo que, além do irracionalismo e das manifestações gratuitas de agressividade, apresenta-se como simples manifestação comercial. Trata-se, segundo Costa, da trajetória comercial e simplificadora de um ídolo. A análise de Costa, em seu livro A hora do teatro épico no Brasil, se fundamenta no fato de que ela enxerga no texto algumas propostas épicas que foram distorcidas pelo diretor e, dentre essas, a relação entre público e plateia. Para Schwarz, o fato de José Celso, influenciado pela moda cênica internacional, trazer ao palco certa agressividade irracional, atacando ideias, símbolos e até mesmo o físico da burguesia, ao contrário de garantir a interação espetáculo/público, impõe o palco sobre o público, através de uma linguagem caricata e moralista. Tal situação não desperta a reflexão, mas deixa o público em situação de passividade diante da violência do espetáculo. Assim, O espectador da primeira fila era agarrado e sacudido pelos atores, que insistem para que ele “compre!”. No corredor do teatro, a poucos centímetros do nariz do público, as atrizes disputam, estraçalham e comem um pedaço de fígado cru, que simboliza o coração de um cantor milionário da TV, que acaba de morrer. A pura noiva do cantor, depois de prostituir-se, é coroada rainha da rádio e da televisão; a sua figura, de manto e coroa, é a da Virgem etc. Auxiliado pelos efeitos de luz, o clima dessas cenas é de revelação, e o silencio na sala é absoluto. (SCHWARZ, 2008, p. 103).
Como se pode notar, a introdução de elementos épicos no teatro nacional não aconteceu de modo pacífico e, dadas as controvérsias teóricas envolvendo texto e cena, tal inserção, além de abrir as portas ao teatro moderno revolucionário, forneceu
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importante material para a análise política e social. A desconstrução do herói nacional, seja ele mito ou ídolo, é um caminho interessante para se compreender essa revolução teatral iniciada na década de 1930, o que justifica a elaboração do presente artigo. REFERÊNCIAS BRECHT, Bertolt. Um homem é um homem. Trad. Fernando Peixoto. In: BRECHT, Bertolt. Teatro Completo. Vol. II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. CARVALHO, Sérgio de (org.). Introdução ao teatro dialético: experimentos da Companhia de Latão. São Paulo: Expressão Popular, 2009. COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. GOMES, Dias. O berço do herói. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. BUARQUE, Chico. Roda Viva. Rio de Janeiro: Sabiá, 1968. MACIEL, Diógenes André Vieira. O alvorecer do drama moderno brasileiro. Terra Roxa e outras terras- Revista de Estudos Literários. Vol. 14 (dez. 2008). p. 15-23 PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 2009. ROSENFELD, Anatol. O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1996. ______. A arte do teatro: aulas de Anatol Rosenfield. São Paulo: Publifolha, 2009. ______. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2011. SILVA, Armando Sérgio. Oficina: do teatro ao te-ato. São Paulo: Perspectiva, 2008. SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política, 1964-1969: alguns esquemas. In: SCHWARZ, Roberto. O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 70-111.
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UM ESTUDO POLÍTICO E RELIGIOSO DO CONTO DE MIA COUTO O CEGO ESTRELINHO Marco Antonio Saraiva (UFRJ) Mia Couto convida nesse conto os leitores a caminharem com seus personagens, porém, enxergando, como o Cego Estrelinho, com uma outra visão não apenas além da realidade, contudo também das fantasias comuns dessa mesma realidade, que a continuam para reafirmá-la ou refratarem outra, que perante o discurso oficial seria uma versão imprópria ou esquecida, que é no fundo a fantasia do conto e das histórias que a subjaz. Todavia, ao se deixarem ser guiados por Gigito Efraim pela narrativa, esse passeio pode ir de um modo malemolente descortinando através das próprias alegorias as realidades ocultas, as histórias, por exemplo, que ultrapassam os limites horizontais da própria narrativa, mas que verticalmente nela, em camadas mais profundas podemos escavar com os olhos, ou com os sonhos, mesmo sem saber que o estamos fazendo, pois a leitura se tornara depois uma memória que não serve apenas para recordarmos conscientemente, mas, ao mesmo tempo, será matéria-prima para o inconsciente e a imaginação. Podem se remeter essas alegorias também para os páramos invisíveis da Guerra de Independência de Moçambique e, num outro plano, a religião metaforizando os suplícios e a felicidade dos africanos, e ambos se urdem sob a superfície do tecido narrativo do conto, porém nele ocasionalmente bordando com seus fios narrativos estampas como cenários no pano de fundo da história. Metáforas que em vez de apenas darem um novo sentido as palavras e aos objetos que aquelas representam, clareiam muito mais, enquanto tropos, do que a própria realidade os fatos dela. Principalmente num mundo onde a história é escrita pelo referencial dos que detém o poder e posto como narrativa oficial dos eventos acontecidos. A metáfora traz em si este poder revolucionário, da verdadeira revolução, de através da alegoria revelar o que foi maquiado, mascarado, mas ainda está latente nas entrelinhas. Pois, talvez, somente a fantasia da literatura possa combater a falsa alegoria da história e desmascará-la. Nesse jogo de claro e escuro residi, então, numa camada mais profunda, outras histórias sobre aquela que lemos na claridade das lâmpadas, a olho nu, a história que absorvemos pela leitura, e outra que se forma para muito além do interior das retinas, não a imagem física da óptica, exatamente aquela que se faz latente, oculta na linguagem codificada para a leitura imediata do consciente, pois o que é a zona escura para a consciência em nosso inconsciente será a claridade, por conseguinte, o leitor, como um
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cego para essa dimensão, mas, consciente dos fatos e, mesmo, dos acontecimentos fictícios, passa a enxergar, em verdade, com as pupilas totalmente dilatadas, na escuridão, porque irá reconstruir sob diversos aspectos a história inicial e encontrará seus sublineares, isto é, fará revelar uma história mais factual ou irá se aproximar dela, e ela se torna mais concreta a medida que se torna tátil, quando o olhos do leitor se assemelham as mãos e os dedos de um cego. Esse conto, portanto, é um exemplo perfeito de fundo e forma envolvendo a leitura, quando o personagem principal é realmente um cego nomeado Estrelinho, ou seja, traz a luz própria no signo, na imaginação, que se remete portanto para a leitura por detrás das coisas, imaginada, refeita pelo inconsciente, quando a dita realidade é uma cortina. No conto de Mia Couto, em sua cosmovisão, o que se confronta com a realidade é o modo como o cego Estrelinho enxerga as coisas e o mundo de forma fantasiosa através das palavras do seu guia Gigito Efraim, uma alegórica e humana rosa-dos-ventos vívida e maravilhosa que direciona seus passos por uma via de imaginação, um universo paralelo ao da realidade, visto que O cego Estrelinho, segue por esse caminho asfaltado pelas palavras de Gigito e encontra a felicidade em plena época de destruição e guerra, como se fosse um caminho secreto ao meio das ruínas, é isso é a verdadeira vitória, ou melhor o caminho verdadeiro que foi transformado em uma narrativa de conto, ainda que se possa dizer que ele já estava com os pés no chão da história contada. O intuito transcende a busca da vitória, a derrota do inimigo, rendição do invasor, Gigito Efraim e o Cego Estrelinho estão dizendo não aos pressupostos que estão por detrás da guerra, ou seja, a venda de armas, aos bancos que lucram sempre nesses confrontos financiando ambos os lados. Mia couto rompe assim, antes com os fios intricados da narrativa imposta pelos poderosos, mas que, na realidade, para além dos teatros de manobra dos exércitos e da política, começa nas embaixadas, em visitas a grupos rebeldes ou do governo legal e contatos com políticos locais, mas sempre terminam em conversas a portas fechadas em obscuros gabinetes, e num morticínio, que depois será apenas uma estatística nos anais da história. E, assim, após o conflito voltarão a lucrar com medicamentos, empréstimos para a reconstrução dos países, e a história irá corroborar com o álibi da linguagem dos seus escribas oficiais. É o tétrico ágio de milhares de cadáveres, que são meros personagens descartáveis nessa retórica da narrativa histórica, cuja finalidade, por detrás, ainda é escravizar modernamente com a venda de armamentos, receber os royalties, e, com a miséria instalada, adquirirem mão-de-obra e matéria-prima baratas para multinacionais e suas indústrias no Ocidente, além do capital
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internacional receber os juros do em forma de dívidas, e para isso jogam irmãos contra irmãos. Nesse sentido o conto de Mia Couto segue na contramão, vai pelo caminho oposto e se faz no que deveria ser a verdadeira realidade e identidade dos moçambicanos, no fundo de todas as nações africanas e do mundo, trata-se de uma visão universal vazada numa linguagem congruente a esse aspecto, tendo-se, é claro, na perspectiva que os soldados nos campos de batalha são apenas joguetes, títeres de um outro con(fron)to, porém, escrito com sangue em cálamos de baionetas. Dentro dessa visão, então, os personagens de Mia Couto se tornam as verdadeiras gentes, em estado de devir na ficção, porque neles lateja e pulsa a essência do que foram e ainda devem ser os povos africanos. A principal lição desse conto, ao modo daquelas que os ouvintes retiravam das histórias contadas pelos anciãos das tribos, é não se deixar ser atingido pelas sequelas do espírito, já que no campo de batalha não existem somente as mutilações físicas, os sobreviventes, ainda que intactos, perdem partes de sua alma para os demônios da guerra, o pesadelo permanece muitas das vezes, não apenas como tristes recordações, mas, em formas de signos traumáticos que se tornam psicossomáticos, Contudo, por outro lado, pode se alastrar de forma coletiva, o gérmen contamina a paz posterior, e gera-se ou permanece uma mentalidade bélica e revanchista e daí um círculo vicioso, uma cultura planejada pelos que financiaram as guerras e querem, dessa forma, que perpetue a mentalidade para ser internalizada pelos que se degladiaram. Assim Gigito Efraim e o Cego Estrelinho preservam a essência do que cada ser humano é dentro de sua cultura e realidade pessoal, não se deixaram deformar interiormente, pois essa é a verdadeira cegueira, tornar-se um anômalo em seu imo, em sua alma. Marionetes que mesmo libertas do inimigo colonizador e estrangeiro, continuam a repetir o passado em novas guerras, agora, contudo, numa carnificina consanguínea, como nas lutas étnicas que passaram a existir como herança da guerra colonial. Restaram focos de incêndios dos canhões e fuzis lusitanos nas memórias, que é um modo muito mais seguro de guardar a chama do ódio, alimentada, dessa feita, pelo neocolonialismo, alastrando do pensamento para o meio físico e humano, com os mesmos ventos varrendo combatentes e civis inocentes, que perderam a memória do horror da guerra passada, e de que um dia já conviveram juntos, quando o essencial de ambas culturas e de cada membro de todas as tribos eram complementares, sem deixarem de ser originais em suas riquezas e tradições. Gigito faz o papel do antigo contador de contos orais das tribos africanas, que se
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faz universalizado como um personagem urbano, mas, que catalisa os seus antepassados e transcende o real, porém, sem reduzi-lo, antes ampliando o que é a própria realidade, da mesma forma que eram os antigos contos, uma bússola de comportamentos e valores para que os integrantes de uma determinada tribo soubessem se precaver em situações perigosas e meios hostis a sua presença. Os contos eram gerados ao derredor das narrativas dos mitos, orbitavam esses em volta das fogueiras, com eles se integravam pelos acontecimentos cotidianos que poderiam ser regidos, ou melhor, explicados por aqueles narradores de então, a realidade era assim traduzida no plano físico através dos mitos. Gigito procede até certo ponto, com o Cego Estrelinho, como os anciãos que narram histórias para os mais novos, esses seguem de geração em geração repassando os legados imemoriais de seus antepassados tribais mais remotos através dos contos orais, do mesmo modo como Estrelinho virá a fzer com Infelizmina. Efraim, contudo, o faz ao seu modo, despojado de rituais e da tradição mais direta, ele é antes um personagem universal, talvez por isso seja posto em um ambiente que o aproxima da urbanidade, propositalmente para mostrar que também assim sobrevive-se certas heranças, porém, como se traduzidas para a dimensão atual, dando conta do que poderia ser o assunto mais próximo da realidade daqueles dias de guerra, pois quando não elege os perigos do conflito armado parece estar da mesma maneira estar salvaguardando o seu ouvinte, exatamente igual aos antigos e atuais contadores de história em cada aldeia africana, que ensinam ao seu público ouvinte, os aprendizes, a evitarem determinados lugares, onde tribos rivais, animais e entidades espirituais ou fantásticas possam lhes ameaçar, exatamente porque assim os contos lhes alertavam de forma direta ou através de alegorias. Esse deslocamento atua também para mostrar que a barbárie real, ao contrário do que pregam os conterrâneos ocidentais dos soldados que, paradoxalmente, estão sempre lutando em algum ponto do mundo, que eles mesmos rotulam de incivilizado, não se encontra nas aldeias das populações nativas. Por outro lado não é somente o fantástico, o medo, os perigos, as perdas e a tristeza que se fazem nos temas dos contos, no caso de Gigito podemos inferir que o maravilhoso não é nenhum objeto mágico ou personagem sobrenatural, mas o próprio mundo que ele narra para o Cego Estrelinho, que é alegre e torna a felicidade palpável por detrás de suas retinas como nas pontas dos dedos, e é exatamente isso que o protege, quando através das palavras de Gigito, do mesmo modo que os anciãos ainda abrem trilhas secretas e seguras ao meio das florestas do medo com as suas narrações orais, um via oculta no próprio homem, que ao seguir o seu interior,
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onde ecoa o conto, encontra sob os pés também a melhor senda para atingir determinado lugar e realizar a sua demanda concreta. Gigito guia assim o Cego Estrelinho, e os leitores, por uma senda maravilhosa que ele vai abrindo ao meio das trincheiras, das brenhas onde a guerrilha se camufla, das hordas bárbaras que se espalham nas savanas e nas ruínas que vão assolando as cidades, acabando com as plantações, devolvendo o homem da sua espécie Homo sapiens ao seu passado irracional, modificando sua taxonomia mental, bestializando as pessoas. Gigito Efraim abre dessa singela forma uma picada de sonho num território minado e consegue vencer as distâncias, até que os donos da guerra o chamem para servir nela, e se conseguem dar fim ao poeta, ao sonhador, não conseguem impedir que a sua narrativa continue através de quem era guiado, Estrelinho não rompe esse elo, e passa a ser o guia de Infelizmina. E, então, mesmo que tenha morrido ele permanece, de personagem dentro do conto se torna outro contido nesse, na memória de Estrelinho e do leitor, ou seja, mais vívido ele se faz. Gigito Efraim vence, não pelas armas, independentemente dos armistícios e da paz ser decretada, ele consegue proteger aos seus e perpetuar esse caminho feito de sonhos e palavras. A Torá explana que o significado de Efraim é "dupla fertilidade" (41.52) (1958: 34), nesse sentido implica a virilidade de José conseguir reproduzir filhos, ainda mais quando estava na terra que o escravizara, que era para ser da sua infertilidade, o Egito, denominado na Torá como a terra de sua aflição. A qual ele consegue transformar em terra de sua felicidade, exatamente como Efraim faz com o Cego Estrelinho em relação a realidade. Assim o significado do nome Efraim, de origem bíblica, é “próspero na terra da minha aflição” (41.52) (1958: 34), por herança paterna, ou seja, transferindo esse aspecto para a terra de Moçambique, em plena guerra da independência, no conto Gigito Efraim consegue num ambiente de devastação, morte e fome trazer a felicidade para o Cego Estrelinho através da fantasia da realidade. Cotejando o conto com a história bíblica podemos depreender que Efraim é filho de José, neto de Jacó, que o transformara em seu próprio filho para que tenha direito igual a sua herança como seus filhos legítimos, os tios de Efraim que haviam vendido seu pai José para aqueles que o levariam ao cativeiro na terra dos faraós. O que nos recorda de quando Efraim, agora o do conto, é enviado para a guerra e lá ele morre, retirado do seu solo natal de fantasias a história aí se inverte dentro da realidade nua e crua. Isso acontece porque Gigito Efraim idealiza uma outra terra, a mesma que era Moçambique, porém numa oura dimensão, e como fundador dela não
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poderia ter existência fora desse território da imaginação, exatamente como para José e Efraim, fundador de uma das doze tribos, a terra prometidas estava antes dentro de ambos, muito antes do seu povo buscar pela Canaã, e longe dela não teriam nem ao menos se libertado, e, pela importância de ambos, nem se teria iniciado a busca da terra prometida pela sua própria gente. Ao pensarmos no nome do guia do Cego Estrelinho, Gigito Efraim, que não por acaso é uma referência direta a dígito, uma alusão aos dedos, que se remete, não apenas para a cegueira do companheiro, mas principalmente quando precisa fazê-lo compreender as direções com o toque das palmas e dos dedos, da mesma forma que os cegos enxergam pelo tato, exemplo disso as pontas dos dedos no processo da leitura em braile. Contudo seguindo a pista do seu segundo nome, Efraim, podemos pensar no primeiro numa correlação com o Egito, Gigito / Egito, cuja sonoridade também nos recorda o nome desse país, exatamente onde a terra em que nasceu Efraim personagem bíblico. Conforme o livro da Gênesis Efraim seria o filho logo após o primogênito do casal José e Asnet, natural do Egito, ela foi ofertada pelo Faraó para José para tornar-se sua mulher; o progenitor de Asnete era Potífera, um sumo sacerdote da cidade de Om. Efraim
será
um dos fundadores das doze tribos israelenses, a felicidade é dita nesse caso pelas sagradas escrituras porque ele seria bem sucedido antes da chegada de outros grupos israelenses, que seriam escravizados. A história bíblica explica que o pai de Efraim era José, que fora vendido por seus próprios irmão aos egípcios pela inveja que causava por ser o preferido de Jacó sem que fosse como seu filho Efraim o mais velho. José, no entanto, de escravo passou a ter as benesses do faraó, ao interpretar os sonhos em que sete vacas representavam anos de fartura e as outras sete os anos de escassez, salvando o reino do Egito, que pode assim se preparar, para a “época das vacas magras” (41.52) (1958: 37). A ideia de felicidade estudada por Georges Minois (2011), quanto a antiguidade, não abarca de todo a mentalidade desses povos asiáticos, quando se refere o autor francês ao Ocidente, e além disso sua referência está em III a. C, enquanto esses fatos bíblicos estariam a um milênio desse mesmo marco, não se trata do mito pagão da idade de ouro, antes se faz eco do mito judaico do paraíso terrestre repassado aos cristãos; o que está em jogo na história bíblica é o poder da herança, terras e dinheiro em confronto com a visionariedade de José, que por ser um sonhador desinteressado é quem deve herdar o legado paterno. E principalmente pelo que a vida de José, e de seu filho Efraim, irão se tornam em referências da felicidade ainda dentro do próprio reino do Egito, ou seja na
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terra que escravizaria seu povo, eles a tornam seu paraíso, José consegue se sobressair sem lançar mãos das armas, apenas pela sua faculdade do onirismo e das interpretações, isso se remete para o seu filho Efraim no conto, pois pelo aspecto de sonhar, fantasia com a imaginação e narrar ele seria descendente de José também, não atoa possuí o mesmo nome do filho legítimo, herdando essas caraterísticas, e, portanto, encontra também a felicidade para ele e o Cegos Estrelinho ao meio das ruínas da guerras colonial que arrasa Moçambique, contra aqueles que colonizara seu povo, da mesma forma que o Egito escravizaria aos hebreus. Assim tanto José como Efraim seriam guias nos domínios dos sonhos na busca da Terra Prometida, denominada Canaã, ou seja, um paraíso terrestre para as tribos de Israel; pois o guia e a liderança terrestre seria o profeta Moisés Abrindo o Mar vermelho e depois recebendo as tábuas com os dez mandamentos, mas aqueles que estão guiando a errância das tribos dos hebreus pelo deserto, metáfora da cegueira dos que estão perdidos, ainda seriam José e Efraim, pois ambos traziam em si sua terra prometida em forma de sonhos, dentro do próprio Egito, um local inóspito para isso, como a dizer que esse lugar, a terra prometida, é onde quer que sejamos que ela exista, pois está em primeiro lugar dentro de nós mesmos. Vejamos, então, esse reflexo na narrativa de Mia Couto, quando no conto a terra é imaginada por Gigito de uma forma aprazível, maravilhosa, como uma terra prometida; ele a transforma em palavras, porém, é a mesma terra em que todos habitam, aquela que está em guerra, onde impera a miséria, contudo, Gigito a fantasia, a reveste com onirismo, não por ser seja um alienado político ou com distúrbios de ordem psíquica, ele a transforma, apesar de tudo, no paraíso terrestre do Cego Estrelinho porque no fundo é realmente uma terra prometida em devir, o porvir está implícito em suas alegorias. O que transparece como puras fantasias de Efraim no conto, pode ser também uma antevisão, ao modo de José na Bíblia, dentro da terra da aflição, o Egito, está latente a terra da felicidade. A prova cabal desse aspecto é que mesmo sendo uma terra feita com um solo e uma paisagem de signos apenas, o Cego Estrelinho vive verdadeiramente nela, ele a habita feito a qualquer outro ser humano no solo físico a sua casa, porque o Cego Estrelinho, através de Gigito Efraim, ao modo de José, antes de viver na pura realidade, no mundo concreto, ele a habita num mundo de sonhos. O Cego Estrelinho habita realmente esse mundo que transcende a realidade, pois dos sonhos é que realmente nascem as realizações, enquanto os cegos de verdade são aqueles que não conseguem
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enxergar as terras inventadas, e, portanto, não podem transformar aquela que está sob os seus pés na terra prometida. Efraim é citado na Bíblia como o patriarca da tribo que leva o seu mesmo nome, que forma uma das doze tribos de Israel. Seu avô Jacó sempre o teve acima de seu irmão primogênito, exatamente como o fez com José seu filho mais novo. Outro aspecto da cegueira do Estrelinho parece ter como herança o fato de a Torá citar que, a casual anterioridade do clã de Efraim, que não era o primogênito, é vista assim devido a ser procedente de seu avô Jacó, quando já estava tomado pela cegueira, em seu leito de morte, teria consagrado Efraim como líder e dado as suas bênçãos a ele, que pela tradição seria de Manassés, o filho mais velho. Vejam que Jacó transmite a Efraim sua herança, como Efraim no conto ao Cego Estrelinho, depois de sua morte na guerra; e a própria lutas dos irmãos mais velhos e tudo que fizeram contra José, à exceção de Ruben, lembra a luta étnica, entre povos africanos como legado da guerra colonial, mas, Jacó tem preferência pelos descendentes de José o sonhador, e aqueles que perpetuam esse visionariedade, exatamente porque estes viriam mais tarde a sedimentar a busca por uma terra prometida, o que era sonho seria uma terra tão concreta como o chão de terra, e tão fértil quanto pudesse ser esse solo, mesmo que não a encontrassem, ao modo das populações do deserto do Saara, como os próprios hebreus vagaram pelos ermos guiadas por Moisés, pois os nômades, em verdade, nunca se mudam, carregam consigo as suas próprias casas na caravana, imigrem para onde for, em qualquer parte do mundo, estarão sempre na terra dos seus sonhos, porque talvez está terra seja antes um modo de se habitar, e não a terra em si mesma, com a sua cultura perpetuada. O Efraim do conto também não enxerga a realidade, ele fantasia porque habita o sonho anteriormente, ele vê com os olhos de dentro, e não será a sua irmã Infelizmina a herdar o seu dom, mas aquele que é cego fisicamente, ao modo de José e Efraim na Torá, mas que enxerga no mundo onírico. Infelizmina representa aquela parte da nação que em Moçambique herda a cegueira do mundo onírico, equivalente no texto bíblico aos irmãos de José, aqueles que foram perdoados por ele e depois conduzidos por José, significa os diatribes dentro de uma mesma família de povos irmãos, como eram as tribos de Israel, por isso Infelizmina será guiada por aquele que seguia seu irmão Gigito Efraim, equivalendo essa herança a de Jacó para José e depois a Efraim, que passam de últimos na escala de sucessão, mas porque eram sonhadores, passam a liderar. Os guias em Moçambique serão um dia aqueles que lutam de outra forma, os artistas, poetas, escritores
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e os contadores de histórias orais. Infelizmina, por outro lado, lado assemelha-se aos irmãos de José que foram preteridos mas que acabaram seguindo também a trilha dos sonhos, é o próprio aprendizado exposto no conto. A narrativa de Mia Couto parece ser referendada pelo relato bíblico quando este revela que a graça dada por Jacó a José mostra o hapax legomenon (MICHEA, 1972, 67), o qual a literatura tradicional dos rabinos decifrou pelo viés do esoterismo, alguns desses mananciais de informações relacionam a palavra com sekel, que significa mente ou sabedoria, a letra r presente no nome Efraim, está associada com ele através da sílaba mia invertida, a qual podemos interligar como um anagrama dentro do nome Efraim revelando o primeiro do autor do conto Mia Couto, e a letra r significa cabeça em sua origem fenícia, ou seja a capacidade de imaginar e sonhar com ideais maiores, a grande faculdade de José o sonhador que é transmitida ao homônimo de seu filho Efraim no conto de Mia Couto, Gigito. Os rabinos enxergam esse aspecto como um índice de o que patriarca Jacó estava totalmente cônscio sobre a pessoa e o porquê de a estar consagrando, e ao mesmo tempo de retirar os diretos de Manassés; assim também acontece quando ocorre com Gigito, que ao modo do Efraim da Bíblia acumula pela ascendência os dons de Jacó e José, e os repassa da mesma forma para o Cego Estrelinho, quando o guia morre na guerra, então, o seu amigo cego se torna então o novo guia e o contador de histórias para Infelizmina, que é também uma metonímia de um recorte populacional. A relação entre o texto bíblico e o conto se torna mais coesa quando outros estudiosos asseveram que esta palavra, que tem o significado próximo ao da letra latina r, que em fenício é cabeça, se refere a autoridade de Jacó de ensinar e dirigir o espírito santo. O que podemos ver claramente no conto de Mia Couto como a aptidão de Gigito em conduzir ao Cego Estrelinho, representando também algumas tribos e etnias de Moçambique, que são capazes de enxergar com os olhos de dentro, como as que vivem tribalmente ou remanescentes que habitam de forma marginal as cidades. Gigito também conta as histórias com seu espírito onírico, uma outra visão do mundo, para o companheiro, além de o orientar. Relacionando-se, desta forma, aos mananciais da tradição dos rabinos, onde Efraim é retratado sendo uma pessoa extremamente modesta, bondosa, e de modo algum egocêntrica. E por esses traços de personalidade, a sua singeleza e abnegação, além de uma antevisão como a de José, que previa os acontecimentos, que faria Jacó eleger Efraim em vez de Manassés, que teria o direito por ser o primogênito.
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Jacó era referido como bastante equânime e assim teria recebido por isso as glorificações divinas, tornado a sua tribo a principal. A comparação com o Efraim do conto de Mias Couto fica patente, sua dedicação ao amigo, seu desprendimento em guiálo, mas a tribo eleita ainda está em devir, porque ela será aquela formada pela união de todos os povos de Moçambique, quando passarem a enxergar, conforme narra o próprio Gigito Efraim, outra terra, uma verdadeira Moçambique, por enquanto onírica, e somente habitada pelo Cego Estrelinho, de forma tácita é o que podemos depreender. E recordando a tradição rabínica no Gênesis, quanto a atitude de Jacó em relação ao seu neto mais novo, ao dar-lhe o nome Efraim, que significaria segundo a Bíblia “deus me tornou fecundo na terra de minha aflição” (41.52) (1958: 34). Essa conotação do significado do nome bíblico Efraim é herdada por Gigito Efraim no conto de Mia Couto, ele é próspero porque sua imaginação é rica, ele libertase da escravidão dos colonizadores porque, acima de tudo, não se pode aprisionar os sonhos, e, principalmente, em plena guerra colonial ele é um espírito totalmente livre, enquanto está na companhia do Cego Estrelinho. Esse aspecto da liberdade é sintomático, porque ele não apenas narra, porém, a vive com o amigo ao guiá-lo por essa terra paralela da imaginação. Os dois personagens do conto agem da mesma forma que José e Efraim na narrativa bíblica, não fazem como as outras tribos, que apenas conseguiram a liberdade ao fugirem seguindo a liderança de Moisés, eles estão libertos por dentro, na mente, e concretizaram essa liberdade por isso, antes de todos, na realidade. Assim Gigito Efraim e o Cego Estrelinho também o fazem, estão libertos da guerra colonial, metáfora da escravidão dos hebreus no Egito, e também do neocolonialismo, que representa uma contenda entre irmãos tribais. Ambos, o guia e o cego, estão produzindo a Moçambique em estado de devir em suas imaginações, uma transformação que está em processo até os dias de hoje, porque não basta apenas se libertar do opressor, a liberdade verdadeira vem de dentro, fato que se comprova quando sabemos que, depois de escaparem dos egípcios, as doze tribos de Israel entram em conflitos fratricidas, da mesma forma que as guerras étnicas na África eclodem após as diversas independências acontecerem, ou seja, irmãos digladiando-se pelas heranças da terra, como os filhos pelo legado de Jacó. Está implícito no conto, através dos personagens Efraim e o Cego Estrelinho, a errância que povo de Davi faz até encontrar o caminho verdadeiro, eles vão aprender antes a se guiarem pelos princípios e legados dos seus antepassados, a rota dos sonhos que provem de Efraim e de seu pai José, até se depararem com a sua Eucanaã um dia.
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Referências Bíblia Sagrada - Tradução: padre Antônio Pereira de Figueiredo. Edição Revista e Corrigida. Novo Brasil Editorial. São Paulo LTA, 1958. BLUMENBERG G, Hans. Naufrágio com espectador. Lisboa: Vega, 1990. COUTO, Mia. Estórias Abensonhadas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. COUTO, M. Vinte e zinco. Lisboa: Caminho, 1999a. COUTO, M. Vinte e Zinco: onze histórias de abril. Jornal de Letras, Lisboa, p.24, 7 abr.1999c. CRAVEIRINHA, José. História de Sonto: o menino dos jacarés de pau. In: Hamina e outros contos. Maputo: Ndjira, 1996, p. 39-46. MINOIS, Georges. A idade de ouro: história da busca da felicidade. Tradução Christiane Fonseca Gradvohl Colas. São Paulo: Editora Unesp, 2011. MICHEA, Rene: <>, Bulletin de la Société de Linguistique de Paris, 67 (1972). WASSERMAN, Adolpho. A TORÁ VIVA, Maayanot, 2a. Edição, 2013.
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QUESTÕES DE MÉTODO: EDIÇÃO DE “CORRESPONDÊNCIA REUNIDA” DE ESCRITORES Marcos Antonio de Moraes (USP) Brigitte Diaz, estudiosa da epistolografia francesa, evidencia a distância entre as “as duas vidas da correspondência”, ou seja a “vida original, aquela que se desenvolve em tempo real” e a “vida virtual e recomposta pelos organizadores de edição de cartas, a posteriori” (DIAZ, 2012, p. 13)1. De fato, a mensagem transcrita e estampada em tipografia uniforme, nas páginas de um volume ou na tela do computador, elidiu os traços do irrepetível gesto escritural e a cenografia na qual ele se inscreveu. Se a carta é um texto que expressa ideias, sentimentos, desencadeando, tantas vezes, reações profundas no destinatário, esse texto ganha sua completude na materialidade da escrita e do papel. Ritmos na caligrafia (hesitações, ênfases, sobreposições, atos falhos), percalços na datilografia (letras rebatidas, trechos borrados), estratégias de significação (respingos de perfume, desenhos e vincos singulares na folha) requerem a compreensão apurada do interlocutor. Texto e materialidade são indissociáveis na carta. Mesmo a comunicação eletrônica, esbatida na estandardização, esforça-se para potencializar sentidos implícitos, explorando o vigor lúdico das novas tecnologias. As edições fac-similares de correspondência, empenhadas em compartilhar uma (enganosa) realidade imagética, a um alto custo econômico, apenas testemunham, com veemência, o empalhamento do vivido. Conceituação Na abrangente definição de “correspondência reunida”, proposta por Loïc Chotard, vigora a representação do “empreendimento totalizante” de um organizador. Trata-se “de reunir e ordenar, em um percurso cronológico, todas as cartas recuperadas
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“[...] les deux vies de la correspondance: sa vie originelle, telle qu’elle se déroule en temps réel, et sa vie virtuelle et recomposée par les éditeurs a posteriori.” (As traduções dos textos em francês apresentadas nesta comunicação são de minha autoria).
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de um correspondente, transcritas sempre que possível de acordo com princípios editoriais rigorosos”. Busca-se coligir e colacionar todos os textos anteriormente publicados, acrescentando-se a eles todos os inéditos possíveis de serem recolhidos; além disso, as cartas [recebidas pelo remetente] são levadas em consideração e integradas, seja na sequência cronológica do volume, seja (na íntegra ou parcialmente) em seu aparato crítico” (CHOTARD, 2000, p. 369-370)2.
“O princípio da correspondência reunida”, segundo Chotard, “vai ao encontro de uma estética do fragmento”. Ao congregar as cartas remanescentes de um determinado sujeito, ambiciona-se a “configuração de uma rede, ou seja, da produção de uma certa coerência, até mesmo de sentido. Editar uma correspondência reunida é construir uma história sem escrevê-la” (CHOTARD, 2000, p. 371)3. Norbert Dodille, partindo de considerações sobre a correspondência do romancista francês Barbey d’Aurevilly, presume que
uma edição de Correspondência Reunida subsiste na clave do como se. Se a edição de um romance é empreendimento real que se constrói a partir da elaboração imaginária, a edição de uma correspondência reunida, inversamente, é pura ficção que se constrói com o real. (DODILLE, 1990, p. 12)4
Paradigmas A construção de uma “correspondência reunida” pressupõe a delimitação de um método, exigindo “exame atento” de alguns “pontos fundamentais”. Em seu “Balanço de edições de correspondência dos séculos XIX e XX”, Madeleine Ambrière-Fargeaud enumera alguns postulados do trabalho editorial: “Trabalho solitário ou trabalho em equipe? Classificação das cartas por correspondente ou rigorosamente cronológica?
2
“[...] il s’agit de réunir et d’ordonner selon un parcours chronologique toutes les lettres repérées d’un épistolier, transcrites chaque fois que possible d’après l’autographe selon des principes éditoriaux rigoureux, en rassemblant et collationnant tous les textes ayant déjà fait l’objet d’une publication, en leur adjoignant tous les inédits qu’il a été possible de recueillir. En outre, les lettres reçues par l’épistolier sont prises en considération et intégrées, soit dans la séquence chronologique du volume, soit (en tout ou partie) dans son apparat critique.” 3 .”[...] le principe de la correspondance générale va à l’encontre de cette esthétique du fragment: rassembler toutes les lettres c’est [...] chercher à construire un réseau, donc à produire une certaine cohérence, voire du sens. Éditer une correspondance générale c’est construire une histoire sans l’écrire.” 4 “Une édition de la CG fonctionne sur le mode du comme si. Si l’édition d’un roman est une enterprise réele qui se construit à partir d’une élaboration imaginaire, à l’inverse, une édition de CG est une pure fiction qui se construit sur du réel.”
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Publicação exaustiva ou seletiva? Monólogo ou diálogo?” (AMBRIÈRE-FARGEAUD, 1984, p. 89)5 Projetos ambiciosos, em termos de empreitadas individuais, as correspondências reunidas estão associadas a trabalhos de erudição. A edição da correspondência ativa e passiva de Marcel Proust, congregando 5.000 documentos, idealizada por Philip Kolb, professor da Universidade de Illinois, tem início em sua tese de doutorado em Harvard em 1938. A publicação, principiada em 1972, ambicionando coligir todas missivas éditas e inéditas do criador de Em busca do tempo perdido, estendeu-se até 1993, volume XXI, conclusivo, o qual, entretanto, o organizador, colhido pela morte, não pôde completar, tarefa cumprida por um assistente. No colóquio Les éditions de correspondances, realizado na Sorbonne, em abril de 1968, Roger Pierrot, o então diretor do departamento de impressos da Biblioteca Nacional da França e empenhado organizador da Correspondance de Balzac, afirma que, depois de “ter muito hesitado”, e cumprindo orientação das Éditions Garnier, excluiu da publicação “alguns bilhetes” do romancista, “não muitos”, entretanto, como, por exemplo, “solicitações de provas de livros” dos quais “não se podia saber a qual obra se referia ou a quem o pedido fora endereçado” (PIERROT, 1969, p. 61-2)6. Em 1986, Madeleine Ambrière-Fargeaud, no simpósio Les correspondances inédites, recoloca o assunto em pauta, em outros parâmetros. Assegura que, em relação à “questão [...] se dever-se-ia ou não publicar tudo”, obtinha resposta “mais ou menos unânime, no que concerne às correspondências reunidas.” Para ela, todos os pesquisadores sabem por experiência que nenhum índice, por menor que pareça, pode ser negligenciado [...]. Tudo é importante, as cartas ‘verdadeiras’ como os bilhetes de escusas, de negócios ou determinando encontros, as cartas-prefácio ou aquelas endereçadas a jornais, e mesmo os seus rasurados rascunhos, quando se tem a sorte de dispor deles (AMBRIÈRE-FARGEAUD, 1984, p. 89)7
A cronologia, mais comumente, organiza a seriação das cartas em uma
correspondência reunida. A sequência cronológica das mensagens, nas páginas do livro, favorece, todavia, a ilusão de apagamento de irregularidades no fluxo (intensificação ou 5
“Labeur solitaire ou travail d’équipe? Classement des lettres par correspondant ou rigoureusement chronologique? Publication exhaustive ou sélective? Monologue ou dialogue?” 6 “Après avoir bien hésité, d’accord avec mon éditeur, j’ai laissé quelques billets de côté. Pas beaucoup. [...] Ceci dit, j’ai laissé tomber quelques demandes d’épreuves où je ne pouvais pas savoir de quel ouvrage il était question ou à qui cette demande d’épreuves était adressée.” 7 “À la question de savoir si l’on doit ou non tout publier, la réponse semble à peu près unanime, en ce qui concerne les Correspondances générales. Tous le chercheurs savent d’éxpérience qu’aucun indice, si mince paraisse-t-il, n’est négligeable. [...] tout est important, les ‘vraies’ lettres comme les billets d’excuses, d’affaires et de rendez-vous, les lettres préfaces ou les lettres adressées aux journaux, et même les brouillons avec leurs ratures, quand on a la chance de pouvoir en disposer.”
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espaçamento) das trocas epistolares. Lapsos temporais (dias, meses, anos) na sucessão de mensagens são igualmente produtores de significado. Como lembra, oportunamente, Luis Felipe Baêta Neves, o olhar sobre “a cronologia da carta deve considerar seus ritmos (de emissão e de resposta); suas condensações e esgarçamentos; suas nucleações, rarefações e silêncios” (NEVES, 1988, p. 195). Ao combinar as peças da correspondência em determinada estruturação, o organizador suscita modos particulares de leitura e compreensão do conjunto. Roger Pierrot, embora ordene cronologicamente as cartas de Balzac, compõe, separadamente duas séries, correspondências divulgadas por diferentes casas editoras. Distingue as cartas a diversos interlocutores daquelas endereçadas à condessa polaca Eveline Hanska, com quem Balzac se casaria, conjunto que “representa em extensão mais da metade de textos epistolares” do autor da Comédia humana. O preparador da edição justifica a escolha, em 1968: “Pareceu-me preferível guardar para uma publicação separada o monólogo balzaquiano das cartas a Mme. Hanska e preservar o ritmo de diário de um romance de amor que se estendeu por dezoito anos” (PIERROT, 1969, p. 32).8 Legibilidade O organizador de uma correspondência reunida, ao mesmo tempo que busca atender a pressupostos científicos, cumprindo edições de texto fidedigno e anotado, atestando datas, arrolando índices que recuperam informações principais, divisa a presença (fantasmática) do leitor, o natural beneficiário da empreitada intelectual. Segundo Theodore Besterman, responsável pela publicação dos 107 volumes da correspondência de Voltaire, trata-se de “dispor os textos logicamente, permitindo uma leitura corrente, sem sacrificar as exigências dos eruditos” (BESTERMAN, 1969, p. 10)9. Diferentemente do diletantismo manipulador que prevaleceu, por exemplo, na paradigmática história das publicações de cartas na França até 1935 – data do início da modelar publicação da Correspondance générale de Saint-Beuve, a cargo de Jean Bonnerot – pesam sobre as edições modernas de correspondência a expectativa de 8
“Il m’a semblé préférable de garder pour une publication séparée le monologue balzacien des lettres à Mme. H. et de préserver le rythme de journal d’un roman d’amour qui s’étend sur dix-huit ans.” 9 “[...] disposer chaque texte rationnellement, en permettant une lecture ininterrompue, sans pour autant sacrifier les exigences des érudits.”
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“responsabilidade” intelectual, das “exigências de rigor”. Para Georges Lubin, que esteve à frente da difusão dos 25 tomos da epistolografia geral de George Sand, uma correspondência tem um valor em si, mas, além disso, possui valor para o estudo da obra e nós devemos oferecer os melhores elementos, os mais exatos, que suportem todo tipo de análise. Quantas deduções falsas, no passado, tiveram origem em datações incorretas! (LUBIN, 1969, p. 43)10
As decisões de caráter metodológico-científico pressupõem modos de leitura de um tipo de obra que se estende, geralmente, por vários volumes. No frutífero colóquio francês de 1968, o tema entrou na agenda de debates. O professor de Cambridge Lloyd James Austin, organizador da correspondência de Mallarmé, convalida a opinião de Pierrot, ao afirmar que o leitor “raramente” lê “as cartas uma depois da outra. Ele segue um correspondente ou interesses particulares” (AUSTIN, 1969, p. 56)11. Roger Pierrot considera que “há muitas maneiras” de se ler uma correspondência reunida”. Buscando esboçar uma tipologia, mostra que certos leitores vão se preocupar em seguir seu autor durante um período, em busca de acontecimentos de determinada semana ou mês, a fim de restituir elementos biográficos. Sucede também, com maior frequência, que o leitor dirija [...] a sua atenção para um único correspondente, e isso o fará saltar páginas de cartas dirigidas aos demais interlocutores (PIERROT, 1969, p. 32-3)12
Frank Langlois, em 2007, ao discutir os “princípios metodológicos para a edição
de correspondência de músicos”, supõe que o organizador deve realizar um esforço para lograr o “equilíbrio entre a exatidão científica e o dever de proporcionar ao leitor um texto que ele possa compreender” (LANGLOIS, 2007, p. 66)13. O organizador, afinal, sabe que toda “edição de correspondência é interpretação” (POUBLAN, s.d)14.
10
“[…] une correspondance a une valeur en soi, mais en outre une valeur pour l’étude de l’oeuvre, et nous devons donner les éléments les meilleurs, les plus exacts, pour permettre tous les commentaires possibles. Combien de déductions fausses, dans le passé, ont eu pour origine une date fausse!” 11 “Comme M. Pierrot l’a fait remarquer, le lecteur ne lit pas nécessairement, ou peut-être ne lit que rarement, les lettres l’une après l’autre.” 12 “Il ne faut pas oublier qu’il y a bien des façons de lire une correspondance générale. On peut essayer d’esquisser une sorte d’ ‘hygiène’ du lecteur de correspondance générale. Tantot ce lecteur va s’attacher à suivre son auteur pendant une période déterminée de sa vie, à la recherche des événements de telle semaine ou de tel mois pour essayer de reconstituer des éléments biographiques. Mais n’arrive-t-il pas encore plus souvent que le lecteur fixe, à l’intérieur d’une correspondance générale, son attention sur un seul correspondant, et cela l’amènera à sauter les pages des lettres adressées à d’autres correspondants pour lire à la suite les éléments du dialogue que constituent les échanges de lettres, quand on a la chance d’avoir les deux voix pour une période déterminée.” 13 “On s’efforcera toutefois de faire un équilibre entre l’exactitude scientifique et le devoir de proposer au lecteur un texte qu’il a les capacités de comprendre”. 14 “Toute édition de correspondance est interprétation.”
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O tema da “legibilidade” nos projetos de edição de correspondência engloba, necessariamente, a discussão sobre as formas de organização, fixação do texto das mensagens e dos procedimentos de anotação referencial das cartas. O anseio de “legibilidade”, no que ela significa, precariamente, “facilitação”, pode ser uma opção possível rumo à vertente literária, inventiva, descompromissada de princípios metodológicos editoriais rigorosos. Bernard de Fréminville, ao difundir um expressivo conjunto de cartas prosaicas em Marthe (1981), exemplifica o gesto de descaminho de valiosa documentação histórica, “memória de um grupo social” no fim do século XIX, ao se referir ao método adotado, “inteiramente subjetivo, não podendo corresponder [...] às normas da pesquisa científica”. Nessa direção, os nomes próprios, as datas e os lugares foram modificados. Uma triagem precisou ser realizada no aglomerado de mensagens, cuja quantidade original era dez vezes superior àquele apresentado na obra definitiva. Suprimiram-se repetições enfadonhas e efetuou-se o polimento de algumas missivas, de maneira a satisfazer a legibilidade, tanto quanto os limites impostos pelo editor (Seuil)” (BRAY, 1983, p. 407).15
“Legibilidade”, em sentido mais complexo, considera, inicialmente, a relação do leitor com as escolhas do organizador no estabelecimento de texto das mensagens. A
escrita da carta espelha códigos linguístico vigentes em determinada época, os quais, com o passar do tempo, tornam-se mais difíceis de ser compreendidos. A transcrição diplomática tenciona conservar a forma do texto original, preservando ortografia, pontuação, abreviaturas, disposição das frases na linhas e na página, o uso de letras maiúscula ou minúscula, etc., no esforço de resguardar um patrimônio linguístico, ou seja, a língua em determinado estágio de sua evolução. Essa proposta editorial, contudo, dificulta, para o leitor comum, uma ampla apreensão do escrito. O organizador decide, previamente, entre a transcrição paleográfica e a modernização linguística da carta, hesitando, em “numerosos momentos”, “entre o respeito ao texto e a consideração ao leitor” (LECLERC, 2007, p. 103)16. No tocante à questão, Roger Pierrot explicita seus fundamentos metodológicos, ao organizar uma correspondência:
15
“[...] la méthode adoptée par M. de Fréminville [...] elle est tout à fait subjective et ne peut évidemment correspondre en l’occurrence aux normes de la recherche scientifique. Les noms propres, les dates et les lieux ont été modifiés. Un tri a dû être opéré dans la masse des lettres, dont le volume originel était dix fois supérieur à celui de l’ouvragee définitif. On a supprimé des répétitions ennuyeuses et rabouté quelques lettres, de manière à satisfaire à la lisibilité, ainsi qu’aux limites imposées par l’éditeur (le Seuil)”. 16 “[...] il y a de nombreux instants d’hésitations entre le respect du texte et la considération du lecteur”
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Ao editar textos, não se busca uma fidelidade inacessível ou ilusória. O trabalho de edição pode admitir intervenções discretas mas necessárias do organizador cientificamente aparelhado, intervenções claramente definidas na introdução da obra [...]. Se for necessário normalizar [o texto], é preciso prudência e moderação [...]”. (PIERROT, 1996, p. 59) 17
“Atualização” da linguagem da carta, sob essa perspectiva, não significa simplesmente transcrevê-la, utilizado as normas ortográficas e gramaticais vigentes no
tempo da edição da correspondência. Cabe assinalar que a modernização não pode adulterar projetos estéticos, nem de características individuais ou lúdicas da escrita dos correspondentes. Roger Pierrot considera um segundo princípio da “legibilidade” no procedimento de anotação da correspondência. Julga “indispensável” essa atividade, a fim de contextualizar o enunciado elíptico das cartas, identificando “pessoas, as obras artísticas, literárias e musicais, os lugares e acontecimentos citados” (PIERROT, 1996, p. 60)18. A discussão levanta considerações sobre a extensão e os limites desse trabalho de erudição que se apoia em grande número de ciências “auxiliares”, não podendo “negligenciar nem a história geral [...], nem a história local [...], nem a história literária, [...] nem a história das ideias, [...] nem aquela da imprensa do tempo” a que se vincula a correspondência (LUBIN, 1969, p. 43)19. A “anotação”, segundo Loïc Chotard, “tem por função responder, na ocasião oportuna no texto, às questões que se acredita que o leitor deve se colocar. Sua finalidade não é, portanto, a de formular comentários, mas de torná-lo possível; [a anotação] não produz o sentido, mas reúne as condições para a sua produção [...], ela contribui para a aquisição de uma apreensão global deste conjunto de textos disparatados (CHOTARD, 2000b, 393)20. 17
“[...] on édite des textes, sans chercher une fidelité diplomatique inaccessible et illusoire. Ce travail d’édition peut admettre des interventions discrètes mais nécessaires de l’éditeur scientifique, interventions clairement définies dans l’introduction à l’édition que l’on se propose d’établir. S’il est nécessaire de normaliser, il faut user de prudence et de modération, il conviendra, pour des textes du XIX siècle de mettre en garde directeurs de collections et correcteurs, souvent savants et attentifs, mais ignorant les usages de cette époque passée.” 18 “On assure la lisibilité intellectuelle par des notes indispensables pour identifier les personnes, les oeuvres artistiques, littéraires et musicales, les lieux et événements cités.” 19 “En ce qui concerne les sciences auxiliaires, elles dépendent bien sûr de l’époque à laquelle on s’attache. Pour le XIX siècle: généalogie, linguistique, bibliographie, notions pratiques concernant l’utilisation des documents d’état-civil […], maniement du cadastre, des archives notariales, de l’enregistrement, des timbres-postes, des marques postales, doivent être assez familiers au chercheur [...]. Il ne peut négliger ni l’histoire générale du siècle, ni l’histoire locale lorsque l’épistolier a des attaches étroites avec une province, ni l’histoire littéraire [...], ni l’histoire des idées, ni celle de la presse du temps. Il ne s’agit pas de la connaissance impeccable et exhaustive, mais de celle qui permet de savoir où courir pour trouver le renseignement utile dans le minimum de temps.” 20 “Celle-ci a pour fonction de répondre, au fur et à mesure, aux questions que l’on estime le lecteur en droit de se poser. Son rôle n’est donc pas de se constituer em commentaire, mais de le rendre possible; elle ne produit pas le sens, mais réunit les conditions mêmes de sa production.”
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A advertência acerca das balizas da prática da anotação da carta, em termos de um produtivo “discurso de acompanhamento”, provém das reflexões de Colette Becker, resultado de sua pesquisa na edição da correspondência de Émile Zola. Para a pesquisadora francesa, as notas têm de dar [...] informações, sem desenvolvimentos exagerados, mas breves, a fim de que o leitor tenha condições de prosseguir seu diálogo com o remetente das cartas. Cabe então ao leitor, se lhe parecer útil, aprofundar aquelas informações. Caso contrário, a erudição destemperada do organizador leva ao “perigo” de esmagar o texto das missivas sob a informação e a interpretação”, levando-o a fazer “uma edição de notas, e não mais de cartas” (BECKER, 2013, p. 151; 148).
As questões metodológicas abordadas neste artigo fundamentam a elaboração da vultosa “correspondência reunida” do escritor modernista Mário de Andrade (18931945), obra em processo de edição, sob minha responsabilidade, no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.21 Referências AMBRIÈRE-FARGEAUD, Madeleine. “Bilan des éditions de correspondances des XIXe et XXe siècles. In: FRANÇON, André et GOYARD, Claude Goyard (éds). Les correspondances inédites. Paris: Economica: 1984. AUSTIN, Lloyd James. [Intervenção]. In: POMMIER, Jean et alii. Les éditions de correspondances. Coloque avril 1968. Publications d’Histoire Littéraire de la France. Paris: Armand Colin, 1969. BECKER, Colette. “O discurso de escolta: as notas e seus problemas (o exemplo da correspondência de Zola)”. Tradução de Ligia Fonseca Ferreira. Patrimônio e Memória. São
Paulo,
Unesp-Assis,
v.
9,
n.1,
p.
144-156,
http://pem.assis.unesp.br/index.php/pem/article/view/339/621.
janeiro-junho, Tradução
2013. de
comunicação, inserida em: FRANÇON, André; GOYARD, Claude (éds). Les correspondances inédites. Paris: Econômica, 1984, p. 117-129.
Esta comunicação apresenta resultados da pesquisa “Correspondances générales, correspondência reunida: pressupostos metodológicos, críticos e interpretativos” (FAPESP), realizada no Centre de Recherches sur les Pays Lusophones (Universidade de Paris 3, Sorbonne Nouvelle, Paris), sob a supervisão pós-doutoral da Profa. Dra. Claudia Poncioni.
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BESTERMAN, Theodore. [Intervenção]. In: POMMIER, Jean et alii. Les éditions de correspondances. Coloque avril 1968. Publications d’Histoire Littéraire de la France. Paris: Armand Colin, 1969. BRAY, Bernard. “Compte-rendu”. In: BONNAT, Jean-Louis; BOSSIS, Mireille (Direction). Écrire/ publier/ lire les correspondances (Problématique et économie d’un ‘genre littéraire’). Nantes: P. U. Nantes, 1983. CHOTARD, Loïc. “Correspondance: une histoire illisible”. In: Approches du XIXe. siècle. Paris: Presses de l’Université de Paris-Sorbone, 2000. CHOTARD, Loïc. “De la chronologie”. In: Approches du XIXe. siècle. Paris: Presses de l’Université de Paris-Sorbone, 2000b. DODILLE, Norbert. “La CG”. In: La Revue de Lettres Modernes. Barbey d’Aurevilly, 14. Sur la correspondance/ Index des destinataires. Textes réunis par Philippe Berthier. Paris: Lettres Modernes/ Minard, 1990. DIAZ, Brigitte. “‘Comme une lettre à un ami...’ Dispositifs génétiques dans la correspondance de Stendhal”. In: LERICHE, Françoise; PAGÈS, Alain (Textes réunis et presentés par). Genèse & Correspondances. Paris: Item/ Éditions des Archives Contemporains, 2012. LANGLOIS, Frank. “Principes méthodologiques pour l’édition de correspondances de musiciens”. Revue de L’AIRE, 33: Éditer les correspondances. Direção: Geneviève Haroche-Bouzinac. Paris: Librairie Honoré Champion, 2007. LECLERC, Ivan. “Comment achever l’édition de la Correspondance de Flaubert?” Revue de L’AIRE, 33: Éditer les correspondances. Direção: Geneviève HarocheBouzinac. Paris: Librairie Honoré Champion, 2007. LUBIN, George. [Intervenção]. In: POMMIER, Jean et alii. Les éditions de correspondances. Coloque avril 1968. Publications d’Histoire Littéraire de la France. Paris: Armand Colin, 1969. NEVES, Luis Felipe Baêta. “Para uma teoria da carta”. As máscaras da totalidade totalitária. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. PIERROT, Roger. [Intervenção]. In: POMMIER, Jean et alii. Les éditions de correspondances. Coloque avril 1968. Publications d’Histoire Littéraire de la France. Paris: Armand Colin, 1969. PIERROT, Roger. “Éditer une correspondance, complétude et lisibilité”. In: DIDIER, Béatrice; NEEFS, Jacques. Éditer des manuscrits: archives, complétude, lisibilité. Saint-Denis: Presses Universitaires de Vincennes, 1996.
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POUBLAN, Danièle. “S’écrire au XIXe siècle. Une correspondance familiale”. L’édition
scientifique
d’une
correspondance.
http://lodel-
09.ehess.fr/correspondancefamiliale/index.php?12513, consulta em 23.05.2014.
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O CRONISTA SEM MÁSCARAS – A DIMENSÃO DIALÓGICA NAS CRÔNICAS DE LIMA BARRETO Marcos Vinícius Scheffel (UFRJ)1 RESUMO – A perspectiva pragmática e engajada conferiu aos romances de Lima Barreto o tom de crônica e de "documento histórico" de uma época, tendo se tornado uma referência obrigatória para aqueles que estudam os primeiros anos de nossa vida republicana. Por conta disso, o autor foi muitas vezes criticado pelo imediatismo de sua obra e pelo suposto pouco trabalho estético da sua escrita. De outra forma, o romancista Lima Barreto era apontado como um “mero cronista” que se aventurara pelo romance. Enquanto cronista, Lima Barreto aboliu ainda mais os disfarces ficcionais e fez das páginas dos jornais e das revistas em que publicou ao longo de duas décadas uma arena de intervenção nos debates de sua época. Pretendo discutir nesse trabalho como Lima Barreto potencializa a dimensão dialógica da escrita construindo para si e para seus leitores a imagem do leitor-escritor-cidadão. Essa análise se dá a partir de uma série de crônicas publicadas no jornal Correio da Noite, em 1914 e 1915. PALAVRAS-CHAVE: crônica brasileira, Lima Barreto, Correio da Noite.
Contexto do início do século
A crônica ganhou no início do século XX um espaço privilegiado nos jornais e nas revistas brasileiras. A flexibilidade do gênero, aliada a uma fraca cultura jornalística de um país de poucos leitores, acentuava a tendência do gênero de resenhar os fatos marcantes da semana de diferentes “seções” do jornal. Ainda no início do século XX, os escritores brasileiros são em sua maioria polígrafos, transitando por variados gêneros textuais: a crônica, a poesia, o romance, o conto, a entrevista, o material didático, o anúncio publicitário. Os escritores e intelectuais atendem as 1
Professor da Faculdade de Educação da UFRJ.
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mais variadas demandas na cidade letrada (RAMA, 1998). A escrita se torna um valor. A crônica o troco miúdo do dia a dia que não pode ser desprezado pela visibilidade que propicia. Muitos desses cronistas, que também ocupavam cargos públicos ou exerciam profissões liberais, usam desse gênero miúdo para se filiar a doutrinas progressistas e a um cosmopolitismo emergente. O compromisso desses autores com demandas de mercado e com as ideologias modernizantes faz com que suas opiniões sejam por vezes oscilantes. Essa oscilação pode ser percebida no maior cronista brasileiro do período: Olavo Bilac. Como cronista, Bilac se valeu da possibilidade de aderir a formas de pensamento condicionadas por situações de momento. Bilac troca de máscaras ao sabor do gosto do leitor das revistas e dos jornais de seu tempo e ao mesmo tempo molda esse gosto (DIMAS, 1984). Já Lima Barreto “fez a realidade entrar sem máscaras na literatura brasileira” (BOSI, 1994, p.318). O que interessou Lima Barreto foi deixar claros seus posicionamentos, suas visões, suas contradições. Na crônica, Lima Barreto vislumbra a possibilidade de estabelecer um diálogo menos figurado com seus leitores. Interessa-me pensar aqui como Lima Barreto se utiliza da crônica para criar a imagem do escritor preocupado com questões da cidadania. Nesse movimento, o cronista Lima Barreto precisa dialogar com outro público, não mais com o leitor da revista burguesa, mas com aqueles que sentem os desmazelos dos primeiros anos de nossa vida republicana. Para isso, o cronista empreende um esforço de coerência ideológica, de defesa daqueles que ainda não tinham voz, e de construção desse outro-leitor com quem ele dialoga. Para analisar esses aspectos, me aterei às crônicas publicadas por Lima Barreto no jornal o Correio da Noite, entre dezembro de 1914 e março de 1915,
O Correio da Noite
As poucas informações que se tem a respeito do Correio da Noite são fornecidas por Nelson Werneck Sodré. Segundo o historiador, o jornal “circulou de 1907 a 1915, para só reaparecer, muito mais tarde, entre 1931 e 1939” (SODRÉ, 1999, p.326-327).
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No site da Biblioteca Nacional, constam digitalizados os números dos anos de 1913, 1914 e 19152. As crônicas de Lima Barreto começaram a ser publicadas em 14 de dezembro de 1914, num total de 9 crônicas publicadas até o final daquele ano. Em 1915, o autor publicou 29 crônicas, sendo que 21 delas foram publicadas somente em janeiro. As outras oito crônicas foram publicadas entre fevereiro e março. A última delas é do dia 13 de março. Segundo Beatriz Resende (In BARRETO, 2004, p.12), Lima Barreto deixou de publicar suas crônicas nesse jornal para colaborar na prestigiada revista Careta. Como afirmei anteriormente, pouco se sabe a respeito do Correio da Noite e de seus colaboradores. Para preencher essa lacuna, procurei entender o jornal lendo alguns números de 1913 e 1915 (disponíveis no site da Biblioteca Nacional). A sede do Correio da Noite era localizada em um sobrado no número 185 da Rua do Ouvidor, ou seja, numa área de grande efervescência cultural. Logo, no topo da primeira página, o jornal trazia uma informação relevante para o leitor: “Jornal Independente”. Lembrando que a imprensa no Brasil fora no século XIX eminentemente ideológica e sua transformação em “empresa” se deu no início daquele século. Devido a essa forte tradição ideológica, “a independência” do jornal é difícil de ser comprovada, mas a presença de Lima Barreto como um de seus colaboradores já é indicativo de se tratar de um jornal bastante combativo. A partir de 23 de abril de 1914 acontecem algumas alterações no jornal: a inscrição jornal independente desaparece. No lugar dela, aparece o nome do editor Victor Silveira, um número de telefone e a possibilidade para os leitores adquirirem assinaturas semestrais ou anuais. Até então parece que o jornal se sustentava principalmente dos anúncios. Apesar desses incrementos comerciais, o jornal tem números até o final do ano de 1915. Sobre Victor Silveira, pode-se concluir que era um jornalista bastante combativo pelas ideias do seu filho Paulo Silveira (10 anos mais novo que Lima Barreto) e que também se dedicara a um estilo de crônica combativo e atuante (SILVEIRA 1926). Parece-me interessante pensar nessa atuação mais assídua de Lima Barreto como escritor de crônicas. Procurarei analisar o conjunto de crônicas que o autor publicou nesse jornal e como Lima Barreto delimita um espaço de atuação, seus posicionamentos, a escolha de temas e a construção de uma perspectiva dialógica com seus possíveis leitores.
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As consultas podem ser realizadas no seguinte site: hemerotecadigital.br
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As crônicas de Lima Barreto
Entre 1914 e 1915, os principais posicionamentos ideológicos de Lima Barreto parecem estar bastante consolidados: sua visão crítica quanto à República (pouco democrática, elitista), sua desconfiança quanto ao nacionalismo exagerado, sua simpatia por movimentos operários e aos programas anarquista e comunista. Na cena internacional, as tendências belicistas da Alemanha acabam por deflagrar a I Guerra Mundial. No Rio de Janeiro, o principal assunto era a disputa entre Nilo Peçanha e Feliciano Sodré pela presidência do Estado. Ambos os candidatos tinha se declarado vencedores do pleito. O que mostrava a fragilidade do sistema eleitoral e a perspectiva sempre presente de golpes e fraudes. Na edição de 4 de janeiro de 1915, o Correio da Noite coloca-se contra o que qualificou de golpe por parte de Nilo Peçanha e seus seguidores, de maneira bastante incisiva: O povo fluminense não aceita nem reconhece como governo o Sr. Nilo Peçanha. O único presidente eleito, reconhecido e empossado, é o ilustre sr. Dr. Feliciano Sodré, em torno do qual se congregam todas as forças efetivas da sociedade fluminense. O usurpador do Ingá só tem a seu lado os politiqueiros desbriados e a cafajestada ignorante das ruas.
O jornal cobre esses fatos até o seu desfecho, dedicando diariamente a primeira página à cobertura desse acontecimento. As crônicas de Lima Barreto aparecem, normalmente, na primeira ou na segunda página do jornal (em 1914 na primeira página e em 1915 na segunda), que tem de 4 a 8 páginas, compostas por 6 a 8 colunas. Em duas crônicas, Lima Barreto trata abertamente da questão da Guerra. Já o cenário político de seu estado, que ocupou tantas páginas do Correio da Noite, não é citado diretamente em suas crônicas. Essa postura do cronista de evitar comentar diretamente sobre políticos é bastante explicável. Lima Barreto não se esconde atrás de um pseudônimo, as crônicas aparecem com as iniciais LB – não deixando dúvidas quanto a quem seria o seu autor. Aliás, pelo que pude averiguar, Lima Barreto era praticamente o único a assinar textos autorais nesse jornal. Os demais textos, alguns deles muito críticos eram de responsabilidade do jornal e do editor. Comentar abertamente questões relativas ao cenário político, como a sucessão do governador, poderiam gerar problemas ao autor que era escrivão de uma autarquia pública. Ciente dessa condição, o cronista opta por algumas estratégias.
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A primeira bastante conhecida é projetar os principais problemas do país em um político que simbolizou aquilo que nossa república tinha de pior. Para Lima Barreto, esse homem público foi o Barão do Rio Branco. O político e diplomata brasileiro, falecido em 1912, fora uma personalidade muito louvada em seu tempo. Mas, para Lima Barreto, Rio Branco se valera de seu cargo para tirar vantagens pessoais, utilizara prédios públicos como residência e legara péssimos exemplos naqueles primeiros anos de nossa vida republicana: O maior escândalo dessa ocupação foi dado pelo Barão do Rio Branco que, sem lei, autorização, artigo de regulamento, transformou o palácio do Itamarati em sua residência. Ninguém nada disse, porque o Senhor Rio Branco podia perpetrar todos os abusos, todas as violações, impunemente. (BARRETO, 2004, p.164-165)
Ao comentar sobre os desmandos de Rio Branco, o cronista acaba por denunciar todos que se beneficiavam de cargos públicos para obterem vantagens pessoais, sem precisar dar nome aos bois. A segunda estratégia era elogiar homens que conseguiam se destacar por suas ações, por seus estudos, por sua postura democrática. Era uma espécie de antídoto contra os desmandos dos primeiros. Nessa direção, o cronista destaca aqueles que procuravam entender a realidade do país, como Félix Amélio e José Veríssimo, que viam negativamente a monocultura do látex na região Amazônica: José Veríssimo [nascido no Pará], com aquela honestidade intelectual que o caracteriza, com aquela penetração que põe os seus julgamentos, vem mostrando, em uma série de artigos, no Jornal do Comércio, o erro em que sempre andaram os da Amazônia, procurando somente na seringa a riqueza e a fortuna. (BARRETO, 2004, p.142-143)
Essa admiração contrasta com a visão que o cronista manifesta quanto aos políticos brasileiros em “O novo manifesto” (16-1-1915), em que ironicamente se coloca como possível candidato a deputado estadual e apresenta como um dos requisito para isso: De resto, acresce que nada sei da história social, política e intelectual do país; que nada sei da sua geografia, que nada entendo de ciências sociais e próximas para que o nobre eleitorado veja bem que vou dar um excelente deputado. (BARRETO, 2004, p.155-156)
Ainda no grupo das pessoas admiráveis, Lima Barreto cita o exemplo de Honório Menelique, que mantinha o centro cívico 7 de setembro, onde jovens carentes recebiam instrução e podiam aprender uma profissão. A partir desse exemplo o cronista observa que Menelique possui “qualidades de caráter tão diferentes das que estamos habituados a
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encontrar nos nosso homes e que eu não encontro em mim mesmo” (BARRETO, 2004, p.140). Nessa perspectiva crítica de não conseguir observar as qualidades de Menelique em si mesmo, Lima Barreto parece pedir ao leitor que faça esse mesmo exercício de observar suas próprias atitudes e ver em que medida elas contribuíam para a melhora do país. Conclui o cronista:
Menelique é um esforçado, não desanima e vai vencendo os obstáculos opostos à realização dos seus ideais com habilidade de quem penetrou profundamente no nosso meio social. É um exemplo a imitar. (BARRETO, 2004, p.140)
Também pode ocorrer uma falsa admiração, utilizada em chave irônica pelo cronista. É o caso da pretensa admiração por Albino Mendes – renomado falsificador de dinheiro. O falsificador português ocupou várias páginas da crônica policial da imprensa brasileira e virou uma espécie de figura lendária por seus inúmeros golpes. O cronista finge admirar a arte da falsificação de Albino Mendes e insinua que as cédulas emitidas pelo falsário tinham mais lastro que as emitidas pelo governo brasileiro: Todos deviam ter a faculdade de emitir moeda e só a confiança no emissor deveria regular o recebimento da mesma. Eu de muita boa vontade receberia a que fosse estampada pelo Albino Mendes. Dizem que são bem-feitas, artísticas, bem-acabadas, por que não circulam? (BARRETO, 2004, p.162-163)
Com essa observação, o cronista consegue denunciar a falta de uma política econômica eficaz e o erro sucessivo de se emitir dinheiro sem lastro, que levava ao descrédito da nação junto à comunidade estrangeira. Outro traço recorrente de Lima Barreto é se valer da primeira pessoa, deixando claro que se trata de posicionamentos seus, de ideologias construídas ao longo da sua observação das coisas públicas, das suas experiências como funcionário público, de seu trabalho na imprensa. Das 34 crônicas publicadas nesse jornal, 28 delas se valem da primeira pessoa em menor ou maior grau. Em três delas, o autor se vale do plural majestático e se inclui junto com o leitor na realidade do país (esse recurso é utilizado também em várias crônicas em que a 1ª pessoa do singular aparece). Em apenas 3 crônicas, o autor não se vale da primeira pessoa do singular ou do plural. O uso da primeira pessoa permite algumas estratégias de aproximação com o leitor. Pode-se perceber, por exemplo:
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1. A afirmação de desconhecimento de determinado assunto (A música; As enchentes). Notar que na segunda crônica o cronista procura mostrar o absurdo de uma cidade que fora administrada por engenheiros, como Pereira Passos, mas que ainda assim apresenta problemas urbanísticos tão básicos. 2. A confissão para os leitores de vivências pessoais que atestam seu conhecimento sobre determinada situação: o ambiente sórdido da chefatura de polícia, onde estivera preso (A volta); sua antipatia contra a república associada a uma lembrança de infância (O momento); o fato de morar nos subúrbios e conhecer a realidade daquele espaço da cidade (A polícia suburbana); sua condição de funcionário público para comentar os impostos com os quais o governo pretendia arrecadar mais recursos (Quanto?); sua condição de pobre que se sente acanhado com o luxo da Biblioteca Nacional (A Biblioteca). Note-se que em todos esses casos Lima Barreto projeta para si uma imagem de humildade, de simplicidade. 3. O conhecimento da realidade por meio de leituras variadas e a vivência no meio jornalístico: A música, Os jornais dos Estados; O nosso secretário;
O contato com o Correio da Noite, jornal onde Lima Barreto publicara 33 crônicas, possibilita uma série de leituras. De certa forma, pode-se pensar que o autor teve grande liberdade nesse jornal e que conseguiu estabelecer um diálogo produtivo com seus leitores. O fato de o jornal ter uma seção dedicada unicamente aos “Subúrbios e Arrabaldes” e uma série de patrocinadores dessas áreas da cidade permite inferir que uma parcela significativa de seus leitores pertencia a esses extratos sociais, que tinham agora acesso à leitura. Lima Barreto deve ter se sentido bastante confortável para se dirigir a esse público, não só por ser um morador dos subúrbios, mas por ter elegido esse espaço da cidade como um dos seus focos de interesse, bastando lembrar a ambientação suburbana de Triste Fim de Policarpo Quaresma (publicado em folhetins no jornal A Noite, em 1911, depois em livro, em 1915). Muitos dos temas tratados nessa seção do jornal, coisas simples da vida suburbana – festas, problemas de urbanismo, vida social de seus moradores – já encontravam espaço na sua escrita. Acredito que uma leitura mais atenta desse jornal, cruzando com os temas e os interesses de Lima Barreto, possa ajudar a repensar nas condições da leitura e da cidadania
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naqueles primeiros anos de nossa vida republicana e na forma como o autor fluminense fez da escrita sua formação de ação na cena pública.
Referências
BARRETO, Lima. Toda crônica: Lima Barreto. Organização Beatriz Resende e Rachel Valença. Rio de Janeiro: Agir, 2004. V1.
BOSI, Alfredo. O romance social: Lima Barreto. In: ______. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Editora Cultrix, 1994.
DIMAS, Antônio. Tempos eufóricos: análise da revista Kosmos, 1904-1909. São Paulo: Ática, 1983.
RAMA, Ángel. La ciudad letrada. Hanover: Ediciones del Norte, 1984.
______. Las máscaras democraticas del modernismo. Montevidéu: Fundação Ángel Rama, 1985.
SILVEIRA, Paulo. Asas e patas. Rio de Janeiro: Benjamim Costallat & Miccolis, 1926.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4. ed. atualizada. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.
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O LUGAR DA CRÔNICA BRASILEIRA
Marcus Vinicius Nogueira Soares (UERJ)
Introdução O título do presente trabalho, embora assertivo, na verdade remete à pergunta que deve ser feita ao se tratar da crônica: qual é o seu lugar enquanto objeto no interior do que se entende por estudos literários? Assim formulada a questão desdobra-se em outra, pois, afinal, até que ponto a crônica deve ser entendida como texto literário? No Brasil oitocentista, nenhum historiador da literatura incluiu a crônica em seus compêndios e quando isso ocorre, já na segunda metade do século 20, a crônica é inserida dentro de um quadro hierárquico no qual ocupa posição inferior, geralmente como apêndice ao conjunto da produção literária da nação e sempre abaixo de outros gêneros narrativos em prosa, como o romance, a novela e o conto. É possível ainda encontrá-la figurando como parte diminuta da obra de importante autor que se notabilizara pela decisiva contribuição aos grandes gêneros da tradição ocidental, a poesia, o romance e o teatro, ou servindo de fonte documental para a História. Por outro lado, para aqueles que sempre procuraram incensar a crônica ao patamar de gênero literariamente digno de consideração, tratava-se de assinalar determinado posicionamento que, levando-se em conta o substrato nacionalista que desde o século 19 permeia as historiografias literárias, poderia salvá-la da obsolescência, ou seja, a crônica seria um gênero nativo cuja origem remonta ao texto que marca o início do processo de formação do próprio país, a Carta de Pero Vaz de Caminha. Em face desse rápido panorama, pode se dizer que, para o bem ou para o mal, o lugar da crônica como objeto de estudo foi se configurando em linhas gerais por intermédio de três premissas: a de que seria um gênero literário, menor e genuinamente brasileiro. Independente da premissa que se privilegia na abordagem da crônica durante
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esse percurso, o campo no qual cada uma delas se assenta tem sido, irremediavelmente, o dos estudos literários. Assim, na contracorrente do que vem sendo escrito sobre a crônica a partir dessas premissas, minha proposta advém do ponto de vista de que a crônica é um gênero jornalístico, gerado e gerido no interior das páginas dos periódicos do século 19, especialmente franceses. Se não há novidade alguma na formulação acima, todavia enfrentá-la, avaliando o seu alcance e possíveis efeitos na configuração do gênero no Brasil, parece-me um bom caminho para situar a crônica em algum lugar fora dos compêndios de história literária. Como o que pretendo apresentar aqui tem caráter introdutório, detenho-me em breve discussão sobre as três premissas, começando pela nacionalidade do gênero. Um gênero francês Não seria difícil encontrar dentro da fortuna crítica da crônica autores que se reportem a ela como gênero genuinamente brasileiro. Por economia de espaço, cito um único exemplo que sintetiza bem a questão. Depois de discorrer sobre o gênero, demonstrando a identidade semântica, no século 19, entre os termos folhetim, crônica e revista hebdomadária, José Aderaldo Castello escreve sobre a sua emergência naquele contexto: Marcado, de origem, pelas qualidades literárias, são estas mesmas que lhe imprimem, a partir de um Alencar a um Machado de Assis, as características que o erigiriam entre nós, com triunfante projeção nos dias atuais, em gênero literário brasileiro, confirmando a proposta implícita nos comentários de Machado de Assis (CASTELLO, 1999, p. 255).
Diante de afirmação tão categórica a respeito da origem brasileira da crônica, caberia a pergunta: o que torna possível tal afirmação? A resposta pode estar relacionada ao distanciamento cada vez maior nos estudos sobre a crônica entre o corpus analisado e as suas condições de produção, difusão e recepção. Considerada apenas em sua existência livresca, a crônica tende a ser deslocada de seu contexto original de inscrição. Isso significa dizer que toda a rede discursiva dentro da qual a crônica circula e da qual se alimenta desaparece do horizonte das mais variadas análises e interpretações do gênero. Entretanto, desde que surge no jornalismo francês do século 19, a despeito do destaque que muitas vezes a seção folhetim lhe concede no interior da página, a crônica dialoga com os outros gêneros que compõem a paisagem impressa dos
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jornais tais como a notícia, a crítica de arte, sobretudo teatral, os opinativos, especialmente o artigo de fundo e o comentário político, os literários (conto, romance, etc.) e, ainda, com diversas modalidades curtas como as efemérides, a charada, o adágio, a anedota, dentre outras. No Brasil, não teria sido diferente, e não apenas pelas possíveis analogias e remissões textuais aos exemplares franceses do gênero e a seus cultores (Jules Janin e Alphonse Karr seriam os nomes mais citados pelos cronistas brasileiros oitocentistas), mas também porque muito do padrão jornalístico aqui adotado deve-se ao trabalho efetivo de profissionais da terra de Balzac que atuavam em território nacional. Sob esse prisma, o caso do Jornal do Commércio é exemplar. A folha foi fundada pelo exilado francês Pierre Plancher, em 1827, que, seguido pelo seu filho Émile, pode ser considerado o iniciador de uma linhagem de impressores-livreiros responsável pelo incremento do mercado de impressos no Brasil. Não demorou muito para que o jornal, mesmo sob outra administração, mas ainda nas mãos de franceses, no caso, as da família Villeneuve, se tornasse o mais importante periódico brasileiro de boa parte do Oitocentos. Acrescenta-se ainda, para encorpar a ingerência francesa, o fato de que alguns jornais eram impressos totalmente em francês ou parcialmente, de modo bilíngue ou intervalar, como no caso do Correio Mercantil, cujo exemplar de domingo saía, entre 1851 e 1852, na língua de Molière. Além disso, ao recolocar a crônica no seu contexto jornalístico, é possível perceber o quanto ela adere ao campo referencial do periódico no qual se inscreve, distanciando-se assim da matriz que lhe serve de modelo. Em outras palavras, a crônica, bem como todo o jornal, lida obrigatoriamente com demandas específicas, circunscritas ao contexto sociocultural que lhe cabe tematizar. Daí o seu interesse pelo dia a dia da cidade e, ainda que aspectos mais gerais sejam abordados pelo cronista, prevalece o contato quase afetivo e imediato com o comezinho da vida que, ao contrário dos gêneros discursivos, não é algo facilmente transplantado de um terreno social para outro. O que explica em parte a sensação de que a crônica brasileira não teria precedente em outra latitude cultural – curiosamente, sensação semelhante experimentada por certa crítica latino-americana que reputa a crônica nascida em diferente localidade e em língua espanhola, contrariando, por sua vez, outra tese de que ela teria surgido em
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inglês, em território norte-americano. Todavia, o modelo é preponderantemente francês, o que não impede aclimatações e contribuições originais em localidades distintas. Um gênero menor No que diz respeito à minoridade do gênero, a questão passa inicialmente por uma abordagem terminológica. De fato, a crônica é um gênero menor, o que não resulta na afirmação de sua minoridade, no sentido de uma forma fadada à estreiteza de seus limites, sem nunca alcançar a suposta maturidade das realizações sublimes dos grandes gêneros da tradição ocidental. O critério que adoto não é qualitativo, mas, sim, quantitativo: menor quer dizer breve, curto. Nunca é demais lembrar que a premissa da minoridade fundamenta-se no caráter efêmero da crônica devido ao veículo de comunicação ao qual se vincula, igualmente efêmero, o jornal. Aludindo ao problema da migração entre diferentes suportes, é o que afirma Massaud Moisés quando escreve que a crônica é “fugaz como a existência do jornal e da revista”, razão pela qual “mal resiste ao livro” (MOISÉS, 1985, p. 257). Mesmo Afrânio Coutinho, que procura analisar a crônica positivamente, entende a expressão “menor” no sentido qualitativo na medida em que julga perceber o “complexo de inferioridade” dos cronistas em geral a partir do título da seção criada em 1854 por Francisco Otaviano para o Correio Mercantil, “Páginas Menores”. Escreve o crítico: Por que “menores” as páginas que ambos [Otaviano e Manuel Antônio de Almeida] escreveram naquela seção? Por serem circunstanciais? Por estarem destinadas a produzirem efeito transitório? Por serem escritas apressadamente?” (COUTINHO, 1986, p. 112).
Na verdade, o título é, como diz o próprio Otaviano, fruto da tentativa de encontrar nome novo “para coisa antiga” (OTAVIANO, 1854, p. 1), no caso, para a seção ao rodapé da página cujo original, como se sabe, era chamado na imprensa francesa de feuilleton e que no Brasil, desde 1839, recebia o nome de folhetim, aportuguesamento do termo que era empregado no periodismo espanhol. Como a entendo, a solução apresentada por Otaviano consiste em tradução literal da rubrica francesa que alude ao tamanho e posicionamento da seção no interior das enormes páginas que compunham os periódicos da época e não à atribuição do grau de inferioridade ao gênero praticado no referido espaço em relação a outros gêneros, dentro ou fora dos jornais.
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Passo, então, à última premissa: a crônica como gênero literário. Um gênero jornalístico Sem dúvida, essa é uma questão que apresenta maior dificuldade, uma vez que, como já mencionado, envolve também as duas anteriores. Afinal, se a crônica ocupou algum espaço por menor que fosse em qualquer historiografia foi, certamente, na literária. Inicialmente, não porque pudesse ser considerado um gênero equivalente à poesia ou ao romance, mas porque era praticado por autores que se celebrizaram como poetas ou romancistas. Até meados do século 20, o pouco que se escreveu sobre o gênero pode ser debitado ao fato de que a sua história contou com a participação de figuras da importância de José de Alencar, Machado de Assis ou Olavo Bilac. Entretanto, apesar da inclusão, isso não foi suficiente para que a crônica superasse a sua condição periférica. O que talvez tenha alterado significativamente o lugar da crônica nesse percurso relaciona-se ao crescente interesse do mercado editorial por livros do gênero. No século 19, especialmente a partir da década de 1870, já é possível detectá-lo, embora ainda de modo bastante acanhado. Por essa época, Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar e Luís Guimarães Junior têm, em vida, antologias de suas produções jornalísticas lançadas em volumes. Alguns anos depois, é a vez de França Junior, Olavo Bilac, Coelho Netto e João do Rio. Contudo, apesar dessas primeiras manifestações, o interesse editorial não vai muito além disso, como se percebe claramente no exemplo do mais importante cronista do período, Machado de Assis: como se sabe, o autor de Dom Casmurro escreveu crônicas durante aproximadamente quarenta anos, produzindo mais de seiscentos exemplares, e não teve sequer um livro dedicado exclusivamente ao gênero. A intensificação, contudo, se dá mesmo no século 20, especialmente a partir da década de 30. Em 1933, a jovem editora José Olympio imprime o livro de crônicas Os párias, de Humberto de Campos, um sucesso editorial. Aliás, o escritor maranhense, que se notabilizou pela produção sistemática de gêneros curtos para jornais, vai ser o carro-chefe do crescimento vertiginoso da editora. Com a sua obra sendo publicada no decurso dos anos seguintes, sempre com boa repercussão de público, o seu nome acaba impulsionando a arrecadação da editora, permitindo, assim, a inclusão no seu catálogo
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de nomes recém-consagrados da literatura nacional, como José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado. Nem é preciso recordar que é a mesma José Olympio que lança, em 1936, o primeiro livro de Rubem Braga, O conde e o passarinho, e que ainda será responsável por outras coletâneas do autor até os anos 60, quando a Editora do Autor, de propriedade do cronista capixaba, passa a publicar a sua obra. A propósito, é nesse período que a edição de livros de crônica atinge patamares inimagináveis no Brasil. Praticamente todos os cronistas vão ter os seus textos publicados em volume por editoras de prestígio – além da José Olympio, vale destacar a Civilização Brasileira. Assim, ao lado das mais eminentes obras da literatura brasileira e universal, a crônica invade o circuito editorial do país e sente de imediato a mão pesada da crítica literária, sobretudo jornalística. Não é que ela se calou desde os primórdios do fenômeno, mas, talvez pela pouca repercussão inicial do processo, a sua intervenção tenha sido diminuta. Entretanto, na década de 1960, os críticos de rodapé reagem à invasão, desqualificando-a como literatura e até como objeto jornalístico – a decadência da crônica em sua própria esfera discursiva advém mesmo do que há nela de literário, “resíduo provinciano” (SODRÉ, 1956, p. 7) incompatível com o jornalismo moderno, segundo diagnostica Werneck Sodré em 1956. Anos mais tarde, em 7 de março de 1964, Temístocles Linhares sintetizaria bem a posição da crítica quanto ao gênero: ao se deparar com um livro do cronista João Luso em meio a tarefa de comentar quatro recentes lançamentos, todos de crônica, de Stanislaw Ponte Preta, Elsie Lessa, Rubem Braga e Rachel de Queirós, escreve o crítico do “Suplemento Literário” de O Estado de São Paulo: “(...) logo me pus a recordar o que tenho dito a respeito do gênero mais em moda atualmente entre nós, de sua efemeridade, de sua reduzida valia literária, de sua perda de substância na passagem do jornal ou da revista para o livro etc.” (LINHARES, 1964, p. 4). No século 20, ao que tudo indica, a temperatura literária da crônica mede-se pela escala do livro. Como reflete Linhares, se em 1964, João Luso é, apesar de suas qualidades técnicas e apenas catorze anos após a sua morte, um escritor desconhecido, não há razão para as editoras insistirem em publicar produtos de um gênero natimorto. Em geral, para a recepção crítica novecentista, a crônica cumpre bem o seu papel no jornal e desde que não sobreviva ao tempo do exemplar do dia; fora dele, especialmente
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no livro, ela é sinônimo de desperdício cultural, uma vez que não se coaduna com a capacidade de transcendência proporcionada pelo novo suporte de inscrição – vale lembrar que a crônica também migra para o rádio, como atesta o programa de grande sucesso intitulado “Quadrante”, produzido pela Rádio MEC entre 1957 e 1964, no qual o ator Paulo Autran lia textos de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Rubem Braga, dentre outros, assim como para a televisão, quando Rubem Braga produz crônicas para serem lidas no vespertino “Jornal Hoje” da Rede Globo, a partir de 1975. Todavia, se o livro não empresta à crônica sobrevida literária, por que se importar com a enxurrada de publicações? Ora, como avalia Linhares, a crônica, como todo best-seller, implica em perda de qualidade literária, consequentemente ela não faria mais do que endossar o gosto médio do público leitor: Antigamente, ele [o autor] também pensava nessa “avis rara”, que é o leitor, mas em outros termos. Não ia ao seu encalço, como se faz hoje. Não descia das alturas para chegar ao seu nível. O leitor, sim, é que tinha de subir-lhes as escadas e se preparar para tratá-lo e entendê-lo. (LINHARES, 1964, p. 4)
Nesse sentido, segundo ainda o crítico paranaense, seria interessante que os escritores, alguns verdadeiramente talentosos, como Sérgio Porto, investissem em gêneros “mais duradouros” (LINHARES, 1964, p. 4) como o romance. Diante do raciocínio, caberia o seguinte questionamento: como aferir a durabilidade de qualquer gênero antes que ele produza o efeito que o tornaria contemporâneo a determinado público em diferentes momentos históricos? Seria desnecessário lembrar aqui a tese da origem grega do romance e do seu percurso marginal até a sua ascensão moderna, que poderia muito bem não ter acontecido, assim como apresentar uma lista infinita de romances que não sobreviveram à sua primeira edição e que, mesmo redescobertos, não conseguem produzir nada além do que prazer arqueológico. Percebe-se na posição de Linhares, e na de boa parte dos que se dedicaram à escrita sobre o gênero no século 20 e até hoje, a dificuldade de lidar com a crônica, sobretudo quando a reduz ao campo literário entendido como aquele que se define pela transcendência como traço de literariedade, anulando, assim, qualquer tentativa de abordagem histórica do gênero. Portanto, não se trata de afirmar que a crônica não possa ser literatura ou que não possa exercer alguma espécie de função literária. O problema está relacionado à suposta correspondência entre literatura e transcendência segundo a qual será literatura
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todo texto que extrapole o seu tempo, produzindo, em termos da recepção, um eterno efeito de contemporaneidade, mesmo que não fale do presente do leitor. Reconhecer a procedência jornalística da crônica é assumir a perspectiva a partir do qual me parece ser possível estabelecer o seu lugar e escrever a sua história como gênero. Referências
CASTELLO, José Aderaldo. A literatura brasileira: origens e unidade (1500-1960). São Paulo: EDUSP, 1999. COUTINHO, Afrânio. Ensaio e crônica. In: A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: EDUFF, 1986. v. 6. LINHARES, Temístocles. Alguns cronistas. O Estado de São Paulo, São Paulo, 7 mar. 1964. Suplemento Literário, p. 4. OTAVIANO, Francisco. Introdução. Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 9 jul. 1854. Páginas menores, p. 1. MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 1985. SODRÉ, Nélson Werneck. Última Hora, Rio de Janeiro, 14 dez. 1956. Tabloide, p. 7.
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PIBID LETRAS-PORTUGUÊS – UMA PROPOSTA DE AÇÃO PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO A PARTIR DA BIBLIOTECA ESCOLAR Margarida da Silveira Corsi1 Introdução O Subprojeto PIBID Letras-Português – 2014/2017 da Universidade Estadual de Maringá propõe ações que estabeleçam um diálogo contínuo entre a universidade e a escola pública, a partir do qual o estudante de Letras possa ter uma formação reflexiva da carreira docente, construindo estratégias e propostas didáticas que despertem o gosto pela leitura do texto literário no estudante dos últimos anos de Ensino Fundamental (doravante EF). Este subprojeto está dividido em oito grupos de licenciandos, cada grupo sendo supervisionado por um professor do ensino básico da escola pública, pertencentes a quatro escolas públicas de Maringá. Coordenados por três professoras da UEM – uma pertencente ao Departamento de Letras Modernas e duas ao Departamento de Língua Portuguesa – os grupos propõem ações nas áreas de Língua Portuguesa (doravante LP) e Literatura, divididas entre as séries finais do EF (6º ao 9º anos) e as séries do Ensino Médio (doravante EM). Neste primeiro ano da aplicação do projeto, cinco grupos estão vinculados a três escolas pertencentes ao projeto destinado a ações específicas de letramento literário para o 6º ano do ensino fundamental e três grupos vinculados a três escolas com ações concernentes à produção textual no nível do EM. Objetivando a iniciação à docência, as ações comuns a todas as séries e previstas para os quatro anos de desenvolvimento deste subprojeto contemplam: a) diagnóstico do contexto educacional das escolas participantes; b) seleção de textos de gêneros discursivos de esferas diversas e multimodais; c) participação em cursos de extensão
Coordenadora do subprojeto Pibid- Letras/Português da Universidade Estadual de Maringá. Bolsista da Capes.
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e/ou minicursos ofertados pelos professores formadores do Curso de Letras (UEM) e/ou de outras áreas afins; d) auxílio aos professores das escolas na organização e/ou participação em eventos escolares decorrentes de projetos regionais e municipais enviados pela Secretaria Estadual de Educação; e) participação mensal em grupo de estudo, cujo objetivo é refletir acerca das ações do subprojeto; f) produção, por parte dos bolsistas de iniciação docente, de resumos, resenhas, fichas de citação e artigos científicos, que descrevem a teoria e a prática da docência relativas aos objetivos do subprojeto; g) participação em eventos científicos, objetivando a divulgação e a reflexão dos resultados das ações relativas ao subprojeto; h) participação mensal em sessões reflexivas; i) produção de diários reflexivos; j) acompanhamento do professor na rotina de sala de aula, nos anos finais do ensino fundamental; l) elaboração de projetos didáticos sobre leitura, letramento literário, escrita e análise linguística para os anos finais do Ensino Fundamental; m) produção de material didático que possa servir como apoio para as oficinas a serem realizadas; n) organização de exposições culturais em parceria com os professores supervisores; o) elaboração e desenvolvimento de oficinas e/ou cursos de extensão para professores da Rede pública de ensino; p) manutenção do blog http://pibidletrasuem.blogspot.com.br/ - PIBID Letras. As ações específicas de Literatura que visam à leitura, ao letramento literário, à análise linguística e à escrita, estão embasadas no pressuposto de que ler é “inscrever-se na experiência do real e reconstruir-se como cidadão” e que leitura é “um ato interativo e de compreensão de mundo” (MICHELETTI, 2000, p.17), sendo letramento literário baseado no processo de construção literária de sentidos. Estas ações têm os seguintes objetivos específicos: a) avaliação das condições de abordagem do texto literário na escola; b) leitura de textos teóricos relativos ao letramento literário e à educação literária; c) investigação das preferências e dificuldades dos alunos dos anos finais do Ensino Fundamental em relação ao texto literário; d) composição de um plano de intervenção de educação literária, no qual os pibidianos produzirão os materiais didáticos juntamente com os supervisores e coordenadores do subprojeto; e) oficinas de Letramento Literário para alunos do EFII. Para a organização e desenvolvimento das ações propostas, as reuniões do grupo composto por 43 bolsistas ID, 8 supervisores e 3 coordenadores, acontecem
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semanalmente, sendo que a primeira semana do mês reserva-se à formação geral, momento em que todos os participantes discutem teorias referentes aos temas e conceitos teóricos gerais norteadores dos projetos, advindas, principalmente, da Análise Dialógica do Discurso (BAKHTIN, 2003) tais como: interação social, letramento, dialogia entre outros. A proposta desta sessão se realiza a partir da leitura prévia de um texto teórico e das inferências feitas por todos os participantes sob a coordenação de um dos membros. As duas semanas seguintes se reservam à formação específica, e, neste momento, o grupo se divide de acordo com os níveis de ensino que são foco do subprojeto, ou seja, EF e EM. Para este trabalho, priorizamos as ações realizadas com o grupo do EF. As coordenadoras deste grupo de ações acerca do letramento literário propõem discussões teórico-metodológicas sobre leitura e letramento literário. Esta sessão também parte de uma leitura prévia para a realização de discussões sobre o tema proposto e a apresentação da interpretação do texto abordado. Nesses momentos, prevêse ainda a produção de análise de textos literários e de sua proposta de abordagem para o letramento literário. A quarta semana do mês está reservada para as sessões reflexivas, quando os integrantes do grupo se reúnem novamente e apresentam observações e resultados das ações realizadas durante o mês. Neste momento de reflexão, podemos avaliar os trabalhos realizados, as intervenções feitas nas escolas e o crescimento de cada participante do projeto. Promovendo ações para o Letramento Literário através da BE As quinze ações comuns aos dois grupos do projeto visam contribuir para o desenvolvimento teórico-metodológico do licenciando de Letras e para o intercâmbio entre a universidade e a escola pública. Sendo assim, os cinco grupos destinados ao trabalho com o letramento literário realizam as ações gerais vertendo seus olhares ao tema proposto para esta primeira fase da realização do subprojeto, tendo em vista as possíveis ações acerca de letramento literário e o objetivo de despertar o prazer da leitura nos educandos.
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Nessa perspectiva, uma das primeiras ações realizada foi o diagnóstico do contexto educacional das escolas participantes, que objetivou inserir os licenciandos no cotidiano escolar da rede pública de educação, bem como na cultura escolar do magistério. Esse momento se deu, primeiramente, a partir da observação dos espaços escolares, da participação em reuniões pedagógicas; de encontros com professores, coordenadores e prestadores de serviço. Esta ação leva os licenciandos a incorporaremse ao cotidiano da escola básica, sentindo-se parte integrante desta e descobrindo suas especificidades e idiossincrasias. Concomitante a sua integração no espaço escolar, os pibidianos realizaram a leitura e a análise crítica do Projeto Político Pedagógico (doravante PPP), no que se refere ao trabalho da leitura e do texto literário. A realização desta etapa investigativa realizou também a análise do questionário respondido pelos bibliotecários da biblioteca escolar (doravante BE), contendo questões sobre a formação do(a) bibliotecário(a) da escola, sobre o acervo, o funcionamento e as atividades que envolvam leitura e letramento literário. Além desse se considerou a observação atenta do espaço, assim como a disposição das obras nas estantes e o andamento das ações feitas nos momentos de observação. A partir desta análise, os pibidianos puderam perceber as dificuldades encontradas pelos professores, alunos e bibliotecários com relação ao espaço e ao acervo das bibliotecas, tendo um panorama dos problemas relacionados ao uso desta, assim como das possibilidades de integração do educando com a BE. De modo geral, as descrições e reflexões feitas após o trabalho de observação demonstram que, salvo em casos específicos e peculiares, muitas vezes, o espaço é inadequado, servindo mais como depósito de livros e descumprindo a função dinâmica que poderia exercer na escola e na vida do educando. Concomitante a essa ação, ocorreu a seleção de textos de gêneros discursivos de esferas diversas que serve para construção de um banco de dados de textos e de modelos didáticos que ficará à disposição da escola para pesquisas, elaboração de projetos, aulas etc. Com o objetivo de construir coletivamente um aparato didático sobre o letramento literário para colocá-lo à disposição dos professores do ensino básico, os licenciandos investigaram os títulos e autores adequados à faixa etária dos alunos das turmas de sextos anos existentes nas bibliotecas das escolas e trocaram informações e experiências acerca de obras com temas e gêneros que podem ser trabalhados com as séries finais do
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EF. Acerca desse aspecto, relataram que algumas escolas possuem um acervo vasto em títulos, mas de quantidade insuficiente para o trabalho conjunto em sala de aula. Em outros, a quantidade de títulos é pequena, mas há alguns títulos em número suficiente para o trabalho com a turma. Outro aspecto relatado que preocupou os pibidianos diz respeito à disposição do acervo, que, em alguns casos específicos, não distingue as obras por faixa etária e/ou gêneros, dificultando o acesso dos leitores. Observação também pertinente foi a de que algumas escolas não possuem sala de leitura, nem um espaço na biblioteca que seja ambientado para a leitura e/ou contação de histórias. Buscando amenizar os problemas relacionados à estrutura e organização dos espaços escolares, apresentaram as seguintes propostas de ação: dois grupos propuseram ao diretor de uma das escolas reativar uma pequena sala leitura que era usada como depósito. Esta ação se inicia com a retirada dos materiais e limpeza do local. Na sequência, os licenciandos propõem realizar a ambientação do local através da coleta e seleção de materiais/livros que possam servir como acervo permanente da sala. Contando com a doação de livros, móveis e materiais, pretendem ambientar o local para a leitura e/ou exposição de trabalhos realizados pelos estudantes da escola. Outra ação significativa que resultou da investigação foi a proposta de organização do acervo de uma das bibliotecas escolares, objetivando dar mais visibilidade aos livros da BE, para que os leitores tenham acesso mais rápido e independente às obras literárias. Relacionada a essas duas primeiras ações e objetivando a reflexão acerca da importância do trabalho do bibliotecário e das mudanças necessárias para que haja uma verdadeira alteração no contexto escolar básico no que tange à biblioteca e sua função, propomos a leitura e discussão do texto “O caminho dos livros: da biblioteca à comunidade” (AGUIAR, 2006), associado ao vídeo The fantastic flying books of Mr. Morris Lessmore2. Nesse momento, os pibidianos puderam interagir com os textos, refletindo sobre as observações feitas no contexto escolar e as imagens e/ou ideias propostas nos enunciados trabalhados. O resultado imediato dessa ação foi a sugestão de trabalhos de integração da biblioteca com a sala de aula, através da proposta de
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Vídeo acessado no endereço a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=Ad3CMri3hOs
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contação de histórias com tapetes, fantoches, ambientação e dramatização. Além disso, a análise dos relatórios produzidos demonstra uma alteração na visão do licenciando acerca do espaço da BE na escola básica. É o qeu podemos averiguar no trecho que segue: O texto “O caminho dos livros: da biblioteca à comunidade”, de Vera Teixeira de Aguiar, foi discutido na UEM no dia 23 de maio. Nessa discussão, verificamos o verdadeiro papel da biblioteca, local de descoberta e que deve estar à disposição de todos. O bibliotecário, segundo Aguiar, deve ser alguém que incentive a leitura e que busque cativar o maior número possível de pessoas para encontros literários. (relatório semestral 1/2014, do grupo2, do PIBID Letras-Português)
Neste momento, inferimos que a leitura do texto que versa sobre a necessidade de transformar a postura do bibliotecário e a função da biblioteca levou os leitorespibidianos a refletirem sobre ações que poderiam resultar no encontro do leitor juvenil, estudante da escola básica, com a leitura e a biblioteca da escola. É o que pode constatar também com as propostas de ação para a melhor integração da biblioteca com os integrantes da comunidade escolar. Outra ação de importância fundamental para a formação dos licenciandos é a participação mensal em sessões reflexivas, objetivando levar o pibidiano e o professor a repensar, de forma geral, os significados das ações vivenciadas em todas as etapas diferenciadas do desenvolvimento do subprojeto em questão. Liberalli (1997) explica que, por meio dessas sessões, é possível ressignificar os fatos, de modo que a reflexão pressupõe a transformação de uma situação anterior (não desejável em algum aspecto). Isso significa, segundo a autora, tornar visíveis as relações ideológicas que sustentam aquela situação, para que as ações que ali ocorrem sejam devidamente compreendidas e, quando necessário, modificadas. Em alguns casos, isso implica, também, em tornar explícito (para posteriormente ser modificado) o habitus (cf. BOURDIEU, 1990), isto é, o sistema de disposições, de representações e de ações adquiridas ao longo do tempo que podem fazer com que os indivíduos se comportem de uma determinada maneira em determinadas circunstâncias.
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Na visão de Bakthin/Voloshinov (2003), essas representações ancoram-se em dois grandes grupos: na ideologia do cotidiano (isto é, toda atividade mental centrada na vida cotidiana e nas formas de expressão a ela relacionadas) e nos sistemas ideológicos (fixados na moral social, na arte, na ciência e na própria educação) historicamente cristalizados. Esses dois movimentos têm um caráter eminentemente dialógico, ou seja, ambos influenciam as ações dos sujeitos e são ao mesmo tempo influenciados entre si. Por essas razões, as sessões reflexivas são essenciais para o desenvolvimento crítico do pibidiano e ocorrem com encontros mensais, contando com a participação de todos os agentes envolvidos neste subprojeto (professores supervisores, coordenadoras e pibidianos), em um momento de autoavaliação, para, a partir dessa reflexão, ressignificarem concepções e práticas pedagógicas. Momentos que concretizaram, principalmente, a troca de aprendizado entre os agentes do subprojeto. Professores da rede, pibidianos e coordenadoras, numa interação mútua, trocaram sugestões de ações e afirmaram ter repensado algumas atitudes e posturas relativas ao ensino-aprendizagem de literatura na escola básica. Um exemplo de retomada de consciência ou de alteração de ponto de vista acerca do ambiente escolar foi a inferência feita por uma supervisora: “A minha imersão no contexto me impedia de ver com clareza problemas estruturais como a localização da biblioteca da escola. Foram as inquietações dos pibidianos que me levaram a perceber que a distância desta das salas de aula pode dificultar a integração do educando com ações feitas na biblioteca”. De modo semelhante, a produção de diários reflexivos também oportuniza aos pibidianos momentos de reflexão sobre sua própria formação, incutindo-lhes essa prática como gesto constituinte do processo formador de todo docente, o que vem contribuir para a articulação entre teoria e prática necessárias à formação docente. Para a execução dessa ação, propomos que cada pibidiano faça diariamente uma descrição das reflexões acerca das ações executadas nas escolas e durante encontros. Esses diários podem ser usados pelos licenciandos para avaliarem seu crescimento/ aperfeiçoamento metodológico, além de demostrarem o desejo de empreenderem ações que aprimorem as metodologias de ensino. É o que se percebe a seguir no excerto do diário reflexivo 1/2014, do grupo3, do PIBID Letras/Português acerca das ações deste subprojeto:
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“sentimos a necessidade de nos aproximarmos mais do contexto escolar, pois conhecendo as dificuldades em relação à frequência dos alunos na biblioteca será possível contrastar com o PPP e dar início a propostas que possam amenizar os problemas”. Outra contribuição para que o professorando amplie sua visão sobre o processo de ensino-aprendizagem, valorizando outros espaços, não somente o da sala de aula, como espaços formativos é a organização de exposições culturais em parceria com os professores da escola básica. Para o final deste ano planejamos realizar, em cada escola participante, uma Exposição Literária e/ou Temática. Há ainda as semanas culturais previstas no cronograma das escolas participantes do projeto, nas quais os pibibianos apresentarão resultados de pesquisas feitas no interior do subprojeto PIBID. Esta ação prevê ainda a integração da biblioteca com a sala de aula, contemplando ações como a contação de histórias utilizando tapetes e jogos didáticos na BE. Descrição das ações basilares para a oficina de letramento literário Dentre as ações específicas para a leitura e letramento literário, a avaliação das condições de abordagem do texto literário na escola propõe a observação de aulas de Língua Portuguesa, a pesquisa junto a coordenadores, diretores, professores acerca das atividades que privilegiem o texto literário em sala de aula, do material didático usado em aulas que abordem o texto literário e da proposta pedagógica da escola para o EF. Além da leitura do Projeto Político Pedagógico da sua escola, da observação de aulas de literatura e do material utilizado pelos docentes, os pibidianos participaram de reuniões pedagógicas e buscaram se integrar ao contexto escolar em suas práticas pedagógicas cotidianas, podendo assim conhecer seus mecanismos de funcionamento. Um processo que se realiza com a co-participação da Escola Básica na formação docente. Visando-se subsidiar as ações docentes e a organização dos planos de aula a serem efetuados nas escolas, realizamos ainda o estudo das diretrizes educacionais nacionais e regionais para o ensino de literatura e solicitamos a leitura de textos teóricos relativos ao letramento literário, à educação literária. O objetivo é promover a formação teórico-metodológica dos bolsistas envolvidos no subprojeto sobre leitura e letramento
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literário, que, se realiza nesta primeira etapa, a partir da leitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais do EF (1998) e das propostas de ação para o letramento literário de Rildo Cosson (2012) e Guaraciaba Micheletti (2000). A leitura foi feita de forma gradativa, dando-se prioridade aos aspectos propostos sobre leitura, análise e interpretação do texto literário. Concomitantemente, realizamos a investigação das preferências e dificuldades dos alunos do EF em relação ao texto literário, a qual se concretizou por meio de aplicação de um questionário para os alunos das turmas de sextos anos, com questões que interpelam os educandos acerca de suas preferências e hábitos relacionados à leitura; dos hábitos de leitura na família; e de sua relação com a biblioteca. Essa ação que corrobora para um olhar mais atento sobre as particularidades do letramento literário nesta etapa escolar e para a escolha dos textos literários a serem utilizados na composição do material didático contribuiu para compor um panorama dos hábitos de leitura juvenil. O resultado do questionário, por exemplo, mostrou que uma grande parcela dos leitores juvenis tem o hábito quase cotidiano de leitura e que suas preferências levam-nos a escolher gêneros de tipo narrativo, como histórias de aventura, suspense, mas que muitos deles também leem obras líricas, em verso e que há uma preferência por realizar atividades que explorem suas habilidades dramáticas. A composição do plano de intervenção de educação literária foi iniciada nas sessões reflexivas e nas discussões acerca de leitura e letramento literário, nas quais propomos a elaboração do estabelecimento da metodologia e dos planos de aula que os alunos bolsistas efetuarão em Oficinas de Educação Literária. Essa ação que estimula os professorandos a produzirem seus próprios recursos didáticos, compartilhando-os com os demais professores das escolas partiu da leitura dos capítulos “O processo de leitura” e “Sequência básica”, do livro: Letramento literário: teoria e prática, de Rildo Cosson (2012), que propõem, respectivamente, as etapas da leitura empreendidas pelo leitor: antecipação, decifração, interpretação; e as ações da sequência básica para abordagem do enunciado literário, contemplando os passos a seguir: motivação, introdução, leitura e interpretação. Após a leitura, fichamento, resumo e discussão dos capítulos estudados,
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os pibidianos apresentaram algumas propostas possíveis para a abordagem do texto literário em sala de aula de Língua portuguesa. Assim, os pibidianos, embasados nas leituras realizadas previamente e nas observações e discussões feitas, propõem ações de abordagem do texto que estejam relacionadas ao uso da biblioteca e de outros contextos da escola, além da sala de aula. Essa ação, que se realiza com a co-participação de supervisores, licenciandos e coordenadores, propõe que as aulas de leitura e letramento literário se iniciem com dinâmicas de grupo, nas quais os alunos dos 6º anos sejam envolvidos pelo prazer da leitura, tais como: contação de histórias com tapetes e fantoches, dramatizações, jograis, jogos didáticos, dentre outras. A partir dessas iniciativas, o professorando dá os primeiros passos para a composição do material didático a ser utilizado nas oficinas, com o desenvolvimento de propostas de ensino de textos literários de forma motivadora. Um exemplo de sequência básica proposto por um dos grupos é o que segue: Motivação: Tendo em vista que o papel do professor, nesse processo, é interferir de modo a contribuir para o desenvolvimento do letramento literário, propomos como modelo didático para fase da motivação uma “Caça ao Tesouro”, com os seguintes passos: 1)selecionar entre as obras disponíveis na biblioteca, livros para todos os alunos dos sextos anos; 2) destacar trechos das obras (como parte do conflito), a fim de despertar o interesse dos alunos pela leitura das obras; 3) escrever esses trechos em catões, que serão distribuídos nas carteiras para que os alunos, em fila, possam circular pela sala e fazer a leitura e escolha dos trechos, que mais lhes interessarem; 4) levar os alunos a biblioteca para encontrarem, entre os livros destinados aos alunos do ensino fundamental, a obra escolhida, tendo como pista o trecho selecionado. Introdução: propomos para essa fase atividades que permitam a investigação acerca do autor e da obra, os quais poderão contribuir para o direcionamento da leitura, que envolvam a exploração dos órgãos dos sentidos: capa: ilustração, cores, letras (visão), o número de páginas, a textura do papel (tato), o cheiro do livro – novo, antigo – (olfato). Leitura: conscientes da importância de o professor acompanhar os passos de leitura empreendidos pelos alunos, auxiliando em suas dificuldades e interferindo quando necessário, para que o objetivo da leitura seja alcançado, sugerimos que professor se coloque à
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disposição do aluno para responder seus questionamentos durante a leitura em sala de aula. Interpretação: Propomos três passos: 1) a elaboração de um diário de leitura, em que o aluno possa registrar suas impressões a respeito da obra; 2) a composição de capas de livros (elaborar um comando de produção), com desenhos feitos pelos alunos, a partir da interpretação da obra, indicando-a a um possível leitor, para isso, é necessário levantar argumentos que convençam o possível interlocutor; 3) organizar uma roda para a socialização e apresentação da produção da capa e dos argumentos, a fim de incentivar os outros colegas a lerem a obra.
As oficinas de letramento literário produzidas durante os encontros semanais do projeto no decorrer do ano de 2014, para alunos do EF, específicas para a educação literária, privilegiam aulas de leitura do texto literário, sendo organizadas juntamente com as coordenadoras de área do subprojeto e as supervisoras das escolas, aplicadas pelos pibidianos, em momentos específicos e definidos pelos integrantes do projeto e de acordo com as possibilidades oferecidas pela escola e pelos docentes das turmas de 6ºanos. Tais oficinas objetivam inserir na escola formas de leitura que levem à interação efetiva entre leitores e textos, a fim de formar leitores literários. Resultados parciais A partir das ações realizadas até o momento, podemos inferir que o projeto constitui uma forma de intercâmbio entre a Universidade e a escola básica, concretizando a troca de saberes e o desenvolvimento teórico-metodológico de licenciandos e professores. Possibilita ainda a integração do licenciando com as peculiaridades da escola e do ensino básico, contribuindo para sua formação docente e levando-o a empreender ações conjuntas com os integrantes da escola pública de base no intuito de melhorar a estrutura física e educacional desta. Proporciona ainda a conscientização de que é possível se reconfigurar como docente a partir de reflexões e da auto-avaliação, empreendendo ações inovadoras na concretização do letramento literário e no despertar do gosto pela leitura literária em contexto educacional.
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É possível averiguar também que, através do conhecimento teóricometodológico, da conscientização das necessidades da escola de base e do educando, pode-se empreender ações concretas que possibilitem um novo horizonte de expectativas para o trabalho com o texto literário em correlação com a biblioteca escolar.
Referências AGUIAR, Vera Teixeira. O caminho dos livros: da biblioteca à comunidade. In: AGUIAR, Vera Teixeira; MARTHA, Alice Aurea Penteado. (Orgs.).Territórios da leitura: da literatura aos leitores. São Paulo: Cultura acadêmica; Assis, SP: ANEP, 2006. p. 255-267. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch; VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. 6 ed. São Paulo: Hucitec, 2003. BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa: terceiro e quarto ciclos. Brasília, DF: MEC/SEF, 1998. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2012. LIBERALI, Fernanda Coelho. O desenvolvimento reflexivo do professor. The Especialist. São Paulo, vol.17, n.1, 1997, p.19-37. MICHELETTI, Guaraciaba et al.. Leitura e construção do real: o lugar da poesia e da ficção. São Paulo: Cortez, 2000.
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FELICIDADE E COLHEITA: O ESPAÇO COMO REVELADOR DA IDENTIDADE FEMININATÍTULO EM NEGRITO E CENTRALIZADO Maria Alice Sabaini de Souza (UNIR) Recentemente, o estudo da ficção produzida por mulheres, ou mais especificamente, da literatura de autoria feminina, se revelou como um campo bastante fecundo para os teóricos e pesquisadores. No Brasil, as mulheres começam a se dedicar a escreverem estórias ficcionais somente a partir da metade do século XX, pois foi nesse período que elas tiveram acesso a escola, a escrita, a leitura e a educação. Ao se tornarem escritoras, tais mulheres ultrapassaram o espaço que lhes era reservado, ou seja, as quatro paredes da casa e se tornaram membros do espaço público destinado somente para os homens, na medida em que a leitura de sua obras lhes davam voz e as levavam a lugares onde somente os homens poderiam estar. Esta pesquisa procura promover uma contribuição aos estudos de texto de autoria feminina, por meio do estudo comparativo de contos de duas escritoras que se dedicaram à tarefa de produzir textos de ficção em língua portuguesa e em língua inglesa. A primeira delas é Katherine Manfield, uma autora nascida na Nova Zelândia, cuja obra literária, predominantemente contística, a consagrou como uma escritora preocupada com a condição da mulher que se submete a seu papel doméstico e de submissão ao marido. No entanto, por meio da sutileza de sua escrita, do uso de imagens e monólogos interiores, através dos quais suas personagens femininas ganham vozes, ela consegue desnudar a alma das mesmas e mostrar sua indignação perante a sociedade patriarcal. A segunda é Nélida Piñon, uma consagrada escritora brasileira, cuja obra literária é mais diversificada, pois se compõe além dos contos de romances que tem a condição feminina e a discriminação social da mulher como temas recorrentes em sua
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obra, retomando-os em sua composição narrativa de forma crítica e contestadora, mas não panfletária, incomodando assim o pensamento ideológico de alguns críticos que se calçam nos ideais patriarcalistas. O objetivo deste artigo é estudar a construção das personagens femininas em contos de Katherine Mansfield e Nélida Piñon. Dessa maneira, unificamos as vozes solitárias das personagens dessas duas escritoras e verificamos que elas se tornam solidárias entre si, enquanto vítimas da opressão, da miséria e do isolamento que as oprime. Para cumprir tal propósito, selecionamos os contos “Felicidade”, escrito por Mansfield e “A Colheita”, que se encontram na obra Sala de Armas, de autoria da escritora brasileira. Pressupostos teóricos: literatura comparada e literatura de autoria feminina A literatura comparada possui um vasto campo de atuação, seja pela diversidade dos objetos de análise ou pela avaliação de diferentes metodologias adotadas pelos teóricos e críticos literários. Quando um crítico literário analisa uma obra, ele compara com outra não apenas para concluir a natureza dos elementos por ele comparados, mas também para saber se são iguais ou diferentes, para elucidar e para fundamentar juízos de valor. Começa-se então uma transformação de termos usados, pois a investigação vai ser chamada de “estudo comparado” quando o crítico literário empregar a comparação como referencial para seu estudo crítico. Segundo Carvalhal (2001, p. 7): a literatura comparada compara não pelo procedimento em si, mas porque, como recurso analítico e interpretativo, a comparação possibilita a esse tipo de estudo literário uma exploração adequada de seus campos de trabalho e o alcance dos objetivos a que se propõe.
A autora da citação sugere um entendimento da trajetória dos estudos comparados para que se possa compreender como a literatura comparada foi difundida até os dias de hoje. Definir a Literatura Comparada é uma tarefa árdua que, na verdade, não leva ao surgimento de conclusões que facilitem compreendê-la. Fundamentar sua metodologia, seus objetivos e seu objeto de estudo, enfim, o campo da disciplina Literatura Comparada cria inúmeras divergências, uma vez que não há uma unanimidade entre os
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estudiosos do comparativismo. A dificuldade de definir seus fundamentos dá-se, também, pelo fato de que esta disciplina não é imutável; ela muda, constantemente, tanto no tempo quanto no espaço, o que corrobora sua tendência de se ajustar aos métodos críticos literários que entram em cena no século XX. Os precursores dos estudos da literatura comparada são os europeus, mais especificamente os franceses. Paul Van Tieghem foi o precursor da “escola francesa”, cuja metodologia baseia-se em três elementos: o emissor (ponto de partida da passagem de influência), o receptor (ponto de chegada) e o transmissor (intermediário entre o emissor e o receptor). Essa tendência mostrou-se muito contextualista, uma vez que sua preocupação primordial não é a estrutura interna do texto, e sim o contexto que o envolve. A partir da década de 1960, estudiosos do Leste Europeu ganharam voz e passaram a propagar suas ideias acerca da Literatura Comparada. Surge então Victor M. Zhirmunsky, que passou a considerar fatos literários independentemente de sua gênese e de seu contexto histórico, encarando a literatura a partir de um sistema de analogias tipológicas, ou importações culturais, que nada mais eram que outra forma de designar influência. No Brasil, Tasso da Silveira seguiu as proposições de Van Tieghem e para ele: “em literatura comparada procedem-se a comparações de caráter especial e com finalidade positiva” (TIEGHEM, 1931 apud CARVALHAL, 2001, p. 20). Tânia Carvalhal (2001, p. 27) ainda acrescenta que “se tivermos de escrever a história do comparativismo no Brasil, teremos de recorrer aos estudos pontuais, dispersos em jornais e livros de crítica literária, pois aí estão, sem dúvida, as mais criativas contribuições”. Tânia Carvalhal questiona em seu livro se René Wellek tinha razão quando criticava o comparativismo, admitindo que em alguns aspectos era necessária uma reformulação da disciplina, como num trecho em que ela destaca os alertas de Wellek que constituem um sinal vermelho ao comparativismo tradicional e podem ser considerados como uma das contribuições mais significativas para que ele seja repensado e reformulado. Segundo Carvalhal (2001, p. 39), a literatura comparada, sendo uma atividade crítica, não necessita excluir o histórico, mas ao lidar amplamente com dados literários e
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extraliterários ela fornece à crítica literária, à historiografia literária e à teoria literária uma base fundamental. Todas essas disciplinas concorrem em conjunto para o estudo do literário, resguardada a especificidade de cada uma. Devem conviver sem se confundirem. No entanto, isso não lhe tira o mérito dos alertas [de Wellek] e da saudável revitalização que estimulou sobre o comparativismo literário [...].
Após a crise comparativista causada pelas indagações de René Wellek e que levou muitos outros autores a refutarem ou concordarem com essa teoria, baseada numa discussão complexa de literatura comparada e crítica literária, surge um novo modelo metodológico chamado de inovador por Dionys Durisin, visto que esse novo modelo se opõe às propostas tradicionais. Para Rodrigues (2011, p.21) “a literatura comparada não só admite, mas comprova que a literatura se produz num constante diálogo de textos, por retomadas, empréstimos e trocas”. A literatura nasce da literatura; cada obra nova é uma continuação, por consentimento ou contestação, das obras anteriores, dos gêneros e temas já existentes. Escrever é, portanto, dialogar com a literatura anterior e com a contemporânea. Após um breve panorama acerca da literatura comparada, passaremos as considerações acerca da literatura de autoria feminina que segundo Zolin (2009), surgiu em 1970 com o movimento feminista e a ele se liga o que se convencionou chamar de crítica feminista, a qual tem assumido o papel de questionar a prática acadêmica patriarcal. Essa vertente da crítica literária possibilitou a constatação de que a experiência da mulher como leitora e escritora é diferente da masculina e tal fato implicou em significativas mudanças no campo intelectual, marcadas pela quebra de paradigmas e pela descoberta de novos horizontes de expectativas relacionados ao universo feminino e suas produções literárias. Tais textos estão marcados pela diferença de gênero, num processo de desnudamento que visa despertar o senso crítico e promover mudanças de mentalidades e ainda divulgar posturas críticas por parte dos escritores e escritoras em relação às convenções sociais que, historicamente, têm aprisionado a mulher e tolhido seus movimentos. Isto pode ser comprovado se tomarmos como exemplos os sofrimentos e as lutas das mulheres, principalmente no século XIX e início do XX.
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Vale destacar que o feminismo organizado só entrou no cenário da política pública nos Estados Unidos e na Inglaterra por volta da segunda metade do século XIX, por meio das petições que reivindicavam o sufrágio feminino e das campanhas pela igualdade legislativa (ZOLIN, 2009, p. 220). Assim, mediante as reivindicações, as mulheres procuravam assegurar seus direitos e tentavam livrar-se da opressão e do jugo masculino, além de dar início à primeira onda do feminismo, a qual apresentou como consequência o fato de que [... ] muitas mulheres tornaram-se escritoras, profissão, até então, eminentemente masculina; mesmo que para isso tenham tido que se valer de pseudônimos para escapar às prováveis retaliações a seus romances, motivadas por esse „detalhe‟ referente à autoria. É o caso, por exemplo, de George Eliot, pseudônimo da inglesa Mary Ann Evans, autora de The mill on the floss e de Middlemarch; de George Sand, pseudônimo da francesa Amandine Aurore Lucile Dupin, autora de Valentine. Outras escritoras conseguiram impor seus nomes, não sem muito esforço, no sério mundo dos homens letrados. Caso da inglesa Charlote Bronte, autora de Shirley e Jane Eyre. No Brasil, diversas foram as vozes femininas que romperam o silêncio e publicaram textos de alto valor literário, denunciadores da opressão da mulher, embora a crítica não os tenha reconhecido na época. O primeiro romance brasileiro de autoria feminina de que se tem notícia, Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, foi seguido de muitos outros, [...]. (ZOLIN, 2009, p. 221).
Pode-se notar que o caminho percorrido pelas mulheres escritoras foi bastante árduo, obrigando-as a utilizarem pseudônimos masculinos para serem aceitas no estreito círculo literário dominado pelos homens. Muitas mulheres conseguiram também se afirmar como escritoras, como é o caso das irmãs Charlote Bronte (1816-1855), Emily Bronte (1818-1848) e, também de Virginia Woolf (1882-1941). Verifica-se um embate entre a mulher que quer aventurar-se no mundo da literatura, dedicando-se à atividade da crítica literária e a mulher que se mantém presa no universo doméstico, aceitando as imposições da tradição da Era Vitoriana e do mundo dominado pela ótica masculina: A sombra de suas asas caiu sobre a página; eu ouvi no quarto o roçar de suas saias. Na mesma hora, isto é, quando peguei a caneta em minha mão para resenhar aquele romance do homem famoso, ela deslizou por trás de mim e sussurrou: „Minha querida, você é uma moça. Você está escrevendo sobre um livro que foi escrito por um homem. Seja complacente, seja terna, adule, iluda, use todas as artes e truques de seu sexo. Nunca deixe ninguém supor que você tem uma vontade própria. Antes de tudo, seja pura‟. E ela como que guiava minha caneta. Eu agora me recordo de um ato de que tomo algum crédito a mim mesma, embora o crédito seja propriamente de alguns de meus ancestrais que me deixaram uma certa quantia de dinheiro - digamos 500 libras por ano? - portanto não foi necessário depender apenas de encanto
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para minha subsistência. Eu me voltei contra ela e agarrei-a pelo pescoço. Fiz o possível para matá-la. Minha alegação, se fosse levada a julgamento, seria a de que agi em legítima defesa. Se eu não a tivesse matado, ela teria me matado. Ela teria arrancado o coração do meu texto. Porque, como percebi no momento que coloquei a caneta no papel, você não pode resenhar sequer um romance sem ter uma opinião sua, sem expressar o que você acha ser verdadeiros nas relações humanas, na moral, no sexo. E todas essas questões, de acordo com o Anjo Casa, não podem ser tocadas livre e abertamente por mulheres; ela devem encantar, elas devem conciliar, elas devem - para ser direta - mentir, se for preciso para que se saiam bem.. (WOOLF, 1997, p.
44-45).
O sintagma “Anjo da Casa” serve para conotar as atitudes e ações esperadas da mulher que se dedica ao espaço doméstico, cuida dos filhos, é abnegada e nunca se opõe ao status quo masculino. Os adjetivos que qualificam essa mulher - complacente, terna, aduladora, mentirosa (para não desagradar aos homens) - desvelam a aceitação de uma situação de opressão e manutenção dessa situação. Por outro lado, a mulher, para que possa adentrar no universo masculino da crítica literária e da escritura de romances, deve livrar-se desse estereótipo forjado durante séculos de dominação masculina e, como bem salienta Virginia Wolf ao final do trecho transcrito, as mulheres que quisessem se dedicar à escrita e à crítica literária teriam que “matar” o anjo submisso que se encontrava dentro de cada uma delas e impor a sua vontade, para se fazer respeitar e também tornar-se um ser humano com as mesmas prerrogativas e direitos concedidos aos homens. Enfim, em vista do exposto, “é preciso que as mulheres saltem [...] uma série de obstáculos, ignorando o olhar de reprovação que emana dos bispos e deões, dos doutores e lentes, dos patriarcas e pedagogos [...]” (ZOLIN, 2009, p. 223). E assim procederam as mulheres, as quais conseguiram conquistar espaço em todas as áreas do conhecimento e em todos os campos onde a supremacia do sexo masculino era a regra e foram mais longe ainda, destacando-se e, em muitos casos, ultrapassando os homens em qualquer tarefa ou atividade a que se dedicassem. Felicidade e A Colheita: a condição da mulher representada pelo espaço. O primeiro foi escrito por Katherine Mansfield, uma contista neozelandesa, em 1918 e narra a história de Bertha Young que, inicialmente sente-se extremamente feliz pela família que tem, pela casa em que mora, por ter amigos e uma vida confortável e aparentemente perfeita com seu marido. Contudo, ao longo da narrativa o êxtase de Bertha se desfaz, pois ao dar um jantar para seus amigos ela descobre que sua vida não
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era como ela imaginava. Já o segundo conto publicado em 1973 e de autoria de Nélida Piñon, uma escritora brasileira, descreve a mudança comportamental de uma mulher que, apesar de sonhar que viveria para sempre junto de seu marido, se vê sozinha quando esse decide ir viajar sem dia marcado para sua volta. Inicialmente, a esposa decide conservar tudo como ele havia deixado e perde a vontade de arrumar a casa e de sair, com o passar do tempo e com o marido tardando a voltar, ela decide quebrar o retrato dele e voltar a viver, ainda que sem sair de casa. Fazendo parte do segundo momento da ficção mansfieldiana, «Bliss» constituise como um dos contos mais aclamados pela fortuna crítica de Katherine Mansfield pela abordagem de temas que sugerem, especificamente, a problematização em torno do espaço do corpo feminino dentro da cultura patriarcal ocidental. O conto narra a “descoberta” da sexualidade da protagonista, Bertha, que a vivencia enquanto um sentimento novo e incontrolável: Although Bertha Young was thirty she still had moments like this when she wanted to run instead of walk, to take dancing steps on and off the pavement, to bowl a hoop, to throw something up in the air and catch it again, or to stand still and laugh at - nothing - at nothing, simply. What can you do if you are thirty and, turning the corner of your own street, you are overcome, suddenly by a feeling of bliss - absolute bliss! - as though you'd suddenly swallowed a bright piece of that late afternoon sun and it burned in your bosom, sending out a little shower of sparks into every particle, into every finger and toe? ... (MANSFIELD, 2006, p.69)
Pode-se observar que, para Bertha, “bliss” corresponde a movimentos tipicamente infantis. Todavia, a constatação deste desejo de libertação somente aos trinta anos reforça a ideia de que, mesmo casada e com uma filha, o amadurecimento da protagonista está acontecendo de forma tardia na sua vida. Este fato nos é revelado em seguida, pelo questionamento que Bertha faz do uso do corpo feminino segundo a norma social: Oh, is there no way you can express it without being “drunk and disorderly”? How idiotic civilisation is! Why be given a body if you have to keep it shut up in a case like a rare, rare fiddle? (MANSFIELD, 2006, p. 69)
O descontentamento de Bertha em relação à civilização, que, apesar de moderna, é idiota – “How idiotic civilization is!” –, revela que o corpo feminino, visualmente representado neste fragmento pela imagem “rare fiddle”, é entendido pela sociedade como um instrumento mudo e intocado. A alusão a esta metáfora, reforçada
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anteriormente pelos “momentos infantis”, reflete, portanto, a ausência de uma apropriada experiência pessoal por parte da protagonista, tema bastante recorrente no conto, na medida em que a relação do espaço do corpo feminino dentro do patriarcado implica, de forma geral, a alienação de Bertha do processo de desenvolvimento de sua sexualidade. Este fato é salientado, sobretudo, a partir da visão subjetiva de Bertha em contraste com a realidade, relação acentuada especificamente a partir do espaço psicológico. É neste, por sua vez, que Mansfield ressalta a condição do espaço do discurso feminino enquanto um território silenciado pela cultura. Portanto, o paradoxo entre fantasia e realidade marca a estrutura de toda a narrativa, sendo ambas respectivamente divididas entre dois espaços: a primeira fica reservada ao espaço do psicológico de Bertha, que é, por sua vez, caracterizado como o espaço da emancipação; a segunda corresponde ao espaço físico, e também social, da casa: her coat; she could not bear the tight clasp of it another moment, and the cold air fell on her arms. But in her bosom there was still that bright glowing place – that shower of little sparks coming from it. It was almost unbearable. She hardly dared to breathe for fear of fanning it higher, and yet she breathed deeply, deeply. She hardly dared to look into the cold mirror but she did look, and it gave her back a woman, radiant, with smiling, trembling lips, with big, dark eyes and an air of listening, waiting for something... divine to happen... that she knew must happen... infallibly. (MANSFIELD, 2006, p.69-70)
Observa-se, neste fragmento, que, contrário ao sentimento de alegria e brilho que Bertha experimenta, o espaço da casa é um território escuro (dusky) e frio (chilly). Se este espaço é culturalmente feminino, ele surge aqui como uma metáfora do posicionamento social e físico da mulher dentro do patriarcado. Também de grande importância para a caracterização deste ambiente é a fria imagem do espelho (cold mirror), que reflete, em primeiro lugar, a imagem de uma mulher (a woman), sintagma importante em um enredo que trata da descoberta da sexualidade. O Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant entende que o espelho “enquanto superfície reflectora, é o suporte de um simbolismo extremamente rico na ordem do conhecimento” (Chevalier/Gheerbrant 1982: 300). Todavia, o que se percebe no conto é um contraste entre o conhecimento implicado pelo espelho e a busca de Bertha do significado de «bliss», pois a imagem “fria” (cold) refletida é, na verdade, a visão que o
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patriarcado impõe à mulher, para a qual a expressão espontânea e livre dos sentimentos e desejos é sempre negada. Logo, enquanto espaço físico, o ambiente escuro da casa é metaforicamente apresentado como o locus do inconsciente de Bertha. Em muitos momentos, sobrepõese a fantasia à realidade, sendo aquela simbolicamente marcada pelo ato de ligar e desligar as luzes: “Shall turn on the light, M´m? (…) No, thank you. I can see quite well (MANSFIELD, 2006, p.70)”; e, posteriormente: “Don´t turn up the light for a moment. It is so lovely (MANSFIELD, 2006, p.77)”. A ausência de iluminação torna-se um importante catalisador dos devaneios da personagem, revelando sugestivamente o significado em torno de sua felicidade. Conforme se percebe: Then she had finished with them and had made two pyramids of these bright round shapes, she stood away from the table to get the effect and it really was most curious. For the dark table seemed to melt into the dusky light and the glass dish and the blue bowl to float in the air. This, of course, in her present mood, was so incredibly beautiful... She began to laugh. (MANSFIELD, 2006, p. 70)
Para a teórica Judith Neaman, a inserção específica de uma mesa de frutas por Mansfield não é aleatória, pois “fruit becomes the visible apple of temptation and eating becomes the act of lust born and knowledge” (Neaman 1986: 246). Inconscientemente, ao dispor as frutas sobre a mesa, Bertha percebe que elas formam “two piramids of bright round shapes”. Aqui, a referência ao formato dos seios femininos é interpretada como um indício de que o desejo sexual de Bertha é voltado a uma mulher, neste caso, Pearl Futon, uma das convidadas para o jantar. Mansfield, progressivamente, constrói o clímax da narrativa ao oscilar entre a realidade e a fantasia. A realização do momento ansiosamente aguardado por Bertha é acentuado novamente pelo ambiente escuro da casa – “Don‟t turn up the light for a moment. It is so lovely” (MANSFIELD, 2006, p.77) –, realçado em seguida, pela observação de Pearl acerca do jardim: “Have you a garden?” said the cool, sleepy voice. This was so exquisite on her part that all Bertha could do was to obey. She crossed the room, pulled the curtains apart, and opened those long windows.“There!” she breathed. And the two women stood side by side looking at the slender, flowering tree. Although it was so still it seemed, like the flame of a candle, to stretch up, to point, to quiver in the bright air, to grow taller and taller as they gazed - almost to touch the rim of the round, silver moon. How long did they stand there? Both, as it were, caught in that circle of unearthly light, understanding each other perfectly, creatures of another world, and
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wondering what they were to do in this one with all this blissful treasure that burned in their bosoms and dropped, in silver flowers, from their hair and hands? For ever - for a moment? And did Miss Fulton murmur: “Yes. Just that.” Or did Bertha dream it? (MANSFIELD, 2006, p.77. Itálico original)
Embora Bertha afirme para si mesma que ela e Pearl dividem, após este momento, um sentimento mútuo – “Both, as it were, caught in that circle of unearthly light, understanding each other perfectly” –, tal expectativa é posta em causa pela narradora: “Yes. Just that. Or did Bertha dream it?”. Posteriormente, ao surpreender-se acerca da descoberta de seu desejo por Harry, ela se pergunta: “Was this what that feeling of bliss had been leading up to? But then, then –“(MANSFIELD, 2006, p. 79) Implicitamente, Mansfield demonstra, ao longo da narrativa, que a centralização da ignorância de Bertha é acentuada, sobretudo, pela forma da organização do espaço discursivo na cultura, uma vez que impede a autonomia e a libertação do espaço do desejo feminino. Em seu conto A colheita Piñon também faz uso do espaço para mostrar sua interferência na construção da identidade feminina, de seu discurso e de ações transgressoras ao poderio patriarcal. No entanto, diferentemente de Bertha, a personagem feminina de A colheita vivencia sua condição de sujeito longe do marido e sem sair de casa. Sendo, seu espaço de emancipação o interior de sua morada e não o exterior como no conto anterior. Feita essa consideração, passemos ao conto escrito por Nélida Piñon para observarmos de forma mais detalhada como a personagem inicialmente objetificada pela sociedade e pelo marido conquista sua condição de sujeito autônomo, invertendo os papéis estipulados pela sociedade patriarcal. A respeito desses aos papéis cristalizados como sendo femininos, Zolin escreve: figuras femininas inseridas em situações que fazem eclodir essas discussões, seja por meio dos questionamentos das próprias personagens acerca do espaço que lhes é reservado na sociedade, seja por meio de um discurso irônico que, ao retratar a mulher enredada nas relações de gênero, desperta o leitor para o absurdo de certas leis que regulam o comportamento feminino (ZOLIN, 2009, p. 259).
Tal acontecimento que pode ser observado no conto “Colheita” (1973), no qual a personagem abandona o espaço antes reservado somente aos homens, fazendo da conquista da palavra, importante aliada na imposição de seu espaço e recusa social à
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exclusão. Nesse sentido, discute questões como a submissão da mulher, ultrapassando os impasses postos a ela. Em relação a esse aspecto, observamos, então, que a transformação da figura feminina se dá por conta do espaço, ou seja, do meio em que ela está inserida, tendo a casa onde ela habitava com o marido como a maior espectadora e propulsora de tal mudança. Desde o título do conto notamos a presença de um eixo temático característico nas obras de Piñon, a vida campestre, no caso, um momento específico de uma aldeia agrícola – o ato de colher produto. No decorrer do texto, esse tema dos elementos da terra, é retomado diversas vezes para caracterizar o espaço ou ilustrar uma situação ou sentimento. Como percebemos em trechos como: “Sempre os de sua raça adotaram comportamento de potro”; “Para que ela interpretasse através daqueles recursos o quanto a consideravam disponível, sem marca de boi e as iniciais do homem em sua pele”; “... a vida homenagearia aquele amor mais pungente que búfalo, carne final da sua espécie, embora tivesse conhecido a coroa quando das planícies”. Em relação ao espaço especificamente observamos que nesse conto ele é imensamente relevante na construção de sentidos dessa narrativa literária, já que os fatos mais importantes só conseguem erguer-se a partir de uma localização que lhes dê suporte e significação, no caso, a casa da protagonista. Assim, é possível perceber destacamos a integração e a unidade de espaço com o gênero conto conforme afirma Moisés: Da mesma forma que uma única ação, por veicular conflito, sustenta a narrativa, um único espaço serve-lhe de teatro. Pode-se dizer, consequentemente, que no conto se processa a determinação do espaço [...] na medida em que os demais lugares são vazios de dramaticidade (2006, p. 44).
A importância do espaço não se limita apenas a configuração de um cenário, ou pano de fundo, mas pode também ser também entendida como uma maneira de manifestação ficcional das práticas ideológicas do contexto enfocado e dos personagens que ali vivem. Nesse caso, vale-nos a observação de Lins sobre o papel do espaço na narrativa. [...] o espaço, no romance, tem sido - ou assim pode entender-se tudo que, intencionalmente disposto, enquadra a personagem e que,inventariado, tanto pode ser absorvido como acrescentado pela personagem, sucedendo, inclusive, ser constituído por figuras humanas, então
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coisificadas ou com a sua individualidade tendendo para zero (LINS, 1976, p. 72).
Ou ainda, a valorização do ambiente no conto feita por Moisés (2006, p. 78, grifos nossos): “A ênfase dramática recai no cenário, no ambiente, de modo a transformá-lo no verdadeiro protagonista do conto. O leitor, por seu turno, experimenta um sentimento análogo ao das personagens [...]”. Em decorrência da ausência do marido, a mulher vai vivenciando sentimentos diversos, bem como novas sensações e atitudes: num primeiro momento, ela se tranca em casa em uma tentativa de preservar a vida para quando o homem voltasse. É no interior da casa que a personagem, isolada de toda a comunidade, vai recolher força e coragem, para que a sua vida sem o marido não se limite ao tempo, uma vez que ela não sabia quando o mesmo voltaria. Simbolicamente, nesse momento casa passa a ser o microcosmo da protagonista que a transpõe para um universo à parte da realidade que a cerca. Nesse sentido, podemos entender esse espaço pela afirmação de Bachelard (2000, p. 24): “Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo”. No decorrer da narrativa, casa e personagem tornam-se, de acordo com Delorezi; Aquino (2011, p.10) “cúmplices na descoberta de uma nova vida, independente do mundo do lado de fora”, pois as transformações mais significativas acontecem na casa onde vivia o casal, onde a protagonista recebe presentes, onde ela se enclausura e onde acontecem as transformações tanto dela quanto dele. Essa relação íntima que se estabelece entre a protagonista e a casa personifica a casa e lhe dá um papel essencial na narrativa, transformando-a em um objeto dinâmico como afirma Bachelard (2000, p. 62): Nessa comunhão dinâmica entre o homem e a casa, nessa rivalidade dinâmica entre casa e o universo, estamos longe de qualquer referência às simples formas geométricas. A casa vivida não é uma caixa inerte. O espaço habitado transcende o espaço geométrico
Outro ponto a ser analisado, se refere ao fato de o casal ter que dar dar satisfações aos demais moradores, dando a ideia de que faziam parte de uma comunidade: A aldeia rejeitava o proceder de quem habita terras raras. Pareciam os dois soldados de uma fronteira estrangeira, para se transitar por eles, além do cheiro da carne amorosa, exigiam eles passaporte, depoimentos
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ideológicos. Eles se preocupavam apenas com o fundo da terra, que é o nosso interior, ela também completou seu pensamento. Inspirava-lhes o sentimento de conspiração das raízes que a própria árvore, atraída pelo sol e exposta à terra, não podia alcançar, embora se soubesse nelas (PIÑON, 1973, p. 281).
Nesse fragmento há duas observações relevantes. A primeira relacionada a rejeição da entrada de estrangeiros na aldeia e a segunda pelo fato de a citação mencionar raízes, pois é de conhecimento amplo que a raiz é a estrutura responsável pela sustentação das plantas, além de auxiliar no crescimento das mesmas. Tal razão permite que usemos o termo raiz para designar origem de uma família, ou no caso, da própria aldeia. Ao abandonar a mulher por tempo indefinido e deixá-la sem amparo, o personagem masculino infringe as regras que ele deveria representar e seguir, uma vez que, por várias vezes ao longo da narrativa a aldeia é mencionada como um juiz que, não só observa, mas também julga as atitudes dos moradores da casa, que, como membros de uma sociedade, tinham que obedecer às regras impostas e representar os seus respectivos papéis convencionais de homem e mulher, assim como, viver de acordo com os valores pré-estabelecidos. Por isso o marido é considerado rebelde pela aldeia que repudia seu comportamento: Em toda a aldeia a atitude do homem representou uma rebelião a se temer. Seu nome, procuravam banir de qualquer conversa. Esforçavam-se em demolir o rosto livre e sempre que passavam pela casa da mulher faziam de conta que jamais ela pertencera a ele. Enviavam-lhe presentes, pedaços de toicinho, cestas de pera, e poesias esparsas. Para que ela interpretasse através daqueles recursos o quanto a consideravam disponível, sem marca de boi e as iniciais do homem em sua pele. A mulher raramente admitia uma presença em sua casa. Os presentes entravam pela janela da frente, sempre aberta para que o sol testemunhasse a sua própria vida, mas abandonavam a casa pela porta dos fundos, todos aparentemente intocáveis. A aldeia ia lá para inspecionar os objetos que de algum modo presenciaram a eles e não, pois dificilmente aceitavam a rigidez dos costumes. Às vezes ela se socorria de um parente, para as compras indispensáveis. Deixavam eles então os pedidos aos seus pés, e na rápida passagem pelo interior da casa procuravam a tudo investigar. De certo modo ela consentia para que vissem o homem ainda imperar nas coisas sagradas daquela casa (PIÑON, 1973, p. 281).
Em virtude da desaprovação das atitudes do homem pela aldeia, esse fragmento, constata a importância da mulher como membro da aldeia, pois os membros da aldeia se preocupam com a mulher, cujo marido fazia de tudo para ser esquecido. Tal cuidado da comunidade para com ela fica evidente pelos presentes que a mesma recebe pela janela da frente e pelos vizinhos que só saem pela porta dos fundos, a preocupação da aldeia
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para com ela se assemelha a uma preocupação por alguém da família. A aldeia por saber de tudo o que se passa com ela tenta ajudá-la a se desvincular do homem, sem, ainda, conseguir de fato. Nota-se que ambos os espaços – interno e externo – são responsáveis por determinar o estilo de vida e o comportamento das personagens e devem ser tomados como elementos determinantes da narrativa, como enfatiza Moisés: [...] a geografia do conto deve estar diretamente relacionada com o drama que lhe serve de motivo: a paisagem vale como uma espécie de projeção das personagens ou o local ideal para o conflito, carece de valor em si, está condicionada ao drama em causa; não é pano de fundo, mas lago como personagem inerte, interiorizada e possuidora de força dramática, ao menos na medida em que participa da tensão psicológica entre as personagens (2003, p. 108, grifos nossos).
Considerações finais A possiblidade de se trabalhar a temática da emancipação feminina, bem como da constituição de uma identidade com discurso e ações próprias das mulheres, através da categoria narrativa referente ao espaço, mostrou-se relevante e pertinente, no sentido em que ambas as narrativas trabalham com o espaço da casa como representante ora da opressão feminina, ora como espaço de libertação e emancipação feminina. Apesar de ter significados diferentes em ambos os contos a casa, tanto seu exterior como seu interior favorece a descoberta de uma verdade desconhecida das personagens até então, pois e no exterior da casa que Bertha sente-se seduzida por Pearl, no momento em que ambas estão no jardim olhando a pereira. Mas é, no interior da casa que ela descobre o adultério, apesar de, depois disso, voltar ao seu estado de alienada e cumpridora de seu papel de mulher estereotipada. No entanto, no conto de Piñon, o espaço exterior que inicialmente representa a harmonia e a cumplicidade do casal, torna-se ao longo da narrativa o espaço do distanciamento e da separação dos mesmos. Ao passo que a casa, inicialmente apresentada como o espaço da opressão e da solidão da mulher se transforma no local da emancipação e do conhecimento da capacidade que a mulher tem enquanto construtora de sua identidade autônoma. Referências: BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
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CARVALHAL, Tânia. Literatura comparada. São Paulo: Ática, 2001. CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Trad. Cristina Rodrigues e Artur Guerra. Lisboa: Teorema, 1982. DELOREZI, L; AQUINO, P. Categorias narrativas e figura feminina no conto colheita”, de Nélida Piñon. Revista Eletrônica de Estudos Literários, Vitória, s. 2, ano 7, n. 8, 2011. LINS, O. Espaço romanesco. Espaço romanesco e ambientação. Espaço romanesco e suas funções. In: ______. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976. MANSFIELD, Katherine. The Collected Stories. London: Wordsworth Editions, 2006. MOISÉS, M. A criação literária: Prosa. 20. ed. São Paulo: Cultrix, 2006 NEAMAN, Judith S. Allusion, Image, and Associative Pattern: The Answers in Mansfield's „Bliss.‟ In: Twentieth Century Literature. Vol. 32, No. 2, 1986 PIÑON, Nélida. Colheita. In: Sala de armas. São Paulo: Círculo do Livro, 1973. WOOLF, Virginia. Kew Gardens. O status intelectual da mulher. Um toque feminino na ficção. Profissões para mulheres. Tradução de Patrícia de Freitas Camargo e José Arlindo F. de Castro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de autoria feminina. In: BONNICI, Thomas e ZOLIN, Lúcia Osana (org.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 3. ed. rev. e. ampl. Maringá: Eduem, 2009, p. 327-336.
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A REATUALIZAÇÃO DOS CONTOS DE FADAS ENTRE A TRADIÇÃO E A TRADUÇÃO Maria Angélica de Oliveira (PPGL-UFPB/UFCG)1 Josilene Pinheiro-Mariz (POS-LE-UFCG) 2 Introdução Desde sempre, os povos produzem narrativas cuja finalidade é denunciar, transmitir e ratificar seus valores. De acordo com Bakhtin (2006), cada época, cada organização social detém determinados enunciados que servem de modelo para outras épocas. Como exemplo de modelos enunciativos, temos os contos de fadas que são práticas discursivas, plenas do fantástico e do maravilhoso que refletem e refratam os vícios e as virtudes humanas. As inúmeras reatualizações dessas narrativas evidenciam práticas humanas cristalizadas, como a luta do bem contra o mal, mas também apresentam mudanças de mentalidades, novos regimes de verdade, pois “engendrado pelo dispositivo de sua época, o sujeito não é soberano, mas filho de seu tempo” (VEYNE, 2011, p. 179). Antes narrados pelos camponeses ao pé da lareira, nos longos dias de inverno com o propósito de “afugentar o tédio dos afazeres domésticos”, segundo Tatar (2004, p. 10), hoje os contos de fadas, inegáveis espólios culturais, entre a tradição e a tradução são reatualizados, são inscritos em novas/velhas maneiras de dizer. Envolvidas também pelo fantástico ou pelo maravilhoso (TODOROV, 1971), numa inegável relação palimpsesta, as reatualizações dos contos clássicos retomam essas milenares narrativas deixando entrever marcas de um tempo passado, mas também, e inevitavelmente, deixam-nos entrever as mentalidades de nosso tempo. 1
Professora Doutora na Universidade Federal de Campina Grande, atuando na Graduação em LetrasLíngua Portuguesa e no Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGL/ UFPB. 2 Professora Doutora na Universidade Federal de Campina Grande, atuando na Graduação em LetrasLíngua Portuguesa e Língua Francesa e na Pós-Graduação em Linguagem e Ensino – POSLE – da mesma instituição.
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Essas reatualizações são resultado de uma leitura que os sujeitos autores fizeram desses contos e essas leituras estão sujeitas às mentalidades de seu tempo, engendradas pelos dispositivos dessa época, espelhando-a. O sujeito-autor também é leitor dos textos de que se “apropria” e imita, transforma e reforma, estando, pois, seu “trabalho” de autoria sobre o “novo” texto inevitavelmente atrelado à sua leitura do hipotexto, que se inscreve no texto futuro, tornando-se sujeito-autor-leitor. Desta forma, como afirma Gregolin (2001, p. 65), “ao inscrever sua leitura no texto, o autor se mostra como sujeito de um fazer e traz o corpo para a fala enunciadora. Nesse sentido, o autor leitor se inscreve como corpo e como palavra enunciadora”. 1. Considerações acerca das reatualizações Buscamos apresentar novos regimes de verdade acerca das concepções de bondade e maldade presentes em algumas reatualizações do conto Chapeuzinho Vermelho. Por reatualização Foucault (2001, p.284) compreende “a reinserção de um discurso em um domínio de generalização, de aplicação ou de transformação que é novo para ele”. Aqui, destacamos a tradução enquanto releitura/atualização ou o termo “tradução,” não apenas no seu sentido mais usual: transpor de uma língua para outra. Estamos pensando no sentido primeiro do termo “tradução” (traductione), ato de conduzir além. Destacamos também os regimes de verdade – Vontade de verdadeenquanto mecanismo externo de controle dos discursos. 1.1
A verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho Nas cabanas dos camponeses franceses, geralmente em frente às lareiras, esse
conto, advindo da tradição oral, de acordo com Furlanetto (2007, p. 136), era narrado de uma maneira talvez surpreendentemente crua para nossa sociedade: o lobo, chegando antes da menina à casa da avó, mata-a, despeja o sangue numa garrafa e corta a carne em fatias, colocando-a numa travessa e oferecendo-a depois à menina, que se serve dela (praticando, portanto, canibalismo). No final, devora a menina, depois de induzi-la a um strip-tease.
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É importante ressaltar que estas releituras/ reatualizações desses tradicionais contos para embalar crianças é marcado pela multimodalidade, fazendo do livro um lugar atrativo e, portanto, motivador da leitura. Em A verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, Agnese Baruzzi e Sandro Natalini (2008) apresentam uma Chapeuzinho bastante diferente da que conhecemos tanto no conto dos irmãos Grimm, quanto na narrativa do francês Charles Perrault. Nesse conto, há ima inversão necessária, na qual o lobo passa ao lugar de subalternizado, enquanto a Chapeuzinho é aquela que dita as regras, mesmo que dissimuladamente. No conto A verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho, a partir do título, vemos o diálogo entre a tradição e a tradução, o dado e o novo. O termo “a verdadeira” confere singularidade ao novo pretendido pelo sujeito-autor do texto. Neste título há a possibilidade de leitura de que o seu hipotexto, o texto a partir do qual o novo se constitui, seja uma história não verdadeira, a verdadeira história é a reatualização do conto. No conto em análise, percebemos que o propósito principal da história é evidenciar o caráter contraditório dos personagens principais em relação ao conto clássico: o lobo mostra-se bom e Chapeuzinho, outrora uma doce menina, mostra-se invejosa e vingativa. As imagem a seguir denunciam esse lugar da inversão:
Imagem 1: A verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho, de Agnese Baruzzi e Sandro Natalini (2008).
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A ludicidade do livro em análise consegue prender a atenção do leitor por conta dos recursos visuais e táteis utilizados. Além de interagir com o texto propriamente, o leitor é convidado a estabelecer um contato divertido com o livro através de pop-ups, de imagens que remetem ao processo de colagem, de representações em alto relevo, de aplicações de tecidos, etc. Essas novas características do livro refletem a mentalidade do nosso tempo em que as imagens ganham maior relevo do que as palavras. A soberania das imagens sobre as palavras é uma marca de nosso tempo, de nossa modernidade líquida. Inseridas num mundo virtual, onde o contato visual e manual com tablets, vídeo games, smartphones, e outros aparatos tecnológicos é cada vez maior, o mercado livresco sente a necessidade de adequar-se aos novos tempos e, por sua vez, as crianças preferem livros cada vez mais chamativos, interativos e criativos, já que em meio a tantas tecnologias fica difícil chamar a atenção apenas através da palavra escrita.
Imagem 2: A verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho, de Agnese Baruzzi e Sandro Natalini (2008).
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Na história, o lobo torna-se um “bom-moço” com a ajuda de Chapeuzinho e acaba virando a nova celebridade da floresta ganhando a admiração e o carinho de todos. Isso perturba a Chapeuzinho que sempre foi interpretada como a menina de bom coração. Chapeuzinho planejando recuperar seu lugar de mais querida, planeja uma festinha e convida o Lobo através de um bilhete. Na festa seu plano infalível é posto em prática: ela oferece ao Lobo um sanduíche recheado com uma salsicha que como por um poder de magia faz com que o lobo, ao comê-la, volte a ser mal como antes e a menina volte a ser a mais querida. A última imagem confirma essa percepção:
Imagem 3: A verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho, de Agnese Baruzzi e Sandro Natalini (2008).
A cultura do vegetarianismo é marca de nosso tempo e a carne é o objeto pelo qual a maldade do Lobo se materializa. Há uma mudança na identidade dos personagens e ao levar em conta a identidade como algo que é construído socialmente, cabe mencionar aqui o conceito que Silva (2008) nos traz:
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As produções das identidades são construídas discursivamente e, portanto, são fabricadas pelas relações de poder que atravessam e constitui os discursos. Assim, as identidades não são produzidas na esfera individual dos sujeitos, mas são construções sociais produzidas no jogo das relações de poder. (SILVA, 2008, p. 26).
Ao se constituir como algo social, a identidade define-se a partir da relação com o outro, a partir da diferença que constitui um sujeito como tal. Diante do conceito de identidade cabe aqui mencionar os dois processos, trazidos por Silva (2008), pelos quais Foucault descreve a constituição do sujeito moderno quando leva em conta sua relação com o poder e com as práticas que o constituem: a objetivação e a subjetivação. 1.2
Uma chapeuzinho vermelho Em outra reatualização do clássico, a narrativa curta Uma chapeuzinho
vermelho, de Marjolaine Leray (2012), as expectativas se criam já diante do título. Ao se utilizar do artigo indefinido “Uma”, a autora individualiza e especifica que a chapeuzinho criada por ela não é qualquer uma, não é a que conhecemos, mas é uma possibilidade entre muitas e apresenta características muito diferentes daquelas as quais nós já estamos habituados. No livro, os sentidos são produzidos por duas materialidades significantes: o verbal e o não verbal. Eles se complementam e é impossível separá-los. A letra também que é utilizada funciona como uma materialidade imagética que produz sentidos, elas mudam de cor de acordo com o personagem: a cor vermelha representa a fala de Chapeuzinho e a preta a do Lobo, e ainda aumentam e diminuem de tamanho e de forma no intuito de representar os sentimentos dos personagens e a entonação com que se expressam, enriquecendo assim o sentido proposto pela autora. É interessante lembrar que “quanto à natureza da linguagem, devemos dizer que a análise do discurso interessa-se por práticas discursivas de diferentes naturezas: imagem, som, letra, etc.” (ORLANDI, 2012, p. 62), e a autora utiliza-se da imagem rodeada de elementos verbais como um material simbólico muito importante para a compreensão do texto de forma significativa
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Na história de Leray, a estatura da Chapeuzinho em relação ao Lobo deixa transparecer em um primeiro momento uma criança frágil e indefesa. O Lobo bem maior que a Chapeuzinho aparenta ter domínio sobre ela. Diferente da história clássica, o Lobo não tenta persuadir a menina através de sua conversa, ele a pega logo e leva consigo no propósito de comê-la colocando-a em cima da mesa. Chapeuzinho finge inocência e pergunta ao lobo se vão comer algo. O lobo responde que sim, uma carne “bem vermelha e sangrenta”. O tamanho da letra na expressão dita pelo lobo é importante para causar o efeito desejado: a sua ira, o grito. Daí em diante, inicia-se o conhecido diálogo, com Chapeuzinho se admirando “Que olhos grandes você tem!”, e assim por diante. É então que o lobo diz que seus dentes enormes são para comer a menina. Chapeuzinho diz que o lobo não pode comê-la, pois tem mal hálito, faz um gesto de meiguice e entrega-lhe uma bala envenenada, matando assim o lobo.
Imagem 4: Uma história de Chapeuzinho Vermelho, de Marjolaine Leray (2012)
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O final é surpreendente em relação ao fim clássico em que a chapeuzinho é frágil e só é salva graças ao caçador que escuta seus gritos. Diferentemente da outra história, a menina não precisa da figura masculina para lhe salvar dos perigos ou para lhe garantir um final feliz. Ela sozinha é capaz de se defender e mostrar sua capacidade de enfrentar algo que possa oferecer algum perigo. A vovó e o caçador não aparecem nessa adaptação, pois como vimos, a autora quis destacar apenas os papéis da Chapeuzinho e do Lobo. Uma chapeuzinho vermelho, de Marjolaine Leray (2012)
1.3 Deu a louca na Chapeuzinho O processo de adaptação fílmica é entendido na maioria das vezes como a simples repetição do texto pelo qual se constituiu, porém é preciso levar em conta que “é próprio do fenômeno de adaptação selecionar, acrescentar, reduzir, cortar, de modo a eleger os elementos a serem ressaltados na tela”. (AZERÊDO, 2013, p. 133). No filme em análise, a partir do título há um novo sentido que se constitui em volta do conto clássico. Já não é mais preciso especificar a Chapeuzinho como Chapeuzinho Vermelho, pois somos capazes de remeter a tradução à tradição. O termo “Deu a louca” sugere-nos novos efeitos de sentido a serem implementados pelo autor colocando em evidência uma memória do dizer. A vovó, neste filme, é dona de uma fábrica de doces e pratica esportes radicais; Chapeuzinho Vermelho é uma menina muito esperta e aparentemente não é uma criança, mas uma adolescente; o lobo é um repórter investigativo e não é mau. Por fim o lenhador, que corresponde ao caçador do conto clássico, que na verdade é um ator e precisa treinar a profissão de lenhador para passar em um teste profissional. Neste filme, além dos personagens já conhecidos, temos também o coelho Boingo, o bode enfeitiçado, o inspetor Flippers e uma série de policiais do reino animal que investigam um crime que está acontecendo na floresta. Cria-se assim uma trama policial. A investigação se dá em torno do roubo de doces e guloseimas na floresta e do livro de receitas da vovó.
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A partir da mudança de personalidade dos personagens em relação ao conto de fadas Chapeuzinho Vermelho, vemos que a construção dos personagens foi baseada em novas concepções dos sujeitos homem, mulher e criança. Chapeuzinho Vermelho sabe reconhecer o lobo mau e novamente sai desse lugar de passividade e ingenuidade. Ela agora é uma adolescente esperta que sai pela floresta por vontade própria sem ter de seguir regras ou caminhos. A vovó não é uma velhinha frágil e indefesa; pelo contrário, mostra-se uma mulher forte, capaz de vencer desafios e conseguir tudo aquilo que quer. Ela é uma das maiores competidoras de esportes radicais, além disso é dona de uma confeitaria. É uma mulher muito determinada, pois mostra que é capaz de ser a melhor em tudo que faz; além de ser uma das maiores vencedoras e ganhadora de medalhas e troféus nas competições que participa, ela é considerada a melhor doceira da floresta.
Imagem 5: Deu a louca na Chapeuzinho
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Há uma ressignificação do lugar do velho, que a partir das vontades de verdade de nosso tempo colocam as “vovós” como mulheres atuantes, independentes e ativas. A construção do sujeito vovó a partir dessas vontades de verdade é atual, pois “o sujeito não é “natural”, ele é modelado a cada época pelo dispositivo e pelos discursos do momento [...]”. (FOUCAULT, apud VEYNE, 2011). O lobo também difere muito daquele que nos é apresentado no conto infantil. Neste filme, ele não se constitui a partir da maldade. Ele é aqui um repórter investigativo que ajuda a solucionar a questão do roubo dos doces na floresta. O lobo que nos contos infantis remete à figura do homem agressivo, malvado e violento, tem sua identidade instituída a partir da diferença que lhe constituía. É o vetor de destruição da maldade, ele investiga crimes no propósito de eliminá-los. Além disso, vale ressaltar a mudança dos sujeitos “lobo” e “coelhinho”. Nessa história o lobo é do bem e o coelhinho – que em nossa cultura por meio da simbologia da Páscoa representa a renovação, o renascimento, e é sempre inofensivo, fofinho e agradável - é o grande vilão, ele foi o grande responsável pelo crime que estava acontecendo na floresta. Para concluir Para Sant’Anna (1987), o que o texto parodístico faz é exatamente uma reapresentação daquilo que havia sido recalcado. Uma nova e diferente maneira de ler o convencional. É um processo de liberação do discurso. É um gesto de interpretação. Observa-se que nessas paródias, a ressignificação das vontade de verdade sobre bondade e maldade. Levando em consideração que, de acordo com Bakhtin (2006), cada época, cada organização social detém determinados enunciados que servem de modelo para outras épocas, percebemos nas reatualizações desse conto que a tradicional história, já recontada por Perrault (séc. XVI), ganha leituras atualizadas, a partir de suportes da contemporaneidade, como os filmes (intermidialidade) e novas versões do texto escrito (multimodalidade)
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Portanto, como exemplo de modelos enunciativos, temos os contos de fadas que são práticas discursivas, com características do fantástico e do maravilhoso que refletem e refratam os vícios e as virtudes humanas, de acordo com cada época e com cada organização social. No conto em análise, é preciso destacar que alguns estereótipos negativos acerca dos sujeito homem e mulher são evidenciados. Apesar de tomar como base a ideologia do discurso feminista que luta pela igualdade de gênero, o conto deixa entrever uma relação de diferença entre os sujeitos homem e mulher. O sujeito-homem é visto como um empecilho para felicidade feminina e a relação entre homens e mulheres é carregada de preconceitos como se fosse impossível conseguir a felicidade quando os dois estão juntos. Por isso, é preciso verificar se ao tentar estabelecer uma igualdade entre gêneros, não se está promovendo uma diferença ainda maior. É necessário sedimentar novas vontades de verdade que promulguem a igualdade entre os gêneros a partir de suas diferenças.
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ORLANDI, Eni. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas, SP: Pontes, 2005. PACÍFICO, Soraya M. Romano. Os fios significativos da história: leitura e intertextualidade.
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Unesp,
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(dissertação
de
mestrado)
PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. 5 ed. São Paulo: Pontes, 2009. PÊCHEUX, Michel. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. Textos escolhidos por Eni Orlandi. Campinas: Pontes, 2011. PÊCHEUX, Michel. Análise se Discurso: Michel Pêcheux. Textos Escolhidos por Eni Orlandi.
Campinas:
Pontes,
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BAKHTIN E BRÁS CUBAS: A TESSITURA DA NEGAÇÃO NO DISCURSO MACHADIANO Maria Cristina Cardoso Ribas (UERJ/ Faperj) Introdução – A dialogização Um diálogo não ocorre apenas em um discurso fechado, mas também com outros discursos, receptores e mídias, em contextos similares ou distintos. Ora, sabe-se que o discurso dialógico é mais facilmente reconhecido quando não opera rupturas com o discurso tomado como modelo, quando não diverge do ‘texto-fonte’ e assim mantém o leitor/espectador em sua zona de conforto. Verifica-se que, quando os receptores já têm uma experiência prévia e um padrão de como se processa uma relação citacional, logo reconhecem o diálogo de vozes; mas, como se pode prever, há situações em que tal reconhecimento, por parte da recepção, não ocorre. Este reconhecimento é um processo e depende do acervo do receptor o qual, por sua vez, é constituído na interação, sendo acionado por diversos e instáveis dispositivos.
Em termos gerais, o dialogismo pode ser entendido como referência ou incorporação de um elemento discursivo a outro com objetivos diversos: homenagem, complemento, desconstrução, suplemento. Em outras palavras, pode representar e/ou formular atração e rejeição, resgate e repelência (BARROS; FIORIN, 1999). Por sua vez, o termo ‘intertextualidade’ foi cunhado por Julia Kristeva, em 1969, para explicar o que Bakhtin, no início do século XX, teria denominado dialogismo. Ressalta-se que há divergências em relação a esta sinonímia. Ressalta-se, ainda, que, mesmo quando formulado no meio literário, o fenômeno dialógico pode ser atribuído também a outras mídias, nos momentos em que ocorrem diálogos com vozes diversas daquelas que as antecederam. Bakhtin amplia e, de certa forma, desconstrói este modelo tranquilizador. Em seus estudos, a relação dos diálogos se estabelece na intersecção de vozes, entendendose ao cruzamento dos meios de comunicação e discursos enunciativos distintos. Bakhtin enfatiza que o dialogismo é constitutivo de linguagem, o que formula um paradoxo: segundo afirma, é possível observar, mesmo no tecido constitutivo do discurso monológico, uma relação dialógica. O termo ‘diálogo’, portanto, é definido em sentido amplo, ou seja, não apenas como a comunicação em voz alta entre pessoas que se postam face a face, mas como
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todo tipo de comunicação verbal, dos mais variados tipos e materiais. O diálogo, tanto exterior – em sua relação com o outro -, como no interior da consciência do sujeito, oral ou escrito, se materializa na linguagem; enfim, trata-se de relações que ocorrem entre interlocutores, em uma ação histórica compartilhada socialmente, em um tempo/espaço específico, mas sempre variável em função do contexto. Nesta bricolagem, as múltiplas vozes e discursos constituintes adquirem visibilidade e, como tal, podem ser entendidos como polifonia. Por isso Bakhtin firma que o grau de explicitude desta modalidade intertextual, a polifonia, confere uma identidade específica ao discurso. A polifonia, portanto, é entendida como diálogo entre diversas vozes que se fazem ver e ouvir. Não se trata de um recurso de citações estático, mas constituem um discurso entre duas ou mais vozes que se mostram, interagem e se intercalam no tempo e no espaço. Ressaltamos que esta pluralidade discursiva se produz no compartilhamento, no suplemento, no endosso ou na galhofa, sem o efeito do apagamento ou da mútua exclusão. Valendo a recíproca, a prevalência de um discurso sobre outro, caso haja, não promove anulação. A intertextualidade “nasce da percepção da disjunção entre essas duas vozes, essas duas consciências, esses dois discursos, homólogos narrativos das contradições profundas que coexistem dentro e fora das pessoas de uma mesma coletividade” (BARROS; FIORIN, 1999, p.76). Resumindo: o dialogismo corresponde ao princípio dialógico constitutivo da linguagem e a polifonia caracteriza-se como vozes polêmicas em um discurso. Há gêneros dialógicos monofônicos (uma voz dominante sobre outras vozes) e gêneros dialógicos polifônicos (vozes polêmicas). Pensando em Machado, sabemos que, num cenário de polêmicas ferrenhas, ele era um antipolemista assumido. Ao mesmo tempo, tece um narrador cuja voz é (auto)constituída na ironia. Segundo Brait (2000), o texto irônico é sempre polifônico, ou seja, constituído por vozes polêmicas. Nesta perspectiva (que não contraria Bakhtin), encontramos um desafio: Machado antipolemista (o que caracterizaria seu discurso como dialógico monofônico) é galhofeiro e irônico assumido o que, ao mesmo tempo, torna seu discurso um gênero dialógico polifônico. Para desconstruir a antítese e assumir o paradoxo da proposição, pode-se (1) restituir ao pesquisador a sua zona de conforto, optando pela separação (aqui já anunciada) ente vida biográfica e produção literária.
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Por este viés é lícito dizer que na vida ‘biográfica’ Machado atua com como discurso de gênero dialógico monofônico e na produção literária como dialógico polifônico. Tal distinção, porém, não garante a coerência pretendida porque é operacional, já que a relação entre ambas as instâncias é descontínua e não determinística – existe, portanto. Existe, mas não resolve. O problema ainda mais complexo é que o narrador Machado é simultaneamente polifônico e autoritário. Nas palavras de Roberto Schwarz: (...) a novidade está no narrador, humorística e agressivamente arbitrário, funcionando como um princípio formal, que sujeita as personagens, a convenção literária e o próprio leitor, sem falar na autoridade da função narrativa, a desplantes periódicos (Schwarz, 2004, p. 16).
Ressalta-se, ainda que: o saber irônico do narrador educado na escola da reflexão crítica inclui o romance machadiano na linhagem de criações literárias que desafiam os discursos canonizados pela tradição hegemônica da cultura ocidental” (SOUZA, 2006, p.9).
Fazendo brevíssima comparação, se Dostoievski, conforme Bakhtin, estabelece uma relação única com seus personagens, os quais têm voz própria e o mínimo de interferência por parte do autor, Machado constitui voz dominante. Ainda que o faça pelo avesso, como é o caso do romance de 1880, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1979) e do conto escrito em 1881, “Teoria do Medalhão – Diálogo” (1979). Neste conto, aquilo que o personagem do patriarca diz – de forma explícita - é a única verdade, voz dominante, a ser seguida. Com a progressão do conto, o leitor vai percebendo a estranheza dos conselhos deste patriarca para o filho, no ano de sua maioridade. O efeito desta fala favorece uma leitura reversa no leitor, leitura que possivelmente condiz com a palavra polêmica e polifônica de Machado instaurando a (incômoda e saudável) suspeição e negando (ironicamente) o consenso, ao mesmo tempo em que parece realçá-lo. Por isso dizemos algo que já não deve ser novidade: a negação machadiana é também uma força afirmativa. 2 A denegação e as negativas
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Segundo Lima (2012), a negatividade é uma força positiva quando, antes de ser tomada estritamente por uma perspectiva estética, representa aquilo que será pensado como a condição histórico-ontológica do homem ocidental. É possível reconhecer, dentre outros efeitos, que a negação traz consigo o elemento negado, presentificando o ausente, trazendo à tona o reprimido. Trazendo ao debate a valiosa contribuição da psicanálise para o entendimento do tema, “denegação’ é um termo proposto por Freud que caracteriza um mecanismo de defesa, através do qual o sujeito exprime negativamente um desejo ou uma ideia cuja presença ou existência ele recalca. Embora já tivesse manifestado a ideia em trabalhos anteriores, é num pequeno artigo sobre a ‘negação’ (Verneinung) que Freud forneceu uma explicação de ordem metodológica. A denegação, portanto, corresponderia ao meio pelo qual o ser humano toma conhecimento daquilo que recalca em seu inconsciente. Após todas estas considerações, tomemos o capítulo com que Machado de Assis finaliza o seu Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Capítulo CLX - Das negativas1 Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu comigo, por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro logar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e directa inspiração do céu. O acaso determinou o contrário; e aí vos ficais eternamente hipocondríacos. Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semi-demência do Quincas Borba. Somadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e, conseguintemente que saí quites com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: -- Não tive filhos, não transmiti a nenhuma creatura o legado da nossa miséria. Convidamos o nosso leitor a (re)ler a voz que, neste capítulo final – do livro e de sua (não)vida - descreve o que (não)herdou de si mesmo.
1
Disponível em http://www.ibiblio.org/ml/libri/a/AssisJMM_MemoriasPostumas/node163.html Acesso a 13-07-2014. Copyright © 2006 MetaLibri Digital Library.
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Tentemos, na leitura pelo avesso, diferenciar (1) o habilidoso defunto autor em sua persona, polêmico narrador da ordem da enunciação, (2) do escritor Machado de Assis como instância biográfica, em sua ‘pessoa’. A leitura não se desenvolve se insistirmos no equívoco teórico de aliar tão solidariamente as duas instâncias discursivas, fazendo com que uma seja ‘retrato fiel’ ou projeção direta da outra, numa relação de absoluta continuidade. Ao mesmo tempo, conforme já mencionado, a separação objetiva ente as duas personae não resolve a questão. Nos descaminhos da leitura, a alternativa é diferenciar, ainda que seja para superpor ou rasurar as vozes em jogo e até mesmo operar um ‘rejunte’ das frestas que abriram no que aqui se assume como a “mono-polifonia” do discurso machadiano. Trata-se de um narrador multiperspectivado, autor de si mesmo, voz que se bifurca em outras no jardim do próprio discurso. A postura do narrador machadiano é semelhante à do coro grego. O escárnio acompanha o ritmo dos pés da dança, tripudia o leitor e sua falta de habilidade nos passos, para lidar com um texto com esse grau de complexidade. Ao mesmo tempo, a estratégia enunciativa deste narrador, língua de cobra, bifurca-se em pelo menos duas direções – movimentos para dentro e fora do texto: explicita a mencionada inabilidade de o leitor lidar com o complexo e escancara os jogos de dissimulação social. A volubilidade de um narrador de língua bífida corresponde à volubilidade da burguesia (e suas práticas ambivalentes): dissimular aquilo que não é: escravocrata que se comporta como liberal. O incessante abandono de uma posição por outra é a prova cabal da volubilidade do narrador. Identificado com a classe a que pertence, Brás Cubas não se fixa em nenhum lugar, não demonstra certeza algum, a ao ser a respeito daquilo que não conseguiu. A despeito das declamadas perdas e frustrações sociais (pelo discurso das negativas), Brás Cubas se auto constitui um defunto autor e não autor defunto. E, como tal, formula para si um observatório privilegiado, (n)o entrelugar do discurso: vê sem ser visto, fala sem ser ouvido, ouve sem ser punido, transita em uma outra modalidade espaço-temporal. Machado, portanto, não apresentou apenas a volubilidade de uma determinada classe, mas sim de toda a sociedade. O problema não é a classe, é o homem. Para Roberto Schwarz, “esta incerteza de base, longe de ser um defeito, é um resultado artístico de primeira força, que dá a objetividade da forma a uma ambivalência ideológica inerente ao Brasil de seu tempo” (1990, p.46).
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3. Considerações (semi)finais “(...) não deves empregar a ironia, esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos cépticos e desabusados. Não. Usa antes a chalaça, a nossa boa chalaça amiga, gorducha, redonda, franca, sem biocos, nem véus, que se mete pela cara dos outros, estala como uma palmada, faz pular o sangue nas veias, e arrebentar de riso os suspensórios. Usa a chalaça. ASSIS, M. ‘Teoria do Medalhão. Diálogo’” 2 .
Machado é um estrategista discursivo e as ‘negativas’ correspondem a uma negação do otimismo e a um niilismo ativo, a uma afirmação pelo avesso. O que parece identificar-se à total falta de vontade, à distorção da sociedade e da alma, enfim, ao ‘mal’, é, ao contrário, a acurada visão acerca da realidade humana expondo as nem sempre confortáveis máscaras sociais. O risível em Machado é um dispositivo que, com a chancela do narrador – instância da enunciação – faz com que o discurso vigente seja desmantelado. O movimento de ‘canto de boca’ sinaliza desconforto, desacerto, desconserto; ao mesmo tempo desenha uma caricatura da situação narrada, esboça uma linha pontilhada que desfere agulhadas homeopáticas na recepção. O narrador machadiano é um eu que se dobra sobre o outro, solilóquio que se duplica à máxima potência de um coral de vozes. No discurso machadiano, portanto, a linha divisória do dialogismo (monofônico e polifônico) e a heterogeneidade constitutiva e mostrada do discurso escapam das sistematizações radicais advindas de uma leitura ‘monológica’ de Bakhtin. Acrescentase, ainda, que, no texto do ‘bruxo do Cosme Velho’, a declarada consciência do ‘mal’ desliza também da denegação freudiana. Ao menos que o narrador exercite a negação para compartilhamento do que não necessariamente é vivido como recalque. E contra o ‘mal’ - consciente - da semi-demência, a receita era recitar longos capítulos de livro, antífonas, litanias espirituais; e até uma dança sacra que, conforme um diálogo com Quincas Borba proposto pelo narrador de Memórias, o próprio Quincas “inventara para as cerimônias do Humanitismo” (ASSIS, 1979, p.638). Após estas breves incursões bakhtinianas em Machado, esperamos ter minimamente 2
compartilhado
a
experiência
do
narrador
Disponível em: http://letras.cabaladada.org/letras/teoria_medalhao.pdf. Publicado Notícias, em 1881. Posteriormente, coligido em Papéis Avulsos.
(machadiano) na Gazeta de
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multiperspectivado (SOUZA, 2006). Já que o mundo do homem é infinitamente interpretável, em vozes que se desdobram em cadeia, sejam em diálogo com o outro, sejam em diálogo consigo mesmo, dizemos que na enunciação do texto machadiano o eu narrante é também o eu narrado. Quanto à negação e ao humour, muito mais que adornos ou recursos estilísticos, são elementos constitutivos do discurso. Negar para afirmar, enfim, expor o avesso como tramado frontal é uma estratégia enunciativa. A ironia machadiana não é reconhecida figura de linguagem, mas seu discurso é uma forma monopolifônica – modo consciente de semi-demência e sem pretensões messiânicas ou proféticas - de sentir, pensar e interpretar a si mesmo e ao mundo. Referências: ASSIS, Machado de. Das negativas, Cap.CLX. In: ___ Memórias Póstumas de Brás Cubas. Obra Completa. Vol.I, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979. p.639. BAKHTIN, M.. Os gêneros do discurso. In: ___. Estética da criação verbal. 2ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.261-305. ______. Problemas da poética de Dostoievski. 3ed..Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. BARROS, Diana L.P.; FIORIN, J.L. (Orgs.) Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. São Paulo: EdUSP, 1999. BRAIT, B. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas. São Paulo: Unicamp, 1996. FIORIN, J.L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008. FREUD, Sigmund. A negativa [1925].Edição Standard Brasil. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.19. LIMA, S. Cadernos Benjaminianos. Belo Horizonte, 5: 50-56, jan.-jun. 2012. STAM, R. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 2000. SCHWARZ, R. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1977. ________. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 1990. ________. A viravolta machadiana. In: Novos Estudos. CEBRAP: 2004, p. 15-34. SOUZA, R.de Melo e. O princípio da reversibilidade em Machado de Assis. In: Humanidades (1992) 8: 334-345.
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FORMAÇÃO HUMANA NA POESIA DO MATO-GROSSENSE MANOEL DE BARROS Maria Elizabete Nascimento de Oliveira RESUMO: Esta abordagem busca apresentar reflexões sobre a poesia do matogrossense Manoel de Barros, a qual nos instiga para observar como a memória e o cotidiano agem enquanto substratos para a formação humana. Para tanto, destaco como a identidade e/ou identidades são construídas nas relações que tecemos com nossos contextos, pautados nas subjetividades e que, portanto, não há como separar o ser humano das vivências cotidianas. A pesquisa de cunho qualitativo adotou como procedimentos a investigação bibliográfica tendo como aportes teóricos as discussões de Alfredo Bosi em: O ser e o tempo da poesia (2001); Octavio Paz em: O arco e a Lira (1982); Leyla Perrone Moisés em: A criação do Texto Literário (1990); Antonio Candido em: Literatura e Sociedade (2002); e o direito à literatura (1995); bem como, as reflexões filosófico-teóricas de Jean Paul Sartre (2001, 2005); Maurice Merleau-Ponty (1999) e Gaston Bachelard (1998, 2005), entre outros autores que apresentam as possíveis relações entre a literatura e vida sociocultural. Para o estudo realizou-se: levantamento bibliográfico que contemplaram as indagações da pesquisa e investigação de metáforas produzidas pelo poeta que abarcam o processo de inconclusão do ser humano, ou seja, estudos que permitiram compreender a produção de correlações entre a poesia de Manoel de Barros e a filosofia, pautada na fenomenologia do imaginário, a qual evidencia a possibilidade de transcendência do ser humano pela essência poética. PALAVRAS-CHAVE: Poesia. Memória. Identidade. Formação Humana em Manoel de Barros: memória, cotidiano e transcendência A vida não se encontra só fora da arte, mas também nela, no seu interior, em toda a plenitude do seu peso axiológico: social, político, cognitivo ou outro que seja. Mikhail Bakhtin
Esta abordagem apresenta algumas reflexões sobre as singularidades do campo literário, acreditando que a atividade estética, tal qual descrita por Mikhail Bakhtin, não cria uma realidade nova, mas apresenta uma realidade própria, ela cria a unidade concreta dos dois mundos, natureza e humanidade social e, sob essa égide traz a natureza como ambiente estético do ser humano, espaço onde é possível humanizar a natureza e naturalizar o ser humano. Ainda para o autor, é só na poesia que a língua revela todas as suas possibilidades, pois ali as exigências que lhe são feitas são as maiores, os seus aspectos são intensificados ao extremo, alcançam seus limites; é como se a poesia espremesse todos os sucos da língua que ali se supera a si mesma. Tanto Bakhtin quanto os estudiosos que compõem o Círculo, grupo de estudos a respeito de
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suas reflexões, tomam os textos literários como essenciais à compreensão da humanidade, segundo eles, sem as obras literárias haveria empobrecimento, tanto dos conceitos formulados quanto do pensamento dialógico. Ao trazer os elos da herança cultural e da singularidade criadora, a literatura nos possibilita olhar com mais ênfase para o que nos tornamos, abrindo caminhos para que possamos conhecer outras formas de vida, numa invenção de si, na produção de conhecimentos mais amplos sobre o cosmo e sobre o viver coletivo. Walter Benjamin destaca que “quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como o homem que escava”, isto significa que o estudo da nossa memória cultural, social e histórica amplia a nossa visão a respeito do presente para que possamos nos tornar mais humanos. António Cândido (1995), reforça o poder humanizador da literatura nos incitando a compreender que a ausência do saber literário na vida do ser humano reflete um pouco da situação socioambiental do país, da sua desigualdade social e das relações conflitantes entre as questões humanas, já que o mercantilismo adota a política de cada um por si. Fator que deixa o ser humano vazio de sentido, destituído de sentimentos, de emoções e de desejos, portanto, agindo como se fosse corpo morto, cumprindo tecnicamente o que lhe é atribuído pelo sistema. É na perspectiva de ruptura a esse versentir o mundo que trazemos a poesia manoelina a fim de incitar para outras reflexões sobre a formação humana no fortalecimento da identidade/e ou identidades. Neste entrelace destacamos as proposições de autores que destacam a possibilidade de transcendência do ser humano pela essência da palavra poética. Adauto Novaes em “Poetas que pensaram o mundo” (2005), aborda que o pensamento é negador, e a razão negante, crítica e, por isso, se problematiza continuamente. Afirmativa que nos permite salientar que ao pensar posso discordar de mim mesmo, vencendo as barreiras do que eu penso para o que eu sinto e, assim, ao sentir posso ser outros. Proposição esta referendada tanto por Fernando Pessoa, poeta português, quanto para Carlos Drumonnd de Andrade, poeta brasileiro, ou ainda pelo nosso poeta matogrossense e BRASILEIRO, Manoel de Barros ao dizer “[...] eu preciso ser outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas”. Carlos Drummond de Andrade diz que, poesia e mundo se relacionam por escaramuças, reciprocamente excludentes e includentes, e que, portanto, a dialética entre o pensar e o sentir nos projeta ao sentimento do mundo, lugar onde como diz Paul Valéry ao se referir a palavra, o mais claro dos discursos se decompõe em enigmas, em
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abismo e em tormento do pensamento (NOVAES, 2005). Porém, lugar também onde a tríade merleaupontyana eu, outro, mundo se encontra em movimento. A palavra na literatura assume e faz girar uma lei cósmica que nos indaga a adentrar a espiral hermenêutica, onde se encontra a tríade supracitada, espaço em que só pode ser compreendido dentro do todo e o sentido desta só é possível a partir das partes que a compõem, já que a interdependência é fator operante. Assim, é como se a arte literária nos colocasse em frente ao espelho, mostrando que a descontinuidade temporal e espacial encontra-se somente dentro de nós mesmos (BRANDÃO, 2005). Pensar a dialética entre ser humano-mundo dentro dos preceitos da sociedade atual não é possível, a não ser adentrando aos meandros dos mundos e dos sentimentos ainda não experienciados que nos apresentam a arte, especialmente, a literária. Ao deixar-se encharcar-se de sentidos ou ao permitir ser contaminado pela palavra pó-ética, o ser humano pode encontrar combustível para se tornar um viajor em busca da emancipação histórica, pode encontrar coragem para embrenhar-se em meio ao desconhecido, onde o guarda de sua liberdade é ele próprio. Investigar como a memória e o cotidiano agem enquanto substratos para a formação humana na poética do mato-grossense Manoel de Barros foi necessário na pesquisa para compreender a possível espiral da formação humana que se delineia pelas (des)palavras do poeta, de modo a destacar que a identidade e/ou identidades são construídas nas relações que tecemos com nossos contextos, pautados nas subjetividades e que, portanto, não há como separar o ser humano das vivências cotidianas. Essa separabilidade forçada pela lógica clássica vem nos distanciando da nossa história pessoal, fator que também nos distancia dos desvalores destacados por Manoel de Barros, os quais devem ser a coluna dorsal que sustenta a ética do bem viver, afinal, como declara o poeta “o cu da formiga tem mais valor que a bomba nuclear” (BARROS, 2010). Ao engendrar reflexões acerca da formação da identidade do ser humano, é possível (re)construir pela literatura um percurso histórico e social construtor de identidades, sendo possível perceber as incompletudes que distanciam os seres humanos da essência ética e estética que contribuem para com a justiça social. Portanto, ao ser contaminado pela poesia, esta motiva as inquietudes que mobilizam o ser humano para um desejo de mudança necessária à formação humana. Ao levar em consideração o poder humanizador e denunciativo da literatura, conforme salienta António Candido (1995), a essência poética não pode ser vista como
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pano de fundo de um processo formativo, mas como coluna dorsal que, às vezes, mesmo intrínseca é parte fundante que sustenta o corpo. Para tanto, é preciso se desvencilhar do utilitarismo apregoado pela sociedade contemporânea em prol de olhares cambiantes, que se faz e se refaz por intermédio do processo criador da poesia. Ao apresentar o poeta Manoel de Barros, em consonância com uma filosofia da existência mediada por princípios fenomenológicos, destacamos que, é impossível adentrar no campo das relações humanas sem permearmos pelo labirinto do sonho ou pelo universo do devaneio (BACHELARD, 2005). Importante destacar que, a recepção da obra de Manoel de Barros, embora crescente, ainda se apresenta insipiente nos estudos e reflexões acadêmicas, esta tem constituído gradativamente nosso objeto de estudo à medida que percebemos uma ampliação das relações de trocas e possibilidades de abertura e aproximação cultural, social, histórica e ambiental enlaçadas às produções desse mato-grossense, especialmente, quando consideramos o contexto no qual estamos inseridos, o pantanal de Mato Grosso. Encontramos na produção de Manoel de Barros, um farto repertório de coisas que foram esquecidas e/ou ainda poucas percebidas na essência apresentada pelo poeta. Com o propósito de revisitar sua poética, tomamos como porta de entrada para o estudo, a compreensão das representações literárias do autor, enquanto espaço ficcional de discussão e reflexão acerca da identidade, aspectos da sensação de incompletude verificada na constituição do ser humano. Para tanto, buscamos compreender pela literatura manoelina as relações cotidianas como fio condutor de identidades que fortalecem a formação humana. Ao centrar-se na poesia levamos em consideração o depoimento do poeta quando diz em várias entrevistas que suas poesias é sua própria biografia. É possível observar que o poeta se presentifica como personagem central de seus escritos, pois por muitas vezes faz uso do pronome pessoal em primeira pessoa. Nesse foco, complexifica-se enquanto sujeito, ao mesmo tempo em que se questiona, incita para que o outro se questione, com isso apresenta a sensação de incompletude, “eu preciso ser outros” (BARROS, 2010), vazio que parece ser a matriz geradora de sua estrutura poética e de sua constituição enquanto ser no mundo. O rastreamento do eixo temático que apresenta a questão da incompletude do ser humano instiga à identificação de como as matizes de sentido dessa sensação emerge no percurso e na construção de suas poesias, as quais denotam elementos essenciais da vida e ajudam na formação ética e estética do ser humano.
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Ao tomar como referência o conceito de literatura formulado por Antonio Candido (2002, p. 74), ao considerá-la como [...] “um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a”, observamos a necessidade de se realizar um trabalho investigativo acerca das produções do poeta que não apenas rememore, mas que nos ajude a compreender que à memória se entrelaça aspectos que nos constituem enquanto seres humanos. Vale destacar que não se trata de contaminar a sua poética com os ranços da sociedade convencional, mas de deixar-se encharcar-se de sentido (FREIRE, 1996), a ponto de ser contaminado por ela, na tentativa de preencher as lacunas da existência humana que foram construídas pela lógica clássica, entendendo as nossas liberdades, pois como declara o poeta, feliz mesmo é quem não tem rumo, porque a magia da vida se dá mesmo é na busca constante por descobrir o mistério da vida e o nosso (BARROS, 2010). A fim de contribuir na busca supracitada, sempre inconclusa, mas necessária, articularmos um estudo que permitisse ao viajante/pesquisador um passeio por entre a literatura e a filosofia. Ao trazer esta aliança entre a poética do matogrossense Manoel de Barros e a filosofia, buscamos na fenomenologia do imaginário, elementos que destacam a importância de não distanciar o sujeito do objeto, dado que as ciências modernas, pautadas no excesso de racionalidade, negligenciaram a dimensão das sensibilidades que acreditamos ser inerente bagagem do Ser Humano, ou seja, sujeitoobjeto devem ser tratados de maneira interdependentes, tal qual a relação entre as coisas do mundo. Na perspectiva supracitada, procuramos aprofundar conhecimentos de como o contexto social e cultural vivenciado pelo poeta é captado em suas produções, com o propósito de compreender como o percurso identitário de Manoel de Barros permeado pela essência poética em relação às reflexões da existência humana pode fortalecer a formação do ser humano na sociedade contemporânea. Acreditamos que a compreensão da poesia manoelina como constituição identitária aliada à filosofia pode ser o passaporte para compreendermos que estamos no mundo com os outros e
outras
coisas, relações que fortalecem a identidade e nos constituem como seres humanos. Todorov (2008), ao se referir à criação literária, afirma que, a literatura nada mais é, do que “[...] uma espécie de extensão e de aplicação de certas propriedades da linguagem”. Desta maneira, podemos dizer que a poesia de Manoel de Barros é fruto da
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intimidade do autor com a linguagem, pois é por meio dela que o mesmo tem a possibilidade de dar beleza e movimento às asperezas do mundo. De acordo com a concepção de Leyla Perrone Moisés (1990, p.103), “a literatura nasce de uma dupla falta: uma falta sentida no mundo, que se pretende suprir pela linguagem, ela própria sentida em seguida com falta”. O autor faz seu investimento literário e, em certa medida, supre as ausências sentidas no mundo convencional pela estada em outros mundos. Manoel relata sua experiência nesses outros mundos, ele é o que expõe em sua poesia, fala do próprio poeta, portanto, sendo ele mesmo palavra, apresenta o seu percurso identitário com vontade de significar no mundo. Antonio Candido (1995) destaca o poder humanizador e denunciativo da literatura, afirmando que todos nós temos um narrador em nosso interior, que se faz necessário dentro de nós. Segundo Candido, se não temos tempo e espaço como se exige, nem um momento de ócio para extensão espiritual, não temos meios de sonhar e imaginar. Assim, a literatura com seu papel libertador, denunciativo impulsionam reflexões acerca do comportamento humano por meio do contato com as diversidades de saberes que permeiam o contexto econômico, social e cultural de um povo, característica presente na poesia manoelina. A literatura, ainda de acordo com a visão de Antonio Candido, tem seu papel formador na personalidade humana, porém, não de acordo com as convenções sociais, mas subversivas, como podemos visualizar na poética de Manoel de Barros. Ou seja, esta não adere às regras impostas, antes vai ela mesma construindo suas possibilidades, seguindo “a força indiscriminada e poderosa da realidade” (CANDIDO, 1995, p.243) e dos sonhos. Portanto, a poesia manoelina trança fios para que possamos compreender a história real, espaços onde encontram-se os seres humanos e o mundo, que se diferencia da história oficial, registros escritos. Deste modo, livre de regras, a criação literária [...] tira as palavras do nada e as dispõe como todo articulado. Este é o primeiro nível humanizador, ao contrário do que geralmente se pensa. A organização da palavra comunica-se ao nosso espírito e o leva primeiro, a se organizar, em segundo, a organizar o mundo (CANDIDO, 1995, p. 246).
Antonio Candido defende a importância da relação do ser humano com a literatura e acredita que por meio do contato com a sensibilidade veiculada nas produções literárias o ser humano pode se tornar mais compreensivo, transformando-se em um indivíduo mais tolerante em suas relações com os outros e com as coisas do mundo, assim destaca que,
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[...] as produções literárias, de todos os tipos e todos os níveis, satisfazem necessidades básicas do ser humano, sobretudo através dessa incorporação, que enriquece a nossa percepção e a nossa visão do mundo. [...] A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante (CANDIDO, 1995, p. 248-249).
Ao tomar como objeto de estudo os dessaberes do poeta mato-grossense Manoel de Barros, é possível percebermos a espiral da vida empreendida no entremeio de seus livros; entrevistas recolhidas em site da internet; jornais e revistas, documentos que apresentam como temática o poeta pantaneiro e a sua postura ética diante da diversidade presente no cosmo. Tecemos um estudo no processo híbrido, fenomenológico e bibliográfico, apresentando algumas percepções sobre os dessaberes descritos na poética de Manoel de Barros, os quais envolvem tanto os clássicos da literatura e das artes em geral, quanto os desheróis, pessoas comuns que cruzaram o caminho do poeta durante suas andarilhagens pelo mundo. A criação poética de Manoel de Barros, embora seja advinda das percepções adquiridas no pantanal de Mato Grosso, com todos os seus ruídos e emanações; não menospreza a influência dos “faróis da poesia” e das aprendizagens obtidas com os dessaberes do ser humano “ordinário”. A palavra para Manoel é o nascedouro que compõe gente, conforme declara, elas brotam nele naturalmente, acredita que é por via do lastro brejal que adquirira na infância e que, apesar dos anos, nunca perdera. Ou seja, seu corpo fornece o adubo necessário às palavras para que elas se projetem na fertilidade que precisam para se fazerem presentes, trazendo sempre as novidades do olhar primeiro. Com suas poesias, Manoel de Barros nos diz que é preciso ser para perceber a nuance que colore e transmite vivacidade aos ambientes, compreendendo o mundo e suas coisas para além do conceito de apropriação, mas como substrato para a própria formação. Manoel de Barros declara que seus versos são a humanização da coisa e ou a coisificação do ser humano. Essa metamorfose presente, efetivamente, em sua criação poética, contribui para que compreendamos que o ser humano não está sozinho no mundo, mas permeado por uma diversidade de elementos que estrutura o cosmo e, dessa forma, apresenta similaridades e divergências que precisam ser compreendidas como combustível para o conhecimento. Assim, a poesia de Manoel de Barros se levanta em meio aos conflitos e idiossincrasias e projeta uma luminosidade necessária e urgente no mundo, especialmente, ao fazer-se presente nas coisas, o poeta enlaça-as aos seus
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desejos, às suas inquietações e às suas esperanças, faz com que ressurja a essência planetária, haja vista que, as palavras, de acordo com o poeta, podem fazer com que as coisas mantenham seu estado original. Ao apresentar a importância das coisas pequenas e desprezíveis pela sociedade contemporânea, a poesia manoelina, tira a centralidade da razão, essa é tratada como acessório, pois o que realmente importa é a sinestesia do mundo, ou seja, a espiral dos sentidos que podem contribuir na produção de um conhecimento democrático, justo e humano. Avesso às normas e convenções, o autor sabe que, só a transgressão dos valores cultuados pela modernidade, pode exprimir a essência da poética contida no mundo e, nisso ele é “expert”, pois numa linguagem que desafia a concepção cartesiana de mundo descreve com maestria seus dessaberes ao destacar a fenomenologia contida no olhar, nas diferentes fases da vida. Entre clássicos e desheróis o autor tece a luminosidade do ser no mundo, de modo que, ao encontrar na sua produção biblio/biográfica, seres humanos, como: Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Pe Vieira, Roland Barthes, Shakespeare, Bernardo, velha Honória, Antônio Carancho, Claúdio, entre outros, numa conversa animada e festeira, sem o ranço de um saber universal e/ou a supervalorização de um saber sobre o outro, é possível observar que todos veiculam de modo a complementar a dinâmica do mundo e a (trans)formar a identidade do poeta pantaneiro. A supremacia do saber clássico, em Manoel de Barros, desaparece dando lugar ao diálogo de saberes que dinamiza e dá vida ao processo formativo/identitário. Porém, a construção desses dessaberes, só é possível, se percebermos a inconclusão do ser humano e a sua capacidade de ser mais, conhecimento capaz de fazê-lo compreender que não se é senhor absoluto de verdades universais, como diria Paulo Freire (1996) e/ou como salienta o poeta ao envergar o olhar para outras coisas que são desprezadas pela sociedade capitalista. Na perspectiva acima, o poeta declara que a gente é rascunho de pássaro e que, portanto, ainda não acabaram de fazer (BARROS, 2010). É com essa percepção que Barros compõe seus escritos e nos contagia com a sua ação criadora sobre as coisas comuns e corriqueiras, atribuindo sempre novo olhar às coisas presentes no mundo. Segundo o poeta, é o olhar infantil que o possibilita a ver a mesma coisa por várias vezes como se fosse pela primeira. Ver/sentir/perceber com as lentes do poeta significa nos surpreender com as novidades que estão impressas nos elementos que compõem o mundo.
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A criação poética de Manoel, embora seja advinda das percepções adquiridas no substrato do chão, mais especificamente, do pantanal mato-grossense, com todos os seus ruídos e emanações; não menospreza a influência dos “faróis da poesia” e as aprendizagens obtidas com os dessaberes do ser humano “ordinário” (CERTEAU, 2005), com os quais conviveu durante suas andarilhagens pelo Chile, Bolívia e outros lugares decadentes, segundo a percepção da sociedade capitalista. O poeta nos instiga a ir à luta por outros valores que podem gerar outras sensibilidades, as quais são capazes de
contribuir
efetivamente
na
formação
humana
e,
consequentemente,
na
sustentabilidade planetária. Nesse viés, o olhar de Manoel de Barros não se habitua as coisas cotidianas, ao contrário, estas se apresentam para o poeta sempre como se fossem debutantes, como se estivessem ali primeira vez. O olhar do poeta, “não é apenas agudo, ele é intenso e ardente. [...] não é só clarividente, é também desejoso, apaixonado” (CHAUÍ, 1988, p.77). É, portanto, um olhar capaz de acolher a diversidade do mundo, de mobilizar os outros sentidos, é a capacidade de ver no outro/outros, ele mesmo. Assim, de mãos dadas, o poeta nos convida a outras possibilidades do olhar, com o qual o “olhar não é apenas dirigir os olhos para perceber o ‘real’ fora de nós, é, tantas vezes, sinônimo de cuidar, zelar, guardar, ações que traz o outro para a esfera dos cuidados do sujeito” (IDEM, 1988, p.78). É com esse cuidado amoroso que Manoel inclui em suas proezas poéticas não apenas os seres humanos, mas tudo aquilo que compõe o cosmo, dando ênfase, às inutilezas. Neste sentido, Bachelard apresenta-nos uma percepção que pode contribuir para que entendamos essa desvaria poética, esclarecendo que: [...] se nosso coração fosse amplo o bastante para amar a vida e seus pormenores, veríamos que todos os instantes são a um tempo doadores e espoliadores e que uma novidade recente ou trágica sempre repentina, não cessa de ilustrar a descontinuidade essencial do tempo (BACHELARD, 2007, p. 108).
Importante salientar que embora Manoel de Barros não deixe de descrever a contribuição dos faróis da poesia, ressalta mesmo é a contribuição dos andarilhos nos saberes adquiridos. Mostrando, quão grande é sua alma e generosidade em compartilhar conhecimentos, sem preconceitos. Esse liame do conhecimento manoelino, não se efetiva na sucessão, mas de forma lacunar e inconclusa do presente, clama sempre por um devir que constitui o seu próprio sentido, convida-nos ao diálogo e ao entrelaçamento das coisas. Devir que consiste na percepção de que há coexistência de
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tempos (MERLEAU-PONTY, 1999). A poesia manoelina contribui para que compreendamos que o ser humano não está sozinho no mundo, mas permeado por uma diversidade de elementos que estrutura o cosmo e que, portanto, temos que estar abertos às aprendizagens. Nesse sentido, Barros declara: Sou um sujeito cheio de recantos/os desvãos me constam./Tem hora leio Avencas/Tem hora Proust/Ouço aves e Beethovens/Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin. - O dia vai morrer aberto em mim. (BARROS, 2004a, p.45).
O poeta declara que a razão é acessório e que, jamais a encontraremos em seus versos, pois a poesia é fenômeno da linguagem e, portanto, sua linguagem apaga a ideia convencional do ser humano e das coisas. A fim de reforçar essa perspectiva, José Miguel Wisnik (2005, p.32), salienta que: “o mundo, cosmos, natureza, história – está simultaneamente dentro e fora do mundo. [...] assuntos não dão poesia, pois: “O mundo é aquilo mesmo que nós representamos, não como homens ou como sujeitos empíricos, mas enquanto somos todos uma única luz e enquanto participamos do Uno sem dividilo” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 7-8). A pesquisa buscou tecer sentidos na poética de Manoel de Barros que incitasse ao fenômeno pela subjetividade humana, se configurando na perspectiva híbrida entre estudos bibliográficos e fenomenológicos, especialmente, ao considerar os delírios verbais do poeta aliados aos mistérios da existência propostos pela fenomenologia do imaginário. Elementos pelos quais tecemos inferências que possibilitou uma maior percepção sobre as vivências e os devaneios gerados nas relações humanas. Acreditamos ser, o estudo, portanto, um enfoque de relevância ao universo científico no que tange a importância da literatura, especificamente, da poesia para a formação humana. Embora, delineamos uma parcial do percurso de pesquisa, vale enfatizar que na trajetória do estudo foram realizadas correlações que viabilizaram a gestação de sentidos com base na fenomenologia, o que faz desta abordagem um estudo inconcluso. Esta parcial é, portanto, apenas a ‘humilde’ compreensão do fenômeno pela lente da pesquisadora, a qual cabe a intrincada tarefa de descrever possíveis relações de sentidos, pautada em suas interrogações e devaneios, tendo claro que este percurso, não é um caminho que se faz a priori, mas que se delineia ao caminhar e que, portanto, a trajetória em foco é apenas prévia passível de outros mistérios e surpresas.
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Ao considerar as reflexões supracitadas acreditamos que, tanto a abertura fenomenológica, quanto a essência que emana da poesia de Manoel de Barros, pautada na tríade Memória, Cotidiano e Transcendência, pode permitir uma projeção do ser, enquanto humano e, assim sugerir novas intervenções, possibilitando a transcendência para a compreensão de identidades cambiantes que se articulam nas relações que se estabelecem na complexidade dos espaços sociais, culturais e políticos à formação humana. Acreditamos que ver a essência do ser pela poesia, nos possibilita compreender, tal qual Gaston Bachelard (2005), que a poesia traz uma marca fenomenológica que não engana e faz reanimar profundezas em nosso ser que nos projetam a entender que há coisas que não são para ser compreendidas, mas para ser incorporadas. Este com-preender o estar no mundo nos possibilita sonhar em romper com a ideologia dominante que rege, dá nomes e sentidos às diferenças, compreendendo que a mesma não conseguiu digerir o elemento fundante da palavra poética, a autonomia e a liberdade de expressão, pois não conseguiu domesticá-la aos moldes tradicionais. Nessa conjectura, a literatura pode ser a arma para lutarmos contra esses “objetos de não amor”, como diria Carlos D. de Andrade, pois ela resiste à falsa ordem apregoada pelo poder operante. “[...] a poesia traz, sob as espécies da figura e do som, aquela realidade pela qual ou contra a qual, vale à pena lutar (BOSI, 2000), pois “navegar é preciso” e “tudo vale a pena se a alma não é pequena”, especialmente, se termos urgência em querer mais, em ir à busca do mistério das coisas e de nós mesmos, mesmo que isso seja inatingível. É nesse processo de busca permanente e inconclusa que coaduno com o exímio educador Paulo Freire ao relatar que devemos nos manter sempre esperançosos, não por pura teimosia, mas por imperativo existencial e histórico e/ou apresento a poesia do mato-grossense Manoel de Barros, afinal como profere o poeta, o dia precisa morrer aberto em nós. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BACHELARD, G. A poética do devaneio. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1998. _____. A poética do espaço. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BARTHES. R. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2006.
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POESIA E SUBDESENVOLVIMENTO NO POEMA SUJO DE FERREIRA GULLAR Maria Luísa Carneiro Fumaneri (UFPR) Publicado em 1976, com grande expectativa, o Poema sujo, escrito durante o exílio de Ferreira Gullar em Buenos Aires, é uma peça complexa. Dentro das inúmeras possibilidades de leitura que ele oferece, meu recorte se dará em tentar compreendê-lo a partir da problemática das disputas em torno de um conceito de poesia brasileira – disputa essa que, creio, está fortemente enraizada na releitura de nossa tradição modernista empreendida pelos poetas-críticos que começam a produzir mais ou menos a partir da década de 1950. Modernismo e autonomia Nosso modernismo foi lido pela historiografia brasileira como um momento de refocalização de nossa tradição literária. Do ponto de vista da dialética entre localismo e cosmopolitismo, estabelecida por Antônio Candido, que regeria a produção nacional, trata-se de um momento no qual “nossas deficiências, supostas ou reais, são reinterpretadas como superioridades” (CANDIDO, 1967, p. 141, grifos do autor). Ou seja, o gesto modernista, ao estabelecer um equilíbrio entre as “formas da expressão” importadas e a “substância da expressão” nacional – como costumam fazer, para o crítico, as melhores obras de nossa tradição –, permite o “desrecalque” de uma questão subjacente à literatura brasileira: o fato de produzirmos conhecimento em um país mestiço, subdesenvolvido, a partir de formas importadas, à margem da cultura letrada mundial. Segundo essa leitura, o modernismo brasileiro eleva o olhar marginal à condição de vantagem. Toda a acumulação de procedimentos vanguardistas europeus serve ao projeto antropofágico e pouco sentido faz a cobrança de qualquer precisão do ponto de vista da suposta incoerência em usar tudo o que estiver à mão, visto que o projeto em si de reinterpretação de nossa posição ultraespecífica unifica e justifica tal arranjo. Entretanto, é importante considerar que o gesto modernista é ético-estético, não podendo ser, portanto, reduzido à simples representação do Brasil. Dessa forma, o outro lado da moeda modernista brasileira é a possibilidade de autonomização dos recursos
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estéticos, agora desvinculados de suas ideologias formadoras. A esse respeito, comenta Pascale Casanova em seu texto sobre Macunaíma, que Mário de Andrade: Para evitar o realismo (e portanto as divisões regionalistas), situa no sul as lendas do norte, mistura expressões de gaúchos a estilos nordestinos, transplanta animais e vegetais. Mas, simultaneamente, inventa uma postura dupla muito refinada: enquanto reúne e enobrece explicitamente um patrimônio cultural até então monopolizado pela etnologia, adota um tom irônico e parodístico que, em um modo literário, denega e sabota os fundamentos do empreendimento (CASANOVA, 2002, p. 348, grifo meu).
O caráter literário que Casanova reconhece em Macunaíma é característico de uma acumulação de capital especificamente simbólico. Esse legado é reconhecido, ainda, pelo próprio Mário de Andrade, em seu famoso texto “O movimento modernista”. Escrito em 1942, ou seja, vinte anos depois da Semana de Arte Moderna e três anos antes da morte do autor, o artigo tem um tom de revisão algo melancólico. Nele, Mário afirma que teria sido a grande conquista de nosso modernismo “a fusão de três princípios fundamentais: o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional” (ANDRADE, 1967, p. 233). Essa fusão, entretanto, apresenta três momentos que não se confundem na mente do autor: E me cabe finalmente falar sobre o que chamei de “atualização da inteligência artística brasileira”. Com efeito: não se deve confundir isso com a liberdade da pesquisa estética, pois esta lida com formas, com a técnica e as representações da beleza, ao passo que a arte é muito mais larga e complexa que isso, e tem uma funcionalidade imediata social, é uma profissão e uma força interessada na vida (ANDRADE, 1967, p. 242).
Assim, embora o próprio Mário não acredite, pessoalmente, que a arte se resuma à pesquisa (e experimentação) formal, admite a sua responsabilidade, e de seus pares, na possibilidade de que se leia a autonomização de recursos formais como seu mais importante legado. Os poetas da “geração” posterior, entretanto, não chegam a explorar de forma mais radical essa separação entre forma e reflexão contemporânea. Na realidade, o fim
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da década de 1940 dá continuidade, em termos de estabelecimento de uma tradição especificamente nacional, ao projeto modernista imaginado pelo último Mário de Andrade. E isso talvez porque os poetas dessa geração, à parte suas expressões diversificadas, têm em comum a responsabilidade mais ou menos assumida de fortalecimento da tradição precedente. Nesse sentido, acredita João Cabral, em texto de 1952, que os poetas de 1930 “estavam colocados numa posição especial”, visto que “naquele momento coincidia a criação de sua poesia pessoal com a criação de uma nova poesia brasileira, com suas novas formas, sua mitologia, sua sensibilidade, isto é, seu público” (MELO NETO, 1994, p. 744-745). É, portanto, apenas a partir da década de 1950 que essa relação harmoniosa entre literatura e função social será questionada. Os sintomas disso são, para ficar naqueles mais evidentes, a teorização empreendida pelos escritores ligados à Poesia Concreta e a leitura que se fez da obra de João Cabral pelo próprio Concretismo. Quanto a esse segundo aspecto, é importante lembrar a interpretação de Haroldo de Campos, que responsabiliza a poesia de Cabral pela “instauração, na poesia brasileira, de uma poesia de construção, racionalista e objetiva, contra uma poesia de expressão, subjetiva e irracionalista” (CAMPOS, 1992, p. 80, grifos do autor). Entretanto, não é apenas a revisão concretista que torna João Cabral o patrono da “morte do lirismo”, no sentido de cooptação (e perversão) de autores e obras com que frequentemente se ironizou a teorização concreta. Para ficar apenas na obra mais clássica nesse sentido1, podemos pensar na leitura empreendida por Luiz Costa Lima em Lira e antilira (1968). Nela, Costa Lima observa um movimento crescente na poesia brasileira, de Bandeira a Cabral, de dessubjetivação lírica, que seria, resumidamente, a materialização de uma consciência, na feitura do poema, de seu caráter de construto estético, em detrimento de uma expressão pessoal disfarçada. O poema, assim, deixa de se apresentar como a mera transposição de estados psicológicos, sentimentais ou inspiradamente intuitivos, a fim de mostrar seu caráter verdadeiramente estrutural – de trabalho. Duas das razões identificadas por Costa Lima para essa tendência são muito significativas para os fins deste trabalho. Primeiramente a perda, cada vez mais palpável, do que se poderia chamar de um dicionário simbólico fechado. Como se sabe, 1
Para um levantamento crítico completo dessas leituras, ver OLIVEIRA, 2012.
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o questionamento dos símbolos e alegorias tradicionais, no sentido da imitação de modelos, cresce em relação direta com o questionamento dos valores sociais. Nesse sentido, afirma Costa Lima que a relação indireta com a realidade, por meio de figuras da retórica, é comum às civilizações de “valores incontestados”. Em uma sociedade, ao contrário, de tensões, em que não apenas seus valores mas o próprio fundamento da existência são postos em dúvida, senão negados [...] a relação tradicional através de condutos indiretos [...] tende a ser posta em suspeita e suspensão [...] (COSTA LIMA, 1968, p. 23)
Assim, o “realismo” identificado por Costa Lima na arte moderna é associado à crise de modelos retóricos tradicionais e incontestados de representação. A segunda motivação da dessubjetivização seria a impossibilidade, em uma sociedade industrial, da mistificação do lirismo centrado em uma espécie de direito (p. 271). Nesse sentido, João Cabral teria superado mesmo a construtividade simbolista (de Baudelaire a Mallarmé), ao compreender o poema enquanto práxis – o inverso disso, afinal, seria a perda de comunicabilidade com o seu próprio tempo. Em resumo: o caráter construtivo da poesia de João Cabral, em que o olhar organiza o mundo, mais que o sente, tem um fim bem específico – a comunicabilidade com o tempo. Essa preocupação com a vida presente e com a comunicabilidade do poema aparece de forma ainda mais tensa na ensaística do próprio poeta. Basta lembrar como, na conferência intitulada “Da função moderna da poesia”, o próprio Cabral reconhece que a característica dominante dos poetas ditos modernos é “seu espírito de pesquisa formal”, justificado por razões tanto subjetivas quanto objetivas. Essa preocupação, no entanto, levou a uma “desintegração do conjunto da arte poética” (MELO NETO, 1994, p. 767), que, ao fim e ao cabo, desembocou “no individualismo mais exacerbado”, visto que o poema, por maior que seja o desenvolvimento técnico a que tenha chegado, “exige do leitor um esforço sobre-humano para se colocar acima das contingências de sua vida” (p. 768). Dessa forma, a moderna poesia teria se superespecializado, mas, com isso, perdido sua função do ponto de vista da vida em geral. Cabe, a essa altura, perguntar, portanto, quais as razões materiais dessa situação. Se concordarmos com a narrativa histórica inerente ao paradigma teórico concreto (que
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postula uma evolução unicamente literária, ou seja, intrínseca ao progresso das formas), mas que também ronda perigosamente a leitura de Costa Lima, parece-me que teremos só parte da resposta. Acredito que a Sociologia levantou a tese mais coerente e que, usada com parcimônia, pode auxiliar-nos a compreender como o problema se dá objetivamente. Ao fazê-lo, o ganho é evitar a naturalização do abismo entre arte erudita e leitor. Do ponto de vista da sociologia, mais especificamente da obra de Pierre Bourdieu (1996; 2005), o processo de especialização da arte moderna não é motivado pela história das formas. Antes, é a história das formas possibilitada por um estado de autonomização do campo propriamente artístico, que, na França, é definido pelo autor como a tendência crescente, ao longo do século XIX, ao estabelecimento de um campo de produção erudita específico, no qual o intelectual atua como produtor cultural, ou seja, não mais como artista subordinado a outros campos (político, econômico, religioso), definindo-se, inclusive, a partir de sua oposição às outras esferas de produção (BOURDIEU, 1996, p. 151-152). É importante ressaltar que toda a autonomia é, evidentemente, relativa. Ser autônomo, afinal, é ser autônomo em relação a algo. A constatação da existência de um campo, portanto, tem base na mudança dos meios de produção. Ocorre que, na França do século XIX, a figura do intelectual tende a destacarse dos outros campos, tanto no que tange à profissionalização (é preciso que haja, na formação do campo, pessoas com possibilidades materiais de viver da sua intervenção nos campos da cultura, ou posições em organizações que vivam da produção intelectual, como editoras, por exemplo), quanto no que tange à própria recepção das obras (o interlocutor do artista autônomo, afinal, não é a massa leitora genérica, mas um público de especialistas, de “pares”). É o fato de existir, portanto, uma estrutura objetiva de relações cujo eixo gravitacional é a própria atividade comum que permite a designação de um “campo artístico”. No caso francês, parece ser essencial para a delimitação dessa estrutura relacional a oposição não só ao Estado ou à Igreja, mas à atividade crescente da indústria cultural, cujo campo é definido por valores opostos aos do campo artístico (lucro versus valor estético, em suma, capital financeiro versus capital simbólico). Sem desconsiderar a influência que essa situação teve em nossa própria produção, via elaboração literária recebida por importação, o fato é que a situação
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brasileira é bastante diferente. A atividade literária no Brasil, afinal, foi sempre uma prática que visou a poucos pares, devido, principalmente, ao analfabetismo quase que generalizado. Entretanto, a função social da literatura estava garantida por ao menos dois aspectos. O primeiro, em grande medida imaginário, era consequência da “consciência amena do atraso” (CANDIDO, 2011, p. 176), descrita por Candido: a formação ideológica que postulava a necessidade de modernização e educação do Brasil por meio da produção intelectual – e acreditava permanecer incólume diante da miséria que a rodeava. O segundo aspecto que justifica nossa produção também é retomado na obra de Candido: o fato de, muitas vezes, a literatura ter sido, no Brasil, a única esfera de produção de conhecimento, fazendo as vezes de ciência. São exatamente esses dois aspectos que começam a ser questionados depois do Modernismo. E isso porque, de um lado,
substitui-se
a
“consciência
amena
do
atraso”
pela
“consciência
do
subdesenvolvimento” e, de outro, o abandono do tom bacharelesco do discurso literário, bem como a divisão universitária das ciências, leva a literatura, pela primeira vez em nossa história, a assumir um lugar especificamente literário. Somam-se a isso outros aspectos objetivos, como o aumento do número de editoras e a promessa vislumbrada na alfabetização crescente. Porém, Candido ressalva que esse público em potencial acaba sendo cooptado, em grande parte, pelo estabelecimento, na mesma época, de novos meios ligados à cultura de massa (CANDIDO, 1967, p. 156-160). Assim, se é possível falar em estabelecimento de um campo literário autônomo no Brasil, ele parece perpassado pelo movimento de ascensão e queda da promessa de um público específico de literatura. O texto de Candido aponta para duas possibilidades relevantes dentro dessa conjuntura àquela altura (1950): uma possibilidade seria que a literatura traçasse um caminho eminentemente extraliterário, apresentando ao leitor uma produção próxima ao jornalismo. A outra seria a alternativa de um autocentramento da produção literária, “por meio de um exagero da sua dignidade, da sua singularidade, e visando ao público restrito dos conhecedores” (p. 160). Ora, não é difícil associar esse segundo destino à situação descrita com preocupação por João Cabral. Resta
perguntar
o
que
fazer
diante
dessa
situação
objetiva
de
superespecialização do poeta, baseada na crença do desenvolvimento autônomo das formas que ignora o público médio. Creio que a produção brasileira a partir da década
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de 1950, da Poesia Concreta à poesia ligada aos CPC’s, tenta, de forma mais ou menos consciente, responder a essa questão. A consciência do subdesenvolvimento se dá tanto na tentativa de modernização da inteligência empreendida pelo Concretismo quanto na tentativa de Ferreira Gullar de fazer da poesia instrumento político. O problema é que ver as coisas exclusivamente do ponto de vista sociológico tende a obscurecer as obras em si, visto que essas experiências acabam se igualando do ponto de vista da inevitabilidade objetiva do campo autônomo. Essa existência apenas posicional, no sentido de posição dos produtores no campo, acaba por estacar diante da incapacidade de a arte retornar à vida – mal do qual padece tanto a obra de Bourdieu quanto inúmeros trabalhos brasileiros que, diante do desespero da separação entre arte e leitor, colocam a obra de Ferreira Gullar e de Haroldo de Campos no mesmo saco, como simples lados “batalha de poéticas”, diante da qual “a poesia sucumbe em meio à maçaroca de explicações e teses” (SIMON, 1990, p. 131-132). A consciência da realidade da autonomia descrita pela Sociologia, na verdade, é a única maneira que vejo de tentarmos entender a conexão entre a produção e o seu tempo. Afinal, se a poesia resiste, só vale perguntar por que ela resiste. A outra possibilidade é vê-la como uma atividade anacrônica, inócua e, pior, ou puramente idealizada ou puramente cínica. Poema sujo: o mundo filtrado pelo olhar subjetivo A trajetória de Ferreira Gullar como poeta é característica da situação de autonomia. De poeta obcecado pela morte e pelas imagens de podridão nos primeiros livros, passa pela experiência Concreta, recusa-a, escreve sua série de poemas de cordel ligados ao CPC e, finalmente, alcança aquela que seria considerada sua poética mais ou menos estável a partir de Dentro da noite veloz (1975). Essa produção poética é, ainda, pontuada por ensaios de cunho reflexivo, entre os quais se destacam aqueles reunidos em Cultura posta em questão (1965) e Vanguarda e subdesenvolvimento (1969). Apesar da mudança de tom entre esses dois livros, sua tópica comum é a intenção de desmistificar certo critério, importado do euromodernismo, do que é a poesia – e que Gullar associava à Poesia Concreta. Tamanha angústia intelectual diante da situação da poesia moderna demonstra a insubordinação de Gullar a qualquer modelo preexistente,
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o que explica a estrutura complexa do Poema sujo (1976), visto aqui como meta de sua trajetória. O poema, estruturado em movimentos análogos aos sinfônicos, é uma longa reflexão refratada pelo olhar subjetivo. Como lembra Eleonora Ziller, seus temas de superfície são filtrados por uma percepção angustiada que busca apreender “o fluir do tempo, a deterioração, a morte e o lugar da poesia diante desse processo”, por meio de uma concepção de tempo “múltiplo e simultâneo”, que busca compreender “o sentido da existência”, mas sempre a partir de uma mente material, fortemente inserida no “processo histórico” (ZILLER, 2006, p. 139-140). Daí a sujeira do título, que não está lá por conta do vocabulário corporal em parte do poema, mas “porque toda pretensão à pureza é antes de tudo ilusória e mistificadora”, já que a linguagem está marcada pela experiência do homem real, histórico e limitado (p. 135). Nesse sentido, o Poema sujo é um retorno à subjetividade declarada organizante, em detrimento de certo olhar que se quer universal. As consequências disso foram interpretadas de muitas maneiras. João Luiz Lafetá observa, por exemplo, que ao renunciar à representação do pobre como um outro, adotada nos poemas de cordel, a poesia de Gullar para de idealizar o pobre, porém, ao mesmo tempo, acaba por representá-lo de forma oblíqua, filtrado pela lembrança, e “o fedor não chega até nós”. O crítico salienta que esse paradoxo não é culpa do poeta. Trata-se de uma situação inescapável, do “círculo de ferro” da classe intelectual, sendo essa consciência culpada “a limitação da literatura política de nosso tempo” (LAFETÁ, 1983, p. 200). A uma conclusão semelhante chega Eleonora Ziller, ao afirmar que o poema é uma explanação sobre face “autodestrutiva” da autonomia, ao representar, na “fissura entre a materialidade das coisas [...] e uma forma ideal [...]”, “as crises e os desencantos do pensamento humanista” (ZILLER, 2006, p. 158-159). Ou seja: mesmo nos melhores textos (e são textos excelentes), reflete-se a crise que discutimos na seção anterior. Resta perguntar que valor tem, enquanto solução estética, o gesto de negação da pureza da poesia no Poema sujo. Afinal, como obra de arte, o poema não apenas reflete a materialidade histórica de que é fruto, mas a ela responde. Responde, assim, que uma forma de ver e compor é superior a outra (da poesia pura, objetiva e pretensamente impessoal). Largamente calcado tanto na Poesia Concreta quanto na obra de João
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Cabral (essa, influência mais que declarada), o Poema sujo parece-me uma denúncia legítima da exaustão dessa poética. Não à toa, José Guilherme Merquior elege-o a principal obra para aquilo que ele chamou de “a volta do poema” (MERQUIOR, 1981, p. 303-310): o poema longo, impuro, marcado de subjetividade e desmistificador da crença no “estético”. Retomemos
então
brevemente
esse
percurso.
Em
Vanguarda
e
subdesenvolvimento, Ferreira Gullar procura deslocar a questão da vanguarda da forma como ela se impõe no discurso crítico. Segundo o autor, na crítica do período, “se dá como aceita a universalidade do discurso de vanguarda e se discute apenas o caráter alienante ou não do vanguardismo, o caráter retrógrado ou não do realismo” (GULLAR, 2006, p. 171). Entretanto, o problema seria mais profundo. A operação da teoria vanguardista brasileira estaria no apagamento das marcas nacionais dos mecanismos da vanguarda. Esse processo, largamente denunciado pelos teóricos da autonomia (BÜRGER, 2008, p. 101), tende a hipostasiar os recursos estéticos, as formas, apagando as marcas históricas de como se chegou a elas. Assim, a autonomia cria as formas de vanguarda, mas a autonomização dessas próprias formas leva a uma manutenção do próprio estado de autonomia, que é naturalizado. Gullar denuncia o apagamento dessas marcas histórico-geográficas na leitura do cânone ocidental (de Mallarmé a Joyce) e afirma que tal processo leva a uma ideia supostamente universal de evolução das formas autônomas: uma espécie de imperialismo estético – o mesmo apresentado no livro de Casanova (2002). Mas não adianta apenas denunciar a naturalização dos critérios internacionais do que é a arte: cabe questionar também o próprio conceito de nacionalismo. O modernismo, como se viu, deslocara o foco: o olhar marginal, periférico, é vantajoso. Da mesma maneira, o conceito de nacionalismo, ou de poesia nacional, é enriquecido ao se relativizar sua unidade. Assim: Do mesmo modo que a realidade internacional, como vimos, é expressão das contradições entre as particularidades nacionais, devemos ver também a realidade nacional como resultante da interação de elementos diversos, de fatores regionais, das contradições entre zonas desenvolvidas e subdesenvolvidas, entre a cidade e o campo, da luta entre as classes sociais etc. Se não a olhamos assim, cairemos na mistificação do “nacionalismo” equivalente à mistificação do “internacionalismo” que denunciamos (GULLAR, 2006, p. 246).
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Nesse sentido, o olhar generalizador perde em complexidade. O que se defende aqui, portanto, é que o filtro da subjetividade no Poema sujo, e a consequente redescoberta do olhar subjetivo e impuro na poesia brasileira, é a saída achada por Gullar
para
defender
o
poema
como
um
conhecimento
especial,
porque
fundamentalmente instaurado no ato particular de um ser humano único e mortal. Ser esse, entretanto, centrado nas contingências históricas localistas. Haveria, portanto, do ponto de vista que aqui se defende, uma homologia estrutural entre o retorno do subjetivismo e a defesa da necessidade da poesia centrarse sobre a posição localista. Gostaria, finalmente, de ilustrar essa homologia apenas naquele que Eleonora Ziller considera o 2º movimento do poema (ZILLER, 2006, p. 142) – o recorte é necessário para os limites impostos por essa fala. No 2º movimento, somos apresentados à lembrança do Gullar menino, filtrada pelo poeta, que brinca no trilho do trem. É interessante perceber que o homem não consegue lembrar-se bem das coisas do lugar – “Que era aquilo-uma-usina?” (GULLAR, 2001, p. 244) –, tampouco do que motivava o menino que foi na brincadeira – “Que me ensinavam essas aulas/ de solidão/ entre coisas da natureza/ e do homem?” (p. 243). A dificuldade se dá porque o menino parece receber a natureza sem filtro de abstração, pois, por exemplo, o sol do Maranhão “Não era o sol de Laplace/ [...]/ era o sol/ o sol apenas/ com cheiro de lama podre” (p. 243) e o menino está “sozinho na tarde no planeta na história” (p. 242). A lembrança dessa infância algo idílica (e lembremos as duas citações de Casimiro de Abreu que há no resto do poema) é interrompida pela passagem do trem, anunciado por onomatopeias e que culmina com a entrada da letra para acompanhamento da Tocata da Bachiana nº 2 de Villa-Lobos, referida em uma rubrica à direita da página. Depois da passagem do trem, o poema passa a narrar a história do dia em que o pai levou o menino em uma viagem. O trecho, que fecha o movimento em questão, vai da excitação da criança em cruzar o dia de trem a uma espécie de epifania, que não sabemos o quanto pode ser associada ao Gullar-criança ou ao Gullar-adulto que o relê. Interessa aqui, no entanto, perceber como se faz a recuperação da ideia de modernismo na metáfora do trem. Eleonora Ziller lê as citações aos mestres modernistas (Villa e Bandeira) como “representação de um modernismo que, crítico em relação ao capitalismo, ainda aposta na construção coletiva a partir do
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progresso da técnica [...]” (ZILLER, 2006, p. 143). Porém, creio que não é demais acrescentar como o recurso serve, dentro da lógica do poema, duplamente. Veja-se o trecho: e ver que a vida era muito espalhada pelos campos que aqueles bois e marrecos existiam ali sem mim [...] café com pão bolacha não café com pão bolacha não vale quem tem vale quem tem vale quem tem vale quem tem nada vale quem não tem nada não vale nada vale quem nada tem neste vale (GULLAR, p. 248-249)
Há perversão do trem de Bandeira – naquele, o som do trem retoma as vozes populares, pela recuperação modernista da linguagem coloquial. No de Gullar, o som do trem retoma a linguagem lógica da percepção do abismo social. Assim, ao mesmo tempo em que o menino toma consciência da terrível abstração de que as coisas existem sem ele, ou seja, que a subjetividade é o eixo limitador da apreensão do mundo, o poema ganha a consciência de classe, visto que cada indivíduo está, como esse menino, preso à sua limitação biológica natural e à sua limitação histórico-social. A relação tensa entre subjetividade e abstração, um dos eixos do Poema sujo, é uma forma de mostrar como Gullar lê a situação da poesia de seu momento. Ao preferir a subjetividade, tão surrada e questionada, o poeta parece tentar devolver à poesia seu olhar especial: um olhar que, particular como é, não reduz as coisas ao conceito abstrato, mas o complexifica, por meio do filtro do sujeito biográfico, social, histórico e mortal.
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O SUJEITO FEMININO NA OBRA NO TEMPO FRÁGIL DAS HORAS DE LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA Maria Suely de Oliveira Lopes (UESPI) Buscamos neste trabalho analisar o sujeito feminino Antônia Carneiro da Cunha, personagem resinificada na obra No tempo frágil das horas( 2003) de Luzilá Gonçalves Ferreira, na perspectiva da metaficção historiográfica. Propomos, inicialmente, uma discussão sobre literatura e história à luz do pensamento de Hayden White( e de outros teorizadores. Tendo em vista que o aspecto a ser investigado é a subjetividade feminina na escritura de Luzilá a partir da perspectiva historiográfica. Delineamos a contemporaneidade do entrecruzamento dos discursos histórico e ficcional de Luzilá com a pretensão de situar o lugar do discurso de sua escritura por meio da metaficção historiográfica, categoria discutida por Linda Hutcheon que assevera que a metaficção historiográfica tem por característica apropriar-se de personagens e/ou acontecimentos históricos sob a ordem da problematização dos fatos concebidos como “verdadeiros”. Luzilá, ao reescrever a narrativa ficcional, utiliza-se da historiografia oficial rompendo as fronteiras entre história e literatura que serão reconstruídas sob a égide
da
descentralização pós-moderna. Para tanto, a verdade universal cede lugar para
as
verdades particulares. O romance de Luzilá “faz parte da postura pós-modernista de confrontar os paradoxos da representação fictício-histórica, do particular/geral/e do presente/passado. A escrita de Luzilá é ao mesmo tempo fictícia, histórica e discursiva. Por isso é metaficcional. A realidade retratada constitui-se na do próprio discurso e historiográfica, porque retrata a realidade de discursos passados. Com ela, passamos a ter contato com as histórias dos perdedores e dos vencedores, dos centrados e dos marginalizados. E sobre a lógica da metaficção , o marginal, o excêntrico abraça a ideia à luz do reconhecimento de que a cultura não é homogênea. Palavras- chave: Literatura, Sujeito Feminino, Metaficção Historiográfica.
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Introdução Ao se deparar com um retrato antigo de uma senhora que viveu há muitos anos, Luzilá começou a imaginar como a vida daquela pessoa teria sido. A escritora se pôs a observar a fotografia do século XIX que retratava a Baronesa de Vera Cruz Antônia Carneiro da Cunha e a partir daí sua imaginação passou a eternizar a história dessa ilustre mulher através de sua obra No tempo frágil das horas (2003). Nesse livro a escritora refaz por meio da metaficção historiográfica a trajetória da nobre senhora pernambucana e a decadência da aristocracia canavieira em Pernambuco. Luzilá configura No tempo frágil das horas (2003) uma metaficção historiográfica, uma vez que analisa e rebate a realidade histórica e mostra que, se não é admissível apreender essa realidade histórica que pertence ao passado, é possível, ao menos, recriá-la no presente. O passado vai sendo arranjado com o próprio assunto ao longo da narrativa, entretanto no caso específico dessa obra, o passado é reapropriado por Luzilá com uma versão contemporânea pondo em destaque os grandes dificuldades de nossa época , na qual a ideologia se torna instrumento agenciador de uma crítica mordaz e corrosiva do texto histórico. Sabemos que a história é repensada, dessacralizada, mas o que é importante não esquecer é a prática do discurso literário, a partir do qual se engendra uma produção. A propósito da obra A obra No tempo frágil das horas (2003) é a biografia romanceada de Antônia Carneiro da Cunha. A obra retoma a um tempo em que as mulheres eram educadas para bordar, cerzir, tocar Chopin ao piano e se preservar para um casamento arranjado. A virgindade era mantida até as núpcias, para ser perdida sem prazer nem informação. Depois de casadas, a maior conquista que se poderia almejar era ver seu nome contido na relação de senhoras recomendadas da província, uma lista elaborada pela condessa de Barral, preceptora da princesa Isabel e da imperatriz Leopoldina. Aquelas mulheres que possuíam dinheiro iam regularmente a Paris, a bordo de navios que levavam mais de um mês para chegar à capital francesa. A aquisição de objetos, como, Jarros de
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Sèvres, cristais de Bacarat e cortinas de seda tinha que compensar todo o desejo que elas eram forçadas a reprimir. A personagem principal da trama é Antônia Carneiro da Cunha que casou-se com o tio Manoel Joaquim Carneiro da Cunha , a pedido de Maria Archangela, sua mãe. O casamento entre parentes próximos era uma prática da família como uma maneira de manter os bens intactos, pois pessoas estranhas não poderiam se misturar nos negócios e os sobrenomes seriam conservados por mais tempo. Como Antônia jamais conheceu o prazer de ser cortejada, visto que sua família lhe arrumou um marido logo ao nascer, ela se deleita ao ver a jovem Maria Amália ( outra protagonista importante na obra) viver seus amores com relativa liberdade. Maria Amália, sobrinha de Antônia foi casada com um lorde inglês, mas ficou viúva muito cedo. Por isso, acabou se casando uma segunda vez, para desgosto de seus pais, com um conde francês. No fim, as duas personagens ainda encontram a decadência financeira, devido a um conjunto de fatores históricos: o fim da escravidão, o avanço da industrialização, a ascensão dos barões do café em detrimento dos senhores de engenho, o deslocamento do poder econômico do Nordeste para o Sudeste do país. Esta obra literária partiu de uma fotografia antiga de Antônia que hoje está na casa de Alzira Guerra, uma amiga de Luzilá Gonçalves Ferreira cujo avô (José Barbosa de Vasconcelos) comprara o engenho Tamataúpe, que havia pertencido aos pais da baronesa. Com a ajuda da família da amiga, a escritora recuperou várias histórias que resistiram ao tempo. Além disso, foi necessário fazer uma meticulosa pesquisa para compor a trama. No Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco, Luzilá encontrou uma pintura a óleo de Antônia, motivo que lhe inspirou ainda mais. A autora leu cartas de sua personagem histórica, tocou objetos que lhe pertenceram e visitou os lugares que ela amava. A obra No tempo frágil das horas é narrada em terceira pessoa, embora em alguns trechos da narrativa, a narradora autorize algumas personagens a manifestar seu próprio discurso. Luzilá utiliza como recurso estético a técnica da transtextualização, uma vez que a obra reconfigura a história de Antônia Carneiro da Cunha tendo como
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referência sua fotografia dando-nos a oportunidade de conhecê-la e poder refletir na conjuntura atual sobre trajetória de algumas mulheres que mesmo na condição de esposas, podem exercer também outras funções. Luzilá traz à tona, também, alguns problemas que estavam abalando a estrutura financeira do nordeste , que ainda hoje a sociedade sente seus reflexos, como por exemplo, a escravidão, cisão entre norte e sul e as implicações com o processo de industrialização. A obra, em análise, se divide em três partes: a primeira parte é narrada de forma detalhada sobre o nascimento de Antônia Carneiro da Cunha bem como o seu casamento com o tio Manoel Joaquim Carneiro da Cunha. A segunda parte aborda a vida de Maria Amália, filha de Amália Carolina Lins de Albuquerque e sobrinha de Antônia Carneiro da Cunha. Nessa parte Antônia e Maria Amália mostram-se personagens apaixonadas, mas condenadas a uma interioridade monótona. Ambas representam a decadência aristocrática pernambucana. E a terceira, apresenta a decadência financeira de Antônia bem como a dos seus engenhos Tamataúpe e Monjope. Vale ressaltar que cada uma dessas partes se interpenetra, no plano da narrativa, não havendo linearidade em relação à apresentação dos acontecimentos. Vez por outra eles são retomados através de flashes pelas imaginação dos personagens. Diálogo entre Literatura e história Para White (1994), o historiador não pode ser tão ingênuo, ignorar a estreita relação entre história e mito. A história não é uma ciência porque não é realista, o discurso histórico não apreende um mundo exterior, porque o real é produzido pelo discurso. O que o historiador produz são marcas poéticas. Para ele é a linguagem que constitui o sentido. A história é uma representação, narrativa de representações-fontes. Os próprios documentos históricos já constituem representações, interpretações, e não são o passado em si. A narrativa histórica é uma “construção imaginativa” do passado. Inferimos a opinião de Hutcheon ao nos dizer que: A narrativa histórica é construída a partir de dois elementos importantíssimos: os elementos descritos nas narrativas e o tipo de enredo que o historiador escolheu para conferir sentido a seu texto. Este, na função de contador de história, pode “silenciar, excluir e
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eliminar os acontecimentos” do passado, exatamente como os escritores. “Um elemento que nunca pode faltar em nenhum texto histórico ou literário é o elemento ficcional”. (HUTCHEON, 1991, p. 143).
Em relação a esse comentário, vale ressaltar que: a associação entre a História e a narrativa não pôde acontecer enquanto o modelo de cientificismo fascinou as ciências sociais nascentes e o positivismo, “com sua exaltação do científico, continuou a tranquilizar as tesas sérias dos historiadores.” (COSTA LIMA, 1989, p. 17)
A narratividade é uma marca encontrada nos discursos historiográficos literários. Sendo assim, na contemporaneidade, a Literatura e a História não podem ser julgadas como verdadeiras ou falsas, não há como fazer um juízo de valor quanto a elas. Na verdade, as duas não são verdadeiras nem falsas, e é exatamente esse valor que traz o traço ficcional presente em cada uma delas. O que distingue um historiador de um autor de romances é a liberdade de criação – a literatura é muito mais livre para imaginar –, um estudioso de história quando inventa alguma parte do discurso, é obrigado a insinuar sua criação, o escritor de romances quando escreve pode criar e recriar algum texto sem obrigação de explicar para alguém o que imaginou, a essência da sua escrita é realmente a imaginação, a criação de mundos e de histórias diferentes das convencionadas por historiadores ou quaisquer outras pessoas. No próximo tópico passamos a investigação da obra literária No tempo frágil das horas. O sujeito feminino na obra No tempo frágil das Horas O romance No tempo frágil das horas (2003) apresenta personagens que tiveram uma existência própria, embora os motivos aqui ressurgidos sejam criação da escritora, mas que trazem à tona questões de natureza econômica, social, e existencial. Com um retrato de Antônia Carneiro da Cunha Luzilá retoma questões do século XIX que mudaram a nossa história.
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Diante desse forte caráter metaficcional e por tratar de fatos e personagens históricos conhecidos, a referida obra mantém um diálogo com o presente por meio do passado. O universo metaficcional apresenta como personagens mais importantes, considerando sua participação na narrativa: Antônia Cavalcanti Carneiro Da CunhaBaronesa de Vera Cruz. Antônia é a grande protagonista da narrativa, apresentada como uma mulher de existência abafada. Desde seu nascimento foi prometida em casamento para o tio. O casamento, segundo Rocha-Coutinho(1994,p.83) “abria-se com uma única possibilidade de ancensão social, em um tempo em que não eram permitidas às mulheres às atividades que possibilitassem sua promoção por esforço próprio”. Antônia foi educada para tocar piano, dentre outras atividades, no entanto, o destino lhe reservou outra trajetória. Depois da morte de seu marido, foi obrigada, sem nenhuma experiência, a administrar os quatro engenhos, entre eles Monjope e Tamataúpe. Sua vida se resumia a cuidar do marido, da Igreja, da filha, dos escravos e dos engenhos. Senhora de quatro engenhos. Um peso demasiado grande para os ombros de uma mulher, mesmo uma mulher como Antônia. Significava o comando de mais centena de negros, a vigilância dos negócios, a administração da casa. Antônia lutara, se debatera , os engenhos continuaram a produzir o açúcar que era enviado a Goiana pelo rio Tracunhaém, os partidos louros se espraiando pelas terras cortadas por águas. (FERREIRA, 2003, p.90 )
A vida amorosa de Antônia não apresentava maiores novidades. Queria ter vivido grandes momentos de amor com seu esposo igualmente vivia Maria Amália com o Conde de Gaston. Sua noite de núpcias não foi uma experiência plena de emoções. Ela não se sentiu galanteada pelo marido. Ao contrário, naquele momento ela se sentiu estranha em relação a ele. Não reteve boas recordações. __Nenhum beijo, nenhuma palavra, mas de súbito algo parecera lhe cortar as entranhas. Lançara um pequeno, ele lhe cobrira a boca com a mão, enquanto se agitava sobre ela.
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[...] Não ousara se mexer, nem poderia, o corpo prisioneiro daquele homem que muito vagamente lembrava o tio conhecido. Quanto tempo havia durado tudo, minutos, horas? Os instantes pareceram longos, tivesse coragem diria tio, por favor acaba logo. [...] __Perdoa-me, Antônia, as coisas são assim. E acrescentara: __Se eu pudesse nunca te teria tocado. (FERREIRA,2003,p.35)
Como podemos ver, Antônia levava uma vida de monotonia, acostumadas àquela rotina provinciana, ela não têm noção do quanto lhe é penosa e dilacerante, em contraste com a vida lá fora, em que as pessoas se divertem muito. Viu na pessoa José Barbosa de Vasconcelos (comprador do Engenho Tamataúpe) a possibilidade de viver um grande amor, mas este não compreendeu suas intenções no último encontro que tiveram em que ele vai propor a compra do Engenho Tamataúpe. Estava condenada a viver simplesmente das recordações. Nas horas frágeis do dia, lembrava-se de tudo que poderia ter vivido e não viveu. Após sua morte, Alzira Guerra, neta de José Barbosa de Vasconcelos, descobre, em Tamataúpe, um baú onde Antônia deixou objetos pessoais e algumas cartas. Nessas, ela deixou insinuar o interesse que teve por José Barbosa. A outra protagonista que destacamos é Maria Amália Carneiro Lins d’Albuquereque, Filha de Amália Carolina Lins de Albuquerque, sobrinha do Conde de Boa Vista e viúva de um lorde inglês George Anderson Cricket. Maria Amália era jovem bonita, o corpo irrequieto que mal se continha dentro das vestes negras. Mostrava-se calma, e às vezes assumia um amadurecimento que Antônia lhe desconhecia. Era sabedora do vulcão que possuía dentro de si que ardia sobre os vestidos longos, de decotes altos, mangas até os pulsos. Entre a história e a ficção: o jogo transtextual Dentre os tipos de relação transtextual, definidas por Genette (2006), como, a intertextualidade, o paratexto, a metatextualidade, a arquitextualidade, destacamos neste estudo a hipertextualidade( quarto tipo ) entendida como toda relação que une o
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texto B (que Genette chama de hipertexto), ao texto A (hipotexto). O texto nasce não como uma explicação, mas como um texto que se transforma e comunica também a ação do outro. O hipertexto acrescenta algo novo porque funciona como uma reescritura na quais sentidos novos surgem a partir de temas já conhecidos. Vale ressaltar que mesmo que um texto tenha sido criado com base em outro, isso não o obriga, necessariamente, a um processo de imitação, pois o texto pode seguir seus próprios passos e provocar uma nova obra literária, que pode apresentar um referencial, mas também sua própria autonomia. Por meio de uma fotografia na parede da sala, Luzilá dar um novo sentido a história de Antônia Carneiro da Cunha. É possível identificar na narrativa aspectos que aglutinam a ficção à história, de modo que o passado funciona como uma tela sobre a qual se projeta a história dessa ilustre Baronesa de Vera Cruz. Em meio aos tipos de relação transtextual citadas anteriormente dizemos que No tempo frágil das horas (2003) apresenta a hipertextualidade, que é entendida como toda relação que une o texto B (que Genette chama de hipertexto), ao texto A (hipotexto) (GENETTE,2006). O texto de referência é o retrato de Antônia Carneiro da Silva (texto A-hipotexto) e a obra é a produção (texto B-hipertexto). A obra nasce como um texto que se transfigura e comunica também a ação do outro e se concretiza na leitura. Os vários exemplos que são utilizados nesta análise justificam a presença da hipertextualidade na obra. O excerto abaixo lembra a ideia de eternizar o tempo, através do retrato, como podemos constatar na citação abaixo: Nasceu-lhes assim, um dia, a ideia de mandar fazer um grande retrato óleo da família. Um pintor françês fora chamado e, durante meses, viera a Monjope para retratar a família do Barão de Vera Cruz, com seus rostos sérios , suas vestes escuras. [...] Visão da jovem que fora um dia não lhe suscitava saudades ou remorsos. No quadro estava sua juventude imobilizada, beleza perene, rosto no qual nunca uma ruga se inscrevia, corpo que não se tornaria jamais flácido, cabelos definitivamente negros. (FERREIRA, 2003, p.62-63)
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Na obra, em análise, encontramos cenas descritas que referenciam de alguma forma, ações sugeridas no retrato de Antônia. O passado como referente não é enquadrado nem apagado, ele é incorporado e modificado, recebendo uma vida e um sentido novos e diferentes (HUTCHEON, 1991,p.45). Faremos, a seguir, a descrição de cenas que são sugeridas a partir da fotografia, ao longo da narrativa, para identificarmos o nível de hipertextualidade presente na obra. Antes da primeira parte do romance, Luzilá explica os motivos que a levaram a produzir No tempo frágil das horas: Tudo começou por um retrato na parede da sala. Em meio a móveis escuros e solenes, ao lado de vitrines de outras épocas, ela era uma bela mulher, indiferente ao que a cercava.O fotógrafo que salvaria do total desaparecimento sua frágil silhueta, seu jeito misterioso, não parecia interessá-la, ela com o corpo meio de lado, os olhos fixando algo que não víamos, fora da tela, fora do tempo.Pensaria que naquele momento - o fugaz instante da foto posava para um futuro que não conheceria, tornava-se, de algum modo, eterna? A dona do retrato me entregou parte de sua vida, diversa e igual à de tantas mulheres que cumpriram seu destino sobre a terra, no efêmero instante de tempo entre duas eternidades, o momento presente, sem nela deixar cicatrizes , nem mesmo um filho que as continuasse, cujas veias transportassem parte de seu sangue, vagos traços seus ressurgindo em algum remoto descendente anos depois. Antônia, aqueles que se foram não precisam de nós. Mas durante meses tua figura me seguiu, e te busquei nos lugares que amaste e dos quais pouco resta de ti e de teu passado. Com minhas mãos toquei objetos que te pertenceram, teu vestido de noiva vindo de parias, com o sapatinho de cetim que não caberia no pé de uma criança de hoje. Li e reli cartas e bilhetes ditados por teu desespero e solidão. Folheei teu inventário, que é um pouco a história de seu esplendor e decadência. Perdoa se, nas páginas que seguem num aqui e agora tão diversos do que foi teu tempo e espaços, eu busquei te entender, te reinventar. (FERREIRA,2003.p.11)
O prefácio foi escrito em forma de homenagem. Ao reinventar Antônia, a autora refaz o presente por meio do passado. Esse funciona como referente imediato para que se reescreva a história de Antônia. De maneira nostálgica a obra traz para os dias de hoje o que já passou pelo cotidiano de Antônia. Conforme escreve Hutcheon (1991, p.168), “o passado realmente existiu, mas hoje só podemos ‘conhecer’ esse passado por
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meio de seus textos e aí se situa seu vínculo com o literário”, aqui ampliando a visão para além do literário, dentro do Universo de imagens e sons. Na primeira parte da obra, as cenas que são referenciadas são o nascimento de Antônia e o seu casamento com Manoel Joaquim Carneiro da Cunha. A história oficial registra que ele foi o primeiro e único Barão de Vera Cruz. Senhor de engenho, filho de Joaquim Manuel Carneiro da Cunha de Antônia Maria de Albuquerque Lins, depois do casamento com Antônia Cavalcanti Carneiro da Cunha, teve uma filha, Maria Arcanja Carneiro da Cunha, falecida em 1867, aos dez anos. Era senhor do Engenho Monjope, em Igarassu e dono de diversos escravos. Podemos atestar as informações referenciadas no romance através do excerto abaixo: O capitão-mor Joaquim Manoel Carneiro da cunha, senhor de S. Paulo da Freguesia de São João, comarca de Brejo d’Areia,tivera sete filhos.Quatro haviam morrido, restáramos dois homens chamados Manoel e Maria Archangela.Um dos meninos tomara o sobrenome da mãe, para não ser confundido com o irmão. E ninguém se espantava que, de um mesmo leito, houvessem nascido um Manoel Joaquim Carneiro da Cunha e um Manoel Joaquim Lins de Albuquerque. A mãe desejara que o caçula carregasse o sobrenome dos seus, aqueles Lins de Albuquerque vindos nas caravelas. (FERREIRA, 2003, p.16-17)
. O fato de Antônia ter se unido em casamento ao Joaquim Manoel é justificável, pois, Monjope pertencia a família há mais de um século, e não podia ficar em mãos de estranhos. Vejamos: Um Holanda de Albuquerque havia o aos Jesuítas, ali instalados quando a região não era mais densas florestas, habitadas por caetés expulsos de Olinda. Acima da porta da capela uma data lembrava-se da sua reconstrução: 1726. Haviam aberto, em meio à mata, enormes clareias onde a cana se esparaiava, bordejando os riachos e rio, rasgando a terra macia e compacta do massapé, de onde brotariam pendões brilhantes ao sol. A casa-grande era uma espécie de ermida, de linhas escritas: no térreo um grande salão onde se cozinhava e se faziam as refeições, no primeiro andar o dormitório. Mas a alta chaminé, a enorme casa de purgar, a roda da moenda maior que qualquer outra das redondezas anunciava que aquele abrigo modesto era apenas o esboço do que seria, mais tarde, a casa-grande do engenho Monjope.
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Portanto, através da hipertextualidade, podemos perceber que a obra atualiza as questões subjetivas de Antônia e as questões relacionadas à história oficial. Considerações Finais Por meio do retrato de Antônia Carneiro da Cunha foi possível ressemanitizar a história dessas referida personagens históricas e fictícias e de uma época (século XIX) na província de Pernambuco através dos aspectos transtextuais de Genette(2006) associado à metaficção historiográfica, vista por
de Hutcheon(1991), como a
intersecção entre produtor, texto e receptor, constituindo-se dos contextos social, ideológico, histórico e estético. Consequentemente, ela ultrapassa a autorreflexão e situa o discurso em um sentido mais amplo, uma vez que é fundamentalmente irônica e crítica em relação ao passado e presente. Referências COSTA LIMA,L. A aguarrás do tempo: estudos sobre a narrativa. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1989.
FERREIRA, Luzilá Gonçalves. No tempo frágil das horas. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. GENETTE, Gerard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Tradução de: Luciene Guimarães e Maria Antônia Ramos Coutinho. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, 2006. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção: tradução Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed.1991. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronteiras da ficção. Diálogos da história com a literatura. Revista de História das Ideias, Coimbra, v. 21, p. 33-57, 2000.rasileira nas relações familiares.Rio de Janeiro:Rocco,1994. ROCHA-COUTINHO,Maria Lúcia.Tecendo por trás relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco,1994.
dos panos: a mulher brasileira nas
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WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: EDUNESP, 2000. ______________. "Teoria literária e escrita da história." In: Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 7, 1994.
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ENTRE ABISMOS E ESPELHOS: POR UMA TEORIA DA MISE EN ABYME Mariângela Alonso (UNESP/CNPq) Introdução: Por uma teoria da mise en abyme “Não há homem ou mulher que por acaso não se tenha olhado ao espelho e se surpreendido consigo próprio”1. A abordagem e significação da intertextualidade fomentada por teóricos como Mikhail Bakhtin e Julia Kristeva engendrou, por meio das pesquisas realizadas no âmbito da crítica francesa, a difusão de incontáveis teorias que ampliaram a compreensão do conceito, inaugurando novas leituras e estratégias discursivas em suas formas de utilização. É curioso quando o procedimento da intertextualidade pauta-se no trabalho de resgate de textos de um mesmo autor, reescrevendo-se em outro texto, no movimento de remissão à própria obra, dando origem ao fenômeno da chamada autotextualidade ou intratextualidade, conforme a nomenclatura de Gérard Genette (1982). Como exercício de reenvio a outros textos, a autotextualidade ou intratextualidade constitui-se numa forma específica de transtextualidade, apresentando especificidades: “[...] qu’il faudrait peut-être considérer pour elle-même – mais rien ne presse” (GENETTE, 1982, p. 231). Frequentemente os teóricos discriminam “intertextualidade interna” e “externa”, como é o caso de Jean Ricardou em Pour une théorie du nouveau roman (1971). Ao discutir a unidade da obra literária e a noção de autor, Ricardou estabelece as diferenças, indicando a “intertextualidade externa” como a relação de um texto com outro texto, distinguindo-a da “intertextualidade interna”, cuja relação é pautada por um texto consigo mesmo. 1
LISPECTOR, Clarice. A surpresa. In: LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 23.
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No colóquio Claude Simon de Cerisy-la-Salle (1974) o estudioso ainda determina a “intertextualidade geral”, caracterizada como as relações intertextuais entre textos de autores diferentes, e a “intertextualidade restrita”, por sua vez, demarcada pelas relações entre textos de um mesmo autor. A partir da distinção postulada por Ricardou, o teórico Lucien Dallenbach (1979) admite a existência da chamada “intertextualidade autárquica”, designando-a por “autotextualidade”, como o fez Gérard Genette. Em sua especificidade, o fenômeno do autotexto pode ser caracterizado como uma “reduplicação interna” da obra literária, no sistema das “relações possíveis dum texto consigo mesmo” (DALLENBACH, 1979, p. 52), ao desdobrar a narrativa toda ou em parte sob as dimensões “literal” (a do texto, no sentido estrito) ou “referencial” (a da ficção). Em seguida, Dallenbach inicia a discussão a respeito da mise en abyme, procedimento que concebe como “autotexto particular” (DALLENBACH, 1979, p. 53), retomando os apontamentos do escritor André Gide (1869-1951). A imagem en abyme que seduz Gide é oriunda da heráldica e representa um escudo contendo em seu centro uma espécie de miniatura de si mesma, de modo a indicar um processo de profundidade e infinito, o que parece sugerir, no campo literário, noções de reflexo, espelhamento. De acordo com os heraldistas, o escudo é o elemento central do brasão; é nele que estão contidos os caracteres distintivos2. O termo abyme, por sua vez, alude ao centro do escudo, quando as peças aí inseridas portam dimensões menores, revelando um espaço de miniaturização de figuras, configuração que levou Gide a perfilhar por analogia o procedimento do encaixe narrativo. Não são poucos os estudiosos que se debruçaram sobre o procedimento da mise en abyme e sua especularidade, haja vista a diversidade de expressões utilizadas, conferindo ao termo riqueza simbólica e estrutural advinda de domínios artísticos diversos. Para além da famosa comparação gidiana com o brasão, é possível encontrarmos os termos “réfractions”, no vocabulário de Michel Butor; “procédé de 2
Cf. ZUQUETE, Afonso Eduardo Martins. Armorial lusitano: genealogia e heráldica. Lisboa: Editorial Enciclopédia, 1961.
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repli ou de réflexion”, nos dizeres de C.E. Magny; “jeux de miroirs parfois byzantins”, no entendimento de Michel Raimond; “miroir”, nos estudos de Jean Ricardou e ainda o verbo “réfléchir” e a palavra “reflet” no que tange aos estudos realizados pelos autores da Rhétorique générale. A metáfora do espelho também esteve presente na esfera da psicanálise. Os estudos desenvolvidos por Jacques Lacan (1901-1981) utilizam a metáfora especular estendendo-a à noção de narcisismo. O estudo lacaniano foi intitulado “O estágio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica” e apresentado pelo autor em julho de 1949, em Zurique, na ocasião do XVI Congresso Internacional de Psicanálise. A fim de explanar e tornar mais clara a especularidade da figura heráldica tomada por Gide, Dallenbach (1972) atenta para as comparações à exaustão com as bonecas russas e as caixas chinesas, as quais engendram-se umas às outras, bem como as pirâmides mexicanas, que se encaixam e se refletem mutuamente; os cartazes publicitários, reproduzindo seus motivos ao infinito e em perspectiva e ainda a famosa fita de Moebius, cujas faces interna e externa permutam-se, invertendo sua identidade. A pluralidade de comparações em torno do conceito de mise en abyme e sua especularidade permite acrescentarmos a chamada Geometria dos fractais, teoria elaborada pelo matemático polonês Benoît Mandelbrot (1924-2010) em 1975. Proveniente do latim fractus, o termo “fractal” deriva do verbo frangere, cujas significações abrangem os sentidos de quebrar, fender-se, ou seja, “criar fragmentos irregulares, fragmentar” (BARBOSA, 2002, p. 9). Diante desta noção, Mandelbrot desenvolveu estudos de formas e padrões geométricos que se repetiam infinitamente, ainda que restritos a um espaço finito. Assim, os fractais constituem-se em formas determinadas pela propriedade de auto-semelhança, visto que uma parte da figura reflete, de modo exato ou aproximado, sua totalidade. O melhor exemplo é o estudo realizado nas costas da Bretanha, em que cada trecho, com seus cabos e baías, é similar a uma miniatura de todo o litoral. A Geometria dos fractais estende-se a diferentes áreas do conhecimento, tais como às ciências naturais, no que tange ao formato e dimensões de nuvens, relâmpagos,
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plantas e árvores, bem como a outros campos, sendo a computação, a engenharia, a biologia, a geografia, a física, a arte, entre outros. Na medida em que postula uma semelhança entre suas formas, o temário proposto pela Geometria dos fractais encontra ressonância no âmbito da teoria literária, especialmente no que tange aos estudos de Dallenbach (1972) a respeito da narrativa Les faux-monnayeurs (1926), de Andre Gide. Nessa obra, o personagem Edouard é um escritor que tem como projeto redigir um livro que, por sua vez, leva o mesmo título do romance que estamos lendo, caracterizando, portanto, a estratégia narrativa da mise en abyme. Essencialmente metalinguística, a narrativa de Les faux-monnayeurs ofereceu ao autor o ensejo de discutir os procedimentos fundamentais da condução da obra, questionando os limites de sua criação e caracterização. O entendimento do vocábulo mise en abyme perpassa, na escala de personagens da obra literária, o redobramento do próprio sujeito da narrativa, num movimento reflexivo, conforme lembra Lucien Dallenbach: “O que primeiro cabe evidenciar, é que a obra de arte reflexiva é uma representação – e uma representação dotada dum grande poder de coesão interna” (DALLENBACH, 1979, p. 67-68). A mise en abyme também ganhou destaque nos anos 60, sobretudo com o nouveau roman3, tal como atestam os estudos de Jean Ricardou em Le nouveau roman (1978). Para Ricardou, a mise en abyme constitui-se em um procedimento retórico de duplicação interior, capaz de gerar interessantes jogos reflexivos nas narrativas. O estudioso aposta na hipótese de substituição da visão crítica da mise en abyme como micro história de uma macro história, insistindo na ideia de uma macro história como “mise en périphérie” de uma micro narrativa. Assim, os acontecimentos contidos na mise en abyme não seriam apenas presságios, oráculos ou profecias miméticas, mas “il s’apparenterait moins à une opération augurale qu’à une activité magique; il serait moins une expression anticipée que la base d’une production” (RICARDOU, 1978, p. 54). 3
Termo utilizado para designar um conjunto de romances franceses publicados no período do pós-guerra. A expressão foi cunhada pelo escritor francês Allain Robbe-Grillet (1922-2008) e discutida por ele no ensaio intitulado Por um novo romance: “[...] trata-se apenas de um rótulo cômodo que engloba todos aqueles que procuram novas formas de romance, capazes de exprimir (ou de criar) novas relações entre o homem e o mundo, todos aqueles que se decidiram a inventar o romance, isto é, a inventar o homem”. (ROBBE-GRILLET, 1969, p. 8).
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Com
a
fundamentação
teórica
até
aqui
exposta,
pretende-se,
mais
especificamente, descrever o procedimento da mise en abyme como um dos meios da intertextualidade, tornando a obra literária um instrumento intrigante e questionador. Demonstrar como a mise en abyme pode abeirar-se de tais questões, no campo da literatura de Clarice Lispector (1920-1977), é a intenção desta pesquisa, a partir das análises dos textos Meio cômico, mas eficaz e Receita de assassinato (de baratas), A quinta história e A paixão segundo GH. Abismos, espelhos e baratas As crônicas Meio cômico, mas eficaz e Receita de assassinato (de baratas) foram publicadas respectivamente em 1952 e 1960, época em que Clarice Lispector colaborava nos jornais Comício e Diário da noite, como responsável por páginas femininas. Temendo que seu público pudesse não compreender a natureza de tais textos, a escritora preferiu proteger-se sob a capa de pseudônimos. Nesses textos jornalísticos, a autora lançava mão de uma linguagem despojada, adotando um discurso construído em tom de conversa íntima 4. Todavia, é exatamente nessas páginas que se concentraram alguns embriões de contos e romances, espécie de ciranda de textos que se complementam em vários sentidos, conforme abordado pela crítica. As crônicas acima mencionadas apresentam-se na forma de uma receita para matar baratas e acabam por revelar a gênese do que seria o conto A quinta história e o romance A paixão segundo G.H., ambos publicados em 1964. Em meio a uma conversa “entre mulheres”, em que os papéis experimentados no cenário doméstico são colocados em pauta, surge a intrigante receita Meio cômico, mas eficaz: “Ponha, por exemplo, terebentina nos lugares freqüentados pelas baratas: elas fugirão. Mas para onde? O melhor, como se vê, é mesmo engessá-las em inúmeros monumentozinhos, pois ‘para onde’ pode ser outro aposento da casa, o que não resolve o problema” (LISPECTOR apud NUNES, 2006, p. 173).
4
cf. ALONSO, Mariângela. Clarice Lispector e a imprensa feminina na década de 50: Como matar baratas?. Travessias interativas. Ribeirão Preto, UNIESP, vol. 2. nov. 2011.
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Esse mesmo texto aparece, com pequenas modificações, em 16 de Agosto de 1960 na página Só para mulheres com o título de Receita de assassinato (de baratas). Ao confrontarmos as duas receitas, veremos que Receita de assassinato, por apresentarse estruturada em três partes ou etapas, é a crônica que mais se aproxima do conto A quinta história. A dona de casa é inserida numa espécie de pequeno ritual macabro, cautelosamente seguido de atração e morte dos insetos: Deixe, todas as noites, nos lugares preferidos pelas baratinhas horríveis, a seguinte comidinha: açúcar, farinha e gesso, misturados em partes iguais. Comida ruim? Para baratas é uma iguaria que as atrai imediatamente. O segundo passo, pois, é dado pelas próprias baratas que comerão radiantes o jantar. O terceiro passo é dado pelo gesso que estava na comida. O gesso endurece lá dentro delas, o que provoca morte certa. Na manhã seguinte dezenas de baratas duras enfeitarão como estátuas a vossa cozinha, madame. (LISPECTOR apud NUNES, 2006, p. 270)
Como se vê, a receita conta com três etapas distintas e elaboradas, que, gradualmente caminham para a morte certa das baratas. Neste processo de encaixe narrativo, cada uma das etapas conta com uma espécie de suplemento que ficará fora da forma a se desenrolar, fazendo-se necessária a inserção de outra fase ou etapa: “[...] cada uma delas remete à outra, numa série de reflexos que não pode chegar ao fim, salvo se tornar eterna: assim por auto-encaixe” (TODOROV, 1969, p. 132). Apresentando uma estrutura narrativa concêntrica e espiralada, na qual cinco estórias ilustram uma espécie de jogo de espelhos ou mise en abyme, o conto A quinta história repete instigantes estruturas temáticas. Clarice Lispector constrói em poucos parágrafos variações sobre um mesmo argumento, uma espécie de desdobramento de histórias que se sucedem, a partir de um mesmo ponto, como matar baratas: Esta história poderia chamar-se ‘As estátuas’. Outro nome possível é ‘O assassinato’. E também ‘Como matar baratas’. Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma noites me dessem. (LISPECTOR, 1999, p. 74)
Manejando os meandros da linguagem literária, o conto clariceano avança, portanto, em direção à capacidade reflexiva, intervindo como metassignificação, o que permite à narrativa tomar-se a si mesma como tema: “Il rilievo teorico della pratica della mise en abyme si sviluppa secondo due fondamentale direttrici problematiche: la
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sua natura contestatoria dell'ordine del testo, il suo valore metacomunicativo” (TOMASSINI, 1990, p. 93). As variações de mesmo tema permitem que Lispector lance mão da chamada “duplicação ao infinito”, categoria tipificada pelos estudos de Dällenbach. Como exemplo desta categoria, temos a narrativa Contraponto, de Aldous Huxley (18941963). Na obra de Huxley, Philip Quarles, personagem escritor, imagina um romance em que um homem (também escritor) escreve um romance no qual um homem, por sua vez, também escreve. Prefigura-se, assim, o desdobramento infinito do enredo. De modo semelhante, as imagens dos insetos clariceanos surgem multiplicadas nos desdobramentos de mesmo tema, enovelando-se sobre si mesmas, de modo a demarcar na escrita o impulso funcional da própria narrativa: “Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o momento em que vejo os monumentos de gesso” (LISPECTOR, 1999, p. 76). Para o crítico Affonso Romano de Sant’anna há “várias lições” que poderiam ser tiradas de A quinta história, sobremaneira os aspectos intra (ligações internas do texto) e intertextuais (ligações entre um romance e outro, entre um conto e outro), o que leva o estudioso a afirmar: De alguma maneira, portanto, a estrutura de ‘A quinta história’ é o modelo reduzido de um processo que se repete em toda sua obra. Os textos se remetem a si mesmos num jogo de espelhos e repetem algumas obsessões temáticas e estruturais. (SANT’ANNA, 1988, p. 239)
Em Palimpsestes: la litterature au second degré (1982), o teórico Gérard Genette oferece importante contribuição no que tange aos estudos de transtextualidade ou transcendência textual, que explica do seguinte modo: “tudo o que o coloca (o texto) em relação, manifesta ou secreta, com outros textos” (GENETTE, 1982, p. 7). Ao apresentar as possibilidades de transformação textual, Genette põe em ordem duas operações: a redução e o acréscimo ou amplificação. Essa última pode ser caracterizada por uma espécie de dilatação estilística, em que o ato de duplicar ou triplicar frases de um hipotexto se faz presente. A esse respeito, a obra Moyse sauvé (1643), de SaintAmant (1594-1661) é lembrada por Genette. Há aí uma intrigante ampliação das poucas linhas do Gênese para seis mil versos na obra de Saint-Amant.
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Do mesmo modo, a obra de Clarice Lispector vivenciou ao mesmo tempo, um ato lúdico e reflexivo ao ampliar e multiplicar a imagem das baratas, com a dilatação de detalhes e dramas que culminaram no romance A paixão segundo G.H., publicado em 1964, sintomaticamente, no mesmo ano do conto A quinta história. Pode-se dizer que uma entre todas as baratas claricianas sobreviveu e instalou-se no guarda-roupa de um quarto de empregada (A paixão segundo G.H). Ao comentar seu apartamento, ou seja, a casa onde em "semiluxo" vive, a escultora G.H. explicita um espaço de contrastes e de poder. Não se trata de uma relação fictícia com o apartamento, mas de uma cumplicidade nos momentos indivisíveis da consciência sendo refletida em cada cômodo visitado pela protagonista, que trilha caminhos no sacrifício de buscar sua identidade, ao encontro de uma experiência transgressora: “Tudo aqui se refere na verdade a uma vida que se fosse real não me serviria. O que decalca ela, então? Real, eu não a entenderia, mas gosto da duplicata e a entendo. A cópia é sempre bonita” (LISPECTOR, 1998, p. 30). A relação de G.H com o apartamento, calcada na cópia, na duplicata do ambiente, contribui sorrateiramente para o entendimento em torno da movência de textos, elemento constante na gênese, no processo de criação de Clarice Lispector5. No confronto com a barata, o que se expõe é a matéria que a assusta e lhe foge ao controle. Conforme sinaliza Nádia Gotlib: As tantas camadas de sentido que a narradora vai descascando, tal como as ‘cascas’ da barata, desenham, na própria estrutura da obra, o desvencilhar-se do convencional em direção ao original, dando voz ao feio, seco, mágico, difícil. (GOTLIB, 1988, p. 174-175)
A ideia de Gotlib em torno das “camadas de sentido” ligadas às “cascas da barata” é útil para pensarmos o mecanismo textual de espelhamento do texto clariceano à semelhança das bonecas russas (matrioskas) e das caixas chinesas, acopladas umas dentro das outras, em sinal de infinita retomada. Exposta assim, a arquitetura en abyme ganha contornos mais nuançados, vertiginosamente inserindo a imagem de um espaço dentro de outro. Neste sentido, recorremos à perspectiva de Tomassini: “Hanno il valore di mise en abyme tutti quei 5
Cf. ALONSO, Mariângela. Instantes líricos de revelação: a narrativa poética em Clarice Lispector. São Paulo: Annablume, 2013.
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racconti nel racconto che intrattengano un rapporto di somiglianza tematica com l'opera nella quale sono inclusi, siano essi delle digressioni o dei discorsi metadiegetici” (TOMASSINI, 1990, p. 92). Esforçando-se para organizar seu discurso, G.H. avança e recua ao mesmo tempo, no andamento da narrativa, conforme observamos na repetição das frases. Nessa arquitetura circular e en abyme, a protagonista encerra a prova-limite de sua peregrinação: “É que a redenção devia ser na própria coisa. E a redenção na própria coisa seria eu botar na boca a massa branca da barata” (LISPECTOR, 1998, p. 178). Tal como “uma massa que vai espraiando sobre o papel em círculos concêntricos. Em espiral ou espirais” (SANT’ANNA, 1988, p. 238), o livro se fecha e se abre, preparando o seu início. Conclusão: O percurso literário clariciano instaura uma nova realidade no cenário da Literatura Brasileira. Expandindo-se para além dos espaços ficcionais, sua escrita costuma mostrar-se em sua multiplicidade, legando-nos uma produção literária diversificada em crônicas, contos e romances. Trata-se de uma dinâmica textual ao mesmo tempo associada e dissociada a certos contextos reincidentes. Repetições, reencontros, reduplicações. É assim que as imagens das baratas voltam e Clarice apresenta uma literatura com forte capacidade reflexiva, instaurando o movimento do sujeito que se procura. O texto é semelhante a um novelo narrativo em que escrever equivale a procurar. Nesse novelo en abyme, o homem volta, as baratas voltam, instituindo obsessivamente o eterno retorno. Referências BARBOSA, Ruy Madsen. Descobrindo a geometria fractal para a sala de aula. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. (Col. Tendências em Educação Matemática).
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DALLENBACH, Lucien. Intertexto e autotexto. In: DALLENBACH, Lucien et alii. Intertextualidades. Tradução de Clara Crabbé Rocha. Coimbra: Almedina, 1979, p. 5176. ______. Le recit spéculaire: essai sur la mise en abyme. Paris: Seuil, 1977. GENETTE, Gérard. Palimpsestes: la littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982. GOTLIB, Nádia Battella. Um fio de voz: histórias de Clarice. In: NUNES, Benedito (org) et alii. A paixão segundo G.H. Paris: Association Archives de la littérature latino américaine, des Caraibes et africaine du XX e siècle; Brasília, DF: CNPQ, 1988. p. 164195, (Arquivos, 13). LISPECTOR, Clarice. Meio cômico, mas eficaz; Receita de assassinato (de baratas). In: NUNES, Aparecida Maria. Clarice Lispector jornalista: páginas femininas e outras páginas. São Paulo: Senac, 2006. p. 120; p. 270. ______. A quinta história. In: LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 74-76. ______. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. RICARDOU, Jean. Le récit abymé. In: RICARDOU, Jean. Le noveau roman. Paris: Seuil, 1978. p. 47-75. _______. Pour une théorie du nouveau roman. Paris: Seuil, 1971. ROBBE-GRILLET, Alain. Por um novo romance. Tradução T. C. Netto. São Paulo: Documentos, 1969. TODOROV, Tzvetan. Os homens-narrativas. In: TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução Moysés Baumstein. São Paulo: Perspectiva, 1969, p. 119-133.
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TOMASSINI, Giovanni Battista. La mise en abyme. In: TOMASSINI, Giovanni Battista. Il racconto nel racconto: analisi teorica dei procedimenti d’inserzione narrativa. Roma: Bulzoni, 1990.
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TRADUÇÃO DE TEATRO DE VANGUARDA PARA A ENCENAÇÃO
Marina Bento Veshagem (UFSC) Erik Satie foi compositor e pianista que viveu na França no início do século XX, de 1866 a 1925, período considerado de vanguarda na Europa. Ele teve grande influência na música da época e posterior, sendo considerado excêntrico e muitas vezes irônico. Compôs músicas para piano, como três gymnopédies e três gnossienes, nas quais há poucas notas em ciclo repetitivo, em arranjos sem desenvolvimento e escalas simples, e também outras composições, como a música do balé Parade (de 1917), em que foram utilizados sons de máquina de escrever, sirenes e tiros de pistola. Estes são exemplos de obras que levaram Satie a ser identificado como precursor do minimalismo na música, da música repetitiva, e também como participante dos movimentos dadaísta e surrealista. Erik Satie teve uma produção escrita significante, publicada em periódicos e reunida posteriormente: Memoires d’un Amnesique [com textos de 1912-1914], Cahiers d’un Mammifère [1921-1924], Observations d'un imbécile (Moi) [1912], Chroniques musicales [1922-1923], Divers écrits [1895- 1924] e sua única peça teatral: Le Piège de Méduse [1913], sobre a qual falarei neste trabalho. No mestrado, traduzo ao português brasileiro essa única peça de teatro escrita por Satie e reflito especialmente sobre dois pontos: o processo de uma tradução para teatro e a potência de múltiplas leituras sugeridas pelo próprio texto de Satie. Algumas reflexões sobre a tradução teatral permearam meus estudos até então: o texto dramatúrgico tem hoje como horizonte invariavelmente a encenação? Sabemos que há diversas relações entre texto e leitor ou espectador. Há aquele que leu a peça, mas jamais a viu encenada. Há aquele que leu a peça e viu uma montagem dela. Há também o que leu e viu mais de uma encenação diferente, ou ainda o que viu apenas a encenação, e não leu a obra. Cada um desses leitores/espectadores tem textos diferentes para si. Quero dizer que uso aqui a palavra texto como aquilo que nasce do encontro entre língua e leitor.
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Roland Barthes (2004), ao conceituar texto, afirma que texto não é o mesmo que obra: a obra pode ocupar um espaço na estante, como objeto finito e computável, já texto é um campo metodológico, que não se pode enumerar. Texto é, então, uma “prática significante”, pois nele a significação não depende apenas da matéria do significante, mas também do plural que é o sujeito enunciador. Segundo essa visão, a enunciação é instável, pois sempre se faz sob o discurso do outro e acontece por uma operação, que é o contato entre sujeito e língua. A partir dessa visão de texto, como prática significante, Barthes ressalta que o trabalho por meio do qual ocorre o encontro entre sujeito e língua no texto é exemplar: “é „função‟ do texto „teatralizar de algum modo esse trabalho” (BARTHES, 2004, p. 269). E sobre o texto ser produtividade, ele ainda diz “isso não quer dizer que é o produto de um trabalho (...) mas sim o teatro de uma produção em que se reúnem o produtor do texto e seu leitor” (BARTHES, 2004, p. 271). Se há teatralização neste encontro, a teatralização, ou encenação, está na origem de qualquer contato entre sujeito e língua no texto. Tal reflexão é importante para podermos ver o tradutor como um desses leitores/espectadores, que pode ver o texto como produção, que tem consciência de que o que ele lê/traduz é consequência da teatralização que se dá invariavelmente com um texto. Bom, estamos falando também de uma tradução que parte dessa teatralização primeira, mas que pode resultar em uma outra encenação. Neste caso, encenação é tomada no seu sentido moderno, que surge no final do século XIX e início do século XX, justamente no momento que em Satie produzia, quando as condições técnicas e de crítica da arte reinante possibilitaram que surgisse a figura do encenador, como leitor e montador que coloca um texto (seja ele em formato dramatúrgico, ou não, uma obra escrita, ou não) em perspectiva no tempo e no espaço. É Patrice Pavis (2008) quem define encenação como o ato de colocar em relação, num espaço e tempo determinados, materiais os mais diversos (sistemas significantes) em função de um público. A partir disso, podemos pensar que essa segunda encenação proporciona também um contato de língua e leitor/espectador, no qual pode ocorrer a produção de múltiplos textos outros, além daquele primeiro decorrente de uma leitura da obra escrita. A encenação pode ser vista, então, como potencialidade de texto.
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Nessa perspectiva, o tradutor que traduz “para o teatro” direciona seu texto de chegada (sua obra de chegada) para as possíveis encenações, levando em conta alguns dos pressupostos já citados: o que se pode traduzir é o texto e não a obra; o texto traduzido é o que se manifesta singularmente para o tradutor/leitor na primeira encenação/contato com a língua; a tradução em si mesma já pluraliza as possibilidades de produção de texto; e por último, há que se considerar as possíveis encenações no final desse processo, que vão produzir mais textos através de outras materialidades diversas. Nessa forma de ler a tradução, temos então que traduzir não é interpretar o texto, encontrar o essencial da obra de partida ou ainda facilitar o entendimento para o público que pode um dia assistir à encenação da peça, para que ele compreenda tudo o que vê, já que não há a possibilidade de ele ler novamente aquela encenação. Pavis (2008) afirma que o público deve compreender de maneira clara e imediata o texto de teatro traduzido no momento da encenação, o que permite ao tradutor, em diálogo com o encenador, a realização de adaptações e comentários, fornecendo informações de que o público necessite para compreender personagens e situações. Ele diz: Se o comentário é muito longo ou incompreensível, o tradutordramaturgo tem sempre a possibilidade de fazer cortes na sua versão para o público-alvo, se possível de acordo com o encenador, pois este pode, por seu lado, encontrar meios cênicos para fazer seus comentários. Este procedimento, que pode parecer uma solução de facilidade ou uma renúncia, é preferível do que manter alusões incompreensíveis que desconcertariam o público-alvo. Qualquer tradução – e sobretudo aquela para o teatro, que deve ser compreendida imediata e claramente pelo público – é uma adaptação e uma “apropriação ao nosso presente”. (PAVIS, 2008, p. 128)
Tal visão é contrária ao que foi pontuado até aqui, como se uma possível incompreensão do que foi dito no momento da encenação, em que há elementos significantes como cenário, figurino, adereços, gestos, além da fala para construção cênica, fosse um prejuízo do entendimento por parte do espectador. Pelo contrário, ao não se apontar ou simplificar o caminho de leitura, abrem-se potências de pensamento. Para complementar melhor esta visão, voltamos a Erik Satie. Sua peça, que a partir de agora vou chamar de A Armadilha do Medusa, título da minha primeira tradução, foi escrita em 1913, e é considerada precursora do teatro do absurdo e de tendências das performances dadaístas.
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A Armadilha do Medusa apresenta as aventuras dos novos-ricos e a especulação financeira como matéria-prima. O personagem central da peça chama-se barão Medusa. Ele é um investidor muito rico e que quer casar sua filha Frisette com um jovem recomendado pelo general. Ele possui um empregado, o Policarpo, com o qual estabelece uma relação dúbia: é íntima por vezes e eles se tratam por “tu” – um pronome coloquial de tratamento em francês e que seria resquício de um acordo feito entre eles anos atrás -; mas o empregado é um tanto insolente, então em outros momentos, para manter as aparências, o barão muda as regras do jogo entre eles para colocar rapidamente o servo em seu lugar. Medusa, sujeito desconfiado e um tanto paranoico, resolve testar a lealdade de Astolfo, pretendente de sua filha, com uma armadilha. Ele quer dar ao futuro genro a oportunidade de provar que ama o sogro (e não a menina). Desenrola-se então uma série de acontecimentos que parecem não levar a lugar nenhum, mas provém apenas da necessidade de aparente controle da situação por Medusa. Há ainda um último personagem, o macaco mecânico empalhado Jonas, que na rubrica inicial é apresentado como brinquedo criado para a distração pessoal do barão. Este macaco aparece para dançar a música das sete partituras para piano que intercalam as nove cenas do único ato de A Armadilha do Medusa. No entanto, ao final da peça, Medusa dá maior importância ao animal, ao se referir a ele como: “o melhor de todos nós”. A peça apresenta elementos de nonsense verbal, principal característica que a aproxima do teatro do absurdo. Win Tigges (1988) define o nonsense como um gênero de literatura narrativa que alterna uma multiplicidade de significados com uma simultânea ausência de sentido. Ele diz que esse balanço acontece pelo jogo com as regras da linguagem, lógica, prosódia e representação, ou uma combinação delas. Para ser bem sucedido, o nonsense deve ao mesmo tempo convidar o leitor para a interpretação e evitar a sugestão de que há um significado mais profundo que pode ser obtido considerando conotações e associações, pois isso não leva a nada. No caso específico de A Armadilha do Medusa, dramaturgia do início do século XX, de vanguarda e com características nonsense, é ainda mais difícil falar em leitura unívoca. Como traduzir então esse tipo de texto? É importante admitir-se tradutor leitor,
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que não busca encontrar um sentido e transmiti-lo ao possível público futuro, mas sim indicar potências de leituras futuras. Trago aqui para finalizar uma reflexão prática da tradução do texto A Armadilha do Medusa, destacando trechos que trazem elementos nonsense e, portanto, aproximações e afastamentos do sentido, que enfatizam a potência de leitura e de encenações, em todos os níveis. Na primeira cena, o barão Medusa faz uma ligação para o general Póstumo, para falar sobre um possível jantar em sua casa, mas é uma mulher quem atende. Nesta chamada, uma mesma palavra, “coupez”, assume diferentes significados. O barão pergunta se é o general quem fala e em seguida implora: “Non, mademoiselle. Ne coupez pas; ne coupez pas le general....”1 (SATIE, 1988, p. 13). O primeiro “coupez” tem como sentido mais próximo “desligar” (“Não, senhorita. Não desligue”), mas o segundo inicia um afastamento deste primeiro, podendo significar “cortar” (“não desligue”, ou “não corte o general”). Ao fim, ele ainda acaba afirmando: “Vous avez coupé le cheval”2 (SATIE, 1988, p. 14), aí mais uma vez podemos ler com o sentido de “cortar” (“O senhor cortou o cavalo”). O sentido escapa a cada repetição da palavra, quando a narrativa parecia se aproximar de uma definição. O exercício de tradução aqui consiste em encontrar as palavras para manter a potência de leitura e potência de sentidos. O primeiro exercício de tradução deste trecho resultou no seguinte: MEDUSA3: Refletindo. Eu vou alertar o general,... Por um breve telefonema nas orelhas. Ao telefone: Alô!... Alô!... Alôlô!... Alôlôlôlô!... É o senhor, general?... Não, moça. Não corte; não corte o general.... Ah! Sim! ..... É claro: o número?.. Nonagésimo primeiro Batalhão do Exército..... General!....general!.. Não reconheço sua voz!.. O senhor mudou de voz?... Secamente: Senhora, aqui não é a tabacaria.... De qual matadouro de cavalo a senhora fala?... Um cavalo se aninhou embaixo de sua cama?.... Tire-o daí a pontapés no traseiro!... É muito simples. Então! Bem!... Ainda cortado!.. A senhora cortou o cavalo!... Eu não reconheço a voz do cavalo!... Furioso: Não!.... Resignado: Eu desisto!...
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“Não senhorita. Não desligue, não corte (a ligação com) o general”. (Tradução minha) “Você cortou o cavalo”. (Tradução minha) 3 Tradução minha. 2
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Há ainda a necessidade de se trabalhar com perdas, e pensar em ganhos em outros momentos. Em algumas passagens, por exemplo, há palavras que têm um primeiro sentido, que poderia ser apreendido e traduzido rapidamente, mas elas também significam um instrumento musical. É o caso de “cors”, utilizado no sentido de “calo” e que também pode significar o instrumento “trompa”, e ainda “tropette”, que coloquialmente utilizado na peça seria “cara”, “fisionomia”, mas que também quer dizer o instrumento “trompete”. Para concluir, ao fim de A Armadilha do Medusa, há um exemplo de jogo de palavras (p.36) que potencializa toda a possibilidade de leitura da peça. A proposta de tradução é a que se segue: MEDUSA4: Continuando: Saiba que o senhor entra em uma ilustre casa. Minha família é uma antiga família que deu seu nome a um animal invertebrado da classe dos acéfalos – uma belíssima classe! Este animal vive no mar. Eu o apresentarei a ele... O senhor o amará? ASTOLFO, muito comovido: Sim, senhor.
Méduse, o nome do barão em francês, é também o nome do animal invertebrado medusa, em português também conhecido como água-viva, da família dos cnidários. Cnidário, em francês, se diz “acalèphe”. Na peça, o barão estabeleceria um jogo de palavras quando, por um “lapso”, declara que sua família é “acéphale”, que significa acéfalo, sem cérebro em vez de “acalèphe”, cnidário. O exercício da tradução de teatro, e especialmente desta peça, é a leitura atenta, que possa permitir que os diferentes sentidos brilhem e possam ser acolhidos e escolhidos pelos inúmeros possíveis leitores e espectadores nos seus variados encontros com a língua.
4
Tradução minha.
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Referências Roland, Barthes. Inéditos, I: teoria/ Roland Barthes; tradução Ivone Castilho Benedetti. – São Paulo: Martins Fontes, 2004. – (Coleção Roland Barthes). Pavis, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas/ Patrice Pavis; [tradução Nanci Fernandes]. – São Paulo: Perspectiva, 2008. – (Estudos; 247 / dirigida por J. Guinsburg). TIGGES, Wim. An Anatomy of Literary Nonsense. Rodopi, 1988. SATIE, Erik. Le piège de Méduse. Commentaires et posface par Ornela Volta. Pantin: Le Castor Astral, 1988.
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O DIÁLOGO ENTRE A PROSA DE CUNHATAÍ E A POÉTICA DE GUERRA ENTRE IRMÃOS Marinalva da Silva Pedro de Almeida (UFGD)
O Paraguai, a partir de 14 de maio de 1811, desde que se libertara da Espanha, alçou voo em direção à modernização, construindo fábricas, estaleiros e aplicando um forte investimento na educação, vindo a tornar-se um país quase que independente de outras nações. Por gozar de tal posição e alcançar uma estabilidade interna a ponto de quase não depender do fornecimento das companhias marítimas inglesas - que na época, dominavam o comércio internacional - começaram a surgir algumas manifestações contrárias ao governo, situações nas quais a elite local, assim como as elites de outros países vizinhos, começaram a ver, no governo paraguaio, uma ameaça às demais nações. Tal ameaça deveria ser contida antes que crescesse mais e o poder paraguaio tomasse grande proporção a ponto de ultrapassar as fronteiras guaranis. Dentro desse contexto, após a morte de El Supremo do Paraguai - José Gaspar Rodríguez de Francia, em 20 de setembro de 1840, sobe ao poder Carlos Antonio Lopez, que seguindo os passos do governo anterior, continua alcançando progresso em seu governo sem ter que recorrer a empréstimos externos e, posteriormente a sua morte, em 1862, seu filho, Francisco Solano Lopez, o sucedeu, tornando-se o chefe supremo do Paraguai e foi durante o seu governo que se deu início a considerada a mais sangrenta guerra da América do Sul: a Guerra do Paraguai. Considerado herói nacional do Paraguai, Francisco Solano Lopez é visto no Brasil como um ditador sanguinário que levou seu país à ruína, provocando o maior e mais longo conflito armado, o acontecimento histórico da invasão dos paraguaios às terras da Província do Mato Grosso entre os anos de 1864 a 1870, o que acabou por levar o Paraguai a um enfrentamento com a Tríplice Aliança (união do Brasil, Argentina e Uruguai em 1º de maio de 1865 através de um Tratado contra o Paraguai) e a deflagrar
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a Grande Guerra entre países vizinhos, países “irmãos”, tal como sugerido no próprio título de uma das obras aqui em destaque. 1.
O olhar sobre o tema e história do povo e terra sul-matogrossense Atentando para a posição geográfica do estado de Mato Grosso do Sul, outrora
apenas Mato Grosso, mas sempre palco reflexivo por ser terra onde „o Brasil foi Paraguai‟. Região fronteiriça com outros países, Paraguai e Bolívia, o estado tem se constituído enquanto ponte fronteiriça, passagem, travessia, permitindo o trânsito, a mobilidade da multiplicidade e variedade de sujeitos dos mais diversos lugares e nações que, consequentemente, se inserem no constructo identitário do povo sul matogrossense e enriquece a identificação cultural e artística deste povo e sua terra, cuja região nunca deixou de atrair olhares de pesquisadores das mais diferentes áreas do conhecimento. Terras fronteiriças exaltadas por tantos estudiosos, uns da própria terra, outros de terras distintas, mas todos destacando a riqueza dessa terra mãe que acolhe filhos, culturas e identificações híbridas. Dentre os estudiosos de temáticas referentes a essa terra, acolhemos como nossa a escrita do pesquisador e professor de Teoria da Literatura e Literatura Comparada: Crítica literária e cultural, na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Paulo Bungart Neto, que, ao escrever sobre a formação histórica e cultural do Mato Grosso do Sul, declara que: De fato, poucas regiões brasileiras possuem uma riqueza histórica tão grande, produto, é verdade, de muito sofrimento e sangue derramado na conquista do território fronteiriço, e, justamente por isso, repleto de relatos de bravura e abnegação (BUNGART NETO, 2013, p. 174).
Hoje, após um século e meio de seu acontecimento, tal riqueza histórica do povo e terra sul-mato-grossenses, perpassada pela temática da Guerra do Paraguai, encontrase, ainda, entre os fecundos temas pesquisados, explorados e debatidos, sendo decorrente em tantas obras conceituadas. E, além de ser bastante explorada por historiadores, essa temática também tem sido mote gerador de tantas outras obras literárias e, por isso, também é o fio condutor que percorre a leitura reflexiva a que nos propomos fazer em torno da obra poética intitulada Guerra entre irmãos (1993), da
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escritora sul-mato-grossense Raquel Naveira e do romance intitulado Cunhataí (2003), da escritora mato-grossense Maria Filomena Bouissou Lepecki. 2.
Sobre as obras abordadas e seus escritores Ambas as escritoras nasceram em terras pelas quais a guerra da Tríplice Aliança
deixou seu rastro de dor, angústia e violência, sendo perceptível que, embora a obra Guerra entre irmãos (1993) seja apresentada em forma de versos (subtítulo: “Poemas inspirados na Guerra do Paraguai”) e a obra Cunhataí (2003), em forma de prosa (subtítulo: “Um romance da Guerra do Paraguai”), ambas já revelam em seus próprios títulos a temática que propõem discorrer. Segundo a escritora Maria Adélia Menegazzo1 (2013, p.24) “Em Guerra entre irmãos (...) o épico sutilmente se instaura, o título do livro já implica o olhar crítico sobre o conflito, dedicando cada um dos trinta poemas que o compõem aos personagens, países, batalhas e povos envolvidos neste episódio de triste memória (...)” e o romance Cunhataí, por sua vez, segundo a crítica Tania Franco Carvalhal, (2003) é “Fundado na História (...) explora as relações humanas em narrativa consistente e bem realizada.” (LEPECKI, 2003, Contracapa). Nossa reflexão parte, então, desses dois documentos de natureza fictícia que recuperam, pela ótica de cada uma dessas duas escritoras, a história da Guerra do Paraguai. E, como a nosso ver, difícil seria abordar essa temática sem deixar de fazer referência ao escritor - também historiador, político, professor, e sociólogo carioca Alfredo Maria Adriano d'Escragnolle Taunay, o Visconde de Taunay, e suas obras A Retirada da Laguna (1871) e Memórias (1948), pois ambas as escritoras acima mencionadas o referenciam, já que mencionam sua obra e se utilizam da própria figura do escritor memorialista como personagem de destaque em meio a outras personagens que integram as obras. Tal estratégia se justifica pelo fato de que dentre alguns dos relatos verídicos sobre a Guerra do Paraguai (ou da Tríplice Aliança ou Grande Guerra), destacam-se as obras de Taunay, que fez parte da tropa brasileira enviada para a região mato-grossense do conflito e que deixou relatos escritos, tanto em A Retirada da Laguna (1871) como em suas Memórias (1948), testemunhando sua experiência 1
In: PINHEIRO, Alexandra Santos e BUNGART NETO, Paulo (orgs.). Ervais, Pantanais e Guavirais: cultura e literatura em Mato Grosso do Sul. Dourados: Editora UFGD, 2013, p. 17-32.
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enquanto participante na Guerra do Paraguai na posição de engenheiro militar que acompanhava as tropas brasileiras envolvidas no conflito. Na obra A Retirada da Laguna (1871), Taunay reconstitui o episódio da guerra do Paraguai, discorrendo sobre as provocações e provações pelas quais passaram a expedição brasileira quando em operação ao Sul de Mato Grosso, onde tiveram que recuar da Laguna, a três léguas e meia do rio Apa - que faz fronteira com o Paraguai até o rio Aquidauana – em território brasileiro. Assim - através dos relatos de fatos e ações de personagens históricos significativos relacionados às cidades e cultura sulmato-grossenses registrados por Taunay e retomados por Naveira e Lepecki - vamos sendo conduzidos também a reconstituir um caminhar pela barbárie que ficou conhecida por Guerra do Paraguai, Guerra Grande ou Guerra da Tríplice Aliança, descrita por alguns historiadores como sendo o maior conflito armado internacional ocorrido na América do Sul, que serviu e ainda serve como tema em obras outras produzidas por escritores das mais diversas áreas de conhecimento. Nas palavras de Bungart Neto (2013), o fato de tal conflito ter se passado em solo brasileiro, especificamente no atual território de Mato Grosso do Sul e ter deixado marcas profundas nos habitantes das terras deste estado, implica em uma vasta fortuna crítica sobre a região que pode ser manifestada pela: (...) grande quantidade de obras, nos mais variados gêneros, surgidas para ficcionalizar e/ou descrever historicamente os fatos supostamente ocorridos durante os anos de guerra e de pós-guerra. Na poesia, Raquel Naveira, em Guerra entre irmãos (Poemas inspirados na Guerra do Paraguai), acentuou o caráter trágico do conflito “entre povos irmãos” em poemas de forte lirismo como “Antônia”, “Madame Lynch” e “Aos homens mortos do Paraguai” (1993). Nos subgenêros memorialísticos, podemos aprender sobre a lamentável guerra lendo os diários de Taunay (A Retirada da Laguna e o Diário do Exército) ou suas já mencionadas memórias, e também o volume Chão do Apa: contos e memórias da fronteira, de Brígido Ibanhes, que, antes de relatar sua infância, conta o impressionante episódio de resistência de seus avós no período final da guerra, em meio à fome, destruição e fogo na mata onde se refugiavam (...). No campo da história, há dezenas que poderiam ser citadas, obras como Maldita Guerra, de Francisco Doratioto, Genocídio americano: A Guerra do Paraguai, de Júlio José Chiavenatto, Seiscentas léguas a pé, de Acyr Vaz Guimarães, e as Histórias da terra mato-grossense (...) (BUNGART NETO, 2013, p. 180-181)
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Dentre essa fortuna crítica do estado de Mato Grosso do Sul, ainda em construção, é certo que já se enquadram ao lado da obra memorialística de Taunay - A Retirada da Laguna (1871), as duas obras fictícias, o romanceiro de Naveira - Guerra entre irmãos: Poemas inspirados na Guerra do Paraguai (1993) - e o romance de Lepecki - Cunhataí: um romance da Guerra do Paraguai (2003), ambas apreciadas e destacadas em nossa reflexão. Na obra Cunhataí, apoiada na narrativa da memória cultural, principalmente a reconstituída e registrada por Visconde de Taunay em A Retirada da Laguna (1871), e também recuperada por Naveira (1993) em seu romanceiro, Lepecki (2003) se apropria de alguns fragmentos registrados pelo escritor, bem como das figuras de alguns de seus personagens, ele próprio, inclusive, fazendo todos conviverem enquanto seres fictícios e, com isso, reapresenta, de forma diferenciada, literária, os fatos considerados como históricos sobre a temática da Guerra do Paraguai, pluralizando, assim, a „verdade da história‟ e fortalecendo, ao mesmo tempo, a base de que tanto a história quanto a literatura são construções discursivas que nos permite reescrever o passado, modificá-lo e recriá-lo como ficção, proporcionando ao leitor uma leitura fluída, mas, também, compromissada com a história de um povo. Taunay em seus relatos registra a herança que herdou tanto do pai quanto do avô: o gosto por desenhar. Em suas memórias, Taunay declara que “Com a educação artística que recebera de meu pai, acostumado desde pequeno a vê-lo extasiar-se diante dos esplendores da natureza brasileira (...) ia olhando para os encantos dos grandes quadros naturais e lhes dando o devido apreço.” (TAUNAY, 2004, p. 179) e, praticando o que tinha prazer, durante as horas livres ou as pausas, as paradas da tropa, o memorialista dedicava-se a registrar através de seus desenhos os lugares por onde passavam, as paisagens, a fauna e a flora da região nas quais a guerra deixava o rastro, no interior do Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul. A coletânea de poemas criada por Naveira em 1993, constituída por trinta poemas - intulados, simultaneamente, por I- Assunção, II- Argentina, III- Uruguai, IVBrasil imperial, V- Leão Britânico, VI- Solo Guarani, VII- Mapa da Guerra, VIII – Inferno, IX – Súplica a Nossa Senhora de Caacupe, X- Comunicação, XI – Solano
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Lopes, XII- Madame Lynch, XIII- O „Enterro‟ de Madame Lynch, XIV- Kigua-Verã, XV- Riachuelo, XVI- Forte Coimbra, XVII- Tuiuti, XVIII – Osório, o „lidador‟, XIXCurupaiti, XX- Caxias, XXI- Taunay e a Retirada da Laguna, XXII- Antonia, XXIIIHumaitá, XXIV- Bernardino Caballero, XXV- O Fim, XXVI- Assunção verde, XXVIIConde D‟Eu, XXVIII- Cerro Corá, XXIX- Aos homens mortos do Paraguai, XXXCredo Americano – cujos títulos, citados aqui propositadamente, já falam muito a respeito do conteúdo que a obra ostenta e que por si só já permeiam o conceito que a poeta dá à poesia “(...) documento da existência de determinado povo, em certo lugar e período histórico.” (NAVEIRA, 2001, p.6). Com os poemas XI – Solano López e XII- Madame Lynch, Naveira se coloca no lugar tanto do ditador, marechal paraguaio, quanto no lugar de sua amante irlandesa, Elisa Lynche, e na pele de ambos vai traçando a trajetória que percorreram e sentimentos que esvairam tanto no amor quanto na guerra. Através do olhar da poetisa, enquanto López sonha com um “Paraguai Maior”, desejando aplausos e se declarando ser a Pátria, “O Supremo/ O Grande Pai/ Caraí Guasu”, Madame Lynch se considerava condenada, tanto por ela própria como pelo povo, por ter sido adúltera e por gostar e ostentar lúxurias. As características e sentimentos da mulher a quem Solano López conhecera numa casa de encontros parinienses e que o fizera trazê-la consigo para a capital do Paraguai, Assunção, são também descritas por Lepecki: Elisa Alicia Lynch era belíssima. Cabelos dourados, lânguidos olhos azuis, pele nacarada, lábios róseos e delicados. O porte era o de uma princesa, tal a elegância do talhe. Vestia-se com refinamento e gosto. Nada nela era vulgar. Frívola à primeira vista, na verdade possuía um gênio forte e bastante determinaçao. Nascera em 1835, de boa família irlandesa, tendo por parte da mãe, um antepassado almirante, camarada de armas (...). Do lado do pai, havia juízes e bispos. Era bem educada e inteligente. Já no primeiro encontro, pelos modos e pelo olhar de madame Lynch, podia-se dizer que possuía algo mais, (...) que, somada à sua grande formosura, fazia dela uma mulher que vem ao mundo para enlouquecer os homens (...). Naquele primeiro encontro entre o general exótico de um longiquo país perdido no meio da América do Sul e a mulher mais formosa de Paris, iniciara-se uma aliança poderosa, uma grande paixão. Dessas que, uma vez acesa, incendeia de tal forma os sentidos e embota com tal intensidade os pensamentos, que dela tudo se pode esperar. Triunfos e tragédias. (...) Elisa tinha dezoito anos e Solano 27. Apaixonaram-se. Compreenderam-se. Possuiam a mesma vontade férrea, o memso
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prazer na vida de ostentação. Compartilhavam os mesmos apetites, a mesma sensualidade, a mesma ambição. (LEPECKI, 2003, p.128-129)
Há também a figura de Antonia que enriquece as páginas do romance de Lepecki (2003), do romanceiro de Naveira (1993) e das Memórias de Taunay (1948). É por ela que Taunay se apaixona e com quem, segundo Lepecki, acaba conhecendo o amor: E o tenente Taunay, que se tinha afligido e relutado enormemente com as perspectivas ruins daquela jornada, foi enfim conhecer o amor, durante os meses passados ali, nos braços de uma jovem e faceira índia guaná chamada Antônia (LEPECHI, 2003, p. 176).
Em suas Memórias (2004), Taunay registra que, ao entrar em acordo com o pai da índia, Antonia foi praticamente comprada por ele, através de “um saco de feijão, outro de milho, dois alqueires de arroz, uma vaca para corte e um boi de montaria” em troca da índia que teve sua relutância vencida diante de um “um colar de contas de ouro”, que lhe “havia custado quarenta ou cinquenta mil réis” (TAUNAY, 2004, p. 270). Foi a ela que Taunay entregou o seu coração e ao lado de quem passou dias felizes: Embelezei-me de todo por esta amável rapariga e sem resistência me entreguei exclusivamente ao sentimento forte, demasiado forte, que em mim nasceu. Passei, pois, ao seu lado dias descuidosos e bem felizes (...) essa ingênua índia foi das mulheres a quem mais amei. (TAUNAY, 2004, p. 277)
Recuperando todo esse contexto, a poeta Naveira também dá voz à indía que canta o seu apego e amor ao tenente: Nunca vou te esquecer, meu francês / De cabelos encaracolados, / Teu jeito distante / De quem vive escrevendo, / Perdido num país de sonho. // Não esquecerás de mim, tua Antônia, / Tua índia de ternura branda, / Cabelos negros / Que guardam os segredos das noites / Entre os moros de Aquidauana. // Ah! Meu francês, / Por tua causa / Perfumava minha pele / Com folhas de laranja / E funcho macerado,/ Tudo para senti-lo dentro de mim, / Para cheirá-lo / Para sorver de teus lábios / A saliva estonteante / Como a bebida de minha tribo. (NAVEIRA, 1993, p.51)
Tanto a coletânea de poemas em Guerra entre irmãos (1993) quanto a narrativa do romance Cunhataí (2003) que é constituído por três partes, sendo cada parte subdividida por diversos capítulos - (Parte I: O Caminho - 17 capítulos/ p.9-166; parte
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II: O Território -17 capítulos – p. 167-272, parte III: A Guerra - 20 capítulos/ p.273406) – resgatam - ora em versos, ora em prosa - aspectos envolventes da Guerra do Paraguai, registrado anteriormente pelo memorialista Taunay em A Retirada da Laguna (1871), obra considerada como um dos primeiros registros escrito a respeito da bárbarie provocada pela Guerra do Paraguai. Em Cunhataí (2003), Lepecki oferece a história do triangulo amoroso entre Ângelo, Micaela e o Capitão Santa Cruz. Na narrativa, aspectos envolventes, tanto desse amor quanto da guerra, vão sendo resgatados, numa prática contemporânea constantemente utilizada pela historiografia literária que, utilizando-se de um acontecimento histórico como pano de fundo, vai entrelaçando vidas em espaços temporais diferentes. E, já no primeiro capítulo da obra, intitulado O CAMINHO, fornece ao leitor os mesmos percalços da guerra retratados por Taunay, recuperados pelos versos de Naveira, representando, agora em prosa, os mesmos sentimentos da dor e angústias transmitidas na trilha da guerra que, inicialmente, serão revelados pela narrativa do episódio conhecido como a Batalha de Nhandepá, termo guarani (Ñande= nós e Pá= acabamos) que denominou tanto o campo quanto a violenta batalha ocorrida em terras brasileiras, bem na região fronteiriça Brasil-Paraguai, logo no início da fazenda Laguna, onde ocorreu o primeiro combate entre paraguaios e brasileiros, em 11/05/1867, e onde se ergueu um Monumento, um marco Histórico em homenagem aos brasileiros e paraguaios mortos em combate. Partindo desse contexto, Lepecki, poeticamente, inicia a prosa que vai dando corpo à narrativa do romance: Poucos desconfiaram do silêncio súbito dos pássaros. Na manha de sol fervente, as únicas sombras eram projetadas pelo voo sinistro dos urubus. Onze horas e tudo em volta parecia calmo. Calmo demais. O guia farejou o perigo. Seu cavalo resfolegou, inquieto, mas não houve tempo para alertar o coronel. De repente, como que saídos das entranhas da terra, surgiram furiosos paraguaios, avermelhando os campos. Ouviram-se gritos guturais, urros terríveis! Fúria e medo ancestrais se apoderaram dos homens que teriam de lutar ou morrer. Fugir? Impossível! (...) Seria um massacre! Invocou a proteção de Deus e de todos os anjos que se haviam esquecido daquele descampado nos confins do pais. Era tarde! Anos depois, este episódio ficou conhecido como a batalha do “Nhandepá” – “Anhan de Apá” – porque foi o diabo no Apa. (LEPECKI, 2003, p.11-12)
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Dentre os trinta poemas inseridos e constituintes do livro Guerra entre irmãos, Naveira, através de seus versos, fornece ao leitor um MAPA DA GUERRA - título do sétimo poema de Guerra entre irmãos (1993, p. 21) situando locais como: Dourados, Nioaque, Bela Vista, Ponta Porã, rios Apa e Taquari, regioes fronteiriças entre Brasil e Paraguai que também fazem parte da trilha apresentada pela prosa de Lepecki em Cunhataí (2003) e nos registros dos relatos de Taunay que descreve bem os caminhos por onde percorreu o exército brasileiro em defesa de sua pátria, terras essas conhecidas, até então, como Mato Grosso e, posteriormente, denominadas como Mato Grosso do Sul: Observe este mapa: / As colunas paraguaias passaram por aqui, / Por Dourados, / Onde havia torrões áureos pelas ruas, / Pelo destacamento militar de Nioaque, / Onde um bugre quebrara a clavícula. // Estas linhas azuis /São os rios por onde navegaram os soldados: / O Apa, / Grudado em Bela vista // O Taquari, / Cheio de cachoeiras / E corixos. // Esta mancha marrom esverdeada / É o Pantanal / Com suas vazantes, / Por ali passaram os retirantes // Esses pontos negros / São cidades, / Foram saqueadas, / Destruídas, / Jardim, / Que era tão florida, / Ponta Porã, / Ponta bonita, / Encravada na fronteira. // Este mapa guarda o segredo dos cavaleiros, // Este e o mapa da guerra / Em terras de Mato Grosso. (NAVEIRA, 1993, p. 21)
Nos demais poemas do romanceiro, Naveira também retrata, entre as várias personagens significativas no contexto dessa guerra que, diga-se de passagem, também figuram a narrativa de Cunhataí, tais como as figuras D. Pedro II e seu genro o Conde D‟Eu assim como a figura do próprio Taunay e A Retirada da Laguna, que emoldura e dá título ao XXI poema de Guerra entre irmãos (1993), descrevendo o personagem que se tornou uma figura popular quando se refere à guerra do Paraguai: Quem é esse jovem / Que ama a música, /A literatura, / Tem vocação para escrivão de esquadra, / Escriba que se afoga em tinta, / Em letras góticas, / Num mar de idéias, / Garranchos, / Suores? // Não sabia que a carreira das armas era tão dura, / Que seria impossível atacar o Paraguai por Miranda e pelo Apa, / Adentra com o coronel Camisão o teatro da guerra / Conduzidos pelo guia Lopes / Entre brenhas e banhados, / Chegam a Laguna: / Fome, / Fogo, / Febre, / Era preciso retroceder, / Retirar não é fugir, // Quem é esse jovem / Que escreveu tão dolorosas memórias / Entre calafrios, / Arrepios, / Pavor da morte? / Esse que registrou tudo com lirismo / Sopro de epopéia? / Quem é? / É Taunay. (NAVEIRA, 1993, p. 49-50)
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Considerações finais Através de poemas que compõem um grande painel da guerra do Paraguai, em
Guerra entre irmãos (1993), a poeta Naveira reapresenta em seus versos, lugares (Assunção, Argentina, Uruguai, Forte Coimbra, Curupaiti), batalhas (de Riachuelo, Tuiuti, Humaitá, Forte Coimbra, Curupaiti) e personagens que vivenciaram a barbárie da guerra, e revela um eu-lírico que ora se coloca na pele do marechal Solano López, ora na pele de Madame Lynch, ou na pele de Kinguá-Verá; e na pele de Osório, o “Lidador”; no papel de Antonia e por fim no papel de Conde D‟eu, genro de D. Pedro II, e que acaba por revelar a vertente de um olhar que extrapola o olhar brasileiro. Além disso, a poeta, assim como a romancista Lepecki, também delineia trajetos por onde os percalços da Grande Guerra foram sentidos na caminhada angustiante das muitas perdas provocadas pelas batalhas dos países que valorizaram a discórdia em detrimento da paz, esparramando e colhendo a morte de todos os lados, já que “Na guerra, irmão mata irmão, não há comunicação.” (NAVEIRA, 1993, p. 28). Em ambas as obras, Cunhatai e Guerra entre irmãos, o drama vivido pelos soldados brasileiros durante a dramática perseguição que lhes moveu o exército, durante a guerra da tríplice aliança com A Retirada da Laguna (ocorrida entre 08 de maio e 11 de junho de 1867) é abordado sob viés do olhar feminino das duas escritoras nascidas em terras matogrossenses, possibilitando um verdadeiro intercâmbio em que o debate contemporâneo sobre as fronteiras entre a literatura e a história, referentes à temática da Guerra do Paraguai contra o Brasil, vêm à baila hoje, principalmente devido a proximidade dos já cento e cinquenta anos de transcorrido o acontecimento. E, apesar de tratar do mesmo tema, as obras o reapresentam de formas diferenciadas, permitindo que o fato considerado histórico para a formação da história brasileira, especialmente da sul-mato-grossense, seja agora revisitado por óticas literárias femininas. Quanto a esse estudo, apesar de muito já ter sido dito, somos sabedores de que muito ainda há para ser explorado, para ser relacionado, mas por ora, pelo já exposto e
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sem deixar de considerar que nos situamos geograficamente nessa região fronteiriça que serviu de palco para o acontecimento que versa sobre a Guerra do Paraguai, marco histórico na identidade do Estado de Mato Grosso do Sul, espera-se que o presente trabalho iniciado e representado aqui pela obra Guerra entre irmãos (1993) e por Cunhataí (2003) colabore para que tais obras sejam situadas enquanto obras literárias contemporâneas sul-mato-grossenses, por apresentarem em seu bojo uma representação da cultura do estado e do povo sul-mato-grossense bem como por brindarem o leitor, ora em versos, ora em prosa, com um assunto que dá margem à polêmica e que se encontra, diretamente, ligado à representatividade da história de um povo que, em decorrência dessa guerra entre povos vizinhos e irmãos, viveu momentos por demais dolorosos e tremendas perdas diante do que o episódio proporcionou. Momentos esses recuperados pela poética de Naveira e pela prosa de Lepecki que, literariamente, propiciaram ao leitor a revisitação, o (re)conhecer e a possibilidade de valorizar a identificação cultural do povo sul-mato-grossense, já que ambas fornecem oportunidades para uma nova reflexão ou, pelo menos, para uma outra reflexão de nossa própria história e que, a nosso ver, podem contribuir de forma abrangente e enriquecedora para a fortuna crítica de pesquisas que dizem respeito à literatura contemporânea sul-mato-grossense e ao conhecimento da híbrida identificação cultural, em contínuo processo, desse povo marcado pela guerra.
Referências BUNGART NETO, Paulo. Formação cultura antiga vs. divisão política recente: Mato Grosso do Sul e suas memórias aparentemente paradoxais. In: SANTOS, Paulo Sérgio Nolasco; BARZOTTO, Leoné Astride. (orgs.). Literatura - Interseções -Transversões. Dourados: Editora UFGD, 2013, p. 173-195.
CAMPESTRINI, Hidelbrando e GUIMARÃES, Acyr Vaz. História de Mato Grosso do Sul. 2 ed. Campo Grande: Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, 1991.
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LEPECKI, Maria Filomena Bouissou. Cunhataí: Um romance da Guerra do Paraguai. São Paulo: Editora Talento, 2003. MENEGAZZO, Maria Adélia. Raquel Naveira: A Poesia no Limite. In: PINHEIRO, Alexandra Santos e BUNGART NETO, Paulo (orgs.). Ervais, Pantanais e Guavirais: cultura e literatura em Mato Grosso do Sul. Dourados: Editora UFGD, 2013, p. 17-32. NAVEIRA, Raquel. Guerra entre irmãos: poemas inspirados na Guerra do Paraguai. 2 ed. Campo Grande: Gráfica Ruy Barbosa, 1993. NAVEIRA, Raquel. Turismo e Literatura. Correio do Estado, Campo Grande, MS, 15 set. 2001. Caderno B, Suplemento Cultural, p.6. TAUNAY, Alfredo d‟Escragnolle (Visconde de). Memórias. São Paulo: Editora Iluminuras, 2004. Edição: Sérgio Medeiros. TAUNAY, Alfredo d‟Escragnolle (Visconde de). A Retirada da Laguna: episódio da Guerra do Paraguai. São Paulo: Martin Claret, 2005.
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NARRATIVA DE GAMES E SUAS IMPLICAÇÕES NO CAMPO LITERÁRIO Mario Lousada de Andrade (UEM) Considerações Iniciais A sociedade, de acordo com o ciberteórico francês Pierre Lévy, passou por um segundo dilúvio. A metáfora utilizada por Lévy (1999) na introdução de seu Cibercultura é bastante emblemática no que tange ao cenário tecnológico que banhou a sociedade, ocasionando mudanças significativas nos mais diversos setores sociais e culturais. Pensando especificamente no cenário artístico, acompanhou-se na segunda metade do século XX o surgimento de novos espaços possíveis para a inserção da escrita, aqui sendo considerada em seus múltiplos sistemas semióticos, trazendo novas possibilidades para criações de narrativas ficcionais que, além de possuírem uma linguagem própria, configuram-se a partir de novas dinâmicas. Evidentemente, não podemos fechar os olhos para o aspecto massificado inerente à essas narrativas, mas reduzir o fenômeno ao puro entretenimento é desconsiderar todas as implicações poéticas, ideológicas e estéticas que não só se fazem presentes, como carecem de problematizações que atendam a urgência desses objetos, sobretudo mediante a atual demanda de leitores. Naturalmente, vê-se surgir inquietações relacionadas ao campo de pesquisa autorizado a abordar tais objetos. Neste trabalho, lançamos um olhar para as narrativas que se desenvolvem nos games, expondo algumas de suas implicações no campo literário e trazendo propostas que podem ser aproveitadas em futuras discussões. Através de uma abordagem inserida no âmbito convergencial, ver-se-á surgir um diálogo entre narrativas de games e literatura, levantando também problemáticas de cunho poético e valorativo que se mostram urgentes na atualidade. Narrativa de Games e Literatura: Implicações Poéticas Games não são narrativas; muitos games possuem narrativas. Uma grande aflição para o Game Studies consiste na redução dos games à narrativa. A asseveração de que todos os games são narrativas incomoda sobremaneira os pesquisadores, em especial os que se autodenominam ludólogos. A rixa entre ludologistas e narratologistas já foi apresentada por autores como Gomes (2009) e Gomez (2011). O marco histórico dessa disputa, assim como expõe
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Gomes (2009) reside no lançamento da revista acadêmica online denominada Game Studies, fundada em julho de 2001 por Espen Aarseth. A autora apresenta que: Os ludologistas defendem o estudo dos videogames como disciplina autônoma, a “ludologia”, livre de qualquer “colonização” por disciplinas já estabelecidas, cujos objetos são formas reconhecidamente “elevadas” de arte e cultura, como a literatura, o teatro ou, quem diria, o cinema. Para os ludologistas, toda a questão narrativa revolvendo o universo dos videogames é, além de franco absurdo, uma impostura de acadêmicos advindos dessas áreas, em busca de legitimação para o game e, portanto, para suas próprias pesquisas – como se apenas a promessa de que os videogames irão gerar novas formas narrativas pudesse fazer deles um formato digno de nota, justificando seu estudo perante empedernidos departamentos de cinema e literatura. (GOMES, 2009, p. 181)
Dentre os principais ludologistas estão Jesper Jull, Espen Aarseth, Gonzalo Frasca e Markku Eskelinen. Com relação aos narratologistas, os principais representantes são Janet Murray, Henry Jenkins, Marie-Laurien Ryan, e Brenda Laurel. Na concepção desses autores todos os games são narrativas ou, no mínimo, apresentam um potencial narrativo. Ao ingressarmos na disputa conceitual travada pelas duas frentes de pesquisa percebemos, num primeiro momento, uma postura egoísta por parte dos ludologistas que, além de rotularem os games ao puro e simples entretenimento, consideram um completo absurdo uma abordagem advinda de outros setores acadêmicos. Gomes (2009) aponta que a simples menção da palavra narrativa nos estudos voltados aos games tornou-se motivo para o surgimento de dicotomias indesejáveis. Aarseth (2004) chega a afirmar em seu Genre Trouble, que a única razão de se questionar se games são narrativas é se a pergunta for feita por um teórico da literatura ou da semiótica intencionados a legitimá-los em seu campo de pesquisa, por mero interesse de se apropriar do objeto. Não desconsideramos, entretanto, a importância de se lançar uma reflexão crítica aos games, sob o viés narrativo, levando em consideração algumas implicações indispensáveis para que não caiamos em discursos eufóricos. Apresento três: 1- É necessário reconhecer que nem todos os games apresentam em sua poética a narrativa e sua função apriorística é proporcionar divertimento através de desafios que serão resolvidos através da imersão/interação do jogador. Dessa forma o que estabelece identidade ao game não é a narrativa, mas seu sistema de jogabilidade e seu caráter interativo. 2- A teoria da narrativa literária não deve ser aplicada diretamente aos games sem que haja modificações de acordo com a necessidade do objeto. Categorias como narrador, personagem, tempo e espaço devem ser repensadas, já que estamos abordando uma forma de narrativa ficcional construída a partir de um sistema semiótico outro.
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3- Descartar por completo os conceitos da “narratologia” e da “ludologia” é inadequado. Ao abordarmos os games sob o viés narrativo, não devemos deixar de olhar para suas especificidades, tais como: frequência, velocidade, imersão, agência, dentre outras. A primeira implicação poderia ser atacada, sendo provável que aconteça, a partir de interpretações metafóricas. Um exemplo utilizado por Murray (2003) sugere que até mesmo games abstratos, como no caso do clássico Tetris, é possível encontrarmos uma narrativa. A autora relaciona o game em questão com a vida atribulada das pessoas da época, que viviam em ritmo acelerado e tomando decisões improvisadas. O problema é que quando refletimos melhor sobre o exemplo dado pela autora, percebemos nele uma falha, pois neste caso a narrativa não está presente na poética do jogo, só sendo possível encontrá-la a partir de reflexões metafóricas construídas externamente ao objeto, o que dependeria da experiência do jogador. Em suma, dizer que Tetris é uma narrativa constitui um equívoco. É possível, em contrapartida, percebermos uma narrativa incipiente em clássicos como SpaceWar (1962) e Space Invaders (1970). Em ambos os jogos é permitido localizarmos elementos narrativos que estão atrelados ao próprio game, como por exemplo: a nave, o ambiente de imersão (que em ambos os casos é o espaço), inimigos, objetivo, dentre outros. Ao relacionarmos os jogos em questão com o contexto em que ambos se inserem, percebemos que a questão da narrativa ficcional se amplifica, mas a relação não é feita simplesmente através da metáfora, como no caso de Tetris, pois os próprios games nos dão esses elementos que solidificam suas relações com o contexto. O que tenho como hipótese com relação a esses jogos é que, naquele momento, a indústria dos games, ainda não tão bem estabelecida, não dispunha de potencial tecnológico suficiente para desenvolver nos games a narrativa da forma que se pretendia. O espaço para a inserção da narrativa era, portanto, bastante limitado. A segunda implicação traz consigo a urgência da formação de um instrumental teórico capaz de dar conta das especificidades do objeto sem distorcê-lo. Gee (2003) assinala que o videogame é uma nova forma de arte que não tem a intenção de substituir nenhuma outra. Para o autor, o fato de alguns games apresentarem narrativa em sua
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composição não significa que corremos o risco de uma possível extinção das narrativas impressas. Tavinor (2009) aborda que não podemos negar a existência de uma relação entre videogames e outras formas de arte, mas que há a necessidade de analisar os games através de uma abordagem particular, sendo inadequado estabelecer julgamentos a partir de instrumentais teóricos de outras artes. De acordo com o autor: Comparing games to previous forms of art really is a cross-cultural endeavor, but the comparison is not with the culture of a newly discovered geographically isolated way of life, but with an interstitial culture to which many people are oblivious. There are intersections between cultural worlds – of course, videogames are informed by mainstream film – but much of what happens in games and gaming is generated by their own distinctive and semiisolated cultural history. This is an important reason why we should approach videogames on their own terms, and not always judge them by more familiar forms of culture that philosophers of the arts and other theorists have typically dealt with. (TAVINOR, 2009, p. 190)
Eskelinen (2006), ao se posicionar contra a abordagem puramente narratológica, aponta que deveria ser óbvio que não se pode aplicar a narratologia impressa da literatura, teoria do hipertexto, teatro e cinema diretamente aos games, mas não é. Isto posto, compreendemos que narrativas de games e narrativa impressa (em especial a legitimamente reconhecida como literária), podem possuir pontos de convergência, mas estão inseridas em espaços específicos. Aplicar a narratologia impressa diretamente aos games ocasionaria, inclusive, um grande problema no que concerne ao julgamento valorativo do objeto. De uma coisa Aarseth (2004) tem toda razão. Existem diversas comparações, e estas são imensamente perigosas quando feitas a partir de posições ideológicas e afetam sobremaneira objetos e estilos “recém-nascidos” e considerados marginais. Como exemplos, o autor expõe pensamentos como: “a música clássica é superior ao jazz”, “romances são melhores que narrativas cinematográficas”, dentre outros. A terceira implicação encontra embasamento na postura de Eskelinen (2004). O autor admite que para que estudos baseados em games sejam efetivos é necessário levar em consideração tanto a “narratologia” quanto a “ludologia”. Para o autor não basta identificar elementos como enredo e personagens, sendo necessário levar em conta sua ordem, frequência, velocidade, tempo de ação, dentre outros elementos próprios da poética dos games.
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Aarseth (2004) propõe que todos os games são configurados a partir de três aspectos. (1) regras; (2) um material/sistema semiótico (equivalente ao mundo do jogo); (3) jogabilidade. Gomez (2011) através de uma abordagem bastante pertinente, expõe a seguinte visão sobre a problemática: A antiga discussão acadêmica, no Game Studies, entre os chamados Ludologistas e Narratologistas, embora nunca tenha trazido um consenso, logo despertou o interesse de vários pesquisadores para o tema: se os jogos digitais contam histórias, ou melhor, prestam-se ou não como instrumentos para esse fim. Enquanto a Academia se divide, se agrupa ou mesmo cria dissidências, do lado de fora Game Designers (desenvolvedores) multiplicam-se na tarefa de trazer as mídias tradicionais, como a literatura, o cinema e o teatro, com seus acertos narrativos, para dialogar com os jogos digitais e suas originais atribuições, o que parece, pelos resultados, confirmar que um novo meio narrativo já surgiu forte no mercado de entretenimentos. (GOMEZ, 2011, p. 23)
Neste sentido, persistir na divisão ferrenha entre “narratologia” e “ludologia” não trará soluções plausíveis no tange à configuração do objeto como um todo. Narrativa de Games e Literatura: Implicações Estéticas Não é raro encontrarmos posturas apocalípticas com relação aos games. Uma das principais acusações consiste na deturpação que os jogos “podem” causar na sociedade, em especial nos adolescentes, sendo considerados objetos de risco que atacam violentamente a fibra moral dos costumes. Dentre os ataques mais comuns estão: videogames são um desperdício de tempo, são ofensivos, misóginos, imaturos, viciantes, incentivam comportamentos sedentários, envolvem os jogadores em práticas ocultistas e atacam a fibra moral da nossa sociedade. Alguns ainda consideram os videogames como transmissores de violência, agressão e como deturpadores da juventude. Na história literária, encontramos acusações muito semelhantes no momento genesíaco do romance. Tendo sido considerado, pelos críticos da época, um gênero menor, o romance sofreu severas acusações, dentre as quais o condenavam como sendo apenas leitura de entretenimento, sem conteúdo estético, desprovido de uma perspectiva firmada pela tradição clássica, confeccionado especificamente para um público carente de gosto literário. Não podemos deixar de olhar também para o grande número de suicídios de jovens europeus, leitores do Die Leiden Des Jungen Werthers, fazendo com que os pais desses jovens amaldiçoassem Goethe e sua “maldita” literatura. Em seu The Art of Videogames Tavinor (2009) lança a seguinte questão: Por que os videogames estão, cada vez mais, apresentando uma tendência à sofisticação artística? Para o autor, um dos grandes motivos tem sido o crescimento da indústria que
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no decorrer dos anos passou por uma modificação tecnológica. Hoje, os dispositivos utilizados para o desenvolvimento dos games são capazes de criar universos ficcionais sofisticados, sensíveis e com alto grau de imersão e toda essa tecnologia tornou-se um pré-requisito para os games atuais. Tavinor (2009) afirma ainda que, em seu aspecto artístico, os videogames convergem com outras formas de arte mais tradicionais ao envolver questões estéticas, representativas, abarcando a ética e a moral. Nas palavras do autor: Videogames are a growing phenomenon and influence in the modern world, and are displaying new levels of artistic sophistication. As such they seem to engage many of the same issues as do the traditional arts, raising questions about aesthetics, representation, narrative, emotional engagement, and morality, that have been the focus of the philosophy of the arts (TAVINOR, 2009, p.13)
O autor relaciona a questão da violência com o avanço tecnológico que possibilita uma qualidade gráfica bastante realista. Como exemplo, é citado o game pósapocalíptico Fallout 31 que por meio de uma brilhante qualidade gráfica é capaz de retratar a violência de uma forma muito visceral, tornando as imagens do game bastante chocantes. Fallout 3 apresenta cenas de tiros em câmera lenta de partes do corpo se desmembrando e explodindo. Sobre a problemática da violência, Alves (2009) esclarece que, como produto cultural, as narrativas dos games podem reproduzir conteúdos presentes na sociedade, mas a autora destaca que a interação com estes diferentes conteúdos e, em especial, os relacionados à violência, não resultam em comportamentos agressivos com outros sujeitos, mas propiciam a elaboração dos aspectos subjetivos de cada indivíduo na medida em que os games se constituem em espaços de catarse, nos quais a violência é uma linguagem, uma forma de dizer o não dito. De acordo com a autora, os videogames, com suas diferentes possibilidades de imersão, permitem aos usuários vivenciar situações que não podem ser concretizadas no cotidiano, exigindo tomada de decisão, planejamento, desenvolvimento de estratégias e antecipações que vão além do aspecto cognitivo. É possível elaborar perdas, medos e outras emoções e sentimentos sem correr riscos.
Game desenvolvido pela companhia estadunidense Bethesda Softworks e lançado em outubro de 2008. O jogo se passa na cidade de Washington D.C. em 2277, 36 anos após o final do segundo Fallout, num mundo pós-guerra, totalmente devastado por uma violenta e devastadora guerra nuclear travada entre os Estados Unidos e a China. 1
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Tavinor aborda a problemática da seguinte forma: Violent videogame is a term frequently used in the popular media to condemn games, but a violent videogame no more involves real violence than a zombie movie involves real zombies. The description violent videogame, when used as a criticism, seems to tendentiously gloss over this distinction between what is real and what is fictional in order to have its scandalizing effect. (TAVINOR, 2009, p. 151)
O autor, ao abordar sobre a ficção dos games, afirma que certamente esses apresentam uma dinâmica muito mais interativa que a televisão e o cinema. Ao invés de assistidos, os games são jogados o que compete ao jogador a função de “agente”. O conceito de agência foi definido por Murray (2003) como “a capacidade gratificante de realizar ações significativas e ver os resultados de nossas decisões e escolhas”. (MURRAY, 2003, p. 127). A agência está fundamentada nesta dinâmica de interação. O indivíduo deve participar ativa e constantemente do game. Tenho acompanhado obras literárias que ganharam adaptações para os games com objetivos pedagógicos. No Brasil, o caso mais conhecido é o projeto “Livro e Game” criado pelo gestor cultural Celso Santiago. Disponibilizados online, encontramse títulos como “Memórias de um Sargento de Milícias”, “Dom Casmurro” e “O Cortiço”. O projeto gráfico dessas adaptações são bastante interessantes, no entanto, talvez excetuando-se “Memórias de um Sargento de Milícias”, as adaptações oferecem quase nada em termos de jogabilidade, tornando-as muito próximas a um jogo de perguntas e respostas, e exigindo que o jogador tenha lido a obra previamente para que tenha um bom desempenho em termos de acertos. Em contrapartida, adaptações que foram feitas sem uma preocupação pedagógica e com maior interesse mercadológico atingiram um número, evidentemente, muito maior de apreciadores. Observa-se que nesses casos são adaptações que oferecem muito em termos de imersão e jogabilidade e a narrativa ali presente não distorce o objeto. A narrativa enquadra-se perfeitamente na poética dos games. A narrativa tornase o game. Posso citar casos como Beowulf (2008) e Dante´s Inferno (2011), sendo o primeiro adaptado do poema épico escrito no período do Old English na língua anglosaxã, e o segundo da “Divina Comédia” de Dante Alighieri. Ambos os games oferecem muito em termos de jogabilidade e possuem um número muito grande de fãs, o que
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pode ser notado tanto nas comunidades criadas em redes sociais como nos fandoms e produções fanficcionais. Diante disso, somos levados a nos interrogarmos, num primeiro momento, de que maneira esses jogos podem contribuir para que os Gamers (jogadores) tenham acesso à obra “original”? Não me posiciono contra as teorias de mediação de leitura e acho até possível que possamos estabelecer diálogos, dentro do ensino, entre essas adaptações e suas obras de partida. Contudo, proponho pensarmos primeiramente em oferecer a esses jogadores um instrumental eficiente para que seja feita a leitura desses games da maneira mais crítica possível e reconhecer as virtudes e problemas de como a narrativa se apresenta neste espaço enquanto forma e discurso. Pensar na utilidade dos games somente como possibilidade de mediação me parece egoísmo. Não penso que os Gamers não estejam fazendo boas leituras com relação aos conteúdos narrativos que circulam nos games (basta olhar para a quantidade de vídeos críticos produzidos por Vlogers e Youtubers), mas acredito que ainda falta um olhar mais crítico com relação a forma e discurso ali presentes. Considerações Finais Não podemos mais fechar os olhos para a demanda que surge do atual cibercontexto. O campo literário, no panorama da contemporaneidade, não deixa de ser afetado pelas mudanças que temos presenciado nos diferentes setores culturais. Neste trabalho, pretendeu-se mostrar que ao adotarmos algum objeto emergido deste “novo” cenário, devemos estar atento às suas especificidades. Diante do que foi apresentado, concluo que tanto o campo literário quanto o próprio conceito de literatura, por não estarem isentos de transformações, podem estar passando por uma mudança que não só traz novas exigências metodológicas como também configura-se como uma necessidade. Referências
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AARSETH.
E.
Genre
Trouble.
Disponível
http://www.electronicbookreview.com/thread/firstperson/vigilant.
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BIBLIOTECA COMO INSTÂNCIA DAS MEMÓRIAS DE LEITURA: ENTRE A LITERATURA E O ENSINO
Markley Florentino CARVALHO (FACALE- UFGD/ CEELLE- UFGD)1 Alexandra Santos PINHEIRO (FACALE- UFGD/ CEELLE- UFGD)2
RESUMO: Neste trabalho realizou-se uma pesquisa da história da formação das bibliotecas, junto à representação das memórias de leituras literárias dos sujeitos escolares. Empreendeu-se o estudo acerca da trajetória de duas bibliotecas inseridas em escolas da rede pública de ensino na comunidade periférica de Dourados-MS. Para isto, analisou-se a questão da formação de leitores, mediante as práticas empreendidas na relação biblioteca, literatura e ensino, de maneira a refletir, por intermédio das vozes dos professores e das educadoras da biblioteca, as questões da constituição do lugar da memória, da relação biblioteca e imagens de leitura, representadas pelas práticas culturais socializadas por seus sujeitos escolares. Além, das memórias de leitura, fazem parte do estudo, as discussões de autores como Chartier (1999), Lajolo (2009), Campello (2010), Silva, Ezequiel T. (2003), Silva, Waldeck C. da (2003), entre outros autores da história da leitura, formação de leitores e bibliotecas. PALAVRAS-CHAVE: Biblioteca. Formação de leitores. Memórias de leitura.
Introdução Realizou-se nesse estudo a trajetória de duas bibliotecas inseridas em escolas da rede pública de ensino na comunidade periférica de Dourados-MS, a Escola Municipal Etalívio Penzo e Escola Estadual Presidente Tancredo Neves. Para a compreensão da realidade acerca dos dois estudos, analisou-se as práticas empreendidas na relação 1
Mestre em Letras pela Faculdade de Comunicação, Artes e Letras da Universidade Federal da Grande Dourados. Membro do Grupo de Pesquisa Centro de Estudos em Ensino, Leitura, Literatura e Escrita (FACALE- UFGD/ CEELLE- UFGD). 2 Professora Adjunta em Letras da pela Faculdade de Comunicação, Artes e Letras da Universidade Federal da Grande Dourados. Vice-líder do Grupo de Pesquisa Centro de Estudos em Ensino, Leitura, Literatura e Escrita (FACALE- UFGD/ CEELLE- UFGD).
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biblioteca, literatura e ensino, por meio das vozes dos professores e das educadoras da biblioteca, sobre a constituição da biblioteca e das imagens de leitura representadas pelas memórias dos seus sujeitos escolares. Consideramos nas representações dessas bibliotecas o fato de se fazerem presentes nas atividades de ensino da leitura e da Literatura em suas escolas, por intermédio de projetos de leitura literária. Para compreender os discursos dos educadores da biblioteca e professores das duas escolas foram analisadas as entrevistas dos sujeitos envolvidos com a biblioteca e nos projetos de leitura da escola. Nesse corpus, eles relataram as suas experiências de incentivo à leitura, por meio da vivência dos projetos desenvolvidos na interface da biblioteca com a sala de aula, Zappone (2001, p. 157) “embora não se possa considerar, a priori, nenhum relato da realidade a própria realidade”. As principais expectativas estavam em conhecer o lugar da biblioteca na escola, e, quais foram as práticas de leituras realizadas, no período de 2006 a 2011. Este período compreende o início das atividades da biblioteca na escola e finaliza em 2011 junto com o projeto e da publicação do livro História e Memória, que foi estudado na pesquisa do mestrado, da qual esse trabalho faz parte. Os resultados expostos nos tópicos “Perfil da amostra” e no “O acervo das bibliotecas” são informações analisadas para a compreensão do perfil sociocultural dos sujeitos e das bibliotecas dentro do recorte da pesquisa Perfil da amostra A escolha dos sujeitos na pesquisa aconteceu pelo envolvimento nos projetos de leitura e/ou por exercerem função de educador na biblioteca, conforme a Tabela 1 apresenta na amostra de participação dos seis sujeitos na pesquisa. Na Figura 1 foi identificada a área de formação acadêmica. Tabela 1- Amostra dos sujeitos da pesquisa Escola
Professor
Educador da biblioteca
Escola Estadual Presidente Tancredo Neves
1
2
Escola Municipal Etalívio Penzo
1
2
3
3
O termo educador da biblioteca neste trabalho foi usado para o profissional da educação que está atuando dentro da biblioteca, de forma a considerar a dimensão pedagógica do trabalho bibliotecário escolar (SILVA, E., 2003, p. 77).
3724
Fonte: Entrevista realizada pelo autor
400% 300% Professores
200% 100%
Educador es da bi bl iot eca
0% Letras
Ensino Médio
Figura 1 – Formação dos professores e educadores da biblioteca. Fonte: Entrevista realizada pelo autor.
O objetivo foi identificar quem era o profissional da educação interessado em desenvolver projetos de leitura literária na escola. A formação superior em Letras entre os professores e educadoras foi maioria. Porém, um dado interessante a ressaltar é que os projetos de incentivo à leitura foram desenvolvidos tanto pelo professor de Letras como pelo educador da biblioteca4, que também tem a formação em Letras. A exceção foi a biblioteca E. M. Etalívio Penzo, na qual a educadora da biblioteca possui a formação do ensino médio com curso de capacitação para assistente de biblioteca, o que se destacou como uma iniciativa no desenvolvimento de projetos de leitura provindos de outras áreas da instituição, como neste estudo de caso, que provém do quadro administrativo da biblioteca. Nos dois estudos de caso, foi encontrado tanto o assistente administrativo quanto o professor readaptado como responsáveis pela biblioteca. Elas assumiram tanto a organização do acervo quanto os empréstimos, e também: assumem, sem ênfase, e em alguns casos sem que as identifiquem como funções inerentes à sua atividade: preparar atividades de promoção da leitura, de formação e difusão de acervos, de seleção e aquisição de materiais, de elaboração de planos de trabalho, de realização de atividades programadas, de elaboração do projeto e a memória da biblioteca e de gerenciamento de recursos financeiros a ela destinados (BRASIL, 2011, p. 69).
Esta questão da ausência do bibliotecário e da inserção do profissional administrativo ou do professor readaptado no quadro da biblioteca é um improviso das 4
Cabe notificar que o curso de capacitação no PROINFO tem o objetivo de capacitar o quadro administrativo para as suas áreas de atuação na escola. O curso teve a duração de dois anos e o trabalho final do curso resultou na elaboração do projeto “Arte da Leitura”, que foi aplicado na biblioteca E. M. Etalívio Penzo.
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Secretarias de Educação de todo o país, que se tornou uma prática da escola para conseguir concretizar o funcionamento da biblioteca e disponibilizar os acervos. Os professores readaptados logo que voltam têm o lugar da biblioteca como seu novo local de trabalho, sem uma capacitação de desenvolvimento das técnicas de organização do acervo ou oficinas de leitura que lhes proporcione a perspectiva educativa para a formação de leitores. O envolvimento desses professores e educadores da biblioteca, perante o incentivo à leitura por meio de projetos, permitiu alternativas ao desenvolvimento das bibliotecas e à escolarização da literatura e nessas escolas, como propõe Silva, E. (2009, p. 195): A conquista e a organização de uma biblioteca dentro das escolas, recheada de literatura crítica e com serviço democrático de circulação, certamente servirão como um patamar educacional para a produção de um ensino de qualidade.
Essas colocações reforçam a ideia de que a relação entre livros e bibliotecas passa por uma dimensão educativa para o incentivo e fomentadores de formação de novos leitores. Os acervos das bibliotecas Para colaborar com a reflexão acerca das práticas educativas da biblioteca como o lugar da memória da leitura serão apresentados os acervos que compõem as bibliotecas da E. E. Tancredo Neves e da E. M. Etalívio Penzo. Assim, foi inserida a pergunta: “Quais são as seções de livros de literatura que constam na biblioteca”? Do resultado, percebeu-se, nas duas bibliotecas, que o acervo foi concentrado na aquisição de obras para o atendimento da Educação Infantil (Tabela 2 e Figura 2). Tabela 2 – Acervo da Biblioteca da Escola Estadual Presidente Tancredo Neves. Dourados, MS Acervo total = 3.700 títulos Literatura Infantil
Literatura infantojuvenil
Literatura Adulta Nacional
Literatura Adulta Estrangeira
Livros Paradidáticos
Livros Didáticos
Enciclopédias
1.998
925
185
111
185
185
74
Fonte: Livro de registro de Aquisição Biblioteca E.E. Presidente Tancredo Neves
3726
Acervo da biblioteca E.E. Presidente Tancredo Neves 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0%
In f
In fa nt an il to ju Ad ve ul nil t Ad o N a ul cio to na Liv Es l ro tra sP ng ar a d eiro i Liv dát ic ro s D os id át ico En cic s lo pé di as
Acervo da biblioteca E.E. Presidente Tancredo Neves
Figura 2 - Acervo da Biblioteca da Escola Estadual Presidente Tancredo Neves. Dourados, MS. Fonte: Livro de registro de Aquisição Biblioteca E.E. Presidente Tancredo Neves.
Essa biblioteca, mantida pela E. E. Presidente Tancredo Neves, tem a característica de ter sido a sala do gabinete odontológico, no qual foi iniciado um depósito dos livros didáticos. Quanto a biblioteca E. M. Etalívio Penzo, iniciou as suas atividades por meio do projeto da biblioteca, o “Arte da Leitura”, com o apoio para o fomento do acervo pelo PDE-Escola em 2006 e, também, recebeu doação de acervo literário do projeto “Letras de Luz”. A diferença na forma de aquisição e fomento acabou revelando a disparidade no crescimento comparativo entre as duas bibliotecas. Tabela 3 - Acervo da Biblioteca da Escola Municipal Etalívio Penzo. Dourados, MS Acervo total = 6.000 títulos Literatura infantil
3.600
Literatura infantojuvenil
1.200
Literatura adulta
Literatura adulta nacional
Estrangeira
300
180
Livros paradidáticos
300
Livros didáticos
Enciclopédias
300
120
Fonte: Livro de registro de Aquisição da Biblioteca E. M. Etalívio Penzo.
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Acervo da biblioteca E. M. Etalivio Penzo
Acervo da biblioteca E. M. Etalivio Penzo
In f
In fa nt an il to ju Ad ve ul nil t Ad o N ac ul io to na Liv Es l tra ro sP ng ar eir ad o id át Liv ico ro s sD id át ic o En c ic s lo pé di as
70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0%
Figura 3- Acervo da Biblioteca da Escola Municipal Etalívio Penzo. Dourados, MS. Fonte: Livro de registro de aquisição da Biblioteca da E. M. Etalívio Penzo.
Assim, o acervo composto em direção à Educação Infantil e às séries iniciais da Educação Fundamental revelou um descompasso entre as políticas pedagógicas de desenvolvimento de projetos de leitura e a inserção do acervo da biblioteca no planejamento de políticas para captação de recursos, no que se refere à questão pedagógica, quanto à aplicação e ao investimento de recursos, conforme a “Avaliação de Bibliotecas Escolares” (BRASIL, 2006, p. 62). Esses dados levaram a considerar as representações das práticas da leitura para além desses dois públicos escolares e refletir acerca dos saberes e práticas da distribuição concentrada de projetos de leitura e, em consequencia, a circulação dos acervos literários dessas escolas. As bibliotecas escolares, nos dois estudos de caso, o municipal e o estadual da rede pública de Dourados-MS, apontaram por meio dos registros das memórias, uma construção coletiva de apropriação desse espaço de leitura, por meio da sua comunidade, os docentes, o corpo administrativo e as famílias, que a cada escola em seu esforço diverso, institucionalizou a sua biblioteca.
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A biblioteca como instância da leitura literária: E. E. Presidente Tancredo Neves Para a construção do saber acerca da formação das bibliotecas e das memórias de leitura literária nas escolas, empreendeu-se o estudo do seu cotidiano pedagógico em relação às questões das políticas de composição do acervo, da organização de espaço e tempo para o acesso aos livros e à leitura, enfim, das maneiras de socialização da leitura no espaço escolar. A iniciativa da biblioteca na E. E. Tancredo Neves, por exemplo, ficou inscrita na história de leitura, conforme registros encontrados no PPP da escola (MATO GROSSO DO SUL, 2012a) e no PDE Escola (MATO GROSSO DO SUL, 2010. Pela construção dos relatos, observou-se uma história de leitura que permite compreender “pela recordação e pela manifestação da memória” (LE GOFF, 1992, p.47), o papel do mediador como sujeito de sua história da leitura. A formalização das políticas de acervo foi apropriada pelos projetos, do PPP da escola (MATO GROSSO DO SUL, 2012a) e do PDE Escola (MATO GROSSO DO SUL, 2010). O fato da inclusão da biblioteca em 2008, no projeto pedagógico instigou a escola avançar em direção à demanda de organização do espaço e do tempo para a circulação desse acervo, como informa a educadora: Eu tinha um período só de trabalho. No inicio eu era sozinha, e funcionava só à tarde. Então tinha alunos do 6 º e 7 º anos no período da tarde. Estes alunos vinham como voluntários me ajudar a catalogar livros a emprestar os livros porque tinha que fazer anotação, depois mais uma professora readaptada chegou e começou a funcionar à noite (BUSANELLO, educadora da biblioteca, fev. 2013).
Pela razão de uma escola que já iniciou as suas atividades com um grande número de educandos, mil trezentos e vinte e cinco (1.325) matriculados, a história do surgimento dessa biblioteca foi muito significativa para essa comunidade, porém, a quantidade ainda insuficiente de livros, tornou-se um dispositivo para o fomento do desejo de uma nova biblioteca para sua comunidade escolar, com maior estrutura e ampliação do acervo.
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O relato da legitimação da biblioteca com um espaço e acervo novo foi recorrente discursos informais observados em outros professores da escola, e compreendidos como objeto de avanço da história da leitura dessa comunidade, que, observadas as limitações para o funcionamento da biblioteca, almeja ampliação dos recursos no atendimento vinculado ao processo pedagógico. Na realidade dessa escola, os relatos exemplificaram a necessidade de parceria entre a biblioteca e a sala de aula, por exemplo, na ampliação do espaço e das condições de leitura: Eu percebi que os alunos não se prendiam muito quando às vezes era um capitulo do livro, ou era uma outra historia longa, porque levando só pra sala o aluno não acaba de ler todo o livro, por isso eu sou convicta que tem que ter sala de leitura e que o aluno tem que ir na sala de leitura (BUSANELLO, educadora da biblioteca, fev. 2013).
Pela observação do relato, ficou evidenciada a relação de convivência do grupo de educandos-leitores nos espaços, biblioteca e sala de aula, de forma “dialética entre os acontecimentos e a estrutura” (BURKE, 1992, p. 337), no papel de promover o acontecimento das práticas de leitura e metaleitura objetivados no ensino e aprendizagem. Particularmente, essa biblioteca começou a sua história da formação de leitores, com suas práticas que oportunizavam a leitura livre, primeiramente, chamando a atenção dos alunos. Finalmente, a escola legitimou a programação de visitas à biblioteca no planejamento pedagógico. Nesse processo de conhecimento e amadurecimento do processo educativo da biblioteca, os seus educadores e professores construíram alguns acordos e fizerem outras escolhas na tentativa de uma interdisciplinaridade na formação dos educadoresleitores, alternando a leitura livre e a visita de leitura. As visitas programadas na biblioteca denotaram uma forma de otimizar o tempo e, também, os espaços e recursos disponíveis para as atividades de leitura, ilustrada na palavras da professora: Bom, eu tenho semanalmente uma aula de leitura, em cada sala. Em cada sala que eu entro os alunos já sabem: “professora, hoje é dia de leitura, né?!”Ai, já sabem que é o dia da leitura. Lá eu levo livros diferenciados, de gêneros diferentes. No outro dia, a gente vai ler na sala de tecnologia, um outro dia a gente sai para ler para fora (CAVALCANTI, professora, dez. 2012).
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Porém, as práticas das visitas programadas à biblioteca não podem obedecer somente ao planejamento do tempo e do espaço da leitura, importa também refletir sobre os sentidos dados a essas atividades “na ampliação dos tempos, diga-se de passagem, exíguos de aulas de Literatura, além de possibilitar trocas menos artificiais”, dentre as práticas de leitura literária, conforme observado nas “Orientações Curriculares” (BRASIL, 2006, p. 80). Depois das condições de existência da leitura literária, foram apontadas plurais atividades de leitura nos depoimentos dos professores e das educadoras da biblioteca. Entretanto, as práticas, tiveram maior recorrência nas lembranças e memórias dos sujeitos, pelas manifestações literárias em apresentações culturais e contações de histórias. Vê-se que vivenciar a prática da contação de história no contexto escolar como modo de leitura traz situações interessantes aos ouvintes-leitores, pois a “leitura literária oferece meios de enxergar a realidade por outro prisma, cria possibilidades para si e para o ambiente que o cerca” (PINHEIRO, 2011b, p. 45). Contudo, observando as práticas ilustradas no conjunto das ações, observou-se que muitas são normalmente replicadas entre as fases escolares dos níveis iniciais do Ensino Fundamental. Provavelmente, seja uma sinalização para que se atente às políticas de formação do acervo, como revela a fala da educadora preocupada em atender também o público vestibulando do Ensino Médio da E. E. Presidente Tancredo Neves. Assim, se notou que, após as atividades de letramento literário das crianças, apareceu uma lacuna no planejamento pedagógico que avance e consolide situações de leitura voltadas aos adolescentes e jovens da instituição. O paradigma do letramento literário para o público do Ensino Médio, em especial, pode acontecer por dois motivos: pelo movimento do acesso aos recursos informativos e literários que se tenha no acervo, que certamente levou a direcionar as práticas nos projetos e aulas em formatos uniformes, sem diferenciar as fases escolares dos educandos, e, ainda, pela questão de não cair no paradigma do afastamento dessas fases escolares da leitura de fruição para o centralismo na história da Literatura, segundo as “Orientações Curriculares” (BRASIL, 2006, p. 57).
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Por outro lado, outros desafios da biblioteca escolar encontram-se no seu papel de espaço da mediação da leitura na comunidade escolar e no bairro onde está inserida. A demanda pelo letramento literário efetuado na escola abrange um significativo número de pessoas, levando em conta a comunidade escolar, entre os familiares do corpo discente, docente e administrativo, chegando ao atendimento dos moradores do entorno, que se ligam à escola pela ausência de políticas, no que diz respeito à rede de biblioteca pública, como consta no “Manifesto UNESCO/IFLA - para Biblioteca Escolar”: Objetivos próprios da biblioteca escolar devem ser devidamente reconhecidos e mantidos sempre que ela estiver compartilhando equipamentos e recursos com outros tipos de biblioteca, em particular com a biblioteca pública (UNESCO/IFLA, 1999, s. p.).
Trata-se de um desafio reconhecidamente situado na ausência da biblioteca pública nas periferias brasileiras, retratada aqui na realidade de Dourados, MS. Essas ponderações refletem, a partir dos relatos, como a biblioteca escolar foi construída no coletivo dos sujeitos e, também, como foram construídos o papel e as práticas desse ambiente de leitura na comunidade. Por isso, os relatos foram construídos em forma de mosaico com o entrecruzamento das vozes na construção da memória de leitura do professor e do educador da biblioteca para uma representação do conjunto de saberes e práticas da leitura na interface da biblioteca escolar. A biblioteca como instância da leitura literária: E. M. Etalívio Penzo Assim, como a formação de várias outras bibliotecas escolares, este estudo de caso trouxe depoimentos de continuidades e descontinuidades em seu projeto de educação literária. Apesar do atendimento aberto ao público, ela é exposta periodicamente ao silêncio das suas práticas educativas de leitura, no que diz respeito à forma de subutilização do espaço e dos seus serviços. Segundo o relato da educadora da biblioteca E. M. Etalívio Penzo, durante quatro meses no ano, ou seja, novembro e dezembro, e, em seguida, janeiro e fevereiro, nessa biblioteca é parado o movimento dos empréstimos e leituras. para ser realizado o os serviços de organização e circulação do livro didático na escola. Mas se verificou nesta tarefa a não articulação com as práticas da educação literária, e se faz onerosa para um setor que tem como responsabilidade principal a socialização do livro literário no
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contexto escolar. Segundo Vieira et al. (2008, p. 9, grifo das autoras), lembrando Paulo Freire sobre o valor e a ideia de biblioteca, a qual se trata de: um verdadeiro Centro Cultural, onde a memória viva das comunidades deveria ficar registrada. Desse modo, afasta-se da ideia bastante conservadora, que a reconhece apenas como mero depósito de livros.
Nesse registro, o incentivo ao convívio com a Literatura pode ser visto que ocorre de forma assistemática e nesse período de ausência da biblioteca na vida escolar, do posto de vista pedagógico, conforme Silva (2003, p. 48), assumir esse obstáculo e valorizar a literatura e a sua inserção na escola pode ser o fomento para a perspectiva de uma história da leitura. Esse posicionamento permite a reflexão quanto ao direito às práticas de leitura, pelo enfrentamento aos obstáculos adversos, tanto da estrutura quanto das práticas culturais (LE GOFF, 1992, p. 47). As transformações dos espaços marcam as várias dimensões da biblioteca escolar, como estoque de livros e de informações, como refúgio e entretenimento. Além de ser um espaço físico, a biblioteca precisa assumir o seu papel como espaço de aprendizagem (CAMPELLO, 2010, p. 129-131). A proposta aqui foi a exposição das maneiras de socialização na biblioteca e o papel dos sujeitos na construção dessa história de leitura. Nesses registros, foram sinalizadas as ações de mediação: os professores aqui da escola, eles têm incentivado o aluno a ler os livros. Eles têm feito tudo para os alunos lerem os livros, eles incentivam. Eles não obrigam. Eles incentivam, eles não falam: “oh, você é obrigado a ler tal livro”. Há uma motivação muito grande por parte dos professores para leitura. Desde direção, coordenação e também os professores (LIMA, educadora da biblioteca, mar. 2013). Em seu discurso ao destacar, na fala da educadora, “eles têm feito tudo para os
alunos lerem os livros, eles incentivam. Eles não obrigam”, verificou-se a representação do professor na motivação do ensino da leitura ao revelar a sua adesão a um discurso sobre a escolarização da leitura, revelando a dicotomia entre a “obrigatoriedade da leitura ou prazer da leitura” (FERNANDES, 2011, p. 343). A biblioteca vinculou-se à história de leitura com a sala de aula pelo seu público em comum, os educandos-leitores. Conforme Chartier (1999, p. 10-11), a “própria trajetória que dá significação [...] às experiências comuns, compreendidas a partir das
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práticas peculiares aos seus diferentes públicos”. Mas, apesar desse vínculo entre os sujeitos e os espaços na expectativa das práticas de leitura, não se podem silenciar os contrastes e adversidades encontrados no interior dos espaços escolares de leitura, entre a sala de aula e a biblioteca. Os deslocamentos de espaços e tempos da leitura verificados no relato revelaram a construção de uma rede de práticas “que organizam histórica e socialmente os modos diferentes de acesso” (CHARTIER, 1999, p. 16), aos livros. Trata-se de outro aspecto observado na tentativa de dar sentido à leitura e não ser somente um espaço para“matar” o tempo da aula. Dessa forma, a negociação para o momento da leitura literária se faz uma constante nas práticas escolares. O engajamento no incentivo à leitura perpassa também pela questão da formação dos ambientes e situações propiciados aos leitores literários no ofício de ensinar a Literatura e de incentivar o gosto pela leitura. Nos relatos das duas escolas, o fato que se destaca é que a comunidade escolar tem em sua memória de leitura a marca dos esforços dos professores e educadores da biblioteca na valorização do acesso aos livros pela construção coletiva da biblioteca. Entretanto, a interação da comunidade e da família com a leitura, o seu espaço e os materiais poderia corresponder aos anseios presentes nos projetos de incentivo à leitura da escola. CONSIDERAÇÕES: A relação entre livros e bibliotecas incentivam novos leitores, por isso os diversos setores da comunidade inserida na região escolar participam da formação do acervo e das atividades desenvolvidas nas bibliotecas escolares. Logo identifiquei a importância das bibliotecas escolares na formação de novos leitores e o esforço dos envolvidos no empenho em contribuir com esse projeto. REFERÊNCIAS Silva, Ezequiel T. (2003), Waldeck C. da (2003)
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AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE LEITURA DOS DOCENTES EM UMA INSTITUIÇÃO PÚBLICA FEDERAL Marli Aparecida Pedro Duque (UTFPR-CM) Sandra Elis Aleixo (UTFPR-CM) Considerações iniciais A prova do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), cuja primeira edição foi em 1998, tem sido um desafio para alunos de escolas públicas brasileiras que pretendem ingressar em universidades públicas. O ENEM, hoje, além de avaliar a formação geral do aluno, serve também como parâmetro para avaliação das escolas, bem como de seus professores. Os alunos do ensino secundário da UTFPR - Universidade Tecnológica Federal do Paraná - Câmpus Campo Mourão vêm obtendo um notável desempenho em todas as edições do ENEM e nos concursos vestibulares, com destaque para as notas da redação. Com isso, o foco deste trabalho é identificar as Representações Sociais de leitura dos professores de Língua Portuguesa dessa instituição de ensino. A abordagem teórico-metodológica está centrada no conceito de Representações Sociais desenvolvido por Moscovici (2011) e Jodelet (2001). Acreditamos que o bom nível de escrita dos alunos tem sido resultado do trabalho dos professores de Língua Portuguesa cujas Representações Sociais influenciam em suas práticas pedagógicas. O corpus de análise se constitui de entrevistas realizadas individualmente com os professores e aulas gravadas. Verificaremos, portanto, como as concepções de leitura são constituídas dentro do universo consensual desses docentes a fim de levantarmos aspectos que nos remetam às Representações Sociais da leitura em relação à escolha dos textos para as leituras e em qual modelo de letramento o trabalho com a leitura se enquadra, considerando os conceitos de letramento autônomo e ideológico proposto por Street (1984). A partir dos dados coletados, das discussões e das conclusões concernentes às ações dos professores sujeitos analisados, acreditamos que esse estudo pode favorecer práticas de docentes de Língua Portuguesa, fomentando subsídios para melhorar o desempenho e a maturidade de seus alunos na formação do leitor.
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A gênese das representações sociais Os primeiros estudos concernentes às representações são oriundos da Sociologia, realizados por Émile Durkheim. A Sociologia não apresentava um campo muito fértil para os estudos das representações individuais, enquanto as correntes da psicologia rejeitavam a associação das representações individuais com o social com receio de que a cientificidade da psicologia ficasse comprometida (DUVEEN, apud MOSCOVICI, 2011). Mas para Durkheim, as representações individuais coletivas deveriam ser objeto da psicologia, enquanto as representações coletivas, da sociologia. A representação individual dizia respeito à consciência de cada um, portanto, tinha um caráter subjetivo. Enquanto o substrato da representação coletiva era a sociedade em sua totalidade, tinha um caráter objetivo, não refletia as representações individuais, mas as produções sociais. Segundo Jodelet (2001), essas teorias passaram a ser estudadas também nas Ciências Humanas e Sociais, por Moscovici, por volta de 1960, que se destaca pelas reconfigurações das concepções sobre a teoria das Representações Sociais. Ao reconfigurar as concepções de Representações Coletivas para Representações Sociais a partir da análise de textos da sociologia moderna, ele demonstra “que o referencial explanatório exigido para tornar os fenômenos sociais inteligíveis deve incluir conceitos psicológicos, bem como sociológicos” (MOSCOVICI, 2011, p. 12). Rêses (2001) lembra que Moscovici achou o termo “social” mais apropriado às sociedades contemporâneas por serem mais dinâmicas e fluídas, e por achar que o modelo de sociedade elaborado por Durkheim era estático e tradicional. Assim, ele estuda as representações sob uma perspectiva da psicologia social. Em suas palavras, “o estudo de como, e por que, as pessoas partilham o conhecimento e desse modo constituem sua realidade comum, de como eles transformam ideias em prática – numa palavra, o poder das ideias – é o problema específico da psicologia social” (MOSCOVICI, apud, DUVEEN, 2011, p. 8). Ele se interessou em perceber como as Representações Sociais se refletiam nas práticas dos indivíduos a partir das ideias concernentes a um objeto. Para Moscovici, essa nova visão das condições de vida na modernidade permite que as Representações Sociais sejam uma forma de criação coletiva. Com isso, não é
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possível separar representações individuais e coletivas como fez Durkheim. A ciência não é mais o único fator responsável pela legitimação do conhecimento nem de crenças, mas também, o senso comum. Para ele “a ciência foi uma fonte importante de surgimento de novas formas de conhecimento e a crença no mundo moderno, mas também o senso comum, como nos lembra Moscovici” (DUVEEN, apud MOSCOVICI, 2011, p. 17).
As Representações Sociais têm um caráter dinâmico determinado pelo desenvolvimento da sociedade e pelas relações entre os indivíduos, sendo esses fatores determinantes para suas práticas sociais. Moscovici atribui as Representações Sociais aos grupos aos quais os indivíduos pertencem, estes, por sua vez, passam a atribuir uma representação sobre um determinado objeto.
Em sua acepção, os conhecimentos produzidos reforçam a
identidade dos grupos e influem em suas práticas, o que acaba reconstituindo o pensamento (OLIVEIRA, 2004). Jodelet (2001) define Representações Sociais como “forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p. 22). As Representações Sociais encontram-se imbricadas nos discursos cotidianos,
uma vez que estão atreladas a valores, crenças, opiniões, vivência, condição social, enfim, à ideologia do sujeito. Segundo a autora, elas são influenciadas pelas instâncias ou substitutos institucionais e pela mídia, inclusive como forma de manipulação social. Kleiman (2006) define as Representações Sociais como conjuntos de conhecimentos a propósito dos objetos, pessoas ou ideias partilhadas pelos indivíduos. Tais conhecimentos, por sua vez, determinam seu comportamento e as relações com outros objetos, pessoas ou ideias. Assim, elas não apenas motivam como também influenciam na condução de práticas, justificam as ações do sujeito e contribuem para a formação de sua identidade. Na concepção de Moscovici (2011) a realidade se divide em dois universos: o reificado e o consensual. No universo reificado, a lógica científica predomina sobre o universo consensual, o qual é regido pelo senso comum, onde se encontram os objetos de pesquisa das Representações Sociais. O autor assume que é a partir dos universos reificados da ciência e da tecnologia que novos objetos são apresentados aos universos consensuais do senso comum,
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gerando, primeiramente, o estranhamento e não familiarização aos grupos, que, por sua vez, vão construindo, paulatinamente suas concepções, ou seja, suas Representações Sociais sobre um objeto. Com isso, elas se constituem com a apreensão do objeto a partir de um universo reificado, o não familiar passa a ser familiar. Estão associadas ao modo como os sujeitos percebem esse objeto dentro da sua realidade e a ele fazem atribuições. O esquema a seguir, ilustra como se constituem as Representações Sociais segundo essa teoria:
Em síntese, as Representações Sociais se constituem a partir da interpretação da realidade do mundo, oriunda do universo reificado. Tal interpretação influencia na tomada de atitudes, de posicionamento diante de fatos sociais, o que retrata a compreensão, o modo de perceber a realidade, e, quando partilhadas por um grupo, ele constrói uma visão consensual da realidade, ou seja, o grupo passa a ter uma visão em comum do objeto. É a partir dessa apreensão do objeto que suas trocas e ações cotidianas passam a ser orientadas. Jodelet (2001) destaca o papel da comunicação social discutindo a hipótese de Moscovici. Segundo a autora, Moscovici postula que a linguagem é um fator determinante para a construção das Representações Sociais, assim, a compreensão dos fatos sociais, suas conjecturas e suas considerações se constituem por meio da interação entre os indivíduos, que concorrem para a criação de um universo consensual. O universo consensual concernente aos professores investigados pode ser resultado de todos os processos vivenciados ao longo de sua formação e reconfigurado ao longo de seus estudos e contextos de trabalho. Suas atitudes e comportamentos são
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ressignificados tanto em processos de formação, de aperfeiçoamento como de socialização profissional a partir de um dado novo, o que influencia na reconfiguração das Representações Sociais do professor sobre um determinado objeto, em nosso caso, o objeto leitura. Coleta de dados, contexto e sujeitos A coleta de dados foi realizada no segundo semestre de 2011, na UTFPR – Universidade Tecnológica Federal do Paraná, campus Campo Mourão, cidade localizada na região Centro Oeste do Paraná. As entrevistas foram individuais e agendadas previamente. A gravação das aulas ocorreu na turma do 4º ano matutino do Curso Técnico Integrado em Informática de nível Médio nas aulas de Língua Portuguesa da professora Sofia. O curso tem duração de quatro anos e oferece, além das disciplinas de núcleo comum, disciplinas técnicas específicas. Com consentimento da professora e dos alunos assistimos às aulas e filmamo-nas por quatro meses (agosto a dezembro de 2011). Com o acordo firmado, não divulgaremos nomes, mas adotaremos pseudônimos ao nos referir aos sujeitos da pesquisa. - Professora Sofia: Formada em Letras Anglo-Portuguesa e Especialista em Literatura Brasileira pela FECILCAM – Faculdade Estadual de Ciências e Letras de Campo Mourão, atual Universidade Estadual do Paraná. Ela é Mestre em Estudos Literários pela UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho”, Câmpus de Araraquara. Em 2011, ela ministrou aulas para os 2º e 4º anos do curso técnico e para o TI de Tecnologia em Sistemas para Internet. - Professor Elvis: estudou dois anos de Filosofia e um ano de Teologia como seminarista. Formou-se em Letras pela UEM - Universidade Estadual de Maringá. Ele é Mestre em Letras pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Câmpus de São José do Rio Preto, SP. Em 2011, ele cursou disciplina na UEM como aluno não regular com intuito de ingressar posteriormente no Doutorado. Nesse ano, ele ministrou aulas de LP e Literatura aos alunos dos 1º e 2º anos do TI. - Professor Amadeus: formado em Letras Português/Inglês pela UNIOESTE Universidade Estadual do Oeste do Paraná, em Cascavel. Fez especialização em
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Literatura Brasileira na UNICENTRO – Universidade Estadual do Centro-Oeste, é Mestre e Doutor em Estudos Literários pela UEL - Universidade Estadual de Londrina. O professor Amadeus havia trabalhado anteriormente no TI com uma turma do primeiro ao quarto ano. Em 2011, ele ministrou aulas apenas nos cursos superiores da instituição. Como podemos perceber, todos têm formação específica em literatura. Os professores participam de um Grupo de Pesquisa em Estudos da Narrativa, cadastrado no CNPq. O grupo foi formado em 2008 e é liderado pelo professor Amadeus. Suas linhas de pesquisa estão direcionadas aos Caminhos da prosa fantástica brasileira – séculos XIX e XX e Teoria do romance. O grupo se reúne periodicamente na própria instituição para debater teorias sobre a narrativa, bem como analisar obras da literatura brasileira e universal. A constituição das Representações Sociais na escolha dos textos para leitura Em todos os registros coletados, encontramos evidências que corroboram a preferência dos professores por gêneros literários para leitura dos alunos devido à complexidade da linguagem e o caráter reflexivo desses textos. Assim, seu repertório maior de trabalho com a leitura está intrinsecamente atrelado aos gêneros secundários. Abrimos um parêntese, neste trabalho, no intento de relacionar tais concepções à teoria desenvolvida por Bakhtin (2010) por sua diferenciação entre os gêneros primários e os secundários, uma vez que ele os coloca num patamar além do contexto imediato. Para esse estudioso “não se trata de uma diferença funcional. Os gêneros discursivos secundários (complexos – romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem em condições de um convívio cultural mais complexo (BAKHTIN, 2010, p. 263). Os gêneros primários são aqueles atrelados diretamente aos discursos do
cotidiano, aos enunciados alheios mais relacionados à oralidade, com isso, tem relação com o contexto mais imediato (FIORIN, 2008). Na conversa com os professores Sofia, Elvis e Amadeus, encontramos evidências que marcam sua preferência pela leitura de gêneros textuais secundários, sendo que os literários ocorrem com muito mais constância que os demais nos trabalhos com a leitura na sala de aula. A professora Sofia postula que a escola deve propiciar o contato com gêneros mais complexos pelo fato de eles não estarem muito presentes no
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cotidiano do aluno. Em sua opinião, a linguagem mais complexa e a organização textual desses gêneros contribuem no trabalho de ensino da língua, e os “gêneros literários dão mais vazão ao trabalho com a leitura, escrita, e até a gramática”1, segundo sua afirmação. Para ela, a autoria de renome, os discursos subjacentes ao texto e a fidedignidade da fonte são critérios adotados na seleção dos textos para leitura, devido à construção dos parágrafos, o vocabulário empregado e as intenções do autor. O professor Amadeus enfatiza a literatura como cerne dos trabalhos com a leitura pela completude linguística que os textos apresentam. Segundo ele, “o gênero literário, por excelência, tem maleabilidade de trabalhar linguagem de forma artística”, assim, “o aluno trabalha com o que é mais bem feito em termos de linguagem”, contudo, ele não descarta gêneros com características argumentativas “necessários ao aluno como ser social, capaz de interagir com o mundo a sua volta”. Em outro momento, ele reitera que os textos de caráter literário deveriam estar no bojo dos trabalhos com a linguagem por apresentarem maior nível de profundidade e criatividade, além de um trabalho linguístico diversificado. Para ele, o professor deve ter cuidado ao se trabalhar com a leitura e até escrita de alguns gêneros propostos em alguns livros didáticos, que não levam ao desenvolvimento do aluno enquanto leitor. Ele acrescenta, ainda, que a literatura propicia o acesso do aluno a textos de diferentes níveis de linguagem, e isso o ajuda a se constituir enquanto leitor pleno. O professor Elvis comenta que trabalha mais com textos literários. Ele classifica os textos não literários como aqueles de linguagem comum. Vejamos: “eu gosto de trabalhar com textos literários, mas quando eu trabalho com texto de linguagem comum, eu trabalho com o polêmico, não é ofender o outro, é trabalhar com a diferença, com diferenças de ideia, de religião, de visão política, de tudo”. Não há divisão de aulas para trabalhar com os conteúdos de LP, assim, leitura, produção textual, literatura e gramática compõem a ementa da disciplina de três aulas semanais. Todos os três professores unem os conteúdos literários ao trabalho com a leitura, interpretação e produção textual. O estudo da literatura não fica centrado em sua
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As transcrições dos registros, quando incorporadas ao parágrafo, são apresentadas em itálico entre aspas. Quando destacadas do texto, as transcrições recebem aspas, fonte 11 e espaçamento simples.
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história, mas nas leituras e nas reflexões que podem ser aproveitadas a partir desses textos, os quais, por sua vez, subsidiam a escrita. As falas dos professores nos levam a depreender que eles trabalham mais com a leitura de gêneros textuais literários devido à qualidade da linguagem e às ideias que subjazem as palavras do autor, o que possibilita ao leitor, diferentes significados, de acordo com sua vivência e seus conhecimentos prévios. As Representações Sociais de leitura relacionadas à escolha dos textos pelo grupo de professores constituem-se pela valorização de gêneros literários por contribuir mais efetivamente no processo de formação social do aluno leitor. Os gêneros textuais mais complexos oferecem ao leitor, um leque maior de possibilidades de produção de significados emanados das palavras na enunciação do autor em seu contexto sócio-histórico, permitindo transpor os sentidos para sua respectiva condição e contextos sociais. Isso o faz refletir sobre as questões sociais, o que contribui para a formação de um leitor crítico e autônomo, que consegue, a partir de seus conhecimentos prévios, transcender as informações do texto. Modelo de Representação Social da leitura Os estudos de letramento contemplam dois modelos: o autônomo e o ideológico. Na concepção de Street (apud Kleiman, 1995) a compreensão geral é que, o letramento por si só, afeta outras práticas sociais e cognitivas, sendo desta forma, autônomo. Ele é visto como um sinônimo de melhoria nas condições sociais pela simples condição de saber ler e escrever. Jung (2009) complementa, afirmando que é como se a escrita fosse um produto completo em si mesmo. É como se o aprendizado da leitura e da escrita fosse suficiente para dar conta de todas as outras apropriações de conhecimento de modo independente, sem levar em consideração os aspectos do contexto social, da cultura e dos conhecimentos prévios dos sujeitos envolvidos. Street (1984) argumenta que os novos estudos de letramento tendem a mudar a visão autônoma, uma vez que as práticas de letramento são social e culturalmente determinadas, ou seja, tanto a leitura como a escrita produzem diferentes significados em função dos contextos e das instituições em que são adquiridas e praticadas. Para contrapor a visão tradicional do letramento como um processo autônomo, Street (1984) propõe outro modelo que ele designa de ideológico. Para ele, o letramento ideológico
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contempla a língua enquanto prática social, assim, uma visão culturalmente mais sensível das práticas de leitura e escrita uma vez que são considerados os sujeitos participantes e o contexto onde estão inseridos. Jung (2009) sustenta que tais práticas são social e culturalmente determinadas, e os significados que a escrita assume para um grupo social dependem dos contextos e das instituições em que ela é adquirida e praticada. Assim, esse modelo, segundo a pesquisadora, “propõe observar o processo de socialização das pessoas na construção de significados pelos participantes” (JUNG, 2009, p. 47-48). Desse modo, os sentidos se constituem, ao aprendiz, por meio da linguagem e dos elementos envolvidos num dado contexto, não bastando apenas o domínio da leitura e da escrita. Os registros coletados indicam que os professores pesquisados não percebem a leitura simplesmente como habilidade de decodificação, como um dispositivo automático que leva à aquisição de conhecimentos e à constituição do aluno em sujeito leitor. As seguintes falas dos professores Amadeus e Elvis ajudam a identificar o modelo de Representação Social da leitura. Vejamos: Professor Amadeus: “(...) Eu não acho que o professor que trabalha com interpretação tenha que aceitar toda e qualquer bobagem que o aluno diga, porque a interpretação, ela tem que estar ancorada ao texto. Isso tem que ensinar prá eles. Ninguém faz mais interpretação, por exemplo, que nem se fazia quando a gente era criança: „João e Maria são casados‟. Aí tinha a pergunta: „Maria Casou com quem?‟ Né... não esse tipo de pergunta. (...) Eu sempre incentivava que eles transcendessem o texto, né, mas transcender sem voar pra longe, entendeu? Porque, assim... ele tem que me mostrar, se ele viu tal coisa no texto, por quê? Ele tem que conhecer também, que, dependendo do gênero, ele pode enxergar certas coisas. [...] Então, eu acho que o professor tem que fazer essas interferências, porque se criou uma banalidade nesse sentido da interpretação.” Professor Elvis: “nos trabalhos que eu estou fazendo com a literatura existe interpretação textual. Tem as questões não só de verificação de leitura, eu peço pra eles interpretarem, pra eles... associarem com acontecimentos, com realidades, com questões pessoais. [...] eu espero que o aluno reflita, principalmente que ele consiga expor a reflexão, que essa reflexão seja fruto, não só daquilo que foi pedido naquele exercício, mas que seja fruto das discussões que fizemos, das leituras que eles fizeram.”
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Vejamos outro exemplo citado pela professora Sofia, de uma conversa que ocorreu em uma das turmas, quando ela propôs um debate, e que argumentos ela usou com o aluno ao pensar que o texto estava acabado pelo autor: “Mas professora, nós vamos fazer um debate, mas como eu vou fazer um debate se o texto já diz tudo? Eu acho que as ideias do texto são melhores que as minhas ideias.‟ – então é interessante isso, né? E aquilo que eu disse pra eles... „Mas justamente, você vai assimilar as ideias do texto. É assim que nós crescemos. Então você só consegue ter as ideias a partir do momento que você lê. Não tem problema você repetir as ideias dele (do texto) você vai repetir tal e qual, você vai assimilar, e de certo modo elas se tornarão suas se você concordar com ele e você vai passar isso pra frente.‟ - Então é um... processo de aprendizagem. É interessante essa colocação dele, porque, talvez eles tenham medo de... eles acham que as ideias surgem do nada, e não é assim! As ideias surgem daquilo que nós lemos.”
Notemos que os professores não percebem o texto como um objeto acabado. Ao contrário, valorizam o que aluno tem a dizer, chamando-o para o debate e tornando-o um sujeito parte do diálogo. Na fala da professora, observamos que o desenvolvimento do aluno se dá por meio da interação com o texto, isso é propiciado na sala de aula pelas leituras e pelo confronto de ideologias constantes nas palavras do autor e do aluno enquanto sujeito. Como ela mesma afirma: “as ideias não surgem do nada (...) surgem daquilo que nós lemos e assimilamos”, ou seja, nos confrontos que surgem a partir das palavras do outro, nós as transformamos, as reconfiguramos, e essa reconfiguração de ideias, opiniões, leva ao desenvolvimento do aluno enquanto leitor, porque, de algum modo, há uma transformação. Podemos inferir que o modelo de Representação Social do trabalho com a leitura pode ser caracterizado pelo ideológico pelo fato de os docentes promoverem práticas de letramento por meio da linguagem considerando não apenas o processo de decodificação, mas especialmente as compreensões que os alunos são capazes de produzir a partir de seus conhecimentos prévios, do contexto social onde estão inseridos, fazendo-os, perceber, desse modo, os significados implícitos no texto. Com isso, a leitura se desenvolve de modo mais crítico uma vez que o aluno leitor tende sempre a transcender a superficialidade do texto. Os professores não preconizam o simples ato de ler e escrever como único fator responsável para a constituição do leitor. Consideram imprescindíveis os aspectos inerentes ao leitor, seus pré-conhecimentos,
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sua vivência, os aspectos ligados à sua educação, estimulam e oportunizam a dizer o que ele compreende a partir do texto lido. O texto é valorizado enquanto gerador de significados, e o aluno é concebido como sujeito-leitor em desenvolvimento, capaz de produzir suas próprias compreensões a partir da leitura. As Representações Sociais de leitura do grupo de professores de Língua Portuguesa da UTFPR de Campo Mourão se constituem a partir de seu universo reificado, de conhecimentos e concepções adquiridos em seus cursos de Graduação e Pós-Graduação. Seus conhecimentos literários adquiridos no universo reificado atrelados aos fatores sociais conduzem a uma interpretação da realidade. Essa interpretação consiste em perceber que estamos em uma sociedade que necessita de melhores leitores, mais críticos e autônomos em suas compreensões de mundo pela leitura. Desse modo, constitui-se o universo consensual uma vez que as ações cotidianas do grupo no âmbito educacional são orientadas a partir de seu conhecimento formal e de sua interpretação da realidade social. Ainda que possam trabalhar com estratégias diferenciadas de ensino, existe um assentimento na construção de valores, de concepções e atitudes que confluem para a formação de suas Representações Sociais de leitura. Considerações finais Os registros coletados, tanto pelas entrevistas como pelas aulas gravadas a fim de verificar as Representações Sociais de leitura do grupo de professores, nos mostram que seu interesse pela leitura e pela literatura é o que impulsiona o trabalho do grupo com leitura. A literatura é percebida como ferramenta de transformação do homem uma vez que, a partir dela, o leitor adquire uma visão diferenciada do mundo. As Representações Sociais se constituem a partir de conhecimentos adquiridos no universo reificado, os quais, influenciados por fatores sociais, confluem para o universo consensual. Dessa forma, verificamos que a Representação Social de leitura relacionada à escolha dos textos pelo grupo de professores, constitui-se pela valorização de gêneros literários, tanto em prosa quanto em verso, por contribuir mais efetivamente no processo de formação social do aluno leitor. Outra representação social da leitura que foi possível verificar é concernente ao modelo de letramento. Os docentes instigam os alunos a
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transcenderem o texto para que eles apreendam o que está implícito nas palavras do autor, levando em consideração seus conhecimentos prévios e o contexto no qual se encontram. As Representações Sociais de leitura do grupo de docentes pesquisados não são constituídas apenas pelo universo reificado, ou seja, sua formação acadêmica. Seu universo consensual é influenciado por fatores sociais. Adquiriram a consciência de formar um aluno mais crítico, capaz de desenvolver sua autonomia por meio da linguagem. Referências DUVEEN, G. o poder das ideias. In: MOSCOVICI. S. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 8. ed. Petrópoles, RJ: Vozes, 2011. JODELET, D. As Representações Sociais: Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. JUNG, N. M. A (re) produção de identidades sociais: na comunidade e na escola. Ponta Grossa: UEPG, 2009.
KLEIMAN, A. B. Os estudos de letramento e a formação do professor na língua materna.Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v.8, n.3, p. 487-517, set./dez. 2008. Disponível em Acesso em: nov. 2011. MOSCOVICI. S. Representações Sociais: investigações em psicologia social. 8. ed. Petrópoles, RJ: Vozes, 2011. OLIVEIRA, M. S. B. S, Representações Sociais e sociedades: a contribuição de Serge Moscovici. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v.19, n.55 , p. 180-186, Jun. 2004. Disponivel em: < http://www.scielo.br>Acesso em: nov. 2011.
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Terra cabocla: a Amazônia sob o olhar feminino
Marlí Tereza Furtado (UFPA)
A prosa de ficção brasileira, que retratou a Amazônia nas primeiras décadas do século XX, marcou-se por uma tradição pautada no paradigma de Euclides da Cunha (1866/1909) de À margem da história, obra publicada postumamente em 1909, em muitos aspectos devedora a Inferno Verde (1908), de Alberto Rangel. Nela, o autor agrupa sete textos sob o título Na Amazônia – Terra sem história, vertente em que aparecem várias narrativas, de autoria masculina, timbradas pelo signo terra, quais sejam: Terra imatura (1923), de Alfredo Ladislau; Terra verde (1925), de Adauto Fernandes; Terra de Icamiaba (1931), de Abguar Bastos, Terra de ninguém (1934), de Francisco Galvão. Nesse contexto, aparece Terra cabocla (lendas e contos), de Juanita B. Machado, publicado em 1928, pela Livraria Globo, de Belém 1. São, por enquanto, escassos os dados sobre essa mulher contaminada intelectualmente pela “novela de la tierra”, expressão que cabe à literatura latinoamericana da época (ARRIGUCCI JR.,1979, p. 119). No prólogo do livro, ela nos informa que passou longa temporada no Acre, seguindo o marido em sua profissão, tendo chegado até as fronteiras bolivianas, graças às facilidades que tinha como esposa do capitão do porto. Por outro lado, faz referências elogiosas ao sogro, o “admirável Dr. Manoel Francisco Machado, o velho Barão de Solimões” (MACHADO, 1928, p. 10), de quem encontramos mais informações nas pesquisas ligeiras feitas na internet do que sobre ela. Em todo caso, os dados que encontramos indicam-na atuando na imprensa paraibana e pernambucana. Há referências de sua contribuição, na década de 1930, para o jornal A União, órgão da imprensa oficial do estado da Paraíba (NUNES, s.d, s.p), e para o Diário de Pernambuco, apontada como “feminista e colunista” (BURITI, 2012, 1
Interessante que a paraense Eneida de Morais (1903/1971) também foi contagiada pelo clima de canto à terra e iniciou sua vida literária com um livro de poemas intitulado Terra Verde, publicado em 1929, pela mesma Livraria Globo de Belém.
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p. 144). E talvez não seja coincidência, mas o volume do livro Terra cabocla, que utilizamos para este trabalho, vem autografado por ela, com a data de 20 de agosto de 1933, na cidade de João Pessoa. Paralelamente aos escassos dados biográficos, há uma escassa crítica a sua obra, o que de certo modo atinge grande parte dos autores masculinos, havendo, no entanto, um trecho de página e meia no ensaio Os intérpretes da Amazônia, do livro Legendas & Águas-Fortes, editado em 1935, pelo crítico amazonense Péricles Moraes. O crítico classifica o livro de “interessante”, a linguagem de “harmoniosa e clara”, as páginas da obra de “eruditas e cativantes” (MORAES, 1935, P. 40). Segundo ele, embora Juanita B. Machado não tenha contribuído com nenhum ineditismo para aquele contexto de escrita sobre a Amazônia, a leitura de sua obra se valida pelo estilo. Vejamos um trecho do que diz: Todavia, nas lendas que ela revive, em uma prosa cheia de graça e fantasia, de colorido exuberante, além das vantagens do seu estilo, que é senhoril e matinal, com a radiosa frescura das alvoradas amazônicas, e com o perfume, o travo, o sabor agreste de fruta do mato, há ainda a considerar, num plano superior evidente, a expressão sincera, ou melhor, o acento verídico das observações, condensadas no calor de outras formas de vida e sensibilidade. (MORAES, 1935, p. 40-41, grifo nosso).
Seguindo o que foi grifado por nós no excerto acima, é bom prestar atenção nas imagens sinestésicas criadas pelo crítico, a fim de traduzir o que ele chamou de “amável alusão à obra de Juanita B. Machado” (MORAES, 1935, P. 40), que parecem ir ao encontro do sabor exótico que a região despertaria no leitor de outros centros. E a autora, em atitude humilde, além de reconhecer sua obra sem ineditismo, pensa também no interesse desse leitor. É o que diz no prólogo: Este meu livro, que nada tem de novo, que não tem outro valor que o trabalho intelectual que expendi, encerra alguns aspectos do norte, da Amazônia principalmente, lendas velhas, contos sem importância que escrevi para alguns amigos do sul da nossa América, aos quais interessavam essas cousas do norte brasileiro. (MACHADO, 1928, p. 9)2
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Atualizamos a linguagem do texto da obra.
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No prólogo, entretanto, encontramos direcionamentos da obra que nos permitem verificar o posicionamento da autora e o lugar que ocupava naquela sociedade. Tal como o número de autores da época, homens letrados, médicos e engenheiros, que escreveram sobre a região, Juanita B. Machado deixa clara sua preocupação com os aspectos sociais locais, mas nessa preocupação transparece o acervo científico e literário em que se embebia. Desse modo, ela se revela tocada pelo que denomina “completa decadência das raças e degenerescência dos costumes” da região, descrê de qualquer indício anterior de uma “civilização adiantada” (MACHADO, 1928, p. 5) e não hesita em descrever alguns indígenas conforme seu código de valores: Pelas margens do Purus, veem-se com muita frequência os Paumarys, índios muito sujos, vagabundos, e que moram em pequenas canoas com tolda de japá. As raras malocas de outras tribos são também pobres e não dão ideia alguma de vestígios áureos. (MACHADO, 1928, p. 6)
Ao mesmo tempo, como alguns desses autores, confronta o indígena com o caboclo amazônico, sem titubear em demonstrar a inferioridade do primeiro com relação ao segundo. Vale a pena transcrever o trecho: Os tapuios e outros índios, que conheci, mesmo domesticados, são muito mais lerdos de inteligência que o nosso caboclo, aos quais se opõem em índole, em hábitos, em quase tudo, pois o índio, nas sua degenerescência, guarda ainda a tara ancestral de um fatalismo inane, mudo e frio, frio como a água das lagoas e dos rios. O caboclo, pelo contrário, dá-nos a impressão de um titânico lutador, meio esmagado pelas garras formidáveis de uma natureza fantástica, que se esbanja em abundâncias incipientes. (MACHADO, 1928, p. 6)
Ressalve-se que o caboclo, colocado como esse “titânico lutador”, ressoa a Euclides da Cunha em suas imagens hiperbólicas, forma compensatória para caracterizar o homem nos embates com a natureza portentosa. E se a referência a Euclides da Cunha se faz via imagem, a outros autores ela o faz via citação, caso de José Veríssimo, que por sua vez cita Padre Antônio Vieira em sua reflexão sobre o papel dos jesuítas e colonizadores na “degenerescência das raças da Amazônia” (MACHADO, 1928, p 7).
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Saindo, então, do prólogo da obra, vejamos como ela se configura como um todo para podermos considerá-la em suas especificidades. Temos, na sequência, justificando o subtítulo “contos e lendas”, dezesseis narrativas curtas, todas intituladas, sendo alguns títulos referência explícita à temática que desenvolvem, como, por exemplo, “O Karaiba” ou “A Yara e o Boto”. No entanto, a narrativa “Entre canaviais” não só soa estranha já em seu título, (o que poderia ser um diferencial de peso aos costumeiros seringais amazônicos), como não faz jus ao universo das demais, sendo localizada em um estado nordestino. Seu enredo retrata uma das aberrações da escravidão: a impossibilidade de uma mulher negra, objeto do desejo do branco, amar a quem foi escolhido por seu coração. No decorrer da obra, Juanita B. Machado continua a demonstrar o acervo erudito em que fundamenta argumentos, tece comentários, estabelece analogias e, sobretudo, cria imagens que dão plasticidade às narrativas. Cita, nos enredos, músicos, pintores, e demonstra conhecimento de História, referindo-se a leis ou a autores como Barbosa Rodrigues. Seu conhecimento se revela interessante, sobretudo com respeito ao lendário amazônico, cujas histórias sempre conta buscando lastros antepassados e associando-as com algumas vertentes orientais. Esse dado já pode ser um elemento diferencial para a obra não cumprir a mesma programação daquelas escritas naquele contexto. Entretanto, enquadrada de modo geral, diríamos que ela não rompe com a tradição consolidada até então, pois a preocupação com o social vem associada ao modo preconceituoso de ver a população local, principalmente a indígena. O conto Enigma, por exemplo, é uma espécie de exercício para desvendar a alma do tapuio 3, repetindo preconceitos, embora também tente se contrapor ao preconceito. O tapuio, todavia, é pintado segundo o matiz naturalista, de correspondência entre seu comportamento e o ambiente em que se insere. Observemos: Pleno verão. A terra escalda. Sob a adustão do sol, as árvores se retorcem em espasmos lentos. (...) Tapuio, no contexto, significa “índio manso” (Ver: HOLLANDA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário Aurélio .Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1979, p.1354)
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Acocorado à porta do tapiry, à sombra rala de um desgalhado beribazeiro, o tapuio teimava há muitos dias na persistência de uma imobilidade búdica. Os seus olhos opacos e ofídicos quase nem piscavam. Era impossível apreender, na sua cara amarela e zigomática de chim, a passagem de um pensamento. Parecia que limfatismo penetra-lhe também a alma, invadindo-a do mesmo marasmo entorpecente que o circunda. (MACHADO, 1928, p.87-88)
O tapuio Viriato é retratado em contraponto ao filho do fazendeiro, branco e escolarizado, que volta cheio de teorias progressistas da Academia e a quem irritava “a passividade do caráter enigmático do tapuio, sem expressão, sem cor” (MACHADO, 1928, p. 88). A narrativa termina incidindo o foco nos olhos “opacos e ofídicos” do tapuio, em que não se vê nenhum “clarão revelador” (MACHADO, 1928, p. 99) do desaparecimento do rapaz branco, com quem saíra para uma inspeção no lago, de onde somente ele, Viriato voltara. Se, de modo geral, a obra não sai da tradição, ao visualisarmos os textos um a um, aparece um dado curioso. As temáticas dessas narrativas nos leva a dividi-las em dois blocos: o de lendas e contos amazônicos, ou de temáticas lendárias, cujos espaços reiteram o assunto tratado; o de histórias cujos temas não se ligam ao lendário amazônico e os enredos são
desenvolvidos em espaços que podem pertencer a
diferentes regiões. Histórias localizadas, por exemplo, em um jardim, ou em uma determinada casa, sem implicações espaciais maiores. São nove as narrativas do primeiro bloco: A jade e o nefrite, O poema tropical, O talismã sagrado, O karaíba, A Yara e o Boto, O jarrão de porcelana, Iconoclasta, Reconquista, Enigma. Conforme já referido, a autora tenta correlacionar as lendas com mitos ou topos ancestrais da humanidade, principalmente orientais. Com exceção de O jarrão de porcelana, em todas as outras ela cria um narrador distanciado do assunto que narra, garantindo por meio da terceira pessoa os momentos em que, na esteira do estilo euclidiano, apostrofa em favor de mudanças em determinado quadro, ou profetiza um quadro futuro. Assim termina o primeiro conto do livro e desse bloco: A jade e o nefrite: “E a glória erguerá a América nos ombros, qual uma bandeira de luz! (MACHADO, 1928, p. 18).
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Interessante que no único conto do bloco em que há um narrador inserto na diegese (O jarrão de porcelana), esse narrador é uma personagem testemunha que ouve a sofrida história de saudade de um jarrão de porcelana, que vivera, séculos antes, no Império do Sol ou na Indo-China, e, agora, sente-se em “terra de bárbaros”, atirado a um canto, como coisa inútil, “feita apenas para o regalo dos olhos e a cobiça dos antiquários” (MACHADO, 1928, p. 60). A descrição do vaso e a narração tocam o leitor pela plasticidade das imagens e pela leveza das personagens centrais, tangidas pelo amor obstaculizado pelo personagem oponente. O conto não deixa de sugerir ao leitor mais maduro os ecos dos vasos gregos e chineses tão bem pintados por nossos poetas parnasianos. Vale comentar, ainda, alguns dos contos amazônicos do bloco. O poema tropical se faz interessante, pois nele, o narrador cria o artifício da descrição do entardecer, quando arrefece a “orquestração descompassada, o poema musical de uma arritmia melodiosa”, (MACHADO, 1928, p. 21-22), tocada sob o sol estuante, para dar lugar “à fantástica romaria dos duendes, que formam o fabulário pletórico da Amazônia, lendas ramayanescas, mitos, lendas etnológicas que se cruzam e se fundem num mesmo encanto selvagem” (MACHADO, 1928, p. 22). Por meio desse canto, o narrador nos traz a lenda da lua, do Curupira, da Matinta Pereira (com ressonâncias do Maty-taperê, ou Saci-pererê), do Yurupary, da Boya-açu (Cobra Grande), do Yurapayé. Os textos O talismã sagrado e O karaíba se complementam na narração da lenda da muiraquitã. É como se fossem a lenda da muiraquitã 1 e 2, com um acréscimo que puxa ao romantismo. Na primeira narrativa, uma índia descumpre o destino traçado do acasalamento das Icamiabas, não só por ter tido um filho do guerreiro, ato involuntário, mas porque o guerreiro desaparecera sem que ela pudesse entregar-lhe a criança, que teria de ser sacrificada. E ela sofre muito, pois se apaixonara pelo guerreiro e não queria o sacrifício do fruto desse amor. Para alívio do leitor que porventura torce pela índia e pela criança, no conto seguinte, o avô do guerreiro aparece na tribo da índia para buscar a criança e ela, então aliviada, entrega outro tipo de oferenda ao deus Rudá. No texto A Yara e o Boto, apesar do sintagma dar a possibilidade de uma narração que elabore a fusão das duas lendas, os dois mitos são trabalhados separadamente. O conectivo e equipara as duas lendas no que elas têm em comum: as
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personagens são entidades das águas que seduzem os estrangeiros incautos. A Yara aparece com “os cabelos verdes como as lianas, o seu corpo branco como a lua, e os olhos são jades de estranho polimento” (MACHADO, 1928, p 45) e, ao final, sua história é equiparada a uma lenda da Bretanha, o que demonstra a tendência da autora de ampliar a busca pelas raízes desse lendário local. Já o conto do Boto subverte a grande maioria das histórias subsequentes sobre ele porque coloca uma índia, seduzida pelo lindo rapagão em que o Boto se transformara, a fugir remando para ir ao encontro dele. De repente, reconhece o engano e quer, então, fugir dele para não ser abandonada depois. Seu choro de desespero desperta o Tucuxy, inimigo do Boto, que vem ao encalço dos dois, luta com o Boto e liberta a moça que volta para sua tribo sem perder a virgindade. Interessante observar que, nessa história o Tucuxy é retratado como um outro peixe e não como um boto que também é. Na atualidade, a lenda do Boto, em sua maioria, se resume na sedução dele às moças ribeirinhas. Vale, ainda, verificar o tom com que o narrador termina o conto: Nem na quietude primitiva das selvas falta a luta do instinto, a poesia do ardil, o ardil do homem que deseja, e o ardil fantasioso da mulher que sofre a fatalidade de um Destino que não perdoa. E a humanidade, sob as suas mil formas, é sempre a mesma em sua essência fundamental. (MACHADO, 1928, p.51)
Esse final, que demonstra a percepção da autora sobre a mulher, serve de elo para podermos comentar o segundo bloco de textos em que podemos dividir a obra em foco, de Juanita B. Machado. Segundo o que acima afirmamos, esse bloco nos traz sete narrativas cujos temas não se ligam ao lendário amazônico e os enredos são desenvolvidos em espaços que podem pertencer a diferentes regiões. São elas: Entre canaviais, Aventura noturna, Uma novela banal, Sol de inverno, A tuberculosa, Pobre amor e Último capítulo. Para evitar questionamentos com relação à possível desnecessariedade de se falar sobre essa parte da obra, uma vez que, no título, direcionamos nosso trabalho para a relação com a Amazônia, gostaríamos de esclarecer que alguns pontos nos ajudam a conhecer melhor essa autora e confirmar seu papel de jornalista, apontada como feminista para a época.
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Nesses contos, há a recorrência de uma mulher dividir a protagonizaçao do enredo. Também, em alguns momentos a personagem central se encontra escrevendo uma história e a narração se centra na primeira pessoa. Em termos formais, cabe destaque ao texto Sol de inverno, em que encontramos os três primeiros parágrafos narrativos, para depois se transformar em um diálogo contínuo entre um casal de velhos que relembram suas vidas e se confessam amantes um do outro, mas separados que foram pela vida. Eles reclamam e dizem: É o erro da vida... que nos faz sofrer. O egoísmo, a inveja, travestidos de moral. É a massa bruta dos preconceitos que esbarronda os mais profundos sentimentos... Vândalos que passam sob sacrilégio augusto dos templos e das obras de arte. (MACHADO, 1928, p. 150)
Apesar do discurso contra o preconceito, no diálogo dos dois não se recupera a trama do conto para que possamos entender por que o casal teria sido separado na juventude, o que, se recuperado, atenderia menos a curiosidade do leitor
do que
reforçaria a razão para o enfoque contra o preconceito, o qual, inclusive, poderia ser delimitado: preconceito com a cor, a classe social, a aparência física, ou outro. Outro conto também foi narrado em forma de diálogo: Uma novela banal, em que um rapaz visita uma prima rica, que está escrevendo uma novela, e pede que ela lhe revele a história. Na pérgola cheia de flores em que se encontram, tomando chá das cinco em uma capital nordestina não especificada, ela sumariza a novela ao mesmo tempo em que vai criticando as exigências sobre a mulher para o casamento. Reproduzimos um dos momentos-chave que ela considera as bases dos lares desde os tempos coloniais: Para casar a moça precisa apenas ser prendada, isto é, saber coser, cozinhar, arrumar a casa, tratar dos filhos, aprender um pouco as noções muito rudimentares das escolas primárias e, depois, ser uma boa católica, apostólica e romana, essa porção de salsadas a que se chama uma menina prendada. Emparedada nestas altas qualidades, vai a nova mulherzinha instalar o seu lar onde o esposo é o senhor. (MACHADO, 1928, p. 137)
Ovservemos as palavras “salsadas” e “emparedada” que a narradora utiliza e revelam tanto seu desdém contra aquela situação quanto sua preocupação com a mulher tão mal preparada para o casamento. Por isso, ainda vale reproduzir a resposta que dá ao
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primo quando indagada sobre a forma de se evitar a hipocrisia que reina em função da visão distorcida desse preparo da mulher: “dar à mulher a exata noção de seu valor e dos deveres para consigo mesma” (MACHADO, 1928, p. 138), ao que o primo considera ideias atrevidas e ela contrapõe chamando-as de “verdadeiras”. Para não nos estendermos mais, cabe dizer que Terra cabocla não se revela um primor de obra em técnica, já que a urdidura de muitos de seus contos fica a dever ao leitor mais exigente. Podemos dizer que a obra se apresenta mais eficaz no reconto de lendas e mitos, uma vez que dá originalidade ao que já é conhecido. Entretanto, lembremos que a autora, Juanita B. Machado, se revelou no prólogo de sua obra nada pretensiosa e quis presentear conhecidos seus do sul com algumas histórias. Intento conseguido, pois se em seus textos amazônicos sentimos ecos do texto euclidiano, por outro lado não sentimos o tributo a ele e aos viajantes como em muitos textos de autoria masculina da época, conforme já constatamos em outros estudos (FURTADO, 2012). Convido os leitores a desfrutar desse presente. Referências ARRIGUCCI JR., Davi. Tradição e Inovação na Literatura Hispano-Americana. In: __Achados e perdidos. São Paulo: Polis, 1979. BURITI, Iranilson. Corpo feminino em detalhes: honra e modernidade no Brasil dos anos 20 (século XX). In: Saeculum- Revista de História [27]. João Pessoa, jul./dez. 2012. FURTADO, Marlí Tereza. A Amazônia em narrativas (1914/1939): um tributo a Euclides da Cunha e aos viajantes. In: NUÑEZ, Carlinda F. P.; SALES, Germana; RODRIGUES, Rauer R.; SOUZA, Roberto A.; BARBOSA, Socorro de F. P. História da literatura: práticas analític.Rio de Janeiro: Ed. Makunaíma, 2012, vol. 2. HOLLANDA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979. MACHADO, Juanita B. Terra cabocla (contos e lendas). Belém: Livraria Globo, 1928. MORAES, Péricles. Os intérpretes da Amazônia. In; __ Legendas & Águas-fortes. Manaus:Livraria Clássica, 1935.
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NUNES, Maria Lúcia da Silva. Uma página feminina: vozes de mulheres paraíbanas na década de 1930. www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe5/pdf/580.pdf
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A MÚSICA COMO ELEMENTO FUNDANTE DO ROMANCE NORTE-AMERICANO Marly Gondim Cavalcanti Souza (UESPI)
Life, he realized, was much like a song Nicholas Sparks A motivação para a realização desta pesquisa foi constatar, durante todo esse caminho de quarenta anos trilhado na docência, em seus diversos níveis (Fundamental, Médio e Superior), a dificuldade dos alunos em atingir um nível de leitura compreensiva de obras literárias, de maneira geral. Lê-se, porém, não se sabe resumir, parafrasear, interpretar e, muito menos, criticar aquilo que se lê. Portanto, é necessário enfrentar o desafio de, além de explorar o árido aspecto puramente estrutural da literatura, trabalhar o que mais atinge nossos jovens: a sensibilidade musical. Existem dados oriundos de pesquisas científicas que colocam a música no topo do ranking de atividades de lazer preferidas pelos jovens, como se pode comprovar através de trabalhos como o do português Pedro Miguel Dias 1 (2010, p. 54), quando afirma que “ouvir música é uma das actividades de tempos livres preferidas pelos jovens, havendo quem lhe dedique até 40 horas por semana, aproximadamente o mesmo tempo consagrado à escola.”. Outro trabalho merecedor de atenção é o artigo derivado da pesquisa de mestrado de Carlos Eduardo Pimentel, da Universidade Federal da Paraíba – UFPB2, quando o pesquisador parte da preferência dos jovens pela música de forma indubitável, citando-a como fator para o conhecimento da realidade interior dos adolescentes e mencionando, inclusive, que o interesse pelo estudo da relação entre música e personalidade, sentimentos e influência social data da Antiguidade Clássica, com Platão3 e Aristóteles4. (PIMENTEL, GOUVEIA e PESSOA, 2007, p. 145-146). Enfim, é comum verificar afirmações que colocam a música entre as atividades prediletas dos jovens, como no caso de frases escritas em notícia sobre o nono Prêmio 1
Do Agrupamento de Escolas de Ferreira do Alentejo.
Sob a orientação de Valdiney V. Gouveia (UFPB), publicado em coautoria com Viviany Silva Pessoa (UFPB). 3 “indica que a música poderia servir como um instrumento capaz de influenciar sociedades inteiras”. (PIMENTEL, GOUVEIA e PESSOA, 2007, p. 146). 4 “refere-se à importância dos estilos musicais no caráter”. (PIMENTEL, GOUVEIA e PESSOA, 2007, p. 146). 2
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Escola 20095: “Todos os jovens gostam de música e arte. Através da criatividade, eles aprendem a agir no seu cotidiano.”, referindo-se à possibilidade de prevenir doenças sexualmente transmissíveis entre os jovens. O elemento sonoro, ao qual se está dirigindo a atenção na presente pesquisa, trata-se, na narrativa, dos itens lexicais portadores de carga semântica sonoro-musical, permitindo que sejam identificados componentes da teoria da música (música, som, silêncio, compasso, pausa...), da organologia musical (nome de instrumentos musicais), da história da música (períodos, como: Romantismo, Impressionismo) ou, através da intertextualidade (nomes de compositores ou de personagens de dramas musicais, títulos ou trechos de peças musicais, partitura). Funcionalmente, o elemento sonoro estabelece-se na narrativa através de palavras e expressões que remetem o leitor para a posição de ouvinte, na medida em que evocam sua memória sonoro-musical, mesclando a trama com sons, conhecidos ou recuperados da memória daquele que penetra os meandros das palavras e frases articuladas do texto. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que lê, ouve os sons ou, pelo menos, coloca sonoridades como ‘pano de fundo’ da narrativa, constituindo assim, uma temática para personagens, lugares, relações entre personagens. A música pode, ainda, realmente, conduzir todo o desdobrar dos fatos componentes da organização textual, constituindo-se o fio de Ariadne para o leitor que se aventura naquele labirinto ficcional. As perguntas norteadoras da pesquisa são: como se justifica o título do romance? A música poderia, portanto, configurar-se tanto como viés de apreciação, como de sedução para o leitor do romance, estabelecendo assim uma relação de complementaridade? Literatura e música cooperariam uma com a outra na composição da narrativa? Esta pesquisa fundamenta-se nas teorias da Literatura Comparada (Daniel-Henri Pageaux), de maneira especial na intersemiose, através da leitura músico-literária (Frédérique Arroyas) e na intertextualidade (Julia Kristeva), bem como da titrologia lítero-musical (Leo Hoek). Tendo surgido na Inglaterra, com o crítico inglês Mathew Arnold, no ano de 1840, a expressão Literatura Comparada é entendida no âmbito da relação que se estabelece entre a arte literária e as outras artes, no caso específico desta pesquisa, a música. Dentro da Literatura Comparada, será enfatizado o aspecto da intersemiose, que prioriza a leitura literária pela ótica do confronto do signo literário com outros sistemas de signos (cf. PAGEAUX, 1994). Fabiano Ramos (2007, on line), citando o “polêmico poeta curitibano Paulo Leminski”, afirma que “através da intersemiose, cruzam-se outras linguagens, outros códigos, outros recursos, outros meios. E no emaranhado de linguagem literária e linguagem musical de A última música, podemos constatar o fenômeno da intersemioticidade, quando “les lecteurs sont donc conviés à depasser les 5
O evento é organizado com objetivo de integrar alunos de todo Brasil a assuntos que envolvam sexualidade e prevenção.
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bornes du texte et à le placer dans um champ plus vaste d’interrelations artistiques” 6 (ARROYAS, 2001, p. 19), para bem desfrutar da leitura do romance. Dentre outros aspectos da Literatura Comparada, a intertextualidade, proposta por Julia Kristeva, aposta na inter-relação entre textos; na sua decorrência está uma prática interdisciplinar, o exame das interações entre áreas vizinhas (literatura e artes) como elementos fundantes da expressão poética do texto. Neste sentido, apoia-se teoricamente em Solange Oliveira (2002, p. 21-32), quando estabelece bases teóricas para uma introdução às relações entre as artes. O estudo do título do romance se impõe logo de início porque, corroboramos com o pensamento de Leo H. Hoek (1981, p. 1-2), no sentido de que: Le titre a la primauté sur tous les autres éléments composant le texte. Nous parlons ici de primauté dans un double sens: le titre est non seulement cet élément du texte qu’on perçoit le premier dans un livre mais aussi un élément autoritaire, programmant la lecture. Cette 7 suprématie de fait influence toute interprétation possible du texte.
Portanto, a obra constituinte do corpus deste trabalho possui uma identidade física composta, segundo Michel Butor (1969, p. 12), de um título e um corpo de texto: “toute oeuvre littéraire peut être considerée comme formée de deux textes associés: le corps (essai, roman, drame, sonnet) et son titre” 8. O título de obra possui importância, portanto, na sua identificação, por ser o primeiro elemento com o qual o leitor começa seu contato com a publicação e, neste sentido, somos consoantes com o pensamento de Leo Hoek (apud GENETTE, 1987, p. 73) quando afirma: “Ensemble de signes linguistiques [...] qui peuvent figurer en tête d’un texte pour le désigner, pour en indiquer le contenu global et pour allécher le public visé”.9 Ainda tratando do título da obra, dentre as funções10 indicadas tanto por Vincent Jouve (1997, p. 13-16) como por Charles Grivel (apud GENETTE (1987, p. 73-89), situamos A última música no tipo descritiva, também chamada função de indicação do conteúdo, mencionando aquilo de que trata a obra, no caso, à última música a ser composta pelos personagens Steve, o expianista e Ronnie, sua filha. O corpus desta pesquisa é o livro The last song, de Nicholas Sparks. Trabalharam-se, nesta pesquisa, com quatro edições do livro: a primeira, em inglês, disponibilizada on line, em formato pdf. (SPARKS, 2014b); a segunda, também em Os leitores são convidados a ultrapassar os limites do texto e colocá-lo em um escopo mais amplo de inter-relações artísticas. (Tradução nossa). 7 O título tem a primazia sobre todos os outros elementos constituintes do texto. Falamos aqui da primazia em duplo sentido: o título é não somente este elemento do texto que percebemos por primeiro num livro, mas também um elemento autoritário, programador da leitura. Esta supremacia de fato, influencia toda interpretação possível do texto. (Tradução nossa). 8 Toda obra literária pode ser considerada como formada de dois textos associados: o corpo (ensaio, romance, drama, soneto) e seu título. (Tradução nossa). 9 Conjunto de signos linguísticos [...] que podem figurar no início de um texto para designá-lo, para indicar o conteúdo global e para convidar o público visado. (Tradução nossa). 10 As funções do título de uma obra, segundo Vinvent Jouve e Charles Grivel podem ser resumidas em: descritiva (de conteúdo, de forma, mista e ambígua); a conotação e a sedutora. 6
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inglês, publicada pela Grand Central Publishing (SPARKS, 2009); a terceira edição aqui trabalhada é a tradução para o português, também em formato pdf, disponibilizada on line, pela Comunidade Traduções de Livros (SPARKS, 2014c); e a quarta, também traduzida para o português, em celulose, traduzida por Marsely de Marco Martins Dantas, publicada pela Editora Novo Conceito, de Ribeirão Preto (SP). (SPARKS, 2010). Nicholas Sparks (1965), norte-americano de Nebraska, é um dos escritores famosos da atualidade daquele país, mesmo sendo graduado em Economia, tendo livros traduzidos para várias línguas e possuidor de enorme público. Conquistou os leitores brasileiros após publicar A última música e Querido John. (NICHOLAS..., [s.d]). O romance A última música surgiu em tempo inverso da característica das criações do mesmo tipo: o script para o filme surgiu antes do romance. O próprio Nicholas Sparks, no seu site, explica a inspiração para a obra: ele estava imaginando como escreveria sua nova história quando, de repente, recebeu o telefonema de ninguém menos que Jennifer Gipgot – irmã de Adam Shankman, diretor do filme A walk to remember – e produtora associada da Disney. Ela dizia que eles (da Disney) estavam interessados em uma história na mesma linha de A walk to remember, considerando o sucesso dessa película. Ideias surgiram, Sparks decidiu escrever um romance com personagens que atendessem ao perfil assim descrito: “I wanted the story and characters and events in the novel to be original, interesting and universal”.11 (SPARKS, 2014a). Por fim, a resolução de dirigir o romance para uma trama envolvendo uma jovem, um ninho de tartarugas marinhas atrás da casa dela, de maneira tal que ela se sentisse compelida a proteger. Ele, um voluntário do Aquário, enviado exatamente para cuidar do ninho das mesmas tartarugas marinhas. (SPARKS, 2014a). Enfim, o romance está estruturado em trinta e sete capítulos, mais um Prólogo e um Epílogo, somando 182 páginas. Analisando, inicialmente, a capa do livro, como o elemento de primeiro contato com a obra, verifica-se que a imagem da publicação em língua inglesa (SPARKS, 2009) expõe exatamente o nome do autor e o título da obra em um quadro com uma partitura ao fundo, em marca d’água, ocupando a parte superior da página (de forma proposital ou de forma despretensiosa, com esse elemento da Teoria da Música), a qual é preenchida pela foto de uma praia, com tartarugas marinhas recém-nascidas, encaminhando-se para o mar. A imagem da música não é evocada nas duas edições traduzidas para o português, consideradas nesta pesquisa, não despertando, assim, o leitor de língua portuguesa para esse aspecto do romance. Uma das capas citadas realça apenas uma jovem pensativa (SPARKS, 2014c), enquanto a outra capa destaca o romance entre os jovens (SPARKS, 2010).
Eu desejava a estória, personagens e acontecimentos originais, interessantes e universais, no romance. (Tradução nossa). 11
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Iniciando a exposição das evidências textuais para tudo o que foi afirmado anteriormente, veja-se o título da obra em foco: The last song12. Dispensa comentários mais longos. Não poderia ser mais apropriado. É um título descritivo – diz exatamente o conteúdo do romance; a ação se desenvolve em torno de uma composição musical, iniciada em parceria entre pai (Steve) e filha (Ronnie), para atingir seu ápice no capítulo 36, intitulado exatamente Steve, quando ele já não sentia dores, o que não acontecia há anos e, finalmente, concluiu a verdade sobre a presença de Deus, questionamento que o havia acompanhado pela vida afora, exposto na narrativa já no capítulo 2: “Was it still possible for someone like him to experience the presence of God?” 13(SPARKS, 2014b, p. 6). For the first time in months, he felt no pain at all; for the first time in years, he knew his questions had answers. As he listened to the song that Ronnie had finished, the song that Ronnie had perfected, he closed his eyes in the knowledge that his search for God's presence had been fulfilled. He finally understood that God's presence was everywhere, at all times, and was experienced by everyone at one time or another. 14 (SPARKS, 2014b, p. 176).
Portanto, além de ser a história de amor entre Ronnie e Will, o romance possui, com muita propriedade, um núcleo narrativo que se sobressai, a ponto de proporcionar uma cena de forte apelo para o leitor, já motivado pelo título. O pai, antes de morrer, escuta sua filha executar a obra trabalhada durante toda sua vida e, o que mais o gratifica e plenifica, é que a filha aperfeiçoou sua criação artística – sinal de que a filha é sua continuadora na arte das musas. Analisando o texto do romance, é fácil perceber que itens lexicais do campo musical ocupam lugar de destaque porque eles se fazem presentes desde o Prólogo, como se pode constatar no seguinte trecho: “For an instant, Ronnie felt a crush of memories overwhelm her: the fire and subsequent rebuilding of the church, the stainedglass window, the song she'd finally finished.”15(SPARKS, 2014b, p. 1, grifo nosso), permanecendo durante toda a narrativa, até o Epílogo, conforme os seguintes trechos: But Ronnie was okay with that; between being with Jonah and practicing the piano, she had little time for anything else. Because her dad's piano had yet to be shipped back to the apartment, she took the subway to Juilliard and practiced there. ………….
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A última música Seria possível para alguém como ele experimentar a presença de Deus? (Tradução nossa) 14 Pela primeira vez, em meses, ele não sentiu dor alguma; pela primeira vez, em anos, ele sabia que seus questionamentos tinham resposta. Enquanto ouvia a música que Ronnie havia concluído, a música que Ronnie havia aperfeiçoado, ele fechou os olhos, sabendo que sua busca pela presença de Deus estava preenchida. Ele, finalmente, compreendeu que a presença de Deus estava em todos os lugares, em todos os tempos, e foi experimentada por todos em um momento ou outro. (Tradução nossa). 15 Por um instante, Ronnie sentiu-se inundada por uma enxurrada de lembranças: o incêncio que levou à reconstrução da igreja, o vitral, a música que finalmente havia terminado. (SPARKS, 2010, p. 12). 13
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Only three weeks after arriving back in New York, she'd opened her audition with the song she'd composed with her dad. She was a little rusty in her classical technique-three weeks wasn't much time to prepare for a high-level audition-but as she left the auditorium, she thought her dad would have been proud of her. 16 (SPARKS, 2014b, p. 180)
Procedendo a avaliação do texto, através do método de análise lexical e textual, do professor francês André Camlong, chamado Stablex, vê-se que o vocabulário selecionado pelo autor para compor esta obra atinge a enorme extensão de 7.548 itens lexicais usados e nada menos que 115.564 palavras processadas. Constata-se, portanto, que o auxílio do processamento do texto via informática e tabelas de Excel, tornam-se indispensáveis para trabalho de tal envergadura. Detalhando essa visão macro da obra de Sparks, procedeu-se a lematização do vocabulário musical, selecionando-se da Macro (parte do Stablex operada através do Excel) o grupo de 178 itens lexicais relativos à música (nosso viés de análise), totalizando 1.613 ocorrências no romance, o que evidencia uma freqüência significativa de elementos musicais no texto. Continuando a análise do texto pelo Stablex, verifica-se que oito capítulos do livro apresentam um peso mais relevante para o vocabulário musical, a saber: 1 Ronnie, 10- Ronnie, 16 - Steve, 24 - Ronnie, 25 - Steve, 30 - Steve, 36 - Steve e Epílogo - Ronnie. Importante notar que, quando se observa o romance em paralelo à linguagem musical, o núcleo narrativo se concentra nas personagens: Steve e Ronnie – pai e filha, responsáveis, em igual proporção (quatro capítulos intitulados Ronnie e quatro, Steve, aleatoriamente alternados) pela presença da música no texto. Penetrando em cada capítulo cujo peso lexical se destacou dos demais, chega-se aos itens lexicais de maior peso: Capítulo 1 – Ronnie – audiences (7,72); Capítulo 10 – Ronnie – cds (12,6); Capítulo 16 – Steve – notes (9,63); Capítulo 24 – Ronnie – composing (5,06); Capítulo 25 – Steve – composers (9,43); Capítulo 30 – Steve – Bird (11,34); Capítulo 36 – Steve – song (24,89); Epílogo – Ronnie – audition (10,94). Portanto, é notório o destaque conferido a palavras referentes à composição, como: audiences17, notes18, composing19, composers20, song21 e audition22. Para 16
Mas Ronnie estava bem assim: entre ficar com Jonah e praticar piano, ela teve pouco tempo para qualquer outra coisa. Porque o piano de seu pai tinha ainda de ser enviado de volta para o apartamento, ela pegava o metrô para Juiliard e praticava lá. [...] Somente três semanas depois de chegar de volta em Nova York ela abriu sua audição com a música que ela compôs com seu pai. Ela estava um pouco ‘enferrujada’ com sua técnica clássica – três semanas não foi tempo suficiente para preparar uma audição de alto nível – mas, quando ela deixou o auditório, ela pensou como seu pai teria ficado orgulhos dela. (Tradução nossa). 17 Público, auditório. 18 Notas. 19 Compondo, compor. 20 Compositores. 21 Canção, música. 22 Audição.
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completar a observação desse aspecto, vê-se, no quadro acima, que a palavra song detém o peso lexical mais elevado, igual a 24,89. Isso confirma a importância do tema da composição da música, já percebido no título do romance – The last song; Steve iniciou a composição de uma música (que foi a última) com Ronnie que, posteriormente, aperfeiçoou-a e a concluiu. Explorando as formas musicais, o romance inclui apenas duas: sonata e canção (song). Sonata é, segundo o dicionário Oxford, The concise dictionary of music (2004, p. 686-687): “Instrumental composition for pianoforte or other instruments with pianoforte accompanying, e.g. cello sonata, flute sonata, in several movements (sometimes in one, as in Liszt’s B minor pianoforte sonata)”23. Verificam-se três ocorrências para sonata: a primeira, referente à Sonata n. 16, em Dó Maior, de Mozart, no trecho: “[…] it took a second for her to recognize Mozart's Sonata no. 16 in C Major. It was one of the pieces she had performed at Carnegie Hall four years ago, […]”24. (SPARKS, 2014b, p. 2-3). Nada poderia ser mais adequado a um romance que a evocação da Sonata n. 16 em Dó Maior, de Mozart, cuja produção no contexto do século XVII, é assim considerada pelo citado dicionário Oxford (2004, p. 687): “the Viennese classical sonata of Haydn, Mozart and Beethoven marked the greatest period in the development of the form, leading to the superb romantic era.”25. A segunda referência à sonata está no plural, ‘sonatas’, no seguinte trecho: “He might have experienced passion and catharsis in the works of Tchaikovsky or felt a sense of accomplishment when he'd written sonatas of his own, but he now knew that burying himself in music had less to do with God than a selfish desire to escape.” 26 (SPARKS, 2014b, p. 6). Portanto, a música não seria a resposta para suas dúvidas sobre a sua possibilidade de vivenciar a presença de Deus. A terceira referência a ‘sonata’, encontra-se no trecho: “From inside, she could hear the soft sounds of the piano, and she recognized the sonata by Edvard Grieg in E minor. She took a deep breath before opening the door, then slammed it shut behind her.”.27 (SPARKS, 2014b, p. 27). É mais um caso de intertextualidade musical, trazendo, desta feita, o texto do famoso compositor norueguês do período romântico, 23
Composição instrumental para pianoforte, ou outros instrumentos, com acompanhamento de pianoforte, isto é, sonata para violoncelo, sonata para flauta, em vários movimentos (às vezes em um, como a Sonata em si menor, para pianoforte, de Liszt. (Tradução nossa. 24 Levou um segundo para ela reconhecer a Sonata n. 16 em Dó Maior, de Mozart. Foi uma das peças que ela executou no Carnegie Hall há quatro anos. (Tradução nossa). 25 A clássica sonata vienense, de Haydn, Mozart e Beethoven, marcou o período de maior desenvolvimento da forma, que conduz à era romântica soberba. (Tradução nossa). 26 Ele pode ter experimentado a paixão e a catarse das obras de Tchaikovsky ou sentiu uma sensação de realização quando ele escreveu as suas próprias sonatas, mas agora sabia que se enterrando na música tinha menos a ver com Deus do que um desejo egoísta de escapar. 27 Do interior, ela podia ouvir os sons suaves do piano e ela reconheceu a sonata de Edvard Grieg em mi menor. Ela respirou fundo antes de abrir a porta, em seguida, bateu a porta atrás dela.
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Edvard Grieg. Mais uma vez, The last song convoca uma peça do período romântico, perfeitamente afinada com seu propósito de uma história de amor. Encerrando essa análise do romance pela ótica das formas musicais e, sem dúvida, de intertextualidade, focaliza-se a forma da canção – song – conceituada, de maneira geral, pelos dicionários e livros (de teoria da música e de formas musicais), como uma composição vocal, solo ou com acompanhamento. É também constatada sua existência para composição unicamente instrumental, especialmente, no período romântico da história da música, como é o caso das ‘Canções sem palavras’, de Felix Mendelsohn (2014), compositor, pianista, organista e regente alemão. Outro exemplo de canção sem palavras vem do compositor russo Pyotr Tchaikovsky, com a composição ‘12 pieces, Op. 40’, incluindo a peça n. 6 – ‘Chant sans paroles’ (Allegro moderato, em Lá menor, constituída de 110 compassos) (12 PIECES, on line, jan. 2014). No romance The last song, a forma canção é citada 24 vezes, sendo 22 no singular e duas no plural. Como ficaria muito extenso abordar todas as vezes em que é citada a forma canção, no romance, optou-se por verificar nas Tabelas e valores lexicais – TVLs – qual o capítulo no qual o item lexical song¸ou seu plural – songs – possui maior peso no discurso literário de Sparks, chegando ao capítulo 24, um dos já destacados como mais densos do vocabulário musical, exatamente intitulado Ronnie e trata do encontro de Ronnie e seu pai, na igreja, onde ele está compondo a nova música e, naquele momento, Steve afirma que Ronnie tem mais condições que ele para concluir a música, que ele já não tem tanta imaginação, e ela elogia a composição, dizendo ser mais moderna que outras que ele costumava tocar. Portanto, um capítulo que gira em torno da canção – da última música. Passando a focalizar os instrumentos musicais, encontram-se os quatro a seguir, com suas ocorrências: keyboard28 (5), drum29 (2), piano30 (76), sendo uma no plural) e guitar31 (2). Destes instrumentos, o mais requisitado no texto é ‘piano’, com 76 ocorrências. Levando em conta, ainda, que a última música, responsável pelo título do livro, é composta para piano, por Steve e sua filha Ronnie, pode ser considerado como o instrumento de identificação desses dois personagens, em torno dos quais gira o núcleo narrativo musical. O piano é possuidor de uma função social muito específica, relacionada à posição econômica dos seus possuidores ou praticantes. É como afirma o sociólogo francês Remi Lenoir, citado por Rita Amato (2007, p. 2): “Como o cravo para a aristocracia, o piano se insere no conjunto de bens definidos como pertencentes à burguesia”. É símbolo de situação privilegiada, em termos financeiros, e de educação refinada, para aqueles que tocam o instrumento musical. Acompanhando a moda em voga na Europa, no início do século XX, o piano conheceu sua época de ouro, ampliando, consideravelmente, a quantidade de unidades, especialmente nos lares de 28
Teclado Tambor 30 Piano 31 Guitarra 29
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classe média, o que se constata na redação de Amato (2007, p. 3), mais uma vez, citando Lenoir: Ao passo que, no início do século XIX, fabricantes como Erard (França) ou Broadwood (Grã-Bretanha) produziram apenas 400 instrumentos por ano, essa cifra em 1850 passa à 2.500 para essas empresas, e às vésperas da primeira guerra mundial, chega à mais de 5.000 para as mais importantes da época como Bechstein (Alemanha) ou Steinway (Estados Unidos) e mesmo à 22.000 para a Kimball (Estados Unidos).
Esse crescimento assustador do número de pianos produzidos nos Estados Unidos foi motivado pela baixa no preço do instrumento. Além de instrumentos isolados, tem-se a alusão à band32, no capítulo 26, no seguinte trecho: “She could hear strains of conversation blending with the music from the band, which was now playing, and she found herself wondering what she would have been doing back home tonight had she stayed in New York.” 33(SPARKS, 2014b, p. 123). Duas menções ainda se fazem importantes, ao analisarmos o romance pela ótica da música: trata-se da escola Juilliard e da casa de concertos Carnegie Hall. A escola Juilliard é uma instituição privada que oferece cursos de música, artes cênicas e dança. Fundada em 1905, com o nome de Institut of Musical Art, localiza-se no centro de Manhattan, Nova York, e é reconhecida no mundo inteiro, também por seus alunos graduados em Música, como por exemplo, Ray Connif, Toninho Horta e Rennée Fleming. Carnegie Hall, datada de 1890, é uma das mais reconhecidas salas de espetáculos de música erudita e popular dos Estados Unidos e está situada em Manhattan, New York, no número 881 da 7th Avenue. Concluindo este trabalho, pode-se assegurar que, embora não encontrando, na biografia de Nicholas Sparks, referência a alguma formação musical, é impressionante como esse elemento perpassa o romance The last song, já a partir do próprio título até a última página, conferindo à obra um viés de apreciação e de sedução para o seu leitor, apropriando-se de repertório erudito, porém assimilado pelo período Romântico da História da Música, o que lhe coloca numa posição favorável na identificação e na aproximação com seus receptores, atraindo não somente jovens, visto a personagem central ser uma jovem de 18 anos a enamorar-se de outro jovem, Will, porém famílias, movidas pelo amor paternal de Steve pelos seus filhos Ronnie e Jonas. Outro fator envolvente é a menção de locais de formação e de espetáculos musicais, a escola Juilliard e o Carnegie Hall.
32
Banda (Tradução nossa). Ela podia ouvir conversas misturadas com a música da banda, que agora tocava, e ela se encontrou perguntando-se o que ela teria feito de volta para casa esta noite, se tivesse ficado em Nova York. (Tradução nossa). 33
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Por último, o aspecto central: o romance se desenvolve através da busca de concluir uma peça musical, estabelecendo a relação entre pai e filha, em prol da música, aquela que seria a última e que traria Ronnie de volta ao ambiente da arte dos sons, continuando a arte do pai Steve que, no fim de sua vida, descobriu que a vida e mais semelhante à uma canção (ver epígrafe). Referências 12 PIECES, Op. 40 (Tchaikovsky, Pyotr). IMSLP.4 jan. 2014. Disponível em: . Acesso em: 6 mar. 2014. AMATO, Rita de Cássia Fucci. O piano no Brasil: uma perspectiva históricosociológica. In: Congresso ANPPOM, 17, 2007, São Paulo. Anais eletrônicos... Disponível em: http://www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2007/musicologia/musicol_ RCFAmato_1.pdf. Acesso em: 7 mar. 2014. ARROYAS, Frédérique. La lecture musico-littéraire: à l’écoute de Passacaille de Robert Pinget et de Fugue de Roger Laporte. Montréal: Les Presses de l’Université de Montréal, 2001. (Espace Littéraire). DIAS, Pedro Miguel. Como usar canções na aula de línguas. Noesis, Lisboa (PT), n. 80, p. 54-59, jan./mar. 2010. Disponível em: . Acesso em: 25 out. 2013. HOEK, Leo H. La marque du titre: dispositifs sémiotiques d’une pratique textuelle. Paris: Mouton Éditeur, 1981. (Approaches to Semiotics, 60). MENDELSOHN Song without words, Op. 38. ScorSer. Disponível em: http://pt.scorser.com/S/Partituras/Mendelssohn+Romance+Sem+Palavras+Op+38/1/1.html. Acesso em: 6 mar. 2014. NICHOLAS Sparks. E-biografias. [s.d.]. Disponível biografias.net/nicholas_sparks/. Acesso em: 13 abr. 2014.
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CRIANÇAS PEQUENAS E LIVROS DE IMAGEM: LEITURAS POSSÍVEIS EM SALAS DE AULA DE EDUCAÇÃO INFANTIL Marta Campos de Quadros (UNESP- Presidente Prudente) Renata Junqueira de Souza (UNESP-Presidente Prudente)
Crianças pequenas leem? O que e onde leem? Como desenvolvem competências para compreender, interpretar e valor obras literárias? Tais questões e a constatação de crescente complexificação do mercado editorial brasileiro para este público tem nos levado a pensar relações possíveis entre crianças pequenas e a literatura. Editores e ilustradores/escritores têm ampliado e diversificado a oferta de gêneros e suportes literários, oferecendo uma maior variedade de obras a pais, professores e familiares que são, potencialmente, os ‘compradores’ de livros infantis. Programas governamentais como o Programa Nacional Biblioteca na Escola têm procurado avaliar, selecionar e distribuir um variado conjunto de obras para compor os acervos de bibliotecas escolares. Nesta comunicação buscamos mostrar, a partir de trabalho com crianças de 3 e 4 anos de uma escola de educação infantil pública em Presidente Prudente (SP), possíveis leituras de livros de imagem que compõem os acervos do PNBE Literatura 2012 e 2014. Adotamos uma perspectiva de que a literatura (para crianças) é formadora e formativa e que sua presença na educação infantil pode não estar ligada a um certo utilitarismo pedagógico, mas ao prazer e desfrute da obra literária como aproximação (mediada ou não pelo adulto) ao território da leitura criativa e recreativa. Para este estudo nos valemos dos estudos de autores que vem tensionando as conexões entre literatura e crianças pequenas. Preliminarmente, inferimos que a ausência de texto verbal e a quase exclusiva presença de imagens permite à criança articular elementos propostos pelos criadores dessas obras e suas vidas cotidianas traçando diferentes leituras e narrativas.
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A PALAVRA É A IMAGEM: A CRIAÇÃO COMO PROCESSO INTERARTES EM O LUSTRE E ÁGUA VIVA, DE CLARICE LISPECTOR Marta Francisco de Oliveira (Unesp/Assis - UFMS) Nós nos tornamos aquilo que contemplamos. Marshall Macluhan Estou lidando com a matéria prima. Estou atrás do que fica atrás do pensamento. Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais. Estou num estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, tão atraente e pessoal a ponto de não poder pintá-lo ou escrevê-lo. (...) Fixo os instantes de metamorfose e é de terrível beleza a sua seqüência e concomitância. Clarice Lispector Meu livro se chamará O lustre. Está terminado, só que falta nele o que eu não posso dizer. Clarice Lispector
Muito já foi dito sobre a obra e o fazer ficcional de Clarice Lispector. Dentre tantos comentários, parece-nos válido destacar aqueles que fazem referência ao modo como a escritora se vale da linguagem para apresentar a seus leitores palavras com grande poder de evocar imagens, mas imagens incomuns, pouco usais, distantes de ideia simples ou simplista de figuração, retrato ou paisagem. O que Clarice propõe é uma leitura a um só tempo poética e plástica de palavras em um texto desenhado sobre o papel, uma narrativa na qual o olhar atua em suas múltiplas funções de percepção de sentidos, texturas, sensações, cores e lentos e complexos movimentos de linhas e curvas ao perambular por entre palavras que se revestem de poder evocativo de grande intensidade. Seu texto é uma matéria em metamorfose, uma proposta de ruptura que escapa às ideias mais ou menos definidoras de arte, literatura, gênero. Por exemplo, Ana Cristina de Rezende Chiara, na apresentação da nona edição de O lustre, em 1995, pela Francisco Alves Editora, menciona que “ler Clarice... significa deixar-se guiar, pela maestria da mão que escreve, num mundo de estranha beleza e cruel realismo.” A obra aqui destacada é considerada, por muitos críticos, um momento de continuidade e ruptura de um percurso circular da autora, rompendo com a apresentação de
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personagens com fortes características individuais, ao mesmo tempo em que dá continuidade a um projeto de enfoque no sujeito, conforme aponta Regina Pontieri (PONTIERI, 2001). Desse modo, a personagem Virgínia é quase ‘toda sensações’, desprovida de inteligência, pouco dada à reflexão, o que nos revela toda a plasticidade empregada por Clarice ao tecer o texto. Caberá ao leitor, portanto, perceber as nuances elaboradas pela escritora ao compor a narrativa. Assim, considerando nossa epígrafe, as imagens criadas, apesar de sua estranheza, quando contempladas por nós, leitores, interferem definitivamente em nossa maneira de ler toda a obra clariciana, ao passo que sugere que o ‘olhar’ exerce papel de destaque na efetivação da leitura. Se tal exercício de criação de um mundo de estranha beleza começou desde seu romance de estréia, Perto do coração selvagem, com seu segundo livro, O lustre, de 1946, objeto da análise aqui proposta, a narrativa ganha os contornos de um quadro, com apresentação de imagens sucessivas, de um modo que vai se mostrando mais e mais definido, para que, muitos anos depois, a autora ouse, de forma explícita, embrenhar-se num universo de linguagem escrita mesclado às possibilidades e experiências estéticas propiciadas pelas artes plásticas, com Água viva: Ao escrever não posso fabricar como na pintura, quando fabrico artesanalmente uma cor. (...) não pinto idéias, pinto o mais inatingível para sempre. Ou para nunca, é o mesmo. Antes de mais nada, pinto pintura. E antes de mais nada te escrevo dura escritura. Quero como poder pegar com a mão a palavra. (LISPECTOR, 1973, p. 13) Em Clarice, o texto a ser lido se apresenta como um tecido subjacente ao próprio olhar, à medida que o narrador, de modo sugestivo, forma imagens que brotam da página para o imaginário do leitor. Em seu segundo romance, o olhar é constantemente requisitado e mobilizado, propiciando outras formas de apreciação do texto,uma experiência de leitura também plástica, seguindo o fluir da narrativa, desde as palavras iniciais, referindo-se a Virgínia: “Ela seria fluida durante toda a vida. Porém o que dominara seus contornos e os atraíra a um centro, o que a iluminara contra o mundo e lhe dera íntimo poder fora o segredo. Nunca saberia pensar nele em termos claros temendo invadir e dissolver a sua imagem.” (LISPECTOR, 1946, p.6). Fluidez,
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liquidez, contornos com a alusiva ideia de jogo de luz e sombras, a possibilidade de dissolver a imagem do mundo: elementos que constroem um texto com linguagem literária que se aproxima da imagem visual. A própria personagem se apresenta como essa imagem fugaz, assim como o casarão, a paisagem, a cidade grande. A leitura de O lustre logo no início nos situa em Granja Quieta, a casa de Virgínia, Daniel e Esmeralda com os pais, em Brejo Alto. A descrição do lugar, bem como do objeto que dá título ao romance, é uma evocação de paisagens, lugares e objetos a serem esboçados, contornados, pintados, segundo as impressões do autor/observador: “ele falara tão grave, ele falara tão belo, o rio rolava, o rio rolava. As folhas cobertas de poeira, as folhas espessas e úmidas da margem, o rio rolava.” (LISPECTOR, 1995, p.8). A narração em forma de um esboço de pintura evoca efeitos intensos: “um instante morto estendeu longamente as coisas” (LISPECTOR, 1995, p.9). Conforme se sucedem as descrições, o leitor se dá conta do ambiente da casa e de cada morador de Granja Quieta: o pai silencioso, a mãe que ‘já fora viva, e assim fizera Esmeralda nascer’, os três filhos, Esmeralda, a quem o pai não dirigia a palavra, Daniel, sempre com raiva, Virgínia e a avó que já nem saía do quarto. O aspecto da moradia serve, sem dúvida, para ajudar a definir melhor ‘os contornos’ das personagens, o lar que a mãe sentia não ser seu, era ‘o do marido, da velha sogra’: seria preferível mais móveis e menos quartos, queixava-se Esmeralda com os olhos baixos de raiva e aborrecimento, os grandes pés descalços(...) A escadaria no entanto cobria-se com um grosso tapete de veludo púrpura, ainda do casamento da avó, ramificando-se pelos corredores até os aposentos num súbito luxo seguro e grave. Abriamse as portas e em vez de aconchegante riqueza que o tapete anunciava encontravam-se o vazio, o silêncio e a sombra, o vento comunicandose com o mundo pelas janelas sem cortinas. Da vidraça alta via-se além do jardim de plantas emaranhadas e ramos secos o longo trecho de terra de um silêncio triste e sussurrado. A própria sala de jantar, o aposento maior do casarão, estendia-se embaixo de longas sombras úmidas, quase deserta: a pesada mesa de carvalho, (...) e um guardalouça comprido onde translucidamente brilhavam em gritos abafados alguns vidros e cristais adormecidos em poeira. Sobre a prateleira desse móvel pousava a bacia de louça rosada, a água fria na penumbra refrescando o fundo onde se debatia preso um anjo gordo, torto e sensual. (LISPECTOR, 1995, p.13,14).
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Virgínia, contrastando com os poucos objetos ‘sólidos’ da casa, também se assemelha a eles por esse aspecto de jogo de aproximações, silêncios, penumbras... Embora os demais membros da família possam ser descritos de modo bastante parecido, é Virgínia quem se destaca por seus contornos indefinidos, sua fluidez anunciada desde o princípio. Para Clarice Lispector, esses contornos praticamente só esboçados irão se definindo mais e mais à medida que usa a linguagem compondo seu projeto literário. A escritura em suas muitas tonalidades E depois saberei pintar e escrever, depois da estranha mas íntima resposta. (...) Entro lentamente na minha dádiva a mim mesma, esplendor dilacerado pelo cantar último que parece ser o primeiro. Entro lentamente na escrita assim como já entrei na pintura. É um mundo emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras – limiar de entrada de ancestral caverna que é o útero do mundo e dele vou nascer. (Água viva, p. 14)
A análise dos textos claricianos que aqui faremos tem como base uma tentativa de retomada dos textos de O lustre e Água viva em suas primeiras edições, de 1946, pela Livraria Agir Editora, e de 1973, pela Editora Arte Nova, respectivamente, em comparação com edições mais recentes dos livros, lançados por outras editoras. As primeiras edições tiveram, sem dúvida, o acompanhamento da escritora, que provavelmente teve a oportunidade de participar ativamente em sua feitura, bem como na seleção da capa. Antes de enviar à editora, era comum que Clarice trabalhasse incansavelmente no texto aparentemente já pronto. Enquanto terminava Água viva, por exemplo, declarou à amiga Olga Borelli que sempre fizera a última cópia de seus livros porque cada vez que os copiava, fazia modificações, mexendo de alguma forma. No entanto, Clarice declarou que depois de encaminhado à editora, o texto não a interessava mais; era como um ‘livro morto’ para ela e, se o lesse, ‘não gostava, enjoava’. Na capa da primeira edição de O lustre há a representação pictórica de uma mulher, sentada de costas numa pedra enquanto observa a paisagem, um cenário árido de árvores e arbustos sem folhas e algumas montanhas. A ‘capa de Santa Rosa’ remete à ideia de solidão e ao silêncio que se faz presente no romance, nas personagens e em Granja Quieta. O título e o nome da autora estão também ‘desenhados’ numa letra
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manuscrita, o que nos faz lembrar que a escrita sempre pressupôs a imagem, que a escrita fonética, seja ela impressa ou manuscrita, de modo geral corresponde a um gesto plástico, sendo capaz de atrair o visual, o olhar. Pensar na arte caligráfica, importante, por exemplo, para os abstratos ideogramas chineses ou hieróglifos egípcios, nos faz estabelecer a conexão com o modus operandi de Clarice Lispector, visto que rascunhava seus textos manualmente ou, quando escrevia em sua máquina de datilografar, costumava fazer anotações manuscritas, como marcações, cortes, riscos e rabiscos sobre o texto original, reescrevendo, subtraindo, substituindo ou acrescentado palavras, para delinear o texto final, que deveria ser entregue para publicação. Além disso, a primeira edição de 1946 possui uma dedicatória de Clarice: “à minha irmã Tânia”, e a indicação de lugar e data de escrita do livro: “Rio, março de 1943. Nápoles, novembro de 1944”. Ambas foram retiradas em edições posteriores, como a de 1995, da Francisco Alves Editora. Quanto ao livro Água viva, a edição da Rocco, de 1998, possui uma nota prévia escrita por Marlene Gomes Mendes sobre as modificações que as sucessivas edições introduzem ao texto original, esclarecendo que se a própria Clarice não se preocupava em verificar esses detalhes em novas edições, esta feita pela Rocco buscou sanar algumas incorreções que foram se incorporando ao texto original ao longo do tempo pelas editoras. Interessa-nos analisar as obras, citando pelo menos duas edições em paralelo, para rastrear as diversas tonalidades da escritura de Clarice Lispector na relação imagem e palavra, texto escrito e plasticidade nos dois textos aqui tratados, considerando que, neles, a apreciação e conseqüente leitura de tons e imagens não são unívocos, completamente definidos ou irreversíveis. Ao contrário, se revestem de opacidade, fluidez, e se metamorfoseiam, conforme os ângulos de perspectiva do leitor, ao passo que o olhar é constantemente convocado e deslocado pela voz narradora. Desde a ideia de ‘ancestral caverna que é o útero do mundo’, surge então um texto fabricado a partir de sílabas, palavras e cores. Fabricar tintas, fabricar textos Segundo o que foi aqui esboçado, como podemos perceber com a descrição do casarão, a escritura clariciana, desde sua gênese e com maior ênfase no romance O
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lustre, se aproxima e dialoga com o conceito de Ut pictura poesis, de Horácio, apresentando fundamentos clássicos na composição do texto. Se uma forma de ver a pintura é como uma poesia muda, o que Clarice faz em seu segundo livro e retoma de modo mais drástico e explícito na década de 1970, com Água viva, é uma prosa poética que ganha contornos bem definidos de composição com tintas. A própria narradorapersonagem é uma pintora, e segundo algumas análises, o tu a quem ela se refere e se dirige pode muito bem ser entendido como o processo de criação verbal/pictural, estabelecendo com ele um longo diálogo (monólogo). Como elemento importante em seu modo de composição - Clarice desde menina escrevia histórias que não eram convencionais como as demais, pois as suas eram ‘sensações’ –, escrever para ‘pintar o mais inatingível para sempre ou para nunca’ pode causar certo estranhamento entre os leitores ainda hoje. Talvez possamos entender o que Clarice busca com sua escritura, ou com sua pintura, quando faz vinte e duas telas na década de 1970, é exprimir essas sensações a que tanto faz referência sem ser necessária a dependência a um referencial concreto. A epígrafe de Água viva é, sem dúvida, reveladora de suas intenções, de suas tentativas. Provavelmente Michel Seuphor tenha conseguido expor em linhas gerais um dos desejos mais secretos de Clarice ao trabalhar a linguagem, por isso a escritora o escolheu para introduzir seu texto que iniciará “com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica.” (LISPECTOR, 1973, p. 7) Afinal, a voz narradora ‘diz’ a seu interlocutor: “estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa.” (LISPECTOR, 1973, p. 8) Como já mencionado, esse discurso diretamente a alguém pode ser uma tentativa de personificação do processo criativo. Vejamos um trecho de Água viva, um modelo de texto inserido como elemento introdutor do desejo de apossar-se do é da coisa, pois são algumas linhas que resumem o trabalho artístico de Clarice ao pintar com palavras:
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Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura – o objeto – que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência. (LISPECTOR, 1973, p. 7)
Tal qual a pintura almejada pelo pintor, independente, capaz de evocações que tocam diretamente os reinos incomunicáveis do espírito, a linguagem desejada pela autora tenta transformar sonhos, sensações, evocações em pensamento, comunicar sensações tão particulares, individuais, a ponto de existirem por conta própria. Porém, é recurso de uma linguagem assim se apoiar em elementos que a fazem criar imagens sugestivas. Como resultado, no romance de 1946 a descrição da escada, da sala vazia e do lustre reveste-se de uma beleza plástica, pictórica: Os degraus subindo sinuosos alcançavam uma graça firme tão leve que Virgínia perdia a sua percepção quase ao possuí-la e interrompiase à sua frente vendo apenas madeira empoeirada e veludo encarnado, degrau, degrau, ângulos secos. Sem saber por quê, detinha-se no entanto, abanando os braços nus e finos; ela vivia à margem das coisas. A sala. A sala cheia de pontos neutros. O cheiro de casa vazia. Mas o lustre! Havia o lustre. A grande aranha escandescia. Olhava-o imóvel, inquieta, parecia pressentir uma vida terrível. Aquela existência de gelo. Uma vez! Uma vez a um relance – o lustre se espargia em crisântemos e alegria. Outra vez – enquanto ela corria atravessando a sala – ele era uma casta semente. O lustre. Saía pulando sem olhar para trás. (LISPECTOR, 1995, p.14,15)
O olhar, sempre requisitado, pode ser o dos personagens ou do próprio leitor, não importa; importa acompanhar o vaguear dos olhos da voz narradora. É este sentido humano, o da visão, que permite que nas sociedades contemporâneas a imagem exerça um protagonismo muito evidente. Sem dúvida, a relação entre imagem e palavra, entre palavra e o ‘mundo’, suas coisas, pessoas e objetos, bem como sua representação, foi uma das mais remotas preocupações e atividades humanas, presentes nas diversas formas de processos de comunicação. Nomear, ou seja, usar a linguagem, a palavra, para referir-se a algo, era lhe conferir o status de existência, mesmo que esta não fosse concreta, revestindo-se de certo valor para os grupos.
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O trabalho de escritura de Clarice Lispector, portanto, nos lembra que o escritor, ainda hoje como desde a Era Clássica, assim como o pintor pode comportar-se como um criador, ora especulando como um filósofo, ora trabalhando a linguagem ou pretendendo desenvolver sua capacidade sensorial de “pintar” ao produzir textos que agradem à vista e ao entendimento, com a palavra sendo uma realidade visual em uma espécie de apelo à plasticidade. Considerando uma retrospectiva histórica sobre o tema, percebemos que a relação íntima entre as duas artes, a literatura e a pintura, conduziu à preocupação com a distinção entre as expressões ut pictura poesis e ut poesis pictura, ou seja, como a pintura é a poesia e como a poesia é a pintura. Ou, pelo menos, como os processos de composição da poesia tem suas implicações com a arte visual. Como nos recorda Clarice Zamorano Cortes, é através da prática da escrita que as palavras passarão a adquirir diversos significados, chegando mesmo a assumir um grau de visualismo e de simbolismo que lembram uma tela ou uma ilustração. A escrita sempre pressupôs a imagem, mesmo anteriormente à sua fonetização, como, por exemplo, nos primitivos desenhos das cavernas, que ainda não obedeciam a nenhum código de representação gráfica, ou na escrita egípcia e chinesa com os seus abstratos ideogramas, que se afastam do figurativo. Finalmente, a escrita fonética (impressa ou manuscrita) nunca deixou de corresponder a um gesto plástico, capaz de promover a atração do visual. (CORTES, 2009, p.359)
Sob esse prisma, é sempre interessante observar que a evolução humana conduziu-nos, passo a passo, a um processo irreversível de enaltecimento da imagem, do efeito visual, bem como do som e dos efeitos sonoros. Como resultado, aumentam cada vez mais as possibilidades de se relacionar textos verbais e não-verbais. As grandes cidades, os meios de comunicação, os mass mídia, para onde se direcione, o olhar se depara com inúmeros estímulos em forma de letras e imagens multicoloridos que convocam ao mesmo tempo a audição, e ainda mobilizam tato, olfato e paladar. Todos os sentidos são afetados principalmente através do efeito visual. De qualquer modo, é válido destacar que tanto a escrita como a imagem sempre interessaram ao homem, embora seja a nossa época atual aquela em que mais e mais pessoas demonstram uma paixão incomparável por ambas, talvez devido ao acesso tanto aos meios de produção como aos grandes e exemplares trabalhos desenvolvidos pela
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humanidade ao longo do tempo. Com a tecnologia e a internet, em instantes um admirador pode ter diante de si uma tela ou um texto inspirador, pode adquirir seu próprio exemplar entre tantas reproduções, autorizadas ou não, e pode ser ele mesmo um artista, pintor ou escritor, que divulga seus trabalhos atrás de sites e blogs. A arte, democraticamente, tornou-se espaço de todos, e o ambiente virtual é a vitrine perfeita para a exposição de textos e imagens, criados, manipulados, ‘revisitados’. Deixando de ser privilégio de artistas que ‘realmente o são’, mas possibilitando que muitos ‘se comportem como se fossem’ artistas, as expressões (baseadas em impressões sobre o fazer artístico) individuais podem ser convertidas em objetos sujeitos à apreciação do outro, provocando outras sensações ou impressões, embora bastante concentradas na atividade primordial de “ver”, como se as técnicas convergissem para a criação de textos imagéticos com um mínimo de solidez, de concretude. A imagem exerce um protagonismo sem precedentes em nossas sociedades ocidentais, embora sempre tenha atraído a atenção humana; como mostra Barthes (1984), nossa relação com a imagem e a fotografia põe em evidência como procuramos capturar momentos fugidios e construímos uma memória com base nas imagens. O texto clariceano se constrói de modo semelhante, convocando o olhar e propiciando experiências híbridas de apreciação. Marcos Bessa-Oliveira (2012) bem aponta a relação que se estabelece entre a escritora-pintora e seu próprio bios, à medida que a autora produz textos escritos e textos pintura, imagéticos, durante certo período de sua vida. Sua marca pessoal se insere, sua assinatura de escritora brasileira consagrada avaliza seus trabalhos em telas. Portanto, literatura, pintura e vida são os três elementos que se intermisturam. Escrever e pintar são ações que correspondem a um gesto cultural de Clarice Lispector, produções em processo nas quais se revela e se insere a persona Clarice, uma marca pessoal como signo interartes. Revestindo-se do status de signo, o produto final ressalta que cabe ao leitor um papel ativo e efetivo para sua leitura. Seu modo de olhar deve pressupor, portanto, uma apreciação do texto também como traço esboçado, desenhado, pintado, uma construção de sentido também das sensações que as imagens sugeridas podem evocar ou despertar.
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Assim, segundo o que aqui foi brevemente exposto, ler os dois textos de Clarice aqui citados é aceitar o convite para as infinitas possibilidades de leitura que sua ‘escritura como exercício de esboço de pintura’ nos apresenta. Leitura como exercício de interpretações que se multiplicam, palavras que exigem ser vistas. Sendo assim, pois, voltemos sempre a seu texto, pois nossa (re)leitura permite que o que a autora escreveu continue, sempre atual, segundo os novos olhares que se lançam sobre sua obra. Referências Bibliográficas BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1984. BESSA-OLIVEIRA, Marcos Antonio. Clarice Lispector entre a pintura e a escritura de Água viva: um recorte comparativo-biográfico-cultural. Dissertação de mestrado. Campo Grande, MS, 2012. BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. CORTES, Clarice Zamonaro. “Literatura e pintura.” In: BONNICI, Thomas. ZOLIN, Lúcia
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(orgs).
Teoria
Literária:
abordagens
históricas
e
tendências
contemporâneas. Maringá: EDUEM, 2009. GOTLIB, Nádia Battella. “Prefácio – Entreartes”. IN: IANNACE, Ricardo. Retratos em Clarice Lispector: literatura, pintura e fotografia. Belo Horizonte, Editora UFMG/ Humanitas, 2009. GOTLIB, Nádia Battella. Clarice fotobiografia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009, 2ªed. IANNACE, Ricardo. Retratos em Clarice Lispector: literatura, pintura e fotografia. Belo Horizonte, Editora UFMG/ Humanitas, 2009. LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Artenova S.A, 1973. LISPECTOR, Clarice. O lustre. Rio de Janeiro: Agir, 1946.
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LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. LISPECTOR, Clarice. O lustre. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1995. PONTIERI, Regina. : Clarice Lispector: Uma poética do olhar. Cotia: Ateliê Editorial, 2001, 2ª ed.
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LITERATURA INFANTO JUVENIL INDÍGENA: LENDA, MITO E MEMÓRIA Marzo Queiroz dos Santos (UEA)1 Considerações iniciais A literatura funciona como uma espécie de arquivo memorialístico, uma vez que parte de um determinado contexto histórico e cultural. Nesse sentido, acredita-se que entender a história e a cultura indígena através da produção de escritores indígenas pode contribuir para um melhor entendimento, e principalmente, valorização desse povo que procura, através das narrativas, manter sua história, identidade e cultura. Esta é uma pesquisa cujo suporte teórico encontra-se, sobretudo, nos estudos de Everardo Rocha, Mircea Eliade e Padre Henrique Uggé. As obras literárias utilizadas neste estudo pertencem aos escritores indígenas Roni Wasiri Guará, Yaguarê Yamã e Jaime Diakara. Em relação a essas obras, há grande dificuldade de acesso ao acervo e isso, de certa forma, deve-se ao fato da pouca divulgação das mesmas. O presente artigo tem como objetivo divulgar a literatura local, bem como mostrar a importância de algumas narrativas indígenas, embora essas publicações ainda tenham um número significativo que ainda precisam ser investigada e divulgada. As narrativas reforçam o quanto a história dos povos é ligada a tradição oral como mecanismo para reter e deixar para posteridade a memória lendária e mítica de seus antepassados. Durante o processo de leitura e análise das obras literárias, percebeu-se o quanto a sociedade indígena lança mão dos mitos e das lendas não somente para justificar certos acontecimentos, mas também para manter viva, pela circularidade, a memória de seu povo registrada pelo olhar sensível dos escritores indígenas. Coloca-se circularidade pelo fato das histórias serem contadas e recontadas ao longo do tempo sem perder sua essência e valor. Ao serem colocadas no suporte escrito, o livro, essas histórias servem de fonte para leitura e aquisição de conhecimento para futuros leitores e investigadores da literatura infantojuvenil indígena amazonense. Esta pesquisa faz-se importante porque investiga a história e a cultura indígena através da literatura. É relevante porque se analisou narrativas literárias indígenas, voltadas para o público infantojuvenil, numa pesquisa memorialística, tomando como Acadêmico do Curso de Letras da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e bolsista do Programa de Apoio à Iniciação Científica (PAIC). [email protected] 1
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base as lendas, os mitos, o saber e o modo de ser do povo indígena como ingredientes fundamentais no imaginário desse povo. O que podemos acrescentar que a literatura se beneficia dessas narrativas indígenas como forma de explicar sua construção de identidades e a proposta de manter viva na mente do leitor as origens dessas etnias. A presente proposta de pesquisa tomou como universo e amostra de pesquisa as seguintes narrativas literárias indígenas voltadas para o público infanto-juvenil: Çaiçu Indé: o primeiro grande amor do mundo de Rony Wasiry Guará, A origem da Constelação da Garça de Jaime Diakara; Guañaby Muru-Gawuá: a origem do beija flor, Um curumim, uma canoa e O caçador de histórias, todos de autoria do escritor Yaguarê Yamã. Lenda, mito e memória na literatura indígena Quando se propõe levantar questões sobre a literatura infantojuvenil voltadas para as narrativas indígenas é constantes perceber através da escrita dos autores, como o mito constrói sua identidade através da escrita e da fala. Suas influências dentro de uma sociedade espelham-se em contradições, dúvidas, inquietações que tendem a questionar sua existência no universo, bem como “serve para significar muitas coisas, representar várias ideias, ser usado em diversos contextos” (ROCHA, 2008, p.7). Através das narrativas, pode-se verificar qual a função que o mito venha desempenhar e de que forma ele relaciona-se com a sociedade e a cultura de um povo. Nas narrativas da literatura infantojuvenil indígena o mito se transporta para uma realidade, coloca-se como um fenômeno predecessor de uma acepção usual, “fábula”, “invenção”, “ficção”, ele o aceitaram tal qual era compreendido pelas sociedades arcaicas, onde o mito designa, ao contrário, uma “história verdadeira”. A veracidade das histórias se faz pela presença do mito, pois tal como é vivido pelas sociedades arcaicas, 1) constitui a História dos atos dos Entes Sobrenaturais, 2) que essa história é considerada absolutamente verdadeira (porque se refere a realidade). (ELIADE, 2001, p. 21-22)
As constantes interpretações que estão inseridas nas obras que compõem a literatura em questão, voltando-se para as temáticas indígenas e colocando em pauta a veracidade dos fatos que se transportam para uma realidade dentro de uma sociedade, o que já existia em outras culturas como percebemos na obra Roni Wasiry Guará, Çaiçu Indé: o primeiro grande amor do mundo, quando “Monag, criou um mundo perfeito;
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em sua criação concebeu um ser bonito e forte e deu-lhe o nome de Guaracy.” (GUARÁ, 2011, p.8) Na literatura infantojuvenil indígena é constante a presença da lenda que se constrói através de uma identidade inspirada nos povos antepassados e que se amplia e se transforma sob o efeito do imaginário popular. Essa veracidade se perde no decorrer do tempo, de modo a subsistir apenas a versão folclórica dos acontecimentos. Um exemplo disso é a figura do Curupira. O Curupira foi cortando os seus próprios dedos das mãos e dos pés. Quando acabaram os dedos, o caçador pediu que ele tirasse o fígado. O Curupira levou a serio, enfiou o terçado em si mesmo e cai morto” (YAMÃ, 2004, p.55).
As narrativas indígenas intensificam-se ao passar do tempo e são cultuadas por todas as gerações que procuram mantê-las como forma de resistência e de manter viva a memória desses povos, alicerçada na lenda e no mito. A literatura infantojuvenil indígena trabalha a questão memorialista, pois se firma dentro do registro de uma sociedade, que deixa seu legado cultural através dos mitos e lendas. Everardo Rocha (2008) explica em sua obra O que é mito, o que realmente podemos definir sobre o mito e sua importância dentro da construção de uma sociedade. Para ele, o mito atraia várias interpretações, onde tudo pode ser explicado numa visão mítica, como a origem do universo, a origem da vida, a origem da terra, a origem do homem, a origem das línguas. O outro ponto de base em sua pesquisa é quando ele diz que essa construção é como um exemplo de quebra cabeça e quando a figura clássica do homem “primitivo” adora os astros e corpos celestes, transformando-os em mitos como forma de compreendê-los e controlá-los. Esses momentos primitivos em que homem encontra-se em sua fragilidade frente ao espetáculos da grande natureza, desperta certo interesse poético, teórico e contemplativo. Nesse meio temos a origem da criação, ou seja, o mito cosmogônico, que desempenha a função de recontar a história em várias definições conforme às forças naturais. A questão do mito que funciona como um mecanismo que evolui e constituem um estudo indispensável nas modernas ciências do homem, não só porque se ligam basicamente a algumas indagações sobre o significado do mundo e sua existência humana, mas também porque dele dependem essencialmente a compreensão de nossas
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formas de linguagem, expressão e comunicação, como expõe Mircea Eliade na obra Mito e realidade (2001). Em se tratando de lenda, podemos compreendê-la e diferenciá-la do mito por ser a versão de um efeito da imaginação popular cuja veracidade se perde com o tempo. Ambos são mecanismos que muitas sociedades primitivas, como a indígena, lançam para explicar determinadas coisas ou acontecimentos e para, através deles, manter a história de seu povo. Por isso eles são considerados como elementos fundamentais no arquivamento da memória. Para Eliade (2001) a memória consiste em confissões, cada qual contendo ao seu modo o extravasamento do eu. São registros armazenados e que são acionados quando algo insiste em despertar, percebemos como um mecanismo que diante de fatos passa a sugerir certos questionamentos. Análise da narrativa Çaicu- Indé: o primeiro grande amor do mundo O texto é uma narrativa do povo Maraguá que gira em torno do mito cosmogônico e explica como foi a criação do mundo na visão dos Maraguás. O mito da criação, na história, lembra do mito cristão presente na Bíblia, como se pode perceber no trecho a seguir em que no lugar de Deus aparece Moñag como o grande criador do universo: “Monãg criou um mundo perfeito; em sua criação concebeu um ser muito bonito e forte e deu-lhe o nome de Guaracy, que significa força e coragem. Vários aos pouco foram sendo criados.” (GUARÁ, 2001, p. 8)
Nessa primeira apresentação da obra percebemos como o autor enfatiza bem a questão mítica sobre o Monãg (Deus), que representa a simbologia do mito cosmogônico, onde a criação do mundo mostra o poder de uma cultura. O registro desse mito na obra funciona como arquivo da memória do povo Maraguá, pois coloca especificamente a história deste povo indígena que procura através da literatura oral manter sua história acerca da criação do mundo. Outro ponto importante é a questão ecológica trazida no enredo as narrativa, evidenciando a preservação da natureza e a harmonia que existe entre os Maraguás e os elementos naturais. Tudo isso é possível graças a Monãg que, ao criar o mundo, estabelece uma relação harmoniosa e perfeita entre o homem e a natureza. O trecho seguinte ilustra claramente esta questão: “Sobre a terra foram criados os homens: eram fortes e valentes e tinham a pele queimada pelo sol, viviam em plena harmonia” (GUARÁ, 2001, p. 5).
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Através do mito, se vê muito da história de um povo, suas crenças, seus valores e saberes. Daí se dizer que o mito é também uma forma de mostrar a realidade de determinada sociedade. “O mito é uma narrativa. É um discurso, uma fala. É uma forma de as sociedades espelharem suas Contradições, exprimirem seus paradoxos, duvidas, inquietações. Pode ser vista como uma possibilidade se refletir sobre as existência, o cosmo, as situações de estar no mundo”. (ELIADE, 2001, p 8)
Outra questão importante a ser colocada é a condição das personagens principais da história. São personagens que sofrem por amor e são perseguidos pelas cobras, seres invejosos, traiçoeiros e inimigo do povo Maraguá. A personagem principal da história, a índia Yãny, nutre um sentimento em segredo por Guaracy, o Sol, e sofre em seu silêncio, despertando a curiosidade de seu povo. Os antepassados exercem uma grande função na obra porque através de seus conhecimentos é que passam suas experiências aos mais jovens da tribo. Na questão dos Maraguás presenciamos na história a luta do bem contra o mal, e o amor incondicional da índia Yãny por Guaracy. A riqueza da narrativa de Caiçú’Indé: o primeiro grande amor do mundo é marcante quando reúne em uma mesma obra vários elementos que se contextualizam entre si. Há na história a presença do mito cosmogônico e ao mesmo tempo a presença da lenda da lua e do eclipse. E qual a diferenciação entre o mito e a lenda? Segundo Massaud Moisés (1974, p. 305) a lenda “designa toda narrativa em que um fato histórico se amplifica e se transforma sob o efeito da imaginação popular.” Percebemos que a lenda toma proporções e seu efeito cria dimensões proporcionais. Sua junção dentro de uma cultura passa falar por si só. Essa narrativa passa a criar sua própria existência e ter um efeito conotativo em uma sociedade, ou seja, ela cria vida, é recontada através dos tempos, mas mantém sua essência. É importante enfatizar que o mito e a lenda estão enraizados como registro memorialístico de uma sociedade, pois registram, como dito antes, muito da cultura de um povo, característica por sinal, muito presente na história em questão. Análise da narrativa Yahi Puíro Kiti: a origem da Constelação da Garça Nessa história o autor constrói sua narrativa em cima de uma questão cultural dos povos indígenas: o ritual como forma de celebrar, cantar ou de agradecer a um feito. A narrativa conta sobre a morte da garça Abiu que, ao ser morta, traz como
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consequência para aldeia muitas maldições. A obra apresenta a garça Abiu como um símbolo da natureza e mais uma vez o discurso sobre a questão ambiental e a preservação dos povos indígenas é muito marcante nessa narrativa. A história procura explicar como surgiu a Constelação da Garça, mito pertencente ao povo Dessana do Alto Solimões, e também procura explicar outros acontecimentos da natureza, de acordo com a visão mitológica. Essa necessidade de procurar explicações pra tudo através do mito nas sociedades primitivas compõem o extenso quadro das questões da origem: a origem do universo, a origem da terra, a origem da vida, a origem do homem, a origem das línguas. A temática das origens das coisas sempre foi a preocupação de muita gente. (ROCHA, 2008, p. 11) A narrativa A origem da Constelação da Garça vem referenciar bem a questão do mito cosmogônico onde a criação do mundo acontece através da morte de uma garça que ao ser depenada vem em forma de chuva protestar e manter vivo na memória do povo o grande que lhe fizeram. Como forma de manter viva a lembrança do ato cruel, as penas da garça são transformadas numa grande constelação a fim de que sempre que os índios olhassem para céu, lembrassem do mal que cometeram contra a garça Abiu. A história representa bem a questão do personagem sacrificado que retorna em forma de chuva e transforma-se no céu em uma constelação em forma de garça. A questão lendária se faz presente nessa obra, quando os irmãos ao se reunirem para lembrar da morte da garça, são surpreendidos com uma chuva de sangue, levando-os a perceberem todo sofrimento que cometeram contra a garça. A obra A origem da Constelação da Garça é uma história que retrata bem o imaginário indígena, permeado de crenças e valores alicerçados na lenda e no mito. A narrativa sintetiza o que diz Mircea Eliade (2010, p. 93): “O mito flutua. Seu registro é do imaginário. Seu poder é a sensação, a emoção, a dádiva. É interpretação é jogo e não certeza.” Análise da narrativa Um curumim, uma canoa O autor faz forte referência sobre a infância ribeirinha ao contar uma história de um menino (curumim) que viaja pelos rios da Amazônia. O que se percebe é a trajetória do caboclo que se adentra na mata em busca do alimento e da pesca. O autor frisa de forma sutil a infância e o imaginário amazônico através dos olhos de um menino (curumim) e sua passagem por vários lugares. Em seu viajar imaginado, a fantasia do menino se mistura com a realidade amazônica contemporânea em que tradição e
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modernidade se misturam e se contradizem. Essa contradição é mostrada na presença das casas tradicionais feitas de palhas e que agora cedem espaço para habitações de concretos que invadem a floresta e as margens dos rios. Contudo, apesar da modernidade, o curumim mantém sua essência cultural, ao trazer à tona em sua viagem imaginária as lendas amazônicas como o Boto Tucuxi, a Cobra Grande a regionalidade de alguns produtos naturais, bem como a questão da preservação da nossa fauna e flora amazônica. No mundo imaginário do curumim há uma junção dos povos da floresta com os povos da cidade. A história, nesse caso, faz um apelo sobre a importância da união entre os povos e o saber respeitar as diferenças. Em um dos momentos da narrativa o narrador enfatiza que o “objetivo do personagem curumim é viajar e desbravar os sonhos de uma infância.” (YAMÃ, p. 31). O autor enfatiza a infância como fase inserida no mundo da fantasia, da criação de um mundo mágico, onde imaginação se concretiza tanto no texto escrito como nas ilustrações. A ilustração desta narrativa, por sinal, reforça o conteúdo do texto escrito, levando leitor a adentrar nos devaneios do pequeno curumim, num misto de fantasia e realidade. A fantasia do curumim funciona como registro das lendas, das crenças e dos problemas presentes no seu contexto social. As lendas trazidas na narrativa é uma forma de arquivar literariamente a memória cultural do povo Maraguá, como também é uma marca da sua identidade. As lendas, por sinal, como esclarece Moisés (1974), perpetuam no imaginário popular de uma sociedade de geração para geração, mantendo a essência do enredo, o valor e o registro memorialístico de um povo que se mantem vivo também pelas histórias contadas e recontadas ao longo do tempo. As lendas colocadas na história acabam fazendo parte do imaginário do homem amazônico e muitas vezes são vistas como verdades incontestáveis. A tão conhecida Lenda do Boto encontra-se dentro do mito animista que segundo Eliade (2001, p. 30) “é contado através das funções históricas dos animais em determinados lugar”. O boto desempenha bem esse papel animista, pois pertence a história do Amazonas, quando faz parte do imaginário do homem da floresta e faz parte do acervo cultural deste lugar popular, chegando ao ponto de ganhar vida no contexto real, tanto que há casos de pessoas que afirmam com veemência terem tido uma experiência sobrenatural com o boto.
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Outro elemento da natureza que é conhecida do público alvo de nossa região amazônica é a “Cobra Grande” que, por ter uma proporção de tamanho anormal, recebe essa denominação. A cobra, da mesma forma que o boto, também enquadra-se na categoria de mitos animistas e interfere significativamente na vida dos que vivem às margens dos rios amazônicos. Para muitos desses moradores, a Cobra Grande é a responsável por muitos infortúnios como a queda de grande áreas de terra, o naufrágio de muitas embarcações e o sumiço de muitos corpos de gente que morre afogada. A obra, em questão, registra, portanto uma parte da memória do povo amazônico, nos mitos, nas lendas e no saber trazidos na imaginação do pequeno curumim. Análise da narrativa Guanãby Muru Gawa: A origem do beija-flor O autor apresenta a origem do beija-flor fazendo um diálogo com a história do povo Maraguá, sua identidade e suas origens. O livro conta a história de Guanaby, uma caridosa senhora que ficou viúva cedo e passou a dedicar-se exclusivamente para sua única filha chamada Potyra, que significa flor. Todos os dias ela levava a filha para passear a fim de esquecer a morte de seu companheiro. De tanta saudade do marido, Guanãby vem a falecer deixando a filha sozinha no mundo. Potyra passa a visitar constantemente a sepultura da mãe e, assim como a mãe, acabou adoentada e vem a óbito. Sua alma, contudo, fica presa numa flor de batata’rana próxima sepultura da mãe. Ao morrer, Guanãby foi transformada em uma borboleta e todo dia vinha colher o néctar das flores. A mãe, ao percebeu que a alma de sua filha estava presa na flor de batata’rana, e por não ter forças para sugá-la dali, pede ao Monãg que a transformasse em um beija-flor. O grande Deus atende ao pedido de Guanãby, que agora transformada em beija flor, suga a alma da filha e vai com ela morar para sempre no paraíso. Nessa obra podemos perceber como o mito cosmogônico diz respeito à história e tradição do povo Maraguá. O mito cosmogônico se faz presente quando, na história, a criação do mundo, dá-se pela figura mítica Monãg (Deus) que transforma os seres e dá início ao processo de evolução das espécie como uma maneira de explicar a origem do mundo e, ao mesmo tempo, como uma construção de uma história em que os mitos constroem-se a partir do conhecimento destinado na mítica de um povo.
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Análise da obra As lindas histórias do povo Sateré Maué A coletânea dessa obra reúne várias lendas do povo Sateré Mawé em que o conhecimento empírico, o respeito e o amor ao patrimônios humano e cultural do povo Sateré Mawé são bem presentes nas histórias da coletânea. Essa coletânea é muito importante, pois mostra a história do povo Sateré Mawé, registrada nos rituais, no mito e nas lendas. O livro pode ser considerado como um documento de suma importância, pois arquiva um pouco da memória deste povo indígena, sua identidade cultural trazida nas lendas e nos mitos que compõem a coletânea. Segundo Uggé (S/D, p. 47), “o mito é o valor considerado essencial para um povo, este valor é representado, revivido através de celebrações como gestos, palavras, objetos, contos, danças, etc.” Uma das histórias mais belas da coletânea diz respeito ao Gavião Real. Pela história deste pássaro imponente, coloca-se toda a estrutura social, sua formação, a consistência, o poder, a força e a habilidade dos antepassados do povo Sateré Mawé. A obra de padre Henrique Uggé destaca constantemente o mito, a lenda como elementos constitutivos da memória do povo Sateré Mawé. A memória do povo fica, pois, registrada através dos relatos e das lembranças dos antepassados e dos mais velhos, detentores do conhecimento, guardiões da história de um povo. Enfatiza-se também na obra a ideia de que a sabedoria é destinada à pessoas com poderes especiais, como o pajé (curandeiro/feiticeiro) que, através da prática da magia e o poder da cura, de fato, é a pessoa mais respeitada da tribos. Como toda sociedade primitiva, o povo Sateré criou sua própria identidade e procura manter suas raízes como forma de se defender e manter vivo seu próprio povo. Ao colher e registrar as histórias do povo Sateré Mawé, Padre Henrique Uggé desvenda e faz um contexto histórico desse povo, colocando em destaque a questão mitológica como o mito da criação e justifica isso enxergando o mito como um aspecto religioso, como se pode perceber no seguinte trecho: “A religião primitiva é o modo mais antigo e simples de relacionamento (interligação-religião-religar) simbólico usado pelo homem para entrar em contato com o ser” (UGGÉ, S/D, p. 11). O Ser Supremo na cultura dos Sateré Maué é um ser que vive, cresce e tem o nome de Tupanã. Na tradição Tupi, Tupã-Tupana é a força do trovão, é um Deus forte e poderoso. Tupanã é mantenedor do mundo que existe, ele é grande mestre da criação e para os primitivos é um Deus distante, distinto das pessoas. As bonitas histórias do povo
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Sateré Maué são registro da memória simbólicas dos mitos, rituais, narrações e danças dos índios e sua cultura como maneira de sintetizar a existência de um mundo feliz com todos os seres viventes em paz e uma perfeita harmonia entre eles; há nas histórias a visão de “paraíso” que agora não existe mais. Existe a preocupação do autor em suas narrativas em celebrar esses fatos, registrando a história do povo Sateré Mawé. Análise da obra O caçador de histórias O autor Yaguarê Yamã começa seu livro colocando em destaque as crianças indígenas para introduzir sua obra, como se pode perceber seguinte fragmento: Toda criança em qualquer parte do mundo gosta de ouvir histórias de aventuras. As crianças indígenas também; elas fazem tudo, principalmente silêncio, para ouvir o que os contadores de histórias dizem. (YAMÃ, 2004, p. 11)
Ao falar do universo infantil é preciso estar dentro dele e se comportar como criança, assim é a colocação do autor. O que realmente é uma arte difícil de escrever porque como diz Yaguarè Yamã em uma entrevista concedida no CESP (Centro de Estudos Superiores de Parintins), no II Simpósio de Literatura Infantojuvenil na Amazônia, no dia 5 de junho de 2014: “As crianças, por serem um público mais exigente, não é qualquer histórias que prendem sua atenção, até porque hoje todas estão se relacionando bem com a tecnologia.” No depoimento do escritor, percebe-se a importância que ele vê sobre leitura e as histórias na vida da criança e certa preocupação quanto à presença da tecnologia na vida contemporânea. Até mesmo porque há quem pense que a tecnologia pode afastar o leitor da leitura. O caçador de histórias é uma reunião de narrativas recheadas de mitos e lendas sobre a cultura indígena e que, de certa forma, arquiva através da literatura a história do povo Maraguá, seus valores, suas crenças. Embora colocadas sob o plano da ficção, essas histórias são tomadas como verídicas. Há, pois, uma mistura entre o real e o imaginário. Mircea Eliade, em sua obra Mito e realidade, esclarece essa questão, como se pode ver no trecho abaixo: (...) homo religiosus, a existência real, autêntica, começa no momento em que ele recebe a comunicação dessa história primordial e aceita as suas consequências. É sempre uma história divina, pois os personagens são os Entes Sobrenaturais e os Ancestrais Míticos. (ELIADE, 2001, p.85)
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O caçador de histórias é, pois, a existência do real com o imaginário quando o homem aceita as consequências impostas e que cabe ao ser Divino tudo que lhe acontece. Assim são os mitos da cultura indígena que se volta para o sobrenatural; é, pois, uma existência que não se enxerga, mas se acredita nesse dogma religioso que é a fé. Os ancestrais míticos são antigos senhores detentores do conhecimento e da sabedoria, capazes de curar e ter o poder da palavra. Assim eram reverenciados os pajés (feiticeiros/curandeiros da tribo). A obra de Yaguaré Yamã se espelha nas questões lendárias de um povo, como os costumes e hábitos que são impostos para manter viva a identidade cultural desses indígenas. A autenticidade de uma cultura é quando ela se mantem viva, mesmo diante do avanço que acompanha o mundo. É o que o autor procura fazer na sua obra. As lendárias histórias do Juma, O fantasma da casa abandonada, A porca visajenta, A sucurijú do igapó e as demais que se reúnem na obra, são registros da memória do povo Maraguá por meio dos mitos e lendas recorrentemente presentes nas narrativas. O mito, por sinal, é o responsável em grande parte pela forma como o índio concebe e enxerga o mundo ao seu redor. É pelo mito que muito do que está além da condição humana se explica na cultura indígena. “Viver o mito implica, pois uma experiência verdadeiramente religiosa, pois ela se distingue da experiência ordinária da vida quotidiana” (ELIADE, 2001, p.22). A importância de uma obra como essa não serve apenas como registro da memória, mas também como fonte de pesquisa acerca da cultura indígena. O livro traz lendas que fazem do imaginário não só do povo indígena, mas do homem amazônida, em geral, como é o caso da história A porca visajenta. A narrativa em questão conta a história de uma moça que se engera, ou seja, transforma-se em porca e persegue o índio Watiamã-wepy’t quando este caminha de volta para casa. É comum ouvir nas áreas ribeirinhas e mesmo nas cidades do interior do Amazonas histórias de pessoas que se engeram em animais. Essas pessoas tornam-se em assombrações conhecidas na Amazônia como visajem. Essa obra é, pois, o registro do imaginário Amazônico contado pela voz do indígena. Por trás do mito existe uma tradição, ou melhor ele próprio é uma tradição. O mito teria uma forma alegórica que deixa entrever um fato natural, histórico e filosófico! (ROCHA, 2008, p. 9)
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Há, através dessa narrativa, a construção do mundo de acordo com citações bíblicas do livro de Gênesis. Na literatura infanto-juvenil indígena é constante a presença da lenda que se constrói através de uma identidade inspirada na Idade Média e outros povos, a qual se amplia e se transforma sob efeito do imaginário popular. Considerações finais As questões colocadas nessa proposta de trabalho relacionadas ao mito, à lenda e à memória estão presentes em nossa atualidade e tentam explicar o contexto histórico de cada obra em que os autores se basearam para contar em suas narrativas. O que podemos enfatizar que essa pesquisa poderá ajudar a fortalecer novos escritos nesse setor. O que podemos ampliar nossas trocas de informações e auxiliar futuros acadêmicos que estejam interessados em dar prosseguimento a essa linha de pesquisa. Nas obras da literatura infantojuvenil indígena a relação lenda, mito e memória está em constante processo de formação e evolução, e a temática tende a se fortalecer e que não podemos finalizar esse assunto por aqui, mas que poderá se estender ao longo da pesquisa porque ainda se pode construir mais conhecimentos através da Literatura Infantojuvenil Indígena e podemos coletar mais dados relacionados a esses assuntos. Referências DIAKARA, Jaime. A origem da Constelação da Garça. 22º ed. Manaus: Valer, 2011. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2010. GUARÁ, Roní Wasiry. Çaiçú’indé: o primeiro grande amor do mundo. Manaus: Valer, 2010. ROCHA, Everardo. O que é mito. São Paulo: Brasiliense, 2008. (Coleção primeiros passos; 151) UGGÉ, Henrique. As bonitas histórias Sateré-Maué. Governo do Estado do Amazonas: Imprensa Oficial, S/D. YAMÃ, Yaguarê. Guanâby Muru-Gawá: a origem do Beija-flor. São Paulo: Petrópoles, 2012. __________. Um curumim, uma canoa. 1ª ed. Rio de Janeiro: FTD, 2012. __________, Yaguare. O caçador de histórias. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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CRIAÇÃO POÉTICA VISIONÁRIA EM QUADRINHO AUTORAL
Matheus Moura Silva (UFG)
A investigação abordada faz parte da pesquisa de mestrado realizada no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da UFG. A linha de pesquisa a qual o projeto se enquadra é a de Processos de Criação e Poéticas Visuais. Isso implica numa pesquisa pautada tanto na investigação teórica quanto na produção poética. Abaixo a proposta é descrever, brevemente, o desenvolvimento de uma história em quadrinhos do gênero poético-filosófico realizada por Gazy Andraus – um dos autores investigados na dissertação – em parceria com este escriba. No geral, a proposta previa, a partir do estudo dos processos criativos dos autores analisados, criar diversas HQs de maneira inusitada, ressignificando os métodos usuais dos investigados. Para o presente trabalho o foco de análise é a história “O Todo”, de duas páginas – tendo como escopo a busca do homem em se diferenciar, mesmo quando isso implica se unir a outros. A criatividade é um fenômeno essencialmente humano. Psicólogos, artistas, neurocientistas e filósofos há anos pesquisam-na. Porém, quase sempre, se detêm em seus mistérios. Os mistérios da criação – não só no que tange ao realizado pelo homem para o homem –, o sentido lato da expressão, a criação de tudo que existe independentemente do homem. Para termos uma noção do quão instigante essa relação se torna, o filósofo estadunidense John R. Searle diz ser esta, hoje, é a questão fundamental da filosofia: “O principal problema filosófico da época atual é dar conta de nós mesmos como conscientes, mentais, racionais, tendo livre-arbítrio, políticos, estéticos, (…) enfim, seres morais em um mundo conhecido que consiste inteiramente de inconsciência e partículas físicas sem sentido” (SEARLE, 2012, p. 11). Suscitamos o mito grego de Prometeu para pensarmos a origem da consciência, sendo possível a comparação com o surgimento da faculdade criativa. De acordo com o arqueólogo sul-africano David Lewis-Williams (2005), o que nos diferencia em termos concretos dos animais tidos como irracionais é nossa
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consciência superior. Essa se desenvolveu durante algum momento na transição entre o período conhecido como Paleolítico Médio para o Paleolítico Superior, algo entorno de 40 a 35 mil anos atrás. O porque desse desenvolvimento é uma incógnita. O ato metafórico de Prometeu (roubar o fogos dos deuses) tenta responder miticamente a isso. A chama roubada pelo Titã, de acordo com a mitologia grega, mais do que propiciar a destreza em manipular labaredas para os homens, pode ser encarada como uma alegoria ao florescer dessa capacidade mental humana. O fazer em si, como aspecto da consciência, torna-se a incógnita máxima: por que criar? Para que criar? No mundo contemporâneo, respostas funcionalistas são as mais comuns e aceitas. Cria-se por necessidade social e ambiental, cria-se por ser impelido por uma força interior. A criação se justifica por si mesma – é a sensibilidade do autor aflorada. O Todo O mote “união ancestral com o cosmos” é o norte desta parceria com Gazy Andraus. Não por acaso, essa HQ também tem relação com outra história, chamada Ascensão, feita com Edgar Franco. Primeiro, o assunto é o mesmo: a busca pela integração do ser com o “todo”, o universo. Segundo, apesar de não mencionar o cogumelo psilocybe cubensis, o insight dessa história surgiu durante uma sessão mística sob influência do dito fungo – o que pode aproximá-la do que é produzido dentre da chamada Arte Visionária (Mikosz, 2009). É significativo notar que, inconscientemente – e de modo profundamente inconsciente, uma vez que vivenciava, naquele momento, um estado não ordinário de consciência – cria-se tendo como base um dos métodos de criação de Andraus: a “escrita automática”. Com relação ao processo do autor, ele tem como um dos princípios a improvisação, que se manifesta na feitura de histórias similares a hai kais ou koans (SILVA, 2013). No momento em que foi escrito o roteiro de O Todo, na verdade, não se imaginava que ele se tornaria um roteiro. O impulso criador brotou do ímpeto de escrever à lápis sobre papel – aliado às imagens prévias vistas durante o transe. Dessa forma, ao escrever, passei a sentir prazer com o deslizar do lápis na folha que estava apoiada numa mesa que possui uma textura levemente áspera. A sensação
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causada pela textura incentivou a continuação da escrita. O primeiro hai kai feito versa sobre as amarras que prendem o ser humano mesmo tendo liberdade total para fazer algo como quiser. Ao tentar me libertar dessa amarra que passava a “ver”, foi dado início ao texto de O Todo – que não possuía título até então, sendo este dado por Andraus.
Ilustração 1: Esboço/esquema, O Todo, por Matheus Moura (Acervo do autor)
Na versão original, a ideia era justamente ter duas páginas, no sentido que não haveria como, por exemplo, a história possuir uma ou três páginas. Na primeira a questão central é levantada: provocar quanto à necessidade do ser humano em se diferenciar dos demais. A segunda página continua a provocação, mas dando uma “resposta incógnita” ao problema abordado. O “todo”, assim, é o que impede e impele a diferenciação que cada indivíduo busca e se submete perante a vida. Nesta segunda página o intuito era mesclar o espaço da página com o “todo”. Para tanto, pensei no texto “todo” diluído ao centro da página – isso, reforço, no texto original. Depois de um tempo a deixar esfriar o koan que havia criado, ao relê-lo vi similaridades com a proposta conceitual de Gazy Andraus e resolvi transpô-lo para roteiro. O desafio, então, passou a ser como criar imagens para um texto tão subjetivo. Ao pensar em exemplos de coletividade me veio à mente o sentido de cardume – já visto durante o transe, mas de maneira diferenciada, sensitiva –, em que vários seres se comportam como sendo um único organismo. Imediatamente surgiu uma imagem
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mental que me lembrou um comercial televisivo do whisky Johnnie Walker, em que homens parecem golfinhos a nadar. Assim, resolvi que a primeira página teria um cardume humano que formaria a silhueta de uma pessoa. O texto transcorreria pela página, como é comum aos trabalhos de Andraus. A descrição que enviada para ser ilustrada foi: Na primeira página a imagem predominante é uma silhueta humana, que toma toda a página. Mas essa silhueta é formada por várias pessoas, homens, mulheres de todas as idades. Eles estão como num cardume de peixes, todos misturados, nadando, fazendo a forma humana (silhueta) como o corpo do cardume. Acho que a silhueta olhado pra cima, assim como os "humanos do cardume" seria legal. Nessa página tem a maior parte do texto. Imagino o texto começando na parte superior e descendo, passando pelos corpos dos nadadores, meio que integrando o corpo deles. Texto: "A necessidade do ser humano em se expressar (livrar-se de amarras) é como a briga do singular em meio ao cardume: tem como um dos princípios..." Para a segunda página imagino o seguinte: o texto ser a moldura da página, o texto dar forma aos quadros. A página, sem limitações, como um "tabuleiro", por assim dizer, dessa forma ela é vazada, "livre de amarras". O texto que forma os quadros, "o todo"*, por serem quadros, dentro deles imagino uma paisagem cósmica, o universo, estrelas ou algo assim, para dar o sentido dessa imensidão por trás da superfície. Os quadros, formados pelo "o todo", funcionam então como janelas, mostrando o exterior (interior). *Texto: "...o todo." Não sei se a segunda página fica clara. No diagrama que montei dá pra entender melhor. Nele eu juntei o "O" com o "T", para ficar semelhante ao Ankh, egípcio, símbolo da vida após a morte (vida eterna). (M. M., 2012)
Acima, na ilustração 1, estão os diagramas enviados e mencionados na descrição acima. Tendo as imagens como referencial, o texto é melhor interpretado. Como é possível perceber no resultado final, abaixo, Andraus modificou alguns aspectos originalmente pensados. Principalmente na segunda página. Essa, em destaque, foi a que o autor mais se deu liberdade criativa, ao buscar resolver melhor a composição de página. Talvez essa maior liberdade tomada por ele seja por conta da descrição pobre dada a ele. Abaixo segue o depoimento de Andraus, na integra, a respeito do processo criativo de O Todo.
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M. M. enviou-me o roteiro da HQ “O Todo”, descrevendo uma forma humana em que os desenhos das pessoas aparecessem nadando. No início esbocei à lápis um grande peixe em que as figuras humanas perfariam sua figura. Mas depois, relendo com atenção sua descrição, alterei para a figura humana olhando ao alto e as formas humanas perfazendo em volume por seu corpo. Tentei fazê-las nadando, mas depois acabei deixando fluir mais ou menos pois os movimentos de nadar são mais difíceis de se agrupar (e eu não desenho sob referências). Note: geralmente desenho tudo à caneta preta direto, mas por estar meio destreinado resolvi esboçar mais ou menos à lápis, as duas vezes que fiz a primeira página. A segunda página resolvi repetir o elemento dos homens-nadando pelo photoshop, diminuindo a intensidade do preto, como se fossem um relevo-estampa de fundo na segunda página, em que aparece como uma imagem-desenho a frase final gigante e título da HQ: “O Todo”. Inclusive, inicialmente pensei em deixar o fundo negro estrelado como no espaço sideral para que as letras “O Todo” parecessem planetas, mas mudei de idéia para tentar este experimento de estampa aludindo aos seres humanos no espaço. Não me recordo que som eu ouvia quando esbocei e depois finalizei a HQ, mas entre o rascunho inicial à finalização houve um hiato temporal de alguns meses. De uns tempos para cá não tenho conseguido dar vazão e continuidade à minhas artes de HQ, como eu fazia antes, mesmo até o período inicial da tese, embora de lá até aqui eu não tenha parado de vez a produção de HQ, mas na verdade diminuído muito. Inclusive M. M. tem me incentivado, principalmente quando criou a revista Camiño di Rato, para a qual fiz HQs interessantes como Hesperornis e outras. Mas creio que esta diminuição na produção de HQ esteja ligada à profissão de professor, e mesmo à minha racionalidade exacerbada a partir da finalização da tese. Devo dizer, todavia, que gostei deste resultado da HQ. (Andraus, 2012)
As principais mudanças realizadas pelo desenhista foram: as figuras humanas na primeira página não estão necessariamente nadando; na segunda, o fundo composto com as figuras humanas da primeira página replicadas e o texto “O Todo” central, sem a referência cósmica explícita – deixada de lado por Andraus e, depois de ler este texto, atualizada. Por outro lado, o “O”, junto com o “T”, da maneira como foi feito assemelha-se com Júpiter e seus anéis, o que não deixa de ser uma menção cósmica. A ligação visual com o símbolo egípcio foi retirada. Apesar de se assemelhar, também, no resultado final, não fica clara a menção ao Ankh. A parte final do texto principal “...como um dos princípios:” foi transportada para a segunda página, para criar maior coerência entre as imagens – o que, ao meu ver, incrementou a narrativa visual, como pode ser visto na ilustração 2.
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Ilustração 2: O Todo, por Gazy Andraus e Matheus Moura (Acervo do autor)
De uma forma ou de outra, toda atividade a que nos propomos exercer só ocorre devido à certos critérios a ela intrínsecos. A criatividade como sendo capacidade fundamental e essencialmente humana, não foge à essa regra. Tanto que a maioria dos pesquisadores – se não conseguem – tentam estipular quais seriam esses critérios, uma vez que, como coloca Wahba o processo criativo deriva de um impulso básico do ser humano que, para se efetivar, necessita de um complexo encadeamento neurofuncional (…) trata-se de um fator psicológico semelhante, na sua dinâmica, a um instinto, pelo fato de ser compulsivo e automático, mas sem ser fixo e imutável (Wahba , 2009).
O psicanalista George F. Kneller, por sua vez, indica uma série de “condições de criatividade” para que ocorra a “verdadeira criação” (Kneller, 1978). De acordo com o educador, elas estão divididas em sete, por assim dizer, qualidades: Receptividade; Imersão; Dedicação e Desprendimento; Imaginação e Julgamento; Interrogação; Uso de Erros; e Submissão à Obra de Criação. Em uma análise mais detalhada é possível identificar como cada uma dessas condições está presente na realização desta HQ – seja
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em maior ou menor grau, a dinâmica de funcionamento desses critérios de criatividade descritos por Kneller faz parte da realização da história em quadrinhos O Todo. A primeira, Receptividade, tem como ponto focal o estar sempre preparado para o surgimento de novas ideias que irrompem ao consciente. Sem a receptividade dessas possíveis criações (ou de insights), a imaginação deixa de ser eficaz, pois haveria, então, a perda de possíveis obras a serem realizadas, uma vez que o indivíduo passaria a ignorar esses chamados criativos e a abafar o próprio ímpeto realizador. A minha receptividade foi a escrita automática, a de Gazy Andraus a abertura em ilustrar o texto de outra pessoa e sob as circunstâncias desta. Em segundo há a Imersão, a qual funciona como preparação para o ato criador. É a partir dela que o artista (ou cientista) estreita relações com suas ideias e meio a que elas se referem, afim de desenvolver sua criação. Como vantagem Kneller aponta que ela “nutre de ideias a imaginação; robustece a mão do criador, oferecendo-lhe uma gama de abordagens em relação ao problema; canaliza-lhe as energias (…); compele-o a pensar mais profundamente e de modo global” (Ibidem, 1978, p. 74). No meu caso, a imersão pode ser percebida no momento criador quando “vejo” as amarras que me prendem e produzo com o intuito de me libertar dela, envolto nesse problema. Já Andraus, a busca em solucionar o enigma da minha descrição funciona como esse aspecto imersivo. A terceira condição, Dedicação e Desprendimento, relaciona-se ao próprio envolvimento do autor perante seu ato criativo. Por isso ela é dupla, uma vez que, apesar da necessidade de desvelo à criação, há o imperativo do desprendimento, o qual se refere a certa dose de maleabilidade para rever conceitos e perspectivas antes tidos como certos – e que podem, no fim, se mostrarem como errados. Isso ocorreu com Andraus ao ter percebido que errou na interpretação do que eu havia escrito, sem a dedicação em se voltar a trabalhar e o desprendimento de sua concepção inicial do descrito a história não teria corpo. Por minha vez, a busca por solucionar a transposição do koan original para roteiro se une ao desprendimento da ideia original para dar forma a um novo conteúdo. A quarta condição também é dupla: Imaginação e Julgamento, e, ambas, podem ser observadas no fazer de O Todo. Uma como manifestação de criação (imaginar). A outra como auto-crítica. Nas palavras do autor:
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Na criação deve também existir paixão (imaginação) e decoro (julgamento). Por si só, a imaginação produz ideias porém não as comunica; o julgamento, por si só, comunica ideias mais não as gera. Não ocorrerá a criação, que é ao mesmo tempo produção e comunicação, sem que cooperem imaginação e julgamento (KNELLER, 1978, p. 75).
Como quinta condição há a Interrogação. Para Kneller, a capacidade interrogativa é fundamental por colocar a prova as ideias mais básicas que ocorrem à mente. Da resposta a essas questões, o problema é lapidado. “De fato, quando exprimimos como indagação o objeto de nossa pesquisa criadora, mais fácil se torna encontrá-lo”, destaca. Compreendo esse aspecto, em especial, como a própria questão/resposta do koan, funcionando como critério e resultado que motivou tanto eu quanto Andraus. Em seguida há o Uso de Erros, que nada mais é do que a não aceitação dos erros como um ponto final na concretização da obra. O artista, assim, aproveita-se do erro em seu benefício, “pois, muitas vezes [são] indicadores da verdade, por serem tentativas do inconsciente para exprimir-se” (KNELLER, 1978, p. 76). Percebo bem esse ponto quando “vi” minhas amarras (ou erros) no koan anterior, o que me impeliu a libertar-me pondo-me a criar novamente – o erro como motivação. No caso de Andraus, passa por pressuposto semelhante uma vez que, por certa dificuldade (ou falha) em desenhar pessoas a nadar, direcionou-o a desenhar as figuras como estão – como ele diz, de maneira fluída. Por fim há a sétima condição: Submissão à Obra de Criação. Kneller entende que, em determinado momento, a obra passa a existir sem a necessidade de interferência do autor. Nesse ponto a relação se inverte e a obra começa a transmitir suas necessidades ao próprio criador. O que acaba por exigir o desprendimento deste perante o realizado, com o intuito de deixar a obra falar por si só, demonstrando os caminhos a serem seguidos (KNELLER, 1978, p. 77). O próprio resultado final, para mim, caracteriza-se dentro desse conceito dado por Kneller, pois minha criação textual foi transfigurada na interpretação imagética de Andraus. Por sua vez, o artista se deteve aos aspectos intrínsecos ao conceito proposto por mim no roteiro. Em maior ou menor grau, como foi possível observar, a dinâmica de funcionamento desses critérios de criatividade descritos por Kneller se faz presente na realização da história em quadrinhos O Todo.
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Considerações Primeiro, precisamos delinear o que venha a ser Arte Visionária. Entendemos como tal o que foi definido pelo artista Laurence Caruana, em 2001, no Manifesto of Visionary Art, sendo esta toda manifestação artística que busca retratar visões. Para José Eliézer Mikosz (2009): Arte Visionária busca, portanto, representar plasticamente experiências concretas de um universo invisível ao qual têm acesso o artista, o xamã, o místico e alguns outros. Mesmo em meio às intempestivas e inestimáveis agitações artísticas contemporâneas, a Arte Visionária encontra espaço privilegiado de expressão proveniente dos lados mais recônditos da condição e da natureza humana. (Mikosz , 2009) Não importa em qual linguagem das artes; seja música, pintura, teatro. Nas histórias em quadrinhos, assim como na história da arte – como é demonstrado por Mikosz (2009) – a representações de visões, independentemente do método para alcançá-las tanto por meio de uso de psicotrópicos ou não, é realizado há anos, ou melhor, milhares de anos, sendo parte fundamental do processo criativo humano. A história em quadrinhos O Todo foi criada com base em preceitos que dialogam com as características básicas do que venha ser uma legítima Arte Visionária, uma vez que ela busca retratar visões tidas a partir de estados ampliados de consciência. Talvez nem tanto com relação a parte gráfica em si, mas por conta da temática e modo primário de criação que se torna possível traçar tal aproximação. Ou seja, no nosso caso, grande parte do que eleva O Todo a uma produção enquadrada no que se pode chamar de movimento de Arte Visionária é o que antevem a obra. Claro, o conteúdo em si também faz parte dos diálogos da Arte Visionária, mas neste caso o processo da obra parece ser mais indicativo. Porém, ressaltamos que o intuito desta pesquisa, longe de construir algo acabado foi lançar fachos de luz na problematização dos processos criativos envolvidos na produção de histórias em quadrinhos autorais, com ênfase no gênero poético-filosófico. Tal propósito, além de servir para compreender melhor o que envolve o fazer criativo, funciona ainda como método de autoconhecimento.
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O que podemos propor, como hipótese, é que construída da maneira como foi, por consequência, essa HQ tratará também das idiossincrasias do fruidor. Assim como as diversas obras de Arte Visionária, ou não. Pois, cada interpretação realizada após a leitura será determinada pelo que foi sentido, aliada ao repertório intrínseco do leitor. É a vivacidade da obra abrindo possibilidades para adentrarmos à subjetividade pura. Referências ANDRAUS, G. O que são histórias em quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro. In: FRANCO, E. (org.). Visualidades - Revista do Programa de Mestrado em Cultura Visual/UFG. Goiânia: UFG, FAV, 2009, p. 40-67. _____. Depoimento particular. [Ano, 2011-2012]. Correspondências por email. Entrevista concedida a M. M. S.. CAMIÑO DI RATO. Uberlândia: M. M., 2008- 2013. Irregular. ISSN: 2176-8595. KNELLER, G. F. Arte e ciência da criatividade. 5a ed. São Paulo: IBRASA, 1978. LEWIS-WILLIAMS, J. D. La mente en la caverna: la consciencia e las orígenes del arte. Madrid: Akal Editor, 2005. MAY, R. A coragem de criar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. MIKOSZ, J. E. A Arte Visionária e a Ayahuasca: Representações Visuais de Esperais e Vórtices Inspiradas nos Estados Não Ordinários de Consciência (ENOC). 2009. 291 f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009. _____. Arte Visionária: A Arte de Retratar Visões. Disponível em: http://www.artevisionaria.com.br/conceito.htm. Acessado em: 01 Julho de 2013. NACHMANOVITCH, S. Ser criativo – o poder da improvisação na vida e na arte. São Paulo: Summus, 1993. OSTROWER, F. Criatividade e Processos de Criação. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1977.
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SEARLE, John R.. Linguagem e consciência. [junho, 2011]. São Paulo: Conhecimento Prático Filosofia. Entrevista concedida a Matheus Moura. WAHBA, L. L. Criatividade, inspiração, possessão e arte. Revista Coleção memória da psicanálise – Carl Gustav Jung. v. I, n. 8, São Paulo: Duetto Editorial, 2009. p. 82-89.
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VELHOS VALORES E NOVOS TEMPOS NA OBRA DE ANA MARIA MACHADO: A AUDÁCIA DESSA MULHER 1 Maura Helena Ferreira 2 (UFMS)
Resumo: Na obra de Ana Maria Machado, A audácia dessa mulher (2008), assim como em muitos outros romances da literatura brasileira e estrangeira, os papéis femininos são constituídos com características alimentadas pela arte da vida, politizando e problematizando questões de forma consciente e inconsciente sobre os novos rumos da (con)formação do gênero feminino no contexto socioeconômico e cultural. A intertextualidade explícito e implícita com a obra “Dom Casmurro” de, Machado de Assis e outras obras também permitirá analisar os modelos da figura feminina presentes na literatura, com o objetivo de revelar os componentes intertextuais e intratextuais, bem como os elementos textuais como paródia, paráfrase e outros no intuito de problematizar e refletir sobre o passado e o presente e interpretar quais os textos nortearam a obra de Ana Maria Machado. As análises empreendidas fundamentam-se nos pressuposto de Beauvoir (1980), Bordieu (2011), Louro (1997), Priore (2000) e em relação a intertextualidade são ancorados em Kristeva (1974), Hutcheon (1971), Jenny (1979).
Palavras-chaves: Gênero feminino, intertextualidade, literatura brasileira.
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Este trabalho integra uma pesquisa de escopo maior referente à dissertação de mestrado que tem como título o mesmo tema deste artigo. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras – estudos literários, pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS, campus de Três Lagoas – CPTL. Lins/SP/ Brasil. CEP: 16402-687. [email protected]
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O romance A audácia dessa mulher Publicado em 1999, a trama de A audácia dessa mulher tem como cenário o Rio de Janeiro no final do século XX, quando um grupo de produtores de televisão tem por objetivo um novo projeto que recebe o nome de “Ousadia”, uma série na qual o tempero principal será o ciúme. São convidados para participar desse projeto Bia, uma jornalista e escritora de livros de viagens, e Virgílio, dono de um restaurante e arquiteto. Como a vida cerca a todos com os mais variados incidentes, do primeiro encontro entre Bia e Virgílio frutificam novos encontros, dissimulações, novos valores e também ciúme. Entrelaçado à história do casal, há o enigma de um caderno de receitas que Bia recebe de Virgílio, que traz um diário com os anseios, as conquistas e os “choques” do ciúme exacerbado de um marido com a dona do diário. No final do romance é revelado ao leitor o mistério que envolve o caderno de receitas: escrito no século XIX, trata-se do caderno de Maria Capitulina (Lina/Capitu), numa releitura do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. A leitura do caderno representa de maneira subjetiva a história coletiva das mulheres do século XIX, por externar o pensamento das mulheres na voz de Lina ou Maria Capitulina. Ela que registra em seu diário de que forma, num século envolto por uma sociedade conservadora, driblou o destino de um homem entregue ao celibato pela mãe, o enterneceu em seus braços por meio do casamento, até que, pelos dissabores do ciúme, teve a audácia de se transformar em outra mulher. Em contraponto no século XX, o leitor fica sabendo que Bia está enlaçada por um antigo relacionamento, no qual acredita haver lealdade, sendo o suposto parceiro Fabrício, um ex-namorado com quem se envolveu por quatro anos e que a deixou para viver uma paixão com uma companheira de trabalho na Califórnia. Percebemos a intertextualidade na obra de Machado não só com um texto, mas vários textos que se conectam ora pela temática relativa ao gênero feminino, ora por outras características que são chamadas para elucidar aspectos e características de uma época. Machado não só une características sociais dos séculos XIX e XX, mas também se apropria de formas intertextuais para transgredir, apropriar-se e repetir textos que levam a outros textos.
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Procedimentos intertextuais que conectam diferentes vozes em diferentes épocas A intertextualidade presente em A audácia dessa mulher com o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, por meio do enigmático diário de receitas, inicialmente o institui apenas como um caderno com registro de receitas. Porém, com o decorrer da narrativa, descortinam-se anotações do cotidiano da personagem (Lina/Capitu) de uma época distante de quem o lê, para revelar suas conquistas, descobertas, angústias e redescobertas. Neste sentido, o diário simboliza a perpetuação do legado deixado pela sua autora, Lina. Conforme suas folhas são folheadas, novas reflexões são feitas e o desenrolar de uma vida que se contrasta com a leitora do caderno, Bia, uma mulher do século XX que, com curiosidade, tenta desvendar os mistérios daquela mulher que se desnuda pelas páginas. Assim, ao folhear o diário, Bia faz uma reflexão sobre seu modo de vida e a vivência remota que se apresenta à sua frente. No final da trama de A audácia dessa mulher, surge uma carta para decifrar os acontecimentos que ficaram sem respostas no enigmático caderno de receitas. Tanto na obra Dom Casmurro quanto no romance de Ana Maria Machado os acontecimentos são os mesmos. A autora utiliza os olhares trocados entre Sancha e Santiago; a catástrofe que ocasionou a morte de Escobar; o enterro de Escobar quando Capitu olha para sua amiga desesperada e chorando pela morte do marido na hora de sua partida para o cemitério; o jeito calado e aborrecido de Santiago pela casa; a estupefação de Capitu quando presencia Santiago dizer ao filho que não é seu pai; a semelhança entre Ezequiel e Escobar; a separação do casal como solução; a viagem à Europa; a dissimulação de Santiago perante as outras pessoas sobre a viagem da mulher; o encontro de Ezequiel e seu pai; a viagem científica de Ezequiel paga pelo pai para Grécia, Egito e Palestina; e a morte de Ezequiel de febre tifóide. A mudança do sentido original do texto acontece em relação aos fatos que denotam o significado da situação quando na narrativa de Dom Casmurro o olhar de Capitu é visto por Santiago como amparo para a amiga que chora pela morte do marido e como um olhar fixo e apaixonado para o cadáver. No texto de Ana Maria Machado, a focalização do narrador destina-se a revelar os sentimentos e os pensamentos de Maria Capitulina em relação aos fatos que justificam a traição de Sancha e Santiago.
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Constatamos que não houve alteração na essência do texto, porém, em A audácia dessa mulher, inverte-se o sentido focalizado, por um narrador em terceira pessoa que centraliza os sentimentos da personagem Lina, traída pelo marido e sua amiga Sancha, como podemos observar no trecho: [...] soube que Santiago fora chamado à tua casa, porque teu marido se afogara. Não pude deixar de recordar, imediatamente, que ainda na véspera eu pensava em sua morte, e na minha também. Igualmente pensava na tua morte e na de meu marido, cheguei a pedir aos céus que elas se abatessem, tão ferida e dilacerada me encontrava eu com a descoberta da traição. [...] Ao olhar fixamente o cadáver, supliquei com todas as minhas forças que ele me levasse consigo, pensei em lançar-me ao mesmo mar que o levara e que agora me atraia, como se a única maneira de findar meu sofrimento fosse ser tragada pela mesma ressaca que o arrebatara e ainda bramia diante da casa. (MACHADO, 2008, p. 199).
Ao fazer uma retrospectiva de sua vida na carta Lina se depara com a brusca mudança do menino que fora seu companheiro na infância, o rapaz que a esperava com felicidade e ansiedade, e o homem dos primeiros anos de casamento, contrastando com sua vida até o momento: [...] Mal suspeitava eu que seria apenas para um quarto cheio de espelhos, que me fazia supor estar entre as árvores e o céu aberto mas se limitava a me prender, num vertiginoso jogo de ilusões que se repetiam ao infinito. (MACHADO, 2008, p. 202).
Suas palavras revelam a alusão ao clássico Alice no país das Maravilhas (2002), de Lewis Carroll, numa relação intertextual em que a personagem Alice se vê no quarto do espelho à procura de uma saída para casa. Contudo, intratextualmente podemos nos remeter ao romance Alice e Ulisses (1983), da própria Ana Maria Machado, em que a personagem Alice, uma professora, separada, também aparece em busca de respostas para os acontecimentos de sua vida, revelando a teia de comunicação textual na qual um texto se conecta a outros textos, formando múltiplas vozes. O veneno na xícara de café é descoberto por Lina quando, ao limpar a bandeja,ela o derrama na cuia que servia de caneca ao papagaio, que o bebe e morre. Este acontecimento destoa da narrativa de Dom Casmurro, por não aparecer no texto “fonte”, mas ser uma nova forma de unir estrategicamente os fatos, dando voz para a
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personagem feminina, atenta a detalhes que normalmente passam despercebidos por um personagem masculino como podemos verificar no trecho: De regresso, ao limpar a bandeja na cozinha, derramei o café frio da xícara na cuia que servia de caneca ao papagaio. A ave tomou e morreu. A bebida que Santiago forçava pela goela abaixo de nosso filho estava envenenada. (MACHADO, 2008, 202).
Estupefata Lina/Capitu pede explicações sobre a rejeição de seu marido quanto ao filho Ezequiel, por este ser parecido com Escobar. Para ela, a semelhança é coisa da natureza e remete sua ideia ao fato de ser parecida com a falecida mãe de Sancha. Não há, porém,como evitar a separação do casal, que se consolida com a viagem para à Europa como se fosse um passeio em família. Para Lina/Capitu, trata-se de mais uma dissimulação do marido diante da qual ela reformula sua conclusão: Ao cabo de alguns meses, convenci-me de que Santiago só podia estar doente, para ter imaginado uma cousa daquelas. Talvez algum dia pudesse curar-se daquela enfermidade. E entendi que meu filho seria mais feliz se soubesse que seu pai o queria. [...] Decidi também dissimular. Já que estava mesmo vivendo uma nova vida, decretei para mim mesma a morte daquela moça alegre e feliz que gostava de bailes no Rio de Janeiro e levava uma vida tão mais leve. Abandonei meu apelido de menina e passei a me apresentar como Lina, usando a outra metade do meu nome. (MACHADO, 2008, p. 203-204).
Nos dois romances comparamos a igualdade dos acontecimentos: enquanto Dom Casmurro é norteado pela ambiguidade de uma traição que não é comprovada, em A audácia dessa mulher, promove-se uma dinâmica que envolve não só a constatação da doença por parte da personagem Lina, mas também a sua atitude perante o que a aflige. Desta maneira, ironicamente, se problematiza, por meio da paródia, o que para muitos leitores já era fato consumado e marcado por Machado de Assis – o adultério –, revelando o antagonismo perante a obra que deu origem ao novo texto. Ana Maria Machado delineia a condição de marginalização da mulher que a obriga a viver com discrição e cautela, dissimulando e abafando sua voz nos turbilhões da vida. Em A audácia dessa mulher, isso é confirmado pelo recurso à paródia em relação ao texto de Machado de Assis, como verificamos no trecho que evidencia a retomada de um novo desafio para Lina/Capitu: [...] um desafio novo nesse momento me ajudaria a levantar-me do desespero em que estava mergulhada com a morte de meu filho. Sentia-me como um fantasma, pairando na irrealidade, roubada de
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meu futuro, amputada de meu passado, sem vínculos com meu país, minha cidade, minha gente, desprovida até de meu próprio nome. Deixando-me guiar pelos conselhos de Eugênia, comprei então a pensão, onde venho trabalhando até este final dos dias desta minha segunda vida. (MACHADO, 2008, p. 205).
Linda Hutcheon, em Poética do Modernismo (1991), considera como papel da metaficção historiográfica problematizar as referências de uma propriedade discursiva tanto da literatura quanto da história. Uma paródia irônica do passado que serve para refletir sobre os intertextos em uma nova construção intertextual para o presente. Conforme as proposições de historiadores contemporâneos, o passado só pode ser conhecido por meio de outros textos históricos ou literários, o que faz o conteúdo intertextual recolhido através do tempo possuir duas vertentes: uma de ruptura com o passado, transformando-o em paródica irônica, e outra de afirmação do vínculo com o mesmo. Segundo Hutcheon, a pluralidade do texto que se fundamenta na teoria de Julia Kristeva desvia-se da noção do sujeito como proprietário do texto (o autor), pois todos os textos são ideias ativas para a produtividade textual e se comunicam através do tempo. Kristeva também critica a fonte original do texto, provocando a instabilidade de uma forma reflexiva sobre a origem do texto como proliferação dialógica entre muitos textos que ligam “[...] os intertextos do ‘mundo’ e da arte” (HUTCHEON, 1991, P. 166). Por seu lado, Laurent Jenny no texto “A estratégia da forma” (1979) se desprende do conceito de Julia Kristeva quando entende que o texto não é apenas um mosaico de textos correlacionados, mas também é capaz de centralizar e deter “[...] a operação de assimilação e de transformação de outros textos em consonância com o sentido central que é ratificado pelas demais formas de narrativas evocadas” (JENNY, 1979, p. 14). A noção da presença de intertextualidade que aborda outros textos é associada à identificação de características que determinam a presença de outro texto no texto central que pode ser alusiva ou reminiscência. O gênero lírico também se entrelaça intertextualmente com o tema sobre a fidelidade no relacionamento das personagens Bia e Fabrício, em que o narrador onisciente se atenta ao pensamento de Bia sobre a necessidade de ser a predileta de seu amor e cita o primeiro quarteto do poema “Soneto de Fidelidade”, de Vinícius de
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Moraes: “Em tudo ao meu amor serei atento/ antes, com tal zelo e sempre e tanto,/ que mesmo em face do maior encanto/ dele se encante mais meu pensamento”(apud MACHADO, 2008, p. 139). Quanto à estratégia da forma, o estatuto da palavra pode ser um fragmento no texto desvinculado ou como um elemento de sentido, e a cada inserção de um texto de referência em outro texto se constitui num novo círculo de interpretações. Ao estudar Bakhtin, Kristeva revela que ele foi o pioneiro na ideia de que “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de outro texto” (1974, p. 64). Nesta relação de intertextualidade, Jenny (1979) considera que uma simples alusão é suficiente para introduzir: [...] um sentido, uma representação, uma história, um conjunto ideológico, sem ser preciso falá-los. O texto de origem lá está virtualmente presente, portador de todo o seu sentido, sem que seja necessário enuncia-lo. [...] Já não significa por conta própria, passa ao estatuto de material, como na “reconstrução mítica”, em que se coleccionam mensagens pré-transmitidas para as reagrupar em novos conjuntos [...] ao mesmo tempo, o texto aproveitado denota e renuncia a denotar, é transitivo e intransitivo, tem valor de significado a cem por cento e de significante a cem por cento.(JENNY, 1979, p. 22).
Quando uma obra nasce e se perpetua, o estilo do autor se manifesta em sua criação, de modo que uma época reconhece seus autores e suas obras, mesmo diante de uma breve citação, mas que em sua simplicidade estilística traz impressas as marcas que fizeram esta ou aquela obra transcender o seu tempo e reconstituir outros textos. Antoine Compagnon, em O trabalho da citação (1996), considera que: Toda citação, de maneira análoga, é também uma imagem: um instantâneo, um ponto de vista sobre o sujeito da enunciação, uma cópia ao natural. É uma visão do autor e um detalhe de sua biografia. A constelação das citações compõe um quadro que equivale ao frontispício. (COMPAGNON, 1996, p. 119).
A referência que Virgílio faz à personagem Fraülein, apelido da governanta Elza de Amar, verbo intransitivo,de Mário de Andrade, denota o olhar do gênero masculino ao estigma de coisificação feminina atrelada à sexualidade que, em sua visão, se compara à personagem Bia e seu modo de se expressar, como aparece no trecho:
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[...] Virgílio olhava para ele e não conseguia chegar a uma conclusão: de quem ele tinha falado com tanto entusiasmo? Quem era a maravilha de mulher tão fascinante? Uma hipotética Fraülein contratada como preceptora no século XIX ou essa concretíssima magricela despenteada de jeans, que gesticulava, toda empolgada, sentada na cadeira em frente, com a perna esquerda na horizontal, relaxadamente apoiada sobre o joelho direito? Parecia animação demais para se referir a alguém muito vago e distante. (MACHADO, 2008, p. 35).
A patente homologia que Virgílio confere às personagens de diferentes épocas absorve o seu posicionamento de aproximação e de minimização no que concerne aos gêneros femininos, responsáveis por “animações” de um olhar conservador em relação às semelhanças alicerçadas por uma postura de poder e de dominação. Isso nos remete ao procedimento de estilização citado por Sant’Anna pelo desvio mínimo da primeira personagem para o enfoque da segunda, sem perder as características que permeiam a personagem da obra inicial, anunciando certa ironia para paradoxos distantes. De acordo com Affonso Romano de Sant’Anna na obra Paródia, paráfrase e cia (1988), tanto a paródia, como a estilização, a paráfrase e a apropriação possuem textos de origem que são referências que, para serem acessada, reclamam o conhecimento do leitor, a fim de que este faça as relações entre as obras, permitindo a comunicação, visualizando citações de referência e formando outros textos para o entendimento. Sant’Ana explica que,com base emYuri Tynianov, a paráfrase está próxima da estilização; já a paródia possui textos em planos simbólicos opostos, enquanto na estilização as vozes se encontram sem o propósito de que o texto original tenha sido alterado. No início do capítulo nove de A audácia dessa mulher, temos um diálogo entre Juliano e Bia em que o roteirista comenta sobre a loucura de Muniz, que trata as pessoas como ratos de laboratórios, colocando-as em tensão uma com as outras: Eu acho que ele gosta é de brincar com as pessoas, como se todo mundo fosse ratinho no laboratório dele... É quase uma forma de curiosidade científica,sabe, Bia? Ele põe os ratinhos numa situação extrema e fica observando, tomando notas de como eles se comportam. O diabo é que os ratinhos somos nós. (MACHADO, 2008, p. 108). A passagem tem relação textual com o conto “A causa secreta”, também de Machado de Assis, em que o personagem Fortunato, médico respeitável, tinha costume de fazer
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experimentos com animais e, de uma forma sutil, também se satisfazia com o sofrimento alheio, demonstrando a loucura humana transformada em atenção e zelo para com o próximo. Semelhante comportamento se apresenta no romance de Ana Maria Machado na personalidade de Muniz, diretor da série “Ousadia”, que, como observa Juliano, tem o hábito de criar situações de disputas, brigas e desavenças, para ficar observando, como um espectador absorto. Muniz também pode ser associado ao personagem do “Conto Alexandrino”, do mesmo autor de “A causa secreta” (1994), por ter em Stroibus, um filósofo que escalpelava com impulso magistral e prático os ratos a ferro, para tirar-lhe seus princípios ratoneiros e transferilos ao homem, expiando-lhes nos olhos o processo de agonia que anotava em folhas de papiro e que, como Muniz, era indiferente à dor alheia para atingir seu objetivo. A estilização, em seus desvios para alterar seu efeito ideológico, também aparece em A audácia dessa mulher de forma implícita e busca uma relação intertextual com vozes de textos alheios ou intratextual, que se refere aos textos da própria Ana Maria Machado,como podemos observar em Bia ao falar sobre a fidelidade de seu parceiro: [...] Bia desejou muito que Fabrício estivesse ali ao seu lado. Mas acreditava que o futuro ainda lhes traria outros momentos desses. Estaria sendo ridiculamente romântica a essa altura? Ideais de amor eterno no portão de entrada do século XXI? Riu de si mesma. E achou que não era nada disso. Via a si própria e a Fabrício com outras lentes. Um casal realista, com coragem de desafiar os modelos consumistas de uma sociedade de massa, que confunde amor com arrebatamentos hollywoodianos e prega o modelo das pessoas descartáveis. Um par de cúmplices, tentando não seguir a moda amorosa da época, mas inventando um padrão novo, em que fossem fiéis a si mesmo e leais um ao outro. Com um sentido de permanência que não se oferece nas vitrinas. Difícil, reconhecia. Mas possível, esperava. (MACHADO, 2008, p. 235).
Percebemos a presença implícita de Penélope, que na mitologia grega tece um tapete de dia e desfaz o seu trabalho à noite, para prorrogar a escolha de seus pretendentes que afirmavam que Ulisses estava morto. Esse ato simboliza a fidelidade conjugal e a castidade em sua espera de vinte anos. Personagem semelhante a Penélope já se encontrava no primeiro romance de Ana Maria Machado,Alice e Ulisses (1983), personificado em Adélia (que no grego adelos significa invisível) que, após descobrir a traição de Ulisses, tem uma atitude de cumplicidade e de fidelidade com a felicidade do marido, que só seria feliz tendo seu romance com Alice. Ana Maria Machado conta, em “O Tao da teia: sobre textos e têxteis”, que uma das observações feitas por seu orientador Roland Barthes quando cursava a pós-
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graduação, nos anos de 1970 e 1971, foi a apreciação interessada em relação às metáforas presentes em sua escrita, derivadas de palavras tradicionalmente femininas, que também podemos encontrar nos trechos a seguir: [...] Claro que Fabrício percebera que estava pondo em risco um bem muito maior, construído tijolo a tijolo, fio a fio, pelo tempo afora [...] – a menina que existira de verdade havia muito tempo, que copiara receitas naquele caderno e nele salpicara pelos anos afora seus desabafos fiapos de alegrias e aflições. [...] Prazer de estar em casa, aninhada naquilo que tecera fio a fio, à sombra do que plantara. (MACHADO, 2008, p. 106; 194 e 217).
As palavras, que remetem a fiar e a tecer, se referem ao ofício das tecelãs de antigamente e denotam a intratextualidade presente no estilo de escrita da autora e que também se revelam no título de seu livro infantil Ponto a ponto (2006). A intertextualidade estudada por Julia Kristeva declara o entrecruzamento de textos como uma grande rede de informações na qual nenhum texto é visto sem um referencial anterior mais condicionado implícita ou explicitamente a outros textos. Em A audácia dessa mulher (2008), há um trecho em que o narrador traz à tona, de forma quase imperceptível, o conceito de intertextualidade: Os livros continuam uns aos outros, apesar de nosso hábito de julgálos separadamente. Não fui eu quem disse isso, foi Virgínia Woolf. Limito-me a lembrar e concordar. E não apenas porque existe uma tradição literária em que esses livros se inserem, fazendo com que nenhuma obra possa ser um fato isolado e solitário, mas tenha sempre que ser o resultado de muitos séculos de se pensar em conjunto, de tal forma que a experiência coletiva está sempre por trás da voz individual. Mais que isso, porém a leitura aproxima livros diversos. Acontece o mesmo com aquilo que o leitor já leu antes e vai fazer dialogar com o que está lendo agora. Ou ainda com o que guardará do que está lendo neste momento e, em algum ponto do futuro, acionará para incorporar a sua vida ou a outras leituras. Livros que continuam uns aos outros. (MACHADO, 2008, p.194). Considerações finais
É preciso lembrar que René Wellek e Autin Warren na obra Teoria da literatura consideram a literatura como representação de uma realidade social, tendo também uma função social, havendo muitas obras literárias que refletem o pensamento e a época do seu criador. Também podem existir convergências entre a teoria e a prática do autor, considerando sua obra uma criação autônoma do processo social vigente, fazendo com
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que a sociologia da literatura investigue os limites desta conexão intertextual entre sujeito criador, objeto de criação e contexto cultural. Nesse sentido, a intertextualidade, que para Laurent Jenny é inerente à literatura, assimila de suas fontes a qualidade que lhe interessa para compor o novo texto. Nenhum autor é escolhido ao acaso; as intenções intertextuais possuem uma ordem de interesses que surge das vozes do autor para se transformarem em outras vozes que formarão as do leitor. Referências Bibliográficas ANDRADE, Mário de. Amar, verbo intransitivo. 17º ed. Rio de Janeiro: Editora Itatiaia, 2002. ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1994. v. II. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo- a experiência vivida. Tradução de Sérgio Milliet. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. 10ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. CARROLL, Lewis. Alice no país das maravilhas. Tradução de Clélia Regina Ramos. Ilustrações de Sir John Tenniel. n/d: Ed. Arara Azul, 2002. COMPAGNON, Antoine. O trabalho de citação. Tradução de Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1991. JENNY, Laurent et al. POÉTIQUE - Revue de Théorie et d'Analyselittéraires, n. 27. Intertextualidades. Tradução Clara Crabbé Rocha. Coimbra: Almedina, 1979. KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz .São Paulo: Perspectiva, 1974.
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LEITORAS DE BEST-SELLERS: O QUE DETERMINA SUAS ESCOLHAS? Mayara Regina Pereira Dau Araujo (Unioeste) O presente artigo busca compreender a predileção dos atuais leitores pelos bestsellers em detrimento dos clássicos da literatura. Para isso, levantamos uma breve discussão em torno da atribuição do valor de uma obra literária definido pela crítica e do valor de uma obra dado pelo leitor comum. O corpus é composto por relatos de sete mulheres leitoras de best-sellers sobre suas praticas de leitura. Todas as entrevistadas são do sexo feminino, de diferentes idades e atividades. Contudo, a escolha de mulheres não foi proposital, isso se deve a dificuldade em encontrar pessoas do sexo masculino dispostos a revelar suas práticas de leitura. A “oscilação dos valores na bolsa literária”1 Passamos a uma breve discussão em torno do valor de uma obra literária. Esse tema nos remete ao cânone literário, definido por Harold Bloom da seguinte forma: Originalmente, o cânone significava a escolha de livros em nossas instituições de ensino, e apesar da recente política de multiculturalismo, a verdadeira questão do cânone continua sendo: Que tentará ler o indivíduo que ainda deseja ler, tão tarde na história? [...] Quem lê tem de escolher, pois não há, literalmente, tempo suficiente para ler tudo, mesmo que não se faça mais nada além disso (1995, p. 23).
Podemos dizer que o cânone literário é uma seleção das melhores obras de todos os tempos. Para Bloom, o que torna canônicos um autor e uma obra é a “estranheza, um tipo de originalidade que ou não pode ser assimilada ou nos assimila de tal modo que deixamos de vê-la como estranha’’ (1995, p. 12). Há muitas linhas teóricas com diferentes abordagens de estudo, podendo ser de perspectiva imanente, transcendente ou imanente-transcendente. Cada linha de estudo enaltece mais ou menos determinados aspectos de uma obra literária, conferindo-lhe 1
Termo usado por Leyla Perrone-Moisés em seu livro “Altas Literaturas: escolhas e valor na obra crítica de escritores modernos” (1998, p. 17).
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valorações; algumas atribuem valor de acordo com o que é intrínseco à própria obra, outras devido à capacidade da obra de tratar de fatores externos e sociais. Enquanto outras agregam valor à obra que é capaz de tratar de forma competente as duas abordagens. A obra literária é um todo complexo, não é possível abordá-la por inteiro, por isso os teóricos buscam voltar seu olhar para alguns elementos e não para todos. A discussão que desejamos provocar é buscar perceber se o que se é levado em consideração para uma obra se tornar canônica depende exclusivamente de características imanentes, transcendentes ou imanentes-transcendentes da obra, ou será que esse valor também não é dado de outra forma? Algumas obras entraram para a reservada tradição canônica não somente devido a atributos estéticos, mas, principalmente, porque foram escolhidas como obras geniais pelas “instâncias de legitimação”, estas bem definidas por Márcia Abreu: Essas instâncias são várias: a universidade, os suplementos culturais dos grandes jornais, as revistas especializadas, os livros didáticos, as histórias literárias etc. Uma obra fará parte do seleto grupo da Literatura quando for declarada literária por uma (ou de preferência, várias) dessas instâncias de legitimação (ABREU, 2006, p. 40).
Para uma obra ser considerada “Literatura” deve passar pelo crivo dessas instâncias que “certificam” que as obras “escolhidas” são as indicadas para se ler, que essas sim levam a uma reflexão profunda, são criadas para fins estéticos e não mercadológicos. Já as obras da “literatura de massa’’, como livros de bancas de jornais, ou os best-sellers, de acordo com a Academia, não podem fazer parte da “alta literatura’’, pois sua criação é motivada pelo mercado, são criadas seguindo “fórmulas de venda”, sem originalidade, com a principal intenção de agradar ao leitor. As questões de valor abarcam diversas outras questões. Nesse sentido, é importante sempre a abertura
e
a
atenção
para
os
diversos
estudos,
proporcionando
uma
transdisciplinaridade, levando em consideração que a literatura pode e deve ser tratada sempre por diversos olhares e não somente um. E para os leitores comuns, o que é considerado Literatura? Será que eles levam em consideração os aspectos internos ou externos de uma obra para a escolha de uma leitura? Para pensar sobre essas questões, entrevistamos sete mulheres de diferentes
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idades e atividades2 e elas nos deram algumas pistas sobre essas questões. Algumas se sentem mais atraídas por aqueles livros que fazem alguma relação com sua vida e com sua identidade3. Para melhor organização e análise das entrevistas, selecionamos parte dos relatos e distribuímos em três temas: 1. Leitura na infância; 2. Mediadores de leitura e 3. Escolhas conscientes: o olhar crítico do leitor comum. 1- Leitura na infância Em algumas falas, é recorrente a presença da escola durante a infância: Quando eu era criança tinha o hábito de ler gibis e alguns livros de literatura infantil, um deles falava sobre Brasília muito bom, só não me recordo o nome [...]. Na escola lia também livros como A tartaruga e a lebre, A pequena sereia enfim livros infantis (Aline).
A maioria delas se recordam de contatos com a leitura que ocorreram por intermédio da escola. Já Maria lembra de poucos títulos lidos na infância, e que também foram apresentados pela escola. Durante sua infância, o acesso aos livros não era tão facilitado como nos dias de hoje: Na minha época não tinha livros assim como tem hoje. Era mais livros da escola, me lembro do Meu pé de laranja lima e as Histórias de Pedrinho, acho que tinha uns 9 anos. A professora pediu para ler e fazer interpretação de texto, mas não lembro mais da história (Maria).
Interessante notar que durante a infância, o incentivo dado pela escola à leitura parece ser maior. Quando menores, os professores ainda mantêm, com mais frequência, o hábito de levar seus alunos até a biblioteca e deixá-los à vontade. Depois que passam para o Ensino Médio, muitos estudantes só passam na biblioteca quando necessitam de um livro para cumprir trabalho escolar. Esse estímulo a frequentar a biblioteca deveria permanecer entre os adolescentes. As leituras da infância não carregam o peso da obrigatoriedade e são mais livres, não se limitam apenas aos clássicos da literatura. 2
As entrevistadas foram identificadas pelos seguintes nomes fictícios: Rosana (26), Aline (24), Beatriz (16), Luana (16), Caroline (22), Pérola (39) e Maria (51) que possuem como atividade, respectivamente: professora de Matemática, acadêmica de Pedagogia, estudante do ensino médio em escola pública, estudante do ensino médio em escola particular, acadêmica de Farmácia, Copeira e Dona de casa. 3 Ver Identidade (BAUMAN, 2005) e A identidade cultural na pós-modernidade (HALL, 2006), entre outros.
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Contudo, na transição da infância para adolescência, esse gosto pela leitura acaba se perdendo pelo caminho por vários motivos. As leituras da infância ficam registradas para sempre na memória de algumas pessoas, mas não só relacionadas a uma lembrança desagradável de leitura, ao contrário, deixam uma marca positiva, uma semente, que se for cuidada, cultivada, não será perdida no momento dessa transição. Deixando o terreno propício para a formação de um leitor. 2- Mediadores de leitura Rosana foi despertada para a leitura pela sua irmã que, sem perceber, a atraiu para os livros por meio do exemplo. Se a criança desde cedo crescesse em um ambiente de leitura, vendo os familiares lendo, isso seria considerado como uma prática natural na família e seria internalizada sem muito esforço. É o caso dessa professora. A irmã nunca lhe “chamou para a leitura’’, apenas lia muito, e isso causou curiosidade em Rosana: “Na fase da adolescência, lia mais porque minha irmã lia e eu achava que devia ser muito legal”. Na escola eu lia porque era obrigada mesmo, aqueles livros brasileiros, dos escritores brasileiros e eu não era fã de nenhum deles não. Na verdade eu gostei daquele O seminarista, gostei mais por causa da história, mas assim, eu li sem interesse, por obrigação (Rosana).
Felizmente, a escola, dentro de suas imposições de leitura, não causa só más lembranças a seus alunos em relação aos livros lidos no período escolar. Em alguns casos, consegue, com a obrigatoriedade, despertar o interesse do aluno para alguma leitura. É recorrente ouvir que só é possível fazer com que alguém se apaixone pela leitura se você também for um apaixonado por ela. O maior propagador e incentivador da leitura será aquele leitor apaixonado, que foi tocado por alguma obra e que, por meio de seu entusiasmo ao falar do livro, despertará o interesse em outras pessoas. A escola tem um papel de grande importância na formação do leitor, especificamente no ensino de Literatura que se mostra deficiente. As aulas focam seus ensinamentos em escolas literárias, pouco oportunizando o contato com o objeto de estudo da disciplina: o livro literário. O aluno não se interessa pelas aulas, e quando sai da escola, apenas aprende o que é importante para os vestibulares, como os períodos
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literários, autores e obras principais, sobrando pouco espaço para a leitura integral e discussão do livro. Beatriz teve uma infância com vários livros à sua volta, graças ao incentivo de seu pai, que em tempos atrás tinha o hábito da leitura: “Sempre via meu pai lendo, ele lia jornal e sempre falava dos livros que lia. Os livros ficavam na estante da sala em minha casa, às vistas de todos [...]” (Beatriz). A menina teve muitos estímulos no decorrer de sua vida para se tornar uma leitora: 1. Sempre via o pai lendo; 2. Ele sempre falava dos livros que lia. 3. Os livros ficavam na estante da sala. Um processo de formação de leitor também se dá dessa forma. A menina tinha a figura de um leitor dentro de sua casa. Havia um exemplo para ela. O pai também costumava falar das leituras, incentivando e instigando a filha a ler e, além disso, havia livros em sua casa, à disposição, às vistas em uma estante na sala, diminuindo a imagem sacralizada e inacessível que existe em torno de um livro. Nesse caso, ela adquiriu o interesse pela leitura porque existiu um mediador e o acesso facilitado aos livros. A falta de mediador e a dificuldade de acesso aos livros para algumas pessoas são pontos que podem ser determinantes para a não formação de um leitor. Notamos nas falas das entrevistadas, que muitas têm acesso a alguns livros por intermédio de indicação ou empréstimos de colegas, como é o caso de Caroline: “Depois, dentro da escola, com os amigos é que eu fui descobrir outras literaturas, aí comecei a ler Harry Potter e não parei mais” (Caroline). O livro Harry Potter, logo que foi lançado,
tinha um valor elevado, contudo, milhares de jovens leram, contrariando o discurso de que as pessoas não leem porque os livros são caros. Se não se tem dinheiro para comprar, se pega emprestado. Caroline, de todos os sete livros lançados do Harry Potter, gastou somente com um, o restante leu por meio dos empréstimos. A menção à revista Avon também aparece nessas falas: “A maioria dos livros compro pelo site da livraria Saraiva e pela revista Avon que é mais barato, sem perder a qualidade” (Rosana).
Pérola não têm muitos livros em casa, passou a adquiri-los recentemente. Começou a se interessar por causa da vizinha que lhe emprestou um título. Pérola gostou e passou a comprar. A vizinha também lhe indicou uma forma mais barata de adquirir: o catálogo Avon: Uma vizinha minha me emprestou o Jesus, o maior psicólogo que já existiu, aí gostei e comprei pra mim também. [...] ela me falou que
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dava para encomendar da Avon, daí passei a comprar por lá. Todos os que tenho pedi de lá, são mais baratos (Pérola).
Maria, durante boa parte de sua vida, não teve o hábito de ler. Quadro esse que vem mudando. Atualmente, toda vez que sobra um tempo ela está lendo e já tem uma lista dos preferidos: “Atualmente estou lendo 20 passos para a paz interior do Pe. Reginaldo Manzotti. Gosto muito. Também já li A cabana, 10 respostas que vão mudar a sua vida do Pe. Reginaldo também e Ágape do Pe. Marcelo Rossi’’ (Maria). A leitora teve conhecimento desses livros por meio do rádio. Mais uma vez uma mídia contribuiu para despertar o gosto pela leitura, assim como o cinema: “As do Pe. Reginaldo foi pelo programa de rádio que ele tem, que escuto todos os dias, daí o primeiro minha filha me deu e o segundo comprei da Avon. O Ágape também comprei da Avon e A cabana peguei da minha filha’’ (Maria). Nesse caso a situação se inverte, temos um exemplo de filhos incentivando os pais a ler, ao invés do que ocorre comumente, pais incentivando filhos. Esse também é um bom exemplo de que nunca é tarde para se apaixonar pelos livros. Maria só passou a se interessar porque se deparou com um livro que fez sentido em sua vida, o que não aconteceu com a leitura dos clássicos feita anteriormente, na qual encontrou dificuldades em compreender os sentidos da história. Maria, inicialmente, foi incentivada pelo programa de rádio que ouvia. Assim como Luana que se interessou pelos livros que foram adaptados ao cinema. A influência da mídia pode ser considerada como um dos motivos pelo qual aumentou tanto a leitura entre as pessoas. Claro que não se pode esquecer que essa influência tem por principal objetivo a venda do produto ao leitor. A divulgação, a transformação de alguns livros em filmes, tem os atraído. Adorno e Horkheimer (1947) analisaram alguns meios de comunicação, como o rádio, o cinema e a televisão e sua inserção na vida dos cidadãos norte-americanos. Hoje ainda podemos falar da influência da “indústria cultural’’ sobre as pessoas. A mídia tem esse poder. Ela traz duas facetas, a positiva e a negativa. Com os avanços tecnológicos, a internet, o rádio, a televisão e o cinema, o acesso à informação se torna mais facilitado. O lado positivo disso, é que mais pessoas estão tendo acesso a mais livros. Hoje, há um marketing maior na divulgação de alguns livros, semelhante à venda de
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outros produtos. É possível ver propagandas de livros na mídia televisiva e internet como também ouvir pelo rádio. O lado negativo disso é que a apelação publicitária acaba transformando o livro em um bem de consumo rápido. O marketing excessivo incute nas pessoas uma certa necessidade por determinado produto. Muitos decidem adquirir algum livro de tanto ouvir falar dele, produzindo uma curiosidade maior nas pessoas. A publicidade tem a responsabilidade de seduzir para a aquisição de um determinado produto. O lado positivo disso é que a mídia aguça a curiosidade do leitor. No corpus desse trabalho, poucas foram as vezes em que a escola foi citada como incentivadora ou responsável pelo hábito de leitura entre essas mulheres. Nos poucos casos de sucesso citados, foi por meio de alguma leitura que foi imposta para fazer algum trabalho, mas que o aluno gostou, instigou seu interesse. A escola poderia aproveitar esses momentos de “simpatia’’ de seus alunos com os livros, para fazer um trabalho de análise, leitura e indicação de outras obras semelhantes para, assim, dar ferramentas para que seus leitores comecem a ler e se tornem leitores maduros e independentes durante suas vidas: “Leitor maduro é aquele para quem cada nova leitura desloca e altera o significado de tudo o que ele já leu, tornando mais profunda sua compreensão dos livros, das gentes e da vida” (LAJOLO, 1984, p. 53).
A marginalização da chamada “literatura de massa’’ não é o mais aconselhável, já que essa atitude não contribui para despertar o encantamento dos alunos pelos livros. O que deve ser revisto é a abordagem que é feita dos clássicos em sala de aula. O professor poderia partir das leituras conhecidas dos jovens para, posteriormente, apresentar novas leituras. Partir do conhecido para o desconhecido: [...] é necessário que o ensino da Literatura efetive um movimento contínuo de leitura, partindo do conhecido para o desconhecido, do simples para o complexo, do semelhante para o diferente, com o objetivo de ampliar e consolidar o repertório cultural do aluno (COSSON, 2006, p. 47-48).
Para tanto, é muito importante o contato com diversos tipos de leitura, para que se crie uma base de leituras que ampararão as próximas que virão: Há, então, que expor o aluno a uma gama variada de textos, se realmente se quer que ele melhore sua leitura. E melhorar, aqui, nada tem a ver com a memorização ou velocidade de leitura. Tem a ver,
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isto sim, com níveis sucessivos e simultâneos de significados que o leitor (aluno) vai construindo para o texto (LAJOLO, 1984, p. 58).
Dessa forma, o papel dos mediadores de leitura, alguns citados aqui: pais, irmãos, amigos; são de extrema importância na formação de um leitor. E, o mais importante mediador, o professor, que saberá aproveitar a bagagem de leituras iniciais de seus alunos para fazer relações com outras obras e apresentar, de forma mais prazerosa, sem obrigatoriedade, outros livros a seus alunos e deixá-los receptivos para que, depois de deixarem a escola, possam se tornar leitores independentes. 3- Escolhas conscientes: o olhar crítico dos leitores comuns Maria só foi ter um contato maior com a literatura aos 34 anos quando retornou aos estudos para concluir o ensino médio: “No ensino médio nós líamos muito. O professor de literatura pedia muitos livros clássicos, romances, Jorge Amado, O cortiço. Não gostava por causa da linguagem, muito difícil, cheio de “vosmicê’’. A leitora foi apresentada aos clássicos da literatura, contudo não se familiarizou com a linguagem, não se interessando pela leitura dessas obras. A linguagem aparece mais uma vez como justificativa para não adesão à leitura dos clássicos, facilitando a preferência pelos livros atuais, que se utilizam de linguagem mais simples. Rosana também demonstra muita criticidade ao falar sobre seus livros prediletos, contrariando a opinião de muitos intelectuais que acreditam que os leitores de bestsellers são consumidores passivos de toda essa literatura: Livro brasileiro tem uma linguagem difícil de ler, é muito descritivo, então assim, às vezes você perde a paciência para ler porque ele escreve muito uma coisa e a história acaba se perdendo, pelo menos é o meu ponto de vista. E os outros não, que contam um fato, e é corriqueiro, é rápido, uma coisa que você já vê resultado e vê o que aconteceu em seguida (Rosana).
Ela também cita os principais livros que marcaram suas leituras: “O Menino do pijama listrado, Saga do Crepúsculo, A última música, Querido John, e um livro que a personagem do Crepúsculo lê na história: Morro dos ventos uivantes e os livros do Dan Braw (Rosana). Temos, neste caso, um exemplo de como a leitura de best-sellers pode
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levar sim à leitura de um clássico. Rosana se sentiu atraída pela obra lida pela personagem dentro da história do Crepúsculo e procurou lê-lo também. Hoje ela faz parte da sua lista de livros preferidos. A leitura de várias obras acaba rememorando outras além de preparar o leitor para o próximo livro, aumentando seu repertório de leituras. Para Aline, os livros podem ter diversas funções. Pode servir para distração ou até mesmo para adquirir conhecimentos, depende do objetivo que se pretende alcançar quando se escolhe um livro para ler: Gosto muito do imaginário então me interessei pelos livros da autora Stephenie Meyer, que virou febre nos adolescentes e adultos também. Quem ama educa, tive que ler para seminário na faculdade também, [...], enfim temos que buscar na leitura o que precisamos para nosso conhecimento e também pra distração (Aline).
A resistência dos leitores frente às obras da tradição literária, muitas vezes, ocorre por esse motivo. São livros antigos, com linguagem diferente da usada atualmente, o que faz com que os leitores, muitas vezes, não consigam romper a barreira para adentrar na leitura, ficam bloqueados pela linguagem, e se ainda não houver um estímulo ou um mediador para ajudá-lo a desvendar os mistérios da leitura, acabam abandonando e não voltando mais para os livros. Daí a importância da leitura se iniciar na infância e também da leitura de gibis, revistas, contos de fadas. Todas as leituras, se realizadas com frequência, vão auxiliar no amadurecimento do repertório de leitura, tornando mais fácil o processo de formação do leitor. As leituras mais “fáceis’’ do ponto de vista da crítica literária, podem ser importantes para construção de uma bagagem cultural e familiarização com a leitura, o que, com certeza, ajudará a ingressálo com maior facilidade em outras obras. [...] O leitor comum, que continua a procurar nas obras que lê aquilo que pode dar sentido à sua vida, tem razão contra professores, críticos e escritores que lhe dizem que a literatura só fala de si mesma ou que apenas pode ensinar o desespero. Se esse leitor não tivesse razão, a leitura estaria condenada a desaparecer num curto prazo (TODOROV, 2009, p. 77).
Daí vem a grande importância da literatura considerada mercadológica, de “massa’’. Esses livros estão encantando leitores pelo mundo e despertando o amor pela leitura entre várias pessoas, “parece ser, simultaneamente, a causa e a solução do
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problema” da leitura entre os jovens (ZILBERMAN, 1987. p. 7). Ao mesmo tempo que são leituras que os atraem, incutindo o hábito de ler em muitos jovens, essas obras não são bem vistas e não parecem se apresentar como uma forma eficaz de formar um leitor crítico-literário, na opinião de alguns. Caroline descreve com riqueza de detalhes as sensações durante a leitura do livro, e sem esquecer de destacar que o livro era “enorme’’, não sendo esse um problema para ela: O livro é enorme e eu me apaixonei porque é uma coisa que te emociona que você quer ver. Eu lembro que quando eu parava [...], eu ficava “meu Deus eu vou perder essa cena!’’, como se fosse um filme, aí eu lembrava que era um livro e que podia ler a qualquer hora. [...] Todo capítulo acaba em alguma coisa do tipo “e ele abriu a porta’’, daí você não consegue parar (Caroline).
A história absorveu a leitora, fazendo até com que ela chegasse a confundir com a realidade, se tornando íntima dos personagens e sofrendo junto com eles. Essas são algumas das sensações que fazem com que um leitor se apaixone pela leitura e que os livros e os personagens fiquem marcados em sua memória. Entretanto, a mesma intimidade com o livro e os personagens não ocorreu no momento que a estudante tentou ler Dom Casmurro e Senhor dos Anéis. Li, porque todo mundo falava que Senhor dos Anéis era mais clássico [...] é um livro muito detalhista, porque a escrita também é antiga, apesar de ser um mundo novo como o Harry Potter que é todo encantador, é uma literatura muito detalhada, tanto que você se perde da história. [...] Também não é como os clássicos, tipo se você comparar com Machado de Assis, ele é um pesado diferente, é mais cabeça, ele tem uma linguagem mais antiga com uma história um pouco mais parada, lógico, a história é envolvente, se você for ver Dom Casmurro é uma história super envolvente, só que o jeito que ele conta... eu não me senti tanto com o Bentinho, sofrendo com ele, me senti, tipo, to vendo sim, mas de longe, alguém está me contando e no Harry Potter eu estava ali no meio, é bem diferente, eu me senti ali dentro (Caroline).
Carol se mostra uma leitora muito crítica ao descrever os motivos pela preferência de Harry Potter a Dom Casmurro. Mostra que tem capacidade de comparar as obras que lê. Isso faz parte da atitude de um leitor maduro que se mostra capaz de acatar ou descartar obras de acordo com seu gosto pessoal. Essa liberdade do leitor parece faltar nas escolas, dificultando a formação de um leitor no ambiente escolar:
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[...] o aluno tem, tanto quanto o professor, o direito de não gostar de um texto e, consequentemente, de se recusar a trabalhar com ele. Esse mínimo de liberdade, garantido em situações comuns de leitura, a qualquer leitor (que começa a ler um livro e para, porque percebeu que não faz seu gênero) parece às vezes exilado do dia-a-dia escolar (LAJOLO, 1984, p. 54).
A distância do leitor em relação à obra pode se dar pela distância da linguagem e tempo da obra. O leitor atual não consegue se identificar tão facilmente com personagens antigas de épocas anteriores. Nesses momentos, é de grande necessidade a participação de um mediador para relacionar os diferentes mundos e ressignificar essa obra na atualidade. A linguagem do livro mais uma vez é citada como um dos pontos principais pela preferência por esses livros. Carol compara com a novela, como se a cada capítulo ficasse um suspense no ar. De acordo com ela, Harry Potter tem essa qualidade. Sempre deixa um “fiozinho’’ para que o leitor não perca o interesse: “Pra começar, tem duas coisas, o tipo de linguagem que é uma linguagem tipo novela, é um negócio que te deixa um fiozinho para o próximo capítulo, te intriga a descobrir [...]” (Caroline). Essa pode ser uma boa explicação para esses leitores “devorarem’’ livros com muitas páginas em poucos dias. Esse é um recurso realmente muito utilizado nas novelas, como ela mesma comparou. Isso prende o telespectador e garante sua volta em frente à televisão no outro dia. Pérola não tinha o hábito da leitura, assim como Maria está adquirindo esse hábito depois de adulta. Ela cita alguns títulos preferidos: “Jesus, o maior psicólogo que já existiu do Augusto Cury; Pais Brilhantes, professores fascinantes do Augusto Cury, A casa da divina providência do Jorge Luis Baldasso e o Monge e o Executivo” (Pérola). As duas leitoras se identificaram com obras que são consideradas do gênero autoajuda: “É que eles são de autoajuda, e realmente ajudam a gente a pensar na nossa vida, nas nossas atitudes. Eu mesmo estava tendo alguns problemas com minha filha mais nova e o livro Pais brilhantes me ajudou muito com ela” (Pérola). Pérola e Maria explicitaram sua
predileção por essas obras porque têm as ajudado a melhorar seus relacionamentos e mudar suas atitudes cotidianas. Eles claramente fazem relação com suas vidas, trazendo dramas pessoais e familiares e apontando caminhos. As pessoas tendem a se interessar por histórias que são familiares à sua realidade ou, ainda, que apresentam outros
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mundos e que fazem com que o leitor se sinta imerso dentro dele. São essas as sensações que fazem o leitor permanecer na leitura. Quando a história é capaz de envolvê-lo e lhe trazer emoções variadas. A grande diferença entre o leitor comum e os estudiosos de literatura é que o primeiro, quando busca uma leitura, a procura para satisfazer alguma necessidade, achar alguma informação ou simplesmente se divertir. Esse leitor não deseja se tornar um profissional da literatura. A melhor obra sempre será aquela que faz algum sentido na vida daquele leitor. Só nos identificamos com um livro quando ele nos fala à nossa vida, ou até mesmo quando encontramos situações que não tem nada a ver com nossa vida real e, por isso mesmo, elas nos tocam, porque nos mostram que existe o “outro”. O interesse pela leitura só surgirá a partir disso, de livros que nos fazem chorar, rir, refletir. Referências ABREU, Márcia. Cultura letrada: literatura e leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2006. ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. A Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1947. BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental: Os livros e a escola do tempo. Trad. SANTARRITA, Marcos. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995. LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. In. ZILBERMAN, Regina (org). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984, p. 50-62. TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. MEIRA, Caio. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. ZILBERMAN, Regina (org). Os preferidos do público: os gêneros da literatura de massa. Petrópolis: Editora Vozes, 1987.
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MONTEIRO LOBATO: REFLEXÕES SOBRE A TEXTUALIDADE ELETRÔNICA EM A MENINA DO NARIZINHO ARREBITADO (2011)
Michelle de Souza Prado (UEM)
Resumo: Em 1920 foi lançado A menina do narizinho arrebitado, livro que abriu distintas veredas no cenário impresso de então. A primeira delas é o fato de ser considerada a obra de Monteiro Lobato que o iniciou na literatura infantil e o tornou o primeiro nome emblemático no sistema literário em questão, como um incentivador das letras infantis em terras brasileiras. Paralelamente, foi também o primeiro capítulo a compor Reinações de Narizinho e agora, quase um século depois é o precursor da versão interativa de livros nacionais. Em 2011, a Editora Globo publicou a versão touch para iPads. É, justamente, esta nova plataforma que se apresenta o referido texto lobatiano que nos interessa nesse artigo. Em um momento inicial nossas reflexões discutirão sobre a dificuldade de levantamento das práticas sociais de leitura, em segundo tópico as formas de resistência que a escrita se reveste para não deixar o mercado literário arrefecer, na sequência reflexões acerca da apresentação em iPad da narrativa de Lobato e por último a necessidade de um leitor imersivo ou multimodal das tecnologias digitais. Palavras chaves: Interatividade; Monteiro Lobato, Leitor Multimodal; tecnologias digitais. Introdução:
Os textos não existem fora dos suportes materiais (sejam eles quais forem) de que são os veículos. (CHARTIER, 2002, p.61-62)
Ao longo de muitos anos o acadêmico Roger Chartier tem se debruçado sobre a história da cultura dos livros e a trajetória da cultura da leitura e da escrita como práticas sociais. Em Os desafios da escrita (2001), obra da qual retiramos a epígrafe acima, o francês discute que em se tratando do assunto textualidade, muito já foi e é especulado, como por exemplo, a substituição do livro impresso pela tela, a chamada terceira revolução livreira, as mudanças de postura corporal enquanto em contato com o que se lê, a própria transformação do suporte, da argila ao papiro, do papiro ao códice, do códice ao touch screen e até mesmo, questionou-se o que parecia não poder ser questionado, a figura do autor e do leitor em si: Em 1968, num ensaio que se tornou célebre, Roland Barthes (1984) associava a onipotência do leitor e a morte do autor. Destronado de sua antiga soberania pela linguagem, ou melhor, pelas “escritas múltiplas, provindas de várias culturas e que se relacionam em diálogos, em paródias, em contestação”, o autor cedia sua preeminência ao leitor, visto como “este alguém que mantém reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito”. [...] A
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essa constatação do nascimento do leitor sucederam os diagnósticos que lavraram seu atestado de óbito. [...] Enfim, as pesquisas sociológicas dedicadas à faixa precedente, entre 15 e 19 anos, registram o recuo da leitura e, sobretudo, o fraco status do livro em sua própria apresentação. (CHARTIER, 2002, p.101-103)
De tudo que se é arrolado sobre as práticas de leitura, e a partir de então, o coro de vozes proféticas que se avolumam para anunciar, ora o fim de certas instâncias ora o surgimento de outras, é categórica a afirmação do historiador sobre a imutabilidade de uma delas: “Contra a abstração dos textos, é preciso lembrar que as formas que permitem sua leitura, sua audição ou sua visão participam profundamente da construção de seus significados”. (CHARTIER, 2002, p.62) Portanto, são justamente os significados que se apoderam a relação do leitor e a textualidade eletrônica em A menina do narizinho arrebitado (2011), do escritor Monteiro Lobato, que intencionamos refletir ao longo da presente exposição. Não há texto fora do suporte que ele se dá ao leitor. Qualquer dispositivo que a unidade linguística esteja inserida, quer seja as formas analógicas como o papel quer seja formas digitais, pressupões maneiras de ler, que o diferem das categorias anteriores e lhe dão as feições do “novo”. Contudo se a princípio a obra traga protocolos de leitura, é mister reconhecer que é pouco provável açambarcar todas as apropriações realizadas pelos modos que se processou a leitura de fato. Ao cotejarmos possíveis vestígios dos protocolos de leitura utilizados pelos usuários o que temos? Vemos nos folhas dos livros enfileirados em estantes por bibliotecas as marcas do tempo, pequenas anotações marginais, riscos e na captura da tela, com exceção dos riscos, advindos da ação humana, a mesma performance, sobretudo quando conferimos o digital que relatamos, muito é imitado pela versão do século XXI da narrativa sobre Narizinho e Emília: o amarelado de um livro que admite ter muitos anos, a disposição próxima a uma folha in octavo, em nada devendo às dimensões dos livros convencionais. Sobre isto, a inexistência da passagem do leitor pelo que foi lido, Chartier em Do livro à Leitura (1996), diz: O conhecimento dessas práticas plurais será, sem dúvida, para sempre inacessível, pois nenhum arquivo guarda seus vestígios. Com maior frequência, o único indício do uso do livro é o próprio livro. Disso decorre também sua imperiosa sedução. (CHARTIER, 1996, p.103)
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Com o exposto, queremos deixar clara a dificuldade de mapear os percursos de um leitor, seja contemplativo, aquele que se mantém com o objeto em mãos, fixo e imutável, seja o imersivo, aquele que cede ao pacto proposto pelos procedimentos da tipografia virtual e segue todas as imagens, sons e letras escondidas pelas camadas do écran. Ponderações sobre as formas de resistência do espólio de Gutemberg: Se é tão complexo palmilhar os meandros percorridos pelo leitor, independente da interface que se apresenta, porque então a materialidade do impresso se renova? Porque da mesma forma que na nossa fase de transmissão oral, surgiu à necessidade de se grafar o conhecimento em suportes perenes, pois “muitos dados eram perdidos durante o relato de fatos, por conta da morte de pessoas mais velhas, ocasionando perdas irrecuperáveis de informação pelo grupo social”. (GONÇALVES, 2010, p.27), a própria plataforma teve que se renovar ao longo dos anos para atender nova gama de leitores e acondicionar novos formatos de textos: Tal vinculação está arraigada a uma história de longa duração da cultura escrita e provém da sedimentação de três inovações fundamentais: em primeiro lugar, entre os séculos II e IV, a difusão de um novo tipo de livro, que ainda é o nosso, isto é, o livro composto de folhas e páginas reunidas dentro de uma encadernação que chamamos códex e que substitui os rolos da Antiguidade grega e romana, em segundo, [...] nos séculos XIV e XV, o aparecimento do “livro unitário” [...] e, finalmente, no século XV, a invenção da imprensa [...]. (CHARTIER, 2002, p.22)
Conforme foi colocado no excerto acima, enquanto todas as outras formas se tornaram obsoletas, o livro unitário, datado do século XIV, alcançou os dias atuais. Sendo assim, pode-se dizer que as mutações das práticas tiveram poucas alterações, uma vez que entre o impresso encadernado e a folha virtual protegida pela tela eletrônica, há um significativo espaço temporal e mesmo assim em muito as páginas eletrônicas fazem mimeses da forma que usamos os volumes, quer na imitação do virar das páginas quer na imitação do sentido do escrito, da esquerda para direita, de cima para baixo. Com tantos redutos da memória, o membro do corpo social pode duvidar. Com o 3
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aparecimento dos livros, pode questionar a voz sacerdotal que trabalhava por manter o status quo da oralização, uma vez que era a única detentora do saber. Com o surgimento de aparelhos que vinculam ondas eletromagnéticas (televisores e computadores, por exemplo), dando o poder da simultaneidade, o sujeito ganhou o poder de duvidar também do que só se sabia através do que tinha sido escrito. A página, dobra elementar do texto, passa a não ser a única detentora, como outrora aconteceu com a oralidade, do saber e da transmissão do mesmo: O saber deixa de ser apenas aquilo que me é útil no dia a dia, o que me nutre e me constitui enquanto ser humano membro desta comunidade. Torna-se um objeto suscetível de análise e exame. A exigência da verdade, no sentido moderno e crítico da palavra, seria um efeito da necrose parcial da memória social quando ela se vê capturada pela rede de signos tecida pela escrita. (LÉVY, 2010, p.95)
Ganhamos, sem dúvidas, o poder da dúvida devido às várias fontes, mas também ganhamos novas formas de sermos manipulados, novos profetas em quem acreditar, dependendo de como se posicionar no meio de tudo: se à revelia de tantos imperativos, se a par de tantas ferramentas. O fato que temos conferido muito de nosso conhecimento e memória às plataformas criadas pelo homem, desde números de telefones e datas de aniversário até a memória literária, mas muitas vezes, ainda que saibamos onde está, em algum lugar da prateleira ou da “nuvem” determinada obra e autor, não o retiramos do limbo que o colocamos. O homem ora aturdido, ora confortável por tantos clamores de aspecto plástico, cinético e sonoro como as ruas, a televisão, rádio, telefone e, mais recente em relação àquelas, a internet, não poderia deixar incólume sua prática de leitura, escrita, armazenamento e memória. As toneladas de tomos de livros agora se tornaram resilientes, cabem em um aparelho que pesa apenas alguns gramas e demonstra-se ser menos inerte que aqueles. O espírito do livro nunca morrerá apenas as formas de acesso a ele têm se alterado. Hoje, o indivíduo busca um aparelho que desempenhe várias funções e que o permita zapear por todas ao mesmo tempo: A convergência está ocorrendo dentro dos mesmos aparelhos, dentro das mesmas franquias, dentro das mesmas empresas, dentro do cérebro do consumidor e dentro dos mesmos grupos de fãs. A convergência envolve uma transformação tanto na forma de produzir
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quanto na forma de consumir os meios de comunicação. (JENKINS, 2009, p.44)
De um lado, o indivíduo à deriva em meio a tantos apelos luminosos, telonas, telinhas e teclas, de outro, a imprescindível relação de ambos. E desde a gênese desta relação, os tubos de raios catódicos da primeira tevê, até a mais moderna tela da atualidade, a de leds e a high definition, muitas críticas vieram a lume uma vez que o grande temor tem sido de que os intermináveis estímulos visuais e sonoros, seu texto caleidoscópico, entorpeçam o sentido dos seus usuários e desviem sua atenção da compreensão profunda e da capacidade reflexiva e de análise, “a TV reduz o mundo a fantasma, e bloqueia, portanto, toda a reação crítica e toda a resposta operativa nos seus adeptos.” (ECO, 2011, p.21). Vale ressaltar que boa parte desta ojeriza aos impactos pouco positivos apontados por muitos no uso destas ferramentas de cunho eletromagnético é pelo mesmo veicular tudo o que a cultura popular produz, contudo é nas próprias malhas da tecnologia que muito do erudito, como exemplo textos canônicos, têm sido salvos do total esquecimento, tanto pela recuperação na íntegra (ou quase na íntegra), como é o caso do que estamos a apresentar A menina do narizinho arrebitado (2011), como pelas apropriações que fazem da cultura letrada, caso de desenhos animados, séries, seriados, etc... Sim, este é um tema ao gosto dos Apocalípticos e Integrados (2011) de Umberto Eco. Se de um lado temos uma facilitação ao acesso de bens do aporte cultural, abusando de toda sorte de recursos visuais e digitais, por outro uma preocupação exacerbada mais com a modelação mercadológica do livro do que com sua transmissão pelas gerações. E, talvez, pensando neste “problema”, as reproduções, é que atinjam o outro e de maior monta, a fuga do esquecimento. De certo mesmo, o que resgatamos do ensaio de Eco é a noção de que um conceito completa a existência o outro, portanto tanto uma visão apocalíptica quanto uma integrada da ascensão de Lobato e outros nacionais ao circuito digital, leva-nos a compreensão de que mais tipos de leitores poderão ter contato com esta literatura infantojuvenil: E é nesses termos que a função dos apocalípticos tem uma validade própria, isto é, ao denunciar que a ideologia otimista dos integrados é
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profundamente falsa e de má fé. Mas isso acontece [...] justamente porque o integrado, tal qual o apocalíptico, assume, com a máxima desenvoltura (mudando apenas o sinal algébrico) o conceito de fetiche de “massa”. Produz para a massa, projeta uma educação de massa, e assim colabora para a redução a massa de seus próprios sujeitos. (ECO, 2011, p.18).
A apropriação eletrônica em A menina do narizinho arrebitado (2011). Ainda que, como já foi anteriormente destacado, a unidade do apanágio livresco é mantida na versão touch disponibilizada pela Editora Globo, as páginas da obra no suporte da Apple, são elaboradas mais no sentido de que o leitor seja um explorador de cada linha e canto da textualidade eletrônica do que um receptor passivo de todas as conexões oferecidas pela interatividade de A menina do narizinho arrebitado (2011). É, portanto, de suma importância um leito imersivo que saiba procurar pelas marcas que as distintas intervenções do programador, ilustrador, editor digital, sonoplasta tenham imprimido na tessitura da versão século XXI do texto de 1920. São agora estes os novos coautores de qualquer livro que ganhe as telas. Neste trabalho coletivo, respeitando a entidade de Lobato que paira com seu renome uma vez que estamos a discutir ao longo do artigo uma modalidade post mortem do autor, percebemos, mais uma vez uma contiguidade com o próprio livro, devido ambos sofrerem com as intervenções até chegarem ao seu momento cabal, como retratou Chartier em Os desafios da escrita (2001). Algumas vezes, como na célebre cena do baile de Narizinho com o Príncipe do Reino das Águas Claras, a música jorra em nós, leitores, sem que seja necessário fazer algo, ou seja, como um convidado que chega ao salão de festas e a primeira ação que lhe chama a atenção são os casais a valsar e a música que o busca desde o lado de fora. Em dadas situações, perscrutar a imagem em busca de conexões não é condição exclusiva para se acessar o texto, já noutras, escarafunchar o signo não-verbal como imagens e sons é condição primordial para a descoberta do signo verbal. A modalidade ultrassensível para toque é uma profusão de sentidos físicos, só não contamos com o olfato e paladar, por enquanto, e um palimpsesto de ações (ler, manipular, escutar, vasculhar, etc...). É uma epopeia do olhar e dos dedos que saltitam por todos os detalhes buscando a vida prometida no reino fantástico de Monteiro 6
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Lobato. Como destacamos, há a resistência do suporte livro, o antecessor signo palpável dessa estória, mas ao mesmo tempo, até mesmo nos menores detalhes, acompanhamos o brotar da liberdade que a interatividade produz ao leitor. Busque observar, quando acessar o e-book mencionado que até a paragrafação foge dos moldes rígidos do papel justificado e acompanha os movimentos anárquicos das cores, formas e conteúdos propostos pelo touch screen. Não há a limitação de texto e imagem. Pode-se, nesta primeira reflexão, apontar o lado negativo da disposição do livro digital lobatiano. Concomitante ao fato de que a cada virar de página ganhamos um tempo maior por procurar todas as linguagens que nos são oferecidas, temos, justamente, o problema de que os recursos do iPad preenchem todos os espaços vazios da obra que o leitor busca preencher enquanto realiza seus atos de leitura. Por exemplo, quando a música do salão do baile em honra à neta de Dona Benta se inicia, ele já dá o tom para nossa imaginação, quando gostaríamos de por nossa conta, dar o ritmo da valsa, idealizar as cores do vestido de Narizinho, etc... O visionário Monteiro Lobato talvez não ficasse muito satisfeito com o que estamos a fazer, pós os idos anos vinte, com o texto, uma vez que a própria proposta editorial do escritor era outra, exigia de seus ilustradores que não sobrecarregassem o pincel, mas que deixassem o traço mais leve e “inacabado” afim de que as crianças pudessem contribuir com o risco. (BERTOLUCCI, 2005). É certo que o assunto é amplo e inesgotável. O que gostaríamos de suscitar ao longo deste texto é como o primeiro livro brasileiro em versão para iPads flerta com os novos consumidores e com os novas plataformas de leitura lembrando que é uma narrativa que não foi criado para tal finalidade, como tem acontecido muito nos últimos tempos, e que sofreu apropriações para tal fim. À guisa de conclusão: Fala-se que as pessoas leem pouco. Contudo, em nenhuma outra idade da civilização os sujeitos foram tanto instados a ler. Outdoors, panfletos, propagandas, internet, mensagens de texto por celular, etc... E hoje somos muito mais exigidos a ser produtores: Facebook, Twitter, Instagram, Whatsapp e toda parafernália de redes 7
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sociais. O que acontece é que, devido a tantos sedutores expedientes, muitas vezes debruçar-se sobre a leitura de um livro impresso de Monteiro Lobato, ou mesmo outro, que tenha por condição sine qua non um sistema imposto em seu protocolo do ler ligado à estabilidade do signo e que pouco permita um exercício ativo, com tantas urgências a pulularem aos nossos olhos, pode ser uma tarefa sempre deixada para depois. O olho, nos últimos tempos, tem se acostumado a flanar por todos os chamados de cores, sons e significados ao seu redor e se deter no que mais lhe fascina. Desta forma, foi audacioso o projeto de transformar A menina do narizinho arrebitado (2011), em versão para iPads com a finalidade de conclamar este leitor capaz de ser plural, movente, fragmentário, multimodal. E que seja justamente este ponto que duas discussões venham a se distinguir entre os estudiosos e entusiastas dos novos suportes de leitura: a primeira delas a necessidade que os redutos voltados ao ler (escolas, bibliotecas, universidades e afins) têm de se reinventar para que reposicionem sua função junto aos leitores como instâncias capazes de doutrinarem os usuários a não se perder em tantos arquipélagos textuais, uma vez que a imagem da alma humana cartesiana está caduca perante a tanta sobreposição de urgências (LÉVY, 2010) e a segunda, não menos importante, o fato de que a terceira revolução do livro pode vir a ser um novo patíbulo para aqueles que há muito tem sido deixado à margem tanto do processos de leitura e escritura quanto do processo de inserção digital: De outro lado, a revolução eletrônica, que parece repentinamente universal, pode também aprofundar, e não reduzir, as desigualdades. É grande o risco de um novo “iletrismo”, definido não mais pela incapacidade de ler e escrever, mas pela impossibilidade de aceder às novas formas de transmissão do escrito – que não são baratas, longe disso. (CHARTIER, 2002, p.112)
Ainda que a profecia de Chartier, já a se cumprir, não seja agradável, em que pese o fato de que todas estas transmutações servem para que sejam salvaguardados da necrose já debatida anteriormente aqueles que ainda leem obras como a que trouxemos e formar leitores entre os infantes. Aos tributários do prelo de Gutenberg, da cultura ocidental pautada na grafia, avancemos sobre estas novas pautas da história da escrita e da leitura, páginas estas labirínticas e interativas.
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Referências bibliográficas: Bertolucci, Denise Maria de Paiva. A composição do livro Reinações de Narizinho de Monteiro Lobato: consciência de construção literária e aprimoramento da linguagem narrativa. Tese de doutoramento: Denise Maria de Paiva Bertolucci. Assis, 2005 CARVALHO, Diógenes Buenos Aires de. Literatura infanto-juvenil: diálogos entre a cultura impressa e a cibercultura. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 6 - n. 2 - p. 154-169 - jul./dez. 2010. Disponível em . Acesso em: 26 out. 2013. CHARTIER, R. Comunidades de leitores. IN:_____. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XVI e XVIII. Brasília : Editora da UNB,1999, pp. 11-31. CHARTIER, R. Do livro à leitura. In:_______. Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, pp. 77- 106 CHARTIER, R. Os Desafios da Escrita. São Paulo: Editora UNESP, 2002. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. Vol. 26204. Random House Mondadori, 2011. GONÇALVES, Lilia Aparecida Costa. A leitura e as novas formas de ler: um breve histórico. Número XXXIV 2010 - www.unigranrio.br. Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades ISSN-1678-3182 JENKINS, H. Introdução: Venere no altar da convergência. In:____. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009, pp.27-55. LÉVY, Pierre. Tecnologias da inteligência: O futuro pensamento na era da informática. 2 ed (15 reimpressões). Tradução: Carlos Irineu da Costa. Editora 34. Rio de Janeiro: 2010. LOBATO, Monteiro. A menina do narizinho arrebitado. Editora Globo, 2011. ______. Reinações de Narizinho. 35. Ed. Brasiliense, 1983. SOARES, Magda. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educação e Sociedade 23.81 (2002): 143-160.
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LEITURA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: ANÁLISE CRÍTICA ACERCA DA COMPREENSÃO TEXTUAL Milena Teixeira Rosa (UEL) A leitura é uma atividade que está presente em inúmeras atividades humanas. É difícil imaginar um mundo sem leitura, assim, como ficaria impossível imaginar um mundo sem leitores. Mas que leitores são esses? Leitores que leem e compreendem? Ou leitores “decodificadores”, que quando leem não compreendem o que leram? Uma vez que, a leitura contribui para aquisição de informações e de conhecimentos, desenvolve o pensar, o senso crítico e outras habilidades cognitivas tão exigidas nas atividades cotidianas (WITTER, 1999; FREIRE, 1997; REZENDE, 2002). Sendo assim, a escola, os professores e, principalmente os cursos que preparam os (futuros) professores e leitores, em especial, Letras e Pedagogia, podem promover uma leitura que ultrapasse a decodificação das palavras e se torne uma leitura compreensiva, contribuindo para a formação de leitores mais críticos. Kleiman (2002) considera um leitor proficiente aquele capaz de compreender um texto, reconstruindo-o por meio de reflexões que permitem a interação com personagens, eventos, ações e intenções do texto. Para Freire (1997), a compreensão crítica da leitura não se encerra na decodificação da palavra escrita, mas inicia-se ali. E, quando se realizam leituras sem um aprofundamento da mensagem que o outro pretende comunicar, pode-se contribuir para a formação de leitores com uma visão reducionista do ato de ler. Pois, a compreensão do que se lê é uma habilidade importante e exigida em diversos momentos da vida. A leitura compreensiva geralmente exige do leitor conhecimentos prévios e de mundo sobre determinado assunto e, na falta desses conhecimentos a leitura pode ficar incompleta ou até mesmo incompreensível. Nem sempre os cursos de formação de professores conseguem formar novos leitores ou leitores mais competentes. Em pleno século XXI, professores, estudantes e a própria universidade acaba assumindo uma postura diferente com relação à leitura e a formação de (novos) leitores. (REZENDE, 2009; REZENDE & FRANCO, 2013). Isso se reflete na sociedade, quando se percebe a presença de leitores “decodificadores” e de leitores críticos, que conseguem analisar o que leram, estabelecendo conexões com outros conhecimentos prévios e de mundo.
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Para Fregonezi (2004), quando o leitor não possui conhecimentos prévios, linguísticos ou de mundo suficientes para compreender um determinado texto, a leitura e sua construção de significados pode se tornar difícil, complicando o entendimento do leitor e criar obstáculos para se chegar a uma compreensão leitora. Além do que, dependendo do tipo de texto, o leitor precisará ativar conhecimentos específicos para aquela leitura, por exemplo, não se lê um romance do mesmo jeito que se lê um catálogo telefônico, assim como não se lê um texto impresso da mesma forma que um texto virtual. Cada leitura tem suas especificidades e objetivos, assim como cada leitor possui sua maneira de ler que são próprias desta ou daquela leitura. Mesmo sendo considerada uma habilidade fundamental, que auxilia no desenvolvimento cognitivo, pessoal e profissional, a leitura e os processos que a envolvem parece não ser compreendidos. Nesse sentido, a leitura poderia ser (re) pensada, para que pudesse contribuir na (trans) formação de leitores, estudantes e professores. Rezende (2009) destaca que conforme o nível escolar aumenta a leitura parece ter sua importância reduzida. Isto se comprova na universidade, quando estudantes apresentam níveis de compreensão leitora e de rendimentos escolares aquém dos desejados (OLIVEIRA, BUROCHOVITCH & SANTOS, 2009).
Leitura e formação de professores: algumas considerações
De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), as atividades que envolvem a leitura visam à formação de leitores competentes. No entanto, percebe-se que cada vez mais os estudantes terminam o ensino médio e ao ingressar em um curso superior percebem que possuem algumas dificuldades com relação à leitura e sua compreensão. Nessa etapa o esperado é que o estudante já possua uma habilidade leitora que o favoreça na vida acadêmica e fora dela. Isso se torna ainda mais preocupante, quando se tratam de cursos superiores que formam professores e formadores de leitores (REZENDE, 2009). Muitos desses estudantes quando terminam o ensino superior conseguem desenvolver suas habilidades leitoras e de compreensão. Porém, há um grande número que continua com as mesmas dificuldades e muitos desses estudantes serão professores ou se tornarão professores com o passar do tempo (WITTER, 1999; REZENDE, 2002; OLIVEIRA, BUROCHOVITCH & SANTOS, 2009). Assim, se faz importante refletir sobre as conseqüências dessa formação que não forma leitores críticos, compreensivos e
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que possuam gosto por atividades que envolvem a leitura. Ao contrário, parece que a leitura, por vezes, acaba sendo vista como uma atividade não tão importante. E dessa forma, cabe uma reflexão: Como esse professor (não leitor) contribuirá positivamente para a formação de novos leitores? Rezende (2002) destaca a insatisfação que muitos acadêmicos possuem ao se deparar com um texto e não conseguir compreendê-lo como gostaria. Alguns se sentem incomodados pela forma como leem e, gostariam de ampliar suas capacidades leitoras, estabelecendo diálogos mais aprofundados com os autores estudados. Muitas vezes os cursos superiores acabam definindo como prioridade a quantidade de leituras e, aos poucos isso vai comprometendo a qualidade e compreensão do que se lê. Aliam-se a esse fator, o despreparo de alguns acadêmicos e professores em desenvolver habilidades de leitura, além da falta de conhecimento prévio sobre determinado assunto, entre outros (WITTER, 1999; REZENDE, 2002). Outro fator que também pode interferir na formação de professores e de leitores é que muitas vezes o cronograma do curso acaba influenciando a quantidade e qualidade das leituras que se pretende realizar. Há também uma disparidade entre o que se pretende ler durante um determinado período (semana, mês, bimestre, semestre, etc.) e os objetivos que se pretendem alcançar em cada uma delas (WITTER, 1999; REZENDE, 2002). Freire (1997) afirma que por diversas vezes ouviu queixas de estudantes com relação à leitura e os processos que a envolvem e, que na maioria dos casos, a leitura era percebida pela extensa lista de bibliografias que precisavam ser “devoradas”, ao invés de lidas e compreendidas. Ler não é uma atividade isolada, mas uma mescla de conhecimentos e saberes prévios que se encontram e se (trans) formam. A leitura compreensiva não pode se confundida com a memorização de dados, fatos e outras informações, mas sim, uma atividade em que se permite o desenvolvimento das capacidades linguisticas, culturais, históricas, sociais, além do conhecimento prévio e de mundo. O tempo destinado para discussões sobre a aprendizagem teórica da leitura nos cursos de formação de professores nem sempre é o desejável e, quando essas discussões acontecem acabam não sendo aprofundadas como poderiam. Nesse sentido, cabe ao (futuro) professor e formador de leitores, tornar-se um pesquisador, indo além das leituras sugeridas e/ou indicadas por professores e currículos acadêmicos (SILVA, 1988). Outro ponto que precisa ser discutido é o fato de muitos professores não destinarem um tempo para suas leituras, seja por conta da carga excessiva de trabalho e
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atividades paralelas a sua profissão, falta de condições financeiras para investir em livros etc. Pois, muitos professores trabalham o dia todo e ainda dedicam uma parte de seu tempo para dar aulas particulares ou atuar em cursos extras como tutores e outras funções. Existe ainda, o professor que além de trabalhar o dia todo, precisa exercer o seu papel de mãe/pai, dona (o) de casa, entre outros. Claro que, o que se espera é que o professor organize melhor seu tempo, reservando espaços para leitura, pesquisas e estudos (SILVA, 1988). A tarefa do professor não é ensinar a leitura, mas mediá-la para que o estudante possa trilhar o seu próprio caminho na busca de conhecimentos e de sua própria aprendizagem. Para Freire (1996), o professor que não lê, dificilmente conseguirá contribuir para a formação de leitores. E, quando se fala em leitores, não se trata apenas de leitores “decodificadores”, mas sim, de leitores críticos que compreendem o que leem e que conseguem estabelecer diálogos com o autor, com o texto e com o mundo. Leitores que não leem apenas um texto, mas que a partir de um texto conseguem formar pontes com as informações prévias que possuem e, formulam sua própria interpretação e leitura de um texto, relacionando com o contexto em que foi escrito e o contexto em que foi lido (REZENDE, 2009; SILVA, 1988). De acordo com Feres (2011), a escola não ensinar a ler, mas a estudar. Como pode o aprendizado acontecer sem a leitura? A impressão que se tem é de que a escola, ao invés de despertar o gosto pela leitura, acaba por torná-la uma obrigação. O livro transforma-se em um exercício de decodificação ou de gramática, cujo objetivo nem sempre é o descobrir a opinião dos estudantes com relação ao texto, mas sim, responder um questionário ou aceitar o que o texto impõe sem expor o que poderia ser mais apropriado para aquele contexto. Além do que, muitos textos estão descontextualizados da realidade dos alunos e, estes acabam lendo sem ter um objetivo ou conhecimento prévio sobre o que leem (SMITH, 1999; LERNER, 2002). Charter (2009) ressalta que cada leitor tem sua singularidade e que muitos leitores contemporâneos não passam mais pelo papel, pois preferem a leitura virtual, propiciada pelos meios eletrônicos. Para Lerner (2002), formar leitores implica em mediar uma aprendizagem que permita ao leitor ter autonomia para buscar informações que precisa em um texto. Pois, a leitura é uma ferramenta que permite a renovação de ideias e ao mesmo tempo exige reflexões e até mesmo mudanças de práticas, que podem ser ou não mediadas por outras leituras.
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A leitura crítica exige posicionamentos e mudanças nas práticas e para ser significativa precisa ser estimulada e não imposta. A leitura inicia-se antes da escola e continua depois dela, ler é compreender e para compreender é preciso que essa leitura seja significativa. O novo conhecimento substitui o anterior, que agora se torna velho e o que hoje é novo, amanhã pode ser transformado por outros conhecimentos, tornandose velho (SILVA, 1988; FREIRE, 1996; SMITH, 1999). Decodificar um texto não significa necessariamente lê-lo e, muito menos compreendê-lo. Pois, formar leitores está implicitamente relacionado com a formação de praticantes de leitura e, para isso, faz-se necessário que se ultrapassem as barreiras da decodificação de palavras e frases, estendendo a leitura do texto para seu contexto, analisando nas entrelinhas os elementos que a compõe. A escola assume o desafio de formar leitores, mas para isso precisa fazer com que a leitura seja mais do que um objeto avaliativo. Afinal, a leitura é um objeto de ensino e, ao mesmo tempo uma ferramenta essencial na formação de leitores e de formadores de leitores (LERNER, 2002). Segundo Geraldi (1991), na maioria das vezes, a leitura proposta no ambiente escolar baseia-se apenas em textos disponibilizados nos livros didáticos. E, com o passar do tempo, o estudante acaba lendo primeiro as atividades referentes ao texto para depois iniciar a leitura do texto. Dessa forma, muitos estudantes acabam preocupandose mais em responder as atividades propostas do que compreender o texto ou questionar o motivo pelo qual este texto foi selecionado para estar ali, além de não estabelecer uma relação mais profunda com o texto, como por exemplo, o contexto em que foi escrito e a realidade vivenciada no momento atual. Alguns estudos sobre leitura e formação de leitores (Orlandi, 1988; Kleiman, 1989; Santos 1989; Witter, 1991; Smith, 1999; Rezende, 2009; entre outros) verificaram que os níveis de leitura apresentados por universitários estão muito aquém do desejável. E, essa situação pode ser percebida até mesmo em cursos de licenciatura, em que se constataram baixos níveis de habilidade e compreensão leitora nos cursos que formam professores e leitores, como os cursos de Letras e Pedagogia. Dentre os fatores que colaboraram para essas constatações está o fato de que na leitura acadêmica nem sempre está incorporado o contexto pedagógico ou a realidade do estudante. Além do que, espera-se que no ensino superior o estudante demonstre fluência na leitura, domínio linguístico, lexical e de compreensão (ORLANDI, 1988; WITTER, 1991; REZENDE, 2009). Para Armelin e Marinho (2013) os professores
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podem iniciar a leitura por meio do levantamento de informações que os estudantes já possuam sobre determinado assunto, em seguida, poderá propor que sejam levantadas algumas hipóteses a respeito do texto por meio de discussões, debates, seminários e outros. De acordo com Fregonezi (2004), alguns professores de Língua Portuguesa entendem a leitura como uma atividade voltada à decodificação do código escrito. Assim, a leitura acaba por contribuir na formação de “leitores decodificadores”, que leem e não compreendem o que leram. Solé (1998) ressalta que o professor pode criar estratégias que facilitem a leitura e a formação de leitores, mas para isso é preciso muito mais do que apenas oferecer materiais para leitura. A mediação do professor nesse processo é muito importante, pois este irá propor leituras, questionamentos, reflexões, que contribuirão na compreensão do texto lido. Para Pfeiffer (2003), muitas vezes a instituição escolar exige do estudante um conhecimento linguístico superficial e acaba formando leitores observadores da linguagem e não leitores críticos, questionadores e que compreendem o que leem. Assim, o estudante (leitor) acaba não podendo acrescentar algo a sua leitura e, por consequência repete formal e até mesmo empiricamente o que leu, sem que haja uma reflexão. Dessa maneira, a leitura desenvolvida na escola tem sempre um mesmo objetivo, ou seja, levar o aluno a encontrar no texto as informações solicitadas no enunciado da atividade, como por exemplo, título do texto, nome do autor, personagens, etc. A preocupação em formar bons leitores tem se intensificado nos últimos anos, pois ler é uma habilidade que não se restringe a decodificação de códigos e grafemas, mas sim, da compreensão de todos os elementos se realizam no ato de ler. Além, é claro, do aspecto cognitivo e do domínio afetivo que fazem parte desse processo e, que nem sempre é realizado como deveria pelas instituições escolares. Ao contrário, em vez de despertar o prazer pela leitura a escola acaba por desvalorizá-la (CASTLE & CRAMER, 1994; SOLÉ, 1998). Kleiman (2004) afirma que o papel do professor não é apenas mediar o conhecimento, mas sim, construir seu próprio conhecimento através de pesquisas, leituras e participações em eventos na área da educação. Para Rezende (2009), para se formar leitores o professor também precisa ser um leitor que observa e compartilha com seus alunos diversos elementos do texto, assim poderá criar ambientes propícios para a formação de novos leitores e formadores de leitores.
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Segundo Payer (2003), de um lado tem-se elementos que contribuem para o desenvolvimento do gosto pela leitura, motivação para ler e entender o texto e, de outro, a não leitura, quando o estudante possui dificuldades para ler e compreender o que lê, levando-o a uma desmotivação para ler. Kleiman (2004) destaca que a leitura faz parte de um processo que envolve estratégias de percepção, memória, processamento, dedução e inferência que colaboram na compreensão do que se lê. A leitura faz parte da história de vida de cada pessoa, podendo ser determinada pelo seu contexto social (ORLANDI, 1988). No entanto, a história da leitura de cada um inicia-se muito cedo, podendo evoluir para uma motivação e interesse pela leitura tanto em casa como na escola. Essa motivação para ler pode acontecer por meio da oferta de materiais diversificados ou pelo contato com outros leitores, geralmente representados pela figura dos pais, avós, tios, professores, entre outros (DECHANT, 1961; SMITH, 1999). A leitura está presente em diferentes momentos da vida e, geralmente as pessoas gastam um tempo significativo com essa atividade, seja em casa, na escola, no trabalho, na igreja e etc. Para Bamberg (1975), a maior tempo gasto com atividades de leitura encontram-se na leitura de jornais, revistas e livros. Podendo, na maioria das vezes, acontecer sem que o leitor esteja procurando por ela. Por exemplo, ao aguardar sua vez no consultório médico a pessoa aproveita para ler uma revista, um jornal e até mesmo um livro. O fato de se possuir um domínio linguístico não é suficiente para despertar nas pessoas o gosto pela leitura e, existem algumas situações que impedem o crescimento do leitor, entre as quais se destaca muito mais a obrigação pela leitura do que a leitura enquanto uma atividade prazerosa e que pode colaborar no desenvolvimento das capacidades cognitivas, emotivas, entre outras. Para Goodman (1991), quando o leitor não compreende o que lê e nem para que lê, a leitura acaba não tendo objetivos e assim, dificilmente contribuirá para o amadurecimento das ideias desse leitor. Afinal, um texto pode ser lido de várias maneiras e com diferentes objetivos, ou seja, tudo dependerá do propósito estabelecido para essa leitura. Kleiman (2004) afirma que ao se determinar objetivos para uma leitura, esta pode auxiliar na compreensão do texto, pois o leitor poderá utilizar seus conhecimentos prévios antes de iniciar a leitura. Já para Meurer (1988), quando não há compreensão de um texto o leitor pode não ter utilizado adequadamente as estratégias de leitura ou então não possuir conhecimentos prévios sobre o assunto lido. Ou ainda, essa não
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compreensão pode estar relacionada ao texto, que não oferece ao leitor subsídios para uma leitura compreensiva. Lajolo (1994) lembra que a motivação ou desmotivação pela leitura pode estar relacionada com a forma que o texto é apresentado ao estudante. Pois, quando o professor contextualiza o texto a ser lido, relacionando-o à acontecimentos que os estudantes já conheçam, mesmo que seja um conhecimento superficial, o assunto a ser discutido torna-se mais interessante. Até porque que, os estudantes conseguem ativar seus conhecimentos prévios, fazer inferências, questionamentos, previsões, enfim, dialogam com o texto e a leitura passa a ser mais atrativa. Para Raupp & Smaniotto (2011), para mediar o processo de formação de novos leitores, o professor precisa ser um leitor. Para as autoras, todo o conhecimento mediado pela escola possui relação direta com a prática da leitura e, por consequência, com a aprendizagem dessa leitura, que precisa ultrapassar a decodificação e alcançar níveis de compreensão. Haja vista que, uma leitura não compreendida não pode ser significativa. A atividade de leitura permite o acionamento dos conhecimentos prévios do leitor e o auxilia na construção dos sentidos do texto (MARCUSCHI, 1999). Os conhecimentos prévios abrangem conhecimento linguístico, textual e o conhecimento de mundo, no qual o leitor se baseia para dar sentidos ao texto lido, ao mesmo tempo em que interage com esses e outros elementos (SOLÉ, 1998). Para Cagliari (1998), a decifração da escrita (leitura) faz parte de um processo iniciado antes mesmo da codificação (escrita). Essa afirmação já foi citada por Freire (1997), quando afirma que a leitura de mundo antecede a leitura da palavra. Ou seja, primeiro se aprende a ler o mundo, para depois se ler a palavra (escrita). O mesmo acontece na formação de (novos) leitores, pois estes já possuem conhecimentos prévios sobre o mundo, por meio das suas próprias experiências e também pelas experiências de outros, que são vivenciadas ou compartilhadas. Assim, percebe-se que quando o assunto é a formação de leitores e de formadores de leitores, não basta a instituição escolar mediar apenas os conhecimentos necessários para a “decodificação” da leitura, mas sim, mediar conhecimentos que integrem o que o estudante já sabe ao que ele precisa conhecer, apontando caminhos para uma leitura que seja compreendida e significativa tanto para o estudante como para o professor. Afinal, não adianta apenas decodificar o texto, é preciso compreendê-lo para além das palavras, entendendo as entrelinhas, relacionando-o ao contexto em que se está inserido, pois a leitura é algo presente em diversos momentos da vida, seja na
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escola ou fora dela (SOLÉ, 1998; SMITH, 1999; REZENDE, 2009; RAUPP & SMANIOTTO, 2011).
Considerações finais
A atividade que envolve a leitura precisa ser (trans) formadora e não algo frio e racional. A criança quando está aprendendo a ler, normalmente desenvolve um gosto fascinante pela leitura e, aproveita todas as oportunidades que lhe serão oferecidas, seja um livro, uma revista, um jornal, um panfleto com propagandas, uma letra estampada em um objeto ou na propaganda da TV, enfim, são tantas as chances de ler, que esta criança está encantada com o mundo que está ao seu redor. No entanto, com o passar do tempo tem-se a impressão de que a escola acaba por tornar a leitura em algo obrigatório, deixando de lado o ato de ler por prazer, para se informar, para descobrir novos modos de se pensar em algo e etc. Quando se estabelece objetivos para a leitura ou quando se contextualiza determinado texto de acordo com a realidade dos estudantes, o professor tem mais chances de conquistar o leitor e ao mesmo tempo mostrar que é possível ler para além das palavras, que aqui se denomina “decodificação”, para poder então chegar à “compreensão” do texto que leu e relacioná-lo ao seu contexto. Ou seja, ler para compreender não apenas o texto, mas inserir essa leitura na compreensão da realidade vivenciada pelo leitor e também pelo autor do texto. A leitura na escola e até mesmo fora dela não deve ser um problema, mas sim, a solução. Professores e demais envolvidos no processo de formação de novos leitores, em especial, acadêmicos e professores dos cursos de Letras e Pedagogia, podem fazer com que a atividade de leitura seja significativa, participativa e compreendida. A habilidade leitora contribui para o desenvolvimento da memória, percepção, dedução, permite que o leitor tenha mais criticidade ao ler um texto, fazendo-o perceber que não é preciso aceitar tudo o que lê como algo verdadeiro e inquestionável. Pois, a leitura estimula questionamentos e permite que o leitor possa pensar. Não pensar pelo que o outro diz ou escreve, mas pensar por si próprio. É importante destacar que o papel da escola inicia-se no ato de mediar os processos para que o (futuro) leitor domine o código linguístico (decodificação), mas não se encerra aí, pois é preciso mostrar que a leitura faz parte do cotidiano e está presente em praticamente todas as atividades humanas. Dessa maneira, faz-se necessário
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ler para além da decodificação, chegando aos níveis de compreensão, só assim, a leitura será significativa e eficaz para quem lê. A formação do leitor e do formador de leitores necessita de novos olhares com relação aos aspectos que envolvem as atividade de leitura e sua compreensão. Por exemplo, a formação do leitor inicia-se antes do início de sua escolaridade, ou seja, em casa, com seus familiares. E, na escola essa formação vai se constituindo a partir de outras e novas leituras, que se ampliam nas fases que a leitura é proposta, passando pela fase da decodificação, depois interpretação e assim por diante até se chegar à compreensão. Não basta apenas investir na formação de professores, mas é preciso capacitá-los de forma que compreendam os aspectos que envolvem a formação do leitor para além da decifração de códigos e dos níveis de compreensão. Afinal, ao se despertar o gosto pela leitura no outro, este por sua vez, terá o desejo que contribuir na formação de novos leitores. Referências: ARMELIN M. A. M., MARINHO A. A. C. Quem conta um conto: narrativas curtas nas rodas de leitura. São Paulo: CENPEC, 2013. BAMBERG, R. Éstude et documents d'infonnation: développer l'habitude de Ia lecture. UNESCO, 1975. BRASIL, SEF. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa: 5ª. a 8ª. Série. Brasília: SEF, 1998. CAGLIARI, L. C. Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu. São Paulo: Scipione, 1998. CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: UNESP, 2009. CRAMER, E. H. & CASTLE, M. Develloping lifelong readers. Fostering the love of reading:the . affective domain. Newark: IRA, 1994. FERES, Beatriz dos Santos. Leitura, fruição e ensino com os meninos de Ziraldo. Niterói: Editora UFF, 2011. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler, em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1997. ________, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
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CONTATOS DAS NARRATIVAS BÍBLICAS COM A COMÉDIA DE ARISTÓFANES: O PAPEL DE JACÓ NA NARRATIVA DE GÊNESIS Milton Luiz Torres (USP/UNASP) Falando sobre o livro de Gênesis, McKenzie (1954) afirma que “não devíamos imaginar que perspicácia e ironia, profundidade e sabedoria estivessem além do alcance dos antigos contadores de história hebreus, pois havia genialidade mesmo antes de Homero”. O autor discorda, com isso, da ideia comumente estabelecida entre muitos estudiosos de que os gregos inventaram a ironia no século IV a.C. e de que os romanos criaram a sátira trezentos anos depois. Ninguém alega, porém, que os hebreus tenham conscientemente inventado esses mecanismos literários. O que Jemielity (1992, p. 24) faz, porém, é sugerir que há indícios nas histórias bíblicas que sugerem que os autores hebreus anteciparam alguns de seus elementos mais fundamentais. Por essa razão, inclui a “impostura” (alazoneia) na pesquisa dos gêneros e tradições literárias afins justamente por se prestar bem às condições de abuso físico e verbal. Assim, a narrativa irônica e de humor sutil que apresenta a história de Jacó e Esaú, em Gênesis 27 (JEMIELITY, 1992, p. 25), e a narrativa da disputa de Mardoqueu e Hamã, no livro de Ester (BODNER, 1996), têm sido ambas vistas como representando precedentes orientais para a confrontação cômica clássica entre o eirôn, o herói irônico, e o alazôn, um antagonista marcado pela impostura. Tanto o eirôn quanto o alazôn pertencem, de fato, a uma categoria dramática de tipo bem estabelecido na comédia. Nesse sentido, Jemielity (1992, p. 25) alega que a história de Esaú e Jacó, no capítulo 27 de Gênesis, nos oferece “uma das instâncias mais antigas do encontro clássico entre eirôn e alazôn em que a dissimulação e a esperteza derrotam a superioridade física”. Aristófanes é o principal dramaturgo da antiga comédia ática, que floresceu, em Atenas, durante o apogeu cultural da civilização grega. A ação cômica por ele desenvolvida em suas onze comédias supérstites depende, em grande medida, da disputa (agôn) travada entre o eirôn, geralmente um herói passional e irônico, e o alazôn, a figura cheia de impostura que teima em lhe atravessar o caminho. As peças do
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dramaturgo devem, portanto, funcionar como ponto de referência se quisermos determinar que há, de fato, indícios de um agôn entre eirôn e alazôn na narrativa de Gênesis. Dentre os traços que caracterizam o herói das comédias de Aristófanes, a “esperteza” (ponêria) constitui sua dimensão predominante. É ela que lhe garante a possibilidade de escapar de qualquer enrascada em que se meta. De fato, o herói se comporta com tanta impunidade e de forma tão desinibida que, na vida real, ele dificilmente escaparia a severas penas legais ou forte rejeição da sociedade (DOVER, 1972, p. 125). Em seu caso, “a ponêria é sempre um meio de salvação” e elemento estruturador de sua visão heroica (WHITMAN, 1964, p. 102 e 162). 1 Sua contraparte é a “impostura” (alazoneia), característica dominante na personalidade do vilão aristofânico. No entanto, alazoneia é mais do que apenas uma característica de sua personalidade. Ela constitui uma estratégia bem montada pelo poeta para reforçar a fantasia que cria. Nesse sentido, o que Hutcheon (2000, p. 16) fala da ironia, pode ser dito também da alazoneia: não se trata de um tropos, mas de um topos político com implicações comunicativas e de natureza transideológica (HOFFMANN, 2008, p. 1431). A alazoneia está presente, na obra de Aristófanes, em muitas dimensões, e é especialmente corporificada por alguns personagens que, por essa razão, podem ser chamados de alazones, bem como em alguns desenvolvimentos das peças, as cenas com alazones. Por sua capacidade de impedir que a utopia cômica se concretize, os alazones são tradicionalmente descritos como “figuras de bloqueio” (blocking characters), sendo que geralmente derivam essa habilidade de seu poder ou prestígio social (FRYE, 1957, p. 169). Os alazones se apresentam como criaturas obcecadas, governadas por sua paixão pelo dinheiro, ambição e autoridade, cegas às necessidades alheias, sempre dispostas a reagir de modo mecânico e irracional (BERGSON, 1978 [1924]; BRUNORO, 1983, p. 2). Tornam-se o objeto de algum tipo de reconciliação, no término da peça, para garantir o final feliz, mas sem se converter, de fato, à sociedade criada pela utopia cômica e que a plateia contempla como sendo a ideal (FRYE, 1957, p. 164). Em geral, predicam sua capacidade de afetar o eirôn e de impedir a utopia 1
De acordo com Dover (1972, p. 125), a plateia, identificando-se com o herói, podia alcançar uma vingança vicária contra a ordem política e social dentro da qual era obrigada a viver.
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cômica em um estatuto social privilegiado. No entanto, quando o autor reverte os valores por eles abraçados, colocando-os no estrato mais baixo da sociedade idealizada pelo eirôn e seus simpatizantes, os alazones conseguem ainda derivar sua capacidade bloqueadora de sua fidelidade à obstinada concepção de que o dinheiro está acima de todas as coisas (RENAN, 1983, p. 247). Jemielity (1992) situa a narrativa de Gênesis 27 no contexto do conflito entre eirôn e alazôn, mas não apresenta evidência disso. Como diversos estudos (RIBBECK, 1876; 1882; SPECKHARD, 1958; CORNFORD, 1961 [1914]; GIL, 1981-1983; MACDOWELL, 1990; DURÁN, 1992; MAJOR, 2006; GRIFFITH; MARKS, 2011; TORRES, 2013) já analisaram esse contexto no caso das comédias de Aristófanes e de outros autores da Antiguidade clássica, resta, portanto, comparar o que se sabe sobre o confronto entre eirôn e alazôn com a narrativa de Gênesis. De acordo com Anderson (2010, p. 229-232), a história de Esaú e Jacó pode ser dividida em três blocos. O primeiro bloco (Gn 25-28) cobre o percurso de Jacó do “ventre” (baden) a Betel e inclui o oráculo da ambiguidade (Gn 25:23) em que Deus anuncia que um irmão vai ser superior ao outro, mas não revela, com precisão, o que ocorrerá de fato. 2 Nesse bloco, Jacó engana Esaú para que lhe venda o direito da primogenitura em troca de um guisado de lentilhas (Gn 25:27-24) e Jacó e Rebeca enganam o velho e cego Isaque para que abençoe Jacó, pensando estar abençoando Esaú (Gn 27:1-45).3 No segundo bloco (Gn 29-31), narram-se os acontecimentos referentes ao período em que Jacó é enganado pelo sogro para que trabalhe para ele durante catorze anos e, no final do qual, Jacó o engana com um truque que fazia com que seu rebanho aumentasse em detrimento das ovelhas do sogro. O último bloco (Gn 32-35) descreve o encontro final entre Jacó e Esaú, e seu retorno a Betel. Mesmo o encontro noturno entre Jacó e Deus, tradicionalmente apontado como um momento de conversão, não é suficiente para transformar Jacó que, na opinião de Anderson (2010, p. 231), permanece “trapaceiro” (trickster).
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Para Wajnberg (2004, p. 104-105), o oráculo tem natureza enigmática e aberta porque não faz referência à promessa ancestral e não estipula qual filho é o escolhido. 3 “Rebeca... não só é a autora do plano, como assume a concretização do artifício enganoso pelo qual o pai comerá gato por lebre. E o pior, comerá com gosto!” (WAJNBERG, 2004, p. 162).
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O contexto do ciclo de Jacó se parece mesmo com as utopias cômicas de Aristófanes, 4 com as quais o autor cria um estado absurdo de coisas que desafia a verossimilhança. No caso de Lisístrata, por exemplo, é difícil entender como as esposas gregas podem iniciar uma greve de sexo, sem que os maridos recorram a possíveis válvulas de escape como a masturbação, as amantes, os bordéis e os relacionamentos homossexuais (DOVER, 1972, p. 160). No entanto, o poeta não diz uma palavra sequer sobre essas alternativas. Em vez disso, apresenta os maridos gregos sob os efeitos de uma ereção contínua e enlouquecedora. Assim, a arte de Aristófanes é feita de improvisos sucessivos, de uma progressão delirante da ação. E essa poesia, ferozmente absurda, abre uma brecha, uma fenda na ordem, no ritual sagrado e citadino. Uma falha que deixa entrever outro gênero de vida, uma felicidade prometida aos homens, apesar do peso das obrigações, dos hábitos, dos procedimentos (DUVIGNAUD, 1999, p. 79).
Guardadas as devidas proporções, semelhantes delírios se percebem na narrativa de Gênesis. Como explicar, por exemplo, que alguém possa, de fato, roubar uma bênção? (RACKMAN, 1994, p. 37). Se Jacó tivesse furtado as ovelhas de seu pai, uma vez descoberto o furto, deveria lhe devolver os animais. No entanto, em nenhum momento se cogita que a “bênção” (brakhah) e a “primogenitura” (bekhorah) possam ser devolvidas ao legítimo dono. E, se a bênção pudesse mesmo ser furtada de Isaque, como explicar que Deus se veja forçado a agir sob a compulsão do furto?5 Portanto, embora não se possa identificar a narrativa como cômica, ela é dramática e guarda evidentes relações com o absurdo das utopias cômicas de Aristófanes. Além disso, Jacó demonstra, às vezes, a mesma inflexibilidade que caracteriza o alazôn aristofânico. De fato, uma das principais características do alazôn é seu 4
Wajnberg (2004, p. 157) afirma que “o caráter dramático” é, “na verdade, o traço maior dessa narrativa”. 5 Teugels (1995, p. 62-63) vê Isaque como personagem passivo. De fato, Rebeca aparece, na narrativa, como personagem detentor de muito mais força do que ele (YOO, 2001; WAJNBERG, 2004, p. 159-168; p. 187-193), sendo mesmo a única mulher da literatura hebraica que busca a Deus e o encontra sem qualquer obstáculo (ANDERSON, 2010, p. 57). Para Wajnberg (2004, p. 192), “de todos os atores, apenas Rebeca subsiste poderosa, muitíssimo bem informada, ouvindo atrás das portas, atenta aos rumores que correm”. Apesar disso, Rackman (1994) não considera que Isaque tenha sido, de fato, totalmente enganado por Rebeca e Jacó. Em sua proposta de uma resolução para o aparente absurdo do furto da bênção, Rackman argumenta que Isaque acaba se convertendo, no decorrer da história, à visão de Rebeca, segundo a qual Jacó deveria herdar sozinho a promessa ancestral.
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comportamento rígido e tenso, produto de seu completo desconhecimento de si mesmo (BERGSON, 1978 [1924]). Conforme afirma De Pracontal (2004, p. 20), a maioria dos impostores, sinceros ou não, protege-se por detrás de uma muralha de convicções contra a qual os melhores argumentos vão se despedaçar. Os ataques de seus adversários nada mais fazem do que reforçar suas certezas. Em contrapartida, o comportamento de Jacó não parece tanto com o do alazôn de Aristófanes, mas com a figura do “trapaceiro” (trickster) que ocorre em diversos gêneros da literatura universal e que, segundo Jung (1968, p. 260), “assombra a mitologia de todas as eras”. 6 Anderson (2010), por exemplo, o estudou exatamente nessa condição. De fato, o termo “esperteza” (mirmah) “é uma palavra-chave no ciclo das histórias sobre Jacó” (WAJNBERG, 2004, p. 182).7 Hartsfield (2005, p. 197) vê a figura do trapaceiro como “capaz de sobreviver a todas as circunstâncias, despistar, subverter, derrubar e transcender o status quo, inclusive todos os oponentes, quer humanos, quer divinos, e todos os limites (quer internos ou externos, quer terrestres ou celestes)”. Apesar de certas semelhanças formais, a função do trapaceiro compreende um aspecto bastante distinto da função do eirôn. Segundo Abrams (1993, p. 97), “na comédia grega, o personagem chamado de eirôn era um ‘dissimulador’, que caracteristicamente falava em atenuação e, deliberadamente, fingia ser menos inteligente do que era. Contudo, triunfava sobre o alazôn, o fanfarrão estúpido que vivia de seu autoengano”. O trapaceiro difere, portanto, do eirôn porque não faz qualquer esforço para atenuar os próprios méritos. A análise das peças de Aristófanes demonstra, além disso, que há diferenças fundamentais entre o que parece ser a alazoneia do herói e a impostura jactanciosa do antagonista. É, de fato, fácil confundir a “esperteza” (ponêria) e a “cafajestagem” (panourgia) do herói trapaceiro com a “impostura” (alazoneia) de seu rival, o que levou Apte (1985, p. 212-236) e Csapo (1986, p. 207) a postularem que o “impostor” (alazôn) não passa de uma forma evoluída do que os especialistas em folclore e psicólogos chamam de “trapaceiro” (trickster). Em sua visão, o conflito cômico ocorre, portanto, entre um alazôn simpático e um alazôn antipático. Nessa perspectiva, o herói cômico 6
A definição costumeira de “trapaceiro” (trickster) é a seguinte: “personagem que, atuando em uma posição de dependência ou fraqueza, tenta melhorar sua situação, ou simplesmente sobreviver, por meio do recurso à trapaça” (RYKEN; WILHOIT; LONGMAN III, 1998, p. 103). 7 Segundo Wajnberg (2004, p. 161), “o senso da oportunidade, a esperteza, mostrar-se-ão características compartilhadas entre a mãe e seu filho caçula”.
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é possuído de um desejo ordinário por grandeza e o persegue da forma mais extraordinária. Trata-se de um tipo antissocial que ganha nossa simpatia em virtude da universalidade das coisas que cobiça; ainda que seja mais perigoso para nossos padrões civilizados do que os alazones antipáticos que obstruem seu caminho, permitimos que, no final, recrie o mundo a fim de que este se preste a seus interesses. O herói aristofânico, a própria personificação da apetência, demonstra força incansável, elástica e regenerativa só vista no ego dos sonhos (CSAPO, 1986, p. 207).
Isso não é, porém, impostura, mas heroísmo. Desse modo, “os alazones da vida real bem como os do drama são importantes antagonistas por causa de seu grande número, do poder que exercem e da importância da sophia que falsamente alegam possuir. [...] Os aspectos negativos e ridículos que assinalam o alazôn capturam a atenção” (GRAF, 1988, p. 68 e 79). O que chama a atenção no alazôn é a impressão, por mais subjetiva ou dissimulada que seja, de que há, nele, algo errado, negativo, ridículo, insuportável. A despeito de todas as suas trapalhadas e trapaceadas, o herói cômico consegue, apesar disso, cativar o respeito e a admiração da plateia. É um cafajeste espertalhão que, não obstante sua posição socialmente desfavorável, geralmente supera, com jactância e impostura, os obstáculos que o impedem de tirar algum tipo de vantagem das circunstâncias que o limitam. Ainda assim, ele nunca é sério a respeito das alegações que faz. Seu intuito é simplesmente desbancar as figuras empertigadas e patéticas que cismam em impedi-lo de alcançar a regalia que pleiteia. Elas, sim, são sérias e dão crédito às próprias mentiras. O herói, por sua vez, age com inteligência e determinação, criativamente contornando os impedimentos plantados em seu caminho. O que o protagonista de Aristófanes quer é, por meio de sua criatividade, elasticidade e autonomia que não se sujeita a nenhuma força fora de si, subverter um status quo que lhe é amplamente desfavorável. A impostura do alazôn, por outro lado, não tem por objetivo senão a preservação do status quo ou a continuação de seu desfrute. Se, em algum momento, o alazôn concebe que o mundo possa virar de cabeça para baixo, é “para que ande nele com mais conforto” (CARLEVALE, 1999, p. 101). Jacó não se encaixa, portanto, no perfil do alazôn, estando, em vez disso, muito mais próximo ao perfil do “trapaceiro” (trickster). Segundo Niditch (1987), a trapaça é a forma como Jacó consegue operar mudanças na situação e, na maioria das vezes,
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escapar das consequências. Da mesma forma, Esaú pouco se encaixa na feição do eirôn, que, nas comédias de Aristófanes, é a função cômica que exibe mais características heroicas. Nas peças de Aristófanes, o adversário do alazôn é geralmente o eirôn, um personagem irônico, mas pode ser também o bômolochos (um personagem bufão), o spoudaios (um personagem sério), o apragmôn (um personagem ocioso ou desinteressado) ou qualquer outro aliado do herói. Esaú, em vez de um perfil irônico, 8 aparece como animalesco e precipitado, exibindo o que Wajnberg (2004, p. 127) chama de “acento exacerbado, dramatizado” que o caracteriza como possuidor de “um raciocínio primitivo e infantilizado”, sendo mais abestalhado do que agressivo. Disso sobressai a caracterização de Jacó como trapaceiro e aproveitador. Na opinião de Wajnberg (2004, p. 200), “não há tratamento cômico, mas sim dramaticidade exacerbada, tensionada ao máximo, beirando em alguns momentos o trágico. O tom de troça, a abordagem na linha do ridículo, não se prestam para caracterizar a narrativa como um todo”. O herói cômico nunca desempenha a função de alazôn em sua plenitude (nem mesmo Dioniso, em Rãs), pois sua elasticidade criativa o mantém anos-luz do comportamento rigoroso, intransigente e empertigado do verdadeiro alazôn. Se o herói cômico não é um alazôn, tampouco o alazôn é uma forma evoluída do “trapaceiro” (trickster), como propõem Apte (1985, p. 212-236) e Csapo (1986, p. 207). Embora Greenspahn (1994, p. 111-140) proteste que há sempre uma “simetria punitiva” (retributive symmetry) para o trapaceiro e que, por isso, “essa figura nunca é celebrada”, o trapaceiro consegue, na maior parte do tempo, granjear a simpatia da plateia. Ao contrário disso, é o alazôn que, do começo ao fim, serve como seu objeto de desdém. Portanto, em vez de localizar a história de Esaú e Jacó no âmbito do agôn cômico entre eirôn e alazôn, é melhor colocá-la, como faz Niditch (1987, p. 94-96), no gênero pertencente às narrativas em que ocorre um nascimento fora dos padrões que resulta em conflitos por causa do estatuto dos personagens. Em função disso, o herói empreende
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De fato, a ironia da passagem parece pertencer exclusivamente ao narrador, conforme postula Sternberg (1987, p. 38). Wejnberg (2004, p. 184-185) vê ironia na forma como Esaú questiona o pai, em Gn 27:38: “acaso não me reservaste uma bênção?” No entanto, esse não é o tipo de ironia que caracteriza o eirôn cômico. Nos contextos das peças de Aristófanes e da crítica de Aristóteles à comédia, “ironia” é o fingimento para menos (TORRES, 2013, p. 67-82).
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uma jornada, encontra casamento e sucesso em uma terra distante e volta para sua terra para a resolução da narrativa. Jacó não é alazôn porque, entre outras coisas, ao contrário do que acontece com o impostor de Aristófanes, consegue a adesão dos leitores de seu ciclo. Tampouco é o personagem irônico de Aristófanes porque, ao contrário do eirôn, não chega a ter um triunfo absoluto no final. Segundo Niditch (1993, p. 44), “o trapaceiro [trickster] é bem sucedido em alterar sua própria situação ou a daqueles ao seu redor, mas nunca se dá inteiramente bem com sua trapaça. A ele pertence um sucesso incerto e instável”. Para Schmiedicke (2008, p. 32), “a motivação para a trapaça, a própria trapaça e os resultados da trapaça, embora ajudem o trapaceiro ou melhorem sua situação de alguma forma, também tendem a colocá-lo fora da ordem estabelecida das coisas e a mantê-lo lá”. Segundo Farmer (1978, p. 65-69, 103), o trapaceiro imediatamente consegue o que quer com sua trapaça; no entanto, isso acaba redundando em algum efeito colateral negativo para ele. Trata-se, portanto, de um resultado inteiramente diferente daquele que advém do agôn das peças de Aristófanes, em que o herói cômico, geralmente um eirôn, consegue tudo exatamente como queria e o vilão, geralmente um alazôn, não consegue nada, a não ser que reconheça sua inapelável derrota e se submeta inteiramente à vontade do herói. Referências ABRAMS, M. H. A glossary of literary terms. New York: Holt, Rinehart & Wilson, 1993. ANDERSON, John E. Jacob and the divine trickster: a theology of deception and YHWH’s fidelity to the ancestral promise in the Jacob cycle. Tese de doutorado em ciência da religião. Departamento de Ciência da Religião da Universidade Baylor. Waco, TX, 2010. 257 f. APTE, M. L. Humour and laughter: an anthropological approach. Ithaca: Cornell University Press, 1985.
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DOIS IRMÃOS, UM MOSAICO CULTURAL: A RELAÇÃO ENTRE O ESPAÇO E A CARACTERIZAÇÃO DA IDENTIDADE NA OBRA DE MILTON HATOUM
Natália Chaves Picolo (UNESP) Milton Hatoum é um dos nomes mais significativos da literatura brasileira contemporânea. Nascido em Manaus, filho de descendentes árabes, seu primeiro romance, Relato de certo Oriente (1989) estreou significativamente recebendo o Prêmio Jabuti de melhor romance e, onze anos mais tarde, o romance Dois irmãos (2000) vem reafirmar tal conquista. Tais fatos se consolidaram em 2005 com Cinzas do Norte e com Órfãos do Eldorado em 2008. Já em 2009 publicou o livro de contos A cidade ilhada e recentemente o livro de crônicas, Um solitário à espreita (2013), alcançando sucesso da crítica e consolidando a sua marca pessoal. As obras de Hatoum foram traduzidas em 13 línguas e publicadas em 14 países, destacando-se pelos narradores complexos e personagens que evidenciam os conflitos familiares, onde o tempo narrativo é construído através da rememoração e na ambientação em torno da cidade de Manaus do século XX, misturando-se às memórias do tempo de infância do autor, sob o viés do universo manauara tal qual a cultura do imigrante árabe. O romance Dois Irmãos (2000) traz em sua narrativa a cidade de Manaus a partir das marcas sociais, econômicas, políticas e, sobretudo culturais que marcaram a cidade no início do século XX, evidenciando os conflitos familiares que são marcados por profundas rupturas individuais e plurais, que tem como pano de fundo o desenvolvimento e as transformações manauaras que acontecem concomitantemente aos personagens. Na narrativa, tem-se a relação divergente entre os irmãos gêmeos Yakub e Omar, e com os pais Zana e Halim, a irmã Rânia, Domingas, a empregada da família,
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que vive com o casal desde a sua tenra infância, e o seu filho Nael, o narrador da história. Fisicamente, os irmãos aparentam semelhança inquestionável, “tinham o mesmo rosto anguloso, os mesmos olhos castanhos e graúdos, o mesmo cabelo ondulado e preto, a mesmíssima altura” (HATOUM, 2000, p.13), porém, Omar, o filho caçula, é protegido cegamente pela mãe –Zana– e leva uma vida desregrada. Não gosta de trabalhar nem estudar. Já Yaqub tem certas preferências do pai –Halim-, e mostra-se sempre muito centrado, estudioso e calado. Os conflitos entre os irmãos se dão pela semelhança física e a diferença de temperamento, comportamento e principalmente o ciúme. Ainda quando crianças, ambos se apaixonam pela mesma menina – Lívia – e Yaqub leva a melhor. Inconformado, Omar agride seu irmão e a partir daí, inicia-se a relação de ódio entre eles que se estenderá por toda a narrativa. O conflito entre os gêmeos sempre envolveu todos que viviam na casa: “a loucura e a paixão de Omar, suas atitudes desmesuradas contra tudo e contra todos neste mundo não foram menos danosas que os projetos de Yaqub: o perigo e a sordidez de sua ambição calculada” (HATOUM, 2000, p.264). Zana, na tentativa de conciliar os filhos fazendo-os trabalhar juntos, em segredo, avisou Yaqub sobre um trabalho que Omar estava desenvolvendo em Manaus. Porém, Yaqub trai o irmão fazendo um acordo às escondidas e Omar, ao saber de tudo, se desespera, espanca Yaqub e vai preso. Como consequência, a única alternativa para pagar a dívida feita pelos irmãos, foi vender a casa, mesmo contra a vontade de Zana. A decadência dessa família é também a decadência da casa, entendida aqui como um importante espaço narrativo que também sofre as consequências das ações das personagens, sobretudo os conflitos. Dessa forma, com o decorrer da narrativa, a casa passa a refletir as ruínas da relação familiar e se desfaz, ao passo que, ironicamente, a casa dos fundos, onde vive o narrador, é o único lugar que permanece intacto no romance. Desse modo, nesta estreita ligação entre espaço e personagens, o narrador nos mostrar além da decadência da casa, as transformações de Manaus sob o viés de um espaço composto por uma variada malha cultural, constituído pelas especificidades local, tal como as tradições dos imigrantes e as múltiplas vozes que compõe a cidade e
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que demonstram o desenvolvimento e as mudanças que ocorreram em Manaus, transformando-a em um importante personagem. Assim, todo esse aspecto cultural é mostrado pelo narrador, que é a peça principal desse mosaico, pois ao mesmo tempo em que narra é também condicionado pela própria narrativa, juntamente com histórias e vivências coletivas de outros personagens. Deste modo, o narrador quer se distancia, quer se aproxima, tem toda a visão da narrativa e nos expõe aos conflitos entre os irmãos, bem como aos relatos das personagens ou as memórias coletivas que não se restringem ao espaço da casa, mas também às transfigurações de Manaus. Vemos então que os elementos caracterizadores da narrativa têm importância na observação da identidade individual dos personagens e na maneira com que os mesmos agem na narrativa, sobretudo, como se dá a estreita relação entre os personagens com o meio em que vivem, onde os ambientes externos, bem como as ligações culturais e o estudo dos espaços narrativos são de extrema importância para uma melhor compreensão do romance. Nesse sentido, começaremos pela análise da identidade dos irmãos, partindo da ideia de que esta pode ser imutável e sempre em constante construção, deste modo, embora individual, a identidade estabelece relação com o coletivo em um espaço comum, nos permitindo fazer uma relação, primeiramente, com a ideia de cultura de Terry Eagleton (2005): A Cultura é em si mesma o espírito da humanidade individualizandose em obras específicas; e o seu discurso liga o individual e o universal, o âmago do eu e a verdade da humanidade, sem a mediação do historicamente particular. De fato, nada poderia assemelhar-se mais estreitamente ao universo do que aquilo que é puramente ele mesmo, sem nenhuma relação externa. O universal não é apenas o oposto do individual, mas o próprio paradigma dele. (EAGLETON, 2005, p. 85)
Desta forma, vemos que a identidade está imbricada com o coletivo, já que o meio social também influencia a sua composição, assim, a primeira noção que temos de identidade é a que esta pode ser a junção de vários conceitos incorporados por uma cultura. O processo de identificação do indivíduo está relacionado à noção coletiva de identidade, já que o sujeito, ficcional ou não, partilha um espaço comum dentro de um
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determinado grupo. Assim, entendemos que a identidade não é algo acabado ou denominado previamente, mas algo que está em constante construção enquanto o sujeito compartilha com o coletivo. Neste sentido, vemos que a identidade é fragmentada, isto é, que pode ser composta por outras identidades e que mesmo sendo construída, pode ser alterada / descaracterizada a qualquer momento, entrando em contradição. Sobre isso, Bauman, em seu livro titulado Identidade (2005), faz afirmações importantes e pertinentes sobre essas inconstâncias: A identidade – sejamos claros sobre isso – é um “conceito altamente contestado”. Sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar certo de que está havendo uma batalha. O campo de batalha é o lar natural de identidade. Ela só vem à luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia no momento em que desaparecem os ruídos da refrega. (...) A identidade é uma luta. (BAUMAN, 2005, p.84-85)
A partir das considerações feitas, podemos traçar uma linha de entendimento sobre a identidade, concluindo que o indivíduo tem a sua identidade natural, porém esta se relaciona com o meio social e com outros indivíduos, fazendo com que a construção da identidade individual seja constante. Assim, relacionando tal concepção de identidade, observaremos as ações dos personagens durante a narrativa. Podemos notar que a posição de Omar em relação ao meio em que está inserido, está muito mais ligado à cultura de sua descendência e tradições libanesas pelo âmbito familiar, sobretudo da mãe, ao mesmo tempo em que está intimamente ligado ao multiculturalismo de Manaus, advindo da grande presença de imigrantes. Assim, desde o início da narrativa, vemos como Omar se relaciona com a sua cidade, logo, este acompanha as transformações e, sobretudo a decadência da mesma, pois quando a Manaus fica em ruínas o personagem se encontra igualmente na mesma posição. Deste modo, como Omar nunca saiu de sua terra, ele acaba sendo o reflexo de Manaus, ao contrário de seu irmão. Já Yaqub, desde o começo da narrativa, quando descreve sua chegada a Manaus, reafirma como não se reconhece naquele local, como se sente deslocado e incomodado. Manaus não tem o mesmo sentido para Yaqub assim como a divergência da identidade com seu irmão, pois a composição deste personagem é muito mais interna do que
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externa, a priori, trata-se de um personagem de poucas falas, submisso ao comportamento do irmão e que aceita as imposições dadas. A identidade de Yaqub pensando na composição cultural, torna-se mais ampla devido a sua interação com o Líbano e com outros lugares (São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo), e ainda a sua devoção ao serviço militar e aos segmentos ligados à pátria. Desta forma, mesmo com características introspectiva e vivendo num mundo isolado ao da casa, Yaqub têm características e adequação ao meio social em que vive, tal afirmação pode ser comprovada na obtenção de sucesso do personagem nos estudos e no trabalho. Devemos ressaltar ainda, a mudança que ocorre na identidade deste personagem ao longo da narrativa. Embora não revidasse os insultos de Omar, “Yaqub não tinha perdoado a agressão do irmão na infância, a cicatriz... Isso nunca tinha saído da cabeça dele. Jurou que um dia iria se vingar” (HATOUM, 2000, p.93) e esta vingança veio muitos anos depois, quando Yaqub casou-se secretamente com a garota que o irmão também era apaixonado. Da mesma forma que, em resposta às agressões do irmão, o mais velho resolve se mudar pra São Paulo em busca de uma vida melhor. E a grande vingança, certamente, se dá no final da história, quando Yaqub, mesmo em São Paulo, descobre uma grande obra em Manaus, que seu irmão está envolvido, e resolve intervir para mostrar sua superioridade, envolvendo-se no trabalho. Assim, quando seu irmão o agride pela última vez, ele não só o manda para prisão como vende a casa que representava toda a família. Vemos, portanto, que os gêmeos têm a composição da identidade distinta, mesmo que o cenário das ações seja o mesmo, ambos se relacionam distintamente aos espaços da narrativa, nos fazendo entender que a identidade das personagens nos romances de Milton Hatoum não é algo previamente definido, mas construído e formado por identificações múltiplas que se interpenetram. Para tanto, devemos pensar no espaços cujos quais estão inseridos e se relacionam, vendo este espaço sob um viés que vai além de uma visada que o considera como mero cenário onde as personagens estão inseridas, mas como aquele que “pode alcançar estatuto tão importante quantos outros componentes da narrativa, tais como o foco narrativo, personagem, tempo, estrutura, etc”. (DIMAS, 1987, p.5), onde as
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funções do espaço para o desenvolvimento do texto poderá ser “prioritário e fundamental no desenvolvimento da ação, quando não determinante” (DIMAS, 1987, p. 5) . Ozíris Borges Filho (2007) apresenta explanações importantes a respeito do espaço, dizendo que este, por conceito, abarcaria tudo o que está inscrito em uma obra literária como tamanho, forma, objetos e suas relações, porém a função vai além, pois o espaço também se relaciona com os personagens, influenciando-os a agir de determinada maneira e propiciando a ação que será desenvolvida. Assim, (...) quando falamos de espaço, referimo-nos tanto aos objetos e suas relações como ao recipiente, isto é, à localização desses mesmos objetos. Além disso, nunca podemos esquecer o observador a partir do qual aquelas relações são construídas na literatura. Assim, ao analisarmos um espaço qualquer (...) não podemos nos esquecer dos objetos que compõem e constituem esses espaços e de suas relações entre si e com as personagens e/ou narrador. (BORGES FILHO, 2007, p.17)
Vemos que a caracterização do espaço se dá por inter-relação, entre situação, referência e observação, ou seja, todos os aspectos do ambiente devem ser analisados e ligados com os demais da narrativa, assim, não podendo ser analisado isoladamente. Desta maneira, “as narrativas passam a se preocupar muito mais com inquirições psicológicas, com complexos, com atitudes inesperadas e paralelamente a tudo isso, passa-se a uma maior preocupação com os espaços dessas personagens”(BORGES FILHO, 2007, p.13). Como vimos, a riqueza psicológica dos personagens compete vivamente com a densidade das anotações espaciais, onde os personagens transformam o espaço em que vivem transmitindo as suas características. No romance estudado, os irmãos se relacionam na maioria da narrativa em um mesmo espaço, porém as consequências e ações são diferentes devido à identidade individual, identidade essa constantemente construída e atrelada ao coletivo em que o sujeito está inserido. Deste modo, o espaço é o mesmo, mas o personagem interfere nele enquadrando-se ou não. Para entendermos a importância deste espaço literário na narrativa, analisamos o papel da casa como fator significativo da obra. Assim, Gaston Bachelard nos mostra em
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seu estudo: A poética do Espaço (1974) que a casa é vista como o grande berço, o aconchego e a proteção desde o nascimento do homem. “É nosso canto no mundo” (BACHELARD, 1974, p.358) e que esta imagem não poderia ser compreendida como uma referência objetiva. Desta forma, vinculam-se a esse espaço valores imaginados, ressaltando as possibilidades criativas da imagem, sua influência e como esta pode ter representação distinta. Assim, "A casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma história, na narrativa da nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas da nossa vida interpenetram-se e guardam os tesouros dos dias antigos. Quando, na nova casa, retornam as lembranças das antigas moradas, transportamo-nos ao país da Infância Imóvel, imóvel como o Imemorial. Vivemos fixações, fixações de felicidade. Reconfortamonos ao reviver lembranças de proteção". (BACHELARD, 1974, p.25).
Podemos perceber que na obra analisada, o conceito da casa, segundo Bachelard, como visto anteriormente não ocorre com os dois irmãos. Como já mencionado, Yaqub passa boa parte fora de casa e quando retorna, não se identifica, buscando então, construir sua própria casa- que é onde se tem “a imagem da casa sonhada e que está sob o signo de um novo ser (...) e esse novo ser é o homem feliz" (BACHELARD, 1974, p.25). E por outro lado temos Omar que sempre esteve envolvido com a casa, por isso sente-se parte dela e seu único conflito é quando esta não existe mais. Assim, é de caráter intencional a casa ser cenário dos conflitos na obra analisada, justamente pelo papel distinto que ela representa para cada personagem quando relacionada com a identidade. Deste modo, a degradação não restringe somente ao espaço da casa, pois as tessituras da história dessa família de libaneses se adequa a um período de decadência que também é a da cidade de Manaus, haja vista que temos a demonstração das mudanças decorrente da modernização que se instaura na cidade, vista pelo fim dos igarapés e da cidade flutuante, bem como as mudanças refletidas nas personagens. E ao ultrapassarmos os muros da casa, vemos a cidade de Manaus contada pelo narrador juntamente com o desenrolar do enredo, tendo as personagens uma ligação íntima ao meio em que vivem bem como a história da cidade ligada à de Halim. E ao
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longo dos trinta anos que se passam durante a narrativa, a cidade entra em decadência e é destruída, sendo novamente reconstruída. Assim, o ambiente que forma o pano de fundo da obra, inicialmente, é o de imigrantes que se dedicam ao comércio, como Halim, mostrando como era a vida em Manaus, suas vendas, o modo simplório de viver, de manter o contato com os vizinhos e do ambiente familiar. Depois, vamos sentindo as transformações com a chegada do progresso, isto é, as mudanças, pois, “Manaus está cheia de estrangeiros. Indianos, coreanos, chineses… O centro virou um formigueiro de gente do interior… Tudo está mudando em Manaus.” (HATOUM, 2000, p.167). E tais transformações se dão desde a fase da borracha até a implantação da Zona Franca, que teve início no fim da década de 1950 e se efetivou nos anos 60 com a ditadura militar. Desta forma, a cidade da infância do narrador não existe mais no tempo presente da narrativa. O progresso chegou a Manaus e o narrador
tem que se ancorar na
memória dos lugares de sua infância para reconstruir os espaços perdidos, pois nesta nova Manaus não há o reconhecimento dos novos lugares, assim, perde-se as antigas referências. E assim, o narrador vai reconstruindo a estória da cidade a partir dos relatos e do que presenciou, nos apresentando partes significativas de Manaus, como Mercado Municipal, a Manaus Harbour (o porto), a Praça Nossa Senhora dos Remédios ,a Igreja e “tantos pequenos povoados e vilas nas margens de cada rio e seu afluentes...” (HATOUM,2000 p. 156). Deste modo, a obra de Hatoum torna-se mais do que um ponto de referência para o cenário amazônico, a partir da demonstração da multiculturalidade e da paisagem singular, o romance torna-se, portanto, um artifício para retratar realmente como é Manaus: o seu progresso, os seus problema, incitando e reafirmando que os personagens estão ligados ao meio em que vivem e que o espaço não pode analisado como um papel isolado na narrativa, pois este tem referência e importância nos demais elementos da obra quando analisada. Nesse sentido, vemos que Milton Hatoum tem a intenção de abordar Manaus a partir de um mosaico caracterizado por sua formação social, desfazendo a ideia precipitada de regionalismo, assim, os pontos importantes se dão na caracterização dos elementos culturais locais como mitos, lendas ou processo do multiculturalismo e,
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sobretudo, as tradições de uma nação, dando um aspecto espacial que destaque a diferenciação, dando o valor merecido ao espaço narrativo. No que se refere a essa ideia de cultura, podemos entender a partir da afirmação de Homi Bhabha(1998), quando este nos mostra que essa diferenciação cultural pode ser compreendida pelo fato de que não existe uma nação, especialmente contemporânea, que seja composta de apenas uma cultura, visto que esta é composta por valores, costumes e etnia, contrariando, portanto, o conceito totalizador e essencialista de identidade que se pensava no início do século XX, Nesse sentido, vemos que a caracterização de uma nação é feita pela justaposição de várias identidades, sendo então composta pelas peculiaridades da representação cultural de diferentes grupos com costumes e valores diferentes. Deste modo, podemos notar que em Dois Irmãos fica evidente essa pluralidade cultural a partir das tradições dos imigrantes e das diversas vozes e valores nacionais que compõe a cidade de Manaus, nos mostrando que a cidade não é apenas um espaço geográfico isolado ou apenas de riquezas exóticas, mas sim, pelo multiculturalismo que Hatoum deixa evidente através da família de libaneses e pelas personagens e histórias que tecem as tessituras de Manaus em grande transformação. Os espaços visitados na narrativa, nos são apresentados pelo narrador, cujo qual é a peça principal do enredo. Nael é um filho bastardo e não reconhecido pela família de libaneses. Sempre foi tratado como filho da empregada, mas era também filho de um dos gêmeos: “Eu não sabia nada de mim, como vim ao mundo, de onde eu tinha vindo. A origem, as origens. Meu passado, de alguma forma, palpitando na vida dos meus antepassados, nada disso eu sabia.” (HATOUM, 2000, p.73). O narrador observa e testemunha tudo o que acontece na casa. Ele depende das lembranças para narrar a história, transitando entre a primeira e a terceira pessoa sob o viés das reminiscências. Deste modo, as histórias não dependem exclusivamente de suas memórias, mas também das lembranças e relatos de outros personagens, principalmente Halim que ”encostado à janelinha, contara trechos de sua vida.” (HATOUM, 2000, p. 241). e Domingas “A minha história também depende dela( p. 25) Deste modo, Nael não conta apenas a sua história, mas a também a história dos outros personagens, da realidade da casa, da vivência da família, a vida e as mudanças
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de Manaus, e tendo sempre como foco principal a relação conflituosa entre os gêmeos e consequentemente o mistério em torno da sua paternidade. Assim, por meio dos relatos orais que vai capturando, outras vezes vivenciando ou simplesmente recorrendo à sua memória, o narrador vai montando o mosaico da sua existência. É importante notar que a posição do narrador torna-se essencial para a caracterização da obra, pois Nael não opera apenas internamente, mas também em termos sociais da narrativa, sendo ele muito mais do que um bastardo, um filho de ninguém, que não é assumido como filho dos gêmeos e vive como um agregado da casa, de pequenos favores à família e até algumas vezes humilhado. Compete a este referido narrador, um olhar mais amplo da história, pois esses elementos fazem com que Nael tenha um olhar fronteiriço, uma fratura social e familiar, se colocando a parte do que é narrado ou vivido pelos personagens, sendo ele muitas vezes representado socialmente, pelo lugar físico que lhe cabe na casa- o quartinho dos fundos. Temos então na narrativa, essa dualidade de posição do narrador, pois ao mesmo tempo em que Nael se ausenta, pouco se mostrando e mencionando seu nome apenas duas vezes durante o livro, temos de outro lado a importância de seu papel na narrativa, já que todas as histórias só podemos saber por sua visão e pelo seu modo de contar, ou seja, essa ambivalência entre a relação da dinâmica familiar que fazia parte, ao mesmo tempo em que era excluído socialmente. Deste modo, trata-se de um narrador que está em trânsito, pois tenta encontrar um lugar nessa história criando a sua narrativa e configurando-a a partir da própria memória. Assim, o narrador vai estar num entre-lugar, como visto por Bhabha (1998), sendo esta uma fronteira social e simbólica entre o ser e o não ser e, de estar em convívio com o outro, com diferença, uma individualidade a partir da necessidade e da multiplicidade de um coletivo. Homi Bhabha (1998) também afirma que o lugar da formação cultural está mais relacionado ao local do que à história, na qual o processo linear temporal é condição para se pensar a nação como lugar de fusão e totalização. No entanto, a representação e formação da identidade, como processos disjuntivos e contrativos, constituem a base fundamental para se repensar o discurso nacional centralizador e totalizante vigente no passado (BHABHA, 1998, p.201-202). Assim, o discurso de Nael é constituído tanto
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pelo processo de formação histórica da região, pela presença de elementos históricos e geográficos referentes à imigração sírio-libanesa na cidade de Manaus mostrada através da família, como também pela bagagem cultural trazida através do o índio e suas tradições, mostrada na figura de sua mãe Domingas, deste modo, a composição da sua identidade se estabelece na sua relação com o outro. Assim, nessa ideia de cultura relacionada à identidade, podemos ver que o narrador Nael tem a voz de uma experiência individual associada ao de uma coletividade e, por meio dessas múltiplas vozes, podemos identificar identidades e tradições sob novos olhares e perspectivas. Deste modo, é por meio da sua memória que ele se rearticula nesse contexto, buscando construir sua própria história, sua identidade e sua origem. Ao tentar entender a sua paternidade, o narrador reconstrói, também, as identidades daqueles que, de alguma forma, contribuíram para a sua formação como sujeito. Para isso, a partir das interações culturais e por trás dessas diferentes vozes, é possível reconstruir uma tradição, pois os fragmentos de memória e o resgate dessas múltiplas vozes possibilitaram a reconstrução de identidades plurais e individualizadas, assim, o narrador não só recupera a sua história, mas também a de outros personagens, como por exemplo sua mãe Domingas e Halim. Assim, por meio da voz desse narrador em trânsito, que perambula por espaços e lugares dessa Manaus multicultural e mestiça, vemos Nael tecer a sua narrativa, utilizando a memória como veículo para contar a sua própria experiência atrelada às histórias de outras tradições e lugares por ele nunca percorridos. Ao mesmo tempo em que o narrador fixa-se num paradoxo de deter a voz do discurso e distanciar-se do mesmo, ele consegue fazer a junção entre a narrativa oral e a narrativa escrita, rompendo com uma aparente separação entre elas e dando uma maior unidade de sentido à obra. Deste modo, por meio de sua narração, podemos avaliar a identidade dos personagens, bem como os seus conflitos e ainda fazer ligações com os espaços da narrativa, tornando-se então, a peça principal para o mosaico da obra. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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O RISO A FAVOR DO INSÓLITO NA TRILOGIA OS NOSSOS ANTEPASSADOS Natalia Guerra Brisola Gomes (UEL) A primeira metade do século XX foi um período de grandes aflições mundiais. Após crises econômicas, humanitárias, ambientais e nacionais, na última metade da década de 1940 se buscava em toda a Europa uma restauração da esperança, da identidade e da sociedade. O novo fôlego veio de duas fontes distintas: do lado vanguardista, o Neorrealismo, pintando o retrato brutal desse cenário desolado; pelo viés da produção popular, o riso, inexplicável, em lugar da lamentação já esgotada: “sem ele, os sofrimentos do século seriam ainda mais insuportáveis” (MINOIS, 2003, p. 558). Apesar de as primeiras produções literárias de Italo Calvino carregarem a marca da estética neorrealista, desde o início o que chamou a atenção da crítica foram os peculiares toques de fábula em suas descrições de crueldade. O autor italiano foi conquistado pela leveza de elementos como o insólito e o cômico e não demorou muito para que decidisse se embrenhar pela leitura alegórica da sociedade, se afastando da narrativa realista, nos anos de 1950. Ganhou forma o conjunto de romances intitulado “Os nossos antepassados” (I nostri antenati), que representa com bastante propriedade os conflitos vividos pelo homem moderno, mas à sua maneira: faz com que figuras históricas dialoguem com personagens completamente insólitos, ambienta-se em passados remotos e mantém um tom de conto de fadas. O primeiro livro, de 1952, é nomeado O visconde partido ao meio (Il visconte dimezzato) e conta a história de Medardo di Terralba, um jovem cheio de si que, ao passar pela experiência de uma batalha contra os turcos, toma consciência de sua incompletude. Tal situação é sempre enfrentada por veteranos de guerra, mas se manifestou nesse personagem também no plano físico: atingido no peito por uma bala de canhão, foi repartido verticalmente. Ilustra-se, em um antecessor de nosso tempo, a fragmentação a que o indivíduo do século XX estava destinado, tornando-se indeciso e
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cético em meio a tantas perspectivas psicológicas, filosóficas, artísticas e tecnológicas que veria surgir. Calvino delineia o insólito desse romance no duplo de Medardo. Ao ter o corpo partido de cima a baixo, também suas características temperamentais foram divididas, lhe rendendo entre os habitantes de Terralba dois contrastantes apelidos: O Mesquinho, para a parte direita egoísta, perversa e sádica, e O Bom, para a metade esquerda generosa, moralista e amável. Nenhuma das metades é a matriz da personalidade, o protagonista da história, a versão original. Apesar de O Mesquinho ter regressado à terra natal anos antes, O Bom teve, por parte dos conterrâneos, o respeito e o reconhecimento de seu título de visconde ao reaparecer. Cada parte do personagem é o reflexo espelhado da outra; são de encaixe perfeito, ao mesmo tempo em que são completos opostos. Após notar as diferenças entre os meio-viscondes, a população de Terralba teve seus sentimentos colocados numa gangorra. Nos primeiros anos de convívio exclusivo com O Mesquinho, se habituaram a desconfiar de suas intenções e, sempre que possível, evitar qualquer aproximação. Detentora do poder político na região, essa metade ordenava enforcamentos em série, além de partir ao meio qualquer animal, flor ou cogumelo que encontrasse. Contudo, a chegada da segunda parte de Medardo trouxe alívio e ânimo às pessoas que ajudava e protegia. O Bom pareceu, por bastante tempo, estar ali apenas para remediar as más atitudes de seu par. Um frustrava o plano do outro e anulava suas ações, o que Adilson dos Santos explica como característico do duplo negativo, em “uma relação de tensão e conflito” (2009, p. 71). Fazia tempo que a besta do visconde só golpeava as andorinhas; e não para matá-las, mas para feri-las e aleijá-las. Contudo, agora podiam ser vistas no céu andorinhas com as patas enfaixadas e amarradas com gravetos de apoio ou com as asas coladas e com curativos; havia um bando de andorinhas assim ataviadas que voavam com prudência todas juntas, feito convalescentes de um hospital de passarinhos, e inverossimilmente dizia-se que o próprio Medardo era o médico. (CALVINO, 2011, p. 68)
A partir dessa caracterização, é possível compreender o conceito de comicidade do autor. Aproximando-se da definição de Pirandello (1996), o humorismo se encontra no contraste de ideias, tais como as duas metades opostas do visconde. Há ironia na percepção de que seres tão diferentes são, na verdade, apenas um, revelando toda a
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contradição que dá forma ao indivíduo. Ao refletir sobre a situação, o expectador se identifica com o personagem, fazendo dissipar qualquer sentimento de superioridade. O riso é usado por Calvino como nivelador, capaz de dissipar moralismos e zombarias. O próprio autor declara evitar a sátira, gênero de motivação acusatória e ridicularizadora (CALVINO, 2006, p. 188). É a maneira como muitos utilizam o riso, a fim de corrigir uma transgressão, em consonância com a teoria de Bergson (VIANNA, 2007, p. 96). No caso de Calvino, sua fuga do moralismo se demonstra até no plano narrativo: no início, todos os moradores de Terralba fugiam do meio-visconde mau e se alegravam com os conselhos e a ajuda de seu oposto, mas não foi preciso muito tempo de convívio para que desaprovassem igualmente a ambos. Isso porque, assim como O Mesquinho, o lado prestativo do visconde se tornou uma ameaça à liberdade alheia, também insuportável: “Com aquela exígua figura rígida numa perna só, vestida de negro, cerimoniosa e distribuindo regras, ninguém podia fazer o que lhe apetecia sem ser recriminado em praça pública, suscitando malignidade e despeito.” (CALVINO, 2011, pp. 85-86). Apesar de o enredo de Os nossos antepassados se desenvolver na Idade Média e Renascentista, sua problemática muito se assemelha ao do homem moderno, contemporâneo de Calvino. Nesse contexto, não há mais espaço para maniqueísmos, pois a imensa multiplicidade de correntes filosóficas e descobertas científicas tudo relativizam. Assim como Medardo, o indivíduo se sente bipartido, incompleto, tal como Lukács (2000) descreveria seu herói problemático, agora desprovido da segurança do destino e das respostas. Numa tentativa de lidar com essa situação angustiante e disfarçar o medo que sente, a sociedade optou pelo riso, ainda que nervoso: “o cômico moderno é o cômico da indecisão, que deixa o indivíduo surpreso, incapaz de se determinar [...]. Procede de uma visão de coisas em que o bem e o mal, o branco e o negro se confundem” (MINOIS, 2003, p. 584). As metades do visconde se tornam definitivamente adversárias ao se interessarem por uma mesma mulher – O Bom movido pela admiração, O Mesquinho pelo desejo de posse. Como a camponesa não podia se decidir entre eles, a única forma de determinar com qual se casaria era através de um duelo. Nesse momento, enfrentando seu próprio interior, Medardo encontra, enfim, a completude. Uma parte
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feriu a outra com a espada, verticalmente, no exato local da bipartição, o que deu oportunidade ao médico de Terralba de costurá-los juntos. O final feliz de conto de fadas emoldura uma grande reflexão sobre a condição do homem: Assim, meu tio Medardo voltou a ser um homem inteiro, nem mau nem bom, uma mistura de maldade e bondade, isto é, aparentemente igual ao que era antes de se partir ao meio. Mas tinha a experiência de uma e de outra metade refundidas, por isso devia ser bem sábio. Viveu feliz, teve muitos filhos e fez um bom governo. (CALVINO, 2011, p. 94)
Apesar de individualista, o homem moderno precisa se projetar no outro para poder se compreender melhor. Medardo amadurece e se torna mais completo que o inexperiente jovem do início do romance por novamente unir seus fragmentos. Bakhtin explica como se faz necessária a soma de nossa perspectiva a outra, exterior, para se ter uma visão completa. Fica claro que apenas alguém nas condições desse visconde conseguiria realizar essa fusão: Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. [...] Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila dos nossos olhos. Assumindo a devida posição, é possível reduzir ao mínimo essa diferença de horizontes, mas para eliminá-la inteiramente urge fundir-se em um todo único e tornar-se uma só pessoa. (BAKHTIN, 2011, p. 21)
A interdependência das pessoas nesse processo para melhor e mais completamente se compreender o mundo é ilustrada de maneira diversa no próximo romance, O barão nas árvores (Il barone rampante, 1957). A decisão tomada por Cosme de Rondó, aos doze anos, de viver apenas nas copas das árvores, sem jamais tocar os pés no chão, foi uma ruptura simbólica com a sociedade e suas exigências, mas sem haver um isolamento total. Afinal, o crescimento, a transformação de um personagem, está intimamente ligado às experiências vividas, quase sempre em comunidade. A despeito da curiosa decisão, o menino manteve contato com os moradores de Penúmbria e as visitas a familiares e amigos, com a diferença de que agora gozava de alguns privilégios e enfrentava certas restrições. Porque um dia herdaria o título de baronato do pai, Cosme foi educado em meio a diversas regras de conduta, roupas
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desconfortáveis e aulas maçantes, contudo, ao declarar sua independência vivendo nas árvores, se viu livre das severas expectativas do pai e de obrigações que antes o atormentavam, como almoçar escargots. Em contraposição, foi preciso muito esforço e raciocínio para garantir sua segurança enquanto dormia nos galhos, seu acesso a água potável e alimentos diversificados, sua proteção nos dias de chuva, frio ou perigo. Conforme notavam seu crescimento, o vilarejo de Penúmbria passava a vê-lo como uma lenda viva, de mente sã e físico robusto, filósofo e estrategista, excêntrico e sedutor. Seu senso crítico e sua sabedoria também foram adquiridos com o tempo, após muitas leituras e vivências. Quando tinham problemas, os vizinhos recorriam a ele como a uma entidade sobre-humana e, juntos, realizavam melhorias no cultivo e na colheita, conquistas em batalhas, progressos sociais e culturais. Quanto aos casos sem solução, Cosme lhes serviu como bode expiatório, como se nada fosse além de uma figura folclórica: “Acontece que naquele tempo surgiu o costume de, quando uma moça engravidava e não se sabia quem era o responsável, atribuir-se a culpa a ele, era cômodo.” (CALVINO, 2009, p. 153). Como qualquer visionário, de um momento para outro o personagem perdia toda a sua credibilidade, chamado de louco pelos que antes o seguiam. Apesar de abandonar o rígido sistema familiar de sua infância e afirmar sua independência, Cosme vivia uma constante alternância entre o incentivo e a descrença dos demais. Novamente nos deparamos com um humor proveniente de uma situação perturbadora: “O conflito cômico nasce da oposição entre duas modalidades de vida: uma libertadora e outra opressiva.” (VIANNA, 2007, p. 99). O que leva o expectador a lidar com essas nuances com um sorriso no rosto é o fato de ainda assim, não se esgotar no protagonista a esperança de modificar a sociedade e tirar todos da alienação. É, mais uma vez, a presença da leveza nos escritos de Calvino (1990): A figura de Cosme recupera o herói dos contos maravilhosos, em que a inteireza do caráter estende-se à ação para o bem comum. A tradição é revisitada junto ao ideal da aventura, princípio gerador do enredo. A reinvenção tira o herói do chão e coloca-o para estar suspenso entre as árvores, assim, apesar da habilidade de luta apresentada pelo barão, a força de sua ação provém do seu intelecto, das coisas do alto, de sua destreza intelectual. (PRECIOSO, 2009, p. 147)
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Outro riso bastante recorrente na era moderna provém da ironia. Já era possível identificar esse elemento no exemplo acima, visto que Cosme encontrou, em sua nova vida sobre as árvores, o discurso opressor de que fugira aos doze anos. Ela também é usada para rebaixar as figuras representantes da igreja (seu preceptor, o abade Fauchelafleur) e da política (seu tio, o cavaleiro advogado Eneias Sílvio Carrega), descrevendo-os como distraídos, atrapalhados e incompetentes em suas funções. Por vezes, a ironia soma-se ao humor negro, como no episódio em que o pai do jovem falece. As árvores, que tanto afastavam Cosme dele, agora faziam com que ele se tornasse inacessível para o filho, durante o enterro: Também Cosme acompanhou o funeral, passando de uma árvore a outra, mas no cemitério não conseguiu entrar, porque nos ciprestes, densos como são de folhagem, ninguém consegue se pendurar de jeito nenhum. Assistiu ao enterro do outro lado do muro e quando todos nós jogamos um punhado de terra sobre o caixão ele atirou um raminho com folhas. (CALVINO, 2009, p. 133)
Em certo momento do romance, Cosme Rondó encontrou outras pessoas que viviam em árvores. Naquela região, seu estranho hábito foi considerado normal, pois espanhóis exilados, impedidos por uma lei de serem recebidos também no solo italiano de Olivabaixa, usaram aquele mesmo método para solucionar seu dilema. E, nesse caso, podemos ver o realismo maravilhoso descrito por Todorov (2004, p. 43), uma situação típica do mundo criado, que não causa estranheza aos demais. Diferente do barão, adaptado ao rápido deslocamento entre os galhos e a engenhos simples e práticos, quase que naturais, os nobres moradores daquele bosque levaram almofadas e selas para o topo das árvores e mantinham o vestuário a que estavam acostumados, com vestidos armados, perucas e sapatos desconfortáveis. Desprovidos de mobilidade, indispostos a abandonarem suas antigas vidas de luxo, criaram um reino suspenso parecido ao máximo com o que tinham em terra. Findo o exílio, porém, desceram das árvores sem oscilar. Apenas Cosme ainda tinha motivos e meios para se manter lá em cima, com sua vida sensata, modesta e sem amarras. Sua condição lhe rendeu muitas experiências interessantes, que o tornavam cada vez mais diferente das pessoas terrenas. Ele acaba por declarar que “aquele que pretende observar bem a terra deve manter a necessária distância” (CALVINO, 2009, p.
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158). A diferença se acentua na hora de sua morte; era um personagem mágico demais para morrer como os outros e ser novamente aprisionado ao chão. Em ato heroico, agarrado à âncora de um balão, consegue salvar os aeronautas de um acidente, mas é arrastado pelos ares em direção ao mar e seu corpo jamais é encontrado. O sumiço enigmático de Cosme muito nos lembra um episódio de Cem anos de solidão, romance do colombiano Gabriel García Márquez lançado dez anos depois, em 1967. Nesse ícone do realismo maravilhoso latino-americano, a jovem e inocente Remédios, a Bela, sobe ao céu enquanto estende lençóis brancos no varal e nunca mais é vista, sem, contudo, que o fato causasse qualquer espanto à família. De maneira semelhante, foram arrebatados pelos ares os personagens bíblicos Elias e Enoque, conhecidos pela fé admirável e pelo relacionamento estreito que mantinham com Deus. Todas essas figuras pareciam não pertencer à comunidade em que nasceram, sendo retraídas e despreocupadas com as questões mundanas. Remédios não tinha pudor, sentimentos ou desejos sexuais, sequer se dava conta dos olhares que atraía. Cosme, por sua vez, pouco se importava com o título de baronato, as relações de poder e os costumes aceitos pela sociedade. Ao fim, jamais precisaram retornar à terra e a suas imposições de convivência. O último livro da trilogia de Calvino, O cavaleiro inexistente (Il cavaliere inesistente, 1957), conta a história de outro personagem não pertencente ao mundo comum, Agilulfo. Nesse caso, sua condição também se reflete exteriormente, por sua falta de corpo. O herói não passa de intenções emaranhadas e instaladas numa armadura branca reluzente. E, apesar de tão incomum, só é rejeitado pelos demais por seu excessivo moralismo sobre-humano, que o impulsionava a tentar melhorar tudo a seu redor e convencer as pessoas a darem o melhor de si na luta pelos ideais. Essas mesmas qualidades além da medida são geradoras de riso para o leitor, pelo exagero caricatural da imagem construída ao longo dos tempos do cavaleiro medieval. Todos à sua volta se incomodavam com sua perfeição. Ainda assim, os personagens não hesitaram quando se depararam com a não-existência de Agilulfo e sua armadura oca. Todorov (2004, p. 169) explica que a literatura mais recente já não necessita usar o fantástico para mascarar temas obscuros, velados, graças ao advento da psicanálise, que tomou para si a responsabilidade de abordar os assuntos até então
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evitados pela sociedade, que só podiam ser tratados anteriormente pela literatura. Liberada dessa função primária, a ficção poderia trabalhar com artifícios apenas possíveis nas páginas dos livros, sem se deter a questões moralizantes. Como prova, a reação do imperador Carlos Magno ao constatar que seu cavaleiro não tinha corpo é uma surpresa mínima, bem humorada, sem qualquer temor, que logo aceita o fato e se diverte com ele: - Falo com o senhor, ei, paladino! – insistiu Carlos Magno. – Como é que não mostra o rosto para o seu rei? A voz saiu límpida da barbela. - Porque não existo, sire. - Faltava esta! – exclamou o imperador. – Agora temos na tropa até um cavaleiro que não existe! Deixe-nos ver melhor. Agilulfo pareceu hesitar por um momento, depois com mão firme e lenta ergueu a viseira. Vazio o elmo. Na armadura branca com penacho iridescente não havia ninguém. - Ora, ora! Cada uma que se vê! – disse Carlos Magno. – E como é que está servindo, se não existe? - Com força de vontade – respondeu Agilulfo – e fé em nossa santa causa! - Certo, muito certo, bem explicado, é assim que se cumpre o próprio dever. Bom, para alguém que não existe, está em excelente forma! (CALVINO, 2005, p. 9-10)
A própria participação da figura histórica do imperador franco é elemento do cômico, ao dessacralizar a formal descrição que a história oficial outrora fazia. Tal efeito já se havia realizado em O barão nas árvores, quando a excentricidade de Cosme desperta o interesse de Voltaire (CALVINO, 2009, p. 157-158), ou a admiração de Napoleão (CALVINO, 2009, p. 227). O jovem barão propôs-se a estabelecer contato até mesmo com Denis Diderot (CALVINO, 2009, p. 156). Em O cavaleiro inexistente, marcam presença também os personagens de Orlando furioso, de Ariosto. Num olhar mais abrangente da obra, podemos compreendê-la como uma interessante releitura do Dom Quixote de Cervantes, atribuindo ao cavaleiro perfeito um escudeiro grotesco. A opção de se estabelecer um diálogo entre obras distintas e referências históricas sem que o novo texto se coloque como superior a elas é, segundo Hutcheon (1985, p. 46), a paródia. Por meio dela, é feita a alusão a um escrito anterior, resgatando o passado, ao mesmo tempo em que se estabelece uma distância crítica entre ambos. Dessa forma, a obra mais recente é enriquecida pela multiplicidade de referências,
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enquanto a primeira tem seu valor trazido novamente à tona, através das novas possibilidades de leitura. A história de Agilulfo é claramente uma analogia ao homem moderno, que apenas se preocupa em colecionar títulos e manter a boa aparência, sem se importar com seu interior. Novamente a temática do homem problemático de Lukács, cuja vida é uma constante oscilação entre a “realidade do ser”, a essência de cada pessoa e seus impulsos, e o “ideal do dever-ser” (2000, p. 79-80), aquilo esperado pela sociedade com a qual ele não consegue se harmonizar. Além disso, a inexistência do personagem trata, em vários momentos do romance, da construção de identidade, das motivações de cada pessoa, até mesmo quando participando de uma batalha, dos prazeres e das desventuras de quem nada mais é que um ser de carne e osso. Agilulfo se sente superior aos demais cavaleiros, por não depender de alimentos e sono ou estar suscetível a uma explosão de sentimentos. Contudo, a naturalidade e a concretude dos homens o incomodam, talvez por ser algo humano demais, que escape de sua compreensão. Seu extremo oposto é Gurdulu, alguém que não tem consciência de existir e a cada momento confunde a si próprio com os objetos e as pessoas a sua volta. O que não deixa de ter sua pitada de insólito ao se fazer tão absurdamente reificado. Se partirmos da consideração de Ricardo Jardim Andrade, cavaleiro e escudeiro são figuras humorísticas, pois “o cômico é essa lado da pessoa pelo qual ela se assemelha a uma coisa. A rigidez mecânica substitui a flexibilidade viva da pessoa.” (ANDRADE, apud VIANNA, 2007, p. 96). Também o riso da cultura medieval é resgatado, trazendo à tona o cômico não apenas libertador, mas regenerador. Por esse motivo, Bakhtin (2008, p. 10) o caracteriza como ambivalente, sendo, além de irônico, alegre e jocoso. Dessa forma, o riso não se restringe a determinado grupo que compreenda a crítica ácida das entrelinhas; é acessível a todo público, usando a máscara do humor como auxílio da representação, e não como ferramenta de dissimulação. Sendo universal, tudo e todos são motivos de riso, sem que a paródia se faça superior ao parodiado e possa revelar seus próprios conflitos. Calvino faz uso do cômico para ampliar seu retrato da sociedade, ao fazer com que o leitor ria de sua própria situação, como era costume no século XX. Entretanto, o
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autor primava pelo divertimento, e não pelo riso amargo e non sense da modernidade. Para que tal efeito pudesse ser criado, foi necessário um deslocamento temporal, que ambientou a trilogia na idade medieval e renascentista. Dessa forma, o riso pôde desempenhar diversas performances. Em Os nossos antepassados, a ironia característica do tempo de Italo Calvino divide espaço com o grotesco medieval. Fica clara a utilização do ambiente medieval distanciado como palco para encenação dos reais conflitos de uma sociedade abalada por duas grandes guerras e o que decorreu delas. Esse efeito se reforça por meio do humor, que provoca uma “espécie de distanciamento do específico, de sentido da vastidão do todo.” (CALVINO, 2006, p. 189). Apesar da leveza e da comicidade que os escritos de Italo Calvino mantêm com seu tom fabular, o expectador é levado a uma autoavaliação, refletindo sobre o abalo dos antigos valores na modernidade. Surge o medo de reconhecer a si mesmo na personagem partida em dois, na que decide começar uma sociedade do zero em um novo ambiente, ou na que tem uma bela aparência, mas é vazia por dentro. Isso porque “Um dos principais temas interiores do romance é justamente o tema da inadequação de um personagem ao seu destino e à sua situação. O homem ou é superior ao seu destino ou é inferior à sua humanidade” (BAKHTIN, 2010, p. 425), sem que jamais consiga se ajustar a seu contexto ou ao fim que lhe é reservado. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. ___. Questões de Literatura e de Estética: a Teoria do Romance. Tradução de Aurora Bernardini et al. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2010. CALVINO, I. Assunto encerrado: discurso sobre literatura e sociedade. Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. ____. O barão nas árvores. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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____. O cavaleiro inexistente. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ____. O visconde partido ao meio. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ____. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. HUTCHEON, L. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX. Tradução de Teresa Louro Pérez. Rio de Janeiro: Edições 70, 1985. (Arte e Comunicação) LUKÁCS, G. A teoria do romance. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades/ Editora 34, 2000. MINOIS, G. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Elena Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003. PIRANDELLO, L. O humorismo. Tradução: Dion Davi Macedo. São Paulo: Experimento, 1996. PRECIOSO, A. L. Tradição e Reinvenção: as convergências em I nostri antenati de Italo Calvino e Primeiras estórias de João Guimarães Rosa. São José do Rio Preto, 2009, 280 p. Tese (Doutorado em Letras) – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Campus de São José do Rio Preto, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. SANTOS, A. Um périplo pelo território duplo. Revista Investigações, Recife, v. 22, n. 1, p.51-101, jan. 2009.
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TODOROV, T. Introdução à Literatura Fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. (Coleção Debates; 98) VIANNA, L. M. O. Italo Calvino e o Riso como Saber. Rio de Janeiro, 2007. XIII, 140f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras. Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura: Poética.
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ESTILHAÇOS COTIDIANOS: A VIOLÊNCIA EM 100 HISTÓRIAS COLHIDAS NA RUA (1996), DE FERNANDO BONASSI Natasha Fernanda Ferreira Rocha (UEL)
A Configuração da Violência As definições acerca da violência e suas designações correlatas são vastas e inúmeras. Se recorrermos a sociologia e a filosofia, o debate estende-se e abre-se a inúmeros critérios, que aplicam-se com certa relatividade às sociedades. Em uma pesquisa no dicionário Houaiss (2009), o verbete violência é datado no século XIV e possui ao menos seis acepções. Violento, palavra que merece uma atenção maior neste trabalho, é algo “que ocorre com uma força extrema ou uma enorme intensidade, em que se emprega força bruta; brutal, feroz, que possui grande força, grande poder de ataque ou de destruição, que perde facilmente o controle sobre si mesmo; irascível, colérico”. Entreve-se que aquilo que é violento, pode sê-lo por vários caminhos e, assim, é a produção contística de Fernando Bonassi, em que a violência é pulverizada desde o projeto gráfico de suas obras, até suas personagens e escrita. Este caráter agressivo manifesta-se, por exemplo, em Passaporte: relatos de viagens, livro publicado em 2001, pela editora Cosac Naify. A coletânea, que reúne mais de cento e trinta minicontos, tem um design muito semelhante a de um passaporte e traz, estampada em sua capa, uma gilete. A leitura semiótica pode começar daí. A função deste objeto, a de barbear, nos é furtada e o que resta é uma pequena lâmina, peça destinada a cortar, furar ou talhar. O objeto, vale notar, cede lugar ao brasão da República Federativa do Brasil. A noção de violência, que preenche o conteúdo da obra desde sua capa, é resignificada: o autor fala de uma experiência que, partindo do nacional, abrange um território global. Cada um deles, pretende ser um retrato de grande força, apesar do pouco tamanho, capaz de ferir aquele que os lê e, por isso, a gilete
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torna-se símbolo adequado para uma representação pictórica do conteúdo. Cortar, furar, talhar: é a essas ações que se destina a minificção escrita por Fernando Bonassi. Da mesma maneira, a capa de 100 histórias colhidas na rua transmite sua mensagem. Estampada sobre um fundo vermelho, cor simbólica, que remete a imagens como sangue e dor, encontra-se uma imagem desfigurada do que parece ser um retrato de transeuntes em uma calçada de um grande centro. A imagem tem um ponto central, localizado no canto esquerdo superior, que é de onde começa a desfiguração, em um movimento centrífugo. As pessoas que se encontram próximas a este ponto, as mais nítidas, estão de costas para o retrato. Ao contrário, as que estão distantes deste centro e mais próximas daquele que vê a imagem, estão de frente para o retratista, mas completamente borradas. Não é possível divisar nenhuma característica destes transeuntes, porque ora não estão de frente, ora porque estão diluídos em uma mancha. A imagem acaba sendo um borrão representativo de uma multidão anônima. Não dar face aos indivíduos em um projeto gráfico ou não nomeá-los no conteúdo da obra, usar um objeto representativo de força, em substituição do brasão nacional ou configurá-la em textos irascíveis são dois modos distintos, mas complementares, pelos quais o conteúdo se materializa na forma. Essas duas características, violência e anonimato de classes e vozes, podem, de alguma maneira, ilustrar a contemporaneidade. Diluída nos núcleos urbanos, a violência é sintomática de uma construção urbana e de um sistema social que falharam em algum momento em seu estabelecimento. A condição anônima dos indivíduos, os excluídos deste novo modelo social, perpassa a noção da violência e de uma crise do sujeito, que se encontra perdido identitariamente. Acerca dessa cena pós-moderna, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman desenha um grandioso panorama. A modernidade líquida, com seu sistêmico e acelerado ritmo de consumo, é, simultaneamente, um sistema de autoidentificação e estratos. A instauração de cada nova ordem gera exceções e excedentes. A exclusão dos que não têm capacidade de se portar como consumidores, nestes tempos de inovações incessantes, é o produto de um sistema de pureza desigual. É neste momento em que o outro, ironicamente semelhante a todos os componentes sociais por garantia legal, torna-se a sobra, o impuro, o sujo – já que expulso de tal estado de limpeza. É em O
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Mal-Estar da Pós-Modernidade (1998) que essas discussões se desenrolam em pormenores. Não é interesse da pós-modernidade, comandada por um poder financeiro extraterritorial, transformar pobres em consumidores ativos. A fim de manter o ideal de pureza, cresce a tendência de isolar esses estranhos em guetos suburbanos e, cada vez mais e mais violentamente, “incriminar seus problemas socialmente produzidos” (BAUMAN, 1998, p. 25). São esses estranhos os principais personagens da literatura produzida por Fernando Bonassi.
Literatura Contemporânea e 15 Tânia Pellegrini em seu texto Os Caminhos da Cidade, publicado em Despropósitos: Estudos de ficção brasileira contemporânea (2008) traça algumas linhas de pensamento da literatura produzida recentemente no Brasil. Se até os anos 60 percebia-se nas letras nacionais a divisão entre literatura urbana e literatura regional, após a instauração da ditadura militar e a tardia introdução do capitalismo avançado neste território tal dicotomia cai por terra. Mantém-se uma preocupação com o social que, na década de 70, manifesta-se através de obras de cunho jornalístico e testemunhal acerca dos suplícios do período ditatorial. Ao fim desse, abre-se um leque de possibilidades: há o flerte com gêneros consagrados, como o romance histórico ou policial e ganham espaço “temáticas precipuamente urbanas: a questão das minorias (incluam-se aí as mulheres, os negros e os homossexuais), o universo das drogas, da violência e da sexualidade” (PELLEGRINI, 2008, p. 21). A literatura, a fim de tentar representar o contemporâneo ou, ao menos, simulálo, interessa-se, dentre outros temas, pelo cenário urbano. Beatriz Resende, crítica literária e professora do Departamento de Letras da UFRJ, aponta que grande parte da produção literária brasileira participa de uma tríade que se constitui por três características: a fertilidade, a qualidade e a multiplicidade. As questões dominantes manifestam-se no eixo cidade-sociedade. Nas produções brasileiras, segundo a autora, há uma presentificação dominante, isto é, um constante olhar e retrato do tempo
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presente, em relativo detrimento do passado histórico, tão observado nos romances deste gênero e no ufanismo que procurava a criação de uma identidade nacional. Nas palavras de Resende, “o que interessa, sobretudo, são o tempo e o espaço presentes, apresentados com a urgência que acompanha a convivência com o intolerável” (RESENDE, 2008, p. 26). Quando o passado é matéria para os textos ficcionais o objetivo é, também, entender o presente. A presentificação é a tentativa de compreender o tempo atual pela literatura. Manifesta-se textualmente pelas escolhas lexicais que reiteram esta característica, como se indicará adiante. Uma segunda questão de importância, relacionada ao aspecto social, é a volta do trágico, traço que marca esta época pós-globalização, diretamente ligada, portanto, ao aspecto anterior. Se resgatamos o texto trágico, este, igualmente, expressa-se no tempo presente. O último ponto enlaça os anteriores se apresentando como um tema: a violência das grandes cidades. Ao redor dessa, “aparecem a urgência da presentificação e a dominância do trágico, em angústia recorrente, com a inserção do autor contemporâneo na grande cidade, na metrópole imersa numa realidade temporal de trocas tão globais quanto barbaramente desiguais” (RESENDE, 2008, p. 33). O professor do departamento de Letras da PUC-Rio, Karl Erik Schøllhammer, na publicação Literatura Brasileira Contemporânea (2009), conceitua, da mesma forma, características presentes em tal literatura. Para ele, a nossa produção busca compreender o presente – relação que Beatriz Resende nomeia como presentificação – mas liga-se ao ensaio de respostas a um passado perdido, que se torna objeto de reconstrução literária e, a um futuro utópico, mas vazio de promessas libertadoras. A Geração 00 – escritores da primeira década do século XXI – não suspende os laços de estilo com a década anterior, mas se enlaça a ela pela mesma liberdade de expressão e escrita atrevida. Desses últimos vinte anos, portanto, diagnosticou-se, apesar da vastidão de temas, duas vertentes identitárias. Uma que se utiliza do presente pela banalidade e pela matéria cotidiana de modo mais subjetivo, e outra propensa à recriação de um novo realismo, impactante, e determinada a religar a ponte responsabilidade/problemas sociais. Frutos do tempo e das condições contemporâneas, a obra aqui analisada é contemplada por este ponto. Os textos tanto de 100 histórias colhidas na rua (1996)
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como de Passaporte (2001) são majoritariamente presentificados e violentos. Se o projeto gráfico dos livros já no indica sua violência – física, pela gilete, ou psicológica, pelo anonimato – similar é o que ocorre no conteúdo da obra. Grande parte dos microcontos falam sobre personagens sem nomes ou marcas capazes de caracterizá-los. Raramente são os próprios que falam de si. O narrador é, majoritariamente, do tipo câmera ou em terceira pessoa. Em 15, de 100 histórias, é o que ocorre. O miniconto é uma cena da agressividade gratuita que por vezes atinge os habitantes da cidade. No nível narrativo, em princípio, há um jogo cênico que lembra o conto de Rubem Fonseca, Passeio Público, em que um motorista anônimo, sujeito do fazer, em posse de instrumentos que o tornam aptos a matar, dirige seu carro, objeto que garante sua fuga rápida e a omissão de sua identidade. Sua pistola, automática e silenciosa, não anuncia sua presença. A vítima e seu objeto-valor, um travesti, mal percebe o ataque da música de munição que pretende pô-lo a dançar 15 PÁRA NA ESQUINA da República do Líbano com a Juscelino Kubitschek. Fica com o vidro fechado até que o travesti esteja no meio da calçada, caminhando em sua direção. O vidro elétrico desce vagarosamente, descortinando a pistola automática. Atira uma vez. Na calçada. Com silenciador parece um assobio. O travesti mal percebe. Observa a poeira subir na contraluz dos faróis. Diz: “Dança.” Atira mais duas vezes. O travesti foge dos tiros. Desequilibrado nos saltos altos, recebe o quarto disparo na coxa. Cai. Deita na calçada. Chora. O homem desde do carro, dá a volta e acerta entre os olhos. Não suporta ver ninguém sofrendo. (BONASSI, 1996, p. 37)
Ainda que curtos e escassos em descrições físicas e/ou psicológicas dos personagens – é possível até afirmar que o texto lide com estereótipos (travesti/agressor) – os textos minificcionais do enunciador Fernando Bonassi tem grande capacidade de criação de figuras. São elas as encarregadas de apontar os temas da narrativa, que giram em torno de uma agressividade, também formal: a violência do espaço urbano, a homofobia, a desvalorização da vida, relações de poder.
Percurso de Tensividade
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A configuração e organização textual de 15 permite analisar um crescente percurso de tensividade tanto conteudística, como formalmente. No plano do conteúdo percebe-se que o texto divide-se em setores antagônicos. A primeira personagem anunciada é o motorista que, a frente, será revelada como o assassino. Ele é o sujeito responsável pela performance. Os detalhes que o texto nos fornece sobre esta personagem dizem respeito mais aos instrumentos que estão em sua posse do que de sua constituição como persona. A construção do homem, então, é marcada pelo carro, minimamente moderno, de vidros elétricos, e de sua pistola, automática e silenciosa. O enunciador pretende, com essa escolhas, marcar também um espaço social: um homem (e não uma mulher) de posses, que comete um homicídio e crê em sua condição de impune. A segunda personagem, o travesti, não é munido de nenhum dos instrumentos do primeiro. Encontra-se a pé, na noite do centro urbano em seus saltos altos. A tensão no conteúdo deve-se, claramente, à execução final. A motivação do crime cometido contra o travesti, indicado como alguém de um posição social inferior a do assassino, não é revelada. Algo recorrente ao gênero minificcional: os indícios que auxiliam o leitor a construir um percurso passional, por exemplo, são omitidos. O narrador destes textos, a maneira de um detetive que colhe as pistas que a cena do crime lhe fornece, descreve, com a concisão de um prontuário, a ação desenvolvida nos limites daquele flash. O leitor, na tentativa de uma interpretação mais ampla daquele retrato, acaba buscando, em vão, hipóteses de acontecimentos prévios, exteriores ao texto. Os motivos do crime podem ser de cunho homofóbico ou sádico, por exemplo. Deslocando a atenção para uma possível articulação de estereótipos, também é possível pensar em um novo antagonismo. Normalmente, o assassino, com exceção dos killers clowns do cinema, tem uma caracterização sóbrea, que não foge do jogo de cores monocromático de preto/cinza/branco. O destaque, não raro, é de sua arma, cintilando em tons de prata. A figura estereotipada do travesti, ao contrário, fulgura em cores fortes, brilhos e texturas. Há uma dualidade que se confronta e expressa, muitas vezes, relações sociais de poder. Não só em 15, mas em 37, em que uma grávida é morta pelas forças policiais ou em 97, em que um bando de assassinos de aluguel rezam pela alma daquele que acabaram de ceifar. Todas as curtas narrativas citadas operam em um eixo
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de violência x pacificidade, que é a oposição fundamental destes textos. É neste confronto dicotômico que nascem os conflitos narrativos. A progressão tensiva do plano discursivo ocorre a partir das escolhas lexicais do enunciador. Aqui o texto também se parte em dois. Em um primeiro momento, que corresponde à apresentação do homem em seu carro até o instante em que atira a primeira vez, há um tipo de construção frasal. Os períodos são maiores, em comparação com os posteriores, e mais descritivos. Há a construção da cena para que a ação ocorra. São frases em que predomina um determinado ritmo, mais pausado. Este, por sua vez, é construído
pelos
verbos
empregados
na
forma
do
gerúndio
(caminhando,
descortinando), que indicam que a ação ainda está em curso, e, fonicamente, pelo incidência da vogal /a/ anasalada, representam o prolongamento de um movimento. Ainda que haja verbos conjugados no tempo presente do modo indicativo, o aspecto verbal de destaque nas primeiras orações do conto é o de duração. Outro léxico que marca o ritmo mais pausado deste primeiro espaço, é vagarosamente, referindo-se à abertura do vidro do carro. É importante destacar estes indicativos, já que a progressão tensiva parte deste estado inicial de relaxamento. A partir de então, a esquema frasal se altera. Se no primeiro momento do conto, o leitor podia visualizar um imaginário de movimentação mais tranquila, graças às palavras figurativas e aos verbos, a lógica passa a ser mais acelerada. Os períodos diminuem consideravelmente de tamanho e resumem-se, ocasionalmente, em apenas uma palavra. Soam como batidas aos olhos do leitor “[...] Diz: “Dança.” [...] Cai. Deita na calçada. Chora.” (BONASSI, 1996, p. 37). A repetição da estrutura frasal é uma das responsáveis por essa alteração de ritmo. Os verbos estão, majoritariamente, conjugados no tempo presente do indicativo, o que mostra que as ações ali marcadas são pontuais, não se repetem ou se estendem, como a princípio. O discurso indireto utilizado também é uma maneira capaz de aproximar o leitor da cena que se narra.
Presentificação & Poder Imagético
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A alteração de construção das frases na segunda metade do miniconto apresenta uma outra questão, que a ela se interliga. O uso dos verbos no presente cria uma atmosfera de presentificação. Conceito utilizado em várias áreas do saber, inclusive em literatura, como visto anteriormente, aqui significa uma preocupação com o instante presente. É através da presentificação, ou seja, a partir da elaboração de um texto com indicativos deste tempo – tanto pelo conteúdo contemporâneo, violência urbana, quanto pelas escolhas lexicais, verbos e palavras figurativas – que é concedido ao leitor a impressão de poder ver a cena de perto e em minúcias. O aspecto verbal, presente e pontual, caracteriza um procedimento expressivo: a debreagem enunciativa. As debreagens agem em três instâncias textuais, sendo elas as de pessoa, tempo e espaço. A debreagem do tipo enunciativa é a que fala pelo eu, no aqui e agora e projeta esses actantes. A relação entre enunciado e enunciação é muito estreita e a criação de uma atmosfera subjetiva viabiliza-se na prática graças à posição daquele que fala. É, portanto, um texto com grande capacidade de aproximar-se do leitor e de construção a sensação de estar presente na cena narrada. Para seduzir o leitor, as formas artísticas atuais valem-se da matéria prima que a sociedade e a vida contemporânea tem lhe ofertado, e expressam-na desde seu projeto gráfico, como já foi destacado. Vale ressaltar que a literatura contemporânea, de maneira geral, tem flertado com experimentalismos e outras formas de arte. No caso da produção contística brasileira, sua forma curta, os minicontos, tem ganhado destaque nas últimas décadas e os números, tanto de publicações como de estudos sobre o gênero, tem crescido. A minificção, por ter a concisão como um de seus princípios, necessita trabalhar com o máximo de conceitos e léxicos figurativos. Sua linguagem acaba por aproximar-se da linguagem cinematográfica, no sentido de que
ambas
devem criar imagens e contar uma história em um curto período/espaço. Na produção de Fernando Bonassi, que é ampla e variada, há obras que intercalam hibridismos. Com o cinema, nas marcações de cena e indicação de como aquele conto ou passagem deveria ser filmado, em Amor em Chamas. Ou com o drama, baseado no texto bíblico de São João, Apocalipse 1,11. Ou ainda em Prova Contrária que, tendo a forma de romance, leva a inscrição nas primeiras páginas, de que aquele é um livro que deveria ser encenado. Todas elas, entretanto, reservadas as suas diferenças, encontram-se no
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território da presentificação e de um desenvolvimento textual e representativo da violência, articulando-se com a vasta gama da literatura contemporânea brasileira.
Referências Bibliográficas BARROS, Diana Luz Pessoa de. Paixões e apaixonados: exame semiótico de alguns percursos. In: Revista Cruzeiro Semiótico. Porto: Associação Portuguesa de Semiótica, 1999. p. 60-73 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudia Martinelle Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. BONASSI, Fernando. Passaporte: relatos de viagens. São Paulo: Cosac Naify, 2001. ____. 100 histórias colhidas na rua. São Paulo: Scritta, 1996. FIORIN, José Luiz. A noção de texto na semiótica. In: Revista Organon 23. p. 163173. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009 PELLEGRINI, Tânia. Despropósitos: Estudos de ficção brasileira contemporânea. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2008. RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.
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MÚSICA, DISCURSO DE IDENTIDADE NACIONAL E DITADURA MILITAR NO BRASIL: UMA ANÁLISE ENTRE FOUCAULT E BURKE Nayara Crístian Moraes (UFG-Regional Jataí) Tem-se como objetivo neste trabalho buscar compreender momentos do período de ditadura militar no Brasil através da análise do discurso de determinadas canções da época. Para isso nos embasamos em conceitos de Michel Foucault (1987,1996), tais como: discurso, dispositivo e verdade, fazendo também um diálogo com Peter Burke e os conceitos de representação, evidência e vestígio. Para Peter Burke, a história cultural se pauta principalmente nas práticas e representações (Burke, 2005). Em Testemunha ocular : história e imagem, 2004, o autor nos faz entender determinados elementos da cultura são visões contemporâneas de um mundo social que junto à colocação de um contexto podem dar luz ao passado. Para ele, as imagens são indícios, vestígios, evidências, representações. Burke nos dá uma visão de imagens que se tornaram, com o passar do tempo, poderosas representações culturais, uma testemunha ocular que registra. Nesta análise, entendemos que a música é um elemento cultural que pode representar o passado tal como a imagem. Porém o autor nos lembra de que estas imagens precisam ser interpretadas, questionadas, desconstruídas. Diante do diálogo com a história cultural, podemos observar um discurso no Brasil que tentava forjar uma identidade nacional em meio à ditadura militar, produzindo verdades duvidosas em um processo histórico de extrema impunidade. Neste sentido, a música se apresenta como um dispositivo na sociedade. Ater-nos-emos por hora na canção “pra frente Brasil” de Miguel Gustavo, analisando os enunciados da letra da música, mas também o que para Foucault e Certeau (2011) é extremamente importante ao pensarmos o discurso: o lugar no tempo e o sujeito que fala. Por fim, pretende-se refletir e levantar questões pertinentes quanto ao processo que rememoramos hoje neste ano de cinquentenário da ditadura militar no Brasil não nos esquecendo de que a cultura é uma importante representação da sociedade e mais ainda, do sujeito. Vários foram os enunciados que circularam nessa época com o objetivo de exaltar o país e principalmente a necessidade do ufanismo. Slogans como “Brasil, ame-o ou deixe-o”, “este é um país que vai pra
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frente”, foram amplamente divulgados pela mídia oficial ou não, e muitas também foram as produções musicais utilizadas com a mesma finalidade, tal como a canção que aqui nos ateremos: Pra Frente Brasil, de Miguel Gustavo. Para isso é necessário que entendamos a importância do conceito de discurso pois para Michel Foucault, em A ordem do discurso,
analisar o discurso é mais do que pensar na palavra falada
observando apenas sua construção semântica. Pensar o discurso é também pensar a condição do discurso, seu plano discursivo, sua vontade de verdade, sua condição de verdade legitimada em instituições e saberes que em conjunto com as práticas (FOUCAULT, 1996, p. 15-17) e se colocam na sociedade ao longo do tempo, ao longo da história, assim, em Arqueologia do saber diz que: “Empreender a história do que foi dito é refazer, em outro sentido, o trabalho da expressão” (FOUCAULT, 1987, p. 140). Para ele é preciso questionar nossa própria vontade de verdade e “restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; suspender enfim, a soberania do significante” Ora, este acontecimento de que fala Foucault se produz como ele mesmo diz “como efeito e em uma dispersão material” (FOUCAULT, 1996, p. 51). Foucault trata a importância do lugar e condição de emergência de um discurso, desta forma, estudar o tempo em que se emergiu tais discursos é importante para percebermos os “valores de verdade” (FOUCAULT, 1987). É preciso então desconstruir estas verdades observando a historicidade da canção que aqui chamamos, embasados na trajetória dos estudos de Foucault, de dispositivo, que teve suas funções estratégicas na construção da imagem do mito do paraíso brasileiro. Na década de 1970 no Brasil, surgem canções como Pra Frente Brasil, ora tentando buscar a identidade nacional junto ao povo, sendo cantadas pelo povo, ora sendo utilizadas em propagandas institucionais direcionadas pela AERP, ou mesmo “sem intenções”, mas com efeitos de sentido que ajudaram a mitificar e construir o chamado período de desenvolvimentismo brasileiro. Seria o ufanismo declarado ao lado de movimentos desenvolvimentistas junto ao “Brasil que vai pra frente” na ditadura militar? Nos Anos de Chumbo no Brasil se via percorrer um poder que para Michel Foucault consiste em biopoder. O poder sobre o corpo, o poder sobre as populações. Um poder operado segundo a governamentalidade. Ora, a violência para que fosse executada precisava apoiar-se em justificativas. “Salvar o país dos comunistas” era o lema da vez. Empresários apoiavam com os slogans em seus cartazes:
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“Brasil, ame-o ou deixe-o”. Na década de 1970, a copa também precisava acontecer. Os militares precisavam parecer protetores da nação. E o Brasil cantava algumas vezes assim: Noventa milhões em ação / Pra frente Brasil, Do meu coração... / Todos juntos vamos, Pra frente Brasil/Salve a Seleção!/De repente é aquela corrente pra frente / Parece que todo o Brasil deu a mão / Todos ligados na mesma emoção /Tudo é um só coração! Era preciso cantar com o Brasil, colocá-lo novamente nos versos. Neste momento o governo militar também acabou se apropriando desta canção, incentivando o futebol, eram artistas cantando a brasilidade do país, o amor do verde e do amarelo, tão bonito, tão inzoneiro... Mas em que condição estava este país? Independente das intenções destes sujeitos, que efeitos têm este discurso neste momento sombrio da nação? Como dito anteriormente, na história e para Foucault, quando um discurso está sendo proferido, uma verdade está sendo criada, uma verdade está sendo produzida, porque não existe uma verdade absoluta, mas verdades que se formam ao longo do tempo, através dos sujeitos, através de seus discursos no tempo. As contradições permearam estes duros tempos de ditadura militar. Concomitantemente a década de 1970 seria um marco para a história das mídias no Brasil, e segundo Carlos Fico o regime de ditadura não ficou atrás criando a AERP, órgão de propaganda do regime militar. (FICO, 2004). Não só para as mídias de massa, mas também para a própria indústria cultural, a década marcou a indústria cultural que crescia absurdamente, enquanto o governo investia em propagandas ufanistas. (NAPOLITANO, 2002). Entendemos que as produções de verdade se davam e se dão nas grandes instituições, nas grandes práticas discursivas, mas também na relação entre os sujeitos, sejam em suas práticas cotidianas ou em sua produção dentro de instituições. Assim, a canção perpassam os campos discursivos da sociedade, a serviço das instituições governamentais ou não, mas também a serviço da busca pela identidade nacional, para justificar uma ditadura ou para abrasileirar os corações do próprio povo. A verdade de um país tropical, admirado pelo mundo por suas belezas variantes não contabilizou o sofrimento, a repressão e a censura vivida pelo mesmo país chamado de paraíso. Enquanto uns comemoravam os gols do país, outros eram massacrados, desaparecidos e mortos, tendo suas mortes e seu desaparecimento justificados por discursos que de uma
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forma ou de outra, acabavam maquiando a triste realidade, acabavam justificando o poder sobre os corpos, e tal discurso ufanista esteve presente em Pra Frente Brasil. Refer ências A História de 1972 – ZYD-66 - Rádio Jornal do Brasil AM/940 Khz. Documento Sonoro em Disco Continental; Produtor: Fernando Veiga; Locutores: Sérgio Chapelin e Eliakim Araújo. Gravações Elétricas, 1972. BURKE, Peter. O que é história cultural? Tradução Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2005. ______. Testemunha ocular : história e imagem. Tradução Vera Maria Xavier dos Santos; Revisão técnica Daniel Aarão Reis Filho. São Paulo: EDUSC, 2004. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 3. ed. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense, 2011. FOUCAULT, Michel. A ar queologia do saber. 3. ed. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. ______. A ordem do discurso: Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 3. ed. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1996. FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, 2004. NAPOLITANO, Marcos. História e Música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
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A RECEPÇÃO DAS IMAGENS VISUAIS DE DONA BENTA EM MONTEIRO LOBATO: FURACÃO NA BOTOCÚNDIA Patrícia Aparecida Beraldo Romano (Doutoranda Universidade Presbiteriana Mackenzie/ Professora da UNIFESSPA) RESUMO: Este texto apresenta possíveis reflexões teóricas sobre como as imagens visuais de Dona Benta, presentes em Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia, de Azevedo, Camargos e Sacchetta (1997), dialogam com o conteúdo da obra em questão. Palavras-chave: imagens visuais, Dona Benta, Monteiro Lobato. Os anos oitenta e noventa do século passado foram ricos em textos sobre o escritor, editor, empresário, fazendeiro, advogado, defensor do petróleo brasileiro, dentre outras atuações, Monteiro Lobato (1882-1948), que passou para o mundo dos clássicos universais, em especial, pela saga infantil do Sítio do Picapau Amarelo. Lançado em 1997, pela Editora Senac, em parceria com a Fundação Banco do Brasil e Odebrecht, Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia é uma obra que procura apresentar, já anunciado no título, esse homem das Letras brasileiras que defendeu o país em causas, muitas vezes, pouco discutidas na História do Brasil. Apelidando, carinhosamente, o país de Botocúndia, Lobato possivelmente pretendia fazer uma crítica às mazelas pelas quais o país passava, na primeira metade do século XX, e as quais ele tentava, através de muitos de seus textos literários ou não, denunciar.
Como
um
furacão,
procurava
combater
com
sua
escrita
o
subdesenvolvimento e a política retrógrada que imperavam no país. Essa é uma possível leitura para o título do livro que analisa não só a vida de Monteiro Lobato, mas também um pouco “da vida paulistana, e do meio urbano e rural em que Lobato viveu” 1, de acordo com a apresentação do bibliófilo José Mindlin (1914-2010). Obra ricamente ilustrada com fotos de vários arquivos brasileiros, a capa apresenta-se a partir de uma composição de retratos (Anexo 1) de Lobato em que o escritor aparece em ângulos variados que vão de sério a extremamente risonho, contribuindo para dar destaque ao título “Monteiro Lobato”. Todos pertencem ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) e fornecem ao leitor que virará a página uma certa expectativa do que irá também encontrar na obra: inúmeras ilustrações de capas de livros de Lobato, fotos de Lobato com a família e dele em atividade de trabalho, além de um texto que prima pela biografia de um escritor muito à frente de seu tempo. A capa 1
Apresentação de José Mindlin ao texto Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia, p. 11.
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ainda causa certo aguçamento pela figura, até certo ponto, múltipla, que se apresenta nas fotos. Não se pode esquecer de salientar que a obra apresenta uma série inédita, nunca antes divulgada, de pinturas e fotografias assinadas por Lobato. Ela foi editada em papel especial e em formato diferenciado o que elevou bastante seu custo. Em 2000, talvez para popularizá-la, foi reeditada em forma compactada, sem as ilustrações que muito enriquecem a vida documental de Monteiro Lobato, mas a um custo bastante acessível. O texto de trezentas e noventa e duas páginas aparece com Apresentação, Retrato de Lobato, Lobato por Lobato e Lobato pelas crianças, como pré-textos, seguidos de quatro capítulos subdivididos por itens que compõem as épocas a que os capítulos se referem. Cada capítulo trata de um período da vida de Lobato. São eles: 1882-1917: “Visões do Buquira”, 1917-1926: “Revolução Editorial”, 1926-1931: “Homem do Porviroscópio”, 1931-1948: “Militante do Progresso” e, por fim, Lobato pós Lobato, espécie de Conclusão, seguido dos pós-textos. Ao final de cada um dos quatro capítulos, apresenta-se uma “Cronologia” referente ao período de tempo a que o capítulo se refere. Essa divisão produz um interessante benefício: a facilidade na leitura que vem sempre acompanhada por muitas imagens ilustrativas do assunto do capítulo, gerando ao leitor um texto cuja leitura flui sem maiores dificuldades. Somam-se a isso, no tratamento da biografia do escritor, muitas passagens de textos epistolográficos do próprio Lobato, cuja linguagem e cujas referências pessoais lembram a narrativa ficcional. Essa opção estilística, destarte possa sugerir certa intimidade com o escritor, contribui para apresentá-lo como homem singular que Monteiro Lobato foi tanto no pensamento quanto no estilo de se expressar. Se, por um lado, temos em Furacão a preocupação com a biografia de Lobato, de outro temos a preocupação com o “lugar histórico” que ele ocupou (e ocupa) face às questões modernistas na literatura brasileira. Parece haver em Furacão certo “tom” de justiça para com a figura do escritor e seu papel no Modernismo Brasileiro, em especial, nos episódios pré- Semana de 22, já que se tornara lugar comum depreciar tudo o que a ela antecedera: “[...]sacralizada como divisor de águas e espécie de marco zero na trajetória cultural brasileira, a Semana de 22 deu ensejo a um tipo de análise reducionista
que,
na
prática,
significou
depreciar
quase
tudo
o
que
a
antecedeu”(AZEVEDO, CAMARGOS, SACCHETTA, 1997, p.173). Há ainda em Furacão a tentativa de mostrar um Lobato muito mais modernista do que certos modernistas consagrados pela Semana. A respeito da querela sobre a exposição de Anita
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Malfatti e defendendo a crítica de Lobato à pintora, Tadeu Chiarelli lembra: “Na crítica de arte paulistana ele era o mais capacitado e original dos críticos” (AZEVEDO, CAMARGOS, SACCHETTA, 1997, p.169). Em 1943, mais de vinte anos após a Semana, Sérgio Milliet salienta que, [...]apesar da ‘raiva iconoclasta’, os modernistas teriam respeitado alguns ‘adversários ferrenhos’, como Amadeu Amaral e Monteiro Lobato, porque ‘eles se impunham pelo valor intrínseco, eram modernos sem dar pela coisa, eram de todos os tempos’(AZEVEDO, CAMARGOS, SACCHETTA, 1997, p.173).
Essas questões, dentre outras inúmeras, tentam recompor a figura de Monteiro Lobato, objetivo primeiro de Furacão. Ao longo dos capítulos, muitas ilustrações, como já salientado, se apresentam ao leitor, contribuindo para que ele faça associações com o que conhece sobre o escritor. Convoca-se aqui a atenção do leitor para cinco ilustrações nas quais aparece a figura de Dona Benta, avó-contadora-mediadora de histórias da obra infantil de Lobato. Como a personagem Dona Benta se configura em interesse maior de estudo, pretende-se, a partir desse momento, intentar compreender como as ilustrações que a apresentam dialogam com o conteúdo de Furacão. A primeira ilustração com a figura de Dona Benta aparece na página 159 (Anexo 2), no capítulo “1917-1926: Revolução Editorial”, no item “O poder do Faz-de-Conta”. Trata-se de uma ilustração de Voltolino (João Paulo Lemmo Lemmi- 1884-1926) para o primeiro livro de Lobato: A menina do narizinho arrebitado, publicado em 1920, pela Monteiro Lobato e Cia. O capítulo é longo, são praticamente 100 páginas sobre a figura do escritor-editor em São Paulo. No item em questão, os autores exploram o início dos trabalhos do escritor na Monteiro Lobato e Cia, em 1920. Lembram a história que Hilário Tácito teria contado a Lobato sobre o mote inicial para o primeiro livro infantil e apresentam ao leitor como fora a primeira edição da obra que, dez anos mais tarde, seria incorporada a Reinações de Narizinho, título definitivo, junto com outros textos infantis também publicados esparsamente ao longo da década de 20 do século passado: Com capa ilustrada e cartonada, de 29 x 22 cm, 43 páginas e muitos desenhos coloridos de Voltolino, constitui, na opinião de Menotti del Picchia, ‘um belo presente de Natal de 1920 para esses milhões de serezinhos que ainda acreditam em sortilégios e fadas...’(AZEVEDO, CAMARGOS, SACCHETTA, 1997, p.158)
A ilustração da primeira página da obra apresenta uma Dona Benta bem diferente daquela com a qual o leitor está acostumado. Uma senhora curvada, com roupa pesada e quente, com touca na cabeça, típica imagem das senhoras já cansadas de
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viver. Essa descrição (que parece condizer com a ilustração) nos é apresentada no primeiro parágrafo do texto lobatiano para ser, no segundo, desmentida: Dona Benta é senhora feliz da vida, pois vive na companhia de sua neta Lúcia, a menina do nariz arrebitado. Anos mais tarde, em 1931, Lobato reuniria vários textos infantis que publicara na década de 20 em um só volume intitulado Reinações de Narizinho, o primeiro da saga completa publicada em 1947. Nesse texto, perde-se o tom melancólico presente no primeiro parágrafo da de 1920 e ganha certo humor o texto para a apresentação da avó Benta. A ilustração de Dona Benta existente na página 159 poderia, assim, deixar o leitor, pouco conhecedor das obras de Lobato, instigado a buscar em seu volume pessoal de Reinações a imagem presente ou ainda levá-lo a comparar os textos, já que a ilustração de Voltolino vem, em Furacão, acompanhada do texto com emendas de Lobato, conforme avisa pequeno texto na mesma página. Nas páginas que seguem a essa ilustração, aparece uma informação bastante peculiar sobre a avó Benta: ela não tinha nome e teria sido nomeada apenas à frente: Talvez influenciado por Nietzsche, em quem admirava o fato de ser um autor inacabado, sempre se refazendo, Lobato sistematicamente reformulava seus textos, alterando nomes, mudando situações, enxugando ou acrescentando palavras e frases. Tal procedimento pode ser detectado na edição fac-similar do primeiro A menina do narizinho arrebitado. Lançada pela Metal Leve em 1982, no centenário de Monteiro Lobato, por iniciativa do bibliófilo José Mindlin, nela observa-se, entre outras modificações, que tia Nastácia, por exemplo, nascera Anastácia. Dona Benta, antes chamada simplesmente de avó, só ganha seu nome mais tarde, e Narizinho, a princípio declaradamente órfã, depois perde essa característica, que fica apenas subentendida (AZEVEDO, CAMARGOS, SACCHETTA, 1997, p.167)
Pode-se constatar isso na ilustração referida e que se encontra no Anexo 2. É possível compará-la ao texto de Reinações, onde já há, logo no primeiro parágrafo, a apresentação da avó nomeada: Numa casinha branca, lá no sítio do Picapau Amarelo, mora uma velha de mais de sessenta anos. Chama-se dona Benta. Quem passa na estrada e a vê na varanda, de cestinha de costura ao colo e óculos de ouro na ponta do nariz, segue seu caminho pensando: ---Que tristeza viver assim tão sozinha neste deserto... Mas engana-se. Dona Benta é a mais feliz das vovós, porque vive em companhia das mais encantadora das netas – Lúcia, a menina do narizinho arrebitado, ou Narizinho, como todos dizem (LOBATO, 1977, p.9)
Lobato gostava muito de desenhar e pintar. Furacão é rico nessas imagens de desenhos e aquarelas produzidos pelo escritor. Preocupar-se com as ilustrações de seus
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livros parece ser também importante o que ajudaria a explicar os muitos ilustradores de suas obras. Furacão apresenta alguns desses incluindo a imagem de inúmeras obras de Lobato, cujos desenhos foram feitos por diferentes ilustradores que agradavam mais ou menos às crianças. As imagens visuais também oferecem um tipo de leitura aos leitores. Para Graça Ramos, em A imagem nos livros infantis: caminhos para ler o texto visual: Uma imagem, assim como um texto escrito, pode apresentar várias camadas de leituras, o que requer daquele que a examina um olhar atento e calmo, uma atenção que poderíamos chamar de flutuante, apta a captar além daquilo que é visto em um primeiro momento (RAMOS, 2011, p.35).
Tem-se, assim, um Lobato, apresentado em Furacão, também preocupado com essas questões que conduzem à segunda aparição de Dona Benta em imagem visual. Ela se encontra na página 313, no capítulo “1931-1948: Militante do Progresso”, no item “Despertador do Brasil-Criança”. O capítulo apresenta também quase cem páginas e boa parte dele é dedicada ao Lobato escritor de literatura infantil. Na ilustração, que é capa de uma edição da obra O pó de pirlimpimpim, de 1931, logo agregado a Reinações, e ilustrado por Jurandir Ubirajara Campos (1903-1972), genro de Lobato, temos uma Dona Benta se aventurando com as crianças pelo mundo das Fábulas. Curiosa por saber como seria conhecer e conversar com o senhor de La Fontaine, a senhora se aventura e a ilustração capta exatamente esse momento, quando as crianças e Dona Benta, juntamente com o Burro Falante, graças ao pó do pirlimpimpim, estão viajando até o País das Fábulas. Os leitores se deparam com uma senhora bem vestida (preocupada inclusive com a saúde, pois está com um manto que aparenta ser bem quente) e irreverente ao subir no Burro Falante e cheirar o pó mágico. A capa é rica em cores, em especial, a cor dourada que pode sugerir a magia da situação. Embora os cabelos brancos de Dona Benta, os óculos e as rugas sugerirem uma senhora idosa, isso tudo se imiscui à juventude das crianças por participar de viagem tão alucinante. A imagem também apresenta certo dinamismo, graças ao relinchar do Burro, à posição dos membros das personagens e, segundo Ramos (2011), às cores quentes. A imagem aparece em página juntamente com outra ilustração de J. U. Campos para o mundo da fábula lobatiana. Trata-se de uma ilustração de A pena de papagaio, de 1930, também agregada a Reinações em 1931, e mostra um globo do mundo da Fábula. Por que os autores teriam escolhido essa ilustração de Dona Benta, especificamente? Pode-se pensar na possibilidade de que ela se ajusta muito bem a esse contexto que conduz as personagens a esse mundo de fantasia. Também são conduzidos pelas
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imagens os leitores. Nesse capítulo de Furacão, o leitor se depara com uma série de pequenos trechos de cartas de crianças enviadas a Lobato. Muitas pedem para participar das aventuras junto com as personagens e desejam viver no sítio de Dona Benta. Identificam-se com o autor, como lembram os autores de Furacão e parecem nutrir pelo país o desejo de que se transformasse num grande sítio, como o de Lobato. Por ocasião de entrevista a Mário da Silva Brito para o Jornal de São Paulo, em maio de 1945, temse: Querem que o país todo se torne um sítio de Dona Benta, o abençoado refúgio onde não há opressão nem cárceres – lá não se prende nem um passarinho na gaiola. Todos são comunistas à sua moda, e estão realizando a República de Platão, com um rei filósofo na pessoa de uma mulher [...] (LOBATO, 2009, p. 239).
Assim, a escolha da imagem de J. U. Campos com a presença de Dona Benta parece se justificar por todas essas questões, em especial, porque o capítulo em si apresenta ao leitor as paixões dos jovens leitores pelas personagens infantis e mostra como a presença dos adultos Dona Benta e Tia Nastácia se justificam no texto: Caracterizando os dois principais adultos de suas histórias –Dona Benta e Tia Nastácia—como fontes do saber erudito e popular, ele quebra a hierarquia que separa a criança da gente grande e subverte as relações entre ambos. A autoridade da avó nasce da sua sabedoria e experiência e não do exercício do poder. Ela está ali para acolher afetivamente os menores com atenção e carinho. Sua disponibilidade em ouvi-los, responder às infindáveis perguntas sem censura ou mávontade não encontra paralelo na vivência real, ampliando extraordinariamente o campo de possibilidades para o aprendizado, que se transformava numa atividade lúdica e divertida. (AZEVEDO, CAMARGOS, SACCHETTA, 1997, p.317)
Na sequência, tem-se outra capa de Dona Benta elaborada por Jurandir Ubirajara Campos. Trata-se de uma capa para a obra Serões de Dona Benta, de 1937. A ilustração se encontra na página 323 de Furacão, no mesmo capítulo e item da anterior, portanto, ainda dentro do conjunto temático de discussão que teria motivado a existência da capa ilustrada precedente. Nessa linha, é possível pensar que as quatro ilustrações de capas da página 323, onde se encontra a que apresenta a figura de Dona Benta, mesmo não a tendo nas outras três, são de livros em que ela figura como importante na história. As outras capas são de História das Invenções (capa de 1935), Dom Quixote das Crianças (capa de 1936) e a Reforma da Natureza (capa de 1944). Apenas a última não corresponde ao ano de lançamento da obra, 1941. Todas as outras correspondem a seus respectivos anos sendo, possivelmente, a capa das primeiras edições.
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Nessa capa, Dona Benta não é uma senhora idosa e aparentemente frágil. Apesar dos seus cabelos brancos (com alguns fios ainda escuros), apresenta uma postura mais ereta. Aparece num clássico vestido de bolinhas vermelhas, de manga longa, típica vestimenta das senhoras daquela época e está em primeiro plano, o que não ocorre nas outras ilustrações analisadas. Aqui se trata de uma obra que a apresenta no título, por isso, possivelmente, sua presença em primeiro plano. As crianças, com seus cabelinhos impecáveis lembram bastante algumas propagandas norte-americanas das décadas de 20, 30 e 40 (ver anexo 4). Além disso, as bochechas avermelhadas também remetem a essas propagandas, conforme se pode comparar com as figuras anexas (Anexo 4). Vale lembrar que J. U. Campos viveu nos Estados Unidos na mesma época em que Lobato por lá esteve como adido comercial. É lá que conhece a filha do escritor e com ela se casa. A influência da arte norte-americana pode ter contribuído para o estilo do capista. Na ilustração de Serões, Dona Benta aponta para o globo terrestre e parece, com os gestos das mãos, ensinar aos netos alguma novidade. Estão todos atentos aos seus ensinamentos, inclusive os bonecos Emília e Visconde. Como se trata de obra considerada didática, nada mais coerente do que a imagem dessa senhora como a avóprofessora de quem tanto as crianças do Sítio (e da realidade) gostam. Dona Benta é bastante citada nessa parte de Furacão, o que possa talvez explicar a presença da imagem dela em muitas ilustrações. Possivelmente o projeto de Furacão tinha também por objetivo oferecer ao leitor a leitura dessas ilustrações a contribuir na construção de significados e compreensão dos assuntos dos capítulos. Como lembra Ramos, em obra já citada: Aprender a olhar significa sair do gesto primário de captar algo com os olhos, que é uma atividade física, e passar para outro estágio, aquele em que, a partir de muitos exercícios mentais, absorvemos e compreendemos o examinado. Esse debruçar-se sobre o que os olhos captam provocará análises e, o mais produtivo, provavelmente ativará a capacidade de inventar. Olhar, portanto, é uma soma que inclui o físico, o psicológico, a percepção e a criação (RAMOS, 2011, p. 34)
Esse parece ser o Lobato a ser apresentado tanto pelo texto escrito quanto pelo de imagens visuais. Um Monteiro Lobato-Furacão-na-Botocúndia, que também via nas ilustrações uma possível atração para seus leitores e, por que não dizer, também um aprendizado. Lobato tinha, muito possivelmente, a concepção de que “Em um livro ilustrado, o texto escrito, isto é, a palavra, tem o predomínio, pois as ilustrações têm a função de acompanhar a narrativa” (RAMOS, 2011, p.146). Em textos anteriores à televisão, como é o caso dos textos de Lobato da década de 30, o ilustrador tem a
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chance de enriquecer a narrativa e provocar outras leituras e é isso que parece importar para os autores de Furacão, como as ilustrações, também de Dona Benta, contribuíam para gerar leituras nos leitores. Hoje, após as adaptações televisivas, o ilustrador de novas edições passa a ser apenas “reprodutor de imagens preconcebidas, não podendo fugir daquele estereótipo estabelecido pela veiculação do seriado da TV” (GOMES, 2010, p.224). Três páginas à frente (p. 327), tem-se a quarta ilustração de Dona Benta (Anexo 5).2 Trata-se de um trabalho gráfico de Rodolpho, outro dos ilustradores de Lobato. Ele se encontra junto a duas outras capas de livros do escritor, uma de 1937, de Histórias de Tia Nastácia, e outra de 1939, de O Picapau Amarelo. Segundo os autores de Furacão, elas seriam de Raphael de Lamo, um dos capistas das obras de Lobato. Na imagem de Rodolpho, em preto e branco, temos uma cena bastante dinâmica que deve fazer referência à chegada das personagens do País das Fábulas ao Sítio do Picapau Amarelo para lá residirem. A passagem seria a seguinte: “A mudança dos famosos personagens constituiu uma longa festa para Dona Benta e os meninos. Horas e horas passavam debruçados na cerca, vendo chegar aquele povaréu maravilhoso [...]” (LOBATO, 1977b, p.53). É possível chegar também à conclusão de que se trata de ilustração desse livro em virtude de haver, na mesma página, como já salientado, capa dessa obra ilustrada por Raphael de Lamo. Na cena, Dona Benta, embora de costas para o observador, está em primeiro plano e é a mais ativa em todas as imagens que dela aparecem em Furacão. Agarrada à cerca, parece vibrar tanto quanto as crianças e os bonecos com a chegada das personagens do País das Fábulas. Veste roupa de senhora, mas isso não a impede de se divertir como criança, mesmo que não esteja sobre a porteira como os seus netos. A ideia positiva da imagem, entretanto, vai de encontro ao que aparece no texto de Furacão. Por isso, parece ser intencional sua presença na página. Muitos pequenos leitores escreviam a Lobato comentando os desenhos de seus volumes e as ilustrações de Rodolpho parecem pouco agradá-los. Conforme comenta Severino, um dos leitores mirins e missivista de Lobato: “Ele [Rodolpho] faz Dona Benta feia, tia Nastácia toda desajeitada, o Visconde nem parece o Visconde, Emília uma coisa horrorosa, Pedrinho e
Ao final da obra de Azevedo, na página 389, aparecem os créditos das ilustrações. Os autores atribuem as três ilustrações da página 327 a Belmonte. Acredita-se ter ocorrido um equívoco, já que em sites da internet, ao menos duas delas fazem jus aos ilustradores que constam da página 327.
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Narizinho nem se fala. Eu gosto do outro desenhista chamado Belmonte, que faz desenhos muito bonitos” (AZEVEDO, CAMARGOS, SACCHETTA, 1997, p.326). Dona Benta é bastante citada no capítulo em questão, o que também leva a acreditar que a presença dela nas ilustrações é bastante importante para que o leitor fique atento ao que se coloca sobre a personagem. Outra passagem, apenas duas páginas antes da ilustração de Rodolpho, e uma após a ilustração anterior, registra: Noutra carta, remetida a Dona Benta, Modesto [outro missivista de Lobato, mas já adulto] afirma ter chegado à conclusão de que a avó de Pedrinho era uma ‘pedagoga revolucionária utópica possível’, e esclarece: ‘revolucionária porque o seu método de camaradagem não existe ainda no Brasil (talvez mesmo no mundo)’. E utópica porque ‘com a mentalidade dos tais adultos, o ensino é uma coisa tão sisuda, tão vital, tão obrigatória, que nos aborrece’ (AZEVEDO, CAMARGOS, SACCHETTA, 1997, p.324).
Seguem-se ainda algumas cópias de missivas de leitores mirins a Lobato e algumas ilustrações de Le Blanc para a Obra Completa de 1947. Trata-se esse do item no capítulo em que mais se fala do Lobato escritor infantil e, portanto, o que mais apresenta ilustrações de suas obras infantis e seria o capítulo mais interessante para o leitor que busca conhecimentos sobre esse viés de Monteiro Lobato. Ao finalizar sua leitura do capítulo, é possível conceber certa ideia de um Lobato-Dona-Benta, que se apoia na cerca para ver seu mundo de fantasia se misturar à realidade dos leitores e para ensiná-los a compreender melhor as relações humanas ao redor do planeta. Finalmente, a última ilustração se encontra na parte que se chamaria de Conclusão, mas que os autores preferiram denominar “Lobato pós Lobato” (Anexo 6). Nela tem-se Dona Benta sentada em uma cadeira a ouvir a boneca Emília. Parece muito atenta ao que a bonequinha tem a lhe dizer. A ilustração ainda conta com a figura de um gato [Gato Félix?] ao lado de Dona Benta o que poderia sugerir que estivesse inserida em algum volume de Reinações. Entretanto, a partir de artigo de Mitizi Gomes, intitulado “Lendo imagens: ilustrações das obras de Monteiro Lobato”, descobre-se que, junto com outras ilustrações de Belmonte, encontra-se em uma edição de Memórias da Emília e a conversa seria aquela na qual a boneca tenta explicar a Dona Benta o que vem a ser a verdade. A boa senhora, no texto, mostra-se atenta à sabedoria de Emília e acaba por refletir sobre a definição da bonequinha de pano. Isso quase transparece na ilustração de Belmonte: --- Pois eu sei [o que é a verdade]! –gritou Emília. ---Verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia. Só isso.
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Dona Benta calou-se, a refletir naquela definição, e Emília, no maior assanhamento, correu em busca do Visconde de Sabugosa. (LOBATO, 1977, p. 156)
Embora não haja nenhuma referência explícita no capítulo de uma página e meia, parece que a escolha se deve a essa possível relação com a boneca de pano mais famosa da literatura brasileira. Emília era muitas vezes mal compreendida e com ideias muito à frente das de outras personagens. Talvez seja possível ver nessas características o Lobato que se apresentou ao longo do livro: muitas vezes mal compreendido e com suas ideias muito além de seu tempo. Um Lobato-Emília, finalmente, alter-ego do próprio escritor que, em primeiro plano, dialoga com Dona Benta (José Bento Monteiro Lobato), maior em tamanho, mas igual na humildade de reconhecer que o mundo dos menores, dos leitores mirins, nunca mais foi o mesmo depois de Monteiro-Lobato-umFuracão-na-Botocúndia. As imagens visuais de Dona Benta escolhidas pelos autores de Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia são essenciais pelo que elas não dizem ao texto, mas sugerem aos leitores atentos e preocupados em conhecer um Lobato múltiplo, em especial, como autor de livros infantis já que se concentram nessa parte da vida do autor. Parecem ter sido escolhidas para gerar narratividade ao texto e se tornam, assim, tão importantes quanto as palavras, inclusive na medida em que despertam intertextualidades. Os leitores que nelas se prendem, certamente, produzem leituras diferenciadas da obra. Referências AZEVEDO, Carmen Lúcia de; CAMARGOS, Márcia; SACCHETTA, Vladimir. Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia. São Paulo: SENAC, 1997. CAVALEIRO, Edgar. Monteiro Lobato: vida e obra (2 tomos). 2 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956. CHARTIER, Roger. A ordem dos livros. Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília. Ed. UnB, 1999. ______ (Org.). Práticas da leitura. 2. ed. rev. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. GÓES, Lúcia Pimentel e ALENCAR, Jakson de (orgs). Alma da imagem: a ilustração nos livros para crianças e jovens na palavra de seus criadores. São Paulo: Paulus, 2009 (Coleção Pedagogia e educação). GOMES, Mitizi. Lendo imagens: ilustrações das obras de Monteiro Lobato. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo. Vol. 6 -nº 2
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- p. 215-226 – jul-dez. 2010. Disponível em file:///C:/Users/Patricia/Downloads/17176482-1-PB.pdf, acesso em 05/04/2014. LOBATO, Monteiro. Obra infantil completa de Monteiro Lobato. Reinações de Narizinho/Memórias de Emília (vol. 1). Ilustrações de Manuel Victor Filho. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1977. -----,-----. Caçadas de Pedrinho/ O Picapau Amarelo/ Peter Pan/Viagem ao Céu. (vol. 2). Ilustrações de Manuel Victor Filho. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1977. -----. A Barca de Gleyre: Quarenta anos de correspondência literária entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel (2 tomos). São Paulo: Brasiliense, 1968. -----. Prefácios e Entrevistas. São Paulo: Globo, 2009. RAMOS, Graça. A imagem nos livros infantis: caminhos para ler o texto visual. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. http://designices.com/wp-content/uploads/2010/02/virginia01.jpg, acesso em 05/04/14. http://www.odebrecht.com/node/208, acesso em 04/05/14.
ANEXOS
As imagens dos anexos 1, 2, 3, 5 e 6 pertencem à obra AZEVEDO, Carmen Lúcia de; CAMARGOS, Márcia; SACCHETTA, Vladimir. Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia. São Paulo: SENAC, 1997.
Anexo 1: Capa da edição de 1997, fotos do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). Elaboração de capa de Marina M. Watanabe e Sidney Itto
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Anais do III CIELLI (2014) - ISSN 2177-6350 12 Anexo 2: Ilustração de Voltolino para a edição de 1920 de A Menina do Narizinho Arrebitado (exemplar pertencente à Família Monteiro Lobato), p. 159
Anexo 3: Ilustração do livro O pó do pirlimpimpim feita por J. U. Campos, p. 313.
Anexo 4: Imagens de propagandas norte-americanas nas décadas de 20 e 30 do século XX (http://designices.com/wp-content/uploads/2010/02/virginia01.jpg, acesso em 05/04/14).
Anexo 5: Duas capas de Raphael Lamo e Ilustração de Rodolpho, p. 323.
Anexo 6: Ilustração de Belmonte, p. 361.
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PROCESSOS DE ADAPTAÇÃO NOS DIFERENTES ENREDOS DE NELSON RODRIGUES: O TEATRO E AS DEMAIS LINGUAGENS Patricia Barth Radaelli (UNIOESTE - FAG) RESUMO Este trabalho tem por objetivo apresentar uma proposta de pesquisa do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração em Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, da linha de pesquisa Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados. A partir do projeto, pretende-se investigar o valor representativo da obra de Nelson Rodrigues para os estudos da Linguagem Literária, suas interfaces sociais e os processos de adaptação em diferentes gêneros. Apesar de o autor possuir uma extensa obra, foi com a dramaturgia que Rodrigues se transformou num dos maiores escritores do Brasil. As dezessete peças inovavam na abordagem de temas polêmicos e, principalmente, na construção das complexas personagens. Grande parte dessa composição tem sido adaptada para o cinema e televisão. Foram três décadas de produções que continuam ecoando em distintos campos da arte. A proposta de análise, então, visa à interpretação desses enredos, com evidência para os fatores que atuam na organização da obra, bem como para os elementos estéticos dos processos de adaptação dos textos. O objetivo é desvendar os efeitos expressivos que compõem esses diferentes projetos ficcionais e analisar como essas composições dialogam com outras. A pesquisa será desenvolvida com as contribuições teóricas de Carvalhal (2003), Kristeva (1974), Bakhtin (1929), dentre outros autores; além das obras de referência: Uma teoria da adaptação (2013), de Linda Hutcheon, e O dramaturgo como pensador (1991), de Eric Bentley. Ressalta-se que o viés de análise será aquele que considera toda a criação e recriação literária/artística como um novo projeto estético. PALAVRAS-CHAVE: Nelson Rodrigues, Dramaturgia, Processos de Adaptação.
Introdução O presente artigo apresenta uma proposta de análise que visa a apontar o valor representativo da obra de Nelson Rodrigues para os estudos da Linguagem Literária, suas interfaces sociais e os processos de adaptação para diferentes gêneros. O viés impresso pelo autor em seus textos evidencia que a soma de todas as linguagens, envolvidas numa criação ficcional, busca sempre revelar a memória dos dizeres e dos fazeres do homem real, que vive numa sociedade em constante reorganização.
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Apesar de o autor possuir uma extensa obra, que abarca romances, contos, crônicas e telenovelas, foi com a dramaturgia - peças recheadas por temáticas que escandalizavam por retratarem o espírito e a ideologia da classe média - que Nelson Rodrigues se transformou num dos maiores e mais polêmicos escritores do Brasil. As dezessete peças inovavam no estilo, na estética, na abordagem de temas polêmicos e, principalmente, na construção das complexas personagens. Grande parte dessa composição escrita para o teatro, bem como para os demais gêneros, têm sido adaptada para o cinema e para a televisão. Foram três décadas de produções que continuam ecoando fortemente em distintos campos da arte, com diferentes entrelaçamentos de linguagens, por despertarem interesse dos leitores há várias gerações. A proposta de análise, então, visa à interpretação desses enredos construídos pelo dramaturgo, com evidência para os fatores que atuam na organização interna e externa da obra – texto e contexto, bem como para os elementos estéticos dos processos de adaptação dos textos para diferentes gêneros literários, produzidos tanto pelo próprio autor, quanto por outros escritores, com identificação e a análise dos entrelaçamento de vários fatores sociais. A pesquisa será desenvolvida a partir dos estudos da Literatura Comparada, com as contribuições teóricas destacadas por Carvalhal, na obra Literatura Comparada (2003), somadas às contribuições de Kristeva, com enfoque para seus estudos sobre a intertextualidade, na obra Introdução à Semanálise (1974) e, também, às contribuições do autor clássico, Mikhail Bakhtin, com Problemas da poética de Dostiévski (1929), obra na qual o autor ressalta o caráter dialógico da literatura. Além dos três teóricos citados, serão tomadas como obras de referência Uma teoria da adaptação (2013), da autora Linda Hutcheon, e O dramaturgo como pensador (1991), de Eric Bentley. Os dois autores abordam conceitos sobre os processos de releitura e recriação das obras literárias transpostas para outras linguagens artísticas; analisam e expõem os elementos que dialogam em convergências e divergências entre os gêneros. Dessa forma, evidenciar-se-ão as inserções dialéticas das estruturas textuais e contextuais, com a interpretação das ressonâncias provocadas pelas adaptações dos textos.
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A justificativa da proposta Assim como os conhecimentos históricos, filosóficos, científicos e mesmo os míticos, formam o legado de registro da existência humana, com milênios de experiência coletiva, também a arte, em especial a literária, vai aparecer no mundo como forma de interpretação e recriação da realidade. Com uma linguagem que lhe é própria, a literatura revela os dizeres e os fazeres do homem, pelo homem ficcional, numa metamorfose poética dos fenômenos sociais, como uma forma de apreensão estética do real. Sobre essa condição da arte literária como forma de compreensão dos variados saberes do homem, Rosenfeld (2002) salienta que
[...] a ficção é o único lugar – em termos epistemológicos – em que os seres humanos se tornam transparentes à nossa visão, por se tratar de seres puramente intencionais sem referência a seres autônomos; [...] a grande obra de arte literária é o lugar em que nos defrontamos com seres humanos de contornos definidos e definitivos, em ampla medida transparentes (ROSENFELD, 2002, p.35 e 45).
Essa constatação tem sido evidenciada por muitos autores e críticos literários. Barthes (1987) sintetiza bem essa idéia e, ainda, amplia as contribuições da literatura. Para o autor, o mundo deixa de ser inexplicável quando passa a ser narrado. As narrativas, num romance, um conto, numa peça escrita para o teatro, organizam o sentido humano por articularem-se numa ordem e recriarem um mundo. Porém, ao problematizar a realidade humana para registrá-la pela linguagem artística, a literatura não se delimita a um produto de condicionamentos históricos e sociais. O valor essencial de toda a literatura reside nos elementos estéticos que a compõem, nos diálogos, nas repercussões, sejam ecos da realidade para a ficção ou mesmo da ficção para a ficção. Conforme salienta Lukács (1967, p. 176), “uma arte que seja por definição incompreensível para os outros – uma arte que tenha um caráter de monólogo – só seria possível num asilo de loucos”. Essa necessidade de repercussão, tanto da forma, quanto do conteúdo, é característica essencial de toda literatura paradoxalmente autêntica.
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A autenticidade é marcada, então, no processo de criação, pelas escolhas estéticas feitas pelo autor. A peculiaridade de cada obra, segundo Antonio Candido (2000), decorre do impulso criador que estabelece como unidade inseparável o influxo exercido pelos valores sociais – ideologias e sistemas de comunicação – transmutados em conteúdo e forma. Essas transmutações podem ser destacadas da extensa obra produzida por Nelson Rodrigues. Com elementos melodramáticos, marcados por forte expressividade, o autor compõe, em seus cinquenta e cinco anos de produção, centenas de textos esteticamente realistas. Além da produção latente dos contos publicados na coluna A vida como ela é..., no periódico Última Hora, nas décadas de 50 e 60, ainda, das muitas crônicas, dos romances e telenovelas, Nelson Rodrigues consagra-se pela criação de dezessete peças para o teatro. Os textos do dramaturgo exploram temáticas paradoxais de amor, sexo e ciúmes, relacionamentos amorosos e traição, subversão aos preceitos morais - tão velados pela sociedade. Magaldi (1981), ao estudar o teatro de Nelson Rodrigues, propôs uma subdivisão que imbrica as peças em três núcleos temáticos: peças psicológicas, que se ocupam do inconsciente das personagens; peças míticas, que mergulham nas sobras do inconsciente coletivo; e as tragédias cariocas, nas quais o dramaturgo expõe e realidade cotidiana com aventuras perenes de amor e morte. As características dessa divisão, porém, se entrelaçam.
“As peças psicológicas absorvem elementos míticos e da
tragédia carioca. As peças míticas não esquecem o psicológico e afloram a tragédia carioca. Essa tragédia carioca assimilou o mundo psicológico e o mítico nas obras anteriores”. (MAGALDI, 1981, p. 9) Em A mulher Sem Pecado (1941), sua primeira peça, o dramaturgo expõe um protagonista, com uma imaginação doentia, que desconfia estar sendo traído. Esta primeira peça já expõe as principais características que dariam estrutura à dramaturgia nelsonrodriguiana. Segundo Fernando Marques, a peça já contém a mistura de gêneros e processos distintos que dariam estrutura a grande parte do teatro de Nelson. Ao que parece, ele pretendeu realizar um trabalho híbrido, em que na tragédia, melodrama e farsa, entre outros gêneros, coexistissem”. (MARQUES, 2000, p. 42)
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Em 1943, o autor escreve Vestido de Noiva. Logo começa a escrever Álbum de Família. Uma trama de ressentimentos, desejos proibidos e incestos. Anjo Negro (1946), peça que explora a questão do preconceito: a corda pele; num exercício de atração e repulsa entre os personagens. Segue o autor com a produção de Senhora dos Afogados (1947) e Dorotéia (1948). Nestas duas peças, o lirismo aflora na produção do dramaturgo. Em 1951, o autor produz o monólogo Valsa nº 6, uma trama psicológica. As demais peças de Nelson Rodrigues configuram o que Magaldi (2003) denominou de tragédias cariocas: A falecida (1954), Perdoa-me por me Traíres (1957), Os Sete Gatinhos (1958), Boca de Ouro (1959), Beijo no Asfalto (1960), Bonitinha, mas Ordinária (1962), Toda a Nudez será Castigada (1965) e A Serpente (1979). Nelas o dramaturgo expõe, com humor irônico, fatos do cotidiano brasileiro, mais especificamente, do carioca. Sobre elas, Marques sinaliza: “Da comédia ao drama, do drama à comédia, a dança de convenções, enriquecidas por elementos aflitivos, sórdidos ou escatológicos, responde em grande parte pelo impacto e pela originalidade das tragédias cariocas”. (MARQUES, 2000, p. 48). Evidencia-se, dessa forma, a função criadora do autor, que inserido num contexto social e histórico, organiza seu processo estético - dá forma e conteúdo às peças - com diálogos estabelecidos entre a realidade e a ficção e, ainda, entre a ficção e a ficção; de uma peça a outra; de uma peça a uma crônica; da crônica ao romance; deste em adaptações as telenovelas e cinema. A obra rodrigueana é composta por várias ressonâncias discursivas. Sobre um recorte dessas ressonâncias, com a adaptação das peças de teatro para o cinema, Bentley, autor da obra O dramaturgo como pensador (1991) assevera:
A verdade é que a arte dramática é possível tanto no palco como na tela. Pode preencher em ambos sua função de testemunhar algum tipo experiência humana profunda e verdadeiramente. Em todos os dois vai necessitar dos serviços de um artista – acho que podemos dizer de um dramaturgo – para planificar de antemão um trabalho inteiro como uma unidade e de um intérprete ou diretor que faça com que essa unidade seja fielmente reproduzida”. (BENTLEY, 1991, p. 61)
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Um primeiro questionamento sobre a provocação de Bentley seria sobre quais são as marcações expressivas que diferenciam a criação para o teatro e a adaptação para o cinema. O dramaturgo ao escrever uma peça pensa na encenação; enquanto o palco possui três dimensões, a tela de cinema possui duas. Para Bentley “o cinema apresenta fotografias e o palco atores vivos. Todas as diferenças mais sutis derivam-se destas” (1991, p. 60). Bentley (1991) acentua uma marcação de adaptação, dentre os vários outros elementos que podem ser destacados nas relações entre os textos e destes com o contexto social. As questões de tempo e espaço, ou ainda, os elementos do enredo, da construção das personagens. Para Antonio Cândido (2002), o enredo e a personagem representam a matéria do texto, já as ideias, representam o seu significado, seu tema. No entanto, a personagem ao viver o enredo e as ideias, os torna vivos. (CANDIDO, 2002, p. 54). Os diferentes gêneros para os quais as histórias vão sendo adaptadas representam novos textos que buscam outra ambientação e outro público leitor. A adaptação destas recriações diz respeito não apenas à forma, mas ao processo necessário para outro espaço, outra mídia. Linda Hutcheon, autora da obra Uma teoria da adaptação (2013), sobre os diferentes gêneros salienta que “[...] todos são, de diferentes maneiras e em graus variados, ‘imersivos’, porém alguns gêneros e mídias são utilizados para contar histórias (romances, contos etc.); outros, para mostrá-las (as mídias performativas, por exemplo)” (HUTCHEON, 2013, p.15). Ainda sobre a relação entre as adaptações, a autora contribui, Nem o produto nem o processo de adaptação existem num vácuo: eles pertencem a um contexto – um tempo e um lugar, uma sociedade e uma cultura. [...] um texto adaptado migra do seu contexto de criação para o contexto de recepção da adaptação. Como a adaptação é uma forma de repetição sem replicação, a mudança é inevitável, mesmo quando não há qualquer atualização ou alteração consciente da ambientação. (HUTCHEON, 2013, p.17)
Assim, é possível estabelecer que as obras não sendo imutáveis, podem transpor tempo e espaço pelas novas leituras e adaptações, assumindo novas condições culturais
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e midiáticas. Nelson Rodrigues leu autores, criou e recriou em sua obra; foi lido em sua época de produção, em vários gêneros, e continua sendo, em diferentes espaços sociais. A proposta desta pesquisa fundamenta-se justamente por considerar a obra de Nelson Rodrigues como um legado riquíssimo para os estudos da linguagem literária e por destacar a produção do autor em diferentes gêneros; com processos de adaptações que têm compostos diferentes mosaicos culturais.
Fundamentos teóricos: algumas reflexões
As obras literárias expõem enredos que contam e recontam dialeticamente histórias da humanidade. Os elementos que compõem os projetos estéticos e ideológicos dos autores são carregados por elementos expressivos configurados por ressonâncias do contexto histórico e social e, ainda, de outras obras. Vários críticos literários abordam essas relações. Para Mesquita (1994), a literatura, mesmo em se ressaltando seu caráter ficcional, terá sempre uma vinculação com o real. O enredo mais delirante, surreal, metafórico estará dentro da realidade, partirá dela, ainda quando pretende negá-la [...]. Será sempre expressão de uma intimidade fantasiada entre verdade e mentira, entre o real vivido e o real possível. [...]. Esse diálogo será tenso, dialético, instaurador de novas realidades, diferenciadas entre si e semelhantes, na medida em que têm as mesmas motivações as mesmas funções dentre das comunidades humanas em que se produzem e onde são lidas e interpretadas. (MESQUITA, 1994, p.14)
Porém, ao problematizar a realidade humana para registrá-la pela linguagem artística, a literatura não se delimita a um produto de condicionamentos históricos e sociais. O valor essencial dessa arte reside nos elementos estéticos que a compõem, nos diálogos, nas repercussões, sejam ecos da realidade para a ficção ou mesmo da ficção para a ficção. A autenticidade é marcada, então, no processo de criação, pelas escolhas estéticas. A peculiaridade de cada obra, segundo Antonio Candido (1985), decorre do
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impulso criador que estabelece como unidade inseparável o influxo exercido pelos valores sociais – ideologias e sistemas de comunicação – transmutados em conteúdo e forma. Evidencia-se, dessa forma, a função criadora do autor, que organiza seu processo estético de criação - dá forma e conteúdo à obra - com diálogos estabelecidos entre a realidade e a ficção e, ainda, entre a ficção e a ficção, pela leitura de outras obras que produzem um eco discursivo. Segundo Kristeva (1974), crítica literária francesa que desenvolve estudos sobre intertextualidade, todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de textos. Para a autora, “[...] a palavra literária não é um ponto (um sentido fixo), mas um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de diversas escrituras: do escritor, do destinatário (ou da personagem), do contexto cultural atual ou anterior” (KRISTEVA, 1974, p 62). A literatura se configura, assim, como um mosaico cultural, com várias vozes que vão compondo as narrativas e estabelecendo as relações entre os textos. PerroneMoisés, pesquisadora em literatura comparada da USP, escreve em seu artigo Literatura Comparada: intertexto e antropofagia (1990) sobre a noção de influência entre a arte literária. As ‘influências’ não se reduzem a um fenômeno simples de recepção passiva, mas são um confronto produtivo com o outro, sem que se estabeleçam hierarquias [...]. Sobre determinado chão cultural (discursivo) podem ocorrer confluências, coincidências de temas e de soluções formais que nada têm a ver com as influências, mas com a existência de certas condições literárias em determinado momento histórico. (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 94 e 95)
A autora salienta que a literatura nasce de outros textos literários, de gêneros e temas já explorados, e que cada nova obra tem relação com as anteriores, com retomadas, empréstimos e trocas, por consentimento ou contestação. A imagem metafórica do ritual antropofágico retomado é, para a pesquisadora, “[...] antes de tudo o
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desejo do Outro, a abertura e a receptividade para o alheio, desembocando na devoração e na absorção da alteridade”. (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 95) A antropofagia, nessa conceituação, é tomada num contexto mágico cerimonial, que devora o outro para adquirir suas características, a força discursiva do texto. A obra se inscreve, por esse ritual, em diálogos com outra obra, porém para um novo projeto estético. Silviano Santiago (2000) reitera esse conceito ao tratar do signo estrangeiro na obra do escritor latino-americano. As palavras do outro têm a particularidade de se apresentarem como objetos que fascinam seus olhos, e a escritura do segundo texto é em parte a história de uma experiência como signo estrangeiro [...]. O signo estrangeiro se reflete no espelho do dicionário e na imaginação criadora do escritor latino-americano e se dissemina sobre a página branca com a graça e o dengue do movimento da mão que traça linhas e curvas. (SANTIAGO, 2000, p. 21)
As obras literárias, nessa perspectiva, trazem enredos que contam e recontam, de maneira diferente, com novos signos e em novos espaços culturais, histórias que dialogam em vários elementos. Um texto produzido por reflexo de outros textos, que possui, porém, “[...] uma assimilação inquieta e insubordinada, antropófaga. [...] um novo texto escrevível, texto que pode incitá-los ao trabalho, servir-lhes de modelo na organização de sua própria escritura”. (SANTIAGO, 2000, p. 20). A leitura, assim, é concebida como uma forma de produção. Nesse sentido, nenhuma obra pode ser vista como algo acabado, intocável no tempo e no espaço. As obras de literatura são mutáveis à medida que servem de instrumentos caleidoscópicos. A cada nova leitura, a cada novo movimento, produzem outros efeitos estéticos em outras obras. Esses conceitos remontam a teoria de Bakhtin, sobre os diálogos que ocorrem nos discursos; a formulação ideológica do texto, e principalmente, o diálogo entre a realidade e a ficção. Vários autores consagrados pelos cânones literários são evidenciados por essa transposição – diálogos entre a realidade e a ficção – e ainda outra – intertextual, o diálogo entre as obras – ficção e ficção - configurando ressonâncias discursivas no gênero da literatura.
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Assim, ressalta-se esse caráter dos escritores, latino-americanos ou não, estarem sempre inseridos no processo de refratar histórias, sejam reais ou ficcionais. Questão que não se configura como uma característica contemporânea. Mesmo na antiguidade, os gregos Ésquilo, Sófocles e Eurípedes revisitavam espaços sociais, e ficcionais. Os grandes poetas gregos foram, a partir de suas obras, historiadores em arte, por já refratarem questões de sua época – a cultura de seu povo – os mitos e as crenças. Ecos da tragédia grega tem se reconstituído por centenas de anos. Na contemporaneidade, Nelson Rodrigues (1912 - 1980), um dos maiores e mais polêmicos dramaturgos do Brasil, produz uma extensa obra abarcando romances, poesias, contos, crônicas e dezessete peças teatrais, produzidas com temáticas, consideradas pelos críticos como obra de ressonâncias das tragédias gregas. Para o crítico Sábato Magaldi (1981), “Nelson nunca se recuperou das tragédias familiares e elas estão no substrato das histórias mais inocentes que compôs. [...] Ironia do destino, no melhor sentido moderno da Moira Grega, Nelson incorporou, com a sua verdade da experiência pessoal ao seu teatro.” (MAGALDI, 1981, p. 11). O autor brasileiro fora, considerado pela crítica, irreverente para o registro literário de seu tempo. O teatro de Nelson Rodrigues explora temáticas de desmascaramento da família patriarcal – num estilo irônico e sarcástico – usufruindo de múltiplos recursos de variações de linguagem, de intrigas, de personagens e situações. A obra salienta a necessidade de libertação das convenções sociais. O jogo ficcional preconiza a exploração das temáticas entrelaçadas a vários fatores sociais. Santiago (2000) provoca seu leitor a uma interpretação específica da obra dos autores latino-americanos que se estende perfeitamente à obra rodrigueana. Segundo o autor, todo escritor assume uma postura antropofágica. “Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a assimilação e a expressão – ali, nesse lugar,[...] se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana”. (SANTIAGO, 2000, p. 26). Nelson Rodrigues transitou por vários gêneros da Literatura e teve sua obra adaptada por outros escritores e cineastas para várias linguagens artísticas. Sobre esse processo, Hutcheon (2013) destaca, em sua proposta de análise, três conjuntos de elementos a serem considerados:
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Em primeiro [...] a adaptação é uma transposição anunciada e extensiva de uma ou mais obras em particular. Essa ‘transcodificação’ pode envolver uma mudança de mídia (de um poema para um filme) ou gênero (de um épico para um romance) [...]. Em segundo, como um processo de criação, a adaptação sempre envolve tanto uma (re) interpretação quanto uma (re) criação; isso pode ser chamado de apropriação ou recuperação. [...] Em terceiro, vista a partir da perspectiva do seu processo de recepção, a adaptação é uma forma de intertextualidade; [...] outras obras que ressoam através da repetição com variação (HUTCHEON, 2013, p.29 e 30).
As três vertentes podem estar imersas numa proposta de análise dos fenômenos das adaptações. A ênfase nesses aspectos, bem como o entendimento da adaptação não só como a criação outro produto, mas como um processo, que provoca idiossincrasias plurais, é uma forma de abordar as várias dimensões do fenômeno. Há que se pensar sobre A vida como ela é (2012), obra que reúne cem contos de Nelson Rodrigues, como uma recriação de temas explorados pelo autor em suas peças escritas para o teatro: a dualidade entre amor e sexo, o ciúme a fidelidade, a subversão às proposições morais; são nuances presentes em todos os gêneros produzidos pelo autor. As propostas de Hutcheon (2013), bem como as contribuições de Magaldi (1981), de Brandão (2001), de Bakhtin (2002), de Perrone-Moisés (1990), Kristeva (1974), de Rosenfeld (2002), dentre outros autores, provocam a análise da produção das obras literárias, com todas as suas nuances estéticas, bem como dos efeitos caleidoscópicos provocados pela leitura e recriação das obras para outros gêneros, outras linguagens artísticas.
Referência
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 1987.
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O QUE SE DIZ QUE SE GOSTA DE LER ANTES DE SABER O QUE SE DEVE DIZER
Patrícia Trindade Nakagome (USP) Preâmbulo Escrevo alguns parágrafos antes de entrar propriamente no artigo, pois acredito que, mesmo de modo indireto, essas linhas podem contribuir para o centro de nossa discussão. Quero, antes de tudo, deixar registrado que este texto se constrói como um exercício de escrita mais livre do que estamos acostumados a ver em artigos acadêmicos. Aliás, a escrita acadêmica me angustia nos últimos tempos. Escrevi inclusive uma resenha1 (olha a propaganda!) que passa por essa questão, tratando brevemente quais obras podem ser objeto de tal gênero. Muito mais relevante a esse respeito é o trabalho de Almeida (2013) que, partindo da discussão sobre o caráter líquido da literatura contemporânea, chega à reflexão sobre o sentido da escrita de uma tese. Daí vem o belo e poderoso título do texto: Como se pelos dedos escorresse... uma tese. Interessa-me pensar o texto acadêmico (como ele deveria ser escrito, o que deve ser tratado em suas linhas e o porquê de dedicamos nosso tempo para compô-lo), pois creio que a reflexão sobre a nossa própria escrita leva-nos a questionar alguns pressupostos firmes sobre a relação do outro com o texto. O questionamento de nossa própria prática com a palavra pode nos levar a uma forma diferenciada de pensar a relação dos alunos com o texto escrito, especialmente o modo como eles respondem a nossas expectativas e propostas de trabalho com a literatura. Enquanto em minha comunicação questionava aquilo que deve ou não ser lido, aqui, nesta parte introdutória, discuto brevemente sobre o modo como devemos ou não escrever. Quais são os limites e características do gênero “texto completo em anais de congresso”? Devem ser publicados os textos que preparamos para o congresso ou, talvez, a própria experiência do congresso poderia ser incorporada à redação do artigo 1
Refiro-me aqui à resenha escrita sobre a obra Mockingjay de Suzanne Collins (NAKAGOME, 2014)
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final? Se pensarmos o texto acadêmico para além do resultado acabado que ele costuma apresentar, podemos ter algum ganho? O que pode nos trazer a experiência da imperfeição, do erro e da reflexão em construção? Por apostarmos que há ganhos em pensar o processo de construção de uma pesquisa acadêmica, farei, neste artigo, uma breve síntese do trabalho apresentado no III CIELLI somada a alguns pontos de discussão ocorridos durante o Simpósio “Ensino de literatura no Brasil: história, políticas, textos e metodologias”. Não apresento, assim, o texto “pronto” que levei ao Colóquio, mas o texto inacabado com que saí de lá. Cheguei ao evento cheia de dúvidas, que tentava recobrir com algumas certezas, mas saí de lá com mais confiança no projeto, o que me possibilita, inclusive, a trazer algumas dúvidas à luz e a enfrentá-las, no desenvolvimento do doutorado, de modo mais aberto. Antes, devo dizer que posso ter perdido algo fundamental do Simpósio em que estava inscrita, porque, infelizmente, cheguei atrasada e tive que sair antes de seu término. Nos dois casos, por limitação do transporte. Para além de dar desculpas (pela possibilidade do erro e da imprecisão já que não acompanhei o Simpósio integralmente), retomo essa falha para reforçar o fato óbvio (por vezes esquecido) de que nem tudo sai como desejamos. Assim, reclamamos muitas vezes que os estudantes não querem ler as obras valoradas, que não se concentram, que não se envolvem com a discussão proposta em sala de aula, que estão apenas preocupados com a nota etc. Mas será que esses problemas estão apenas relacionados aos alunos? Será que, ao olharmos para nós mesmos, acadêmicos, não encontramos situações semelhantes? No meu caso, por exemplo, já mencionei que não acompanhei o Simpósio integralmente. E sei também de outros colegas que, nesse e em outros eventos, apenas apresentam seus trabalhos e vão embora. Em muitos casos, há pouca preocupação em conhecer o trabalho do outro, em discutir outras ideias, em buscar verdadeiras contribuições à nossa pesquisa. Afinal, em tempos de competitividade e produtividade, como escapar à necessidade de cumprir metas e adicionar linhas ao Lattes? Com esses questionamentos em mente, tratemos, agora sim, do trabalho “O que se diz que se gosta de ler antes de saber o que se deve dizer”.
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Introdução Tendo em conta a discussão posterior à apresentação dos trabalhos no Simpósio, mais especificamente em relação às questões que dialogavam com a minha apresentação, começo este texto afirmando: de nenhuma maneira, este artigo (ou minha tese consequentemente) busca propor que Harry Potter (ou outro best-seller) seja o foco primordial do ensino de literatura na escola. É importante deixar isso claro porque, afinal das contas, essa foi uma dúvida que surgiu após a “leitura” feita da minha apresentação. E leitura, claro, é o cerne de nossa questão! No Simpósio, apresentei um recorte da minha tese de doutorado. Não vou tratar detalhadamente sobre a tese até porque torço para que ela saia em breve e, mais do que isso, para que ela seja lida (não se trata de mais propaganda!). Digo apenas que o título provisório é A vida e a vida do leitor: valores na formação de uma categoria literária. A dualidade marcada no título refere-se a uma dupla possibilidade de aproximação ao “leitor”, analisando como ele é representado no discurso da crítica literária contemporânea e como essa representação nem sempre se ajusta ao leitor empírico, aquele que, como diz Compagnon, é um “intruso” (2006, p. 142) por colocar em questão diversas correntes críticas. Para ter acesso a esse leitor empírico, realizei pesquisas com questionários junto aos alunos de primeiro ano do curso de Letras da USP e, numa segunda etapa, fiz entrevistas com cinco desses estudantes, de modo a traçar o que chamo da “história de leitor” de cada um deles. A opção por alunos do primeiro ano decorria da suposição de que apenas poderíamos conhecer os livros importantes e hábitos de leitura daqueles sujeitos se os entrevistássemos no começo do curso, antes que eles aprendessem o que “deveriam” dizer, as respostas consideradas “corretas”. Afinal, a universidade exerce papel regulador sobre as pessoas, tal como observa Abreu em relação às escolas, entendidas como espaço onde as pessoas aprendem “o que devem dizer sobre determinados livros e autores, independentemente de seu verdadeiro gosto pessoal” (ABREU, 2006, p.19). O título da comunicação “O que se diz que se gosta de ler antes de saber o que se deve dizer” parte, portanto, das entrevistas com sujeitos que contam suas experiências de leitura antes de saberem quais são as obras e autores sancionados,
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considerados dignos de serem mencionados em entrevistas ou tornados como matéria de investigação. Lendo os leitores A pesquisa com os alunos e também meu projeto de doutorado em sua fase inicial norteavam-se por uma pergunta que era, para dizer o mínimo, ingênua. Buscava saber o que formava um “bom leitor”, quais seriam seus hábitos e obras de interesse. Eu não notava, porém, que sequer sabia o que determinava um “bom leitor”. Afinal, ao buscar o “bom”, não tinha um parâmetro concreto ou objetivo de avaliação. Tratava-se de buscar no outro aquilo que, de fato, eu considerava bom para mim mesma, a partir de parâmetros que certamente poderiam ser questionados. É “bom leitor” aquele que se dedica à leitura várias horas de seu dia? É “bom leitor” aquele que escolhe as “boas” obras? É bom leitor aquele que lê por algum motivo específico? Tentando deixar de lado esse frágil critério valorativo, era fundamental abrir-me aos dados recolhidos nos questionários distribuídos aos alunos. Na primeira rodada da pesquisa, chamou a atenção como diversos alunos responderam à pergunta “Qual foi o livro mais importante para você? Por quê?”. Mais de uma dezena de pessoas respondeu que seria algum livro da série Harry Potter da escritora inglesa J.K.Rowling. Os livros do bruxinho foram mais mencionados do que o segundo e terceiro colocados da pesquisa: O pequeno príncipe de Dom Casmurro. Confesso que não esperava tal resultado. Afinal, a pesquisa foi feita em 2012, cinco anos após a publicação do último livro da série (Harry Potter e as relíquias da morte) e quinze anos após o primeiro título (Harry Potter e a pedra filosofal). O último filme baseado na obra, a parte II de Harry Potter e as relíquias da morte, havia sido lançado em 2011, mas não poderia explicar a grande repercussão de Rowling junto aos alunos da Letras, já que questionávamos especificamente sobre livros. Por algum tempo, evitei lidar com Harry Potter e seus leitores. Isso se devia ao fato de que eu mesma tinha sido uma entusiasta da série, devorando cada livro com empolgação. Por isso, tinha certo receio em não conseguir distanciar-me adequadamente do objeto para poder estudá-lo. Assim, temia que qualquer possível discurso feito sobre o leitor de Harry Potter seria, na verdade, uma defesa de mim mesma. Ponderei, no
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entanto, que paixão e trabalho caminham muitas vezes, lado a lado, nos estudos literários2. Desse modo, talvez meu receio em lidar com Harry Potter fosse por eu mesma saber que a obra não teria fácil inserção no meio acadêmico. Apesar de ser um fenômeno mundial de vendas (ou precisamente por isso, talvez), sabia que enfrentaria resistência ao discutir a obra. Porém, ao invés de receio, não deveria sentir-me motivada a fazer uma pesquisa que tratasse de algo com tamanho impacto sobre os leitores, dentre os quais eu havia me incluído na minha adolescência? Harry Potter foi, como disse antes, o livro que se destacou na pesquisa feita junto aos alunos em 2012. Chamava a atenção o fato de que a série tenha alcançado grande importância para mim (e tantos conhecidos da minha idade) e ainda numa geração seguinte. Apesar disso, a recepção crítica acadêmica da obra não é muito significativa, como indica breve pesquisa no banco de teses da Capes 3. Há, por outro lado, grande quantidade de textos jornalísticos voltados à obra nos jornais nacionais e estrangeiros. Dentre esses artigos, há um que certamente se destaca pelo impacto e polêmica causados: “Podem 35 milhões de compradores de livros estar errados? Sim” de Harold Bloom (2000). Longe de realizarmos uma análise detida deste texto, chamamos apenas a atenção para seu título. Vemos ali que os leitores de Harry Potter não são chamados de leitores, mas de “compradores de livros” (“book buyers”). Tal denominação dentro de uma pergunta complexa que admite um simples “sim” como resposta já indica como Bloom avalia a obra de Rowling. Há uma avaliação negativa da obra, o que é perfeitamente cabível à tarefa do crítico, mas há também uma avaliação negativa dos leitores, reduzidos à condição daqueles que pagam para possuir um livro. Em determinado momento, indica Bloom:
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Apenas para citar um dentre tantos exemplos possíveis acerca da paixão dos críticos por seu objeto, vejamos como Perrone-Moisés evidencia em um depoimento como sua pesquisa sobre Pessoa estava relacionada à sua paixão pela poesia, mais especificamente pela portuguesa: “Esse meu livro [Fernando Pessoa, aquém do eu, além do outro] [...] é, talvez, o meu melhor livro porque nasceu de uma paixão pela poesia. [...] Eu já tinha grande paixão por essa maravilhosa poesia portuguesa, e não só por Fernando Pessoa, mas também por Camilo Pessanha, Cesário Verde e Mário de Sá-Carneiro, sobre os quais escrevi mais tarde.” (2005, p.343, grifos nossos). 3 No referido Banco de Teses, encontramos apenas sete registros de trabalhos de mestrado e doutorado feitos sobre Harry Potter.
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Mas terei em mente que uma multidão que o está lendo simplesmente não lerá coisa superior, como "The Wind in the Willows", de Kenneth Grahame, ou os livros de "Alice", de Lewis Carroll. É melhor que eles leiam Rowling do que eles não leiam? Eles avançarão de Rowling para prazeres mais difíceis? (BLOOM, 2000)
Vejamos que as questões colocadas por Bloom são, na realidade, falsas questões, uma vez que a resposta a elas está dada no período anterior, em que se afirma que leitores de Harry Potter não “avançariam” a livros superiores. Sem discutirmos aqui a distinção superior x inferior que pauta o comentário, pensamos em formas de verificar se leitores que começaram a ler por vontade própria (ou seja, não por obrigação escolar) por causa da obra de Rowling chegaram aos clássicos, ao cânone. Tinha a impressão de que isso ocorria, baseada em meu próprio exemplo e no de outros colegas. Mas traçar uma afirmação sobre isso a partir do meu próprio umbigo seria repetir a estratégia argumentativa de Bloom, ou seja, transformar uma hipótese válida para o sujeito que a formula como verdadeira para todos os outros. As entrevistas feitas com os estudantes demonstraram o contrário do indicado por Bloom. A leitura de Harry Potter foi seguida ou acompanhada pela leitura de outros livros, inclusive daqueles valorados por críticos como Bloom. Em um trecho do depoimento de um estudante, ele justifica seu interesse pela obra de Rowling traçando, espontaneamente, paralelos com Retrato do artista quando jovem: [...] a vida é melhor, você faz magia. Eu acho que essa é a sacada do livro [Harry Potter] na verdade. Ele tem todos os elementos de uma escola preparatória. O que é Hogwarts? A escola em que o cara do Retrato de um artista quando jovem do Joyce estuda. Ele estuda num colégio interno também, horrível, num castelo também. É aquilo. Só que ela [Rowling] transpõe todas as coisas que a criança está vivendo, e você inclusive cresce junto com o livro [...] É uma escola, são situações de escola, só que é uma escola diferente. Essa é a sacanagem do Harry Potter. Ele te prende que é uma coisa de louco. (Pedro)
Em seu processo de rememoração, Pedro consegue lembrar que Harry Potter é capaz de atrair uma criança, como ocorreu no seu caso. A partir disso, ele estabelece comparações com suas leituras mais recentes, de modo a não criar uma hierarquia, tal como a que distingue obra “superior” de “inferior”. Pelo crivo de sua experiência, o estudante nota as semelhanças entre dois títulos que retratam a escola, reconhecendo
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que o diferencial de Rowling está no modo como ela trabalha esse espaço para atrair o público jovem. Pedro e os demais entrevistados levam a questionar afirmações críticas que apenas se fundam em hipóteses. O dado empírico obriga a questionar frases recobertas de certezas. Tal como a leitura de um livro obriga que ultrapassemos sua capa, no compromisso ético de ler efetivamente um texto sobre o qual vamos tratar, a análise feita sobre o leitor exige que ele seja “lido”, escutado. Longe de ser apenas um número na lista de mais vendidos, esse sujeito que decide dedicar seu tempo a uma obra teve uma experiência singular com o texto, à qual não temos acesso sem que, de fato, desejemos entendê-lo, não julgá-lo. A necessidade do ponto final Iniciei este texto com algumas reflexões sobre a escrita acadêmica e agora termino com mais algumas palavras sobre o tema. Por diversas semanas este artigo passeou em minha cabeça, buscando reminiscências, estabelecendo articulações no ar. Apesar de todo o trabalho mental, ele veio ao papel apenas quando o prazo para seu envio já estava no fim. A promessa das ideias não se cumpre na palavra escrita. O texto desenhado com imagens, suspiros e voz é infinitamente melhor do que aquele que aqui se materializa em palavras. Quando digo isso (e o verbo “dizer” é mesmo melhor do que o “escrever” neste caso), não busco, como fiz antes, “dar desculpas” sobre eventuais falhas. Digo isso para registrar que a vida, às vezes (tantas vezes) atropela as melhores intenções acadêmicas. Gostaria de ter acompanhado todas as comunicações do simpósio em que apresentei este trabalho, mas existia o ônibus. Gostaria de ter apresentado um texto melhor do que este que vocês leem (ou que ninguém lê), mas existe o prazo. É a vida que cobra seu espaço. Mas o que isso tem a ver com a discussão feita sobre Harry Potter e seus leitores? Harry Potter é, a meu ver, um dos sinais de como a vida assalta a literatura. Se a literatura é cercada de desejo, valor e necessidade (tal como é o texto acadêmico), Harry Potter é a vida que nos lembra, a cada minuto ou a cada página, que há muito que foge ao nosso controle e à nossa compreensão. Nesse sentido, retomando
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algo dito no início deste texto: nossa discussão não visa a promover a leitura de Harry Potter na escola, pois ela já ocorre, independentemente de nossa vontade ou esforço. Do mesmo modo, não poderíamos promover a vida e seus imperativos dentro da universidade e seus limites, mas sabemos que ela se impõe nas brechas que sobram a tantos compromissos e obrigações. Harry Potter é lido independentemente de nossas indicações, de suposições frágeis como a de Bloom. Nesse sentido, pensando em termos educacionais, cabe apenas ao professor e ao pesquisador ter um pouco mais de atenção ao que ocorre apesar de nós, não contra nós. Com isso, talvez sejamos capazes de entender o leitor que é, por vezes, o outro, com escolhas e interesses diferentes dos nossos. Dessa maneira, talvez (e apenas talvez, porque a vida e a educação fogem ao nosso controle), esse outro se abra um pouquinho ao que um “eu” não tão cheio de certezas tem a oferecer, compartilhar e, certamente, aprender.
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CIDADES MODERNAS. O Rio de Janeiro e Buenos Aires através das crônicas de Lima Barreto e as Aguafuertes de Roberto Arlt.
Paula Daniela Ferraro (UFF)
Segundo o dicionário da Real Academia Española, “progresso” significa avanço, aperfeiçoamento; o Aurélio, por sua vez, define o termo como sinônimo de desenvolvimento de um país, região ou da civilização. O conceito refere-se, ainda, a um sentido de melhora na vida humana. No início do século XIX, as inovações técnicas mudam a vida drasticamente. As percepções do tempo e do espaço adquirem outras características e as novidades enchem de curiosidade as pessoas. A ideia de “progresso” envolve os discursos; dele falam políticos, jornalistas, escritores, poetas, cientistas, etc. Eis o argumento que sustenta que a história é uma linha reta para a felicidade. Porém, esse otimismo não contempla todos os fatos. Tanto Lima Barreto quanto Roberto Arlt descrevem, nas suas crônicas e Aguafuertes1, o outro lado do chamado “progresso”. É importante explicar, antes de nos adentrar no tema, a escolha do autor argentino pelo título para as suas notas, publicadas no jornal El mundo entre 1928 e 1933. Artl toma emprestado o termo “aguafuerte” (em português, “água-forte¨) das artes pictóricas. Ela é uma técnica de gravura sobre metal, fácil de reproduzir massivamente, além de barata. A eleição tem a ver, por um lado, com os temas tratados no início da carreira do escritor, notas que pareciam pinturas de Buenos Aires; por outro, com as técnicas de produção e reprodução dos jornais, que, como já apontamos, foram a plataforma das Aguafuertes. Buenos Aires e o Rio de Janeiro passaram por processos históricos similares. Durante o final do século XIX e o começo do século XX, os projetos políticos dos governos das duas cidades tiveram como objetivo a modernização das mesmas -do mesmo modo aconteceu com outras cidades latino-americanas- . Com o olhar na 1
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Europa, especialmente na França, foram realizadas uma série de modificações que se relacionavam com o “progresso”; assim, se substituíram as construções coloniais por grandes prédios, avenidas largas, cafés, confeitarias e bulevares. No Rio, o morro do Castelo foi demolido, algumas regiões do centro foram aterradas e inauguraram-se a Avenida Central, o cais do Porto e o Teatro Municipal, entre outras obras. Buenos Aires, por sua vez, ampliou a rede ferroviária, a Avenida Corrientes foi alargada, abriram-se cinemas, teatros, cafés e inaugurou-se o metrô. Alguns outros avanços técnicos como o bonde elétrico, o automóvel, a câmara fotográfica e o cinema acompanharam os processos de mudança de ambas as cidades. A modernidade, período ao qual nos referimos, pode ser compreendida sob diversas ópticas. Ben Singer estabelece pelo menos cinco; seja desde o ponto de vista moral, político, socioeconômico, cognitivo ou neurológico, todas as definições se associam à ruptura com o passado e o surgimento do novo. Segundo Singer, “a modernidade implicou um mundo fenomenal – especificamente urbano – que era marcadamente mais rápido, caótico, fragmentado e desorientador do que as fases anteriores da cultura humana” (SINGER, 2004, p.96). A origem da palavra moderno já indica essa relação que se estabelece com o novo: ela deriva do latim modernus, que significa “recente, atual”. Inventos novos são substituídos por outros ainda mais novos e apresentam, muitas vezes, dificuldades para o homem estar atualizado. Assim o assinala Roberto Arlt, em “Las angustias del fotógrafo”, uma nota que escreve à respeito de um novo tipo de câmera fotográfica e a competição que gera entre os fotógrafos da praça: “cierto es que las fotografias son las mismas, cierto es que no cambian, pero qué se le importa al público. En esta era de progreso, lo novedoso atrae y seduce. Y el fotógrafo antiguo padece”2 (ARLT, 1998, p. 248). Essa reflexão indica a preocupação do escritor sobre a velocidade das mudanças técnicas e sociais, inquietação que repete na hora de escrever, quando indaga: “¿No es trágico esto de tenerse que escribir una nota em veinticinco minutos?”3 (ARLT, 1998, p. 248). A escrita é também atravessada pela 2
“Certo é que as fotografias são as mesmas, certo é que não mudam, mas qual é a importância disso para o público. Nesta era de progresso, o novo atrai e seduz. E o fotógrafo antigo padece” (tradução minha). 3
“Não é uma piada isto de ter que soltar uma matéria em veinte e cinco minutos contados no relógio” (ARLT, 2013, p. 101).
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urgência dos tempos modernos. Jonathan Crary afirma, ainda, que: “A modernização torna-se uma incessante e autoperpetuante criação de novas necessidades, novas maneiras de consumo e novos modos de produzir” (CRARY, 2012, p.19). É assim como esse tempo se corresponde com um capitalismo cada vez mais crescente. Na literatura, Baudelaire foi um dos primeiros em descrever a sua experiência na cidade moderna. Convertido em um homem anônimo, perdido na multidão, o poeta observava as mudanças dos hábitos, da arte e da moda nas andanças pelas ruas de Paris. Ele concluia: Multidão, solidão: termos iguais e conversíveis pelo poeta ativo e fecundo. Quem não sabe povoar sua solidão também não sabe estar só no meio de uma multidão ocupadíssima. O poeta goza desse incomparável privilégio que é o de ser ele mesmo e um outro. Como essas almas errantes que procuram um corpo, ele entra, quando quer, no personagem de qualquer um. Só para ele tudo está vago; e se certos lugares lhe parecem fechados é que, a seu ver, não valem a pena ser visitados. O passeador solitário e pensativo goza de uma singular embriaguez desta comunhão universal (BAUDELAIRE, 2014, p.18).
Baudelaire se misturava com a massa, que aumentava na cidade, a fim de registrar com o olhar outras coisas que ninguém tivesse percebido. Esse modo de se relacionar com o espaço e com as pessoas foi descrito por Walter Benjamin em Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo, através da figura do flâneur. O termo significa “passeante, andarilho”; são esses os adjetivos que caraterizam ao poeta. Para utilizar as palavras do filósofo mencionado, “o flâneur é um abandonado na multidão” (BENJAMIN, 2012, p. 51). Benjamin explica, ainda, citando a Simmel, como as transformações técnicas mudaram tanto as percepções do homem moderno, quanto as relações sociais: As relações recíprocas dos seres humanos nas cidades se distinguem por uma notória preponderância da atividade visual sobre a auditiva. Suas causas principais são os meios públicos de transporte. Antes do desenvolvimento dos ônibus, dos trens, dos bondes no século XIX, as pessoas não conheciam a situação de terem de se olhar reciprocamente por minutos,
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ou mesmo por horas a fio, sem dirigir a palavra umas às outras (BENJAMIN, 2012, p.36).
O transporte público permitiu, portanto, novas maneiras de estar em sociedade. Hoje em dia, nós naturalizamos o fato de ficar sentados do lado de um desconhecido e até de participar indiretamente de conversas privadas. Lima Barreto registrou em diversas crônicas situações que foram possíveis pela existência do trem ou de bonde. Por exemplo, em “O trem dos subúrbios”, o narrador, atento aos passageiros do transporte, toma nota da vestimenta deles, para poder fazer desse modo uma análise sociológica: Viajo quase sempre de primeira classe e isso, desde muito tempo. Quando, há quase vinte anos, fui morar nos subúrbios, o trem me irritava. A presunção, o pedantismo, a arrogância e o desdém em que olhavam as minhas roupas desfiadas e verdoengas, sacudiam-me os nervos e davam-me ânimos de revolta. Hoje, porém, não me causa senão riso a importância dos magnatas suburbanos. Esses burocratas faustosos, esses escrivães, esses doutores de secretaria, sei bem como são títeres de politicões e politiquinhos. Porque é no trem que se observa melhor a importância dessa gente toda (BARRETO, 2004b, p. 468).
O escritor precisava percorrer o Rio de Janeiro, não só pelas necessidades obvias de visitar o centro da cidade, mas também pelo desejo íntimo de “fugir da monotonia do lar” e encontrar um “locus da busca ficcional” (SCHEFFEL, 2012, p. 82). Como assinala Marcos Scheffel em Estações de passagem da ficção de Lima Barreto, “o trem e o bonde ofereciam novas percepções da cidade – cenários naturais, bairros distantes, áreas rurais – vistas como um filme de suas janelas” (SCHEFFEL, 2012, p. 81). Essas novas locomoções uniram espaços que ficavam longe e que eram, portanto, accessíveis para poucos. A vida urbana, antes limitada para alguns bairros próximos ao centro, estendeu-se desse modo até a periferia. Declara Lima Barreto: Na vida dos subúrbios, a estação da estrada de ferro representa um grande papel: é o centro, é o eixo dessa vida. Antigamente, quando ainda não havia por aquelas bandas jardins e cinemas, era o lugar predileto para os
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passeios domingueiros das meninas casadouras da localidade e dos rapazes que querem casar, com vontade ou sem ela. Hoje mesmo, a gare suburbana não perdeu de todo essa feição de ponto de recreio, de encontro e conversa. Há algumas que ainda a mantêm tenazmente, como Cascadura, Madureira e outras mais afastadas. De resto, é em torno da “estação” que se aglomeram as principais casas de comércio do respectivo subúrbio. Nas suas proximidades, abrem-se os armazéns de comestíveis mais sortidos, os armarinhos, as farmácias, ou açougues e – é preciso não esquecer – a característica e inolvidável quitanda. Em certas, como as de Méier o Cascadura, devido a serem elas ponto inicial de linhas secundárias de bondes, há uma vida e um movimento positivamente urbano (BARRETO, 2004b, p. 439).
A imitação das modas, tanto da Rua do Ouvidor quanto de Paris, irritava ao escritor, que denunciava a falta de imaginação dos suburbanos, assim como a mediocridade de suas falas: Nas cercanias das estações de subúrbios, parece-nos, a ilusão urbana fica completa com essas tabuletas ouvidorianas, onde até o francês figura. Elas indicam as lojas em que se amontoam essas coisas fashionable das casas de fazendas, de sapatarias, de bordados, de balas e bombons. Porém, o aspecto mais interessante da “estação” não é esse. A “estação” 'verdadeira e caracteristicamente suburbana, na segunda metade da manhã, principalmente das nove às onze horas. São horas em que descem os empregados públicos, os pequenos advogados e gente que tal. Então, é de ver e ouvir as palestras e as opiniões daquela gente toda, sempre a lastimar-se de Deus e dos governos, gente em cuja mente a monotonia do ofício e as preocupações domésticas tiraram toda e qualquer manifestação de inteligência, de gosto e interesse espiritual, enfim, uma larga visão do mundo (BARRETO, 2004b, p. 441).
O narrador se lamentava dessas cópias, superficiais, porque contribuíam na criação de um “cosmopolitismo de fachada” (SCHEFFEL, 2012, p. 160), sem colocar a atenção nas necessidades ou problemas reais. É assim como as pessoas chegaram a usar, por exemplo, roupas inadequadas para o clima tropical. Lima Barreto criticava, aliás, a influencia da arquitetura americana e rio-platense nas construções da cidade carioca. Em “O convento”, ele assinala que “a capital da Argentina não nos deixa dormir. Há conventos de fachada lisa e monótona nas suas
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avenidas? Não. Então esse casarão deve ir abaixo” (BARRETO, 2004a, p. 99). Na crônica “A volta”, escreve: A obsessão de Buenos Aires sempre nos perturbou o julgamento das coisas. A grande cidade do Prata tem um milhão de habitantes; a capital argentina tem longas ruas retas; a capital argentina não tem pretos; portanto, meus senhores, o Rio de Janeiro, cortado de montanhas, deve ter largas ruas retas; o Rio de Janeiro, num pais de três ou quatro grandes cidades, precisa ter um milhão; o Rio de Janeiro, capital de um país que recebeu durante quase três séculos milhões de pretos, não deve ter pretos (BARRETO, 2004a, p. 166).
Por último, em “Sobre o desastre”: O Rio de Janeiro não tem necessidade de semelhantes “cabeças-de-porco”, dessas torres babilônicas que irão enfeá-lo, e perturbar os seus lindos horizontes. Se é necessário construir algum, que só seja permitido em certas ruas com a área de chão convenientemente proporcional. Nós não estamos, como a maior parte dos senhores de Nova Iorque, apertados, em uma pequena ilha; nós nos podemos desenvolver para muitos quadrantes. Para que esta ambição então? Para que perturbar a majestade da nossa natureza, com a plebeia brutalidade de monstruosas construções? (BARRETO, 2004a, p. 278).
As mudanças realizadas no Rio de Janeiro nem sempre contemplaram melhorar a qualidade de vida dos moradores, mas embelecê-lo, a semelhança das outras capitais modernas, para atingir o “progresso”. As aristas dessa última ideia se evidenciam quando se pensa nos benefícios e beneficiados. Pensemos no caso do Teatro Municipal, descrito em “Uma coisa puxa a outra... II”: Para que o tal teatro se pudesse manter era preciso que tivéssemos vinte mil pessoas ricas, verdadeiramente ricas, e magníficas, interessadas por cousas do teatro em português, revezando-se anualmente em representações sucessivas de cinco ou seis peças nacionais. Ora, isso não há. Não vejo que haja vinte mil pessoas ricas; mas há ricos e ricos (BARRETO, 2004, p. 72).
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O narrador conclui: “Se o governo municipal tivesse sinceramente o desejo de criar o teatro, a sua ação, para ser eficaz, devia seguir outro caminho” (BARRETO, 2004, p. 72). Fica claro, portanto, que a construção desse prédio -e de outros- tem como finalidade mostrar o sucesso econômico de certa classe social. O flâneur benjaminiano se refugiava nas massas, conservando a privacidade, e observava, desse modo, a sociedade. Ele “se torna sem querer detetive” (BENJAMIN, 2012, p. 38), segundo o pensador, ao mesmo tempo que “ocioso, caminha como uma personalidade, protestando assim contra a divisão de trabalho que transforma as pessoas em especialistas” (BENJAMIN, 2012, p. 50). Porém, para Lima Barreto: […] a flânerie não é um tema como foi para outros autores brasileiros, mas um mecanismo de percepção das novas formas de sociabilidade geradas pelo universo da técnica. No conto de Poe, é a luz artificial dos lampiões a gás, que dava a tudo um efeito fantástico. Nas crônicas de Lima Barreto, é o bonde e o trem que põem lado a lado diferentes extratos sociais e que propiciam o encontro com a multidão. (SCHEFFEL, 2013, p. 5).
Os avanços técnicos, embora algumas vezes criticados pelo escritor, lhe ofereceram não só outros pontos de vista, mas também uma outra forma de narrar. Frases curtas, mais direitas, são a marca da literatura moderna, que precisou, de outro lado, um novo tipo de leitor. Registrar as desigualdades da capital carioca, com o olhar e a palavra, parece ser um dos objetivos do escritor, para questionar dessa maneira o discurso do progresso. Roberto Arlt apresentou, do mesmo modo do que Lima Barreto, algumas características que nos permitem pensar na figura do flâneur. Em “El placer de vagabundear”, ele mesmo explica quais são as disposições que a pessoa deve ter para flanar, como, por exemplo, estar livre de preconceitos e colocar uma distancia entre o próprio corpo e a humanidade (ARLT, 1993, p. 115). Só assim é possível conhecer a cidade mais além do “cartão postal”, e se deleitar com ela. O narrador agrega que “para un ciego, de esos que tienen las orejas y los ojos bien abiertos inútilmente, nada hay que ver en Buenos Aires, pero, en cambio ¡qué grandes, qué llenas de novedades están las
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calles de la ciudad para un soñador irónico y un poco despierto!” 4 (ARLT, 1993, p. 115). O flâneur precisa, portanto, a multidão, mas também um olhar atento. Beatriz Sarlo assinala, em Modernidade periférica. Buenos Aires 1920 e 1930, que: Arlt produz seu personagem e sua perspectiva nas Aguafuertes, tornando-se ele próprio um flâneur modelo. Diferentemente dos costumbristas que o antecederam, mistura-se na paisagem urbana como um olho e um ouvido que se deslocam ao acaso. Tem a atenção flutuante do flâneur que circula pelo centro e pelos bairros, penetrando na pobreza nova da grande cidade e nos meios mais evidentes de marginalidade e do crime (SARLO, 2010, p.35).
As andanças do jornalista pelas ruas de Buenos Aires, registradas nas Aguafuertes, eram acompanhadas por esse olhar detido e crítico. Arlt tomava nota ainda das conversas escutadas nos cafés, a instituição portenha por excelência. Elas denotavam as transformações sociais que aconteciam no país; assim, em “Dos millones de pesos”, está representado um diálogo entre dois criminosos que se queixam pelas dificuldades para exercer o seu “trabalho”: REO I: Soy filósofo... Pero estoy triste. Nuestros tiempos han pasado. Convéncete, Sebastián. ¿Por qué han pasado? No lo sé. Pero pasaron. Convéncete. Han llegado tiempos nuevos. Los veo. Minga de individualismo. Antes, cada uno robaba por su cuenta, y listo el poyo. Me acuerdo, y vos también. Vinieron los socialistas y empezaron a dar la lata del cooperativismo, de la mutualidad, de la ayuda gremial... ¿y cuáles son las consecuencias? Nosotros los pobres crioyos, quedamos en la vía; y ellos, los cogotudos, los grandes reos, hacen sociedades, se reciben de doctores, pues en todo lío hay mezclados doctores. Y así estamos...5 (ARLT, 1993, p. 606).
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“Para um cego, desses cegos que têm as orelhas e os olhos bem abertos inutilmente, nada há para ver em Buenos Aires, mas em compensação, como são grandes, como são cheias de novidades as ruas da cidade para um sonhador irônico e um pouco alerta!” (ARLT, 2013, p. 126). 5
“RÉU I: Sou filósofo... Mas estou triste. Nossos tempos têm mudado. Convença-se, Sebastián. Por que aconteceu isso? Não sei. Mas aconteceu. Convença-se. Chegaram tempos novos. Eu os vejo. Chega de individualismo. Antes, cada um roubava por conta própria, e pronto. Eu me lembro, e você também. Logo vieram os socialistas e começaram a encher o saco com o cooperativismo, as mutuais, a ajuda do sindicato... e quais são as consequências? A gente está sem dinheiro; e eles, os mauricinhos, os grandes bandidos, criam sociedades, se formam como doutores, porque em qualquer bagunça sempre tem doutores. É desse jeito como estamos...” (tradução minha).
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Não é casualidade que a voz do Carlos Gardel cantasse o tango Siglo veinte, cambalache, de Enrique Santos Discépolo, na mesma época dos textos de Arlt. A sociedade argentina passava por um processo de reestruturação política e social, e ninguém podia permanecer indiferente. Como assinala Sylvia Saítta, a partir dos anos 30, aproximadamente, as notas do escritor passaram de ser simples impressões para virar denúncias dos conflitos socioeconômicos da província de Buenos Aires.6 Devido ao sucesso que ele tinha, sendo seu nome reconhecido, consegue resultados. É por esse motivo que, em 1934, começou percorrer os arrabales em companhia de um fotógrafo. Esse último fato é importante, porque expressa o interesse do jornalista pelos avanços técnicos, através da incorporação deles no seu trabalho. Nessa pesquisa pelos subúrbios portenhos, construiu a frase “a los del centro, todo; a los de la orilla, nada” 7 (SAITTA, 2008, p. 88). Na aguafuerte “Calles terribles”, por exemplo, Roberto Arlt colocou a ênfase em uma paisagem cheia de tapumes quebrados, calçadas acidentadas, com um cheiro nojento que provém do Riachuelo: água podre. O pior, ainda, é pensar no que acontece quando chove, pois a água sobe e alaga o bairro. No puede pedirse pobreza más siniestra. Faltan allí los náuticos, los alegres colorinches genoveses de la Boca; falta la fantasía semirromántica de los caserones checoslovacos y germánicos de Dock Sur. Aquí falta todo. Las maderas están sin pintar, las paredes sin revocar. En una de las cinco esquinas hay un almacén. Este almacén sin vidriera, con una alpargata colgada de mala manera tras un vidrio, permanece con las puertas siempre cerradas. Se imagina uno al dueño atendiendo a la clientela con un trabuco en la mano. Chicos sucios como perros o cerdos, se revuelcan en misérrimos patiecitos entre pollos, gatos, canes y patos. Un hedor de podredumbre lo impregna todo8 (ARLT, 1993, p. 278). 6
À respeito do progresso, Arlt escreveu diversas notas sobre el tema, nas quais confessa que gosta desse tipo de mudanças. As críticas mais contundentes se registram na época mencionada., os anos 30. Por questões de espaço, decidí não aprofundar, neste trabalho, nessa relação ambigua do escritor com o novo. 7
“Para os [moradores] do centro, tudo; para os [moradores] das margens, nada” (tradução minha). “Não é possível pedir pobreza mais sinistra.Faltam lá os barcos, as alegres cores genovesas de La Boca; falta a fantasia semi-romântica das casas checoslovacas e germânicas de Dock Sur. Aqui falta tudo. As madeiras estão sem pintar, as paredes sem revocar. Numa das cinco esquinas tem um armazém. Este armazém sem vidraça, com uma alpargata mal pendurada detrás de um vidro, permanece com as portas sempre fechadas. A gente imagina ao dono atendendo aos fregueses com um trabuco na mão. Crianças sujas como cachorros ou porcos revolcam-se em miseráveis pátios entre galinhas, gatos, cachorros e 8
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O objetivo destas notas era mostrar as desigualdades desse “progresso”, levado a cabo por governantes ruins que olhavam para outro lado quando se tratava de atender as necessidades da população. Mesmo no centro da cidade, o jornalista comprovou o abandono dos mandatários. A respeito da Avenida que nasce da canalização do arroio Maldonado, ele declarou, em “la Avenida del Gato Muerto”, o seguinte: “La calle del Gato Muerto (de alguna forma hay que llamarla) se parecería a una calle de campo, Campo Mayor, si no la adornaran elementos de desecho”9 (ARLT, 1998, p. 291). E mais para frente, afirmou que “hay un cerro compuesto de alambres, chapas, hierro viejo, colchones, etc10”. A descrição inclui metáforas de uma “natureza urbana”, feita de dejetos industriais e lixo da cidade. A ausência do Estado repercute em uma série de situações graves, cuja consequência final é a marginalização econômica e geográfica. O transporte ruim não permite um intercâmbio mais fluido entre os diversos espaços da cidade, como o centro e os subúrbios, e os barracões aumentam. Segundo Lima Barreto, os arredores do Rio estão “abandonados, enfeitados com construções contraindicadas, cercados de terrenos baldios onde ainda crescem teimosamente algumas grandes árvores das casas de campo de antanho” (BARRETO, 2004b, p.131). As ruas, quando ainda não são de terra, estão mal terminadas, ou feitas pela metade. Em “Queixa de defunto”, por exemplo, o escritor brinca com a possibilidade de que um morto consiga narrar o seu próprio enterro; é assim que denuncia o estado lamentável do caminho até o cemitério: Esta rua foi calçada há perto de cinquenta anos a macadame e nunca mais foi o seu calçamento substituído. Há caldeirões de todas as profundidades e larguras, por ela afora. Dessa forma, um pobre defunto que vai dentro do caixão em cima de um coche que por ela rola, sofre o diabo. De uma feita um até, após um trambolhão do carro mortuário, saltou do esquife, vivinho da silva, tendo ressuscitado com o susto (BARRETO, 2004b, p. 158).
patos. Um fedor de podridão impregna tudo” (tradução minha). 9
“A rua do Gato Morto (de algum modo temos que colocar um nome) parecia uma rua de campo, Campo Mayor, se não fosse pelos elementos de dejeto” (tradução minha). 10 “[...] tem um cerro composto de arames, chapas, ferro velho, colchões, etc” (tradução minha).
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Esse reclamo se repete em outras crônicas do autor, como “Os enterros de Inhaúma”. O que se privilegiou quando se investia em uma obra era a monumentalidade e a elegância acima de tudo. Sobre essas reformas, Lima Barreto assinalou: “Não há casas, entretanto queremos arrasar o morro do Castelo, tirando habitação de alguns milhares de pessoas” (BARRETO, 2004b, p. 207). Ambos os escritores, nas crônicas e Aguafuertes, deixaram, como vemos, registro das suas impressões através do flanar. Completaram, assim, o quadro de Buenos Aires e do Rio de Janeiro, colocando em questão a ideia de progresso, já que ela atingia a uma parte da população apenas. A outra, com um poder aquisitivo menor, foi -ainda é- ostentosamente ignorada.
Por que a crônica.
Para Pedro Lemebel, romancista chileno e cronista, a crônica “no es un género tan fijo como la novela […]. La crónica tiene otro sentido, tiene otra vertiginosidad. Uno puede cambiar permanentemente de tema, y es como la ciudad” 11 (informação verbal)12. É por esse motivo que ele a escolhe para expressar algumas das próprias experiências. A liberdade, tanto nos temas como na linguagem, permitem uma aproximação mais direta, tanto para o escritor quanto para os leitores. Continua Lemebel: “tiene que ver con una forma de contar, la crónica, directa, distinta, donde puede estar incluida la música popular, donde puede estar incluida la biografía, y por
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“Não é um gênero tão fixo quanto o romance (...). A crônica tem outro sentido, tem outra vertiginosidade. Você pode mudar permanentemente de tema, e é como contar a cidade” (tradução minha). 12
LEMEBEL, Pedro. “Trazo sobre mi ciudad” http://vimeo.com/25481714. Aceso em: 26/12/2013.
[on-line].
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supuesto lo político y hasta el panfleto” 13 (informação verbal)14. Essa diversidade parece-se com a própria vida. A crônica nasceu quando o jornal se tornou cotidiano. O seu conteúdo trata desse tipo de assuntos, dos acontecimentos de cada dia; porém, apesar dos anos transcorridos, muitas notas antigas podem, ainda, ser lidas sob a chave dos tempos atuais. Como assinala Candido: Ela não foi feita originalmente para o livro, mas para essa publicação efêmera que se compra num dia e no dia seguinte é usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da cozinha. Por se abrigar nesse veículo transitório, o seu intuito não é o dos escritores que pensam em “ficar”, isto é, permanecer na lembrança e na admiração da posteridade; e a sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão. Por isso mesmo, consegue quase sem querer transformar a literatura em algo íntimo com relação à vida de cada um; e, quando passa do jornal ao livro, nós verificamos meio espantados que a sua durabilidade pode ser maior do que ela própria pensava (CANDIDO, 1992, p. 14).
Através dela, reconhecemos, portanto, o passado das nossas cidades, assim como o presente, com os problemas atuais. Margarida de Souza Neves declarou que “a tarefa mais eminente da crônica é, sem dúvida, a memória da cidade” (NEVES, 1995, p. 26). Cada crônica parece a fotografia de um pequeno aspecto de Buenos Aires ou do Rio de Janeiro, e o conjunto delas ajuda a compor uma imagem mais acabada dessas capitais. De outro lado, por ser “filha” da modernidade, ela contém, até na própria forma, suas características: imagens visuais, uma extensão curta, uma linguagem que incorpora o léxico popular, fatos que podem explicar a sua massividade. Segundo Walter Benjamin, o “cronista é o narrador da história” (BENJAMIN, 1993, p. 209). Ele pode experimentar tanto na forma quanto na língua com maior liberdade do que em outros gêneros. Afirma Beatriz Resende: “A crônica confirma-se como espaço de experimentação e de investigação livre sobre a realidade brasileira. A
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“Tem a ver com a forma de contar, a crônica, direita, diferente, onde pode estar incluída a música popular, onde pode estar incluída a biografia, e claro, o político e ainda o panfleto” (tradução minha). 14
LEMEBEL, Pedro. “Trazo sobre mi ciudad” [on-line]. Disponível em: http://vimeo.com/25481714. Aceso em: 26/12/2013.
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língua de que se utiliza a crônica é -mais facilmente do que em qualquer outro gênero- a língua da cidade, a língua brasileira” (RESENDE, 1993, p. 62). Por esse motivo, podemos afirmar que aí residem algumas das suas belezas: o nascimento de um novo tipo de leitor, que combina diversos sectores da população, e a tentativa de legitimar uma língua mais além da literária.
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O DISCURSO POLIFÔNICO E O JOGO DO DUPLO A PARTIR DECARREIRASCORTADAS, DE BERNARDO AJZENBERG Pauliane Amaral (UFMS)
Publicado em 1989, Carreiras Cortadas, primeiro romance do escritor, tradutor e jornalista Bernardo Ajzenberg, é um romance policial metanarrativo que chama a atenção do leitor não só pelo suspense inerente ao gênero, mas pelo intrincado jogodiscursivo entre aspersonagens que compõe a narrativa. Nesse romance – emque o grande tema não é o crime, mas a imaginação–,surge um jogo discursivo entre as personagens, uma polifonia edificada na sobreposição das vozes que ora ecoam dos rascunhos do roteirista Gregório Pâncreas – personagem protagonista do romance que nos conduz às desventuras de Juliano, principal personagem de seu roteiro –, ora do narrador onisciente, que permite que tenhamos acesso aos pensamentos e ações do próprio Gregório Pâncreas. Frente a essa desafiadora estrutura, propomos a leitura das diferentes esferas discursivas através do conceito do duplo (esse conceito de matriz psicanalítica e filosófica, representativo das dualidades existenciais do ser humano), a fim de verificarmos a forma como se estabelece a polifonia no romance. Considerando a revisão feita por Fiorin (2006) e Tezza (2003) que possibilitou pensar a polifonia também fora do âmbito do romance, a entendemos como uma manifestação discursiva em que um “eu” potencial do discurso revela múltiplas vozes que emulam uma coletividade, refletindo os diferentes matizes da condição humana. Assim, podemos pensar que ao criar uma espécie de alter ego duplicado, Bernardo Ajzenberg discute os limites entre real e imaginário no discurso literário e constrói através da estrutura duplicada desse pseudo romance policial uma problematização do fazer literário. Assim, o autor questionauma cultura literária em que predomina a representação realista. Construído a partir de histórias sobrepostas, à semelhançade uma matrioska, a narrativa de Carreiras cortadas se complexifica na medida em que notamos que as narrativas criadas peloroteirista premiado Gregório Pâncreas, como a história do fotógrafo Juliano e de Mirinda, e a história das personagens contidas no “Diário”, criação ficcional de Pâncreas a partir da qual desenvolve outras personagens (Getúlio
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Velho, Artur Granizzo), encontra eco na própria vida do roteirista.Em seu processo criativo, Pâncreas é dependente do delegado Moura, que fornece ao roteirista histórias do seu cotidiano na delegacia: O sigiloso intercâmbio que Pâncreas mantinha com o delegado Moura vinha de vários anos. Constantemente, recebia documentos que circulavam pelas delegacias e usava-os para criar estórias policiais – sua especialidade. Em troca, através de dicas forjadas pela imaginação, sugeria pistas, auxiliando o delegado nas investigações. Por fim, este lia os originais do roteiro e dava um parecer informal sobre o grau de verossimilhança. (AJZENBERG, 1989, p. 11).
A relação entre Pâncreas e Moura e a tentativa de apreender o “real” em um objeto estético remete à práxis de um grande mestre da literatura brasileira, que publicou, entre outros livros, diversos romances policiais. Estamos nos referindo a Rubem Fonseca. É notório que Fonseca tenha retirado de sua experiência como delegado de polícia grande parte das histórias de seus contos e romances. Remetemonos aqui ao conteúdo, que não teria valor artístico nenhum sem o labor linguístico empreendido pelo autor em suas(re)criações. Pensando na trajetória literária de Rubem Fonseca, podemos formular a hipótese de que a narrativa deCarreiras cortadas traz Pâncreas, personagem que também é narrador, para de certa forma satirizar a impossibilidade de existência de uma narrativa biográfica plena.
Polifonia O conceito de romance polifônico foi desenvolvido por Bakhtin sobretudo no livro Problemas da poética de Dostoiévski, publicado pela primeira vez em 1929.Nesse livro, Bakhtin mostra que na obra de Dostoiévski surge uma polifonia a partir da “combinação dos discursos plenos das personagens sobre si mesmas e sobre o mundo” (BAKHTIN, 2011, p. 197), desenvolvidos a partir de uma oposição dialógica (e não dialética), em que as personagens estão fundamentalmente em dialogo consigo mesmas e só podem interagir com as outras personagens quando interferem no diálogo interior destas, e não quando estabelecem uma antítese. Bakhtin procura na análise do romance polifônico de Dostoiévski mostrar como se dá a interação de vozes “nas” e “entre as” (no nível interior e exterior) personagens; interação que é a essência da polifonia. Logo, é a partir do dialogismo entre as vozes internas da personagem e sua manifestação no mundo que se instaura a polifonia.
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A polifonia na obra de Dostoiévski nasce quando a personagem e sua consciência são vistas em uma relação dialógica, a partir do momento em que o eu se desdobra no outro, que sofrerá a interferência de outras personagens. Bakhtin exemplifica essa relação dialética fundamental do romance polifônico através da relação entre Ivan e Aliócha em Os irmãos Karamazovski. Mas o dialogismo também pode ser visto nos fundamentos da relação entre o autor-criador e os seres criados por este, ou melhor, entre autor e herói, no ensaio “O autor e a personagem na atividade estética”, que abre o compêndio de ensaios reunidos sob o título Estética da criação verbal, no qual parte da proposição de que “uma vida encontra sentido, e com isso se torna um ingrediente possível da construção estética, somente se é vista do exterior, como um todo; ela deve estar completamente engloba no horizonte de alguma outra pessoa” (TODOROV apud BAKHTIN, 2011, p. XIX), como bem explica Todorov no prefácio à edição francesa do livro. Todorov ainda ressalta que o dialogismo é “a um só tempo concepção do mundo e estilo de escrita” (TODOROV apud BAKHTIN, 2011, p. XX). Não queremos discutir aqui as falhas que podem haver no afirmação feita por Bakhtin de que na obra de Dostoiévski “o autor não passa de um participante do diálogo (e seu organizador)” (TODOROV apud BAKHTIN, 2011, p. XX). Interessa-nos ver como o autor implícito constrói uma estrutura discursiva a fim de demonstrar como o processo de imitação mimética almejado por Pâncreas é tão bem desenvolvido que acaba lhe custando (cortando) a sua carreira – daí uma das referências do título. Ao longo de romance de Ajzenberg testemunhamos como Pâncreas persegue o “real” quando submete seus textos ao delegado. O seu sonho de realismo se concretiza ironicamente com a sua condenação pelos crimes que ele criou, pelos crimes cometidos pelas suas personagens. Ao descrever os homens que existem fora dele, Pâncreas não percebe que conseguiu vê-los em sua plenitute. Aqui não é o eu (autor) que se torna outro (herói), mas o próprio outro que se torna eu. Bakhtin diz que “a luta do artista por uma imagem definida da personagem é, em grau considerável, uma luta dele consigo mesmo” (BAKHTIN, 2011, p. 5) e que após a obra concluída “as personagens criadas se desligam do processo que as criou e começam a levar uma vida autônoma no mundo” (BAKHTIN, 2011, p. 5). A narrativa de Carreiras cortadas promove uma inversão nesse processo em que a criação se encaminha para uma vida autônoma.
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Pâncreas remete seus últimos originais ao delegado, este manda um bilhete dizendo que o material é inaproveitável. Diante da recusa, o roteirista começa a reler o que havia escrito para encontrar o motivo da rejeição. A partir desse momento o leitor tem acesso ao conteúdo dos roteiros, mergulhando no universo criado por Pâncreas. Assim acompanhamos o início da relação entre Juliano e Mirinda, personagem que traz, além da sua história, a história do catequizador Rosário e outros religiosos que se envolveram na guerrilha no centro-oeste brasileiro durante a ditadura. Todas essas histórias são contadas através da voz de um narrador onisciente (cuja imagem de autor implícito remete a Pâncreas). Ao longo do roteiro sabemos que Juliano também viveu uma “trágica experiência” (AJZENBERG, 1989, p. 59) dez anos antes no centro-oeste. Logo, o leitor percebe que Juliano e Mirinda têm ou tiveram alguma ligação, mesmo que ainda não tenham consciência disso. Juliano também está ligado a Getúlio Velho, o homem assassinado que estava envolvido com o agiota Artur Granizzo. Sabemos da existência e da relação entre essas personagens através da leitura feita por Pâncreas do “Diário”, escrito pela personagem Ìtalo Busoni ou Idáiro que, por sua vez, também é criação de Pâncreas. As personagens, apresentadas de maneira indireta por diários e roteiros, se unem através da leitura de Pâncreas, leitura conduzida por um narrador onisciente de fora. Mais tarde descobrimos que Mirinda se relaciona com Granizzo e Idáiro, e que Mirinda dá o “Diário” de Idáiro a Juliano. Assim, o leitor passa de uma história a outra, de um ambiente a outro de forma fluida, sem nenhuma indicação do narrador. O narrador onisciente (Pâncreas?), aliás, faz uma série de “indicações ao diretor”, “reflexões para o diretor” e até uma “pequena reflexão pseudopoética para o diretor” da futura série televisiva. A maior parte dessas indicações somente qualifica o estado psicológico das personagens, mostrando que o roteirista Pâncreas, ao criar, infere sobre o pensamento de todas as personagens. Sabemos que a narrativa foi escrita durante uma crise de abstinência do cocainômano. Logo, estamos diante de uma história escrita por um homem lúcido e baseada nos “fatos reais” fornecidos pelo delegado. A relação sui generis de Pâncreas com a criação é explicado pelo narrador onisciente: “Pâncreas tinha sempre dificuldade de pensar em coerência. Para ele as ficções não precisavam desse elemento – bastavam ser críveis dentro de sua lógica holográfica”. (AJZENBERG, 1989, p. 99).
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Ao ter suas carreiras de cocaína cortadas, Pâncreas tem também sua carreia de roteirista cortada. Esse movimento mostra que o autor implícito quer que o leitor veja, através da trajetória de Pâncreas, que o lugar do criador não é na realidade exterior à obra, mas em seu próprio universo axiológico. Podemos dizer que há dois níveis de onisciência nesse romance: um interno, que é o de Pâncreas, autor implícito criar a história de Juliano e outras personagens; e um externo,do autor implícitoque cria um narrador demiurgo que nos conduz através da história de Pâncreas e suas criaturas. O jogo do duplo é evidenciado pela sobreposição dessas camadas narrativas e explicitado pela oposição ficção/realidade. O duplo Dentro da análise literária é comum que o duplo seja abordado a partir de oposições como: mulher/homem; espírito/corpo; vida/morte; céu/inferno, entre outros. Em nossa proposta cabe olhar o duplo a partir da oposição ficção/realidade a fim de explicitar os limites da criação literária e todos os temas relacionados a esse debate ainda tão caro à literatura contemporânea. Freud tratou do tema do duplo nos ensaios O estranho (1919) e O retorno do Recalcado (1938). Grosso modo, a proposição de Freud é calcada no “sentimento de estranheza causado pela súbita perda da distinção entre imaginação e realidade” e nos “processos de repressão do instinto e sua posterior manifestação”. O duplo gerado por este processo é chamado “duplo antagônico”, pois é percebido como antagonista do ego. Problematizado pela mitologia, pela filosofia, pela psicanálise e pela teoria da literatura, nos interessa aqui abordar o duplo sob um prisma estritamente literário. Por isso recorremos à polifonia bakhtiniana para pensarmos como o duplo está no cerne do próprio fazer literário, fazerproblematizado pela narrativadeCarreiras cortadas. Problemas da poética de Dostoiévskinos dá pistas da base dupla em que se funda o romance polifônico, mostrando que o duplo, na perspectiva bakhtiniana, “é produto da interação dialógica entre personagens literárias, sujeitos de sua própria consciência e de seu próprio discurso” (BEZERRA in BAKHTIN, 2013, p. XIII). O duplo também está presente na ideia desenvolvida em Estética da criação verbalde que “o acontecimento da vida no texto, isto é, sua verdadeira essência, sempre
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se desenvolve na fronteira de duas consciências, de dois sujeitos” (BAKHTIN, 2011, p. 311).Ideia que é o cerne do conceito de intertextualidade proposta por Julia Kristeva. No primeiro capítulo do ensaio O autor e a personagem na atividade estética, Bakhtin salienta que “[a] luta do artista por uma imagem definida é, em certo grau, uma luta dele consigo mesmo”. (BAKHTIN, 2011, p. 5).Já no capítulo que trata da forma espacial da personagem, no tópico sobre “O vivenciamento das fronteiras externas do homem” Bakhtin diz que “[a] forma do vivenciamento concreto do indivíduo real é a correlação entre as categorias imagéticas do eu e do outro” (p. 35, grifos do autor), indicando que a relação entre autor-criador e seu herói espelha a duplicidade inerente do homem. Exemplos como esses se repetem ao longo da obra de Bakhtin e nos fazem pensar que o duplo é uma imagem recorrente, que fundamenta a estética da criação verbal. Há uma duplicidade implícita na ideia do romance polifônico que está presente, por exemplo, na afirmação de Bakhtin de que “[a] consciência do herói é dada como a outra, a consciência do outro, mas ao mesmo tempo não se objetifica, não se fecha, não se torna mero objeto da consciência do autor” (BAKHTIN, 2013, p. 5). O teórico russo repete a ideia também na última parte de do livro sobre Dostoiévski: “Eu tomo a consciência de mim mesmo e me torno eu mesmo unicamente me revelando para o outro, através do outro e com o auxílio do outro” (BAKHTIN, 2013, p. 322). É claro que os romances de Dostoiévski e Carreiras Cortadas diferem em muitos elementos, e não devemos pensar no romance de Ajzenberg, por exemplo, emconsciência autônoma da personagem. Aparentemente,no últimoessa autonomia se daria mais na esfera do narrador, através do um alter ego duplicado (um escritor – Ajzemberg – queescreve sobre o processo de escrita de outro escritor– Pâncreas). A peculiaridade que a forma romanesca assume em Dostoiévski é o grande empecilho para se pensar o romance polifônico fora de sua obra. Segundo Cristovão Tezza, Bakhtin apostou “no crescimento do que ele chamou de ‘gênero polifônico do romance’, uma aposta de fato não concretizada[.]” (TEZZA, 2011, p. 136). Não queremos propor uma caça à polifonia no romance de Ajzemberg, mas tentar compreender – auxiliados por esse romance – como o duplo é um dos andaimes que sustenta a ideia de romance polifônico, mas não só dele. O próprio Bakhtin é quem
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diz que “afirmar o ‘eu’ do outro não como objeto, mas como outro sujeito [o princípio da cosmovisão de Dostoiévski] [...] é perfeitamente possível também no romance de tipo puramente monológico” (BAKHTIN, 2013, p. 9). O princípio do dialogismo, em que está calcada o romance polifônico, é de que não é possível “contemplar, analisar e definir as consciências alheias como objetos, como coisas: comunicar-se com elas só é possível dialogicamente” (BAKHTIN, 2013, p. 77). Fiorin lembra que o princípio do dialogismo percorreu todo o conjunto da obra de Bakhtin1.A coisificação das consciências alheias faz parte do projeto literário de Pâncreas e Ajzenberg, e nisso também difere substancialmente esse romance da obra de Dostoiévski. Para Bakhtin, a formação do romance na Europa tem sua base na Antiguidade Clássica, nos gêneros sério-cômico (p. 121), caracterizados pela “politonalidade da narração” (p. 123), como o diálogo socrático (natureza dialógica) e a sátira menipeia (gênero carnavalizado, “portador da cosmovisão carnavalesca na literatura até nossos dias” [p. 129]), em que já está implícita a ideia de duplicidade. Vemos o duplo também na paródia, quando o “discurso se converte e palco de luta entre duas vozes”(p. 221), mesmo que a fusão dessas vozes seja impossível. Bakhtin explica que o problema do romance deve girar em torno dos “[...] meios de visão e representação artística desse indivíduo nas condições de uma determinada construção artística – o romance” (p. 11). O teórico russo mostrou que a própria consciência do romancista Dostoiévski é formada a partir de uma oposição entre o ceticismo humanista e a fé, e que essa consciência cingida está presentenos livros do escritor russo. “Em cada voz ele [Dostoiévski] conseguia ouvir duas vozes em discussão” (p. 34). Uma de suas criações, “o homem do subsolo”, “vive em tensão na fronteira com a ideia dos outros, com a consciência dos outros” (p. 36). Se a obra de Dostoiévski traz a ideia de que cada personagem é um “autor em potencial” (p. 27), Ajzenberg trazuma personagem que também é um autor para colocar em xeque a estatuto da representação que tem como propósito testar os limites entre vida e ficção.
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Ver “O dialogismo” inFIORIN: José Luiz de.Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.
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Edgar Morin toca na questão quando entende que o duplo tem papel importante na literatura devido ao “caráter próprio da arte, que é um ópio que não faz adormecer, e sim, abre os olhos, o corpo, o coração para a realidade do homem e do mundo” (Morin, 1997, p. 175). Acreditamos também que o jogo do duplo está na essência do fazer literário e da complexidade das grandes obras da literatura mundial. Assim, salientamos que o jogo do duplo em Ajzemberg remete a polifonia bakhtiniana apenas quando, através de um duplo narrador (o “duplo duplicado”), o autor-criador leva ao plano discursivo a problematização da eficácia da representação chamada “realista”.O discurso do roteiro de Pâncreas emula o discurso da vida real, dos documentos cedidos ao roteirista pelo delegado. Pâncreas não atenta para o perigo de aproximar ficção e fatos. Logo, em Carreiras Cortadas o tema principal não é o crime, mas a imaginação, que faz surgir uma polifonia formada pelas camadas da narrativa em que ecoam as vozes dos rascunhos do roteirista Gregório Pâncreas e as aventuras de seu personagem principal, e as vozes do narrador onisciente, o demiurgo que nos conduz aos pensamentos e ações do próprio Gregório Pâncreas. Nesse romancemetanarrativo, a relação entre verdade e ficção é problematizada através de um narrador duplo, encontrando solução apenas no imaginário encontro das duas esferas quando o espaço da criação é invadido pela vida “real” da personagem Pâncreas ao fim da narrativa. O grande enigma desse romance policial é resolvido quando o leitor se dá conta de que foi enganado e o romance na verdade é um exercício metanarrativo que problematiza a relação entre verdade e ficção. O duplo, como tema, foi abordado por grandes nomes da literatura mundial, como Hoffmann, Adersen e Maupassant. Talvez a mais conhecida empreitada no tema seja o conto “William Wilson”(1839), de Edgar Allan Poe, que apresenta um duplo opositivo e maniqueísta, forma mais tarde levada ao extremo no romance O visconde partido ao meio (2002), de Ítalo Calvino. É sintomática a importância que o duplo tem para Dostoiévski. Bakhtin diz que emO duplo, novela de Dostoiévskimodelar quanto ao tema, o escritor russo apresenta a particularidade do discurso e da consciência de forma “extremamente marcante como
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em nenhuma das outras obras de Dostoiévski” (p. 242). Para Goliádkin, personagem central dessa narrativa, “[t]udo reside na ação do outro, na palavra do outro, na resposta do outro” (p. 246). Nessa novela a segunda voz, o duplo de Goliádkin, “provoca e excita, tira a máscara. Surge o duplo. O conflito interior se dramatiza; começa a intriga de Goliádkin com o duplo” (p. 247). Sem perda alguma, podemos dizer que a relação de Goliádkin e seu duplo se encaixaria no que Freud denominou como “duplo antagônico”. A questão do duplo é tão fundamental para a obra de Dostoiévski e, por extensão, para a ideia de polifonia, que “quase toda personagem central de Dostoiévski tem seu duplo parcial em outra pessoa e inclusive em várias outras” (p. 249). Mesmo estudando os romances de Dostoiévski, Bakhtin usa vinte páginas (além de trechos esparsos pelo livro) para discorrer sobre a novela “O duplo” e ilustrar sua importância na formação das bases dos grandes romances da última fase do escritor russo, da qual surge talvez a figura mais simbólica quanto à complexificação do duplo: a personagem Ivan Karamazóv. No romance de Ajzenberg, Pâncreas, ao tentar reproduzir fielmente os relatos obtidos através do delegado, cria uma história que toca a realidade, e esse contato acaba custando sua liberdade. Esse romance metanarrativo nos ensina que ser objetivo não é o mesmo que ser realista à maneira de Dostoiévski – um escritor que soube, a partir de uma cosmovisão do mundo e da literatura, representar as profundezas da alma humana. Azjenberg, alinhado às questões em torno da contemporaneidade, cria uma personagem escritor que consegue tocar o real e por isso paga com sua vida, em uma metáfora da impossibilidade da plena representação realista. Referências: AJZENBERG, Bernardo. Carreiras cortadas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Forense Universitária, 2013.
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BEZERRA, Paulo. “Uma obra à prova do tempo”.In:BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Forense Universitária, 2013. MORIN, Edgar. O homem e a morte. Tradução de Cleone Augusto Rodrigues. Rio de Janeiro: Imago, 1997. TEZZA, Cristovão. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Rio de Janeiro:Rocco, 2003. TODOROV, Tzvetan. “Prefácio á edição francesa”. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
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A crônica machadiana no contexto da Abolição e da Proclamação da República. Paulo Cezar Basilio (UNICENTRO) Introdução. O trabalho se desenvolve a partir do estudo das crônicas de Machado de Assis que foram publicadas na série “Bons Dias”, entre 1888 e 1889. O eixo central gira em torno do ponto de vista do leitor e da maneira como foi percebido o país que se construía, moldado pelos eventos da Abolição da Escravatura e da Proclamação da República. No texto publicado semanalmente no jornal, busca-se verificar como o cronista se posicionou, mesmo subliminarmente; os impactos percebidos na realidade imediata; as perspectivas de futuro; o inconformismo com as limitações da época, encortinado pela ironia e pela sutileza que aflora do mínimo do cotidiano. As pistas deixadas pela linguagem e pelo estilo são fundamentais para se traçar as medidas de alcance de uma narrativa que escava o passado, questiona seu tempo e indica os caminhos possíveis num diálogo permanente com a posteridade. Para a concretização da pesquisa, as crônicas que tratam dos dois eventos históricos serão submetidas a análises transdisciplinares e confluentes de vários campos do saber, entre eles, a análise literária, a história, o jornalismo e a sociologia. Na análise, a fundamentação teórica terá por base as teses defendidas por Hans Robert Jauss, na Estética da Recepção de Texto, em especial, no que concerne ao Horizonte de Expectativa, à Distância Estética, à Sincronia e à Diacronia no processo de recepção do texto literário. Reflexos do Brasil na crônica machadiana. A análise das crônicas de Machado de Assis amparada nos postulados da Estética da Recepção de Texto, que foram preconizados por Hans Robert Jauss (1994), possibilita a reconstrução dos elementos extrínsecos às publicações e que se tornam fundamentais para que o olhar da contemporaneidade, no complexo mundo da pós-modernidade,
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alcance as minúcias daquele momento histórico, registrado sob o enfoque da magistral inspiração literária de seu autor. Entre as contribuições de Jauss, neste trabalho, ainda que indiretamente, busca-se o auxílio das diretrizes apresentadas em suas principais teses, entre elas, as linhas que delimitam o Horizonte de Expectativa, à Distância Estética, à Sincronia e à Diacronia. Por meio dessas premissas teóricas, é possível reconstituir a historicidade que envolve o contexto de produção das crônicas, a delimitação sobre as perspectivas do público leitor da época, elemento de interação muito presente nas crônicas machadianas. A partir disso, na relação dialógica dos dois elementos fundamentais da produção literária, pode-se alcançar meios de se visualizar o horizonte de expectativas que permeou o processo de produção e publicação das crônicas. Com isso, tem-se os elementos básicos para se realizar a leitura basal e fazer sua atualização diacrônica. Mesmo distantes há mais de um século, com o auxílio dos elementos interpretativos do método recepcional, ou pelo menos de parte deles, verificase que as crônicas dizem muito mais do que a sua superfície textual pode supor, fazendose, não raras vezes, bastante atuais, seja pela temática que abordam, seja pelo modo singular com que o autor flagrou os comportamentos e os valores da época que continuam sendo reproduzidos ainda hoje, em plena era dos incontáveis avanços tecnológicos. Nesse sentido, o estudo das crônicas de Machado de Assis, especialmente as que foram publicadas entre 1888 e 1889 leva ao encontro do país que emerge de seus textos, moldado pelos eventos da Proclamação da República e pela Abolição da Escravatura. De imediato, esse contato revela a análise do comportamento humano, dos valores e costumes estabelecidos naquele período. No texto publicado semanalmente no jornal, verifica-se que o cronista se posicionou, mesmo subliminarmente, com relatos sobre os impactos percebidos na realidade imediata; as perspectivas de futuro; o inconformismo com as limitações da época, encortinado pela ironia e pela sutileza que aflora do mínimo do cotidiano. Para a concretização do objetivo a que se propõe, o leitor atual deve partir da reconstrução do “Horizonte de Expectativa” por meio do qual perfilou-se o cronista para retratar o quadro social, histórico e político em suas narrativas jornalístico-literárias. Para tanto, as pistas deixadas pela linguagem e pelo estilo são fundamentais para se traçar as
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medidas de alcance de sua escrita que escava o passado, questiona seu tempo e indica os caminhos possíveis num diálogo permanente com a posteridade. Isso é possível, quando se submete as crônicas ao estudo transdisciplinar e confluente de vários campos do saber, entre eles, a análise literária, a história, o jornalismo e a sociologia. Por esse prisma analítico, pode-se verificar a imagem do Brasil que se abstrai da crônica de Machado de Assis, num período histórico de transição entre o governo monárquico e o republicano, em meio ao processo de libertação dos escravos. Para tal fim, são pertinentes a leitura atenta das crônicas publicadas na série Bons Dias, entre outras que apresentam contribuições sobre o tema em destaque. A princípio, a definição desse recorte de apenas dois anos de publicações, para um autor que escreveu para os jornais por mais de quatro décadas, pode parecer insuficiente para se alcançar os propósitos do trabalho, posto que os episódios relatados e comentados fazem parte de um contexto historiográfico e literário muito mais amplo. No entanto, deve-se considerar que é justamente nesse ínterim que ocorre o arremate dos dois eventos históricos enfocados, que vinham sendo gestados há décadas e seriam determinantes para o projeto futuro do país. Foram dois anos muito intensos no cenário político e social da nação, que forjaram boa parte das instituições burocráticas e administrativas modernas. Além disso, é preciso levar em consideração que nesse período rascunharam-se os primeiros esboços dos contornos da democracia republicana, que iria se estabelecer nas décadas seguintes, com a transposição dos vícios e patrimonialismos dos séculos imperiais. Como repercutiram na crônica de Machado de Assis os primeiros ecos do novo governo? Que alcance literário e jornalístico teve a prometida liberdade da Lei Áurea na visão perspicaz do cronista? Qual foi a participação do brasileiro comum, o “homem cordial”, na concretização desses dois feitos nacionais? Que Brasil seria projetado sob a pena machadiana, influenciada pela avalanche de acontecimentos diários desse período? São alguns questionamentos que se somam a vários outros e podem servir de orientação no percurso de análise dessa produção, para se buscar as pistas que evidenciam a transcendência de uma prosa sempre atual, embora contornada pelos limites históricos, sociais e políticos que direcionavam a publicação dos textos nos jornais da época.
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Com isso, vai-se em busca do Machado de Assis que se distancia dos ideais românticos, mas que, ao mesmo tempo em que se deixa absorver pelos postulados realistas, conserva as janelas de sua reflexão sempre abertas ao porvir, fazendo emergir antecipadamente em sua instigante narrativa traços modernos e pós-modernos, típicos da “modernidade tardia”, tal qual preconiza o sociólogo contemporâneo Stuart Hall (1997), ou a fluidez e a inconstância dos comportamentos na concepção da “modernidade líquida”, defendida por Zigmunt Bauman (2005). Por esse prisma, tendo por fundamento a pesquisa literária, histórica, cultural, social e política destaca-se nas crônicas em foco o retrato do elemento humano e da identidade nacional que se forja ao longo do período colonial e imperial, mas que se apura com o advento da república. Nos gestos mais simples do cotidiano, verificam-se os costumes e os valores culturais estabelecidos como alicerces de uma sociedade que se configuraria, em suas décadas vindouras, nos padrões republicanos atuais. Percebe-se que Machado com seus “despretensiosos” Bons Dias descortina o país por meio da análise que mescla temas diversos, por vezes sem conexões aparentes, em textos rápidos. Essa produção, era para ser efêmera, mas persiste e frequenta os estudos de diversos pesquisadores, nacionais e estrangeiros, fornecendo a estudantes e ao público em geral elementos importantes na compreensão das potencialidades, das promessas, das incongruências, enfim, dos avanços e dos retrocessos que marcaram a trajetória da nação, tudo isso já prefigurado pelas lentes da genialidade machadiana. Mesmo com o advento de novas tendências estéticas desencadeado pelo estilo livre pós semana de 22, os textos machadianos continuam suscitando novas reflexões e estudos. O fato do autor de ser um dos escritores brasileiros que mais tenha sido objeto de teses e trabalhos acadêmicos no Brasil e no exterior não esgota o interesse acadêmico em torno de suas crônicas. Entre as razões desse fenômeno, pode-se destacar que Machado, enquanto prosador prolífico, soube interpretar seu mundo sem se deixar prender em suas amarras e limitações. Estabeleceu por meio de sua análise penetrante, num estilo único e perscrutador, as bases de uma produção literária que transita pelas origens da nacionalidade brasileira e sugere os desdobramentos futuros que na modernidade iriam amalgamar a identidade nacional, como legado daqueles dias imprecisos.
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Por isso, sua prosa rompeu os limites cronológicos de sua publicação e consegue contornar a contemporaneidade. Tal posicionamento é confirmado por Lucia GRANJA que em entrevista ao Caderno G, do Jornal Gazeta do Povo, publicado em 02/08/2008, afirmou: Crônica é um tipo de texto que tem um pé assentado na efemeridade, e o que pode (aparentemente) diminuir a importância das crônicas de Machado é o fato de não mais conseguirmos compreender seus assuntos e, por consequência, os recursos de que sua crônica se constrói, o ponto de vista do autor. Mas, quando recuperamos a informação (de época), como nas edições críticas e anotadas que temos feito, os textos são de um interesse absoluto e, em termos literários, atualíssimos. (GRANJA,
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Embora sua crônica seja de relevância inquestionável, Machado se destaca muito mais por seus romances e contos. Nesse sentido, tal julgamento precisa ser revisto pela crítica literária. Mesmo que não se adentre à analises mais aprofundadas, é possível destacar a partir da leitura dessas contribuições para o jornal que, a genialidade não esteve ausente quando pinçou os fatos mais comuns do cotidiano para registrá-los em sua “tribuna”, de maneira que não há um escrito menor que subscreveu as crônicas e outro maior na autoria dos outros gêneros de repercussão consagrada. Nos dois casos, o mesmo estilo, o mesmo tom da intervenção irônica, da análise direta e desapaixonada coexistem, evidentemente, com propósitos distintos. Com base nessa constatação, uma das linhas de estudo da crônica machadiana aponta para a perspectiva de se encontrar o Brasil que emerge de suas linhas. Nesse caso, deve-se levar em conta que a superfície textual no universo da prosa de Machado de Assis é apenas a fachada de um magnífico monumento literário construído nos pressupostos da ironia, da ambiguidade, da crítica sutil e inteligente. Cada produção, por mais simples que pareça, está imbricada numa teia dialógica que interligam as crônicas às produções literárias expressa nos outros gêneros com maior consagração. Nesse sentido, é possível observar, no que tange o enfoque históricoliterário da Escravidão e da Proclamação da República, que a síntese criativa do texto para o jornal serviu de esboço para maior explanação nos romances. Entre eles, pode-se destacar os escravos de Dona Glória, mãe de Bentinho, que eram alugados para auferir
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renda, em Dom Casmurro, ou os desencontros ideológicos entre República e Monarquia, em Isaú e Jacó. Ao leitor contemporâneo que pretenda conhecer seus propósitos, deve ter o cuidado imediato de não confiar no texto e nas suas pistas imediatas. É preciso ir em busca do pronunciamento subliminar de sua pena realista para encontrar o ser humano debatendo-se em seu contexto de opressão social, de incertezas e desencontros políticos, de crise econômica, de fragilidade para se delinear os traços históricos que ficariam para sempre impregnados no retrato da pátria e da nação que se definiam naquele momento. Essa tarefa exige a disposição para se mergulhar nas profundidades dos registros machadianos, que jamais se limitaram à superfície dos acontecimentos sociais. Nesse sentido, as palavras do próprio autor, na crônica de 11/11/1897, são plenamente elucidativas: “Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto.” Nesse sentido, Patrícia Kátia da Costa Pina, ao analisar a produção de Machado de Assis enquanto texto jornalístico, demonstra que (...) são textos que circulam entre o fato e a ficção, proporcionando ao receptor, de certa forma, uma visão fluida das barreiras entre um e outra. O cronista cria uma espécie de sincronicidade entre acontecimentos aparentemente díspares, quase uma costura invisível, que viabilizaria ao consumidor do periódico um processo de reflexão sobre a realidade circundante. (COSTA PINA, 2007, p. 40)
Nas crônicas, Machado de Assis apresenta, com certa regularidade, sua leitura da semana, reunindo fatos diários, acontecimentos banais, eventos históricos e citações literárias clássicas. Com a pena imersa em uma mistura única de tinta e de ironia refinada, o autor vai lentamente descortinando às hipocrisias sociais. Entre elas, está a tão anunciada Abolição da Escravatura. Em várias Crônicas, Machado criticou e denunciou que essa conquista não passou de um jogo de cena, que não trouxe grandes benefícios, de imediato, para os cativos. Tal constatação é apresentada por John Gledson que assim se manifesta: A abolição é relativa: libertando os escravos, não se faz mais do que libertá-los para o mercado de trabalho” ... (serão recontratados e receberão salários miseráveis) ... Machado, entre ironias e “pilhérias”,
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chama a atenção do leitor para algo essencial. A Abolição não é um movimento da escuridão para a luz, mas a simples passagem de um relacionamento econômico e social opressivo para outro. (GLEDSON, 2006, p. 156)
Por isso, na tarefa enquanto cronista, procura revelar o “mínimo” e o “escondido”, impelido pela “curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto”. A crônica é marcada pelo ímpeto de retirar o leitor de sua tranquila comodidade, tendência já verificada em 23/10/1859, em “A reforma pelo jornal”. Nessa manifestação, Machado apresenta o jornal como um instrumento capaz de chegar a todos os espaços sociais, promovendo a reflexão e a mudança de comportamento. A primeira propriedade do jornal é a reprodução amiudada, é o derramamento fácil em todos os membros do corpo social. Assim, o operário que se retira ao lar, fatigado pelo labor quotidiano, vai lá encontrar ao lado do pão do corpo, aquele pão do espírito, hóstia social da comunhão pública. A propaganda assim é fácil; a discussão do jornal reproduz-se também naquele espírito rude, com a diferença que vai lá achar o terreno preparado. A alma torturada da individualidade ínfima recebe, aceita, absorve sem labor, sem obstáculo aquelas impressões, aquela argumentação de princípios, aquela arguição de fatos. (ASSIS, 1994)
Nesse aspecto, ao comentar sobre a perspectiva que o Jornal oferecia ao cronista no seu tempo, Patríca Katia da Costa Pinha destaca que, para Machado de Assis, a escrita cotidiana seria uma poderosa arma de luta contra as desigualdades sociais e culturais. O jornal seria popular, coletivo, reforçaria o sentido de unidade grupal, seria a comunicabilidade nacional concretizada em papel. Ao Jornal caberia a tarefa de estabelecer um universo de receptores, a partir daquilo que era vivenciado no cotidiano da sociedade. (COSTA PINHA, 2007, p.51)
Dessa maneira, o jornal, portador da informação e do conhecimento, poderia desencadear a transformação social, por meio da disseminação de princípios fundadores de uma nova realidade, conforme o cronista tão bem projetou nas entrelinhas das suas publicações semanais. No processo de produção da narrativa curta de Machado de Assis, sobressai a linguagem contundente pautada pela crítica que não sufoca. Ao contrário, destina-se a
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sacudir as consciências e alavancar a realidade a novos patamares de civilização. Dessa maneira, estudar sua crônica passa necessariamente pelo viés de análise de seu estilo literário enxuto e certeiro, manejando os instrumentos linguísticos com maestria, na medida exata, para dizer tudo sem cair nas armadilhas da prolixidade ou nas lacunas incompreensíveis da concisão. Para Lucia Granja, Machado de Assis traz em suas crônicas os fatos do seu tempo, a partir da observação crítica e realista dos comportamentos sociais. Nesse sentido, a autora defende que: A crônica seria então uma espécie de palco da semana recentemente finda, no que houvera nela de mais extraordinário (...) Operando em via de mão dupla, seu texto procurava instruir aqueles que desconheciam e, em adição aos textos críticos e literários, destruir os mal-intencionados. (GRANJA, 2009, p. 77)
Dessa maneira, o ponto de partida para a leitura da série Bons Dias passa pela investigação em torno da crônica, enquanto gênero híbrido, linha de intersecção entre jornalismo e literatura. Para tanto, é necessário o estudo de suas características e de suas particularidades, principalmente, nas últimas décadas do século XIX, período em que Machado de Assis escreveu para os jornais cariocas. Ao se verificar as crônicas que o fundador da Academia Brasileira de Letras publicou no período de 1888 – 1889, pode-se encontrar boa orientação histórico-literária seguindo-se a cronologia das publicações. Nesse período, visualiza-se o retrato do país expressa nos textos, com seu povo, suas misérias e seus desafios, num momento histórico em que acontecem dois fatos determinantes para os destinos nacionais: a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República. No microcosmo construído pelo cronista, surge num primeiro plano o homem, com seus traços característicos da nacionalidade que vai se arraigando nos costumes e práticas culturais. Pelas ruas daquele Rio de Janeiro, cenário da inspiração machadiana, já transitava o “homem cordial”, nos termos em que Sérgio Buarque de Holanda, várias décadas depois, definiu como uma das principais características da formação da identidade brasileira: (...) a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o “homem cordial”. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que
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nos visitam, representam, com efeito um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. HOLANDA (2005, p. 146)
A visão antecipada desse “homem cordial”, de acordo com John Gledson (2006), é observada na crônica machadiana, pois (...) os pensamentos de Machado são muito similares às reflexões de José Murilo de Carvalho em Os bestializados em que o autor comenta o fracasso das instituições políticas e o contrastante sucesso de associações voluntárias, precisamente no Rio desse período. Eles encontram sua expressão mais famosa num dos livros clássicos sobre o caráter nacional brasileiro, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (1936) – o “homem cordial” é justamente esse tipo de homem incapaz de um existência social e política regulada, ainda que possa ter “um fundo emotivo extremamente rico e transbordante”. (GLEDSON, 2006, p. 204)
Nesse ponto, Machado de Assis retratou esse homem em seus textos semanais. Os aspectos do comportamento social daquele momento subsidiaram a análise dos rumos históricos do país. O brasileiro, protagonista de cada semana, resulta da trajetória dos principais acontecimentos da época. O novo Brasil, marcado pela Abolição e pela Proclamação da República, foi determinante para a edificação de valores que marcariam o surgimento de perspectivas promissoras de liberdade e de democracia. Essa transição da sociedade estratificada, oriunda de um “processo de equilíbrio de antagonismos”, depois de séculos estabelecida entre a “Casa Grande” e a “Senzala”, para os domínios urbanos, tal qual apontou Gilberto Freyre (2004), repercutiu nas publicações semanais de Machado de Assis. A República teve impacto na captação dos flagrantes machadianos convertidos em apontamentos literários de uma realidade conturbada. Nesse ponto, Afrânio Coutinho (1940) é bastante esclarecedor ao destacar que Machado de Assis publicou suas obras sempre em sintonia com a sociedade da qual fazia parte. As discussões em torno dos temas nacionais, por óbvio, não poderiam passar distante de suas linhas construídas especialmente para o jornal, já que ali o cenário imediato era aquele em o seu público encenava, todos os dias, as tragédias e comédias da sua realidade.
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Sua obra reflete o tempo e o meio. Os seus temas são os da vida carioca na época do Segundo Reinado, como provou Astrojildo Pereira. Sem ser nacionalista, é um escritor nacional e popular, pois, não escrevendo de costas para a sua nação, sua obra reflete os problemas de seu povo, seus costumes, preocupações, ideais, dificuldades, tendo vivido dentro dele, recolhendo a sua experiência vital, acumulando-a na alma. (COUTINHO, 1940, p. 34)
Tais constatações, entre outras, são pertinentes para se verificar os parâmetros da identidade nacional que foram estabelecidos por Machado de Assis em suas crônicas, não apenas naquele cenário incerto e perturbador, mas para o brasileiro que se estabeleceria no acomodar contínuo da estabilização social e política que marcaria o advento republicano na história do país. Considerações finais. A crônica machadiana, vista aqui apenas em alguns aspectos, precisa ser lida com maior intensidade. Seu conteúdo, embora ancorado em seu contexto, permite ao leitor atual a reflexão em torno dos problemas que persistem na estrutura republicana do país e que tiveram origem lá naqueles anos turbulentos, nos quais Machado de Assis colheu o material para materializar suas crônicas. O Brasil, a Sociedade Carioca do segundo reinado, de onde parte a obra e a galeria machadiana, de acordo com Afrânio Coutinho (1940), são elementos fundamentais para a produção das crônicas escritas sob o viés da temática da escravidão: A Obra de Machado, vista de certo ângulo, é a mais enérgica e violenta reação crítica contra toda a estrutura social do Brasil patriarcal e escravocrata do século passado, com a concepção moral correspondente, ligada aos preconceitos de raça, cor, classe [...] Que maior acordo, portanto, com o sentido da evolução social do Brasil? (COUTINHO, 1940, pp. 20-21)
Num momento histórico em que o país entrava num vácuo de pertencimento, pois com a Proclamação da República rompia de vez os liames com a coroa portuguesa, as palavras de Zygmunt Bauman lançam luz para se entender os postulados da formação da identidade nacional cambaleante, no contexto da crônica machadiana. A ideia de “identidade” nasceu da crise do pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido de transpor a brecha entre o “deve” e o “é” e erguer a realidade ao nível dos padrões estabelecidos pela ideia – recriar a realidade à semelhança da ideia”. BAUMAN (2005, p. 26)
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Nas crônicas, Machado de Assis retratou os encontros e desencontros entre as diversas facções políticas, republicanas e monárquicas. Desse enredo conflituoso surgiria o Brasil como promessa de país do “futuro”, com o anseio de seu povo de se tornar de fato independente e livre para conduzir seus destinos. Referências ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994. BACCEGA, Maria Aparecida. Comunicação/educação e transdiciplinariadade: os caminhos da linguagem. Comunicação & Educação, São Paulo, 7 a 14, maio/agosto. 1999. BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. COSTA PINA, Patrícia Kátia da. Machado de Assis: jornalismo e leitura. Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades ISSN 1678-3182, volume V, número XX, p. 39 – 53, jan - mar 2007. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 49. ed. São Paulo: Global Editora, 2003. GLEDSON, John. Machado de Assis Bons Dias! 3. ed. Campinas: Editora UNICAMP, 2008. GRANJA, Lucia. Machado de Assis Journalist: the Man, the Text, the Time. Olho d’água, São José do Rio Preto, v. 1, n. 2, p. 75 - 81, 2009. _________. Por um novo Machado de Assis: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. GRANJA, Lúcia. Machado de Assis, Jornalista: o homem, o texto, o tempo. Olho d’água, São José do Rio Preto, v. 1, n. 2, p. 77, 2009. HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 1997. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. JORNAL Gazeta do Povo. Machado de Assis, o maior cronista de seu tempo. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?id=793096. Acesso em: 07 jan. 2014.
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“CONTO ALEXANDRINO”: A CRÍTICA AO CIENTIFICISMO LITERÁRIO EM MACHADO DE ASSIS Paulo Ricardo Moura da Silva (UNESP/Ibilce) Machado de Assis, com a singular ironia que lhe é característico, atacou criticamente o Naturalismo, nova escola literária que surgia em sua época, na França, mas que marcava presença, cada vez mais, entre as terras lusófonas, pretendendo encontrar no diálogo intenso com as ciências de fins do século XIX a fonte da renovação da literatura, diante do decadente Romantismo. A crítica do escritor brasileiro elaborou-se tanto em textos literários, como, por exemplo, em O Alienista, publicado em 1882, como em textos jornalísticos, como, a título de exemplificação, em seu artigo ― O Primo Basílio‖, publicado em O Cruzeiro, em 16 e 30 de abril de 1878. Desse modo, a proposta deste trabalho consiste em analisar criticamente a problematização que Machado de Assis, no ― Conto alexandrino‖, parece fazer da ciência e, por extensão, do cientificismo literário do movimento naturalista, de modo que possamos perceber na linguagem, nos métodos narrativos e nas estruturas formais do texto literário a construção de um conto que não se reduz a uma crítica datada ao Naturalismo, mas, trabalhando com as potencialidades da ironia, permite também a discussão de questões pulsantes, porque universais, como, por exemplo, os limites éticos da prática científica. No ― Conto alexandrino‖, acompanhamos a fábula de dois filósofos, Stroibus e Pítias, em uma narração em terceira pessoa, em que Stroibus elabora uma teoria que constata que ― os deuses puseram nos bichos da terra, da água e do ar a essência de todos os sentimentos e capacidades humanas‖ (ASSIS, 2007, p. 192), logo, o consumo do sangue de determinado animal, se obedecido determinados procedimentos, acarretaria na transmissão, àquele que o ingerisse, da característica humana resguarda no animal. Como não são bem aceitos em sua pátria, Chipre, vão para Alexandria, terra que os acolhe com admirável louvor, lá fazendo uma série de experiências com ratos para que se prove a teoria de Stroibus, na qual afirma que, no caso dos ratos, seria transmitido a
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ladroagem. Dessa maneira, nada melhor que os próprios filósofos fossem os primeiros a sofrerem as alterações proporcionadas pelas experiências, caso a teoria estivesse correta. O experimento é um sucesso e ambos começam a cometer pequenos delitos até serem pegos roubando manuscritos da biblioteca da cidade. Foram presos e, a pedido do anatomista Herófilo, acabam sendo entregues a fim de serem dissecados vivos para estudo, em uma ironia avassaladora. Ao ser intitulado ― Conto alexandrino‖, Machado, por meio deste paratexto e de situar a narrativa no espaço que condiz com o título, traz como referência a cidade de Alexandria, ponto de encontro entre o continente europeu, asiático e africano, famosa por sua biblioteca, uma das maiores do mundo antigo, mas que foi destruída por um incêndio por volta de 48 a.c.. Assim, já inicialmente, situa-se o conto diante de uma das grandes referências do conhecimento na Antiguidade, disposto nos milhares de rolos de papiro e pergaminhos que compunha a biblioteca de Alexandria, o que parece se relacionar com a discussão em torno do discurso científico que o conto propõe, uma vez que a ciência é uma forma de conhecer e compreender o mundo. O― Conto alexandrino‖ é organizado em quatro capítulos – capítulo I: No mar; capítulo II: Experiência; capítulo III: Vitória; capítulo IV: Plus Ultra! –, estrutura pouco comum em se tratando de contos, diante da brevidade, concentração e tensão que marca esse gênero literário, que se delineia a partir de ― uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos‖, como acredita o escritor Julio Cortázar (1974, p. 150 – grifos do autor). A divisão em capítulos que o conto estabelece aponta para uma estrutura fragmentária, o que problematizaria, formalmente, o Naturalismo produzido no século XIX em seu projeto estético-ideológico de representações totalizantes, neutras e objetivas, que é ironizado, no plano temático, por meio do questionamento das teorias científicas adotadas por este movimento literário na construção de suas representações. A fragmentação também pode ser percebida por meio da fala de Pítias que dá início ao conto: ― – O quê, meu caro Stroibus! Não, impossível. Nunca jamais ninguém acreditará que o sangue de rato, dado a beber a um homem, possa fazer do homem um ratoneiro‖ (ASSIS, 2007, p. 191). As duas primeiras frases de Pítias somente são passíveis de encontrar coerência, se considerarmos que o diálogo entre os dois personagens não se principiou no mesmo instante em que a narração do conto começa, o
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que não permite que o leitor tenha acesso integralmente a esse diálogo, mas somente a uma parte dele. Logo nos primeiros parágrafos do conto, mais especificamente no quarto parágrafo, um elemento fundamental desta narrativa e significativo para a leitura crítica que aqui propomos aparece pela primeira vez: a ironia. A crítica literária destaca essa figura de linguagem como um dos pontos mais aplaudíveis da obra machadiana, verificável já em José Veríssimo, em sua História da literatura brasileira: ― a sua faculdade mestra é a imaginação humorística, isto é, a visão pessimista das coisas, através da inteligência da sua necessidade e contingência e do sentimento da nossa importância contra elas, as viu com risonho desdém ou com irônica benevolência‖ (VERÍSSIMO, 1963, p. 315-316). Stroibus diz já ter produzido um ladrão legítimo por meio da experiência com sangue de rato, ingerido por um homem, o que comprovaria sua teoria. A ironia se manifesta ao dizer que o ladrão, fruto de seu experimento, ― levou-me o manto, ao cabo de trinta dias, mas deixou-me a maior alegria do mundo: — a realidade da minha doutrina. Que perdi eu? um pouco de tecido grosso; e que lucrou o universo? a verdade imortal. Sim, meu caro Pítias; esta é a eterna verdade‖ (ASSIS, 2007, p. 191). Stroibus, ironicamente, é vítima de sua própria experiência, porém, não se importa, ao contrário, vê-se feliz diante do furto, porque isso comprova sua teoria. Temos aqui, ainda, um indício do final irônico, mas ao mesmo tempo trágico, que caberá aos filósofos no que diz respeito a sofrerem consequências negativas de seus experimentos: convertidos em ladrões, por meio da experiência que realizam consigo próprios para a comprovação da teoria de Stroibus, são presos e terminam nas mãos de um anatomista, que realizam seus estudos em seus corpos vivos, levando-os a morte. Na passagem citada acima, Stroibus apresenta também sua teoria como uma verdade imortal e eterna, o que desconsidera qualquer possibilidade de discussão, revisão e reformulação dos princípios teóricos desenvolvidos por Stroibus. Como se sabe, a realidade é irredutível a uma única teoria, o que a deixa suscetível a críticas que possam repensar o questionamento que ela apresenta. Se as perguntas movem o conhecimento mais que suas respostas, a dinamicidade da ciência está em duvidar, primordialmente, das respostas já dadas, descobrindo novas perguntas a partir delas, o
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que não permitiria que as respostas formuladas anteriormente ocupem para sempre o status de verdade imortal e eterna, como acredita Stroibus com relação a sua teoria, ainda em que por um dado período uma teoria possa ser tomada como imortal. Essa concepção de Stroibus de que sua teoria apresenta à humanidade uma verdade inquestionável e, por isso mesmo, eterna, parece dialogar com as palavras de Émile Zola em seu ensaio crítico ― O romance experimental‖, em que o aclamado chefe da escola naturalista afirma que ― um fato observado fará eclodir a idéia [sic] da experiência que deve instituir, do romance que deve escrever, para chegar ao conhecimento completo de uma verdade‖ (1979, p. 35). Se se alcança a completude de uma verdade, podemos dizer, então, que ela seja atemporal ou eterna, se quisermos utilizar a palavra do personagem machadiano, porque o tempo não agirá sob ela de modo que a mude, porque não há o que possa ser modificado, e, assim, possa ser considerada como uma verdade absoluta. Mas se acompanharmos a história da produção de conhecimento, na grande maioria das vezes, as verdades científicas de um tempo foram aprimoradas por outras verdades que pareciam ou parecem mais coerentes diante da busca inerente ao homem de almejar a compreensão de si e do mundo. A dinamicidade do conhecimento científico verificável ao longo da história faz soar um pouco artificial a proclamação da teoria de Stroibus como verdade eterna, o que acentua significativamente a crítica de Machado ao Naturalismo, bem como à própria ciência. Zola, ao estabelecer as bases do romance experimental, busca seus fundamentos na Medicina experimental desenvolvida por Claude Bernard, em que seus objetivos são estabelecer as regras universais que regeriam a natureza dos corpos vivos, assim como a Química e a Física houvera feito com os seres brutos. São estas regras que proporcionariam a verdade completa, a qual o romancista francês se refere, e que Machado de Assis integra ao discurso de seu personagem no ― Conto alexandrino‖, como um modo de aproximar seu personagem do discurso cientificista que circunda a literatura naturalista para, assim, poder ironiza-lo. Stroibus acredita realmente ter encontrado uma dessas regras, como podemos observar nas seguintes passagens: ― Em suma, os deuses puseram nos bichos da terra, da água e do ar a essência de todos os sentimentos e capacidades humanas. Os animais são as letras soltas do alfabeto; o homem é a sintaxe‖ (ASSIS, 2007, p. 192), ― — Eu violei o
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segredo dos deuses, acudia Stroibus. O homem é a sintaxe da natureza, eu descobri as leis da gramática divina...‖ (ASSIS, 2007, p. 193). Stroibus ao intuir ― as leis da gramática divina‖ desmitifica a compreensão dos sentimentos e capacidades humanas, que, segundos os princípios mitológicos, seriam dadas pelos deuses a cada um dos seres humanos. Abandonar os mitos como formas de explicação do mundo e do homem para compreendê-los a partir de um raciocínio sistemático, coerente e condizente com os fatos foi a grande força motriz da ciência em seus primórdios e que ainda a conduz na realização de seus objetivos. Na primeira passagem do conto, quando o personagem sintetiza as bases de sua teoria, há uma relação importante a se destacar para a percepção da crítica ao Naturalismo tradicional, que se refere à aproximação entre os sentimentos e capacidades humanas e o universo animal. O homem animalizado é uma constante nas representações naturalistas do século XIX, que direciona seu olhar para as degradações da sociedade, sobretudo das classes populares. Antonio Candido, ao analisar a obra O cortiço, de Aluísio Azevedo, reconhece que, no naturalismo, ― a redução à animalidade decorre da redução geral à fisiologia, ou ao homem concebido como síntese das funções orgânicas‖ (1991, p. 125). A imagem da sintaxe, assim como no texto literário de Machado de Assis, é acionada também pelo crítico brasileiro para emoldurar a concepção naturalista de que o homem é o resultado das diferentes funções que seu organismo assume, analogia frutífera, uma vez que sintaxe é o estudo dos componentes que integram uma oração, bem como a interação entre eles. Sendo o homem reduzido a sua fisiologia, seria, portanto, possível estabelecer as leis que o que regem, a sua sintaxe, e essa tarefa caberia à ciência, ou, como queria Zola, à literatura, de cunho naturalista, que, para construir suas narrativas, se utilizaria do método experimental. Em contraposição aos escritores idealistas, em especial os românticos, fortemente criticados pelos realistas e naturalistas, o romancista, segundo as concepções de Zola, é feito de um observador e de um experimentador. Nele, o observador apresenta os fatos tal qual os observou, define o ponto de partida, estabelece o terreno sólido no qual as personagens vão andar e os fenômenos se desenvolver. Depois, o experimentador surge e institui a experiência, quer dizer, faz as personagens evoluírem numa história
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particular, para mostrar que a sucessão dos fatos será tal qual a exige o determinismo dos fenômenos estudados. (1979, p. 31)
É justamente a estas pretensões do escritor naturalista de se moldar aos procedimentos de um cientista que se vale do método experimental ao lidar com seu objeto de análise que Machado de Assis parece ironizar mais propriamente em seu conto. Os indícios da ridicularização irônica do cientificismo literário, que encontra nos dois filósofos sua figuração, estão presentes desde o começo do conto, como, por exemplo, quando Pítías, diante da enumeração por Stroibus de qual sentimento ou capacidade humana está presente em determinado animal, sorri, interrompendo-o, com a afirmação de que a sabedoria se encontra na coruja, ou ainda com o fato de que ― Chipre não dava o merecido respeito aos dois filósofos. Ao contrário, desdenhava-os; os garotos tocavam ao extremo de rir deles‖ (ASSIS, 2007, p. 192). Outro ponto de diálogo com as pretensões de Zola, afirmadas em seus estudos críticos, está em atribuir uma função moralista aos romancistas experimentais, chegando a proclamá-los como ― moralistas experimentadores‖, porque, uma vez determinados os mecanismos das paixões, proposta primordial do romance experimental, a sociedade poderá controlá-las, reprimi-las ou exterminá-las de forma mais efetiva, o que garantiria, assim, uma ordem social mais ― saudável‖. Esse ponto de aproximação com as reflexões de Zola pode ser mais bem ilustrado por meio desta passagem: ― Trago uma doutrina, que, em pouco, vai dominar o universo; cuido nada menos que em reconstituir os homens e os Estados, distribuindo os talentos e as virtudes‖ (ASSIS, 2007, p. 193). Esse trecho também apresenta algo recorrente no conto: uma espécie de megalomania, em que a teoria de Stroibus é caracteriza com uma magnitude suprema. Ora, se a teoria é de um nível tão superior, por que o indivíduo que a elaborou também não o seria? Com uma ironia muito refinada, característica de Machado de Assis, a crítica aos princípios de objetividade e neutralidade pretendidos pelos escritores naturalistas em sua produção literária, ao buscarem se espelhar nas concepções científicas de fins do século XIX, torna-se pulsante. Contrasta-se uma suposta atitude de afastamento, marcada singularmente no conto com a negação dos dois filósofos aos presentes que receberam assim que chegaram a Alexandria, com uma valorização hiperbólica da teoria que o personagem desenvolveu e, por extensão, a sutil valorização
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de si próprio, como podemos notar na seguinte passagem: ― Quando minha doutrina estiver completa, divulgá-la-ei como a maior riqueza que os homens jamais poderão receber de um homem‖ (ASSIS, 2007, p. 193). Porém, Machado de Assis é mais incisivo, não coloca esse sentimento megalomaníaco somente nos dois personagens protagonistas de seu conto, o que poderia ser atribuído à personalidade de ambos, dando-lhes um caráter de exceção, mas sutilmente caracteriza os demais filósofos de Alexandria como pensadores confiantes de que eles são, de fato, os possuidores da verdade inabalável, o que foge às pretensões de neutralidade e objetividade que, supostamente, conduziriam o debate científico. A discussão que busca a construção de um discurso que possa melhor dar sentido ao aparente caos universal dá lugar a uma disputa da verdade de um contra a do outro, em que os sujeitos da enunciação destes discursos, ainda que de forma, algumas vezes, camuflada, pede para si os louros desta batalha. Com o refinamento de uma ironia bem elaborada, o narrador do conto afirma ainda que ― a ciência, como a guerra, tem necessidades imperiosas‖ (ASSIS, 2007, p. 194). Agora, a imagem da batalha é acionada para iluminar outro aspecto: com objetivos de tamanha grandiosidade, a ciência, bem como a guerra, adotam as táticas maquiavélicas em que os fins justificam os meios, de modo a se colocar acima da ética e da moral para atingir os objetivos estabelecidos. A descrição dos procedimentos que os filósofos adotam para fazer seus experimentos com os ratos contrasta a neutralidade ante o objeto de análise por parte dos filósofos e a morte agonizante dos ratos. Stroibus ― hábil anatomista, operava com uma firmeza digna do propósito científico. Outro, menos destro, interromperia muita vez a tarefa, porque as contorções de dor e de agonia tornavam difícil o meneio do escalpelo; mas essa era justamente a superioridade de Stroibus: tinha o pulso magistral e prático‖ (ASSIS, 2007, p. 194). A objetividade científica dos filósofos, ao se chocar com a morte vagarosa dos ratos, transforma-se, ironicamente, em uma indiferença envolta por uma crueldade sádica, logo, um comportamento não mais tão neutro e objetivo como se esperaria de um procedimento científico, de acordo com as concepções divulgadas amplamente pelas ciências experimentais no século XIX. Sua
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objetividade atua, diante das estratégias narrativas, como um modo de intensificar ainda mais a crueldade da representação do ato de sacrificar os animais para a experiência. Em outra passagem, quarenta e cinco ratos foram mortos, em um só dia, somente com a pretensão de saber, com a devida precisão, qual é a cor do olho do rato no instante de sua morte. Porém, qual a relevância dessa informação para se provar a teoria de Stroibus? Aparentemente, nenhuma, o que apontar a inutilidade da morte desses animais frente aos objetivos dos filósofos. A crítica recai incisivamente sobre a relação entre os objetivos de uma pesquisa científica e os procedimentos que ela adota, o que, consequentemente, leva-nos à questão da ética no trabalho científico. O horror das experiências tem repercussão entre os habitantes de Alexandria, que se indignam com tal crueldade. Eis a resposta de Stroibus: A descrição exagerada das experimentações deu rebate à porção sentimental da cidade, e excitou a loqüela de alguns sofistas; mas o grave Stroibus (com brandura, para não agravar uma disposição própria da alma humana) respondeu que a verdade valia todos os ratos do universo, e não só os ratos, como os pavões, as cabras, os cães, os rouxinóis, etc.; que, em relação aos ratos, além de ganhar a ciência, ganhava a cidade, vendo diminuída a praga de um animal tão daninho; e, se a mesma consideração não se dava com outros animais, como, por exemplo, as rolas e os cães, que eles iam escalpelar daí a tempos, nem por isso os direitos da verdade eram menos imprescritíveis. A natureza não há de ser só a mesa de jantar, concluía em forma de aforismo, mas também a mesa da ciência. (ASSIS, 2007, p. 195)
Stroibus responde com forte ironia à comunidade alexandrina, principalmente, ao insinuar que, diante da inutilidade dos ratos, que somente provocam males, ele haveria encontrado um objetivo nobre para exterminá-los, bem como ao sugerir que a indignação daquelas pessoas com a morte dos animais nas experiências que propõe é hipócrita, uma vez que essas mesmas pessoas matam animais para comer. Ora, os habitantes de Alexandria matam animais para alimentar o corpo, Stroibus, por sua vez, os mataria para alimentar o espírito com a verdade que elabora por meio de suas experiências. A verdade deve ser alcançada a todo custo. É isso que ressoa das palavras de Stroibus, que se lança ao leitor para que, diante das estratégias narrativas que a ironia instaura, ele possa se envolver numa reflexão do quanto é preciso olhar para o discurso científico de forma não dogmática, mas, sendo a ciência, fruto de um pensamento
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sistematicamente organizado pela razão, devemos também nós, os receptores dessa ciência produzida, racionalizar sobre suas implicações e não somente aceita-la indistintamente. Com relação ainda à ética na ciência, Machado de Assis questiona também a concepção de que todo conhecimento científico é uma elaboração original e singular do pensamento racional, quando, no conto em análise, se admite que as experiências dos dois filósofos comprovaram a teoria de Stroibus, uma vez que os filósofos tornaram-se ladrões por meio da ingestão de sangue de ratos e iniciaram sua ladroagem com o roubo de ideias um dos outros, porque ― é muito natural começar por elas antes de passar aos livros emprestados, às galinhas, aos papéis falsos, às províncias, etc.‖ (ASSIS, 2007, p. 196). O escritor brasileiro, ironicamente, admite que a ciência possa ser também fruto da falsificação, do plágio, logo, se antes a ética era colocada em termos de procedimentos práticos com relação às experiências científicas, como, por exemplo, o sacrifício cruel e desmedido de animais, nessa passagem, Machado a discute em termos de elaboração intelectual. Stroibus e Pítias, convidados a trabalhar na biblioteca de Alexandria, começaram a roubar certos manuscritos pertencentes ao acervo, mas, foram descobertos, e julgados como impostores que se passavam por aquelas grandes filósofos de que os alexandrinos ouviram falar e leram suas teorias, o que resultou na prisão de ambos. Interessante notar que julgá-los como impostores é uma forma de negar que aqueles homens sábios fossem também maus-caracteres e, assim, poder manter a concepção de que o conhecimento produz homens superiores não somente com relação ao conhecimento, mas também em termos morais. Os traços irônicos dessa passagem nos indicam, pela própria concepção de ironia de ser ― um modo de discurso que tem ‗peso‘, no sentido de ser assimétrica, desequilibrada em favor do silencioso e do não dito‖ (HUTCHEON, 2000, p. 16), que intelectualidade não implica necessariamente em desenvolvimento humano em termos éticos, morais e até mesmo fraternais, no sentido de compreender a alteridade em sua singularidade. Herófilo, grande anatomista, pede a Ptolomeu, governante de Alexandria, que lhe permita fazer experimentos com seres humanos vivos, no caso, com os seus prisioneiros, com a justificativa de que
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as prisões egípcias estão cheias de criminosos, e os criminosos ocupam, na escala humana, um grau muito inferior. Já não são cidadãos, nem mesmo se podem dizer homens, porque a razão e a virtude, que são os dois principais característicos humanos, eles os perderam, infringindo a lei e a moral. Além disso, uma vez que têm de expiar com a morte os seus crimes, não é justo que prestem algum serviço à verdade e à ciência? A verdade é imortal; ela vale não só todos os ratos, como todos os delinqüentes do universo. (ASSIS, 2007, p. 197)
O rebaixamento dos delinquentes a uma condição subumana, ou melhor, inumana, resulta em sua animalização, o que aproxima os ratos dos criminosos e possibilita que as mesmas condições que foram dadas aos ratos nas experiências dos filósofos sejam dadas aos prisioneiros também. Mais uma vez, o Naturalismo, como movimento literário do século XIX, em seus anseios, objetivos e concepções literárias é trazido ao conto machadiano por meio da recorrente imagem, na escola de Zola, do homem animalizado e da presença do universo científico, para que possa ser ironizado, diante da integralidade da narrativa. A justificativa de Herófilo segue a mesma estrutura básica da argumentação de Stroibus quando da indignação dos habitantes de Alexandria com as suas experiências, a saber, a verdade científica como algo supremo, em que sua busca não deve ser limitada por fatores externos, bem como a utilidade para fins científicos de elementos sociais problemáticos. Isso já é um indício do fim irônico que os filósofos terão. Ptolomeu aceita entregar prisioneiros para as experiências do anatomista, entre eles, Stroibus e Pítias. A crueldade da representação das experiências com fins científicos é reiterada, agora, não faz a focalizar a agonia mortal de ratos, mas os gritos agonizantes de criminosos, que não sabiam a que estavam sendo destinados até chegar à sala em que serviriam de verdadeiras cobaias, ignorância que intensifica ainda mais o horror da representação, como podemos observar nesta passagem: Quando vinham aos dois ou aos três, não ficavam em lugar donde os que esperavam pudessem ouvir os gritos do paciente, embora os gritos fossem muitas vezes abafados por meio de aparelhos; mas se eram abafados, não eram suprimidos, e em certos casos, o próprio objeto da experiência exigia que a emissão da voz fosse franca. (ASSIS, 2007, p.198)
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Depois de executarem, durante as experiências de Herófilo, a cinquenta dos prisioneiros, número aproximado ao número mencionado de ratos sacrificados pelos dois filósofos, chega a vez de Stroibus e Pítias encontrarem seu fim ironicamente trágico. Stroibus pede clemência a Herófilo ao compreender o porquê foi levado a tal lugar, mas o anatomista responde-lhe que ou és um aventureiro ou o verdadeiro Stroibus; no primeiro caso, tens aqui o único meio para resgatar o crime de iludir a um príncipe esclarecido, presta-te ao escalpelo; no segundo caso, não deves ignorar que a obrigação do filósofo é servir à filosofia, e que o corpo é nada em comparação com o entendimento. (ASSIS, 2007, p. 198)
Como na tragédia clássica, o destino do herói é incontornável, o que permite o estabelecimento irreverente da ironia, que faz com que os dois filósofos caiam sobre as armadilhas de suas próprias convicções: antes, filósofos a fazer experiências cruéis na busca pela verdade, agora, cobaias de experiências igualmente cruéis. Como diz nosso ditado popular, ― o feitiço caiu contra o feiticeiro‖, ou seria melhor dizer, a ciência caiu contra o cientista. A critica de Machado de Assis ao Naturalismo no ― Conto alexandrino‖ é de que, enquanto literatura, as obras desse movimento literário, muitas vezes, acabam prisioneiras de suas próprias armadilhas, como também salienta a novela O Alienista, em que o médico Simão Bacamarte, ao internar todos os que estavam loucos, segundo sua concepção, percebe que grande parte da cidade já estava internada, o que o leva posteriormente a concluir que a loucura está em seu próprio ser. No polêmico artigo sobre o romance O primo Basílio, de Eça de Queirós, Machado (1910, p. 81) afirma que, diante da proposta naturalista de se afastar da intensa idealização romântica, o Naturalismo, também chamado de Realismo na época em que surge, acaba por elaborar representações marcadas pelo excesso tal como no Romantismo, agora, não mais por meio da idealização, mas do rebaixamento. Porém, o olhar machadiano flagra, ao mesmo tempo, a percepção de que a ciência é capaz de traçar rumos que tem certas implicações que podem fugir a seu próprio domínio e, até mesmo, a seus objetivos iniciais, caindo também nas armadilhas feitas por ela mesma, a partir do conhecimento que ela julga dominar. É neste ponto que
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o conto do século XIX ganha em universalidade, uma vez que não dialoga apenas com seu contexto de produção, mas diferentes épocas da história da humanidade. Referências ASSIS, Machado. Conto alexandrino. In: GLEDSON, John (org.). 50 contos de Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. ______________. Crítica. Livraria Garnier, 1910. ______________. O alienista. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2010. CÂNDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 30, p. 111-129, jul. 1991. CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: ________. Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974. HUTCHEON, L. Teoria e política da ironia. Belo Horizonte: UFMG, 2000. QUEIRÓS, Eça de. O primo Basílio. São Paulo: Klick, 1997. VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira: de Bento Teixeira, 1601 a Machado de Assis, 1908. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1963. ZOLA, Émile. O romance experimental e o Naturalismo no teatro. São Paulo: Perspectiva, 1979.
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A figura do narrador sendo valorizada pelo Fantástico, o Imaginário e o Maravilhoso e Castelli di Rabbia, de Alessandro Baricco Pedro Henrique Pereira Graziano (Unesp) No presente estudo, buscamos explorar as fronteiras do Fantástico, do Maravilhoso e do Imaginário na obra do escritor italiano Alessandro Baricco intitulada Castelli di Rabbia, traduzida para o português como Mundos de Vidro. Com base nas leituras realizadas, tentamos situar a obra corpus nas fronteiras dos três modos citados. A definição destes como modo é feita pelo autor Cesarani, em sua obra O fantástico (2006). É importante constatar esta distinção devido ao fato de geralmente atribuir-se a nomenclatura “gênero” ao Fantástico e o Maravilhoso, e ao serem chamamos de modo, passam a ser mais abrangentes. Para nortear o trabalho, é de suma importância ter em mente a forma como Baricco desenvolve seu texto, dialogando constantemente com autores como Benjamin (1996) e Adorno 2008), que discorrem, em suas obras, sobre o emudecimento do narrador na sociedade contemporânea (mais especificamente a sociedade que se desenvolve a partir das duas Grandes Guerras) e como a Cultura de Massa gera um imenso bombardeio de imagens sobre o sujeito, contribuindo, assim, para a manutenção de um cenário no qual o narrador deixa de ser importante. Baricco busca empregar todos os recursos possíveis para valorizar a figura do narrador, a figura daquele que resiste a este bombardeio de imagens, ao emudecimento. Para tal se vale de modos como o Fantástico e o Maravilhoso, criando Quinnipak, cidade fictícia onde se passa a história de Castelli di Rabbia, dentro de um universo imaginário, em que o inesperado e o insólito têm lugar. O autor cria alegorias para que o leitor aproxime a obra lida da realidade empírica, para que seja encorajado a se espelhar nos personagens e em suas ações e formas de pensar. Em diversas situações os personagens se mostram resistentes às pressões do meio que os cercam, posicionam-se firmemente e não desistem de seus sonhos, mesmo que muitas vezes estes pareçam impossíveis. E dentro deste mundo de sonhos impossíveis Baricco trabalha como um artesão, como o velho narrador que habita cada
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um de nós. Cria uma obra que se encaixa nos conceitos enunciados por Calvino (1990) de rapidez e leveza, pois seu texto se desenvolve de maneira sutil, propiciando agradável leitura, sem se prender a detalhes, deixando a construção do cenário por conta do leitor, além de fugir do universo cotidiano no qual o leitor se encontra inserido, construindo um reino do maravilhoso, um lugar em que o imaginário é real, e os limites do que pode ou não acontecer são muito sutis. Eis o que Calvino diz sobre a leveza na Literatura: “[...] a literatura como função existencial, a busca da leveza como reação ao peso do viver” (CALVINO, 1990, p. 39). Pode-se observar, com os dados levantados durante a pesquisa, que Baricco aborda a questão do bombardeio de imagens e da arte de narrar posicionando ambos em polos opostos, aproximando o narrar da vida, como fuga ao emudecimento imposto pelo excesso de imagens, que devido ao ofuscamento que causa ao homem, privando-o das belezas oferecidas pela Literatura como arte, se encontra obrigatoriamente em um polo dicotômico oposto. Ao longo do trabalho será observado que este comportamento persiste e é amplamente auxiliado, e até mesmo possibilitado pela presença do Fantástico, do Maravilhoso, ao final da narrativa, do Estranho. Como exemplo, podemos citar a forma alegórica como o enunciador constrói seus personagens de modo a fazer o leitor refletir e tomar certas posturas quanto à Literatura. Isto fica ainda mais claro no final do livro em que é revelado que toda a narrativa foi criação de Jun, uma das personagens principais da narrativa, que na verdade, ainda que fosse um personagem presente na no universo imaginário de Quinnipak, se encontra fora deste, em um mundo no qual sofre e para amenizar a dor criou toda a narrativa que chega até o leitor. Jun sofria abusos sexuais e ofensas, encontrava-se em uma situação deplorável e da qual buscava se refugiar o tempo todo, encontrando abrigo em Quinnipak, com suas tramas e personagens. O que ela cria serve para amenizar o peso de seu viver. Ainda que oprimida por uma realidade terrível é capaz de encontrar seu narrador interior, com belas experiências a serem compartilhadas, com um texto artesanalmente criado que lhe servia como bálsamo: “[...] mi rannicchio nel letto e vedo a Quinnipak. Me l’ha insegnata Tool questa cosa. Andare a Quinnipak, dormire a Quinnipak, fuggire a Quinnipak1 (BARICCO, 1997, p. 1
[...] encolho-me na cama e vou até Quinnipak. Foi Tool que me ensinou isso. Ir a Quinnipak, dormir em
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242) . A respeito desta figura emudecida, aparentemente incapaz de compartilhar suas experiências, há considerações feitas por Benjamin. Primeiramente, é dito que esta experiência é a fonte principal da qual se valem os narradores: “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores” (BENJAMIN, 1996, p. 198). Portanto, a habilidade de partilhar algo é tida como um pré-requisito para a existência do narrador. É importante destacar que, ainda que o narrador deva apresentar este perfil sábio, que compreende a partilha de experiência e aconselhamentos, não se deve associar sua imagem a um ser divino que se encontra acima das camadas populares. Benjamin o afirma quando diz que o grande narrador não se afasta das camadas populares: “O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais” (BENJAMIN, 1996, p. 214). Neste cenário apresentado, no qual o homem comum, criado dentro de um universo feito por situações cotidianas, volta de uma situação incrível, na qual tantas coisas indescritíveis aconteceram, e ainda assim não é capaz de compartilhar aquilo que viu e viveu devido aos horrores que constituem esses fatos, temos a figura do homem que estabelece uma relação de estranheza com seu semelhante. Não é mais capaz de compartilhar com o próximo suas experiências, de modo que o sujeito do pós guerra passa a se isolar, o que prejudica não apenas a relação entre os homens, mas a compreensão do mundo que os cerca, uma vez que se apreende os aspectos da vida a partir do compartilhamento de experiências mútuo, conforme diz Adorno:
Pois quanto mais os homens – indivíduos e coletividades – ficaram estranhos uns aos outros, tanto mais enigmáticos eles se tornaram, ao mesmo tempo, nas suas relações mútuas, e a tentativa de decifrar o enigma da vida exterior, o impulso propriamente dito do romance, passar a ser o esforço de captar a essência que, justamente na estranheza familiar posta pelas convenções, aparece, por seu turno, assustadora, duplamente estranha. (ADORNO, 2008, p. 270)
Assim, fica claro para o leitor que Baricco assume uma postura ativa quanto ao texto literário. Busca valorizá-lo e mostrar que ainda em nossa sociedade se deve atribuir-lhe importância e praticar sua leitura ativamente. Juntamente com estas Quinnipak, fugir para Quinnipak” (BARICCO, 1999, p. 224).
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reflexões, enuncia a respeito da figura do narrador na sociedade contemporânea, que estaria emudecida, ou com sua capacidade de compartilhar experiências empobrecida devido aos horrores sofridos durante as grandes guerras, como postulam Benjamin e Adorno. No entanto, cria personagens alegóricos em seu universo maravilhoso que nos possibilitam refletir a esse respeito, visto que tais personagens, ainda que muitas vezes dissuadidos a continuar com seus sonhos, sendo muitas vezes acuados pelas vozes que os cercam e buscam calá-los, continuam sempre em frente e jamais desistem de suas metas. Até mesmo a personagem que ao fim da história está em uma realidade horrível que a deprecia e a humilha é capaz de criar um belo conto, uma bela narração, cheia de elementos imaginários e maravilhosos que é entregue ao leitor. Desta forma, se mesmo uma personagem em condições tão adversas foi capaz de narrar artisticamente, valorizando assim a Literatura, nós, leitores, deveríamos ser capazes de fazer o mesmo. É justamente esta a reflexão que o autor italiano Alessandro Baricco busca despertar em nós.
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A REPRESENTAÇÃO MITOLÓGICA NA OBRA O ALEGRE CANTO DA PERDIZ, DE PAULINE CHIZIANE Pedro Manuel Napido (CAPES/PLE/UEM)
Introdução O presente estudo pretende discutir a representação mitológica na obra O Alegre Canto da Perdiz da escritora moçambicana Paulina Chiziane. O mesmo justifica-se pelo fato da obra, segundo Nataliel Ngomane1, que Zambézia é o centro do cosmos, que tem os montes Namuli o ventre do mundo. É lá onde nasce o mundo e a humanidade. Neste sentido, esta obra recupera e atualiza uma das mais marcantes singularidades africanas, tal seja, o fato de os seus povos autótones serem os progenitores de todas as populações humanas do planeta, fazendo do seu continente o berço único da espécie humana. Mais ainda, reforça a sua tese com base nos estudos de Moore, cujos dados científicos corroboram tanto as análises do DNA mitocondrial quanto os achados paleoantropológicos que não cessam de apontar nesse sentido. Esta realidade é aceite pelas comunidade Lomwé, fato testemunahado por Artur & Xavier (2003, p.11), citando (Ciscato 1989, p.32) que afirma: No Monte Namuli, lugar de antropogonia há uma caverna ou fenda matriz, seio materno; há um grande ovo, símbolo do crescimento exemplar do mundo. Do mesmo monte nasceram vários rios, há uma lagoa lá em cima. Além das pegadas do primeiro homem e da primeira mulher, na pedra, estão também assinaladas as pegadas de todos os animais, dos espíritos da natureza e encontra-se o exemplar de todas as sementes [...] Voltar ao Namuli quer dizer morrer, mas é também voltar ao berço onde está o umbigo do mundo. Na Zambézia interior, as pessoas são enterradas posadas no lado esquerdo com a cabeça em direção ao poente e os olhos em direção ao Namuli.
As citações até aqui apresentadas mostram claramente a tendência da legitimação dos Montes Namuli como sendo o centro do cosmos e de origem da humanidade tanto pelas provas científicas como pelos elementos simbólicos aqui citados, como é o caso da lagoa e dos rios2, o ovo3, o fato de estarem cravadas pegadas dos primeiros homens e mulheres, variedades de animais e sementes e o sentido da morte para esta comunidade que é o retorno à origem matriarcal representado pelos Montes Namuli. Mais ainda, Martinez (1998, p.40), 1
Nataniel Ngoame, Posfácio (21 de Janeiro de 2012, p.356) A água, em si, contém um binómio de significados: causa de morte e fonte da vida. Os dois significados acabam por se verificarem nos dois momentos; ao olhar para o fio da água ou rio, ela é símbolo de coesão, da união, da aliança, da incorporação e sinal de vida que corre – água viva- na terra é mãe e fonte de todas as coisas, está na origem da criação; ao contrário, a terra sem água, o deserto, é sinal de morte; ea é fonte de vida e causa de morte. (http//:www.exploradores358forumeiros.com/t17.simbologia). 3 O ovo é símbolo universal de nascimento e criação, o qual se manifesta por meio da transformação sendo portanto, um “repositório de uma nova vida”. Em outras palavras, o ovo simboliza aquilo que contém aquele que contém o germe, com uma forma semelhante aos testículose caraterísticas físicas bem definidas ou seja, de cor branca e frágil. (http://www.dicionariodesimbolos.com.br/ovo/dicionário de símbolos e simbologia). 2
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sobre o mesmo assunto, afirma o seguinte: A origem comum de todos os grupos que formam a sociedade Makhuwa está ligada aos mitos sobre a origem do mundo e do homem. As tradições que nos transmitem tais mitos são unânimes em indicar o Monte Namuli como o lugar originário primordial. Este Monte de 2419 m de altura, está situado na serra de Gurué, a norte da província da Zambézia. Segundo a tradição popular, os primeiros homens, depois de serem criados por Deus nas grutas mais altas da serra, organizaram uma viagem até à planície, descendo por vários caminhos. Na medida em que se multiplicavam, iam-se separando, dando origem a difeentes grupos que hoje compõem o povo Makhuwa, diferentes na maneira de falar e em algumas expressões culturais, mas unidos entre si, pelos laços mais fortes da língua e cultura [...].
O colonialismo, através do catolicismo violentou a cultura indígena em nome do deus ocidental e da Bíblia, como se observa em Deuteronômio 4; 16-18; João 1-14; Colosenses 115; Êxodo 25; 18-22 que, na sua essência, proíbem a adoração de falsos deuses ou de ídolos, e, no Catecismo da Igreja Católica, se aponta que: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egipto, dessa casa da escravidão. Não terás outros deuses perante Mim. Não farás de ti nenhuma imagem esculpida, nem figura que existe lá no alto do céu, ou cá em baixo, na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não te prostrarás diante delas nem lhe prestarás culto”. Com base nestas palavras, os padres católicos, que tinham a missão de civilizar o indígena através da educação e catolicismo, pretendiam libertá-lo do paganismo e da idolatria a fim de alcançar a vida eterna depois da sua morte. Isto fez com que a comunidade Lomwé, confrontada com esta nova realidade, optasse pelo sincretismo religioso/cultural4, lembrando que mesmo o catolicismo está matizado por práticas mítológicas maquilhadas, tal como afirma Eliade (1963, p.146) nos seguintes termos: [...] pelo fato mesmo de ser uma religião, o cristianismo teve de conservar ao menos um comportamento mítico: O tempo litúrgico, ou seja, a recuperação periódica da illud tempus do «princípio». «A experiência religiosa do cristão baseia-se na imitação de Cristo como modelo exemplar na repetição litúrgica da vida, morte e ressurreição do Senhor, e na contemporaneidade do cristão com o illud tempus que se inicia com a Natividade em Belém e se encerra, provisoriamente com a Ascensão».
Esta citação aponta em que medida o catolicismo tinha uma forte ligação com sistema colonial usando a palavra de Deus para dominar e inferiorizar o nativo, banalizando a si e a sua cultura, prescindindo a sua missão humanizadora.
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O sincretismo religioso é um movimento no qual um sistema de crenças absorve ou influencia mudanças em outro. O cristianismo fez isto com as religiões pagãs da Europa, absorvendo e adaptando conceitos de acordo com os interesses da Igreja. Tivemos um movimento mais mais recente onde os negros trouxeram de África suas crenças e adaptaram ao cristianismo regente no Brasil, mudando nomes e imagens para continuarem adorando seus deuses. Considera-se, assim, que o sincretismo religioso é a sistência simbólica que as religiões expatriadas e subjugadas ofereceram a uma religião dominante.
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Algumas considerações sobre o mito Nesta parte da abordagem, pretende-se mostrar algumas considerações sobre o mito através de vários estudos realizados nesta área do saber, a sua essência, o seu papel para a humanidade desde a antiguidade até os dias de hoje. Isto se torna necessário para o enquadramento destes diferentes olhares na obra em análise. Em termos contextuais sobre a mitologia, Eliade (1963, p.8) afirma que: [...] Todos sabem que desde os tempos de Xenófanes (565-470) que foi o primeiro a criticar e rejeitar as expressões «mitológicas» da divindade utilizadas por Homero e Isíodo, os gregos foram despojando progressivamente o mythos de todo o valor religioso e metafísico em contraposição ao logos; posteriormente, o mythos acabou por denotar tudo «o que não pode existir realmente». O cristianismo - judeu, por sua vez, relegou para o campo da «falsidade» ou «ilusão» tudo o que não fosse justificado ou avaliado por um dos dois testamentos.
A passagem transcrita revela que o mito, desde a antiguidade atravessou várias vicissitudes na área da metafísica, religião e filosofia. Apesar disso, mantém a sua hegemonia até aos nossos dias porque entre as várias funções, educa o seu humano para a vida não sendo, a sua força exercida exclusivamente aos membros da comunidade Lomwé. Ainda sobre o termo mythos, latinizado em mythus, de acordo com Burkert (2001, p.15) é “respeitável desde os anos 20 até aos nossos dias, é ilógico, inverosímil, talvés imoral e, de qualquer modo, falso, ao mesmo tempo compulsivo, fascinante, profundo, digno e «sagrado»”. A citação indica a complexidade do termo ainda que respeitável desde a antiguidade até aos nossos dias, com uma carga semântica negativa e ao mesmo tempo positiva mas que em si é sagrado. Numa outra perspetiva com relação à complexidade mítica, Eliade (1963, p.12) considera-o como sendo “uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada com perpectivas múltiplas e complementares”. Logo à partida, o autor reitera não só complexidade desta realidade cultural como também a multiplicidade e complementaridade da sua explicação. Na realidade, esta matéria se torma mais ainda complexa quando associada ao sistema de crenças, religião e religiosidade. Deste modo, nesta análise, busca-se possíveis explicações ou sentidos dos fatos mitológicos veiculados na obra cientes que os mesmos sejam susceptíveis de outras ou mesmas explicações em outros contextos. Por esta razão, reconhecendo o poder do mito, Burkert (2001, p.15-7) assinala que: “O poder do mito é de fato de uma qualidade única: dominam poesia e artes figurativas, mesmo a religião se exprime de preferência por meio deles, e a filosofia nunca se emancipou delas completamente”. O que importa nestas passagens é o fato do mito designar uma narração e portanto 3
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fazendo parte deste, ou seja, ser encarado como um texto literário com todas as suas caraterísticas peculiares que o distinguem de um texto não literário. Por seu turno, Campbell (1949, p.4) universaliza o mito nos seguintes termos: Em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido; da mesma forma, esses mitos têm sido a viva inspiração de todos os produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos. Não seria demais considerar o mito a abertura secreta através da qual as inexuráveis energias do cosmos penetram nas manifestações humanas. As religiões, filosofias, artes, formas sociais do homem primitivo e histórico, descobertas fundamentais da ciência e das tecnologias e os próprios sonhos que nos povoam o sono surgem do circuito básico e mágico do mito.
Esta citação indica até que ponto o mito é relevante na vida humana, sem excepção das épocas e circustâncias. Os mitos estão presente em todos os momentos da vida, inclusive no sonho. No entanto, eles são inevitáveis, indispensáveis no ser ser humano desde a sua existência fazendo que os mesmo sejam uma das coisas em comum entre os seres humanos. O mesmo autor ainda defende que “os símbolos da mitologia não são fabricados, não podem ser ordenados, inventados ou permanenteente suprimidos. Esses símbolos são produções expontâneas da psique e cada um deles traz em si, inato, o poder criador de sua fonte”. (p. 4). Ao que se pode perceber, a partir destas considerações, os elementos simbólicos podem funcionar
dentro e fora da comunidade de que o mito faz parte, sendo
contraproducentes as alegações do catolicismo. Deste modo, Eliade (1988, p.13) aponta que: a principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação, a arte e a sabedoria. Os mitos, efetivamente, narram não apenas a origem do Mundo, dos animais, das plantas e do homem, mas também de todos os acontecimentos primordiais em consequência dos quais o homem se converteu no que é hoje: um ser moral, sexuado, organizado em sociedade, obrigado a trabalhar para viver, e trabalhando de acordo com determinadas regras.
A função do mito aqui apontada não restringe qualquer que seja o mito, muito menos o contexto em que ele acontece, ou seja, não há mitos “selvagens”. Do mesmo modo, universaliza os objetos da narração mitológica, moldando o homem e o mundo de uma certa forma para o benefício mútuo. É dai que, para além da função do mito ora apontada, Campbell (1949, p.29) acrescenta que “[...] os mitos servem para nos conduzir a um tipo de consciência que é espiritual. [...] o mito me fala como reagir diante certas crises de decepção, maravilhamento, fracasso ou sucesso. Os mitos me dizem onde estou”. Estas acepções remetem para a necessidade do conhecimento do mito no respetivo tempo sagrado e cerimonial com os seus respetivos efeitos em quem a pratica, tal como nos diz Eliade (1963, p.21) que: ao recitar os mitos, reintegra-se àquele momento fabuloso e a pessoa torna-se, consequentemnte, contemporânea, de certo modo, dos eventos evocados, compartilha na
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presença de Deuses, Heróis ou antepassados5. [...] ao viver os mitos sai-se do tempo profano, cronológico, ingressando num tempo qualitativamente diferente, um tempo «sagrado», ao mesmo tempo primordial e indefinitivamente recuperável.
A citação revela que ao recitar os mitos há uma religiosidade, uma celebração que renova o indivíduo e o reenvia para os primórdios em que a cerimónia teve lugar. Renova o espirito, a vida e o corpo da vida quotidiana por vezes cheia de desconcertos e desencantos. É disto que o mesmo autor fala do tempo forte do mito, nos seguintes termos: É o tempo prodigioso, «sagrado», em que algo de novo, de forte e de significativo se manifesta plenamente. Reviver esse tempo, reintegrá-lo o mais frequentemente possível, assistir novamente ao espetáculo das obras divinas, reencontrar os Entes Sobrenaturais e reaprender sua lição criadora é o desejo que se pode ler como em filigrana em todas as reiterações rituais dos mitos. Em suma, os mitos revelam que o mundo, o homem e a vida têm uma origem e uma história sobrenaturais, e essa história é significativa, preciosa e exemplar.
Neste caso, é do «sagrado6», com efeito, que o crente espera todo o auxílio e todo o êxito. O respeito que ele lhe testemunha é feito simultaneamente de terror e de confiança. As calamidades que o ameaçam e de que ele é vítima, as prosperidades que ele deseja ou lhe calham por sorte são por ele realcionadas com determinado princípio que se esforça ou vergar à sua vontade ou coagir. O profano, fonte de toda a desgraça, só pode ser desdenhado. Ainda sobre o poder do mito, Campbell (1949, p.23) observa as vantagens de ser educado no catolicismo romano, nos seguintes termos: [...] é que você é ensinado a encarar o mito com seriedade, a deixar que ele atue em sua vida; você é ensinado a viver em função desses motivos miticos. Fui educado em termos de relações sazonais ligados ao ciclo de Cristo vindo ao mundo, ensinando no mundo, morrendo, ressuscitando e retornando ao Paraíso [...]. Pecado é simplesmente a perda de contato com essa harmonia.
Podemos concluir que o mito molda a todo o momento a existência do ser humano. Ciente da sua complexidade, o mito integra o ser humano na sociedade e põe em relação consigo mesmo e com a natureza. Apesar do cristianismo ter banalizado o mito da origem dos Montes Namuli da comunidade Lomwé os seus cultos estão matizados de práticas mitológicas como é o caso das crenças num ser criador, o espírito, a fé, o que põe em causa as passagens bíblicas e no Catecismo. O poder do mito se integra na alimentação, na arte, na sexualidade, na ciência, na sabedoria e na identidade socio-cultural do ser humano.
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O sublinhado é nosso cf. Caillois, 1950, O homem e o sagrado, p.22
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Análise do romance Nesta parte do trabalho far-se-á a análise do romance por meio de fragmentos textuais da obra, indicadas pela abreviatura (Chz), significando “Chiziane”, seguido pelo número da página e o respetivo comentário. a)
As tatuagens belas, geométricas, pareciam uma teia, malha, cinto de renda bordada à mão, cobrindo apenas o ventre. Analisa os relevos. As saliências. Reticências. Decifra a mensagem de cada símbolo e reconhece as origens da Maria. São tatuagens lomwé. Ela é oriunda das montanhas, e naquelas veias corre o sangue sagrado das pedras. (Chz. p. 32).
No tempo da escravatura os africanos deportados deviam estampar uma imagem do mapa da sua terra nos seus corpos para serem melhor identificados pelos seus senhores. Desse modo, ajudava a reunificar os compatriotas em qualquer parte do mundo para onde fossem vendidos. Koster, 1942 citado por Moysés (1998, p.95), observa que: Como negros, são vistos como animais, assim nus e pelados, sentados no chão, observando curiosos os transeuntes, pouco se diferenciam, aparentemente dos macacos. Vários deles chegam da África já marcados a ferros em brasas, como os animais. De bom grado se levantam para serem colocados em fila, com o fim de serem examinados e tratados como gado.
Apesar de ter um desaparecimento lento, nesta cultura, a tatuagem é marcada nas partes eróticas do corpo de uma mulher feitas em diferentes figuras ou imagens. Pode-se perceber que a referência da tatuagem da mulher serve para erotizar e humanizar o espaço, subvertendo o sentido do mesmo atribuído no tempo colonial, sentido este, consentido pelo catolicismo e em nome do Deus ocidental. b) Era a filha da terra, regressando da grande viagem, chamada pelos espíritos. Para curar-se nas águas do Licungo ou para escalar ao monte do repouso eterno. (Chz. p. 32).
De acordo com Martinez (1989, p. 173), nesta cultura “os espíritos são os vivos por excelência, dotados de uma vida, que dura para sempre, e de poderes sobre-humanos, capazes de influenciar a vida da sociedade e dos seus seres visíveis”. O rio Licungo nasce nos Montes Namuli, lugar sagrado e desagua no oceano Índico, lugar misterioso; em algumas épocas do ano são realizados rituais por forma que os espíritos possam assegurar as populações das calamidades que o mesmo possa lhes causar. Do mesmo modo, se deve gratidão por ser uma das fontes de sobrevivência dos Lomwés porque fornece peixe, água potável, terras aráveis e vegetação proporcionados pelo lugar primordial, o Monte Namuli. c) A cidade do Gurué tornou-se um lugar de peregrinação. Cada dia chega gente nova, interessante. Esse ano chegaram o Padre Benedito e o Dr. Fernando. Dizem que são irmãos. (Chz. p. 37).
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A fundação da cidade do Gurué, de acordo com Artur & Xavier (2003, p. 27) “data de 1928, depois da entrega feita da Empresa Agrícola de Lugela Ltd, dos prazos de que era arrendatária. Posteriormente a região foi oficialmente reservada para a colonização”. O mesmo autor sustenta que “Foi a cultura e a posterior instalação de infra-estruturas industriais de processamento do chá que viriam a ser os responsáveis peas transformações sociais e estruturais do espaço do Gurué.” (p.42). A obra conta a chegada do Padre Benedito e do Dr. Fernando, filhos da terra, educados nos modelos da cultura ocidental para servirem à sua comunidade de acordo com o tipo de formação de cada um, neste caso, o padre para evangelizar e o médico para tratar doenças dentro da comunidade. d) O povo venera o Padre Benedito e tece mitos à sua volta. Dizem que é mágico. Só o seu olhar, cura todas as amarguras, por isso o povo inteiro desfila diante dele para ser apanhado no ponto de mira dos olhos milagrosos. Ele é homem de ternura, de paixões profundas, de humildade extrema. (Chz, p. 37).
Para a evangelização das populações locais, foi construida a Capela do Santo António7, a mais antiga da cidade, tendo sido inaugurada a 9 de Setembro de 1947, para servir ao pequeno gruo de portugueses da então Vila e arredores. A ação missionária irradiase a partir da Vila para as zonas periféricas para cumprir a função civilizadora do inocente indígena de forma coersiva e banalizando a sua cultura de forma violenta. Assim, José (2008, p. 144), socorrendo-se de outros teóricos, considera que: A «violência cultural» (Galtung, 2005; Moura, 2005: 32-38) a que os povos estiveram sujeitos legitimou, pois, diferentes formas de dominação colonial. O Estado interferiu nos quadros culturais locais e nos mecanismos «tradicionais» de representação política subvertendo as suas lógicas, punindo certas práticas e incentivando outras, desde que fossem importantes para a estratégia de dominação (Honwana, 2003:117-144; Mamdani, 1996; Mondlane, 1995).
A violência cultural que a citação se refere era perpetrada pelos padres católicos através do catolicismo sendo a crença no mito da origem ao Monte Namuli uma das vítimizadas. Paradiso (2014: 4) explica que “de todos os impérios colonizadores, foi Portugal o que mais interpelou a política colonial e a religião [...]. A igreja portuguesa, mais que um Estado dentro de um Estado, foi um «Estado» acima do Estado, protagonizando decisões, normas e poderes”. Estes poderes foram transladados para as colónias, no caso de Moçambique, violentando a estabilidade socio-cultural da comunidade Lomwé. e) Durante a missa, sorve as próprias palavras com a sofriguidão de um declamador. E dizia coisas belas. De Fé. De poesia. Quando fala da família, do pai ou da mãe, chora. Talvez recorde momentos da crueldade deste mundo. Talvez lhe tenha falecido o pai em algum combate. Talvez a família tenha perecido num massacre. (Chz. p. 38). 7
cf. Artur & Xavier, 2003, p. 134
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A passagem mostra que a persuasão e a subsequente conversão dos membros da comunidade local ao catolicismo consiste na exploração dos temas sobre o sofrimento, a família e a morte o que atingem os corações dos participantes do culto. Mas, para esta comunidade o sentido da morte é descrito por Martinéz (1989, p.173) nos seguintes termos: Porém, com a morte, o indivíduo adquire novos elementos: passa de um estado visível a um estado invisível; passa de um estado passageiro a um estado definitivo; transforma-se em antepassado da sociedade, adquirindo novos poderes, que lhe permitem actuar em benefício da comunidade; transforma-se em medianeiro entre o Ser Supremo e os seres visíveis.
Por esta razão, as cerimônias fúnebres são realizadas condignamente e os vivos têm um respeito especial para com os mortos, uma vez que, para eles, continuam vivos, são temidos e venerados. Retornam ao Monte Namuli, A campa é designada por nova morada. Para esta comunidade, não há juízo final depois da morte, tal como defende o catolicismo. f) Para aquele povo, a procriação é a essência da vida e a vida sexual é tão vital como a gota de água. Ser padre é importante, reconhecem, mas, mais importante ainda é gerar um herdeiro para segurança social nos momentos difíceis. (Chz. p. 38).
Tal como se afirma na passagem acima, esta comunidade valoriza a procriação e Martinez (1989, p.79) confirma que: “o nascimento de uma criança é um dos acontecimentos mais importantes desta sociedade. A criança é desejada e esperada pelos pais, pelos responsáveis e membros da família e, finalmente, por todos os membros da sociedade porque todos amam a vida e desejam que continue”. Nota-se, aqui, que a criança não pertence apenas aos pais mas sim aos familiares e à comunidade; ela é educada segundo as normas familiares e sociais. Isto entra em choque com o celibato dos padres e a castidade das irmãs que não procriam e do catolicismo que defende este princípio. g)
é um crime grave um homem dormir sozinho, sejam quais forem as motivações da sua crença [...] não havia nada de anormal no comportamento das mulheres. As novas crenças é que são estranhas, contraditórias. Os deuses bantu ordenam a virilidade e fertilidade. No sexo a transcendência. Os Deuses celestes ordenam também a fertilidade e multiplicação, mas alcançam a pureza do corpo no celibato. (Chz. p. 38).
Fica patente, nesta passagem, a contradição do catolicismo com a cultura bantu em relação à procriação, pois quando nasce uma criança, “todos sentem bem que o valor supremo do povo, a vida, (ekumi), se torna mais forte, renova-se e desenvolve-se visivelmente a caminho da plenitude. Desta forma as raízes do povo, brotando com nova energia, tormam-se mais profundas”. (MARTINÉZ, 1989, p.79). Nesta análise, importa referir Rothwell (2008 : 111-16) sobre os efeitos do celibato dos sacerdotes, nos seguintes termos:
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De forma geral, podemos dizer que os votos do celibato enfraquecem a sua categorização enquanto pertencente ao género masculino, e as suas vestes para celebrar a missa, quando lidas à luz da interpretação contemporânea dos códigos de vestuário, simbolizam uma certa feminidade [...] Parece haver um elo de ligação entre o sacerdócio e o mundo feminino, metonimicamente representado pela cumplicidade no modo de vestir.
No entanto, há uma grande contradição entre o deus bantu que defende a vida, por meio da procriação, e o deus ocidental que se alimenta da privação deste princípio. As mulheres desta comunidade fazem parte do processo de continuidade da vida e por isso não vêem com bons olhos o celibato dos padres e a castidade das irmãs. Para isso, catalogavam a mulher zambeziana de forma pejorativa à exemplo de N’fuca, no romance a Zambeziana8, apresentada como sensual, lasciva, misteriosa, poderosa, intensiva, de ouvido apuradíssimo, oscilando os quadris, felina e graciosa como só os gatos e as feras dos sertões. h) Por isso as famílias negras não aceitam de bom grado que um filho seja ordenado. Todo homem belo deve deixar sementes ao solo. E germinar. Encher a terra como as estrelas do céu, porque a eternidade é a filha da fecundidade. Por isso as mulheres perguntam: - Ah! Padre Benedito, o senhor é homem mesmo?. (Chz. p. 38).
As mulheres questionam a masculinidade do padre e confirma-se o seu travestismo, pelo fato de pôr em causa os hábitos culturais locais no que concerne à procriação. Martinez (1998:80) afirma que: Na comunidade existe uma grande estima pela maternidade. A aspiração maior de uma mulher é passear pela aldeia com o seu filho às costas, sinal inequívoco de que é mãe. Dar à luz, para uma mulher Lomwé significa, concretamente, riqueza, libertação da miséria, segurança perante a incerteza da vida, elo de união visível entre o passado e o futuro, sinal evidente de que a ligação com os antepassados, protetores e medianeiros da vida, não se quebrou. Deste modo, a mulher será sempre respeitada na família e na aldeia e será tratada por todos com o nome respeitante de «mãe» (amayi).
Assim, a questão que se levanta sobre isso é: Se o homem (Adão) não tem útero, como é que a mulher (Eva) nasceu da sua costela? Então, a humanidade só pode ter surgido de uma relação sexual entre uma mulher e um homem nos Montes Namuli e não no jardim do Éden, tal como defende o catolicismo. i)
As mulheres querem provar que elas existem e a sua presença é mais importante que todas as crenças e juramentos deste mundo. Para que o padre conheça a real dimensão das necessidades do corpo. Há parcelas do organismo que não se alimentam de arroz, nem de remédios e palavras divinas. (Chz. p. 39).
Nesta passagem alude-se ao fato dos órgão sexuais não se alimentarem de arroz, remédios e da palvra divina que suporta o celibato dos padres e a castidade das irmãs
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Mendonça, Fátima – Zambeziana ou discurso exôtico a várias vozes: Comentário crítico. Prefácio do romance A Zambeziana.
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religiosas chocando-se, mais uma vez com a cultura local. E se os órgãos sexuais dos padres e das irmãs não desempenham a sua função, de quê se alimentam? Da palavra divina? j)
-Ah, que pena, senhor padre! Que desperdício! Devia ser proibido ordenar padres tão bonitos porque atrapalham as freiras, as donzelas e as mulheres casadas. Ah, senhor padre! O senhor devia ser mais caridoso e matar a sede do mulherio solto pela cidade. (Chz. p. 39).
A banalização do celibato prende-se com o fato de “prejudicar” as freiras, casadas e solteiras. O celibato e a castidade, limitam a relação socio-económica com os seus familiares em particular e com a sociedade em geral por causa dos votos da castidade e de pobreza. k) O médico acreditava na magia dos montes. Nos mitos que se contam do sagrado e do profano, do mágico. Por isso escalava, regularmente, para se inspirar no fantástico residente no pico do Namuli. Acreditava também na magia do amor, e tratava os doentes com a terapia de amor e remédio. O povo venera o médico e diz que tem mãos mágicas. Basta ser tocado por ele para ser curado. As mulheres aproximavam-se cheias de desejo. Apertavam o cerco. (Chz. p. 40).
A citação subentende duas realidades em que há certos indivíduos que quando são educados nos moldes das outras culturas tidas dominantes perdem as suas raízes e ociocizam a sua própria cultura, tal como o padre mas, há outros que preservam, tal como o médico. l)
Senhora esposa do nosso régulo, mãe de todas as mães, que conhece a história deste povo desde a criação do mundo, diz-nos algo sobre estes jovens. De onde vieram? (Chz. p. 42).
A citação confirma que esta comunidade é de linhagem matrilinear na medida que a esposa do régulo é vista como «mãe de todas as mães» e «conhecedora da históroia do povo desde a criação do mundo» por forma a esclarecer o acontecimento insólito dos dois jovens. m) É aqui, nos Montes Namuli, o berço da Zambézia inteira. Eles vieram sim, para nos lembrar tempos em que a terra era nossa e as montanhas pariam vida. Embora muitos digam que nascemos num éden distante e de um casal estrangeiro, vieram estes para nos lembrar a morte lenta dos nossos mitos. Dos tempos em que não havia fome, quando o paraíso original vivia no ventre do nosso monte e era aqui o berço da humanidade e toda a espécie do planeta. Vieram para nos fazer renascer. Para nos reunir em comunhão com o grande espírito e repousaremos no solo sagrado dos montes, porque aqui tudo começa e termina. (Chz. p.42-3).
Apesenta-se, nesta passagem, de forma alegórica, a dominação colonial portuguesa que trouxe o catolicismo, que contrapos a ordem económica e socio-cultural da região, impedindo que o nativo buscasse as suas forças na mitologia e nos seus antepassados. n) - Zambézia tem fronteira? Não, porque aqui é o centro do cosmos. Todo o planeta terra se chama Zambézia. Os montes Namuli, são o ventre do mundo, o umbigo do céu. Nos seus sonhos dos últimos tempos uma paisagem de montes se revela com todo o seu poder e para os macuas, lomwés, chuabos, sonhar com os Montes Namuli é sonhar com o destino. É um chamamento de chegada ou partida. Princípio ou fim. Porque os Montes Namuli são amiga. Poesia. Profecia. (Chz. pp. 43-45).
Este trecho mostra um sentido aglutinador e harmonioso entre os povos através do Monte Namuli sem descriminação de cultura, crença religiosa e raça marcando diferença com 10
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o Deus ocidental que prima pela desordem, descriminação e violência cultural em nome da vida eterna no paraíso e que não tratou a comunidade Lomwé como tal; portanto, no contexto moçambicano, esta comunidad é uma das mais numerosas, prejudicadas e descriminadas. Considerações finais Pode-se concluir que a obra em análise, O Alegre Canto da Perdiz, mostra que a comunidade Lomwé tem cultura e identidade próprias, inalienável e impenhorável, sendo necessário que seja vista e tratada como tal. O mito sobre a origem no Monte Namuli cumpriu o seu dever. O sentido da vida e da existência humana são um dos fundamentos desta comunidade, alimentando-se no princípio de que a vida surgiu dos Montes Namuli a partir do qual os seres humanos tomaram diversos rumos do planeta. Por isso, para esta comunidade, não é muito razoável que a vida tenha surgido do jardim do Édem e a mulher, Eva, da costela do homem, Adão. Do mesmo modo, nesta cultura, a relação entre os vivos e os mortos é bastante relevante uma vez que a morte é tida como uma das etapas da vida, é o retorno ao Monte Namuli, lugar da origem primordial. Aos mortos são lhes dados mantimentos, cultos, vestes, bebidas e enterro condigno devido o seu papel de protetores e intermediários dos vivos. O catolicismo, quando entrou em contato com esta realidade colapsou por considerar estas práticas como sendo tradicionais, selvagens, primitivas e não civilizadas. O celibato dos padres e a castidade das irmãs foram subvertidos por serem considerados estranhos à realidade local que pauta pela continuidade da vida. Em última análise, nota-se que como qualquer cultura existente, a cultura Lomwé acomodou e readaptou os princípios defendidos pelo catolicismo como é o caso da fé e dos dogmas, muitas vezes postos em causa, sem que, no entanto, mantivesse o seu modo de produção original ao que chamamos de sincretismo religioso e cultural. Isto serve de recado para a necessidade do respeito pela diferença.
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da
Administração
Esatal.
Perfil
da
Província
da
Zambézia.
http://majaliwa.tripod.com/zambezia.htm, Edição 2005 30.11.11 - 18 horas. http://majaliwa.tripod.com/zambezia.htm. Perfil do distrito do Gurué, Província da Zambézia. http://majaliwa.tripod.com/zambezia.htm, Edição 2005, 30.11.11-18 horas. http://www.majaliwa.tripod.com/zambezia.htm , Obtido no dia 30.11.11, 18 horas http://www.vatican.v/archive/compendium-ccc documents/archieve - 2005/Catecismo da Igreja Católica/ obtido no dia 24.4.2014 pelas 21: 17 min.
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ESTÉTICA DA MORTE: PAI E FILHO EM DAYTRIPPER Phellip William de Paula Gruber (UEPG) O objetivo deste trabalho é reconhecer as estratégias narrativas presentes em Daytripper – de Fabio Moon e Gabriel Bá – no desenvolvimento da poiesis no texto em função da fruição que conduz o drama entre pai e filho. A poiesis de Aristóteles, revisitada por Jauss e somada à caracterização estética de Hegel, concebe a criação do indivíduo no sentido de apropriação da realidade na conversão de um “sentir-se em casa, no mundo”, isto é,
organiza-se a própria vida
através da fruição da própria criação, um prazer de poder se dizer (JAUSS, 2001). ). É o momento em que o prazer ante a obra encontra-se no autor, que, na reorganização do mundo, retira-se do universo real, da “sua dura estranheza” (JAUSS, 1979, P.80), para sentir-se, esteticamente, em casa – ou localizado. Brás, o protagonista de Daytripper, romance gráfico de Fábio Moon e Gabriel Bá, interage no texto com as suas diversas mortes, permeadas pelas suas relações ao longo da sua vida, sendo a relação com o seu pai e com o seu filho um forte indício da utilidade estética da morte presente em toda a obra, como um fator de continuação, de progressão da vida. Esta leitura, dele como escritor da suas próprias mortes, são viabilizadas pela presença do protagonista ao fim da narrativa, quando já está velho e sabe que está perto da morte. Uma carta, até então desconhecida, de Benedito (o pai) para Brás pare impulsioná-lo a procurar em sua memória os momentos marcantes da sua vida, de maneira que a morte acaba tendo uma presença conclusiva em cada parte. Algumas relações de Brás nos são dadas ao longo do texto, e parecem fortalecer a ideia de que suas memórias são alimentadas pelas pessoas que de alguma maneira fizeram parte da sua vida. Logo no primeiro capítulo várias dessas relações nos são dadas: relações com a sua esposa e com a sua mãe que, embora não se apresentem diretamente (inclusive com os rostos não sendo revelados), aparecem em um diálogo com Brás pelo telefone; com o melhor amigo, Jorge, que ao longo da narrativa aparece
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diversas vezes, inclusive enfatizando a condição finita da vida – tema central de quase toda a obra; a relação com o filho e o conflito com o pai – questão central para este trabalho. A relação com o seu pai já nos é dada no primeiro capítulo, quando ele vivencia a sua primeira “morte” em uma homenagem que seria dada ao seu pai, que naquele capítulo, já estava morto. Esta relação se intensifica durante a narrativa, sendo retomada em outros capítulos. No capítulo quatro o nascimento de Miguel, filho de Brás, acontece no mesmo dia em que morre o pai de Brás. Esta relação estreita entre nascimento e morte mediada pela conexão do avô e do neto, parece ser elemento fundamental para compreendermos as relações entre gerações: o nascimento de um anuncia a morte do anterior (do avô) e isto é a condição que parece fazer parte de toda a trama, mesmo que indiretamente. Esta morte anunciada pelo nascimento se conecta inclusive com o discurso da carta do pai de Brás, em que ele declara que tudo que fizera foram em função do filho, mas como movimento de aceitação da morte. Outros momentos da narrativa demonstram a relação complicada, mas afetiva, entre Brás e o pai. No capítulo cinco temos a parte em que nos é mostrada a infância de Brás. Há um momento em que Brás se encontra com o seu pai e o seu pai age friamente com ele, admoestando-o inclusive sobre o palavreado sem demonstrar o mínimo de interesse pelo protagonista. O capítulo nove, que narra o sonho de Brás, coloca Benedito e Miguel juntos, algo que na realidade seria impossível, mas que se torna possível através do delírio do sonho. O avô e o neto estão juntos lendo uma passagem e Memórias póstumas de Brás Cubas, em que a loucura e a razão conversam sobre a procura, da loucura, pelo sentido da vida e da morte. Este excerto somado ao momento em que se encontram os dois parece alimentar um discurso presente em toda obra, revelando o interesse maior da busca de estetizar a memória. No momento em que Brás encontra os dois, Brás vai conversar com o filho. O mesmo incentivo (de aceitar a morte) que Benedito dá para Brás através da carta, ao fim da narrativa, seu filho também dá ao neto. Em um momento que as três gerações
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(Benedito, Brás e Miguel) se encontram, a relação entre a morte e a vida passa a ser discutida. Após responder ao seu filho qual era o tema da história que teria para lhe contar, o menino afirma tristemente que não gosta da morte. Brás continua a explicar ao filho que a vida é como um livro e que “todo livro tem um fim. Não importa o quanto você goste do livro... você vai chegar na última página... e ele vai terminar. Nenhum livro é completo sem o fim.” (BÁ; MOON, 2011, p. 220.) Brás, em sua tentativa de localização no mundo, pela experimentação da sua própria vida encontra as mortes simbólicas como um subterfúgio para reconstruir suas memórias, dentre as quais a sua relação com o pai e com o filho aparecem como fator de progressão. Brás herda traços do pai, de maneira que reconhece que na sua trajetória de vida muito do seu pai fez parte de quem ele é. Da mesma maneira, ao sugerir ao filho, em seu sonho, a aceitação da morte, Brás faz o mesmo, simbolicamente, que o seu pai fez: mostrar que a sua própria morte era inevitável, e desta forma o seu filho pudesse viver sozinho. Segundo Vincent Jouve o leitor arremata o texto em 4 esferas: Verossimilhança, a sequência de ações, a lógica simbólica e a significação geral da obra. A verossimilhança e sequência de ações dizem respeito a preenchimentos que se ausentam da narrativa no plano descritivo. É o leitor quem preenche a cor do cabelo do personagem (no caso do texto verbal) ou as ações que antecedem ou sucedem a ação descrita (como um cumprimento onde se estende, aperta e chacoalha-se a mão). A lógica simbólica e a significação geral da obra encontram sentidos que se ampliam na narrativa, deixando de estar presentes unicamente no nível textual como também no próprio discurso ou outras dimensões com as quais o texto se relaciona. Os símbolos presentes em Daytripper, as presenças de obituários, de elementos que caracterizam as relações de Brás com o seu pai e o seu filho, também devem ser percebidos pelo leitor no processo de recepção.Somente desta maneira é que ele pode, inclusive, alcançar a significação maior do texto, que se dá num sentido macro: percebendo a presença da morte e todas as relações que se dão por ela, i.e., através da morte, é que o leitor consegue compreender as oposições e sentidos que a obra suscita sobre a presença da morte na vida de Brás.
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É deste arremate (de lógica simbólica e significação geral), que o leitor consegue concretizar o processo de leitura nas dimensões afetivas (reconhecer a sua própria vida e morte); discursiva (na relação da memória de Brás e a sua presença diante do fim) e simbólica (sobre como interage com a sua realidade) propostos por Thérien e retomados por Jouve. Brás morre em cada capítulo, deixando somente obituários que, segundo a obra, são a sua única escrita sobre a sua própria vida (MOON; BÁ, 2011). Escrever o seu obituário, estetizar a sua própria morte e utilizar-se da sua relação pai e filho como fator de elemento fruidor se mostra fundamental também para a condição estética do receptor da obra: figura essencial para os estudos de estética da recepção. Referências bibliográficas ASSIS, Machado. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Editora Egéria, 1979. JAUSS, Hans Robert. A literatura como provocação. 2 ed. Lisboa, 2003. JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: Editora Unesp, 2002. JOUVE, Vincent. Por que estudar literatura? São Paulo: Parábola, 2012. LIMA, Luiz Costa. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. MOON, Fábio; BÁ, Gabriel. Daytripper. Barueri: Panini Books, 2011.
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UM SUSPEITO IMPROVÁVEL, A CRÔNICA POLICIAL DE RUBEM FONSECA Priscila Costa Domingues (Unesp – FAPESP) Considerado menor dentro dos estudos acadêmicos, o gênero policial é normalmente ligado à literatura de massa, muitas vezes, não sendo considerado digno de um estudo mais aprofundado; dado que não haveria literariedade e sua maior preocupação seria agradar ao público, dando ao leitor exatamente aquilo que ele espera. Desta forma, os estudos de textos policiais em que as concepções do gênero são rompidas mostram que, para alguns autores, a utilização de um gênero policial pode ser maior do que a esperada. O fato de ter um grande sucesso popular, também é um elemento para que o gênero policial seja considerado menor. Na França dos tempos atuais, há dez prêmios literários diferentes destinados ao reconhecimento das melhores narrativas policiais de cada ano. Se nos ativermos a apenas um deles, o chamado “grand prix de littérature policière”, podemos constatar na Internet que ele existe desde 1948 e sobrevive bravamente e sem interrupção até hoje, com o objetivo de recompensar os romances policiais franceses e nãofranceses do ano, considerados os melhores por um comitê composto por “personalidades do mundo das letras”. (MARETTI, 2010, p. 01).
Esses números astronômicos fazem com que toda a produção do gênero seja vista da mesma forma: como produção homogênea, de fácil assimilação, com o único intuito de agradar ao público. Essa visão faz com que autores que utilizam o gênero policial para atingir o público subvertendo a ordem do que é esperado, sejam considerados sem valor literário, somente pelo gênero eleito para construir suas narrativas. O romance policial particularmente, mas estendendo a definição para todo o gênero, não é considerado como literatura. Sendo visto, por parte da crítica, como criado com o único intuito de entreter, está associado à literatura de massa em que não há um trabalho estético, no entanto, é preciso pensar como Edgar Allan Poe, considerado o precursor do gênero, é um autor cujo valor estético está presente nas obras. De modo que, mesmo sendo escritos no gênero policial: Poe descobriu imediatamente a maneira de construir um conto (...). Compreendeu que a eficácia de um conto depende da sua intensidade como acontecimento puro (...). Um conto é uma verdadeira máquina
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literária de criar interesse. É absolutamente literário (CORTAZAR, 1974, p.122-123).
Segundo Albuquerque (1979), em sua origem, o romance policial está relacionado ao romance de aventuras, que se caracteriza pela luta constante entre forças antagônicas: o bem e o mal. No romance policial, essa “luta” envolve, sobretudo, duas personagens: o criminoso que representa o “mal”, e o detetive, representante do “bem”. O romance policial surgiu no século XIX e está muito ligado ao positivismo, ao uso de uma lógica inegável que conseguiria desvendar todos os mistérios que, aparentemente, tinham solução, na medida em que a ciência estaria acima de tudo. Por vincular-se à tradição racional positivista, o romance policial é escrito de forma metódica, por meio de uma estrutura fixa, que deve ser seguida, assegurando-se que o resultado será um bom livro. Edgar Allan Poe (1809-1849), ao desenvolver um método analítico com o objetivo de desconstruir um enigma. Em “Os crimes da rua Morgue” (1841), encontrase a valorização das “faculdades do espírito”, denominadas “analíticas”: Da mesma forma que o homem forte se rejubila com suas aptidões físicas, deleitando-se com os exercícios que põem em atividade seus músculos, exulta o analista com essa atividade espiritual, cuja função é destrinçar enredos. Acha prazer até mesmo nas circunstâncias mais triviais, desde que ponha em jogo seu talento. Adora os enigmas, as adivinhas, os hieróglifos, exibindo nas soluções de todos eles um poder de acuidade, que, para o vulgo, toma o aspecto de coisa sobrenatural. (POE, 1981, p.50).
Edgar Allan Poe combinou elementos que se tornaram indispensáveis para a construção de um conto policial: um crime misterioso, o detetive, a investigação, elementos estes que seriam aplicados, da mesma maneira, nos romances policiais. Percebemos que a criação do gênero policial está atrelada a uma ordem e a um cientificismo característico da sociedade do XIX, que acreditava no poder de racionalidade, que encontraria as respostas, para acabar com os males do mundo e criar uma sociedade melhor e mais justa, tal qual, ao fim da narrativa, o detetive sempre encontra o culpado. No século XX, porém, essa racionalidade não existe mais. As ilusões foram perdidas e não existe mais a convicção de uma verdade absoluta que possa ser aceita por todos e mudar o mundo. Desta forma, o positivismo e sua forma analítica de considerar a realidade não serão mais possíveis.
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É neste contexto, o do século XX, que Rubem Fonseca escreve textos em que o gênero policial será o ponto de partida para a construção de narrativas que ultrapassam e subvertem o que é esperado do gênero policial, de modo que percebemos que ele é utilizado como elemento de rompimento. Críticos que ligam a obra fonsequiana aos aspectos mercadológicos podem pensar que a escolha tenha sido gratuita, somente por se tratar de um gênero palatável para o grande público e, por isso, encontraria apoio popular. A opção pelo gênero policial, contudo, não é simples. Esta faz parte de um projeto textual maior, em que as estruturas do romance policial são ideais para a construção do romance, e isso porque a metalinguagem é inerente ao gênero e, também, porque Valorizando os poderes da racionalidade e do narrar (contra aqueles do sobrenatural), toda ficção detetivesca se revela, por fim, preocupada com o peso e as implicações da narrativa, numa certa comunidade. A metatextualidade, então, mostra-se um dos elementos constitutivos fundamentais para o gênero e não apenas uma estratégia para manter a atenção do leitor. (LEAL, 2000, p. 137).
Essa metatextualidade se mostra não somente em relação à literatura, mas aos saberes científicos, como é o caso da crônica O Quinto Suspeito (2007), em que os elementos evocados para afirmação da narrativa são os científicos; chamando a mesma ciência que está na base da criação do gênero policial. A crônica citada faz parte do único livro do gênero escrito pelo autor, O Romance Morreu (2007), e conta a história de um homem que tem por hábito utilizar dois relógios, o primeiro usado “por motivos sentimentais, mostra apenas o dia do mês” (p.157) e o outro “além do dia do mês, tem o dia da semana”. Em um determinado dia, o narrador percebe que o relógio que não estava sendo utilizado, não estava no lugar de costume: uma mesinha. Segundo Maretti (2010), é neste momento que a investigação começa; primeiro pela eliminação do suspeito, neste caso a empregada e os filhos, e a busca pelo culpado. O primeiro suspeito: o técnico que veio consertar as cortinas. Ele possuía uma cara patibular, de alguém que está tramando um crime ou sofrendo de um tormentoso remorso. Só que, desde Lombroso (18351909), está totalmente desmoralizada a tentativa de descobrir alguma predisposição à delinqüência analisando as características físicas do indivíduo. Não existem caras honestas se contrapondo a caras desonestas. Existem, apenas, convencionalmente, caras feias e caras bonitas. Mas podia ser ele. (p. 158). O segundo suspeito: o eletricista. Seu olhar era esquivo, como o de um bicho em situação de perigo. Olhava de esguelha, fingindo que não estava observando coisas e pessoas à sua volta. Quando eu me
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aproximava, ele parava de trabalhar e ficava contraído, como se fosse dar um bote ou fugir. Eu tinha de reconhecer, porém, que se ele não agisse com cautela corria o risco de levar um choque elétrico. Mas podia ser ele. (p. 158). O terceiro suspeito: o relojoeiro que veio consertar o relógio de parede, uma velha peça mecânica em forma de oito que fica sobre a mesinha onde estava o relógio de pulso. Era um homem gordo, de aspecto bonachão. Costumamos achar todos os gordos felizes, confiáveis e bondosos – ao contrário dos magros, que desde Shakespeare são vistos como famintos e perigosos. Mas esse é mais um embuste da falsa ciência conhecida como fisiognomonia. (Quem estiver interessado nessa “arte de conhecer o homem segundo as feições do rosto” – e parece que muita gente ainda acredita nessa falácia do século XVIII –, que leia Arte de estudar a fisionomia, de J. K. Lavater. É um livro interessante.) O relojoeiro era gordo e bonachão, mas podia ser ele. (p. 158-159). O quarto suspeito: o rapaz da farmácia, que, para entregar-me uma encomenda no local da casa onde eu estava trabalhando, passou pela mesinha em que estava o relógio. Ele ficava olhando em volta, alerta, astuto, como um desses assaltantes de rua. Nem a paisagem que se via da janela escapou do seu olhar curioso. Podia ser ele. (p. 159).
Com o relato da investigação feita pelo narrador, o que em si mesma já marca um rompimento com o gênero policial, em que o narrador é um companheiro leal, admirador do raciocínio lógico do detetive, que por marcas e percepções invisíveis a outros olhos descobre o culpado; percebemos a existência de diversas referências do mundo científico. Segundo Samouyault (2009), “a referência não expõe o texto citado, mas a este remete por um título, um nome de autor, de personagem ou a exposição de uma situação específica” (p. 50). Na crônica, contudo, esta referência não é feita, como se espera, de um texto literário, mesmo a referência a Shakespeare é elaborada para dar embasamento científico a uma análise. Percebemos que a relação é feita com outros saberes científicos. Outras ciências são evocadas para dar mais notoriedade ao detetive, de modo que os seus conhecimentos ganham embasamento da ciência, que como no positivismo do século XIX não pode ser questionada e deve ser aceita como verdade absoluta. As referências científicas conduzem o olhar do leitor. Elas são feitas de forma que o leitor será convencido de que o método utilizado pelo narrador é totalmente analítico e não deve ser questionado, afinal ele está citando as fontes nas quais se baseou para analisar os fatos de forma clara sem a intervenção das emoções.
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Ao evocar os saberes científicos, contudo, o narrador faz uma desconstrução desses saberes. Ele os cita para depois demonstrar como podem ser falaciosos, ao elaborar sua análise a partir de um método, será o próprio narrador que dirá que a crença nesta perspectiva é equivocada. O leitor, contudo, é levado a acreditar, já que primeiramente é feita a análise e depois, de maneira mais velada é elaborada a contra argumentação. Será somente ao final da narrativa que todos os argumentos científicos serão refutados de maneira veemente, sentindo o alívio de não ter que suspeitar de ninguém, o narrador descobre o culpado. O quinto suspeito era eu. O meu testemunho, a minha certeza absoluta de que havia visto o relógio de pulso na mesinha talvez não expressasse a verdade. Então comecei a solucionar o mistério partindo do quinto suspeito. E isso não apenas foi confortável espiritualmente, pois desconfiar dos outros é muito desagradável, como acabou resolvendo a charada: eu havia, inconscientemente, por algum motivo, deixado de seguir a rotina e posto o relógio em outro local. Minha certeza de que o vira na mesinha não passara de mais um equívoco testemunhal. Estou com o relógio no pulso, neste momento. Sábado, dia 3. (p. 161).
Desta forma, Fonseca desconstrói a crença no conhecimento cientifico, não há mais espaço para verdades absolutas. A ciência e a racionalidade, consideradas únicas formas de chegar ao culpado em uma narrativa policial tradicional, não podem ser usadas, já que não há mais delito (apenas uma “charada”) e, por conseqüência, nem delinqüente e nem investigação. Há, na verdade, um convite ao leitor para suspeitar da narrativa até um certo momento policial e que pretendia chegar a uma suposta verdade absoluta, única e inquestionável através de métodos ditos científicos como a dedução, a análise, o raciocínio lógico, que tanto alimentaram as primeiras narrativas policiais (de Edgar Allan Poe, de Conan Doyle, de Agatha Christe...). Dito de outra maneira: o que Rubem Fonseca faz nesta crônica é, a partir do questionamento dos métodos de investigação adotados historicamente para o desvelamento “da verdade”, uma desconstrução dos alicerces básicos da narrativa policial tradicional na medida em que, como diz Vera Lúcia F. de Figueiredo, “tudo são versões”, e, no caso da crônica analisada, até mesmo aquela que afirma a existência do delito. (MARETTI, 2010, p. 08).
Compreendemos, assim, que a subversão do gênero feita por Fonseca, conduzindo o leitor por uma narrativa que parece policial, mas não é, na medida em que não há crime, e em que o método científico é utilizado para ser desconstruído, pode ser entendida como utilização de gênero para contribuição para literariedade na narrativa,
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na medida em que se vale de elementos intertextuais e demanda um novo posicionamento do leitor. A intertextualidade, porém, não se dá somente em relação às referências científicas que serão utilizadas de forma a desmitificar o saber positivista e a crença na ciência como forma de compreender o mundo, mostrando que no mundo pós-moderno não há espaço para uma verdade única. A erudição demonstrada pelo narrador, tanto quanto no seu conhecimento científico, e a frase “o testemunho é a prostituta das provas” para provar essa teoria, ele cita duas de várias pesquisas feitas com este propósito e que, além de curiosas, já seriam “clássicas”. São duas narrativas encaixadas na narrativa, num efeito de mise en abîme que nos faz pensar tanto em nosso eventual papel de leitores crédulos quanto no do narrador como aquele investigador desejoso de chegar à verdade do delito. (MARETTI, 2010, p. 05).
Essa afirmação nos leva, novamente, a perceber a necessidade do narrador de se mostrar científico, baseando sua investigação em teorias comprovadas que levarão o leitor a acreditar nele. Da mesma forma, esses aspectos serão utilizados pelo narrador de outra narrativa fonsequiana Bufo & Spallanzani. No romance a frase, que na crônica é elemento utilizado como novo argumento, que trará maior credibilidade ao narrador, é o título do quarto capítulo. Sabendo que a relação intertextual pode ser vista de diversas formas, como processo de vários significados, como “tessitura, biblioteca, incorporação ou simplesmente diálogo” (SAMOYAULT, 2009, p. 09), a incorporação, e ressignificação de um conceito pelo próprio autor não pode passar despercebida. Outro aspecto da relação intertextual com o romance é a demonstração de erudição a partir do conhecimento científico do narrador, que será desconstruído para mostrar que os argumentos baseados neste conhecimento querem atrair (ou trair) o leitor, levando-o a acreditar naquilo que o narrador está dizendo, já que ele demonstra ter um grande conhecimento. Bufo & Spallanzani é um livro que reflete o tempo todo sobre o processo de criação literária, um aspecto é pensar qual é a função do escritor e da literatura em um mundo onde o capitalismo dominou tudo e os leitores são da burguesia. Assim, a problematização da narrativa e sua posição diante dos leitores burgueses são afirmadas no texto. Em um nível, será a identificação do leitor e do texto,
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os personagens vivendo em uma esfera social que não é a popular, serão um modo de representar a burguesia. Desta forma, como na crônica, o discurso científico atrai o leitor, contudo, no romance será através da identificação com as personagens. Isso acontece, sobretudo, em um capítulo do romance, em que as personagens não são somente ricas, mas amam as artes e possuem conhecimentos científicos e artísticos. Por outro lado, tanto na crônica como no romance, Rubem Fonseca trata esse assunto com ironia, os conhecimentos científicos não são sérios, por mais que na crônica eles tenham um tom de seriedade é demonstrada a falácia ao final. Trata-se mais de uma representação do texto, para, ainda mais uma vez questionar os valores, tão acreditados, das ciências no final do século XX e início do XXI. Um conhecimento fraco e superficial pode ser aceito como o verdadeiro conhecimento, e adquirir o status de erudição, e verdade, em um mundo que está mais preocupado com a aparência do que com o saber real. Ambos os narradores constroem narrativas em que o saber científico são utilizados para conduzir o leitor, de maneira a fazê-lo chegar as conclusões que o narrador quer, à medida que “o romance policial não se fundamenta numa estrutura de emboscada para o criminoso, mas para o leitor” (BOECHAT, 1990, p. 60). Os conhecimentos científicos serão, mais uma vez, utilizados para enganar o leitor. Como, a partir do status de um texto verídico, o conhecimento científico dá um certo prestígio ao texto, já que a ciência, ainda, é inquestionável, é preciso acreditar nela sempre. Assim, as narrativas se valem deste aspecto para ganhar a confiança do leitor, visto que a crença na ciência é, normalmente, maior que a desconfiança de um narrador. Ana Cristina Carvalho (2013), em sua tese de doutorado, faz uma análise a cerca de função do conhecimento científico em Bufo & Spallanzani, que também podemos compreender para análise da crônica Muitos livros no âmbito das ciências se utilizam de recursos de referenciamento como as remissões, notas que direcionam o leitor para autores (...) Em relação ao romance B&S, verificamos que o escritor Rubem Fonseca se utiliza de tal recurso na composição da linguagem. Avaliamos que se trata de uma estratégia importante na constituição do discurso, pois é reiterada ao longo dos capítulos. (CARVALHO, 2013, p. 137).
Na crônica, ela se reitera na análise de cada suspeito, criando armadilhas para o leitor que vai acreditar em tudo que o narrador quer. A referência será, deste modo, uma forma de tirar o foco do leitor, que se deixará conduzir por um narrador não confiável.
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Percebemos que, na crônica fonsequiana, o gênero policial possibilita a interrelação de diversos elementos, que conduzem a narrativa, a referência aos saberes científicos dão uma perspectiva de leitura dentro do conto e em relação à outra narrativa de autor em que esses elementos são colocados, em que o leitor será chamado a ter uma participação ativa: Através da representação diegética dos processos de produção e recepção do texto, deixa-se clara a intenção de, simultaneamente, seduzir e decepcionar o leitor, levando-o, enfim, não apenas a ler o texto, mas a assumir a posição interpretativa e crítica que lhe cabe. (BOECHAT, 2013, p.106).
Referências ALBUQUERQUE, Paulo de Medeiros e. O mundo emocionante do romance policial. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
BOECHAT, Maria Cecília Bruzzi. Uma leitura de Bufo & Spallanzani, de Rubem Fonseca. Belo Horizonte: Dissertação (Mestrado em Estudos Literários). Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG. 1990.
CARVALHO, Ana Cristina Teixeira de Brito. Do romance ao filme: A Metaficção como estratégia de Constituição da forma nas narrativas Bufo & Spallanzani. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Federal da Paraíba/UFPB. 2013.
CORTÁZAR, Julio. Poe: o poeta, o narrador e o crítico, Do conto breve e seus arredores e Alguns aspectos do conto. IN: Valise de Cronópio. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974. Tradução Davi Arrigucci Jr. e J.A. Barrbosa.
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FONSECA, Rubem. “O quinto suspeito”. In:______. O romance morreu (crônicas). Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 2007, p. 157-161.
_______, Rubem, Bufo & Spallanzani. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985.
LEAL. Bruno de Souza, A ética na narrativa brasileira do final do século XX. Belo Horizonte: Tese (Doutorado em Estudos Literários). Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG. 2000.
MARETTI, Maria Lídia Lichtscheidl. A Narrativa Policial História e Tendências Contemporâneas.In: Anais do II Congresso de Pós Graduação, Unesp/Assis. Assis, 2010.
POE, Edgar Allan. Os crimes da rua morgue,. IN: Edgar Allan Poe: Ficção Completa, Poesia & Ensaios. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2001. Tradução de Oscar Mendes e Milton Amado.
SAMOYAULT, Tiphaine. A intertextualidade. Trad. Sandra Nitrini. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008.
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O LUGAR DA INVESTIGAÇÃO DOS TOPOI NA LÍRICA CONTEMPORÂNEA DE LÍNGUA PORTUGUESA: CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS. Rafael Campos Quevedo (UFMA)1 I. O problema norteador desta comunicação diz respeito à possibilidade de se empregar o método da investigação tópica tendo como corpus a lírica contemporânea em língua portuguesa. O problema só pode ser assim formulado uma vez que há uma relativa e aparente incongruência entre o método e o corpus. A razão disso advém do fato de que os chamados topoi na poesia são típicos de uma época (aqui chamada tradicional) em que era não apenas comum, como também recomendável, que o autor empregasse como referência criativa a obra de outros poetas, valendo-se de convenções consagradas e atualizando, conforme sua perícia poética, os lugares-comuns do patrimônio da arte a que se encontrava vinculado. Essa prática perdura até o século XIX quando recebe sua sentença de morte com o movimento romântico, mas é no século XX que ela se encontra, em definitivo, com o seu ocaso. Para fins de exposição do assunto, partirei de uma reflexão sobre os prováveis motivos do relativo esquecimento da investigação tópica para, em seguida, propor argumentos favoráveis à sua validade. Topos, tópico (ou tópica) e lugar-comum, aqui empregados como sinônimos são, no dizer de Segismundo Spina: “uma designação genérica, que compreenderá não apenas os esquemas de pensamento, de sentimento, de atitude, de argumentação, como ainda os próprios esquemas na sua forma estereotipada” (SPINA, 2009, p. 54). Na página seguinte, ao demarcar a diferença entre topos e estereótipo, afirma o autor que este “gira em torno de uma palavra de sentido dominante, que constitui o núcleo de sua formulação” (SPINA, 2009, p. 55) ao passo que, no lugar-comum: “o que verificamos é apenas um conteúdo constante, que também circula, mas não possui uma solução verbal, uma fórmula literária mais ou menos definida” (SPINA, 2009, p. 55). Ainda no mesmo capítulo, traça a fronteira definitiva entre um e outro conceito: “O que 1
Doutor em Literatura pela Universidade de Brasília e Professor do Departamento de Letras da Universidade Federal do Maranhão. Desenvolve pesquisa na área de poesia contemporânea em língua portuguesa. E-mail: [email protected]
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caracteriza o lugar-comum é apenas o assunto, o conteúdo; o que caracteriza o estereótipo é não só o conteúdo, mas ainda a sua estrutura linguística” (SPINA, 2009, p. 56). A obra de onde foram extraídos os fragmentos acima intitula-se Do formalismo estético trovadoresco e é dedicada inteiramente à produção poética medieval. Somente esse fator já é suficiente para tornar legítima a adoção da metodologia da abordagem da tópica poética se se leva em consideração o fato de que, no período em questão (ou mais propriamente na época que vai da Antiguidade ao Romantismo), a produção de poesia era marcada pela mais ou menos disciplinada obediência a convenções e fórmulas consagradas, razão pela qual a repetição de conteúdos ou formas de expressão de um poema para o outro não constituía, em si mesmo, um demérito do autor, mas, às vezes, era a própria exibição de sua qualidade como poeta. Nas palavras de Roberto Brandão: O fato de o poeta deixar transparecer suas fontes, o que a muitos críticos do passado pareceu „plágio‟, revela um aspecto próprio do modo tradicional como cada poeta se relacionava com seus antecessores, especialmente aqueles já canonizados pela opinião. Era antes uma homenagem e um atestado de bons antecedentes poéticos, que o poeta fazia questão de expor. (BRANDÃO, 2001, p.13)
Com a campanha movida pelo Romantismo em nome da deposição do princípio clássico da imitação artística e pelo coroamento de uma poesia como expressão da individualidade do poeta, a circulação dos topoi sofre, inevitavelmente, forte abalo, uma vez que certas convenções deixam de ter o status que possuíam na lírica tradicional e passam a ser vistas como artifícios e entraves à plena fluidez da vazão sentimental, cujo desaguadouro deveria ser o próprio poema. Dois documentos típicos dessa nova mentalidade na lírica brasileira são os prefácios de Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias aos seus Suspiros poéticos e saudades (1836) e Primeiros cantos (1846), respectivamente. Os trechos abaixo, dos dois poetas mencionados, ilustram a nova tomada de posição: Até aqui, como só se procurava fazer uma obra segundo a Arte, imitar era o meio indicado: fingida era a inspiração, e artificial o entusiasmo. Desprezavam os poetas a consideração se a Mitologia podia, ou não, influir sobre nós. [...] como se pudesse parecer belo quem achasse algum velho manto grego, e com ele se cobrisse. Antigos e safados ornamentos, de que todos se servem, a ninguém honram! (MAGALHÃES, 1981, p. 40) Muitas delas [das poesias] não têm uniformidade nas estrofes, porque menosprezo regras de mera convenção; adotei todos os ritmos da
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metrificação portuguesa, e usei deles como me pareceram quadrar melhor com o que eu pretendia exprimir. (DIAS, 1981, p. 44)
Declarações como as citadas acima, embora tenham as convenções clássicas, as alusões à mitologia, os ritmos e as regras de versificação como alvos visados, também se estendem aos lugares-comuns da tradição, uma vez que o fundamento do ataque é o alegado engessamento da livre expressão individual, pelas quais tais convenções supostamente seriam responsáveis. Nesse particular, a situação da lírica no século XX não apresenta uma negação das reivindicações românticas, sobretudo se considerarmos o século em questão como a era da instauração da “tradição da ruptura”, expressão cunhada por Octavio Paz para caracterizar uma época em que a negação do passado em nome da afirmação da novidade se afigura como o próprio modo de ser artístico, a mola propulsora das realizações no âmbito da arte. Relação semelhante pode ser encontrada no seminal A estrutura da lírica moderna de Hugo Friedrich, para quem “a poesia moderna é um “Romantismo desromantizado” (FRIEDRICH, 1978, p. 30), expressão que tem em comum com a “tradição da ruptura” de Paz, além do paradoxo que elas encerram, o fato de flagrarem, na modernidade, a persistência da concepção romântica de arte. Assim encarada, a relativa solução de continuidade existente entre romantismo e modernidade parece atentar diretamente contra a viabilidade de uma leitura da lírica do século XIX até os nossos dias pelo viés do estudo dos topoi poéticos, uma vez que tudo converge para a derrocada da tradição e isso, em princípio, implica na varredura de seus conteúdos e fórmulas linguísticas. Este breve panorama encerra, portanto, a primeira parte desta exposição, destinada a apresentar os acontecimentos que tiveram impacto direto no relativo esquecimento da análise tópica. Parto para o segundo momento da discussão, agora acerca da legitimidade da análise dos topoi tendo como corpus a produção lírica contemporânea. II. Primeiramente penso ser necessário considerar a impossibilidade (ao que me parece, lógica) de haver uma produção poética totalmente isenta de seus lugares comuns, ainda que dentro de uma conjuntura radicalmente oposta à da tradição clássica.
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Mesmo se considerarmos as afirmações em tom vanguardista avant la lettre de Dias e Magalhães, que nenhuma ordem deverá mais ser seguida pelos poetas, o próprio decreto da absoluta ausência de ordem já poderia sinalizar, sintomaticamente até, para a emergência germinal de uma nova tópica, atuante na lírica contemporânea, que seria aquela segundo a qual a poesia nasceria a cada vez que um poema é produzido, como alguns poemas metalinguísticos modernos sugerem. Assim, ainda na esteira de Spina, é interessante lembrar que “Todos os movimentos literários criam as suas categorias, estilísticas, valores estéticos elementares, temas e motivos, que, através da experiência da própria geração, sobretudo no domínio da poesia, vão buscando uma estabilidade expressional, uma vitrificação verbal” (SPINA, 2009, p. 50). Talvez fosse o caso, portanto, de se pensar se o paradigma da dissonância, tão pormenorizadamente estudado por Friedrich em obra já citada, não estaria em vias de “vitrificação” nesses mais de dois séculos de existência. Em suma: a possibilidade de pensarmos numa tradição de índole romântica não é nada absurda e talvez o próprio recenseamento de seus topoi recorrentes possa informar muito a respeito2 Voltar o olhar sobre a lírica contemporânea se valendo da análise tópica requer um ajuste dessa metodologia no seguinte aspecto: estaria fora do escopo do pesquisador a tarefa de rastrear as fontes e as influências de onde determinado poeta pudesse ter haurido determinado topos. Já não se trata mais, como na obra máxima de referência desse método, o Literatura europeia e Idade Média latina, de Ernst Robert Curtius, de identificar uma unidade, qualquer que seja, entre a poesia de hoje e a do passado, já que se parte, agora, da consideração aceita da descontinuidade da tradição. Tal reajuste metodológico proposto para a investigação tópica representa outro enquadramento da questão na medida em que a primazia das relações de influência e transmissão cultural cede lugar à noção de diálogo intertextual. Em termos teóricos, a categoria de “diálogo” não exige, como condição operatória, o pertencimento das obras que compõem o corpus analisado a uma mesma tradição, regida pelos mesmos valores formadores. Para efeito de ilustração tome-se o exemplo da tópica da “máquina do 2
Ainda tomando como exemplos casos da literatura de língua portuguesa, é interessante atentar para a explanação feita por Graça Aranha na conferência de abertura da Semana de 1922. Com o propósito de legitimar e apresentar os fundamentos da modernidade artística (presente nas obras expostas no referido evento), o escritor maranhense vincula o advento da estética moderna ao movimento romântico sugerindo uma solução de continuidade entre os dois momentos literários.
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mundo”. O poeta vanguardista Haroldo de Campos e o mineiro Carlos Drummond de Andrade dedicaram poemas a esse topos clássico presente em Camões e Dante. Contudo, a produção dos dois poetas do século XX não pode ser diretamente conectada à mesma corrente da poesia tradicional que abriga o autor de Os lusíadas e o da Divina comédia, ainda que estes tenham sido poetas possivelmente admirados pelos autores brasileiros em questão. Ocorre que tanto a obra de Haroldo quanto a de Drummond não são representativas de uma legítima solução de continuidade da tradição clássica e nem a ela está ligada por uma relação de influência, imitação ou algo equivalente, razão pela qual a atualização da tópica antiga deve ser observada, nesse caso, pelo prisma do diálogo intertextual, relação essa possível entre obras de quaisquer quadrantes temporal e espacial. Mais do que isso, o estudo das recorrências dos lugares-comuns do passado em obras líricas atuais constitui um fecundo meio de compreensão acerca da própria noção de contemporâneo e das relações da poesia com as questões de sua época. Tento explicar essa afirmação. Se admitirmos como válida a explicação acerca do que é ser contemporâneo fornecida por Giorgio Agambem em seu ensaio “O que é o contemporâneo”, cito: Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. (AGAMBEN, 2009, 58-59 pp.)
Ou seja, se admitimos, como disse, tal explicação sobre o contemporâneo, e ainda, se reconhecemos por conseguinte, que certa “inadequação” e certa “inatualidade” são inerentes aos topoi da lírica, parece inevitável a conclusão de que a presença de um topos tradicional num poema lírico atual ou, mais propriamente, a atualização feita por um poeta do século XXI de um lugar-comum do passado, pode ser algo bastante revelador acerca do próprio contemporâneo, justamente pelo “deslocamento” e “anacronismo” implicados na revitalização do topos3. 3
As seguintes palavras de Donizete Antonio Pires enquadram bem a questão: “O fato revela não apenas a relação – conflituosa ou não – do poeta com os precursores, mas também o modo como dado momento histórico-cultural recebeu a vasta herança desses precursores, problematizando-a sob diferentes ângulos.” (PIRES, p. 19)
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Os tópicos nascem como frutos de circunstâncias históricas ou morais; continuam a circular pela literatura, independentes da existência das circunstancias geradoras. O que flutua, pois, é o nexo entre o tópico e a realidade histórica ou moral que o justifica. Logo, o tópico pode explicar-se como mero expediente literário, recurso expressivo; ou pode acumular os dois valores, isto é, ser também a representação de uma conjuntura histórica, de uma posição moral do poeta perante a realidade. (SPINA, 2009, p. 203)
Fugindo um pouco do âmbito estritamente teórico dessas considerações e partindo para a apreciação de um poema contemporâneo a fim de tornar mais palpável o argumento, observemos o seguinte poema de Nelson Ascher presente em seu livro Parte alguma: Horas, dias, anos Nem a ave-bala que, perdida porém certeira, voe secretamente, nem, quando cruza a reta final, um carro de corrida passam mais rápido que a vida útil de alguém cuja obsoleta doutrina nem sequer o inquieta se chega a um beco sem saída. Moscou tocou-se e você não? Você só vai entrar em frias caso persista em seus enganos. As horas nunca o perdoarão: horas que estão limando os dias, Dias que estão roendo os anos. (ASCHER,2005, p.14)
O soneto de Ascher atualiza o topos da efemeridade da vida numa clave histórica peculiar que tem como moldura o contexto da derrocada das utopias, em especial a que se refere ao socialismo. O poema é uma admoestação (v. 9), por parte do sujeito lírico, a alguém ainda aferrado a um ideal supostamente obsoleto (vv. 6-7). O tempo é dimensionado historicamente enquanto marcha da História e cruzado com a clave existencial que o topos originalmente carrega (v.12) (existencial aqui empregado como experiência da pequenez do indivíduo frente à magnitude assoladora do tempo). As duas quadras do soneto exibem marcas indicativas de um modo de representação do tempo que passou a nos ser familiar a partir do século XX. Refiro-me, em especial, às referências ao carro de corrida e à bala, expressões que aludem aos manifestos futuristas (no que diz respeito ao elogio à guerra e à exaltação da velocidade do automóvel) e, por
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extensão, à lógica vanguardista em geral, cujas implicações, entre as quais o fetiche da novidade e a radicalidade das rupturas, ditaram o tom e o modo de ser de parte da arte do século XX. O fato é que poetas contemporâneos de língua portuguesa não se abstiveram em se apropriar de vários dos topoi da tradição (fugacidade da vida, carpe diem, exegi monumentum4 são alguns dos presentes apenas no livro de Nelson Ascher), em alguns casos movidos por explícita intenção paródica e, em outros, talvez por uma “topada” no topos, o que se explicaria pelo fato de tais topoi serem formulações para um motivo que mantém com a experiência humana uma íntima e universal relação. Se concordarmos com uma definição de lírica como o gênero da interioridade por excelência (“espaço íntimo da comunicação”, na definição de Frye citada por Achcar), esta jamais poderá deixar de fornecer formulações a esse motivo. Assim, mesmo o poeta mais desconhecedor da tradição irá topar com esse topos, para usar aqui o jogo de palavras praticado por Affonso Romano de Sant‟anna em um poema que trata da consciência do topos que é, em si mesmo, um topos: Forma melhor de escrever é ler e ler nos outros o que pensamos ser só nosso e é de tantos, há tanto, que nada de novo existe, topos com que topo eu, lugar-comum de tantos tipos que me reescreveram. (SANT‟ANNA, 1999, p. 107)
Gostaria, para finalizar, de trazer à tona uma sugestão implícita no trecho citado do poema de Sant‟anna, que pode muito bem ser transformada em argumento a favor da produtividade da análise tópica aplicada à poesia contemporânea. No trecho citado, o eu lírico revela uma consciência do lugar-comum do “nada de novo existe” e reconhece a fecundidade do contato com a poesia do passado como forma de se nutrir poeticamente (“Forma melhor de escrever é ler e ler nos outros”). Consideremos, contudo, um caso diverso de se topar com o topos que seria aquele não motivado por uma deliberação consciente do poeta, mas sim pelo acaso: o poeta, pensando estar a expressar algo proveniente de sua elaboração pessoal, esbarraria num lugar-comum consagrado pela tradição. É possível que tal possibilidade não fosse acatada pelo comparatismo tópico “Ergui um monumento mais duradouro que o bronze/mais alto que a régia construção das pirâmides/que nem a voraz chuva, nem o impetuoso vento do norte,/nem a inumerável série dos anos,/nem a fuga do tempo poderão destruir” (Horácio - tradução de Pedro Maciel)
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tradicional como um caso válido, dada, por exemplo, a ressalva de Spina com relação ao trabalho de Curtius com relação ao perigo de se confundir continuidade histórica com poligenesia literária. E tal perspectiva, o topos representaria os elos, as articulações da cadeia de uma continuidade cultural. O caso da poligenesia se explicaria, ao contrário, pela coincidência de condições culturais similares que gerariam expressões literárias análogas, sem qualquer contato entre as culturas envolvidas. Pelo ajuste metodológico aqui proposto, tal risco, embora ainda existente, passaria a ser relativizado no seguinte sentido: se substituímos o pressuposto da continuidade histórica pelo de “diálogo”, noção perfeitamente cabível, como já foi observado, para casos culturalmente distantes, passa a ser possível o cotejo entre um poema contemporâneo e outro de época diversa, desde que certo esquema de pensamento (que caracteriza o topos) e/ou certas fórmulas linguísticas análogas (que caracterizam o estereótipo) se comprovem efetivamente correspondentes. O fundamento último desse argumento estaria amparado, a meu ver, e sem qualquer temor de incorrer em essencialismo, em algo que é constitutivo do gênero lírico tal como ficou mencionado, de passagem, em um momento anterior desta exposição. Trata-se da concepção segunda a qual, em última instância, a lírica lidaria com um vasto, porém finito, repertório de motivos, os quais possuem ligações muito profundas com o âmbito da experiência humana (o tempo, a morte, o amor etc.). Toda a história da poesia seria, por fim, um grande mostruário de inúmeras variações desses motivos, como sugere a seguinte citação do poeta romano Tertuliano: “multicolor, de várias cores, versicolor, nunca a mesma, mas sempre outra, embora sempre a mesma quando outra, tantas vezes enfim mudando-se quantas movendo-se”. Referências: ACHCAR, F. Lírica e lugar-comum: alguns temas de Horácio e sua presença em português. São Paulo: Edusp, 1994. ASCHER, Nelson. Parte alguma. São Paulo: Companhia das Letras,2004. BRANDÃO, Roberto de Oliveira. Poética e Poesia no Brasil (colônia). São Paulo: UNESP, 2001. CURTIUS, Roberto Ernst. Literatura europeia e Idade Média latina. Trad. Paulo
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Rónai e Teodoro Cabral. São Paulo: Edusp/Hucitec, 1996. DIAS, Gonçalves. “Prólogo aos primeiros cantos”. In.: BRAYNER, Sônia. A poesia no Brasil. Das origens até 1920. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. Trad. Marise M. Curioni. São Paulo: Duas Cidades, 1978. MAGALHÃES, Gonçalves de. “Prólogo aos primeiros cantos”. In.: BRAYNER, Sônia. A poesia no Brasil. Das origens até 1920. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. São Paulo: Cosa Naify, 2013. PIRES, Donizeti Antônio. Lugares-comuns da lírica, ontem e hoje. Linguagem – Estudos e Pesquisas, Catalão, vols. 10-11 – 2007. Acessado em Acessado em www.revistas.ufg.br/index.php/lep/article/download/11573/7587 em 20 de maio de 2014 SANT‟ANNA, Affonso Romano de. Intervalo amoroso e outros poemas escolhidos. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1999. SPINA, Segismundo. Do formalismo estético trovadoresco. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
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PUBLICIDADE E LITERATURA FANTÁSTICA Rafaeli Francini Lunkes (Unicentro)
Considerações iniciais A publicidade também opera estruturas narrativas que são análogas à composição da narrativa literária, utilizando elementos e signos de outras materialidades e contextos – os chamados “intertextos” – para dar sentido às suas criações. O objetivo deste trabalho é analisar as relações intertextuais com a literatura fantástica, estabelecido pela publicidade por meio da narrativa fantástica. A menção entre a literatura e outros campos de saber não forma um fenômeno da atualidade. Hoje, o universo literário não se restringe só às páginas do livro, mas está presente nas crônicas de jornal, nas sátiras do rádio, nos roteiros de cinema e televisão, assim como nos textos publicitários. A publicidade compõe hoje, um campo subordinado a múltiplas influencias, no qual se configuram outras linguagens. Os textos, produzidos no campo publicitário são marcados pelo uso do repertório cultural da comunidade em que são propagados. Deste modo, a criação e a recepção de textos produzidos no âmbito de uma campanha publicitária resume uma situação interacional (intertextual) que é, intencionalmente, colocada em prática. Verifica-se que a publicidade emprega uma construção de narrativa literária, que acaba utilizando a intertextualidade. Intertextualidade é um termo cunhado por Julia Kristeva (1979), que, ao tecer considerações a respeito da teoria dialógica de Mikhail Bakhtin, definiu o texto como um mosaico de citações que resulta da inscrição de textos anteriores.
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1. Publicidade e Propaganda Recorremos ao reconhecimento etimológico das palavras publicidade e propaganda, para entendermos não apenas o surgimento das palavras como também para compreendermos parte do contexto. Conforme Sant’Anna (2002, p.76): Embora usados como sinônimos, os vocábulos publicidade e propaganda não significam rigorosamente a mesma coisa. Publicidade deriva de publico (do latim publicicus) e designa a qualidade do vez que é publico. Significa o ato de vulgarizar, de tornar público um fato, uma ideia. Propaganda é definida como a propagação de princípios e teorias. Foi traduzida pelo Papa Clemente VII, em 1597, quando fundou a Congregação da Propaganda, com o fito de propagar a fé católica pelo mundo. Deriva do latim propagare, que significa reproduzir por meio de mergulhia, ou seja, enterrar rebento de uma planta ou solo. Propagare, por sua vez, deriva de pangere, que quer dizer enterrar, mergulhar, plantar. Seria então a propagação de doutrinas religiosas ou princípios políticos de algum partido.
Para Malanga (1979) a publicidade consiste num conjunto de técnicas e ação coletiva utilizada para promover o lucro de uma atividade comercial, no sentido de aumentar ou manter o número de clientes. Embora técnica, a publicidade atual se utiliza de fatores como as artes, literatura, a criatividade para criar linguagens que sejam implantadas de maneira mais fácil na mente das pessoas, persuadindo-as. A publicidade converteu-se numa ferramenta necessária para criar e sustentar grandes marcas, associando valores aos mais diversos produtos, incentivando à concorrência e, consequentemente a produção, ajudando a estabelecer novos hábitos e novas condutas na sociedade.
O texto publicitário trata da manipulação, tenta impor,
argumentar. A linguagem é retórica, isto é, tem a intenção de persuadir, convencer o outro, levando-o à compra, através da palavra ou mudando suas atitudes. Segundo Pinho (2001), a propaganda se diferencia na medida em que tem como objetivo básico influenciar o comportamento das pessoas por meio da criação, mudança ou reforço de imagens e atitudes mentais, estando presente em todos os setores da vida moderna. Os profissionais da publicidade e propaganda possuem os domínios das teorias e técnicas, devendo ser capaz de motivar a opinião pública, planejar e executar campanhas publicitárias nos meios de comunicação; analisar resultados de pesquisas de
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opinião ou de mercado, para melhor direcionar as campanhas publicitárias; definir técnicas de vendas, promoção, otimizando a relação custo e benefício, para que empresas e instituições atinjam o mercado consumidor divulgando produtos, serviços, marcas e ideias. 2. O gênero literário fantástico Existem diferentes avaliações acerca do nascimento do gênero fantástico. De acordo com Rodrigues (1988), a maioria dos estudiosos considera o nascimento do fantástico entre os séculos XVIII e XIX, tendo seu amadurecimento ocorrido no século XX. Paes (1985) afirma que os primórdios da literatura fantástica ocorreram no século XVIII, na França. Considerado a época das luzes, o século XVIII foi marcado pelo racionalismo, motivo pelo qual os filósofos questionaram superstições, ideias irracionais, até mesmo os dogmas indiscutíveis da fé. A própria religião, em meio à onda racionalista, passou a examinar minuciosamente os milagres alegados pela população. Para o autor, a literatura fantástica apareceu para contestar o racional, “(...) fazendo surgir, no seio do próprio cotidiano por ele [racional] vigiado e codificado, o inexplicável, o sobrenatural – o irracional, em suma” (PAES, 1985, p.190). A estrutura narrativa do fantástico foi estudada e ganhou importância, devido Tzvetan Todorov. Todorov (1970) traz definições sobre o gênero, os chamados, maravilhoso e estranho, que são o compartilhamento entre o real e o sobrenatural. Se o leitor decide explicar as manifestações por meio de leis da realidade, loucura, a obra faz parte do gênero estranho. Desse modo, o estranho é um gênero que acaba equivocando um pouco o leitor, pois ele só se define no desfecho da obra, apenas quando se descobre que o fantasma era alguém e não uma entidade, ou que tudo foi somente um sonho e não existiu de fato. O estranho é capaz de confundir o leitor, mas que sempre se revela no final. O maravilhoso é a condição em que os seres fantásticos não afetam a habilidade de sentir dos personagens, e do leitor. Como exemplo citamos a trilogia do Senhor dos Anéis. O gênero maravilhoso acontece em nosso mundo também, há uma espécie de acordo preliminar entre o narrador e o leitor, para que este perceba que no universo literário no qual ele está se inserindo através da leitura, tudo é permitido. “Se,
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ao contrário, ele decide que se deve admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero maravilhoso” (TODOROV, 1970, p. 156).Como acontece nos contos de fada, nos quais os animais e as plantas podem falar, e outros fatos também são aceitos pelo leitor. O fantástico se encontra na verdade é tênue linha que divide o Maravilhoso do Estranho. Todorov o define mais precisamente "O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural." (TODOROV,2004,p.31) O gênero fantástico abarca uma integração do leitor no mundo das personagens. A indeterminação do leitor é a primeira condição do fantástico. A narrativa fantástica é criada para o imaginário, para uma dimensão que não existe na realidade original. Os mitos, contos de fadas são elementos que formam a literatura fantástica. O aspecto do leitor, assim diz Todorov: O Fantástico implica, pois, uma integração do leitor no mundo das personagens; define-se pela percepção ambígua que tem o próprio leitor dos acontecimentos narrados. É necessário desde já esclarecer que, assim falando, temos em vista não este ou aquele leitor particular, real, mas uma ‘função’ de leitor, implícita no texto (do mesmo modo que acha-se implícita a noção do narrador). A percepção desse leitor implícito está inscrita no texto com a mesma precisão com que o estão os movimentos das personagens. (TODOROV, 2004, p.37).
Com a intenção de causar o espanto no leitor, provocando-lhe a hesitação necessária, meta maior da narrativa fantástica, são precisos os elementos predeterminados, durante narração. Felipe Furtado comenta: “deve desenvolver e fazer ecoar por todas as formas a incerteza sobre aquilo que encerra (...) através dos vários processos empregados na tessitura do discurso” (FURTADO, 1980, p. 131-132). Do acordo desses elementos na narração que a ambiguidade empírica, inerente ao fantástico, que este se origina. A ausência de percepção da realidade compreendida na narrativa é o que faz surgir o fantástico, segundo Volobuef (2000): O leitor, à princípio, sente-se desorientado, pois são deixadas lacunas no texto, não há explicações ou justificativas para os acontecimentos.“ O texto realiza uma espécie de jogo com a verossimilhança”. Dessa forma, surge a incerteza em meio a um ambiente antes considerado familiar
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(nosso cotidiano), e aparece o fantástico. Por conter enredos complexos e tratar de temas críticos, Volobuef afirma que esse gênero “ultrapassa as fronteiras da literatura trivial”. Paes (1985) considera o fantástico um fato inteiramente oposto às leis do real e às convenções do normal que ocorre no mundo da realidade. O fato sobrenatural, portanto, afeta o leitor por ocorrer em meio ao cotidiano, colocando-o em dúvida. 3. A publicidade como narrativa fantástica Verifica-se que existe uma ligação entre a literatura fantástica e publicidade pelo fato de ambas constituírem narrativas, ambas, possuem uma narrativa fantástica. Para um entendimento do que chamamos aqui de “narrativa fantástica”, recorremos à definição da Literatura do termo fantástico. [..] as definições do fantástico aparecidas em recentes trabalhos de autores franceses não são idênticas à nossa, tampouco a contradizem. [...] Em Le conte fantastique en France, Castex afirma que “o fantástico [...] se caracteriza [...] por uma intrusão brutal do mistério no marco da vida real”. Louis Vax, em Arte e a literatura fantástica, diz que “o relato fantástico [...] nos apresenta em geral a homens que, como nós, habitam o mundo real mas que de repente encontram-se ante o inexplicável”. Roger Caillois, em Au couer du fantastique, afirma que “todo o fantástico é um a ruptura da ordem reconhecida, uma irrupção do inadmissível no seio da inalterável legalidade cotidiana”. Como vemos estas três definições são, intencionalmente ou não, paráfrases recíprocas: em todas aparece o “mistério”, o “inexplicável” o “inadmissível”, que se introduz na “vida real”, ou no “mundo real”, ou na “inalterável legalidade cotidiana”( TODOROV,2004, p.32).
O conceito da palavra “Fantástica”, segundo o dicionário Aurélio significa: 1. Só existe na fantasia ou imaginação; imaginário, ilusório, irreal; 2. Fantasmagórico (relativo a, ou próprio de fantasmas); 3. Caprichoso, extravagante; 4. Incrível, extraordinário, procedimento que só existe na imaginação. É um termo originário do latim phantasticus (-a, -um), que, por sua vez, provém do grego (phantastikós) – são palavras que têm origem na fantasia.
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A literatura fantástica tem como base a hesitação entre o imaginário e a realidade, da mesma forma como a narrativa publicitária opera sentidos abstratos para tornar o produto mais concreto. Deste modo, podemos considerar que a publicidade contemporânea “rouba” elementos do gênero “narrativa fantástica” (intertexto), pois, segundo Rocha (2010, p. 77), “ rompe o cotidiano e estabelece uma forma de olhar para outra realidade”. O fantástico age agregando sentidos em torno do produto, criando uma biografia, tornando-o vivo (por meio de um nome e uma personalidade), a ponto de espelhar tão bem o público e ser “humano” que parece ele a escolher, sorridente, seu consumidor. O cotidiano cria vida, como magia, desta forma os produtos passam a fazer parte deste cotidiano reinventado. Segundo o antropólogo Everardo Rocha, os anúncios publicitários são utilizados como representações do que acontece habitualmente na vida das pessoas. O momento da leitura do anúncio dá a sensação a quem está lendo de estar fora do mundo, em uma outra realidade. Essa intervenção do anúncio, colocando o consumidor diante de um enunciado, um episódio ou acontecimento contido no seu interior, cria um sentido de ilusão. Nela, o receptor passa a viver e experimentar algo que se encontrava fora dele. Nessa relação, o mundo dentro do anúncio passa a existir enquanto ‘realidade’ adquirindo concretude num fato – a recepção – que envolve a ambos. Nessa espécie de envolvimento, nessa alternância de ‘realidades’ que se instaura no espaço da recepção é criado um tipo de relação particular entre anúncios e consumidores. [...] (ROCHA, 2010, p.163)
Os anúncios não são cópias do cotidiano, são interpretações que o tornam mais mágico, encantado, fabuloso, como acontece nos contos de fadas. Desse modo, o anúncio é uma narrativa idealizada em códigos, palavras e imagens que viabiliza um conjunto de feitos encantados. É um mito. A publicidade torna o impossível, possível, fazendo acreditar naquela nova realidade, os problemas são solucionados de maneira mágica, os personagens dotados de poderes, beleza sem igual, o limite é a imaginação. Baudrillard (2009) alerta sobre a relação que temos com a publicidade e seus objetos (produtos), dizendo que não se trata de uma lógica do enunciado e da prova, mas sim de uma lógica da fábula e da adesão. Baudrillard esclarece que o público não crê no produto, mas a publicidade faz ele crer e desejar o produto.
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À medida que resistimos, tornamo-nos mais sensíveis à sua existência, tanto como produto de consumo quanto manifestação de uma cultura. Menciona que consumimos publicidade e com ela consumimos “o luxo de uma sociedade que se dá a ver como distribuidora de bens e que é ‘superada’ em uma cultura”, ou ainda, que por “meio da publicidade, como por meio das festas de outrora, a sociedade oferece à vista e ao consumo sua própria imagem” (BAUDRILLARD, 2004,p. 182).
Quanto mais fantástica é a publicidade, mais o produto é encantado, animado, cheio de vida – o que Baudrillard (2009) chama de “calor comunicativo”, que agrega ao produto espontaneidade, diferenciação, personalidade. Logo, ao escolher determinado público como destino da sua mensagem, a publicidade dissipa as fragilidades do público, tais como o desconhecimento do próprio eu, as angústias, a falta de esperança, sua inexistência para o outro, para o coletivo. Segundo Baudrillard (2004, p.180): Você é visado, amado pelo objeto. Se o objeto me ama (e ele me ama através da publicidade), estou salvo. Assim a publicidade (como o conjunto de public relations) dissipa a fragilidade psicológica com imensa solicitude, à qual respondemos interiorizando o apelo que nos solicita, a imensa firma produtora não apenas de bens, mas de calor comunicativo que vem a ser a sociedade global do consumo.
O teórico escreve o sistema publicitário como indissociável do sistema dos objetos e, como narrativa puramente conotativa, a publicidade possui dupla função: é discurso sobre o objeto e ela própria objeto de consumo, enquanto imagem (BAUDRILLARD, 2009). A imagem utilizada na publicidade é feita para alguém – e não se contenta apenas em “chamar a atenção”, mas esta imagem que é imagem para outrem (Péninou, 1973, p.67). Deseja ser interpretada e manifestar seus valores a quem a vê. Tendo como objetivo influenciar, aumentar o consumo, transformar hábitos, educar e informar, pretendendo atingir a sociedade como um todo, a publicidade retrata momentos do cotidiano através da manipulação de símbolos de caráter social. O cotidiano se faz vivo como magia, assim como os produtos passam a fazer parte deste cotidiano recriado. O foco da publicidade é o consumo. “[...] convidamos vocês a consumir o produto X porque é normal que vocês consumam alguma coisa e nós lhes propomos nossa produção em lugar de outra, dentro dos modos próprios de uma persuasão cujos mecanismos todos vocês já conhecem.” (ECO, 1997, p. 183). “A publicidade gira em
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torno de relações sociais, não em torno de objetos. Sua promessa não é de prazer, mas de felicidade: felicidade julgada de fora, por outros.” (BERGER, 1999, p. 134). Quando o público adquire determinado produto, está conquistando status, servindo de modelo para outros. Na publicidade o produto calado em sua historia social se transforma num objeto imerso em fábulas e imagens (Rocha, 1995, p.67). Produtos seriados, anônimos e impessoais serão consumidos por seres humanos particulares. O domínio do consumo é o mundo do “negócio” humano, onde se trocam valores, objetos, homens. Os produtos são antropomorfizados para levarem aos seus consumidores as individualidades e universos simbólicos que a eles foram atribuídos (Rocha, 1995, p.67). Portanto, a publicidade é a porta de entrada para o consumo. É a responsável pela semiotização dos objetos, pelo seu transporte do mundo material para o domínio do simbólico. O produto recebe pela marca um tratamento antropomórfico. A publicidade vai fazê-lo entrar no circuito da pessoa, no simbólico (Rocha, 1995, p.71). Os pontos de contato entre: Literatura Fantástica A narrativa é produzida pelo imaginário, por uma área que supostamente não existe na realidade tradicional.
Publicidade Rompe o cotidiano e impõe uma forma de olhar para outra realidade, de forma mais mágica.
O gênero fantástico está composto de situações e personagens, fantasiosos desvinculados do cotidiano. Como personagens temos, por exemplo – bruxas, aparições, vampiros, anjos, animais excepcionais, objetos relacionados à magia.
Os anúncios não são cópias do cotidiano, são interpretações que o tornam mais mágico. O fantástico age dando sentidos que dão alma ao produto (Por meio do nome, personalidade do mesmo).
Narrativa com personagens e situações fantásticas, que provocam um espetáculo, que comovem.
Narrativa com personagens e situações fantásticas, que provocam um espetáculo, que comovem.
Intertextualidade de linguagens, discursos.
Intertextualidade de linguagens, discursos.
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Considerações Finais A conversa estabelecida entre a Literatura e Mídia, em especial a Publicidade, compõe hoje um campo ao mesmo tempo independente e suscetível a múltiplas influencias, onde se reprocessam outras linguagens. Nesse mundo moderno e inteligível, o rotineiro e o habitual, podem diminuir a duração da percepção da mensagem. A narrativa que produz admiração que impulsiona a criação literária fundada em procedimentos irrealistas gera o desafio de decodificar a narrativa fantástica, intriga o leitor e o convoca a decodificar também o mundo de que ele estrategicamente transforma para representá-lo. Como a publicidade busca influenciar o público-alvo, a intertextualidade se torna um recurso de ajuda na assimilação da mensagem, resgatando discursos anteriores no caso à literatura fantástica, onde estão presentes personagens dotados de poderes, beleza sem igual, o limite é a imaginação. Espera-se que este trabalho possa contribuir, para a área de Literatura e Publicidade e Propaganda uma vez que o mecanismo de intertextualidade, presente nos anúncios torna mais rico o universo publicitário e acaba auxiliando na recepção da mensagem. Referências BAUDRILLARD, J. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2009. BERGER, John. Modos de ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Horizonte, 1980. KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1979. MALANGA, Eugênio. Publicidade: uma introdução. Atlas, São Paulo, 1979.
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PAES, José Paulo. As dimensões do fantástico. Gregos e Baianos. São Paulo: Brasiliense, 1985. PÉNINOU, G. Física e metafísica da imagem publicitária. In: A análise das imagens: seleção de ensaios da revista “Communications”. Petrópolis: Vozes, 1973. PINHO,
J.B.
Comunicação
em
Marketing:
princípios
da
comunicação
mercadológica. Campinas: Papirus, 2001. 6º Edição. ROCHA, Everardo. Magia e capitalismo: um estudo antropológico da publicidade. São Paulo: Brasiliense, 2010. RODRIGUES, Selma Calasans. O Fantástico. São Paulo: Ática, 1988. SANT’ANNA, Armando. Propaganda: teoria, técnica e prática. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002. VOLOBUEF, Karin. Uma Leitura do Fantástico: A invenção de Morel (A. B. Casares) e O processo (F. Kafka). Revista Letras, Curitiba, n. 53, p. 109-123, jun. 2000. TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1970. TODOROV, V.T. Introdução à literatura Fantástica. São Paulo: Castelo, 2004.
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O TRÁGICO E O REALISMO BURGUÊS: A LITERATURA COMO DESVELAMENTO DAS CONTRADIÇÕES SOCIAIS
Autor: Rafhael Borgato (UNESP-FAPESP) Na célebre obra O segundo sexo, de 1949, Simone de Beauvoir afirma que “Ninguém nasce mulher; torna-se mulher” (BEAUVOIR, 1970 (II), p. 9). Esta afirmação provocativa resume a indagação fundamental do feminismo: o que significa exatamente ser mulher? Beauvoir diz que não há qualquer definição biológica, psíquica ou econômica que defina o destino feminino no seio da sociedade, mas é o conjunto da civilização que define seu papel restrito na sociedade. Obviamente, este papel social sofre variações dependendo do período histórico e da localização geográfica focalizados, o que pode tornar nulo qualquer esforço analítico que incorra em generalizações. Portanto, deixamos claro que este trabalho se debruçará essencialmente sobre o significado do feminino na sociedade europeia do século XIX, mais especificamente, na França novecentista, pois foi ali que se produziu a obra sobre a qual pretendemos falar: o clássico Madame Bovary, de Gustave Flaubert, publicado em 1856. O enredo do romance é construído em torno de Emma Bovary, uma jovem provinciana que mora com pai, Rouault, e vê-se permanentemente insatisfeita com sua própria condição, ansiando por uma existência fascinante. Sua ânsia por esse tipo de existência vem da leitura dos romances – cujas protagonistas eram, essencialmente, mulheres adúlteras – com os quais se deparou durante sua permanência no convento em que o pai lhe pôs na adolescência. Casa-se com Charles Bovary, um médico provinciano e medíocre, por quem não é capaz de sentir nenhum amor. Para o marido, o casamento é plenamente satisfatório, afinal, Charles nunca fora mais do que um garoto opaco, que passara pela vida escolar e pela faculdade de medicina sem que ninguém, nem ele próprio, notasse em si qualquer traço de um homem notável. Para Emma, o casamento parecia uma forma de se libertar da clausura da vida provinciana, do tédio mortífero da casa paterna. No entanto, o que inicialmente parecia uma solução revelou-se apenas
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uma extensão da monotonia, ao lado de um homem que não lhe despertava nenhum sentimento próximo à paixão arrebatadora com a qual começara a sonhar após as leituras românticas da época passada no convento. Por isso, Emma torna-se uma adúltera. Seus amantes (primeiro, Rodolphe; depois, León), no entanto, também não passam de sujeitos insípidos, cada um à sua maneira. As relações adúlteras não passam de uma breve ilusão da vida de paixões a que aspirava tão ardentemente, são apenas chamas de prazer efêmero na rotina glacial de sua existência sem sentido – apesar de, ou justamente por ser uma mulher casada e exercer o papel de mãe e senhora do lar. O fim de Emma Bovary é o suicídio. Parafraseando o que disse Simone de Beauvoir: é o conjunto da civilização que define o papel do gênero feminino no seio de determinada sociedade. Portanto, para compreendermos o que significam as atitudes e o destino de Emma Bovary, temos de recorrer ao seio da sociedade em que a heroína foi pensada. Primeiramente, recordemos o que diz Rousseau a respeito do papel social das mulheres. Em Emílio, obra de 1762, o pensador suíço compôs uma espécie de manual de educação, no qual imprime sua visão de mundo sobre como um jovem deve ser preparado para a vida em sociedade. Interessa-nos o que diz no Livro V, pois neste se dedica a descrever o modelo de educação para Sofia, a companheira ideal para seu Emílio. Logo no começo, Rousseau descreve as diferenças naturais entre os sexos masculino e feminino e ressalta que tais diferenças devem ser respeitadas também no âmbito “moral”. Para Rousseau, a mulher é feita para agradar ao homem, visto que este é forte, protetor, enquanto aquela é passiva e fraca (ROUSSEAU, 1992, p. 424). Sua concepção evidencia justamente o argumento biológico da diferenciação homem/mulher e a partir disso tenta justificar os papéis sociais designados a cada um dos gêneros. Rousseau, entretanto, não é o primeiro a conduzir seu pensamento dessa forma. Na primeira parte de O segundo sexo, Simone de Beauvoir destaca alguns nomes que seguiram caminho semelhante. Aristóteles, por exemplo, diz que “A fêmea é sempre fêmea em virtude de certa carência de qualidades [...] Devemos considerar o caráter das mulheres como sofrendo de certa carência natural” (BEAUVOIR, 1970 (I), p. 10). Já São Tomás de Aquino define a mulher como “um homem incompleto, um ser „ocasional‟” (BEAUVOIR, 1970, p. 10). Mais adiante, a autora cita as palavras de
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Poulain de la Barre, um feminista pouco conhecido do século XVII, que ressalta o papel de subordinação destinado à mulher pelas instituições sociais, desde as leis que regem a sociedade, passando por seus aplicadores (chefes políticos e judiciários) e pelo discurso religioso. No ensaio “Figuras e papéis”, Michele Perrot destaca a importância da figura do pai, centro da família burguesa, representante da autoridade do Estado no espaço da vida doméstica – tão importante na constituição do mundo burguês. Após a Revolução Francesa, na ausência do rei, restaura-se o poder central do pai. Afirma Perrot que “[...] o pai domina com toda a sua estatura a história da vida privada novecentista” (PERROT, 1991, p. 121). Ele é o responsável pelo direito, a filosofia e a política e se vale dessas ferramentas para justificar sua autoridade.
Nesse
contexto,
cabe
à
mulher o papel submisso, justificado, novamente, por sua incapacidade natural: “[...] o Código Civil estabelece a superioridade absoluta do marido no lar e do pai na família, e a incapacidade da mulher e da mãe” (PERROT, 1991, p. 121). O único espaço onde cabe alguma autoridade feminina é na vida doméstica, enquanto o marido cuida dos assuntos públicos. Entre as paredes da casa, a mulher burguesa dá ordens aos empregados, é responsável pela primeira educação dos filhos, cuida das despesas do lar (com o dinheiro que o marido lhe entrega para realizar tal tarefa). Os filhos homens são educados para se tornarem futuros senhores de suas próprias famílias; devem ser preparados para participar da vida pública e reinarem absolutos na vida doméstica. As meninas são educadas para se tornarem futuras esposas e mães de família – tudo justificado pela ordem natural, corroborado pelos discursos de autoridade: filosofia, medicina, leis, etc. Portanto, a vida social, a atuação pública, a existência individual reconhecida, todos estes são termos conhecidos apenas pelos homens, porque tais possibilidades dependem das situações econômica e social, as quais são culturalmente um privilégio masculino. Diz Simone de Beauvoir que: “[...] a existência individual se afirma mais imperiosamente no macho do que na fêmea, na humanidade as „possibilidades‟ individuais dependem da situação econômica e social” (BEAUVOIR, 1970 (I), p. 55). A mulher é uma sombra do homem: a filha é uma sombra sob a autoridade do pai, assim como o filho, no entanto, enquanto o menino cresce vislumbrando seus direitos futuros (herança, vida pública, autoridade familiar), à
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menina resta unicamente a certeza da passividade. Está destinada a ser uma sombra: sai da casa paterna para se casar com o homem que passará a exercer domínio sobre ela; a partir de então, torna-se uma sombra do marido. Simone de Beauvoir diz que por meio do casamento legítimo a mulher adquire “[...] as mesmas qualidades de seu esposo, como o rio que se perde no oceano, e é admitida depois da morte no mesmo paraíso celeste” (BEAUVOIR, 1970 (I), p. 101). O casamento é a instituição sagrada que perpetua a mais importante instituição burguesa: a família. É a família a responsável pela criação dos futuros homens públicos e suas respectivas esposas e mães de família. São os pais que transmitirão aos seus filhos os costumes, transformando a moral burguesa em tradição, completando o ciclo: a ordem tida como “natural” define os papéis sociais, e a repetição dos papéis sociais prédeterminados por várias gerações, por sua vez, transforma esta construção cultural na ordem “natural”. O casamento monogâmico é sagrado, o adultério não é tolerado – especialmente se cometido pela mulher. O sociólogo Norbert Elias comenta o assunto na obra O processo civilizador, estabelecendo uma comparação entre os costumes matrimonias das cortes aristocráticas nos séculos XVII e XVIII e dos lares burgueses no século XIX. De acordo com Elias, no primeiro caso, o poder social feminino aproximase do masculino, o que torna as relações extra-conjugais das mulheres menos repreensíveis, tão legítimas (dentro dos limites do decoro) quanto as dos homens. Ele cita o romance La Princesse de Clevès de Madame de la Fayette, em que o marido da princesa sabe que ela está apaixonada pelo duque de Nemours e aceita o relacionamento extra-conjugal, contanto que ela mantenha as aparências para a sociedade. No modo de vida burguês, contudo, as limitações sociais do indivíduo tornam-se mais fortes, segundo Elias, devido à necessidade de autocontenção imposta ao indivíduo, pois as funções práticas da vida burguesa “exigem e geram maior autocontrole do que as funções de corte [...] para os padrões da sociedade burguesa, o controle da sexualidade e a forma de casamento vigentes na sociedade de corte eram extremamente débeis” (ELIAS, 1994, p. 185). Todas as relações extra-matrimoniais são, nesse momento, condenadas, havendo, no entanto, maior poder social do marido “de modo que a violação do tabu pelo marido geralmente é julgada com mais condescendência do que a mesma falta cometida pelas mulheres” (ELIAS, 1994, p. 185). Sobre o assunto, Alain
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Corbin, no ensaio “A relação íntima ou os prazeres da troca”, afirma que “[...] o adultério da mulher constitui sempre um delito” (CORBIN, 1991, p. 553), salientando o argumento jurídico para que as punições à adúltera sejam mais pesadas: “[...] somente o adultério feminino acarreta o risco de fazer com que os bens patrimoniais caiam em mãos dos filhos de estranhos” (CORBIN, 1991, p. 553). Ou seja, não é tanto a mulher enquanto indivíduo que é punida por seus atos, mas sua representação social de mãe, de receptáculo dos futuros herdeiros. Portanto, a satisfação feminina é secundária; importa unicamente a preservação do núcleo familiar burguês. “Desde o feudalismo até nossos dias, a mulher casada é deliberadamente sacrificada à propriedade privada” (BEAUVOIR, 1970 (I), p. 125). Flaubert é um grande leitor do período histórico em que lhe coube viver. É um leitor não apenas da superfície da sociedade estratificada, mas de sua estrutura profunda, das contradições internas que revelam o mal estar do modo de vida burguês. Erich Auerbach, no ensaio “Na mansão de La Mole”, encontrado em sua monumental obra Mimesis, faz um comentário semelhante ao nosso sobre a representação da realidade em Madame Bovary: Para Flaubert, o peculiar dos acontecimentos quotidianos e contemporâneos não parecia estar nas ações e nas paixões muito movimentadas, não em seres ou forças demoníacas, mas no que se faz presente durante longo tempo, aquilo cujo movimento superficial não é senão burburinho vão; entrementes, por baixo ocorre um outro movimento, quase imperceptível, mas universal e ininterrupto, de tal forma que o subsolo político, econômico e social parece ser relativamente estável, mas, ao mesmo tempo, parece também estar insuportavelmente carregado de tensão. Todos os acontecimentos parecem modificá-lo muito pouco; mas, na concreção da duração, a qual Flaubert sabe sugerir tanto no acontecimento isolado [...] quanto no conjunto do panorama da época, mostra-se algo como uma ameaça oculta: é um tempo que, com a sua estúpida falta de escapatórias, parece carregado como um explosivo. (AUERBACH, 2009, p. 439-440, grifo nosso)
A crise exposta no romance pode ser interpretada, portanto, como a crise de um período histórico, de uma organização social que se pretende racional, mas que, num olhar mais atento, revela sua irracionalidade. De Emma, espera-se a aceitação do estilo de vida pré-determinado, no entanto, ela é incapaz de conceber o destino burguês como
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algo natural. Deve haver uma vida fascinante além do comezinho – é a certeza que a move e angustia a cada vez que se dá conta da distância que a separa do destino das heroínas românticas de suas leituras. O casamento pareceu-lhe uma saída inicialmente, porém, ela descobriria em pouco tempo que o papel de esposa não era muito melhor do que o papel de filha. Felicidade e paixão eram conceitos que para Emma se relacionavam aos “aspectos acidentados” da vida (FLAUBERT, 2010, p. 53), às ruínas da existência – bem ao gosto da literatura romântica em sua primeira fase. Os sonhos da jovem provinciana sobre o que deveria se tornar sua própria vida eram indissociáveis de suas leituras dos tempos de convento, sua imaginação se perdia pela possibilidade de se tornar uma versão de alguma das heroínas acometidas por um destino trágico que admirava. Para Auerbach, no entanto, não é possível considerar Emma uma autêntica heroína trágica, devido à forma como a linguagem do romance “desnuda o tolo, o imaturo, o desordenado e até o miserável desta vida [...]” (AUERBACH, 2009, p. 439). Porém, se propusermos a questão “o que significa ser mulher no contexto social apresentado no romance?”, talvez possamos realizar uma leitura oposta a esta. Não há como negar, obviamente, que o miserável da vida pequeno-burguesa circunda toda a narrativa de Madame Bovary. Emma sente desprezo pelo marido por ele ser um medíocre, mas tal característica não é exclusividade de Charles. A própria protagonista não deixa de ser uma medíocre que baseia seus anseios nas existências fictícias de obras literárias da moda. Seus amantes, Rodolphe e León, também não passam de seres convencionais, filhos ordinários da vida ordinária a que todos os personagens do romance estão presos. O representante maior dessa pequenez existencial, das almas vazias que permeiam o romance é certamente o boticário Homais. Pretenso homem ilustrado, hipócrita, adequa suas relações sociais aos seus interesses pessoais. É ele, por exemplo, quem sugere a Emma convencer Charles a fazer a operação para a cura de pés aleijados em Hippolyte, um pobre-coitado local. Este é, aliás, um momento crucial para a compreensão da narrativa – pelo menos, a partir da leitura que nos propusemos a fazer. Em determinado momento, diante da indiferença com que Rodolphe, o primeiro amante, começa a tratá-la, Emma passa a se perguntar por que é incapaz de amar o
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marido, por que o enxerga como uma criatura tão insossa e chega a pensar que bastaria um acontecimento que comprovasse sua grandeza como homem para que ela fosse capaz de aceitá-lo, ou melhor, de aceitar sua própria posição como mulher dentro da sociedade em que se insere. Pois bem, a ocasião se apresenta com a possibilidade da cirurgia em Hippolyte. Charles deixa-se convencer por Emma e por Homais, que também se encarrega de convencer o jovem reticente. A operação é realizada e, inicialmente, parece um sucesso. O boticário escreve um artigo exaltando o feito do doutor Bovary (ou talvez, no subtexto, exaltando sua própria vaidade, como se sentisse que realmente fazia parte de algo grande, como se fosse uma voz importante na defesa da verdade científica e não apenas um provinciano falastrão). Devemos nos lembrar, contudo, que nunca houve qualquer indício durante o romance de que Charles Bovary fosse mais do que um médico medíocre que mal sabe fazer o básico em sua profissão. Por isso, não deixa de ser previsível o desfecho: alguns dias depois, percebe-se que a operação foi um erro; Hippolyte sofre com dores intensas, Charles não sabe o que fazer, é chamado o doutor Canivet, uma celebridade de Neufchâtel, para resolver o caso. Nesse momento, Homais, o provinciano estereotipado, repetidor de um discurso que compreende parcamente, isenta-se de qualquer responsabilidade pelo ato que, no fim, foi sua própria ideia. Charles sempre soube de suas limitações e desde o início não se animou muito ante a possibilidade de realizar a operação; deixou-se levar pelos pedidos de Emma, que aplicou um tipo de teste no marido, uma última chance para que ele demonstrasse algum resquício de um homem notável, um lampejo que lhe permitisse amá-lo. Diante do fracasso de Charles, Emma se exaspera ao perceber definitivamente a mediocridade irremediável do marido: Era por ele, contudo, por aquele ser, por aquele homem que nada compreendia, que nada sentia! Pois lá estava ele, tranquilamente e sem mesmo desconfiar de que o ridículo ligado ao seu nome iria doravante sujá-la como a ele. Fizera esforços para amá-lo e, chorando, arrependera-se por ter cedido a outro [...] Deleitava-se com todas as ironias perversas do adultério triunfante. A lembrança do amante voltava a ela com atrações vertiginosas; nela lançava sua alma, levada para aquela imagem por um novo entusiasmo; e Charles parecia-lhe tão afastado de sua vida, tão ausente para sempre, tão impossível e aniquilado quanto o seria se fosse morrer e se estivesse agonizando sob seus olhos. (FLAUBERT, 2010, p. 232-233, grifo nosso)
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Deve-se notar que o ódio dirigido ao marido justifica-se não apenas por ele ser um medíocre, mas porque as características referentes a ele também a atingem. Como disse Simone de Beauvoir (em uma passagem já citada neste texto), a mulher adquire no casamento legítimo “as mesmas qualidades de seu esposo”. O casamento restringe a possibilidade das mulheres. A ela, cabe o papel doméstico. Socialmente, não passam de sombras dos maridos, seus representantes na vida pública. Casada com um homem de qualidades limitadas, um homem “fraco” que se recusa a enxergar o óbvio (o fato de a esposa ser uma adúltera), a senhora Bovary passa a questionar seu destino. Aliás, a adoção do sobrenome do marido também revela a condição da mulher como sombra. A filha do senhor Rouault torna-se a esposa do senhor Bovary. Ou melhor, doutor Bovary. Em Yonville, Charles até é bem visto, afinal, é o médico local, bem casado, pai de uma filha. Se Emma fosse tão convencional a ponto de não se dar conta da realidade que a cerca, talvez simplesmente aceitasse o marido, talvez continuasse sendo incapaz de amá-lo, mas pelo menos não se envergonharia dele. No entanto, Emma percebe em pouco tempo aquilo de que o leitor já tem consciência, por meio das palavras do narrador, desde a primeira página do romance. Nos amantes (primeiro, Rodolphe, depois, León), ela busca o que não encontra em seu marido: uma existência fascinante, um homem superior. Mulher na França do século XIX, ou seja, mulher burguesa encarcerada em uma organização social na qual não lhe é permitido outro papel que não seja o de sombra do marido, a saída encontrada por ela é tentar satisfazer seus anseios nos braços de outros homens. Emma busca a vida das heroínas dos romances que lia em sua juventude e talvez isso seja outro sinal de sua própria mediocridade, outro sinal que comprovaria o que Auerbach disse quanto à inviabilidade de pensá-la como heroína trágica. Porém, há de se notar que Emma se dedica à ação, coloca-se em conflito contra sua própria condição. O adultério, influenciado pelos livros cujas protagonistas eram mulheres adúlteras, é apenas o meio encontrado para a afirmação de sua própria liberdade. Num momento de arrependimento, ela tenta se voltar para Charles, ajudá-lo a mostrar que podia ser um homem notável e, consequentemente, provar que ela poderia se sentir uma mulher notável. A falha do marido faz com que Emma se volte novamente ao amante e faça planos para fugir com ele – a fuga de sua existência medíocre, a visão romântica do recomeço, de um novo mundo a ser explorado. Rodolphe escreve-lhe uma
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carta colocando um fim no relacionamento dos dois. Sabemos desde o início que isso aconteceria. Quando pensou em se aproximar de Emma, ele já havia pensado em como futuramente se livraria dela – “Seria terno! Encantador!... Sim, mas como ver-se livre dela depois?” (FLAUBERT, 2010, p. 168). Emma sofre, cai em depressão, sente-se perdida, mas pouco tempo depois se vê nos braços de outro amante, León, o primeiro por quem havia se interessado quando chegara a Yonville. Na verdade, não importa se receberá os beijos de Rodolphe, León ou do Visconde, com quem dançou no baile no castelo do conde de Vaubyeddard; importa-lhe mais, mesmo que não perceba, a ideia, o significado de ter um amante. Um amante é uma fuga do mundo pequeno-burguês a que está condenada; a ausência do amante é a percepção da realidade, por isso, quando o relacionamento adúltero chega ao fim, ela se vê diante de um abismo e é incapaz de suportar a rotina irremediável de esposa e mãe. A fuga é sua forma de conflito contra o poder objetivo da realidade, uma tentativa de afirmação de uma possível liberdade individual (a qual, lembremos, é negada às mulheres nesse contexto). O adultério como um conflito contra o poder objetivo da realidade... Esta forma de organização da narrativa nos remete ao conceito de trágico elaborado pelo filósofo alemão Friedrich Schelling, que via a tragédia como uma oposição sujeito-objeto, marcada pelo conflito entre o herói e uma força superior, entre a liberdade humana e a potência do mundo objetivo. No caso do romance Madame Bovary, esta potência é representada pela organização social novecentista, pelo papel restrito a ser desempenhado pelas mulheres. Por esta leitura, pode-se considerar o adultério como a representação da liberdade humana ou, para ser mais exato, da liberdade feminina. Nesse conflito, ainda segundo Schelling, o herói deverá necessariamente sucumbir (justamente porque combate uma força superior à de sua individualidade), contudo, o simples fato de confrontar esta força já é um tributo prestado à liberdade. Dessa forma, da contradição entre o herói e o mundo surge a conciliação trágica: a morte do herói, o restabelecimento do equilíbrio; o herói é incapaz de, sozinho, destroçar a realidade, mas é plenamente capaz de revelar suas contradições internas, portanto, mesmo sucumbindo no final, sua ação – a afirmação da liberdade – é responsável pela desestabilização do que antes era visto como fenômeno natural.
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A fatalidade de Emma Bovary é o destino de todas as mulheres burguesas do século XIX; o casamento é o que as define, a gravidez é o que as torna relevantes, preparar os filhos para também seguirem seus papéis pré-determinados é sua última função. A fatalidade da senhora Bovary é viver à sombra do marido, é não ter nada que a defina, nem mesmo um sobrenome (antes carregava o sobrenome paterno, depois passa a carregar o do marido). Pode-se argumentar que suas ações seriam diferentes se tivesse se casado com um homem mais inteligente e confiante, ou que seria mais feliz se estivesse condenada ao mesmo destino mas vivesse em Paris. Estas, no entanto, são apenas conjecturas, de tão pouca validade quanto dizer que Emma não se suicidaria se vivesse na segunda metade do século XX, que se divorciaria do marido, que teria um emprego, poderia morar sozinha, seria autossuficiente, talvez participasse ativamente do movimento feminista. A trajetória da personagem, assim como sua personalidade e seus anseios, devem ser compreendidos levando em conta o tempo em que está inserida, bem como o meio em que está condenada a viver. Se a linguagem desnuda a tolice e a imaturidade, como afirma Auerbach, isso é apenas um reflexo do que o tempo e o meio retratados no romance permitem aos seus atores. Como se pode exigir, afinal, que uma mulher como Emma, nascida onde nasceu, educada da maneira como foi educada, tendo lido o tipo de literatura a que teve acesso, convivendo com as pessoas com as quais foi obrigada a conviver, como exigir que ela pudesse ter a estatura de um príncipe intelectualizado como Hamlet, por exemplo? Como exigir que suas reflexões sobre a existência adquiram a mesma profundidade se aquela vida pequeno-burguesa provinciana é a única existência que conhece? As reflexões de Emma resumem-se ao que sua vida poderia ser, e, se sua visão sobre isso não vai além do que lhe foi apresentado em suas leituras, não podemos culpá-la por isso. Se o que define o trágico, segundo Schelling, é o conflito entre o indivíduo em busca da afirmação da sua liberdade e a potência do poder objetivo que reprime essa liberdade, então como não conceber Emma Bovary como uma personagem tipicamente trágica, como não enxergar seu destino como a tragédia feminina no século XIX?
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Referências AUERBACH, Erich. Na mansão de La Mole. In: _______. Mimesis. Vários tradutores. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 405-441. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: tomos I e II. Trad. Sergio Milliet. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970. CORBIN, Alain. A relação íntima ou os prazeres da troca. In: PERROT, Michele (org.). História da vida privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Trad. Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. ELIAS, N. O processo civilizador: Uma história dos costumes. v. 1. Trad. Ruy Jungman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 2 v. FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Trad. Fúlvia M. L. Moretto. São Paulo: Abril, 2010. PERROT, Michele. Figuras e papéis. In: ______. História da vida privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Trad. Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. ROUSSEAU, Jean Jacques. Emilio ou da educação. Trad. Sergio Milliet. Rio de Janeiro: Bertrand, 1992. SCHELLING, F. W. J. Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo. In: ___________. Obras escolhidas (coleção Os Pensadores). Trad. Rubens Rodrigues Torres. São Paulo: Abril Cultural, 1979. SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
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“FIQUEI DIAS PENSANDO NO LIVRO...” – A RECEPÇÃO DE TODOS CONTRA
DANTE (2008), DE LUÍS DILL, PELO JOVEM LEITOR
Raquel Cristina de Souza e Souza (Colégio Pedro II/ UFRJ) A obra Todos contra Dante (2008), de Luís Dill, conjuga uma série de questões relevantes para pensarmos mais detidamente a produção ficcional contemporânea para jovens e seu lugar na sala de aula de literatura. É assente que, até a década de 70, a produção literária infantil e juvenil no país viveu majoritariamente de processos narrativos e temáticos superados pelo modernismo (com exceção de Lobato), recusando reiteradamente a experimentação formal e recuando nas conquistas quanto ao aproveitamento estético da oralidade, como atestam Lajolo e Zilberman (1991).Tal atraso na continuidade do processo de construção de uma literatura infantil e juvenil brasileira de qualidade pode ser explicado pela própria dinâmica que rege esses subsistemas. A resistência à pesquisa formal identificada pelas autoras é considerada por Colomer (2003) um traço característico da literatura infantil e juvenil. Segundo ela, as inovações dessa produção sempre dependeram de seu esgotamento como novidade no sistema literário geral, o que significa dizer que a experimentação se estabeleceria como norma na tradição literária “adulta” antes de ser incorporada ao texto destinado à criança e ao jovem. A violação dos pressupostos da simplicidade e do protecionismo, consolidada na década de setenta, seriam explicadas, ainda segundo Colomer (2003), por três principais razões. Em primeiro lugar, o período assistiu ao fortalecimento da visão da criança e do jovem como sujeitos na construção do conhecimento, e não mais como objetos da transmissão do saber dos adultos. A participação ativa do jovem leitor na elaboração do sentido do texto tomada como pressuposta liberou o escritor para criar mais livremente, permitindo-lhe maior ousadia formal. Em segundo lugar, o avanço tecnológico dos meios de comunicação de massa teria tornado obsoleta certa forma de apreensão do mundo preconizada pela literatura infantil e juvenil até então. Vivendo em uma realidade que se constitui cada vez mais pela proliferação incessante de imagens substituindo os objetos empíricos, a criança e o jovem contemporâneo são estimulados a desenvolver um tipo de sensibilidade diferenciada ao lidar com as demandas da realidade chamada pós-moderna. Corresponderia a essa nova sensibilidade a competência de leitura de
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imagens e a familiaridade com a fragmentação e a não linearidade das informações. Por último, a autora considera a influência da sociedade de consumo como um motor da renovação dos textos, na medida em que a criação contínua de produtos inovadores é uma premissa para a permanência no mercado. Em Todos contra Dante podemos perceber claramente de que forma o pressuposto da simplicidade foi rompido na literatura juvenil a partir do alto grau de elaboração estética que a narrativa alcança. A experimentação formal deve-se principalmente ao aproveitamento de ambientes virtuais, como o blog e as redes sociais, na tentativa de simular no papel a leitura hipertextual própria da internet – já que o tema da narrativa é o cyberbullying. Além disso, os diversos tipos de mediação narrativa que se mesclam ao longo do texto e a relação intertextual estabelecida com o clássico A Divina Comédia, de Dante Alighieri, adensam a obra e a destacam qualitativamente em relação às demais narrativas contemporâneas para jovens que enveredaram pela mesma temática. O tratamento dado ao tema não é em absoluto informativo ou moralista; o desfecho trágico coroa a visão não protecionista e não idealizada da juventude, cuja inteligência e sensibilidade são respeitadas. Aliás, nem o protagonista nem os agressores são personagens monolíticos, e a relação entre eles não é maniqueísta. A multiplicação de pontos de vista por meio de diferentes formas de mediação narrativa é uma maneira de mostrar a complexidade do real e perspectivá-lo, fazendo assim com que o tema não seja tratado de forma simplista e leviana, segundo uma visão que separa o mundo confortavelmente entre bandidos e mocinhos. As quatro formas de mediação narrativa que se alternam no texto são: a narrativa em primeira pessoa do protagonista, vítima do cyberbullying, que mantém um diário virtual onde relata o seu sofrimento a partir de um diálogo imaginário com seu xará, Dante Alighieri; a narrativa em terceira pessoa de um narrador onisciente que aparece principalmente para fazer flashbacks; a ausência total de mediação, quando são expostos diálogos ao telefone ou ao vivo entre os personagens agressores; o narrador em primeira pessoa de A divina comédia, já que inúmeros trechos da obra clássica emergem na narrativa principal, em harmonioso e interessantíssimo diálogo com o relato da vida atual do personagem principal. Além dos trechos do livro do escritor italiano, há outras inserções semelhantes a colagens: prints das páginas da comunidade virtual onde Dante é humilhado, uma letra de música, um abaixoassinado e assim por diante. É interessante notar que a dicção do narrador se adequa a cada
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mudança de mediação narrativa, tornando o texto mais verossímil e reforçando as fronteiras entre cada modalidade de narração. A estruturação acima detalhada, por si só, é responsável pela não linearidade da narrativa. O leitor é obrigado o tempo todo a preencher os vazios deixados pelo arranjo inusitado dos diversos textos que compõem a narrativa principal. É preciso estar atento e fazer conexões o tempo todo, pois o fio narrativo só pode ser reconstituído pela atividade de atualização do leitor. Mas a não linearidade é ainda reforçada pela inserção de links na narrativa que instruem o leitor a parar a leitura naquele ponto e mover os olhos para a página ao lado, onde nova informação o espera para completar o quadro narrativo. O recurso é uma clara tentativa de colocar o jovem diante de uma experiência inusitada de leitura, pois lhe exige um esforço de compreensão consciente e desautomatizado, ao pretender passar-lhe a sensação de estar lendo na tela de um computador. O aproveitamento da hipertextualidade pode ser um fator de interesse para o jovem, ao mesmo tempo em que impõe uma série de dificuldades à leitura. Atrair e desafiar: eis a chave de interpretação dos recursos inovadores de Todos contra Dante. Para completar, o desfecho é aberto: não sabemos ao certo o que aconteceu com os agressores (Foram ou não punidos?), nem com o irmão mais velho de Dante (Vingou-se ou não?). A obra é ainda um convite agudo à reflexão e o final inconclusivo deixa para o leitor a responsabilidade de decidir sobre a vida dos personagens. Todos contra Dante foi escolhido como leitura obrigatória para seis turmas de sexto ano do ensino fundamental de uma instituição federal de educação básica. A escolha se pautou, primeiramente, em uma demanda apresentada pela escola. No final do ano anterior havia ocorrido um grave caso de cyberbullying perpetrado contra uma aluna do colégio. Os professores foram convidados, pois, a realizar projetos interdisciplinares sobre o tema1. A maneira não convencional com que o tema é abordado no livro, bem como a estrutura narrativa inusitada, foram os outros critérios para sua eleição. Isso porque entendemos que, para fins de educação literária, a perspectiva teórica da Estética da Recepção tem muito a nos oferecer, O presente trabalho é um recorte mínimo do projeto desenvolvido na instituição. Para conhecer o projeto completo, e ter acesso aos roteiros e às produções dos alunos, acessar: https://sites.google.com/site/re2todoscontraobullying/home. Fica aqui meu agradecimento à professora Simone da Costa Lima, da disciplina Informática Educativa, que não só viabilizou o projeto como foi uma grande colaboradora na sua concepção. 1
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devido ao papel central que a atividade interpretativa do leitor nela desempenha e à ênfase dada por essa teoria à imprevisibilidade da articulação entre forma e conteúdo como critério avaliativo do texto literário e à desestabilização das verdades conhecidas do leitor como efeito desejado. A única maneira possível de formar leitores literários é por meio de textos literários. A informação parece óbvia, mas o que se pretende ressaltar é que há uma diferença flagrante entre os dois polos entre os quais se debate o campo da literatura juvenil. O polo comercial abrange obras que, via de regra, não se configuram como ficção no sentido radical do termo e pressupõem o uso de certos clichês temáticos e formais para provocar efeitos pré-estabelecidos. São responsáveis, então, pela formação de leitores semânticos, ou de primeiro nível (ECO, 2003), ou seja, leitores que se prendem somente ao enredo e estabelecem com o texto uma mera relação de espelhamento. Por isso, essas obras têm uma acolhida enorme entre os adolescentes, como a experiência na sala de aula tem demonstrado. Já o leitor que chega ao segundo nível, que se torna um leitor estético, ainda segundo Eco (2003), tem muito a ganhar em relação àquele que permanece no primeiro. A experiência estética desse tipo de leitor implica necessariamente um processo de transformação íntima, como também atesta Wolfgang Iser: A interação [entre autor, texto e leitor] fracassa quando as projeções mútuas dos participantes não sofrem mudança alguma ou quando as projeções do leitor se impõem independentemente do texto. O fracasso aí significa o preenchimento do vazio exclusivamente com as próprias projeções. Como, entretanto, o vazio mobiliza representações projetivas, a relação entre texto e leitor só pode ter êxito mediante a mudança do leitor. Assim o texto constantemente provoca uma multiplicidade de representações do leitor, através da qual a assimetria começa a dar lugar ao campo comum de uma situação. Mas a complexidade da estrutura do texto dificulta a ocupação completa desta situação pelas representações do leitor. O aumento da dificuldade significa que as representações do leitor devem ser abandonadas. Nesta correção, que o texto impõe, da representação mobilizada, forma-se o horizonte de referência da situação. Esta ganha contornos que permitem ao próprio leitor corrigir suas projeções. Só assim ele se torna capaz de experimentar algo que não se encontrava em seu horizonte. (ISER apud COSTA LIMA, 1979, p.88-89)
Na perspectiva que aqui adotamos, são indispensáveis os conceitos de “horizonte de expectativa” e “quebra do horizonte de expectativa”, pensados pela Estética da Recepção e
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assim sistematizados por Glória Bordini e Vera Teixeira Aguiar em relação à formação do leitor: Se a obra corrobora o sistema de valores e normas do leitor, o horizonte de expectativas desse permanece inalterado e sua posição psicológica é de conforto. Não admira que a literatura de massas, pré-fabricadas para satisfazer a concepção que o leitor tem do mundo dentro de uma certa classe social, alcance altos níveis de aceitabilidade. (...) Diante de um texto que se distancia de seu horizonte de expectativas, o leitor, além de responder aos desafios por mera curiosidade ante o novo, precisa adotar uma postura de disponibilidade, permitindo à obra que atue sobre seu esquema de expectativas através das estratégias textuais intencionadas para a veiculação de novas convenções. (BORDINI e AGUIAR, 1993, p. 84)
A valorização das obras se dá na medida em que, em termos temáticos e formais, elas produzem alteração ou expansão do horizonte de expectativas do leitor por se oporem às convenções conhecidas e aceitas por ele. Assim, considerando que a literatura juvenil define-se principalmente por seu destinatário, submeter a obra ao risco da leitura de seu leitor implícito pode contribuir para o estudo desse campo literário e para a reflexão sobre o ensino de literatura. Os dados sobre a recepção da obra foram recolhidos de grupos de discussão na rede social facebook. Tais grupos não foram criados para este trabalho especificamente; eles já estavam em funcionamento havia alguns meses e foram criados para estimular o bate-papo dos alunos sobre os livros que eles liam por livre iniciativa. Era uma forma de registrar suas leituras espontâneas e estimular a troca de livros e de impressões sobre o que haviam lido. Quando foi indicada a obra de leitura obrigatória, e depois de inúmeras atividades de pré-leitura, os alunos foram convidados a comentar suas reações a Todos contra Dante no grupo virtual antes que o livro passasse por uma discussão mediada e organizada pela professora. Regina Zilberman (apud AGUIAR e BORDINI, 1993) arrola inúmeras ordens de convenção constitutivas do horizonte de expectativas a partir do qual autor e leitor concebem/ interpretam a obra: social, intelectual, ideológica, linguística, literária. A esses fatores, acrescentam-se os de ordem afetiva, que provocam adesões ou rejeições por parte do leitor. São espaços de incerteza (os vazios), que constituem a “margem de manobra” e permitem a variação na interpretação e as diferentes ressonâncias na subjetividade dos indivíduos. No caso da obra em questão, os comentários dos alunos quase que invariavelmente começam com a
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expressão de uma reação afetiva ao material lido. Estas reações, em sua maioria, estavam de acordo com o potencial efeito de choque presente na narrativa, principalmente em relação à abordagem temática. Aliás, a maioria dos verbos empregados pelos leitores vão na direção ou do choque ou da adesão afetiva (grifo nossos): Giovanna: O livro me chocou muito, o que mais me chocou foi o fato de ter sido baseado na realidade! Caroline: Eu fiquei muito impressionada com a quantidade absurda de agressões verbais e físicas quando li. Adrielle: É uma tristeza que a história seja baseada em fatos reais! Rayanne: Bem, quando eu li o livro eu senti raiva e tristeza ao mesmo tempo. Arthur: Gente, fiquei com muita raiva dos garotos que fizeram isso com ele!!!!!!!!!!!!!!!! Livro showwwwwwwww!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Marlon: Achei o livro muito bom!!!A história é emocionante e surpreendente ao mesmo tempo. Maria Victória: Eu fiquei chocada e incomodada com os apelidos que davam para Dante. Mas o que me deixou de queixo caído mesmo foi a comunidade "Eu Sacaneio o Dante". Além de tudo isso, não posso dizer que não gostei do livro. É uma pena que tenha sido baseado em fatos reais. Ralph: Comprei o livro e acabei de o ler no mesmo dia. Bem, achei bem impactante o final do livro, sabendo o que aconteceu com o Dante, o resultado final da agressão que fizeram com ele, e depois sabendo ainda mais que isso foi/é uma história real. Julia: E pensar que a história é verdadeira. Eu fiquei horrorizada. Professora, por que a senhora escolheu esse livro? A história é triste demais. Lendo assim na vida dos outros parece ser ainda pior. Elliabh: Meu Deus, um livro muito triste, termina num final triste2.
Raiva e tristeza são os sentimentos que mais aparecem. É possível notarmos ainda na própria linguagem empregada pelos alunos a tentativa de intensificar a reação emocional de
Procuramos retirar dos textos as marcas de “internetês” próprias do ambiente em que foram escritos. Alteramos aspectos relacionados à modalidade escrita (acentuação e ortografia), mas tentamos, o máximo possível, não interferir na estrutura e no conteúdo dos comentários.
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surpresa, choque, impacto (repetição de letras e de sinal de pontuação, interjeições, advérbios de intensidade). Destaquemos também a pergunta da aluna Julia, que revela uma expectativa em relação à literatura baseada no entretenimento e uma indignação com o fato de a professora não ter escolhido algo “legal e divertido”. Ainda assim, mesmo as sensações expressas tendo sido de desconforto, não há avaliações propriamente negativas sobre o livro. Apesar das dificuldades impostas, um aluno faz questão de dizer que o leu no mesmo dia em que comprou e outros dois expressam contentamento com a leitura apesar do “incômodo” e da “raiva”. Podemos perceber ainda a recorrência da alusão à realidade como parâmetro de avaliação da obra, algo esperado em leitores em formação. Repete-se a ideia de que o livro se tona “mais impactante” porque é baseado em fatos em reais, o que nos leva a crer que ideia de ficção para esses leitores é marcada pela noção de espelhamento do real, já que, se fosse uma história totalmente inventada, segundo eles, provavelmente o impacto não seria tão grande. Ter o real como referência é uma característica do leitor semântico (o leitor de primeiro nível de Umberto Eco), que está mais preocupado com o enredo e se contenta com “o que” acontece, e não com o “como” acontece. Para esse leitor de primeiro nível, a adesão afetiva imediata em relação ao tema é primordial. Pelos comentários dos alunos, pudemos perceber que, apesar das ressalvas que alguns leitores fizeram, principalmente em relação à estrutura inusitada, o balanço geral foi positivo. A reação à experimentação, via de regra, foi de estranhamento, como era de se esperar, mas não de recusa: Danielle: Eu li e gostei do livro e tudo mais, só que não consegui entender o final dele, por isso nem sei direito o que posso dizer sobre ele. Ralph: Não entendeu o final? Leia direito então. Thayssa: Eu estou igual a Dani, não entendi muito, mas mesmo assim achei o livro bom ... Rayanne: O livro é bem legal, mas aqueles trechos da Divina Comédia são meio difíceis de entender, eu tive que ler mais de 5 vezes pra entender-acho que entendi. Mellody: Achei os trechos do livro "A Divina Comédia" complicados. Mas não prejudicou a compreensão do livro.
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Cristiano: Professora, que história triste, e eu não entendi como ele estava fazendo um blog enquanto estava em coma, isso não tem sentido! Ana Clara: Achei o livro muito bom, porém confuso! O final como já sabemos foi bem dramático, mas é assim que é a vida. Com derrotas e ganhos. Pedro: Concordo com a Mellody que os trechos de "A Divina Comédia" sejam bem complicados, mas após uma releitura ele fica melhor. Eu meio que fiquei chateado que o livro terminasse assim... Mas eu tenho que falar que Luís Dill, autor do livro foi bem realista em escrever este final. Esse tipo de coisa infelizmente acontece atualmente. Daniel: Eu gostei do livro mas não gostei da reação de Dante. Ele poderia ter falado para a mãe ou o irmão. Quando acabei de ler o livro eu tive que ler algumas páginas novamente para a compreensão. Bheatriz: Professora, eu não entendi uma coisa: Se ele estava em coma, como o Blog continuou? Na primeira vez que a comunidade apareceu no livro, quem era a pessoa que recusou a ideia da comunidade?
Há reconhecimento das dificuldades impostas pelos recursos formais diferenciados, mas os alunos buscam alternativas para superá-las, em vez de interromper a leitura. Uma delas foi a releitura, o que nos interessa bastante, já que, como afirma Jouve, “a releitura é a prática mais apropriada à complexidade dos textos literários”. (JOUVE, 2002, p. 29) Um texto literário que resiste a inúmeras leituras, revelando, a cada ato de interpretação, novas facetas e nuances dos sentidos que podem ser construídos, é com certeza um texto que se opõe àqueles de consumo fácil, que se prestam a leituras mais unívocas. A releitura é, pois, um recurso do leitor estético, que extrai prazer do próprio ato de interpretação. Para se chegar ao segundo nível, é preciso ler muitas vezes, como adverte Umberto Eco (2003). Foi o que um dos alunos sugeriu, de maneira talvez pouco educada, ao dizer que sua colega deveria ler “direito” (ou seja, ler mais uma vez, e de forma vigilante) para entender o que não havia entendido. Outra estratégia empregada pelos alunos foi pedir diretamente por esclarecimentos. Nesses, casos, as perguntas revelaram uma dificuldade inicial de compreender a intencionalidade do arranjo dos textos e perceber que os fatos estavam dispostos de forma não linear. Durante a discussão em sala, e também pelo próprio facebook, as dúvidas foram sanadas pelos próprios colegas. A leitura compartilhada é indispensável para o trabalho com o texto literário em sala de aula, como a prática tem nos mostrado:
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Compartilhar as obras com outras pessoas é importante porque torna possível beneficiar-se da competência dos outros para construir sentido e obter o prazer de entender mais e melhor os livros. Também porque permite experimentar a literatura em sua dimensão socializadora, fazendo com que a pessoa se sinta parte de uma comunidade de leitores com referências e cumplicidades mútuas. (COLOMER, 2007, p. 143)
Em vários comentários, o reconhecimento da dificuldade foi visto como um desafio prazeroso: Maria Clara: Eu amei esse livro! A forma como ele foi distribuído, a sensação que a história passou para mim, a linguagem do autor, TUDO. Adoro livros de reflexão, mas esse se destacou (...). O que eu mais gostei no livro foi como ele foi dividido, e tenho até uma observação com relação a isso mas só farei na aula. Ha! Lívia: A forma que o livro foi escrito influencia na reflexão, pois vemos dois lados do livro, o lado de DANTE E DO BULLYING. A sensação, (que Maria Clara disse) para mim é magnífica, pois conseguimos sentir a angústia disfarçada dele em que ele se mostra firme, entretanto está fraco de tristeza e infelizmente já me senti assim. Sarah: Bom, eu achei um livro muito bom. A estrutura dele é muito interessante e tudo o que acontece te faz refletir não só sobre o tema principal, mas também de como os seres humanos estão em decadência, e de tempo em tempo as pessoas se tornam mais agressivas, violentas e irracionais. Me fez refletir bastante. Eu não costumo chorar lendo livros (na verdade, é quase impossível), porém no final... Isabela: Eu adorei o livro, a ordem não linear deixou a leitura mais dinâmica. Nunca tinha lido um livro como esse, em links, acho que isso me deixou muito curiosa e ansiosa para terminar de ler logo. Pedro: É bem divertido o modo de ler o livro, e curioso também. Gustavo: Primeiramente, fiquei impressionado pelo o fato dele apresentar uma linguagem não formal, apresentando os fatos de uma forma não confusa. Ele também é muito legal, quando eu li, tentei me sentir na pele de Dante, para entender mais ainda a história.
É muito interessante observar, nos exemplos acima, a relação que os leitores fazem entre a forma escolhida pelo autor e o efeito que essa estruturação provoca neles. Estamos diante de uma experiência de leitura diferente daquela revelada nos primeiros comentários reproduzidos, que enfatizavam apenas a reação emocional diante do tema. Ainda que a relação forma-efeito não esteja explícita em todos os comentários, percebemos o olhar afinado de alguns alunos para questões estruturais, que extrapolam o assunto: a linguagem, por exemplo.
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Há quem faça observações muito pertinentes sobre a relação forma-efeito, mas não para propriamente elogiá-la: “Achei a proposta interessante do livro, mas, chega um ponto que ele se torna cansativo de ler com todos aqueles "LINKS", mas mesmo assim é bom, o final também (é claro...).” (Thiago). A reação ao desfecho aberto também é bastante elucidativa, pois nos mostra de forma exemplar o embate entre o horizonte de expectativas do leitor e o efeito provocado por sua quebra: Caroline: Ele chegou a um nível de sofrimento muito alto sozinho, se ele tivesse pedido ajuda a história teria outro final...Mas aí, se isso acontecesse, talvez o livro não fosse tão impactante. Eu fiquei com pena do Dante, mas eu acho que ele também agiu errado em colocar a cabeça de um garoto no vaso por exemplo, mesmo ele estando tão revoltando! Eu queria que tivesse outro final, mas eu entendo que se o final fosse bom não comoveria tanto. Pedro: Terminei há algum tempo o livro "Todos Contra Dante". Ele é bem legal, gostei. O final triste é legal, só não achei tão bom quanto o início e o meio. Bheatriz: Fiquei dias pensando no livro, no final, na maldade daquelas crianças. Gostei do livro, nota: 9 (fiquei triste com o final, não sei se é porque estou acostumada a ler livros com finais felizes.) Gabrielly: Acho que deveria ter um livro "Todos contra Dante 2“. Porque vou admitir que sou meio romântica e dei bastante foco para a Geovana. Será que ela passaria pelo inferno para encontrar Dante? Isabelle: Quanto ao fim trágico, foi bem triste, porém fez do livro mais realístico, isso deve acontecer bastante na vida real, ficamos limitados a ver apenas o passa na TV, sem saber que casos como esse devem ser frequentes. Assim que terminei de ler, fiquei frustrada, eu esperava que tivessem relatos do Dante no paraíso, mas depois pensei melhor e vi que se isso acontecesse, o final do livro faria "propaganda" para religiões, iria começar a falar de vida após a morte e iria perder o foco. Bom, é isso, o Luís Dill acertou em cada detalhe! O livro é um ARRASO!
As avaliações oscilam entre a satisfação e a frustração em relação ao final trágico e pouco conclusivo. O mais interessante é que, quando a frustração é assumida, os alunos deixam transparecer que a causa da decepção é uma expectativa pré-determinada por seus gostos e hábitos leitores: eles esperam um desfecho explicativo e feliz. No entanto, apesar de contrariar suas expectativas, alguns concordam que a solução encontrada pelo autor foi melhor para que se mantivesse o efeito “surpreendente” ou “reflexivo”.
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Em duas turmas, houve ainda uma discussão acirrada sobre o papel desempenhado por uma personagem feminina na agressão contra Dante. Algumas leitoras se disseram surpresas com o fato e desencadearam inúmeros comentários de alunos e alunas que argumentaram contra a visão estereotipada dispensada às meninas. Foi um debate muito produtivo, sobre uma questão não prevista, e que colaborou para que os estudantes repensassem inúmeros dos clichês com que costumamos definir o que seja o feminino e o masculino. A experiência de leitura propiciou, pois, que alguns alunos revissem os pressupostos de sua visão de mundo, alargando, pois, seu horizonte de expectativas. Em razão das restrições impostas por este trabalho, o comentário abaixo servirá de ilustração do debate e servirá de “gancho” para as observações finais: Nathan: Eu poderia falar como isso pode ser um alerta de onde o bullying pode chegar ou falar sobre os outros personagens mas já falaram sobre isso então vou falar sobre o Dante: achei ele um ótimo personagem por ter uma ótima autoestima e por causa dele ter gostado de Far Away do Nickelback, ter tido esperança até o fim e senti ódio de tudo o que poderia ter acontecido com ele e não aconteceu. Eu também concordo com você, Ralph, acho que não devemos ficar surpreendidos com uma menina ter participado da agressão. E sinto raiva desses riquinhos "filhinhos de papai" que não lutaram para ter nada na vida que tem tanto preconceito. Parar de fazer drama até pela aparência dos outros e saber como é ter motivos para reclamar.
Chama a atenção, em primeiro lugar, a forma articulada, passional e virulenta com que o leitor expressa sua reação ao texto, diferentemente das primeiras opiniões que analisamos, que eram mais sucintas e genéricas. Em sala de aula, pudemos observar que tal reação se deu por conta do mecanismo de identificação e projeção: o aluno em questão já havia sido alvo de bullying, por isso elogia a “ótima autoestima” de Dante, que, apesar de vítima, tentou como pôde se resguardar das agressões, especialmente as psicológicas. Outra aluna percebeu a ironia como uma arma de defesa de Dante, chegando a comparar seu comportamento com o de Raimundo, personagem de A terra dos meninos pelados, livro lido pelos alunos antes de Todos contra Dante como forma de aquecimento e porque confirmava o horizonte de expectativas deles em relação à forma narrativa. Um dos tópicos do nosso compartilhamento de leituras em sala foi justamente a comparação entre as duas obras, mas a aluna fez a relação intertextual antes mesmo de proposto o trabalho, demonstrando estar atenta à rede textual que se construía em sala de aula. Vale destacar a corrida dos alunos à biblioteca e à internet em busca de A divina comédia, obrigando-me a providenciar adaptações para satisfazer o afã de leitura...
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Houve outro caso de identificação explícita em outra turma, que propiciou não só discussões interessantíssimas em sala, como também uma visível mudança de atitude da própria aluna em relação a si mesma e a seu protagonismo (antes inexistente) em sala de aula. Mesmo quem não se identificou, tentou “se sentir na pele do Dante”, o que revela o potencial da obra de promover nos leitores jovens o exercício da alteridade e o consequente alargamento de suas experiências pelas vias do olhar do outro. O trabalho com Todos contra Dante nos mostra que é necessário ao professor estar atento aos diferentes níveis de competência leitora presentes no ambiente escolar. Isso, porém, não é um impedimento, mas um pressuposto, já que é desejável propiciar atividades em que os alunos troquem impressões e modos de leitura, de forma que um se beneficie da experiência e da competência do outro. Além disso, é imperativo reconhecer que a narrativa contemporânea para o jovem convida o leitor a mobilizar uma série de conhecimentos complexos próprios da leitura literária, ao mesmo tempo em que se utiliza de recursos que permitem sua adesão afetiva ao texto, podendo, assim, funcionar como fértil material no processo de formação do leitor literário. Referências
AGUIAR, Vera Teixeira e BORDINI, Maria da Glória. Literatura e formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual. São Paulo: Global, 2003. _______________. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007. COSTA LIMA, Luiz. (Org.). A literatura e o leitor: textos de Estética da Recepção. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1979. ECO, Umberto. Ironia intertextual e níveis de leitura. In: ________. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003. JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: editora UNESP, 2002. LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história e histórias. São Paulo: Ática: 1991.
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CARNAVALIZAÇÃO E GROTESCO EM DOIS CONTOS DE LUIZ VILELA Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS) / Karina Torres Machado (UFMS)
Nosso objetivo, neste estudo, é discorrer e descrever como as características da carnavalização e do realismo grotesco, tal como proposto por Bakhtin (1999) em seu livro A cultura popular na Idade média e no Renascimento, manifestam-se na obra do escritor Luiz Vilela, nascido em 1942 em Ituiutaba, MG. Bakhtin (1999) delineia os elementos constituintes das manifestações populares da Idade Média, evidenciando-os pela derrisão impiedosa da subversão dos valores humanos e oficiais, com a contestação da ordem vigente; para isso, caracteriza conteúdos como o riso, a carnavalização, o rebaixamento, o realismo grotesco, fazendo uma leitura original da obra de Rabelais, ao passo que questiona teorias vigentes, oferecendo novos parâmetros sobre a produção literária da época. Bakhtin classifica a obra de Rabelais como o expoente das características que permeiam e expressam a cultura popular na Idade Média e no Renascimento, por colocar-se no tempo como fonte de idéias libertadoras. Tal definição pode ser encontrada na obra do escritor mineiro Luiz Vilela, pela presença conteudística dos elementos definidos por Bakhtin. Vejamos como isso se dá, no âmbito da obra de Luiz Vilela, nos contos “Espetáculo de fé”, do livro Tremor de terra (1967), e “Freiras em Férias”, da coletânea A cabeça (2002). A festa popular na obra de Luiz Vilela Assim como Bakhtin fez com a obra de Rabelais, nosso intento é desvendar a festa popular revelada na obra de Luiz Vilela. Tal associação fundamenta-se no incessante questionamento que Vilela faz sobre a realidade brasileira, na busca de respostas para a depreciação dos valores tradicionais — tão presentes em sua obra — logrado pelo desmascaramento, pelo rebaixamento, pelo riso satírico. Se Rabelais, em seu tempo, objetivou revelar com clareza a língua oficial de seu povo, iluminando a cultura popular de sua época, Vilela, vale-se da “capa de irreverência, brincadeira e ironia” para instalar o “sério, o polêmico, e o humano-compassivo, numa cosmovisão carnavalesca do mundo” (MAJADAS, 2000, p. 110).
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O tom sério, polêmico, instaurado na trama narrativa, desvenda a verdade para, em seguida, tentar instaurar a ordem, remetendo ao referente histórico: “a obra literária transcende a função estética e a catarse momentânea, apontando para possibilidades humanas e sociais além daquelas da verossimilhança da ficção” (RAUER, 2000). Nos contos sob nosso enfoque, a temática religiosa torna-se o expoente do mundo às avessas, posto e questionado como matéria de identificação e reflexão social. A cultura religiosa brasileira, na imagem de Padre Dimas ou na imagem das três freiras, é exposta como revelação do ser humano, com os religiosos vivenciando angústias, comiseração mundana, contradições pessoais e mesquinharias nada santificadas. O conto “Espetáculo de fé” integra Tremor de Terra, primeira coletânea do autor, lançada em 1967. O enredo, linear quanto ao tempo cronológico, encena os preparativos e a chegada da imagem de Nossa Senhora Aparecida a uma pequena cidade do interior. A narrativa descreve o modo pelo qual esse “espetáculo de fé” interfere na vida dos habitantes e determina alguns acontecimentos. A festa que se mescla à vida da população local, convertendo-se em uma segunda existência para os fieis, adentrando temporariamente no imaginário da universalidade e da liberdade das personagens. A praça popular torna-se o palco solene da carnavalização humana, de seu rebaixamento, do riso sarcástico que envolve o realismo grotesco e toda a situação comemorativa, uma vez que em presença da Padroeira do Brasil cria-se uma atmosfera de festa popular que ganha forma de nascimento, crescimento e regeneração, fazendo brotar a cosmovisão carnavalesca do mundo pela liberação provisória das hierarquias. A praça pública, território próprio da cultura não-oficial, constitui um segundo mundo “oficial”, destinado a convergência da quebra das hierarquias, concedendo ao povo o direito de exterritorialidade da ordem; é o momento da liberdade: O padre retomou o hino do ponto em que estava, para novamente interromper e pedir que deixassem livre o espaço ali diante do altar [...] e recomeçou o hino [...] parando novamente em seguida e dessa vez descendo a escadaria e indo em direção à multidão, num passo rápido e decidido, abrindo os braços e dizendo ‘afasta, afasta, afasta’. (VILELA, 1988, p. 27)
A imagem de Padre Dimas descendo as escadarias do altar para abrir passagem para a congregação e para Nossa Senhora afastando o povo com os braços salienta a quebra das regras no ambiente da praça pública, mostrando que nesse espaço o sagrado e o profano, o superior e o inferior adquirem os mesmos direitos; há algo de grotesco na
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intervenção que tentar ordenar a população na praça pública para receber a imagem da santa: Nossa Senhora está chegando [...] o padre tinha a atenção voltada para elas, pedindo que fizessem filas [...] e que não estava vendo fila nenhuma, e dizendo logo depois [...] que fizessem filas bem feitas, para agradar a Nossa Senhora. (VILELA, 1988, p. 27-28)
A figura de Padre Dimas ilustra o descompasso entre a ideologia oficial da ordem e a ação livre do povo em festa, o que deprecia os costumes religiosos. Há uma tentativa de conformar o humano intentada por traz da máscara eclesiástica, entre as menções e obrigações quanto à aparência, as vontades e necessidades, em confronto no espaço público entre os populares em festa e a função institucional organizadora da Igreja. Nesse sentido, Padre Dimas cumpre seu papel, categoricamente, como representantes do velho poder e da velha verdade, o que é logo transformado em boneco carnavalesco escrachado pelo povo em praça pública. É interessante a comparação que podemos estabelecer entre Rabelais e Vilela no que diz respeito ao acerto de contas. Bakhtin (1999, p. 185) afirma que Rabelais “ajusta as contas com esses bonecos de maneira implacável, cruel e alegre. É o tempo de alegria [...] não estraçalha jamais os vivos, deixa-os partir sozinhos, mas obriga-os antes a despir as suas vestes reais ou a suntuosa beca.” Tratamento semelhante ocorre na narrativa de Luiz Vilela. A figura de Padre sai de cena substituída pelo Arcebispo, que assume o comando da celebração como ator principal. Contudo, a autoridade maior que mais realça o rebaixamento não é suficiente, é preciso mais, e em doses pequenas para que o riso e a exteriorização da realidade sejam questionados. Assim, Vilela deixa Padre Dimas partir sozinho para seus aposentos depois de propiciar os espetáculos mais cômicos e desmoralizantes da festa: “Viva Nossa Senhora Aparecida!” [...] e então gritou com tanta força que deve ter perdido o equilíbrio, pois oscilou, batendo com o braço no microfone, que tombou, batendo na cabeça dum coroinha, que gritou de susto e de dor. (VILELA, 1988, p. 28).
Os efeitos cômicos exagerados, representantes do realismo grotesco, provocam o riso regenerador, pois exprime “a verdade sobre o mundo em sua totalidade, sobre a história, sobre o homem.” (BAKHTIN, 1999, p. 57); o riso, tanto para Bakhtin como
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para Vilela, funciona como uma espécie de castigo da arte que verbera contra a sociedade mesmo quando ri dos seres inferiores ou corrompidos. As ações que provocam o riso e, posteriormente, o afastamento do Padre Dimas do tão esperado espetáculo de fé, o transporta para o mundo da consciência, de renovação, opondo-se à adulação e à hipocrisia do mundo ao qual pertence. Desta forma, a festa popular — neste conto de Luiz Vilela — tem por objetivo apontar os “olhos para o futuro e apresentar a sua vitória sobre o passado [...] a vitória da profusão universal dos bens materiais, da liberdade, da igualdade, da fraternidade” (BAKHTIN, 1999, p. 223). Conceitos universalizados, eles estão evocados na imagem de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, mãe e protetora de todos, o que está inscrito em sua origem, pois “foi encontrada num rio por um pescador pobre” (VILELA, 1988, p. 26). Nas palavras de Bakhtin (1999, p. 70 - 71), essas imagens visam fixar o próprio momento de transição e da alternância, a de duas autoridades e duas verdades, a antiga e a nova, a agonizante e a nascente. O ritual e as imagens da festa visavam encarnar o próprio tempo que simultaneamente trazia a morte e a vida, que transformava o antigo em novo, e impedia toda possibilidade de perpetuação.
Somente a partir desta tomada de consciência, Padre Dimas se lembra de um acontecimento parecido, na ocasião um pouco mais sério, em que o médico lhe informara da possibilidade de um enfarto e das demais recomendações, as quais ele ignorara, palavras que agora povoavam sua mente, levando-o a pensar no juízo final: trabalhar menos, quando tanta coisa precisava ser feita, quando um minuto de descanso era um minuto perdido para fazer o bem e um minuto ganho talvez pelas forças do mal? Vigiai e orai, dissera o Mestre, e repreendera os discípulos porque haviam dormido – a quantos esta mesma repreensão não será feita no Dia do Juízo? (VILELA, 1988, p. 29).
A reflexão salienta não mais a autoridade, o ser divino, mas o subordinado de uma entidade maior, reinada e governada pelas palavras de Deus. Após ter seu corpo rebaixado, toma consciência do mundo oficial, onde vivem os homens oprimidos pelo poder. Assim vivencia fase imprescindível para sua renovação. O padre, após seu rebaixamento e o diálogo entre dois mundos, material e corporal, subverte “toda a ordem instituída” fazendo com que “todas as coisas ganhem os contornos do seu avesso” (BRAIT, 2009, p. 90), pois quando se degrada, amortalha-se e semeia-se
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simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor, uma vez que, nos termos de Bakhtin, degradar significa entrar em comunhão com a vida da parte inferior do corpo, a do ventre e dos órgãos genitais (BAKHTIN, 1999, p. 19). Lembremos que Brait e Bakhtin não estudam Vilela, tratam teoricamente do fenômeno do riso, mas a descrição que fazem se encaixa perfeitamente ao discurso engendrado pelo narrador do conto de Luiz Vilela. Em “Espetáculo de fé”, a ambivalência corporal e material lhe assegura, a Padre Dimas, a morte do enviado de Deus para o surgimento do novo mundo, da renovação, do ventre, da terra. Vilela evidencia que o carnaval, entendido como uma “cosmovisão extremamente poderosa e capaz de captar a energia popular” (BRAIT, 2009, p. 78) traduz sujeitos coletivos e não individualizados, possibilitando o diálogo entre dois mundos, o oficial e o não-oficial, que de outra maneira estariam separados — por isso neste aspecto o rebaixamento corporal e material é visto como morte e renovação. A morte, ação de ser devorado ou comido, torna-se uma inquietação que aos poucos vai se corporificando e se materializando no espírito de Padre Dimas. A certeza “de que um dia vai morrer gera no homem um medo imensurável, que o leva à perplexidade e o faz calar-se” (MAJADAS, 2000, p. 49). Aos poucos, tal situação é aceita como metáfora ao esforço feito por ele, enquanto sujeito coletivo, na labuta diária de sua existência como Padre e pastor: “morrer trabalhando por sua maior glória” (VILELA, 1988, p. 29). Note-se que o “sua”, com inicial minúscula, refere-se a si mesmo, a Padre Dimas, embora o contexto sugira que se refira a Deus, citado na frase anterior. Há aqui carnavalização absoluta, com o mortal pecador tornado o próprio Deus? Essa ação, segundo Dimas, não ocorreria por aquele pequeno mal-estar, que poderia ser curado com uma xícara de chá: “por coincidência, apenas havia pensado nisso, ouviu as batidinhas na porta; sentou-se na cama e mandou entrar: a empregada entrou, com a bandeja na mão, caminhou em direção à cama” (VILELA, 1988, p. 30). A ação de beber o chá reitera as acepções do grotesco, por evidenciar o corpo aberto, em interação com o mundo, é a representação do corpo que escapa às próprias fronteiras físicas, devassável, devastando, engolindo o mundo. O chá é o símbolo da renovação, do renascimento, da absorção do mundo antigo. E esse contato, essa absorção do mundo propicia um sentimento de prazer e triunfo: “vislumbrando a nudez da empregada no gesto de ela curvar-se sobre a mesinha, sério e nervoso, a empregada não percebendo nada, porque olhava para o
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açucareiro” (VILELA, 1999, p. 30); assim, Padre Dimas “triunfava do mundo, engoliao em vez de ser engolido por ele” (BAKHTIN, 1999, p. 245). Escutando os passos da empregada que caminha pelo corredor, o sino da celebração, o barulho das pessoas se dispersando após o término do espetáculo, Padre Dimas consagra a renovação do mundo novo, o coroamento do trabalho coletivo de um acontecimento social. Morre coroado não ao lado de Jesus, como conta a Bíblia, mas ao lado de Nossa Senhora Aparecida, a Padroeira do Brasil. Da mesma forma que o bom ladrão, crucificado ao lado de Jesus Cristo por ter se arrependido de seus atos, Padre Dimas é crucificado junto ao término do espetáculo de fé de Nossa Senhora, o que o faz símbolo da renovação que a igreja e a sociedade devem passar. Nesse sentido, sua morte é anunciada no jornal do dia seguinte juntamente com a consagração de seu trabalho maior e outras notícias ligadas à cerimônia Foi um espetáculo de fé notável, admirável [...] embora se registrasse uma notícia desagradável, como a morte do Padre Dimas, ocorrida de maneira súbita na hora da missa, a se calcular pela hora em que foi encontrado morto em seu leito. (VILELA, 1988, p. 30)
Portanto, é por meio dos ritos, dos cultos religiosos das festas populares que a morte e o renascimento, o profano e o divino desenvolvem-se e renovam-se através dos milênios, em meio à atmosfera carnavalizada do mundo. Vilela dessacraliza a conduta religiosa, descreve a festa popular religiosa não como espetáculo específico, mas como cosmovisão capaz de capturar e repensar determinada visão de mundo, “reestruturando os próprios meios de representação da realidade” (BRAIT, 2009, p. 92). Desta forma, “a carnavalização e o grotesco são fenômenos que têm capacidade de revelar os processos da cultura e ao mesmo tempo denunciar, pelo riso, as conflituosas relações que se estabelecem entre os homens” (BRAIT, 2009, p. 93), aproximando o mundo do homem e o homem do mundo, tornando o outro constituinte do discurso do eu e expressão una com sua alteridade.
O riso libertador de “Freiras em férias” O conto “Freiras em férias”, de A cabeça (2002), centra-se no diálogo entre três freiras, com pouca intervenção do narrador, o que faz com que quase todas as informações da trama narrativa sejam deduzidas pelos diálogos construídos; as falas são indicadas por aspas, elemento que confere mais dinamicidade e rapidez aos diálogos,
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sendo a construção do discurso narrativo pelo diálogo uma característica da ficção de Luiz Vilela. É no desnudamento do diálogo, em linguagem simples, objetiva, que a estrutura social do referente histórico salta aos olhos pelo entrechoque de ideologias sociais e a reflexão sobre diferentes modos de ver o mundo expressos pelas personagens. O escritor, ao discernir o religioso do profano, propicia aspectos cômicos e desse modo tece sua crítica ao sujeito coletivo representado pela Igreja Católica. O riso, nesse aspecto, é utilizado tanto como divertimento quanto contestação e sátira, promovendo o desnudamento e renascimento.
Desta forma, o rebaixamento e a ridicularização
constituem os meios mais poderosos de correção. As três freiras encontram-se de férias, em uma pousada, local de convergência entre homens e mulheres como o representado pela praça pública, e por se opor à seriedade oficial da qual as três religiosas fazem parte, promoverá a libertação de seus medos e angústias e explicitará as vontades terrenas que habitam seu mundo corporal: O sujeito ficou ao meu lado, me olhando assim, de ponta a ponta, dos pés à cabeça, e aí ele falou: ‘Oi, gata’, ‘Oi’, eu falei. ‘Curtindo?’ ‘Eu estou, e você?’ ‘Adoidado’, ele falou: ‘ pra ser melhor, só se eu tivesse a companhia de uma gata como você. (VILELA, 2012, p. 55)
O ambiente não-oficial propicia uma linguagem e uma atmosfera licenciosa, diretamente relacionada com o baixo corporal e material. A sátira de Luiz Vilela adequa-se à concepção do riso, proposta por Bakhtin (1999), e mostrar uma outra face da realidade. As atitudes cômicas desvelam o que as convenções religiosas e as regras morais e conveniências sociais tentam ocultar. O encontro de irmã Romilda com o jovem revela seus desejos de conhecer o corpo, a vontade incontrolável de impor sua sexualidade, o que se descobre por meio da comicidade, já que esta “exprime acima de tudo certa inadaptação particular de pessoa à sociedade” (BERGSON, 2004, p. 99-100). As imagens do baixo corporal e material são, primeiramente, destronadas para, em seguida, serem renovadas. Luiz Vilela, nesse sentido, faz uma inovação estrutural, uma vez que não se utiliza das descrições abusivas e exageradas, o que, no caso dessa narrativa, amplifica a sátira pretendida. Em “Freiras em férias”, o grotesco surge que o narrador crie hipérbole, de modo que o realismo grotesco corporal e material salta aos olhos nuançado pelos enunciados dialógicos e opositivos das freiras que se confrontam, entre si e com a praça pública que as rodeia.
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Nas atitudes de Romilda, uma das freiras, nota-se uma vontade sobre-humana de encarar o mundo e os diferentes corpos, de romper com o oficial. Encontramos, em suas falas a tentativa de ultrapassar o corpo, seu interesse por tudo que sai deste, como a força que descompassa atuando de baixo para cima na constante e contínua contestação e renovação. “E aí, aí ele falou ‘Qual que vale mais? O seu Cristo, que a gente compra em qualquer camelô da esquina, ou o meu que foi gravado com dor na minha carne?” (VILELA, 2012, p. 56). Por meio da oralidade simultânea, do uso de frases curtas, da fragmentação do enunciado, o diálogo constrói outra face da realidade, que confronta regras oficiais e cria um movimento para o baixo corporal, para a desordem do realismo grotesco. A provocação do moço faz uma nova ordem ser liberada, cujo objetivo é libertar as forças contrárias que se cumprem sob o oficializado; dessa inversão surgem os vícios, os atos pecaminosos camuflados no interior da instituição religiosa e desconstruídos pelo meio social, como elucida as assertivas religiosas de Romilda. Falas que a conduzem ao pecado, à liberdade e ao poder. Nesse contexto emerge o mundo às avessas, carnavalizado: “O pior foi à hora que ele virou, e aí... Ai, sabem? Aí eu vi que estava com uma bruta duma ereição.” “Ereição, Irmã Romilda?” “Ereição?” “Então fala como que é...” “Ereção”, disse Mariona. “Não tem um pauzinho no meio.” “Não? Você tem certeza que não tem um pauzinho no meio? Pois eu acho que tem. Tem sim. Só que não é um pauzinho: é um pauzão”. (VILELA, 2012, p. 57)
As falas eludicam o ingresso de Romilda ao mundo não-oficial como decorrência da ação social que introduz “um modo de correção e de abrandamento da rigidez dos hábitos contraídos alhures” (BERGSON, 2004, p. 101), riso que surge como“uma espécie de trote social”(BERGSON, 2004, p.101). Essa inicialização ao mundo apresenta-se cômica por empreender o rebaixamento da irmandade às vontades humanas, já que a mesma não sabe pronunciar o estado de ânimo que se instaura no rapaz, revelando seu total desconhecimento dos vocábulos sexuais, normalmente direcionados para o rebaixamento e traço das formas do riso popular, por transferir tudo o que é elevado e ideal para o plano material do corpo e da terra.
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A partir da perspectiva bakhtiniana da carnavalização, a quebra do ritual religioso e a hipocrisia se mesclam, libertando-se temporariamente das verdades e dos preceitos dominantes da Igreja Católica para revelar os anseios de seres humanos comuns, que tentam sobressair-se da máscara existencialista por meio do discurso do outro: são “os ecos do riso dos carnavais públicos que repercutiam dentro dos muros dos mosteiros” (BAKHTIN, 1999, p. 13). Assim o corpo vai se impondo na existência velada de Romilda e Blandina e separado do mundo ultrapassa-se a si mesmo, culminando na vontade enlouquecedora de deixar a congregação, a capelinha onde os pecados são vividos às ocultas, e viver essa nova vida todos os dias: “Isso é pecado, Irmã Romilda” “Pecado...” “Pecamos por pensamento, palavra e obras.” “Sabe onde está o pecado, Mariona? Sabe? Sabe onde ele ficou? O pecado ficou lá, naquela capelinha mofada e fedorenta.” “Hum?” “Sabia? O pecado ficou lá, naquela capelinha mofada e fedorenta, entre aqueles santos e velas.” (VILELA, 2012, p. 57).
A personagem Romilda emerge, nos termos da teoria de Bakhtin, como “a negação dirigida contra o mundo oficial” (BAKHTIN, 1999, p. 363). Romilda é tecida na trama narrativa como libertadora das interdições que pesam sobre o ser humano, restrições consagradas pela religião a fim de esmagar o desejo que lateja em cada ser humano, mesmo nas freiras. O conto de Vilela, desse modo, realiza um dos preceitos da carnavalização, pois a narrativa torna-se “a encarnação ‘ao avesso’ do mundo das possibilidades humanas limitadas, do exercício das funções oficiais e das interdições oficiais” (BAKHTIN, 1999, p. 364). Irmã Mariona, coadjuvada por Irmã Maria Imaculada, representa o paradigma do sério, do resgate da normalidade, e simboliza a racionalidade, o mundo cristão, ao defender a restauração da paz e da salvação de suas companheiras. Maria Imaculada, e talvez Mariona, é a escolhida, a chamada por Deus para trazer o remédio da salvação da humanidade. Assim, o conto opõe representantes de Eva (pecadora, traidora e disseminadora do veneno mortal) e Maria, mãe de Jesus, aquela escolhida por Deus para restaurar a fé. As falas disciplinadoras e inquisidoras de Irmã Mariona funcionam como luz aos votos feitos, anteriormente, pelas freiras; buscam resgatar e preservar à face religiosa
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das carmelitas e companheiras. E, por não representar o mundo não-oficial instaurado é rebaixada, aniquilada, destronada e ridiculariza pelas Irmãs: “Se o nariz de Mariona crescesse igual ao do Pinóquio... Não ia nem ter jeito da gente entrar nessa piscina...” “Vocês estão sendo injustas comigo...” “Injustas...” “Além disso, a minha perna inchada anda doendo.” “Essa sua perna inchada serve pra tudo, hem Mariona? Você não tem vergonha?”. (VILELA, 2012, p. 58-59).
O riso completa o rebaixamento da ideologia religiosa, representada por Irmã Maria Imaculada, que se torna divertimento ligeiro das outras duas, sofrendo “uma espécie de castigo útil que a sociedade usa para os seres inferiores e corrompidos” (BAKHTIN, 1999, p. 58), para em seguida, instaurar o mundo carnavalizado: “Dá vontade de ficar aqui, nessa piscina, para o resto da vida...” “Dá mesmo...”, disse Romilda. “A congregação podia derrubar aquela capelinha e fazer uma piscina lá, né?”[...] “Isso é uma heresia. Aquela capela é um tesouro.” “Um tesouro e um ninho de morcegos”. (VILELA, 2012, p. 59).
A derrubada da capelinha histórica — de resto ridicularizada como “ninho de morcegos” — é a metáfora do abandono, do aniquilamento dos ideais religiosos antigos em prol de rumos novos, de mundo que renasce, ressurge atualizado com a necessidade de seu tempo e que faz Maria Imaculada tomar ciência de alguns acontecimentos grotescos que ocorrem dentro do mosteiro, como a provável relação amorosa de Romilda e Blandina, e também do desejo orgástico de Romilda: “Bom mesmo é se isso fosse nosso”, disse Romilda, “só nosso e de mais ninguém. Aí a gente podia vir quantas vezes quisesse, sem ter de pagar nada. E, o melhor, a gente podia ficar aqui inteiramente sem roupa...” “Rô...” “A gente peladinha nessa água quente, já pensaram que delícia? Eu acho que eu ia ter um orgasmo.” (VILELA, 2012, p. 59).
O desejo orgástico de Irmã Romilda metaforiza-se na sede de atingir um novo estágio e entregar-se ao mundo material e corporal, expondo que o erotismo é uma carência humana: “[...] tanto os homens como as mulheres têm uma necessidade desesperada do que é extraordinário. De tudo o que é superior a vida cotidiana [...]” ALBERONI (1986, p. 39). Trata-se do “princípio de absorção [...] e, ao mesmo tempo, de nascimento e ressurreição” (BAKHTIN, 1999, p. 18).
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O erotismo revela-se um desejo que se concretiza na caminhada de revelar os desejos humanos que existem em todos “Antes de ser freira eu sou mulher. Sabia? Eu não nasci freira: eu nasci mulher” (VILELA, 2012, p. 60). Assim, o erotismo disfarçado anteriormente, agora vem à cena, gozar e morrer tornam-se palavras sinônimas. É pelo orgasmo pressentido pela Irmã Romilda que os dois mundos fundem-se, propiciando a ausência do limite, da morte como meio que dá a vida, rompendo a dicotomia entre as visões naturais, científicas e religiosas. Este estado de ânimo leva Mariona a pensar que “Tem dia [...] que a matéria venceu [...] que o espírito desapareceu da face da terra e que Deus, cansado de pelejar com o homem, retirou-se para os confins do firmamento.” (VILELA, 1999, p. 61). No entanto, o espírito carnavalesco só dura o período da festa: “o sentimento do tempo e da sucessão das estações que lhes é próprio, amplia-se, aprofunda-se e abarca os fenômenos sociais e históricos do tempo” (BAKHTIN, 1999, p. 22) convertendo-se no principal meio de expressão ideológica da época. O nascimento desse novo mundo ganha vitalidade no pedido de rezar uma avemaria, feito por Irmã Imaculada, seguido das discussões que deverão ser a pauta no próximo retiro, fatos que culminam no banquete a ser saboreado por elas, e, principalmente, por Mariona, que cumpriu seu trabalho e agora receberá a recompensa.
Os mundo carnavalizado dos contos de Luiz Vilela A análise dos contos “Espetáculo de fé” e “Freiras em férias”, sob os aspectos da carnavalização e do realismo grotesco bakhtiniano, revela que o mundo às avessas construído por Luiz Vilela visa, de forma satírica e cômica, apontar excessos e desvios do mundo oficial. A temática do mundo às avessas mostra situações invertidas que se destacam do comportamento oficializado, sendo contrastada pela presença de uma consciência artesanal crítica que funciona como elemento organizador do caos estabelecido. A narrativa que apresenta a desordem embute sempre a possibilidade de reestabelecer a ordem. Dessa maneira, os dois contos, carregados da visão carnavalesca de mundo, tem a semente da regeneração que o faz voltar ao que era, utilizando o terrível e o grotesco não como algo aterrorizador, terrível, mas como prenúncio do inofensivo. Medos são
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vencidos no mundo carnavalizado pelo riso, transfigurado em alegres espantalhos cômicos, pois“[a] vida carnavalizada é uma paródia”, tão só “[...] uma segunda ida que escapa da alienação das relações hierárquicas; uma libertação temporária da verdade dominante” (CHEVALIER & GHEEBRANT, 1990, p. 783). A libertação da realidade ocorre graças ao riso, elemento revelador das incongruências e contradições por “relativizar as coisas sérias, as verdades estabelecidas” (FIORIN, 2006, p. 96), aliando a “negação (a zombaria, o motejo, a gozação) e a afirmação (a alegria)”, uma vez que O riso conduz a percepção da existência, dessacraliza e relativiza o poder, desvirtuando o unilinguísmo operante dos valores e a imutabilidade dos discursos oficiais. Exprime a duplicidade da existência humana, da ambivalência dicotômica nascimento e morte / bênção e maldição, a fim de estabelecer o mundo às avessas, carnavalizado, sem interdições, restrições e normas que organizam a via social. Por meio dele as relações humanas modificam-se, já que as condutas estão liberadas das ideologias, das hierarquias sociais.
(FIORIN, 2006, p. 96).
Portanto, nesses dois contos de Luiz Vilela, por meio do riso paródico, o vício, as angústias e as interioridades são levados à praça pública, desnudando e criando um mundo particular de exteriorização do homem, que preserva os valores impostos e rebela-se, faz burla contra eles, obtendo como resultado a paródia como ação que provoca o riso — riso que é sátira, que se faz consciência de mundo, mas que em sua regeneração recompõe o que pretende derruir.
Referências ALBERONI, F. O erotismo: fantasias e realidades do amor e da sedução. São Paulo: Círculo do Livro, 1986. BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. 4 ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: UNB, 1999. BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004. BRAIT, B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. CHEVALIER, J.; GHEEBRANT, A. Dicionário de Símbolos. 3 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.
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FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006. MAJADAS, W de S. O diálogo da compaixão na obra de Luz Vilela. Uberlândia, MG: Rauer Livros, 2000. RAUER [Rauer Ribeiro Rodrigues]. Luiz Vilela: riso, ironia e sátira. LITERATURA, Jornal Diário Regional, Ituiutaba, MG, 30 de maio de 2003. Disponível em: http://www.verdestrigos.org/sitenovo/site/cronica_ver.asp?id=87. Acesso em: 11/07/2014. VILELA, Luiz. Os melhores contos. São Paulo: Global, 1988. VILELA, Luiz. A cabeça. São Paulo: Cosac & Naify, 2012.
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SANTIAGO NAZARIAN E SEU EXISTENCIALISMO BIZARRO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A OBRA MASTIGANDO HUMANOS
Rayssa Duarte Marques Cabral (UFMT)1 Resumo Santiago Nazarian é um autor brasileiro da chamada Geração 00. Em 2007, foi eleito um dos autores jovens (com menos de 39 anos) mais importantes da América Latina pelo júri do Hay Festival em Bogotá (Bogotá39), Capital Mundial do Livro. Apesar de jovem, o autor já tem oito livros publicados – sete romances e um livro de contos. Seu projeto literário tem um estilo que mistura referências clássicas da literatura existencialista, suspense, filmes de terror trash, erotismo, androginia, répteis, elementos urbanos e referências da cultura pop – estilo classificado pelo próprio autor como um “existencialismo bizarro”. Mastigando humanos (2013), descrito pelo próprio autor como “um improvável romance psicodélico narrado por um jacaré de esgoto” é sua quarta obra publicada e tem sua importância marcada por dois fatores: foi adotada pelo Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) em 2008; e, em 2013, tornou-se leitura obrigatória do vestibular da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Fatos esses que demonstram que o autor tem uma obra com valor estético e temático que valem uma apreciação acadêmica. Sendo assim, além de apresentar o autor e alguns elementos de seu estilo literário, a presente pesquisa tem como objetivo fazer algumas considerações, em particular, sobre a obra Mastigando Humanos, como forma de exemplificar sua excentricidade e ousadia literária. Palavras-chave: Nazarian.
Literatura
contemporânea;
Existencialismo
bizarro;
Santiago
Este trabalho tem como objeto de estudo o romance Mastigando humanos (2013), do escritor brasileiro Santiago Nazarian. Longe de querer delimitar seu arcabouço criativo, pretende-se, nesta ocasião, traçar uma espécie de perfil literário do autor considerando suas obras publicadas até o momento. Contudo, por ser tarefa por
Rayssa Duarte Marques Cabral é licenciada em Letras, com habilitação em língua inglesa e literaturas de língua inglesa pela UFMT, bacharela em Direito pela UNIC, especialista em Língua Portuguesa pela UFMT e, atualmente, é mestranda em Estudos de Linguagem, área de concentração: Estudos Literários, linha de pesquisa: Literatura, outras artes, memórias e fronteiras, na Universidade Federal de Mato Grosso, em Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. E-mail: [email protected]
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demais complexa, nesta oportunidade, será apresentada e analisada com maior enfoque a obra já referida e que dá título ao trabalho. Santiago Nazarian é um escritor, tradutor, roteirista para a televisão e colaborador em diversos periódicos. É o que podemos chamar de um verdadeiro “escritor profissional”, pois vive única e exclusivamente de sua escrita (literária ou não). Nomes como Beatriz Resende (2008) e Karl Erik Schøllhamer (2011) classificam-no como representante da atual Literatura Brasileira Contemporânea; enquanto Nelson de Oliveira (2011) foi ainda mais específico, rotulando-o como um dos nomes da chamada Geração Zero Zero de escritores. Nascido em São Paulo, em 12 de maio de 1977, Nazarian é filho do artista plástico Guilherme de Faria e da também escritora Elisa Nazarian. Antes de mergulhar na carreira literária, foi vendedor de livraria, redator de publicidade (disque-horóscopo e disque-sexo), professor de inglês, praticou body art e viajou pelo mundo – todas essas suas vivências refletem em sua obra literária, inclusive. O autor adota uma postura bastante pop: tem um blog há 10 anos, o Jardim Bizarro (www.santiagonazarian.blogspot.com.br), e um perfil no Facebook, onde comenta acerca de sua vida e obra, seu processo de criação, suas experiências como escritor no Brasil, inclusive suas frustrações e críticas. Além de sua participação efetiva na rede mundial de computadores, Nazarian também circula pelas grandes feiras literárias, dentre elas a FLIP – Feira Literária Internacional de Parati e a Fliaraxá – Festival Literário de Araxá; e faz aparições em programas de televisão, tendo participado várias vezes do Programa do Jô, na Rede Globo de Televisão. Além das postagens do blog – há, inclusive, alguns contos publicados por lá – ele, até o momento, publicou oito livros, dentre eles sete romances e um livro de contos, os quais serão, ainda que de modo breve, apresentados a seguir. Olívio (2003) foi o primeiro livro publicado pelo autor, trata-se de um romance urbano sobre um jovem sem grandes aspirações que cai numa noitada de sexo, drogas e morte. A obra foi vencedora do Prêmio Fundação Conrado Wessel de Literatura de 2002, sendo a única vez que o prêmio foi dirigido a escritores inéditos. Como consequência da vitória, o romance, talvez o mais “tradicional” do autor, foi publicado.
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Um fato curioso é que a primeira obra escrita por Nazarian foi, na verdade, A morte sem nome (2004), contudo, o autor considerou Olívio como mais “adequada” para concorrer à premiação. Sua segunda obra é, novamente, um romance, desta vez narrado por uma suicida serial, Lorena – uma mulher que se mata a cada capítulo de uma maneira diferente, mas que sempre volta para continuar contando sua história e seus suicídios. Na sequência, lançou Feriado de mim mesmo (2005)2: um thriller minimalista no qual um solitário tradutor e aspirante a escritor acredita que seu apartamento está sendo invadido. A obra, que já foi adaptada para o teatro, também tem seus direitos cedidos ao cinema. No ano seguinte, veio o seu quarto livro (com uma surpreendente média de um livro por ano), Mastigando Humanos: um romance psicodélico (2006). Seu enredo trata de Victório, um jacaré que narra sua própria trajetória de vida, do Pantanal para o esgoto e sua posterior jornada urbana. A obra foi adotada pelo Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) em 2008; e, em 2013, tornou-se leitura obrigatória do vestibular da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). No mesmo ano de 2013, foi lançada uma nova edição do livro, além de ter sido publicado na Itália e na Espanha. Em 2007, Nazarian foi eleito um dos autores jovens (com menos de 39 anos) mais importantes da América Latina pelo júri do Hay Festival em Bogotá (Bogotá39), Capital Mundial do Livro. Com um hiato de produção de dois anos sem publicar, em 2009, Nazarian lançou seu quinto romance: O Prédio, o Tédio e o Menino Cego. Trata-se de um bizarro “romance de (de)formação” em que sete meninos, entrando na adolescência, apaixonam-se por uma professora infanticida. Neste livro, o de mais fôlego até então, percebe-se uma nova fase do autor, que deixa um pouco de lado sua espontaneidade e passa a mostrar um lado mais técnico do fazer literário. Em 2011, ele compila seu primeiro livro de contos, com o inusitado nome de Pornofantasma, com histórias longas (contos longos) de sexo e morte. Vale ressaltar
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Feriado de mim mesmo (2005) é a obra que é objeto de estudo da minha pesquisa realizada no mestrado.
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que vários deles foram publicadas também separadamente em antologias na Alemanha, Espanha, Colômbia, México, Estados Unidos e Hungria. No ano seguinte, em 2012, publicou Garotos Malditos, romance “juvenil” protagonizado por Ludo, um adolescente descolado que vai estudar num colégio para monstros. A obra foi contemplada no Programa Petrobrás Cultural e mostrou que Nazarian sabe escrever para o público adolescente sem deixar de lado seu estilo já bastante definido, repleto de bizarrices e humor negro. Em 2014, depois de anos sem lançar um romance “adulto”, publicou, pela Record, Biofobia, cuja história retrata a crise de meia-idade de um rockeiro, em conjunto com seu confronto com a natureza, é o retorno do autor ao thriller, característica marcante em sua escrita, principalmente em Feriado de mim mesmo e O prédio, o tédio e o menino cego. Em resumo, o projeto literário de Nazarian tem um estilo que mistura referências clássicas da literatura existencialista, suspense, filmes de terror trash, erotismo, androginia, répteis, elementos urbanos e referências da cultura pop, sendo classificado por ele mesmo como um estilo “existencialista bizarro”, como na entrevista ao Programa Metrópolis da TV Cultura3, ocasião em que declarou que: Eu gosto desse termo [existencialismo bizarro], se tem que dar um termo, né? Eu sou na verdade um escritor de terror enrustido, porque eu gostaria de escrever livros de terror e tal, mas eu também tenho uma carga literária. Então o existencialismo bizarro eu acho que contempla esses dois. Tem a coisa existencialista, né? Mais profunda, as questões do ser humano e mas também tem o lado trash, o lado do terror, que é o lado bizarro. (Fragmento de entrevista. NAZARIAN)
Na mesma ocasião, a Nazarian foi perguntado sobre o seu papel como escritor e o seu posicionamento no mercado editorial. Considerando ter ele começado muito jovem, sentiria ele uma diferença no seu papel no mercado editorial? Uma pressão desse mercado em cima da sua literatura? Ao que o autor respondeu: Eu não tenho papel nenhum na literatura. Eu, na verdade, escrevi esse livro [Biofobia] meio pensando nisso assim: não tenho papel nenhum na literatura contemporânea, não tenho... não sou colocado na lista dos 3
Disponível em: . Acesso em 20 set. 2014.
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melhores... É estranho estar no lado B no Brasil que já tem tão poucos leitores, né? O lado A já é tão... já é tão... menosprezado. E estar nesse lado B, que eu, que eu concordo em certa forma, né? Eu acho que eu faço uma literatura alternativa. Até minha própria agente falou: “Santiago, você não é um escritor maisntream.”, né? Tem essa coisa do alternativo, pra não dizer underground, porque eu não consigo me ver como um cara underground assim. Mas tem esse pé, mas ao mesmo tempo a gente tem que brigar sempre pra conquistar mais espaço. Essa literatura que eu faço que é um pouco estranha que tem essa referência pop, mas também não é uma literatura comercial. [...] Em geral meus livros são elogiados [...] diferente, estranho, original [...] mas nunca “o melhor”. (Fragmento de entrevista. NAZARIAN)
Sendo assim, após considerar essa entrevista, notamos que o autor tem noção de sua estética própria e que contribui para a sua manutenção, se auto-classificando e criando uma imagem própria como escritor. Sua figura e suas declarações fazem parte de um todo que não pode ser dividido em “vida e obra”, são elas faces da mesma moeda. Contudo, ao contrário do que possa parecer ao primeiro olhar, não pretendemos aqui aplicar o já tão ultrapassado “biografismo”, método de análise em que: Acreditava-se que o papel de quem analisa uma obra deveria ser o de explica-la, de dar uma solução para os enigmas formulados, esclarecendo os pontos obscuros. Tratava-se, portanto, de estabelecer a verdade da obra. Para isso, buscavam-se as causas de cada texto, descobertas através do estudo dos dados biográficos do autor. Seria possível, segundo essa perspectiva, preencher as indagações do texto com as respostas proporcionadas pela vida de quem o criou. (SANTOS e OLIVEIRA, 2001, p. 10-11)
Não. Trata-se de uma outra coisa. Santos e Oliveira (2001) apresentam-nos um “novo olhar ao escritor” ao considerar que a imagem do autor também é responsável pela constituição de um texto. Isso porque: Todos nós convivemos com o fato de que nosso ser só existe enquanto imagem para a sociedade em que vivemos. Assim, o escritor não veicula apenas os textos que escreve, mas também o texto de si mesmo, no qual ele desempenha o papel de escritor. Nesse sentido, também o autor é um sujeito ficcional. Entrevistas em programas de televisão, reportagens de jornal, declarações em eventos, resenhas, biografias, fotos em revistas – tudo isso compõe o texto do autor. (SANTOS e OLIVEIRA, 2011, p. 16)
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Nazarian é um escritor que participa de Feiras e Festas literárias, que vai a programas de televisão, que interage com seus leitores e críticos pela internet por sua conta no Facebook e por um blog pessoal. Além de suas “micro” biografias que constam nas orelhas de seus livros também temos: as fotos e os textos (literários ou não) que ele publica na internet, levantando sempre a bandeira de sua estética existencialista e bizarra. Diante disso, torna-se possível considerar que a figura excêntrica de Nazarian deve ser consumida com sua literatura. Nesse mesmo sentido, completam os estudiosos: Um texto que é veiculado paralelamente à própria obra. Pode ser instigante, para o leitor e o crítico atuais, comparar estes dois textos: o produzido pelo escritor, e aquele que se produz do escritor. De fato, são dois textos intimamente associados. O autor que encontramos dentro do livro afeta a imagem do autor que acompanhamos fora do livro. Do mesmo modo, a imagem que formamos de um autor influencia a maneira como interagimos com as características de seu perfil propriamente literário, sobretudo na época atual, em que são intensas as estratégias de marketing, em que o nome do autor tende a se transformar em griffe. (SANTOS e OLIVEIRA, 2011, p. 16)
No caso em questão, tendo em vista a era digital na qual estamos inseridos, com a cibercultura e, mais especificamente, as redes sociais, é possível identificarmos uma situação bastante diversa de outras épocas, com autores muito mais próximos de seus leitores. Nesse contexto, ao fazer um perfil no Facebook, o autor está criando uma autoimagem ficcional que contribui para a sua projeção como escritor, mas também que o identifica com certo estilo e características individualizadoras que poderão, ou não, ser encontradas em suas obras. Outro fator que demonstra que a imagem de Nazarian não pode ser desconsiderada ao se fazer uma análise de seu perfil estético como escritor, e somente como tal, são os elementos recorrentes em suas obras: garotos com franja, andrógenos, répteis, efeitos psicodélicos, elementos urbanos etc. Exclui-se, portanto, para este tipo de análise, considerações acerca de sua infância, adolescência e vida pessoal, focando-se apenas no perfil que o próprio autor cria de si em todos as oportunidades que lhe aparecem.
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Ainda são poucos os trabalhos encontrados sobre o autor. Mas a crítica acadêmica não vêm se mostrado indiferente a sua obra. Para Wellington Futado Ramos (2011, p. 01), por exemplo, “Mortos-vivos, zumbis, sangue, morte, suicídio, horror são palavras comuns no vocabulário do escritor”. O que não difere muito da opinião de Maria Fernanda Garbero de Aragão (2012, p. 09): “[...] em Santiago Nazarian é possível ler um apelo ao universo ficcional das histórias de terror que se inscrevem na linhagem do bizarro.”. Aileen El-Kadi relata, em seu trabalho, sua experiência com a leitura da obra do escritor: A primeira vez que li um texto de Santiago Nazarian tive a impressão de estar diante de uma combinação de Twilight, os irmãos Grimm, fórmulas freudianas clichês e o imaginário do soft porn adolescente. Longe de essa apreciação simplista ser de caráter negativo, considero que ela reflete certa peculiaridade da narrativa jovem, ao dialogar com gêneros e subgêneros de fontes diversas como o melodrama do século XIX, os cartoons, o romance gótico e a pornografia, por exemplo. (EL-KADI, 2013, p. 261)
Logo, percebemos que a excentricidade de Nazarian vem sendo reconhecida. Tanto é assim que em Mastigando humanos (2006) ela atinge seu auge ao considerarmos: é o quarto romance do autor, sendo o primeiro a tomar animais e objetos como personagens falantes (ou não), traz muitos elementos da cultura pop, faz referência às estações de metrô de São Paulo, Paris e Londres. Quanto ao enredo, temos um jacaré, Victório, que fala, pensa e escreve, contanos a sua história: ele sai do Pantanal e vai parar no esgoto de uma grande cidade. Lá faz alguns amigos de outras espécies. Tudo vai bem até que os ratos passam a controlar a entrada e saída dos moradores do esgoto. Quando ocorre o primeiro conflito. Os humanos acabam abrindo o esgoto e levam o jacaré para a universidade, local em que estuda e se torna professor. Apesar disso, seu sonho é ser um escritor de ficção, ainda que sua psicóloga o considere mais talentoso para a filosofia. Começa a ter problemas na instituição quando, sem querer, acaba por devorar um aluno. Perde o cargo de coordenador do centro de racionalidades e sai da universidade. Vai parar em um hotel em que se dedica a escrever, local em que conhece seu ídolo literário que faz considerações sobre seu primeiro livro.
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Sua obra é, sim, existencialista, como o próprio Nazarian define, conforme podemos comprovar no seguinte trecho: É sobre a vida que quero falar! Ah! A vida nos meus ossos, no meu sangue, na minha carne. A carne na minha boca, no meu maxilar, a mastigar. Ah, não venham com essa de que nós – crocodilianos – não mastigamos. Se vocês tivessem dentes como os meus, e consciência sobre eles, não descansariam suas mandíbulas um minuto. Também não dizem que jacarés não podem escrever? Isso é tudo lenda, lenda, assim como a lenda dos jacarés nos subterrâneos... no fundo somos todos iguais. No fundo, somos todos animais. No fundo do mar, do esgoto, da terra. Todos a agir, apenas alguns a pensar. Os que pensam, pensam, pensam sobre suas ações, as mesmas ações dos outros, não mudam em nada os atos em si. Talvez para que aqueles que não pensam possam se identificar. E os que não pensam possam ler e refletir, e continuar, para não afundar. (NAZARIAN, 2013, p. 9-10)
Sabemos que o existencialismo é um conjunto de teorias formuladas no século XX que se caracterizam pela inclusão da realidade concreta do indivíduo (sua mundanidade, angústia, morte etc.) no centro da especulação filosófica, em polêmica com doutrinas racionalistas que dissolvem a subjetividade individual em sistemas conceituais abstratos e universalistas. A bizarrice dessas especulações, dessas reflexões que podemos encontrar na narrativa, consiste no fato de que quem as faz é um jacaré, um animal irracional e que, por isso mesmo, não teria consciência de sua existência. No que se refere ao espaço que, por definição simplória, é o lugar em que se passa a ação numa narrativa. No romance é possível perceber que há um macro-espaço urbano, com a apresentação de três micro-espaços: o esgoto, a universidade e o hotel. O espaço urbano já se mostra como uma oposição ao protagonista, na medida em que o ambiente rural seria a ele, um jacaré, mais apropriado. Contudo, já de início, ele nos explica o porquê dessa transgressão: queria sair de casa e “provar o gosto dos subterrâneos”, do underground. Os personagens do romance têm nomes de estações de metrô. A mudança espacial do protagonista é diretamente relacionada à alteração das cidades em que se localizam as estações. No esgoto, temos estações de São Paulo (Ex: Brás, Vergueiro, Ana Rosa, Artur Alvim, Anhangabaú, Patriarca), na Universidade – estações de Paris
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(Ex: Goncourt, Richard Lenoir, Laumière), no hotel – estações de Londres (Ex: Picadilly, Stratford, Brixton...). Também percebemos o deslocamento de alguns personagens: Laumière – apesar de aparecer no esgoto, é uma estação de metrô de Paris. O personagem, um lagostim, representa uma espécie de “passaporte” de Victório para a Universidade; Santana – personagem do esgoto, reaparece alterada na Universidade, assim como Victório; Artur Alvim – personagem do esgoto e que reaparece no hotel. É o responsável pelo retorno de Victória “às origens”, ao seu ato de mastigar humanos. O narrador autodiegético da história é Victório, um jacaré, que não só apresenta reflexões e especulações sobre tudo e todos, mas também interage com o seu narratário, senão vejamos: “Não preciso que acreditem. O mérito não está na verossimilhança. O importante é que, por eu ter passado pelo que passei eu tenho o que contar, pois não posso inventar. Não, esse talento eu ainda não tenho.” (NAZARIAN, 2013, p. 8-9) Diante dessa breves considerações sobre o autor e um de seus romances, podemos dizer que Santiago Nazarian, apesar de jovem, já possui um número considerável de obras literárias que podem ser facilmente identificadas como de sua autoria, uma vez que o estilo do autor é demarcado pela mistura de referências existencialistas, suspense, filmes de terror trash, erotismo, androginia, répteis, elementos urbanos e referências da cultura pop. Sua obra Mastigando humanos é muito rica, apresentando muitos aspectos passíveis de análise. Apesar de ser a única obra do autor que tem esse caráter “alegórico”, com personagens animais, é possível visualizar o autor por detrás dela. Referências EL-KADI, Aileen. Os fantasmas pornô de Santiago Nazarian e seus adolescentes bizarros. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 41, p. 261-268, jan./jun.
2013.
Disponível
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________.
No
eterno
banco
de
reservas.
2014.
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PERFIL DE LEITORES INGRESSANTES NO INSTITUTO CÂMPUS JIPARANÁ IFRO Regiani Leal Dalla Martha Couto (IFRO)1 Dioneia Foschiani Helbel (IFRO)2
A pesquisa teve por escopo principal identificar o perfil dos leitores ingressantes nos cursos técnicos integrados ao ensino médio do Instituto Federal de Rondônia, câmpus Ji-Paraná, verificando a função social da leitura para esses alunos. Para atingir esse objetivo, valemo-nos de pesquisas bibliográficas e de campo. Embasamo-nos, principalmente, em Bamberger (1975), Bakhtin (1992), Geraldi (1997; 1999; 2001), Lajolo (1993), Silva (2005), entre outros. Como instrumento de coleta de dados, utilizamos o questionário com perguntas mistas que nortearam as análises para os seguintes aspectos: a) o grau de importância da leitura; b) dificuldades com a leitura; c) gêneros preferidos; d) influências na formação do leitor. Os resultados apresentam as percepções dos alunos investigados quanto ao valor que atribuem à leitura e aos gêneros escolhidos, bem como apontam os impactos causados pela influência do meio social dos leitores investigados, no que tange à família e à escola. Os dados analisados suscitaram reflexões que contribuíram para ações voltadas à formação de leitores na escola, assim como a reorganização dos espaços de leitura e a promoção de atividades envolvendo a comunidade escolar. Uma dessas ações refere-se ao Clube de Leitura, cujo objetivo é discutir sobre a construção da identidade do leitor, bem como a execução do Projeto Todo Mundo Lendo. Esperamos, com os resultados dessa pesquisa, envolver não só os professores de língua materna, mas toda a comunidade escolar com o fito de possibilitar a adoção de práticas de leitura norteadas pelo letramento. Palavras-chave: Leitura; Escola; Letramento. Apresentação Com as atuais demandas educacionais cada vez mais tem sido necessário discutir a importância de práticas efetivas de leitura. Essas podem propiciar ao indivíduo condições de elevação social, uma vez que garantem ampliação vocabular e visão crítica. Para isso, é necessário o acesso aos mais diversificados e múltiplos materiais de leitura, a fim de propiciar a criticidade e despertar o gosto por essa atividade. 1
Mestre em Letras (UNIR); Professora de Língua Portuguesa do IFRO – Instituto Federal de Rondônia – câmpus Ji-Paraná. Email: [email protected] 2 Mestre em Educação Agrícola (UFRRJ); Professora de Língua Portuguesa do IFRO – Instituto Federal de Rondônia – câmpus Ji-Paraná. Email: [email protected]
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Os dados coletados em nossa pesquisa demonstraram que os alunos gostam de ler, sabem da importância dessa prática, todavia o que tem sido desinteressante e desestimulante são atividades mecânicas relacionadas à leitura das obras canônicas na escola. A esse respeito, Geraldi (2001) acredita que deve haver uma diversidade no ensino de leitura, ou seja, o aluno deve ter oportunidade de ler obras diferentes, por meio de atividades que não exijam somente o preenchimento das famosas “fichas de leitura”. Textos curtos, longos, gêneros variados devem alternar-se. Desse modo, quanto mais acesso a materiais de leitura o indivíduo tiver maiores são as chances de ele obter êxito. Esse pensamento pode ser dialogado com Martins (2003) quando afirma que a função do educador não seria precisamente a de ensinar a ler, mas a de criar condições para o educando realizar a sua própria aprendizagem, conforme seus próprios interesses, necessidades, fantasias, segundo as dúvidas e exigências que a realidade lhe apresenta. (MARTINS, 2003, p. 34)
Nesse sentido, notamos o quanto é importante um ensino que apresente a diversidade textual e o diálogo entre o educador e o educando, permitindo compartilhar os sentidos que a leitura pode propiciar. Entretanto, essa parece não ser a realidade na maioria dos casos. Durante nossa prática docente, é comum depararmo-nos com alunos que apresentam dificuldades relacionadas à leitura, no que tange à compreensão e interpretação textuais, bem como a leitura de livros da literatura clássica. Diante dessas situações nos questionamos: Por que os alunos no ensino médio veem a literatura como algo complexo e desinteressante? Qual o papel da escola (no ensino fundamental) na formação do leitor? Que práticas docentes podem influenciar positivamente na formação do leitor? A partir dessas indagações, decidimos identificar o perfil dos leitores ingressantes nos cursos técnicos integrados ao ensino médio do Instituto Federal de Rondônia, câmpus Ji-Paraná, verificando a função social da leitura para esses alunos. Assim, esse artigo faz parte de um recorte da pesquisa realizada com seis turmas de 1º ano dos cursos técnicos integrados ao médio de Florestas, Informática e Química, totalizando 246 informantes no ano de 2014.
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Encaminhamentos metodológicos e discussão dos resultados A pesquisa é de cunho bibliográfico e de campo. É de natureza descritiva, uma vez que segundo Gil, (1999, p. 44) “pesquisas deste tipo têm como objetivo primordial a descrição das características de determinada população ou fenômeno ou o estabelecimento de relação entre variáveis”. Os dados foram coletados a partir de questionários com perguntas fechadas e conversas informais com os alunos, totalizando 246 sujeitos pesquisados. A partir dessa coleta, as análises se encaminharam para os seguintes pontos: a) o grau de importância da leitura; b) dificuldades com a leitura; c) gêneros preferidos; d) influências na formação do leitor. Quando indagados sobre a importância da leitura, os alunos demonstram ser cônscios acerca dessa necessidade. E as respostas se dividiram quanto aos níveis de leitura que atesta Martins (2003) quando distingue a leitura emocional da leitura racional. A primeira é assim definida: (...) quando uma leitura – seja do que for – nos faz ficar alegres ou deprimidos, desperta a curiosidade, estimula a fantasia, provoca descobertas, lembranças, estimula a fantasia, provoca descobertas, lembranças – aí então deixamos de ler apenas com os sentidos para entrar em outro nível de leitura – o emocional. (MARTINS, 2003, p. 48)
E a segunda promove a reflexão e o contato mais direto do leitor com o texto. Está mais no nível da intelectualidade, já que funciona como uma ponte entre o leitor e conhecimento, possibilitando-lhe, no ato de ler, atribuir significado ao texto e questionar tanto à própria individualidade como o universo das relações sociais. E ela não é importante por ser racional, mas por aquilo que o seu processo permite, alargando os horizontes de expectativas do leitor e ampliando as possibilidades de leitura do texto e da própria realidade social. (MARTINS, 2003, p. 69)
Apesar de elencar a leitura em níveis, Martins (2003) afirma que independentemente dessa distinção, o leitor passa por essas etapas, justamente por serem essas uma representação do amadurecimento intelectual do leitor. Além desses
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dois níveis já comentados, Martins apresenta um outro que é o sensorial, é o nível do toque, do encontro com o material de leitura, escolha pelas cores, tamanho das letras, etc. A partir dessa divisão dos níveis, os informantes pesquisados assim categorizam a importância da leitura: 1ª aquisição de conhecimento; 2ª autonomia; 3ª função emotiva e 4ª entretenimento. Sustentadas pela autora acima mencionada, classificamos a 1ª e 2ª como nível racional e 3ª e 4ª como nível emocional, como demonstrado no gráfico abaixo:
O gráfico evidencia que 114 informantes consideram a leitura importante, pois é fonte de aquisição de conhecimento, 35 acreditam que a prática de leitura garante autonomia, pois dá voz ao sujeito permite a formação do pensamento crítico. 54 deles consideram a leitura como uma função emotiva e 43 veem a leitura como fonte de entretenimento. Possivelmente, houve uma expressividade maior no que se refere aos elementos racionais, por serem os sujeitos pesquisados alunos de um curso técnico que exige leituras mais técnicas e formais. Quando questionados sobre as dificuldades com a leitura, o que mais os entrevistados relataram foi a imposição da leitura, ou a leitura obrigatória, como quesito avaliativo. Isso sugere que eles veem a leitura intimamente ligada à literatura como mera forma de execução dos planos de ensino. Acerca disso Abreu (2003, p. 40) comenta “aqueles que apregoam a crise da leitura não pensam na leitura em geral, e sim
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na leitura de certos tipos de livros – aqueles que formam a tradição erudita nacional e internacional”. Esse pensamento reflete uma visão de que a leitura na escola tem sido vista como transmissão do patrimônio cultural utilizando a literatura clássica como oportunidade para o cumprimento da carga horária.
Entre os informantes, 91 consideram como dificuldade a inadequação ou imposição do livro e 64 relacionam a dificuldade à incompreensão do vocabulário. Esses dados se relacionam aos comentários que eles teceram sobre a leitura dos clássicos. Para os sujeitos pesquisados o vocabulário e o
contexto distantes de suas
realidades os tornam analfabetos literários. Além disso, a dificuldade de leitura, para os informantes, também está relacionada à falta de compreensão dos implícitos para 48 deles e à falta de tempo para 43. A leitura dos cânones da literatura brasileira não tem sido atrativa para os sujeitos pesquisados. A respeito desse dado sustentamo-nos em Ceccantini (online) quando expõe: Observa-se que, cada vez mais, no gosto de ampla faixa dos cidadãos a leitura dessas obras tem pouco ou nenhum espaço, fazendo-se presente a leitura de títulos de caráter utilitário (como, por exemplo, os livros de autoajuda ou obras religiosas) ou de títulos voltados sobretudo ao entretenimento. Isso, quando a leitura de livros não é preterida, pura e simplesmente, pela leitura veiculada a outras tantas
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linguagens e suportes de circulação (tais como jornais, revistas, filmes, dvds, quadrinhos, videogames, internet etc.), onde os leitores vão buscar as doses de ficção e informação de que sentem necessidade. (CECCANTINI, online, p. 02)
A partir de conversas informais com os entrevistados, bem como a análise dos questionários, verificamos que a literatura brasileira não
está entre os gêneros
preferidos. Nesse sentido, é importante considerar como a escola tem trabalhado esse gênero e como deve ser trabalhado. Ainda vivenciamos resquícios de uma pedagogia estruturalista e tradicional que não considerava o sujeito como agente do processo ensino-aprendizagem. Como resultado dessa situação o ensino de literatura ficou por muito tempo restrito à (...) memorização imposta de materiais fatuais aliada à anonimidade dos alunos em turmas muito grandes ilustram a falta de interesse em sua contribuição intelectual ou político-cultural, levando à adoção de um papel passivo em seu processo educativo, para afinal entregar aos exames vestibulares a motivação (ou desmotivação) externa para medir sua competência de aprendizado, ao invés de seu desenvolvimento intelectual. (LEAHY-DIOS, 2000, p. 216)
Esse modelo educacional foi se modificando, especialmente, quando alguns teóricos apresentaram a necessidade de uma relação mais interacionista, privilegiando o social e o dialogismo, dando voz aos sujeitos. Em relação à leitura isso demonstra a necessidade de o aluno estar em contato com diversos textos que favoreçam uma reflexão crítica “bem como a fruição estética dos usos artísticos da linguagem, ou seja, os mais vitais para a plena participação numa sociedade letrada”. (BRASIL, 1998, p. 24). Essa diversidade textual remete à Bakhtin quando comenta o conceito de gênero: Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas das atividades humanas (...) O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua (...), mas também, e sobretudo, por sua construção gramatical. Esses três elementos fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado e, todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual. Mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis
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de enunciados, sendo isso que denominados gêneros do discurso. (BAKHTIN, 1992, p.279)
Assim, no processo ensino-aprendizagem o gênero textual deve ser usado como ferramenta de apoio ao ensino da língua materna, não usar o texto como pretexto para o ensino da Gramática (GERALDI, 1997). Nesse sentido, perguntamos aos sujeitos da pesquisa quais os gêneros preferidos, uma vez que enquanto mediadoras no ensino de língua materna, esse conhecimento é crucial para nossa prática docente, com o fito de adotar prática efetivas para ensino de língua e literatura, considerando suas especificidades e particularidades.
Com esse gráfico, fica evidente que os alunos pesquisados têm preferência para os romances de aventuras, e quando conversamos informalmente, eles relataram que gostam de ler Harry Potter, Senhor dos Anéis, A Cabana, A Guerra dos Tronos, entre outros. É válido ressaltar que não é porque os alunos pesquisados demonstraram não gostar dos clássicos que eles não devem ser trabalhados, durante as aulas de Língua Portuguesa, no entanto devemos repensar outras formas de apresentar e avaliar essas leituras. Uma vez que os próprios informantes relataram experiências traumáticas e frustrantes com esse tipo de leitura. É importante aproximar-se da realidade do aluno, e estimulá-lo a querer aprender. A esse respeito, Bamberger (1975, p. 32) declara que “os
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interesses e motivações do indivíduo refletem-se em seu modo de vida total. Muitas vezes, o que uma criança aprende ou deixa de aprender na escola depende mais dos seus interesses do que da sua inteligência.” Consequentemente, o conhecimento sobre os diferentes gêneros textuais é uma ferramenta imprescindível de socialização para a inclusão funcional dos indivíduos nas atividades sociais em que se inserem. Nesse contexto, Bronckart (1999) aponta que a apropriação dos gêneros é relevante, inclusive, para que o falante se posicione ativamente no meio em que está inserido, pois é um: Processo fundamental de socialização para a inclusão funcional dos indivíduos nas atividades comunicativas, uma vez que é através desse processo de apropriação que os indivíduos se tornam capazes de refletirem e agirem produtivamente e positivamente na sociedade. (BRONCKART, 1999, p. 103)
Dessa forma, os gêneros textuais podem ser considerados a materialização das várias práticas sociais que permeiam as ações humanas, articulados de tal forma que são imprescindíveis à vida em sociedade, conforme coaduna Bakhtin (1992). Em síntese, os gêneros são a efetiva realização da linguagem oral ou escrita e trabalhar com essa diversidade garante maiores subsídios didáticos e metodológicos nas relações entre docentes e discentes. Assim, além de conhecer as preferências leitoras dos pesquisados, notamos o quanto é necessário compreender as influências que esses alunos tiveram em suas formações leitoras. Considerando que a escola e família têm papéis relevantes nesse processo, perguntamos quem mais os influenciou essa formação. O resultado obtido foi surpreendente quando os dados sugerem que a escola tem sido neutra, omitindo-se de sua verdadeira função. Comungando com nossos dados, Corti e Souza (2005) apud Ceccantini (online, p. 10)
destacam que “(...) o
conhecimento que existe está longe de ter sido assimilado pela escola e transformado em práticas produtivas que respondam às reais necessidades dos jovens que hoje frequentam uma instituição em contínua expansão e transformação”. Quando questionamos como a escola influenciou, os alunos relataram que apenas alguns professores marcaram essa formação e não foi uma influência de toda a comunidade escolar como deveria se esperar.
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E as famílias envolvidas na pesquisa apesar de apresentarem vulnerabilidade social foram mais ativas do que a escola, conforme demonstra o gráfico abaixo:
Esse gráfico aponta que a escola que deve ser um local privilegiado para estimular a formação de leitores, não tem conseguido atingir esse escopo e isso acabou sendo legado à família. Quanto aos dados coletados, 119 informantes disseram que a escola foi neutra; 53 que foi negativa a influência e 74 acreditam que a escola influenciou positivamente. Em contrapartida, em relação à influência da família, para 128 informantes a família influenciou positivamente, para 46 negativamente e para 72 deles ela foi neutra. Na verdade, as duas instituições precisam trabalhar em conjunto e não isoladamente. Considerando essa relação, vale ressaltar Lajolo quando afirma que: Ninguém nasce sabendo ler: aprende-se a ler à medida que se vive. Se ler livros geralmente se aprende nos bancos da escola, outras leituras se aprendem por aí, na chamada escola da vida: [...]lê-se para entender o mundo, para viver melhor. Em nossa cultura, quanto, mais intensamente se lê, numa espiral quase sem fim, que pode e deve começar na escola, mas não pode (nem costuma) encerrar-se nela. (LAJOLO, 1993, p.07).
Essas declarações apontam que um trabalho conjunto deve ser realizado pela escola e pela família, implementado por políticas públicas que se voltem para a formação do leitor, numa contínua dinâmica entre criança/jovem e o livro.
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Considerações finais Esse estudo permitiu identificar o perfil dos leitores ingressantes nos cursos técnicos integrados ao ensino médio do Instituto Federal de Rondônia, câmpus JiParaná, verificando a função social da leitura para esses alunos. Após o levantamento dos dados e análise baseada em autores como Bamberger (1975), Bakhtin (1992), Geraldi (1997; 1999; 2001), Lajolo (1993), Silva (2005), entre outros foi possível perceber que esses alunos estão chegando ao ensino médio com certa aversão ao trabalho com a literatura clássica, em razão de atividades mal sucedidas na visão deles, além disso, eles demonstraram querer participar mais ativamente de projetos que envolvam a leitura na escola. A pesquisa suscitou reflexões que contribuíram para ações voltadas à formação de leitores na escola, assim como a reorganização dos espaços de leitura e a promoção de atividades envolvendo a comunidade escolar. Uma dessas ações refere-se ao Clube de Leitura, cujo objetivo é discutir sobre a construção da identidade do leitor e a execução de ações do Projeto Todo Mundo Lendo que envolve toda a comunidade escolar com momentos de encenações teatrais a partir da adaptação de obras literárias bem como momentos específicos para a leitura livre, independentemente do gênero textual escolhido. O estudo se mostrou bastante relevante para a nossa prática docente, já que nos permitiu conhecer melhor o alunado com seus anseios e desejos e pensar em atividades que unam o cumprimento do ementário com a fruição pela leitura, dando voz ao aluno para que ele se sinta sujeito ativo no processo, instigando-os ao letramento (SOARES, 2004) que perpasse as fases da decodificação, intelecção e intepretação. A tarefa é árdua e as pesquisas não se encerram por aqui. Referências ABREU, Márcia. Os números da cultura. In: RIBEIRO, Vera Masagão (org.) Letramento no Brasil: reflexões a partir do INAF 2001. São Paulo: Ação Educativa, Global; Instituto Paulo Montenegro, 2003.
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BAMBERGER, Richard. Como incentivar o Hábito de leitura. 7. ed. São Paulo: Ática, 1975. BAKTHIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais 3 e 4 ciclos do Ensino Fundamental. Língua Portuguesa. Brasília, 1998. BRONCKART, J. P. Atividades de Linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: EDUC, 1999. CECCANTINI, João Luís. Leitores iniciantes e comportamento perene de leitura. Disponível em www.estudoslinguisticoseliterarios.net, acessado em Setembro de 2014. GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 4. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997 _________, João Wanderley. Linguagem e ensino. Exercícios de militância e divulgação. São Paulo: Mercado das Letras, 1999. _________, João Wanderley (org.) O texto na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Ática, 2001. GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999. LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1993. LEAHY-DIOS. Cyana. Educação literária como metáfora social – desvios e rumos. Rio de janeiro: EdUFF, 2000. MARTINS, Maria Helena. O que é Leitura. São Paulo: Brasiliense, 2003.
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SILVA, Ezequiel T. da. Elementos de pedagogia da leitura. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
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DIÁLOGOS ENTRE TEATRO E CANÇÃO NA TRADIÇÃO BRASILEIRA Renato Forin Junior (UEL) Introdução Pode-se dizer, sem medo de generalização indevida, que as formas artísticas brasileiras são atravessadas por musicalidade. A influência oral engendrada pela formação étnica explicaria em termos sociológicos o fenômeno que fez do Brasil um país cuja canção popular é reconhecida mundialmente por sua qualidade e potência. A poesia musicada estilhaça as fronteiras entre as linguagens artísticas, propondo uma “malha de permeabilidades”, como denomina José Miguel Wisnik (2004, p.215). Se Wisnik fala de uma interpenetração entre música e literatura, incluímos neste conceito o teatro, que, desde os registros mais rudimentares de nossa historiografia, esteve imbricado com as manifestações cancionais. Este artigo traz reflexões sobre as constantes trocas que teatro e canção popular estabeleceram ao longo da tradição brasileira, com foco em três momentos emblemáticos: os primeiros séculos da colonização, o teatro “ligeiro” (sobretudo a Revista, que fez imenso sucesso a partir de meados do século XIX) e os musicais políticos da década de 1960. Ao cruzar bibliografias de ambas as áreas, num esforço por reunificar uma história que foi segregada, percebemos um movimento dialógico interessante: se num primeiro momento o teatro musicado lançou e divulgou as canções, o fluxo inverte-se no século XX, com a transformação da música popular em fenômeno de massa - lundus, maxixes, serestas e sambas passam a ditar os sucessos que sobem aos palcos. Em meados do mesmo século, temos a cisão do universo cênico-musical, basicamente, entre os shows de boates (herdeiros do teatro “ligeiro”) e o movimento de renovação do gênero com as peças políticas.
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O poder mobilizador da canção Muito já se falou sobre a potência da palavra cantada no Brasil e, mesmo assim, nunca parece em demasia a reiteração de que somos uma nação de criativas sonoridades. Podemos dizer que a poesia cantada, no caso brasileiro, devassa fronteiras entre erudito e popular, entre cultura letrada e cultura oral, para encontrar um terceiro lugar de manifestação que está além dos conflitos binários. Para Wisnik, existe no Brasil, por meio da canção, um encontro entre filosofia culta e fluência lírica. Ele chega a comparar a nossa produção a momentos áureos do encontro da poesia com a música, como a tragédia grega, a lírica grega e a poesia provençal. Wisnik (2004, p.215) fala de uma troca constante entre a “chamada cultura alta e as produções populares”, de modo que as barreiras entre música de entretenimento e música criativa percam as referências. O certo é que a canção ultrapassa os limites da expressão para tornar-se um “modo de pensar”. Uma tal mistura de proveniência artística e técnica, de níveis de informação, poderia facilmente dar lugar ao ecletismo ou à pura confusão. [...] No entanto, é possível sustentar que vieram se forjando dentro dessa tradição critérios que a tornaram capaz de trabalhar com a simultaneidade e a diferença de um modo inerente à enunciação da poesia cantada, com delicado e obstinado rigor, mesmo sob o efeito consideravelmente homogeneizador ou pulverizador das pressões de mercado. (WISNIK, 2004, p.218).
Uma outra característica marcante é o constante diálogo da música popular com as outras artes, estabelecendo o que o teórico chama de “malha de permeabilidades”. Ele se concentra sobretudo nas trocas com a literatura, mas cita também as referências à cultura plástica, cinematográfica e teatral. Esta última, a que mais nos interessa na presente discussão. No tocante específico das relações entre canção e artes cênicas, a maioria das historiografias estabelecem como marco fundamental o teatro musicado, em voga a partir da segunda metade do século XIX. O poder mobilizador da música no Brasil, no entanto, leva-nos a uma identificação ainda mais primária de sua conjunção com a potência do corpo, do texto e do gesto.
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Os primeiros séculos A história formal do teatro no país começa ainda no período colonial. Ela evidencia – de modo paralelo ao que aconteceu na canção – a tendência às fusões étnicas e a valorização da musicalidade. A arte teatral foi obra dos jesuítas e iniciou-se meio século após o descobrimento, sempre atrelada a aspectos religiosos. A intenção era a conversão dos indígenas e a educação dos colonizadores. A ligação de teatro e canção, neste contexto, tem uma função definida: as encenações musicais eram instrumentos eficazes no processo de catequização. “Os jesuítas, que, como se sabe, aprendiam em sua ordem de estudos também a técnica teatral, favoreciam amplamente o gosto dos índios pelo canto, pela dança, mímica e oratória”, explica Cacciaglia (1986, p.6). A incipiência das provas documentais, no entanto, faz com que a investigação deste primeiro momento de nossa história estética seja feita por deduções, quase como um esforço de imaginação. Se avançamos no tempo, começamos a desvendar uma história mais concreto dos diálogos inventivos entre música e artes cênicas. A partir de 1760 deflagram-se por várias cidades brasileiras a construção dos primeiros teatros. O centro cultural e cívico da colônia, então, está passando de Salvador para o Rio de Janeiro. Se naquela cidade foram inauguradas as casas de encenação pioneiras, é nesta que veremos sua expansão quantitativa. No contexto de um teatro feito como entretenimento e missão cívica – como queria a corte real – a música consistia em ingrediente indispensável. Os gêneros praticados eram o entremez ibérico, as comédias de capa e espada, a tragédia e a ópera, com especial destaque para a última. Prado (2003, p.24) lembra, entretanto, que as encenações operísticas brasileiras destoavam bastante do conceito original do gênero. “A palavra ‘ópera’ não deve despertar conotações européias. No contexto nacional aplicava-se, se não a todas, a qualquer peça que intercalasse trechos falados com números de canto, executando-se a parte musicada conforme os recursos locais”. O relato do autor já abre nossa imaginação para as várias possibilidades de espetáculos que associavam modalidades entoativas e canoras.
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Sobre as óperas importadas, ao serem montadas em território nacional, elas sofriam mudanças significativas, sobretudo na parte musical, pela limitação de instrumentos disponíveis. As habilidades dos músicos locais também pervertiam refinamentos eruditos. Já os libretos de óperas italianas, como sempre passavam por Lisboa, acabavam vindo para o Brasil com tradução e adaptação portuguesas. Finalmente chegamos ao século XIX, tempos em que a união entre canção e teatro é legitimada (inclusive na literatura especializada da área) pela deflagração do teatro musicado e por uma evolução vertiginosa dos ritmos nacionais. O fato também tem muito a ver com a definição do Brasil como nação e o abandono de uma vocação colonial pela vinda da família real portuguesa ao Rio de Janeiro (1808). Vale lembrar que a corte de D. João VI trouxe em seus navios músicos, cantores e compositores europeus, garantindo, de antemão, uma refinada diversão nestes “Quintos dos Infernos”. O teatro musicado A história do teatro musicado está intimamente ligada à fundação, em 1859, no Rio de Janeiro, de uma casa de espetáculos – o Alcázar Lyrique. Lá se apresentavam inicialmente peças de teor musical com artistas vindos da Europa. Ofereciam-se, no repertório, canções divertidas, números de comédia e vedetes sensuais para o entretenimento do grande público. O local que, de certa maneira, fundou um estilo de vida boêmia brasileira, era associado às perversões, imoralidades e vícios. Eis os motivos das críticas dirigidas não só ao teatro, mas também ao gênero musicado que ele abrigava. Além disso, o enorme sucesso da casa acabaria por decretar a morte do drama realista, por meio do fechamento do Teatro Ginásio Dramático em 1865, apenas dez anos após sua fundação. Nesta época, a crítica jornalística utilizou a alcunha pejorativa de “teatro ligeiro” para se referir às peças, tão em voga, que incluíam canções e textos dramáticos leves, com o objetivo – aparentemente simplório – de divertir o eclético público das metrópoles. Enquadrava-se na classificação de “ligeiros” não só o legendário teatro de revista, mas também uma variada gama de estilos que incluía a opereta, a ópera bufa, a farsa, a fantasia, a mágica, a vaudeville, o cabaré, o café-concerto, dentre outros.
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Os estudiosos que procuram negar o pensamento sobre a superficialidade do teatro ligeiro ressaltam, dentre outros argumentos: o caráter das montagens como retratos de uma época; o desenvolvimento de uma linguagem brasileira; o teor jocoso e subversivo das críticas políticas e sociais, e, por fim, a difusão em grande escala da canção popular produzida no Brasil. Ao longo dos cem anos em que perdurou, o teatro musicado passou por mudanças de forma e conteúdo, permitindo a delimitação de fases – trabalho sistematizado por Neide Veneziano (1991). As obras bem conhecidas de Artur Azevedo e Moreira Sampaio marcam o início da primeira fase – a “revista do ano” – caracterizada pela releitura de fatos cotidianos do ano anterior, caricatura de personalidades sociais, irreverente crítica política, metalinguagem e fragmentação em quadros. Mesmo apegada a um formato lusitano (e posteriormente francês), “os assuntos, as personagens, os tipos, o humor e a irreverência [das revistas] já se caracterizavam como bem brasileiros” (VENEZIANO, 1991, p.30). O início do século XX assiste a uma série de acontecimentos no campo social e político que se refletem nas artes. É a hora de uma República recém-proclamada e de um Brasil livre do escravismo e do Império. As mortes de Artur Azevedo e Moreira Sampaio na primeira década provocam a busca por novos autores e mudanças na estrutura das revistas. Uma outra fórmula de sucesso desnuda-se, “a porta que estava, então, entreaberta, escancarou-se. O que se viu foi a possibilidade de, em lugar da política, colocar-se, em primeiro plano, a malícia” (VENEZIANO, 1991, p.37). Em termos formais, percebe-se que os textos de caráter dramático, composto de diálogos, vão abrindo espaço para uma dramaturgia quase integralmente musical. Começa a segunda fase do ciclo brasileiro, chamada por Veneziano de “revista carnavalesca”. Este período é, para Tinhorão (1972), um espaço propício de expansão e de difusão da canção popular por meio das peças musicadas. O espetáculo quase sempre trazia um prólogo encenado por um Rei Momo que interpõe uma solução para os problemas do Rio de Janeiro: a farra. As revistas sofrem, a partir de 1914, um rápido processo de definitiva nacionalização. O que contribuiu para o fato foi a deflagração da Primeira Grande Guerra, que bloqueou o trânsito de companhias estrangeiras para o Brasil. O fato forçou
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que o nosso teatro encontrasse caminhos de inovação mais parecidos com sua própria cultura. A canção popular, com uma identidade já definida e paradigmática, figura como esteio estético da nova fase. “É nesse processo de abrasileiramento que a sua ligação com a música popular se torna inevitável, estreita e indissolúvel”, destaca Veneziano (1991, p.41, grifo da autora). A prova mais clara é o sucesso estrondoso e imediato no meio social de canções estreladas nos palcos. O abandono das formas importadas também deixou a revista livre de personagens que a conduziam de modo épico (descrevendo e comentando os quadros), os chamados compère e comère. O fato aproximava o teatro ainda mais de uma estrutura caracterizada pela união de canções sem intervenções narrativas, o que restaria de herança ao show teatralizado no contexto contemporâneo. A propagação da canção nas Revistas antecedia o sucesso nos discos e no rádio, além de fornecer importantes pistas para as celebridades erigidas por estes veículos de comunicação. Numa época em que o rádio ainda não representava a força máxima de produção de sucessos, esses artistas contavam especialmente com a inserção de suas criações nos espetáculos do teatro de revista. Eram nesses que os grandes intérpretes [...] testavam as canções antes de gravá-las em discos, e isso atraía a atenção dos futuros grandes compositores – entre eles, Lamartine Babo e Ary Barroso – que viam nas peças de entretenimento um verdadeiro centro de irradiação de êxitos musicais. Numa análise retrospectiva desse período, não é difícil constatar que a cada novo espetáculo forjava-se a linguagem da canção que prevaleceria nas décadas seguintes. (TATIT, 2004, p.126)
Afora a progressiva valorização da canção popular, a metamorfose dos espetáculos de teatro em shows tem um grande impulso nos anos 1920 em razão de outro acontecimento. Trata-se da chegada, em 1922, da companhia francesa Ba-ta-clan, dirigida por Madame Rasini. A sensualidade das vedetes atinge o grau máximo de exposição e as revistas, já carregadas de certa pitada de erotismo, focam a figura da mulher. O primor dos figurinos, cenários e da iluminação contribui para a aura mágica das montagens, que introduzem no Brasil o conceito de music hall francês. Não raro, pululavam nos palcos efeitos cênicos que ainda nos são familiares em shows musicais, como o sistema de iluminação em cores, as máquinas de fumaça e mudanças estruturais
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no tablado, a exemplo das escadas e passarelas que invadem a plateia. As chamadas “revistas feéricas” são a terceira modalidade básica do gênero no Brasil (VENEZIANO, 1996). Ao contrário de muitos estudiosos do teatro, que consideram este período como uma fase de superficialidade, ou o prenúncio do ocaso do gênero ligeiro, autores ligados à música tendem a considerá-lo um momento fértil e produtivo, justamente pelo patamar de destaque que a canção popular ocupou. Severiano (2008, p. 92), por exemplo, afirma que, no final dos anos 20, o teatro de revista “viveu seus momentos mais altos” em razão de “um equilíbrio perfeito entre a graça das cortinas cômicas e a exuberância dos quadros musicais”. O pesquisador acrescenta que “a preocupação do enredo e da divisão em quadros acabou de perder o sentido, abrindo caminho para a novidade dos espetáculos em boates”. Nestes, o roteiro era composto predominantemente por canções de sucesso destinadas a um entretenimento descomprometido. As casas noturnas segmentam-se (dos bares de moulin aos cassinos) visando a atender ao gosto de cada classe social, do espectador mais humilde ao mais endinheirado. O ciclo das revistas, que durou mais de um século em solo brasileiro, deixa de existir em 1961 com o fechamento do Teatro Recreio. Os musicais políticos As décadas de 1950 e 1960, ao operar transformações profundas na trajetória do musical, trouxeram junto de si amplas possibilidades de pensar a interação entre o teatro e a canção popular fora de modelos já desgastados. Isso se deu, no Brasil, por meio de uma alquimia em que artistas inventivos incorporaram as influências estrangeiras e transformaram-nas mediante nossa realidade social e política, mediante o anseio de elaborar uma arte propositiva e atual. É o momento de renovação total do gênero. Como afirma Freitas Filho (2006), as peças que são gestadas no final dos anos 1950, trazem características próprias, de modo que as canções não sejam só matéria de entretenimento e envolvimento (como fazia a comédia musical ou as revistas feéricas) e nem só recurso de distanciamento e quebra de ilusão (como pregava a linha épica de Brecht), mas uma fusão das duas vertentes. Em suma, eram tramas que, pelas formas de
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encenação com que chegavam ao público, levavam-no a uma atitude reflexiva e crítica sobre a realidade. O grupo de autores, atores e diretores que fariam história com as montagens do musical político surge em meados dos anos 1950. O nome central para a definição do estilo da nova empreitada, sem dúvida, é Augusto Boal. Ele voltava para o Brasil, em 1955, após uma temporada em Nova Iorque, onde estudou dramaturgia e direção na Universidade de Colúmbia. Nos Estados Unidos, o artista acompanhou o trabalho do Actor’s Studio, de onde extraiu profundas experiências estéticas. Quando Augusto Boal, então no Rio de Janeiro, é convidado por José Renato para embarcar para São Paulo e dividir com ele a responsabilidade sobre os espetáculos do Teatro de Arena, fundado em 1953, vê a possibilidade de aproveitar aquelas lições revolucionárias. Em 1960, Boal escreve a peça Revolução na América do Sul, com direção de José Renato, considerada o primeiro musical do ciclo de renovação do gênero. O espetáculo encenado no Rio e, posteriormente, em São Paulo, avançava na direção de uma linha épica e apresentava ao Brasil uma forma completamente diferente de entender o musical, a saber, por um viés crítico. A partir de inéditas pesquisas no campo das relações entre teatro e canção, o Arena inaugura, em meados da década de 60, uma fase emblemática. Boal (1988, p.195), ao teorizar sobre os percursos do grupo paulista, denomina este período de “Etapa dos Musicais”. Opinião (1964) foi das primeiras montagens nessa linha e ficaria destacada historicamente pelo pioneirismo. Cantores e compositores efetivamente entram em cena junto de atores e atrizes – todos movidos por causas bem definidas: o ataque à ditadura militar, o fim da repressão e a defesa das causas sociais. Os espetáculos mais lembrados da Etapa dos Musicais são Arena conta Zumbi (1965) e Arena conta Tiradentes (1967). Tanto em um quanto em outro, a crítica à ditadura se faz pela dramatização do episódio emblemáticos da história do Brasil: o Quilombo dos Palmares e a Inconfidência Mineira. Em ambas, a canção tinha o papel de preparar o público e fazer com que ele acolhesse os efeitos de ironia. Na obra Teatro do oprimido e outras poéticas políticas, Augusto Boal (1988) ressalta o efeito mobilizador da música na cena teatral trazendo como exemplo a
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montagem “Tempo de Guerra”, musicada por Edu Lobo. O ingrediente melódico proporcionaria uma compreensão ampliada das palavras, quando estas estão formatadas em canção. O argumento do diretor justifica a relevância da canção nesta etapa do Arena: A música tem o poder de, independentemente dos conceitos, preparar o público, a curto prazo, ludicamente para receber textos simplificados que só poderão ser absorvidos dentro da experiência razão-música. Este exemplo o esclarece: sem música ninguém acreditaria que “nas margens plácidas do Ipiranga se escutou um grito heróico e retumbante” (...) Da mesma forma, e pela maneira simples com que se expõe a idéia, ninguém acreditaria que este “é um tempo de guerra” se não fosse pela melodia de Edu Lobo. (BOAL, 1985 apud GIANI, 1985, p.293)
De forma bastante sintética, este artigo percorre três momentos fundamentais de encontro da canção popular com o teatro no Brasil. A partir destas perspectivas, podemos pensar que a trajetória dramatúrgica e cênica desenhou por aqui caminhos muito particulares e bastante divergentes da historiografia da cena europeia, por exemplo. Se podemos falar numa tradição para o nosso teatro, ela é inegavelmente musical. Essa constatação histórica é fundamental para a elaboração de teorias do drama e da encenação que nos contemplem em plenitude e que sejam capazes de abarcar, sem riscos de preconceito, o seu próprio passado estético. Referências CACCIAGLIA, Mario. Pequena história do teatro no Brasil (quatro séculos de teatro no Brasil). São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1986. BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 5.ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1988. FREITAS FILHO, José Fernando Marques de. Com os séculos nos olhos – teatro musical e expressão política no Brasil, 1964-1979. 2006. 386 p. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Instituto de Letras, Universidade de Brasília, Brasília.
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GIANI, Luiz Antonio Afonso. A música de protesto: d’O subdesenvolvimento à canção do bicho e Proezas de Satanás. 1985. 515 p. Tese (Mestrado em Sociologia) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 1985. MAGALDI, Sábato; VARGAS, Maria Thereza. Cem anos de teatro em São Paulo. São Paulo: Senac, 2000. SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Editora 34, 2008. TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê editorial, 2004. TINHORÃO, José Ramos. Música popular: teatro & cinema. Petrópolis: Vozes, 1972. VENEZIANO, Neyde. Não adianta chorar: teatro de revista brasileiro...Oba! Campinas: Ed. da Unicamp, 1996. _____. O teatro de revista no Brasil: dramaturgia e convenções. Campinas: Editora da Unicamp, 1991. WISNIK, José Miguel. Sem receita. São Paulo: Publifolha, 2004.
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OSWALDO GOELDI: PRÉ-LEITOR, ILUSTRADOR E (TAMBÉM) TRADUTOR DE DOSTOIÉVSKI Renê Wellington Pereira Fernandes (Unicamp)
Quando falam a respeito da relação de Oswaldo Goeldi e Fiódor Dostoiévski no plano estético, Boris Schnaiderman, Renato Palumbo Dória e Priscila Rossinetti Rufinoni ressaltam, a despeito de suas diferentes abordagens, o fato de haver entre a poética de ambos os artistas uma espécie de contiguidade. Assim, por exemplo, Dória observa que, embora distantes no tempo por sete décadas, e no espaço por um oceano e – na melhor das hipóteses1 – dois mares, “As preocupações, porém, desses artistas, aproxima-os em universo comum” (DÓRIA, 1998, p. 24). Isso é claro, afora os fatores culturais implicados nessa longinquidade, sobretudo, aqueles que dizem respeito à cultura eslava2 e teuto-brasileira3, e às línguas russa e portuguesa. Por sua vez, Schnaiderman afirma que “[...] o artista (Goeldi) conseguiu uma verdadeira tradução intersemiótica, no sentido de Jakobson, e soube expressar a ruptura
que
Dostoiévski
representou
em
relação
à
literatura
anterior”
(SCHNAIDERMAN, 2011, p.166). Sob essa perspectiva, ele ainda assinala um fato
1
Pressupondo-se uma rota, marítima ou área, que cruzasse o Oceano Atlântico e atravessasse o Canal da Mancha e o Estreito de Dover, descrevendo, assim, uma trajetória parabólica que ligasse o Rio de Janeiro a São Petersburgo.
2
No caso de Dostoiévski, havemos de nos lembrar de que, conquanto tivesse o escritor nascido em Moscou, vivera a maior parte de sua vida, pelo menos aquela parte na qual escreveu suas grandes obras, em São Petersburgo; cidades com atmosferas culturais, políticas e econômicas um tanto distintas. Não obstante, ainda sabemos que o eslavismo professado pelo autor dizia respeito mais aos russos do que a outros povos também tidos como eslavos. 3
Se levadas em conta, as questões étnicas afigurar-se-iam, no caso de Goeldi, ainda mais complexas do que as de Dostoiévski. Isso por conta de que, sendo ele filho de pai suíço e mãe brasileira e, além do mais, tendo morado no Rio de Janeiro, em Belém do Pará e em Berna, e estudado em Zurique, muito possivelmente tenha tido sua formação (no sentido de Bildung) na encruzilhada teuto-brasileira. Na verdade, a ascendência e, por conseguinte, a identidade suíça, por si só, constituiriam um ponto intrincado na relação binomial de vida e obra.
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singular: “Certas características deste (Dostoiévski)
4
, que ainda viriam a ser
sublinhadas pela crítica, aparecem nessas gravuras (as ilustrações de Goeldi) com muita clareza” (loc. cit.). Fato esse que, ao mesmo tempo em que atesta o caráter antecipador dos desenhos de Goeldi, ratifica a ideia de duas poéticas que se complementam5. Desse modo, malgrado o fato de evidenciar a influência que Kubin exercera sobre Goeldi, pelo menos em determinado estágio de sua arte ou em termos de legado 6 – e, também, de alegar que as demandas atinentes à transposição das narrativas dostoiévskianas do plano verbal para o visual encontraram resposta, por parte de Goeldi, em uma poética já efetivada7 –, Rufinoni reconhece que, “Nas melhores gravuras, Goeldi atualiza o mundo do romancista, pois sua interpretação é auto-reflexiva e, assim, irônica, podendo perceber as sutilezas por entre as frestas dos caracteres densos e conflituosos dos personagens” (RUFINONI, 2006, p.246). Ora, se Goeldi atualiza – talvez para a pesquisadora no sentido que Walter Benjamin atribuiu ao termo – e interpreta as histórias de Dostoiévski, sem dúvida podemos inferir que ele as traduz. E, para tanto, é necessário que ele leia tais histórias antes do público, justamente como o faz o tradutor. De fato, podemos dizer que Goeldi atuou como pré-leitor de Dostoiévski não apenas para ilustrar lhe quatro volumes publicados em português. De acordo com Dória, o gravurista carioca já havia conhecido a obra do autor russo por meio da língua alemã (sua segunda língua), antes mesmo que fosse traduzida no Brasil:
4
Acréscimos do autor deste artigo.
5
Tanto que Schnaiderman, ao fim de seu artigo Oswaldo Goeldi e Dostoiévski: distância e proximidade, pergunta-se: “Será que a distância aproxima?” (SCHNAIDERMAN, 2011, p.169).
6
“Não pensaremos, portanto Goeldi como uma sensibilidade igual à do escritor russo, caminho tentador, haja vista os vários pontos de contato entre as duas poéticas, mas como um artista formado no ideário e na imagética simbolistas, portanto imerso no mundo de Dostoiévski tanto quanto Kubin ou os expressionistas.” (RUFINONI, 2006, p. 226).
7
“O mundo de Dostoiévski é, assim, interpretado pelos tópicos canônicos da obra de Goeldi. Não temos um ilustrador à disposição de um texto, mas uma poética alegórica já bastante madura que o artista coloca em movimento para responder às nuanças dos romances.” (Op. cit., p.245).
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Não podemos determinar quando, precisamente, Oswaldo Goeldi toma contato com a literatura de Dostoiévski. Rachel de Queiroz, contudo, recorda que o artista não apenas conhecia e identificava-se com a obra do escritor, como colaborou, baseado em suas leituras de edições alemães, com o trabalho dos tradutores para as edições em questão. (DÓRIA, 1998, p. 24).
Sendo assim, ler Dostoiévski primeiramente em alemão, em meados do século XX, pode ter implicado apreender a composição deste pelo viés de uma tradição hermenêutica em cujo bojo recrudescia o Expressionismo. Sob essa perspectiva, Rufinoni considera que, por partilhar do patrimônio cultural europeu, o artífice brasileiro alcançara e desenvolvera, junto a Dostoiévski, uma condição de realismo atávico, pois, segundo ela:
Essa confluência quase desconcertante entre o realismo iluminado dos dois artistas se muito deve à leitura anterior que o simbolismo e o expressionismo já haviam feito do escritor, deve-se também à reinterpretação livre da tradição que o gravador empreende. (RUFINONI, 2006, p.246).
Portanto, a homologia entre as funções de traduzir e de ilustrar, que, a princípio, não se confundiriam, institui-se definitivamente no momento em que Goeldi torna-se “[...] um Vor-leser em vários sentidos, ou seja, um pré e pró-leitor, aquele que lê (sic) a voz alta para os outros, para uma audiência, prefigurando a sua compreensão do texto [...]” (ZILLY, 2001, p.347). Por conseguinte, ao valer-se de uma tradição interpretativa já estabelecida a fim de reformulá-la, isto é, procedendo como “[...] espécie de preletor, que ensina como se deve ler” (loc. cit.), ele incorpora, assim como qualquer tradutor:
[...] um papel domquixotesco, o de um leitor hiperatento, hipersensível, com todas as antenas ligadas, aspirando a uma leitura completa, totalizadora, sonhando em realizar em sua mente todo o
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potencial de significados existente em determinada época e contexto social, incluindo a história da recepção na medida em que esta entra na constituição do sentido da obra. (Op. cit., 2001, p. 348).
No entanto, ao desempenhar essa tarefa sisífica, Goeldi, agora como congênere do tradutor, se por um lado “[...] procura oferecer ao leitor estrangeiro uma contrapartida equivalente aos múltiplos atributos e significados do original, restringidos, modificados e enriquecidos pela língua de chegada”, por outro incorre no mesmo risco ao qual seu par está sujeito: “[...] agir, sem querer, como um filtro, como um censor em relação a certos aspectos do original”; dado que, a maneira pela qual captar os aspectos intrínsecos à obra, “[...] vai prefigurar de modo decisivo as possíveis leituras da tradução e as ideias que seus leitores fazem do original”
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(op. cit., p.347-348). Sua
atividade comporta, nesse aspecto, um caráter ulterior metaliterário. No que diz respeito a essa atuação mediadora e prefigurativa de Goeldi, sobretudo, referente ao romance O Idiota, Schnaiderman coloca em pauta o seguinte exemplo:
Mas, apesar desta capacidade que ele teve de captar o mundo de Dostoiévski como um mundo de crise e paroxismo, em certos momentos há como que um pudor, uma discrição inesperada em sua leitura. Assim, perto do desfecho de O Idiota, ele nos mostra Míchkin e Rogójin diante de Nastássia Flípovna morta, ambos de costas, e evita representar o momento em que o príncipe acaricia o assassino da 8
Um exemplo histórico dos efeitos da mediação operada por pré-leitores profissionais é a famigerada representação que (temos e) fazemos quando a palavra viking é mencionada, a saber: guerreiros nórdicos, em cujas indumentárias o adereço principal constituía-se de capacetes com chifres. Entretanto, de acordo com Isabelle C. S. de Castro, “[...] a tradicional imagem de guerreiros nórdicos usando chifres é pura ficção. Há registros de que os celtas e alguns povos germânicos usavam capacetes com chifres. Mas sua função era apenas cerimonial, enfeitando a cabeça de sacerdotes. [...] Mas de onde surgiu, então, a relação entre chifres e vikings? Em 1820, numa edição do livro A Saga de Frithiof, que conta lendas escandinavas medievais, um pintor sueco se baseou em indumentárias germânicas para retratar os vikings. As ilustrações trazem os guerreiros usando capacetes com chifres (e perucas por baixo deles). Outra suspeita é de que a confusão tinha se espalhado graças a uma obra do compositor Richard Wagner. Encenações de O Anel dos Nibelungos (série de quatro óperas escritas entre 1848 e 1874) representavam os hunos como homens que vestiam peles e usavam elmos chifrudos. Isso teria ajudado o imaginário europeu a atribuir essas características a qualquer povo considerado „bárbaro‟”. (CASTRO, 2007, p. 43).
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mulher amada, naquele paroxismo supremo, difícil de aceitar. (SCHNAIDERMAN, 2011, pp. 166-7).
Mas, qual seria, na verdade, a língua de chegada a qual Goeldi almejaria por distender? Com certeza não seria exatamente a mesma com a qual opera o tradutor; aquela constituída por signos verbais. Sabendo que “[...] qualquer signo pode ser traduzido num outro signo em que ele se nos apresenta mais plenamente desenvolvido e mais exato” (JAKOBSON, 1995, pp.66-7), o “expressionista” fluminense “[...] pode interpretar o universo dostoievskiano com segurança e sem excessos de expressividade, sem cair em imagens estereotipadas e extremamente narrativas” (RUFINONI, 2006, p.246). Ademais, se “Oswaldo Goeldi demonstrava profundo conhecimento da obra dostoiévskiana, havendo mesmo colaborado, ainda que indiretamente, para algumas traduções da Editora José Olímpio”, então, “Como leitor atento, supomos que não terá deixado de sentir os efeitos deste contato, necessariamente aprofundado quando da produção das ilustrações para os romances” (DÓRIA1998, p. 32). Até mesmo porque, na condição de um “entendedor por excelência” (ZILLY, 2001), o ilustrador deve ter se dado conta de que o leitmotiv da narrativa sobre o príncipe Mychkin fosse o quadro Cristo Morto, de Hans Holbein. Na verdade, a pintura de Holbein exerce uma função mais profunda: ela estrutura todo enredo, servindo de “fio da meada”, posto que, por seu intermédio:
Later we find that art has an impact on all sorts of people, from the socially unacceptable Rogozhin to the suicidal young Ippolit. The painting that has the greatest impact in the novel is one hanging (predictably) over a dark threshold in Rogozhin‟s house, a painting that Rogozhin takes a ghoulish pleasure in and which figures largely in the rambling manifesto that constitutes Ippolit‟s suicide note. This is a reproduction of a painting which Dostoevsky encountered in Bern and which, according to his wife, made a tremendous impact on him. It is a painting by Holbein of Christ taken from the cross and laid out in the tomb. Ippolit describes it so
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thoroughly in his suicide note that his analysis has been quoted in art history texts. (FISTER, 1996, pp. 1-2).
Aliás, é bem provável que Goeldi tenha inferido o estrato iconográfico da obra, uma vez que:
Early in the novel we find images and their construction to be a topic of general interest to the characters of the book. Myshkin is said to be someone who knows how to see and who can teach the Yepanchins how to see. He comments on calligraphy in terms that are assured, knowledgeable, and even opinionated about aesthetic matters. He further analyzes the faces of the Yepanchin girls with a painterly scrutiny and discusses dramatic subjects for portraiture, not only interested in how to organize a painting to make an effective image, but in how to convey meaning through it. He enthusiastically proposes a condemned man‟s face as a fitting subject for portraiture because such a painting “would do a lot of good”. (op. cit., p. 1).
Em vista disso, o trabalho do ilustrador, apresenta-se tanto ou mais sofisticado quanto o do tradutor, e também tanto ou mais melindroso que este. Ao ilustrador cabe, portanto, perceber que “[...] durante o processo de leitura, a expectativa e a memória se projetam uma sobre a outra” (ISER, 1999, p. 55), sem desaperceber-se, contudo, que:
O texto em si, entretanto, não é expectativa nem memória; por isso, a dialética de previsão e retrovisão estimula a formação de uma síntese, permitindo a identificação das relações entre os signos; em consequência, a equivalência desses se torna representável. (Loc. cit.).
Todavia, a representação, sobre a qual Iser fala, no que diz respeito à relação entre sujeito (leitor) e objeto (texto), dá-se em uma via de mão dupla: “A projeção que aqui se realiza pode ser duplamente definida. Por certo ela é uma projeção que advém do leitor; mas ela também é dirigida pelos signos que se „projetam‟ no leitor” (Op. cit., 55 ).
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Sem dúvida, essa dúplice condição da representação de um texto verbal é, na verdade, pluridimensional, posto que seja ao mesmo tempo endógena e exógena; tanto na interação leitor-texto quanto na via texto-leitor. Isso quer dizer que, se quando da leitura o ledor lança sobre os signos verbais impressões que lhe são próprias, recebe do texto outras que lhe são ádvenas. Concomitantemente, nesse mesmo movimento, o texto ao passo que possibilita – e dir-se-ia que até mesmo intensifica – tais introjeções, também suscita outras tantas naquele que dele ocupa-se. Nesse sentido, o ato da leitura é modular. À vista disso, Iser identifica a representação imagística como o exercício proposto à nossa capacidade imaginativa pelo texto ficcional, sendo que para ele,
A visão imagística da imaginação não é portanto a impressão de objetos em nossa „sensação‟, como costumava dizer Hume; tampouco é visão ótica, no sentido próprio da palavra, senão a tentativa de representar-se o que na verdade não se pode ver como tal. A natureza peculiar dessas imagens é que nelas vêm à luz aspectos inacessíveis à percepção imediata do objeto. Assim, a visão imagística pressupõe a ausência material daquilo que aparece nas imagens. Por isso temos de distinguir dois acessos diferentes ao mundo, pois a percepção requer a pré-existência de um objeto dado, enquanto a representação tem por condição constitutiva o fato de se referir a algo não-dado ou ausente. Ao lermos um texto ficcional, precisamos criar representações, porque os „aspectos esquematizados‟ (schematisierte Ansichten) do texto se limitam a nos informar sob que condições o objeto imaginário deve ser constituído. Assim, a representação ganha o seu caráter imagístico quando o saber que o texto oferece ou estimula no leitor é aproveitado, e isso significa que o que deve ser representado não é o saber enquanto tal, mas a combinação ainda nãoformulada de dados oferecidos. (ISER, 1999, p. 58).
Justamente para não privar o leitor desse exercício imanente, Goeldi adota uma orientação simbolista9 para produzir “[...] a indefinição dos contornos humanos, frequentes sobretudo nas ilustrações para O Idiota, onde alguns personagens 9
“[...] em O idiota a linha volta a ter um sentido gestual, automático, um valor em si mesma. Comparar também um desses desenhos com os desenvolvidos por Kubin para ilustrar o romancista russo elucida a retomada das referências imagéticas e técnicas do simbolismo.” (RUFINONI, 2006, p. 227).
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não deixam a semi-obscuridade, ocultando-se e revelando-se em movimentos inconstantes[...]” (DÓRIA, 1998, p. 31)
10
. O gravurista investe, portanto, em uma
Semantisierung 11 das imagens que desenvolve, em razão de compreender que,
Mesmo que os romances nos dessem uma descrição bastante detalhada dos protagonistas, não tenderíamos a lê-la como pura descrição da pessoa apresentada; ao contrário, nossas representações procuram focalizar o que a descrição pode significar. (ISER, 1999, p. 55).
Notemos, contudo, que Iser refere-se ao termo imagem12 com o sentido de esquema de lucubração abstrato e subjetivo, porém não arbitrário ou superinterpretativo, porquanto:
A imagem representada e o sujeito-leitor são indivisíveis. Mas isso não quer dizer que a relação dos signos presenciada na imagem representada seja resultado da arbitrariedade da subjetividade – mesmo que os conteúdos das imagens fossem por ela afetados; o que se pretende dizer é que o sujeito também é afetado pelo que representa por meio da imagem. Se os objetos de representação que criamos na leitura se caracterizam por presentificar algo ausente ou não-dado, isso significa que estamos sempre na presença do representado. (ISER, 1999, pp. 62-3).
Sendo assim, o ato de representar passa a ser o princípio ontológico do texto ficcional 13.
10
Essa citação foi retirada da nota de rodapé na página referida.
11
Termo cunhado por Dieter Borchmeier para se referir aos trechos de ópera aos quais Richard Wagner conferia significados, muitas vezes criando uma configuração musical.
12
Há, como observa Martine Joly, uma profusão de conotações atreladas ao conceito de imagem, porém, “O mais impressionante é que, apesar da diversidade de significações da palavra, consigamos compreendê-la”. (JOLY, 2012, p. 13). 13
Em sentido amplo, fazemos representações de qualquer tipo de texto, visto que, “[...] o que a imagem traz à luz são referências múltiplas evocadas pelos signos textuais.” (ISER, 1999, pp. 62-3). Daí falar-se
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Então, a partir desse ponto, poderíamos perguntar, expandindo as considerações de Zilly, se o papel do ilustrador, em muitos aspectos, não se assemelharia àquele previsto ao próprio tradutor, ou seja, se a atividade literária – e por extensão a tradutória – não engendraria em certa medida a tarefa do ilustrador. Cúmplice do leitor, ele sabe melhor do que qualquer um que “Pictures have a dual reality: they are objects themselves and they act as surrogates for other objects” (WILLOWS; HOUGHTON, 1987, p. 6) e, dessa forma colabora para constituição de um sujeito leitor ciente de que: Na conduta do dia-a-dia, a imagem representada serve em primeiro lugar para presentificar objetos ausentes, porém existentes; a forma sob a qual esses objetos aparecem depende naturalmente dos nossos conhecimentos e o que sabemos sobre os objetos é incluído na formação das representações. Entretanto falta ao objeto imaginário de textos ficcionais a qualidade da existência empiricamente dada. Pois aqui nãose presencia um objeto ausente porém existente, mas sim objeto produzido que não tem outro igual. (ISER, 1999, pp. 64).
Goeldi apreendeu esses princípios e os aplicou em suas ilustrações para o romance O Idiota. Em linhas rápidas, na crueza dos movimentos e gestos, na economia dos traços e no tratamento claro-escuro das representações das personagens ele incrementa e ajuda:
[...] pôr em movimento a interação entre texto e leitor e iniciar um processo comunicativo, cujo sucesso é indicado pela constituição de um sentido; tal sentido dificilmente poderá ser equiparado com referências já existentes, sendo no entanto capaz de questionar o significado de estruturas existentes de sentido e modificar experiências anteriores feitas. (Op. cit., p. 104).
Enfim, Goeldi traduz no plano do concebível aquilo que só se realiza na esfera do metafísico, sem, contudo, tornar essas imagens plenamente realizáveis; ele não tolhe ou dispensa o leitor que acompanha a trajetória do príncipe Mychkin de sua tarefa implícita: Nulla dies sine linea. hoje em dia em analfabetismo funcional, ou seja, uma leitura que apenas identifica grafemas e fonemas sem, no entanto, suscitar-lhes representações.
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Referências CASTRO, Isabelle Christine Somma de. A fúria viking. Revista Aventuras na História, São Paulo, ed.47, p. 43, jul. 2007. DORIA, Renato Palumbo. Oswaldo Goeldi, ilustrador de Dostoievski. 1998. 90f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP. FISTER, Barbara. On the Threshold of Representation: the function of the Holbein Christ
in
the
Idiot.
Disponível
em:
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http://homepages.gac.edu/~fister/ThresholdofRepresentation.html>. Acesso em: 2 jun. 2014. ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1996-1999. 2v. (Coleção teoria). JAKOBSON, Roman. Aspectos linguísticos da tradução. In: Linguística e comunicação. Tradução Izidoro Blinkstein e José Paulo Paes. 15. ed. São Paulo: Cultrix, 1995. JOLY, Martine. O que é uma imagem? In: Introdução à análise da imagem. Tradução Marina Appenzeller. 14 ed. Campinas: Papirus, 2012. RUFINONI, Priscila Rossinetti. Nos subúrbios. In: Oswaldo Goeldi: iluminação, ilustração. São Paulo: Cosac Naify: FAPESP, 2006. SCHNAIDERMAN, Boris. Oswaldo Goeldi e Dostoiévski: distância e proximidade. In: Tradução, ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011. 213 p. (Debates, 321). WILLOWS, Dale M; HOUGHTON, Harvey A. Research on pictures: a guide to the literature. In: The psychology of illustration. New York, NY: Springer, c1987- . nv., il. ZILLY, Berthold. Do leitor implícito ao tradutor implícito. In: Studien zur brasilianischen und portugiesischen Literatur. Frankfurt am Main: Domus Editora Europaea, 2001.
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QUANDO A VIDA VIRA SONHO: UM OLHAR SOBRE O EFEITO DA AUTOFICÇÃO NO TEATRO Ricardo Augusto de Lima (UEL)1 No ano de 2014, o Festival Internacional de Teatro de Londrina, Paraná, recebeu mais de trinta espetáculos entre teatro infantil, de bonecos, experimentais e adulto. Dentre esses, ao menos cinco possuíam conteúdo explicitamente híbrido entre o real e o ficcional, dos quais se destacam o espetáculo autoficcional Conversas com meu pai, com concepção, interpretação e direção de Janaína Leite e texto e direção de Alexandre Del Farra; e As Estrelas Cadentes do meu Céu são feitas de Bombas do Inimigo, da Cia Provisório-Definitivo de São Paulo, com texto de Carlos Baldim, Paula Arruda, Pedro Guilherme, Thaís Medeiros e Nelson Baskerville, que também dirige o espetáculo. Tal fato demonstra a presença, cada vez mais constante, de peças que trazem para o palco conteúdo (auto)biográfico, criando um espetáculo tipo documentário, no qual se explicita o entre-lugar do discurso. Quando Philippe Lejeune (2008, p.33, grifo meu) conceitua a autobiografia, ele deixa claro que se trata de uma “narrativa retrospectiva em prosa que alguém faz de sua própria existência”. Logo, o teórico francês afirma a impossibilidade de um teatro autobiográfico. Pavis (2008, p.375) traz o verbete “Teatro autobiográfico” em seu dicionário, no qual afirma ser esse gênero impossível e pouco representado, pois “o teatro é uma ficção presente assumida por personagens imaginários que diferem do autor e têm outras preocupações além de contar sua vida”. Entretanto, percebemos na história do teatro a presença de algumas tentativas de se colocar o autor em cena, quer seja por meio de sua história encenada, quer seja pela performance de um ator que impõe sua visão do mundo e fala de si mesmo (PAVIS, 2008, p.375). Além desses, há os exemplos das narrativas de vida, da confissão impudica e dos jogos com a identidade. Ora, o hibridismo de gêneros – bem representado pelo teatro simbolista, imbuído de grande lirismo, e que culminou com a epicização do teatro no século XX – abriu caminho para um teatro autobiográfico, um teatro do eu. Peter Szondi (2003) dedica um capítulo da sua Teoria do drama moderno para analisar a “dramaturgia do eu” de Strindberg. Baseado em dados autobiográficos, o dramaturgo cria um teatro que, a partir da premissa de que a vida de um homem pode dizer mais que a vida de uma família inteira, analisa os pormenores da subjetividade humana, originando um diálogo com o romance psicológico do final do século XIX e começo do XX, no qual o monólogo interior mantém laços entre o autor e sua obra. Semelhantemente, temos o teatro documentário, que remonta a 1925 com a encenação de Apesar de tudo de Erwin Piscator (LESCOT, 2012, p.182), que se “recusa 1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários – da UEL. Bolsista Capes.
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a qualquer invenção”, colocando “em xeque as noções de ficção e de personagem, a partir do momento em que o ator representa uma multiplicidade de figuras, e que cada sequência se desfaz assim que composta para se metamorfosear em outro episódio” (LESCOT, 2012, p.183). Teoricamente, a definição mais usada para autobiografia é a de Lejeune (2008), o que torna a definição de autobiografia no teatro vaga. O próprio homonimato entre autor-narrador-personagem, considerado indispensável por Serge Doubrovsky para caracterizar a autoficção, já mostra quão dificultoso é formalizar uma definição, visto que não temos, no teatro, a figura do narrador. Logo, seria necessário o próprio dramaturgo atuar usando seu nome próprio? Dessa forma, falamos apenas de “tentativas autobiográficas ou mesmo de peças de inspiração autobiográfica presumida, em função da forte semelhança entre a trama encenada e a vida do autor” (TOLEDO, 2008, p.17). Nesse ponto, entramos em uma questão bem curiosa: apesar de a literatura andar alinhada com as outras Artes, não coube ao teatro acompanhar essa jornada. Explico-me: a primeira autobiografia moderna considerada é a de Agostinho de Hipona, chamada de Confissões, sem data certa de escrita, mas que, provavelmente, seja entre 397 e 401. Ao longo da Idade Média e da Idade Moderna, várias outras autobiografias foram escritas, culminando com a de Rousseau. Nesse período, porém, não constam manifestações autobiográficas teatrais. Talvez pelo fato de que o teatro ocidental ainda fosse muito ligado com o teatro clássico, fato criticado por Victor Hugo, em “O prefácio de Cromwell”, de 1827, e por Émile Zola em “Le naturalisme au théâtre”, de 1871. Exemplos mais claros temos no século XX: Depois da queda (1964), de Arthur Miller, e Longa jornada noite adentro (1941), de Eugene O’Neil, são dois deles. No Brasil, as peças de Jorge Andrade possuem quase todas um forte tom autobiográfico, a começar com A moratória (1954), que apresenta traços da infância do escritor, e culminando talvez com O Sumidouro (1969), que apresenta em uma metaficção historiográfica na qual um dramaturgo em pleno exercício da escrita possui problemas com a figura do pai, os quais busca resolver na sua relação com um bandeirante, Fernão Dias. A relação com a figura paterna em Jorge Andrade fica explícita, por exemplo, na peça Rasto atrás (1965), que evoca um pai autoritário e traumatizante. Tais exemplos ajudam a configurar, de certa forma, o contemporâneo teatro autoficcional, isto é, peças que, utilizando material autobiográfico, criam uma ficção/ilusão teatral que, em uma espécie de novo jogo, brincam com o espectador, plantando nele a dúvida metateatral: é encenação de uma ficção ou não: trata-se de uma verdade representada fielmente? Chamarei de teatro autoficcional aquele que, usufruindo da janela aberta deixada por Lejeune na obra O pacto autobiográfico e aproveitada por Serge Doubrovsky em sua autoficção Fils, de 1977, firma um novo pacto com o leitor/espectador: um pacto que, diferente do romanesco/ficcional e do autobiográfico, inclui o leitor em um jogo de verdade e ilusão do qual nenhum dos lados sairá vencedor.
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A autoficção é a tentativa de recriar, na escrita, a vida pessoal e empírica do seu autor. Assim, analisarei aqui a dramaturgia autoficcional de alguns dramaturgos, e não me prenderei às suas performances cênicas. Entretanto, deixo claro desde já que um ator performático consegue, cenicamente, alcançar um grau de autoficcionalidade que mais se aproxima da proposta doubrovskiana: fazer com que o leitor se identifique com o autor, não mais a visão rousseauniana de escrita como uma forma de absolvição, mas sim de partilha, compartilhamento do experimentado (DOUBROVSKY, 2007, p.54). Como escreve Philippe Weigel (2011, p.15, tradução minha): Da carta de Eugène Ionesco a Gabriel Marcel, em 1958, que evoca a peça de teatro Vítimas do dever – “esta peça é autobiográfica” – à afirmação – “Ionesco escreve a primeira autobiográfica teatral” – de Roger Planchon, em 1983, diretor do espetáculo Ionesco, relato cênico a partir de uma colagem de cenas retiradas das duas últimas peças de Ionesco e de fragmentos de páginas autobiográficas e para quem esta forma teatral é um “sinal da renovação do teatro”, podemos constatar, por um lado, a afirmação do empreendimento autobiográfico no teatro do século XX e sua necessidade artística e, por outro lado, a utilidade – eu até arriscaria mesmo dizer: a urgência – de desembaraçar o novelo em que se misturam autobiografia, teatro, cena, veracidade, ambiguidade, ficção, considerando o conhecimento dos conceitos de autobiográfico e autoficção, atualmente mais refinado do que no começo dos anos oitenta2.
Em seu artigo “Autofictions au théâtre: le demi-masque et la plume”, Weigel data deixa claro que, uma vez nomeado (direta ou indiretamente) o autor no palco, uma adequação do público se faz necessária, visto que o palco passa a ser, mais uma vez, um espaço no qual o jogo é inserido, com convenções teatrais, de criação e recriação da ficção. Em outras palavras, um jogo metateatral possível apenas quando o autor é nomeado – reforço: direta ou indiretamente – m por um ator em cena. Quando se trata de uma autoficção performática, na qual autor, personagem e ator são a mesma pessoa, o jogo não é metateatral, e sim de aproximação, cumprindo o papel da autoficção “autêntica” de Serge Doubrovsky, na qual se faz necessário o homonimato entre autor, narrador e personagem principal. Peça exemplo disso é Conversas com meu pai, de Janaina Leite, citada no início. 2
De la lettre de Eugène Ionesco à Gabriel Marcel en 1958 qui évoque la pièce de théâtre Victimes du devoir — « cette pièce est autobiographique » — à l'assertion — « Ionesco écrit la premère autobiographique théâtrale » — de Roger Planchon en 1983, metteur en scéne du spectale Ionesco, récit scénique à partir d'un collage de scènes puisées dans les deux dernières pièces de Ionesco et de fragments de pages autobiographiques et pour qui cette forme théâtrale est un « signe du renouvellement du thèâtre », nous relevons, d’une part, l’affirmation de l’entreprise autobiographique dans de théâtre du XXe siècle et sa nécessité artistique, et, d'autre part, l'utilité — je me risquerais même à dire: l'urgence — de démêler l'écheveau où s'entremêlent autobiographique, théâtre, scène, véracité, ambiguïté, fiction, eu égard à la connaissance plus fine des notions d’autobiographique et d'autofiction actuellement qu'au début des annés quatrevingt.
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A fim de exemplificar a autoficção teatral que produz efeito metateatral, citarei duas produções de períodos diferentes: Pode ser que seja só o leiteiro lá fora, do começo da década de 1970, e Luís Antonio-Gabriela, de 2011. Pode ser que seja... ou não Escrita por Caio Fernando Abreu, a peça Pode ser que seja só o leiteiro lá fora apresenta um grupo de amigos que se refugiam da chuva em uma casa abandonada (as chamadas squat). Os personagens que surgem no ato único são João, Leo, Baby, Mona (Carlinha Baixo-astral), Rosinha, Alice e Angel. Todos jovens, pobres e sem muitos recursos de higiene, fogem da polícia devido aos pequenos roubos que cometem para comer. Rosinha está grávida de João e sofre intensas dores. Leo é o personagem mais racional e pessimista; ao contrário dele, Mona é extremamente otimista, até surgir outra personalidade sua, a Carlinha Baixo-astral, espécie de dualidade que a torna bipolar. Alice é um sujeito andrógino que, em busca de medicamentos e alimento, encontra Angel, um peruano inocente que aceita o convite de moradia. Para finalizar, Baby: homossexual sempre feliz e otimista, que esconde tristeza e solidão amedrontadoras. Luciano Alabarse dirigiu a primeira montagem dessa peça, em Porto Alegre, no ano de 1983. Porém, ela foi escrita em 1976, sendo um dos textos premiados no concurso de dramaturgia do Serviço Nacional de Teatro, que patrocinou leituras dramatizadas das peças vencedoras em várias capitais do país. Em Porto Alegre, a leitura foi apresentada no Teatro de Arena, sob a direção de Nara Keiserman, com Luís Artur Nunes e José de Abreu. Logo em seguida, a peça foi proibida pela Censura Federal em todo o território nacional (ABREU, 2009, p.63). A partir de uma leitura paratextual e comparativa com o conto “Lixo e Purpurina”, publicado em 1995 na coletânea Ovelhas negras, podemos constar a autoficcionalidade de ambos os textos. O conto, declaradamente um misto de diário e ficção, soma vários fragmentos escritos por Caio Fernando Abreu em Londres no ano de 1974 (ABREU, 1995, p.107). Conto e peça trazem a mesma história: o grupo de squatters que ocupa uma casa supostamente abandonada e temem a chegada de policiais ou possíveis moradores. A fim de ressaltar certos dados referenciais nos textos ficcionais, usarei também algumas cartas e depoimentos de amigos e do próprio Caio Fernando. A partir desse cruzamento de textos, encontramos na figura de Angie no conto e de Baby na peça a ficcionalização do autor empírico, isto é, Caio Fernando Abreu, o que assegura, portanto, o homonimato entre autor, narrador e personagem no conto, tal como exigido por Vicent Colonna para um texto autoficcional. Embora não exista a marca nominal, esta pode ser afirmada a partir de dados ou marcas fornecidas pelo texto (COLONNA, 2004; GASPARINI, 2004). Tomamos como exemplo esse trecho do conto “Lixo e Purpurina”:
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Eu estava no alto da escada quando bateram à porta da rua. Comecei a descer enrolado no xale roxo das badtrips, não há aquecimento, faz muito frio fora dos quartos. Antes que eu descesse, empurraram a porta e entraram, estava aberta. Era um grupo grande, na frente deles Angie e Deborah, de mãos dadas. Eu continuei parado, eles vieram vindo pelo corredor. Mas talvez pelo ácido de ontem, ainda, ou pelo choque, não sei, quem sabe até pela fome — eu tinha a impressão de que quanto mais se aproximavam, mais se afastavam. Como se a cada passo que dessem o corredor aumentasse um pouco. Sem Angie, pensei, sem Angie não irei mais à Espanha. E não há nenhum sentido em estar aqui (ABREU, 1995, p.112).
O autor do diário-ficcional aparentemente se relacionou amorosamente com Angie em Londres. Segundo o amigo Marcos Santilli, Caio “com frequência usava um xale roxo. Todas as vezes que se deprimia, ele aparecia com aquele xale, os amigos se preocupavam quando ele começava a amanhecer de xale roxo.” (apud DIP, 2009, p.159). Evidencia-se, portanto, a figura empírica de Caio Fernando no personagem: [...] Há tendas árabes pelos quartos, velas acesas nas escadas e a loucura arreganhando seus dentes de jade em cada canto da casa. Para não fazer parte disso, eu quis morrer, quis ir embora, quis perder para sempre a memória, estas memórias de sangue e rosas, drogas e arame farpado, príncipes e panos indianos, roubos e fadas, lixo e purpurina (ABREU, 1995, p.112). [...] Cortinas, tendas com panos indianos circundando as camas, velas e incensos, vasos com plantas, alguns móveis antigos. Um jeitão meio de ciganos vindos do Oriente (DIP, 2009, p.159).
E, por fim, na peça Pode ser que seja só o leiteiro lá fora: BABY — Do fundo das trevas só o silêncio nos responde, irmãos. Acho que podemos instalar aqui os nossos domínios (Tira uma vela do bolso. Acende e deposita em cima de um móvel. A luz aumenta.) Aqui, por exemplo, podemos colocar uma cortina de veludo cor de vinho. Com franjas douradas, é claro, igual àquela que tinha na casa da tia Nenê. Aqui no canto acho que ficará de extremo bom-gosto um aparador com tampo de mármore, igual àquele que tinha na casa da vó Manca. E claro que teremos sempre flores. Rosas. Não, rosas não, muito vulgar. Melhor tulipas. Importadas diretamente dos Países Baixos. Tulipas da Antuérpia. Ou papoulas. Assim poderemos fabricar nosso próprio ópio. Hmmmm, I like so much. What you think about, my fellow? (ABREU, 2009, p.64-5).
Luís Artur Nunes (2012, n.p.), em entrevista cedida a mim durante a pesquisa de mestrado, afirma que o personagem Baby pode ser, sim, pensado enquanto personagem autoficcional, pois vê “os personagens de Caio como um compósito de traços
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observados tanto em si mesmo quanto nas pessoas com quem conviveu”. Embora não sejam construídos com uma “intenção explícita de autocitação”, existe, claro, um indício de autoficcionalidade. Para ele, Caio se utilizou de pessoas que viveram com ele em Londres para criar essa peça, misto de esperança com decadência: [...] o Leiteiro é uma peça que traduz muito a experiência londrina [de Caio]. Aquele tipo de comunidade marginal, contracultural, que cultivava ao mesmo tempo as drogas, que aparece disfarçadamente através do chá, porque foi escrita em uma época em que a censura era muito forte, inclusive a peça foi censurada, e a questão também da religiosidade, da espiritualidade, aparece muito na peça, mas também ao mesmo tempo o reverso dela, que é um lado demoníaco, negro, aquela espécie de missa negra com que a peça termina, que seria o lado, digamos assim, da badtrip daquela experiência toda (NUNES, 2011, n.p.).
Para Luciano Alabarse (2011 n.p.), também em entrevista cedida, Baby é um reflexo da experiência do autor em Londres: Eu acho que é muito difícil que um autor escreva sem partir de si mesmo. Claro que nem tudo que ele escrevia, ele viveu. Não é isso que quero dizer. Mas sem dúvida, o olhar de qualquer escritor, mesmo que não seja factual, mostra quem é o escritor. Então, evidentemente, que ele não viveu a Zona Contaminada, mas ali está o jeito com que ele olhava todas essas questões políticas da época. Nesse sentido, não é possível você escrever algo para fora de você mesmo que não tenha vivido protagonicamente o episódio, mas quando está escrevendo, quem está escrevendo é o sujeito, e então é olhar desse sujeito. E esse mero olhar fica importantíssimo, porque se coloca algo do autor ao narrar, mesmo que eu esteja narrando um acidente [...] E acho que na literatura dele muito, muito era de coisa vivida. [...] Então, em definitivo, não só dele, que eu concordo que sim, que há muito de autobiográfico no que ele escreve, mas não só reduzir uma obra de ficção à autobiografia. [...] Em uma peça que eu dirigi, que foi o Pode ser que seja só o leiteiro lá fora, claro que nem todos os personagens eram ele, mas ele os conheceu, um deles, o Baby, era ele (ALABARSE, 2011, n.p. grifo meu).
É sabido que Caio Fernando Abreu era ligado a astrologia, a ponto de fazer o mapa-astral de seus personagens, como bem mostra Amanda Costa (2011) no livro 360 Graus: inventário astrológico de Caio Fernando Abreu, escrito a partir do doutorado defendido em 2008 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tal ligação e persona astrológica ficam evidentes no personagem de Mona, a rainha do Alto-astral, que tenta, sempre, mostrar o lado positivo das situações. Propõe, em certo momento, uma festa à fantasia, na qual Baby pede para ser príncipe:
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MONA — Você é um príncipe. Mas um príncipe solitário (Começa a vesti-lo.) Você vive num castelo sobre a montanha mais alta e mais escarpada. Alguém lhe prometeu um reino certa vez, um reino de paz e amor, e você está esperando esse reino. Às vezes você desce a montanha e vai até a vila e tenta conversar com as pessoas. Você anda sempre disfarçado, elas não sabem que você é um príncipe. Mas você se sente sozinho no meio deles, porque você não pode se mostrar como realmente é. Então você tem sempre a sensação que ninguém o conhece, que ninguém o entende. Você está sempre esperando o reino que prometeram, esse, de paz e amor. Só nesse dia, quando o encantamento quebrar e o seu reino for revelado, só nesse dia todos vão saber que você sempre foi um príncipe. Só nesse dia você mostrará o seu verdadeiro rosto dourado e tocará seu alaúde para que todos fiquem contentes e sintam amor (ABREU, 2009, p.74).
O sentimento de estrangeiro foi característica do escritor Caio Fernando Abreu transposta para seus personagens: sujeitos fragmentados que se sentiam perdidos na metrópole, estrangeiros em todos os lugares3. Além disso, evidencia-se na fala a necessidade e busca pelo amor, metaforizada em forma de conto de fadas, outra forte característica de Caio Fernando evidenciada em sua obra literária. Posto isso, podemos inferir que a obra dramática Pode ser que seja só o leiteiro lá fora constitui um exemplo de escrita autoficcional, não pelos moldes de Doubrovsky, visto que, como já foi dito, não existe aqui a figura do narrador. Entretanto, podemos conceber a peça como uma vertente do teatro autoficcional contemporâneo. Desta forma, tomo o conceito de Diana Klinger, que concebe a autoficção como dramatização do eu, [...] que supõe, da mesma maneira que ocorre no palco teatral, um sujeito duplo, ao mesmo tempo real e fictício, pessoa (ator) e personagem. Então não se trata de pensar, como o faz Philippe Lejeune, em termos de uma “coincidência” entre “pessoa real” e personagem textual, mas a dramatização supõe a construção simultânea de ambos, autor e narrador. Quer dizer, trata-se de considerar a autoficção como uma forma de performance (KLINGER, 2012, p.49, grifo da autora).
No caso dramático, substitui-se o termo narrador por personagem, como ocorre nas autoficções nas quais o foco narrativo não está na primeira pessoa. O personagem é tomado, portanto, como um sujeito perfomancer do escritor, que ficcionaliza suas experiências. O teatro como confissão Em 2011, o diretor Nelson Baskerville rememora sua história para montar um espetáculo que comove e inquieta o espectador em um surpreendente conjunto. Seu 3
Para aprofundamento, ver LEAL, B. S. Caio Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro: Contos, identidade e sexualidade em trânsito. São Paulo: AnnaBlume, 2002.
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irmão mais velho, Luis Antonio, era homossexual e viveu em Santos até os trinta anos, quando se mudou para a Espanha. Durante três décadas, quase nada se soube dele, que, em Bilbao, assumiu a identidade de Gabriela, protagonizou shows em boates e acabou vitimado pela AIDS em 2006. O programa da peça a chama de “documentário cênico”. Talvez seja um termo bem aproximado, visto que, no decorrer da encenação, projeções do processo criativo são exibidas em telões, o que inclui depoimentos do próprio dramaturgo e diretor. A questão em Luis Antonio-Gabriela difere um pouco do que percebemos em Pode ser que seja só o leiteiro lá fora, visto que aqui o diretor-dramaturgo é nomeado na peça, mas por uma atriz. Atriz — Boa noite. Meu nome é Verônica e eu vou fazer o Nelson, último filho do casal Glédis e Pascoal e diretor deste espetáculo. Minha mãe morreu no dia em que eu nasci, e fui criado pela minha madrasta. [...] O meu [apelido] é Bolinho (LUÍS, 2011, n.p.).
Nessa simples entrada da atriz Verônica Gentilin, citada como coautora da peça, fica explícito o que pretendo neste artigo: evidenciar o caráter metateatral que o teatro autoficcional possui. Ao se denominar Verônica, a atriz deixa-se ver metateatralmente. Ao denominar seu personagem, “Nelson, último filho do casal Glédis e Pascoal e diretor deste espetáculo”, ela enfatiza esse caráter e insere no discurso metateatral a autoficção: ela, uma mulher e atriz, representará um homem, que por sinal é diretor e autor do espetáculo, consciente disso. Logo, é a vida do próprio Nelson que está encenada ali, não uma completa ficção, não deixando de sê-la, pois estamos no palco da ilusão, no campo literário-dramático. Assim, esse misto de realidades impõe ao espectador um olhar mais atento e revela o caráter híbrido da cena. Tomando a peça como documentário cênico, o espectador receberá os dados ali inseridos como referenciais. Entretanto, a forma como a peça é conduzida leva o espectador a mergulhar no espaço híbrido sobre o qual escrevo: é como se, quanto mais o caráter ficcional se revelasse, isto é, quanto mais se evidencia o realismo da narrativa, mais acreditamos estar diante de uma ficção. A fim de exemplificar grosseiramente essa sensação, basta olharmos para as produções fílmicas, tanto para o cinema quanto para a televisão, que são filmadas com câmera caseira e com atores que simulam o tom confessional ou documentário. Tais produções corroboram para essa característica da produção teatral e cinematográfica atual: quanto mais se revela os bastidores da ficção (câmeras, diretores, contrarregras, erros etc.) ou confessionalidade, mais se evoca a ficcionalidade do conteúdo. O espectador sabe ser ficção, e mesmo diante de dados que, a priori, comprovariam o contrário, não se deixa enganar: trata-se de ficção, ilusão. [...] no espetáculo teatral, como no texto de ficção, espaço e tempo são ilusórios, na cena e no romance tudo remete ao imaginário. Quanto mais o ator (ou o autor do texto) entra no personagem e mais real tenta
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fazê-lo, mais reforça o caráter ficcional e, portanto, ilusório (KLINGER, 2012, p.51).
Na autoficção, o jogo entre real e ficcional permite o mesmo efeito: instituída a ficção, por mais real que o personagem possa parecer, mais irreal ele será. E o contrário é verdadeiro: quanto mais fictício ele parecer, mais verdadeiramente personagem ele será. “Da mesma forma que na performance, na autoficção convivem o autor (o ator) e o personagem, de tal forma que não se procura aumentar a verossimilhança, pois ela, como vimos, aumentaria paradoxalmente o caráter ficcional.” (KLINGER, 2012, p.51). Ambas as produções se aproximam do teatro documentário, com maior precisão o espetáculo Luís Antonio-Gabriela, visto que ambos se servem de documentos, isto é, dados não ficcionais ou “qualquer tipo de fonte que se configura num testemunho registrado diretamente da realidade” (SOLER, 2008, p.36). A diferença principal entre o teatro documentário e o teatro ficcional está na intenção de ficcionalização. Enquanto no documentário o personagem nasce naturalmente da “preparação prévia de acordo com interesses específicos” (SOLER, 2008, p.37), no teatro autoficcional se quer ficcionalizar e esconder a realidade o máximo possível por trás da ficção. Outra diferença é que, para o espectador, a peça Pode ser que seja só o leiteiro lá fora se coloca como ficção, ao contrário de Luís Antonio-Gabriela, que se afirma, desde o programa, se tratar de um dado referencial. Assim, “o dado não ficcional só será percebido como tal quando a platéia, previamente ou durante a própria encenação, significá-lo desse modo” (SOLER, 2008, p.37). Dito isso, podemos conceber a autoficção, isto é, o hibridismo de ficção e realidade em determinada obra literária ou cênica, como um jogo, no qual o leitor é convidado a mergulhar, podendo ele negar tal pedido, aceitando apenas o pacto ficcional. Da mesma forma que o pacto autobiográfico procura conduzir o leitor a um horizonte de expectativa no qual tudo é real, verificável e histórico (ao menos teoricamente), o pacto ficcional induz o leitor a não acreditar em nada, prevalecendo o nível de ilusão necessário para a ficção. A partir do momento em que o autor instaura-se no texto via ficcionalidade, promove-se uma espécie de alteração no modo de leitura. Um espectador que, informado, assiste a uma encenação documental, recebe a obra de maneira totalmente diferente daquela que faria frente a uma obra de ficção. Mesmo com a pretensão ilusionista do realismo e do naturalismo, após assistirmos a uma encenação nesses moldes, sabemos que estamos diante de algo ficcional. Ainda que completamente envolvidos e identificados com o que presenciamos, nossa relação é diferente na fruição de um discurso não ficcional (SOLER, 2008, p.37). O mesmo ocorre com o espectador que, ao assistir a uma montagem da peça de Caio Fernando Abreu, sabe do período em que o escritor morou em Londres e viveu em um squat. Posto que Caio Fernando é um escritor altamente divulgado nos dias atuais, principalmente em redes sociais, cuja biografia é publicada e transposta para o cinema em forma de documentário fílmico e cuja figura está midializada e, por isso,
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amplamente difundida, não se trata de tarefa difícil. Ao se deparar, então, com tal tema, o espectador adentra no campo do real, sendo retirado dele, por exemplo, quando percebe que nenhum personagem tem o nome de Caio Fernando, ou por não se explicitar em momento algum se tratar de uma peça autobiográfica ou documental. Assim, o espectador fica no entre-lugar do crer e do descrer, do acreditar e do duvidar, um jogo sem fim na literatura e que é, no teatro, mais acentuado. Enfatizo a acentuação do jogo no teatro pois, como se bem sabe, desde sempre essa arte se constrói sobre esse espaço híbrido: são atores reais em um espaço real encenando uma ação ficcional, imaginada por um dramaturgo real, mesmo que oculto. A natureza do teatro impõe um jogo que acentua o jogo autoficcional. Na autoficção, o horizonte de expectativa é nebuloso: espera-se que o espectador arrisque-se no jogo entre real e ficcional, sem ter de comprovar um ou outro. “Sabe-se que a percepção do gênero em larga medida orienta e determina o ‘horizonte de expectativa’ do leitor e, portanto, a leitura da obra.” (GENETTE, 2010, p.18). Assim, a autoficção se aproxima dos recursos metateatrais já teorizados por Lionel Abel (1968) e Manfred Schmeling (1982), dentre os quais se destacam a quebra da quarta parede e o teatro dentro do teatro, recursos que quebram a ilusão a partir do momento em que se instaura um discurso crítico que questiona o que é real e o que não é. Desta forma, se “problematiza a relação entre as noções de real (ou referencial) e de ficcional, assim como a tensão entre a presença e a falta” (KLINGER, 2012, p.34). O que se propõe é que, a partir da instauração de um discurso autoficcional em uma peça, seja por citação direta, seja por constatação paratextual, o leitor/espectador tem seu horizonte de expectativa alterado, isto é, ele recebe a obra consciente de que aquela peça não é nem ilusão pura, nem documentário puro. Logo, ele não pode crer em tudo, mas também não vai descrer em tudo. Assim como o metateatro instaura o pensamento crítico sobre o fazer teatral, sua ilusão e sua relação com a vida, a autoficção acentua criticamente tais relações, questionando o que é real e o que é ficcional. Por outro lado, analisar uma obra autoficcional não é a busca pela verdade no texto. Sua análise se torna pertinente quando, ao retratar ficcionalmente uma realidade empírica, ela implique ou em uma documentação histórica, ou em uma transgressão textual. Para Iser (1983, p. 386), “quando a realidade repetida no fingir se transforma em signo, ocorre forçosamente uma transgressão de sua determinação correspondente. O ato de fingir é, portanto, uma transgressão de limites”. Ora, “quando o ator entra na cena teatral, ela passa a ‘significar’, a virar signo, desdobrando-se em ator e personagem.” (KLINGER, 2012, p.50). Ele permanece inevitavelmente entre dois polos: atuação e representação. Um ator não poderá somente atuar, mesmo que represente a si mesmo (caso de espetáculos performáticos autobiográficos ou autoficcionais, nos quais dramaturgo, ator e personagem são a mesma pessoa); tampouco poderá estar totalmente no personagem. Os restos de um contaminarão as partes do outro, assim como a ficção se contaminará com experiências
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do autor ou como, ao escrever uma autobiografia, a memória filtrará o que deve ser ou não narrado, e de que forma deve sê-lo. Dramatizando a si mesmo, o dramaturgo entra no jogo dúbio entre verdade e ficção. Segundo Doubrovsky (1988), se a verdade do autor é a ficção que ele cria, então a verdade da ficção é fictícia. Perceba-se que não é mais uma vida construída que está sendo contada, como acontece com a autobiografia, mas uma vida que está em construção no momento presente, o que torna o ato da escrita um ato metalinguístico e, consequentemente, metateatral quando nos referimos ao teatro. Para Pascolati (2011, p.98), “um recurso metateatral é o modo de composição das personagens, sempre pautado pela duplicidade, pelo ambíguo”. Assim, o metateatro questionará a ficção em si, enquanto a autoficção questionará o próprio personagem. Ambos, metateatro e autoficção, inserem o personagem no campo híbrido e duplo, que é quebrado/revelado na própria cena, pois “por mais que o palco se esforce, jamais será capaz de traduzir a verdade que [os personagens] carregam em si; a representação, pelos atores, por melhor que possa ser será sempre uma ‘representação’ e nunca a ‘realidade’.” (PASCOLATI, 2011, p.98). Assim é o jogo teatral. Podemos crer, mesmo no teatro documental ou naquele espetáculo no qual o ator é o dramaturgo e o sujeito empírico da ação narrada, que o que está encenado não é ficção, mas nunca acreditaremos que aquilo é o real. Não é o real acontecendo ali, mas a encenação do real. Referências bibliográficas ABEL, Lionel. Metateatro: uma visão nova da forma dramática. Trad. Bárbara Heliodora; apresentação de Paulo Francis. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. ABREU, Caio Fernando. Ovelhas Negras. Porto Alegre: Sulina, 1995. ______. Pode ser que seja só o leiteiro lá fora. In: Teatro completo de Caio Fernando Abreu. Rio de Janeiro: Agir, 2009. ALABARSE, Luciano. Entrevista. [15 de junho, 2011]. Londrina. Entrevista concedida a Ricardo Augusto de Lima. COLONNA, Vincent. Autofiction & autres mythomanies littéraires. Auch Cedex (France): Éditions Tristram, 2004. DIP, Paula. Para sempre teu, Caio F. São Paulo: Record, 2009. DOUBROVSKY, Serge. Autobiographiques: de Corneille à Sartre. Paris: Presses Universitaires de France, 1988. ______. Les points sur ler “i”. In: JEANNELLE, Jean-Louis; VIOLLET, Catherine (Dir.) Genèse et autofiction. Louvain-la-Neuve: Bruylant-Academia s.a., 2007. p. 54-65. GASPARINI, P. Est-il je? Roman autobiographique et autofiction. Paris: Seuil, 2004.
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NARRATIVAS DA ANTIGUIDADE: LUCIANO DE SAMOSATA E AS NARRATIVAS DO PENTATEUCO Ricardo Gomes da Silva (UNESP – Araraquara) O objetivo deste trabalho é correlacionar narrativas da Antiguidade. De um lado Luciano de Samósata, estimulador da tradição da Sátira Menipéia, de outro as narrativas bíblicas do Pentateuco (Torá no Judaísmo). Primeiramente estas duas correntes se aproximam pelo fato de serem Orientais. Luciano nasceu Síria, na atual região de Samsat, - província de Adıyaman, Turquia. As primeiras narrativas bíblicas do Pentateuco são oriundas do Oriente Médio. Além da proximidade geográfica, ou melhor, justamente por terem em comum um berço no Oriente Médio, as narrativas literárias de Luciano e as narrativas do Pentateuco carregam visões bastante similares. Ambas possuem lógicas narrativas diferentes da greco-romana em voga na antiguidade. Auerbach observa muito bem as diferenças entre a lógica Bíblica e a lógica Odisséia. Da mesma forma, Bakhtin nos aponta de que maneira Luciano - dentro da Sátira Menipéia - prezou por narrar de forma contrastante com as narrativas oficiais, isto é, contrastante com as narrativas de Homero. Considerando tais elementos, buscaremos neste estudo apontar e analisar de que maneira a Luciano de Samósata e o Pentateuco bíblico se aproximam e se configuram como uma forma de pensamento se infiltrou na literatura e no mundo ocidental. Narrativas antigas Correlacionar narrativas da antiguidade sempre se apresenta como um grande desafio, pois implica em associar referentes de um passado remoto por meio de uma ótica contemporânea. Eric Auerbach foi um dos que assumiu este desafio. Em sua obra Mimesis – a representação da realidade na literatura ocidental (1946), Auerbach se propôs a traçar um esboço da evolução das narrativas escritas no Ocidente desde a Antiguidade até os seus dias, na década de 1940.
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Dentre as diversas estratégias utilizadas por Auerbach em seu estudo, uma nos é de grande importância: a correlação que ele realiza entre duas narrativas que se situam no nascimento das narrativas escritas ocidentais: a narrativa épica grega e a narrativa bíblica. Ambas antigas, a narrativa épica grega e a narrativa bíblica, como nos demonstra Auerbach partirão de referencias de mundos distintos. Enquanto as narrativas épicas irão partir de um tipo de visão de mundo mais objetiva e ― realística‖ as narrativas bíblicas se pautarão em uma perspectiva mística do mundo e que não elege o princípio ― realístico‖ como elemento básico. Para chegar demonstrar esta sua percepção, Auerbach irá comparar o episódio da Odisseia de Homero com em que há o reconhecimento de Ulisses quando este retorna à Ítaca e o episódio do sacrifício de Isaac na Bíblia. No canto XIX da Odisseia, ocorre o reconhecimento de Ulisses: introduzido no palácio, disfarçado de mendigo, Ulisses é levado para lavar-se. A velha serva da casa, Euricleia, ao tocar no joelho do amo, percebe, pela cicatriz, tratar-se de Ulisses. Dá-se o que Auerbach chama de ― elemento retardador‖, pois, na sequência, a narrativa volta ao tempo para explicar como Ulisses adquirira a cicatriz. O ― avançar e retroceder‖ na narrativa homérica é, para Auerbach, interpretado como uma necessidade do estilo homérico de ― não deixar nada do que é mencionado na penumbra ou inacabado‖ (AUERBACH, 2001, p. 3). Em relação ao episódio do Gênesis, no qual se relata o sacrifício de Isaac , em contrapartida, a narrativa é realizada de maneira rápida, sem explicações detalhadas acerca do chamado de Deus e da angústia de Abraão ao levar o filho, Isaac, ao local do sacrifício. Na narrativa, passado algum tempo do nascimento de Isaac, Deus pôs Abraão à prova, chamando a Abraão, que imediatamente responde. Ordena então a Abraão que tome seu único filho, amado, e que vá para determinada região e o sacrifique. A conclusão que Auerbach chega ao expor estes dois episódios a um estudo comparativo é a de a narrativa bíblica se difere enormemente da homérica por não prezar pelas longas explicações ou mesmo pela narrativa e descrição de detalhes dos fatos ocorridos. Da mesma forma instantânea que Deus ordena o sacrifício, e aceita Abraão cumprir o indicado, no instante final ocorre um chamado de um Anjo do Senhor ordenando que não haja sacrifício. A afirmação do anjo de que agora sabia que Abraão
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temia a Deus por não ter negado o seu único filho, não tem a preocupação em explicar se, em algum momento, Abraão teria tido um comportamento que colocasse em julgamento sua fé. Em Homero haveria uma busca de uma espécie de ludismo, de representar a essência do homem grego e sua história. Na Bíblia há o mito fundador, a verdade fechada, que serve como paradigma aos crentes. Nesse sentido, A narrativa na Antiguidade, possuía uma preocupação tanto literária quanto história, da mesma forma, aproximava-se da oratória, buscando sempre esclarecer seus argumentos com exemplos. Narrar uma história era uma ‗arte da exposição‘, uma narrativa que buscava a explicação dos acontecimentos que ocorriam num tempo circular, sujeitos a se repetirem de tempos em tempos. Exemplos disto são as narrativas de Homero ( VIII a.C), Heródoto de Halicarnasso (485 a.C. e 430 a.C), Tucídides (460 e 455 a.C), Políbio (203 a.C. — 120 a.C.), Cícero (106 a.C. - 43 a.C.), Tito Lívio (59 a.C. – 17), Plutarco (46 a 126 d.C.) e Tácito (56 – 120). Buscava-se, dessa maneira, contemplar os feitos dos homens, de modo a mostrar os sentimentos que motivaram as ações. O desfecho do acontecimento, portanto, era sempre uma lição que a História devia deixar, na expectativa de que as tragédias não se repetissem. Mircea Eliade (2001) apresenta Luciano como um dos responsáveis por trazer descrições das religiões estrangeiras e dos cultos esotéricos, teria, por exemplo, apresentado o culto sírio no seu De Dea Syria (c. 120 d. C.). Para os apologistas e os heresiarcas cristãos, a questão se colocava num outro plano, pois aos múltiplos deuses do paganismo eles opunham o deus único da religião revelada. Era-lhes necessário demonstrar a origem sobrenatural do cristianismo, e também sua superioridade, todavia, fazia-se necessário explicar a origem dos deuses pagãos, sobretudo a idolatria do mundo pré-cristão; além das semelhanças entre as religiões dos mistérios e o cristianismo. Foram sustentadas várias teses: 1) os demônios, nascidos do comércio dos anjos caídos com as filhas dos homens‘; tinham arrastado os povos para a idolatria; 2) o plágio (os anjos maus, conhecendo as profecias, estabeleceram semelhanças entre as religiões pagãs e o judaísmo e o cristianismo, afim de perturbarem os crentes; os filósofos do paganismo haviam inspirado suas doutrinas em Moisés e nos profetas); 3) a razão humana pode elevar-se por si mesma ao conhecimento da verdade, portanto o mundo pagão podia ter um conhecimento natural de Deus(ELIADE, 1992, p.8)
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Nesse sentido, é relevante a observação de Auerbach de que se de um lado de que os personagens homéricos são retratados num mundo extremamente detalhado e rico que lhes tira a profundidade psicológica; por outro lado os personagens bíblicos vivem situações de pesar que lhes imprimem uma profundidade até então não observada em outros textos. Acompanha-se, por exemplo, o sofrimento de Abraão, cumprindo a ordem dada por Deus em sacrificar seu único filho, Isaac. Auerbach comenta: O mais importante, contudo, é a multiplicidade de camadas dentro de cada homem; isto é dificilmente encontrável em Homero, quando muito na forma da dúvida consciente entre dois possíveis modos de agir; em tudo o mais, a multiplicidade da vida psíquica mostra-se nele só na sucessão, no revezamento das paixões, enquanto que os autores judeus conseguem exprimir as camadas simultaneamente sobrepostas da consciência e do conflito entre as mesmas. (AUERBACH, 2001, p. 10)
Com esses direcionamentos, Auerbach discute como a literatura ocidental se reorganizará a partir da concepção desses dois mundos: o grego e o judaico-cristão. Mimeses (μίμησις), que em grego nos leva a ideia de imitação ou representação, em Auerbach surge como meio de notar dissonâncias entre narrativas ocidentais e orientas já na antiguidade, mais do que isto o crítico nos auxilia a pensar como é possível criar relações entre as narrativas antigas. Tomemos estas percepções de Auerbach de que o discurso narrativo bíblico se configura como um discurso em dissonância com o discurso de Homero. Luciano e Menipo: dois sírios Se de um lado temos as narrativas bíblicas como um discurso dissonante das narrativas homéricas, ao nos debruçarmos sobre a obra de Luciano de Samosata encontraremos também um discurso que foge a lógica e aos princípios representativos greco-romanos. Custódio Magueijo (2012) ao prefaciar a tradução das obras completas de Luciano para a língua portuguesa comenta que nosso autor nasceu em Samósata, capital do antigo reino de Comagena, situado a norte da Síria, na margem direita do Eufrates.
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Quanto a data de nascimento e morte, Magueijo argumenta que podemos aceitar 125190 d.C. sendo que seguramente, a vida literária de Luciano desenvolve-se na segunda metade do séc. II d.C., por um período de quarenta anos, durante o qual escreveu cerca de oitenta obras. De acordo com Custódio Magueijo (2012), Luciano foi essencialmente um sujeito de paradeiro irregular. Um sujeito que após uma peregrinação de vários anos por terras da Grécia, da Itália e da Gália regressa (por volta de 162-163) à sua cidade natal, que o havia visto partir pobre e quase anónimo, e agora se orgulhava do prestígio que lhe era transmitido pelo êxito dum filho seu. Luciano escreveu em grego e se tornou conhecido notadamente pelos diálogos satíricos. Satirizou e criticou acidamente os costumes e a sociedade da época e exerceu, a partir da Renascença, significativa influência em escritores ocidentais do porte de Erasmo, Rabelais, Swift, Voltaire e Machado de Assis. Entre suas obras mais conhecidas estão Uma história verdadeira (ou Uma história verídica), O amigo da mentira, Diálogo dos mortos, Leilão de vidas, O burro Lúcio, Hermotimo e A passagem de Peregrino. Luciano escreve no segundo século após o nascimento de Cristo, período áureo do Império Romano. Pouco mais de dois séculos depois Roma entraria em declínio até ser suplantado pelas sequências de invasões bárbaras e se instaurar o período da Idade Média que se estenderá até o século XV. Ainda na Antiguidade grega, Luciano encontrara em outro escritor de origem síria com o qual poderá dialogar: Menipo. Sendo que o próprio Luciano é será quem comecara a se utilizar do conceito de Sátira Menipeia ainda na antiguidade. A sátira de Menipo (da primeira metade do século III a.C), descrita por R. Bracht Branham como ― uma forma que parodiava tanto o mito como a filosofia" (2007, p.21) acabou sendo um conceito que englobaria o próprio Luciano. O conceito de Sátira Menipéia foi criado, portanto, para classificar a obra de Menipo (200 a.C), a qual buscava essencialmente ridicularizar as obras sérias, como epopeias e tragédias. Do escritor sírio nascido em Gadara (hoje Umm Qais – Jordania) não restou nenhum dos seus textos. Como nos diz Sá Rego (1989), ao desenvolver um aprofundado estudo sobre o assunto,
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Menipo é uma figura curiosa e misteriosa ― como o gato de Alice no País das Maravilhas, desapareceu deixando apenas o sorriso‖ (p.18). Ou seja, o que conhecemos de Menipo é a denominação de textos enquanto descendentes da tradição da Sátira Menipéia feita por Luciano de Samósata. A importância de Luciano como estimulador de um estilo literário excêntrico que Sá Rego (1989) prefere considerar mais adequado utilizar a denominação de tradição lucianica. É válido lembrar que além de Luciano e Menipo, houve vários outros escritores que prezaram pela escrita fragmentária, incomum, meta-literária, paródica, irônica na Antiguidade. Podemos citar Marcus Terentius Varro (116 BC – 27 BC), Seneca (4 a.C. – d.C 65), Petrônio (27 d.C), Juvenal (200 d.C.), os quais são definidos na maior parte das vezes como satiristas. Embora dispersa e incipiente estes escritores irão formar um ponto de partida e retorno que servirá aos sucessores da tradição de escritores excêntricos. A postura inquisitiva e paródica a utilização em larga escala do diálogo, diatribe e aforismo fizeram com que a Sátira Menipeia surga como uma forma literária excêntrica na qual tanto Menipo quanto Luciano pôde agir na antiguidade. Menipo, quando é retomado por Luciano deixa de ser um caso isolado dentro da antiguidade greco-romana para poder ser responsável por uma vertente literária propagadora de um estilo propriamente incomum e opositivo as normas vigentes. Luciano relembrará não somente os princípios já trazidos por Menipo e sua sátira, mas também escreveu obras como Icaromenipo e Diálogo dos mortos as quais ao transformarem Menipo em um personagem literário ― deram às formas Menipéia uma sobrevida longa e influente na Antiguidade e no Renascimento, fazendo do cinismo uma das fontes primárias da literatura satírica na Europa‖ (BRANHAM, 2007, p.21). Algo lamentável deste fecundo período menipeico é o fato de que os trabalhos mais influentes desta literatura ― que em seu tempo foram abundantes - desapareceram, tendo restado apenas parcos fragmentos citados por intermediários, que, ademais, às vezes são hostis aos cínicos que eles citam: este é o caso, por exemplo, do epicurista Filodemo (no século I a.C) e de alguns Padres da Igreja" (BRANHAM, 2007, p.13). Como nos expõe Branham, o esforço de Luciano em resgatar Menipo e os demais cínicos foi uma maneira de legitimar seu discurso incomum.
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Temos, portanto, nascida na antiga Grécia propriamente uma tradição e uma tipologia literária construída primariamente por dois escritores de origem síria. A Sátira Menipéia pode ser pensada como uma tradição de quase dois milênios e meio que promulgou o lugar incomum, a liberdade pensamento, despudoradamente indiferentes às normas estabelecidas. Não há como dizer que ao se refletir sobre a Sátira Menipéia não se esta também se lidando com Luciano e Menipo e vice-versa. Ambos funcionaram conjuntamente para que na Antiguidade se pudesse produzir uma literatura que fugisse as normas vigentes. Em Problemas da poética de Dostoievski, Bakhtin ao vasculhar entre os antigos as correntes literárias influentes para o modo de pensar moderno, toma a Sátira Menipéia como expoente maior. De acordo com Bakhtin, a Sátira Menipéia se tratou de um gênero de obras sério-cômicas, o qual se opunha as obras sérias e oficiais por isso se utilizar largamente da paródia, do lugar-incomum na escrita, de idéias e formas de escrita inusitadas e de um expressivo estilo fragmentário e descontínuo. Não há como negar, pelo o que nos descreve Bakhtin (2005), que a Sátira Menipéia foi uma enorme força excêntrica na antiguidade, que permitiu e inspirou muitos escritores a fugirem das normas literárias vigentes, dos modelos oficiais, daquilo que representava repetição não inovadora. Isto fica ainda mais claro quando Bakhtin (2005) nos expõe que a tradição da Sátira Menipéia se caracteriza (1) pelo peso específico do elemento cômico; pela liberdade das limitações memorialísticas e pela liberdade para a fantasia; (2) pela criação de situações extraordinárias para provocar e experimentar uma ideia filosófica; (3) pela lógica narrativa propositalmente distorcida; (4) pela liberdade para se lidar com cenários entendidos como submundos: bordéis, covis de ladrões, tabernas, feiras, prisões, orgias eróticas, cultos secretos: união da filosofia com o submundo (o elevado e o baixo); A falta de etiqueta mostrada em cenas de escândalo, discursos e declarações inoportunas (5) pelo seu universalismo filosófico; (6) pela utilização de um fantástico experimental (ou uma visão de mundo inusitada); (7) pela experimentação moral e psicológica (representações de estados de loucura, dupla personalidade, devaneio, sonhos e paixão); pelos contrastes agudos; (8) pelas menções a utopias sociais (por meio de
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países imaginários); (9) pelo uso de gêneros intercalados, tais como cartas, poemas, discursos (ou versos parodiados); (10) pela utilização da palavra enquanto matéria literária; e por fim (11) pela utilização de informações do momento, imagens de figuras atuais ou recém-apagadas, alusões ao cotidiano reconhecível. É de se chamar a atenção as numerosas características que a Sátira Menipéia agrega. Tal multiface da Menipéia se dá pelo fato dela ser uma tradição excêntrica, que presa pelo incomum. Ao contrário do centro e da norma que tem um núcleo e um tipo de conduta linear e pré-determinada a excentricidade não possui limites a não ser a postura contrária a norma. O que foge as normas tende a ser descontínuo e fragmentário e estar em constante processo de mudança, de auto avaliação. A tendência libertária e o desejo de autonomia que vemos na Sátira Menipéia a permite incalculáveis rotas de fuga do centro, o que explica esta multiplicidade de características que esta tradição literária trouxe consigo na antiguidade. O uso destes elementos em conjunto pela Sátira Menipéia, foi feito com o intuito de que tanto as obras que se embasem nesta tradição quanto seus propagadores – ou seja, os próprios escritores – se tornassem incomuns e excêntricos. Daí, inclusive, a dificuldade de classificação dos escritores como Luciano e Menipo. Dificuldade esta que foi resolvida por Luciano ao chamar de Sátira Menipéia, tanto Menipo, quanto os demais cínicos e escritores que possuíam como postura literária primária a fuga a todas as convenções. O variado comportamento desta tradição no estudo específico sobre de Enylton Sá Rego, é notado da seguinte forma ― a essência da Sátira Menipéia é exatamente o seu andar variado e desenfreado, andando correndo e tropeçando, de vez em quando se permitindo uma cambalhota retórica‖ (SÁ REGO, 1989, p.43). Tal essência se repetirá no barroco, na literatura romântica e modernista, pelo fato de que assim como no período da Sátira Menipéia e dos primeiros cínicos houve um grande impulso de se produzir arte e formas de pensar que fugissem do marasmo do lugar comum. Mais do que levantes revoltosos e revolucionários isolados, os repetidos períodos de excentrismo literário desde a Antiguidade serão movimentos que buscarão se referir aos seus antecessores excêntricos. Daí as referencias dos
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românticos a Luciano, Cervantes e Rabelais. E daí a referência dos modernistas do início do século XX a Cervantes, Shakespeare, Rabelais e Sterne. O excentrismo, portanto, enquanto ato proposital desde Luciano que cita Menipo, é uma tradição literária consciente de si e que constantemente buscará se legitimar por meio da referenciarão a outros excêntricos anteriores. É neste sentido que somos lavados a pensar que a ideia de excentrismo literário pode ser servir para unir uma imensa gama de escritores, algo que ficará mais evidente a medida que caminharmos com nosso estudo. Paralela aos discursos oficiais essencialmente delimitados pelos princípios de perfeição e equilíbrio, a Sátira Menipéia propiciou, principalmente na antiguidade romana, uma corrente de produções literárias que em nome do excentrismo caminhou em direção ao assimétrico e imperfeito.
Considerações Finais Luciano pensado em meio ao mundo antigo é basicamente um sujeito que descende do mundo oriental e não consegue se adequar aos limites ocidentais. Ele nasce na Síria, mas não deixa de ter sua terra natal no horizonte de sua formação, tanto que retorna a ela depois de adulto e famoso. Luciano também irá vasculhar entre os gregos outro escritor de origem síria: Menipo, nos legando a maior parte do que conhecemos atualmente deste outro grande escritor de origem oriental. Agora nos recordando das considerações de Auerbach acerca das dissonâncias entre o discurso das narrativas bíblicas e o discurso narrativo grego podemos, enfim, evidenciar como a medida que Luciano se opõe as formas miméticas greco-romana se aproxima de um discurso outro, que possui suas raízes no oriente. Oriente este que, como nos diz Edward Said, não é apenas adjacente à Europa; é também o lugar das maiores, mais ricas e mais antigas colônias europeias, a fonte de suas civilizações e línguas, seu rival cultural e uma das suas imagens mais profundas e mais recorrentes do Outro. Além disto, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) com sua imagem idéia, personalidade, experiência contrastantes. Mas nada nesse Oriente é meramente
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imaginativo. O Oriente é uma parte integrante da civilização e da cultura material européia. O Orientalismo expressa e representa essa parte em termos culturais e mesmo ideológicos, num modo de discurso baseado em instituições, vocabulário, erudição, imagens, doutrinas, burocracias e estilos coloniais (SAID, 1990, p.13).
Como defende Said, a acepção pela qual se divide o mundo em ― oriente‖ e ― ocidente‖, serve muitas vezes para intensificar as diferenças e obstar quaisquer tentativas de aproximação entre as culturas. Se de um lado a oposição pode ser prejudicial a medida que pode vir a comprovar algo um fato bastante óbvio, mas nem sempre evidenciado: ocidente e oriente comprovadamente desde a antiguidade são mundos que se somam são reciprocamente responsáveis pela configuração atual de um de outro. Chamar a atenção para ascendência síria de Menipo e de Luciano pode nos ajudar a entender como e porque as suas narrativas escritas destoam dos princípios gregos e romanos em voga. Da mesma forma que como nos demonstra Said que a ideia de oriente só passou a ser modificada quando do surgimento de trabalhos científicos que se voltavam à cultura e aos costumes ali perpetrados sob ótica diversa daquela exclusivamente europeia. Lembrarmo-nos da descendência síria de Luciano e Menipo tende a nos ajudar a entender e ver o mundo oriental enquanto intenso colaborador para o desenvolvimento da maneira de ver o mundo na Europa, desde os antigos. Da mesma forma que o trabalho desenvolvidos pelos estudiosos Abraham-Hyacinthe AnquetilDuperron, William Jones, que interferiram na forma com que se via o ― mundo oriental‖ o sânscrito, a religião e a história indiana chamar a atenção para a origem de Luciano tende a desmitificar a visão que comumente se tem de Oriente e Ocidente como mundos em oposição.
Referências AUERBACH, E. Mimesis: a representação da realidade na literatura Ocidental. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.
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BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski; trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992. LUCIANO DE SAMÓSATA. LUCIANO (Obra completa). Tradução do Grego, Introdução e Notas de Custódio Magueijo. Coimbra: Editora da Universidade de Coimbra, 2012. SAID. Edward W. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
SÁ REGO, Enylton José de. O calundu e a panacéia: Machado de Assis, a sátira menipéia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
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VIAGEM ATRAVÉS DO REDEMOINHO: A NARRATIVA FANTÁSTICA E ENCICLOPÉDICA DE MIGUEL GULLANDER Roberto Carlos Ribeiro (UFFS-Erechim) Se ao menos eu por fora fosse tão Interessante como sou por dentro! Vou no Maelstrom, cada vez mais pro centro. Não fazer nada é a minha perdição. (Fernando Pessoa – Opiário) Perdido de volta é o segundo livro do escritor luso-escandinavo Miguel Gullander1, publicado em 2007 pela editora brasileira Língua Geral. Nele, narra-se a história da viagem de um professor de literatura que está escrevendo uma história de amor pelas cidades de Estocolmo, Ilha do Fogo, Lisboa e Mumbai, em diferentes países e continentes. A trajetória das aventuras da personagem é a estrutura do romance. Na obra, os níveis de escrita e referência vão se imbricando. Como distinguir a história narrada e a história narrada pela personagem escritor? Viagem, conhecimento de si e amadurecimento de personalidade se somam na trilha de formação do narrador e da personagem, construindo uma narrativa em constelação. O termo aqui se adéqua por estar em relação com a escrita do romance. Nele, os países, as cidades e as personagens são relacionados e nominados com termos cosmológicos. Temos, além da voz do narrador-escritor, algumas outras vozes de personagens que vão cruzando o seu caminho e ajudam a compor o tecido narrativo do enredo. Sob essas óticas, somos introduzidos nas mais improváveis aventuras por terras ocidentais e orientais. No percurso da viagem, surgem tradições, costumes e identidades dos povos visitados em um mosaico de referências culturais mixadas no redemoinho das letras que se torna o romance.
Cf. se lê na orelha do livro: “Miguel Gullander é luso-escandinavo, filho de mãe sueca e pai português. Desde que saiu da Suécia, em 2001, leciona na África. Viveu em Cabo Verde, Moçambique e atualmente reside em Angola. Publicou Balada do marinheiro-de-estrada (Lisboa: Editora Cavalo de Ferro, 2005)”. Em maio de 2014, o escritor lançou, em Portugal, Através da chuva, seu mais recente romance. 1
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A perspectiva do escritor-narrador ao construir as histórias de suas personagens dá sustentabilidade ao enredo e é ele o ponto central da narrativa que espelha as outras personagens. Estamos diante de uma história explicitamente narrada por um escritorpersonagem, o que amplia as possibilidades de confluências narrativas e delimita o mundo diegético como metalinguagem da ficção, e, principalmente, nos lega uma narrativa ambígua pela construção de histórias em que surge a relação real versus imaginário. Se uma personagem comum problematiza a narrativa, quanto mais uma personagem que tem por profissão a ficção. A história principal do enredo, a relação entre o escritor-personagem com uma mulher não está baseada no relacionamento ortodoxo entre seres de mesma espécie. A sua amada é uma divindade feminina, que muitas vezes o encontra sem que ele saiba que está ao lado dela. Mais um jogo da realidade versus ficção, essas duas personagens se tocam e se afastam segundo planos distintos de conexão. Sem que haja nenhuma forma de impedimento, esses dois seres se relacionam durante toda a construção da narrativa. Nenhuma fronteira, nenhum obstáculo os impede de se relacionar. Os encontros, às vezes, se dão por rituais, às vezes, por beberagens alucinógenas. Ao focar o homem convivendo e se relacionando com divindades, percebe-se que estamos navegando por águas, em uma primeira denominação, primitivas, por espaços místicos, confrontando entidades diferentes que nos fazem pensar a respeito do conceito de “realidade”. Se sairmos da ficção por alguns minutos e pensarmos na nossa história de homens em confronto com questões espirituais e religiosas, vamos perceber que na nossa pequena história de seres humanos estamos enredados com divindades, seja na realidade do dia a dia, seja na ficção de nossa literatura, tanto ocidental quanto oriental. Basta lembrar alguns títulos: a Bíblia, a Ilíada, a Odisseia, o Marabharata, o Iching. Conviver com entidades que pertencem a outro plano, na nossa realidade, é uma questão até certo grau normal. Estamos constantemente sendo lembrados por referências a respeito de conexões entre seres humanos e divindades. Faz-se aqui generalizações que implicariam distintos estudos e ramificações nessas citações literárias: o contexto de criação das histórias da Bíblia não são os mesmos das narrativas gregas da Ilíada e da Odisseia; assim como a cultura ocidental impõe uma distinção entre essas narrativas e as histórias do oriente. Tudo isso para
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ficarmos somente na relação entre oralidade, escrita, literatura, religião e sua relação com as estruturas maiores das culturas desses espaços distintos. Podemos reunir essas aporias sob uma constatação: o homem sempre, desde que se pensou enquanto ser, projetou possibilidades de ir além do que podia ver e tocar no seu mundo, ir além da materialidade, de uma dada realidade. A relação entre humanos e divindades passa da realidade para a ficção, não sob o mesmo prisma histórico, mas substanciada com a possibilidade da “criação”, da “arte”. Na literatura, as personagens falam com os deuses e deusas, se amam, se odeiam, mantêm relacionamentos e constituem famílias. Geralmente, esse tipo de convívio não é entendido, na ficção, como fantástica, mas como se fizesse parte, naturalmente, da propriedade da literatura: escapar de uma dada realidade para outras dimensões, compostas de outras possibilidades, não compartilhadas por todos. No entanto, falamos em literatura fantástica para certas estruturas literárias. Nelas, Tzvetan Todorov (2010) especifica três conceitos para o sobrenatural: o fantástico seria um evento que termina em ambigüidade; o estranho seria o evento esclarecido pela razão; e o maravilhoso, a aceitação do sobrenatural. Ele diferencia a literatura de prosa da poesia e da alegoria que seriam possibilidades de apresentação do sobrenatural sem estar ligada ao conceito de fantástico. A narrativa, que é representativa, apresenta aspectos do fantástico quando a realidade não pode ser explicada pela razão e quando existe a possibilidade ou não de algo “estranho” ter ocorrido. Em Perdido de volta, temos uma situação estranha. O primeiro capítulo é uma confissão de uma personagem que diz não gostar de ficar preso, seja entre paredes ou até mesmo dentro do corpo. Ele se diz viajante que gosta de ir até ao outro lado do universo e já viajou pelo Maelstrom, palavra que pode ser traduzida por turbilhão, espaço mítico do mar da Escandinávia. Edgar Allan Poe escreveu um conto sobre ele denominado “Uma descida no Maelstrom”. No final da narrativa de Julio Verne, Vinte mil léguas submarinas, o capitão Nemo desaparece com seu submarino Nautilus nesse mesmo evento natural e mítico. Na narrativa de Gullander, todas as personagens se preparam para descer o Maelstrom. Aqui, está-se trabalhando com a alegoria de poderse mergulhar, a princípio, dentro de si mesmo em busca de algo desconhecido. Essa
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descida nem sempre é motivada por forças positivas; muitas vezes, o turbilhão acaba por levar o viajante a espaços outros que podem destruí-lo. O capítulo seguinte do livro de Gullander apresenta o personagem-escritor acordando em um sobressalto em um ambiente que lhe é, no momento, estranho: “Estou no escuro duma pequena sala de teatro alternativo, em Gamla Stan, Estocolmo... ou talvez não” (p. 17). A dúvida assalta não só a personagem, mas também o leitor. Estamos no reino do sonho, da realidade ou nos dois? Ainda enquanto estrutura, o último capítulo do livro, de número 49, retoma a mesma cena do segundo. O personagem-escritor acorda no teatro em Estocolmo, a sala no escuro e só o palco iluminado. Ele ouve uma voz que lhe sussurra: “Nesta encruzilhada, pareces-te mesmo com o homem da dança” [...] “Andaste perdido, mas agora estás de volta” (p. 493). Os dois capítulos limitam todo o restante da narrativa. A estrutura em círculo que vai e vem inicia, fecha e retoma o fluxo narrativo. A dúvida do leitor é: foi tudo um sonho? Amplificando essa possibilidade, o advérbio “talvez” sinaliza a possibilidade de toda a história ter sido vivida na realidade da ficção. O mundo diegético e as histórias dos narradores da obra de Gullander trazem uma redução não de um tempo ou de uma perspectiva histórica, mas de um microcosmo do universo; uma ínfima história da humanidade, desde os seus primórdios até os tempos contemporâneos. A relação mítica primitiva com deuses indianos e africanos aponta para o laço entre razão e instinto, entre cultura e natureza. Duas passagens são marcantes nesse sentido. Na primeira, o escritor tem um contato com uma máscara divina que em sua forma, através de um terceiro olho, poder-se-ia ver “o outro lado do universo. Um sítio onde tudo está invertido, onde tudo é ilegítimo, onde tudo é apenas prazer e assassínio” (p. 136). Na segunda, o universo é comparado a uma esfera de metal cromado que possibilita a que todos os eventos se desloquem sem obedecer a uma regra comum: “sobre [essa esfera] deslizam todas as possíveis combinações de todas as possíveis imagens – todas as imagens de toda a existência” (p. 327). O próprio enredo dá ao leitor a chave da compreensão de sua história. Todas as aventuras, todos os deslocamentos são possíveis porque tempo e espaço estão, de certa forma, entrelaçados. O narrador confirma que o “universo é ISTO”, tudo ocorrendo ao mesmo tempo, com todas as possibilidades de encontros no tempo-espaço. A imagem
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de um universo por inteiro em um único instante nos leva a pensar no conto de Borges (1998, p. 693) sobre o “O Aleph”, aquele ponto do espaço “que contém todos os pontos” [...], o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do orbe, vistos de todos os ângulos”. Outra possível relação e definição do que venha a ser um universo contido em algo tão estreito e improvável é com outro conto do mesmo Borges, “A biblioteca de Babel”. Nele, o narrador propõe que o universo também pode ser chamado de Biblioteca. Esse universo seria “ilimitado e periódico”, ou seja, seria sem fronteiras por estar sempre se repetindo, indo e vindo como uma onda e que “se um eterno viajante [viesse] a atravessa[-lo] em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem” (BORGES, 1998, p. 523). Temos aqui três definições de universo: a primeira, o universo como um espaço onde tudo está invertido, ilegítimo. A segunda, lugar onde estão todos os pontos do mundo, e o terceiro: o universo como uma biblioteca. Em uma sequência lógica, podemos conectar essas três imagens ou definições de universo definidos por narradores desses dois autores. O universo seria como uma biblioteca ilimitada. Tudo está contido nela e podem-se fazer conexões infinitas, portanto, o universo também se conecta. Se uma biblioteca pode conter todo o conhecimento produzido pelo homem, é nela que todos os pontos do mundo estão representados, acolhidos e preservados. Nesse universo inteiro contido em espaço reduzido tudo está invertido porque a biblioteca não guarda o real, mas a ficção, o outro lado, a desconstrução da realidade, sob óticas e perspectivas diferentes, ou seja, o resultado do que chamamos conhecimento humano. É na biblioteca que está a máquina do tempo-espaço de se sair de uma dada realidade, de um período histórico. Para Roberto Causo (2003, p. 88), “a fantasia apresenta a diferença a partir de fatores mágicos e sobrenaturais”. No nosso romance, a personagem conversa frente a frente com Satanás; outra, enfia sua mão no vaso sanitário em algum ponto da terra e ela aparece no banheiro de um avião; deuses e deusas conversam e se relacionam com humanos; espaço e tempo são encurtados como se não existissem. Por isso podemos nos perguntar: não estamos frente a fatores mágicos e sobrenaturais? Trazer para a discussão somente a relação religiosa da necessidade humana de se ligar ao além como fato da
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realidade só tinha sentido quando dos primórdios da história humana. Na atualidade, quando a narrativa apresenta elementos contemporâneos como a de Gullander, o vínculo entre religião e primitivismo ultrapassa a possibilidade de entendimento no âmbito da religiosidade. Ao misturar crenças ancestrais, por que elas existem, com a cultura pósmoderna, o autor leva até o seu mundo ficcional a possibilidade de ultrapassar essa fronteira da realidade e imprimir em seu enredo uma perspectiva fantástica. Os mundos antigos e contemporâneos se comunicam. A materialidade de um e de outro se chocam; os sentimentos ultrapassam as esferas específicas e tudo se transforma em possibilidade de contato. Tudo se choca dentro do redemoinho. Existem regras que não conseguimos alterar e que só podem ser realizadas enquanto obra ficcional. E é justamente nesse desvão da arte, que podemos expandir a possibilidade de refazer uma realidade. A ficção propõe exatamente isso: vislumbrar e poder realizar aquilo que a nossa materialidade nos proíbe. Podemos retomar o universo enquanto biblioteca ou a biblioteca enquanto universo. Nós leitores podemos ultrapassar as fronteiras da Terra e do Universo porque podemos viver através das letras essa possibilidade. Podemos adentrar por espaços inconcebíveis e viver neles, podemos criar mundos e sermos seus protagonistas. Portanto, Perdido de volta pode ser lido como o mapeamento de uma constelação, de um universo, de uma biblioteca de mitos e lendas, antigas e contemporâneas, orais e escritas narradas pela perspectiva da escrita fragmentada pósmoderna em que a representação do mundo deixou de existir como objeto real para se tornar o mundo da escrita. O mundo grafado com tinta e papel. A biblioteca é o universo babélico em que o texto refaz toda a possibilidade de representação ficcional da cultura humana. A narrativa de Miguel Gullander é a cintilação de um micro-cosmos textual que compreende desde a Bíblia; o I ching; Peter Pan; o rock; a tecnologia de ponta; as histórias das avós africanas, legítimas conectoras entre a tradição oral e a escrita mais recente desses povos; a cultura de massa; o mito de Prometeu; a teoria da dependência; primeiros e terceiros mundos; política de esquerda e de direita, sempre em tom politicamente incorreto, irônico e cético. Esse escritor-personagem desmitifica os lugares comuns da cultura contemporânea, inclusive da própria arte atual. Tudo se escoa para o fundo do redemoinho.
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Uma história fantástica pode ser a referência dessa obra, não necessariamente a única. O fantástico também pode estar no ato de ler e compreender do leitor. Para aquele que está acostumado com uma civilização urbana, contemporânea e tecnológica, pode-se ler Perdido de volta como uma história irreal. Outro leitor, que não esteja mergulhado em um mundo tecnológico, de comunicação de massas, muito pelo contrário, vive em comunidades menores, em que certas tradições, costumes e religião ainda sustentam a formação humana, alguns dos acontecimentos dessa narrativa podem fazer certo sentido. Nem sempre o fantástico está somente nos enredos do livro. O real e a ficção são partes fecundas da vivência humana e da criação em arte. Muitas vezes eles se misturam. Em algumas narrativas são equilibrados, em outras, uma das esferas pode se sobressair levando a obra para o realismo ou para um gênero fantástico. Na narrativa de Gullander, a direção pesa mais para o fantástico. A estrutura do enredo, buscando histórias ancestrais de relacionamentos entre homem e seres espirituais mais a conjunção com a vida contemporânea pode ser iluminada pelas palavras de Roberto Causo (2003, p. 34) no estudo sobre o que ele chama de “literatura especulativa”, ou seja, “aquela [literatura] que especula sobre a realidade”: O autor moderno de ficção especulativa, se não é de fato o fruto de uma tradição literária que vem da antiguidade e deságua no mar da especulação, muitas vezes retorna ao passado para apropriar-se dessa herança e transformá-la em um novo produto. Também nesse novo objeto muitas vezes entrelaçam-se fato e ficção, sob uma nova luz, em uma constante reconstrução da realidade, nessa tentativa relativizadora e de compreensão indireta dos nossos modos de percepção e interação com o real.
Referências BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. São Paulo: Globo, 1998. v. 1 CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. GULLANDER, Miguel. Perdido de volta. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007.
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TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2010.
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CARTAS DO NORTE – EUCLIDES DA CUNHA E AS CORRESPONDÊNCIAS SOBRE A AMAZÔNIA Roberto José da Silva (Doutorando IEL - UNICAMP) As cartas escritas por Euclides da Cunha sobre a Amazônia, na época que em ele almejava ir pra lá, de quando lá esteve depois de sua volta - após sua missão de reconhecimento das fronteiras entre o Brasil e o Peru, no Acre, na região do Alto Purus, são valiosos documentos que apresentam seu espírito fervoroso, enérgico, metódico, e seu empenho em descrever o homem e a terra brasileira. Essas cartas são documentos que revelam o amplo conhecimento de Euclides da Cunha como homem das ciências e das artes, além de um exímio domínio em diplomacia. Elas revelam Euclides como um homem de grandes amigos nos mais diversos setores. Nelas, o autor de Os Sertões também se sobressai como grande escritor do gênero epistolar, tão conhecido no Brasil por Rui Barbosa, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Mário de Andrade, etc. Porém, Euclides da Cunha se destaca desses outros grandes escritores de cartas pelo vasto domínio de temas abordados nas suas, a saber: ciências naturais e biológicas, ciências geológicas, história, literatura, biografia, diplomacia, ciências sociais, filosofia, folclore, antropologia, etc. Walnice Nogueira Galvão já apontou muito bem a singularidade das cartas de Euclides pela pluralidade de temas: Euclides, deferentemente, é raro que discuta a escrita em sua correspondência. Debate política, história do Brasil: há bastante discussão política em suas cartas. Euclides, elegantemente, expõe sua opinião: percebe-se que ele fez rascunho das cartas, buscando a perfeição da linguagem. São bem interessantes, pois nelas encontramos dados preciosos para a compreensão da história e da política brasileira (GALVÃO, In: TERESA, 2007, p. 19).
Essas cartas podem ser entendidas como parte imprescindível para compreender o pensamento do escritor de Os sertões em sua vida e obras, como: Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus, Contrastes e Confrontos, Peru versus Bolívia e À Margem da História.
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Nessa análise, dividi as correspondências em quatro momentos. O primeiro compreende ao que Euclides demonstra seu interesse em participar da comissão mista de reconhecimento do Alto Purus, de 1903 a 1904; o segundo corresponde à viagem do Rio de Janeiro até Manaus, passando por Recife e Belém, e sua estada na casa de Alberto Rangel, na capital do Amazonas, à espera da comitiva peruana para subir para o Alto Purus, de 13 dezembro de 1904 até 5 de abril de 1905; o terceiro é a expedição de reconhecimento, de 5 de abril de 1905 até dezembro desse mesmo ano; o quarto e último momento corresponde de 1906, no Rio de Janeiro, até sua morte em 1909, e trata da sua volta para o Rio de Janeiro, onde fez a escritura final do relatório e escreveu outros textos. É importante ressaltar que desde 1896 as fronteiras entre Brasil e Peru enfrentavam conflitos armados e sangrentos e as resoluções diplomáticas ainda estavam em curso. Para a resolução desse problema foi criado a comissão mista brasileiroperuana de reconhecimento da região entre esses dois países, no Acre, no Alto Purus, Javari e Juruá. A primeira carta, que corresponde ao primeiro momento, em que Euclides demonstra o seu interesse em ir para a Amazônia nessa missão, é de 20 de fevereiro de 1903, destinada ao Dr. Luiz Cruls, quando Euclides estava em Lorena trabalhando como engenheiro de obras sanitárias do estado de São Paulo: P.S. - Alimento há dias o sonho de um passeio ao Acre. Mas não vejo como realiza-lo. Nestas terras, para tudo faz-se mister o pedido e o empenho, duas coisas que me repugnam. Elimino por isto a aspiração ---- é que talvez pudesse prestar alguns serviços (CUNHA, apud GALVÃO, p.149).
É importante lembrar que naquele momento em que Euclides estava em Lorena, já gozava de grande prestígio entre os homens letrados de sua época, em razão de seu livro Os Sertões (1902). Tanto é que já tinha sido eleito membro do Instituto Histórico do Geográfico do Rio de Janeiro1 e eleito imortal da Academia Brasileira de Letras, porém, sua posse só aconteceu em 19062, após sua volta da Amazônia. 1
Em 20 de novembro de 1903 Euclides tomou posse no IHGB. Em 21 de setembro de 1903 Euclides foi eleito para a cadeira n° 7 - Castro Alves - da Academia Brasileira de Letras. Sua posse só aconteceu em 18 de outubro de 1906.
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Passado mais de um ano, Euclides escreveu uma outra carta, de 24 de junho de 1904, de Guarujá, onde era engenheiro de obras em Santos, a José Veríssimo, novamente demonstrando seu interesse naquela missão e reconhecendo o quanto poderia contribuir com seu conhecimento de trabalho de campo que já tinha: Para mim esse seguir para Mato Grosso, ou para o Acre, ou para Alto Juruá, ou para ribas extremas do Mahú, é um meio admirável de ampliar a vida, ou de torna-la útil e talvez brilhantíssimo. Sei que farei muito (ibidem, p. 208).
Veja que nesse fragmento Euclides demonstra sua preocupação em atuar sobre a realidade social da Amazônia, que era uma “terra ignota da época”. Porém, o fluxo migratório de nordestino para a região amazônica já era muito grande, em razão da extração da borracha e, consequentemente, estava causando sérios conflitos na fronteira entre Brasil e Peru. Em 9 de agosto de 1904, Euclides foi confirmado chefe da comissão mista de reconhecimento do Alto Purus, com o auxílio de indicação de José Veríssimo e Oliveira Lima ao barão do Rio Branco, e intervenção de Domício da Gama, secretário deste diplomata. A partir desta data até o dia 13 de dezembro de 1904, as correspondências de Euclides são textos que expressam a mais pura ansiedade incontrolável pela partida para a região amazônica. Percebe-se nos textos dessas cartas um vigoroso desejo de imediata partida para a missão. Por essa época Euclides da Cunha estava vivendo com a esposa e filhos no litoral, Guarujá, pois havia passado num concurso para engenheiro-fiscal de obras de saneamento em Santos, ali se sentia bem, e não pretendia ficar no Rio de Janeiro, pois esta cidade encontrava-se assolada por varíola (ibidem, pp. 226 - 227). Porém, de Guarujá lia os principais jornais do Brasil e também escrevia artigos para eles. Nesse primeiro momento vê-se um escritor atento aos problemas da fronteira do Brasil no Acre e seu necessário reconhecimento como estado da federação. Vale lembrar que em 1904, antes de Euclides partir para a Amazônia, já tinha publicado no
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Jornal O Estado de S. Paulo alguns textos sobre a Amazônia e os conflitos nas fronteiras do Brasil com a Bolívia e Peru3. Nessas cartas percebe-se um homem ávido pelo seu trabalho e utilidade em uma missão como aquela. Não há dúvida que Euclides já levava em consideração, como ponto positivo, sua expedição na Guerra de Canudos alguns anos atrás, o que lhe rendeu um livro vingador - Os Sertões (1902). E essa nova expedição, na região Norte, também poderia lhe render outro livro vingador - Um Paraíso Perdido - o que de fato aconteceu com À Margem da História, publicado em 1909, após sua morte. O segundo momento retrata a viagem do Rio de Janeiro até o último dia em que Euclides ficou em Manaus numa acomodação de Alberto Rangel, na Vila Glicina (LEÃO, 1966, p. 32). Nesse segundo momento, temos a viagem de aproximadamente dezessete dias e a estada em Manaus por mais de três meses. As correspondências desse segundo momento são Recife, Fortaleza, Belém e a maior parte de Manaus, compreendendo trinte e três cartas e bilhetes. Saindo do Rio de Janeiro, a expedição passou por Recife onde Euclides encontrou Oliveira Lima e foram conhecer Olinda (LEÃO, 1966, p. 22). Dali partiu para Belém, sendo que nesta cidade fez um breve tour e ficou encantado com a arquitetura e com o povo. Na capital do Pará conheceu o naturalista Dr. Emílio Augusto Goeldi, diretor do Museu Paraense, e o notável botânico Jacques Huber (CUNHA, apud GALVÃO, 1997, p. 252). Ao chegar a Manaus, em 30 de dezembro de 1904, Euclides ficou impressionado com a vastidão da floresta amazônica, com a capital de Manaus e seu desenvolvimento, dinamismo e cosmopolismo, causados pela extração da borracha, sob a força dos seringueiros, como bem apontou em carta de 12 de janeiro de 1905 a seu amigo Afonso Arinos: Somente hoje posso mandar-te uma breve notícia - tais as atrapalhações, tais os embaraços que nos saltearam aqui, nesta ruidosa, ampla, mal arranjada, monstruosa e opulenta capital dos seringueiros (ibidem, p. 250). 3
Em 1904 Euclides publicou no jornal O Estado de S. Paulo os artigos “Conflito inevitável” (14/05), “Contra os caucheiros” (22/05), “Entre o Madeira e o Javari” (29/05), “Fronteira Sul do Amazonas: questão de limite”, jornal O Estado de S. Paulo (14/11/1898).
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Na mesma carta, Euclides relata não ter se adaptado de imediato ao clima quente e úmido da Amazônia. Além disso, assim que chegou a capital do Amazonas, adquiriu impaludismo: Eu escrevo doente. Consequências do glorious clime de não sei se ilustre ou se ingênuo Bates. Este delicioso clima traduz-se num permanente banho de vapor - e quem o suporta precisa ter nos músculos a elástica firmeza das fibras dos buritis e nas artérias o sangue frio das sucuruíbas. Não o suporto (idem, ibidem, p. 250).
Como já é conhecido no clássico Os Sertões, as antíteses fazem parte da escrita de Euclides, e nessas cartas esse recurso volta a aparecer. Ao descrever a vida em Manaus, primeiro apresenta uma impressão negativa, porém, depois reconhece o cosmopolismo e a boa gente dessa cidade. Na mesma carta enviada a Afonso Arinos e em outra, de 14 de janeiro de 1905, destinada a José Veríssimo, Euclides reconhece Manaus como cidade de pessoas boas, erguida sob a força e suor dos seringueiros que foram sertanejos no Nordeste: Felizmente a gente é boa. Em que pese ao cosmopolismo excessivo desta Manaus – onde em cada esquina range um português, rosna um inglês ou canta um italiano – a nossa gente ainda os domina com as suas formosas qualidades de coração e a mais consoladora surpresa o sulista está no perceber que este nosso Brasil é verdadeiramente grande porque ainda chega até lá (ibidem, p. 251). Levo – nesta Meca tumultuária dos seringueiros - vida perturbada e fatigante (ibidem, p. 252).
Antítese parecida pode ser percebida quando Euclides relata, dias mais tarde, em carta a seu amigo Porchat, de 18 de janeiro de 1905, já estar se adaptando ao clima quente e húmido da Amazônia: Eu, firme na minha envergadura esmirrada e seca, faço neste clima canicular prodígios de salamandra. Vou bem. Nem o mais ligeiro abalo, agora. Fiz as pazes com o sol do equador e adapto-me admiravelmente na atmosfera úmida e quente, feita para as fibras das palmeiras e os nervos dos poetas. Manda-me notícias de todos e não te esqueça nunca do Euclides (ibidem, p. 257).
Além desses problemas de adaptação ao clima da Amazônia e a doença que adquiriu enquanto estava em Manaus, à espera das lanchas peruanas, vê-se o estado de
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espírito vigoroso e a ansiedade do autor de Os Sertões em partir para a missão de reconhecimento das fronteias entre Brasil e Peru. Em algumas dessas cartas, Euclides não deixou de revelar a solidão que lhe abalava em razão da saudade da família e dos amigos (ibidem, p. 255). Nas correspondências desse segundo momento da coletânea encontramos ainda pontos de grande valor para estudos da obra de Euclides da Cunha. Um deles é que Euclides, como membro da Academia Brasileira de Letras, já participava do processo de eleição para as cadeiras vagantes. E mesmo estando na Amazônia não deixou de participar das eleições. Em cartas a José Veríssimo, Coelho Neto, Barão de Rio Branco e Machado de Assis, votou nos candidatos que lhe foram indicados por amigos, ou a pedidos dos próprios candidatos. Outro ponto que nos chama atenção é que Euclides observou que Chandless esteve na Amazônia em pleno vigor da Questão Christie4. E de acordo com Euclides, Chandless não teve problemas em sua expedição, mesmo sendo um inglês, e da Sociedade Geográfica de Londres (ibidem, p. 261). Com certeza, de todas as cartas escritas por Euclides sobre a Amazônia, o tema sobre a escritura do livro Um Paraiso Perdido é o mais conhecido de todas essas correspondências. O anúncio dessa obra é conhecido pelos estudiosos por duas cartas: a Coelho Neto e a José Veríssimo, ambas escritas em 10 de março de 1905, e a Artur Lemos de 1905, sem registro de dia e mês, porém, colocada na coletânea logo após as duas cartas anteriores. Nada te direi da terra e da gente. Depois, aí e num livro: Um Paraíso Perdido, onde procurarei vingar a Hiloe maravilhosa de todas as brutalidades das gentes adoidadas que a maculam desde o século XVII. Que tarefa e que ideal! Decididamente nasci para Jeremias destes tempos (ibidem, p. 266). Acha bom o título Um Paraíso Perdido para o meu livro sobre a Amazônia? Ele reflete bem o meu incurável pessimismo. Mas como é verdadeiro!? (ibidem, p. 268).
A carta a Artur Lemos é de extremo valor para a compreensão do projeto de Euclides na escritura de seu novo livro e sobre a Amazônia, que foi publicado postumamente - em coletânea de textos - sob o título de À Margem da História: 4
Incidente de saque no Rio de Janeiro de um navio inglês que ia para Buenos Aires, em 1861, e depois a prisão de três oficiais ingleses no rio de janeiro por desordem. Willian Christie - embaixador inglês no Brasil - transformou estes dois fatos em um sério mal estar diplomático entre Brasil e Inglaterra.
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Se escrevesse agora esboçaria miniaturas do caos incompreensíveis e tumultuárias, uma formidável de vasta floresta inundadas de vastos céus resplandecentes. Entre tais extremos está, com as suas inumeráveis modalidades, um novo mundo que me era inteiramente desconhecido ... Além disso, esta Amazônia recorda a genial definição do espaço de Milton: esconde-se em si mesma. O forasteiro contempla-a sem a ver através de uma vertigem. Ela só lhe aparece aos poucos, vagarosamente, torturantemente. É uma grandeza que exige a penetração sutil dos microscópios e a visão apertadinha e breve dos analistas: é um infinito que deve ser dosado. Quem terá envergadura para tanto? Por mim não a terei. A notícia que aqui chegou num telegrama de um meu novo livro, tem fundamento: escrevo, como fumo, por vício. Mas irei dar a impressão de um escritor esmagado pelo assunto. E, se realmente conseguir escrever o livro anunciado, não lhe darei título que se relacione demais com a paragem onde Humboldt aventurou as suas profecias e onde Agassiz cometeu os seus maiores erros. Escreverei Um Paraíso Perdido, por exemplo, ou qualquer outro em cuja amplitude eu me forre de uma definição positiva dos aspectos de uma terra que, para ser bem compreendida, requer o trato permanente de uma vida inteira (ibidem, pp. 268 - 269).
Porém, antes dessas três cartas, Euclides, também em carta a José Veríssimo, de 13 de Janeiro de 1905, relatou a necessidade de escrever sobre aquela terra que precisava ser descoberta: É uma terra que ainda está preparando para o homem - para o homem que invadiu fora de tempo, impertinentemente, em plena arrumação de um cenário maravilhoso. Hei de tentar demonstrar isto. Mostrarei, talvez, esteiando-me nos mais secos números meteorológicos, que a natureza, aqui, soberanamente brutal ainda na expansão de suas energias, é uma perigosa adversária do homem (ibidem, p. 252).
Euclides, ao chegar em Manaus, se deparou com uma Amazônia que não era a que ele já havia escrito em alguns artigos no jornal O Estado de S. Paulo. A Amazônia que ele tinha ali diante de seus olhos era a exuberância da floresta, dos rios bravos, de uma terra jovem e bruta aos homens e que necessitava ser descoberta e explorada racionalmente. Frente a essa exuberância da natureza, Euclides se admirou com a bravura dos rios e a imensidão de uma região que era bruta ao homem, notadamente ao sertanejo que, ao deixar o Nordeste, em razão da seca, se tornou seringueiro explorado pelos
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coronéis dos seringais e vítimas da brutalidade da selva. Ao mesmo tempo, Euclides reconheceu Manaus como cidade erguida pela força dos seringueiros que transformou essa cidade na “Paris dos trópicos”, em razão da grande circulação de dinheiro, causado pela extração da borracha: Permaneceu e ainda é relembrada a “belle époque”, período que elevou Manaus de tapera à grande metrópole no passado. Na atualidade, a Manaus, apelidada de “Paris dos trópicos”, existe nas lembranças como a primeira capital a ter iluminação pública com lâmpadas elétricas, calçamento com paralelepípedo de borracha para amortecer o barulho dos veículos no entorno do teatro Amazonas, palacetes imponentes, alguns com telhados copiados de construções europeias, acentuadamente inclinados a fim de evitar o acúmulo de neve (LIMA, 2009, p. 14).
As correspondências do terceiro momento, em sua maioria, são direcionadas ao Barão do Rio Branco, e o conteúdo delas está marcado por descrições da região e do Rio Purus e seus afluentes e alguns poucos fatos que estão relacionados ao povoamento de seringueiros, índios e caucheiros na região, além dos conflitos entre brasileiros e peruanos na região, e a marcha da expedição. Em algumas cartas, Euclides enviou esboços e levantamento hidrográficos, além de ter feito correções nas pesquisas de Chandless (CUNHA, apud GALVÃO, 1997, p. 279). De volta a Manaus, em companhia do chefe da expedição peruana, Euclides traçou e delineou as fronteiras entre Brasil e Peru, gastando em torno de dois meses. Nesse período em que ficou na capital do Amazonas se empenhou na escritura do Relatório, em companhia do chefe da comitiva do Peru, Pedro Alexandre Bueñano. De acordo com Euclides não houve grandes discordâncias e, se houvesse, as pesquisas de Chandless resolveriam o problema (ibidem, p. 289). O quarto momento compreende, praticamente, desde quando Euclides chegou ao Rio de Janeiro, em 1906, até seus últimos dias de vida. A quantidade de correspondência é muito grande. Nelas vemos não apenas o tema sobre a expedição na Amazônia, mas também as consequências dessa odisseia, que se deu na escrita do Relatório, textos e livros sobre a Amazônia, convite a ser chefe fiscal da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, e a possível convocação para uma nova expedição na fronteira entre Brasil e Venezuela.
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Neste período, Euclides publicou vários textos sobre a Amazônia, em jornais e em livros: o Relatório da Comissão mista brasileiro-peruana (1906), Contrastes e Confrontos (1907), o prefácio do livro Inferno Verde (1907), de Alberto Rangel, Peru versus Bolívia (1907) e postumamente À Margem da História (1909). Não há dúvida que essa expedição de Euclides na Amazônia rendeu bons frutos para o conhecimento daquela região ignota do Brasil. Quando Euclides retornou ao Rio de Janeiro foi trabalhar no Ministério das Relações Exteriores no cumprimento de concluir o Relatório da comissão mista. Porém, neste período ansiava em ser convidado a participar do reconhecimento da fronteira entre Brasil e Venezuela. Impregnado no desejo dessa nova missão, Euclides chegou, até mesmo, a recusar o convite para ser fiscal da construção da Estada de Ferro Madeira-Mamoré. Entretanto, a missão na Venezuela foi interrompida por sua morte prematura. As cartas desse último momento são de grande valor, principalmente para compreendermos o calor da recepção crítica dessas obras, o processo de escritura, publicação e recepção delas naquele momento e meio. Neste quarto momento, vê-se o quanto Euclides era influente no meio literário e jornalístico do Brasil, pelos comentários e recomendações que ele fazia a seus colegas sobre obras. Algumas dessas cartas se tornaram verdadeiros textos de crítica literária. Podemos citar, por exemplo, a carta em que Euclides comenta a seu amigo Escobar sobre o curso da escritura de Um Paraíso Perdido, que seria publicado postumamente como À margem da História: Em paz, portanto, esta rude pena de caboclo ladino. Ou melhor, que vá alinhando as primeiras páginas de Um Paraíso Perdido, o meu segundo livro vingador. Se o fizer, como imagino, hei de ser (perdoame a incorrigível vaidade) hei de ser para a prosperidade um ser enigmático, verdadeiramente incompreensível entre os homens (ibidem, p. 306).
Três meses mais tarde, Euclides enviou uma carta a seu amigo Firmo Dutra dando conhecimento do caminhar da escritura de seu segundo livro vingador e de que seus artigos publicados em 1904, em jornais, seriam publicação em Portugal, como livro, com o título de Contrastes e Confrontos:
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Já comecei - finalmente - a alinhar Um Paraiso Perdido - e a este propósito peço-te que me mandes o Álbum do Amazonas, assim como as melhores observações que obtiveres quanto à borracha em geral, e a sua atual situação mercantil, em Manaus. Além disto manda-me o que encontrares relativo ao assunto [...] P. S. – Um editor português (do Porto) resolveu reunir alguns artigos meus. Dei ao volume o título Contrastes e confrontos. O trabalho está pronto breve. mandar-te-ei um exemplar [...] (ibidem, p. 314).
O anúncio de Contrastes e confrontos apareceu novamente em carta onde Euclides relata a Escobar como se daria a reunião dos textos que viraria esse livro, sua publicação em Portugal e o prefácio de José Pereira de Sampaio (Bruno): Um editor português (com a mania do suicídio) reuniu uns vinte artigos meus, pespegou-lhe o título Contrastes e Confrontos, pediu um prefácio ao Bruno - o fantástico Pereira de Sampaio - e arranjou um livro que dentro de 15 dias aqui chegará. Não será bem um livro - mas agradeço ao Joaquim Leitão (o tal descabeçador) o pensamento. Tais artigos são uma espécie de filhos naturais do espírito, mais descuidados, talvez, porém ás vezes mais dignos do nosso amor. Hei de mandar-te um exemplar (ibidem, p. 322).
Alguns meses depois, em carta, Euclides agradece ao Dr. Sousa Bandeira os elogios recebidos no jornal País pelo seu livro Contrastes e Confrontos (ibidem, p. 326). Em outra carta a Joaquim Antunes, seu editor, (ibidem, p. 332), Euclides relata que iria enviar-lhe, um artigo revisto por Araripe Junior sobre essa obra. Também por carta, o autor de Contrastes e Confrontos pede a este seu editor para que a segunda edição da citada obra não seja encadernada em percalina, como a primeira, e sim em coro sólido e severo, como nas encadernações portuguesas (ibidem, p. 334). Caminho um tanto parecido teve Peru versus Bolívia, ao ser publicado em forma de artigos no Jornal do Comércio, em 1907, e anunciado por carta a Domício da Gama que estava em Lima. Nesta carta, Euclides relata a este seu amigo estar enviando junto a carta um exemplar de Os Sertões para ser entregue a biblioteca de Lima (ibidem, pp. 334 - 337). Outra revelação importante que Euclides nos apresenta sobre Peru versus Bolívia é que a obra já seria traduzida para o espanhol, naquele mesmo ano, na Argentina, por um ministro boliviano, Eleodoro Villazon (idem, ibidem, p. 377). Ainda na mesma carta critica e ironiza os críticos brasileiros por não reconhecerem o valor dessa obra, e a mesma ter encontrado prestígio no exterior.
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Sobre essas duas obras, encontramos nas cartas valiosos documentos do percurso que elas tiveram até alcançar prestigio. Peru versus Bolívia chegou, até mesmo, a ganhar notoriedade no meio diplomático e teve papel decisivo para Euclides conquistar a vaga de professor de lógica no Colégio Dom Pedro II (ibidem, p. 421). Situação muito parecida em publicação e recepção crítica foi o prefácio que Euclides fez para o livro Inferno Verde, de Alberto Rangel. Desde a escritura deste preâmbulo até a recepção crítica nos jornais e da crítica de alto establishment brasileira, vê-se um longo percurso, que foi registrado por Euclides em cartas. A primeira carta é de 1907, ao próprio Alberto Rangel, onde Euclides anuncia que iria escrever o prefácio ao livro de contos desse escritor iniciante. Em três outras cartas, de 25 de abril de 1907, de 10 de dezembro de 1907, e outra sem dia e mês, porém, com data de 1907, direcionadas ao autor de Inferno Verde, Euclides o elogia veementemente pela obra: Vou fazer o prefácio sem constrangimentos, e sem precisar do estímulo de uma amizade antiga. Encantou-me o Inferno. “Teima da Vida” é um rude e maravilhoso poema. Hei de mostrar que naqueles capítulos há uma síntese dos aspectos predominantes da existência amazônica. Não me abalancei a emendar. Acho-te admirável naquelas rebeldias de expressão, que a princípio me alarmaram (ibidem, p. 328) Estive há dias, pela primeira vez, em casa de Cavalcanti - e lá vi os trechos de tua carta em que te referes a vários lances do meu prefácio. Tive imenso prazer verificando que ele te agradou. Quando surgirá, afinal, o Inferno Verde? Espero-o todos os dias. Tenho já três críticos a postos, de penas perfiladas, prontos à primeira voz. [...] (ibidem, p. 346) Belíssimo, o Inferno Verde. Não te esqueça de manda-lo a todos os jornais e aos nossos principais luminares da crítica. Julgo o sucesso inevitável (ibidem, p. 347).
Em duas cartas, a Coelho Neto, de 30 de junho de 1908, e ao próprio Alberto Rangel, de 23 de agosto de 1908, Euclides deixa claro a Alberto Rangel o prestígio que Inferno Verde já havia adquirido no meio literário: Trazia hoje um exemplar do Inferno Verde para você, mas o Arthur Azevedo tomou-o. Levarei breve outro. (ibidem, p. 366) Rangel Pelos jornais já deves saber do franco sucesso do Inferno verde. Ainda hoje o Correio da Manhã transcreve “Um Homem Bom” breve vou receber uma carta do nosso mestre Araripe Junior, a respeito do livro que ele muito apreciou - e transcreve-la-ei no Jornal. [...] (ibidem, p. 370)
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Em duas outras cartas, a Vicente de Carvalho, de 18 de setembro de 1908, e a Alberto Rangel, de 20 de setembro de 1908, Euclides relata a aproximação do texto de Rangel ao seu. Na primeira, Euclides declara a Vicente de Carvalho, ser Rangel seu primeiro discípulo; já na segunda, Euclides relata que, para Araripe Junior, Inferno Verde seria um parente de Os Sertões: P.S. – Já leste o Inferno Verde? Nesta pergunta há uma vaidade encantadora: é o livro do meu primeiro discípulo, alentando-me na convicção de que abri uma picada, levando a outros rumos o espírito nacional ... Que infinito prazer para um antigo engenheiro de estradas! (ibidem, p. 376) O Inferno Verde agitou um pouco o sangue frio destes batráquios, porque é um parente mais novo e mais vivo dos Sertões. Disse-o o grande mestre Araripe Junior; e o parecer do nosso único ensaísta, escandalizando furiosamente a cabotinagem covarde, encheu-me do mais justificado orgulho. Estas longe. Não podes avaliar a espessura do silêncio calculado que o teu livro rompeu. Mas para isto não contribuiu o prefácio, senão a visão superior de um Araripe, a alma vibrátil de um Felix Pacheco e a sinceridade de alguns raros plumitivos, que ainda realizam o milagre da posse de alguma seriedade neste meio. Quero que escrevas ao Araripe e ao Felix (Jornal do Comércio), agradecendo-lhes porque na realidade foram os dois maiores reveladores do teu grande valor literário (ibidem, p. 377).
Percebe-se, assim, um claro trabalho de crítica literária expresso nessas cartas de Euclides da Cunha, fonte rica para a compreensão de sua obra, do ambiente e calor da crítica literária do início do século XX. Euclides, nessas cartas aparece como um dos primeiros grandes intérpretes da Amazônia. Nelas já se veem os rastros de seu pensamento sobre uma região que necessitava de uma imediata intervenção do estado para o aproveitamento racional de sua riqueza e para ajuda daquelas “gentes adoidadas”. Eis aí a grande importância dessas cartas. Segundo Marcos Antonio Morais, Na teoria dos estudos literários, a carta/texto tanto pode ser “material auxiliar”, ajudando a compreender melhor a obra e vida literária, quanto escrita que valoriza a função estética/poética; ou, ainda, “texto literário” nas paragens do romance epistolar (MORAES, In; TERESA, 2008, p. 9).
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Como bem apontou Leandro Tocantins (1986, p. xii), “Na Amazônia Euclides encontrou um outro Brasil que ele fixa em palavras e imagens, como se fosse um escultor, um pintor, a quem não faltasse o generoso solidarismo social”. Nessas cartas encontramos o estilo literário e objetivo na descrição da Amazônia, oriundo da observação direta da realidade buscada por um escritor atento a todos os fenômenos da natureza, tentando sempre expressar a verdade inconfundível. Vê-se claramente nelas o estilo que já é conhecido em Os Sertões: os longos períodos, as sentenças curtas, frases soltas e isoladas, ponto e vírgula, repetição de verbos. Paradoxos e antíteses também estão presentes nestas cartas retomando o estilo de seu primeiro livro. A escolha de Euclides para essa missão foi, sem dúvida, correta, pois o conhecimento de mundo, vivência com as mais diversas pessoas: soldados, jagunços, escritores, críticos literários, jornalistas, diplomatas e leituras de cronistas e viajantes da Amazônia fizeram com que ele tivesse êxito nessa missão, sem ter grandes problemas com a comitiva peruana. Não há dúvida de que Euclides da Cunha foi a melhor escolha para aquela comissão, pois além das suas qualidades apresentadas, ainda possuía a habilidade de ser um bom correspondente e ter um exímio domínio de questões de fronteiras, divisas e de cartografia. Nessas cartas Euclides nos revela o total abandono de uma região rica e populações relegadas à miséria e à exploração de aproveitadores. Quando Euclides partiu para a Amazônia já tinha lido textos dos vários viajantes e exploradores que, em épocas diferentes, passaram pela Amazônia. Eis aí o desejo do seu segundo livro vingador Um Paraíso Perdido. Neste, como no primeiro, sairia em defesa daquelas populações que deixaram o sertão árido do Nordeste e partiram para os sertões alagados da Amazônia, iludidas em enriquecerem na extração da borracha. Bibliografia BASTOS, Abguar. A visão histórico-sociológica de Euclides da Cunha. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1986. CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. São Paulo: Cultrix, 1975.
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_________________ Comissão mista brasileiro-peruana: estrato do relatório da comissão mista brasileiro-peruana de conhecimento do Alto Purus. Org. Alessandra Araujo de Souza. Rio Branco-Acre: Printac, 2006. GALVÃO, Walnice Nogueira; Oswaldo Galotti. Correspondências de Euclides da Cunha. São Paulo: Edusp, 1997. _________________________ “À margem da carta”. In: TERESA - Revista de Literatura Brasileira da USP. São Paulo. Universidade Estadual de São Paulo: Ed. 34. n°. 8/9, pp. 15-29, 2008. HARDMAN, Francisco Foot. A vingança da Hileia: Euclides da Cunha. A Amazônia e a literatura moderna. São Paulo: Editora Unesp, 2009. LEÃO, Velloso. Euclides da Cunha na Amazônia. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1966. LIMA, Lucilene Gomes. Ficções do ciclo da borracha - A Selva, Beiradão, O amante das Amazonas. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2009. MORAES, Marcos Antonio de. “Sobrescrito”. In: TERESA - Revista de Literatura Brasileira da USP. São Paulo. Universidade Estadual de São Paulo: Ed. 34. n°. 8/9, pp. 8-9, 2008. TOCANTINS, Leandro. “A Amazônia na vida e na expressão de Euclides da Cunha”. In:
CUNHA,
Euclides
da.
Um
Paraíso Perdido
(ensaios,
estudo
e
pronunciamentos sobre a Amazônia). Org. Leandro Tocantins. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
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O DIABO RESIDUAL EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS Romildo Biar Monteiro (UFC) Elizabeth Dias Martins (UFC)
O presente trabalho alicerçado sob o prisma residual busca tecer relações entre o aspecto do Diabo construído no imaginário medieval e o do que foi elaborado em torno do imaginário sertanejo, analisado a partir do romance Grande Sertão: veredas (1946), de Guimarães Rosa. Escritor de fama internacional, João Guimarães Rosa dispensa e suscita comentários, no que é atinente ao universo literário delineado por esse mineiro de Cordisburgo. Sua obra, repleta de matizes, nos conduz a uma imersão no oceano lustral da oralidade, de onde provem o material popular, tangenciado por um sertão mágico, do qual brotam resíduos mentais da Idade Média, sobretudo, os relativos à literatura medieval e ao medo acerca da existência do Diabo. O Diabo é uma das figuras basilares do imaginário cristão ocidental, recebendo diversificadas definições ao longo dos séculos, sendo considerado, por vezes, o responsável pelas atrocidades, dramas, pecados e infortúnios dos homens. Essa personagem se instalou na mentalidade popular sob os mais variados moldes. Em alguns, assumia os traços de um anjo de luz, belo e sedutor, em outros, se revestia de semblante grotesco, aproximando-se ao monstruoso. E, no imaginário cristão ocidental, continuou ganhando mais contornos e até mesmo se hibridizando com entidades pagãs. A leitura do romance Grande Sertão: veredas, revela-nos a figura Diabo como personificação do mal. Naquele, a dualidade entre o Bem e o Mal é latente, principalmente, a partir do reaproveitamento do mito faústico. Nesse sentido, nosso objetivo é a priori analisar os aspectos residuais da representação do Diabo medieval, que fazem-se presentes no romance por meio de elementos que permitem entrever o imaginário diabólico, oriundo da distante Idade Média europeia. Este longo monólogo conta os acontecimentos na vida de um ex-jagunço, Riobaldo, em meio ao sertão mineiro. A estória contada firma-se na exposição de suas aventuras como jagunço, sua afeição por Diadorim e a dúvida quanto à concretização do pacto com o diabo, no intuito de realizar a vingança contra Hermógenes, seu inimigo. É pelo fio da memória que Riobaldo narra sua vida, e o processo de rememoração dá-se com uma palavra estranha e compacta: “ – Nonada”. Essa palavra parece querer significar uma dupla negação, o não que é nada. Deste modo, mergulhamos desde o
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início em uma profusão filosófica da “existência em meio a forças desconhecidas, internas e externas” (HELENA, 2012, p. 227). A despeito de, no início do diálogo, Riobaldo asseverar: ”– Do demo? Não gloso. Senhor pergunte aos moradores.” (ROSA, 2001, p. 24), percebemos que de fato, não é o que ocorre no transcorrer dos três dias de histórias narrados pelo personagem. O romance possui um caráter “polimórfico”, “em que a produção de sentido se faz valer enquanto metamorfose inestancável” (HELENA, op. cit., p. 223). Nele, a figura do Diabo está em toda parte, assim como no pensamento medieval, “o diabo regula seu estado preto... nas plantas, nas águas, na terra, no vento... O diabo na rua, no meio do redemoinho...” (ROSA, op. cit., p. 26-27). Encontramos ainda, a demonização do imaginário sertanejo, por meio de animais que evocam uma aura de trevas, tais como a cobra cascavel, os corvos e aves de canto agourento, como a acauã e a coruja. A partir desses elementos, torna-se possível visualizarmos que os aspectos físico-naturais fazem surgir no sertão uma espécie de locus horrendus diabólico, representativo da alma sertaneja, como se encontra na fala de Riobaldo: “sertão: é dentro da gente” (ROSA, op. cit., p. 325). Em Grande Sertão: veredas, o Diabo é apresentado desde a epígrafe do livro: “o diabo na rua, no meio do redemoinho...”. João Guimarães Rosa apropria-se da cultura popular para revelar a presença do Diabo no imaginário sertanejo. Em consonância com as crendices popular, o “Dito-Cujo” encontra-se no meio do redemoinho, e também, nas deformidades da natureza: Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu -; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figura rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo prascóvio. Mataram. (ROSA, op. cit., p. 23).
Nesse fragmento o caráter defeituoso do animal que possui feições humanas e animalescas, é infligido aos movimentos sobrenaturais. Assim, podemos notar semelhanças entre o imaginário sertanejo e o imaginário medieval. Uma vez que esses indivíduos encontravam-se necessitados de princípios científicos, os acontecimentos inexplicáveis a sua lógica são atribuídos ao Diabo. É interessante perceber que essa culpabilização é residual, pois no período medieval, tudo era possível, isto é, a mentalidade do homem mediévico aceitava que acontecimentos sobrenaturais pudessem ocorrer, porque a descrença não fazia parte do cotidiano dos medievos. O Diabo ganha corpo na obra por meio das definições dadas por Riobaldo, sobremaneira, aquelas que apontam para uma oposição à Deus, uma vez que, “na esfera divina, não existe Deus sem o Diabo” (SOUZA, 2005, p. 24). Desse modo, encontramos pensamentos como: “Deus é paciência. O contrário, é o diabo” (ROSA, op. cit., p. 33); Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele...” (ROSA, op. cit., p. 58) e ainda,
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“Deus nunca desmente. O diabo é sem parar” (ROSA, op. cit., p. 325). Paulatinamente, se o Diabo pode ser definido, este tem de certa forma, existência. Embora, não haja um diabo em forma corpórea, ele existe no âmbito do universo mental, na imaginação, no campo da conceituação, enfim, ele existe por meio da imanência oral. A esses exemplos, podemos acrescentar os relatos de possessões, a ideia de que Hermógenes era pactário, e ainda, as maldades de alguns jagunços. Um dos principais penhores residuais que unem a obra em análise à efígie do Diabo medieval é sem dúvida, o seu aspecto de onipresença. Ainda que no romance não seja efetivamente corporificado aquele encerra em Riobaldo, um constante desassossego. E, além disso, podemos perceber que o Tinhoso, isto é, o Diabo é evocado por meio de seus mais variados nomes, progênitos da cultura popular, tais como: “Pai do Mal, o Tendeiro, o Manfarro” (ROSA, op. cit., 434) o que é caracterizado pelo temor em proferir o nome de Você-Sabe-Quem, ocorrência muito trivial na Idade Média, e que permanece em nossa cultura. Em Grande Sertão: veredas, o assomo físico, ou seja, o sedimento externo percebível, que alude à presença do Diabo é o redemoinho, que segundo Leonardo Arroyo na cultura popular constitui “o elemento natural do Diabo, quando não do Saci, que vive, ou viaja no meio dele” (ARROYO, 1984. p. 184). Quando Riobaldo dirige-se até as Veredas-Mortas no intuito de pactuar com o Diabo, aquele deseja ver este, na “lufa de um vendaval grande, com Ele em trono, contravisto, sentado de estadela bem no centro” (ROSA, op. cit., p. 437.). O próprio espírito demoníaco já é evocado pelo nome do lugar, “Veredas-Mortas”, uma encruzilhada. Encontramos no romance, resíduos da tradição teológico-erudita e popular, no que concerne à representação do Diabo. A seguir, veremos como Riobaldo imagina o encontrar na primeira tentativa de chegar até o retiro da Coruja: No Tristonho vir negociar nas trevas de encruzilhada, na morte das horas, salforma dalgum bicho de pêlo escuro, por entre chorinhos e estados austeros, e daí erguido sujeito diante de homem, e se representando, canhim, beiçudo, manquinho, por cima dos pés de bode, balançando chapéu vermelho emplumado, medonho como exigia documento com sangue vivo assinado, e como se despedia, depois, no estrondo e forte enxofre (ROSA, op. cit., p. 427).
O pacto diabólico é outro sinal que evoca a figura do Diabo medieval para o romance. Entretanto, não há um pacto nos moldes clássicos, naquele em que a outra parte corporifica-se e concretiza o pacto. Após chamar pelo Diabo, a resposta que Riobaldo recebeu foi o silêncio. Todavia, o ex-jagunço sentiu algo perpassar seu corpo, uma espécie de gozo acompanhado pelo fenômeno do redemoinho, anunciador da presença do “Cão-Miúdo” (ROSA, op. cit., p. 438). É interessante notarmos que, mesmo o Diabo não se materializando, o personagem sente sua presença. No entanto, mesmo afirmando que sentiu a presença do
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Diabo, Riobaldo durante todo o relato nega sua existência, pois sente-se atormentado até o íntimo da alma pela possibilidade de que possa ter completado um pacto com o Diabo. De tal modo, o velho sertanejo deseja “armar o ponto dum fato, para depois pedir um conselho” ao doutor da cidade, na tentativa de achar a voz que o alivie e dê-lhe a fidúcia da inexistência do Diabo. Com esta análise almejamos dar apenas uma mostra do rico compósito de temas para investigação, contido no Grande Sertão: veredas. Cabe lembrar de que estas páginas não esgotam o assunto. Portanto, muito mais fica para ser desvendado e analisado nesta e em tantas outras obras relativas à questão do pacto diabólico na literatura, em geral, e na literatura brasileira, em particular. Por fim, “o diabo existe e não existe”? Nossa resposta encontra-se no próprio pensamento de Riobaldo: “Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos” (ROSA, op. cit., p. 26). E no fim, o que existe é “Travessia” (ROSA, op. cit., p. 634).
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LITERATURA INFANTIL: IMAGINÁRIO E ENSINO NO CONTEXTO DE MATO GROSSO Rosana Rodrigues da Silva (UNEMAT/ SINOP-MT) Marta Helena Cocco (UNEMAT/ TANGARÁ DA SERRA-MT)
O ensino tradicional não contemplou, adequadamente no trabalho com a leitura, o mundo do aluno porque não soube lidar com a diversidade cultural no espaço escolar, tornando a exclusão um modelo de ensino. Em resposta a esse desafio, a pesquisa na área de formação de leitores ganha novos rumos para atender aos desafios que ora se impõem à prática docente, visando auxiliar no encaminhamento de estratégias que possibilitem na formação educacional a discussão acerca da formação leitora por meio de obras que considerem, também, a cultura da região a que o aluno pertence. A literatura destinada ao público infantil contribui de modo valioso para que a criança adquira o gosto pela leitura e possa tornar-se um adulto leitor, embora no meio acadêmico nem sempre receba o devido prestígio da crítica, no que concerne ao valor literário do gênero. Tendo sua difusão comprometida com o ensino, a literatura infantil geralmente esteve associada a metodologias voltadas ao ensino da língua materna. Conforme mostra Zilberman e Lajolo (1986), essa função pedagógica do gênero marca a pragmática que se impõe à produção, podendo comprometer a qualidade artística dos textos, o que gera desconfiança da teoria e da crítica literária. O uso dos textos literários para o ensino da norma padrão e para corrigir costumes e aplicar moralidades são formas de leitura que tem orientado docentes na seleção de obras literárias para o trabalho em sala de aula. Conforme Colomer (2007, p. 15), em diferentes países, no século XIX, começou-se a produzir livros de leitura escolar, atendendo à encomenda de obras que foram pensadas e avaliadas com a finalidade de serem leituras de classe. A autora lembra que o modelo humanista sustentava a importância da literatura clássica na formação do educando, na construção social do indivíduo e da coletividade. Contudo, ainda que se considere a orientação pragmática, a literatura destinada às crianças conseguiu permanência histórica, o que comprova que, na qualidade de arte literária, o gênero possui seu espaço próprio de
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atuação (LAJOLO; ZILBERMAN, 1986), além do que, as mudanças no sistema de ensino ditaram nova forma e função a essa literatura. As transformações das sociedades ocidentais e a era da pós-industrialização e pós-moderna trouxeram necessidades de redefinir globalmente a formação que se esperava que a escola fornecesse. “A ideia de um sistema educativo obrigatório atuaria como um poderoso agente de culturalização e democratização social” (COLOMER, 2007, p. 21). Assim, a tarefa escolar no acesso à literatura deve estar voltada ao estímulo e planejamento do desenvolvimento das competências infantis. Segundo Soares (2001), não há como evitar que a literatura infantil e juvenil, ao se tornar conteúdo das aulas de Língua Portuguesa, seja escolarizada. O que se deve negar não é a escolarização da literatura, mas a forma inadequada como isso vem ocorrendo, por meio da deformação do literário em conteúdo facilmente resumido e descontextualizado, sem nenhuma compatibilidade com o universo do aluno. Atendendo à escolarização, a literatura para crianças passa à condição de mercadoria. Os novos recursos tecnológicos disponíveis e o atrativo do mercado destinado ao público infantil fazem aumentar o número de edições dessa natureza. Ao lado da questão mercadológica, os mecanismos modernos de produção editorial e consumo multiplicaram os livros. A crescente internacionalização do mercado, ao passo que possibilitou a imagem da literatura enquanto bem cultural de acesso livre para todos, dinamitou antiga função escolar de transmitir um corpus literário nacional limitado, ordenado e valorizado segundo uma tradição literária (COLOMER, 2007, p. 23). Nesse sentido, a escola legitima obras literárias, uma vez que cria e impõe a leitura de determinadas obras em detrimento de outras. Segundo Zélia Versiani,
o papel da escola enquanto instituição legitimadora de bens literários ganha destaque, pois as práticas de leituras escolares têm papel importante na formação do habitus, ou seja, o conjunto de disposições responsáveis pela recepção e pela apreciação dos bens simbólicos, entre eles a literatura, que circulam socialmente. (VERSIANI, 2007, p. 25).
No estudo desses bens, a crítica literária, conforme orientação teórica, ora se volta para o texto como objeto de estudo, ora para o funcionamento social do fenômeno
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literário e para fatores internos à construção do significado por parte do leitor, tal como estuda a teoria da recepção (COLOMER, 2007, p. 25). Nesse sentido, avanços teóricos analisaram a literatura à luz de critérios internos, tomaram leitor como objeto de estudo, analisaram o papel cooperativo que lhe dá o texto e ofereceram novos conceitos para reformular propostas educativas. O texto literário ostenta a capacidade de reconfigurar a atividade humana e oferece instrumentos para compreendê-la, posto que, ao verbalizála, cria espaço específico no qual se constroem e negociam os valores e o sistema estético de uma cultura. Essa ideia básica contribui para a nova argumentação sobre a importância da literatura no processo educativo (COLOMER, 2007, p. 27). A literatura infantil é uma ponte que liga o leitor ao mundo da imaginação possibilitado pela leitura. A presença de obras literárias durante a infância e a adolescência necessita estar vinculada à visão de mundo desse leitor, de seu cotidiano, principalmente do espaço em que ela se apresenta. Na atualidade, multiplicaram-se no Brasil o número de edições de obras destinadas ao público infanto-juvenil. Conforme expõem Zilberman e Lajolo, nos anos 60 e 70, a literatura infantil brasileira apresenta traços tanto das antigas tendências, quanto do esforço renovador. Assim, no primeiro caso, repete fórmulas velhas, enredos, folclore e fantasia; no segundo caso, incorporam conquistas modernistas, temática urbana, denuncia crise social. As histórias fundadas no imaginário reencontram seu espaço quer através do recurso ao fantástico universal, quer através do reaproveitamento inovador de elementos de lendas brasileiras e assuntos regionais (1986, p. 161). Assim, a diversidade cultural nunca se ausentou do gênero destinado às crianças. O tratamento dado a essa diversidade tem se modificado, diante da importância conferida aos estudos culturais e das novas necessidades da política educacional que hoje se volta ao trabalho com a diversidade de forma mais contundente. Diferentes culturas são representadas e discutidas em obras literárias, demonstrando a interação do escritor, em geral, proveniente de uma cultura universitária, com outras formas culturais de sua região. As edições destinadas ao público infantil e jovem trazem temas e situações vivenciadas em diferentes estados e regiões do Brasil. Mato Grosso apresenta edição restrita de obras destinadas às crianças, mas que traz a preocupação de apresentar uma linguagem que corresponde ao universo da criança, como também imprime em sua
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estrutura literária as marcas culturais e sociais da região.
Autores como Lucinda
Persona, Durval França, Cristina Campos, Wander Antunes e Ivens Scaff transpõem para o plano do literário os elementos da diversidade da cultura local, criando personagens infantis que vivenciam situações possíveis do reconhecimento e identificação do leitor mirim. Desse modo, respondem de modo favorável à visão da literatura enquanto uma das “formas em que se auto-organiza e se autorrepresenta o imaginário antropológico e cultural, um dos espaços em que as culturas se formam, se encontram com outras culturas” (CASARINI, R. & FEDERICIS, L. apud COLOMER, 2007, p. 29). A própria linguagem literária já carrega esse poder simbólico ao transmutar signos em palavras. Srbek (2007), citando Cassirer, lembra que o antropólogo em vez de definir o homem como animal racional, deveria defini-lo como animal simbólico. Afinal se Deus criou o mundo pelo verbo, os seres humanos o reinventam cotidianamente por meio do símbolo, elemento constituinte do que somos com sua rede de signos, códigos e linguagens; a dimensão simbólica é o fundamento de nossa existência (2007, p. 205). O texto literário, desse modo, nos apresenta o desafio da leitura e exige que tenhamos um preparo crítico para descobri-lo em todo seu simbolismo e complexidade. São necessários estudos científicos que realizem análise crítica dos textos literários destinados a crianças e jovens, seguindo uma perspectiva cultural que enfoque os elementos da diversidade de culturas manifestadas na literatura da região. Os resultados dos estudos dessa natureza devem orientar para a futura organização e planejamento de metodologias de leitura no ensino e aprendizagem, visto que o trabalho docente necessita conhecer as obras que fazem parte da cultura do Estado e, mais que isso, ter habilidades para desenvolver leituras com seus alunos em sala de aula auxiliando na formação de futuros leitores. As diretrizes de base da educação nacional, por meio da Lei nº 11. 645 de 10 de março de 2008 tornaram obrigatória a história da cultura afro-brasileira e indígena no currículo oficial da rede de ensino, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras (Brasil, 2008). São nas aulas de Língua Portuguesa e nos projetos de leitura que essa atividade deve se dimensionar. A leitura literária contempla
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todas as disciplinas, mas é fato que as leituras de obras infantis produzidas em Mato Grosso são, muitas vezes, relegadas a segundo plano, por falta de conhecimento crítico dessas obras por parte dos profissionais responsáveis pelo trabalho com a leitura. Sabemos da relação do livro com o contexto escolar, uma vez que os alunos leem a priori o que é pedido pela escola. O livro infantil, de objeto de consumo passa a objeto de estudo analítico em sala de aula. É nesse momento que o trabalho com a leitura põe o aluno em contato com diferentes culturas. A experiência literária não só nos permite saber da vida por meio da experiência do outro, como também vivenciar essa experiência. Segundo Cosson (2006), a ficção feita palavra na narrativa e a palavra feita matéria na poesia são processos formativos tanto da linguagem quanto do leitor e do escritor. Vista dessa forma, o autor esclarece que a leitura não é ato solitário, pois ler implica troca de sentidos não só entre escritor e leitor, mas também entre a sociedade onde ambos estão localizados, pois os sentidos são resultados de compartilhamentos de mundo entre os homens no tempo e no espaço. O autor literário permite a abertura de seu discurso ao outro, em um ato de superação de uma primeira pessoa:
A voz do outro enquanto narrador é a primeira marca da alteridade de que se imprime à linguagem literária. A segunda são as personagens. Não é o autor sozinho. Vão-se desdobrando em vozes as inúmeras facetas, memórias, fundações, papeis. A multiplicidade e a diferença são assumidas e trabalhadas com estilo, que, aliás, é o outro, como já disse a psicanálise. (PAULINO, 2007, p. 14)
A pesquisa em torno do imaginário e do ensino na literatura infantil e juvenil de Mato Grosso busca atender à concepção interacionista da literatura que pressupõe abertura à multiplicidade do mundo, estabelecendo relação com a alteridade que nos identifica e, ao mesmo tempo, nos diferencia do outro. A literatura que hoje se trabalha nas escolas não contempla essa alteridade, na medida em que ao trabalhar com o cânone acaba excluindo de sua seleção obras pautadas na marginalidade e no periférico. A seleção de textos para estratégias com a leitura literária deve contemplar o imaginário que compõe a diversidade cultural e os
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valores da comunidade de leitores como forma de atenuar a exclusão. Portanto, nessa seleção devem estar inclusos os romances e contos mato-grossenses, as narrativas indígenas e populares da região, a fim de que a identidade e memória dos povos da floresta, enfim, a cultura ameríndia e a cultura mato-grossense, sejam constitutivas do processo de formação do leitor. Como profissionais da educação que atuam em um estado em que o livro produzido na região circula muito pouco, temos feito um esforço no sentido de inserir narrativas que tragam diálogos entre temas universais importantes para a formação da criança e temas que abordem aspectos culturais da região em que elas estão inseridas. O livro A fábula do Quase Frito, de Ivens Scaff, é uma dessas narrativas. Ao mesmo tempo em que traz à discussão um evento recorrente no estado de Mato Grosso no período da seca - as queimadas - vai além, problematizando, de modo lúdico e sensível, o importante tema da constituição das identidades. A narrativa inicia com a aventura de um grupo de crianças que sobem o famoso morro de Santo Antônio, um vulcão extinto e um dos mais importantes pontos turísticos de Mato Grosso. Por lá as crianças se perdem e, de repente, se veem rodeadas do fogo. Quando conseguem escapar por um descampado, encontram um filhote de pássaro todo chamuscado, a quem denominam Quase Frito. A partir daí a história avança com a busca incessante do Quase Frito por sua identidade. Nesse decurso, as crianças representam a alteridade, assim como outros animais, com quem o Quase Frito tenta seu auto reconhecimento. Surge, por exemplo, a figura do Tuiuiú, sábio conselheiro, conhecedor de vários horizontes. Mas a cada tentativa, nova frustração: “os bichos só sabiam cada qual da sua própria vida”. (SCAFF, 1997, p.25). Nem uma dona muito velha soube responder, passando a responsabilidade para os entes: o currupira, o minhocão, a mãe do morro. A narrativa, então, vai se desdobrando, prendendo a curiosidade da criança em relação ao desfecho e, ao mesmo tempo, inserindo conhecimentos da cultura popular e regional como as lendas. Nesse ponto, um aspecto chama a atenção: o da sobrevivência desses seres mitológicos: Quase Frito começou a achar que esses entes só existiam na cabeça dos antigos. Mas os antigos foram morrendo. Os mais moços não
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acreditavam neles. Como é que eles iam continuar existindo? (SCAFF, 1997, p.25).
A jornada continua e, conforme vai se aproximando do final, que deverá ser a descoberta da identidade do passarinho, a natureza vai se modificando. Não fica claro, no texto, se o cerrado vai brotando, ou se se trata de lugares não atingidos pela queimada. O certo é que tudo vai ficando mais colorido. Chamamos a atenção, nesse ponto, para o aspecto editorial e gráfico do livro. O livro foi lançado num conjunto de obras patrocinado, via lei de Incentivo à cultura, pela empresa Modelo, que são: os infanto-juvenis: A cidade sem sol (Lucinda Persona), Uma maneira simples de voar (Ivens Scaff) e Isso é coisa de Pirata (Wander Antunes) e o livro de poemas Partido (Marta Cocco). A extinta editora Tempo Presente, a fim de acomodar a verba da edição para esse conjunto, optou por um papel mais simples e colorido apenas na capa. De modo que, em termos de suporte, o livro deixa bastante a desejar, pois, acreditamos que seria interessante que a criança, ao folhear o livro, passasse de um preto e branco ou cores escuras que ilustrassem a queimada inicial para um colorido que acompanhasse o movimento de rebrotação da natureza. Assim, esse trecho, tão fecundo de lirismo e tão bem construído esteticamente, poderia ser acompanhado de um colorido à altura:
Foi andando. Andando e vendo as árvores muito bonitas. Tinha árvores com flores amarelas. Árvores com flores cor-de-rosa. Árvores com frutinhas. Tinha também muitos bichinhos. Preás, cobras, lagartos, curimpampans, gatos-do-mato, caitetus, jaguariricas, lobinhos, iraras. Quase Frito já tinha até esquecido a tristeza. Zanzeou o dia inteiro. Viu o sol subir até o pico do céu. Viu o sol ficar vermelho quando já estava ficando tarde e um ventozinho frio lambia o sertão. E logo apareceram as estrelas. Umas piscavam, outras não. O céu da mata acendia muito mais estrelas que o céu da cidade. (SCAFF, 1997, p.30)
Esse trecho contém belas imagens da natureza expressas com uma linguagem carregada de emotividade, envolvendo a criança leitora. Do mesmo modo, é envolvente, no decurso da narrativa, a angústia da personagem pela sua identidade. Um desses momentos é expresso em versos e não em prosa, indicando uma certa hibridização de gênero, comum em narrativas infantis:
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Me chamam de Quase Frito mas meu nome ninguém sabe me chamam Quase Frito e nem posso reclamar Pois então se perguntarem: qual seu nome Quase Frito de onde é que você vem? Qual é o seu bando Qual é a sua grei? Responderei tristonho: Não sei! (SCAFF, 1997, p.18)
Na tentativa de descobrir a identidade do passarinho, as crianças vão contando histórias de outros animais e, a cada equívoco, Quase Frito reclama. Não queria ser formiga e só trabalhar. Não queria ser bicho-preguiça e só descansar. Não queria ser cigarra e não ter onde se abrigar. Esses três modos de ser, entretanto, quando reunidos, agradam ao bichinho que começa a cantar e, inicialmente pelo canto, pela voz (“vou cantar, cantar, cantar/ trabalhar/ descansar/ voar, voar” p.38), depois pela plumagem e finalmente pelo modo de fabricar o ninho, começa a se identificar. O coroamento da descoberta se dá com a aprendizagem do voo, gesto arquetípico que simboliza ascensão e autonomia. A narrativa fecha com trechos em prosa e verso:
Agora Quase Frito sabia que bicho era. Um lindo pássaro que trabalhava como as formigas, cantava como as cigarras, descansava como o bicho preguiça, voava como seus irmãos passarinhos. Ia cantar em tidas as árvores no tempo da seca. Ia ter onde se abrigar no tempo das chuvas. Daqui pra frente a vida ia correr tranquila para o pássaro bonito cujo apelido é Quase Frito Mas o nome certo é Japuíra. (SCAFF, 1997, p. 38)
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Outra obra que tem se destacado no contexto da literatura infantil produzida em Mato Grosso é Conferência no Cerrado (2008), de Durval de França e Cristina Campos. A narrativa possui temática ambientalista, com personagens lendários. Os autores constroem uma história valendo-se dos elementos da fauna, da flora e da cultura matogrossense. O enredo apresenta os personagens envolvidos na missão de salvar o cerrado que está sendo destruído pela ação humana. Curupira, Saci Pererê, Boitatá, Negrinho d’Água, Pé de Garrafa, Tibanaré, Mãe do Morro e Minhocão evocam o imaginário de diferentes lendas que compõem o folclore de Mato Grosso. O guardião do cerrado, Curupira, lidera a ação dos demais personagens para salvar a natureza. Intuitivo, o personagem lendário fiscaliza a mata; consegue vislumbrar os perigos que enfrentarão para defendê-la. O pequeno duende, com os pés invertidos, corre velozmente, ao perceber os riscos de fogo no céu do pantanal. Movido pelo sentimento de unidade, reflete: se a natureza é formada por um complexo de sistemas bem definidos, todos interligados e dependentes de fatores em comum, então este problema não deve ser só meu. Devo procurar informações e ajuda. Mas de quem? Quem? (FRANÇA; CAMPOS, 2008, p. 12).
Figura masculina e protetora, o Curupira projeta a narrativa. Suas ações são seguidas pelo narrador, portanto ao passo que organiza a conferência para salvar o cerrado também organiza as ações da narrativa que garante a unidade das lendas integradas na obra.
Gostava de inspecionar bandos de animais silvestres em cima dos morros, deleitando-se com a brisa fresca, ou, acocorado à sombra de um buriti, observar o olho d’água brotando da terra... De molhar as mãos e umedecer o corpo ouvindo a música das cigarras ou seriemas empoleiradas nas aroeiras em duplas festivas, todos respirando o mesmo ar puro impregnado do cheiro da vegetação rasteira daquele lugar .... (FRANÇA, CAMPOS, 2008, p. 9)
A narrativa não apenas informa as ações dos personagens de modo direto, mas também propicia ao leitor ir além da cena, com sugestões de imagens de animais
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silvestres, de plantas, morros e rios, imagens típicas da paisagem da região, que são evocadas pelo narrador, dando colorido e plasticidade à narrativa. O que de modo coerente encontramos no colorido vivo da ilustração de Ricardo Leite. O ilustrador joga com cores quentes em desenhos que ocupam todo o espaço da página, propiciando ao pequeno leitor relacionar a ilustração ao texto verbal. Entre o colorido poético lendário e o alerta para a ação predatória do homem, a narrativa envolve o leitor, levando-o a recompor as cenas dos personagens já conhecidos através de contação de histórias, seja no ambiente familiar ou escolar. Personagem fantástico e conhecido nas narrativas não só de Mato Grosso, Pé de garrafa, primo e vizinho de Curupira, foi o primeiro personagem a interagir com Curupira. Uma vez encarregado da distribuição dos convites para a conferência, o mensageiro Pé de Garrafa enfrenta as dificuldades da extensão do território, mas também e, principalmente, ocasionadas pelos sérios problemas climáticos que já despontavam na região. O espaço dessa conferência é o espaço Aroé Jari na Chapada dos Guimarães. Historicamente, é um espaço sagrado para os Índios bororó e significa caverna das almas, espaço que simboliza o útero da mãe terra que tudo gera e tudo retorna, onde se realizavam os ritos funerários. A lenda do Curupira é retomada na narrativa, mas propicia nova releitura para o pequeno leitor que passa a perceber um personagem engajado na proteção do cerrado. Em conjunto nessa missão está a personagem lendária Mãe do Morro. Essa figura feminina e mística atua diretamente para solucionar o problema ocasionado pelos homens. Graças a seus poderes, ela consegue atravessar os portais e se comunicar com a Mãe Terra. Para se comunicar com a Grande Mãe Terra, somente outra entidade feminina poderia fazê-lo, por isso Mãe do Morro é convocada. Ambas são representadas como arquétipos do feminino e da maternidade. Mãe do Morro, sempre vaidosa com um chapéu de peneira na cabeça, repleto de orquídeas perfumadas e samambaias; é a guardiã que protege plantas e animais de incêndios provocados pelo homem. Os traços locais, particulares, de natureza linguística e espacial da região, despontam na narrativa, contribuindo para que o leitor opere a leitura não somente do
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mundo que o cerca, mas do que não está visível no real circundante. Nesse sentido, a literatura para crianças traz para o leitor a vivência de um mundo imaginário que pode ser vivido na leitura e projetado no universo da criança, possibilitando nessa projeção a o caminho para a formação do gosto pela literatura. Pelas análises apresentadas é possível vislumbrar o envolvimento da criança leitora com conhecimentos de natureza linguística, histórica, geográfica, enfim, cultural, da região em que vivem. O conhecimento de questões relativas ao entorno, como o mitológico e o ambiental, por exemplo, podem despertar na criança um compromisso afetivo com o seu espaço e com a convivência dos outros seres que o habitam, além do despertar para questões como a constituição de suas identidades. Nesse sentido, as obras analisadas cumprem, além do valor estético, a finalidade de suprirem uma lacuna, no contexto de Mato Grosso, da inserção de elementos do imaginário regional.
Referências: BRASIL.
Lei
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http://www.planalto.gov.br/ccivil
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Disponível
Acesso
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DA FORMA AO CONTEÚDO – JUDAS NA SALA DE AULA
Rosemari Bendlin Calzavara (UNOPAR)
A presente pesquisa é fruto de um projeto que visa a estudar a formação do leitor/espectador do texto dramático na sala de aula, tendo em vista as leituras literárias que são “cobradas” como atividades de literatura. Tradicionalmente se mantém nestas atividades as leituras de alguns poemas ou textos narrativos, entretanto o que se observa é que os textos dramáticos geralmente são ignorados ou deixados de lado por acreditarem que este texto não pertence aos gêneros literários e que, portanto não merecem a leitura, apreciação e discussão desta categoria. O texto literário dramático pode manifestar conteúdos singulares porque não representa uma realidade nem uma moralidade, mas uma ação que apresenta uma potencialidade ficcional literária. O texto dramático é escrito para ser representado no palco; caso contrário, ele exercerá somente sua função literária. Desenvolver o estudo e a análise da forma dramática como uma expressão de comunicação e linguagem dentro dos gêneros literários é extremamente pertinente tendo em vista os estudos mais recentes da teoria das letras e mais particularmente dos estudos da teoria da forma dramática. O estudo e investigação da leitura do texto dramático nos vários níveis de escolarização é extremamente relevante, tendo em vista que este gênero desde a antiguidade clássica permeia a vida do ser humano. Partindo desses pressupostos, a presente pesquisa trabalhou a relação forma e conteúdo do texto dramático, numa experiência realizada junto a um grupo de estudantes do Ensino Médio, a partir da leitura da peça O Judas em Sábado de Aleluia, de Martins Pena. O drama é a mais social de todas as formas de arte. Ele é por sua própria natureza uma criação coletiva que presentifica o instinto do jogo na condição humana. Jogar faz parte da essência do homem, desde a mais tenra idade até a sua participação na vida adulta. Jogar é uma das primeira necessidades sociais da humanidade. As
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manifestações de jogo apresentam-se de várias maneiras, como nas representações ritualísticas ( danças tribais, ofícios religiosos, grandes cerimônias), todas estas formas contêm fortes elementos dramáticos. O jogo, portanto, faz parte da aprendizagem e constitui valioso instrumento para a aquisição de conhecimentos. Recorrente na história do pensamento educacional as origens desse princípio podem ser buscadas desde Platão e Aristóteles que atribuem grande importância ao lúdico enquanto fator de equilíbrio físico e emocional para o crescimento do ser humano. Nas práticas educativas contemporâneas o brincar, o inventar e o criar vêm recebendo uma atenção especial onde diversão e ensino formam uma dicotomia que pretende o sucesso da aprendizagem. Nesse sentido o jogo é uma das peças mais importantes para a solução de problemas de ordem pedagógica, e cada vez mais está sendo elevado à categoria de fundamento de método de ensino. Corroborando as afirmações acima, temos que observar sempre o teatro como um processo histórico, que conserva através dos tempos, elementos que o distinguem como expressão artística. O teatro é o grande colaborador para as transformações sociais e reais da humanidade, provocando modificações nas concepções filosóficas e artísticas, além de ser um capítulo essencial da história da produção cultural dos povos. As abordagens de leituras e exercícios com textos dramáticos, propõem a ampliação do objetivo apenas didático, tendo em vista que no processo educacional o objetivo maior deve ser sempre o desenvolvimento completo e integral do indivíduo enquanto ser social e histórico. O jogo teatral é diferente do jogo dramático pois é um jogo de construção que se desenvolve no sentido de uma linguagem artística e nos remete à encenação, ao teatro. O jogo dramático é uma atividade subjetiva onde a interação é espontânea e o jogo teatral é uma atividade socializada, exige esforço, elaboração e pressupõe uma construção estética.
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Quando pensamos na leitura, interpretação e encenação de textos dramáticos devemos também recordar os princípios que regem esta arte. Drama significa ação, uma ação que foi feita, criada para acontecer, ser representada no teatro (theatron) o lugar onde se vai ver alguma coisa. A leitura do texto dramático deve, portanto, pressupor antes de mais nada, a leitura de como ele se apresenta, ou seja, é importante observar os elementos visuais do drama: o quadro da ação, o ambiente, cenários, a iluminação, as marcas dos atores no palco. Observar a construção das personagens, roupas, maquilagens, gestualidade, o corpo em cena, a voz. A partir de uma proposta de projeto em parceria com uma professora numa escola estadual de Londrina, oferecemos a um grupo de alunos do 1º e 2º ano do Ensino Médio, uma oficina de teatro. As primeiras atividades da oficina contemplaram discussões sobre o que era um texto dramático, suas características compositivas, sua forma de escrita e leitura e o que era teatro: cena, representação, montagem e organização num espaço próprio para representação. A partir destas considerações os alunos puderam manifestar seus conhecimentos sobre teatro e leitura de textos dramáticos e quais as experiências realizadas na sala de aula. Na sequência propusemos atividades com jogos teatrais, improvisações e exercícios de voz. Estas atividades tiveram boa aceitação do grupo e ao final dos encontros realizávamos uma avaliação para apontar os pontos positivos e os pontos negativos dos exercícios bem como propúnhamos já algumas leituras de fragmentos de textos dramatúrgicos para que o grupo pudesse ir se inteirando da forma e conteúdo do texto dramático, Exatamente na véspera da Páscoa propusemos a leitura do texto de Martins Pena O Judas em Sábado de Aleluia. Percebemos que eram poucos os alunos que tinham ouvido falar desse autor e dessa peça. Após dialogar e apresentar o autor o grupo aceitou fazer a leitura da mesma.
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Considerando que o texto tinha uma linguagem, como disseram os alunos, “diferente”, fizemos a leitura partilhada. Cada um escolheu uma personagem e ao longo dos nossos encontros fomos lendo/interpretando e “representando” o texto. O desconhecimento de termos, de situações culturais e referências a acontecimentos iam surgindo ao longo da leitura e isto demandava pesquisas, discussões e reflexões que enriqueciam sobremaneira a leitura e a compreensão do grupo. Ao finalizarmos a leitura, o grupo partilhou a experiência e a reflexão maior girou em torno de duas questões basilares: o conhecimento/desconhecimento das características culturais que envolvem o texto e o conhecimento da ação das personagens. Cabe aqui ressaltar a importância da personagem para a realização da obra. A personagem exerce função basilar no texto dramático, como salienta Décio de Almeida Prado (1987), “a personagem é o verdadeiro responsável pela distinção entre os gêneros literários”. A personagem é na verdade a totalidade da obra, nada existe a não ser através dela. Num romance temos narração, na poesia temos o eu-lírico, no teatro temos a ação. O teatro consegue traduzir em palavras e ações os acontecimentos, transforma o que está semiconsciente em consciente. O teatro não deve dar respostas, mas sim, fazer perguntas, encaminhar para uma solução reflexiva. A leitura do drama para atingir a sua completude deve ser feita pelas marcas cênicas, pelas rubricas (didascálias). A leitura do texto dramático pressupõe a leitura de vários tipos de linguagens que propiciam uma aprendizagem através do simbólico e repleta de significados. Não existe nenhum símbolo isento de significado. Não se pode pensar na abordagem do texto dramático na escola sem deitar o olhar com mais atenção aos estudos sobre teatro deixados por Brecht onde a abordagem do texto deve partir sempre do chamado distanciamento épico, ou seja, teatro é teatro. As emoções e encenações não passam de representações que nos levam a uma reflexão. O estudo do texto literário aliado à experiência teatral, através do jogo, são procedimentos que visam elucidar a compreensão profunda e significativa da obra por
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meio dos processos de identificação e estranhamento. Seu caráter se define por ser método de aprendizagem. As reflexões sobre o “ensinamento” de uma peça partem do pressuposto brechtiano de que o jogo teatral propicia a elaboração de experiências e acontecimentos sociais, sendo que as concepções sobre o mundo e a sociedade podem ser aprofundadas a partir destes exercícios. O processo ensino-aprendizagem por si só já é gerador de uma atitude crítica e incentivador de um momento político. Estas reflexões não se limitam a uma determinada faixa etária. Da educação básica ao ensino médio, para situar-se no âmbito da escola, a leitura e interpretação do texto dramático, seguido ou não da sua representação é extremamente significativa e compensadora. A falta de conhecimento e preparo e conhecimento profundo da abordagem dos gêneros literários permeia as atividades apresentadas nos materiais didáticos para os alunos tanto das séries iniciais como às séries mais avançadas. Nos últimos anos as famosas listas de leituras obrigatórias para o vestibular vêm cada vez mais contemplando a literatura dramática, proporcionando, talvez não por prazer, mas por obrigação, a leitura desse texto na sala de aula. O resgate e a abordagem de textos de Martins Pena bem como de autores contemporâneos deve ser pautado não apenas pela leitura substantiva, linear, horizontal, mas pela leitura adjetiva que verticaliza e aprofunda o conhecimento potencial do texto dramático. Além disso, cabe sempre ao mediador/professor lembrar-se das particularidades compósitas deste texto, que é um gênero literário distinto. Que o texto dramático se completa com a representação mas que o teatro mais que uma “ferramenta pedagógica” na sala de aula, exerce uma função social que visa a levar o sujeito não apenas à emoção mas à reflexão. Trabalhar o teatro na sala de aula é promover o resgate da cidadania, é uma forma de ampliar o universo cultural e social do estudante. O texto dramático tem como princípio a ação e como tal propicia um estudo dinâmico, questionador e motivador dos estudos literários e da formação dos jovens leitores. Através do estudo sistemático da evolução e história do teatro, da leitura de textos significativos dentro da literatura
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dramática universal alinham-se propostas de integração deste gênero literário em todas as áreas de conhecimento que se aplicam nas escolas desde a educação infantil até o ensino médio. Desenvolver a análise e estudo da forma dramática como uma expressão de comunicação e linguagem dentro dos gêneros literários na sala de aula é extremamente pertinente tendo em vista os estudos mais recentes da teoria das letras e mais particularmente as propostas didático-pedagógicas para o ensino da literatura conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais e as Diretrizes Curriculares Para a Escola Pública do Estado do Paraná. As artes em geral e consequentemente o teatro, fazem parte da cultura e da linguagem de um povo e são peças essenciais para o conhecimento e compreensão de sua história. O fazer teatral desperta os alunos para a observação dos outros e de si mesmo, propicia-lhes o despertar da curiosidade de se conhecer e se reconhecer como parte de um contexto histórico e social. Desperta o espírito colaborativo e de respeito ao outro, incentivando-o a manifestar e expressar sentimentos de forma positiva. Segundo Vic Vieira Granero (2011), o maior objetivo do teatro na escola é promover a expressão e o conhecimento, é envolver os alunos das mais diversas maneiras em atividades de aprendizado multidisciplinar. A proposta apresentada aos alunos, na oficina de teatro, corroborou estas considerações. A partir das leituras verticais, explicativas e investigativas, da peça O Judas em Sábado de Aleluia os alunos iam se envolvendo com o texto e com as cenas. A ação de cada personagem se tornava cada vez mais familiar pois, havia uma leitura intertextual e multidisciplinar que apoiava o texto base. Houve a participação e interesse de todos na leitura cênica do texto de Martins Pena. Portanto, desenvolver a análise da forma dramática como uma expressão de comunicação e linguagem dentro dos gêneros literários é extremamente pertinente tendo em vista os estudos mais recentes da teoria das letras e mais particularmente dos estudos da teoria da forma dramática.
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A PRÁTICA DA LEITURA NA ESCOLA E A PERSPECTIVA BAKHTINIANA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL Rosemary de Oliveira Schoffen Turkiewicz (UNIOESTE) RESUMO: Este artigo pretende trazer uma reflexão sobre o trabalho com a linguagem na perspectiva interacionista, tomando como abordagem metodológica a prática da leitura a partir dos gêneros discursivos, com base nos estudos de Bakhtin/Volochinov (2004), com apoio de outros autores que dialogam com tais pressupostos teóricos, como Brait (2010), entre outros. Com base nesse aporte teórico, selecionamos um anúncio publicitário que constituirá o objeto de análise, a partir da orientação metodológica proposta por Bakhtin, procurando verificar e destacar o conteúdo temático, apreendido a partir da compreensão do contexto de produção, a construção composicional e o estilo. Para a análise, serão considerados também alguns aspectos sobre o gênero anúncio publicitário, para maior compreensão do conteúdo temático, além dos elementos discursivos e linguísticos que permitam perceber a linguagem em sua função real, num contexto de comunicação. Como estamos inseridas, como bolsista CAPES/INEP no Projeto de Pesquisa Formação Continuada para professores da educação básica nos anos iniciais: ações voltadas para a alfabetização em municípios com baixo IDEB da região Oeste do Paraná, nosso intuito é o de apontar caminhos aos docentes para o trabalho com a leitura, de forma a romper com atividades mecânicas ainda desenvolvidas no processo de formação do leitor durante a Educação Básica. PALAVRAS-CHAVE: gêneros discursivos, método sociológico, dialogismo. Introdução O ensino de Língua Portuguesa tem passado por grandes mudanças ao longo do tempo. As ideias do Círculo de Bakhtin1 contribuíram muito para essa transformação na forma de conceber o ensino da língua materna e, consequentemente, o processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita. Hoje, é inegável a importância de se trabalhar nas escolas com uma perspectiva de uso social da linguagem, tomando como meios para ensinar a leitura e a escrita os textos que circulam socialmente e que nascem 1
O Círculo de Bakhtin consistia em um grupo de intelectuais russos de diferentes áreas do conhecimento e formação que aproximadamente por uma década (1919-1929) se reuniam para discutir e estudar a linguagem, a literatura e a arte. Entre seus participantes temos o linguista Vale ntin Volochinov (18951936), o teórico literário Pavel Medvedev (1891-1938), Mikhail Bakhtin (1895-1975) dentre outros.
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de uma necessidade real de comunicação, com interlocutores reais, através dos gêneros do discurso, aqui entendidos como uma realização da língua, portanto um enunciado. Segundo Bakhtin (2003), “Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem” (Bakhtin, 2003, p.261). Assim, não podemos assumir uma concepção de língua que desconsidere a sua utilização pelo sujeito em suas relações históricas e sociais. Se nas atividades que exerce no dia a dia é que a língua se efetiva, se torna viva, jamais poderá ser encarada apenas como código. Acreditamos que essa concepção de linguagem pode gerar um impacto no ensino de Língua Materna, tornando-o verdadeiramente reflexivo. Contudo, vencer a artificialidade de uso da língua nas propostas de trabalho com as práticas linguísticas ainda é um desafio, pois o que se percebe é uma grande distância entre essa teoria e a prática presente nas salas de aula. As atividades desenvolvidas com a leitura e a compreensão, ainda se sustentam em uma garimpagem no texto para “respondê-lo” e não para interagir com ele como um sujeito leitor, capaz de preencher os vazios semânticos, ler as entrelinhas. Desse modo, propomos, neste texto, uma reflexão sobre as práticas de leitura na perspectiva dos estudos bakhtinianos. A primeira parte do texto consistirá de uma breve fundamentação teórica quanto aos conceitos que irão pautar a análise do gênero, tendo como foco a prática da leitura. A segunda trará uma proposta de análise dialógica discursiva a partir dos conceitos de estudo da linguagem apontados por Bakhtin em seu “método sociológico”, tendo como objeto de estudo um anúncio publicitário, tomando como norteadores, os elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional.
1. O gênero discursivo como instrumento de ensino Ao assumirmos os postulados do círculo de Bakhtin, concebemos a linguagem como ação de um sobre outrem, onde cada discurso retoma, refuta ou recria outro, numa polissemia de vozes, pois a nossa própria fala tem dois autores: um eu que enuncia e as vozes dos discursos que o embasam. Para Bakhtin (2004), a linguagem em sua expressão oral ou escrita, nasce na interação, na ação social entre interlocutores. Concebida como interação, a linguagem é
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viva, materializada não apenas em elementos linguísticos, mas nos extralinguísticos, perceptíveis e presentes através dos textos-enunciados. O autor, afirma que “a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros” (Bakhtin, 2004, p.113). É nessa interação entre um eu e o outro que ocorrem as relações dialógicas, que segundo o autor, “não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua como fenômeno integral concreto. A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam” (BAKHTIN, 2010, p. 209). O
dialogismo
constitui um princípio
norteador,
um eixo
nos estudos
bakhtinianos. Está presente nas vozes que atravessam nossos discursos, na forma como vemos o mundo, nos valores sociais dos grupos com os quais interagimos, nas palavras do outro que referendamos ou refutamos, já que em uma relação dialógica as vozes podem ser convergentes ou divergentes. Segundo Bakhtin (2003), o texto é um enunciado por possuir uma intenção (informar e levar à reflexão) e a realizar. Nasce de uma situação de interação, considera o extralinguístico e provoca uma atitude responsiva nos leitores. Assim, o texto
não se
esgota em si, mas pode gerar uma possibilidade para a palavra do outro, uma necessidade responsiva, apresentando um “acabamento” provisório. Para Bakhtin (2003), “Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo” (Bakhtin, 2003, p. 297). Os enunciados organizam os projetos de dizer nos diversos campos da atividade humana, conforme as necessidades de interação, o que acaba por configurar uma relativa estabilidade na forma de enunciar, realizada em um gênero discursivo. Bakhtin (2003) traz o conceito de gênero, antes muito restrito aos estudos literários, para o cotidiano, para as outras esferas de uso e estudos da linguagem. Ele assim o define: “ cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso” (Bakhtin, 2003, p. 262). Conforme Costa Hübes (2014), “Os gêneros do discurso são construtos teóricos históricos e culturais que carregam em si a linguagem em toda sua plenitude de vida” (COSTA-HÜBES, 2014, p. 21). Assim, ao tomarmos estes conceitos como norteadores
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do ensino, assumimos os gêneros discursivos como uma possibilidade de reflexão sobre as práticas sociais de uso da linguagem. Para essa reflexão, tomaremos como objeto de estudo um anúncio publicitário a partir da ordem metodológica apreendida das produções do círculo de Bakhtin, nas quais percebemos o delinear de um método de análise de linguagem.
1.3. Conhecendo o Método Sociológico O Círculo de Bakhtin não propôs um método de ensino, mas encontramos em Bakhtin/Voloshinov (2004), uma ordem metodológica para o estudo da língua, que contempla o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional. Essa possibilidade de estudo é conhecida como Método Sociológico e tem orientado o trabalho de alguns estudiosos voltados para uma análise dialógica do discurso. Para
Bakhtin/Voloshinov
(2004),
o
conteúdo
temático
está intimamente
relacionado ao conceito de tema que jamais se esgota em um texto, pois contempla não apenas o assunto a ser abordado, mas abarca a situação de enunciação, na qual há possibilidades de diálogos entre visões de mundo, referindo-se às formas de compreensão da realidade. Assim, o tema é sempre reiterável. “Ele se apresenta como a expressão de uma situação histórica concreta que deu origem à enunciação” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2006, p. 131). Quanto ao estilo, Brait (2010), alerta-nos para o fato de que, na perspectiva bakhtiniana, estilo não pode ser tomado como sinônimo de exclusivo, particular, individual como preconiza o senso comum. O conceito bakhtiniano de estilo pressupõe considerá-lo na relação que mantém com o conteúdo temático, com o extralinguístico e com as relações de interação entre os interlocutores, com o grupo social a qual pertencem, enfim, com a necessidade cultural e social de comunicação que leva à escolha de determinados gêneros, ideologias, valores, palavras. As escolhas verbo-visuais, do léxico, relações lógico discursivas, todo um projeto de dizer materializado no gênero tem a ver com estilo, pois, nas palavras do próprio Bakhtin (2003), nos enunciados as finalidades de cada referido campo são definidas também “pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua” (Bakhtin, 2003, p.261).
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O estilo não é estático. Está sempre em relação aos elementos para a interação. As questões gramaticais e de escrita estão para o estilo. Diante das possibilidades da linguagem e dos papeis sociais, a opção do autor para essa seleção, as “máscaras” que usa ao produzir um discurso, acabam por constituir marcas do estilo. Às vezes, para se chamar a atenção do leitor, de forma ousada, se muda não o gênero, mas o estilo do gênero, o que pode constituir uma “assinatura”, uma marca de autoria que nos permite vislumbrar “traços” de um estilo individual. “Todo enunciado [...]
é individual e por isso pode refletir a individualidade do falante (ou de quem
escreve), isto é, pode ter estilo individual” (BAKHTIN, 2003, p. 265). O estilo está ligado ao conteúdo temático e, ao trazer traços de determinado gênero, une-se à construção composicional, podendo demonstrar seus aspectos mais “estáveis” ou mesmo subvertê-la, ressignificá-la ao trazer nuances de estilos de diferentes gêneros, como expressão da individualidade do enunciador. Entretanto, Bakhtin (2003), ressalta que “Nem todos os gêneros são igualmente propícios a tal reflexo da individualidade do falante na linguagem do enunciado, ou seja, ao estilo individual” (BAKHTIN, 2003, p. 265). Assim, podemos perceber que a construção composicional está bastante ligada às marcas do estilo do gênero.
Traz, em si, marcas da situação de um determinado
campo da atividade humana, sendo que, dos três elementos do enunciado, é o que mais apresenta uma relativa “regularidade”, pois carrega a preocupação com os atos de fala, com a forma de materializar os gêneros, sem perder de vista o contexto. A opção por uma organização formal que contemple a paragrafação, imagens, ilustrações, uso de determinados elementos linguísticos, lexicais, gramaticais, enfim, toda a “forma”, o “como dizer”, deve estar em consonância com o que é relevante para a interação, para evocar sentidos pretendidos, pois cada gênero tem uma forma distinta de organizar seus enunciados. Vejamos como se organiza o gênero anúncio publicitário. 2. Algumas artimanhas do anúncio publicitário O gênero Anúncio Publicitário traz como marcas do estilo do gênero o uso de recursos de estranhamento, obtidos, muitas vezes, pelo processo metafórico, com
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utilização de várias figuras de linguagem. Procura valer-se de recursos fonéticos e sonoros, como ritmo, rimas, aliterações, onomatopéias. Os aspectos semióticos constituem o “carro chefe”, explorando uso de linguagem simbólica, ícones, cores e recursos gráficos como disposição estratégica nas páginas, tamanho da fonte, etc. Apresenta subversões às normas da linguagem padrão, como neologismos, gírias, ausência de pontuação, aparentes “erros” ortográficos (desvios). O uso de tom coloquial na linguagem é recorrente, através de pronomes de tratamento não cerimoniosos.
Há
empréstimos
linguísticos,
estrangeirismos
e
uma
simplicidade
estrutural nos enunciados verbais. Esse gênero tem uma finalidade bem definida “gerar uma necessidade em seu público”. Para isso, recorre a uma espécie de simulação de diálogo, como se houvesse uma conversa face a face, uma cumplicidade e, nisso, pode residir a interação, gerando uma responsividade do leitor quanto ao texto e quanto ao papel de consumidor. Como destacou Sandmann (2010), os autores de anúncios publicitários, no intuito de os tornarem mais persuasivos e atrativos para o leitor, recorrem a algumas estratégias de uso da linguagem bastante peculiares. Um desses aspectos é incluir outros gêneros de circulação social em sua composição, gerando um dialogismo entre eles. Quanto maior o domínio que o locutor tem de um gênero, maior a possibilidade de criação, de romper com padrões de estilo do gênero e ousar quanto à construção composicional. O anúncio publicitário constitui um terreno fértil para essas ousadias. Bakhtin (2004), aponta que “para o locutor a forma linguística não tem importância enquanto sinal estável e sempre igual a si mesmo, mas somente enquanto signo sempre variável e flexível” (BAKHTIN, 2004, p. 93). Outros autores têm discutido esse fenômeno linguístico e denominado “mescla” de gêneros, mas em um ponto os estudos convergem: é um recurso de estilo que pode renovar o significado e chamar a atenção do leitor. A passagem do estilo de um gênero para o outro não só modifica o som do estilo nas condições do gênero que não lhe é próprio como destrói ou renova tal gênero (Bakhtin, 2003, p. 268).
O anúncio publicitário, que passaremos agora a analisar, constituirá um bom exemplo dessas questões.
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3. A leitura de um Anúncio publicitário numa perspectiva dialógica discursiva Buscamos, agora, proceder a uma Análise Dialógica Discursiva (ADD) de um anúncio publicitário veiculado no ano de 2005, no intuito de associar os conceitos bakhtinianos anteriormente explicitados às práticas de leitura e compreensão.
Para fins desta análise, procuramos focar e exemplificar cada elemento: conteúdo temático, estilo e construção composicional, mas como os três ocorrem simultaneamente, em alguns pontos, estarão imbricados no processo de leitura. O primeiro passo em uma ADD é explorar o plano do conteúdo. Assim, é preciso recuperar as condições de enunciação, para se “caminhar” em direção ao conteúdo temático. Desse modo, os questionamentos iniciais devem incidir sobre a época de produção e sobre o suporte onde o texto/enunciado foi veiculado, no intuito de perceber a intencionalidade, público a que se destina, enfim, a situação para a qual surgiu como uma necessidade de dizer, de interagir com determinado interlocutor. Este anúncio integrou uma campanha publicitária produzida pela Alma BBDO, intitulada “Contos de Fadas” para a empresa de cosméticos “O Boticário”, veiculada nos meses de maio e junho de 2005, em outdoors e revistas voltadas ao público feminino (Claudia, Nova, Caras, Mari Claire), compreendendo duas páginas. É composto pela linguagem não verbal e verbal, organizada em dois planos: um imagético e um verbal o que constitui uma especificidade desse gênero discursivo. No plano visual traz, de forma centralizada, a imagem de uma bela e jovem mulher. Os lábios são bem vermelhos, a pele clara, os cabelos escuros, olhos azuis penetrantes e desafiadores. O foco incide sobre o rosto e o colo dessa jovem, contudo, deixa perceptível um voluptoso decote, além das alças e um acessório de cabelo, ambos na cor vermelha. Ainda em destaque, vislumbramos uma mão, também feminina, que
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oferece uma maçã vermelha, de aspecto saudável. A moça, porém, está com o olhar penetrante voltado à frente, como que encarando o leitor. No plano verbal, encontramos três seqüências: 1) “ERA UMA VEZ UMA GAROTA BRANCA /COMO A NEVE. QUE CAUSAVA MUITA INVEJA/ NÃO POR TER CONHECIDO SETE ANÕES. / MAS VÁRIOS MORENOS DE 1,80 M”. 2) O Boticário/VOCÊ PODE SER O QUE QUISER. 3) A de referência mais direta ao consumidor: MAIS DE 2.300 LOJAS/ ESPERANDO POR VOCÊ Neste breve texto, nos deteremos a uma análise apenas do plano visual e de uma das sequências verbais. Para a leitura desse anúncio, é necessário estabelecer um diálogo com a intencionalidade do texto, com as vozes de outros enunciados, com a linguagem multissemiótica
presente.
Assim,
não
podemos
desconsiderar
os
traços
da
multimodalidade, como as cores, formas, centralização da imagem, definição na página. Ao aliar a imagem retratada de uma jovem mulher ao suporte e veículo onde foi publicado (revistas femininas), ao conhecimento contextual de que a marca o Boticário oferece produtos de beleza e que as mulheres têm grande preocupação com a aparência, é possível inferir que o público feminino constitui o interlocutor do anúncio. Com a definição do interlocutor temos o início da exploração do conteúdo temático. Numa análise dialógica discursiva é imprescindível perceber o diálogo existente com os discursos sociais, com os valores atribuídos por um determinado grupo social do qual fazem parte os interlocutores deste enunciado. Sandmann (2010),
aponta que alguns valores aceitos pela classe dominante
encontram expressão na linguagem da propaganda e destaca, entre esses valores, a juventude e a beleza como qualidades que podem ser permanentes ou imutáveis. No texto em questão, o conteúdo temático incide exatamente sobre esses valores, ressaltando a ideia atual de mulher fatal, que exala sensualidade, atitude, confiança e é a esse tema, essa sedução que o anúncio se propõe. Veicula a imagem da mulher atual, desejada por muitos homens: confiante, bela, irresistível. O enunciado sugere que as consumidoras dos produtos Boticário alcançarão esse status.
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Além dessa leitura dialógica com o social, o conteúdo temático será ainda melhor compreendido em suas relações com outras vozes, com outros textos presentes. Neste caso, o conto infantil “A branca de neve e os sete anões”. Uma branca de neve moderna, não uma menina desprotegida, que precisa dos anões como seus guardiões, mas uma mulher forte, sensual, que foi capaz de atrair e conquistar vários homens de 1,80 M – aqui, a presença clara de um diálogo com aspectos valorativos da sociedade atual, sobre o padrão de beleza e virilidade masculina, atribuído aos homens altos, morenos. O anúncio traz uma “mescla” de gêneros com o conto ao dialogar com a personagem, mas num contexto totalmente novo, influenciado pela visão de mundo moderno, tanto sobre a beleza feminina quanto masculina, subvertendo a ideia do conto original de uma princesa que encontra um príncipe encantado para viverem felizes para sempre. Neste novo enunciado, a heroína perde esse ingênuo romantismo ao encontrar vários morenos de 1.80 M sem prender-se a nenhum deles. Ideal das mulheres modernas: viverem contos de fadas “eternos” enquanto durem. Ao trazer um aparente “hibridismo” com o conto de fadas, o enunciado “conversa” com esse gênero, subverte os elementos comuns em um anúncio, emprestando vários elementos do conto. Contudo, ao desmontar a figura da princesa casta em busca do príncipe encantado, desconstrói a estrutura clássica, ressignificando essa narrativa num novo enunciado. Torna-se um conto de fadas moderno, para as “princesinhas” atuais, ávidas de controle sobre as próprias vidas e cobradas pela necessidade de sedução, de sensualidade, tão imposta à figura feminina em nossos dias. Assim, temos neste anúncio a presença de marcas do estilo dos dois gêneros, sem apagar os traços de anúncio. Vejamos como isso ocorre, quanto ao elemento estilo, analisando também a sequência verbal principal, na qual há a relação com o conto de fadas,
mas com o
cuidado de não perder de vista a relação com os demais elementos. ERA UMA VEZ UMA GAROTA BRANCA COMO A NEVE. QUE CAUSAVA MUITA INVEJA NÃO POR TER CONHECIDO SETE ANÕES. MAS VÁRIOS MORENOS DE 1,80 M.
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Esta sequência está localizada do lado esquerdo, em destaque. A pontuação encontra-se rompendo com a norma padrão e, embora apresente uma tipologia narrativa, o formato está disposto como se o texto fosse organizado em versos. Há um ponto final após os anões, onde usualmente seria utilizada uma vírgula. Essa inversão do uso recorrente da vírgula acaba gerando uma parada na leitura um pouco maior e evidencia o trecho iniciado com o elemento coesivo “mas”, aqui funcionando como um operador argumentativo, pois mantém a ideia lógico-discursiva de oposição, própria desse conectivo, porém carregado de força persuasiva ao introduzir o paralelo entre anões x morenos altos, trazendo, por meio dessa oposição, os valores e padrões quanto à beleza masculina que estão presentes na sociedade - o estilo materializado através dos elementos linguísticos, conectando-se ao conteúdo temático. Neste ponto, o tema se vale de um traço comumente encontrado na esfera da publicidade, apontado por Sandmann (2010), “o êxito no relacionamento amoroso ou erótico como resultado do consumo de determinados produtos”, no caso, os cosméticos, perfumes e produtos para a pele do Boticário (SANDMANN, 2010, p.38). Essa sequência fraseológica passa uma sensação de conclusão na expressão “garota branca” ao mudar de linha, como se fosse o final de um verso. Ao nos determos mais nessa expressão, percebemos o uso do substantivo “garota” e do adjetivo “branca” como “pistas” para a compreensão: primeiro a referência à personagem Branca de Neve, uma jovem garota de pele clara, que remete também à imagem do anúncio; depois, à ideia de juventude que toda mulher almeja, usada como um recurso persuasivo, além da brancura da pele como referência de pele bem cuidada, o que reforça a aparência jovem e liga o anúncio à empresa de cosméticos. “Ser jovem e permanecer jovem é um desiderato com que se procura levar à ação principalmente a mulher.” (SANDMANN, 2010, p.36). A comparação “como a neve” é mais um recurso que evidencia a personagem do conto, também reforçada na referência aos anões. Algumas marcas presentes nesta sequência verbal afastam-se do estilo do gênero anúncio por serem próprias do gênero conto de fadas. É o que percebemos no início do texto com a expressão clássica “Era uma vez”, na presença da tipologia narrativa, com uma personagem protagonista e até mesmo o conflito, a inveja que sentem da heroína, além da presença dos verbos no tempo passado (pretérito) – era, causava, ter conhecido.
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Nesta subversão do estilo do gênero, acaba-se percebendo um rompimento com a construção composicional mais recorrente do anúncio publicitário, contudo, não há apagamento das características de anúncio e nem podemos dizer que foge totalmente da construção composicional uma vez que, segundo Sandmann (2010), esse recurso de “estranhamento” faz parte do estilo dos gêneros da esfera da publicidade. Assim, essa “mescla” de gêneros pode ser encarada como um traço desse estilo de estranhamento. Apesar de tomar como “empréstimo” elementos do gênero conto de fadas, o texto continua sendo um anúncio, pois sua função continua ligada à publicidade e não à esfera literária. Lembrando que a função social é relevante, pois é nela que um gênero nasce como tal, de uma necessidade de dizer, no caso, persuadir as consumidoras. Essa relação dialógica com o conto “Branca de neve e os sete anões”, destaca-se no plano da imagem (multimodalidade) na figura da jovem com as características físicas de Branca de Neve; na maçã, a qual, neste novo contexto, pode ser ligada ao símbolo que essa fruta representa, desde o texto bíblico, de tentação, sedução, sensualidade, o que ainda é reforçado pela predominância da cor vermelha nas roupas, acessório de cabelo e fruta, cor que, na contemporaneidade, está ligada ao erotismo, paixão. A desconstrução da figura feminina ingênua, esperando o príncipe encantado, é que dá o caráter argumentativo persuasivo para o público leitor ao qual se destina. Neste anúncio, reforça-se um estilo individual do locutor, a mescla com outro gênero, ou, como nos últimos tempos esse recurso vem sendo altamente explorado pela esfera da publicidade, podemos até considerar como uma marca da construção composicional, o uso de outros gêneros conforme o propósito, a finalidade do anúncio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise deste anúncio publicitário a partir dos pressupostos teóricos expostos proporcionou um referencial para subsidiar discussões sobre uma forma de transpor tais postulados para a prática pedagógica em sala de aula, no intuito de colaborar para o trabalho com a leitura e para a compreensão das concepções de linguagem presentes nos documentos oficiais que regem atualmente o ensino da disciplina de Língua Portuguesa. Em nossa análise, esperamos ter dado conta de demonstrar que, embora este anúncio publicitário seja um texto criativo e bem elaborado, tais aspectos não garantem
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êxito junto aos interlocutores. É necessário que o leitor estabeleça as relações de diálogo com a situação social, com outros textos, outras vozes e pontos de vista para que o texto cumpra seu papel e provoque novos enunciados responsivos. Assim, a análise dialógica discursiva que toma os elementos do enunciado: conteúdo temático, estilo e construção composicional, apresenta-se para o professor como uma sugestão, como uma ordem metodológica que pode orientar um encaminhamento de leitura dos discursos presentes nas práticas de uso da linguagem.
Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 4 ed. 2003. _____. Marxismo e filosofia da linguagem.10 ed. São Paulo: Hucitec, 2004. BRAIT, B. (Org) Bakhtin: conceitos –chave. São Paulo : Contexto, 2010. COSTA-HÜBES, T. C. Os gêneros discursivos como instrumentos para o ensino de Língua Portuguesa: perscrutando o método sociológico Bakhtiniano como ancoragem para um encaminhamento didático-pedagógico. Gêneros de Texto/Discurso e os desafios da contemporaneidade: São Paulo: Pontes Editora, 2014. SANDMANN, Antonio José. A linguagem da propaganda.
São Paulo: Contexto,
2010. http://mundofabuloso.blogspot.com.br/2008/01/o-boticario-e-suas-princesas.html. Acesso em 10/out/2014. http://creativitate2013.wordpress.com/2013/03/03/o-boticario-campanha-contos-defadas-2/ . Acesso em 10/out/2014.
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MEMÓRIA, FICÇÂO E A ESCRITA FEMININA EM VOLTAR A PALERMO. Rosenilda Pereira Padilha (UEM) Resumo: Este trabalho traz como corpus, o livro Voltar A Palermo de Luzilá Gonçalves Ferreira. Nele, a narrativa ancora-se em memórias de uma professora brasileira que ao voltar a Palermo, pequeno bairro de Buenos Aires, relembra o que ali viveu há vinte anos, durante a ditadura militar. Em meio aos relatos que fluem de suas lembranças, ela conta o motivo que a fez voltar, suas esperanças e a vontade de reviver um amor de seu passado. Assim, ignora a ação do tempo sobre todos que fizeram parte de sua história, e procura pelo homem que só permaneceu o mesmo em suas recordações. Como pano de fundo, presenciamos um período de opressão tanto no Brasil, quanto na Argentina e a figura feminina neste contexto. Esse tipo de literatura, segundo Georges May (1979), pode ser definido como Romance Autobiográfico no qual se destaca um fundo histórico e cultural, filtrado pela memória e pela subjetividade de um “eu” social. Pretende-se, portanto, analisar a escrita memorialística, feminina e ficcional da autora e a época em que a obra está inserida, baseando-se entre outros, nas teorias de Lejeune, Mathias, Colling e Viana. Palavras-chave: Autobiografia, Memórias, Escrita Feminina. Introdução:
De
acordo
com
Mathias1,
“O
gênero
memorialístico
inclui
fundamentalmente as memórias, as autobiografias, certas correspondências e os diários, porque em todas estas expressões a memória representa o elemento primacial que lhes serve de traço comum” (MATHIAS, 1997, p. 41-2). A Autografia, como grande área literária abrangendo todo tipo de texto íntimo, memorialístico ou confessional, permite a identificação do (a) autor (a) como protagonista assumindo sua história e seu próprio nome ou então, que ele delegue a uma personagem suas experiências. Em Voltar a Palermo, procuraremos explorar esta possibilidade na qual a autora abdica-se do direito de se autorretratar, para subjetivar a existência de um “eu” ficcional. Expressando-se, por meio de um romance memorialístico e permitindo-nos entrever alguns fragmentos de fatos vividos e rebuscados pela memória de quem as registra.
Marcello Duarte Mathias, diplomata português, publicou vários livros, crônicas e ensaios, dos quais podemos citar “A Memória dos Outros” (2001). Um autor bastante conhecido no âmbito literário também por suas obras diarísticas. Ver mais em: http://repositorioaberto.up.pt/bitstream/10216/25631/2/MarcelloDuarteMathias000103661.pdf . 1
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Viana2, em sua obra sobre memórias femininas, coloca a investigação da identidade narrativa do autor e a visão de sua obra memorialística como elaboração de um painel da sociedade brasileira dizendo: Seja qual for o estilo, o que pretende é remeter infalivelmente à verdade interior do autor. Assim, a autobiografia, entendida como narrativa em que autor, narrador e personagem são figuras coincidentes, não é certamente um gênero uniforme, sujeito a regras fixas. Contudo, ela supõe realizar certas condições de possibilidade que aparecem, antes de tudo, como condições ideológicas ou culturais: importância da experiência pessoal, oportunidade de oferecê-la ao outro, observando-se rigorosamente os acordos de uma a relação pactual. Esse pressuposto, por si só, já mascara a identidade de um “eu” e autoriza o sujeito do discurso a tomar como tema sua existência passada. (VIANA, 1995, p.16, 17).
Entendemos então, que esta autobiografia conferida à figura de uma personagem não está sujeita a regras fixas, mas segue as condições ideológicas e culturais de um livro autobiográfico e dessa forma, estabelece o que Lejeune chama de “pacto entre autor e leitor”. Tratando igualmente de experiências passadas e pessoais do autor que confere à personagem, certa autoridade para falar de suas memórias mascarando assim, sua real identidade. Com base no exposto acima, iniciaremos nossa pesquisa apresentando o gênero Autobiografia e situando a obra dentro dos romances autobiográficos. Em seguida percorreremos os trajetos mais significativos da escrita feminina na literatura e suas contribuições para o gênero em questão. Mais adiante, trataremos da escrita de Luzilá em Voltar a Palermo, analisando-a de acordo com as bibliografias já citadas no resumo acima. A autobiografia e suas singularidades Lejeune3, em seu livro O Pacto Autobiográfico De Rousseau À Internet (2008), diz que o termo “autobiografia”, teve sua origem na Inglaterra e chegou até nós, em 2
Maria José Motta Viana, mestre em Literatura Brasileira e Doutora em Literatura Comparada, publicou “Do sótão à vitrine, memórias de mulheres” (1995) e “A memória como construção em Dom Casmurro” (1998) entre outros. 3 Philippe Lejeune, um estudioso francês que tentou estabelecer uma base teórica para melhor compreensão do gênero autobiográfico. Em primeiro lugar, procurou colocar uma definição de autobiografia como retrospectiva narrativa em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência ao dar ênfase à sua vida pessoal, falando especialmente sobre a história de sua personalidade. Philippe Lejeune também forjou um conceito, e chamou-o de “o pacto autobiográfico", no qual estabelece que
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meados do século XIX. A definição que o termo comporta vem de Larousse (1986), ao atribuir dois sentidos à palavra em que primeiramente, temos a “autobiografia” como um texto confessional, no qual um indivíduo escreve sua própria vida, voltando-se para o íntimo de si, registrando seu passado como forma de eternizar-se na história. O segundo sentido traz a “autobiografia” como um texto memorialístico, onde os fatos escritos podem ser alheios à vida do narrador/autor, ou seja, o autor pode ter vivido aquilo ou apenas registrado as memórias da vida de alguém. Lejeune acerca do texto autobiográfico afirma que nesse tipo de obra, a presença dos pronomes pessoais, em primeira pessoa, identifica o sujeito narrador-personagem como herói de sua história e de pronto, confere ao leitor uma prévia do “íntimo de si” que o autor se propõe a retratar. Ao registrar memórias, ele acaba estabelecendo, por meio de sua escrita, um “pacto romanesco memorialístico” que leva ao “relato de vida escrito”, ou seja, um “eu” revelando pensamentos, críticas e principalmente o desejo de se eternizar registrando sua existência e sua identidade (Lejeune, 2008, p. 53). De modo parecido ao conceito acima, Mathias (1997), nos ajuda a entender esse tipo de escrita, como textos confessionais ou memorialísticos, ou seja: [...] em toda autobiografia – que é sempre muito mais do que uma autobiografia – se desenvolve uma constante interação da memória com a sua decantação, que resulta do momento presente e da visão retrospectiva do passado, tal como esse presente o imagina. Perante isto, a consciência dos contrários e a dificuldade de ser-se e sentir-se inteiro – o eu é o próprio tempo que no tempo não se reconhece – o que está em causa é o estatuto representativo desse eu, sob a forma tradicional, que agora deixa de se assumir como entidade autônoma, fixa e isolável, para moldar-se a configurações mais equívocas, sem perfil definido. (MATHIAS, 1997, p.43, 44).
Retomando os conceitos de Lejeune, reconhecemos que “Existem duas atitudes diametralmente opostas em relação à memória. Sabe-se que ela é uma construção imaginária, ainda que seja pelas escolhas que faz, sem falar de tudo o que inventa”. (LEJEUNE, 2008, p. 106). Na obra Voltar a Palermo, identificamos na escrita essa
construção imaginária e sabemos que por mais verossímil que ela possa parecer, não deixa de lado a invenção que a própria literatura lhe permite como romance memorialístico. para haver uma autobiografia, o autor deve estabelecer com seus leitores um pacto, ou seja, um contrato no qual se compromete a dizer-lhes sobre sua vida. Ver mais em: http://fr.wikipedia.org/wiki/Philippe_Lejeune_%28auteur%29. Acessado em 14 de agosto de 2014.
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Sobre essa diferença, o autor supracitado, define escritas autobiográficas e memorialísticas explicando que ao recorrer às memórias, há uma obrigação de exatidão dos fatos, não sendo necessária a veracidade dos mesmos, enquanto que na autobiografia, sendo ela uma confissão, o que acontece é o contrário, pois o que é narrado deve ser leal aos acontecimentos da vida de quem o registra. Nos dois casos, tendo a autobiografia, como confissão ou em forma de memórias, Lejeune aponta um espaço fantástico aos olhos do autor que a ela recorre. (LEJEUNE, 2008, p. 105-6) Definindo os tipos de textos autobiográficos de acordo com suas características, temos a autobiografia como um gênero que se subdivide, dando origem ao que ele chama de “subgêneros” ou “ramificações” que separam as obras de acordo com traços peculiares na escrita, numa curiosa organização que comporta as diversas maneiras de registrar o íntimo ou a memória de um ser. Lejeune em relação às obras ficcionais de cunho confessional, ainda aponta a ficção autobiográfica como exata ou inexata. Na ficção exata, a personagem da obra se parece com o autor. Na inexata, o personagem se difere totalmente de seu criador, um bom exemplo se percebe em obras biográficas, nas quais nem sempre o autor está contando a sua vida e sim a de outrem. Seguindo esse raciocínio, a obra Voltar a Palermo traz a personagem Maria, que com exceção ao nome, em muito se parece com a autora, excluindo a ideia de uma Autobiografia por mascarar o “eu” que escreve. Porém, esse detalhe permite-nos classificá-lo como Romance autobiográfico, por verificarmos que a história é apresentada como verdadeira e por se tratar de uma narradora/personagem contando sua própria história, confirmando o pacto romanesco já explicitado acima. (LEJEUNE, 2008, p.26) Nesse contexto, o “eu” que escreve, ao desvelar o interior de si, pode assumir a história de seu passado, transferi-lo a uma personagem e dessa forma se eximir do julgamento social vigente que poderia inibi-lo se assumisse sua verdadeira identidade em seus registros. Não é somente nesse ponto que obras assim se sobressaem, pois o registro de memórias seja em forma de autobiografia, diário, romance etc. ressalta também um valor importantíssimo para a história, por trazer como base o contexto que dará suporte
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a esses registros. Corroborando, destacamos o conceito de May4 (1994), quando em relação às obras memorialísticas diz: [...] Na narrativa memorialística destaca-se o fundo histórico-cultural filtrado pela memória e pela subjetividade de um eu social. Todos os acontecimentos são desvelados pela lembrança, que recorre muitas vezes, a documentos como registros oficiais, cartas, diários, jornais, para que o memorialista possa desse modo, persuadir o leitor sobre a verdade do que relata e prestar um serviço àqueles que o sucederão na sociedade (MAY, apud REMÉDIOS, p.14).
As memórias fragmentadas e registradas, na obra em análise, mostram como a autora Luzilá representou e formou a identidade de sua personagem, tendo como primícias, a escrita feminina contemporânea. Voltar a Palermo é baseado em memórias de uma época ofuscada pela Ditadura Militar. Pudemos perceber no decorrer da pesquisa que esses textos memorialísticos trazem como pano de fundo um rico contexto histórico que situa a obra, registrando problemas sociais e políticos do tempo recordado. Porém, não iremos nos deter sobre o tema histórico, pois o que interessa é o registro da memória por meio da escrita feminina. A escrita feminina na história literária A figura da mulher, embora tenha conquistado seu espaço nos mais diversos contextos, ainda continua delimitada por conceitos primórdios que permanecem no imaginário não só da sociedade como dela mesma.
Em relação a esta
representatividade, Viana (1995)5 discorre sobre a “identidade feminina discutida e definida pelo imaginário masculino” e aponta as características que moldam a mulher “forjada por definições que lhe são conferidas de fora”, ou seja, uma mulher configurada a longo tempo como “reflexo de um espelho que lhe é imposto” e não como aquilo que realmente é ou pensa de si. Nesse ínterim, a autora fala da possibilidade da escrita feminina representar a imagem da mulher criada por ela mesma. Sabendo das limitações do seu tempo, ela recorre à literatura na tentativa de se autodefinir, vencendo limitações que muitas vezes estão dentro delas. Ela também remonta as características da mulher no decorrer da MAY, Georges (1994), citado nos estudos de Remédios. L'Autobiographie, Seyseel, Champ Vallon, 1994. (MAY. G, apud, REMÉDIOS, p.14). 5 Em sua obra, Do Sótão à Vitrine, Memórias de Mulheres no capítulo Memórias Femininas: Em busca de um Olha. 4
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história, definindo-as como figuras passivas, submissas e emotivas que por muito tempo aceitaram o molde que a sociedade lhes impôs. (VIANA, 1995, p.12) Viana acrescenta que os mais antigos livros memorialísticos escritos por mulheres remontam o fim do século XIX, antes disso, é certo que existiram muitas obras do gênero, mas a maioria se perdeu no tempo e acabaram não publicadas. Em relação às obras femininas (memorialísticas, autobiográficas ou diarísticas) no Brasil, a teórica acrescenta que somente a partir da revolução literária de 1922, o marco histórico da Semana da Arte Moderna e do desenvolvimento social e cultural, é que algumas autoras ficaram conhecidas. Mesmo assim, é a partir da década de sessenta que essas obras começam a ganhar certa importância nas editoras. (VIANA, 1995, p. 13). Nesse contexto, Viana discorre sobre o modo como a mulher vem conquistando seu espaço e aguçando a especulação de sua escrita dentro da literatura como autora ou personagem. Isto posto destacamos a importância da análise na escrita feminina que, segundo ela, atentará para o perfil de mulher que tais obras literárias apresentam, mostrando traços que o meio social imprimiu nessa figura feminina no decorrer dos tempos e que por meio da memória, definem uma personalidade que a constitui como sujeito da contemporaneidade (VIANA, 1995, p. 14). A autora supracitada salienta que esta escrita é estabelecida como um sistema que se detém em uma forma de organizar, encadear e arranjar essas memórias, inferindo em seus registros, as demandas, carências e posturas que delinearão o perfil da mulher de sua época. Este sistema assim resumido nos remete a uma estrutura narrativa memorialística de mulheres, trazendo grande contribuição para um campo literário quase que inexplorado. Somente na contemporaneidade é que essa figura feminina passa a se revelar por meio de caminhos socioculturais e políticos que começam a deixar brechas vagarosamente bem aproveitadas pelas autoras, e, é dessa forma que segundo Viana, “A escrita memorialística da mulher adquire uma dimensão insuspeitada já que representa de algum modo a personagem feminina construída pela própria mulher.” Como se vê o processo de se autorretratar com autonomia dos valores impostos pela sociedade, foi tão lento quanto era a mulher como participante das transformações sociais. (VIANA, 1995, p. 20).
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Sobre as mulheres do período ditatorial, Ana Maria Colling (2012), em seu artigo, As Mulheres na História da Ditadura Militar no Brasil, diz que não há como falar sobre o gênero feminino, sem citar as relações de poder entre homens e mulheres, pois só a partir disso é que podemos identificar a figura feminina como sujeito político na história e pensar também, no desmerecimento que o poder social lhe inferiu. Percebemos que os conceitos de Colling são parecidos, de certa forma, aos de Viana, quando discorre sobre as mulheres da ditadura, as quais ao ultrapassarem dificuldades que elas mesmas impunham ao registrarem suas histórias, barreiras íntimas do espaço privado, foram capazes mesmo que lentamente, de romper com as representações cristalizadas sobre o feminino. Acerca desse período Colling (2012) resume a repressão da época, como uma história masculina que no decorrer dos tempos remonta o desmerecimento feminino. A partir desse contexto é que entendemos a figura da mulher e principalmente as motivações que levam muitas escritoras a procurarem o gênero literário autobiográfico, pois este lhe permite um olhar sobre si longe das influências sociais, uma forma de construir sua representatividade no presente, por meio de lembranças de um passado que não lhe dava a liberdade dos dias atuais. A escrita feminina, memorialística e ficcional em Voltar A Palermo. Voltar A Palermo foi publicado em 2002 e traz como cenário, a cidade de Buenos Aires, especificamente o bairro Palermo, espaços onde se desenrola um caso amoroso passageiro entre o taxista, Nino, e a professora, Maria, brasileira que passa dois anos ali, por conta de sua profissão. Maria é uma personagem que dá voz às donas de casa, àquelas que vivem os problemas de suas famílias e são vistas como “neutras” ou “normais” pela sociedade, por não gerarem problemas, não serem influentes e não participarem de movimentos feministas. A narrativa é repleta de memórias e lembranças que vão surgindo como flashes a partir do momento que Maria, narradora/personagem, e protagonista de sua história, decide voltar a Palermo e reviver o amor que há vinte anos abandonou quando retornou ao Brasil, sua terra de origem. Suas lembranças retratam uma época significativa e um amor que agora em sua idade madura ela pretende resgatar sem se dar conta de que, com a passagem dos anos, a estagnação desse amor, só aconteceu em sua memória.
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É com a ideia de que poderá reviver seu caso amoroso, que a personagem descreve o que guardou de tudo que viveu com Nino e suas expectativas para o futuro que pretende construir ao lado dele. Assim, Maria se deixa guiar pelo que espera encontrar, mas se depara com uma realidade para a qual não estava preparada e precisa aceitar as mudanças do tempo. O Nino de suas memórias tornou-se um estranho alienado que desconhece a si próprio, por ter sido vítima de um regime governamental que envolveu e modificou o destino de todos os personagens da obra. A narrativa, segundo a autora Luzilá (2002), foi inspirada no filho de um taxista que ela conheceu no lugar onde morou, e também na sua pessoa, o que atribui à personagem um pouco de sua experiência como professora e mulher madura, para que Maria representasse uma figura feminina em uma época de opressão. Atribuindo dessa forma, um caráter ficcional e autobiográfico à obra. Luzilá faz da sua obra, um romance autobiográfico por meio de memórias que retratam ideologias e culturas do seu tempo sem a necessidade do vero retrato de si. Sendo assim, atentemos para a narradora/personagem, suas memórias e como escolhe iniciá-las na obra: Tantos anos depois, Nino, voltei. Nesta cidade grande que um dia foi tão nossa, e de certo modo tão minha, deves ainda existir em algum lugar. Há três dias apenas encontrei teu bilhete entre as páginas do livro daquele poeta que escreve em prosa.
Percebemos o cunho confessional direcionado a Nino e registrado como se fosse um monólogo pensado e já deitado no papel. Uma intimidade a referenciar o porquê do título e o porquê de sua volta a Buenos Aires. Metade do livro traz uma narrativa memorialística minuciosa do cenário argentino recorrendo por vezes, à literatura ficcional por meio da qual, Maria constrói o ambiente do bairro Palermo descrevendo detalhes da natureza. Assim, faz com que mentalmente possamos visualizar ruas, flores, casas e o povo daquele país, numa riqueza de detalhes graças a sua escrita sensível ao que deter nos pormenores, nas fisionomias e no essencial.
Assim, ela estabelece
proximidade com seu leitor, aguça-lhes os sentidos, permitindo que ele perceba as transformações do tempo passado/presente. Maria ao voltar o olhar para o íntimo de si numa retrospecção dos fatos, recria, critica e recupera memórias imprimindo seu pensamento sobre as mulheres de sua época
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dizendo: “Eu recriava em imaginação aquelas mulheres fortes, que haviam contribuído para formar a nação, e as comparara a outro tanto de mulheres fortes que havíamos tido nós também, do outro lado do Rio de la Plata, e bem longe dele.” (2002, p.18) Percebemos a preocupação da personagem quanto à sociedade de seu tempo, pois relembra os conflitos familiares ocasionados pela guerra, o clima de tensão e desconfiança que tornava todos suspeitos naquele contexto. Os protestos que acabavam em inúmeras mortes e, principalmente, a figura feminina retratando o modo como as mulheres se portavam frente às situações de conflito, o que faziam no anonimato para ajudar os homens de sua família que decidiam atacar o regime e o sofrimento dessas mulheres ao perderam um ente querido vítima da repressão. Na segunda parte acontecem os contatos diretos de Maria com as personagens por ela apresentadas no decorrer da obra. Há interrupções propositais que inferem textos direcionados a Nino, como se Maria estivesse falando o que se passa em sua mente diretamente a Nino como vemos a seguir: Nino. Repito teu nome como para conter o fluxo de lembranças que se atropelam em minha mente, pois estranho é o modo como funciona um cérebro humano, nem sempre selecionando o que gostaria de reter, recordando insiste em esquecer e que volta, torna-se de novo presente, e de novo instala a dor, a revolta, a tristeza, onde há pouco era alegria, a paz, ou mesmo a indiferença (p.22).
Quanto ao contexto histórico, a autora apresenta fatos aleatórios e observações sobre os problemas vividos pelo povo em pleno regime militar, recuperando memórias dela e de quem conheceu por lá, para retratar abusos de poder, submissão, censura e opressão. Maria é sonhadora, não foge das idealizações de um governo mais humano ao registrar seu descontentamento e o fim de um período que acaba conferindo ao livro, o valor histórico daquela época, ainda tão marcante na contemporaneidade. Nas suas palavras: [...] porque lhes doía mais que a mim que pessoas vivessem de joelhos a repetir sim senhor, sim senhora, obrigados à subserviência, porque sonhavam com o dia em que haveria sorrisos em todos os lábios, e os ventres estariam saciados e se poderia viver às claras e às claras escolhera quem amar, a quem votar, como viver (p.26).
Relembrando o princípio dessa fase ela retrata brevemente como era Palermo antes do regime, como os acontecimentos geraram a guerra e as divisões de opinião dentro de uma mesma família: “Então viera a guerra, uma guerra que dividia as
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famílias, que erguia muros de pedra no interior das casas, dos quartos e até separava os que se acostavam num mesmo leito” (2002, p.45). O trecho acima chama a atenção para o que vem a seguir e se refere à história de dois irmãos divididos pelo regime, e uma mãe que em sua representatividade nula, não pode fazer nada ao não ser esperar resignada o fim do conflito que levou à morte seus dois filhos: [...] os irmãos haviam lutado, desgarrado dos companheiros, subindo a colina, esgueirando-se por entre as pedras e atirando. Os homens no vale haviam escutado os dois tiros o primeiro precedendo o outro de apenas alguns segundos. Haviam corrido e encontrado os irmãos abraçados, o sangue de ambos se misturando. Qual dos dois havia atirado primeiro, qual dos dois se suicidara em seguida, não se perdoando que a morte do irmão querido houvesse chegado por suas próprias mãos (2002, p. 50).
Maria assumindo as dores de Palermo como se fossem suas, compartilhava experiências, se adaptava da melhor maneira que podia ao contexto Brasil/Argentina dizendo: “No soy de aqui ni de Allá”. Ou então resumindo sua história ao ser questionada
dizia: “Durante dois anos eu fora uma estrangeira que amava um
argentino” (2002, p.70). E quase ao término do livro ela desiste de seu antigo amor: “Nino recuperara a família, bem ou mal, sadio ou doente, era um marido, um pai, possuía uma esposa que o amava” (2002, p.185). Consciente agora das consequências do tempo ela sintetiza: “O Nino que eu amara vivia muito mais na minha imaginação do que naquele corpo que eu podia entretanto abraçar e beijar” (2002, p.207). Conclusões sobre a escrita de Luzilá De acordo com o exposto até aqui, Voltar a Palermo se caracteriza como um romance autobiográfico. Dentro do campo memorialístico enfatizamos a memória inexata que o constitui e confere à personagem, a autoridade de retratar a identidade do “eu” que escreve, sem a necessidade do vero retrato deste “eu” mascarado pela personagem. Porém, como toda obra memorialística, segue toda a ideologia cultural do tempo histórico retratado. Adentramos a história da escrita memorialística feminina e a representação da mulher como figura definida por longo tempo pela sociedade. Também notamos que
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somente na contemporaneidade é que elas se sobressaem buscando no gênero autobiográfico, retratar o que realmente são. Com essas bases analisamos a obra e a escrita memorialística que retrata o período ditatorial e o modo da personagem se propor a falar de sua época representando uma mulher submissa perante o regime, independente da figura masculina, e, heroína em seu contexto por se fazer presente mesmo no anonimato que o período exigia. Com isso ficou evidente nas memórias resgatadas e registradas pela personagem, a urgência de retratar a mulher mãe de família, que não se opôs abertamente ao regime, mas apoiou seu marido e seus filhos. Aquela que chorou em silêncio, as consequências da ditadura, que lamentou sua família desestruturada pela desconfiança que a todos cegou. A figura da mulher que não aderiu aos movimentos de protesto, não fez parte do movimento feminista da época, mas se fez presente e independente nesse contexto de conflito, pois vendo seus homens saírem em combate ao regime, se depara com a necessidade de manter o sustento da casa, assumindo a figura masculina que sempre ignorou seu valor social. Enfim, esperamos que esta pesquisa possa aguçar o interesse do leitor por obras do gênero analisado e pela escrita feminina, bem como, contribuir, de alguma forma, para futuras pesquisas e estudos nessa área que, como se sabe, no Brasil só começou a ser procurada para publicação na década de sessenta. Portanto, dada a vastidão que o campo autobiográfico comporta e a importância desses registros para a literatura, percebemos que a escrita feminina ainda é pouco especulada. Referências BEZERRA, Luciana da Silva. A Escrita Itinerante de Maria Ondina Braga – Autobiografia,
Ficção
e
Memória.
Disponível
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FERREIRA, Luzilá Gonçalves. Voltar a Palermo. Belo Horizonte: ed. Rocco, 2002. MAY, Georges. L'Autobiographie, Seyseel, Champ Vallon, 1994. (MAY. G apud REMÉDIOS. LEJEUNE, Philippe. O Pacto Autobiográfico De Rousseau À Internet. Belo Horizonte: ed. UFMG, 2008. (p. 26 a 262). Tradução, Noronha, M.G; Guedes, M.I.C. MARQUES, Wagner. Disponível em: http://agendagaranhuns.com/blog/garanhuensetoma-posse-na-academia-pernambucana-de-letras/. Acesso em: MATHIAS, Marcello Duarte. Autobiografias e Diários. In. Revista Colóquio/Letras. Ensaio,
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CENA CULTURAL DOS ANOS 70: POESIA E CONTRACULTURA Rosimar Araújo Silva (UFF)
A conhecida poesia marginal, ligada aos anos de 1970, no Brasil, abre espaço para muitos questionamentos em torno de seu lugar na cena literária. A começar pelas discussões que tentam encontrar um nome capaz de assimilar as dicções plurais e seus projetos difusos com temáticas díspares e as dimensões culturais promovidas por eles. Seria poesia marginal, independente, alternativa? Ou simplesmente geraçãomimeógrafo? O fato é que todas as denominações propõem-se a dar conta de uma experiência de escrita “colada com a vida” que extrai da prática mais cotidiana uma proposta poética de comunicação fácil e ligeira. Afim à publicidade e às linguagens próprias de uma sociedade urbano-industrial em expansão nos anos 70, essa poesia mescla variados tipos de dizer ligados aos anseios de uma juventude que vivencia, ao mesmo tempo, os anos ambíguos e endurecidos da ditatura militar e a efervescência cultural de muitos projetos artísticos. Dentre os traços que marcam sua marginalidade no circuito poético da época, um esquema de divulgação em que o próprio autor faz a venda direta de suas produções, em sua maioria, mimeografadas, outras, em impressão off-set, no corpo a corpo com o leitor em espaços de trânsito, se faz presente. São muitos os fatores que retomam a relação entre poesia e vida e fazem redescobrir alguns valores ligados a posturas afetivas e pessoais pelo âmbito da informalidade, da sacada, do instantâneo. Para gerar ainda mais ambiguidade, na década em questão, há uma variedade de escritas poéticas marginais por serem produzidas em paralelo ao mercado editorial das grandes editoras. Considerando que o “rótulo” marginal se atribui a tudo o que está situado à margem de um sistema centralizador, seja no plano literário, seja no plano pragmático de produção, divulgação e de venda, todos os projetos artísticos alternativos se enquadram nessa estrutura.
Assim, a inconsistência das definições mencionadas engendra reflexões
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muito amplas que não alcançaremos neste breve trabalho. No entanto, a poesia marginal a que nos referimos diz respeito ao grupo de poetas recolhido no livro 26 poetas hoje, obra organizada por Heloisa Buarque de Hollanda e publicada pela primeira vez em 1976. Embora nem todos os poetas presentes possam ser chamados de marginais, estes que estão incluídos, como José Carlos Capinan e Antonio Carlos Secchin, entre outros, integram a coleção pela “recuperação do coloquial numa determinada dicção poética” trilhando como caminho comum a todos uma “nova produção poética de caráter informal” (HOLLANDA, 2007, p. 13-14). É certo que essa manifestação poética se distancia das propostas literárias imediatamente anteriores, como a poesia de 45 e o Concretismo, inscrevendo seus versos num estilo coloquial de “recusa aos modelos estéticos rigorosos, sejam eles tradicionais ou de vanguarda”, como explicita Glauco Mattoso em O que é poesia marginal? (1981). Desse modo, ela toma para si atitudes anti-intelectual e antiliterária como uma prática e investe num material que anuncia a “despreocupação com o próprio conceito de poesia e o descompromisso com qualquer diretriz estética resultaram numa espécie de displicência, de certo modo saudável” (GLAUCO MATTOSO, 1981, p. 29). Saudável porque propicia intervenções na arte literária por vincular-se a outras mídias e meios culturais, desestabilizando a própria arte literária. Flora Sussekind em Literatura e vida literária assinala que essa “poesia-diário dos anos 70 privilegia o trivial, o que não parece digno de lembrança ou menção” e o registro poético que “parece descartar o notável, abisma-se com os sentimentos mínimos, os pequenos desejos, as mudanças milimétricas” (SUSSEKIND, 2004, p. 127). É o que vemos nestes versos de Finesse e fissura, intitulado “véspera” que diz: “o cetim da paixão/ enxerta meias de nylon/ na bagagem” (LEDUSHA, 1984, p. 36). Diferentemente de Sussekind, Silviano Santiago vê a falta de critérios estéticos dessa poesia por abandonar o lado arquitetural do poema e o cuidado com o código, a palavra, em prol de sua inserção na linguagem comum, como um dado contra essa escrita. O autor vê nela uma ruptura com a tradição literária pelo acentuado descompromisso com a linguagem poética, e tem como livro “divisor de águas”, Preço da passagem (1972), primeiro livro/projeto de Chacal. Sobre isso, o crítico assinala:
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o descuido pelo valor cultural institucionalizado é um dado importante dentro do grupo de Chacal, pois acreditam que se possa desvincular, não só seu projeto existencial de um compromisso com a “ordem” na sociedade, como também o projeto literário de um envolvimento com as formas “bibliotecáveis” de literatura. Assim, par a par, caminham um projeto humano e um projeto artístico que se querem marginais (SILVIANO SANTIAGO, 2000, p. 192-193).
O marginal, nesse sentido, se inscreve na perspectiva do desbunde e da pluralidade como valores que anunciam as diferenças do discurso poético pela ligação já dita entre vida e arte. Por isso, percebemos o quanto de alegria, de humor e de descontração atravessa essa poesia, dando caminho a outros paradigmas de escrita, produção e recepção poética. Os versos seguintes de Cacaso, intitulados “Happy end”, são emblemáticos de situações momentâneas, lançadas ao acaso, que filiadas a um pensamento de pendor romântico, – pensado aqui tanto no sentido comum quanto em referência ao movimento de época, pela mistura entre sensibilidade e razão, – instaura uma espécie de devaneio. O resultado é um poema que traz a sacada de um chiste: “O meu amor e eu/ nascemos um para o outro// agora só falta quem nos apresente” (CACASO, 2006, p. 16). A esse propósito, Paulo Leminski analisa em “O boom da poesia fácil” que a poesia marginal, diferente das vanguardas (Concretismo e Poesia participante) e seus projetos bem definidos, alcança uma popularidade pelo acesso a um público diversificado, valendo-se de um tom coloquial muito próprio da cultura de massa em voga. Esses fatores atingem o fluxo cotidiano do ir e vir das pessoas nas ruas com as vendas de mão em mão e pela mensagem dinâmica e familiar de seus versos, como em “Meu amor de soslaio”, de Luiz Olavo Fontes, que diz: “Faz tanto calor no Rio de Janeiro/ que é bom sentir essa neve/ partir de seu olhar” (HOLLANDA, 2007, p. 169). E é pensando alguns pontos da análise de Leminski que a nossa proposta tenta relacionar a produção da poesia marginal à perspectiva da contracultura, que foi vivenciada fortemente pelas inquietações contestadoras diante do momento circundante. E ver que assim como os artistas dessa geração, esses poetas também assimilaram tendências e dilemas políticos, sociais e culturais e, como diz Leminski, assumiram “os
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modos de ser da sociedade de consumo”, numa interação com os meios de massa. Nesse aspecto, essa poesia estabelece uma certa horizontalidade com um determinado público jovem, resgatando a imagem do “poeta como bardo, como cantor da tribo” (1997, p. 61). Além disso, o poeta curitibano, mesmo percebendo sinais de esgotamento nessa prática poética devido ao seu aspecto geracional, aponta a retomada do lúdico como um elemento importante propiciada por ela. O alternativo poetar dos anos 70 não queria nada. Só queria ser. A palavra para isso era “curtição”, a pura fruição da experiência imediata, sem maiores pretensões. Essa foi a pequena grande contribuição da poesia dos anos 70. Contra a séria caretice dos anos 60, a recuperação da poesia como pura alegria de existir, estar vivo e sobretudo ainda não ter feito 25 anos. Foi poesia feita por gente extremamente jovem, poesia de pivetes para pivetes, todos brincando de Homero. Sem essa dimensão, a poesia vira um departamento da semiologia, da linguística ou uma dependência das ciências sociais. A poesia dos anos 70, inconsequente, irresponsável, despretensiosa, recuperou a dimensão lúdica (LEMINSKI, 1997, p. 59)
A partir desses dados, importa pensar que os agenciamentos produzidos pela poesia marginal no âmbito da arte literária e da cultura e, em função da atitude desmistificadora do literário, assimilam as variações da contracultura e não apenas a temática ligada a ela, como a experimentação com o corpo e o rock, por exemplo. Assim, características contraculturais como vontade de inovar, flexibilidade, nãofixidez, individualidade, anticonformismo e antiautoritarismo mobilizam uma expressiva variedade de projetos estéticos desvinculada de qualquer matriz coletiva e dão o tom da subversão de ideias como um modo de escrever e de começar a escrever sem filiação estética definida. São recorrentes na poesia marginal versos que buscam a vontade de inovar, a flexibilidade, a não-fixidez e o individualismo como traços de um poema que se pretende apenas pelo pendor coloquial e despreocupado. Por outro lado, podemos ver esses mesmos gestos em outros poemas que não são marginais. A diferença se dá pela total falta de compromisso dos primeiros com postulados que acabam marcando uma preocupação estética.
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Nos versos de “Rápido e rasteiro”, de Chacal: “vai ter uma festa/ que eu vou dançar/ até o sapato pedir para parar./ aí eu paro, tiro o sapato/ e danço o resto da vida”(HOLLANDA, 2007, p. 218) e de “Propriedade privada”, de Luiz Olavo Fontes: “não tenho nada comigo/ só o medo/ e medo não é coisa que se diga” (Ibid., p. 172) podemos entrever o anticonformismo e o antiautoritarismo do discurso poético. Esses aspectos apresentam-se nos vãos das situações mais corriqueiras dando a ver um desprendimento a certos sentimentos que falam do sujeito na sua intimidade e que podem ser encarados com leveza e despretensão. No contexto brasileiro, os valores contraculturais já estão presentes no movimento tropicalista que instaura uma recusa dos padrões de bom comportamento através do protesto em nível cultural do situação sociopolítica. A análise de Ana Cristina Cesar em “Literatura marginal e o comportamento desviante” mostra que: o tropicalismo é a expressão de uma crise, uma opção inclui um projeto de vida, em que o comportamento elemento crítico, subvertendo a ordem mesma do marcando os traços que vão influenciar de maneira tendências literárias marginais (CESAR, 1999, p. 214).
estética que passa a ser cotidiano e decisiva as
Em tempos conturbados em que valores disparatados estão em jogo, quer como ameaça de repressão, quer com a expansão de modelos econômicos, a crescente onda de inconformismo e de antiautoritarismo vem como resposta por meio de intervenções artísticas. No Brasil, informações sobre a contracultura americana agitam o contexto sociopolítico em fins dos anos 60 quando o país está vivendo o endurecimento da censura e do próprio modelo social repressor adotado pela ditadura militar ao mesmo tempo em que também insurge um período de modernização e de crescimento econômico. Nesse contexto, o movimento tropicalista irrompe como crítica ao poder opressor incorporando a transgressão por meio de um comportamento desviante e divergente da visão de mundo da cultura hegemônica, se apropriando, inclusive, da cultura de massa com aparições em seus meios de comunicação. Do mesmo modo, a poesia marginal mostra a sua rebeldia mergulhando seus versos na linguagem corriqueira da experiência comum, recusando premissas poéticas,
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anunciando o apequenamento de seus temas, assumindo a banalidade do presente. Tudo isso pode ser visto como uma forma de intervenção política e social, no sentido de atuação e experimentalismo da própria condição do viver cotidiano. Isso se dá uma vez que a relação entre vida e arte concilia não só atitudes antiliterárias, mas também o desbunde como modo de estar no mundo, além das alterações no percurso da poesia veiculada por uma produção clandestina. Por sua vez, tal produção abre espaço para reflexões sobre o sentido de “marginal” e todas as implicações que essa definição suscita. A marginalidade também pode ser tanto de “conteúdo quanto de fatores materiais e históricos” e, sendo assim, muitos projetos poéticos, como os da “poesia universitária-engajada” (MATTOSO, 1981, p. 49), entram nesse esquema por terem sido visados pela censura. Nas palavras de Timothy Leary, pesquisador da Universidade de Harvard e um dos precursores da experiência com drogas psicotrópicas nos idos de 1960, no texto de introdução da obra Contracultura através dos tempos: Do mito de Prometeu à cultura digital, lemos: A contracultura floresce sempre e onde quer que alguns membros de uma sociedade escolham estilos de vida, expressões artísticas e formas de pensamento e comportamento (...). A marca da contracultura não é uma forma ou estrutura em particular, mas a fluidez de formas e estruturas, a perturbadora velocidade e flexibilidade com que surge, sofre mutação, se transforma em outra e desaparece. (GOFFMAN & JOY, 2007, p.9)
As contraculturas têm como princípios definidores a “procedência da individualidade acima das convenções sociais e governamentais”, mas elas “desafiam o autoritarismo de forma óbvia, mas também sutil” e “defendem mudanças individuais e sociais” (Ibid., p. 50). Assim, as mudanças e a experimentação começam no individual pelo ímpeto de transgredir normas aparentemente acomodadas no espaço social e, nesse sentido, as inovações são buscadas dentro do momento presente daquilo que se quer viver e que está vivendo. A relação da contracultura com o “aqui e agora”, numa posição imediatista diante do mundo, permite-lhe a fluidez das formas, do espaço/tempo, e a vontade de fazer
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diferente. Evidentemente que esses aspectos não são exclusivos da poesia marginal nem dos anos 70, embora essa década potencialize a sua disseminação, contrariando a ideia equivocada de “vazio cultural” em torno dos anos 70 e 80. No contexto multifacetado que a contracultura produz seus frutos, cada poeta, individualmente, traça o seu arranjo e marca a sua concepção de pensar a sua arte. Para finalizar este breve e fragmentado trabalho, o poema de Chacal, que lemos a seguir, nos desafia a não achar qualidade em seus versos e nos deixa a sensação de incompletude dessa discussão que se move no campo das incertezas e das lacunas. o poeta que há em mim não é como o escrivão que há em ti funcionário autárquico o profeta que há em mim não é como a cartomante que há em ti cigana fulana o panfleta que há em mim não é como o jornalista que há em ti matéria paga o pateta que há em mim não é como o esteta que há em ti cana a la kant o poeta que há em mim é como o vôo no homem pressentido1 (HOLLANDA, 2007, p. 220)
O poema tenta escavar um espaço indefinível e se distancia daquilo que está formalmente vinculado a determinados preceitos sociais. A definição de poeta passa comparativamente pela negação das coisas que ele não é (ou que nele não há) e deixa em suspensão o que ele poderia ser, enquanto aponta sua recusa para comportamentos padronizados de tipos sociais (o escrivão, a cartomante, o jornalista e o esteta). E à imagem do poeta são acrescidas as do profeta, panfleta e pateta, notadamente figuras 1
No último verso, respeitamos a forma antiga de grafar “vôo” em função da publicação da obra.
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ambíguas que podem estar à margem da multidão ou imersas nela. Sobretudo o último verso, o único afirmativo que beira a um “como se”, carrega toda a suspensão daquilo que só pode ser alçado na indecidibilidade, já que o “o vôo no homem pressentido” não chega de fato a fixar nenhum significado, mas prepara-se para um jogo sempre aberto à alteridade.
Referências CESAR, Ana Cristina. Literatura marginal e o comportamento desviante In: CESAR, Ana Cristina. Crítica e tradução. São Paulo: Ática/ Instituto Moreira Salles, 1999. HOLLANDA, Heloisa Buarque (Org.). 26 poetas hoje. São Paulo: Aeroplano Editora, 2007. LEDUSHA. Finesse e fissura. (Série Cantadas Literárias) São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. LEMINSKI, Paulo. O boom da poesia fácil In: LEMINSKI, Paulo. Ensaios e anseios crípticos. Curitiba: Polo Editorial do Paraná, 1997. MATTOSO, Glauco. O que é poesia marginal. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981. SANTIAGO, Silviano. O assassinato de Mallarmé In: SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Rocco, 2000. SIRIUS, R. U. Contracultura através dos tempos: Do mito de Prometeu à cultura digital/ Ken Goffman (R. U. SIRIUS) e Dan Joy; Tradução Alexandre Martins. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007. SUSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários e retratos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. WEINTRAUB, Fabio (Org.). Poesia marginal. São Paulo: Ática, 2006.
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DO PECADO À (FALTA DE) REDENÇÃO: O JOGO ENTRE PALAVRAS, IMAGENS E SUGESTÕES EM DESONRA Samantha Borges (UFSM)1 Amalia Leites(UFSM)2 Considerações iniciais Desejo, pecado, culpa, redenção. Essa sequência de palavras, assim ordenadas, sugere uma possível linha temática sobre Desonra, romance de J.M. Coetzee. Pode-se dizer que o escritor sul-africano, tentou, de alguma maneira, trabalhar tais concepções em sua obra, que acaba desvelando a inquietante presença do bem e do mal no ser humano. A grande questão, porém, é a maneira como isso é demonstrado: uma história que começa parecendo despretensiosa, narrando a rotina de David Lurie, um professor universitário desconfortável em sua condição – enquanto profissional, homem de meiaidade solitário, pai ausente – que passa os dias em aulas enfadonhas, das quais se liberta uma vez na semana para ter relações sexuais descompromissadas com uma prostituta. Essa vida um tanto melancólica é descrita nas primeiras páginas do livro ora por um narrador, ora pelo próprio David Lurie, de maneira resignada. O personagem enfatiza que mesmo sua vida não parecendo politicamente correta ou empolgante, ele é feliz: “Ele está com boa saúde, com a cabeça clara. (...) Gosta de viver dentro de seus rendimentos, dentro de seu temperamento, dentro de seus meios emocionais. É feliz? Em termos gerais, é, acha que sim” (COETZEE, 2000: 06). Entretanto, mesmo apresentando essa afirmação positiva diante da vida que leva, encerra a frase do mesmo trecho sugerindo que essa “harmonia” poderá ser quebrada no transcorrer da narrativa: “Porém, não se esquece da última fala do coro de Édipo: Nenhum homem é feliz até morrer” (COETZEE, 2000: 07). Essa aparente “harmonia” de fato sofre uma ruptura no momento em que Lurie é acusado de abuso sexual pela aluna Melanie Isaacs. Assim, a partir de uma história surpreendente, que tem como tema questões ligadas à violência sexual e de certa forma os limites entre o que é considerado certo ou errado, bom ou mal no exercício da sexualidade, será analisado neste trabalho de que maneira a narrativa literária Desonra apresenta a personalidade ambígua do personagem David Lurie, em diálogo com sua versão adaptada para o cinema, transformada em filme homônimo. Desonra: entre palavras e sugestões
Estudante de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal de Santa Maria. Jornalista e Mestre em Letras – Estudos Literários. E-mail: [email protected] . 2 Estudante de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal de Santa Maria. Graduada e Mestre em Letras – Estudos Literários. E-mail: [email protected] . 1
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A narrativa, que lembra um bom trailler de cinema devido à presença de frases curtas e um ritmo dinâmico, que prende o leitor, apresenta algumas temáticas universais, porém construídas a partir de perspectivas absolutamente peculiares e influenciadas por um contexto socio-histórico em constante tensão entre um passado de ódio e violência, e um presente atormentado pelos fantasmas desse passado. Lurie atravessa a conhecida fase da “crise de meia idade”, momento em que sente sua masculinidade diretamente afetada pela proximidade cada vez mais presente da velhice e da morte. Uma abordagem já conhecida do mundo ocidental, porém, Lurie e sua história se apresentam bem mais complexos que isso. Primeiramente o personagem é revelado como um legítimo Don Juan, promíscuo e leviano. Como todo bom conquistador é um amante das mulheres, de todas, se possível: “Ele existia numa promiscuidade ansiosa e agitada. Tinha casos com as esposas de colegas; pegava turistas nos bares da praia ou no Club Italia; dormia com putas” (COETZEE, 2000, p.08). Sua relação com as mulheres é, inclusive, a marca de sua história, como ele mesmo revela: Ele não tem filhos homens. Passou a infância em uma família de mulheres. À medida que mãe, tias, irmãs se foram, ele as foi substituindo por amantes, esposas, uma filha. A companhia de mulheres fez dele um apreciador de mulheres e, até certo ponto, um mulherengo (COETZEE,1999, p.08).
E assim como o próprio personagem declara suas relações mais íntimas e marcantes são vivenciadas com mulheres desde o início do romance: a prostituta Soraya, a aluna Melanie, a filha Lucy. Personagens masculinos são pouco representados, tendo na figura de Petrus, o vizinho da filha, o homem com mais expressividade, e que terá, inclusive, um papel desafiador para Lurie. Essa relação de alteridade com as personagens femininas da narrativa, vão acrescentar à personalidade aparentemente apenas conquistadora de Lurie, um aprofundamento em nível de relações de poder. O personagem relaciona a aproximação da velhice com a diminuição do poder que exerce sobre as mulheres, estabelecendo assim, a prática da conquista como exercício de dominação e de manutenção de seu ego. Não uma dominação cruel, violenta e declarada, mas uma atitude que lhe confere, de alguma maneira um efeito de poder Sua altura, o corpo bom, a pele cor de oliva, o cabelo esvoaçante sempre garantiam-lhe certo grau de magnetismo. Se olhava para uma mulher de um certo jeito, com certa intenção, ela retribuía o olhar, disso tinha certeza. Era assim que vivia; durante anos, décadas, essa foi a base de sua vida. Um belo dia, tudo isso acabou. Sem aviso prévio, ele perdeu os poderes. Olhares que um dia correspondiam ao seu deslizavam como se passassem através dele. Da noite para o dia, virou um fantasma. Se queria uma mulher, tinha de aprender a conquistá-la; muitas vezes, de uma forma ou outra, tinha de comprá-la (COETZEE, 1999, p.08).
Ainda em outra passagem do livro, Lurie relata um momento em que fica claro que aprecia esse poder, enquanto homem, exercido sobre a mulher (no caso a prostituta
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Soraya), que se subjuga a suas ordens: “A primeira vez que Soraya o recebeu, estava com batom vermelho e muita sombra nos olhos. Como não gostava de maquiagem pegajosa, pediu que tirasse tudo. Ela obedeceu, e nunca mais usou. Uma aluna rápida, amável, maleável (COETZEE, 1999, p.07). Essas relações apresentadas de forma a serem perpassadas pelo jogo do poder merece destaque porque os acontecimentos da narrativa transformam uma história de acontecimentos quase comuns, em questionamentos extremamente profundos, quando mergulhados no contexto social e histórico a que pertencem. O leitor pode até questionar-se se existiria alguma ligação entre a acusação de abuso por parte de Melanie contra Lurie e o estupro de sua filha, que acontece em capítulos posteriores. O autor em momento algum declara isso literalmente, mas algumas sugestões são colocadas ao leitor, como no trecho: “Então chegou o dia da prova. Sem aviso, sem banda de música, ali está, e ele bem no meio da coisa. Em seu peito o coração bate tão forte que parece saber também, à sua maneira. Como é que vão enfrentar a prova, ele e seu coração?”(COETZEE, 1999, p.75). Diante das situações narradas, é inevitável não desenvolver inferências sobre, por exemplo, qual é o limite entre uma relação sexual consensual e a relação sexual violenta. Na medida em que um sujeito consegue fazer com que outro indivíduo faça algo, que normalmente ele não faria, e este algo beneficia o sujeito, temos em prática um exercício de dominação, de poder. A grande questão que fica no ar, em relação aos dois “abusos” vivenciados por Lurie – tanto enquanto suposto abusador, quanto como (pai da) vítima – é se é possível estabelecer níveis de violência, se é possível definir quão nocivo foi cada ato, para Melanie e para Lucy. Outra ambivalência apresentada nos dois acontecimentos e que também parecem soar como “o outro lado da moeda”, ou um jogo entre bem e mal, é que Melanie, supostamente menos agredida pelo ato sexual, tenha denunciado Lurie. Já Lucy, estuprada por três homens de forma extremamente bárbara, decide não denunciá-los. O que está por trás desses dois posicionamentos? O primeiro ocorre dentro de uma universidade, em um meio urbano e civilizado e onde o algoz é um homem branco e a vítima uma jovem mestiça. No segundo, o local é uma propriedade rural, distanciada da lei e da ordem e no qual os agressores são negros e a vítima é uma mulher branca. Porque o leitor é levado em alguns momentos a se chocar com a negação de Lucy em denunciar seus estupradores, ao passo que pensa que Melanie exagerou ao denunciar Lurie? O nosso posicionamento está pautado pelo grau de violência de cada ato ou inconscientemente influenciado pelas relações sócio-raciais – heranças sociais sobre o que é bom e mal, o que é certo ou errado - envolvidas nos dois casos? Coetzee constrói assim um entrelaçamento questionador sobre relações entre brancos e negros - em um país que ainda vive uma infância democrática em relação aos direitos humanos -, questões raciais e políticas e relações de gênero, seus desejos, direitos e liberdades. Esse cenário, assim desenhado, só pode sugerir uma narrativa, tanto literária quanto fílmica, prestes a explodir e a bomba é lançada justamente sobre o leitor, pois é impossível ler Desonra e não se sentir profundamente tocado pela maneira com que Coetzee dispõe a narrativa: de início ela pode pertencer a qualquer lugar do mundo. Porém, aos poucos vai sendo desvelado seu enraizamento social, histórico, político e dizendo: não é possível falar sobre o que quer que seja, sem que se manifeste, mesmo que no terreno do não dito, o lugar de onde se está falando. A obra atinge assim uma amplitude não imaginada em suas primeiras páginas, e revela personagens construídos sobre a representação de ausências, de não ditos, de carências existenciais, de desejos
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complexos e aos quais se somam os fantasmas do passado Sul-africano e a culpa histórica sentida por herdeiros de brancos que cometeram pecados difíceis de serem digeridos, mesmo com o passar do tempo. Mas não é somente através do personagem de David Lurie que o corpo assume essa relação de poder entre si e o outro. O estupro de Lucy também constrói um jogo que precisa ser desvendado pelo leitor/espectador. Especialmente no filme, no qual fica claro desde o primeiro momento que os estupradores são negros – no livro isso só é dito momentos depois - e principalmente pela ausência de Petrus – espécie de “gerente” da propriedade de Lucy - no momento do ataque à fazenda, o que fica no ar é que por trás da violência cometida há um sentido mais profundo: a de mostrar que naquele local, brancos não estão seguros. A menos que se tenha um negro para protegê-los. Ou seja, a violência do corpo surge mais uma vez como uma forma de exercer dominação sobre o outro, nesse caso com um fundo sociopolítico de cunho racial. Aos poucos, portanto, o leitor percebe que existe um jogo em Desonra. São palavras, uma cadência de acontecimentos, uma descrição de pensamentos de Lurie. E mais. O leitor desconfia que exista mais, porque há, o tempo todo, uma sensação de mal-estar e ao mesmo tempo de iminência de algo que venha a transformar a normalidade dos dias e da vida. Só que o jogo não está necessariamente nas palavras, nos acontecimentos ou pensamentos. O jogo está justamente no não dito, no não acontecido e no não pensado, mas que, mesmo na ausência de indícios explícitos, se faz presente, em forma de sensações, emoções e desejos. Coetzee escreve com maestria um não escrito, esfumaça os limites do que é posto e do que é sugerido, do que ocorre e do que poderia ou possa ainda ocorrer, desenvolvendo assim uma narrativa baseada o tempo todo na falta de certeza do que verdadeiramente é desejado, o que constrói, enfim, uma impossibilidade de definir culpados, diante de pecados cometidos. Afinal, teriam ocorrido pecados? Existiria culpa? Qual o limite entre o bem e o mal? A narrativa construída por frases curtas e sob o ponto de vista do personagem principal David Lurie, entrecortado por um narrador em terceira pessoa, tem como pano de fundo a moderna África do Sul, local de nascimento de Coetzee. Uma história localizada temporalmente no país pós-Apartheid, a princípio em regime de democracia entre brancos e negros. Coetzee tenta, a partir desse cenário, não cair em clichês sobre racismo como histórias de superação racial, por exemplo. Sua perspectiva não é doce ou carregada de esperança, o objetivo da obra é justamente o contrário: tentar captar e transformar em palavras a tensão secular entre as diferenças de cor, de gênero ou de gerações. Com essa atmosfera, é impossível não se deixar contaminar pela agudeza do destino de Lurie – que trará à tona de maneira nebulosa um passado de ódio inter-racial -, a partir de um acontecimento inicial da narrativa: em um certo dia, mais um dia em que tudo transcorre dentro do esperado nas salas da universidade, David encontra a aluna Melanie Isaacs no pátio da instituição. A naturalidade com que se insinua de pronto, sem que seja declarado por palavras, a possibilidade de envolvimento entre os dois sugere um acordo entre os desejos sentidos, mesmo que desejos de ordem diferenciada: o professor se sente atraído pela beleza e óbvia juventude de Melanie; da aluna não é dito sobre o teor de seu desejo, mas ela consente o que lhe é ofertado, dando a entender que talvez deseje também, senão Lurie, ao menos o desejo que ele sente por ela. Lurie e Melanie vivem, então, uma relação estranha, mas absolutamente possível: Lurie se encanta, Melanie deseja e não deseja ao mesmo tempo. Melanie é capaz de ir até a casa do professor, despida da
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ingenuidade sobre o que possa acontecer, enquanto em outro momento, demonstra incômodo com sua presença. David Lurie, comandado mais por seu desejo do que por sua racionalidade, procura a jovem em dado momento e diante de sua recusa, não retrocede. Entra em sua casa e tem relações sexuais com Melanie. O que desestabiliza o leitor, porém, mais uma vez, é a falta de clareza com a qual os fatos são narrados, o apagamento dos limites entre uma postura sexual sadia e outra doentia, bem como da ausência de indícios que comprovem a culpa de Lurie: Ele não avisou que vinha; ela fica surpresa demais para resistir ao intruso que impõe sua presença. Quando ele a pega nos braços, ela fica mole como uma marionete. Palavras duras como bastões batem o delicado labirinto de seu ouvido. “Não, agora não!”, ela diz, se debatendo. “Minha prima vai voltar logo!” Mas nada o detém. Ele a leva para o quarto, arranca aqueles chinelos absurdos, beija-lhe os pés, perplexo com o sentimento que ela evoca. (...) Ela não resiste. Tudo o que faz é desviar: desvia os lábios, desvia os olhos. Deixa que ele a leve para a cama e tire sua roupa: até o ajuda, levantando os braços e depois os quadris. Pequenos arrepios de frio a percorrem; assim que está nua, enfia-se debaixo do cobertor xadrez como uma toupeira que se enterra, e vira as costas para ele. Estupro não, não exatamente, mas indesejado mesmo assim, profundamente indesejado. Como se ela tivesse resolvido ficar mole, morrer por dentro enquanto aquilo durava, como um coelho quando a boca da raposa se fecha em seu pescoço. (COETZEE, 1999, p.22).
Após esse acontecimento e algumas aulas com ausência de Melanie depois, David se vê sendo indiciado por estupro, por parte da jovem. O caso acaba ganhando proporções descontroladas e caindo nas graças da imprensa. Porém, nessa parte do livro o que mais chama a atenção é a postura de Lurie diante dos acontecimentos. De acordo com Foucault (1988), com sua clássica expressão “hipótese repressiva”, em geral se considerou que as instituições modernas foram e são responsáveis por reprimir, ou melhor, “disciplinar” o homem, tornando-o “civilizado”. Através da vida em civilização e da ordem da vida burguesa o homem aprende a reprimir seus desejos, vivendo assim dentro de uma ordem pré-estabelecida pela vida em sociedade. É a partir de uma estrutura como essa, que Lurie insere-se no espaço da universidade, uma instituição respeitada e consolidada. Assim, todos aqueles que fazem parte da academia esperam e, mais que isso, seus colegas de universidade o estimulam a pedir desculpas, para que o caso seja contornado. Entretanto, Foucault destaca a importância de que no momento em que se difunde em larga escala que o sexo é reprimido por instâncias de poder, essa difusão faz parte também dessa estrutura discursiva de sexo e poder. Assim, muitas vezes, a repressão na verdade promove um efeito contrário: ela incita ao erotismo e à sexualidade. O plano seria Lurie assumir seus atos, reconhecer que foi um erro, pedir perdão para enfim voltar à universidade após um tempo de afastamento, atingindo assim sua merecida redenção. Lurie, no entanto, começa, a partir deste ponto, a revelar a complexidade de sua personalidade, especialmente no que tange à discordância com algumas posturas assumidas no meio acadêmico em que está inserido. O personagem não só não aceita a proposta da universidade, como decide entrar em conflito contra seu poder “ordenador”. O que se apreende a partir disso, é que a repressão imposta pela
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universidade, ao invés de gerar o conhecido “corpo dócil”, encontra em Lurie o que Foucault (1988) desenvolve, ou seja, que o poder não é apenas uma ferramenta de repressão, mas também de mobilização: Se o sexo é reprimido, isto é, fadado à proibição, à inexistência e ao mutismo, o simples fato de falar dele e de sua repressão possui como que um ar de transgressão deliberada. Quem emprega essa linguagem coloca-se, até certo ponto, fora do alcance do poder; desordena a lei; antecipa a liberdade futura (FOUCAULT, 1988, p.12).
Assim, Lurie, através do suposto poder que sente com sua sexualidade e ao mesmo tempo pelo desafio e sentimento de transgressão que o ato de falar em público sobre sua experiência sexual lhe confere, se sente confiante para confrontar o poder repressivo que a instituição tenta lhe imputar. Além disso, a postura assumida por Lurie, com o objetivo de provocar uma ruptura das regras sociais e, consequentemente, de sua própria vida, aproxima-se do que Giddens destaca como apagamento entre público e privado, certo e errado, ou mesmo bem e mal, que se mostra como uma característica das relações de poder, sexualidade e gêneros do mundo moderno: As sociedades modernas possuem uma história emocional secreta, mas prestes a ser completamente revelada. É uma história das buscas sexuais dos homens, mantidas separadas de suas identidades públicas. O controle sexual dos homens sobre as mulheres é muito mais que uma característica incidental da vida moderna. À medida que esse controle começa a falhar, observamos mais claramente revelado o caráter compulsivo da sexualidade masculina – e este controle em declínio gera também um fluxo crescente da violência masculina sobre as mulheres (GIDDENS, 1993, p.11).
Assim, surpreendentemente, David Lurie assume seu relacionamento com Melanie diante dos colegas. Entretanto, de forma alguma, demonstra arrependimento. Nega-se a fazer isso. Não julga ter cometido um erro, um mal à aluna e muito menos está à espera de uma redenção. Pelo contrário. A reunião com o conselho da universidade, que deveria ser o momento para encontrar uma solução pacífica para o caso, acaba sendo um espaço de fortes acusações contra Lurie, especialmente pelas professoras mulheres: Farodia Rassool interfere: “De novo estamos voltando ao ponto de partida, senhor presidente. Ele se diz culpado, sim, mas quando tentamos chegar a coisas específicas, de repente não é mais o abuso de uma jovem que ele está confessando, mas apenas um impulso a que não pode resistir, sem qualquer menção ao sofrimento que provocou, sem qualquer menção à longa história de exploração de que isto tudo faz parte. (...) Abuso: ele estava esperando essa palavra. Pronunciada com voz trêmula de indignação. O que será que ela vê, quando olha para ele, que a coloca nesse grau de raiva? Um tubarão no meio de peixinhos indefesos? Ou será que tem outra visão: um grande macho ossudo atacando uma menina-moça, uma grande mão silenciando seus gritos? Que absurdo! (COETZEE, 1999, p.42).
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O que se percebe a partir disso é que a narrativa se desenvolve em um movimento de pulsão: inicialmente tudo está aparentemente bem na vida de Lurie. Ele tem um emprego estável, uma vida discreta e se diz satisfeito com isso. Porém, o autor consegue trazer à tona, mesmo sem dizer claramente, um pano de fundo contrário: de insatisfação e descrédito na vida. O leitor consegue absorver um David Lurie que procura (muitas vezes de forma inconsciente) por uma saída, uma fuga de uma vida insuportavelmente mediana. E essa saída surge justamente através do âmbito da sexualidade, no momento em que se envolve com Melanie e se nega a manter uma “boa imagem” perante a sociedade, utilizando o espaço em que deveria rever sua atitude diante dos colegas, para dar razão e vazão ao seu instinto mais natural, mais visceral – e também o mais condenável perante a instituição na qual está inserido: o desejo do corpo. Sua recusa a encaixar-se na solução proposta pela universidade se configura então em sua “carta de alforria”. Ele sente-se livre para fugir de uma vida que não lhe oferecia satisfação, mesmo que, inicialmente, ele se esforçasse por convencer-se de que era feliz nela. Assim, após ser condenado não só por sua relação com Melanie, mas também e, principalmente, por sua postura de total descaso à necessidade de fingir arrependimento perante a sociedade, David Lurie decide sair por uns tempos da Cidade do Cabo. Seu destino é o interior do país, local onde reside sua única filha, Lucy, fruto de seu primeiro casamento e com a qual Lurie mantém uma relação por vezes conflitante. David não aceita com naturalidade a orientação sexual da filha – que é homossexual - e menos ainda o fato de ela decidir viver sozinha em um local distante de tudo e de todos, praticamente selvagem, escolhas que ironicamente desviam das normas sociais, as mesmas às quais Lurie decidiu se rebelar. Chegando ao local, o personagem mergulha nesse mundo perdido da filha. Conhece seu trabalho, o misterioso vizinho Petrus e a clínica de animais no qual será voluntário no decorrer da narrativa. A princípio, mesmo contrariado com o destino que a filha escolhe, decide que ali é um bom lugar para passar algum tempo, longe da Cidade do Cabo, distante do escândalo em que se envolveu. O próprio leitor é levado a acreditar que os principais acontecimentos da história já teriam acontecido. Mas Coetzee surpreende de maneira assustadoramente cruel. Um dia, voltando da cidade com a filha, Lurie e Lucy são surpreendidos por três homens os esperando em sua residência. O que ocorre se revela como um relato chocante e bárbaro, mas que não foge de uma realidade até mesmo costumeira em algumas regiões da África do Sul. Lurie é agredido, incendiado e trancado em um banheiro da casa. Enquanto isso, Lucy é violentada pelos três homens e a narrativa se abre para sua maior virada. Desonra: entre imagens e sugestões A adaptação de um livro para as telas do cinema não é atividade recente. Entretanto, em geral, é senso comum comparar narrativa literária e narrativa fílmica a partir apenas de juízos de valor, o que, segundo Stam, é impossível não ser feito. O autor, entretanto, destaca que apenas dizer se o livro é melhor que o filme ou vice-versa, não é o mais importante para quem estuda adaptação ou mesmo para aqueles que
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pretendem realizar alguma análise ou reflexão sobre a transposição realizada. Em diversos autores que trabalham com a análise do processo adaptativo, como Stam, Clüver e Hutcheon, destaca-se a valorização da adaptação como forma de ampliar, modificar, ressignificar ou transformar o texto inicial, sendo indispensável que se tenha sempre em mente que se trata de duas produções diferentes: livro e filme são dois textos, um baseado em palavras, o outro em imagens, que estão sustentados em suportes midiáticos distintos e que seguem assim sua própria técnica, seus próprios apelos sensoriais, suas diferentes maneiras de recepção e fruição do que é apresentado. Partindo assim desses pressupostos, observamos de que maneira Desonra, (drama dirigido por Steve Jacobs, lançado em 2008 e com John Malkovich representando o personagem principal, David Lurie) consegue circular entre esses dois suportes – livro e filme – e de que maneira as modificações realizadas na transposição para o cinema constroem novas perspectivas e releituras sobre o texto inicial. Como já comentado anteriormente, o livro Desonra possui um ritmo de narrativa que facilita sua adaptação: as frases curtas, os acontecimentos impactantes, a presença da ação, fazem com que se possa produzir uma história cinematográfica capaz de captar a atenção do espectador. Por outro lado, algumas outras características da obra se mostram mais difíceis de serem transformadas em imagens. É o caso da técnica narrativa do monólogo interior, presente em toda a história em sua versão literária e principalmente o uso do “não dito”, muito bem utilizado por Coetzee e que confere justamente uma das principais características do livro, que é o da ambiguidade. Assim, como reconstruir através de imagens o que o personagem David Lurie está pensando e sentindo? Mais que isso, como transmitir o que o autor escreve de maneira obscura e sinuosa, ou seja, lança apenas no terreno da sugestão? Aí chegamos a uma das principais mudanças da transposição: a complexidade de Lurie apresentada no início do livro, com toda sua reflexão, com toda sua crise existencial entre os limites bem versus mal, especialmente no que tange à sexualidade, não é explorada no filme. A própria situação que se torna o estopim de sua mudança de cidade, a relação com Melanie, é apresentada com bastante rapidez e o jogo sexual de poder que estabelece a sua ruptura com o sistema opressivo da universidade acaba sendo suavizado. Segundo Comparato (2000), um livro dificilmente será adaptado de maneira completa para o cinema, pelo simples fato lógico de que o tempo médio de 80 a 120 minutos de ficção cinematográfica não ser suficiente para tal feito. Além disso, a produção de um filme precisa lidar com a incapacidade de colocar em cena a interioridade de um personagem, aspecto tão explorado pelo livro. Dessa maneira, em geral, roteirista e diretor trabalham com a perspectiva de condensamento e muitas vezes de exclusão de partes da história, mantendo aquilo que acreditam ser mais essencial ou mesmo reconstruindo a história por outro ângulo, que propicie uma adequação da narrativa ao tempo do filme. No caso de Desonra percebe-se que se opta por sintetizar os principais fatos iniciais do livro, deixando de fora esse mergulho no interior de Lurie e de sua sexualidade. Se algumas coisas se perderam, outras se mantiveram: mesmo não havendo esse monólogo interior que explica muito sobre o personagem no livro, o não dito que confere a tensão inerente à obra está bem representado nas imagens, tanto em função da presença de Malkovich em cena, quanto pela apresentação das ações primeiras: os diálogos são curtos, poucos, escassos e o semblante do personagem nesses momentos iniciais do filme parece mostrar apenas uma coisa: há mais a ser falado, mas esse mais
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sempre fica “por dizer”. O filme chega a soar até mesmo um pouco artificial e “seco” nesse início, mas é possível que isso faça parte da ideia de transmitir ou gerar certo desconforto e estranhamento no espectador. Além dessas modificações referentes a Lurie, com o corte de algumas situações narradas no livro, a personagem Melanie ganha outro tom. Na obra, a jovem é apresentada com um ar mais sedutor, mais atrevido, criando assim o jogo entre bem e mal que confunde o leitor: se a moça é insinuante, pode ter tido alguma culpa em seu próprio abuso. No livro, a primeira vez em que se encontram, no pátio da universidade, fica claro que Melanie se mostrava ao menos curiosa com a aproximação de seu professor: “Ela está andando devagar; ele logo a alcança. “Olá”, diz. Ela sorri de volta, inclina a cabeça, o sorriso mais malicioso que receoso.” (COETZEE, 1999, p.12). Já no filme, Melanie cede facilmente às investidas de Lurie. Mas ela apenas cede, beirando a frieza. Não há a parte em que a aluna vai por sua própria conta à casa de Lurie, momento em que os dois têm relações sexuais no quarto da filha, Lucy. Melanie permanece lá até o outro dia e se mostra bastante à vontade na casa de seu professor. Na obra, portanto, há envolvimento de ambas as partes, mesmo que um envolvimento carregado de ambiguidade e indecisão, como mostra o trecho Será que ela sabe em que está se metendo, naquele momento? Quando ele fez o primeiro lance, no jardim da faculdade, tinha pensado em um casinho rápido — rápido para começar, rápido para acabar. Agora, ali estava ela, em sua casa, trazendo consigo uma trilha de complicações (COETZEE, 1999, p.22).
A ausência desse fato, bem como de outros encontros entre os dois em que se desenvolve bem mais a tensão emocional e sexual que permeia a relação, faz com que, no filme, a história se torne um pouco artificial. Além disso, na versão cinematográfica, depois que Lurie vai à casa de Melanie e não lhe dá espaço para dizer não, ela muda completamente sua expressão: em aula, com o namorado ao lado, sua feição é de vergonha. Quando convidada por Lurie para ir até sua sala para remarcar a prova que havia faltado, Melanie demonstra muita revolta. A partir dessas atitudes e dessa interpretação, a denúncia de Melanie, no filme, parece bem mais coerente com sua reação aos acontecimentos e seu envolvimento com Lurie, enquanto no livro a ambiguidade da jovem é bastante explorada, deixando o leitor em dúvida se ela considerava errada sua relação com o professor e se compreendia realmente as suas possíveis consequências. Já que a parte inicial do livro é adaptada de maneira mais superficial, o filme acaba centrando sua energia na história posterior e não menos surpreendente: a ida de Lurie para a fazenda da filha Lucy. E é através desse ambiente que a imagem agrega novas perspectivas em relação às palavras. As tomadas de câmera em plano geral, da paisagem grandiosa do interior da África do Sul, conferem uma bela fotografia à produção cinematográfica, além de conseguir explorar alguns aspectos que o livro não consegue enfatizar. A amplitude dos espaços e a aridez desértica do local corroboram com a ideia de que a filha de Lurie vive em um lugar desolado, distante e selvagem, o que contribui para a sensação de impotência do homem diante desse cenário inóspito, marcado ainda, culturalmente, por relações de violência – e quando se trata de mulheres, violência sexual - entre brancos e negros. Como afirmamos na primeira parte do texto, o
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livro parece destacar que é impossível não ser influenciado pelo “de onde se fala”, ou seja, o contexto social, histórico e político influencia na construção da narrativa. Nesse ponto, o filme consegue digerir esse aspecto narrativo e utilizar-se de suas próprias ferramentas para transmitir o que o autor quis desvelar. Aliás, mesmo sendo a paisagem natural o elemento mais bem explorado pela construção e edição das imagens, esse aspecto de impotência do homem diante do mundo ou mesmo da vida em si, seus rumos e consequências também é explorado através da imagem em uma passagem anterior, a da reunião em que Lurie é persuadido por seus colegas a se declarar culpado e pedir desculpas públicas pelo abuso que cometeu. A imagem, em plano geral, mostra uma grande sala, com apenas uma cadeira no centro, diante de uma grande mesa na qual estão todos os professores. Uma cena que coloca Lurie pequeno e sozinho, diante da grande e respeitável instituição universitária, mesmo que sua postura seja contrária, de confronto e até mesmo deboche da “máquina institucional”. Assim, o filme consegue explorar de maneira mais contundente as relações homem versus sociedade e homem versus natureza, valendo-se da imagem para criar tensão e impacto sobre esses aspectos. Outro momento em que a imagem ganha força por si só é quando Lurie é incendiado após o estupro de Lucy. Depois de levar um golpe na cabeça e ficar desacordado, Lurie se vê trancado no banheiro da casa e vive o tormento de estar impotente, sem conseguir sair dali, enquanto Lucy está sozinha nas mãos dos estupradores. Retomando Foucault, se no caso com Melanie, Lurie consegue transformar a sua sexualidade em poder contrário ao poder repressivo da instituição, com sua filha isso não ocorre. No caso de Lucy, o corpo como mecanismo de poder chega a sua versão mais violenta: o estupro conjugado à tentativa de homicídio. E Lurie não só não consegue deixar de desvencilhar-se de sua capacidade opressora, como sofre outras violências consequentes dele. Os três “assaltantes” só voltam mais tarde, quando jogam um líquido inflamável em seu corpo e nele ateiam fogo. A descrição da cena, em palavras, já é inquietante, porém em imagens, seguindo criteriosamente a narração presente no livro, a representação atinge um nível de agressividade ainda mais forte, pelo realismo da cena. A história ganha impacto pela expressividade das imagens em muitos momentos, mas, também, como já comentado, sofre alguns cortes ou modificações no enredo. O trabalho de Lurie sobre Byron, por exemplo, que toma páginas e páginas do livro, é apenas mencionado no filme. Já a passagem em que Lurie vai à casa dos pais de Melanie Isaacs é sintetizada no filme, em relação ao livro, recebendo vários cortes na sequencia de acontecimentos, como a ida de Lurie à escola do pai de Melanie, o convite surpreendente feito à Lurie para que jantasse na casa dos Isaacs e vários diálogos e pensamentos de Lurie. Entretanto, a síntese realizada conseguiu mostrar a essência da situação: o desconforto de Lurie diante da família que o recebe e a instigante desenvoltura do Sr. Isaacs diante do homem que foi denunciado por abusar de sua filha. Lurie, no filme, assim como na obra, demora, mas enfim pede desculpas à Isaacs e num ato desconcertante ajoelha-se diante da mãe e da irmã de Melanie, pedindo-lhes perdão também. O importante é que o fato, apesar de mais condensado, teve na produção cinematográfica um novo significado. No início desse trabalho foi comentado que Desonra é, antes de tudo, uma história que aborda questão de desejo, pecado, culpa e redenção. A redenção, inclusive é um elemento muitas vezes esperado pelos leitores. Só que a narrativa literária, além de ser inquietante e causar estranhamento desde suas
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primeiras páginas, possui a peculiaridade de não oferecer redenção alguma ao personagem principal, David Lurie. Mesmo com sua ida à casa dos Isaacs, mesmo pedindo desculpas à família, a postura do pai de Melanie se mantém desalentadora para Lurie. Já no filme, esse momento marca justamente uma proposta de redenção a David. Após ir à casa dos Isaacs e lhes pedir perdão, o pai de Melanie é representado no filme de forma bem mais coerente com os acontecimentos, devido aos cortes que diminuem a impressão de que Isaacs aceita Lurie de bom grado em sua casa e que ajusta o fato a uma perspectiva notadamente mais moralizante. No filme, a partir desse momento, Lurie passa rapidamente pela Cidade do Cabo e por fim volta à fazenda de Lucy, que agora é na verdade de Petrus. O reencontro entre pai e filha mostra a enfim aceitação, entre Lurie e Lucy, de que são diferentes e possuem defeitos e qualidades, mas que o mais importante, ao fim de tudo, é que são pai e filha e mesmo não tendo sobrado muito na vida de ambos, eles têm um ao outro. Esse reencontro, escolhido como cena final do filme, corrobora para o pensamento de se não, um final feliz, ao menos uma redenção de Lurie diante de seus pecados e uma relação de aceitação resignada com sua filha. A cena mostra Lurie de carro em uma estrada. Ao estar próximo à fazenda ele para o carro e decide seguir a pé. Avista Lucy trabalhando em sua horta, grávida (gravidez essa que, mesmo originária do estupro, reafirma uma impressão de recomeço). Os dois cumprimentam-se. Observam-se. E se rendem. Lucy convida o pai para entrar e tomar um chá. Enquanto os dois caminham em direção à casa, a câmera vai afastando-se dos dois, abrindo-se para um plano geral. Ao continuar se afastando, surge, em primeiro plano a imponente casa de Petrus, agora o dono do que antes pertencia à Lucy. Considerações finais A impactante narrativa de Desonra mantém em sua versão cinematográfica seu teor inquietante, mesmo apresentando novas leituras ao leitor/espectador. A história de David Lurie pode inicialmente sugerir um caminho rumo à decadência e à degradação do ser humano, porém se mostra por fim como a busca por conhecer a si e reconhecer a si, por conhecer e reconhecer o outro. Por admitir-se em seu próprio corpo e sua própria sexualidade (e permitir ao outro que se admita em si). E ainda, por descobrir-se pertencente a sua história e a sua terra: no jogo de palavras e no jogo de imagens proposto por livro e filme, temos enfim, a tocante luta e trégua entre raças, gêneros e gerações, em um país que ainda busca se descobrir. Além disso, através da história de Lurie se desvela, principalmente, a luta de todo ser humano: debater-se em sua essência ambígua, que abriga no mesmo corpo, o bem e o mal, o sagrado e o profano. REFERÊNCIAS COETZEE, J. M. Desonra. Companhia das Letras: São Paulo, 2000.
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COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro. 4º Edição. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 2000. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 13ª Edição. Tradução: Maria Theresa Albuquerque e J. A. Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Tradução: Magda Lopes. São Paulo: Editora Unesp, 1993. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução: André Cechinel. Florianópolis: Editora UFSC, 2011. RODRIGUES, Sérgio Murilo. A relação entre o corpo e o poder em Michel Foucault. In: Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 9, n. 13, p. 109-124, jun. 2003. STAM, Robert. Teoria e Prática da Adaptação: da fidelidade à intertextualidade. In: Ilha do Desterro. Florianópolis: 2006. XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In: PELLEGRINI, Tânia ...[et.al.]. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003, p. 61-89.
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AUGUSTO DOS ANJOS: MODERNO SIM SENHOR! Sandra S. F. Erickson (UFRN) Double, double toil and trouble Fire burn, and caldron boil [] Tis time! Tis time! Bruxas, Macbach, Shakespeare
I. Estado da arte O problema da linhagem poética do poeta Augusto dos Anjos (Paraíba, 18841914), seu estatuto de moderno e sua inserção na modernidade tem sido nosso objeto de estudo desde 19951. Argumentamos insistentemente que ele devorou, salivou e digeriu, cuspiu e vomitou a matéria poética europeia (e mesmo em alguma medida o oriental2), nos moldes do engajamento crítico descrito do T. S. Eliot como “tradição versos talento individual” (ELIOT, 1920) reformulado na teoria poética de Harold Bloom como agon (BLOOM, 1991). Algumas características do modernismo antecipadas na poética de Augusto, inclusive apontadas por Lúcia Helena (1984) são o: descaso para com o tratamento do material poético do ponto de vista do belo (HELENA 1984, p. 23), inclusão de elementos até então considerados a-poéticos, “intromissão do prosaico” (idem, p. 24) e “presença da terra e do telus” que foram matéria do modernismo brasileiro (idem, p. 24); “re-inscrição crítica da história da colonização americana vista do ângulo do colonizado” (idem, p. 24), tratamento antropofágico do material do mundo; uso do nonsense e de recursos impressionistas manifestado “em um novo modo de captar a realidade” (idem, p. 26). O tratamento poético dado por Augusto a muitos conteúdos (pobreza rural, desmandos dos poderosos, tratamento da natureza e todos os seres, sofrimento das formas vivas, solidão humana, necessidade de assepsia moral, desmistificação e naturalização de processos humanos como cuspir, salivar, derramar 1 2
ERICKSON 2003 e 2009; sobre a modernidade no poeta ERICKSON 2005. ERICKSON 2012; 2013.
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sangue, sofrer, adoecer, envelhecer, morrer, problemas do alcoolismo e da prostituição para a sociedade, entre outros) os inseriu na agenda poética: se tornou a matéria do modernismo. Processos poéticos sofisticados que caracterizam o modernismo brasileiro celebrados pela comunidade crítica, como a antropofagia, são não apenas comuns na poética de Augusto, mas é sua própria metodologia de composição. A apropriação poética da matéria de Augusto é notória em todo o modernismo: Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes, Ferreira Gullar, Manoel de Barros e em poetas contemporâneos como Bráulio Tavares, Lenine, Leminski, são metonímias das invenções poéticas desse Orfeu. Augusto, como intui Drummond, é “a pedra no caminho” da poesia diante da qual os poetas noviços param—ou, como na formulação mais vigorosa de Bráulio Tavares (típica do poeta forte de Bloom), é a pedra que deve ser erguida, girada no braço, e arremessada “na cara do inimigo mais próximo” (Primeira Pedra, Sai do meio que lá vem um Filósofo, 1982). Estado da Arte: Todos Juntos de Etiqueta na Mão Do ponto de vista do estilo, a poética de Augusto tem sido identificada com o grotesco, disforme e desconforme, todavia, ela é consoante com a poesia greco-romana, especificamente com a poesia lírica, cujos temas clássicos são, exatamente, pathos, amor e morte. Incestos, cemitérios, olhos furados, desmembramentos, embriaguez, etc... é parte do menu da poesia lírica e clássica. Não haveria, portanto, necessidade de isolarse o poeta como foi feito pela crítica, de seus pares ocidentais. O poeta diz que de amores fúteis sua lira pouca vezes fala (Idealismo, l. 3-4)3–só que não... O amor é objeto marcante de sua lírica; tanto o amor sublimado, quanto o profano e o sagrado. Outra opção crítica para tratar o imaginário e tema do poeta seria o romantismo que é mencionado pela crítica, embora não explorado. Ainda hoje críticos como Ferreira Gullar falam de “certo” romantismo na estética do poeta (Esse estranho personagem, direção Deraldo Goulart, 2010), mas não de uma ligação estética mais profunda entre ele (Augusto) e eles (os românticos). Outros estressam o amálgama simbolismo3
Títulos dos poemas serão italicizados para facilitar a leitura; as linhas serão anotadas como “l.”.
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parnasianismo. A etiqueta preferida pela crítica mais recente constante nos manuais de literatura e história da literatura brasileira é a de pré-moderno. De acordo com as teorias e práticas do sublime desenvolvidas pelos românticos, Augusto caberia bem nessa “cova”. Mas, a crítica intuiu que a tropologia do poeta fundada na literatura clínica sobre a morte, no evolucionismo de Darwin (1809-1882) e outras teorias científicas modernas (monismo spenseriano), não apareciam com a vestimenta romântica. Os vocabulários e conteúdos programáticos dessas linhagens pareciam (à crítica) utilizados, de um modo original e, assim, o poeta foi considerado como sem afiliação estética. Preferimos considerar o uso do poeta da tradição que o precedeu como vanguarda modernista, utilizada por ele como suporte para suas elaboradas analogias com as tradições poéticas anteriores (como o neoplatonismo, o orfismo e budismo), já retomadas pelos Graveyard poets, os metafísicos ingleses e os transcendentalistas norte-americanos—como Thoreau, Emerson e mais tarde E. Dickinson e Whitman, percebidas e trabalhadas por ele em seu “caldeirão” de wizzard (mago) poético. A crítica também não tomou essa via, nem mesmo admitindo que o darwinismo e monismo spenseriano, tão presentes em sua poética, já é o modernismo. A crítica também poderia ter optado por considerar o poeta um gênio que superou os paradigmas estéticos de seu tempo e reina, lá, sozinho, como ele próprio anuncia em O poeta do hediondo, O meu nirvana, entre outros poemas. Os críticos também não foram por ai e, até onde sabemos, colocou o poeta num nimbo conceitual de sem lugar, deslocado, patinho feio do cânone. Alas! Poucos avanços têm sido notados mesmo entre os de boa vontade e bom esforço crítico-teórico, como Helena e José Paulo Paes (1926-1998). O poeta é tratado pelas vias do simbolismo, parnasianismo e/ou pré-modernismo. O problema da linhagem poética “Atirai no caldeirão entranhas em podridão. Os sapos das pedras frias que durante trinta e um dias suaram seu bom bocado, jogai no pote encantado”. MacBeth, I.iv
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Não é necessário a um poeta possuir uma linhagem—ele pode gerar sua própria, ser seu próprio pai. Essa contingência difícil, mas possível, é parte do suporte teóricometodológico da angústia da influência desenvolvida pelo crítico contemporâneo Harold Bloom.4 HELENA (1984) aponta algumas características do modernismo antecipadas na poética de Augusto, conforme apontamos acima. Paes também reconhece qualidades pré-modernistas no poeta nos instigantes ensaios “Augusto dos Anjos ou o evolucionismo às avessas” (1985) e “Augusto e o art noveau” (1985). Ele observa que Augusto faz uso sistemático do superlativo e da hipérbole, segundo ele, para arrancar as coisas de sua normalidade individual e intensificá-las. Hipérbole não é o tropo principal de Augusto. É importante apontar que esse é o tropo da quarta razão revisionária (demonização) do mapa de desleitura de Bloom (1995). Paes, como todos os críticos, enfatiza a “tendência” à necrofilia e ao horrífico na poética de Augusto, ressaltando que esses processos do poeta não são convencionais, de modo que há uma brecha (que ele não ocupa), em sua leitura, para se pensar adiante. Todavia, Paes discute a questão propondo apenas que essas diferenças representam o “‘artenovismo’”—o modern style e o jugendstil que ele propõe como lugar do poeta. Paes e Helena colocam o poeta em diálogo com outras tradições poéticas (persa, no caso de Helena), inclusive as vanguardas europeias (alemã, no caso de Paes). Mas, a maldição de Freud (psicoanalismo) e do biografismo fofoqueiro recaem também sobre eles, pois continuam a caracterizar a poética de Augusto enquanto resultante da sublimação de medos e desejos inconscientes e não como um projeto estético lúcido, coerente e bem realizado. Nem um nem outro & nem esse (simbolista, parnasiano ou pré-modernista) Deixai bem forte a mistura; juntai do tigre a fressura, para que nosso caldeirão tenha caldo em profusão—MacBeth, idem
O projeto estético de Augusto não se enquadra em nenhuma das caracterizações acima referidas. Assim como outros predecessores canônicos (Shakespeare, William Blake, Kalidaça) Augusto supera os paradigmas estéticos de seu tempo e, por isso, não é 4
Extensivamente tratada em Erickson 2003.
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estranho o fato de encontrarmos vários diferentes encaixes para sua poética. O próprio poeta tem uma consciência clara desse estado e a prolepse é um tropo muito presente em suas composições. Essa mesma qualidade de “sem teto estético” é um sintoma do modernismo porque os artistas modernistas buscam criar e manter um locus estético próprio e diferenciado uns dos outros. Depois do advento de Augusto, a poesia, não apenas no âmbito do Brasil, mas ocidental, nunca mais foi a mesma. Processos larga e conscientemente utilizados por ele, especialmente em Monólogo de uma Sombra e Os doentes (1912), foram “supostamente” inaugurados em Wasteland (1922), de T. S. Eliot, dez anos DEPOIS de Eu. Eliot foi um estudioso da poesia de línguas românicas. Aprendeu o português para conferir a força poética de Camões—ou dos seus concorrentes contemporâneos? Coincidência ou influência? Não podemos responder aqui a essa proposição, mas fica a provocação. O leitor atento pode, sem muito esforço, construir uma rota dos tropos com fluxo contínuo entre as produções poéticas portuguesas e inglesas. Antes de Eliot, Camões já tinha sido objeto de estudo (inveja criativa no vocabulário de Bloom) dos poetas ingleses John Dryden (1631-1700)5 e Andrew Marvel (1621-1678). Conforme acabamos de apontar, processos icônicos do modernismo empregados em Waste Land encontram-se extensivamente em Monólogo de uma Sombra e Os doentes. Do ponto de vista desses processos, Eliot não se distingue de Augusto. Selecionamos alguns a seguir. Waste Land é famoso pelo emprego do monólogo dramático, supostamente inaugurada no Hamlet de Shakespeare, e pelo emprego da técnica de mosaico (e/ou pastiche), isto é, a construção do texto poético a partir de tropos, figuras e “pedaços” do próprio corpus poético, tanto na forma de citações e alusões diretas, como obscuras que vão do popular e mundano ao “chique” (Homero, Dante, Shakespeare) e por seu tecido imaginário onde encontramos os fios de tradições poéticas diversas: grego-latina, celta e oriental (persa, hinduísta e budista). Todas essas características e em níveis mais sistemáticos estão presentes nos poemas de Augusto. O poema Monólogo de uma Sombra é, exatamente e precisamente, um monólogo de um fantasma (Hamlet?) que fala a partir de sua experiência de “outras eras” (tempos, l. 1) e outros “tectos” (lugares, l. 2). 5
Dryden chegou escreveu a peça Don Sebastian: King of Portugal, 1690.
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II. Genoma poético—ou o caldeirão de Augusto “PRIMEIRA BRUXA: Atirai no caldeirão entranhas em podridão. Os sapos das pedras frias que durante trinta e um dias suaram seu bom bocado, jogai no pote encantado. TODAS: Mais dores para a barrela. Mais fogo para a panela!” MacBech, IV.i
Outras características estruturais de Waste Land que o leitor de Augusto reconhece: 1. uso de disjointed structure, estruturas desconjuntas (marcadas por anacolutos, hipérbatos, elipses, zeugmas); 2. jumps: pulos ou enjambement6 imagístico de modo que o leitor nem sempre saca em que direção está sendo levado pelo poema; 3. multiplicidade linguística: muitas línguas participam da escritura (latim, grego, italiano, alemão, francês e sânscrito são algumas das línguas usadas por Eliot) esse ponto será elaborado adiante). A diferença mais visível entre os dois poetas, Eliot e Augusto, é a preferência do último pela metalepse e de Eliot pela metonímia. Augusto emprega a sofisticada metalepse, espécie complexa de metáfora construída com pedaços de outros tropos que, de acordo com o retórico clássico Quintiliano (35-96 E.C.) é típica da comédia porque seu efeito é grotesco. Augusto emprega esse tropo complexo para construir uma ironia suprema: da superfície de seu tecido poético trágico ele trabalha o cômico, isto é, ele desenvolve um discurso soteriológico7 através de sua narrativa da jornada e do destino cósmico dos agregados humanos a partir da articulação de matrizes orientais, especialmente budistas.8 Eliot prefere a metonímia e a articulação do niilismo nietzschiano. Vemos no seu tecido poético os pedaços, os fios, os entrelaçamentos do corpo poético herdado da tradição (cânone). Para a edição de Waste Land, Eliot sucumbiu às sugestões de seu editor de documentar, em inúmeras notas de rodapé, seu roteiro poético. Já o leitor de Augusto tem sempre que fazer sua parte de detetive porque 6
Geralmente traduzido por “cavalgamento”, esse vocábulo francês se refere a um tipo de rima, mas também a um tipo de construção por encadeamento; esse tipo de verso produz a ideia de continuidade, de denvolvimento sequencial através de “espaços” poéticos que o leitor tem que ocupar (construir) imaginativamente. 7 Contrária à tragédia, na comédia o sofrimento não leva à destruição e a morte, mas sim a resoluções salvíficas dos conflitos. 8 ERICKSON, Religare, 2012.
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seus versos são sempre Versos íntimos—querem a iniciação e a intimidade do leitor na tradição.9 Queremos destacar a participação das línguas “estrangeiras” nos dois poetas porque críticos gostam de destacar o fato de que Eliot usa muitas delas, incluindo o sânscrito como um sinal de sua modernidade. Augusto já havia utilizado amplamente esse recurso em 1912. E não apenas superficialmente e un passant. Além de usar o inglês, francês, alemão, grego, latim Augusto usa nosso tupi a partir do qual o poeta quer inventar uma nova língua (intra-poética?)10 Ressalte-se ainda que, enquanto em Waste Land o sânscrito aparece apenas uma vez (shantih, l. 433, a última do poema), em Augusto aparece várias vezes, inclusive e não apenas, nesses tão importantes loci poéticos em Augusto e no sânscrito canônico: Buda, nirvana, samsara, e até o cânone poético-filosófico (Abidarma).11 Augusto se justapõe, está junto com os mortos-vivos sagrados do (no) cânone. A justaposição (através do conectivo e) resulta (não acidentalmente) em uma ironia suprema: seu roteiro tropológico parece mito radical, diferente, inédito, mas atrás dele há uma orgânica e sistemática manipulação e articulação do be-a-bá do cânone, assim o que parece ruptura e antítese (figura que o poeta usa muito) é, na verdade continuidade. Os feitos poéticos de Augusto podem ser resumidos na formulação Tradição e talento individual do próprio Eliot (1920). Augusto não se coloca em relação antagônica à seus precursores poéticos como Bloom defende em sua teoria (e eu mesma em ERICKSON, 2003), mas se insere, as vezes agressivamente (Versos íntimos, Vencedor) outras tranquilamente (Ultima visio, O meu nirvana) na cadeia canônica. Todavia, Augusto é, diferentemente de seus pares modernistas mais celebrados, um “escultor” radical do verso, fato que (talvez) confundiu e enganou a crítica. Mas, será? Seu mais popular concorrente canônico, Drummond também utilizou o soneto, “arma” preferida de Augusto, que, por outro lado, morreu muito jovem e, escreveu bem menos do que seu concorrente canônico (Drummond). 9
Essa iniciação não necessita ser da ordem do objetivamente cognitivo ou proveniente de práticas acadêmicas. Muitos leitores ditos “leigos” captam bem a intimidade dos versos do poeta. Eu é o mais vendido e mais popular volume de poesia de todo o país, enquanto na academia sua apreciação continua a deixar a desejar mesmo em cursos de Letras. 10 “o idioma em que te falo / Possam todas as línguas decliná-lo / Possam todos os homens compreendêlo” (Versos de amor, l. x). 11 Ver ERICKSON 2012, 2013.
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Enquanto o soneto possibilitou ao poeta enfrentar a tradição poética do modo mais robusto disfarçado na insuportável leveza da forma romântica açucarada que os modernistas rejeitaram, a grotesca e feroz metalepse possibilitou a devoração e digestão, na festa antropofágica mais completa, regada a sangue, pus, cuspe, vômito, e escarro, ou seja, do cânone através da qual o poeta re-significou a tradição radicalmente.12 O projeto de Augusto combinou as liberdades formais dos românticos com o anti-subjetivismo descritivista e formalista dos parnasianos e outros materiais e suas possibilidades parecendo profético (proléptico, para usar um tropo caro ao poeta) para o tipo de estética que Gastón Bachelard chama de devaneios da vontade (1991). Bachelard aponta as qualidades plásticas, viscosas escorregadias do barro, da merda, e do catarro. Tais atributos fazem desses materiais matérias naturais para a modelação de estruturas poéticas. Augusto manipula esse material muito bem. Interpretar é sempre escorregar, arriscar-se, então, arriscamo-nos a dizer que essa concepção de mundo, de espaço e de relação entre o homem e a natureza está sobremaneira presente em Augusto. Ele modela esses materiais para criar espaço para sua pedagogia soteriológica (anti-nietzschiana)13 de mostrar, pela exposição constante e contínua de como (e até que ponto) somos iludidos pelas aparências enganosas da natureza, seus fenômenos e pela existência imputada, ilusória, de um “eu”, como sujeito autônomo que experimenta as coisas no mundo sensorial—ou do samsara. Do mesmo modo (irônico) observamos as diferenças entre o estilo (tecido) externo de sua poesia e sua tropologia, especialmente os tropos que tematizam a morte e os que promovem a naturalização de processos humanos como cuspir, salivar, sofrer, derramar sangue, adoecer, envelhecer, morrer, solidão existencial, perigo do alcoolismo e da prostituição para a sociedade, entre outros agentes, que os inseriu no front da agenda poética, tornando-os a matéria do modernismo. De acordo com Bloom, o movimento (apropriações por outros poetas, comunidade de leitores) desencadeado pelos tropos utilizados pelo poeta (consciente ou inconscientemente) indica o grau de ruptura e de inventividade de sua poética, mas 12
Note-se todos os processos de introjeção e expectoração habilmente e corajosamente usados como tropos pelo poeta. 13 Não se espante leitor, mas veja o soneto do poeta Para que nesta vida o espírito esfalfaste, dedicado a Frederico Nietzsche.
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inevitavelmente, o poema volta à sua inspiração original, isto é, a tradição (poema pai, arquivo poético, cânone; nas formulações do próprio Augusto: arca de palimpsestos, mater originalis). Poemas contêm suas próprias chaves de leitura (código genético, dna). As chaves de leitura plantadas na poesia de Augusto indicam muito claramente o quanto e quão profundamente sua estrutura e agenda poética estavam—como estão—a frente da estética de seu tempo, ao mesmo tempo em que mantinha, ao menos, um pé, nos seus “canteiros poéticos” (antecessores). Como no Ulysses de James Joyce, os movimentos (swerves, na terminologia de Bloom) de sua poética de ruptura e reestruturações e a qualidade de intimidade (da tradição) de seus versos em relação à tradição canônica é uma marca do modernismo. Uma listagem de características ou qualidades estruturais modernistas que estão presentes na poética de Augusto incluem ainda os seguintes itens: fluxo da consciência (a voz lírica fala a partir de sua própria condição de um eu pensante pensando o mundo, quiçá representando não um si mesmo, mas a coletividade de formas sofredoras), a preocupação com as paisagens (landscape) urbanas (o lírico é porta-voz das experiências na “urbs monstruosa” desagregadora e doente de si mesma), empréstimos de outras culturas, línguas e linguagens (procedimento hoje denominado de intertextualidade), uso de alusões clássicas, metáforas não convencionais, metanarrativa, fragmentação, emprego do ponto de vista múltiplo (paralaxe).14 No que se refere ao conteúdo da estrutura poemática modernista Augusto protagonizou os seguintes: ruptura de normas e certezas culturais; desilusão e desencantamento, valorização do individuo em face de sua condição de desamparo diante do futuro (sofrimento e morte) existencialmente inescapável, presença de tecnologias e suas mudanças no sec. XX.15
14
Não apenas o eu que aparece em Eu nada tem haver com a pessoa “Augusto dos Anjos”: ele é uma criação poética através da qual o poeta dá vez e voz a muitos outros seres. O eu lírico assume a essidade (ser do ou como) de vários seres: plantas (Árvore da serra), animais (Versos a um cão). Críticos não têm procurado ler ou entender como a tradição se encontra em sua poética radical—menos ainda contemplar a possibilidade de que ele esteja além de seus pares brasileiros e/ou ocidentais. 15 Um dos versos mais surpreendentes do poeta é “Onde irá parar a minha sombra / Nesse cavalo de eletricidade?!” (Poema Negro, l. 8-9) por razões que não cabem expressar aqui; aponto o uso de energias e tecnologias modernas pelo poeta, como a referência à “energia intra-atômica liberta” (Monólogo de uma sombra), a “invenção do telefone” considerada ultrajante pelo poeta e “a máquina pneumática de Bianchi!” (Os doentes).
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III. Considerações finais: locus poeticus—plano de fundo dos rótulos do poeta—ou roubo da modernidade do poeta “HÉCATE: Muito bem feito; seu quinhão todas por isto ainda terão. Agora como elfos e fadas cantai à volta, de mãos dadas, para que o encanto se complete.” MacBach, IV.i
Não podemos deixar de lembrar ao leitor do sapo todo encolhido por causa de um incômodo enorme que aparece em As cismas do destino (l. 199). Quando pensamos que a poética de Augusto justamente utilizou seu martelo para rejeitar o lirismo bem comportado e trouxe os sapos da penumbra, podemos entender que a poética de Augusto já era o modernismo mais interessado em mostrar príncipes transformados em sapos do que tornar sapos em príncipes. Existem muitas referências negativas ou pejorativas ao local de nascimento de Augusto dos Anjos, Sapé, Paraíba, que valeu ao poeta o epíteto de provinciano (Paes, entre outros) e suspeitas de raquitismo, desequilíbrio psíquico, taras (Gilberto Freire, Luís Costa Lima, entre tantos outros) que influenciam o lugar do poeta no cânone. Talvez por ter nascido numa singela cidade do interior da Paraíba, Augusto fique sempre na terceira margem do cânone, mesmo quando sua originalidade e etcs poéticos circulem nos discursos de sua fortuna crítica (Agripino Grieco, Alexei Bueno para citar dois chiques). Seria interessante, aos que se importam com biografia atentar para o fato de que Augusto pertenceu à elite econômica e intelectual, tendo se educado com os melhores recursos bibliográficos e pedagógicos da terra (estudou, em regime domiciliar, com seu pai, bacharel em Direito pela Escola de Direito de Recife onde o poeta também se graduou e no Liceu Paraibano), teve acesso às tecnologias mais modernas de seu tempo (ferrovia, telégrafo, cinema), empregos respeitáveis (foi bacharel e professor de Literatura latina e grega, entre outras áreas das Humanidades) na melhor escola da Paraíba (Liceu Paraibano) e no melhor colégio da então capital do país (D. Pedro II, Rio de Janeiro) e como diretor de escola em Leopoldina (MG), onde faleceu. Também nesse ponto, os críticos continuam com uma visão curta, pouco informada e mesquinha dos aspectos externos da poesia do poeta (seu contexto sócioeconômico-estético-cultural). Augusto foi um jovem sofisticado, inteligente e
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formalmente muito bem educado, não um tabaréu qualquer (com todo o respeito aos tabaréus). Ele estava completamente equipado para enfrentar seus pares e escolheu muito bem as armas para seus exímios duelos poéticos. Pequenas cidades & grandes poetas Sapé, a cidade natal de Augusto nos permite outra analogia entre Augusto e seus augustos pares no cânone. Shakespeare, por exemplo, nasceu na pequenina StratfordUpon-Avon, que, como Sapé, era uma market twon (rota de comércio), fundada como posto para a estação ferroviária da Great Western, a mesma que ainda hoje passa na cidade de Shakespeare, em 1883. Nem por isso, o bardo inglês é considerado menor, provinciano—muito ao contrário, a crítica o tem enaltecido ainda mais pelo fato de ter o poeta inglês superado em tudo as contingências de sua vida privada. Esse dado biográfico de Augusto também deveria ser tratado com ironia: o grande poeta Sexto Propércio (47 a.E.C.) nasceu na pequena cidade de Úmbria (Assis, Itália), onde também nasceu o santo e também poeta Giovanni di Pietro di Bernardone, conhecido como Francisco de Assis (1188-1226). Uma leitura interessada na biografia do poeta revela, instantaneamente que Augusto, o “pobre filho de senhor de engenho falido” da pequenina Paraíba, foi tão pobre, desvalido e provinciano quanto o pobre menino rico foi pobre. Para descrédito de muitos críticos e tristeza da galera menos favorecida, Augusto, conforme já apontamos, pertenceu à elite econômica e intelectual, foi educado com os melhores recursos bibliográficos e pedagógicos teve acesso às tecnologias mais modernas de seu tempo, livros vindos direto da Europa nos primeiros navios que de lá embarcavam para Recife. Por que tantos arrodeios em se achar o lugar de Augusto dos Anjos no cânone e essa ênfase em manter os estudos e discussões focados nos aspectos externos de sua poética voltada, exatamente, para promover a autópsia da existência e a “morbidez dos seres ilusórios” (Monólogo de uma Sombra l. 12)? As expressões da crítica sobre a biografia do poeta e seu deslocalizado lugar no cânone atrás para o debate a tese de uma “superioridade cultural” do centro-sul a qual, embora não abertamente defendida pela classe intelectual, paira no tratamento da história e arte nordestina e brasileira onde,
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quer como artistas ou como críticos, quer como pesquisadores ou como intelectuais, leitores e agentes culturais nordestinos são vistos e interpretados como menos relevantes. Talvez seja difícil para o centro-sul, sendo, apenas recentemente em nossa história, a área econômica e intelectual mais desenvolvida do país, admitir que sua nutrição poética deva tanto ao Pau D’Arco da Paraíba. Assim, a crítica literária, cujos porta-vozes mais lidos são os das incestuosas instituições mais consolidadas no centro-sul, apesar de seus grandes avanços, não fez muito pelo poeta. Ao contrário, mesmo dispondo de recursos teóricos e metodológicos mais eficientes e mais sofisticados (por terem, historicamente, se usufruído de bibliotecas, jornais, mais instituições de ensino superior, acesso a livros mais rapidamente e quase monopólio das verbas para educação e cultura do país nos últimos séculos de nossa História), trabalha para reverter a posição já alcançada pelo poeta no discurso crítico sobre sua obra. A importância desse debate fica óbvia nos episódios tristes que marcaram os discursos do período pós-eleição de Dilma, retomados agora, na campanha do segundo turno das eleições presidenciais quando as pessoas mais educadas do país assistem horrorizadas o tipo de discurso sobre o Nordeste que se sucedeu. A poesia de Augusto causou muito mais escândalo do que a Semana de Arte Moderna de 22 (em menor escala porque ele era sozinho e a Semana era um movimento coletivo). Mais tarde, quando encontramos seus tropos, imagens e temas em Oswald e Mario de Andrade, Drummond, Murilo Mendes, Henriqueta Lisboa, Ferreira Gullar, esses materiais não nos chocam, nem causam náusea: ao contrário merecem e têm recebido aplausos. A necessidade urgente se produzir melhores e mais cientemente informados manuais de literatura brasileira e cultura, é auto-evidente. O próprio J. P. Paes, em Gregos e baianos denuncia o “‘elistismo do sul patronal’” que faz de epíteto como baiano (que se dirá de “paraibano”) “que subsume[m] entre outras coisas ‘ignorância’ ou ‘barbárie’ das massas” (PAES, 1985, s/p). Referências ANJOS, Augusto dos. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. ANJOS, Augusto. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996.
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BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria de poesia. Tradução de Miguel Tamen. Lisboa: Cotovia, 1991. BLOOM, Harold. Um mapa da desleitura. Tradução de Thelma Médici Nóbrega. Rio de Janeiro: Imago, 1995. ELIOT, T. S. Tradition and Individual Talent. In: Select Prose by T. S. Eliot. Orlando, Florida: Harvest Books, 1975. ERICKSON, Sandra S. F. “Dharmakaya & nirvanakaya: corpos de êxtase na poesia de Augusto dos Anjos”. Revista Religare 9 (2), Dezembro de 2012. p. 141-152. ERICKSON, S. S. F. “Augusto dos Anjos: Eminência de uma Estética Neoplatônica”. In: Oscar F. Bauchwitz; Cícero Cunha Bezerra. (Org.). Imagem e Silêncio: Atas do I Simpósio Íbero-Americano de Estudos Neoplatônicos. Natal, RN: Edufrn, 2009, v. II, p. 117-134. ERICKSON, Sandra S. F. A melancolia da criatividade na poesia de Augusto dos Anjos. João Pessoa, PB: Editora Universitaria, 2003. ERICKSON, Sandra S. F. A teoria da angústia da influência de Harold Bloom: alguns conceitos e paradigmas fundamentais. In: SOUSA, Ilza Matias (Org.). Café Filosófico: filosofia, cultura, subjetividade. Natal: EDUFRN, 2004. p. 286-301. ERICKSON, S. F. Quem tem medo de Augusto dos Anjos, Anais IV Seminário sobre Ensino de Língua Materna e Estrangeira e de Literatura, UFCG, 2005; Ars Poetica: Ou a singularidade de Augusto dos Anjos, idem, 2009. HELENA, Lúcia. A cosmo-agonia de Augusto dos Anjos. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 1984. NÓBREGA, Humberto Melo. Augusto dos Anjos e sua época. João Pessoa: UFPB, 1962. PAES, José Paulo. Gregos e baianos. São Paulo: Brasiliense, 1985. PAES, José Paulo. Augusto dos Anjos ou o evolucionismo às avessas. Augusto dos Anjos. São Paulo: Global, 1985. SHAKESPEARE, William. The Complete Works. (Org.). David Bevington. London: Cott, Foresman, 1980.
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A CAPITU DE DALTON TREVISAN Silvana Oliveira (UEPG)
A narrativa de Dom Casmurro, de Machado de Assis, manifesta, desde a sua publicação em 1899, um potencial produtor tanto de discursos de crítica como de criação literária. Assinalamos pelo menos dois estudos que desencadearam leituras de Dom Casmurro nas quais o narrador é posto em questão: The brazilian Othelo of Machado de Assis – a Study of Dom Casmurro, de Helen Caldwell (1967) e O enigma de Capitu, de Eugênio Gomes, também de 1967. De lá para cá, muitas páginas de crítica e criação literária são dedicadas a Bento Santiago e Capitolina. Em 2003, Dalton Trevisan volta ao velho Machado no conto intitulado Capitu sou eu. À primeira leitura, a aventura amorosa da professora de literatura poderia ser compreendida como uma reedição da queda de Capitu, afirmando assim o adultério em Dom Casmurro. No entanto, o contexto das aulas de literatura ministradas pela protagonista, os paralelos e diferenças entre a sua aventura e a de Capitu, assim como a alusão a outro grande romance de adultério do século XIX, Madame Bovary, de Gustave Flaubert, trazem para o conto um efeito de discurso crítico, na medida em que seu desenvolvimento configura-se como uma abordagem interpretativa do romance Dom Casmurro. Esta apresentação pretende, então, discutir a interpretação proposta para o romance Dom Casmurro no conto Capitu sou eu, de Dalton Trevisan. O conto é narrado em terceira pessoa, com uso intenso de monólogo interior e fluxo de consciência. A escolha pela estratégia nar rativa opõe diretamente a pretensão elucidativa do texto ao princípio operante na narrativa parcial da primeira pessoa do romance de Machado de Assis. Temos, então, uma dedicada professora de literatura, em um Curso de Letras no período noturno, na tentativa frustrada de fazer com que seus alunos, um em especial, compreenda o mistério e o valor do romance Dom
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Casmurro. Para ela, é impossível dizer se Capitu traiu ou não; a dignidade das palavras da protagonista, o discurso ambíguo do narrador, a paixão do relato, tudo concorre para que o leitor responsável sustente o mistério e mantenha a dúvida como elemento central na figuração da personagem. Nesta interpretação, a dúvida, tendendo para a absolvição, poderia levar à compreensão da grandeza feminina frente ao relato compromet ido e injusto do marido ciumento. O esforço da professora não convence o aluno que apela para a própria experiência para “ler” a mulher machadiana e, com isso, considera que Capitu, como todas as mulheres, não presta, e traiu sim, como anuncia o narrador, na perspectiva desse leitor em particular. Como anunciado pela tensão erótica manifestada em sala de aula, o envolvimento amoroso entre professora e aluno tem lugar após a aula e aciona os elementos previsíveis do universo trevisano ao referir-se aos futuros amantes.
Finda a aula, deparam-se os dois no pátio, já desaba com fúria o temporal. Condoída, oferece-lhe carona de carro, não moram no mesmo bairro? No veículo fechado, o seu toque casual a estremece, perna cabeluda à mostra com o ber mudão e botinas de couro. A cabeleira revolta não esconde, agora de perto, o princípio de calvície (TREVISAN, p. 32) .
Durante as aulas, a professora, ambígua como Capitu, no processo de apaixonar-se
pelo
aluno,
o
confunde,
ora
o
trata
como
fêmea
condescendente, ora como professora distante e inacessível. Após a carona que deflagra o interesse mútuo, ela telefona, propõe irem ao teatro, para o qual já tem os convites. “Essa, a norma no futuro: tudo ela paga — o ingresso, o sorvete na lanchonete, a conta do restaurante.”
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Considerando o contexto do romance machadiano, é importante destacar a mudança de papeis no que concerne ao aspecto econômico. O par machadiano é composto pelo herdeiro Bento Santiago, marido provedor e responsável pelas despesas da mulher e do filho – legít imo ou não. Já o casal trevisano é composto pela professora que assume as despesas comuns. Na equação trevisana, a conduta feminina não denota liberalismo ou igualdade entre os sexos, pelo contrário, já insinua a degradação a que a mulher começa a submeter-se; na relação marcada pela ausência de qualquer interesse afetivo, o fato de a mulher assumir as despesas já a coloca como aquela que não é desejável o suficiente para valer a barganha financeira. Numa esfera bastante complexa, Dalton Trevisan aciona nosso preconceito cotidiano para dizer que há entre a esposa que se deixa sustentar pelo marido e a prostituta, cujos serviços são pagos diretamente, uma figura limítrofe, ou seja, a mulher divorciada e independente que se interessa por um homem que não pode conquistar como esposa, mas que também não pode abordar declarando apenas interesse sexual. Os detalhes dos encontros eróticos entre professora e aluno reiteram, em alguma medida, os papeis já dados em sala de aula. Mesmo ao solicitar que o amante a ensine habilidades de alcova ainda desconhecidas, a professora demonstra que também ali é a mestre que, intuit ivamente ou não, sabe mais do que o parceiro. Nesta medida, podemos propor um paralelo deste quadro com a figura do casal machadiano. Bento Santiago, o narrador, explora o passado na busca de “atar as duas pontas da sua vida”. Seu amor e seu ódio por Capitu todo o tempo a apresentam como alguém que escapou à sua compreensão mais profunda. A posse de Capitu nunca lhe pareceu possível, mesmo a compreensão das palavras da mulher lhe escapava. Não compreendê-la significa, em uma instância íntima, ser inferior a ela. Capitu sempre está a falar – ou a fazer – coisas que fogem ao controle do marido. A afirmação
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da infidelidade é apenas o ponto mais problemático da desconfiança sempre havida entre os dois. Capitu não tem voz no romance a não ser nos diálogos transcritos pela memória do narrador. Não sabemos o que ela pensa ou o que sente. Só podemos tirar conclusões por meio do que nos diz Bento. Para ele, Capitu é também um mistério; em algumas circunstâncias ele adota a percepção alheia para compreender a mulher, para só então ousar definir o que vê pelos próprios sentimentos: É o caso do capítulo 32, em que o narrador utiliza pela primeira vez a expressão “olhos de ressaca”:
- Juro. Deixe ver os olhos, Capitu. Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos de cigana oblíqua e dissimulada." Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que... Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve (ASSIS, 1997, p. 55).
Ao observar os olhos de Capitu, chamados por José Dias de “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, Bento sente o efeito daquele olhar e os denomina “olhos de ressaca”. Essa definição é com certeza uma definição amorosa; um olhar capaz de
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engolir o outro como as ondas do mar em movimento de ressaca só pode ser associado à ideia de um olhar apaixonado. Concluímos disso que Capitu era, então, apaixonada por Bento? Mas, mais tarde, quando Escobar morre, Bento diz surpreender esse mesmo olhar de Capitu dirigido ao cadáver do amigo. Seriam delírios do marido ciumento e inseguro, ou Capitu de fato apaixonou-se por Escobar? O dilema interpretativo não resolve essa questão. Machado de Assis mantém Capitu como uma imagem diluída entre o amor esmerado de Bento e os ciúmes destruidores que ele experimenta. A genialidade desse romance de Machado está em atualizar constantemente o mistério de Capitu, fazendo com que suas ações e sentimentos sejam especulados por diferentes perspectivas de interpretação. Na leitura do conto de Dalton Trevisan, a especulação do mistério de Capitu se atualiza, ironicamente, pela chave da experiência. O que inicialmente estarrece a professora é o fato de o aluno, mau estudante, não responder adequadamente a este desafio interpretativo. O aluno não admite a ambiguidade e o mistério de Capitu e, por consequência, o mistério do romance e da própria literatura. Ao desejar identificar-se com o mundo machadiano pela função de professora e boa leitora, a professora gostaria de ser como Capitu, capaz de despertar o amor e os ciúmes apaixonados do amante e, ainda assim, gozar da imunidade moral que a crítica autorizada do romance credita à personagem. Seu destino, no entanto, será o da mulher desvalorizada, indignamente apaixonada pelo jovem indiferente e debochado, cujo interesse por ela é casual e limitado à novidade do sexo fácil. Para o aluno, “Capitu? Simples mulherinha à-toa”, de quem o adultério é dado como certo desde o princípio. O comportamento sedutor e pouco pudico da professora de literatura só confirma a visão de mu ndo do bruto: Na prova do curso, o único que sustenta a infidelidade de Capitu. Confuso, na falta de argumentos, supre-os com a veemência e gest iculação
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arrebatada: infiel, a nossa heroína, pela perfídia fatal que mora em todo coração feminino. Insiste na coincidência dos nomes: Ca-ro-li-na, da mulher do autor (com os amores duvidosos na cidade do Porto), e o da personagem Ca-pi-to-li-na...” Ao longo do processo de degradação moral vivido pela professora, a sua leitura do romance é alterada, ao fim e ao cabo, desprezada pelo amante, perseguindo-o indignamente para ser novamente rejeitada, a professora vinga-se em Capitu, acolhendo então a perspectiva aprendida pelos olhos do amante: Caminha descalça pelo inferno de brasas vivas. Uma série vergonhosa de casos: fotógrafo homo, pintor futurista, professor impotente, sei lá, poeta bêbado. E, últ ima tentativa de reconquistar o seu amor, acaba de publicar na Revista de Letras um artigo em que sustenta a traição de Capitu. A sonsa, a oblíqua, a perdida Capitu. Essa mulherinha à-toa. Dalton Trevisan, com este conto, ironiza um certo pacto crít ico que se estabeleceu ao redor do romance Dom Casmurro. O pacto enuncia um discurso de autoridade, reproduzido inicialmente pela professora, no qual o romance Dom Casmurro não dialoga diretamente com a experiência do leitor, mas mantém estável o respeito à composição complexa que sustenta a dúvida de forma equânime. Ao submeter a figura quase sagrada de Capitu à experiência degradante da professora, mulher divorciada, madura, re jeitada pelo amante, Dalton Trevisan coloca a literatura como ativadora de potências pessoais, na mesma medida em que lhe retira o halo sagrado. Dom Casmurro passa assim a figurar como mais um texto, entre tantos outros textos, a compor a infinidade de textos que a vida em estado bruto contraria. Ao final, vamos ao título do conto. Capitu sou eu. A professora degradada ident ifica-se com a imagem da Capitu que a sua experiência
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construiu, “Simples mulherinha à-toa”, destituída da dignidade que a crítica responsável atribui à personagem ficcional. Além disso, não é possível ignorar a referência a outra adúltera do século XIX, Ema Bovary, cujo autor, Gustave Flaubert, assumiu no famoso julgamento de 1856 que o modelo para a personagem era ele mesmo: Ema Bovary sou eu. Acusado de ter produzido um romance execrável do ponto de vista moral, Flaubert
se defende alegando, afinal, que a imoralidade da
personagem era também a sua. Na arquitetura do conto, o título refere -se, a um só tempo, à professora e ao aluno, que leem Capitu como figuração de suas experiências pessoais; se o comportamento feminino é dito na medida do comportamento da professora – e das outras mulheres que instruíram o ponto de vista do aluno – Capitu é adúltera, mulher perversa que trai o marido co m seu melhor amigo e nunca confessa! Ainda a considerar a arquitetura do conto, a síntese proposta pelo título leva a narrativa a um patamar de consideração autoreflexiva, na qual o autor que um dia afirmou “Se a filha do Pádua não traiu, Machadinho se chamou José de Alencar” (Ministória 45, in: Ah, é?, de Dalton Trevisan.), coloca a sua produção literária, suas estratégias de linguagem, a abordagem da vida humana em sua obra, como fatores determinantes para a sua interpretação da figura de Capitu. Ou seja, a visada de Dalton Trevisan sobre Machado de Assis é realizada do lugar discursivo e produtivo ocupado por ele, Dalton, no cenário da literatura brasileira. E por consequência, um lugar de crítica literária também. Assim, Capitu é Dalton Trevisan.
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Referências ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo. Ática, 1997. ___________. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 1978 CALDWELL, Helen. The brazilian Othelo of Machado de Assis – a Study of Dom Casmurro. Univerity of Califórnia Press, Berkeley, 1960. GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. ______. Machado de Assis: impostura e realismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. GOMES, Eugênio. O enigma de Capitu. Rio de Janeiro, José Olympio, 1967. ______. Por um novo Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Presença Inquietante. In: Folha de São Paulo/Caderno Mais, 27 de janeiro de 2008. LUCAS, Fabio. Uma ambigüidade insolúvel. In: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo. Ática, 1997, p. 3-7. TREVISAN, Dalton. Capitu sou eu. Rio de Janeiro: Record, 2003.
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A INFLUÊNCIA CULTURAL NA FORMAÇÃO DAS PERSONAGENS NO ROMANCE NIHONJIN, DE OSCAR NAKASATO Silvio Hidemi Condo (UEM) Introdução O Brasil é formado por diversas etnias de outros países, a sua presença e interferência na composição do povo brasileiro é historicamente um fator influenciador da pluralidade de culturas que hoje fazem parte do contexto social do país. A obra Nihonjin de Oscar Nakasato aborda um desses fatos históricos, as grandes ondas de imigração japonesa do início do século XX. As personagens do romance vivenciam um frequente contato entre as culturas que alteram o seu modo de vida, originando ações e novos conflitos, em específico da relação entre pai e filho de Hideo e Haruo. A partir desta perspectiva de transformação, Hideo é o personagem representante deste sujeito recém-chegado em uma nova terra, que mais tarde, protagoniza os primeiros conflitos e escolhas da visão cristalizada de um sujeito preso as suas origens. Em contrapartida, as atitudes e posicionamentos de seu filho, Haruo, destacam um individuo questionador e motivador da dúvida, colocando em questão o que seria ser o “japonês” em uma terra estrangeira e desta imagem sobre o “outro” (Said, 2003, p.28). Ao observar os conflitos dos personagens e suas causas, o fator multicultural e a “crise de identidade” (Hall, 2003, p.7) gerada pela diáspora (Brah, 2002, p.181) são utilizados na análise dos personagens. Os estudos pós-coloniais demonstram este sujeito dividido pelas influências culturais compostas por valores sociais e éticos da sociedade brasileira e da sociedade dos imigrantes japoneses e de seus descendentes, que problematizam o conceito de “nações” (Bhabha, 1990, p.1) e o sentimento de pertencimento referente a uma “Homeland/Pátria” (Reis, 2004, p.43 apud Safran, 1991). Assim como o autor da obra, as personagens são descendentes de imigrantes japoneses (ou os próprios), cujos contatos resultam não apenas em choque entre gerações, mas também em um choque cultural que se refletirá na formação da sociedade e da cultura brasileira. Sobre esta perspectiva, este trabalho analisará as personagens do romance em meio ao contexto da diáspora japonesa aliado com as primeiras representações do imigrante sobre a diversidade cultural, e observará os conflitos de identidades resultantes das ações e questionamentos de gerações distintas como o de Hideo e Haruo. A imigração japonesa e a imagem sobre o “outro”
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O fato histórico da imigração japonesa é um ponto inicial e de partida no romance Nihonjin, ao retratar uma época de mudanças significativas na construção cultural e social da população brasileira. A imigração japonesa teve início em 1908 quando os primeiros 781 imigrantes do navio Kasato Maru chegaram ao porto de Santos (Sakurai, 2000, p.191), marcando, assim, a presença de um grupo étnico e modificador no contexto cultural e social do Brasil daquela época. O maior motivo que possibilitou a entrada dos primeiros grupos de imigrantes foi a necessidade do abastecimento de trabalhadores nas fazendas de café após a abolição da escravatura. Famílias inteiras se deslocaram do Japão para o Brasil. Hideo, Kimie e Jintaro são os primeiros personagens do romance e representam essa família de trabalhadores rurais que vem ao Brasil trabalhar nos cafezais. O Brasil era o produtor mundial de café, e isso era vendido para os camponeses japoneses que necessitavam do trabalho. O próprio nome da fazenda “Ouro Verde” no romance destaca a imagem que os imigrantes construíam da propaganda disseminada antes e durante a imigração. Ao considerar a entrada deste número de pessoas, a diáspora, constituinte dos estudos pós-coloniais, é aplicada no sentido de observar está movimentação de um grande número de indivíduos, em que os personagens desta transição fazem um caminho no sentido do centro para as margens, uma “dispersão de uma origem” (Brah, 2002, p.181). A imigração, neste aspecto, não é apenas geograficamente um deslocamento de um grupo específico, mas também uma transposição do sujeito diaspórico de uma origem cultural e social para uma outra diferente e diversa. Esta imagem que o imigrante japonês cria sobre o “outro” (Said, 2003, p.28) é também uma marca recorrente nas falas dos personagens no início do romance e em vários trechos da obra, sendo também uma expressão da expectativa, do temor e de sua curiosidade: “Um país desconhecido, com homens estranhos, que podiam ser violentos [...]” (Nakasato, 2011, p.13). Da mesma forma, na chegada ao Brasil os imigrantes japoneses visualizam o cenário do porto, um primeiro contato com o desconhecido, projetando uma reação de estranheza e de diferença racial “[...] outras caras, criaturas estranhas, e principalmente a visão assustadora dos negros, [...]” (Nakasato, 2011, p. 17). Neste contexto, os personagens da imigração refletem este choque cultural, principalmente para um povo que vivia em um cenário hegemônico e cotidiano do Japão antigo. A questão multicultural da nação e a crise de identidade do imigrante japonês Em várias partes do romance o contato multicultural será um fator de convivência entre diferentes etnias. A escola simboliza um desses espaços e momentos de experiências multiculturais nas quais Haruo, filho de Hideo, protagoniza as primeiras cenas de questionamento de sua identidade. Esta personagem é também representante desta primeira geração de descendentes que nascem já no Brasil, e participam mais efetivamente de instituições e processos sociais do país, como a formação e educação. Haruo se sente dividido pelo fato que a sua própria imagem está associada a um perfil
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exterior e físico do estereótipo japonês e oriental, provocando neste sujeito em formação o seu questionamento sobre essa diferença, “Era diferente. Queria ser igual” (Nakasato, 2011, p.60). Ao mesmo tempo, o convívio familiar e principalmente a figura do pai, Hideo, representam a afirmação da cultura japonesa determinante sobre seus descendentes, “Você é quem seu pai quer que você seja. E você é nihonjin!” (Nakasato, 2011, p.67). Neste sentido, Haruo, como também outros personagens no romance, vivenciam esta “crise de identidade” (Hall, 2003, p.7), caracterizado como um sujeito deslocado e descentralizado, uma vez que ele sempre estará neste meio entre diversas culturas e perspectivas, que é representado também na fala de seu próprio irmão, Hitoshi, “Na escola você é brasileiro, em casa você é nihonjin.” (Nakasato, 2011, p.64). Hideo também tinha aquela influência nacionalista do Japão representada pela imagem do imperador, e por isso considerava os japoneses “filhos da nação”. Desta forma, negar ser japonês é negar a lealdade ao imperador e a sua nação e também uma identidade nacional que se mistura à identidade pessoal. Contudo, segundo Bhabha, “As nações tais como as narrativas, perdem suas origens nos mitos do tempo e efetivam plenamente seus horizontes apenas nos olhos da mente” (1990, p.1), ou seja, o sentido de nação estaria relacionado com narrativas constantes, já que seus mitos, tradições, contos, lendas e outras formas de narrativas, estão intrinsecamente enraizados na cultura, e por fim caracterizam uma “identidade nacional” (Hall, 2003, p.47). Hideo tentava preservar este contato com o Japão, com suas origens, o seu centro, e esta idealização se referia a sua terra natal, a sua “Homeland/Pátria” (Reis, 2004, p.43 apud Safran, 1991). Esse sentimento aparece em diversos momentos da obra, como na construção do ofurô, na hierarquia mantida da esposa perante o marido e no simbolismo da própria casa: “Em casa, Hideo ainda podia seguir fiel ao imperador japonês e às suas tradições que trouxera no navio que aportara em Santos” (Nakasato, 2011, p.92). Nesta perspectiva, ao reproduzir e priorizar seus costumes e tradições ele apresenta um comportamento de fidelidade a uma “comunidade imaginada” (Hall, 2003, p.51) do Japão que deixou. Adiciona-se também o período de fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, com a derrota do Japão e o pronunciamento de rendição pelo imperador, fatos cuja veracidade é negada pelos imigrantes japoneses que traziam o sentimento de orgulho e honra sobre o Japão. Tanto na narrativa quanto na história real, o fato ocasiona também a criação do grupo ultranacionalista da Shindo Renmei, que persegue Haruo, quando este afirma que o Japão perdeu a guerra, e o sentencia à morte: “Lave a sua garganta, traidor”. (Nakasato, 2011, p.131). Curiosamente, o romance termina com outra personagem de uma nova geração de descendentes, o neto de Hideo, que acaba inicializando um novo ciclo diaspórico quando decide viajar ao Japão para trabalhar. Neste movimento inverso, o processo da diáspora se assemelha ao modelo das diásporas modernas, em que pessoas de países considerados periféricos se deslocam aos países das metrópoles. Neste sentido, o próprio “movimento decasségui” (1980), motivado pelo chamado “Boom Econômico” ou “Milagre Econômico” durante as décadas de 1950 à 1980 representado no romance
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por Noboru, é caracterizado também pelo fator econômico da mão de obra necessária nesses países. Conclusões As novas literaturas abrem espaço para uma análise diversificada e abrangente aprofundando aspectos da diáspora, identidade e multiculturalismo. Nesse sentido, as personagens da imigração japonesa possibilitam uma abordagem do romance na relação entre o imigrante recém-chegado com o imaginário criado sobre o “outro” (Said, 2003, p.28). Desta forma, ao analisarmos as ações das personagens em meio a esse contexto histórico e da inserção do sujeito em diferentes culturas, a obra reflete um processo de inúmeros conflitos identitários internos e externos. Os conflitos na narrativa são representados mais marcadamente por Haruo, que busca conciliar sua identidade cindida entre a cultura brasileira e a tradição familiar japonesa. Enquanto isso, Hideo faz da tradição que traz do Japão sua comunidade imaginada, criando uma identidade nacional. Assim, o outro para Haruo era a identidade japonesa, que ele não reconhecia, ao passo que para Hideo, o outro era representado pela sociedade brasileira, que ele não reconhecia. Ao finalizarmos, observamos que a obra de Nakasato representa uma busca identitária de sociedades e culturas que o constroem a identidade, um questionamento de identidades pessoais e nacionais dentro da narrativa de sujeitos em um contexto diaspórico e pós-colonial. Referências BONNICI, Thomas. O pós-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. Maringá: Eduem, 2000. BRAH, Avtar. Cartographies of diaspora: contesting identities. New York: Routledge, 1996. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomás Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. 11 ed. , 1. reimp. - Rio de Janeiro: DP&A, 2011. NAKASATO, Oscar. Nihonjin, de Oscar Nakasato. Editora Benvirá. 2011. REIS, Michele. Theorizing Diaspora: Perspective on "Classical" and "Contemporary" Diaspora. International Migration, Oxford, Main Street Malden, v.42 (2). Blackwell, p.41-54, 2004. SAID, Edward W. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. BHABHA, Homi. Introduction. In: BHABHA, Homi (org). Nation and Narration. Londres , Routledge, 1990. SAKURAI, C. Imigração tutelada: os japoneses no Brasil. Campinas - SP: Unicamp, p.191, 2000.
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O TEXTO LITERÁRIO E AS ESTRATÉGIAS DE LEITURA NO LIVRO DIDÁTICO: UM ESTUDO DE CASO DO EXEMPLAR PORTUGUÊS LINGUAGENS – 6º ANO Simone Luciano Vargas (UFRGS)
Este trabalho refere-se à análise do Capítulo 1 do livro didático Português Linguagens – 6º ano, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, 6ª edição reformulada. No entanto, será analisado somente o que diz respeito à inserção e às atividades de compreensão dos textos literários constantes no livro didático. Com relação ao texto literário, o livro didático é visto como vilão; pois, segundo Kleiman e Moraes (1999, p. 75), é devido sua função de “introduzir conceitos, mediante sua definição, explicação e classificação, o que limita consideravelmente as possibilidades de construção intertextual”. Assim, por questões práticas inerentes ao livro didático, e principalmente por ser um suporte voltado para o ensino, as relações entre o livro didático e a literatura costumam ser conflituosas. Conflito este que se percebe na didatização que sofre o texto literário ao ser inserido no livro didático. Segundo Magda Soares (2011), é inevitável que esse texto sofra transformações devido à mudança de suporte com objetivos e funções divergentes da literatura. Ler diretamente no livro de literatura infantil é relacionar-se com um objetolivro-de-literatura completamente diferente do objeto-livro-didático: são livros com finalidades diferentes, aspecto material diferente, diagramação e ilustrações diferentes, protocolos de leitura diferentes. Isso não invalida o uso de textos literários nos livros didáticos, mas se faz necessário que “sejam respeitadas as características essenciais da obra literária, que não sejam alterados aqueles aspectos que constituem a literariedade do texto” (SOARES, 2011, p. 37). No que diz respeito as atividades previamente propostas, é difícil para o aluno preencher as lacunas do texto, já que se termina a leitura e responde-se a perguntas.
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Também há uma ausência de sistematização na prática pedagógica de apresentação do texto que proporcione aos alunos segurança e autonomia para compreendê-lo. A forma como o professor apresenta o texto influi na aceitação da obra literária pelo aluno. Como mediador de leitura, o entusiasmo do professor e seus comentários possibilitam que o aluno/leitor se interesse por determinados tipos de textos, autores e temáticas. No caso do livro didático, o professor tem de tirar partido dos elementos gráficos, dos boxes de informações, em suma, de todos os recursos visuais e gráficos disponíveis nas páginas do livro, pois são elementos de contextualização do texto e não estão ali por acaso. Assim, é necessário que o professor conheça bem o texto que irá trabalhar, não somente abrir o livro didático em aula e propor aos alunos a atividade. Teoria Como a abordagem da pesquisa se restringe à inserção de textos literários e o uso que o livro didático faz deles, cabe analisar se o livro Português – Linguagens mantém as especificidades do gênero aos quais os textos pertencem, explora a carga sócio histórica e ideológica do gênero e oportuniza aos alunos o exercício dessas especificidades por meio de atividades. “Se encerrarmos a obra literária na unicidade da língua como sistema, se a estudarmos como um monumento linguístico, destruiremos o acesso a suas formas como formas da literatura como um todo.” (BAKHTIN, 1997, p. 105), podendo desmotivar e afastar o aluno da literatura. Por outro lado, ao mostrarmos os vários aspectos de um texto literário e oportunizarmos sua reflexão sobre o texto, estaremos instigando o aluno a tirar suas próprias conclusões e as compartilhar com os colegas. O texto literário ganhará um novo sentido para eles ao estabelecerem relações com suas vivências. Dessa forma a literatura deixará de ser uma obrigação escolar para tornar-se, finalmente, objeto de fruição. Isabel Solé (1998), assim como Foucambert (2008), refere-se à necessidade de o leitor estar motivado para que a leitura se efetive. É necessário que haja um projeto, uma finalidade além da avaliação, objetivos definidos que façam sentido para o aluno/leitor. “Esses objetivos não determinam apenas as estratégias que se ativam para se obter uma interpretação do texto; também estabelecem o umbral de tolerância do leitor com respeito aos seus próprios sentimentos de não-compreensão” (SOLÉ, 1998,
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p. 41). O fato de ter dificuldades em apreender a significação do texto, de não conseguir relacioná-lo aos seus conhecimentos prévios e não ver um sentido prático que justifique o esforço cognitivo, pode desmotivar o aluno à leitura. Segundo Solé (1998), leitores experientes utilizam as estratégias de forma inconsciente. No entanto, os educadores não lidam com leitores experientes. Pelo contrário, cabe a eles a difícil tarefa de ensinar aos iniciantes a ler. A leitura é um processo cognitivo que se dá no interior do indivíduo. Mesmo que ele já saiba decodificar as palavras, isso não lhe garante a proficiência na leitura. Por isso, as estratégias servem como instrumentos para que o professor possa intervir e regular a aprendizagem do leitor. Para isso, é necessária uma preparação prévia, nada de improvisos quando a questão é leitura. Nesse sentido, Delaine Cafiero (2010, p. 94) afirma que “o professor, ao entrar na sala de aula, precisa saber que tipo de dificuldades os textos podem impor a seu aluno. [...] Conhecendo seus alunos e conhecendo o texto a ser lido, poderá propor estratégias de leitura que minimizem as dificuldades”. O que seriam estratégias de leitura? Segundo Cafiero (2010, p. 96), “estratégias são ferramentas cognitivas, mas que podem ser desenvolvidas por meio de atividades sistemáticas e bem planejadas”. As estratégias de leitura auxiliam o professor a construir atividades que visem à formação de leitores, independente do gênero textual. As estratégias de leitura, sugeridas por Cafiero (2010) a seguir, trabalham tanto a compreensão do texto quanto a materialidade linguística. Algumas estratégias, por se referirem a outros gêneros textuais, como quadrinhos e charges, não serão referidos neste artigo, porque o objetivo é analisar as atividades relacionadas aos textos literários no excerto do livro didático Português – Linguagens. A seguir apresentam-se alguns exemplos de estratégias de leituras. a) Fixar objetivos e contextualizar: situar o texto, falar sobre o autor, o momento em que o texto foi escrito, apresentar as imagens relacionadas ao texto, fazer perguntas hipotéticas a partir do título, das imagens. Fazer isso antes da leitura do texto. Quanto ao livro didático, observar se há informações sobre o autor do texto, o período histórico, boxes informativos, recursos visuais, etc. b) Colaborar para desenvolvimento de capacidade de leitura: a) localizar informações explícitas; b) propor perguntas-desafios para encontrar rapidamente as respostas no
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texto; c) criar métodos para que o aluno leia o texto até o fim; d) ensine o aluno a perceber as saliências do texto (recursos gráficos, como caixa alta, itálico, pontuação). c) Inferir sentido de palavras e expressões: a) trabalhar com textos lacunados para o aluno completar as informações; b) fazer atividades de pausa protocolada para que o aluno crie hipóteses, faça previsões, etc. c) levar o aluno à observação do assunto tratado para levantamento de palavras-chave; d) levar o aluno a refletir sobre o processo de formação dos vocábulos (afixos); e) fazer exercícios de adivinhar o sentido das palavras a partir do contexto; f) levar os alunos a interpretar de diferentes formas um mesmo texto mudando o contexto, a entonação, etc.; g) propor aos alunos que contêm oralmente uns para os outros os textos que leram. d) Identificar opiniões expressas no texto: a) conversar sobre os textos após a sua leitura, fazer comentários críticos sobre eles; b) localizar informações (em grupo ou individual) e, depois, falar qual a opinião deles sobre o fato; c) apresentar textos sobre o mesmo assunto e identificar as opiniões a respeito. e) Identificar a finalidade dos textos: levar os alunos a observar que a forma e a organização dos textos variam de acordo com sua função social. f) Relacionar imagem e texto: levar os alunos a criar hipóteses a partir de imagens e verificá-las pela leitura do texto escrito. g) Identificar a função do uso de articuladores: a) trabalhar com textos em que os elementos de articulação (conectores) são retirados propositadamente; b) trabalhar com os parágrafos fora de ordem. h) Estabelecer relações entre as partes de um texto de modo a (re)construir a continuidade temática: a) estimular o aluno, na leitura, a identificar os elementos da cadeia referencial; b) propor mudança para vocábulos repetidos, substituindo-os por sinônimos, pronomes, elipses, etc. i) Relacionar recursos expressivos e efeitos de sentido: a) chamar a atenção para os detalhes humorísticos dos textos; b) levar os alunos a perceber o inesperado, o inusitado, a repetição, a ausência; c) explorar o uso dos sinais de pontuação e de outras notações gráficas; d) explorar os efeitos de sentido na seleção de palavras; e) explorar os textos em que as palavras contêm erros ortográficos propositais.
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j) Perceber efeitos da variação linguística: a) comparar a fala de diferentes personagens, como criança x adulto, personagem que usa gíria x o que não usa; b) distinguir marcas que revelam diferentes dialetos; c) ressaltar as formas coloquiais e formais de uso da língua; d) identificar as intenções das marcas de variação linguística utilizadas no texto. k) Ler globalmente: a) discutir o texto coletivamente; b) pedir que os alunos recontem o texto oralmente; c) propor a criação de um novo título, de um esquema textual ou de resumos orientados. As estratégias mencionadas são apenas algumas possibilidades para explorar os textos em sala de aula. Na análise do Capítulo 1, do livro didático, será verificado estas e outras que por ventura venham constar no livro; já que não são inesgotáveis, pois dependem da criatividade humana.
Análise O capítulo I inicia-se com uma introdução logo após o título do capítulo “Era uma vez”, pelo título percebe-se que o capítulo versará sobre contos maravilhosos. Após o título há uma pequena introdução que faz menção a algumas características típicas de contos desse gênero e à forma como eles chegaram à atualidade. Depois consta integralmente o conto maravilhoso Senhora Holle, extraído do livro As melhores histórias de Irmãos Grimm & Perrault, cuja referência bibliográfica se encontra no final do texto. Junto ao conto estão dispostos desenhos coloridos que situam momentos da história: a menina loura olhando para dentro do poço, um poço, a senhora Holle junto à menina, uma bíblia. Todos esses elementos – introdução, referência bibliográfica, ilustrações – contextualizam a história. Há também um glossário com quatro palavras para facilitar a compreensão do texto. Como não há menção aos autores da história, além da referência bibliográfica, fica a cargo do professor fixar objetivos e contextualizar. Como a introdução ao histórico do gênero é sucinta, também o professor pode explorar esse “gancho” e oralmente falar mais sobre o assunto. Quanto ao uso dos desenhos, o professor deverá relacionar imagem e texto. Contudo o glossário pouco contribui para o desenvolvimento
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da capacidade de leitura, pois ao fornecer o significado das palavras impossibilita que se infira o sentido pelo contexto. Na seção Estudo do texto, Compreensão e Interpretação, constam sete perguntas sobre o texto. A primeira questão divide-se em quatro perguntas que tratam sobre a caracterização das personagens. Essas perguntas auxiliam no desenvolvimento de capacidade de leitura, já que tratam de localizar informações explícitas no texto. Entretanto a terceira pergunta apresenta um grau maior de complexidade, pois pergunta: “O que significa ser ‘a gata borralheira’ da casa?”. Para respondê-la, o aluno deverá ativar seus conhecimentos prévios sobre contos lidos e relacionar com a situação da protagonista na história. Caso tenha dificuldades para inferir o sentido da expressão, será necessária a intervenção do professor. Por vezes, no enunciado das questões, há uma longa explicação para orientar a resposta do aluno. É o caso da questão dois em que se pergunta sobre a opinião do narrador sobre as personagens. Essas explicações às vezes confundem os alunos, mas auxiliam muito o professor. Como estratégia de leitura, a questão possibilita a identificação de opiniões expressas no texto e força a releitura, porque é preciso comprovar a resposta com trecho ou palavras do texto. Ao lado dessa questão, encontrase um box informativo, cujo título é Heróis, vilões e outras personagens, que trata sobre os tipos de personagens: protagonista, antagonista e secundárias. A partir dessa informação, a próxima questão (três) já irá referir-se às personagens segundo o papel que desempenham no texto. Na questão três, o enunciado faz menção ao maravilhoso: uma das características do gênero; e explora as possibilidades de inferências por parte dos alunos sobre o caráter e sentimentos da personagem protagonista a partir de suas ações. Ao lado da questão, há a gravura de uma carruagem em forma de abóbora, inferência ao conto da Gata Borralheira (Cinderela) e ao mundo mágico mencionado no enunciado da questão. A questão quatro trata sobre o período em que a protagonista permaneceu na casa da senhora Holle. Nessa questão é possível verificar a estratégia de levar o aluno à observação do assunto tratado para levantamento de palavras-chave. A questão se divide em três perguntas: pergunta A possibilita que o aluno faça comparações em
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diferentes momentos da história; pergunta B é uma continuação do assunto tratado na A; pergunta C trata sobre características da personagem, mas o aluno deverá escolher entre seis palavras previamente selecionadas, todas de caráter subjetivo (substantivos abstratos). Na questão cinco, são extraídas duas frases do texto, cuja observação deverá ser feita pelos alunos para após responder a duas perguntas. As perguntas fazem referência às diferenças de caráter das personagens do texto. Os alunos devem, a partir das ações dos personagens, inferir sobre as suas personalidades. São perguntas complexas e subjetivas, pois tratam dos subentendidos implícitos nas ações das personagens dependentes do contexto enunciativo. Como estratégia de leitura, a mais próxima é Identificar opiniões expressas no texto, no entanto, dentro desta categoria é possível incluir localizar informações implícitas no contexto enunciativo (subentendidos). A questão seis mantém o mesmo objetivo da questão cinco. No entanto, agora é preciso comparar o comportamento das duas irmãs na casa da senhora Holle, e responder à pergunta A quais características revelam o caráter da filha legítima. Até o momento, as perguntas são lineares às ações da história. No entanto, na pergunta B, torna-se circular já que o aluno deve relacionar sua resposta com a opinião do narrador, já verificada na questão dois. A questão sete refere-se à moral da história. Em seu enunciado menciona que “os contos maravilhosos geralmente transmitem ensinamentos a crianças e adultos”, introduz assim uma característica da estrutura do conto maravilhoso. Levando o aluno a identificar a finalidade do texto. A Linguagem do texto, subseção do Estudo do Texto, contém quatro questões. Nesta subseção, vê-se que a proposta é trabalhar com a materialidade linguística, e o conteúdo abordado é a estrutura do texto. As questões possibilitam a releitura do texto. A primeira questão tem duas perguntas e trata sobre as partes do texto, como os parágrafos. No enunciado, há uma explicação sobre o que seriam os parágrafos e como se estruturam. Os alunos devem responder quantos parágrafos existem e localizar uma informação em um parágrafo. A questão dois divide-se em duas perguntas e trata sobre como identificar as frases no texto. Para responder a questão três, deve-se ler um box informativo sobre os tipos de frase e identificá-las no texto. Na questão quatro, é possível relacionar recursos expressivos e efeitos de sentido já que se trata do sufixo –
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inho(a) e os efeitos de sentido que causa a partir do contexto; também leva o aluno a refletir sobre o processo de formação dos vocábulos. Para isso são retiradas três frases do texto em que contêm palavras no diminutivo. A questão quatro está deslocada, já que do conteúdo “estrutura do texto” passa-se a tratar de morfologia e semântica. Serão necessários mais exercícios de sistematização para que o aluno venha a incorporar esses conhecimentos. Em Trocando ideias, retorna-se ao texto. Agora, a proposta é responder perguntas sobre o tratamento dispensado às irmãs pela mãe e a senhora Holle. Como estratégia de leitura é o momento de fazer comentários críticos e localizar informações para depois opinar sobre o texto. Deduz-se pelo título da subseção que se deve trabalhar em grupo ou, talvez, responder oralmente. Na seção Produção do Texto, O conto maravilhoso, há onze perguntas referentes às partes do enredo de uma narrativa e às características específicas do conto maravilhoso. Quanto às estratégias de leitura, esta seção trabalha com a identificação da finalidade do texto, já que trata sobre a organização externa e interna. Antes de introduzir a pergunta, há sempre um enunciado informativo sobre o que será perguntado. Assim, a pergunta um refere-se ao contexto situacional da história: a introdução ou apresentação da história; ou seja, tempo e espaço. A pergunta dois, referese à complicação ou conflito. A pergunta três, refere-se aos elementos mágicos presentes no conto. A pergunta quatro aponta o final da história como característica do gênero literário analisado. A pergunta cinco refere-se às situações comuns ao gênero, inclusive cita o estudioso da morfologia do conto popular, Wladimir Propp; no livro didático, selecionaram 13 funções em que o aluno deve identificar quais têm relação com o enredo do conto Senhora Holle. A pergunta seis refere-se às características mágicas ou fantásticas dos personagens, objetos ou lugares comuns aos contos maravilhosos. A pergunta sete refere-se ao tipo de narrador. No corpo da questão há a indicação para a leitura do box informativo: Quem conta a história?, que conceitua o narrador-personagem e o narrador-observador. A pergunta oito indica a leitura de determinado trecho com verbos destacados para os alunos identificarem o tempo verbal da narrativa. Na pergunta nove, refere-se à função dos diálogos na narrativa. A dez, com o tipo de linguagem predominante: norma-padrão ou variedade linguística. Para
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encerrar, a questão onze propõe que os alunos reúnam-se em grupos e respondam “quais são as características do conto maravilhoso?”. Após as várias perguntas, na subseção Agora é a sua vez, supõe-se que o aluno esteja preparado para produzir o seu conto maravilhoso. A proposta desta seção é que seja feito em grupo ou individualmente para posterior publicação em um livro de contos a ser apresentado aos pais e convidados em uma mostra na escola. Este seria o projeto motivador para que os alunos leiam o conto, respondam às perguntas e produzam o texto. Nesta subseção, há um passo-a-passo e sugestões de temas para a confecção do conto, inclusive propõe a reescrita do conto e a sua autoavaliação a partir do box informativo: Avalie seu conto maravilhoso. CONCLUSÃO Na análise do Capítulo 1, pode-se perceber que as atividades propostas na seção Estudo do texto introduz a carga sócio histórica do conto maravilhoso, mas necessita da intervenção do professor para desenvolver o tema. Já no que diz respeito a carga ideológica do gênero, as questões três a sete, na seção estudo do texto, direciona o aluno a concluir a moral da história. Os boxes informativos introduzem conceito, explicação e classificação: tipos de personagens, narrador, tipos de frase, avaliação do conto. Sempre associados a uma questão a ser respondida. Além disso, os enunciados das questões também introduzem conceitos. Tudo para orientar os alunos. No entanto, a demanda de informação a ser assimilada é grande, e o tipo de linguagem utilizada nos boxes dificulta a compreensão por parte dos alunos. Os boxes e as longas explicações favorecem mais ao professor. Por tratar-se de um conto curto, Senhora Holle não sofreu, no processo de didatização, nenhuma adaptação que viesse a prejudicar a literariedade do texto. O uso de ilustrações sobre a história, se bem exploradas pelo professor antes da leitura do texto, pode contribuir para sua compreensão, mesmo que não tenham a qualidade das ilustrações de um livro de literatura. As atividades, por meio de questões, mostram os vários aspectos do texto; porém, muito se assemelham a fichas de leitura. A reflexão que os alunos devem fazer sobre o texto é direcionada até atingir as conclusões prévias induzidas pelas questões.
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Para que haja liberdade para a reflexão e, consequentemente, o compartilhar com os colegas, faz-se necessária a intervenção do professor ao propor outras atividades paralelas, menos maçantes que apenas responder a perguntas. Vê-se claramente que o percurso proposto pelas perguntas, após a leitura do texto, tem por objetivo a produção de um texto, como incita a subseção Agora é a sua vez. Supõe-se que munido das informações necessárias quanto à tipologia, à linguagem, às partes do texto, características essas específicas do gênero, o aluno estará pronto para produzir o texto. No entanto, falta a sistematização do conteúdo, pois é muita informação de forma condensada – como não poderia deixar de ser devido ao suporte – para ser assimilada. O livro didático é um suporte, um instrumento para o professor utilizar em sala de aula. Ele por si só não ensina (a não ser aos autodidatas), sendo necessária a intervenção do professor. Entretanto, esse suporte influencia o trabalho do professor: orienta sua metodologia e amplia seus conhecimentos. Cabe ao profissional da educação uma posição frente o uso que ele fará do livro didático.
Referências BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 8.ª ed. São Paulo: Hucitec, 1997. CAFIERO, Delaine. Letramento e leitura: formando leitores e críticos. Língua Portuguesa: ensino fundamental. Coleção Explorando o Ensino. V. 19, p. 85-106, Brasília: Ministério da Educação, 2010. CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português Linguagens – 6º ano. 6ª edição reformulada. São Paulo: Atual, 2010. FOUCAMBERT, Jean. Modos de ser leitor: aprendizagem e ensino da leitura no ensino fundamental. Curitiba: UFPR, 2008.
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KLEIMAN, Angela; MORAES, Silvia. Leitura e interdisciplinaridade: tecendo redes nos projetos da escola. Campinas: Mercado de Letras, 1999. SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA, Aracy A. M.; BRANDÃO, Heliana Maria B.; MACHADO, Maria Zélia Versiani. A escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantil e juvenil. 2.ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 17-48. SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6.ª ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.
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LEITURA LITERÁRIA: A PROVA DE LITERATURA EM LÍNGUA PORTUGUESA NO PROCESSO SERIADO PAS-UEM Sirlei Cardoso Cordeiro Vimieiro (PG-UEM) Mirian Hisae Yaegashi Zappone (UEM) Introdução A Universidade Estadual de Maringá (UEM) é uma das instituições de ensino superior mais respeitada na região norte e noroeste do Paraná. Isso tem gerado bastante procura por seus cursos e, consequentemente, uma concorrência muito grande, o que se comprova pelo grande número de inscrições de candidatos que pleiteiam uma vaga. E, devido a essa razão, surgiu o desejo de fazermos um estudo a respeito do Processo Avaliação Seriado - PAS, que teve sua implantação em 2009 com a aplicação da prova da primeira etapa que seria continuidade nos anos seguintes. O processo abrange todas as séries do nível médio. Ao final de cada uma delas, o aluno presta exames e a pontuação obtida nessas provas é cumulativas às demais avaliações das etapas subsequentes. Assim, ao invés de o aluno fazer um só exame ao final do terceiro ano, como ocorre no concurso vestibular convencional, ele participa de avaliações seriadas, as quais contemplam conteúdos específicos da série em que o aluno está matriculado no ensino médio. Nesse sistema de avaliação, o candidato tem a oportunidade de acumular os pontos obtidos em cada uma das etapas prestadas para a composição do escore final utilizado para a classificação ao curso pretendido. Em 2010, implantou-se a etapa 2ª e somente em 2011 as três etapas foram implantadas. É por esta razão que o corpus de nossa pesquisa abarca, portanto, as provas de Literatura a partir do ano de 2011 a 2013, uma vez que apenas em 2011 as três etapas passaram a ser realizadas em único processo. O estudo das provas começou a partir da análise das questões presentes nestes concursos. Compreende-se, a partir das propostas de Batista e Galvão (1999), que a leitura é uma atividade produtora de significados. Estudos recentes afirmam que há mediações de vários níveis entre texto e leitor. As relações entre objetos de leitura e grupos sociais são
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muito mais complexas do que podemos imaginar. A história da leitura tem buscado focalizar os modos de leitura, ou melhor, as diferentes apreensões que grupos sociais distintos faziam de textos iguais. Os estudos da leitura tentam entender como condições histórico-sociais particulares fazem emergir modos de ler e significações que não são tributárias à essência do texto. Roger Chartier (1999) defende a importância da participação do leitor na produção de sentido do texto, portanto falar de leitura, necessariamente, implica falar de leitor, já que são os envolvidos na construção de significados plurais das obras literárias. A pluralidade nasce dos conhecimentos de cada leitor diante, até mesmo, das mesmas leituras. A leitura é uma atividade criativa, variável no tempo e no espaço e pode ou não fugir das amarras impostas pelos textos/autores. Entretanto, quando observamos a leitura produzida na escola, esta parece ser muito mais uma confirmação de sentidos pré-existentes do que uma interação efetiva entre leitores e autores. No caso da leitura de textos literários, a assimetria texto/leitores se torna ainda mais dogmática. Foi a partir destas inquietações, particularmente da contraposição entre leituras soltas ou “vadias”, como menciona Chartier (1999), e das leituras bem “comportadas” e metódicas da escola, que surgiu o interesse em pesquisar a leitura de textos literários na escola de ensino médio brasileiro, a partir de uma avaliação institucional, o PAS-UEM. De acordo com Chartier (1999, p. 7), o leitor é confrontado por um conjunto de regras. De um lado, o autor, o editor, o comentador. Todos tentam controlar os sentidos de compreensão dos leitores diante de um texto sem que haja alguma variação, como se o texto tivesse um sentido estático. Por outro lado, está a leitura, considerada pelo crítico como rebelde, isto é, possui sua própria força, porque não há como controlar o potencial de sentidos possíveis que um texto poderá obter de seus leitores. A leitura literária deve despertar sentidos entre leitor-mundo, visto que alcançar este objetivo fará com que ela seja alvo de interesse desse viajante do mundo do texto. Conforme Chartier (1999, p. 8), cada livro visa instaurar uma ordem: a de sua decifração e a de sua compreensão. Esta ordem não tem poder de anular toda ou qualquer liberdade que o leitor tenha sobre a leitura, mesmo sendo controlada pelas convenções. Essa liberdade se desvia e permite reformular as significações. A
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imposição de limites e a liberdade não são iguais em todo lugar e nem para todos, dependerá da leitura e de cada leitor. Assim, um texto só existe se existir um leitor para dar a ele significado (CHARTIER, 1999, p. 8). O autor enfatiza que a leitura não está inscrita (apenas) no texto e, sabemos que pode haver ordens e hierarquias ditadas por eles, todavia, as obras ganham densidade quando escapam e percorrem caminhos diferentes através do mundo social. O significado de uma obra dependerá da recepção das comunidades leitoras. Se forem decifradas, é possível que se tornem um recurso para pensar o essencial, por exemplo, a construção de valores. Ainda, segundo o autor (1999), aqueles que são capazes de ler textos não o fazem da mesma maneira, há diferença entre letrados talentosos e os leitores menos habilidosos. Há contrastes igualmente entre normas de leitura que definem, para cada comunidade de leitores, usos do livro, modos de ler, procedimentos de interpretação (CHARTIER, 1999, p. 13). Há contrastes entre os diversos interesses e expectativas com os quais os diferentes grupos de leitores investem na prática de leitura. Dessas determinações que exatamente governam as práticas de leitura dependem das maneiras pelas quais os textos podem (devem) ser lidos. E lido por leitores que não dispõem das mesmas ferramentas intelectuais, e que mantem diferentes relações com os textos escritos. Neste sentido, passamos a discorrer sobre a leitura proposta pela escola para o texto literário. Uma primeira consideração sobre o letramento literário praticado na escola diz respeito à seleção e valorização dos textos considerados literários. Como a escola se constituiu num dos aparelhos da cultura letrada, os textos por ela divulgados e estudados pertencem a esta mesma cultura. Por essa razão, a literatura da escola é a mesma que figura nas histórias da literatura consagrada pela tradição. Sendo este o conjunto de textos estudados na escola, articula-se para eles uma leitura específica também alinhada à história de leitura desses textos canônicos: trata-se da leitura literária, ou seja, uma leitura definida por normas, modos e procedimentos de interpretação características de uma comunidade específica - a dos leitores letrados. Como assevera Chartier (1999), grupos/leitores costumam desenvolver práticas de leitura orientada por interesses e expectativas específicas, o que patrocina diferentes modos de leitura. Nesse sentido, a leitura da escola, alinhada aos interesses e
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expectativas de grupos majoritários e letrados, propõe para seus alunos que leiam os textos literários de modo muito particular. Em suma, a escola pretende formar um leitor literário. Mas, quais seriam as características de tal leitura? Para compreender a leitura de escola, que se alinha à leitura de classes letradas, o conhecimento da leitura efetivada por críticos literários oferece bases concretas que subjazem à leitura escolar. Para que a escola consiga formar leitores, é necessário, primeiramente, que estipule o tipo de leitor que quer formar, pois para formar o leitor literário, segundo Hansen (2005), é preciso que este conheça os códigos que regem a escrita literária, e que saiba se posicionar como um receptor apto para refazer os processos autorais que produziram a ficção: “a leitura literária é uma experiência do imaginário figurado nos textos feita em liberdade condicional. Para fazê-la, o leitor deve refazer [...] as convenções simbólicas do texto, entendendo-as como procedimentos técnicos de um ato de fingir” (HANSEN, 2000,
p. 26). O produtor de um texto, ao fazê-lo, tem em seu
imaginário um destinatário e o leitor real, esse nem sempre corresponde ao imaginado pelo autor. Para que ele se configure em destinatário específico, é importante que haja uma coincidência mínima entre o leitor intratextual criado pelo autor e o leitor real: Idealmente, o leitor deve coincidir com o destinatário para receber a informação de modo adequado. Essa coincidência é prescrita pelos modelos dos gêneros e pelos estilos, que funcionam como reguladores sociais da recepção, compondo destinatários específicos dotados de competências diversificadas; mas a coincidência é apenas teórica, quando observarmos o intervalo temporal e semântico existente entre destinatário e leitor. Assim, a leitura literária é uma poética parcial ou uma produção assimétrica de sentido (HANSEN, 2005, p. 19-20).
Antonio Candido (1981) ao abordar os elementos de compreensão que devem ser levados em conta na atividade crítica, também nos fornece os parâmetros da leitura literária. Para ele, há alguns fatores que devem ser observados na leitura do texto literário: os fatores externos - aspectos sociais que circundam a produção da obra; os fatores individuais - aspectos relacionados ao autor da obra, suas marcas individuais de criação literária, inserção histórica e seus aspectos biográficos e, finalmente, o texto: Quando nos colocamos ante uma obra, ou uma sucessão de obras, temos vários níveis possíveis de compreensão, segundo o ângulo em que nos situamos. Em primeiro lugar, os “fatores externos”, que a vinculam ao tempo e se podem resumir na designação de sociais; em segundo lugar, o “fator individual”, isto é, o autor, o homem que a intentou e realizou, e está presente no resultado; e finalmente, este resultado, ‘o texto’ contendo os elementos anteriores e outros
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específicos, que os transcendem e não se deixam reduzir a eles (CANDIDO, 1981, p. 34).
Reforça o crítico que temos ainda outro aspecto importante na leitura do texto
literário, ou seja, toda obra literária é uma forma ficcional que consegue modelar por meio de sua forma a realidade humana: Uma obra é uma realidade autônoma, cujo valor está na fórmula que obteve para plasmar elementos não literários: impressões, paixões, ideias, fatos, acontecimentos, que são a matéria-prima do ato criador. Sua importância quase nunca é devida à circunstância de exprimir aspecto da realidade, do social ou individual, mas o modo como ele o faz (CANDIDO, 1981, p. 34).
Ao abordar também a leitura literária, Flávio Aguiar (2000) acrescenta que a
leitura do texto literário prescinde da observação do que chamou de decoro particular dos textos literários, ou seja, ela tem condições básicas de conhecimento das normativas que regem a produção das composições literárias. Desse modo, ler literariamente significa conhecer e interpretar tais regras: Toda obra de arte impõe um decoro particular. No nível mais simples, diríamos: de personagens cômicos, esperamos gestos cômicos; de trágicos, trágicos; e assim diante. Mas há mais complexas, veremos seres- [...] - os personagens – muito parecidos conosco, as pessoas, digamos, reais. Mas eles não são como nós. Não agem, no fundo, como nós. Pode-se dizer que são melhores que nós. Não padecem da inocência do nosso cotidiano. [...] Na arte, o vilão será sempre mais virtuoso do que o mais virtuoso santo na vida real. Há um comportamento, portanto, que é próprio desse mundo, e que só a ele pertence. A esse conjunto de expectativas geradas e de gestos que com elas estejam de acordo, chamamos decoro. Um conceito fundamental para entender o valor de uma obra literária, até porque hoje muitos efeitos surpreendentes derivam de quebras pertinentes do decoro que geram ironias e despertam a reflexão (AGUIAR, 2000, p. 21).
Aguiar usa aqui o termo decoro para envolver todas as normas ou convenções
específicas dos diversos tipos de textos literários. Sendo assim, a leitura literária seria aquela realizada por um leitor capaz de reconhecer os gêneros literários, suas variáveis, seus modos de composição, e suas marcas específicas. A leitura do texto proposta pela escola caracteriza-se por ser uma prática de letramento muito específica por se tratar de uma comunidade de leitores particular. Nesta comunidade, professores de literatura têm o objetivo de formar um leitor literário, cujas práticas de leitura se alinhem a protocolos da leitura letrada: aquela que lê em voz silenciosa, que sabe apreciar o valor cultural e histórico dos textos, que conhece as convenções da escrita literária e os estilos próprios de diferentes épocas históricas. Por
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isso, seriam capazes de reconhecer os artifícios de fingimento elaborados pelos escritores na produção de suas obras. Possível ou não, a leitura literária na escola, assim pressupõe, mesmo que a realidade de leitura dos alunos a desminta. A prova de língua portuguesa e literatura no Concurso PAS-UEM Buscamos compreender a leitura literária pressuposta no exame do PAS-UEM. No caso da prova de literatura, assim como as demais provas do PAS ou de qualquer outro vestibular, trata-se de práticas emolduradas pelas instituições sociais como as escolas e permeadas pelas relações de poder, já que alunos e professores possuem uma série de pressupostos tanto sobre a natureza dos textos a serem avaliados, quanto sobre os modos como deve ser esta leitura. Tendo como premissa a leitura literária na prova de literatura do PAS-UEM, nosso estudo procurou verificar quais são as características desta prova, observando o conjunto de conhecimentos solicitados dos estudantes e as concepções de leitura presentes na formulação das questões. Para uma melhor compreensão de cada uma das categorias de análise criadas a partir da leitura das provas, passa-se, a seguir, a uma apresentação do modo como tais conhecimentos foram aplicados nas provas de literatura do PAS-UEM. Com relação ao “conhecimento geral da obra”, categoria de questões mais presentes nas provas (36 proposições eram relativos a ela), foram observadas questões nas quais os elaboradores apresentavam conteúdos sobre os textos literários que tinham como objetivo verificar o conhecimentos dos estudantes sobre aspectos específicos das obras e que pressupunham a leitura do texto, na tentativa de que sejam valorizados os estudantes que, efetivamente, realizaram a leitura do texto. Tal leitura é requerida por meio de questões que apresentam dados pontuais dos textos, seja em relação à fábula, no caso de narrativas ou de outros elementos literários, aplicados à obra selecionada na questão. É o que se nota abaixo, em relação à obra Dom Casmurro, na qual o candidato deve saber o tipo de narrador do texto, qual personagem se configura como narrador, bem como aspectos relativos à fábula: (02) “Dom Casmurro, romance narrado em primeira pessoa, adquire um tom confidencial. O foco interno subjetivo, porém, não é confiável porque o leitor tem apenas uma versão dos fatos. As incertezas
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geradas pelo ciúme de Bentinho não são comprovadas ao longo da narrativa.” (PAS-UEM, Q25-E3-12).
O
segundo
grupo
de
conhecimentos
mais solicitados foi relativo
aos
“conhecimentos de estilos individuais dos autores”, presentes em trinta e duas assertivas (32). Esperam-se, com as questões, que o aluno/candidato demonstre conhecimentos sobre o autor ou, em outras palavras, conhecimentos sobre os chamados aspectos individuais, tal como propõe Candido (1981, p.34), ao mencionar os elementos de compreensão da obra literária na introdução de sua Formação da Literatura Brasileira. O crítico menciona o conjunto de conhecimentos sobre o homem que criou e realizou a obra literária e os traços peculiares do autor como “fator individual”. Assim como os fatores externos (aqueles que relacionam a obra ao seu momento histórico de produção), os fatores individuais se manifestam na obra enquanto resultado do ato criador. Várias assertivas das questões de literatura do PAS-UEM referiam-se ao conhecimento do estilo individual de composição dos autores, como se nota nas assertivas a seguir: “(04) A prosa concisa e irônica do romance Dom Casmurro demonstra a capacidade de Machado de Assis para analisar psicologicamente as personagens. Utiliza recursos artístico-literários como discurso indireto livre, leitor incluso e microrrealismo psicológico.” (PAS-UEM, Q25-E3-12).
Para responder a prova, os candidatos devem conhecer o estilo de prosa característico de Machado de Assis, na qual a ironia e a concisão são recorrentes. Ao
mesmo tempo, precisa ter lido ou conhecido uma de suas características narrativas mais marcantes, a saber, a interlocução frequente com o narratário (leitor incluso). O terceiro grupo de conhecimentos solicitados nas provas de literatura do PASUEM foi aquele denominado neste trabalho como “compreensão semântica do texto”. Como já abordado, trata-se, na verdade, de questões que requerem do aluno a compreensão dos sentidos presentes em excertos dos textos literários ou em seu todo. Esse conhecimento é aferido por meio de assertivas que tem como base um texto literário ou partes dele sobre as quais os elaboradores realizam atividades de leitura do nível
semântico,
objetivando
verificar
a
compreensão
do
aluno
sobre
o
trecho/excerto/obra em questão, como aparece no exemplo a seguir, que tem por objeto a Carta de Caminha:
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(01) O texto revela que, desde os primeiros contatos com os silvícolas no Brasil, os descobridores previram grandes dificuldades no processo de colonização, notadamente, em razão das atitudes “belicosas” como foram recebidos pelos habitantes do novo mundo. (PAS-UEM, Q34-E1-11).
Normalmente, nessas questões, não é necessário que o aluno demonstre conhecimentos específicos sobre o discurso literário, pois a compreensão semântica
pode ser realizada a partir de elementos textuais relativas à organização sintática e semântica dos textos. O quarto grupo de questões mais solicitadas na prova de literatura do PASUEM, presente em 30 assertivas, refere-se ao “conhecimento dos diferentes estilos de época” que marcaram a literatura brasileira. Embora os textos e autores constantes no Manual do Candidato sejam apenas indicações dos textos que podem ser objeto de questões, de modo que outros autores e períodos literários podem também ser cobrados, observa-se que as provas do período investigado (2011-2013) ativeram-se apenas aos textos e autores indicados. Evidentemente, há um recorte temporal desses estilos para cada uma das etapas, a fim de caracterizar a avaliação seriada. Assim, na primeira etapa, são objeto de questões: o Quinhentismo, o Barroco e o Arcadismo. Para segunda etapa, Arcadismo, Romantismo e Realismo. Na terceira etapa, do Arcadismo às tendências contemporâneas. Ressaltamos a ausência do Naturalismo. As questões relativas aos conhecimentos sobre as “convenções dos diferentes estilos de época” buscam, no PAS-UEM, trabalhar com aspectos genéricos dos estilos e que são recorrentemente trabalhados em materiais didáticos. Objetivam, também, verificar o conhecimento dos candidatos sobre alinhamento dos autores e obras aos diferentes estilos literários. Além disso, embora implique um conhecimento muito específico do discurso literário e artístico, seu grau de complexidade é pequeno, como se observa nas assertivas citadas a seguir, a propósito, respectivamente, de Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga e de Gonçalves Dias: “(01) Para Tomás Antônio Gonzaga, representante da poesia árcade no Brasil, a natureza simples – sítios formosos, prados, rio – é local de refúgio ideal, reconhecido pelo esquema árcade denominado “locus amoenus”. (PAS-UEM, Q35-E1-11).
A quinta e última categoria de conhecimentos encontrada na prova de literatura refere-se aos conhecimentos “relativos à metrificação/versificação” que, como frisamos,
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pertence ao mesmo grupo dos conhecimentos específicos sobre as obras. Entretanto, como houve um número significativo de assertivas sobre este aspecto, elas foram consideradas de modo particular. A presença de questões sobre versificação e métrica foram relativamente recorrentes e evidenciam que, por parte dos elaboradores, o conhecimento das regras da composição poética são importantes na leitura do texto literário, ainda que nas provas/assertivas não se observe uma correlação entre
esses
aspectos composicionais e sua funcionalidade ou sentido nos textos literários. Algumas assertivas ilustram a presença destes conteúdos no exame do PAS e mostram que os candidatos precisam conhecer os processos de escansão, os nomes específicos dos tipos de verso quanto ao número de sílabas métricas, bem como as características das principais formas poéticas (soneto, madrigal, elegia, ode) e classificação dos tipos de rima: “(04) O fragmento em questão compõe-se de versos octossílabos graves: “Esta oculta paixão, que mal suspeitas,/ Que não vês, não supões, nem te eu revelo”. As rimas internas são alternadas e emparelhadas: vale/grande; sofro/amo/temo.” (PAS-UEM, Q33-E211).
A análise das questões e assertivas da prova de literatura do exame PAS-UEM permite observamos a presença de conhecimentos bastante específicos sobre o discurso literário, a saber, sobre os estilos de escrita predominantes em diferentes momentos históricos, sobre as convenções particulares da escrita literária, o que engloba conhecimentos sobre os diversos gêneros de composição (lírica, dramática, narrativas etc.), conhecimentos sobre as características individuais dos escritores. Trata-se, portanto, de uma prova que pressupõe um leitor iniciado no universo da teoria, da historiografia e da crítica literária, mesmo que por meio de materiais didáticos e ainda que estes conhecimentos não sejam abordados de modo complexo ou exaustivo, como se notou pela leitura das assertivas presentes nas provas. O fato que consideramos importante nesta análise é que a prova de literatura, enquanto uma prática de letramento, pressupõe um interlocutor que tenha um conhecimento
compartilhado
universitários).
Este
com
conhecimento
os
elaboradores
compartilhado
seria
(professores os
de
literatura
conhecimentos
acima
descritos, relativos à teoria e historiografia literária. Além disso, subjaz à prova a premissa de que os alunos consideram os textos e autores indicados como
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representantes da cultura letrada e como exemplos do patrimônio cultural e literário brasileiros, razão pela qual são escolhidos como exemplares da literatura nacional, como exemplos de textos de alto valor estético e que, por isto, devem ser conhecidos pelos candidatos. Entretanto, nem sempre os candidatos compartilham as expectativas dos elaboradores das provas, de modo que a prática de letramento que se efetiva nesta prova de literatura pode se caracterizar por um confronto entre as concepções partilhadas entre alunos (que podem não considerar os autores e textos como exemplos de alto valor estético) e os elaboradores (representantes da cultura letrada que se quer legitimar na prova). Todavia, como se trata de uma relação assimétrica, pois os alunos são os candidatos que aceitam tacitamente o formato da prova e do exame PAS como um todo, resta a eles acatar estes pressupostos se almejarem ter um resultado positivo. Portanto, trata-se de uma prática de letramento na qual há um modelo de leitura já constituído, cabendo aos candidatos a ele aderir. Para que a literatura possa desempenhar seu papel emancipador, cremos que os modos de leitura do texto literário patrocinados pela escola e que são reflexos, em menor ou maior intensidade, da leitura pressuposta nos exames para ingresso aos cursos superiores, ou seja, a leitura literária precisa ser repensada no contexto da escola de nível médio. Uma das possibilidades seria a escolha de textos da tradição literária, mas que se centrassem nos autores mais contemporâneos aos estudantes. Outra possibilidade seria patrocinar uma leitura na qual a abordagem de elementos teóricos fosse apenas instrumental, ou seja, que esses elementos fossem focalizados sem uma metalinguagem específica da teoria literária e apenas na medida em que fossem necessários para a leitura do texto. Nesse sentido, seria importante verificar quais são os aspectos que realmente importam (Em que medida conhecer o nome dos diferentes tipos de verso contribui para a leitura de um poema?). E, finalmente, cremos que o aluno deve experimentar, na escola, a leitura de textos que pertençam a diferentes tradições culturais e não apenas os textos canônicos, eleitos como textos estéticos, segundo os parâmetros da cultura letrada. A leitura de outros textos permitiria não só o confronto entre culturas, mas a problematização dos
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modos de ler típicos de cada texto. Afinal, como pondera Chartier (1999, p. 12), “há variações que diferenciam os ‘espaços legíveis’ – isto é, os textos nas suas formas discursivas e materiais – e as que governam as circunstâncias de sua “efetuação” – ou seja, as leituras compreendidas como práticas concretas e como procedimentos de interpretação.” Para o autor, os textos não possuem uma significação que se origina unicamente na construção linguística e semântica dos textos. As maneiras de ler são determinadas também pelas “disposições específicas que distinguem as comunidades de leitores e as tradições de leitura” (CHARTIER, 1999, p. 13). Considerações finais Cremos que os modos de ler literatura na escola precisam ser problematizados e situados para os alunos, a fim de que compreendam a leitura literária no interior de uma tradição de leitura que promove uma determinada cultura – a letrada, à qual ele pode ou não aderir e um conjunto de textos considerados dignos de serem lidos, que ele pode ou não apreciar. Desse modo, as aulas de literatura patrocinariam não só a leitura crítica dos textos, como também uma leitura crítica dos modos de ler. Nessa modulação do tema leitura, os alunos poderiam perceber que os textos literários podem, inclusive, ser lidos de outras maneiras que não aquelas propostas pela escola, já que existem códigos e convenções diferentes que regem as práticas de leitura ou os letramentos. Como seria ler um texto canônico utilizando os procedimentos de interpretação que os alunos utilizam para ler textos ficcionais não canônicos? E como seria ler textos não canônicos com procedimentos interpretativos utilizados na leitura de textos canônicos? Ao finalizar este trabalho pudemos observar, a partir do corpus estudado, que a concepção de leitura pressuposta nas questões alinha-se ao que se denominou neste trabalho como leitura literária. Partindo de códigos e convenções específicas oriundas da crítica, da historiografia e da teoria literária, esta leitura se efetua por meio do cruzamento dos sentidos dos textos com sentidos outros que pré-existem aos textos: o conhecimento dos estilos de época que predominaram nos textos literários, o conhecimento das particularidades criadoras dos autores, a inserção dos autores no campo literário, o conhecimento das convenções da escrita literária (particularmente em relação aos gêneros e suas marcas estilísticas e discursivas). Tal leitura pretende não
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apenas preparar os estudantes para suplantar os exames vestibulares e similares, mas também manter viva uma tradição de leitura que se adequa aos textos da tradição que, por sua vez, tende a manter as escolhas literárias das elites letradas que traduzem, sob critérios denominados estéticos, escolhas que são, antes de mais nada, políticas. REFERÊNCIAS AGUIAR, F. As questões da crítica literária. IN: MARTINS, M. H. Outras leituras. São Paulo: Itaú Cultural/SENAC, 2000, p.19-35. BATISTA, A. A. e GALVÃO, A. M. Leitura: práticas, impressos, letramentos. Coleção Linguagem & Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. CANDIDO, A. Introdução. In: Formação da literatura no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981, PP. 23-37. CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII / Roger Chartier; tradução de Mary Del Priori – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. HANSEN, J. A. Reorientações no campo da leitura literária. In: ABREU, M.; SCHAPOCHINIK,
N.
Cultura
letrada
no
Brasil:
objetos
do
Candidato.
e
práticas.
São
Disponível
em:
Paulo/Campinas: Mercado de letras/ALB, 2005. Universidade
Estadual
de
Maringá.
Manual
. Acesso em: 19 de março de 2014. Universidade
Estadual
de
Maringá.
Manual
do
Candidato.
Disponível em:
. Acesso em: 19 de março de 2014. Universidade
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Candidato.
Disponível
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. Acesso em: 19 de março de 2014.
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PRÁTICAS DE LEITURA NA BIBLIOTECA ESCOLAR E A FORMAÇÃO DE LEITORES Solange Palhano de Queiroz (UNICENTRO) Introdução Esse trabalho apresenta uma discussão acerca da concepção de biblioteca escolar como espaço privilegiado na promoção da leitura literária e sua relação com a problemática dos textos literários em seus diversos gêneros e suportes. Destaca a importância da biblioteca escolar para a formação de leitores, processo que é constituído ao longo de uma trajetória de interação com os saberes da escola e de outras instituições como a família e a comunidade. Defende que a promoção da leitura literária deve ser compreendida dentro de uma articulação com o entorno social e a proposta pedagógica da escola considerando o valor da leitura, bem como, o papel da fruição no planejamento escolar. Do ponto de vista da circulação, assistimos a um crescente aumento de textos atraentes disponibilizados pelas editoras aos leitores em formação. No entanto, apesar do interesse que despertam, o empenho dos editores, autores e ilustradores em tornar a leitura atraente e prazerosa encontra nas práticas escolares obstáculos capazes de frustrar o propósito em aproximar os leitores da leitura literária. Por conta da austeridade e exigências impostas pela educação formal que costuma primar pelo caráter didático ao invés da fruição, a leitura literária corre o risco de ser identificada com as demais práticas escolares, sucumbindo às condições gerais que afastam os futuros leitores deste gênero de leitura. Neste contexto, o foco desta análise é compreender os processos existentes na formação de leitores a partir dos pressupostos teóricos da Estética da Recepção e a maneira como a prática cultural no espaço da biblioteca pode ser desenvolvida para que ela possa cumprir com seu papel de instituição social que forma leitores, assegurando o acesso ao conhecimento e à cultura.
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Para os propósitos desse trabalho utilizamos a abordagem de Edmir Perrotti (1990) ao tratar questões de ação cultural na promoção da leitura; de Fragoso (2011) e Aguiar (2006) visto que estes autores enfatizam a biblioteca como um espaço privilegiado na educação formativa e na promoção da leitura, portanto, um espaço de expressão e aprendizagem ao mesmo tempo que revelam sua situação adversa no processo ensino-aprendizagem e também de Colomer (2002), pois ao mencionar o referido espaço no contexto real de leitura, a autora considera que “apesar das dificuldades materiais e da ausência de dotação oficial de pessoal para organizar e potencializar as bibliotecas nas escolas, sua utilização como instrumento de primeira ordem para a intervenção educativa é uma realidade que está em alta”. A biblioteca escolar na formação do leitor O “Manifesto da IFLA/UNESCO para biblioteca escolar” considera que a biblioteca, sendo parte integrante do processo educativo, é um organismo indispensável ao uso dos recursos no processo ensino-aprendizagem. Dentre seus objetivos está a tarefa de: Desenvolver e manter nas crianças o hábito e o prazer da leitura e aprendizagem. Proporcionar aos alunos materiais diversos e serviços adequados ao seu aperfeiçoamento e desenvolvimento individual Orientar e estimular os alunos em todos os aspectos da leitura, para que encontrem prazer e satisfação crescente. (IFLA/UNESCO, 2014)
Portanto, a biblioteca escolar não incide apenas da presença de livros, mas da existência das relações entre alunos, livros e professores atuando na biblioteca e em sala de aula. A partir de um trabalho conjunto entre a escola e sua equipe pedagógica esperase ocorrer a sedimentação do hábito da leitura iniciado junto à família desde a mais tenra idade. A mediação da leitura realizada na biblioteca pode proporcionar ao educando a oportunidade de expandir seu “horizonte de expectativa” por meio uso das obras literárias disponíveis no acervo. Na busca por mecanismos que integrem diferentes atividades e programas, a biblioteca pode ser incluída a fim de estimular o hábito de leitura de forma espontânea e prazerosa. Este conjunto de ações positivas também pode ser obtido pela parceria entre
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bibliotecário e professor. Com isso a biblioteca atende à sua função social no incentivo à leitura. A leitura é uma atividade intelectual que demanda esforço. Para Colomer (2007), a antiga expressão “a letra com sangue entra” evidenciava o sentimento comum da escola tradicional de que ler requer esforço: “Esforço para dominar o código primeiro e esforço para analisar (ou constatar) o significado, mais tarde. Mas, durante as últimas décadas reagiu-se a esta situação apostando em acentuar o efeito prazeroso da leitura como motivação, o que deslocou a aprendizagem e o exercício de ler para uma posição secundária. Menos esforço, menos leitura canônica e menos orientação em favor do imediatismo, da diversificação e da criatividade espontânea. Da “leitura como dever” passou-se a “o dever do prazer” [...]. (COLOMER, 2007, p.109) Deste modo, “acentuar o efeito prazeroso da leitura como motivação” requer considerar que a leitura é também uma atividade que demanda condições como tempo, solidão, concentração e a aquisição de habilidades específicas. A esse respeito Sant’Anna, ao abordar o tema, indica que “insistir na leitura como prazer é prometer um parque de diversões onde o leitor encontrará às vezes uma usina de trabalho” (SANT’ANNA, 2011, p. 14). Isso significa dizer que nem sempre o prazer está associado à leitura, mas a necessidade é uma constante na leitura. Práticas de leitura na biblioteca escolar Na formação do leitor a interação social é uma premissa para o trabalho com a leitura literatura. Esta interação é o elemento essencial nas relações sociais. O compartilhamento da leitura propicia a recepção estética. É a partir da leitura compartilhada que se promove a potencialidade da linguagem, resgatando o educando do seu costumeiro desinteresse pela leitura, fato que não deve ser visto de maneira isolada, pois vários fatores coadunam para a existência desta condição. No espaço da biblioteca é possível apresentar ao educando obras literárias de variados gêneros a partir do seu acervo e à sua escolha, que favorece as redes horizontais e também verticais de que fala Colomer (2007, p.147;151): “porque o número de obras lidas importa muito se as crianças devem construir seu próprio
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horizonte de expectativas contra o qual projetar cada nova leitura”. Para ajudá-lo a estabelecer relações entre as muitas leituras, ampliando seus parâmetros de comparação, a presença do mediador de leitura necessita ser uma constância. As redes verticais, mencionadas pela autora, dizem respeito à leitura de obras clássicas que “os conecta com a sua tradição cultural”. Por isso a necessidade da escola se preocupar com “a herança literária da humanidade” ao oportunizar a leitura de obras que em outras circunstâncias não seria possível o contato com elas, isto é, fora da escola, mais especificamente, a partir de um acervo diversificado proporcionado pela biblioteca escolar. Além de considerar o prazer que a leitura literária pode oferecer e de entendêla também como um esforço intelectual, é importante resgatar: [...] que o objetivo da educação literária é, em primeiro lugar, o de contribuir para a formação da pessoa, uma formação que aparece ligada indissoluvelmente à construção da sociabilidade e realizada através da confrontação com textos que explicitam a forma em que as gerações anteriores e as contemporâneas abordaram a avaliação da atividade humana da linguagem”. (COLOMER, 2007, p.31) Na perspectiva da educação literária, “a visão ingênua da leitura como “um caminho espontâneo e natural, percorrido apenas pelos que possuíssem uma “queda”, um “dom” ou um “pendor” para essa atividade” (CECCANTINI, 2009), dá lugar ao enfoque realista da questão trazendo à atenção a importância da mediação neste processo visando a formação do leitor competente. A família, a escola, a igreja, a comunidade, enfim, o contexto social que circunda o cotidiano jovem leitor contribui para sua formação leitora, uma vez que a mediação pode se fazer presente destes ambientes. Considerando que uma das atividades atribuidas à biblioteca escolar é o desenvolvimento da sociabilidade inerente à leitura, a preocupação com a formação do leitor merece especial atenção nesse espaço. O conhecimento acerca dos processos existentes na formação de leitores a partir dos pressupostos teóricos da Estética da Recepção e a maneira como a prática cultural no espaço da biblioteca pode ser
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desenvolvida para que ela possa cumprir com seu papel de instituição social que forma leitores, necessitam ser exercitados pela equipe da biblioteca. A teoria da Estética da Recepção trouxe um elemento inovador que é destacado por Colomer (2003, p. 95): “A teoria da recepção insistiu em que o texto não é o único elemento do fenômeno literário, mas é também a reação do leitor e que, por conseguinte, é preciso explicar o texto a partir desta reação”. Dentre os preceitos da teoria da estética da recepção proposto de Haus Robert Jauss, queremos mencionar o “horizonte de expectativa” que foi destacado por Zilberman como “[...] misto de códigos vigentes e da soma de experiência social acumuladas [...].” Ou seja, o horizonte de expectativa acontece em um processo sistêmico e articulado de influência entre a sociedade e o leitor. Outro aspecto da teoria da estética da recepção proposto por Jauss diz respeito ao prazer estético do leitor. Iser afirma que [...] “o efeito e a recepção formam os princípios centrais da estética da Recepção[...]. E que “ele é chamado de efeito estético porque - apesar de ser motivado pelo texto – requer do leitor atividades imaginativas e perspectivas, a fim de obrigá-lo a diferenciar suas próprias atitudes.(ZILBERMAN, 1989) Ao afirmar que a leitura é um processo subjetivo e dialético, Wolfgang Iser propõe a expressão leitor implícito. Para ele “[...] o leitor implícito não tem existência real; pois ele materializa o conjunto das pré-orientações que um texto ficcional oferece, como condições de recepção, a seus leitores possíveis.” Além disso, o autor também defende que “a concepção do leitor implícito descreve, portanto, um processo de transferência pelo qual as estruturas do texto se traduzem nas experiências do leitor através dos atos de imaginação.” (ISER, 1999). Portanto, para os teóricos da Estética da Recepção, Wolfgang Iser e Hans Robert Jauss, no momento da produção de um texto, o autor idealiza um leitor denominado de implícito, isto é, aquele capaz de compreender o texto completamente. O leitor torna-se real e o seu repertório de conhecimentos, seus antecedentes sociais e culturais interferem na estrutura do texto delineado pelo autor, conferindo à obra literária um caráter transcendental.
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A teoria Estética da Recepção e a teoria do efeito estético se completam quando direcionam os olhos para o texto dentro do seu contexto histórico e social. A esse respeito, acrescentamos que a Escola de Constância, nos esclarece Jouve (2002), divide-se em dois ramos distintos: “a estética da recepção” de Hans Robert Jauss e a teoria do “leitor implícito” de W. Iser. Esta nova proposta sugere a relação texto-leitor, diferente do que era preconizado anteriormente: texto-autor. Jauss se ocupa da dimensão histórica da recepção, Iser se volta para o efeito do texto sobre o leitor: O princípio de Iser é que o leitor é o pressuposto do texto. Portanto, trata-se de mostrar, por um lado, como uma obra organiza e dirige a leitura, e, por outro, o modo como o indivíduo-leitor reage ao plano cognitivo aos percursos impostos pelo texto. (JOUVE, 2002, p.14)
De acordo com o exposto, os modos de recepção e o conjunto de sensações e reações desencadeadas no leitor ao se encontrar com o texto, recebem especial atenção a partir da Estética da Recepção que transforma o leitor no principal foco da investigação. A obra literária deixa de ser um objeto que existia por si só. Nessa perspectiva, o ato de leitura torna-se uma ação mais dinâmica, tendo como destaque o diálogo entre autor, obra e leitor. Discussão e análise As práticas escolares apresentadas no sistema educacional brasileiro desde a época do regime militar carrega um histórico de autoritarismo com reflexos para a biblioteca escolar. A caracterização da biblioteca como lugar de castigo onde o silêncio deve ser evocado tem produzido uma imagem negativa desse espaço. Como consequência, pode afastar os leitores, contrariando o que hoje se defende: [...] a coerção, o autoritarismo explícito das práticas escolares, especialmente as tradicionais, estariam na base de representações que levariam ao desinteresse de crianças e jovens pela leitura. Os modelos pedagógicos baseados na obediência do aluno a regras definidas pelo professor seriam por si só responsáveis pelo afastamento de crianças da leitura, assim como causadores de um mal-estar na relação professor-aluno, automaticamente transferido para a relação leitoraluno. Geradores de uma espécie de trauma nas crianças, tais modelos criariam uma imagem negativa da leitura, capaz de afastar para sempre dos livros largas faixas da população. (PERROTTI, 1990, p.71-72)
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Por conta da austeridade e exigências impostas pela educação formal que costuma primar pelo caráter didático ao invés da fruição, a leitura literária corre o risco de ser identificada com as demais práticas escolares, sucumbindo às condições gerais que afastam os futuros leitores desse tipo de leitura. Do ponto de vista da circulação, assistimos a um crescente aumento de textos atraentes disponibilizados pelas editoras aos leitores em formação. No entanto, apesar do interesse que despertam pela diversidade de livros e dos gêneros literários em diferentes suportes, o empenho dos editores, autores e ilustradores em tornar a leitura atraente e prazerosa encontra nas práticas escolares obstáculos capazes de frustrar o propósito em aproximar os leitores da leitura literária. Portanto, a responsabilidade recai também sobre a equipe da biblioteca tanto no que se refere à mediação da leitura quanto à sedução dos leitores. A tarefa do bibliotecário em aproximar o leitor dos livros por meio de práticas educativas na biblioteca, podem envolver atividades que consideram a leitura individual, mas também aquelas possam promover o intercâmbio social das experiências vividas com os textos, uma vez que a leitura é um ato solitário que exige a compreensão dos sentidos expressos, ao mesmo tempo que é também uma atividade que pode ser socializada pelo debate com o grupo (AGUIAR, 2006, p.260). Pensar a biblioteca como espaço para a leitura visando a formação do leitor implica compreender o contexto histórico, bem como a trajetória percorrida até chegarmos à concepção atual de biblioteca escolar.
Desde os primórdios, a biblioteca tem sido considerada o local para conservação de livros, o lugar da erudição e destinada às classes privilegiadas. Battles (2003) traduz a ideia de biblioteca para os autores de livros: Uma vez que a plenitude de uma cultura está expressa em sua literatura tomada como um todo, os autores de livros logo pressentiram a importância da biblioteca. [...] Na verdade, a biblioteca fornece um cenário com um poder de evocação tão grande que acabou se tornando um clichê. (BATTLES, 2003, p.23)
No entanto, a biblioteca escolar, pode ser percebida com um novo olhar, uma vez que, em sua nova configuração encontra-se em processo de ampliar e diversificar seus usos no contexto educacional (COLOMER, 2002, p.95). O legado que a biblioteca carrega não deveria emperrar o avanço no processo educacional em relação à formação
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do leitor, mas ser apenas uma lembrança de um passado não muito distante envolvendo o militarismo exacerbado que foi vivido pela nação brasileira e que trouxe consequências importantes para a formação do leitor. As funções atribuídas às bibliotecas escolares foram se modificando de acordo com as necessidades do sistema educacional em vigor. O avanço científico e tecnológico tem contribuído muito para a inserção de vários outros suportes informacionais no acervo das bibliotecas escolares, facilitando assim o acesso às informações necessárias para o desenvolvimento dos educandos. Muitas bibliotecas possuem ambientes diferenciados para pesquisa bibliográfica convencional e virtual, cantinho para contar histórias e dramatizações e ainda sala de leitura. Além disso, nos últimos anos passou-se a incorporar dentre as atividades desenvolvidas na biblioteca a ação cultural que tem o seu potencial destacado por Perrotti (1990) ao mencionar a promoção da cultura a partir da biblioteca. Apesar das novidades tecnológicas surgidas, a leitura continua sendo instrumento privilegiado do processo de ensino-aprendizagem. Em certo sentido, ler e estudar são quase sinônimos, em situação de ensino formal. Por isso, Perrotti (1990) argumenta: Separar a promoção da leitura dos processos gerais do saber, como se os caminhos pudessem não se cruzar, como se leitura e conhecimento não fizessem parte de um mesmo quadro global de operações simbólicas, de uma mesma trama de sentidos, corresponde a uma visão compartimentada, fragmentada da cultura que, parece, não conseguirá ir muito longe enquanto fonte inspiradora de práticas promocionais. Ocorre que, na verdade, leitura, conhecimento e cultura encerram elos tão decisivos e fundamentais que é impossível fugir das questões que tais ligações colocam aos programas promocionais. (PERROTI, 19090, p.73)
Assim, por meio de uma articulação conjunta, a comunidade escolar pode observar “a conversão da biblioteca escolar em um lugar central de acesso ao conhecimento” (COLOMER, 2002, p.95). A escola precisa ser estimulada “a deixar de considerar o material de leitura como uma substância neutra denominada “textos” para aceitar que os tipos de livros lidos determinam o leitor que se forma” e considerar “a importância do contágio, da presença de professores ou adultos que agem como pontos
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chaves no descobrimento e apego à leitura. Essa dimensão participativa tem recebido elogios e destaques em pesquisas recentes, Os dados quantitativos dessas mesmas pesquisas apontam para o crescimento da leitura entre “crianças que se sentem incorporadas aos projetos sociais de leitura, levados a cabo em suas cidades” indicando assim que articulação com o entorno social favorece “a leitura em funcionamento” (COLOMER, 2007, p. 108). Apontamos relevância em se discutir estratégias de uso que envolvam o letramento literário para os livros remetidos pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) no âmbito das ações estabelecidas pelo Plano Nacional do Livro e Leitura. Por meio do PNBE, as escolas públicas têm recebido acervos de qualidade literária de alto valor. No entanto, a utilização deste acervo não está posta automaticamente. Por isso, a necessidade de um trabalho de acompanhamento que garanta a utilização destas obras para leitura em sala de aula e na biblioteca. Seja pelo desconhecimento do teor destas obras, seja por obstáculos metodológicos, a leitura destes textos pode não acontecer. A partir de estratégias elaboradas para este fim, os docentes poderão identificar os maiores entraves na utilização, bem como no processo de ensino de leitura no espaço escolar, incluindo a biblioteca. Portanto, as ações de políticas públicas de incentivo à promoção da leitura podem ser amplamente exploradas visando o letramento literário tendo a biblioteca como forte parceira podendo ir além. Colomer e Camps (2002) citando a biblioteca escolar no contexto real de leitura considera que “apesar das dificuldades materiais e da ausência de dotação oficial de pessoal para organizar e potencializar as bibliotecas nas escolas, sua utilização como instrumento de primeira ordem para a intervenção educativa é uma realidade que está em alta”. Portanto, seu potencial, se devidamente explorado, em muito contribui para o processo de leitura na escola: Sem dúvida, a biblioteca escolar, hoje convertida, de fato, em uma midioteca, pode chegar a ser um núcleo educativo central se ocorrerem mudanças pedagógicas na organização do trabalho na escola [...]. A leitura, em qualquer de suas funções, tem na biblioteca um de seus espaços mais naturais para educar na leitura e no domínio autônomo dos caminhos de acesso à informação e à sua seleção, desafio educativo absolutamente imprescindível em uma sociedade como a atual, na qual o crescimento da informação disponível não deixa de aumentar de forma espetacular, ao mesmo tempo que se
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multiplicam as formas de acesso à ela. (COLOMER; CAMPS 2002, p. 94;95)
A partir da sua inserção no Projeto Político Pedagógico da escola as ações educativas pertinentes à biblioteca são construídas com a participação da comunidade escolar, isto é, pela coletividade dos sujeitos envolvidos com o processo de educativo, bem como a participação dos pais e educandos. A especificidade dessa biblioteca contribui para a melhoria de condições do processo da educativo que envolve a escrita, a leitura, o trabalho em sala de aula e a aprendizagem dos educandos. Portanto, a biblioteca da escola quando possui uma boa organização, é integrada às atividades pedagógicas, também tem estratégias de ensino-aprendizagem adequadas à fase de desenvolvimento dos educandos e é dinâmica nas suas ações, pode tornar-se parte integrante do processo educativo. Ou seja, o trabalho cooperativo entre o professor em sala de aula e o responsável pela biblioteca pode dar início a um ótimo trabalho com a leitura literária envolvendo a biblioteca da escola. Sendo assim, a biblioteca escolar, lugar no qual se oferece acesso democrático aos recursos e ferramentas necessários para a aprendizagem, onde se aprende a lidar adequadamente com a informação, matéria-prima para a criação de novos conhecimentos, reconhecida tradicionalmente como espaço da leitura por excelência pode ir além de ações de mero incentivo à leitura para desempenhar plenamente sua função. Desde que inserida no projeto político pedagógico da escola, evidentemente que possibilidades para esse espaço surgirão. A articulação escolar em prol da formação do leitor favorece a fruição estética na leitura literária. Além da preocupação quanto à clareza do objeto e metodologia visando a educação literária e, consequentemente, quanto aos objetivos, importa considerar que algumas condições propostas e contempladas no projeto pedagógico em relação à escola e à biblioteca que considere um acervo diversificado, um espaço com boas condições físicas e pessoal capacitado podem contribuir para o desenvolvimento de práticas educativas relacionadas à leitura literária. Portanto, um conjunto de ações para o desenvolvimento integral do educando a partir da escola em parceria com a biblioteca que por sua vez, poderá ser um lugar envolvente que congrega todos os integrantes da comunidade escolar.
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Referências AGUIAR, Vera Teixeira de. O caminho dos livros: da biblioteca à comunidade. In: AGUIAR, Vera Teixeira de; MARTHA, Alice Áurea Penteado (org.). Territórios da leitura: da literatura aos leitores. São Paulo: Cultura Acadêmica. ASSIS: NEP, 2006, p. 255-267. BATTLES, Matthew. A conturbada história das bibliotecas. São Paulo: Planeta, 2003. CECCANTINI, João Luís. Leitores iniciantes e comportamento perene de leitura. São Paulo: UNESP, 2009. COLOMER, Teresa; CAMPS, Anna. Ensinar a ler, ensinar a compreender. Porto Alegre: Artmed, 2002. COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário. narrativa infantil e juvenil atual. São Paulo: Global, 2003. COLOMER, Teresa. A articulação escolar da leitura. In: Andar entre livros. São Paulo: Global, 2007. FRAGOSO, Graça Maria. A Lei e seus desdobramentos. In: Biblioteca Escolar: que espaço é esse? Salto para o futuro. TV Escola, Ano 21, boletim 14, out.2011. IFLA. Diretrizes da IFLA/UNESCO para a biblioteca escolar. Disponível em: . Acesso em: 4 fev.2014. ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Ed.34, 1999. JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: UNESP, 2002. PERROTTI, Edmir. Confinamento cultural, infância e leitura. São Paulo: Summus, 1990. SANT’ANNA, Affonso Romano de. Ler o mundo. São Paulo: Global 2011.
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ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Anais do III CIELLI (2014) - ISSN 2177-6350
RELAÇÕES INTERTEXTUAIS ENTRE O LIVRO ORGULHO E PRECONCEITO E O FILME O DIÁRIO DE BRIDGET JONES Sônia Berveglieri (UEM) Introdução Texto é o produto de uma atividade discursiva linguística (oral ou escrita) ou não (textos não verbais, como, escultura, pintura, coreografia etc.) que forma um todo significativo de qualquer extensão. Com o avanço das novas tecnologias, outras formas de produzir sentido são acionadas e, assim, observam-se textos que se materializam não somente utilizando o verbal ou o não verbal, mas por meio de uma linguagem mista, eles criam forma, como, por exemplo, propagandas, charges, novelas, filmes etc. Desse modo, faz-se necessário atentar para esses novos modelos de construção de sentido. Outro fator que deve ser admitido, quando se trabalha com texto e discurso, é observar a intertextualidade, visto que um texto é concebido e se torna como tal numa complexa rede de relações que ele estabelece com outros textos, no que diz respeito à forma, ao conteúdo e suas práticas sociais. É a partir das semelhanças e diferenças com os demais, por exemplo, assim como na forma como se refere direta ou indiretamente a outros textos, que ele ganha identidade. Este trabalho, considerando os aspectos heterogêneos na produção de sentidos de um texto, tem por objetivo analisar as relações intertextuais entre o livro Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, e o filme O Diário de Bridget Jones, dirigido por Sharon Maguire, e adaptado do romance homônimo de Helen Fielding. Considerando serem trabalhos de épocas diferentes, o primeiro do século XIX; o segundo, século XX, ao se realizar esse movimento intertextual entre os dois textos, quais efeitos de sentidos são atingidos? Tendo em vista a natureza deste trabalho, por questões de delimitação, o foco é observar esses efeitos na constituição das protagonistas. Para isso, serão considerados os aportes teóricos das teorias do texto, da teoria literária, bem como contribuições da linguagem cinematográfica. O texto Desde que o texto tornou-se um objeto de pesquisa, várias concepções surgiram para tentar explicá-lo. Consoante Koch (2002), o texto é resultado de um processo complexo de interação e produção social de conhecimento e linguagem.
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Ocorrem várias concepções de texto que fundamentaram os estudos da Linguística Textual. Como aponta Romualdo (2012 apud BENTES, 2001, p. 247), três fases podem ser descritas na constituição do campo da Linguística do Texto: 1) a análise transfrástica, que se voltava para fenômenos que não podiam ser explicados pelas teorias sintáticas e/ou pelas teorias semânticas que ficassem limitadas ao nível da frase; 2) a construção de gramáticas textuais, que, influenciadas pelo sucesso da gramática gerativa, procuravam descrever a competência textual dos falantes; 3) as teorias do texto, nas quais os textos passam a ser vistos como o resultado de operações comunicativas e processos linguísticos em situações sócio-comunicativas.
O fato é que o conceito de texto foi ampliado. Koch e Fávero (2002, p. 25) revelam a seguinte concepção para o texto: o termo texto pode ser tomado em duas acepções: texto, em sentido lato, designa toda e qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano, (quer se trate de um poema, quer de uma música, uma pintura, um filme, uma escultura etc.), isto é, qualquer tipo de comunicação realizado através de um sistema de signos. [...] [Em sentido estrito] o texto consiste em qualquer passagem, falada ou escrita, que forma um todo significativo, independente de sua extensão.
Marcuschi (2008, p.80), por sua vez, faz referência à concepção de texto expressa por Beaugrande (1997), a qual concebe “o texto como um evento comunicativo no qual convergem ações linguísticas cognitivas e sociais”. Ao considerar essa afirmação, Marcuschi expõe, então, que o texto não é uma simples sequência de palavras escritas ou faladas, mas um evento. Essa definição, ainda continua o autor, permite envolver uma enorme riqueza de aspectos, tornando difícil uma explicação completa daquilo que seria o texto. Existem alguns fatores que influenciam o texto em sua construção: a especificidade da situação, o jogo de imagens recíprocas, as crenças, as convicções, as atitudes dos interlocutores, os conhecimentos etc, ou seja, existe uma série de atividades cognitivo-discursivas na construção de um texto. Segundo Fávero (2007), esses fatores sócio-cognitivos que vão dotá-los de certos elementos, propriedades ou marcas que serão responsáveis pela produção de sentido do texto. Isso implica dizer que não se pode deixar simplesmente ao interlocutor a tarefa de compreensão, mas sim deixar marcas, para esse texto ser compreendido, fazendo desse texto parte da ação e interação. Nesse sentido, a partir do que foi exposto até aqui, esta pesquisa toma como concepção de texto aquela apresentada por Koch e Fávero (2002), em que o coloca em sentido amplo, bem como concebe a intertextualidade como um dos principais fatores
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na constituição do sentido global de um texto. Dessa forma, a próxima seção trará a definição e algumas classificações sobre a intertextualidade. A intertextualidade e suas classificações A intertextualidade é o processo pelo qual se recorre ao conhecimento prévio de textos para se processar outros. Esse fenômeno encontra-se presente em perspectivas teóricas diferentes, como a Linguística Textual e a Teoria Literária. De acordo com Koch, Bentes e Cavalcante (2007), é no interior do campo literário que a semioticista Julia Kristeva, na década de 60, a partir do estudo dialógico bakhtiniano, introduz esse conceito, revelando que cada texto constitui um intertexto numa sucessão de textos já ditos ou que ainda serão ditos. Barthes (1974 apud Koch 1998, p.46), por sua vez, expõe que: o texto redistribui a língua. Uma das vias dessa reconstrução é a de permitir textos, fragmentos de textos que existiram ou existem ao redor do texto considerado, e, por fim, dentro dele mesmo, todo texto é um intertexto; outros textos presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis.
Segundo as autoras citadas, a Linguística Textual incorporou os conceitos dialógicos de Bakhtin (1929), de que um texto (enunciado) não existe nem pode ser compreendido isoladamente, isto é, sempre estará dialogando com outros textos. Desse modo, pode-se citar Koch (1998, p. 46), a qual apresenta que “todo texto é um objeto heterogêneo que revela uma relação radical de seu interior com seu exterior; e desse exterior, evidentemente, fazem parte outros textos que lhe dão origem, que o predeterminam, com os quais dialoga, que retoma, a que alude ou que se opõe”. Considerando esse postulado apresentado por Bakhtin, as autoras supracitadas propõem relacionar o fenômeno da intertextualidade em duas facetas: uma em sentido amplo (lato sensu) constitutivo não apenas de enunciados isolados, mas de modelos de produção/recepção de textos/discurso tacitamente aceitos; outra, em sentido restrito (stricto sensu), quando um texto remete a outros textos ou fragmentos efetivamente produzidos, com os quais estabelece algum tipo de relação. Em se tratando de intertextualidade restrita, Koch, Bentes e Cavalcante (2007) apontam alguns tipos como, por exemplo: A intertextualidade temática é localizada entre textos científicos pertencentes a uma mesma área do conhecimento, que comungam temas e se servem de conceitos e
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terminologias próprios, contidos nessa área teórica; entre matérias de jornais num jornal do mesmo dia ou da mesma semana que tratem do mesmo assunto. Em relação à intertextualidade estilística ocorre quando o produtor do texto, com vários propósitos, repete, imita, parodia certos estilos ou variedades linguísticas: são corriqueiros em textos que reproduzem linguagem bíblica, um jargão profissional, um dialeto, o estilo de determinado gênero, autor ou segmento da sociedade. Intertextualidade explícita, por sua vez, advém quando, no próprio texto, é feita menção ao texto fonte, ou seja, quando outro texto ou fragmento citado, é atribuído a outro produtor textual. Isso pode ser visto por meio de citações, referências, menções, resumos, resenhas e traduções; em textos argumentativos, quando se usa o recurso do argumento de autoridade. Já a intertextualidade implícita, caracteriza-se pela presença de um intertexto, mas sem mencioná-lo explicitamente, conforme Koch e Elias (2008, p. 92), que afirmam que esse tipo de intertextualidade “ocorre sem citação expressa da fonte, cabendo ao interlocutor recuperá-la na memória para construir o sentido do texto”. Marcuschi (2008, p. 132) aponta que a intertextualidade é mais do que um simples critério de textualidade. Para ele, trata-se do princípio constitutivo que concebe o texto como uma “comunhão de discursos e não como algo isolado”. De acordo com Sant'Anna(2003), a intertextualidade pode ser entendida como a da semelhanças, constituindo-se em paráfrase; ou como das diferenças, configurando-se em paródia. Nesse sentido, a próxima seção apresentará a noção desses dois conceitos. Paráfrase e paródia Sant'Anna (1985) revela algumas concepções a respeito desses fenômenos de linguagem e os apresenta também ao lado da estilização e apropriação. Assim, segundo o autor, a paráfrase, paródia, estilização e apropriação permitem entender a ideologia por meio da linguagem. Conforme o autor, a paráfrase, do lado da ideologia dominante, é uma continuidade, ao passo que do lado da contra-ideologia, a paródia é uma descontinuidade. Da mesma forma que um texto não pode existir fora das ambivalências paradigmáticas e sintagmáticas, a paráfrase e a paródia se tocam num efeito de intertextualidade que tem a estilização como ponto de contato. (SANT'ANNA, 2003, p.28)
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Na concepção do autor, a paráfrase é um discurso em repouso, e a estilização é a movimentação do discurso, a paródia, por seu turno, é o discurso em progresso. Ele expõe, ainda, outra comparação, em que a paráfrase seria um efeito de condensação, enquanto a paródia, um efeito de deslocamento. Em uma, há o reforço; na outra, a deformação. Com a condensação, segundo o Sant'Anna, têm-se dois elementos equivalendo a um, e com o deslocamento, tem-se um elemento com a memória de dois. A linguagem cinematográfica O fato de este estudo tratar da relação intertextual entre duas materialidades diferentes (filme versus livro) é necessário apresentar algumas considerações a respeito da linguagem fílmica. No que tange à linguagem cinematográfica, é preciso considerar, além do poder das imagens, o conjunto das mensagens cujo material de expressão compõe-se de cinco pistas ou canais: a imagem fotográfica em movimento, os sons fonéticos gravados, os ruídos, o som musical e a escrita, como os créditos, intertítulos, materiais escritos no plano. 1 Alves e Passeti (2013) também apresentam em seu trabalho alguns apontamentos a respeito dessa maquinaria. Segundo as autoras, essa é vista como o lugar da heterogeneidade da imagem, de onde se dá filiações interdiscursivas observadas nos elementos formuladores da linguagem não verbal, os quais, para Souza (1998 apud ALVES e PASSETI, 2013, p. 203) consistem em jogos de formas, cores, imagens, luz, sombra, ângulo, câmera. Elementos, segundo elas, denominados operadores discursivos, os quais possibilitam apreender a rede complexa de produção de sentidos heterogêneos no que se refere aos aspectos discursivos e ideológicos. Segundo Dubois (2004, p.185), a produção de imagens, no cinema, passou por transformações. Se no seu início ela era feita em um único plano-sequência fixo; agora, a própria câmera pode se mover durante a tomada. De acordo com o autor, é o que se denomina travelling, "o plano - feito viagem" que só é considerado como a "alma do cinema" (sua consciência moral como diz Godard) por exprimir (ou imprimir) movimentos que são os da vida, do olhar do homem sobre o mundo em que ele se 1
http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0903/090306.pdf - Acesso em 08/10/2013
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move: avançar, recuar, subir, descer, deslizar lateralmente, escrutar, acompanhar. O autor expõe, ainda, que seja qual for o movimento realizado pela câmera, haverá um olho em jogo, o daquele que opera essa maquinaria, conferindo, assim, um caráter subjetivo às imagens veiculadas. Desse modo, é preciso atentar para a constituição heterogênea dessa materialidade em que o áudio e o visual complementam-se para a construção do sentido do texto. Antes, porém, de partir para a análise propriamente dita, é preciso apresentar uma síntese das duas materialidades: Contextualização de Orgulho e Preconceito O romance retrata a relação entre Elizabeth Bennet (Lizzy) e Fitzwilliam Darcy na Inglaterra rural do final do século XVIII e início do século XIX. Lizzy possui outras quatro irmãs, nenhuma delas casadas, o que a Sra. Bennet, mãe de Lizzy, considera um absurdo. Quando o Sr. Bingley, jovem bem sucedido, aluga uma mansão próxima da casa dos Bennet, a Sra. Bennet vê nele um possível marido para uma de suas filhas. Enquanto o Sr. Bingley é visto com bons olhos por todos, o Sr. Darcy, por seu jeito frio, é mal falado. A protagonista, em particular, desgosta imensamente dele, por ele ter ferido seu orgulho na primeira vez em que se encontram. A recíproca não é verdadeira. Mesmo com uma má primeira impressão, Darcy realmente se encanta por Lizzy, sem que ela saiba do fato. A partir daí, o livro mostra a evolução do relacionamento entre eles e os que os rodeiam, mostrando também, desse modo, a sociedade do final do século XVIII e início do século XIX. Contextualização de O Diário de Bridget Jones O filme apresenta a história de Bridget, uma "solteirona" com mais de trinta anos, mora em Londres, é jornalista. Tem sérios problemas com seu peso e em seguir dietas, é fumante, bebe. Escreve em seu diário todos os dias. Tem uma família aparentemente equilibrada até sua mãe resolver correr atrás do tempo “perdido”. Seu pai é amável, amigo, mas tolo. A mãe e as amigas da família implicam com Bridget por ela não ter casado ainda, estão sempre tentando empurrá-la para o vizinho bonito e bemsucedido, Mark Darcy, pelo qual Bridget não sente a menor atração de início, já que ela se encanta por seu chefe Daniel Cleaver, um verdadeiro cafajeste.
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Pontos convergentes entre as duas materialidades Ao analisar as diferenças ou semelhanças em torno das protagonistas femininas dos textos estudados, é preciso antes atentar para os elementos que fazem com que essas duas materialidades se toquem. Nesse sentido, pode-se observar que os dois textos, aqui discutidos, têm como base de configuração textual a tipologia narrativa; ambos desenvolvem seus sentidos em um "tecer" narrativo. Desse modo, considerando os elementos estruturais de uma narrativa, para este estudo, o enredo constitui-se fator preponderante para se observar que Orgulho e Preconceito e O Diário de Bridget Jones são intertextuais. Consoante Gancho (2000), é preciso considerar dois elementos ao se referir a enredo: a sua estrutura (as partes que o compõem) e seu caráter ficcional. Em relação a este último, leva-se em conta que uma história não precisa ser verdadeira, mas deve ser verossímil. Isso quer dizer que, mesmo os fatos sendo inventados, o interlocutor tem que acreditar no que é apresentado. Em relação à estrutura, o principal elemento estruturador é o conflito, o qual, segundo a autora, diz respeito a qualquer “componente da história (personagens, fatos, ambiente, ideias, emoções) que se opõe a outro, criando uma tensão que organiza os fatos da história e prende a atenção do [interlocutor]” (GANCHO, 2000, p. 10-11). Quanto a essa estrutura, são partes constitutivas de um enredo: exposição (introdução ou apresentação), complicação, clímax e desfecho. Com base nessas considerações, em relação à apresentação das personagens, tem-se primeiramente a mãe das protagonistas. Em ambos, as mães desejam o casamento da filha; são inconvenientes em circunstâncias sociais e promovem situações embaraçosas para as protagonistas. O papel de pai, nos dois contextos, é representado por um homem passivo, que se sujeita às vontades da esposa, faz "vistas grossas" para as atitudes censuráveis da mulher, mas, nos dois textos, são amigos das protagonistas, sempre as apoiando. Os antagonistas (Wickham x Daniel Cleaver) são, sob o olhar das protagonistas, aparentemente cativantes, alegres, galanteadores. Enganam as protagonistas, deixandoas pensarem que foram vítimas de acontecimentos passados em que se envolveram com os protagonistas (Fitzwilliam Darcy x Mark Darcy). Mas acabam sendo desmascarados. Os protagonistas são apresentados como aparentemente frios, orgulhosos, ricos, bem sucedidos. No desenrolar da trama, mostram-se, depois, fortes, bom coração,
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generosos e apaixonados. São eles os primeiros a se declararem para as respectivas protagonistas. O conflito é instaurado, nas duas materialidades significantes, pela relação entre os três personagens: os protagonistas e o antagonista. Dessa forma, tem-se a protagonista rejeitando o protagonista, mas se interessa, em um primeiro momento, pelo antagonista, o qual se apresenta como um homem ideal. Protagonista e antagonista tiveram um problema no passado. Problema este que ressurge, no presente, e é apresentado de maneira distorcida para a protagonista. Os protagonistas (Fitzwilliam Darcy x Mark Darcy) são os primeiros, respectivamente, a declararem o seu amor, fato que desperta o interesse das protagonistas, passam a ter outro olhar em relação a eles. Descobrem que estavam enganadas com relação aos antagonistas, os quais se revelam, no final, verdadeiros cafajestes, enquanto o homem certo era, na verdade, o protagonista. A partir do que foi exposto, pode-se dizer que há uma intertextualidade temática, visto que, segundo Cavalcante (2007), ela é definida por seu conteúdo. Assim, notam-se as semelhanças entre essas duas materialidades, é evidente que é preciso considerar as transformações impostas pelo tempo, já que se está discutindo trabalhos de épocas diferentes, século XIX e XX, porém o conflito gerador da história é o mesmo. Ao aproximar esses dois trabalhos, percebe-se, dessa forma, que o enredo enquadra-se naquilo que Sant'Anna chama de intertextualidade das semelhanças. Até aqui as informações residem no implícito. Há, no entanto, uma única marca explícita deixada pelo produtor de O diário de Bridget Jones que dá indícios da intertextualidade entre os textos, é o sobrenome do protagonista: Darcy, como aponta a figura 1 a seguir:
Figura 1: Visualização da relação entre as personagens nos dois textos
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Koch (2007, p. 127) aponta como um caso de intertextualidade por alusão: “Reputamos alusão como uma espécie de referenciação indireta, como uma retomada implícita, uma sinalização para o co-enunciador de que, pelas orientações deixadas no texto, ele deve apelar à memória para encontrar o referente não-dito”. Ainda de acordo com essa ideia, Bernardelli (2000) expõe que a alusão é um processo intertextual que, mediante o reconhecimento de algum indício discursivo específico, permite a ativação simultânea de dois textos. A relação pode ser mais ou menos explícita. A relação intertextual entre as duas protagonistas Elizabeth Bennet, em Orgulho e Preconceito, é uma mulher à frente de seu tempo, corajosa, enfrenta as situações adversas sempre com altivez. Dentre os vários exemplos que podem ser extraídos do livro, um merece destaque para ilustrar a característica da personagem: o momento que ela recusa o pedido de casamento de seu primo. Posso lhe garantir, senhor, que não tenho nenhuma pretensão a um tipo de elegância que consiste em atormentar homens respeitáveis. Preferiria o elogio de me acreditar uma pessoa sincera. Agradeço mais uma vez pela honra que foi para mim a sua proposta, mas aceitá-la é absolutamente impossível. Todos os meus sentimentos dizem não. Como posso ser mais clara? Não me considere neste momento um exemplo de elegância feminina desejando enfeitiçá-lo, mas uma criatura racional falando a verdade de seu coração. [vol. I, cap. XIX, p. 222]
Essa atitude demonstra que a protagonista é uma moça diferente daquelas de sua época. O fato de rejeitar o pedido de casamento do Senhor Collins, em um tempo em que as mulheres tinham como único e principal objetivo esse evento. Havia um agravante, ele deveria ser o herdeiro do dinheiro dos Bennet, visto que, naquela época, a família poderia deixar seus bens somente para os descendentes homens. Sendo assim, não aceitar casar com o senhor Collins significava, também, abrir mão dos bens da família. Mesmo assim, contra a vontade da mãe, ela rejeitou. Bridget Jones, por sua vez, é a representação da mulher moderna em conflito: vive em luta com a balança, fuma (mas quer parar), mostra-se independente e, ao mesmo tempo, deseja encontrar alguém para completá-la. Assim, esses conflitos da personagem possibilitam alguns episódios cômicos vividos por ela, em que traços ridículos são mostrados. Um deles é quando, no novo trabalho, Bridget veste minissaia, coloca capacete e descer pelo cano de emergência e entrevistar o chefe dos bombeiros.
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Ela cai e não consegue fazer a entrevista; cai com o traseiro sobre a câmera, tornandose, dessa forma, "piada nacional" (frame 1- figura 2).
Figura 2:Cena de Bridget Jones descendo o cano de emergência
É possível perceber que o cômico da cena é exatamente a junção dos significantes imagem e verbal, amparados pelas técnicas da maquinaria fílmica, em que a câmera focaliza de baixo para cima para pegar o momento da queda da protagonista, configurando-se, dessa forma, a heterogeneidade como produção de sentidos. Comparando os dois textos, pode-se ter a seguinte descrição das protagonistas: ORGULHO E PRECONCEITO
PONTO DE CONVERGÊNCIA
O DIÁRIO DE BRIDGET JONES
Elizabeth Bennet
Bridget Jones
Bonita (mas menos bonita que a irmã mais velha);
Enfrentam adversas
Orgulhosa;
Deixam-se enganar pelas primeiras impressões tanto em relação ao protagonista quanto ao antagonista.
acha os homens previsíveis; À frente de seu tempo; Só se casaria com alguém que realmente chamasse sua atenção; Inteligente;
situações Acima do peso/ luta contra a balança; Bebe (mas quer parar); Fumante (Mas quer parar); Banca a mulher independente Solteirona ( + 30); Atrapalhada/ desastrada;
Vivaz;
Deseja encontrar um homem direito e sensível;
Identidade ativa;
Mora em Londres (metrópole).
Mora no interior da Inglaterra.
Quadro 1: Descrição das protagonistas
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Observa-se, desse modo, que ao fazer o movimento de deslocar a heroína do início do século XIX (em Orgulho e Preconceito) para o final do século XX, o produtor de O Diário de Bidget Jones promove uma paródia. Como afirma Maingueneau (apud KOCH, 2007), a paródia constrói um percurso de desvio em relação ao texto fonte, numa espécie de insubordinação crítica ou cômica, e Sant'Anna(1985), por seu turno, postula que a paródia deforma o texto original subvertendo sua estrutura ou sentido. Considerações finais Koch e Elias (2010, p. 78-79) destacam que a inserção de “velhos” enunciados em novos textos promoverá a constituição de novos sentidos. Como afirmam as autoras, o texto fonte deixará ecos na nova produção que serão percebidos mais - ou menos dependendo do conhecimento do [interlocutor]. Entretanto, o "deslocamento" de enunciados de um contexto para o outro, sem dúvida, suscitará alteração de sentidos. Essa afirmação aplica-se ao trabalho, aqui analisado, uma vez que se observa que a constituição da materialidade significante fílmica compreende o audiovisual, em que sua produção temática ocorre por intermédio da intertextualidade com o livro Orgulho e Preconceito. Nota-se que os dois textos configuram-se em uma intertextualidade das semelhanças, quando se atenta para o enredo apresentado. No entanto, ao se direcionar o olhar para as respectivas protagonistas (Elizabeth Bennet x Bridget Jones), tem-se uma intertextualidade das diferenças, configurando-se em uma paródia. Esse fato justifica-se pelo movimento temporal existente entre os dois contextos. A mulher moderna do final do século XX é diferente daquela do início do século XIX. Ela vive preocupada com a beleza, com o corpo, com a carreira, com a família, passa por diversos problemas emocionais. Diante desse conflito feminino vivido numa sociedade fragmentada, a mulher encontra-se "perdida", dividida em busca de sua independência, mas, ao mesmo tempo, vive à procura do homem "certo" para completá-la. Esses ingredientes fazem com que Bridget Jones seja uma subversão de Elizabeth Bennet, imprimindo, assim, um caráter parodístico à configuração daquela personagem. Referências ALVES, R. V.; PASSETTI, M. C. C. Um não-lugar para a militância de esquerda e para a resistência. In: Estudos do texto e do discurso em contrapontos: Foucault,
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Edson
Carlos.
Análise
de
textos
verbo-visuais:
polifonia,
intertextualidade e polêmica na divulgação da parada LGTB de Maringá/2012 - IV SELIN – 2012.
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QUANDO O PALCO NARRA A HISTÓRIA: A COLONIZAÇÃO DE LONDRINA EM BODAS DE CAFÉ, DE NITIS JACON Sonia Pascolati (UEL) Vanderson de Souza Neves (UEL)
Introdução Nascido de um grupo teatral chamado Núcleo, PROTEU (Projeto de Teatro Experimental Universitário), configurou, a partir de 1978 e até meados da década de 1990, um dos mais importantes grupos de teatro de Londrina. Assim como a deidade da mitologia grega, o grupo PROTEU tinha não-somente o poder de metamorfosear-se (como ficou constatado por seu histórico de montagens e pelo modo sagaz com que driblou a ditadura), mas também o poder de olhar para o passado, presente e futuro, como veremos com a peça aqui abordada. A própria criadora do grupo, Nitis Jacon (2010, p. 103), esclarece seus propósitos: O que será o Proteu, em linhas gerais? O Proteu tem vários objetivos. Um dele é possibilitar a promoção e o estímulo ao desenvolvimento de um trabalho permanente de teatro dentro da Universidade; estimular a formação de grupos universitários [...] que poderá levar a um trabalho paralelo ao do Festival de Teatro que, de certa forma, acabou sendo dirigido muito mais a grupos de teatro amador do que à comunidade universitária. Objetiva, ainda, possibilitar a utilização do recurso dramático na prática do ensino; desenvolver o estudo da literatura dramática brasileira através de leituras e seminários sobre autores nacionais; preparação de grupos para um trabalho independente, discussão de técnicas, trabalho experimental.
Além de grandes produções (entre elas Calabar de Chico Buarque e a premiada Salto alto de Mário Prata), o grupo trabalhava com montagens de suas próprias peças, escritas e dirigidas pela dramaturgista Nitis Jacon, conhecida pela criação de um dos maiores festivais de teatro do país, que em 1968 começou como uma mostra de teatro regional e em 1988 expandiu seus horizontes e passou a ser conhecido como Festival Internacional de Londrina (FILO).
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Bodas de café, assim como todas as peças escritas por Nitis Jacon, não têm uma publicação oficial, ou seja, faz parte de um grupo de textos (muitas vezes lacunares), que permaneceram por décadas encaixotados e esquecidos, até mesmo pelos próprios escritores. O projeto “Contribuições para a história da dramaturgia e do teatro londrinenses”, desenvolvido na Universidade Estadual de Londrina, sob a coordenação de Sonia Pascolati, vem resgatando esses textos por meio de um trabalho de catalogação, estudo e análise de toda essa produção de textos teatrais (publicados e não publicados), a fim de manter vivas essas singulares produções. A peça é riquíssima e muitos aspectos podem ser analisados, mas aqui focaremos a dramaturgia como estratégia de revisitação de discursos históricos oficiais, somado à metalinguagem, sob a forma de metateatro, e ao teor político da peça. Bodas de café é uma obra auto-reflexiva que, ao apropriar-se de fatos e personalidades históricas, recria a história de Londrina da perspectiva do sujeito marginal, raras vezes contemplado pelo discurso histórico oficial.
Londrina: uma história com aroma de café Logo na primeira cena da peça Bodas de café, temos uma representação sarcástica do diálogo entre os ingleses que criaram a Companhia de Terras Norte do Paraná em 1924 e começaram (em 1929) a “povoar” a região que, até 1932 ficou conhecida como Patrimônio Três Bocas, e não passava de “patrimônio” do município de Jataizinho (na época conhecida como Jataí). Mas mesmo antes de se tornar oficialmente Londrina (em 10 de dezembro de 1934), a cidade já era povoada por muita gente: “em outubro de 1934, segundo dados publicados no primeiro número do jornal Paraná Norte (de 9 de outubro daquele ano), Londrina possuía 554 casas e a população era de 1.346 habitantes” (BONI, 2004, p.99) e são essa “estórias” de posseiros, migrantes e prostitutas que parece ser o viés pelo qual se retoma a história de Londrina na peça. Em uma entrevista ao Jornal Folha de Londrina de 08 de julho de 1984, concedida a João Arruda (1984, p. 17), Nitis Jacon fala sobre o panorama histórico da peça: Mostramos coisas, [...] que a história oficial deixa de lado. Há, porém, aspectos que são totalmente explicitados, como a própria tragédia do homem. No geral, estamos procurando não chatear e nem agredir ninguém. Claro que fazemos algumas gozações com os ingleses... Se o que mostramos não corresponde à verdade absoluta, é ao menos a visão de um grupo sobre a história da cidade. Todos os fatos mostrados aconteceram, estão registrados e, ao lado destes, há situações que coletamos em fontes diversas, que existem na boca de alguém.
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Dentre as inúmeras personagens da peça, a existência de Jacinto (Mané Jacinto) é comprovada pela historiografia oficial, apontado como ativista político que participou da fundação de inúmeros sindicatos e associações no norte do Paraná. Sua disposição política lhe valeu uma perseguição sem precedentes na história, “foi preso nada menos de 17 vezes, respondeu a cinco processos – sem nenhuma condenação – e trazia consigo uma lição: jamais guardava nomes ou datas para nada dizer, ainda que sob tortura” (ARRUDA, 1984, p. 17). A primeira vez que Jacinto aparece na peça é em um encontro de sua família com a família de Antonio. Jacinto e Antonio são como a linha que costura essa colcha de retalhos que é Bodas de café, e o leitor/espectador da peça pode acompanhar a vida de dois homens serem transformadas por vivências e desventuras que também moldaram uma legião de homens em cinquenta anos da história de uma cidade (considerando-se a fundação da cidade em 1934, até a data da estreia da peça, em 1984). Antonio, ao contrário de Jacinto, não é um revolucionário, ele é apenas um migrante que vem de São Paulo para o norte do Paraná (Londrina) para comprar um pedacinho de terra e começar uma vida nova. Mas o que ele encontra aqui é uma realidade bem diferente. Logo na estação de trem em que desembarca, Antonio é enganado por um picareta, que leva todo o seu dinheiro. Sua única alternativa é passar de proprietário a empregado em uma fazenda. A cena 25, intitulada “Antonio no Banco” retrata o descaso dos bancários com o homem simples do campo que quer continuar plantando, busca em um financiamento a chance de manter seu pedacinho de terra, sonho barrado pela burocracia e indiferença em relação aos pequenos agricultores. Antonio não consegue acompanhar as novas práticas de plantio (com adubos e pesticidas), como também não consegue compreender a burocracia do mundo dos negócios, o que acaba saindo caro para o agricultor. Funcionário – Seguinte: Se o senhor quer dinheiro emprestado, primeiro tem que fazer o cadastro. Antonio – Fazê o quê? Isso não é coisa feia? Funcionário – Alí naquela mesa com Dona Lurdes. Gerente – Dr. Rufino, como vai essa força. O que é que o senhor manda... Pode deixar que eu mando o nosso sub-gerente ai na sede da sua fazenda. Quando é que o senhor pode recebê-lo? [...] Gerente – Amanhã mesmo dr. Rufino. O senhor aplica o dinheiro do financiamento... O sr. Vai tirar 50% limpo... Vantagens dos subsídios... Em ritmo de Brasil grande! (JACON, 1984, p.38-39).
A peça consegue retratar bem o papel do pequeno parece ser guiado a cada fala do funcionário do Banco a tornar apenas um empregado. Enquanto isso, Rufino, latifundiários, é tratado como um rei. O contraste entre a
agricultor e como Antonio desistir de suas terras e se representante dos grandes dificuldade de Antonio em
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conseguir financiamento com a facilidade de Rufino, que consegue concretizá-lo por telefone, só realça o desequilíbrio na balança e o favorecimento dos bancos em relação aos grandes fazendeiros. Outra personagem importante na peça (e na história de Londrina) é a prostituta Palmira Preta. Palmira aparece na peça como uma dentre os “fundadores” da cidade: “PALMIRA – Pera aí, pera aí? Então vocês estão contando a história de Londrina, e estão se esquecendo de mim! Uma puta pioneira!? [...] Porra gente eu cheguei aqui em 1926! É...em 26. Não tinha nada aqui (JACON, 1984, p.5). Uma personagem bem humorada que se gaba por ter financiado a primeira Jardineira da cidade (hoje mostrada com orgulho no Museu de Londrina, mas sem as devidas honras à Palmira). Palmira também traz à tona um dos maiores mitos de opressão da cidade de Londrina, a “passeata das cabeças raspadas”. Há relatos de que um delegado (Silveira Santos) pediu que todas as meretrizes que saíssem nas ruas da cidade, naquela noite, fossem ser presas e tivessem suas cabeças raspadas. Mas o inesperado aconteceu. Ao serem devolvidas às ruas no dia seguinte, as prostitutas, organizadas e incitadas por dois jornalistas (Ciro Ibirá de Barros e Dicesar Plaisant Filho) que encabeçaram o protesto, iniciaram um passeata pelas principais ruas de Londrina: Todas as mulheres com as cabeças raspadas, na frente os jornalistas Ciro e Plaisant, iniciaram a marcha do protesto. Curiosos também participaram. O espetáculo foi dantesco. Um misto de agressão e desabafo. As meretrizes desfilavam, passos lentos. Umas sérias, outras gargalhavam. Havia as que choravam. A polícia permaneceu em seus postos. Observava apenas. O delegado não se fez presente. A avenida Paraná ficou apinhada de gente. A assistência delirava. Gritos, palmas, apupos e gargalhadas (MARINÓSIO FILHO, 1979, p. 11).
E essa não é a única representação de opressão que o Grupo PROTEU traz ao palco. A cena 24 inicia-se com os atores reproduzindo em cena o cartaz do 1º Festival Universitário. Enquanto um dos atores recita versos de otimismo em relação ao Festival, ao fundo, entra no ar a locução da rádio ZYD-4 com notícias que atestam o contrário. Locução – Lamentamos informar ao nosso público que o 1º. Festival Universitário não poderá apresentar a modalidade de Jograis porque alguns de seus componentes encontram-se detidos pelo Departamento de Ordem Política e Social, em São Paulo. Foram presos em Ibiúna, onde representavam Londrina no Congresso da União Nacional dos Estudantes (JACON, 1984, p. 37).
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Mise en abyme em Bodas de café: metateatro, meta-história Nascida de uma pesquisa de meses realizada pelo PROTEU, a peça Bodas de café traça um panorama da história de Londrina por meio de um mosaico de tempos e espaços cênicos que se misturam em um processo de mise en abyme (peça dentro de outra peça), pois a peça moldura não é a história cronológica da colonização de Londrina, mas sim a de uma companhia de teatro (o próprio PROTEU) trabalhando para montar uma peça. Esse recurso possibilitou ao texto manter-se às margens da narração oficial da história, podendo assim inserir comentários e críticas que expressam o ponto de vista não só das personagens, mas do próprio grupo sobre os acontecimentos. A peça é repleta de referências ao fazer teatral, numa visada nitidamente metalinguística e metateatral. A função metalinguística, em síntese, centraliza-se no código: é código “falando” sobre o código. Façamos um trabalho substitutivo, uma operação tradutora: é linguagem “falando” de linguagem, é música “dizendo” sobre música, é literatura sobre literatura, é palavra da palavra, é teatro “fazendo” teatro (CHALHUB, 2005, p.32).
Samira Chalhub levanta uma questão importante sobre a forma como o código utiliza-se do próprio código para expressar-se. E no teatro isso parece alcançar um nível mais concreto, pois as peças por encaixe conseguem colocar foco em uma determinada cena e ao mesmo tempo explicá-la. Para Pavis (2011, p. 245), em seu Dicionário de teatro, a definição de mise en abyme está ligada diretamente ao metateatro: O Teatro dentro do teatro é a forma dramática mais comum de mise en abyme. A peça interna retoma o tema do jogo teatral, sendo analógico ou paródico o vínculo entre as duas estruturas. A encenação contemporânea recorre à mise en abyme para relativizar ou enquadrar (enquadro) o espetáculo: marionetes mimando a ação da peça e representando o teatro do mundo [...]; o ator interpretando o ator interpretando seu papel etc.; retomadas de palavras ou de cenas que resumem a ação principal; palco colocado dentro do palco do teatro e remetendo à ilusão e à sua fabricação [...].
Em Bodas de café podemos ver, a partir da cena três, que a peça moldura é representada por um grupo de teatro (no caso o próprio PROTEU) tentando levantar dados para a montagem de uma peça (Bodas de café). Esse recurso intencional de deflagrar a peça em seu estado de criação se assemelha muito com a estética pirandelliana. Jacon escreveu a peça como se fosse um “enorme ensaio” em que até o texto parecesse não estar pronto ainda. Há uma “necessidade” de demonstrar ao público
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o processo de criação, como se cada escolha feita pelo grupo determinasse os rumos de algo inacabado: “Ator 03 – Vamos trabalhar gente! Que a peça tem que ficar pronta” (JACON, 1984, p.2). Mas na verdade, tudo não passa de uma grande ilusão, pois após uma enxurrada de palavrões um dos atores faz a seguinte observação: “Ator 01 – Vamos melhorar o nível do vocabulário, se continuar neste nível, essa peça vai ser proibida!” (JACON, 1984, p.3), diálogo revelador dos atores (personagens) agindo como se o que acabou de ser dito ainda não estivesse registrado no texto (ou sendo encenado no palco). Na peça, o metateatro não se limita apenas à peça por encaixe, pois numa verdadeira ruptura da ilusão o grupo utiliza seus verdadeiros nomes no texto/em cena, como se o dialogo estivesse sendo feito pelos atores e não pelas personagens, o que fica claro no trecho a seguir: (Num praticável mais alto: Rufino, Madame Rosy. Depois delegado. As danças dão stops para diálogos no praticável) M. Rosy – Rufino meu bem do jeito que os negócios vão indo, em pouco tempo a gente desatola do metier. Rufino – Rosy minha querida a minha meta é ser capa da Manchete. Carla – André essa fala é do Salto Alto. André – Ai é mesmo. Ato falho... Rosy a minha meta é um dia ser da alta sociedade londrinense. M. Rosy – Um dia a gente chega lá (JACON, 1984, p.28).
Podemos ver, pela descrição da rubrica, personagens com os nomes de Rufino e Madame Rosy, porém, durante os diálogos aparecem os nomes Carla e André, ambos nomes de atores e não de personagens. Nesse caso, a peça que já mostrava uma ruptura da quarta parede1 (ao trazer à cena um ensaio) passa para um nível maior de quebra da ilusão, pois não se trata apenas de um grupo de teatro em cena, mas do próprio PROTEU com atores usando seus verdadeiros nomes. Além disso, há um intertexto com a peça Salto alto, representada pelo grupo no ano anterior a Bodas de café, quando o ator confunde as falas das duas peças. Ao dar voz ao “fazer teatral”, Jacon pisa em um solo épico em que o “narrar a historia”, em muitas partes da peça, substitui o “representar a história”. O que já vinha sendo feito por Bertolt Brecht com seu “teatro épico”:
“Parede imaginária que separa o palco da platéia. No teatro ilusionista (ou naturalista), o espectador assiste a uma ação que se supõe rolar independentemente dele, atrás de uma divisória translúcida. Na qualidade de voyeur, o público é instado a observar as personagens, que agem sem levar em conta a platéia, como que protegidas por uma quarta parede” (PAVIS, 2011, p. 315-316).
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O “teatro épico” de Brecht [...] concebe a ação teatral como o instrumento através do qual determinada atitude nas confrontações da vida e da história atuais pode ser eficazmente transmitida a um vasto público; as técnicas de “transmissão” serão usadas em razão da funcionalidade das mesmas (CHIARINI, 1967, p. 106).
Quando comparada à estética teatral brechtiana, Bodas de café difere ao utilizarse da narrativa não somente para fazer um teatro panfletário, mas sim, para narrar uma história que não caberia apenas “em uma representação”, dado exatamente o seu caráter épico. Conclusão A peça Bodas de café não traz à cena apenas a história de Londrina, mas sim um relato das “estórias” que permaneceram vivas por décadas na mente e nos “causos” de pioneiros que colonizaram essa cidade. A peça é fruto de uma pesquisa historia árdua feita pelo grupo PROTEU e constitui-se como um novo olhar para a história do município, uma história tradicionalmente escrita do ponto de vista da classe dominante que dificilmente daria voz a posseiros, agricultores, sindicalistas, estudantes e prostitutas. Esse um dos papeis da ficção, da dramaturgia e do teatro: revelar novas facetas do humano. O metateatro contribui para que a ficção apresente a história como um dentre tantos discursos, isto é, uma construção inevitavelmente ideológica e subjetiva. Tal como a história de Londrina está encaixada no processo de criação artístico do PROTEU (mise en abyme), também histórias de personalidades incógnitas estão inseridas na teia do discurso histórico tal como reconstruído pela dramaturgia da peça aqui estudada.
Referências ARRUDA, João. Bodas de café. Folha de Londrina, Londrina, 08 jul. 1984. Caderno 2, p. 17. CHALHUB, Samira. A metalinguagem. São Paulo: Ática, 2005. CHIARINI, Paolo. Bertolt Brecht. Tradução de Fátima de Souza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. JACON, Nitis. Bodas de Café. Londrina, 1984. mimeo.
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______. Memória e recordação – Festival Internacional de Londrina – 40 anos. Realização Àmen (Associação dos Amigos da Educação e Cultura Norte do Paraná). Londrina: Midiograf, 2010. MARINÓSIO FILHO. Dos porões da delegacia de polícia. Londrina: Editora Canadá, 1979. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.
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SOLIDÃO, LOUCURA E MORTE: A REPRESENTAÇÃO FEMININA EM “AS FORMIGAS” DE AUGUSTA FARO Suely Leite – UEL Ainda que estejamos vivendo tempos mais modernos, em que os papéis sociais já possam ser invertidos com um pouco menos de espanto por parte de certa camada da sociedade, a expressão social (o modo como cada indivíduo se movimenta dentro das exigências cotidianas de uma sociedade) de cada ser humano dependeria, em tese, do seu sexo ou, ao menos, daquilo que se espera a partir da condição sexual com que se nasceu: feminina ou masculina. Cada uma dessas condições deveria levar a um tipo de comportamento, principalmente no que se refere à sexualidade e, no caso da condição feminina, o casamento, junto com a maternidade, são apresentados como normas sociais a serem seguidas. Se isso nos parece claro agora, não foi sempre assim. Publicado em 1949, O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, torna-se marca fundamental no pensamento feminista do século XX, pois abriu caminhos para a teorização em torno das desigualdades construídas em função das diferenças entre os sexos. Discorrendo sobre as razões históricas, os mitos que fundaram a sociedade patriarcal, que a sustentam e que trataram a mulher como um “segundo sexo”, silenciando-a e relegando-a para um lugar de subalternidade, Beauvoir, entendendo “feminilidade” como uma construção, parte da dupla edificação deste conceito dentro do paradigma patriarcal, entendendo o “feminino” como essência e também como código de regras comportamentais. Beauvoir antecipa, então, o conceito a que se refere a palavra “gênero”, construção social, por oposição a sexo, que designaria somente um componente biológico. É a partir da frase “não se nasce mulher, torna-se mulher”, inscrita nessa obra pela intelecutal francesa, que se começa a pensar sobre a identidade feminina e a questão de gênero enquanto construção cultural que se dá ao longo dos séculos, caracterizada por relações sociais desiguais entre homens e mulheres. Essa construção cultural acontece e é reforçada por símbolos, leis, normas, valores e instituições. As oposições entre os papéis destinados a cada sexo encontramse, portanto, arraigadas na própria educação do indivíduo, que se faz distintamente desde a convivência familiar. E é esse o tom que permeia as treze narrativas presentes
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na coletânea Friagem (2000), de autoria de Augusta Faro. Para esse trabalho, tomaremos como objeto de estudo o conto “As formigas”. O espaço diegético é marcado por modalizadores que nos fazem inferir tratar-se de um local afastado das grandes cidades onde determinados discursos estão arraigados “também médico de casa, nesse fim de mundo, formado há tanto tempo e plantador de roça, só nisso que poderia dar”. (Faro, 2000, p. 12). Entre esses discursos encontra-se o da normatividade do comportamento da mulher. O tempo da narração só pode ser aferido por meio de um detalhe, a época em que havia em Goiás a companhia aérea chamada Lóide Aéreo Brasileiro, cujo histórico de acidentes situa-se na década de 1950: “Dolores soube que havia o Lóide Aéreo Brasileiro, caindo muitos aviões” ( Faro, 2000, p. 11-12). Importante ressaltar que na década de 1950 a moralidade feminina é significada a partir do casamento. As jovens eram preparadas para serem a “rainha do lar”, e uma moça, com a idade aproximada de 25 anos, que ainda não havia entrado no rol das senhoras casadas, era considerada uma solteirona. Falaremos disso mais adiante. O conto tem uma forma interessante: é dividido em dez partes, entre elas, o desenho de uma formiga. Narrado em terceira pessoa, o texto começa com a apresentação da personagem principal chamada Dolores. Tal nome tem sua origem na língua latina e nos remete ao termo lamentações. Essa é a primeira expectativa que se cria em torno da personagem. Alguém que vive em mundo cercado por lamentações. Sua primeira aparição na narrativa vem ligada à questão da assepsia bucal: “A boca de Dolores era limpa. Escovava os dentes umas seis vezes por dia”. (Faro, 2000, p. 11). Sua relação com esse ritual de limpeza data da infância. Parece-nos pela voz do narrador que Dolores foi criada pela tia, pois sua mãe morrera ainda quando era pequena, e a personagem se pergunta sobre a morte da mãe, se não poderia ter sido causada pelo fato de esta não ter conseguido manter a higiene da boca. A primeira pista da narrativa é intrigante: a relação entre assepsia bucal da mulher e sua moral. A limpeza da boca relacionada à pureza do corpo, não imaculado sexualmente, receptáculo das normatividades sociais acerca da sexualidade feminina. A moralidade é metaforizada na higiene da boca e, em certo momento do texto, a protagonista se questiona se a morte da mãe não poderia estar relacionada à incapacidade desta em manter a boca e a moral higienizadas. Interessante notar que esse discurso da higienização assimilado por Dolores é o mesmo que ela repassa a suas bonecas, cumprindo o papel da maternidade junto a essas,
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pois ao ouvir da tia “Limpa a boca, menina” intenaliza a frase a tal ponto que passa a ter um ritual diário “e lavava a boca das bonecas, escovava, quebrava os dentinhos de celuloides delas” (Faro, 2000. P. 11). Ainda na apresentação da personagem, sabemos por meio do narrador que Dolores tem uma fixação por bonecas de celuloides a ponto de na adolescência ter adotado para si o nome do material usado para a fabricação de bonecas. Apresentava-se aos meninos como aquela que se chamava celuloide: “Por isso, quando o moço pegou nos peitinhos dela e falou ao ouvido: “Seu nome é Celulóide? Ela, ainda se derretendo, disse: “É Celulóide, sim; apelido, Dolores”. O moço foi embora, e ela pensou que, talvez, não tivesse gostado de seus celuloides nascendo”. (Faro, 2000, p. 11) Dolores é então descrita pelo narrador como uma garota típica de sua adolescência: aquela que tem a curiosidade em transitar pelo terreno da sexualidade. Porém, essa é a única vez que o narrador se pronuncia sobre isso deixando entrever que a personagem compartilhava com os garotos da curiosidade que se encerrava nos primeiros contatos sexuais, contatos esses que não iam adiante e era quando ela então voltava a estar sozinha com suas bonecas. O que percebemos nesse trecho do conto é que Dolores não avança nas suas descobertas sexuais, e isso se dá pelo comportamento dos meninos que desistem de levar suas curiosidades adiante e não por uma opção da protagonista. A ausência de experiências sexuais se dá na vida de Dolores por falta de interesse dos meninos com quem ela convive, o que acaba por si só configurando-se em um traço de rejeição e de fracasso feminino no processo da sedução, tão instigado pela sociedade patriarcal. A presença das bonecas como partícipes da infância e da adolescência da protagonista nos chama a atenção para o papel que esse brinquedo desempenha na educação das meninas. Incorporadas na cultura infantil, assumindo, assim, personalidades específicas como as de bebês, tais brinquedos contribuem para assimilação das futuras atribuições maternais, pois na infância as crianças estão criativamente reinterpretando sua identidade social, o que certamente reafirma o papel das bonecas enquanto ícones representativos dos papéis sociais e dos valores de uma sociedade que atribui à mulher a sua função de mãe e cuidadora.
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Interessante observar a especificidade das bonecas que eram alvo da contemplação de Dolores: elas não eram de porcelana, nem artesanais, mas sim de celuloide, material termoplástico, que em 1869, tornou possível a fabricação de bonecas em grande escala. No contexto do conto, essa informação, aparentemente irrelevante, toma uma dimensão interessante ao pensarmos nos atributos femininos que são incutidos nas meninas desde a infância: o da maternidade. E ao fazer referência ao material que possibilita a fabricação em série, essa mesma informação acaba funcionando como uma pista para o leitor: a constatação de que a forma como esse brinquedo é fabricado ilustra, o mesmo processo pelo qual as mulheres são convencidas de que seu papel social no mundo é o de ser mãe: o brinquedo passa pela produção em série, as mulheres passam pela construção social de seu papel na sociedade. A segunda parte do conto traz a protagonista em uma consulta médica. O motivo de tal ocorrência é o fato de Dolores se sentir incomodada com um sonho recorrente: o de que sua boca vive cheia de formigas. Aí, a explicação da assepsia bucal tão perseguida pela personagem. As formigas representam a invasão do Outro na vida da protagonista, ainda que de forma onírica. Ainda nessa parte, Dolores é informada do diagnóstico dado pelo médico para a recorrência de tal sonho: a falta de casamento, a solteirice. A personagem passa a configurar-se como uma solteirona e no contexto social em que vive, o não-casamento constitui-se em descumprimento dos cânones instituídos, ou seja, as jovens que fracassaram em conquistar um marido contrariam as expectativas sociais. O fato é que uma mulher de 50 anos que nunca casou gera desconfiança entre as pessoas, que elaboram diferentes suposições para qualquer dissonância em seus discursos. Dolores informa ao médico que não come doces, nem carne, segue a dieta que vê em revistas da moda e o médico lhe assegura que ela tem uma mente fraca. Sua identidade de solteirona está atrelada aos estereótipos de mulher que não tem com quem se ocupar, que vive de leituras fúteis e românticas, um conjunto de fatores que indicam ser ela uma pessoa frágil, em dissonância com a realidade, portanto, passível de descrédito sobre seus incômodos sonhos. A protagonista sai enraivecida do consultório e se consola com a possível falta de capacidade do médico em diagnosticá-la de forma científica. Atribui ao espaço em que vivem, uma cidade pequena, afastada dos grandes centros, local em que todos se conhecem, a intimidade entre todos da cidade, o conhecimento de sua vida pessoal, tudo isso contribui para que o médico não lhe dê crédito. Dolores não assimila o diagnóstico
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do médico: vai continuar com a assepsia bucal, cortando os doces de sua dieta para que não venha ser incomodada pelas formigas. Até então a narrativa se pauta por um sonho estranho de uma mulher solitária: seus dentes são corroídos pelas formigas que se antropomorfizam em altas risadas, que produzem barulhos de serrotes ao serrarem os dentes de Dolores. E o insólito se instaura na narrativa: Dolores acorda pingando mel. O sonho estranho encadeia um fato que foge ao domínio do real, temos aí a presença do fantástico? Na literatura contemporânea, as narrativas rompem com a mímese realista ao utilizar-se de representações irreais e enredos que abordam os dois níveis do insólito: eventos que estão além da ordinariedade e da naturalidade, ou seja, extraordinários e sobrenaturais. Dessa forma, a literatura contemporânea permite aproximações com o Maravilhoso, o Fantástico, o Estranho e o Realismo Maravilhoso, uma vez que, no que diz respeito à estrutura narrativa, apresenta uma característica em comum com esses gêneros: a presença de eventos insólitos, ou seja, de intervenções sobrenaturais ou incomuns, a partir do que as suas narrativas estruturam-se. Na narrativa em questão os eventos insólitos não são identificados pelas personagens nem percebidos como tais, e nem explicados, uma vez que estes não podem e nem devem ser apreendidos ou explicados. Dessa forma, o “não esperado”, o insólito, e, por sua vez, o incomum, é tornado comum na narrativa na medida em que a presença da formiga na boca de Dolores é incorporada à realidade de maneira normal e cotidiana. O conto apresenta um estatuto de realidade diferente do habitual, em que aparecem certos acontecimentos insólitos que fogem à verossimilhança com a nossa realidade circundante, e no qual o peso atribuído à causalidade é a condição de solteirice da protagonista. A partir daí, outros rituais se seguem: o padre é chamado para benzer a casa, Dolores põe a boca no mundo, a cidade buliça-se como formigueiro em torno da notícia de que as formigas invadem a casa e a boca da protagonista. O diagnóstico inicial dado pelo médico é corroborado por todos os moradores e ainda acrescido de outros: falta de couro. Dolores parece contar com a solidariedade da cunhada que pede ao marido para que leve a irmã a um médico, em outra cidade onde haja mais recursos, mas o irmão é taxativo “mulher tem que casar”. Diante do abandono e do descrédito de todos, Dolores mantém sua rotina: dormir, sonhar com as formigas, acordar no meio da noite, lavar a cabeça na água fria, chorar e escovar os dentes.
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Os eventos insólitos no conto ganham mais um episódio. Dolores manda lavar a casa com álcool e querosene, mesmo assim percebe que suas bonecas tem os olhos chupados pelas formigas. Essas não perdoam a identidade feminina: ainda que seja nos seres de celuloides ou nas mulheres reais. Interessante notar que Dolores apela para todos os rituais de purificação: se jogar na bica da água, desinfetar a casa, benzer o local, mas nada adianta, tudo isso só aumenta a sua incomunicabilidade como mundo e o seu estado de solidão. Abandonada pelos vizinhos, amigos e família, ainda ouve do irmão a seguinte sina: “ mulher que não tem serviço, não casa, dá nisso. Tem que ter marido e filho para cuidar, senão endoida”. Dolores assume a identidade de doida: faz uma barricada de latas da água em volta da cama para não ser atacada pelas formigas. O que nos chama a atenção no conto é o discurso proferido socialmente e canalizado nas vozes daqueles que estão em volta da protagonista. Todo o comportamento da mulher está relacionado ao fato de ela estar ou não solteira, como se a solteirice estivesse atrelada à solidão e essa por sua vez seria um condicionante para os comportamentos estranhos de Dolores, o que a levaria a um estado de anormalidade, de loucura, e portanto, passível do descrédito da sociedade. Suas angústias e seus medos são desprezados, pois a causa atribuída a eles tem um componente patriarcal: o fracasso de não ter conseguido construir uma família e ter seu lugar garantido na sociedade: o de esposa e de mãe. Renata Fabiana Pegoraro e Regina Helena Lima Caldana, em seu artigo “Mulheres, loucura e cuidado: a condição da mulher na provisão e demanda por cuidados em saúde mental” (2008), afirmam que a loucura feminina, em muitos momentos da História, foi associada à sexualidade. Segundo as autoras, na Idade Antiga, o quadro de melancolia apresentado por muitas mulheres era atribuído ao calor advindo do sangue menstrual, elemento próprio do corpo feminino, causador de alucinações. Ainda segundo as autoras supracitadas, durante a Inquisição, as mulheres que apresentavam condutas de comportamento não aceitáveis eram caracterizadas como bruxas e ainda “ tratava-se de mulheres que não haviam se integrado à sociedade pelo casamento, procriação, produção doméstica, convertendo-se em sobrecarga para a época” (2008). Esses elementos da História reforçam a associação entre sexualdidade, normatização de comportamentos e loucura.
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Carla Cristina Garcia em seu livro Ovelhas na névoa: um estudo sobre mulheres e a loucura (1995) realizou um estudo sobre as causas que levam mulheres a serem internadas em manicômios. Dentre as 68 pacientes estudadas por ela, houve predomínio de mulheres em faixa etária reprodutiva (até 45 anos), solteiras e sem filhos, com baixa escolaridade, e profissões ligadas ao lar (dona-de-casa ou empregada doméstica). Par a pesquisadora, muitas mulheres estão ali internadas por não darem conta do papel que a sociedade espera que elas cumpram: “uma mulher que não esteja disposta a isso ultrapassa a imagem ideal e não consegue encontrar nenhum modo de se exprimir que não seja visto pela sociedade como antinatural" (Garcia, 1995, p. 120). Assim percebemos o universo de Dolores. Sua visão de mundo, suas preocupações são vistas pela sociedade como algo anormal. Seu processo de decodificar a realidade é marcado pelo trânsito entre o real e o fantástico, entre a normalidade e a loucura. O conto é encerrado com a descrição de uma vizinha de Dolores, que ao ver a casa fechada, manda avisar os irmãos que chegam e arrombam a porta: ela está deitada, nua, branca como leite e rodeada de bonecas, “ria seu sorriso de solidão”, e as formigas, dançavam e cantavam em volta de Dolores. É interessante, no entanto, que o fato aparentemente mais inverossímil para o leitor, que é a invasão das formigas a ponto de destruírem os olhos das bonecas, não é questionado pelos habitantes e pelo narrador como algo estranho ou impossível de ocorrer. Isso pode ser explicado por talvez haver uma espécie de naturalização do insólito, ou um certo “acostumar-se” com aquela irrupção do novo. Os pequenos insetos aparecem à noite, e é quase sempre no amanhecer – normalmente tido em nossa cultura como símbolo de uma vida nova – que os fatos são percebidos, vistos e reconhecidos, como se assim não pudessem ser questionados. Se durante às noites, irrompe a desordem, ao amanhecer elas somem, e a vida parece voltar ao seu normal. A narrativa retoma dois grandes baluartes do patriarcado: o casamento e a maternidade. Sem conseguir cumprir sua “sina” de mulher, sua vida, suas bonecas são destruídas pelas formigas: seres disciplinados, que se unem em torno de um objetivo. No texto encontramos a estória de Dolores, aquela que renuncia aos prazeres da vida e acaba corroída pelas formigas. Nesse cenário, onde se misturam real e insólito, a narrativa acaba por apresentar uma representação feminina impossível de ser descortinada aos olhos da realidade, então, faz-se necessário a presença do elemento insólito para que o texto dê conta de representar o real: a condição feminina pautada em
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um discurso construído socialmente acerca de que uma mulher só sobrevive se estiver atrelada a um casamento e à maternidade. Referências BEAUVOIR, Simone. O Segundo sexo – fatos e mitos; tradução de Sérgio Milliet. 4 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1980. FARO, Augusta. A friagem. 3ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. GARCIA, Carla Cristina. Ovelhas na névoa: um estudo sobre as mulheres e a loucura. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. 1995. PEGORARO, Renata Fabiana; LIMA CALDANA, Regina Helena. “Mulheres, loucura e cuidado: a condição da mulher na provisão e demanda por cuidados em saúde mental ”.
Saude soc. vol.17, 2. São Paulo. Apr./June 2008.
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SEMELHANÇAS, DIFERENÇAS E ATUALIDADE FORMAL EM PEDREIRA DAS ALMAS E VEREDA DA SALVAÇÃO DE JORGE ANDRADE Sula Andressa Engelmann (UEM) Este artigo pretende fazer uma análise de duas peças de Jorge Andrade, Pedreira das Almas e Vereda da Salvação, peças essas pertencentes ao ciclo Marta, a Árvore e o Relógio. O ciclo é composto por 10 peças e tem como objetivo traçar um panorama social e histórico brasileiro. O estudo será baseado em alguns elementos que se assemelham e que se diferenciam, a partir da análise pretende-se entender como se estruturam as peças e a partir disso mostrar a atualidade da obra de Jorge Andrade, a qual é uma das mais consequentes tanto do nosso teatro como de nossa literatura. Assim sendo, Pedreira das Almas tem como fio condutor a Revolta dos Liberais de 1842 (época que se dá o desenrolar da peça) e o declínio do ciclo do ouro em Minas Gerais. Pedreira como o nome já diz é uma cidade de pedra. Tem um cenário único denominado “Largo da igreja da cidade” onde a ação se desenvolve no decorrer de duas semanas, por meio de dois atos, sendo que cada ato divide-se em dois quadros, com isso temos seis participantes importantes da ação: Urbana, Martiniano, Mariana, Gabriel, Vasconcelos e Padre Gonçalo e coro de vozes femininas (Clara, Graciana, Elisaura e Genoveva). Dessa forma, podemos destacar na peça dois temas, o primeiro de um povo em busca de terras férteis e, o segundo a luta contra as leis e reformas impostas pela Revolução Liberal. Com o choque entre essas duas forças temos como resultado situações trágicas (CALZAVARA, 2010). Além disso, segundo Anatol Rosenfeld (1986), outro tema também desenvolvido em Pedreira é o da morte sem sepultura. Vereda da Salvação, a outra peça em análise, tem como cenário uma “clareira no meio da mata” onde ficam localizados os casebres de Manoel, Artuliana, Joaquim e sua mãe Dolor, os quais são meeiros da fazenda, desse modo à perspectiva da peça é a do colono, um antigo posseiro que perdeu as terras, para tornar-se um mero agregado. Dessa forma, a ação se desenrola na discórdia entre duas formas distintas de religiosidade, ou seja, um resquício de catolicismo agregado à imposição da religião adventista entre os atritos do próprio grupo formador da seita adventista, como por exemplo, “o desejo de poder, a luta pela liderança”, que é disputada entre Manoel
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(força/virilidade) e Joaquim (religiosidade/misticismo); e “o ressentimento do fraco contra o forte, os problemas de sexo extravasando em atitudes públicas, a procura de um sentido para a vida” (MAGALDI, 1986, p. 637). Desse modo, ainda segundo Magaldi (1986), temos quatro personagens maiores, Manoel, Artuliana, Dolor e Joaquim. O dois primeiros dominam a cena enquanto a ação se aproxima de elementos terrenos, mas quando ação rompe para uma fuga mística entra em cena os outros dois. Em suma, no começo da peça a ação se desenrola com base na disputa pela liderança e pelas motivações puramente humanas, mas Joaquim tendo ganhado a disputa, se identifica com Cristo e com isso, supera o ressentimento que sente por seu rival e passar ao exercício da divindade defendendo todo grupo, em busca da Vereda da Salvação.
Elementos que se assemelham nas peças Jorge Andrade em Marta, a Árvore e o Relógio reuniu dez peças fazendo assim a união dos ciclos, os quais estão marcados em todas as obras do autor, montando assim um panorama social brasileiro, ou seja, o autor inicia com o auge e a decadência da era do ouro em Minas Gerais, abordando a questão da cobiça por terras produtivas em São Paulo, e o início do ciclo do café, ciclo esse muito importante em sua obra, pois revive histórias entranhadas na mente do autor. Mas, com a queda do café em 1929, temos uma mudança radical no ciclo, isto é, que antes estava calcada no campo, passa a visar à cidade, a indústria e a divisão do trabalho, contexto o qual é modificado pela Revolução Industrial que começou logo após a queda do café em 1930. Dessa forma, nas peças em estudo temos uma junção de dois ciclos, o do ouro e do café, sendo assim Pedreira das Almas (2ª peça do livro) traz como pano de fundo a decadência do ciclo de ouro e a cobiça por terras férteis em São Paulo e, Vereda da Salvação (5ª peça do livro) tem como pano de fundo uma fazenda de café. Outra ligação presente é entre os personagens, os quais saem de uma obra e entram em outra, formando assim, uma teia muito bem desenvolvida pelo autor. Por
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exemplo, Os protagonistas, de O Telescópio (4ª peça do ciclo), o casal de fazendeiros Francisco e Rita, são netos de Gabriel que, vindo de Pedreira das Almas, tomou posse de 30.000 alqueires, terra essas que tinha posse Manoel de Vereda da Salvação, mas com a chegada de Gabriel e de seus descendentes se torna apenas meeiro. Dessa forma, Dolor e Joaquim, personagens centrais de Vereda da Salvação, são meeiros na fazenda de Francisco e, além disso, o delegado Hélio, personagem de Senhora na Boca do Lixo (6ª peça do ciclo), é o mesmo, que embora sem intenção de matar envia a força policial que extermina os crentes fanáticos de Vereda (ROSENFELD, 1986). Com isso, a partir dessas ligações Jorge Andrade pretende mostrar as transformações do panorama histórico-social brasileiro, as quais estão marcadas numa grande árvore genealógica que são seus personagens. Portanto, tudo está interligado, isto é, personagens, enredos, épocas, e histórias. Sendo assim, Jorge Andrade utilizou dos três elementos, que dão nome ao ciclo, para permear as peças trazendo um significado no todo. Segundo Décio de Almeida Prado (2009), Das três palavras que compõem esse título um tanto enigmático, a primeira, Marta, refere-se a uma mulher que é mola propulsora do ciclo, encarnando o espírito crítico e revolucionário do povo; a segunda, evocando a árvore genealógica, remete-nos ao passado, sem o qual não se compreende o presente; e a terceira, o relógio, relacionase com o tempo, estagnado para certos grupos sociais, correndo aceleradamente para outros (PRADO, 2009, p. 95).
Dessa forma, temos nas peças em estudo esses três elementos, isto é, Marta está presente em Pedreira das Almas e Vereda da Salvação. Na primeira, ela conduz os personagens à mudança, ou seja, é Marta que impulsiona Mariana, Martiniano e principalmente Gabriel a ir buscar terras produtivas no Planalto, isso fica claro no diálogo entre Clara e Mariana que diz: “foi Marta quem nos convenceu... de que não deveríamos continuar aqui” (ANDRADE, 1986, p. 76). Na segunda, Marta é mencionada em um momento chave da peça, que é quando os agregados começam a mudar de nome e Dolor passa a ser chamada de “Maria das purezas”, com isso temos a entrada conscientemente de Dolor ao misticismo, vendo a
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impossibilidade de recuo e, a mudança do plano do real para o irreal (ANDRADE, 1986, p. 267). A árvore, segundo Nosella (2010, p. 03), é “como o símbolo da terra que se perde e se torna o túmulo à céu aberto”, com isso ela está presente nas duas peças, em Pedreira das Almas ela faz parte do cenário, que é a única coisa que vive ou consegue viver entranhada na pedra e, em Vereda da Salvação a ação se dá no meio da mata da fazenda, onde é revivido o massacre de Catulé, Nordeste de Minas Gerais. O último elemento, tem como significado, ainda segundo Nosella, “o tempo que se paralisa historicamente e assume o papel de símbolo de uma tradição que teima em não se perder”. Ao contrário dos outros elementos, ele só está presente em Pedreira das Almas, no final da peça, quando Clara diz: “Desça e leve o relógio. Tome cuidado.” (ANDRADE, 1986, p. 115). Dessa forma, tem como significado o fim de um tempo e início de outro, isto é, o fim de Pedreira e do ciclo do ouro. Jorge Andrade, no seu panorama do contexto histórico brasileiro, alia o seu realismo rebuscado e moderno a histórias verídicas, algumas das quais vividas pelo autor, como por exemplo, a crise do café em 1929 onde seu avô perdeu boa parte da fazenda e, além disso, as lembranças e relatos entranhados na memória do autor. Sendo assim, Vereda da Salvação recria o drama do Calvário, o qual partiu dos próprios episódios ocorridos em Catulé, na fazenda São João da Mata, pertencente ao município de Malacacheta. Meeiros que eram membros da Igreja Adventista da Promessa, exaltados pelo ardor religioso da Semana Santa, mataram quatro crianças, que estariam possuídas pelo demônio, e reviveram à sua maneira a Paixão bíblica. A polícia, chamada pelo fazendeiro, liquidou com suas armas aquele desvario (MAGALDI, 1986, p. 634-644). Pedreira das Almas é uma das muitas histórias que ouviu em sua vida sobre a gruta de São Tomé das Letras em Minas Gerais. Segundo Magaldi (1986, p. 673) Pedreira das Almas espelha a consciência de perda da aristocracia agrária, marca arraigada na personalidade, que leva o autor a descrever outro instante de crise (derrota
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dos liberais pelas forças absolutistas em 1842), no cenário tomado da cidade mineira de São Tomé das Letras, quando se esgotaram os veios auríferos. Dessa forma, as duas tragédias recriados por Jorge Andrade tem em seu enredo a presença do tom messiânico, ou seja, a religiosidade, o misticismo e a profecia. Dessa forma, a religiosidade é bem explorada em Vereda da Salvação pela fé como caminho para uma libertação utópica e em Pedreira das Almas a ação se dá em um espaço religioso, ou seja, na igreja da cidade, onde ficam os corpos de Urbana e Martiniano a espera do sepultamento. O tom profético em Pedreira das Almas é expresso pelo Padre Gonçalo quando diz, “Sinto que grave ameaça paira sobre nós.”, o qual pergunta no decorrer da peça várias vezes por Martiniano, pressentindo que havia ocorrido algo a ele, com isso, na sequência da ação descobrimos que Martiniano foi preso pelos abolicionistas. Além disso, ele introduz informações que são imprescindíveis para o sentido da peça, como por exemplo, a cidade não tem mais espaço nem para os mortos nem “há mais espaço para os vivos. São eles que precisam viver.”, tema do insepulto e a procura por vida no Planalto, pois Pedreira é apenas uma cidade de almas. E quando o padre diz para Urbana que “aceitemos nossas culpas, para não recebermos um castigo maior”, sendo assim, o castigo maior profetizado por Gonçalo, será a morte de seu filho (ANDRADE, 1986, p. 83 e 85). Em Vereda da Salvação, Ana e Dolor são responsáveis por introduzir o tom profético na peça. Ana desde o início da peça desconfia de Joaquim e diz para Manoel (seu pai) que precisa “ter mais malícia com esse sujeito”, além disso, introduz o episódio final da peça o voo aos céus, dizendo: “Essa gente não quer é trabalhar, pai. Joaquim menos ainda. Fica pensando em voar p’ro céu feito passarinho! Onde já se viu! O senhor trabalha, não precisa disto.” e, completa “sinto vexame na fazenda, pai. ‘Seu’ Francisco e dona Rita já estão pensando que somos tudo doido.”. Com isso, as falas de Ana introduzem a intenção de Joaquim e a desconfiança do povo da fazenda ao fanatismo dos agregados e, segundo Ana a culpa é de Joaquim que “está virando a cabeça de todos” (ANDRADE, 1986, p. 240 a 241).
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Dolor prevê as ações trágicas e tenta de todas as formas, inserir seu filho novamente a ordem social imposta, ou seja, casar-se, construir uma família, mas vendo que isso não funciona tenta até levar seu filho para longe, no entanto, Joaquim segue fielmente ao misticismo. Não sendo possível a inserção de seu filho, ela passa a acreditar que o pecado que não permite a ida ao Tabocal está nela, que teve oito filhos sem ser casada e, com a volta dos agregados do banho de purificação onde segundo Joaquim o Espírito Santo mostrou a “Vereda da Salvação”, Dolor estremece, vendo que o filho rompeu o liame da realidade. Sendo assim, não vendo mais a possibilidade de recuo e com medo de contar que o pecado estava nela acaba por inserir conscientemente ao misticismo. Nas duas peças temos a presença do trágico, ou seja, as ações e os atos se encaminham para uma resolução trágica. Por exemplo, em Vereda da Salvação, Ana (filha de Manoel) vai até a fazenda para buscar ajuda a seu pai, no entanto chama a atenção dos donos para o devaneio, o qual contata a força policial que restaura a ordem exterior, causando a morte de todos os fanáticos, inclusive de Ana. Ainda em Vereda, a personagem Dolor (mãe de Joaquim) prefere a morte iludida de seu filho do que a verdade dos fatos, isso fico claro quando diz: “Joaquim pensa que é Cristo, pois que morra assim. Essa alegria ninguém mais pode tirar dele.” (ANDRADE, 1986, p. 276). De acordo com Magaldi (1986, p. 639), Vereda da Salvação expõe os acontecimentos na sua inevitabilidade trágica, dada à lei que vigora, sendo assim, o grupo, de um lado, quer escapar da terra para a viagem ao céu, e de outro os tiros policiais tornam premente a realidade. Em Pedreira das Almas, a presença do trágico se dá entre permanecer em uma ordem antiga, defendida por Urbana ou ir à busca de uma nova ordem, defendida por Gabriel. Essa dialética é expressa por Mariana que não sabe se abraça os valores da mãe ou segue o seu noivo rumo ao Planalto; Gabriel, quando livre, fica entre partir com o povo de Pedreira e ficar com Mariana e; Urbana com o mandado de prisão contra Gabriel se vê entre entregar Gabriel para a policia para em troca ter seu filho nos braços ou correr o risco de não ter mais o filho para salvar Gabriel.
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Em suma, segundo Leite (2007), Mariana, pretendendo partir da cidade percebe que se o fizer perde uma parte de si – Urbana, sua mãe. Por desejar não ficar, acaba petrificada na cidade. Por não desejar perder um amor familiar, acaba, por erro trágico, perdendo seu irmão. Por amar demais Gabriel, decide segui-lo; mas se dá conta que a salvação do povo da cidade – a saída – está exatamente em sua permanência no lugar. Deixa assim, seu amor partir sozinho, querendo com ele seguir. Urbana, por sua vez, ao acreditar em um governo anti-liberal, perde seu filho por um ato de crueldade e excesso deste mesmo poder. Ao desejar entregar Gabriel às forças policiais, acaba por conservá-lo em seu silêncio. Ao desejar a velha ordem, promove uma nova ordem (LEITE, 2007, p. 54).
Portanto, segundo Rosenfeld (1986) a estrutura trágica de Jorge Andrade, que nada tem a ver com o padrão consagrado, compõe-se, original e necessária, em perfeita consonância com sua visão dialética da natureza humana. Nas duas peças temos a presença da morte como forma de libertação e fuga. Em Pedreira das almas temos como tema a morte sem sepultura, pois para enterrar o morto, Mariana teria que entregar um vivo, no caso Gabriel, o qual representava para o povo de Pedreira o futuro e a libertação de uma terra de almas. Em Vereda da Salvação, a morte ou o voo aos céus resultado do massacre revivido no Nordeste de Minas Gerais, seria o único caminho para a salvação e libertação de um mundo opressivo. Dessa forma, segundo Rosenfeld (1986, p. 612), esse tema é aliado ao passado, ou seja, a morte como libertação das venerações e tradições do passado defendidas por Urbana em Pedreira das Almas e, em Vereda de Salvação a fé messiânica como libertação de um passado imemorial que os oprime e no desespero veem que a única forma de libertação é o “transe místico e a evasão utópica”.
Elementos que se diferenciam As peças se diferenciam na estrutura, isso ocorre através da divisão da ação e do tempo, isto é, em Pedreira das Almas a ação é dividida em dois atos, sendo que cada um deles contêm dois quadros e o tempo da trama dura duas semanas. Já em Vereda da Salvação temos apenas dois atos e a ação se desenvolve em um tempo curto, ou seja, do crepúsculo de um dia ao amanhecer de outro.
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Outro elemento que as diferenciam é o do ponto de vista, isto é, em Pedreira das Almas a perspectiva adotada pelo autor é a posição de mando, ou seja, o ponto de vista dos donos, por exemplo, foi o pai de Urbana, que fugindo de uma tempestade se abriga em uma galeria entre as rochas, onde teve a ideia de montar uma cidade. Dessa forma, segundo Antônio Cândido (1986) a peça recua ao passado, mostrando o momento em que a sua classe era pujante, desempenhando um papel que legitimava a posição de mando. Já, em Vereda da Salvação temos uma mudança radical de perspectiva, ou seja, agora é vista pelos olhos do dominado pelo mundo agrário. Segundo Rosenfeld (1986 p. 604), essa peça focaliza a classe dos pacientes e objetos, isto é a classe dos trabalhadores rurais que vive em um “mundo marginal, mítico, a-histórico, intemporal”. Dessa forma, o fanatismo sangrento é a única forma dos agregados conseguirem a libertação da opressão que sentem o peso esmagador, no entanto não tem a consciência nítida do mecanismo que os escraviza. A ação, também se diferencia, isto é, em Pedreira das Almas temos nas mulheres o alicerce, ou seja, Urbana, Mariana, Clara, Graciana, Elisaura, Genoveva são as que mais participam na peça, é elas que tomam as decisões e ajudam Gabriel a se manter vivo. Em Vereda da Salvação a ação é comandada pelos homens, ou seja, a disputa pela liderança entre Manoel e Joaquim. Aquele, trabalhador e viril, lidera o grupo enquanto a ação se baseia em objetos e disputas terrenas. Este, franzino e religioso, o qual passa a liderar o grupo dos agregados quando a ação rompe com os elementos terrenos e com o real, sendo assim, a liderança se dá pela crescente fé messiânica e o desejo de voar aos céus. E por fim, o tipo de conflito apresentado, especialmente, os finais, isto é, em Pedreira, embora o casal se separe, muitos vão à procura do Eldorado, que será a formação das fazendas do norte do Estado de São Paulo; em Vereda, para os trabalhadores rurais subjugados pelos donos daquelas fazendas, o que resta é o massacre completo.
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Atualidade formal das peças Pedreira das almas e Vereda da Salvação Segundo Rosenfeld (1986, p. 600) a obra de Jorge Andrade se distingue, no panorama do teatro brasileiro contemporâneo, pelo equilíbrio, pela lucidez, a qual não se deixa contaminar por modismos ou por desvarios. Com frequência, o autor transforma o palco em “espaço interno” da mente dos personagens, trabalhando assim as questões do ser. Nas peças utiliza de um diálogo forte, seco, incisivo, cuidadosamente trabalhado para reproduzir de forma estilizada, a fala dos personagens segundo a origem e o status social, com isso, a análise social, baseia-se na experiência pessoal e em dados de observação da realidade nacional que cercam o autor. Dessa forma, Jorge Andrade debruçado sobre a realidade paulista e brasileira e seus aspectos históricos, sociais, morais e psicológicos, tende na recriação e interpretação deste mundo utilizando variadas formas de realismo, desde o psicológico até o poético. É um realismo maleável, capaz de assimilar recursos expressionistas e simbólicos e abrir-se a processos do teatro épico e anti-ilusionista (ROSENFELD, 1986). De acordo com Rosenfeld (1986), o traço característico das peças é o rico quadro de personagens e situações, os quais são explorados até o fundo de seu conteúdo universal, sem prejuízo da particularidade diferenciada do autor, resultado das condições histórico-sociais de que a obra, no seu todo, apresenta um imenso painel. Com isso, segundo Machado (1986), em Pedreira das Almas, o clima trágico se dá pela cidade esvaziada pela revolta liberal, sua estrutura trágica é original, pois o autor preferiu forjar uma tragédia sua, autêntica, de desenvolvimento da composição, coerente como sua visão, a um tempo psicológica e histórica, do humano. Em suma, faz sua própria tragédia na esperança de ser compreendido pelos homens. Por todos os homens. Conforme Cândido (1986) Vereda da Salvação é importante para a nossa dramaturgia, pela capacidade que Jorge Andrade demonstrou de criar um grande símbolo para um grande problema social.
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Partindo do tipo de reação corrente em nossa sociedade rural, - o messianismo, - ele a interpretou em correlação estreita com o esmagamento econômico e a espoliação, dando-lhe vida por uma poderosa caracterização dramática. Sob os esforços patéticos de Joaquim voar aos céus, percebemos um mito de liberdade, um símbolo de energia em busca de expansão, traduzido na forma acessível à mentalidade elementar daquela pobre gente (CÂNDIDO, 1986, p, 632-633).
Dessa forma, segundo Anatool Rosenfeld (1986), o teatro de Jorge Andrade afigura-se como um grande julgamento que recorre à exumação para compreender, defender e acusar; é um constante prestar de contas, é libertação e redenção do passado em prol do porvir. A descida às tumbas é como que um ritual de exorcização para apaziguar as sombras do passado (ROSENFELD, 1986 p. 607-08).
Portanto, a obra de Jorge Andrade é de grande importância para a dramaturgia brasileira, suas peças se destacam pela riqueza formal, a qual compreende com um olhar histórico o homem e a realidade brasileira. Com isso, temos em suas peças um grande panorama do Brasil, começando pelos índios, descoberta do ouro em Minas Gerais e a sua decadência, o início de uma nova cultura, ou seja, do café e a sua crise em 1929, a dialética de campo versos cidade e, as mudanças causadas nas relações sociais depois da Revolução Industrial, com isso, torna-se atual, universal e intemporal.
Considerações Finais Como vimos Pedreira das Almas e Vereda da Salvação são interligadas, tanto elas como todas as outras peças. Dessa forma, o teatro de Jorge Andrade buscou trabalhar a dialética do ser embutido no meio social e mostrando como isso interfere em suas ações. O contexto histórico brasileiro permeia toda a sua obra, sendo assim, sua obra considerada como um panorama da história brasileira, com isso é considerado por alguns críticos um poeta que estuda o ontem, mas como forma de entender o presente. Dessa forma, segundo Magaldi (1986) algumas indicações que configuram a dramaturgia de Jorge Andrade são, em busca do pai perdido, os bens e o sangue e o
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painel de quatrocentos anos da História do Brasil. Sendo assim, autor de uma das obras mais orgânicas e consequentes tanto do nosso teatro como de nossa literatura. Em suma, mesmo sendo considerado um “poeta do ontem” sua obra é inteiramente atual, isso é possível através do seu realismo rebuscado e moderno e de sua linguagem bem trabalhada, a qual se adéqua ao status social ocupado pelos personagens, o seu regionalismo típico em alguma das peças, o seu rico aprofundamento no quadro dos personagens e das situações, pelas estórias pessoais aliados as lembranças entranhadas na memória do autor dão mais veracidade as peças e através disso, procura fazer um teatro próprio buscando formar uma nova dramaturgia nacional.
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Disponível
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em: Acesso
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PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 2009.
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A ESCOLA E SEU PAPEL COMO (RE) CONSTRUTORA DAS IDENTIDADES SOCIAIS DE RAÇA
Susana Aparecida Ferreira (Unioeste) Aparecida de Jesus Ferreira (orientadora Unioeste / UEPG)
RESUMO: O objetivo deste trabalho é refletir a respeito das identidades sociais de raça no contexto escolar, tendo em vista que a escola é a agência de letramento que permanecemos muitos anos de nossas vidas, compartilhando experiências, vivências e aprendizados. Ao passo que nos tornamos sujeitos letrados (KLEIMAN, 2008), também nos identificamos (ou não) com a realidade escolar, com os colegas, professores, com o material didático utilizado e, por meio deste processo histórico e social vamos (re) construindo nossas identidades sociais. As identidades sociais de raça, também são percebidas na alteridade, no reconhecimento do “diferente” e nem sempre esse processo se dá de forma harmoniosa. Pesquisas têm apontado o quão conflituosa estas questões têm se tornado, e isso demonstra a necessidade da continuidade de reflexões a respeito da temática racial no contexto escolar para que assim se desmistifique o mito da democracia racial, primando pelo respeito e a igualdade de direitos. A metodologia deste trabalho se pautou em análise bibliográfica. Trouxemos alguns autores que falam sobre identidades como, Moita Lopes (2002) e Hall (2004), identidades sociais de raça, Ferreira (2012), Gomes (2012), Guimarães (2004) ensino crítico hooks (1994), Ferreira (2009), Pennycook (2010), Street(2003) dentre outros que venham a contribuir com este trabalho. Como resultados, esperamos contribuir para as reflexões a respeito das questões raciais em sala de aula, demonstrando que, neste sentido a escola tem um papel de suma importância, concluímos refletindo sobre um ensino mais crítico e reflexivo contribuindo para a construção das identidades sociais de raça. Palavras-chave: Identidades sociais de raça; escola, ensino crítico e reflexivo
Introdução Entendemos as identidades sociais como social, historicamente e culturalmente construídas, como pontua Moita Lopes (2002), são construções sociais que se dão por meio dos processos do discurso. Pensando as identidades sociais de raça e etnia no contexto escolar, é importante levar em consideração que o aluno passa grande parte de sua vida dentro da escola. Dentro dela, acontecem processos importantes de (re) construção de identidades, negação das mesmas, ou a afirmação positiva delas (que é o que se espera).
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Assim, refletimos de que maneira a escola como agência de letramento de grande importância, pode contribuir com estas questões, e pensamos isso a partir das teorias dos Novos Estudos do Letramento (NEL) e multiletramentos (COPE, KALANTZIS 2008; BORBA, ARAGÃO, 2009), letramentos multimodais (MONTE MÓR, 2007), são estudos atuais que vem ao encontro das necessidades de práticas pedagógicas relacionadas à temática racial na escola. Assim, é importante que o professor consiga perceber as questões referentes à raça/etnia que possam despontar em sua sala de aula, bem como se utilizar dos benefícios que o trabalho com multiletramentos pode trazer, associando teoria e prática, aproveitando-se de diversos recursos pedagógicos para dinamizar as aulas e interagir com seus alunos da melhor forma. Particularmente, valorizando as identidades sociais de raça em qualquer época do ano e não apenas reduzindo esse tema a datas folclóricas. Desta maneira, pretendemos entender como se dá a inteligibilidade da utilização dos multiletramentos pode contribuir para o tratamento com as questões étnico/raciais em sala de aula. Para a escrita deste artigo responderemos a seguinte pergunta: Como a escola pode contribuir para a construção das identidades de raça de uma maneira positiva? A metodologia de pesquisa utilizada para este trabalho foi uma pesquisa bibliográfica. As seções estão divididas da seguinte maneira: identidades de raça, raça/etnia e as novas teorias de letramento e as considerações finais. Identidades de raça
As identidades sociais podem ser muitas, dependendo do contexto social que estamos inseridos, segundo Hall (1987) são nomes que damos aos diferentes modos com os quais nos posicionamos dentro de nossos contextos sociais. São determinadas em um processo que ocorre em todos os contextos, situações, instituições, e na instituição escolar também tornam-se uma questão especial pois a escola é a agência de letramento (STREET, 2003; JUNG, 2009) na qual passamos uma parte significativa de nossas vidas. Para Hall (2002) ela é reconhecida através da diferença, no momento de interação social, de identificação ou não identificação, de alteridade. Os processos são inconscientes e social, cultural e historicamente construídos, dessa forma, podemos
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entender que as identidades sociais de raça/etnia também são. A circulação do sujeito pelas diversas instituições sociais, as interações sociais, principalmente no que se refere à instituição escolar, sendo um lugar de longa permanência, promovem essas afirmações, negações ou construções identitárias, culminando no empoderamento ou apagamento do sujeito perante a sociedade. Entendemos assim como Gomes (2005), que a reflexão a respeito das identidades sociais está imbricada às identidades de raça, desta forma não as tomamos de maneira separada. Podemos refletir também sobre essas construções identitárias se consideramos o que coloca Costa (2012), a respeito do tempo considerável que os alunos geralmente passam em sala de aula, pois, um aluno que consiga passar por toda a etapa da educação formal no Brasil, estará presente na instituição escola via de regra por 12 anos, em 200 dias letivos anuais. Pretendemos realizar algumas reflexões abordando o ensino da diversidade étnico /racial e as novas concepções de letramento, para tanto traremos a seguir questões que versam a respeito de letramento, novos letramentos, multiletramentos, e como estas questões podem contribuir para a afirmação da identidade racial. É importante que reflitamos a respeito sobre qual é o lugar do negro nos discursos, um discurso geralmente eurocêntrico, revelando identidades que são historicamente construídos, como pontua Hall (2003) quando pensamos em sociedades como a nossa que são compostas de uma diversidade de povos e não, apenas um. Entendemos que “o racismo surge, portanto, na cena política brasileira, como doutrina científica, quando se avizinha à abolição da escravatura e, consequentemente, à igualdade política e formal entre todos os brasileiros, e mesmo entre estes e os africanos escravizados” (GUIMARÃES, 2004, p.11). Precisamos pensar qual é a ideologia1 que permeia os discursos que remetem a um processo histórico de exclusão. Refletindo a respeito das ideologias que permeiam as relações de poder podemos pensar na importância do papel do professor como sujeito que também influencia sobre maneira a construção das identidades sociais de raça do aluno pois, o mesmo tem um papel ativo na sociedade e também no contexto escolar (CAMARGO, FERREIRA, 2012). Assim no ambiente escolar, à medida que convivem 1 “idéias, valores e formas de agir apropriadas a cada classe social” (SILVA, 1990, p.5).
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e conflitam valores e ideologias na escola, lugar em que o aluno passa boa parte de sua vida, convém refletir sobre o professor, ao passo que o mesmo é detentor de uma importante ferramenta que pode construir estereótipos racistas consolidados pelas ideologias vigentes– a sua prática pedagógica, assim Nesse contexto, a discriminação racial se faz presente como fator de seletividade na instituição escolar e o silêncio é um dos rituais pedagógicos por meio do qual ela se expressa. Não se pode confundir esse silêncio com o desconhecimento sobre o assunto ou a sua invisibilidade. É preciso colocá-lo no contexto do racismo ambíguo brasileiro e do mito da democracia racial e sua expressão na realidade social e escolar (GOMES, 2012, p.104).
E como contribuir para que esses alunos saiam do silenciamento ou da invisibilidade que a escola ou as próprias práticas pedagógicas lhes conferem? A partir desse questionamento podemos também pensar como os professores, na atualidade, poderiam repensar suas práticas pedagógicas, direcionando o trabalho para as questões de raça e etnia. Como ressaltado por Kleiman (2008, p. 511) “os saberes envolvidos na atuação docente são situados: eles envolvem estratégias de ação pela linguagem, adquiridos na e pela prática social”, podemos refletir a respeito de que ações são necessárias para que os professores consigam fazer esta relação das práticas de letramento, nas e pelas práticas sociais. Entendemos que o letramento pode ultrapassar as fronteiras das práticas de leitura e escrita, ao passo que está ligado às práticas sociais (STREET, 2003). Neste aspecto, Ferreira (2009) defende uma educação antirracista, posto que esta se pauta em assuntos como raça, justiça social, igualdade racial/étnica, bem como poder e exclusão, não detendo-se aos aspectos puramente culturais. Para tanto é necessário entender a importância dos africanos e afrodescendentes para a constituição do Brasil, tal qual é constituído nos dias atuais, bem como refletir sobre as novas teorias de letramento, para que dessa forma, seja possível repensar as práticas em sala de aula, para discutir as questões de raça e etnia de maneira mais segura e eficaz. Raça /etnia e as novas teorias de letramento
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Dentro da perspectiva chamada virada social2, período de intensa globalização e democratização dos meios de comunicação, afloravam importantes questionamentos a respeito do modo adequado de se conceber a educação em um mundo multicultural, multiétnico e multilinguístico, como por exemplo: qual é o ensino apropriado para mulheres, para pessoas indígenas, imigrantes que não falam a língua nacional? Como trabalhar com a diversidade em sala de aula neste mundo cada vez mais “interconectado”? Esses questionamentos sobre o modo como os educadores tentavam resolver essas situações em sala de aula traziam as discussões a respeito do que poderia ser considerado mais apropriado. Neste sentido, é importante que consigamos perceber a cronologia, as diferenças e semelhanças dessas duas terminologias: Novos Estudos do Letramento e Multiletramentos. Bevilaqua (2013) tem um recente trabalho que esclarece justamente estas questões, pontuaremos aqui algumas informações relevantes apontados pela pesquisadora, para que assim estes termos venham à luz de forma clara, também neste trabalho. O mote principal do trabalho de Bevilaqua (2013) é o estudo comparativo dos campos teóricos denominados de Novos Estudos do Letramento (NEL) e Multiletramentos, por meio de uma revisão de literatura que versa sobre a temática. A pesquisadora cita autores que contribuíram para estes estudos tanto no exterior (STREET, 1995, 2003, 2012; LEMKE, 1998; GEE, 2009; COPE; KALANTZIS, 2000; HAMILTON, 2002; KRESS, 2003 LANKSHEAR; KNOBEL, 2007,) como no Brasil (SOARES 2004; KLEIMAN, 2007, 2009, 2010; ROJO, 2009; MOITA-LOPES, 2002), entre outros. Segundo Bevilaqua (2013) estas duas teorias trazem em seu bojo concepções que ressaltam pontos comuns e pontos contrários, o que em princípio, sugere que estas teorias são distintas. Por meio da análise de vários trabalhos que inauguram o pensamento teórico dos NEL. Ela conclui pontuando que Os Novos Estudos do Letramento e os multiletramentos representam campos teóricos totalmente imbricados e, também que os multiletramentos emergiram do NEL. Quanto as denominação Novos Estudos do Letramento, a pesquisadora, baseada em Street (2003), aponta que o referido termo foi cunhado por Gee (1991), trazendo à tona a preocupação 2
Também conhecida como virada sociocultural (LANKSHEAR, 1999), este termo foi cunhado por Gee (2000a), remete a uma mudança de paradigma: da mente do indivíduo passa-se a considerar leitura e escrita a partir do contexto das práticas sociais e culturais (BEVILAQUA, 2013, p.101).
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com o cunho mais social do que cognitivo do letramento. Nesta teoria, a prática aparece como conceito central e Brian Street como seu maior expoente a partir da obra Literacy Theory and Practice, na qual a etnografia faz parte do método da pesquisa. Ainda, a respeito da nomenclatura, ao invés de Novos Estudos do Letramento, Angela Kleiman (2008) opta por Estudos do Letramento, pois, segundo ela no Brasil “todos os estudos do letramento são novos”, posto que datam da década de 1990 (KLEIMAN, 2008, p. 489). Para ela, “na perspectiva dos Estudos do Letramento, não há apenas uma forma de usar a língua escrita – a reconhecida e legitimada pelas instituições poderosas, às quais poucos têm acesso” (KLEIMAN, 2008, P. 490). Seguindo esta linha de raciocínio, entendemos que as práticas sociais, permitem múltiplas formas de utilizar a língua escrita, essas práticas são sociais, culturais e também históricas. Reflexões a respeito das novas teorias do letramento já vem sendo realizados há algumas décadas, e no Brasil esta tomando cada vez mais corpo (STREET,1984; KLEIMAN, 1995; TFOUNI, 1995. Concordamos com Kleiman (2008), no sentido de que, conforme essas teorias vêm à baila, torna-se necessária a reflexão das mesmas com a educação, ou melhor, com o modo que elas podem contribuir para um ensino mais reflexivo, condizente com a inserção do sujeito nas práticas sociais. Uma mudança de paradigmas, na qual a partir de propostas organizadoras e norteadoras, como os próprios documentos oficiais, culminaram na preocupação do impacto social que estes estudos poderiam causar no ensino. Segundo Street (2012) os NEL propõem invalidar o conceito de que pessoas que obtém desempenho abaixo do esperado em testes de letramento, tenham limitações de cunho cognitivo e/ou social, dividindo o letramento e a oralidade. Street ainda coloca que “as práticas de letramento variam com o contexto cultural, não há um letramento autônomo, monolítico, único, cujas consequências para indivíduos e sociedades possam ser inferidas como resultados de suas características intrínsecas” (STREET, 2012, p. 82). Portanto, ao invés de utilizar letramento no singular o autor prefere utilizar letramentos ou práticas de letramento (um dos conceitos-chave do NEL). Segundo Beviláqua (2013) outro conceito-chave dos NEL é o de etnografia, está baseada em diferentes níveis, do mais abrangente ao menos abrangente. A partir destas reflexões do NEL foram elaboradas as concepções de Letramento autônomo e Letramento
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ideológico. Os novos Estudos sobre letramento não apenas criam novas teorias, mas resinificam as teorias anteriores. Street (2003, p. 77) também traz dois modelos de letramento que versam sobre os “letramentos múltiplos”: modelos autônomos e modelos ideológicos, sendo que o primeiro termo se refere simplesmente a impor conceitos ocidentais de letramento às outras culturas, ou dentro de um país, de um grupo cultural para outro e assim por diante, enquanto o termo seguinte traz uma “visão mais sensível e cultural” de como as formas de letramento podem variar de um contexto para outro, considerando suas práticas sociais e identidades plurais. Sobre o letramento autônomo, Street (2003) pontua que “a abordagem autônoma de letramento simplesmente impõe concepções ocidentais de letramento para as outras culturas ou a um país daqueles de uma classe ou grupo cultural para os outros” (STREET, 2003, p. 77). Podemos comparar com o ensino mecânico de habilidades, dito tradicional que predomina nas escolas, um ensino muitas vezes descontextualizado de uma educação para e nas práticas sociais. Já o letramento ideológico é uma alternativa ao modelo autônomo, pois “oferece uma visão culturalmente mais sensitiva das práticas de letramento que variam de um contexto para outro” (STREET, 2003, p. 77). A respeito da denominação eventos de letramento e práticas de letramento, a primeira “ajuda a focalizar uma situação particular onde as coisas estão acontecendo” (STREET, 2012, p. 75), podendo observar este evento que envolve leitura e escrita, enquanto acontece. Ainda, quanto às práticas de letramento Street (2012) coloca: [...] ‘práticas de letramento’, que no momento, me parece ser o mais vigoroso dos vários conceitos que pesquisadores e pesquisadoras do letramento desenvolveram. Penso que o conceito de práticas de letramento é realmente uma tentativa de lidar com os eventos e com os padrões de atividades de letramento, mas para ligá-los a alguma coisa mais ampla da natureza cultural e social (STREET, 2012, p. 76).
A partir dos questionamentos formulados pelo NEL, principalmente no que se refere ao letramento ideológico, no ano de 1994 um grupo de pesquisadores da área da educação e linguística se reuniu para debater, como ficaria então o ensino, em um contexto de diversidade linguística cultural e de informações demasiadamente rápidas. O New London Group, como decidiram ser chamados passaram a pensar os letramentos relacionados a todas essas questões. Cope e Kalantzis (2008) esclarecem ainda, que o
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grupo de pesquisadores em questão, do qual eles faziam parte, decidiu ser chamado de “new London Group”, que mais tarde veio a publicar “A pedagogy of multiliteracies” no ano de 1996, como obra seminal desta concepção. E concordaram que “a mudança social no mundo do trabalho, cidadania e identidades, requerem uma nova responsabilidade educacional” (COPE, KALANTZIS, 2008, p. 198). Refletindo assim, a respeito das múltiplas maneiras de gerar significado em sala de aula. Considerações finais Neste trabalho procuramos refletir sobre algumas questões a respeito das identidades sociais de raça/etnia na escola e, como o professor pode trabalhar estas questões com o auxílio do NEL. Desta forma, respondemos a pergunta colocada na introdução deste artigo: Como a escola pode contribuir para a construção das identidades de raça de uma maneira positiva? Entendemos que as reflexões a respeito das novas teorias de letramento podem contribuir a reformulação ou um aprimoramento da prática pedagógica do professor e consequentemente, contribuir para um ensino mais crítico e reflexivo, contribuindo assim, para (re) construção das identidades sociais de raça de forma positiva. Tomando estas identidades de como sócio historicamente construídas, também ao longo do percurso escolar, sendo que as mesmas, também são percebidas na alteridade, no reconhecimento do “diferente” e nem sempre esse processo se dá de forma harmoniosa. Parte daí também, a necessidade de trazer discussões a respeito da temática para a sala de aula, não visões tidas como senso comum, mas reflexões fundamentadas, capaz de aguçar o senso crítico do aluno, possibilitando que ele se posicione diante de situações sofridas, ou presenciadas de preconceito e racismo, quebrando estereótipos e proporcionando o respeito mútuo. Pesquisas têm apontado o quão conflituosa estas questões têm se tornado (GOMES 2012), e isso demonstra a necessidade da continuidade de reflexões a respeito da temática racial no contexto escolar para que assim se desmistifique o mito da democracia racial (BRASIL, 2004) primando pelo respeito e a igualdade de direitos. Concordamos que a responsabilidade que recai sobre o professor é grande, a partir do momento que ele tem a oportunidade de compartilhar bons valores com seus
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alunos e, isso torna esse papel sobremaneira especial. Entendendo que essas reflexões vão ao encontro ao que aponta bell hooks (1994), em seu trabalho que fala a respeito da importância de uma prática pedagógica crítica, a qual é capaz de a partir da (re) criação e inovação de estratégias pedagógicas, voltadas a peculiaridades e diferenças de cada sala é capaz de empoderar os alunos, preparando-os para a vida em sociedade. Assim, defendemos a importância de um ensino mais crítico (PENNICOOK, 2010) e reflexivo, colocando o professor em posição de extrema importância ao passo que ele pode ser peça chave nas práticas escolares, mediando os processos discursivos, possibilitando que seu alunos seja capaz de se posicionar frente a questões como raça e etnia por exemplo. Os professores precisam engajar seus alunos “em atividades que favoreçam uma ação social que transforme a realidade que temos, através de uma reflexão crítica, para que todos possam sentir-se integrados na sociedade e haja uma promoção de igualdade racial e étnica e justiça social” (FERREIRA, 2006, p.54). Referências BEVILAQUA, Raquel. Novos Estudos do Letramento e Multiletramentos: Divergências e Confluências. RevLet – Revista Virtual de Letras, v.5,n.1, p.99-114, 2013. BRASIL. Parecer n. CNE/CP3/2004. Diretrizes curriculares nacionais para a Educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afrobrasileira e africana. Brasília: Ministério da Educação; Conselho Nacional de Educação. 17 p. 2004. BORBA, Marília dos Santos; ARAGÃO, Rodrigo Camargo. Multiletramento e os novos desafios na formação do professor de inglês. In: Anais do I Congresso Nacional de Linguagens e Representações: Linguagens e Leituras. UESC - Ilheús-BA. 2009. Disponível em: .Acesso em: 15 ago. 2014. CAMARGO, Mábia. FERREIRA, Aparecida de Jesus. O professor de Língua Inglesa e o aluno Quilombola: Letramento Crítico e Formação de Professores. Revista da ABPN, v.4, n.8. P. 192-210, 2012.
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O TEMPO MÍTICO NO CINEMA: A CIRCULARIDADE NARRATIVA DO FILME “ANTES DA CHUVA” Tacia Rocha (UEM) Hertez Wendel de Camargo (UFPR) Mito e tempo estão intimamente conectados em uma relação simbiótica, indissociável. O mito é memória, uma construção cultural que atravessa a história do homem, desde os primórdios antes mesmo do surgimento da linguagem, do pensamento abstrato, da espiritualidade, das religiões, e aporta em nossos dias com nova roupagem, novas formas de conceber e interpretar a realidade. Tanto que evocar alegorias, conhecimentos tácitos e intertextos não é uma característica apenas do texto mítico. Tais características também são natas (herdadas?) no cinema. Com estrutura análoga ao sonho, à alucinação e à vidência – referências culturalmente conhecidas de sequência de sons e imagens em movimento –, o texto cinematográfico, como sistema sígnico, forma uma teia de expressão para o mito, pois, com efeito, “o discurso escrito, assim como a fotografia, o cinema, a reportagem, o esporte, os espetáculos, a publicidade, tudo isso pode servir de suporte à fala mítica” (BARTHES, 2001, p. 132). Desta forma, vemos ampliado o campo fenomenológico do mito, que se mantém “vivo” ao aderir às contemporâneas narrativas da cultura midiática, podemos afirmar, portanto, que o mito é uma linguagem que “parasita”, outras linguagens, em especial, o cinema. No mito o tempo é circular, reversível, começo, meio e fim se misturam, não são sequenciais (lineares) e os eventos ocorrem no mesmo espaço-tempo. O mito é um dos textos fundantes da cultura (CONTRERA, 1996), isto é, opera como um tipo de alicerce cultural, integrante da memória de um grupo social que se recompõe a partir dessa mesma memória. Assim, o mito adere aos produtos midiáticos com certa naturalidade, significa e é ressignificado por eles, seja como uma hipoestrutura (invisível, operando como um DNA das narrativas contemporâneas) ou como discurso (visível, um roteiro
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que ganha forma, conteúdo e linguagem). Ora o mito parasita as narrativas, ora as narrativas parasitam o mito. Portanto, é nessa ambiência que vamos transitar: desenvolver uma análise, de estrutura ensaística, sobre as significações e aproximações entre o tempo mítico e o tempo cinematográfico, tendo como materialidade o filme “Antes da Chuva” (Before the Rain,1994), dirigido por Milcho Manchevski. Mito e cinema: estruturas de significação Assim como o filme, o mito é sempre uma história repleta de imagens, lugares e personagens marcantes e alegóricos, desejosos de serem decifrados, de devorarem e serem devorados. Confabulando com a visão barthesiana, do mito como parasita das linguagens contemporâneas, o filme, portanto, é sempre uma reatualização/ritualização do mito. As aproximações entre mito e cinema são reveladas na seguinte explicação, na qual verificamos que a mesma definição antropológica sobre o mito, cabe ao cinema e seu papel na cultura contemporânea. Pois, da mesma maneira como ocorre com as produções do cinema hoje, no passado ocorriam por meio do mito. Para Mucci (2010, p. 202) no plano cultural, o mito é autoridade, é História, pois, ao narrar “o tempo, o espaço, o lugar e a função do ser humano, o mito é, sempre, mito das origens, e o conjunto de mitos confunde-se com a própria história da sociedade em que se engendrou e que a engendrou”. Dialoga com esse conceito, a visão Oliveira Junior (1999) de que já no primeiro segundo da projeção de um filme, um novo mundo é fundado. No plano estético, o cinema opera sentidos por meio do encadeamento de sons e imagens, planejados pelos produtores do filme e interpretados pelo público. O filme também se instaura como um saber sobre o mundo, promovendo uma educação estética e visual, tal qual uma janela que se abre diante do espectador, em um panorama que articula diferentes conhecimentos sobre a realidade. Como linguagem, o cinema escolhe, seleciona, organiza o que é mais importante a ser ouvido-visto e, como analisou Pasolini (1982), as escolhas estéticas do cinema implicam sempre escolhas políticas. O cinema, ao apresentar uma forma de ver, ouvir, perceber o real, por meio do fato ou da ficção, tornase uma autoridade, pois apresenta sempre modelos (exemplos) de ser e estar em sociedade. Por todos esses conceitos, as linguagens do mito e do cinema possuem as
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mesas estruturas de significação, pois o mito encadeia imagens, ações e personagens; também é uma escolha estética que influi politicamente; e também opera como autoridade, pois uma de suas funções é compor modelos de comportamento sociocultural. Nesse sentido, o mito mantém uma aderência natural às artes baseadas na narrativa fantástica, tais como o cinema. Como umas das primeiras formas de interpretação da realidade na história humana, o mito, em essência, é narrativa, ritual e memória. Não é difícil verificarmos que essa estrutura narrativo-ritualística-simbólica se repete no sistema do cinema. “É pela narração que se constroem os mitos e com eles a memória dos homens. E não há como se construir a memória sem uma linguagem que a expresse” (COUTINHO, 2003, p. 27). O tempo do filme: entre o sagrado e o profano O filme é uma realidade para o espectador. Ele existe porque se faz verbo, isto é, se ele pode ser explicado, contado pelo espectador, enfim, traduzido da narrativa audiovisual para outra linguagem. A realidade (como autoridade, verdade) existe porque foi traduzida em som-imagem do cinema que, por sua vez, é decodificado e recodificado, em reminiscência, pelo espectador. Ainda, para a análise do filme, devemos nos debruçar sobre duas características marcantes desse gênero narrativo midiático: a sequência de planos (a história narrada por meio de sons-imagens) e a duração dos planos (o tempo). Para Bazin (1991), o cinema deveria expressar a realidade do mundo pelo registro das formas dos objetos e do espaço que ocupam, sem artifícios. Pasolini, já nos anos 1960, quando afirma que o cinema é a “língua da realidade” (1982) preocupa-se, em certo ponto, com a manifestação de uma linguagem mais próxima do real, mas, ao tratar o cinema com “língua” deixa transparecer a presença do código, da estrutura, da ideologia que toda língua carrega. Antes disso, nos primeiros passos do cinema russo, para Eisenstein (1990) a base do cinema é a montagem, isto é, o artifício, que organizam os signos para criar uma expressão cinematográfica. Portanto, devemos considerar que o tempo da narrativa – elemento subjetivo, produzido em reminiscência pelo espectador – é uma percepção induzida pela montagem, um tempo artificial. Por exemplo, para que o espectador entenda, em uma
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obra, o avanço no tempo dos personagens ou que a história exibida aconteceu no passado, é pela montagem que este sentido constituído. No momento da recepção do filme, ouvimos-vemos uma sequência de sonsimagens que transcorrem no tempo, linearmente, em que a tela é o espaço onde um plano surge, sobrepondo e ressignificando o plano passado, ao mesmo tempo em que representa o devir do plano futuro. Passado, presente e futuro não estão somente entrelaçados na tessitura de sentidos criada pelos planos em sequência, mas, em todo o filme, as temporalidades se entrelaçam, acontecem simultaneamente. A concomitância de diversas temporalidades, na linguagem audiovisual, levanos à definição de Eliade (2008) para o tempo sagrado e o tempo profano. Para o autor, o tempo profano é o tempo histórico, previsível, linear e cronológico, o tempo dos homens; o tempo sagrado é representado por um tipo de fuga do cotidiano, um tempo que não pode ser medido, o tempo dos deuses, enfim, um tempo mítico. Conforme o autor, o tempo sagrado não flui, não constitui uma duração irreversível, mantém-se sempre igual, não muda nem se esgota. O tempo sagrado “se apresenta sob o aspecto paradoxal de um Tempo circular, reversível e recuperável, espécie de eterno presente mítico” (Eliade, 2008, p. 64). Em sua duração profana, o tempo do filme é um tempo histórico, porém, o filme todo funciona como fuga do cotidiano, fuga do tempo em que está inserido o espectador e o próprio filme. Portanto, o tempo do filme também se configura em um tempo sagrado. Em sua narrativa, o espectador encontra um tempo em suspensão em meio a nosso sistema cultural. Sons e imagens em movimento atuam como o duplo do real, ao mesmo tempo promovendo um tipo de religação entre a primeira (a vida natural) e a segunda realidade (a vida cultural). O filme é a comunhão entre o real e seu duplo, perdido em algum momento da história pós-moderna do homem após a aparente cisão entre o humano e o metafísico. Valores, sensações e ideologias concatenados na tangibilidade da tela, mas ao mesmo tempo intangíveis, pois pertencem ao universo paralelo do cinema. Essa tessitura temporal, presente no filme e que funciona como fuga do cotidiano, também encontramos em Tarkovski (1998), quando busca uma definição do tempo na linguagem audiovisual. O autor descreve a infinitude de significados que está por trás do tempo do plano audiovisual, explicando que o tempo se faz sentir a partir do encontro entre o tempo registrado na tela –
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que entendemos se tratar do tempo linear e histórico [profano] – e o tempo da vida [sagrado]. Segundo o autor, o tempo na linguagem audiovisual [...] se torna perceptível quando sentimos algo de significativo e verdadeiro, que vai além dos acontecimentos mostrados na tela; quando percebemos, com toda clareza, que aquilo que vemos no quadro não se esgota em sua configuração visual, mas é um indício de alguma coisa que se estende para além do quadro, para o infinito: um indício de vida (TARKOVSKI, 1998, p. 139).
A linguagem audiovisual se faz a partir de um movimento pendular entre distintas temporalidades, entre um tempo real e um tempo imaginário, entre a duração cronológica do plano fílmico e a duração permanente da memória cultural identificada também como um tempo sagrado (ou mítico), na visão de Eliade, e o tempo da vida para Tarkovski. A linguagem do filme ainda nos revela o espaço do fantástico. Se na alternância entre o real e o imaginário ocorre o fantástico, e se o plano presente na tela prepara o olhar para a compreensão do plano seguinte, percebemos que o aparente vazio, imperceptível ao olhar consciente, o entre-planos, é onde acontece a significação do filme. O corte entre os planos é o espaço mítico onde se encontra o fantástico. É o corte o local da imaginação, dos sentidos, dos processos de significação. No corte reside a tradução do texto audiovisual em nova narrativa criada a partir do olhar do espectador. É entre os planos, esse não-tempo/não-espaço que se abre no tempo da narrativa audiovisual, que os sentidos do filme existem, acontecem e são induzidos, pois Tudo o que envolve o momento psicológico do intervalo, trazido, inicialmente, pela visão da imagem e que não estão visíveis nela, segue percursos mentais da imaginação, transitam desgovernadamente pela racionalidade, pela linguagem, pelos sentimentos, pelo devaneio, pelo sonho... e, principalmente, pela memória (ALMEIDA, 1999, p. 41)
O corte entre um plano e outro representa um não-tempo discursivo que só existe para o espectador, é como se ele pudesse se deslocar do visível do filme e lançar-se temporariamente no aparente nada do corte. O corte não é um exato precipitar-se no vazio. É no corte entre as imagens que as relações semânticas e sintáticas dos signos audiovisuais do filme se completam, fazem (ou recebem) sentido. São sentidos ulteriores aos expressos pelo diretor-criador do filme. As imagens dormentes no corte são despertas
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na relação entre o plano que surge na tela e o plano anterior. Das imagens justapostas e em sequência, no tempo cronológico do filme, outras imagens irradiam. Na alma do espectador está o tempo que dura, permanente e sagrado. Imagens individuais, coletivas e históricas, tudo ao mesmo tempo. Um tempo circular, mágico, tempo mítico. A estrutura temporal do filme opera na mesma estrutura temporal do mito. Como foi exposto, nosso objetivo neste artigo é entender como o tempo é significado dentro da narrativa fílmica. Para tanto, selecionamos a produção anglomacedônica, Antes da Chuva (1994), obra do diretor macedônio Milcho Manchevski. O pressuposto é a concepção do filme como um texto da cultura, considerando que vivemos a cultura modelizada pelas mídias de linguagem audiovisual – o cinema, a televisão e a internet – que participam ativamente a construção da realidade simbólica do homem urbano. “O cinema é precisamente esta simbiose: um sistema que tende a integrar o espectador no fluxo do filme. Um sistema que tende a integrar o fluxo do filme no fluxo psíquico do espectador” (MORIN, 1958, p. 125). Esse fluxo psíquico do qual Morin se refere, ou realidade simbólica, é alimentado pelo inconsciente coletivo, um depositário universal de significados, onde estão as imagens, os conteúdos arcaicos – o mito. Portanto, o mito é o alicerce para o homem narrar a história da realidade e ver a si mesmo na busca incessante pela completude, o “eterno retorno” (ELIADE, 1992) às origens existenciais do homem, num tempo circular, o tempo mítico. Para compreender como os tempos mítico e cronológico significam o filme, faremos primeiramente uma breve exposição dos elementos narratológicos para obtermos uma visão geral do enredo. Na sequência, abordaremos os tempos passado, presente e futuro representados nos planos do filme, levando em conta os três aspectos fundamentais do texto cinematográfico: “a velocidade, a duração e, como espécie de súmula destes dois, a encenação” (NOGUEIRA, p. 73, 2010). A estrutura triádica da narrativa de “Antes da chuva” O lettering inicial anuncia ao espectador que o filme está dividido em três partes, que nomearemos de “episódios”, intituladas Palavras (Words), Rostos (Faces) e Fotos (Pictures). Aparentemente, cada parte se apresenta como uma história distinta e
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independente. Entretanto, no decorrer do filme, mostram-se heterogêneas, apresentam espaços cênicos complementares, simultaneidade temporal, sobreposição de narrativas e discursos. Esta produção anglo-macedônica, com tem duração de 113 minutos, traz as marcas do tempo histórico: aborda o universo do jornalismo de guerra, os conflitos políticos, a vida dos grandes centros em contraste com lugares menos desenvolvidos, as relações humanas na cidade e as relações humanas permeadas pela religião. No entanto, outro tempo subjaz a própria montagem desestabilizadora que desconstrói a própria ilusão de continuidade (linearidade) narrativa. Verificamos que filme opera em duas temporalidades. A primeira apresenta imagens, personagens e enredo que refletem o tempo histórico, a realidade, o mundo do qual o espectador faz parte ou que poderá ter acesso. O próprio tempo de projeção, a duração do filme, também pertence ao tempo “profano”, conforme Eliade (1992). Na segunda temporalidade, o filme opera com efeitos de sentido relacionados ao imaginário e suscitados pelo discurso existencialista do fotógrafo, a crise moral-sentimentalista de sua amante, os desejos espirituais e carnais do jovem que abandona a vida religiosa por um amor, os conflitos socioculturais e a religião. Essas duas temporalidades – um tempo profano e outro sagrado, ou um tempo real e outro imaginário – inerentes e estruturantes de toda narrativa fílmica, são elementos comuns tanto na narrativa mítica quanto na cinematográfica. Todorov (2008) situa o fantástico como os sentidos despertos pela narrativa literária, localizados entre o real e o imaginário. Essa mesma acepção, pode ser aplicada às narrativas mítica e cinematográfica, pois todos os seus elementos sígnicos operam na composição sentidos paradoxais, pois não existem no mundo real, mas são concretos/possíveis no imaginário. O tempo que percorre as três histórias é duplamente Profano: primeiro porque os fatos que acontecem distintamente no cenário de cada história, revelam que o tempo é o mesmo – a Guerra da Bósnia. Segundo, porque este filme foi lançando em 1994, período em que a guerra estava acontecendo (1992 a 1995) nos países descritos por Aleksander em suas viagens a trabalho: Iugoslávia; Bósnia; Sérvia; Macedônia. Nessa época de estreia do filme nos cinemas, tal simultaneidade transportou o espectador para as telas, dividindo-os entre sua realidade material e a experiência mítica dos personagens. “A força do cinema, porém, reside no fato de ele se apropriar do tempo,
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junto com aquela realidade material à qual ele está indissoluvelmente ligado, e que nos cerca dia após dia e hora após hora” (TARKOVSKI, 1998, p. 71-72). A montagem do filme “Antes da Chuva” lida com essa dupla temporalidade. Dentro da linearidade típica de todo produto fílmico, a montagem cria uma circularidade temporal da narrativa. O tempo circular é uma referência ao tempo mítico que não possui começo, meio nem fim – ou não existe passado, presente e futuro –, o tempo da edição do filme em questão acontece a um só tempo. Na edição do filme, o tempo histórico progride, mas, como no tempo mítico, os fatos sucedem concomitantemente. Em “Antes da Chuva”, a narrativa caminha em recuo progressivo, isto é, tem um fluxo futuro em direção ao passado, onde não existe um presente ditatorial com uma sequência cronológica definida, de passagem de tempo. Isto permite compreender o filme a partir de qualquer episódio, e todas as partes são passado e futuro umas das outras, vistas e fazendo sentido no tempo presente da exibição. Tempos paralelos convivem numa sequência evolutiva circular, no vai-e-vem reminiscente de episódios para que o espectador possa montar o quebra-cabeça que constitui o enredo Antes da Chuva tudo acontece O principal elemento comum aos três episódios é o que e atribui o nome à obra – a chuva. Esse é um elemento de dimensão temporal, marcado pela estrutura circular da chuva, regida pelas leis do ciclo da água, cujo retorno periódico e eterno fala de uma lei imutável da Natureza. Nessa narrativa, a chuva é uma metáfora cíclica, pois marca tanto o tempo físico da narrativa, quanto o psicológico – tudo acontece antes da chuva. O mau tempo sempre prenuncia algum fato por vir, transição do tempo físico, envolto num clima de mistério, pois os personagens veem as nuvens prestes a se precipitarem e pressentem que a guerra e a violência virão acompanhadas da tempestade. Assim, a chuva é uma hierofania, isto é, um elemento sagrado que nos transpõe do tempo ordinário, o Profano, para o tempo mítico, o Sagrado. No filme, a chuva sempre surge em momentos que representam o tempo mítico como nos sonhos de Kiril e Aleksander, quando surgem em seus sonhos Zamira e Hana, como prelúdio de um tempo mágico que está no passado, mas que não aconteceu na realidade.
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Único em suas particularidades e perpétuo em suas manifestações, o cair da chuva traz em si a união do divino e do humano, da vida e da morte, do horizontal e do vertical; traz, em resumo, [...] o cair da chuva está na memória do homem como total possibilidade, momento de crise e resolução, de devoção e temor animal. [...] e nos deixamos levar por instintos primitivos de proteção, abrigo, segurança, calor [...] (OLIVEIRA JUNIOR, 1999, p. 65-66).
Palavras – Ainda, no caminho de volta, o irmão Marko joga mais uma pista que constrói o tempo Sagrado, afirmando que “O tempo nunca morre. O círculo não é redondo”. A frase ecoa na paisagem montanhosa do interior da Macedônia e dá sentido ao movimento da câmara que circunda os arredores do monastério (com voz em off ). A frase é uma referência aos ciclos que nunca se completam e aos caminhos inesperados que cada um toma em sua trajetória de vida. O tempo que nunca morre é o tempo mítico, um tempo não linear, mas circular, onde começo, meio e fim se integram, onde tudo acontece simultaneamente. “O Tempo sagrado, se apresenta sob o aspecto paradoxal de um Tempo circular, reversível e recuperável” (ELIADE, 1992, p. 39). No plano seguinte, os monges são mostrados em plano geral, caminhando sobre a montanha que é um elemento natural que atravessa o tempo. As frases “O tempo nunca morre” e “O círculo não é redondo” são referências simultâneas à circularidade do tempo mítico, que é fechada em si e redundante na estrutura, mas abertas para novas composições diegéticas elaboradas por meio do pensamento e da memória do espectador. A reordenação dos fatos preserva a integridade da narrativa e a composição cíclica entre o final antecipado e o início postergado reforça o sentido de conexão imperfeita e abre para outras possibilidades de percurso e interpretação. Não se trata da circularidade fechada e idêntica, mas a volta aberta, espiralada que se expande e ascende a cada ciclo, perfazendo seu traço no intervalo entre o tempo histórico, que a cada rodada gera diferentes linhas narrativas. Segundo Tarkovski (1998), essa tessitura temporal provocada pelo filme no telespectador é uma característica intrínseca a cada tomada, pois o “[...] tempo específico que flui através das tomadas cria o ritmo do filme, e o ritmo não é determinado pela extensão das peças montadas, mas, sim, pela pressão do tempo que passa através delas” (Tarkovski, 1998, p. 139).
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Rostos – Nesta parte do filme, além da guerra que perpassa os espaços temporais de cada episódio, o tempo histórico é evidenciado por meio da mesma fase lunar – a lua cheia que ilumina a abóbada celeste sobre o mosteiro na macedônia, também ilumina a vida urbana de Londres. Neste segundo episódio, o tempo da cidade é célere, planos rápidos, edição ágil e sons urbanos (buzinas, sirenes, motores, vozerios). Esse tempo (profano) é rompido momentaneamente quando a personagem Annie passa em frente de uma igreja e a observa. Os planos destacam vitrais, imagens e mensagem sacras, enquanto um coral de crianças entoa um cântico de natureza religiosa: aludem a um tempo sagrado a partir de um outro ritmo. Annie, em um encontro com Aleksander, avisa que não seguirá com ele naquele momento. Não explica os motivos, evita a discussão e o fotógrafo segue para sua terra natal, zona de conflitos político-religiosos, pensando começar uma nova vida, um novo ciclo. A viagem exprime um desejo profundo de mudança interior, uma necessidade de experiências novas, mais do que um deslocamento físico. [...] indica uma insatisfação que leva à busca e à descoberta de novos horizontes. [...] a viagem torna-se o signo e o símbolo de uma perpétua recusa de si mesmo. (Chevalier; Gheerbrant, 2002, p. 952)
Imagens – Esse terceiro episódio permite a compreensão dos anteriores. Retrata, basicamente, o retorno do filho pródigo que deixa uma vida de êxitos profissionais nos grandes centros urbanos para retornar às origens. Uma alegoria para o mito do retorno do herói que sai de sua tribo e retorna cheio de sabedoria, trazendo inúmeros conhecimentos. [...] vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes. (CAMPBELL, 2007, p. 36)
Aleksander, em seu reencontro com o passado, busca fechar os ciclos que nunca se fecharam, motivado por uma crise existencial revelada por seu trabalho. Como fotógrafo, sempre usurpou as imagens de diferentes pessoas, histórias, conflitos, com a imparcialidade necessária à profissão de fotojornalista.
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Embora não se encontrem literalmente no mesmo espaço cênico, as vidas do fotógrafo e do seu sobrinho, Kiril, se conectam pela mesma missão: defender a menina albanesa. As coincidências são fruto de uma sobreposição e repetição de imagens e acontecimentos para atribuir sentido ao aparente caos da narrativa não linear. A mimese ocorre quando Aleksander sonha que Hana, mãe de Zamira, entra em seu quarto e tira o véu, descobrindo a face e está chovendo. Ele acorda e não há ninguém no quarto. Ele volta a dormir e quando acorda novamente, Hana está no quarto, sendo que desta vez, ela não tira o véu, pois o motivo da visita é pedir o auxílio ao fotógrafo para salvar sua filha. Quando Aleksander toca sua mão, surge um vínculo entre essa cena e outra, quando Kiril faz o mesmo gesto com Zamira, que assim como Hana, se esquiva. As falsas dicotomias entre o tempo histórico, que progride linearmente, e o tempo circular, que volta sempre ao ponto de partida, são desfeitas num roteiro caótico esculpido pelo tempo: “Juntar, fazer a montagem é algo que perturba a passagem do tempo, interrompe-a e, simultaneamente, dá-lhe algo de novo. A distorção do tempo pode ser uma maneira de lhe dar expressão rítmica. Esculpir o tempo!” (TARKOVSKI, 1998, p. 144) Referências AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico do cinema. Campinas: Papirus, 2006. BAZIN, André. O cinema: ensaios. Tradução Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Trad.: Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento, 2007. CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Trad.: Vera da Costa e Silva... [et al.]. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002. COMPARATO, Doc. Da Criação ao Roteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
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A REDESCOBERTA DO ESPAÇO PÚBLICO NAS CRÔNICAS DE CLARICE LISPECTOR Tayza Codina de Souza (PG-UNESP/ASSIS – CAPES - 368.596.208.62)
A experiência de ser cronista A atividade de Clarice Lispector como cronista iniciou-se em 1967, quando foi convidada por Alberto Dimes, para escrever ao Jornal do Brasil uma coluna que seria publicada aos sábados. A intenção do editor era que a escritora escrevesse crônicas sobre assuntos que lhe interessassem, dando-lhe a liberdade de escolha do tema e também da estrutura. Antes de iniciar no Jornal do Brasil, Clarice escreveu em alguns periódicos femininos, com a utilização de pseudônimos, entre eles, Helen Palmer e Ilka Soares. Mas foi a partir desta época que ela aceitou escrever para uma coluna e assinar com seu próprio nome. Em entrevista para os Cadernos de Literatura Brasileira: Clarice Lispector (2004), organizado pelo Instituto Moreira Sales, Dines (2004, p. 52) revela qual era o perfil da sua nova colunista: Clarice era reservada. Ia pouco à redação, preferia tratar por telefone. Pensava que era involuntariamente discreta por causa do acidente que deformou parte de seu corpo. Era uma pessoa muito bonita. Com o tempo, ela acostumou-se às marcas da queimadura, mas em mim ficou a impressão que viveu sempre se protegendo daquelas cicatrizes. Nunca consegui saber se o seu modo esquivo em lidar era anterior ou se nasceu com o incêndio em seu colchão. Enfim, Clarice era tudo menos óbvia. Ela era secreta. Clarice ia em caminho oposto aos cronistas e jornalistas da época; preocupada com a pressão que o “profissional de literatura” sofria dos editores, sempre fez questão
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de reforçar que era apenas uma “amadora” e escrevia quando tinha “inspiração” para esta função. Em entrevista para Isa Cambará1, define sua” inspiração”: Às vezes, elaboro um trabalho durante anos, sem sentir. O único sintoma são as frases que me vêm de repente, já prontas, no táxi, no cinema ou no meio da noite, revelando que algo está crescendo em mim. Mas, ao contrário do que muitos pensam, não escrevo em transe e não sinto nenhum espírito me insuflando ideias. A inspiração vem dessa longa elaboração inconsciente. Escrever, para mim, é um aprendizado. Assim como viver é um aprendizado. Como no jornal não era possível esperar pelo texto do colunista, a autora enviava ao editor vários textos que ele ia publicando aos poucos. Sendo assim, a publicação era totalmente desvinculada da notícia de “última hora” e seguia a escolha pessoal de Clarice. Em carta para o filho Paulo, quando este já vivia nos Estados Unidos, ela reafirma o seu processo de produção das crônicas: As crônicas o [sic] Jornal do Brasil não me preocupam porque tenhum [sic] um punhado delas, é só escolher uma e pronto. Além do mais eu pretendo me “plagiar”: publicar coisas do livro “A legião estrangeira”, livro que quase não foi vendido porque saiu quase ao mesmo tempo que o romance, e preferiram este. Talvez eu recebe [sic] em breve um pequeno aumento no Jornal2. A declaração de Clarice é muito importante para compreender o seu processo de construção literária, os textos são circulares, ou seja, ela ao se “plagiar” reescreve e reformula vários textos, que transitam em publicações posteriores como crônicas, contos e romances. Pretendo, neste trabalho, abordar posteriormente o processo de reconstrução das crônicas de Berna, pois, durante pesquisa na Fundação Casa de Rui Barbosa, encontrei diversos manuscritos que demonstram o recurso de reciclagem dos próprios escritos, utilizado pela escritora. 1
“Escritora mágica”, por Isa Cambará. Revista Veja. São Paulo, 30. 07. 75. apud Cadernos de Literatura Brasileira: Clarice Lispector, 2004, p. 79. 2 Texto encontrado no acervo pessoal dos escritores brasileiros – Clarice Lispector. Na Fundação Casa de Rui Barbosa. VASCONCELLOS, Eliane. Inventário do arquivo Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1993.
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Clarice considerava seu texto uma produção que não se enquadrava no gênero crônica. Até questionou Rubem Braga em uma crônica intitulada “Ser cronista”, se a sua produção poderia ser considerada como tal. Afinal, a crônica clariceana segue uma liberdade de estrutura e temática; como ela mesmo afirmava que não gostava de ser classificada por gêneros, seus textos podem transitar do simples diálogo com o leitor ao comentário acerca de trechos dos seus romances. Destacam–se no conjunto, ainda, retratos de experiências vividas em viagem (uma projeção da tradicional crônica de viagem), em um estilo próprio, narrativas que depois serão reescritas para a publicação de contos ou romances. Sua produção de cronista é, enfim, heterogênea e diversificada tanto na estrutura como na temática. A crônica clariceana, mesmo sendo publicada em jornal, segue um processo oposto ao caminho seguido por vários cronistas. Sua produção não cede exclusivamente à exigência do mercado, mas é por vezes realizada aleatória e antecipadamente. No caso das crônicas de Berna, um novo problema se impõe: elas parecem pedir para serem lidas em conjunto, como uma sequência narrativo-descritiva. O que não se sabe é se houve uma produção prévia, realizada em uma mesma época, sendo os textos depois publicados em dias espaçados, ou se houve a possibilidade de reescrita e reconstrução do texto, confirmando-se o movimento cíclico da produção da autora. O gênero crônica surge através do relato de viajantes que chegaram a novas terras, para informar sobre a cultura, matéria-prima disponível, habitantes... Clarice insere-se nesta tradição da “crônica de viagem”, mas lhe acrescenta um formato que revela seu estilo pessoal. As crônicas de Berna, por exemplo, têm como “enunciador” um sujeito que retrata o espaço suíço, mas que além da simples descrição fornece duas abordagens: a análise do ambiente, cultura e povo suíços, pautada pela alteridade do olhar do estrangeiro; e a conciliação entre espaço público e privado, ou seja, a representação do interior do enunciador através do seu embate com o espaço, focalizado através do olhar que espreita pela janela o mundo exterior, revelando sempre um dentrofora. As crônicas de Berna
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Apresentamos aqui as crônicas que serão analisadas neste trabalho: “Medo de errar” e “Berna”. Nossa pesquisa ficará centrada em duas publicações em livro, organizadas pelo filho de Clarice, Paulo Gurgel Valente, Para não esquecer e A descoberta do mundo, publicados respectivamente em 1978 e 1984. Logo, temos que levar em conta a organização arbitrária que funda a publicação dos volumes. Como afirma Candido (1992), a crônica foi inicialmente um gênero considerado efêmero, feito para ser lido em um dia e tornar-se embrulho de objetos em outro, mas, com a transferência do texto para o suporte impresso do livro, a produção literária ganha registro permanente. As crônicas clariceanas tornam-se uma produção fragmentária, publicada aos sábados no semanário Jornal do Brasil, mas elas constituem um importante conjunto para compreender a obra da escritora. Muitos textos serão reescritos e reformulados em publicações de contos e romances, quando Clarice testava seu leitor ao publicar trechos que depois seriam desenvolvidos em outros gêneros. Em carta a Lúcio Cardoso , ela afirma que seu processo de produção literária consiste em plagiar-se. As crônicas de Berna, por sua vez, criam uma sequência narrativa, mesmo “teoricamente” escritas em datas distintas, elas se comunicam entre si, formulando-se no conjunto das oito crônicas uma narrativa progressiva e contínua, quase uma novela. Quando digo que elas foram escritas em tempos diferentes, levamos em conta o processo de produção para o jornal. Mas não podemos esquecer que Clarice ia contra este procedimento,
criando várias
crônicas
ao mesmo
tempo e enviando
antecipadamente para o editor. Ela não queria a pressão de ter alguém esperando por seu texto; como na escrita dos romances, desejava ser “amadora” e não uma “profissional” da literatura. Assim, teria a liberdade de criar sem a insistência de um prazo e de um patrão. Nestes textos encontra-se um enunciador ou “eu do cronista” que encara o espaço público através da perspectiva da janela: aquele que espreita, observa, encara e dialoga, mas sob o prisma do estrangeiro, que graças a sua vivência exílica, adquire o olhar daquele que estranha o outro e o espaço como um desterritorializado, ou seja, daquele que não encontra qualquer identificação possível. Sua descrição do ambiente e dos personagens será guiada por um enunciador que não encontra um ponto de apoio e
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por isso reafirma sua alteridade frente ao desconhecido. Mesmo não havendo nos textos menções diretas ao fato de que este enunciador seja um estrangeiro, seu foco se caracteriza como tal. Os locais descritos nas crônicas são paisagens de Berna, pois encontramos referências a nomes de lugares, como ruas e praças. Entretanto, o mais importante é o olhar que esmiúça o outro e recria intimamente o ambiente vivido. Essa poética do exílio reforça-se pela abordagem melancólica e ganha foros de uma estética da melancolia. Brandão (2013, p. 157) explora o perfil do escritor viajante e seu olhar sobre o espaço: Para o escritor, que também se assume como viajante, arquiteto, urbanista, cronista, o espaço social jamais é opaco, jamais se oferece como livro já escrito, de leitura pré-determinada. Todo texto urbano é passível de interferência por parte de quem o vivencia: texto continuamente reescrito. O espaço social também não é transparente, como folha de papel em branco, texto não escrito, submetido aos caprichos da subjetividade de quem o observa. Para Clarice o espaço nunca será “opaco”, sua produção urbana resultará na dialética entre a representação do seu olhar sobre o espaço e as características prédeterminadas que ele traz: seu momento histórico; contexto social; ambientação. Dessa relação surgirá seu produto final: a crônica. A redescoberta do espaço público nas crônicas “Medo de errar” e “Berna”: A crônica “Medo de errar” foi publicada no dia 13 de setembro de 1969, pela primeira vez, no Jornal do Brasil, e depois na obra A descoberta do mundo, em 1984. A enunciadora apresenta um retrato dos suíços, apontando como o “silêncio” e “vazio” que constituem o espaço também funcionam como traço de personalidade dos habitantes nativos: nos suíços, a neutralidade é além de uma característica pessoal, um modo de vida. A descrição ficcionaliza a reação que um estrangeiro mantém frente a um espaço desconhecido: ao mesmo tempo em que desenvolve uma indiferença, através do contato com o estranho, também aponta aquilo que estranha. Na crônica em análise,
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percebemos a predominância do discurso irônico, para demonstrar que por trás da atuante postura “tradicional” e “equilibrada” existe um “eu” abafado que partirá para uma ação desastrosa. A ironia, fruto da melancolia, é referida por Lambotte (2000, p. 117-118): A ironia não é dona de si mesma; fingindo ter a superioridade do espírito, ela introduz a afetividade do sujeito nessas malícias que consistem em mudar o peso de uma asserção em seu oposto e em separá-la em seguida, falsamente, de seu contexto. De início, a enunciadora aponta que a nação se desenvolve “quase perfeitamente”, exaltando entretanto uma “falha” ou “quebra” na sua constituição. A enunciadora afirmará que a Suíça, por ter a influência de três “raças” e três idiomas, mantém uma dificuldade de criar obras filosóficas, pois “nenhuma obra filosófica poderia ser construída tendo como um de seus princípios tácitos a necessidade de se chegar somente até certo ponto”. (p. 230). A dificuldade que os suíços mantêm de desenvolver a busca pela compreensão, mantendo sempre o limite do desejável e esperado, dificultaria a produção de obras com a grandeza filosófica. Se conciliarmos a descrição do espaço suíço e a de seus habitantes, encontramos uma conjunção, afinal em um espaço onde o silêncio é a característica mais representativa, a neutralidade dos suíços se desenvolve através do contato com o próprio lugar. “É um princípio, mais que de paz, de apaziguamento. Ser neutro não é solução a determinado caso, ser neutro tornou-se, com o tempo, uma atitude e uma previdência”. (p. 230). Para a enunciadora, que descreve o outro através do olhar do estrangeiro, ser neutro não é uma qualidade para ser usada em “determinado caso”, mas uma “atitude de apaziguamento”, uma neutralização dos desejos internos para submeter-se ao contato social e evitar a ruptura do “silêncio” ou das relações públicas. Para a enunciadora, a necessidade de encontrar pessoas que se orgulham e desnudam seus “demônios” torna o lugar ainda mais perturbador. O discurso irônico cercará todo o texto, apresentando ao mesmo tempo o olhar do sujeito estrangeiro e melancólico: “esse admirável país encontrou sua fórmula própria de organização social e política. Mas que pouco a pouco estendeu-se a uma fórmula de vida”. (p. 231). O uso do adjetivo “admirável” já se configura uma
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caracterização irônica, logo que, ao fim do texto, ela mostrará que a ideia de “fórmula de vida” não se aplica ao sujeito humano, já que seus desejos e vontades não são passíveis de controle. Assim, o espaço será marcado pelo confronto de identidades, tal como descrito por Brandão (2013, p. 31): O ‘espaço da identidade’, sem dúvida, é marcado não apenas por convergência de interesses, comunhão de valores e ação conjugadas, mas também por divergência, isolamento, conflito e embate. Se, como o espaço, toda identidade é relacional, pois só se define na interface com a alteridade, seu principal predicado é intrinsecamente político. ‘Espaço de identificações’ pode ser entendido, genericamente, como sinônimo de cultura. Em correspondência para as irmãs, escrita em 12 de maio de 1946, Clarice evidencia o discurso irônico que depois será ficcionalizado na crônica, apontando também a dificuldade que o suíço encontra para sentir-se atraído culturalmente pelas obras artísticas “modernas”: Aliás eles todos são ótimos. Só que são de outra espécie absolutamente. A senhora é o tipo da boa senhora, de família, simples, boazinha. Mas eu vivo me contendo para não abrir a boca porque tudo o que eu digo soa ‘original’ e espanta. Quero explicar o ‘original’. Esta senhora tem pavor de original. Fomos ver uma exposição de modelos de Viena (sem grande graça) e ela dizia: esse modelo é original mas é bonito. Falando de uma senhora inglesa que fazia muito esporte: ela é original, não gosto. Original é um palavrão. E quando eu quero dizer que não posso abrir a boca para não ser ‘original’, quero dizer que se digo: que dia bonito, isso soa original. Quando falo aliás acham muita graça, ficam espantados, riem. E também procuro não me revelar. (p. 117, 2007). A personalidade dos moradores desenvolve em Clarice um “abafamento” dos seus desejos; como ela se refere na carta, “não podia se revelar”, ampliando a dificuldade de identificação com o espaço, estabelecendo-se um não-lugar. Esta experiência será de extrema importância, pois seus enunciadores serão também deslocados no espaço, definidos por um perfil melancólico que frutificará em uma
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atitude irônica. Na crônica, ela explora a dificuldade dos suíços em apreciaram a cultura moderna: O fato é motivado particularmente pelo horror que o povo tem pela música moderna ou pela literatura moderna ou pela pintura moderna: a palavra moderna soa um pouco como escândalo, como aventura ainda suspeita. Porém, mais amplamente e mais profundamente, esse fato vem de que o suíço teme errar na sua admiração. (p. 231). Aqui, encontramos a explicação do título: “o medo de errar” consistiria em um modo de vida, de viver com neutralidade, pelo silenciamento dos desejos pessoais. A cultura “moderna” seria como uma região de fronteira, suspeita, não se podendo avaliar como grandiosa a produção de um indivíduo que ainda esteja vivo, correndo-se o risco de ofender ou decepcionar àqueles que o admiram. “Não é apenas por gosto e por respeito à tradição. É medo de se arriscar. Um escritor vivo é risco constante. É um homem que pode amanhã injustificar a admiração que se teve por sua obra com um mau discurso, com um livro mais fraco”. (p. 231). Ao descrever o povo suíço, ela utiliza mais termos irônicos, ao afirmar que a paz e a neutralidade em Berna não foram construídas gratuitamente por eles, mas através de muito esforço, ou uma “conquista paciente”, e assim se tornaram um “símbolo de paz”; porém nada “impede que tanta gente, em silêncio, se jogue da ponte de Kirchenfeld, sem que os jornais sequer noticiem para que outros não o repitam. De algum modo há de se pagar a segurança, a paz, o medo de errar”. (p. 232). A ideia de capital perfeita, com um povo equilibrado, em paz e neutro é descontruída pela menção ao suicídio de muitos moradores, que não pode se tornar público, para não acionar os “demônios” nos outros, ou seja, toda a caracterização foi enviesada pelo discurso irônico que demonstra uma verdade por trás da falsa postura de perfeição. Assim, a escritora desenvolve um retrato da capital que foge ao padrão clássico dos guias turísticos, apresentando ao leitor um olhar além da “turista comum”, mas de
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uma “estrangeira” que deseja compreender o espaço que vive e habita. Rocha3 (2007, p. 51-52) explora o modelo criado por Clarice, para a “crônica de viagem”: De fato, a ‘antiturista’ Clarice Lispector insurge-se contra as verdades cristalizadas e imutáveis – contidas nos guias turísticos – sobre um local e o que há nele de valor. A escritora resiste a esse tipo de intimidação, procurando suas próprias categorias de valor, sem acompanhar as hierarquias de outros. A experiência exílica proporcionou a criação de duas esferas ficcionais: a do individuo melancólico que encara o outro e o espaço através do discurso irônico e também a possibilidade, como exiliada e estrangeira, de desvendar a sociedade em que vive e apresentar as “rachas”, “poros sociais” que os nativos não podem observar. Este dado biográfico possibilita a criação de situações como a descrição de uma cidade “perfeita” que encobre seus defeitos e não publica seus “demônios”. A crônica “Berna” foi publicada inicialmente no Jornal do Brasil e posteriormente na obra Para não esquecer. O olhar da estrangeira e exilada é muito característico nesta crônica, em todas as descrições percebemos a dificuldade de identificação que a enunciadora encontra em relação ao outro e ao espaço. A cidade se define por habitante neutros, que retraem a emoção, talvez um dado característico e influenciado pelo clima, pois a escritora faz questão de ressaltar as mudanças climáticas em conciliação com o seu humor. Sua vontade é devorar um “boi de alma doente”, como uma imagem recorrente em Clarice que reaparece no conto “Uma história de tanto amor”, quando a menina devora sua galinha de estimação Eponina para que ela também faça parte de si, como em um ato canibal. Aqui, seu desejo é ter a “alma doente” e conseguir expurgar os “demônios” tão abafados pelos suíços. A necessidade que a escritora tem de evidenciar a falta de “demônio” é demonstrar o lado humano que não é passível de neutralidade ou limitação, que deve se revelar como parte de um ser imperfeito . O “excesso de evidência de beleza” (p. 104) e a “sensação de facilidade” (p. 104) tornam-se um cartão-postal da Suíça, ou seja, a busca por um equilíbrio e uma paz 3
O artigo “Clarice Lispector paisagista”, de Fátima Cristina Dias Rocha (2007), retrata a literatura de viagem presente nas correspondências do exílio diplomático da escritora. O texto aborda questões que serão desenvolvidas neste trabalho, mas, aqui, além das cartas, utilizo também as crônicas.
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que não se encontra em muitos outros lugares, mas para a enunciadora esta situação não traz o desejo de permanecer lá, mas, de se afastar, porque começa a “inquietar” sua personalidade. Ela declara que o “demônio” teria sido expulso da capital suíça, assim, todos viviam em uma paz e um equilíbrio integrais; entretanto, esta vivência não foi conquistada com facilidade, mas com uma “[...] conquista lenta, aperfeiçoamento obstinado e penoso” (p. 104). Aqui, podemos associar o texto com a crônica “Medo de errar”, em que a enunciadora desconstrói através do discurso irônico a “falsa” neutralidade suíça, afirmando que muitos se suicidavam no rio Kirchenfeld. Nesta crônica, que também perpetua o discurso irônico, temos a demonstração de que foi através de muita resistência, do sacrifício dos próprios anseios, que eles conseguiram ser um modelo de neutralidade. Na passagem abaixo, percebemos o olhar de alteridade e estrangeiridade em que se mantém a enunciadora: Obstinação de manter afastado o Demônio? Obstinação que se trabalha nessa ânsia tão suíça de limpeza, vontade de copiar em terra a clareza do ar, obediência à lei de nitidez que a montanha, na sua implacável fronteira, dita. Vontade de imolar a coisa humana, fatalmente impura e desordenada, à límpida abstração dessa natureza. A ordem não é mais um meio, é necessidade em si mesma moral. A ordem é o único ambiente onde um homem suíço pode, na Suíça, respirar. Fora da Suíça, ele se espante, encantado com aquele Demônio que ele mesmo expulsou. (p. 104). A descrição condiciona a personalidade dos suíços ao desejo de se apropriar do próprio espaço, se este é marcado pela limpeza, clareza, nitidez, o suíço também tornase parte daquilo que ele habita. Entretanto, quando ele é levado para uma região fora do seu alcance e colocado em confronto com um povo que não se afasta do seu demônio, ele se surpreende. Assim, ocorre com o contato que a enunciadora mantém com os bernenses. As mulheres são descritas como sérias, sem pintura, que controlam seus desejos e pudores, como seus demônios, mantendo-se purificadas apenas com o som do órgão e do coro. Aqui, encontramos novamente uma imagem que corresponde à crônica “Medo
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de errar”: a música clássica é a mais desejada, pois foi consagrada e não coloca a opinião do indivíduo em risco; a moderna, por sua vez, pede a coragem de apreciar algo de alguém ainda vivo e que pode se contrapor à obra produzida. A recorrente imagem da primavera reaparece nesta crônica para caracterizar a mudança no comportamento do suíço; aqui a primavera não acentua o desejo de uma mudança na personalidade da enunciadora, mas se destaca a forma como o bernense reage ao renascimento das flores. “Esse pudor é vencido na primavera, e timidamente ousa. Aparecem blusas claras, pequenas golas brancas surgem nos vestidos escuros, delicada contribuição feminina à luz”. (p. 105). O confronte entre claro – luz – primavera, em relação à escuridão – solidão – inverno, é também característico do sentimento do melancólico. Na primavera, até a aceitação do outro torna-se mais fácil, pois, ele se desnuda da escuridão e frieza do inverno. A sinestesia é utilizada para representar o renascimento que ocorre na primavera, com o estio, o “morno perfume”, se “tornam mais ásperas, as flores mais urgentes e violentas”, ela faz ressurgir os odores e sentimentos que foram abafados no inverno. O vento provoca a poeira e a instabilidade da tranquila paisagem, proporcionando o “esporte”, que para a enunciadora é um “desabrochamento sem demônios”. Ou seja, apesar do desabrochar da primavera, a contenção dos demônios ainda persiste, reforçando a alteridade entre a enunciadora e os habitantes locais. Como Clarice referese em uma correspondência às irmãs, se eles não suportavam o “moderno”, ela fazia parte desta categoria. Enfim, temos a reafirmação do olhar da enunciadora, aquela que observa e espreita através da janela: “mas por enquanto é de novo a primeira primavera e mal se tem tempo de manter-se nela um pouco mais: sob as pontes de Berna o rio frígido corre ligeiro. Claridade, silêncio, mistério: é o que vejo de uma janela de Berna”. (p. 105). As crônicas se configuram através da descrição do espaço e dos habitantes de Berna, nelas percebemos com clareza o olhar do estrangeiro, que através de um perfil melancólico, não se sente motivado para relacionar-se com o outro, não encontrando nenhuma identificação, mas apenas, alteridade e diferença. Em outro ponto, temos, nestes textos a abordagem do espaço público, tão apagado das análises críticas da obra clariceana. Os textos analisados são de extrema importância para compreender a obra da
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escritora, pois partem de imagens recorrentes em outros textos, e também propõe uma abordagem da autora ao relacionar a experiência do contato com o espaço público através do olhar individual e íntimo da enunciadora. Referências BRANDÃO, Luis Alberto. Teorias do espaço literário. São Paulo: Perspectiva, 2013. CANDIDO, Antonio et al. A vida ao rés-do-chão. In: ______. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. LAMBOTTE, Marie-Claude. Estética da melancolia. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999a. ______. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999b. ______. Minhas queridas/ Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. ROCHA, Fátima Cristina Dias. Clarice Lispector paisagista. In: Paisagens ficcionais – perspectivas entre o eu e o outro. Org. Henriqueta do Coutto Prado Valladares. Rio de Janeiro: 7 letras, 2007. VÁRIOS AUTORES. Cadernos de Literatura Brasileira: Clarice Lispector. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2004.
VASCONCELLOS, Eliane. Inventário do arquivo Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1993.
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A CONSTRUÇÃO DO FEMININO NA LITERATURA: REPRESENTANDO A DIFERENÇA Tayza Cristina Nogueira Rossini (UEM) A consolidação da literatura de autoria feminina, cuja trajetória, timidamente iniciada em meados do século XIX, ganha consistência no transcorrer do século XX, suscita, conforme têm demonstrado muitas pesquisas no âmbito dos estudos de gênero, novas possibilidades, inclui outras perspectivas sociais e amplia a gama das representações literárias tradicionais. É sabido, igualmente, que o cânone literário ocidental, historicamente constituído de obras escritas por homens, brancos e da elite sociocultural, é impregnado de ideologias dominantes, as quais lhe regem os códigos de produção e de representação. Daí não comportar qualquer tipo de produção literária que não corresponda aos modelos propostos pela hegemonia dominante, masculina, branca e de classe alta. A marginalização, repressão e/ou exclusão de determinados grupos sociais, étnicos e sexuais como mulheres, “não brancos” e “membros de segmentos menos favorecidos da pirâmide social” (REIS, 1992, p.73) do universo da Literatura encontra aí sua motivação. Tradicionalmente, as mulheres foram consideradas como inferiores aos indivíduos do sexo masculino, não só na esfera cultural, mas também na social, histórica e política. Um estado de coisas gerado pela política do patriarcalismo, cuja ênfase estava em questionar a capacidade intelectual da mulher, neutraliza-lhe a cidadania e seu direito de se constituir como sujeito. No campo literário e cultural a experiência feminina sempre vista de forma não valorativa justifica o surgimento, em meados do século XX, de ações no sentido de conscientizar os indivíduos da necessidade de desconstruir a opressão e a marginalização da mulher – construída ao longo da história. Isto é o que se chama de feminismo, um movimento político, social e filosófico que pregava a igualdade social entre os sexos, com o intento de eliminar qualquer dominação sexista e de transformar a sociedade (BONNICI, 2007, p. 86).
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Do mesmo modo, a crítica literária feminista, surgida nos Estados Unidos e na Europa a partir dos anos 1960 e 1970, alavanca o processo de desconstrução dos padrões literários existentes, calcados em ideologias de gênero. As mulheres, até então silenciadas e marginalizadas, foram impulsionadas a emancipar-se no campo literário e a lançar questionamentos sobre os discursos hegemônicos, desnudando-lhes o modo de funcionamento, desmascarando os processos de naturalização das diferenças hierarquizadas de gênero e, consequentemente, problematizando o cânone literário estabelecido. Contudo, como aponta Lúcia Zolin (2007), essas conquistas obtidas por meio do movimento feminista não garantem a igualdade almejada pelas mulheres entre os sexos, mas, promovem um novo modo de se fazer literatura, a partir da perspectiva da mulher, quase sempre, feminista. Como no Brasil o feminismo passou a figurar, de forma já consolidada, só mais recentemente, conforme afirma Zolin (2009), cabe perscrutar o modo como as representações de gênero se dão para além das margens da narrativa, bem como no seu interior, com ênfase no espaço concedido à mulher na cultura e na literatura. Cabe igualmente observar o modo como as produções literárias de autoria feminina mais recentes tendem a abalar as representações tradicionais e em que medida as vozes e os papéis representados são reconfigurados. Por fim, cumpre refletir sobre o lugar conferido à produção literária afrodescendente dentro da trajetória da literatura de autoria feminina brasileira.
1.1 A representação da imagem feminina na literatura Tendo em vista a noção de representação como um dos elementos de grande importância no âmbito dos estudos literários, especialmente nos estudos de gênero, adota-se como objeto de análise o romance Um defeito de cor (2011). Nosso objetivo é o de perscrutar sobre como as identidades femininas são representadas, subvertendo os modelos até então responsáveis por compor o painel das produções inseridas no cânone ao longo da história da literatura brasileira. O romance de Gonçalves (2011) propicia a observação no que toca à produção, por ter sido escrito por uma mulher
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afrodescendente, bem como a representação de uma identidade transgressora e deslocada, destoante das identidades comumente construídas com base no imaginário de ideologias racistas e patriarcais. Representação é um conceito passível de várias acepções - portanto, polissêmico, abstrato e instável. Etimologicamente, a palavra, de origem latina e oriunda do vocábulo repraesentare, designa “tornar presente” ou “apresentar de novo”. Para Roger Chartier (2011), o conceito de representação reforça a ideia anteriormente apresentada de, por meio de palavras ou imagens, tornar presente algo que está ausente, sendo a palavra entendida como “instrumento de um conhecimento mediador que faz ver um objeto ausente através da substituição por uma imagem capaz de o reconstituir em memória e de o figurar como ele é” (CHARTIER, 1990, p.10). Representar pode também significar falar em nome do outro. Nessa linha de pensamento, Zolin (2010) assevera que o sujeito que tem garantido o direito ao discurso e que será tomado como referencial, enquanto o outro permanece silenciado, é dotado de um poder que lhe é garantido pelo lugar que ocupa no interior da sociedade, estabelecido através do julgamento de sua classe social, sua etnia, seu gênero... Transportando-se este pensamento para o campo literário e pensando-se a condição do gênero feminino, cumpre salientar que, historicamente, antes do surgimento das primeiras manifestações literárias de autoria feminina, o sujeito detentor do direito ao discurso - e, assim, do poder - era do sexo masculino, branco, de classe média alta, e as representações até então erigidas se davam unicamente por esta perspectiva social, atestando o silenciamento e invisibilidade até então reservadas ao sexo feminino. A crítica literária feminista irrompe neste contexto justamente com o intento inicial de desestabilizar o conceito de representação (ideológica e tradicional) da mulher dentro da literatura até então produzida. A crítica literária feminista passa a agir no sentido de possibilitar a representação de perspectivas sociais que o cânone literário masculino não fora capaz de evidenciar, descortinando a história tradicional e sexista da representação das mulheres no terreno literário de autoria masculina e assim permitindo a inclusão de vozes antes marginalizadas, tanto na produção dos textos, quanto na
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representação literária, o que contribuiu para que essas vozes fossem imersas no campo literário - portanto, que fossem legitimadas. Por esse princípio, na ficção de autoria feminina o discurso passa a ser proferido a partir de uma perspectiva feminina que ganha voz dentro de uma narrativa, representando identidades que se deslocam dos paradigmas tradicionais propostos para a mulher, a exemplo do que ocorre no romance da escritora brasileira Ana Maria Gonçalves, adotado como objeto desta pesquisa. O lugar tradicionalmente reservado à mulher na sociedade e, concomitantemente na literatura, legitimado pelo discurso hegemônico, é o do silenciamento (SPIVAK, 2010); mas com a produção literária de autoria feminina, as personagens ganharam o direito à voz, tornando-se, não raro, narradoras e, como tal, passaram a representar experiências femininas que se distanciam da perspectiva hegemônica masculina. As práticas discursivas criadas a partir da perspectiva da mulher levam consigo novas formas de avaliar os papéis dos gêneros naturalizados pelas culturas patriarcais ao longo da história. Assim, a partir da produção literária de autoria feminina, a noção de representação ganha um novo sentindo, traduzido em termos de representatividade das diversidades sociais e, em especial, de identidades femininas antipatriarcalistas (ZOLIN, 2010). Embora os primeiros textos produzidos por mulheres no Brasil se mostrem retraídos no sentido de representar e discutir as relações de gênero, reiterando os padrões dominantes, como demonstra Xavier (1999), com o passar do tempo as produções femininas foram ganhando espaço e voz na literatura e passaram a difundir a forma feminina de pertencer a uma categoria de gênero historicamente subjugada e oprimida. Do mesmo modo que sinalizam atitudes subversivas em relação a esse estado de coisas, as obras de Clarice Lispector funcionaram como um divisor de águas na história da literatura de autoria feminina brasileira, separando as práticas literárias marcadas pela reduplicação das ideologias tradicionais de gênero das práticas subversivas e/ou contestatórias. A produção literária de autoria feminina passa a apontar, segundo Zolin (2009, p.106), tendo em vista o romance A audácia dessa mulher, de Ana Maria Machado (1999), para a “reescritura de trajetórias, imagens e desejos femininos” de mulheres que
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respondem subversivamente às ideologias conservadoras arraigadas na representação de sua imagem, produzidas tradicionalmente pela literatura canônica. Neste sentido, a literatura de autoria feminina, por suas diversas formas de representação da realidade, tem concebido novas formas de revelar/desnudar a mulher, que permaneceu por tanto tempo silenciada na literatura e na realidade extraliterária. Destarte, a partir dessa produção literária têm sido concebidos novos padrões que encaminham no sentido de superar a distinção e separação das categorias binárias de gênero. Esses novos padrões também contribuem para a recusa da predominância de uma identidade masculina e legítima, além de trazerem à tona discussões sobre representação, identidade e diferença. Como Um defeito de cor (2011) é um romance de autoria feminina e concebido por uma escritora afrodescendente, torna-se oportuno observar o espaço concedido à mulher negra na produção de literatura e na representação literária, bem como uma reflexão sobre o espaço e o número de presenças de personagens negras na literatura tradicionalmente produzida. O romance de Gonçalves (2011) contribui justamente para a observação e análise do modo como a presença negra é representada na narrativa, até então ausente em posições de destaque na literatura canônica. A crítica literária contemporânea tem justamente se mobilizado no sentido de mapear o campo literário brasileiro e apresentar, a partir de pesquisas realizadas, a frequência com que o negro é representado na literatura, seja como produtor, seja como personagem; reconhecer o espaço de voz a ele concedido; e abordar o modo como se dá a sua representação no interior das margens do texto literário.
1.2 A identidade feminina negra na literatura: autoria e representação Embora seja consenso o fato de a literatura de autoria feminina ter conquistado espaço no universo literário brasileiro e tenha se tornado vasta a seara de escrituras disponibilizadas por “penas” femininas, o espaço reservado à mulher negra nesse cenário ainda é bem pequeno: tanto a representação de escritoras negras no mercado
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editorial, quanto a representação de personagens negras, especialmente as do sexo feminino, no universo literário em geral. Observa-se que a população negra, em decorrência dos discursos ideológicos de poder de que se encontra impregnada a sociedade (em sua maioria de caráter racista), é afastada dos espaços de poder e de produção de discursos, característica que se reflete também na literatura. Regina Dalcastagnè (2008) dá destaque à questão da representação do negro na literatura brasileira, problematizando a pequena quantidade de autores/as e personagens negras nos romances publicados entre os anos de 1990 e 2004 por três grandes editoras brasileiras (Companhia das Letras, Record e Rocco). Os resultados da pesquisa coordenada pela pesquisadora acerca da personagem que povoa o corpus acima referido apontam que, de um total de 165 escritores/as avaliados/as, 72,7% são homens. No que toca à questão de categorias étnico raciais, os valores obtidos são ainda mais alarmantes: do total de escritores e escritoras levantados/as na pesquisa, 93,9% são brancos/as, sendo que 3,6% não tiveram sua cor identificada pela abordagem da pesquisa e, os “não brancos” não passaram dos 2,4% apontando para o espaço restrito reservado à autoria negra na produção literária no país. Das personagens analisadas, 80% são brancas, e em casos mais delimitados, em que as personagens negras se apresentam como protagonistas ou como narradoras, a porcentagem é ainda mais alarmante. Quando os negros são representados, comumente aparecem em posição secundária, não ocupando o papel de protagonista, muito menos o de narrador/a, ou ainda ocupam posição subalterna, muitas vezes, estereotipada. É tendo em vista o fato de a condição do negro ser marginalizada na literatura, que um romance como Um defeito de cor (2011) deve ser considerado como sendo singular, pois, além de ter sido escrito por uma mulher afrodescendente, traz para o centro da narrativa a representação da trajetória de uma personagem feminina negra, desempenhando papéis de destaque: narradora e protagonista. No espaço literário notam-se diversos silenciamentos e invisibilidades de múltiplas perspectivas sociais, conforme constata Dalcastàgne (2008). Segundo Iris Young (2000, p.136), a “perspectiva social” implica a constatação de que, posicionadas diferentemente dentro de uma sociedade, as pessoas portam experiências histórias e conhecimentos sociais diversos, oriundos desta posição. Pessoas de categorias
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socioculturais diferentes - como homens e mulheres, patrões e trabalhadores, brancos e negros, etc. - possuem concepções distintas de mundo e se expressam de maneiras diferentes. Por isso é importante salientar a participação de perspectivas comumente deixadas à margem do discurso tradicionalmente produzido e suscitar o reconhecimento e visibilidade de textos, por exemplo, de escritoras negras, assim como integrar na narrativa personagens femininas negras detentoras de voz, para que outras expectativas sociais sejam desveladas e assim se conheça o outro lado da margem. O racismo, responsável pela discriminação que permeia densamente a estrutura da sociedade ao longo da história e cuja influência envolve também a literatura, é, nos termos de Ella Shohat e Robert Stam (2006, p.51), a “tentativa de estigmatizar a diferença com o propósito de justificar vantagens injustas ou abusos de poder, sejam eles de natureza econômica, política, cultural ou psicológica”. Desse modo é uma opressão que se manifesta tanto material quanto simbolicamente e pode ser percebida na própria literatura, a qual escolhe os discursos que considera dignos de compor seu contexto e os toma como seu objeto (DALCASTAGNÈ, 2008). Nessa escolha, como demonstram os resultados da já referida pesquisa da pesquisadora da UNB, têm sido ignorados, silenciados e deixados à margem os indivíduos subalternos e socialmente marginalizados. Ser negro, segundo Young (2000), em uma sociedade racista não significa somente portar outra cor, mas principalmente portar outra perspectiva social, outra experiência de vida, em grande parte marcada por algum aviltamento. Não suficientes o silenciamento e a invisibilidade a que o negro é submetido na sociedade e na literatura, ainda são inscritos na representação deste indivíduo estereótipos engendrados em sua imagem (decorrentes de uma problemática social racista que também se legitima no campo literário quando o negro é representado) responsáveis ao mesmo tempo por hierarquizar seu posicionamento nas divisões sociais. Na criação da imagem do negro, foi-lhe atribuída uma carga simbólica negativa. Quando se trata da mulher negra a situação é ainda pior. À mulher negra foi reservado um espaço de subalternidade, responsável por minar qualquer possibilidade de exercer sua subjetividade. No que toca à representação da mulher negra na produção literária brasileira de autoria feminina ao longo da história, percebe-se que a voz da mulher negra foi
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praticamente inexistente, ou quando existente, não foi devidamente reconhecida: seja por meio das vozes de suas escritoras; seja através das próprias personagens inscritas nos romances canônicos. Sobre a questão da produção literária dos afrodescendentes afirma Eduardo de Assis Duarte: “Desde o período colonial, o trabalho dos afrodescendentes se faz praticamente em todos os campos de atividade artística, mas nem sempre obtendo o reconhecimento devido. No caso da literatura, essa produção sofre, ao longo do tempo, impedimentos vários à sua divulgação, a começar pela própria materialização do livro (...). Em outros casos, existe o apagamento deliberado dos vínculos autorais e, mesmo, textuais com a etnicidade africana, ou com os modos e condições de existência dos afrodescendentes, em função da miscigenação branqueadora que perpassa a trajetória desta população.” (DUARTE, 2005, p. 113-114).
Nesse sentido, Um defeito de cor (2011) se constitui como uma importante subversão no âmbito das práticas literárias afrodescendentes e, em especial, dos paradigmas propostos pela maioria dos textos de autoria feminina no Brasil, especialmente no que tange à representação da mulher negra. Gonçalves (2011) traz para o centro da trama o sujeito antes deixado à margem da sociedade e do discurso, problematizando o modo como as ideologias, preconceitos e estereótipos lançados no negro se engendram na representação da identidade e do corpo, instigando a revisão das regras, propondo um percurso diferente e possibilitando ao leitor uma releitura sobre a história do país a partir da perspectiva feminina afrodescendente. Kehinde, protagonista da história, torna-se sujeito na narrativa e desempenha o importante papel de narrar a situação sociohistórica do Brasil do século XIX através dos relatos de sua própria história de vida e de um olhar extremamente subjetivo sobre o contexto do país naquela época. Gonçalves (2011) subverte a representação tradicionalmente reservada ao negro na literatura: de “pobre escravo de senzala” a sujeito subalterno que luta por seus ideais, pela conquista de seus direitos e de sua liberdade, inclusive enquanto mulher (DALCASTAGNÈ, 2008). Diferentemente das representações inculcadas na imagem da mulher negra, pintada geralmente a partir da representação de um corpo sensualizado e convidativo ao pecado, Kehinde se mostra uma mulher bonita, forte e, acima de tudo, sábia, buscando
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sempre seus objetivos de forma segura e determinada, tomando suas próprias decisões e escolhendo o melhor caminho a ser percorrido na expectativa de assumir uma posição mais humanizada na sociedade. A personagem intenta fazer com que o gênero feminino, o qual lhe determina uma das identidades ou uma das facetas de sua identidade, não se constitua como um empecilho à conquista de seus ideais. Um defeito de cor (2011) põe em xeque a representação da mulher negra na narrativa por meio de uma dissonância com o estereótipo frequentemente lançado nas representações sociais que faz da mulher negra, pobre, representante de mulheres envolvidas com a criminalidade, prostitutas, empregadas subservientes - enfim, mulheres que são silenciadas e outremizadas na sociedade. A estratégia utilizada por Gonçalves (2011) de conceder o espaço central da narrativa a uma mulher negra e escravizada possibilita o acesso a diferentes perspectivas sociais, a da mulher, a da/o negra/o e a da/o escrava/o; além disso, contribui para o entendimento do que é ser negro e ser mulher, em um contexto social escravista e patriarcal, impregnado por discursos hegemônicos acerca da diversidade racial e de gênero, como é o do Brasil. Por essa perspectiva, como pondera Dalcastagnè (2008) a respeito das personagens femininas negras no texto literário, Kehinde desvela a realidade de seu povo. No dizer da pesquisadora (p. 102), a mulher, negra e escrava, se depara com outras trajetórias, trilha “outros chãos”, desloca-se no romance de acordo com “outros ritmos”, experienciados de modo distinto de personagens de cor branca. Esse percurso justifica a representação não esperada na literatura tradicional para uma mulher negra marginalizada que consegue ultrapassar significativamente objeções impostas pela sociedade escravocrata e patriarcalista do século XIX, detentora do poder de ordenação e exclusão cultural e social e encarregada pela divisão e hierarquização do espaço destinado a cada indivíduo em seu meio. A obra apresenta, assim, o percurso de uma mulher negra que caminha na contramão das imposições e expectativas sociais a ela impostas. Rompe com os parâmetros de sua época e torna-se um exemplo de mulher lutadora, mesmo que, para se libertar dos problemas advindos de sua condição social, e conseguir um espaço na sociedade, tenha adotado atitudes e aceitado imposições culturalmente determinadas pelo homem branco.
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Kehinde subverte os padrões e supera as expectativas do branco em relação ao negro. Neste sentido, o modo como a trama literária se desenvolve e a representação da personagem é estabelecida nos induz a acreditar que Um defeito de cor (2011) quebra a expectativa do leitor que, ao buscar a representação de uma personagem escravizada nos moldes comumente encontrados na literatura, depara-se com uma personagem nova, diferenciada, que contraria os modelos estereotipados produzidos por um discurso masculino eurocêntrico. O acesso da mulher negra ao universo da produção literária tem aberto caminhos para a problematização da histórica opressão de gênero e de raça lançada na representação de sua imagem ao longo dos anos. Certamente, a inserção da mulher de descendência negra na literatura não foi - e não tem sido - um trabalho simples, mas é por meio da literatura que a essa mulher é possibilitado projetar sua voz para a “libertação” de seu corpo e dos estigmas sociais lançados em sua imagem, além da busca de uma sociedade mais justa e igualitária.
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DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura, política, identidades. Belo Horizonte: FALEUFMG, 2005. GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. – 7 ed. – Rio de Janeiro: Record, 2011. MACHADO, Ana Maria. A audácia dessa mulher. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. REIS, Roberto. Canôn. In: JOBIM, José Luis (Org.). Palavras de crítica: tendências e conceitos no estudo da literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 65-92. SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica: multiculturalismo e representação. Trad. de Marcos Soares. São Paulo: Cosacnaify, 2006. SPIVAK, Chakravorty Gayatry. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. XAVIER, Elódia. Narrativa de autoria feminina na literatura brasileira: as marcas da trajetória. Revista Mulheres e Literatura, Rio de Janeiro, ano 3, vol.1, 1999. Disponível em: << http://www.litcult.net/revistamulheres_vol3.php?id=225>> Acesso em: jul. 2013. YOUNG, Iris Marion. Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000. ZOLIN, Lúcia Osana. O matador, de Patrícia Melo: gênero e representação. Revista Letras, Curitiba, n.71, p. 53-63, jan./abr.2007. Editora UFPR. ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de Autoria Feminina. In: BONNICI, Thomas e ZOLIN, Lúcia Osana (Orgs.). Teoria Literária. 3 ed. Ver. Ampl. Maringá: EDUEM, 2009.
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MEDIAÇÕES ENTRE LITERATURA E PROCESSO SOCIAL: CONSIDERAÇÕES SOBRE A RECEPÇÃO DA PEÇA AUTO DOS 99%, DO CPC, PELO TUM-MARINGÁ. Thaís Aparecida Domenes Tolentino (UEM) 1. Introdução A crítica sobre uma obra de arte pressupõe refletir sobre ela enquanto produto de um determinado contexto histórico e social, embora não se limite a isso. Isso porque analisar uma manifestação artística ou cultural envolve não somente a reflexão sobre seus elementos formais e estruturais que o diferenciam da linguagem denotativa cotidiana, mas interpretá-la dialeticamente em consonância com os fatos sociais, cabendo à crítica literária esse papel mediador. A arte exerce uma influência social na medida em que a sociedade atua diretamente na sua forma de ser, tanto no enunciado do conteúdo quanto de sua forma, sendo esta constatação premissa essencial para qualquer análise estética de valor. É a partir desse pressuposto, amplamente discutido no Brasil a partir da crítica socialmente orientada de Antonio Cândido, que se pretende debater nesse artigo as estratégias formais utilizadas pelo Teatro Universitário de Maringá (TUM) ao atualizar o texto teatral “Auto dos Noventa e Nove por Cento”, do Centro Popular de Cultura (CPC), de 1962, para um novo contexto. As mudanças sociais verificadas durante o século XX, principalmente em decorrência da instauração do capitalismo enquanto sistema econômico hegemônico, do rápido processo de urbanização das metrópoles e da mecanização do sistema de produção, causaram mudanças imprescindíveis no que diz respeito à arte em geral. Os movimentos de vanguarda que surgiram na Europa, como, por exemplo, o Expressionismo, na Alemanha e o Naturalismo, na França, são exemplos desse rompimento que se alicerçava enquanto reação cultural e política da dominação das ordens aristocratas e do caráter burguês que impregnava a sociedade Ocidental até então. E no que diz respeito à crítica literária, essas mudanças se fizeram sentir especialmente no que diz respeito ao surgimento de inúmeras abordagens teóricas que tentavam superar o imanentismo clássico arraigado nas discussões estéticas que se
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desenfreavam, reverberando em correntes divergentes, mas que traziam consigo aspectos sociais, fruto também de um alargamento no campo da historiografia. O alargamento social ocorrido no campo da abordagem teórica sobre a arte moderna se fez refletir também na introdução da discussão sobre a instância do leitor e sua participação no processo de realização da obra de arte, trazendo a subjetividade do receptor para o primeiro plano. As discussões levantadas por Wolfgang Iser (1926 – 2007), de grande importância para o desenvolvimento da corrente teórica denominada mais tarde de Estética da Recepção, voltaram-se para a realização material e imediata entre o texto e o leitor. Apoiada na tendência filosófica fenomenológica, o autor discutiu ao longo de suas obras os mecanismo estruturais mobilizados pelo autor textual para que a interação com o leitor seja efetiva, ou seja, para que se estabeleça através da obra um processo comunicativo. É nesse sentido que o pensamento de Iser contribui para que a obra de arte seja compreendida no que diz respeito às suas interações sociais. Assim, partindo do pressuposto de que a obra de arte e os eventos sociais relacionam-se dialeticamente, bem como da importância do leitor no que diz respeito às escolhas formais de uma obra suscitadas por W. Iser, pretende-se nesse artigo discutir a recepção da peça Auto dos 99%, do CPC, pelo Teatro Universitário de Maringá no que diz respeito à escolha do repertório, ou seja, as implicações que subjazem a retomada de um teatro de tradição dialética em um novo contexto universitário. Segundo Iser (1996), a escolha do repertório, denominada por ele como convenções necessárias para a produção de uma situação, é base para que exista a aproximação dialógica entre autor e receptor.
2. Considerações sobre o campo de referência da obra literária a partir das inquietações levantadas por Wolfgang Iser na teoria do efeito estético. No que diz respeito às mudanças ocorridas no campo da arte no início do século XX, o processo de modernização da literatura foi marcado pela desestabilização das formas clássicas enquanto reação cultural e política à dominação de uma visão burguesa sobre arte. Os conteúdos que surgiram a partir da modernização das metrópoles, ou seja, problemas sociais, a fome, as máquinas, a técnica, a velocidade, o cotidiano proletário, a miscigenação, os assuntos coletivos, as greves, a fragmentação do homem na
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modernidade, acabaram por colocar a poética clássica em seu limite, forçando o surgimento de novos gêneros, capazes de materializar aquilo que ganhava corpo no campo do conteúdo. As mudanças no campo da arte não permaneceram, assim, alheias ao fervor social que se levantou mundialmente, muito ao contrário, geraram não só novos conteúdos, mas questionaram a própria forma de se conceber os fenômenos artísticos. No campo da crítica literária, o impressionismo e o biografismo marcante da crítica romântica que se desenvolveu até meados do século XIX, bem como o estruturalismo e o imanentismo radical influenciados pelo desenvolvimento da corrente filosófica de base positivista dos primeiros anos do século XX, foram recolocados em discussão. Essas novas abordagens críticas de análise da literatura não deixavam de reconhecer as peculiaridades dos elementos estruturantes de um texto, mas não dispensavam as mediações com os fenômenos sociais e contextuais – como a Estética da Recepção, a Crítica Marxista, o Materialismo Histórico, cada qual dotado de peculiaridades e divergências em relação à concepção de arte (GUMBRECHT, 2002, p.992). Dentre as mudanças de concepções de abordagem do fenômeno literário pela crítica está a inserção do leitor enquanto elemento central no processo de significação de uma obra. Apropriando-se da discussão levantada pela Fenomenologia na virada para o século XX, pautada na possibilidade de um estudo dos fenômenos da consciência isolados em si, desenvolvida por Edmund Husserl (1859 – 1938), o estudo da obra literária passou a ser avaliada por teóricos da literatura enquanto processo que só adquirem sentido na sua interação com o leitor, pressuposto para que se torne, assim, um fenômeno comunicativo. Ainda que na contemporaneidade sejam possíveis as releituras acerca dessa visão, e reavaliação é um processo que deve ser constante no que diz respeito aos fenômenos sociais e artísticos dada a sua dinamicidade, alguns pressupostos acerca da discussão sobre a teoria do efeito estético levantadas por essa tendência crítica mostram-se de grande utilidade para compreender o processo de reinscrição das obras literárias no curso da história. Ao olhar para o momento imediato de sua recepção, o ato da leitura, ela problematiza em certa medida os mecanismos base para o estabelecimento do processo comunicativo que estão em jogo na obra ficcional – conteúdo e as estratégias linguísticas.
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Em O ato da leitura: uma teoria do efeito estético, livro de grande importância para a corrente estética denominada Estética da Recepção, escrito por Wolfgang Iser em 1976, o autor sugere um substituto da teoria do texto, ou seja, das concepções estruturalistas de base cientificista, pela estética da recepção, baseada na co-atuação entre texto e leitor, entre o ato da leitura e determinadas marcas estruturais dos textos de ficção. Ao aprofundar sua discussão sobre a interação entre a estrutura da obra e o leitor, Iser substitui a pergunta a “o que um determinado poema, drama ou romance significa” pela pergunta “o que acontece ao leitor na interação com o texto ficcional”. Ou seja, não há um significado universal da obra de arte uma vez que ela depende constantemente da subjetividade do leitor, instância essencial para que uma obra de arte se concretize e exista materialmente. A significação de uma obra depende, assim, das estratégias utilizadas conscientemente pelo autor para estabelecer um ato comunicativo. Após discorrer sobre a problemática das abordagens tradicionalistas em relação ao texto literário na primeira parte da sua obra, em seguida o autor propõe um modelo históricofuncional da literatura baseado em dois princípios fundamentais para que se concretize o processo de interação com o leitor: a escolha do repertório e as estratégias do texto. A proposta de John Langshaw Austin (1911 – 1960) que prevê a existência de convenções comuns entre falante e receptor, procedimentos aceitos por ambos e disposição de participar na ação verbal para que se constitua uma ação com êxito, será retomada por Iser (1996) na sua teoria de abordagem do texto literário. Se a disposição de participar na ação verbal é totalmente subjetiva e dependente do leitor, as outras propriedades propostas por Austin (ou seja, as convenções comuns entre falante e receptor e os procedimentos aceitos por ambos) não são dadas. Daí que no texto ficcional, essas convenções e procedimentos resultam num alto grau de estruturação do discurso, impregnando-o de uma grande carga simbólica e alegórica: “Se o texto não é idêntico nem ao mundo empírico, nem aos hábitos do leitor, o sentido deve ser constituído pelos elementos que traz consigo.” (ISER, 1996, p.129). Tendo em vista que o objetivo do presente artigo é analisar a recepção do texto dramático Auto dos 99%, não no que diz respeito à encenação, ou seja, a sua realização imediata, devido à ausência de material documental, será discutido a fim de dar sustentação à análise pretendida apenas questões inerentes à escolha do repertório,
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essenciais para se analisar as estratégias que subjaz a atualização de um texto teatral escrito coletivamente por integrantes do CPC nos anos 1960 para o contexto universitário maringaense, passados 45 anos de sua primeira encenação. Embora a Estética da Recepção, assim como toda tentativa de teorização dos fenômenos artísticos, tenha suas limitações enquanto sistema de abordagem do fenômeno literário, dada a dinamicidade das mudanças históricas e sociais, não se pode negar que ao olhar para a participação do leitor, as discussões sobre literatura que se acirraram a partir da metade do século XX passaram à tentativa de aproximar duas visões que se desenvolviam até então enquanto polos opostos: estruturalismo e historicismo. Das propostas múltiplas acerca da superação dessa dicotomia por inúmeras correntes estéticas foram sendo reestabelecidos os laços que uniam literatura e sociedade. No entanto, interessa para esse artigo não a relação reflexiva entre literatura e sociedade, como mero espelho, requerido por uma parcela da crítica, mas sim no diz respeito à compreensão crítica das mediações entre arte e sociedade, tanto no plano da forma quanto do conteúdo. 3. Considerações sobre as estratégias textuais na recepção da peça “Auto dos Noventa e Nove por Cento” pelo Teatro Universitário de Maringá (TUM). Fundando em 1987, o Teatro Universitário de Maringá (TUM) dedicou-se ao longo de suas atividades à experimentação no palco a partir de um viés épico e crítico, incluindo em seu repertório peças de dramaturgos como Bertolt Brecht, Tchekhov, García Lorca, Dürrenmatt, dentre outros autores marcadamente oposicionistas à forma do drama tradicional herdada especialmente do teatro burguês desenvolvido na França em meados do século XVIII e XIX. Em 2008, seguindo o viés crítico que acompanhara o desenvolvimento do grupo desde suas primeiras encenações, a peça Auto dos 99% foi adaptada na continuidade dessa tradição dialética, trazendo para dentro do ambiente acadêmico a discussão sobre a necessidade da reforma universitária. Seguindo o proposto por W. Iser sobre as intenções que subsidiam a escolha de um determinado repertório no processo comunicativo com o leitor, o presente artigo dedica-se então, a analisar as estratégias utilizadas pelo TUM ao retomar uma peça importante do teatro político de agitação e propaganda produzido no Brasil dos anos 1960. Para a efetivação
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dessa
aclimatação
ao
contexto
em
questão,
foram
utilizados
mecanismos
caracteristicamente épicos no sentido de historicizar e desnaturalizar o campo do repertório, re-inseririndo o debate sobre a atualidade da universidade pública no Brasil. Escrita coletivamente por Antônio Carlos Fontoura, Armando Costa, Carlos Estêvam Martins, Cecil Thiré, Marco Aurélio Garcia e Oduvaldo Vianna Filho, Auto dos 99% compunha o repertório itinerante do CPC, vinculado à UNE, grupo teatral de grande atuação política dentre os anos 1961 e 1964. A peça retoma o gênero “auto”, originalmente referindo-se às composições dramáticas de caráter religioso da Península Ibérica do século XIII, mas abandona sua função catequética em prol de um novo sentido: o de instrução política. Através da paródia e da subversão de uma forma sacra, a História do Brasil é rediscutida e trazida à tona, explicitando o excludente sistema educacional brasileiro que ao longo de seu desenvolvimento foi, e continua sendo, restrito a uma minoria detentora do capital. O Auto do CPC foi apresentado pela primeira vez em março de 1962 como uma leitura dramática no II Seminário Nacional de Reforma Universitária (SNRU) em Curitiba, cujas deliberações reafirmavam a urgente necessidade de uma reforma universitária no Brasil (PEIXOTO, 1989, p.14).
A apropriação do gênero ‘auto’
deixa em evidência um mecanismo de intertextualidade, em que uma forma religiosa é subvertida para legitimar a instrução política pretendida pelo grupo. Segundo Cafezeiro et. al. (1996), as peças catequéticas, difundidas no Brasil pelos jesuítas, especialmente pelo Padre José de Anchieta a partir de 1553, serviram à instalação de um processo civilizatório ludibriado pela conversão à fé cristã, sempre aliada aos interesses da Coroa Portuguesa. À estrutura narrativa dos autos eram incorporados os cerimoniais indígenas, mas que materializavam enquanto ‘bem’ os amigos dos portugueses e adeptos do cristianismo, e ‘mal’, os inimigos da Coroa e da fé cristã. O título da peça do CPC já aponta para uma subversão paródica do gênero sacro, afinal, o grupo não pretendem contar a passagem de um mártir do cristianismo, mas retratar o drama da exclusão de 99% da população brasileira marginalizada do sistema educacional e até mesmo do processo de construção de sua própria cidadania nacional. Segundo Rosenfeld (2008) ao comentar os elementos do teatro épico brechtiano em oposição
a
um
teatro
dramático,
a
paródia
é
um
artifício
de
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desnaturalização/estranhamento daquilo que é dado como natural – e no ‘Auto’, o desnudamento é da história do Brasil. A instrução não mais se destina ao apaziguamento cultural e domínio da metrópole sobre a colônia, mas colocar em xeque as relações dominadoras e opressoras impostas à maioria dos grupos marginalizados desde o processo da colonização. A paródia é apoiada por um tom irônico que caminha para a comicidade, elemento fundamental para o estabelecimento do contato com o público pretendido pelo CPC – aproximação que não deve ser interpretada como um mergulho não reflexivo como prevê o teatro burguês, mas que se faça comunicar com as camadas populares (PEIXOTO, 1989, p.16). A peça é fragmentada em três partes, que, embora não obedeçam a uma linearidade dramática das ações, relacionam-se mutuamente no sentido de ambas mostrarem diferentes facetas do processo de instauração da exploração da mão de obra no país. A chegada dos portugueses, jesuítas e outros expedicionários exploradores, temática central da primeira parte da peça, é narrada por uma voz em off que anuncia a história do “pega-pra-capar” ou do “salve-se-quem-puder” nacional, sinônimos escolhidos para o processo de colonização nacional. O idílico paraíso pré-cabralino, onde nativos indígenas vivam numa harmoniosa relação de troca e comutação, é transformado na grande máquina de exploração do capital estrangeiro. Os dominadores portugueses, sempre subjetificados (Caminha, Cabral, D. João...) ocupam uma posição contrastante com a grande massa já existente no Brasil, os explorados, tratados sempre como instâncias coletivas ao contrário dos opressores (índios, negros, alunos...). Já no primeiro ato, ficam claros os inimigos do povo, as alegorias do sistema opressor: o quadro que se compõe desde o princípio da colonização no Brasil é a dominação do capital estrangeiro, que a qualquer custo impõe as regras da mais-valia trocadas com os nativos por algumas “bugigangorum”. A condensação dessa relação exploratória que se instaura no Brasil sustenta personagens alegóricos, típicos do gênero ‘auto’, que sustentam o tom satírico da peça. Num momento de debate sobre a reforma universitária, dentre muitas outras questões sociais, a expansão do sentido explorador/explorados incitados na peça acaba por inserir o debate acerca das relações opressoras nas quais se sustentariam o sistema educacional brasileiro.
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A segunda parte da peça introduz a temática central: a questão da instauração da universidade no Brasil através de um mosaico de quadros que representam a evolução da acessibilidade ao ensino superior ao longo da História do Brasil. A realização de vestibulares que regulamentam a entrada dos alunos na universidade, representação da possibilidade de libertação ao elitismo exploratório da metrópole, se mostrará sempre excludente do acesso da grande maioria: inicialmente entram na faculdade apenas os descendentes de Portugueses; declarada a Independência do Brasil (e de acordo com a Voz narrativa da peça ela foi declarada enquanto D. Pedro estava sentado num penico, o que sustenta os momentos de ironia e comicidade da peça), quem terá acesso ao ensino superior será o filho do Barão de Caçapava; na República será a vez dos filhos de latifundiários. Chegada a modernização, última esperança de acessibilidade popular à educação, o ensino superior ficará restrito aos que tem o Secundário, confirmando a lógica da dominação elitista no acesso ao ensino superior no Brasil, onde as relações de base ainda se dão através da exploração da grande massa popular. A terceira parte, iniciada de maneira bastante caricata com um velho professor saindo de dentro de um sarcófago, é composta por quadros isolados que ilustram a debilidade da Universidade no Brasil. Cada quadro representa uma síntese da verborragia e da ignorância pregada dentro das universidades, abastecidas com um discurso vazio que pouco diz às expectativas dos jovens que dela fazem parte. Abordagens classicistas e elitistas compõe o conteúdo das aulas de Sociologia, em que há uma reafirmação do discurso católico e repúdio aos discursos marxistas, ou mesmo na aula de Arquitetura, em que, através de um discurso verborrágico e improdutivo, preocupa-se em discutir as colunas jônicas ao invés de deliberar acerca dos problemas estruturais do Brasil, como as favelas, as condições sanitárias. Daí a articulação ideológica ao vincular o “Auto dos 99%” num contexto de debate das Reformas Universitárias em 1962. No quadro final, um estudante invade a congregação dos professores velhinhos, expondo sua pauta de reinvindicações. Novamente o elemento cômico atua como sátira do passado: um dos professores, surdo, dorme durante as reuniões e nem se dá conta do que está sendo discutido, enquanto outro acaba por se assustar ao escutar a palavra “aluno”, já que parece ter esquecido que eles fazem parte do contexto universitário brasileiro. O final da peça não é feliz, aliás, ele parece já ser
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pressuposto desde a primeira parte: as reinvindicações dos alunos são todas rebatidas e este promete dar continuidade à sua luta aliado à classe trabalhadora, reafirmando a exploração que se solidificou no país desde os primórdios de seu processo de colonização. É da necessidade de dar continuidade ao debate sobre a reforma universitária iniciado em meados dos anos 1960, apoiado na recuperação do teatro político produzido na mesma época, que a peça é reintroduzida no contexto atual do ensino superior brasileiro pelo TUM, no ano de 2008. Ao ser adaptado para um novo contexto, o grupo maringaense apropriou-se de recursos cênicos e literários capazes de levar o espectador a ressignificar esse conteúdo, que embora afastado temporalmente, mostra-se bastante atual frente às discussões ainda não resolvidas sobre o ensino público brasileiro. Ou seja, a alusão a um texto do passado, e mesmo a retomada de um gênero de tradição religiosa secular, não são mecanismo alheios a intensões também políticas e ideológicas. Essa apropriação é essencial para uma análise apropriada da peça, que, certamente, e no teatro ainda mais visivelmente, se dá no momento de interação entre público e atores. É nesse sentido que as inquietações suscitadas por Wolfgang Iser sobre os mecanismos formais do texto literário e sua interação com o público parecem ser elucidativas no sentido de se compreender os recursos de adaptação utilizados pelo grupo maringaense. O TUM recupera, logo à primeira vista, uma tradição crítica e política de teatro, escamoteado pela crítica literária em vigência até meados dos anos 1990 e caracterizada enquanto panfletária e destituída de valor estético. Ao recuperá-la, não só o tema da reforma universitária é trazido à tona, mas a qualidade estética do CPC e a possibilidade de atualização de sua dramaturgia são reconsideradas, inclusive questionando as razões de seu apagamento do panorama teatral brasileiro. Tais questões são colocadas no epílogo da peça, recurso genuinamente narrativo e avesso à forma dramática pura, em que sete atores estudantes discutem a melhor maneira de realizarem um trabalho escolar sobre a universidade. Pensando a peça no que diz respeito às soluções formais, fica evidente o apelo ao metateatro, ou seja, uma peça que discute o fazer teatral dentro da própria peça.
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A peça do TUM possui também um claro intuito didático, o que a aproxima com o teatro épico desenvolvido por Brecht e apropriado pela geração de dramaturgos do teatro político brasileiro desenvolvido durante os anos 1960. Fica também claro que o coletivo está sempre presente na peça enquanto pano de fundo: os personagens conjuntamente vão montando o cenário sem a preocupação de esconder do público que aquilo é ficção, é teatro. Além disso, a proximidade com o leitor é estabelecida através da referência às situações do cotidiano universitário, como ocorre, por exemplo, no prólogo, em que o personagem Ator 7 declara que gostaria de ficar e participar com os colegas da reunião no teatro, mas infelizmente não foi liberado da aula pelo professor de práticas. É também no campo da escolha do repertório em que essa proximidade com o contexto brasileiro atual é construída, como por exemplo, ao fazer referências a figurões da mais corrupta ala da politicagem brasileira, como é o caso da referência a Roberto Jeferson em uma das cenas. Enfim, o caráter crítico do teatro desenvolvido tanto pelo CPC vinculado a UNE nos anos 1960 quanto pelo TUM em meados dos 1980 apoiaram-se certamente na escolha e seleção do campo de referência e repertório para concretizarem seu intuito didático e crítico. No entanto, o posicionamento social de sua dramaturgia deve ser analisado considerando também as estratégias linguísticas utilizadas por ambos para que o conteúdo fosse aproximado do público pretendido – e aí já estamos adentrando o campo da forma, assunto para ser desenvolvido minuciosamente em outro debate, que inclui, certamente, a aproximação entre o teatro épico e a modernização do teatro nacional. Esta deve ser compreendida dialeticamente inserida no contexto histórico e social de suas releituras e apropriações, identificando também o posicionamento ideológico dos grupos. No caso do CPC, era estar ao lado da revolução. 4. Considerações finais As mudanças ocorridas na crítica teatral do século XX, ao se abrirem para as considerações dos elementos extra-textuais, propiciaram o surgimento de teorias mais minuciosas no que diz respeito à interação entre arte e processo social, inserindo a figura do leitor nas discussões. Se no campo do fazer artístico as mudanças econômicas, políticas e sociais que se alastravam nas grandes metrópoles faziam-se ecoar em
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desestruturação das formas clássicas, do pensamento burguês, do racionalismo levado à cabo no campo das abordagens culturais, no que diz respeito à crítica literária houve também transformações de paradigmas que marcam esse período, culminando na transformação da crítica literária. Nesse sentido, fica evidente que a compreensão das transformações das formas artísticas deve ser feita através de fatores que ligam a obra de arte à sua condição de expressão social, em constante processo de interação com as determinantes contextuais de um dado período histórico. São inúmeras as correntes críticas que surgiram em meio ao processo de modernização das metrópoles que tentaram alinhar o estudo formal da obra de arte com suas pressuposições extra-textuais, ou seja, com as determinantes que fazem de um fato artístico um evento também coletivo e socialmente contextualizado, como foi o caso do materialismo histórico, dos estudos culturais, da sociologia da arte, da crítica marxista, das linhas recepcionistas, dentre outras. Embora as teorias com foco na recepção da obra de arte tenham sido amplamente discutidas por outras tendências de análise do fenômeno literário, deixando claro inclusive os seus limites conceituais, ela foi responsável por colocar a subjetividade do leitor enquanto elemento central do processo comunicativo, o que voltou a atenção também para o entendimento da literatura enquanto sistema social em que interagem autor, obra e leitor. No Brasil, essa tendência foi de extrema importância para a modernização no campo da crítica teatral, levada a cabo especialmente por Antonio Cândido na ocasião da defesa da inserção dos estudos culturais na Universidade de São Paulo em meados dos 1930, alinhando pela primeira vez no debate acadêmico brasileiro um olhar sociologicamente orientado no que diz respeito aos fatos artísticos. Iser (1996) ressalta em sua teoria do efeito estético a importância da escolha do repertório para que haja processo comunicativo, retomando postulados sobre a teoria da comunicação desenvolvida especialmente por Austin.
Para o autor, é através da
desnaturalização do familiar que o leitor se torna consciente da situação que o orientava em certa norma agora desvalorizada, ou seja, “O não-idêntico do familiar constitui o contato mínio que ainda há entre dois repertórios.” (ISER, 1996, p.153). Ao retomar o gênero “auto”, o Centro Popular de Cultura subverte um gênero sacro com intuito declaradamente político. Ao apropriar-se da discussão levantada pelo CPC sobre a
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questão da reforma universitária, o Teatro Universitário de Maringá retoma uma tradição de teatro de agitação e propaganda apagado das discussões estéticas da crítica e reinsere o debate social acerca das reforma universitária no Brasil, ainda não realizada em termos de soluções progressistas e democráticas. Enfim, a heterogeneidade do fenômeno literário e artístico torna-se verdadeiro termômetro de mudanças sociais. Na medida em que se compreende a arte como um fenômeno artístico coletivo – mas composto por uma dinâmica rede de relações intersubjetivas – ela passa a ser registro de um complexo mosaico histórico social. Assim, a fuga aos padrões estéticos de uma determinada época não deve ser compreendida baseada em julgamentos puramente internos – estruturais – mas analisados dentro de uma totalidade maior, ou seja, dentro de suas homologias com a macroestrutura social. 5. Bibliografia CAFEZEIRO, Edwaldo; GADELLA, Carmem. História do teatro brasileiro: de Anchieta à Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Editora UFRJ: FUNARTE, 1996. FONTOURA, A. C.; COSTA, A.; MARTINS, C. E.; THIRÉ, C.; GARCIA, M. A.; VIANNA FILHO, O. O Auto dos Noventa e Nove por Cento. In: PEIXOTO, Fernando. O melhor teatro do CPC do UNE. São Paulo: Global, 1989. GUMBRECHT, Hans Ulrich. A teoria do efeito estético de Wolfgang Iser. In.: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da literatura em suas fontes Vol.2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 989 – 1014. ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Vol.1. São Paulo: Editora 34, 1996. MONTAGNARI, Eduardo. Teatro Universitário em cenas: referências e experiências. Maringá: Eduem, 1999. PEIXOTO, Fernando (org.) Vianinha: Teatro, Televisão, Política. São Paulo: Brasiliense. 1978. ___. (org) O melhor teatro do CPC do UNE. São Paulo: Global, 1989. ROSENFELD, Anatol. O Teatro Épico. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. .
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ROMANCE E GÊNEROS BÍBLICOS: UMA LEITURA DE DOIS IRMÃOS (2000), DE MILTON HATOUM Thaize Soares Oliveira (UFGD/CAPES)
RESUMO: Segundo os conceitos de Bakhtin (2010), o gênero romance está em constante construção, e é, portanto, o único gênero por assim dizer, ainda inacabado, e este possui a capacidade de reinterpretar os outros gêneros dando-lhes outro tom. Diante dessa afirmação, vimos no romance Dois irmãos (2000), de Milton Hatoum, a possibilidade de realizar uma análise que abarque a questão das relações entre os vários gêneros, mas em especial, a narrativa hebraica de Esaú e Jacó presente no livro de Gênesis, no Velho Testamento, da Bíblia. Essa proposta, surgiu a partir das ideias de Alter & Kermode (1997) ao afirmarem que os textos bíblicos nos auxiliam a compreender a evolução do ser humano, de suas crenças e de sua cultura, e principalmente, que a literatura ocidental está plenamente atravessada pelos temas e pela linguagem bíblica. A nossa proposta é ir além da conhecida influência machadiana sobre Milton Hatoum, com Esaú e Jacó (1904), expondo outras influências e de que forma elas são apresentadas em sua obra. Para tanto, utilizaremos contribuições de Alter & Kermode (1997), Auerbach (1976), Bakhtin (2010) e Robert (2008). Palavras- chave: Gêneros. Romance. Bíblia.
O gênero romance Ao estudar os gêneros literários, e nos depararmos com o romance, percebemos que existem lacunas que estão longe de serem preenchidas. Essas lacunas são compreensíveis quando verificamos que o romance é o único gênero que continua evoluindo, ou seja, tratamos de um objeto que ainda está se constituindo. É como a analogia apresentada por Bakhtin (2010, p. 397): estudar os outros gêneros é como estudar línguas mortas, enquanto estudar o romance é estudar línguas vivas e jovens.
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A epopeia, a tragédia, a fábula possuem moldes mais determinados, um fator que pode ser considerado como facilitador para o estudo desses gêneros, já que demonstra uma possível harmonia entre eles. E é através da fragmentação deles que é possível perceber a ascensão do romance como um governante totalitário, em sua proposta sem convenções fixas. “O romance é livre, livre até do arbitrário e até o último grau de anarquia” (ROBERT, 2008, p.13) O romance nem sempre foi bem quisto, outrora era considerado um subproduto, um gênero menor, por não se limitar às elites e tampouco à conservação de uma identidade única. A ideia de individualidade nunca foi tão difundida e os temas nunca foram tão diversos. Dessa forma, a relação dele com os outros gêneros se torna, no mínimo, complexa: O romance, [...] se acomoda mal com os outros gêneros. E não se pode falar numa harmonia possível, baseada sobre uma limitação e substituição recíprocas. O romance parodia os outros gêneros (justamente como gêneros), revela o convencionalismo das suas formas e da linguagem, elimina alguns gêneros, e integra outros à sua construção particular, reinterpretando-os e dando-lhes um outro tom (BAKHTIN, 2010, p. 399).
A opinião de Marthe Robert não é distinta: Com essa liberdade do conquistador cuja a única lei é a expansão indefinida, o romance que aboliu de uma vez por todas – as dos gêneros clássicos – apropria-se de todas as formas de expressão, explorando em benefício próprio todos os procedimentos sem sequer ser solicitado a justificar seu emprego (ROBERT, 2008, p. 13)
Além dessas características nada harmoniosas, de transgressão de totalitarismo, Robert nos apresenta a noção de bastardia. O romance surge como insignificante, como menor, e que se consagra como soberano entre os outros gêneros. A autora o compara com a figura de Napoleão Bonaparte, em uma interessante analogia: Napoleão é romance de ponta a ponta, um romance que se faz a medida que ele influencia os acontecimentos da história que, pela primeira vez na época moderna, é impresso em letras de carne e sangue no próprio tecido da realidade. O homenzinho insignificante que se revela suficientemente forte para transformar seu “romance familiar” em instrumento de poder histórico tem provavelmente certa razão em exclamar: “Que romance, a minha vida!” (ROBERT, 2008, p. 179).
Robert se apropria da figura de Bonaparte para afirmar que ele é bastardo, por ter sido renegado e não possuir nenhum escrúpulo, tampouco remorso para realizar o que
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realizou. Como, por exemplo, rapidamente, destronar os governos europeus, empossando os seus irmãos no lugar. Devido a sua origem, a suas condições físicas e financeiras, já era admirável que ele se alistasse no exército francês. Segundo o dicionário Michaelis1 o vocábulo “bastardo” significa, como adjetivo, “[...] Designativo do filho que nasceu de pais não casados. (2) Degenerado da espécie a que pertence. (3) Que se tornou diferente do tipo ordinário ou primitivo” e, como substantivo, “Filho ilegítimo”. Quando partimos dessa definição afirmação, juntamente com Robert, percebemos que o romance se torna um gênero diferente dos que o antecederam, e que passa a ser justificável que ele não seja reconhecido. Afinal seus padrões são mais flexíveis que os padrões dos outros gêneros. Diante dos termos elencados por Bakhtin e Robert, podemos destacar quatro capacidades do romance: a reinterpretação, a flexibilidade, a liberdade e a bastardia. A reinterpretação refere-se ao fato de o romance trazer discussões que outrora eram abordadas nos outros gêneros sob uma nova perspectiva; a flexibilidade por não se limitar a um molde específico, principalmente quando relacionado ao ponto de vista estrutural; já a liberdade, quanto ao ponto de vista social, pois ele acompanha as transformações do modo de vida das pessoas; e por fim, a bastardia, pois a renegação de sua origem é um combustível para a sua ascensão e é também uma marca de diferenciação dos demais gêneros. Ao pensarmos nesses termos, chegamos a duas posições: a primeira delas é que o romance, através dessas capacidades apresentadas, pode se apropriar e reinterpretar os demais gêneros – as parábolas, os contos, as fábulas, as epopeias, enfim as narrativas de modo geral – gêneros, como observados anteriormente, com estruturas mais rígidas. Ademais, a segunda posição é a de que o gênero romance pode, também, reinterpretar a si mesmo, pois este acompanha as transformações pelas quais a sociedade ocidental passa, e essas transformações são constantes. Nos tópicos a seguir, gostaríamos de assinalar essas duas posições através da ponte do romance Dois irmãos com outras obras literárias. Para primeira posição, que o romance reinterpreta a si mesmo, utilizaremos a obra Esaú e Jacó (1904), de Machado de
1
Bastardo.
In:
DICIONÁRIO
Michaelis.
Disponível
em:
<www.uol.com.br/michaelis>. Acesso em: 30/08
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Assis; e, para a segunda posição, utilizaremos algumas das narrativas hebraicas presentes no livro de Gênesis, no Antigo Testamento da Bíblia. Machado de Assis, um predecessor de Hatoum Como já mencionado no tópico anterior, entre as obras de Machado de Assis e de Milton Hatoum, é possível criar uma ponte, ou melhor, perceber uma filiação que gostaríamos de assinalar. Tomaremos, como exemplo, a obra Esaú e Jacó (1904) de Machado de Assis. De forma sucinta, o romance conta a história de Pedro e Paulo, que iniciam uma rivalidade inexplicável desde o ventre da mãe. Seus pais não se conformam com esta situação, mas não conseguem acabar com o conflito. Além disso, os dois também se apaixonam pela mesma mulher, Flora, que morre sem se casar com nenhum dos dois. Os irmãos estão envolvidos com partidos políticos, e representam um período de transição governamental, o impasse entre a monarquia e a república. Pedro é monarquista, e Paulo é republicano. Vários aspectos podem ser analisados, porém, o nosso espaço limitar-se-á às semelhanças entre a dualidade, aos conflitos familiares e à figura do agregado. Para tanto, nos valemos de trabalhos correlatos como auxílio. Quanto à dualidade, na obra Dois Irmãos, de Milton Hatoum vemos duas faces do Brasil através dos irmãos Omar e Yaqub, se Omar, ao decidir viver a sua vida na cidade natal, nos revela uma Manaus atrasada economicamente em relação ao restante do país, onde o espaço para comércios locais e familiares se mingua perdendo para os grandes comércios. Essa Manaus vai decaindo principalmente depois das Guerras Mundiais, Revelando assim, uma consciência de subdesenvolvimento da nação. Yaqub representa o progresso do sudeste, prosperando de forma significativa após se formar em engenharia e morar em São Paulo. Ele também demonstra estar de pleno acordo com os ideais políticos implementados após o golpe de 1964. Seu modo de vida desses irmãos revela a discrepância econômica entre a região Norte e a Sudeste. Quanto aos conflitos familiares, o romance de Machado se inicia com a mãe, Natividade, consultando uma espécie de vidente, uma cabocla moradora do Morro do Castelo, acerca do futuro de seus filhos. A resposta da vidente é positiva, prevendo um futuro glorioso para os gêmeos:
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Serão grandes, oh! grandes! Deus há de dar-lhes muitos benefícios. Eles hão de subir, subir, subir... Brigaram no ventre de sua mãe, que tem? Cá fora também se briga. Seus filhos serão gloriosos. É só o que lhe digo. Quanto à qualidade da glória, coisas futuras! (MACHADO, 1994, p. 4).
A rivalidade entre Omar e Yaqub é assinalada desde o nascimento, pois se evidencia que o tratamento é distinto e até doentio por parte da mãe, Zana: Nasceram em casa, e Omar uns poucos minutos depois. O Caçula. O que adoeceu muito nos primeiros meses de vida. E também um pouco mais escuro e cabeludo que o outro. Cresceu cercado por um zelo excessivo, um mimo doentio da mãe, que via na compleição frágil do filho a morte iminente (HATOUM, 2006, p. 50).
É notória a semelhança destes episódios com a narrativa descrita em Gênesis 25. Rebeca também consulta um ser que, além de prever, pode explicar o futuro de seus filhos, que iniciam uma estranha rivalidade que pendura por muitos anos: “Isaque orou ao Senhor [...] e Rebeca, sua mulher, engravidou. Os meninos se empurravam dentro dela, pelo que disse: "Por que está me acontecendo isso?" Foi então consultar o Senhor. Disse-lhe o Senhor: "Duas nações estão em seu ventre; já desde as suas entranhas dois povos se separarão; um deles será mais forte que o outro, mas o mais velho servirá ao mais novo". O primeiro a sair era ruivo, e todo o seu corpo era como um manto de pelos; por isso lhe deram o nome de Esaú. Depois saiu seu irmão, com a mão agarrada no calcanhar de Esaú; pelo que lhe deram o nome de Jacó. [...] Os meninos cresceram. Esaú tornouse caçador habilidoso e vivia percorrendo os campos, ao passo que Jacó cuidava do rebanho e vivia nas tendas. Isaque preferia Esaú, porque gostava de comer de suas caças; Rebeca preferia Jacó. Gênesis 25: 2128 (BÍBLIA, 2002).
Podemos observar dois aspectos nos trechos citados, o primeiro é que há uma relação estreita entre os episódios. Constatando assim, o argumento de Bakhtin a respeito da capacidade do romance de correferir a outros gêneros. Porém, a apresentação distinta nos leva ao segundo aspecto, a desarmonia do romance com esse tipo de narrativa. Machado de Assis exibe um tema religioso escancarado, desde o título Esaú e Jacó, que não são os nomes dos protagonistas, Pedro e Paulo, e também nos nomes dos demais personagens como Natividade e Santos, dando ao leitor a sensação de partir de sua realidade. A realidade vivida no fim do século XIX e começo do século XX, na qual a influência religiosa, principalmente católica ainda é percebida, mas não absoluta: “Não há mais o homem unidimensional, de moral padronizada e sim o ser contraditório e múltiplo, dividido consigo mesmo, cheio de conflitos pessoais, observados e transcritos com o estilo desiludido, sarcástico e amargo desenvolvido pelo escritor” (OLIVEIRA, 2013, p. 18)
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Cabe ressaltar que os destinos dos gêmeos são desde o nascimento divididos, Jacó se torna um cuidador dos rebanhos, e vivia em casa, enquanto Esaú se tornou um habilidoso caçador. Em Esaú e Jacó, Pedro, monarquista, cursa Medicina enquanto Paulo, republicano, cursa Direito. A obra de Hatoum se assemelha ainda à de Machado, ao mostrar mães que desejavam a reconciliação dos filhos. Zana, em seu leito de morte pergunta: “Meus filhos já fizeram as pazes?” (HATOUM, 2006, p.10). Há ainda as relações entre os personagens que podem ser considerados simétricos, porém Hatoum constrói uma trama na qual os personagens são menos bucólicos e mais intensos, como acrescenta Petraglia: Levando-se em conta o núcleo familiar básico, poderíamos compor duplas de personagens: a rivalidade comportada dos gêmeos de Esaú e Jacó e a rivalidade áspera do gêmeos de Dois irmãos – os astutos Pedro e Yaqub e os coléricos Paulo e Omar, o matriarcado macio de Natividade e o matriarcado enérgico de Zana; a etérea e ambiciosa Flora e a etérea e ambiciosa Rânia; o capitalista Santos e o hedonista Halim; e os narradores Aires, pai postiço do gêmeos e Nael, o filho enjeitado de um dos gêmeos. (PETRAGLIA, 2012, p. 31).
Quanto à relação dos dois romances com o texto bíblico, Stefania Chiarelli comenta: No caso da revisitação da história bíblica da rivalidade familiar, tanto Machado quanto Hatoum preparam iguarias com temperos próprios. O sabor se renova à medida em que cada escritor doa sentidos próprios a essa trama mítica. Conforme alerta Benedito Nunes, no texto bíblico a legenda dos irmãos adversos é um mito de conciliação. Entretanto, o filão que abastece tanto Esaú e Jacó quanto Dois irmãos é o do violento antagonismo, uma vez que em nenhuma das tramas prepondera a harmonia final entre os gêmeos (CHIARELLI, 2008, p. 3).
Como podemos perceber, esses conflitos familiares são recorrentes na literatura, e não deixam de ser vistos tanto nos textos bíblicos antigos, quanto nos romances contemporâneos. Isso pode ser comprovado antes mesmo de Esaú e Jacó na Bíblia, com os primeiros filhos, Caim e Abel, conforme a aponta Aila Sampaio: A primeira história de rivalidade entre irmãos se dá com Caim e Abel. Caim, o irmão mais velho, é lavrador; Abel é pastor de ovelhas. O despeito entre um e outro se dá quando Deus não aceita a oferta de Caim, que lhe oferece produtos de sua lavoura e aceita a de Abel que lhe oferece uma ovelhinha (SAMPAIO, 2007, p. 100).
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É perceptível e inegável a apropriação quase que “antropofágica” de Machado sobre o texto bíblico, e se torna impossível apresentar este na ausência daquele. Se o romance Dois irmãos conta a história de dois pais, o que nos possibilita analogia de que são Esaú e Jacó e as narrativas do Antigo Testamento, principalmente as de Gênesis, percebemos que o romance é ilimitado, pois não só parodia os gêneros enquanto gêneros, como parodia a si próprio. Hatoum recorre a narrativas e também recorre ao romance. Hatoum e as narrativas bíblicas Apesar da distância cronológica entre Gênesis e Dois irmãos, podemos verificar que há uma relação que pode ser estabelecida, pois a influência da Bíblia na literatura ocidental é vasta: “Em suma, a linguagem, bem como as mensagens que ela [A Bíblia] transmite, simbolizam para nós o passado, estranho e contudo familiar, que sentimos dever compreender de algum modo se quisermos compreender a nós mesmos” (ALTER & KERMODE, 1997, p. 11). Robert Alter, ao falar das narrativas hebraicas do Gênesis, afirma que os escritores hebreus tinham a preocupação, ainda que teológica, de realizar ou perpetuar, através da escrita, “uma importante revolução de consciência” (ALTER, 2007, p. 231). Eis a sua principal motivação: “Os antigos escritores hebreus [...] buscavam revelar, mediante o processo narrativo, a realização dos propósitos divinos nos acontecimentos históricos” (ALTER, 2007, p. 59). Diante disso, podemos concluir que o fato de as narrativas hebraicas possuírem elementos históricos comprovados, não é um fator inibidor do estilo pessoal de cada escritor hebreu, pois estes revelam, através do processo narrativo, sentimentos mais humanos, que tornam mais complexos seus personagens em detrimento de outros gêneros da época. Esse estilo pessoal pode ser verificado na metáfora utilizada por Auerbach (1976, p. 36) ao apresentar a profundidade dos personagens bíblicos, comparando-os com “o vaivém do pêndulo”. Ou seja, personagens estáveis que ora estão em posições de domínio, exercendo coragem, ora estão instáveis, abnegados de suas convicções. Ao falar de suas influências culturais em sua infância, Hatoum, em seu texto “Escrever à Margem da História”, comenta sobre o seu contato com a cultura oriental, com a língua, com a religião e por consequência com o texto:
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Aos poucos, a língua árabe, a história, as paisagens e os costumes de um país longínquo tornaram-se familiares para mim. [...]. Perscrutar um homem ajoelhado no seu quarto, a rezar com o corpo voltado para Meca, era violar um momento de sua intimidade, mas também descobrir o fervor religioso do meu pai. Outros parentes próximos eram católicos ou cristãos maronitas, mas nenhuma religião me foi imposta: era mais importante tomar conhecimento do texto bíblico ou corânico do que optar por uma religião. Afinal, diziam os mais velhos, somos todos descendentes de Abraão (HATOUM, 1993, p. 1).
Essa passagem nos indica que dentre os vários livros, de diversos escritores que Hatoum já mencionou ter lido, podemos perceber que ele também vê o texto bíblico como literatura. E embora consideremos as particularidades das narrativas bíblicas apresentadas por Robert Alter (2007), principalmente a de que ele também é um livro teológico, Hatoum, mesmo assim, o introduz em seu romance, mas não somente para tratar de religião, mas para tratar assuntos como a rivalidade, a vingança, os conflitos familiares. Portanto, além das aproximações temáticas, as de enredo também são notáveis, como constataremos a seguir. As narrativas bíblicas mais estudadas em confronto com Dois irmãos são a da família de Adão e Eva, e de Isaque e Rebeca, presentes no livro de Gênesis da Bíblia. Embora Petraglia assinale outras possibilidades, quando nos referimos aos conflitos familiares: Pode-se dizer que o Gênese, primeiro livro do pentateuco, abriga relatos de conflito entre irmãos em torno, basicamente, do direito à herança política de continuar o clã patriarcal e à herança religiosa de granjear o pacto com Deus. Os conflitos entre Caim e Abel, Ismael e Isaac, Lia e Raquel, José e seus irmãos podem ser assim classificados. Conflitos que nos primeiros episódios se apresentam com um enredo simples, mas que vão se complicando pelo acréscimo de outras motivações e mediações. (PETRAGLIA, 2012, p. 62).
Podemos verificar os aspectos apontados por Bakhtin (2010) e Robert (2008), de reinterpretação escancarada na narrativa de Esaú e Jacó, em Gênesis. Essa reinterpretação se dá no campo da temática, ou seja, os conflitos familiares e na aproximação e distanciação dos enredos. O episódio de Esaú e Jacó do texto bíblico pode ser relacionado ao romance Esaú e Jacó de Machado de Assis, como já observamos anteriormente. No entanto, ele também se relaciona a Dois irmãos na questão da duplicidade, no fato dos personagens serem gêmeos opostos e semelhantes e, consequentemente, pelos conflitos familiares, pois
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Rebeca tem preferência declarada pelo caçula, assim como Zana como observaremos a seguir. Quanto a Esaú e Jacó, além do que já foi mencionado em relação a Machado de Assis, vemos a cumplicidade das mães nos atos impensados dos filhos. Abrimos parêntesis com Dois irmãos. Assim como Rebeca, Zana tinha dificuldades em conviver com possíveis noras. Se a preocupação motivação de Rebeca era que Jacó se casasse com alguma mulher que não fosse do mesmo povo, a de Zana era obsessiva, ao ponto de não aceitar nenhuma mulher para o filho caçula: Acuou o caçula logo de cara, não ia permitir que o filho se embeiçasse por uma mulher qualquer. “Isso mesmo, uma qualquer! Uma charmuta, uma puta! Que ela passe o resto da vida mofando naquele barco imundo, mas não com o meu filho. (...) Eu não ia permitir...nunca! Ouviste bem? Nunca!” Ela abaixou a voz e sussurrou, dócil, tristonha: “Tens tudo aqui em casa, meu amor” (HATOUM, 2006, p. 130).
Zana aparenta ser mais possessiva (quase edipiana) que Rebeca, ao não permitir que o filho saia de casa, e more em outro lugar. Trata-se de uma amor patológico. Ela consente as bebedeiras e a boemia do filho. Muitas vezes até lhe dá dinheiro para as noitadas, mas não permite que ele tenha um relacionamento sério com uma mulher. O amor cego faz com que as duas mães sejam permissivas com os erros dos filhos, sempre os superprotegendo. Também este amor faz com que, outras vezes, incentivem o filho ao erro, como é o caso de Rebeca e Jacó no episódio descrito em Gênesis 27:8-13: Agora, meu filho, ouça bem e faça o que lhe ordeno: Vá ao rebanho e traga-me dois cabritos escolhidos, para que eu prepare uma comida saborosa para seu pai, como ele aprecia. Leve-a então a seu pai, para que ele a coma e o abençoe antes de morrer". Disse Jacó a Rebeca, sua mãe: "Mas o meu irmão Esaú é homem peludo, e eu tenho a pele lisa. E se meu pai me apalpar? Vai parecer que estou tentando enganá-lo, fazendo-o de tolo e, em vez de bênção, trarei sobre mim maldição". Disse-lhe sua mãe: "Caia sobre mim a maldição, meu filho. Faça apenas o que eu digo: Vá e traga-os para mim"(BÍBLIA, 2002, p. 33).
No caso de Zana e Omar, podemos ver como a mãe, complacentemente, se “deixa ludibriar” pelo filho: O êxtase do lança-perfume induzia Omar a surrupiar uma parte do dinheiro do mercado e da feira. Várias vezes fez isso. Depois vi Domingas tirar uma ou duas cédulas amarelas, imaginando que a patroa atribuiria o roubo ao filho. Não atribuiu a ninguém: Zana se deixava ludibriar. Às vezes, quando o filho se penteava diante do espelho da sala, a mãe se aproximava dele, cheirava-lhe o pescoço [...]depois a mão
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de Zana descia, apertava o cinturão, e nesse momento dava um jeito de enfiar um maço de cédulas no bolso da calça. (HATOUM, 2006, p. 98).
Ainda no texto bíblico, após a saída do preferido de Rebeca, Jacó passa anos na Mesopotâmia, onde se casa com Leia e Raquel, e tem doze filhos. Seu irmão também segue construindo uma família. Anos depois, Jacó retorna e pede perdão ao irmão; o encontro dos dois é narrado em Gênesis 33: “Depois Jacó passou e ficou na frente; sete vezes ele se ajoelhou e encostou o seu rosto no chão, até que chegou perto de Esaú. Porém Esaú saiu correndo ao encontro de Jacó e o abraçou; ele pôs os braços em volta do seu pescoço e o beijou. E os dois choraram (BÍBLIA, 2002, p. 44).
Fokkelman (1997) aponta no trecho a seguir, os versos em hebraico em que Esaú atribui uma nova característica ao nome Jacó: Com razão se chama ya’qob É a segunda vez que me enganou (ya’ qebeni): Tomou meu direito de bekhorah E agora toma minha berakhah (Grifo nosso, FOKKELMAN, 1997, p. 61).
Através desse nome, Ya’qob, Esaú atribui o significado de “enganador” para Jacó. Também através desse nome, podemos verificar que há uma relação entre Dois irmãos e Gênesis. Os irmãos em ambas a obras são opostos, mas mesclam características. Yaqub também engana Omar na construção do hotel, reforçando a característica do nome bíblico, porém ocorre uma diferenciação, pois no livro de Gênesis é comum os filhos que não são primogênitos usurparem os direitos do irmão mais velho. Na obra de Hatoum, o mais velho, Yaqub, engana seu irmãos na construção do hotel, mas também é enganado pelo irmão quando este rouba seu passaporte para viajar. Cabe aqui uma observação relevante: quando Omar engana Yaqub, roubando-lhe o passaporte, ele se apropria da identidade do irmão, se passa por ele para usufruir de uma posição social respeitável. Da mesma forma, Jacó se passa por Esaú para roubar-lhe o direito de primogenitura. Considerações finais Podemos concluir diante dessas proposições que o romance, assim como assinalaram Robert e Bakhtin, é um gênero bastardo que se apropria dos outros gêneros
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para solidificar sua singularidade. Essa bastardia pode vir do próprio romance (Esaú e Jacó), e também das narrativas bíblicas, nesse caso a de Esaú e Jacó. Mais que as proximidades sejam visíveis, ou seja, sabemos qual é a origem, a fonte que jorra em Dois irmãos, sabemos que ele se adequou ao sujeito da pós modernidade, que continua com seus problemas existenciais que sempre são evidenciados em contato com os meio sociais. Podemos perceber ainda que mesmo com as particularidades teológicas do texto bíblico há ainda muito a ser estudado no romance contemporâneo, pois por mais que a relação seja desarmoniosa com o romance, é uma relação que persistiu no decorrer dos séculos e realmente influenciou o curso da sociedade. Referências ALTER, Robert, A arte da narrativa bíblica. Trad. Vera Pereira. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. ALTER, Robert & KERMODE, Frank. Guia literário da Bíblia. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994. AUERBACH, Erich. Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Tradução de George Bernard Sperber. 2ª Edição revisada. São Paulo: Perspectiva, 1976 (Coleção Estudos Crítica, 2). BAKHTIN, Mikhail. Epos e Romance. In: BAKHTIN, Mikhail. In: Questões de Literatura e Estética. São Paulo: Hucitec, 2010. p.397-428. Bíblia Sagrada. Nova Tradução na Linguagem de Hoje. São Paulo: Sociedade bíblica do Brasil, 2002. BIRMAN, Daniela. Entre-narrar: Relatos da fronteira em Milton Hatoum. 2007. 290 Rio de Janeiro.
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CHIARELLI, Stefania. Cousas futuras! Machado, predecessor de Hatoum. Anais do I seminário Machado de Assis. Rio de Janeiro, 2008. FOKKELMAN, Jan. P. Genesis. Trad. Raul Fiker, In. ALTER, Robert e KERMODE, Frank (Org.). Guia Literário da Bíblia. São Paulo: Unesp, 1997. HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. HATOUM, Milton. Escrever a margem da história. Seminário de escritores brasileiros e alemães, realizado no Instituto Goethe, São Paulo, 1993. Disponível em http://www.hottopos.com/collat6/milton1.htm. Acesso em: 24/03/2014. LEAL, Bruno Avelino. Nas trilhas de Milton Hatoum: um breve estudo de uma trajetória Intelectual. 2010. 126 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) Universidade Federal do Amazonas / UFAM. OLIVEIRA, Maria Rita Berto De. Uma análise do espaço romanesco em Dois Irmãos, de Milton Hatoum. 2013, 116 f. Dissertação (Mestrado em Letras) Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho. PETRAGLIA, Benito. Dois romances: estudo comparado de Esaú e Jacó e Dois irmãos. 2012. 2012 f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) Universidade Federal Fluminense. ROBERT, Marthe. Romance de Origem, Origem do romance. Trad. André Telles. São Paulo: Cosac&Naify, 2008. SAMPAIO, Aila Leite. Dois irmãos: incesto, rejeição e rivalidade na relação familiar. Rev. Humanidades, Fortaleza, v. 22, n. 2, p. 98-102, jul./dez. 2007. WALTON, John; MATTHEWS, Victor e CHAVALAS, Mark. Comentário Bíblico Atos: Antigo Testamento. Trad. Noemi Valéria Altoé. Belo Horizonte: Editora Atos, 2003.
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O RETRATO DRUMMONDIANO DA MULHER PATRIARCAL Thatiane Prochner (UEPG) A literatura tem sido grande fonte de matéria prima para a análise do sujeito em seu tempo. Ainda que construída sobre uma base simbólica, de caráter proposital e articulado, ela descortina um arsenal histórico de forma crítica, aliando, portanto, a ética à estética da linguagem, e esta permeada de discursos. Um cenário comumente conhecido entre todos e amplamente discutido em literatura é a sociedade tradicional, século XIX até meados do século XX, que abarca especialmente situações de relacionamentos, sejam estes familiares ou de ordem sentimental. O Brasil, especificamente, teve como modelo de uma sociedade patriarcal, a cultura europeia, principalmente por ter sido colonizado por portugueses. Tal modelo influiu fortemente na sociedade brasileira da época e seus resquícios podem ser evidenciados até os dias de hoje, muito embora, muitos padrões já tenham sido rompidos. O fato é que, os discursos criam raízes profundas e o que foi institucionalizado não o deixa de ser tão facilmente. Para entender isto, basta que se olhe para o passado em comparação ao tempo presente, especialmente em se tratando de “valores” estabelecidos, como o casamento, por exemplo. Neste recorte, pretende-se abordar a visão do poeta Drummond sobre a mulher patriarcal e as imposições sobre ela diante da sociedade patriarcal na qual o poeta também viveu suas inquietações quando menino. Neste ambiente, a mulher era preparada para o casamento, e era ela quem deveria manter as rédeas firmes para que a estrutura familiar permanecesse sempre firme e inabalável. E caso as mulheres não “arrumassem marido” estariam condenadas à sua triste solteirice, enclausuradas em suas casas ou em frios conventos. Em caso de viuvez, jamais poderiam casar-se novamente, pois a imagem do marido honrado deveria ser preservada. Mesmo depois da morte, o homem continuava decretando os valores para a esposa e filhos; as mulheres que arrumavam novos maridos, na certa eram rejeitadas por toda a família, sendo
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consideradas “depravadas”. Há que se lembrar de exemplos da cultura indiana apresentados por Spivak em Pode o subalterno falar? (2010), como as esposas que quando viúvas deixavam-se queimar junto com seus maridos mortos. O casamento era considerado como uma “tábua de salvação” em vários sentidos. Antes de tudo, era o que fazia os homens “respeitáveis”, pelo menos aparentemente. Na sociedade como a descrita por Foucault na História da Sexualidade (1988) dos séculos XVII e XVIII, era vitoriana, primava-se por um discurso de repressão sexual, em que se buscava um estabelecimento de ordem, proibiam-se certas práticas, e o sexo era apenas destinado à procriação, aliás, o sexo dentro do casamento, que era tido como sagrado, pois habitavam, lado a lado, o lar e o lupanar. Maridos procuravam suas esposas quando da necessidade de terem filhos e suas concubinas quando da necessidade de se satisfazerem sexualmente. Na literatura brasileira, Ana Miranda apresenta a personagem Oribela, em Desmundo (2006), que juntamente com as demais virgens órfãs de Portugal são enviadas para o Brasil para se casarem com os colonos e povoarem a terra com crianças legítimas do casamento, levando em conta o aumento considerável da miscigenação em decorrência do “pecado” à solta neste país. Em tempos ainda mais remotos, em terras americanas, Margaret Mitchell descreve, em E o vento Levou (2012), a história de Scarlett O’Hara, que se destaca entre as mulheres de seu tempo e sofre o impacto de seu temperamento, entre outras coisas, por não considerar a maternidade como uma consequência sadia no casamento, tampouco algo pelo que se precisasse esconder. Mesmo a gravidez era motivo de vergonha para a mulher no século XVIII, pois evidenciava a prova do pecado; estando grávidas, as mulheres deveriam permanecer dentro de suas casas até passar o seu “estado interessante”. Pela propriedade de procriar, a mulher foi considerada por muito tempo como um ser diabólico, por ser capaz de gerar vida através do sexo. Mulher e casamento eram os focos principais do “desconforto” das famílias, uma vez que a meta era que as moças até certa idade encontrassem maridos e constituíssem sua própria família, deixando de ser um peso para os pais, como se pode observar na tentativa exaustiva da Sra. Bennet em Orgulho e Preconceito (2010), de Jane Austen, para casar as suas cinco filhas.
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Mesmo a mulher que assume uma posição de destaque na época em que se remonta, torna-se alvo de injúrias e difamações. Para Virgínia Woolf, em Um teto todo seu (1928), a solução para a “liberdade” feminina seria a detenção de um ambiente próprio em que a mulher pudesse deixar fluir a sua subjetividade, especialmente através da literatura. Entretanto, cabe lembrar que em muitos casos e em muitas sociedades, o acesso à escola e aos livros era negado às mulheres. É interessante notar o posicionamento feminino diante dessa realidade, por meio da literatura, e observar, em contrapartida, a autoria masculina levantando essa discussão. A partir da leitura da obra poética de Drummond, percebe-se que este aponta possibilidades diante das circunstâncias vividas pela mulher, pois somente agindo e tornando-se homem é que ela poderia fugir por um momento daquilo que era ser mulher e de todas as restrições que ela enfrentava por esse motivo. Desse modo, os poemas selecionados para este artigo pertencem à Boitempo (volumes II e III), obra em que o poeta descreve uma sociedade patriarcal, não apontando juízos de valor ou “crucificando” a figura feminina, mas compreendendo e retratando uma realidade que ele mesmo presenciava quando criança, vivendo sob os olhares dos adultos e tendo restringidos quase todos os seus espaços. Para esta análise, os poemas seguem uma sequência dividida em três momentos: partindo de “Sina” e “Vida Vidinha” que mostram o casamento como religião, uma meta para as moças bem criadas e a seleção dos noivos feita pelos pais dos casais; “Morte de noivo” e “A nova primavera” em que o poeta relata o que aconteceria em caso de falecimento do noivo arranjado e em caso de um novo casamento após a viuvez; e por fim “Mulher vestida de homem”, em que se ressalta o único meio pelo qual a mulher poderia mostrar a sua dor e insatisfação, encontrando uma linha de fuga. SINA Nesta mínima cidade os moços são disputados para ofício de marido. Não há rapaz que não tenha uma, duas, vinte noivas bordando no pensamento um enxoval de desejos, outro enxoval de esperanças. Depois de muito bordar
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e de esperar na janela maridos de vai-com-o-vento, as moças, murchando o luar, já traçam, de mãos paradas, sobre roxas almofadas, hirtas grades de convento. (ANDRADE, 1973, p.72)
Sina, substantivo que por si só já traz consigo um teor fatídico, denota um destino associado a uma calamidade, portanto, não agradável ao sujeito que é impossibilitado de reverter tal situação. O conteúdo e o sentido do poema corroboram com essa noção, a começar pelo verso “Nesta mínima cidade” que já indica, além da extensão do espaço, a mentalidade da sociedade nela inserida, tanto que os moços são disputados para o “ofício de marido”. Assim, pode-se notar que em uma cidade, não pequena, mas mínima, as moças solteiras sofrem a dura sina de ter que disputar um marido para livrá-las de seu destino. É interessante a duplicidade que o poeta cria, pois o destino a que as moças estão pretensas é o casamento, no entanto, têm o casamento como uma fuga para a não submissão a outro destino ainda mais trágico, que é a solteirice. Também os rapazes eram destinados às moças pela escolha das famílias, sendo assim, eles também eram manipulados pelas forças da sociedade de certa forma, pois cabia a eles expandirem as raízes dos patriarcas. Comumente o ditado diz que haveria sete mulheres para cada homem, com chances de o número ser ainda maior; levando em conta tal premissa, o eu lírico em tom jocoso apresenta os versos da sequência: “Não há rapaz que não tenha / uma, duas, vinte noivas / bordando no pensamento / um enxoval de desejos, / outro enxoval de esperanças”. Além de bordarem o enxoval (concreto), as mulheres bordavam esperanças e desejos (abstrato). Tais elementos rementem a uma aura transcendental, de amor romântico, todavia “Depois de muito bordar / e de esperar na janela / maridos de vai-com-o-vento, / as moças, murchando o luar, / já traçam, de mãos paradas, / sobre roxas almofadas, / hirtas grades de convento”. A janela representa uma abertura para o espaço mais amplo, portanto está associada à ideia de esperanças e desejos; a relação das moças com o luar enfatiza ainda mais a noção de romantismo, porém, em contraposição a isto, a constante espera na janela, a espera de amores que passam e sonhos que vão com o vento, as moças, comparadas de certa forma com flores,
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murcham a lua de tanto fazerem pedidos. O ato de “murchar a lua” sugere também a passagem temporal, se se considerar as fases do satélite, ora cheia, ora nova, ora crescente. A lua cheia sempre aparece como símbolo de consolo e confidência para os poetas românticos e a conversão desse teor em fatalidade cabe neste poema no sentido de que as moças, como flores que são, estafam a sua ouvinte com algo que nunca irá acontecer, ou seja, a lua não pode atender-lhes os pedidos. A relação entre mulheres e flores é muito recorrente nos poemas drummondianos, porém, aqui neste poema, poderia evidenciar a inversão dos papéis, pois em vez de as próprias moças murcharem, elas o fazem com a lua, isto quer dizer que, ainda que essas mulheres não se casem, elas não perdem o seu vigor, não seria o fim do mundo para elas, haveria uma possibilidade de fuga, mas que não era permitida pela imposição das famílias e da própria sociedade que as mantinha presas. E contemplando esse espaço da janela de suas casas, essas flores ainda dotadas de perfume e vigor traçavam as linhas que as enclausuraria nas grades do convento, isto é, o espaço amplo restrito às barreiras e paredes do “cárcere”. Esse fechamento poderia também representar o encerramento de todas as mágoas no interior do sujeito, que cerra sua vida diante das adversidades do mundo ao redor. O tom do poema é ainda mais fatídico quando o poeta menciona as almofadas roxas, que lembram sutilmente forros de caixões, simbolizando a morte prematura dessas mulheres; morte também poderia vir associada à imagem criada a partir da característica das grades, hirtas = pontiagudas, isto é, que ferem, que machucam. A imagem construída pelos versos dá a nítida impressão da perplexidade dessas mulheres e a aparente inércia diante das ações, não pelo desejo delas, mas pela repressão e condicionamento. E diante desse condicionamento, as prendas seriam uma possibilidade de escapatória, mas não para necessariamente mudar a situação, antes para ocupar o tempo e esquecer as frustrações, como se pode observar em “Vida Vidinha”: A solteirona e seu pé de begônia a solteirona e seu gato cinzento a solteirona e seu bolo de amêndoas a solteirona e sua renda de bilro a solteirona e seu jornal de modas a solteirona e seu livro de missa a solteirona e seu armário fechado a solteirona e sua janela
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a solteirona e seu olhar vazio a solteirona e seus bandos grisalhos a solteirona e seu bandolim a solteirona e seu noivo-retrato a solteirona e seu tempo infinito a solteirona e seu travesseiro ardente, molhado de soluços. (ANDRADE, 1973, p. 74)
Vida, seguida do diminutivo vidinha, enfatiza o sentido de mediocridade para uma vida que se diminuiu ao longo do tempo e, além disso, uma vida comum, corriqueira, sem grandes alterações em seu curso, especialmente quando se analisa os versos em paralelismo do poema que indicam a monotonia, que só é quebrada nos três últimos versos, quando a “solteirona” explode em sua retenção de mágoas e se entrega ao pranto, tendo o travesseiro como consolo. O próprio termo “solteirona”1 apresenta um tom pejorativo, que reflete os pensamentos da sociedade da época, o estímulo do casamento como meta e em seguida a repreensão com palavras duras quando não se cumpre com o plano estipulado. A imagem da janela é novamente expressada no poema, como uma passagem do plano restrito da casa da mulher solteira e o lado de fora, o qual ela não transpõe. Essa espera é associada à tristeza, especialmente anunciada pelo som dos bandolins, instrumento que entoa melodias nostálgicas. O tempo é marcado pela referência aos bandos / cabelos grisalhos da mulher, agora senhora. Todas as prendas de nada serviram para que a moça conseguisse um marido, e o noivo-retrato que mantém para si como lembrança poderia indicar tanto um amor platônico como um amor que se perdeu levado pela morte. Simbolicamente, a morte está presente de diversas formas entre os versos do poeta, seja para representar a morte física e o eterno luto pelo amor perdido, seja pela morte plasmando o fim de um ciclo e ao mesmo tempo a permanência de um amor platônico que dura enquanto a vida durar. Se a morte do noivo para a mulher simboliza, então, o luto e a manutenção permanente de uma ilusão, o que significaria se ela mudasse de posição e recriasse para si uma nova ilusão? 1
Vale notar que as características dessa solteirona são enfatizadas cada uma em um verso específico, denotando todas as que ela possui, mas ao mesmo tempo em que a particularizam podem também remeter-se a outras tantas moças que como ela tinham os mesmos sonhos e compartilham das mesmas aflições, sendo prendadas do mesmo modo. Todas elas são um retrato de uma sociedade e seu contexto.
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MORTE DE NOIVO Suicida-se o noivo de Carmela, antes noivo de Isaura. Desfeito o primeiro compromisso, Carmela esperava-o do alto da sacada, Para entrar, não precisa bater palmas o amor. De uma rua a outra rua, transita, pesquisando. É Carmela a escolhida. E agora o noivo mata-se com insabido veneno, sem uma palavra. Duas moças vivendo a morte muda. Nenhuma vai ao enterro. Proibido chorar em público morte de infiel. Cada uma em seu quarto solteiríssimo, escurecido em quarto de viúva. Isaura: Se não havia de ser meu, nenhum dedo terá sua aliança. Carmela: Todas duas fomos derrotadas ou ninguém perdeu, ganhou ninguém? As fronhas são esponjas de lágrimas secretas. (ANDRADE, 1980, p. 77)
O título do poema e os dois primeiros versos anunciam uma catástrofe, e o personagem principal desta catástrofe designado pelos compromissos pré-nupciais que havia assumido. Primeiro tendo sido noivo de Isaura e depois de Carmela. Não se sabe ao certo o motivo pelo qual o noivo desfez o primeiro noivado, porém os indícios apontam que essa atitude deveu-se pela força inesperada do amor: “Para entrar, não precisa bater palmas / o amor”. Passeando de casa em casa, o moço se apaixona por Carmela, contudo, de repente, ele se mata com “insabido veneno”. O poeta lança aqui um mistério, findando a primeira estrofe do poema. Na sequência, a situação das moças com o desdém e posteriormente com a morte do rapaz é descrita como a sina do primeiro poema analisado. As moças já estão “manchadas” na sociedade; é proibido até que compareçam ao enterro do “infiel”. Contudo, os noivos, como já mencionado, eram obrigados a escolherem uma esposa e contraírem matrimônio, mesmo contra a vontade, portanto, não teria o moço posto fim à sua vida pela pressão exercida sobre ele? Levando em conta o sentimento dele para com Carmela e o trato deste como “infiel” poderia ter causado algum tipo de descontrole
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sobre o rapaz e tê-lo levado ao suicídio, ou seja, a cometer uma loucura para não ter de se curvar às imposições sociais, como sucedeu aos jovens apaixonados da tragédia shakespeariana, Romeu e Julieta. Porém, essa dúvida pode ser posta em cheque pelas insinuações dos versos seguintes: “Cada uma em seu quarto solteiríssimo” (solteiríssimo, no máximo que tal palavra pode abarcar) reflete sobre a situação e o triste destino: Isaura aparenta ter o sentimento de ódio no coração, tanto pela noiva quanto pelo “traidor”: “Se não havia de ser meu, / nenhum dedo terá sua aliança”; já Carmela, mostra-se mais humilde e se insere como desgraçada ao lado da outra: “Todas duas fomos derrotadas / ou ninguém perdeu, / ganhou ninguém?”, aqui, a noiva, recente viúva, também reflete sobre ganhos ou perdas em se tratando do casamento, uma dúvida que paira no ar para ela. Todavia, importante notar que a frase de Isaura pode sugerir uma reação da ex-noiva para com o enamorado, considerando que ela fora abandonada e neste caso, o “insabido veneno” poderia ter sido por ela ministrado. Pelo significado dos nomes, Carmela, o jardim fértil, representaria para o noivo uma nova esperança para a felicidade futura, enquanto que Isaura, igual ao ouro, poderia corresponder opostamente àquele antigo ditado que diz “nem tudo que reluz é ouro”, logo, mais uma possibilidade de interpretação que corrobora com a ideia de envenenamento causado por alguém. Cabe, pois, o mistério eterno, muito embora, ambas permaneçam agarradas aos travesseiros, velhos conselheiros: “As fronhas são esponjas / de lágrimas secretas”. Tal situação acontecia para moças que ficavam “viúvas” antes mesmo de se casarem, mas e a situação de mulheres já casadas que decidiam por se casar novamente? A NOVA PRIMAVERA As tias viúvas vestem pesadas armaduras de morte e gorgorão. Desde o pescoço à inviolada ponta dos borzeguins, elas proclamam rompimento com o século. E nada mais existe senão a noite dos maridos estampada em cada gesto de soberba solidão. Assim as queremos para sempre novamente Virgens, reintegradas na pureza original. Ai de quem boqueje: As tias são mulheres sujeitas à lei terrestre do desejo, e em noites brancas lutam corpo a corpo com duendes.
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Uma tia, porém, olvida o mandamento e casa-se outra vez. O raio na família. Ela é toda jardim, é pura amendoeira na alegre doação de outra virgindade. A família decide: essa tia morreu. (ANDRADE, 1980, p. 32 – 33)
Primavera é a estação do ano que representa o florescimento, um renascimento, após o inverno. Comumente também se usa o termo para indicar a passagem do aniversário de alguém, ou seja, festejando a data do nascimento para a vida, no entanto, que significado tem essa primavera dentro da sociedade patriarcal? O “clima” do poema logo muda do título para o primeiro verso que se estende na primeira estrofe inteira: “As tias viúvas vestem pesadas armaduras / de morte e gorgorão. Desde o pescoço / à inviolada ponta dos borzeguins, elas proclamam / rompimento com o século. E nada mais existe / senão a noite dos maridos estampada / em cada gesto de soberba solidão”. Aconteça o que for, mudanças temporais e sociais, essas mulheres estão presas, vestidas da noite que os maridos deixaram na vida delas, eles continuam imperando e vivendo, mas agora através da imagem de suas mulheres. Elas vestem uma “armadura” como proteção contra as mudanças. Mesmo que essas mulheres, as tias, tenham desejos e necessidades físicas, “assim as queremos para sempre novamente / Virgens, reintegradas na pureza original”. São flores a que não se pode permitir desabrochar uma vez mais. Elas lutam contra as “leis terrestres” sem poderem se libertar por que os olhos de fora, das casas que espiam, estão sempre abertos e atentos. Interessante a comparação do desejo com homenzinhos como os duendes (conotação de alucinação quando pessoas alegam enxergar esses seres do mundo fantástico – cabe ressaltar que Freud diagnosticava mulheres adultas, ainda virgens, com certos “distúrbios nervosos”, como “histéricas”). Essa situação é tida como um mandamento na sociedade patriarcal e uma tia, em certo momento, olvida tal mandamento, casando-se outra vez. A família enxerga como uma catástrofe, em contraposição, a tia “é toda jardim, é pura amendoeira / na alegre doação de outra virgindade”, no entanto, cabe a ela escolher entre o novo amor e a família, e por extensão a sociedade. De modo que ela escolhe o amor e a nova primavera, “a família decide: essa tia morreu”. A liberdade sentida pela tia, na terceira estrofe, marca uma total oposição com a primeira estrofe. A primavera, repleta de flores, como ela é
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comparada é o contrário da visão sombria das mulheres todas vestidas de preto, do pescoço até os pés, como vivendo eternamente no inverno. Poderia, então, a mulher mudar essa situação, diante de um mundo que impõe suas regras e que quando essas regras não são cumpridas o mesmo mundo fere e condena com seus discursos? Em “Mulher vestida de homem” observa-se como o menino da infância do poeta ouve falar sobre uma personagem que “incorpora” a subjetividade de outro em sua constituição e assim consegue libertar-se momentaneamente das amarras da sociedade repressora, muito embora, essa sua imagem seja quase mitificada pelas pessoas em redor. MULHER VESTIDA DE HOMEM Dizem que à noite Márgara passeia vestida de homem da cabeça aos pés. Vai de terno preto, de chapéu de lebre na cabeça enterrado, assume o ser diverso que nela se esconde, ser poderoso: compensa a fragilidade de Márgara na cama. Márgara vai em busca de quê? de quem? De ninguém, de nada, senão de si mesma, farta de ser mulher. A roupa veste-lhe outra existência por algumas horas. Em seu terno preto, foge das lâmpadas denunciadoras; foge das persianas abertas; a tudo foge Márgara homem só quando noite. Calças compridas, cigarro aceso (Márgara fuma, vestida de homem) corta, procissão sozinha, as ruas que jamais viram mulher assim. Nem eu a vejo, que estou dormindo. Sei, que me contam. Não a viu ninguém? Mas é voz pública: chapéu desabado, casimira negra, negras botinas, talvez bengala, talvez? revólver. Esta noite – já decidi – acordo, saio solerte, surpreendo Márgara, olho bem para ela e não exclamo, reprovando a clandestina veste inconcebível. Sou amigo, sem desejo,
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amigo-amigo puro, desses de compreender sem perguntar. Não precisa contar-me o que não conte a seu marido nem a seu amante. A (o) esquiva Márgara sorri e de mãos dadas vamos menino-homem, mulher-homem, de noite pelas ruas passeando o desgosto do mundo malformado. (ANDRADE, 1973, p. 141 – 142)
Dizem que Márgara passeia à noite, vestida de homem. O menino que vive em meio a sociedade patriarcal repressora é quem conta sobre ela e sobre o que ouve. Márgara seria um mito ou de fato ela existe? É uma mulher da imaginação do povo, projeção de mentes femininas que gostariam de fazer o mesmo que ela? Márgara, possível derivativo de Margarida, pérola em seu significado, é uma mulher que, pelos indícios do poema, revela uma criatura sofrida e cansada de ser o que é, “farta de ser mulher”. Quando homem, ela pode ser o que quer, livre dos olhos dos outros, por isso escolhe sair à noite, quando o sol se esconde e todas as “famílias de bem” dormem, somente os “devassos” saem para se divertir. Mas Márgara quer fugir sem que ninguém a veja, sem que ninguém a julgue. Quando ela se transforma, a força do homem se condensa nela pela roupagem e compensa a sua “fraqueza” na cama – o que indica a submissão ao sexo, embora ela não pareça satisfeita em deitar-se com o marido. Mesmo sendo uma pérola, algo raro, não por ser mulher, mas por ser sujeito, um sujeito singular e dotado de características específicas originalmente só dela, ela carrega em seu nome a sonoridade da palavra “amarga”, de amargura. O menino que ouve as histórias, só imagina o que acontece e, flutuando em sua imaginação “decide” sair de mansinho à noite e encontrar-se com a mulher misteriosa, mulher ou homem, tanto faz para ele, pois ele, como menino futuramente homem, a entende como homem e também como mulher. O eu lírico do poema, como adulto, reconhece que a sociedade repressora na qual foram criados, cerceia a liberdade feminina e infantil, mas o menino, sendo menino, aproxima-se do sofrimento feminino pela relação próxima com a mãe, por isso em seu pensamento puro, não pretende questionar os motivos de Márgara, somente pegar em sua mão e seguir pelas rua, fadados ao mundo que se sabe mal formado.
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O modo que a personagem encontra para sentir-se liberta é usando a máscara de uma subjetividade que não é a dela, mas precisa ser em um momento em que não há espaço para que sua voz e imagem verdadeiras sejam mostradas. Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. Esquecer para lembrar: Boitempo III. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980. __________. Menino Antigo (Boitempo II). Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. AUSTEN, Jane. Orgulho e Preconceito. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2010. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque, J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. MIRANDA, Ana. Desmundo. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. MITCHELL, Margaret. E o vento levou. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2012. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Trad. Vera Ribeiro. Versão digital. São Paulo: Círculo do Livro Editorial, 1928.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ - Anais do III CIELLI (2014) - ISSN 2177-6350
EU LEIO, TU LÊS, ELES LEEM – LEITURIZAR, EIS A QUESTÃO Thiago André Lisarte Bezerra (UFPR) O principal intuito deste resumo é apresentar algumas reflexões acerca dos resultados obtidos com a realização do projeto “Leitura e sociedade: textos de gêneros discursivos variados atrelados a projetos sociais”. Sob a orientação de Lúcia Peixoto Cherem (DELEM – UFPR), tal projeto de IC (Edital 2013-2014 – Fundação Araucária) foi fundamentado a partir da hipótese de que é possível modificar a relação ineficaz que a escola muitas vezes estabelece com o universo da escrita se a leitura estiver vinculada a atividades reais e significativas do ponto de vista dos discentes. Por este motivo, este projeto pretendeu formular e desenvolver práticas de letramento – a partir de uma constante e concomitante integração entre teoria e prática – nas quais a apropriação dos processos de leitura e escrita permitisse, além de desenvolver e aprimorar o desempenho do ato de ler do ponto de vista neurofisiológico e cognitivo, estimular a visão de leitura como uma prática social que influencia a visão de mundo do sujeito leitor, tornando-o socialmente autônomo e crítico. Para tanto, assinalamos desde o início a importância da pluralidade textual como um dos fatores que favorecem o processo de leiturização, uma vez que o acesso aos mais variados gêneros discursivos produzidos socialmente garante ao aluno a formação de um repertório de leitura amplo e diversificado. Tendo em vista que o projeto mencionado teve por objetivo, primeiramente, investigar as razões que dificultavam o desenvolvimento de práticas de leitura significativas no âmbito escolar para, em um segundo momento, criar estratégias didático-metodológicas de intervenção que possibilitassem as condições necessárias para a efetivação de propostas concretas para a leitura e a compreensão de textos, pudemos verificar que, ao final do processo, os objetivos iniciais foram alcançados. Isto porque a avaliação final do projeto – a partir da observação contínua do comportamento leitor dos alunos e da análise de suas produções textuais – nos permitiu corroborar a hipótese inicial de que é possível formar leitores competentes desde que estímulo, motivação, trabalho coletivo e acompanhamento contínuo sejam aspectos norteadores do processo de ensino-aprendizagem relacionado à leitura. Assim, durante o período em que desenvolvemos as ações relacionadas ao projeto, pudemos perceber que, paulatinamente, os alunos foram se capacitando para fazer do ato de leitura um exercício crítico de inserção, compreensão e apreensão do
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mundo. Se nas primeiras atividades realizadas os estudantes ainda se mostravam alheios e inseguros para debater assuntos e novos pontos de vistas relacionados à velhice – tema norteador do debate –, tal comportamento foi modificando-se ao ponto de, em uma das atividades de produção textual, um dos alunos escrever o seguinte comentário após a leitura e discussão coletiva de um artigo: Eu achei [a criação de um novo símbolo público de identificação da terceira idade] muito interessante, pois a matéria fala que não devemos usar o retrato neutro do idoso: incapaz, frágil e debilitado, porque os idosos assim como os jovens são diferentes uns dos outros, e a nova imagem retrata o idoso como velho, porém estável e capaz.
Produções como esta são indícios bastante relevantes do quanto os alunos tiveram a oportunidade de aprimorar o uso das competências de escrita e leitura ao problematizar e refletir acerca de questões de cunho social que, em certa medida, são vivenciadas por todos nas relações sociais estabelecidas no dia a dia. A importância de tornar o ato de ler uma atividade significativa capaz de atender às demandas do indivíduo em sociedade – por meio de um movimento contínuo do “mundo à palavra e da palavra ao mundo” – é uma proposta defendida por Paulo Freire quando o autor nos adverte de que “a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele. (...) Ler implica sempre percepção crítica, interpretação e “re-escrita” do lido” (FREIRE, 1982, p. 22-24). Considerando tal reflexão, podemos constatar que as atividades de leitura e escrita organizadas pelo ambiente escolar deveriam se pautar sob a tentativa de possibilitar este encontro da palavra com o mundo, de fomentar a leitura da palavra a partir da leitura do mundo. No entanto, ao observarmos nas salas de aula as práticas metodológicas vigentes que visam ensinar e desenvolver a competência leitora nos alunos, podemos constatar que a escola falha sistematicamente no que diz respeito a este aspecto. Após uma rápida análise de um livro didático, por exemplo, já é possível identificar que, na maioria das vezes, o estudo dos textos é realizado de maneira estrutural e superficial, ou seja, os comandos de leitura não pretendem estimular uma prática de leitura eficiente como a que até o momento temos defendido. Pelo contrário, tais propostas se limitam a exigir do aluno uma leitura direcionada à identificação e classificação de conteúdos gramaticais, limitando completamente o estudo do texto em seu conteúdo e especificidade. Tais questões não são, de forma alguma, novas ou recentes e, tampouco, começaram a ser discutidas por nós. Já é de muito sabido que o
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caráter estruturalista de leitura é o que predomina em nossas escolas e, neste sentido, estudos e pesquisas já foram desenvolvidos com o objetivo de sanar a ineficiência, já comprovada, deste modelo de leitura para a formação de leitores. Portanto, é neste contexto de discussões teóricas e de busca por alternativas e respostas sobre o desafio de construir leitores que este projeto se inscreve. Aos resultados finais, ademais dos apontados anteriormente, também acrescentamos o trabalho desenvolvido pelos alunos – a partir da supervisão da escola e do vínculo com a universidade – junto à comunidade. As discussões e oficinas realizadas ao longo de dois bimestres letivos foram, ao mesmo tempo, exercícios de formação para os alunos-leitores e, também, visaram prepará-los para práticas de mediação de leitura. Uma das propostas iniciais de intervenção social mediante a leitura – “A leitura e a cidade: lendo na casa de repouso junto aos idosos” – foi a etapa final do processo, no qual os alunos tiveram a oportunidade de visitar a casa de repouso da comunidade e trocar experiências com os idosos residentes na instituição. Esta prática dialoga com a sugestão de Jean Foucambert e Yvanne Chenouf – em artigo de 1999 – de que deveríamos, ao ensinar leitura e escrita na escola, desenvolver projetos experimentais nos quais “a produção deve ser compreendida como um trabalho aplicado no corpo social e que se encontra assim confrontado diretamente ao que está em jogo nas relações sociais” (FOUCAMBERT; CHENOUF, 1999, p. 34). Ora, o vínculo que os autores franceses estabelecem entre produção de conhecimento escolar e práticas sociais não é muito diferente daquele modelo já apontado por Paulo Freire para países de Terceiro Mundo. Os princípios de funcionamento são bastante semelhantes e ambos propõem a intersecção entre saberes escolares e práticas sociais como uma possibilidade real de intervenção na realidade social e no processo de ensino-aprendizagem. O viés ideológico que perpassa estes projetos é o de que A formação intelectual, ou seja, o desenvolvimento das ferramentas e a elaboração dos conceitos que permitem a apreensão do mundo, se faz através do encontro do que o mundo “produz”, através das relações de produção, e não através da transmissão direta das ferramentas dominantes ou um confronto com a simulação do mundo, elaborada através das ferramentas dominantes. Uma educação que tem como objeto abolir a submissão só pode se desenvolver se os instrumentos de conhecimento se forjarem na produção prática do questionamento da realidade portadora da dominação (FOUCAMBERT; CHENOUF, op. cit. p. 35-36).
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As atividades desenvolvidas na casa de repouso foram organizadas em dois momentos: nas duas primeiras visitas, os alunos tiveram a oportunidade de conversar com os idosos e ouvir as suas experiências de vida e, na sequência, apresentaram as produções textuais elaboradas até o momento. Cabe destacar que dentre tais produções textuais foram elaborados os mais diversos gêneros textuais – entrevista, questionário, poemas, causos, histórias ilustradas – em diálogo com a proposta do projeto que visava à leitura, estudo e produção de textos considerando sua diversidade múltipla e heterogênea, tanto no que diz respeito às suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais quanto às suas peculiaridades linguísticas e estruturais. Na segunda visita, demos preferência à leitura e à contação das histórias, ações mediadas pelos próprios alunos que, em grupos, puderam apresentar e ler para os idosos os livros com os quais havíamos trabalhado durante as oficinas. Em síntese, podemos considerar que os nossos objetivos iniciais foram obtidos na medida em que todas as ações e estratégias desenvolvidas junto à instituição escolar e à comunidade buscaram convergir para a formação de leitores críticos e competentes, considerando que o desenvolvimento de modos de ler e de explorar textos significativamente está intrinsecamente relacionado ao caráter social de tais habilidades. Assim, nosso objetivo de desenvolver um projeto de leitura que envolvesse escola e comunidade através de atividades e temáticas que tornassem o ato de ler significativo e relevante dentro da escola e fora dela foi alcançado e produziu resultados constatáveis. Referências FOUCAMBERT, J. Modos de ser leitor. Tradução do francês por Lúcia Cherem e Suzete Bornatto. Curitiba : Editora da UFPR, 2008. FOUCAMBERT, J. ; CHENOUF, Y. Les collégiens, des formateurs dans la cité. Proposition sur l’organisation et le fonctionnement du collège. Les actes de lecture : la revue de l’AFL, n° 65, março de 1999. FREIRE, P. A importância do ato de ler. 45ª ed. São Paulo: Cortez, 1982. SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
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QUADRINHOS NO PNBE - ENTRE A ADAPTAÇÃO E O AUTORAL Thiago de Oliveira Soares (UEM) Desde 2006 o Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) disponibiliza parte de sua verba para a aquisição de histórias em quadrinhos. O número não é fixo e a quantidade varia, sem uma lógica específica, de ano para ano. Em 2012, por exemplo, tivemos a maior compra de quadrinhos desde que o edital começou a valer, foram 29 títulos. Um ano antes, tivemos o menor número, apenas 7 obras. Pode não haver um padrão entre a quantidade ou mesmo percentual de quadrinhos em relação às obras escolhidas pelo PNBE, mas há uma característica em comum em todos os anos do edital. Dentre as obras selecionadas para preencher as sessões de quadrinhos das prateleiras das bibliotecas nacionais, há uma grande quantidade de adaptações de cânones literários para o formato de quadrinhos. Uma quantidade, inclusive, muito maior do que a de quadrinhos autorais. Um dos motivos dessa quantidade desproporcional é que o próprio edital do programa incluía essas adaptações na descrição dos livros que eles aceitavam na seleção e pretendiam adquirir. Paulo Ramos, professor, pós-doutor, escritor e um dos mais respeitados pesquisadores de quadrinhos do Brasil, escreveu na edição de setembro de 2013 da revista Carta na Escola: Não é algo explícito, mas há uma espécie de recado sugerido pelo governo federal às editoras brasileiras interessadas em ter obras incluídas nas gordas compras do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). A sugestão dada é que inscrevam clássicos da literatura universal adaptados na forma de histórias em quadrinhos. Há chances reais de um livro nesses moldes ser selecionado. (RAMOS, 2013)
O edital do PNBE publicado em 2013 para compras de 2014 dizia: “Livros de imagens e livros de histórias em quadrinhos, dentre os quais se incluem obras clássicas da literatura universal, artisticamente adaptadas ao público dos anos iniciais do ensino
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fundamental” (p.2) e “Livros de imagens e livros de histórias em quadrinhos, dentre os quais se incluem obras clássicas da literatura universal, artisticamente adaptadas ao público de educação de jovens e adultos (ensino fundamental e médio)” (2013, p.2). No edital de seleção para 2013, ano em que o artigo em que Ramos critica essa característica do programa foi publicado, a quantidade total adaptações escolhidas representava 61% do total de quadrinhos selecionados pelo edital. Um ano antes, era 70%, e tinha ainda duas adaptações diferentes de um mesmo título literário: A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson. Em um mesmo ano, só da editora Ática, foram quatro: Dom Casmurro, O Quinze, O Ateneu e A Escrava Isaura. As consequências disso são variadas. As editoras, incentivadas pela alta tiragem adquirida pelo governo, aumentaram as publicações de adaptações; os artistas, visualizando a oportunidade de ganhar dinheiro e visibilidade, focaram suas produções nesse segmento; os professores, com esse material em mãos, não tiveram um direcionamento definido para trabalhar em sala de aula. Mas e os leitores, público alvo do programa, como recebem os quadrinhos e as adaptações literárias nesse formato? Uma coisa de cada vez. Ramos, nesse mesmo artigo já citado, traz um dado significante: “Do ponto de vista comercial, as editoras já perceberam que há aí um bom negócio. De poucos pares de adaptações existentes em 2005 o mercado saltou para cerca de quatro dezenas ao ano”. Não foi só ele que percebeu isso, Erico Assis, jornalista, professor e um dos mais importantes tradutores de quadrinhos da atualidade no Brasil, diz que as editoras “fizeram a festa” com o edital. O motivo é simples, um quadrinho que saia com uma tiragem de 3 mil exemplares, pode receber um pedido de mais de 25 mil exemplares se for selecionado. O retorno financeiro para os autores e editoras selecionados no programa está evidente, mas se além disso, o resultado com a leitura for também um objetivo dos envolvidos, aí o edital pode não ser tão gratificante assim. Isso porque as polêmicas em relação aos quadrinhos nas escolas, e nas compras escolhidas pelo PNBE, não são poucas. Em 2009 o governo de São Paulo comprou e distribuiu para bibliotecas do estado, por meio do PNBE, o livro Dez na área Um na banheira e Nenhum no gol. Uma compilação de 11 histórias em quadrinhos sobre futebol, de vários autores nacionais
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respeitados, como Fábio Zimbres, Caco Galhardo, Allan Sieber, Fábio Moon e Gabriel Bá, organizada pelo cartunista Orlando Pedroso. O livro, que contém palavrões, referências sexuais e humor adulto, foi distribuído para crianças do 3º ano, ou seja, de 9 anos. O caso teve grande repercussão na mídia durante algum tempo, movida a declarações polêmicas que partiram de todos os lados da discussão. Uma das mais comentadas foi a do, então govenador de São Paulo, José Serra, que afirmou em uma entrevista que o livro era “de muito mau gosto”. A polêmica, para os envolvidos com os quadrinhos, não foi o fato do livro ter sido distribuído erroneamente para um público de uma faixa etária que não condizia com o público alvo do livro, mas sim como o próprio livro, e até o gênero Quadrinhos, foi tratado em mídia nacional, com uma linguagem carregada de preconceitos. O que se viu foi uma imprensa, políticos, e até os envolvidos na escolha dos livros do PNBE, reduzindo o potencial dos quadrinhos para um gênero literário infantil. Sobre isso, os pesquisadores Raoni Xavier e Alisson Ricardo publicaram um artigo na Revista Eletrônica Temática, em que detalharam os acontecimentos envolvendo o Dez na Área e a imprensa nacional, concluindo que “tal atitude demonstra desconhecimento da gama de temas passíveis de serem abordados através dos Quadrinhos. Este desconhecimento também foi demonstrado pelos jornalistas e pelo governador José Serra, que abordaram o tema de forma preconceituosa” (2009, p.7). Todos os exemplares de Dez na Área, comprados pelo governo e distribuídos pelas bibliotecas públicas das escolas, foram recolhidos. A Via Lectera, editora responsável pelo lançamento do livro, publicou em seu blog oficial post que, além de informações sobre o livro, trazia uma carta aberta da ACB, Associação de Cartunistas do Brasil. Nela, José Alberto Lovreto, presidente da associação, encerrava a carta pedindo a imprensa que “sempre que houver algo tão importante como esse tema, também coloquem a opinião de uma pessoa especializada na área, que tenha algum conhecimento da linguagem em discussão” (2009). No mesmo ano, outro título em quadrinhos escolhido pelo PNBE sofreu as mesmas críticas. O autor, nesse caso, era um dos mais renomados do gênero no mundo, Will Eisner. O livro Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço foi recolhido por conter, segundo as denúncias de professores e escolas públicas, “cenas de sexo”,
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“violência” e “embriaguez”. O livro de Eisner tinha sido escolhido para o programa para ser destinado a alunos da 6ª série, com cerca de 11 anos. Após tantas críticas em relação ao tratamento dado a Dez na Área, a situação com Um contrato com Deus foi um pouco mais tranquila. Os livros, mesmo sendo recolhidos em algumas bibliotecas do país, não foram acusados de nada. O que foi constatado nesse caso, além da já noticiada falta de atenção ou preparo dos responsáveis por selecionar obras no PNBE, foi a falta de instruções para professores sobre como lidar com esse material em sala de aula. Em 2013, outra polêmica surgiu envolvendo os quadrinhos nas salas de aula. A gerente executiva de Projetos do Instituto Pró-Livro (IPL), Zoraia Failla, em entrevista à Agência Brasil sobre a leitura de quadrinhos, disse “eu acho que [ler quadrinhos] pode ser um meio, nunca um fim. Porque o quadrinho pode até trabalhar algum conteúdo, mas o faz de forma superficial. Como incentivo à leitura, ele pode ser um mobilizador". E ainda "Sem dúvida, deveria ser melhor trabalhada para conseguir que, a partir dali, o aluno se interesse por uma leitura um pouco mais complexa, com mais conteúdo" (2013). A entrevista, claro, não foi bem recebida. Por algum tempo, Zoraia Failla foi o nome mais odiado, criticado e comentado no Brasil, entre os autores de quadrinhos, jornalistas especializados e teóricos do segmento. Paulo Ramos, em um post no seu Blog dos Quadrinhos, no qual comenta as declarações da Gerente Executiva do Instituto Pró-Livro, disse “o que se observa é uma visão equivocada e antiga sobre o papel do quadrinhos como leitura, e leitura estritamente infantil”, e concluiu: “o porém é que essa mesma interpretação que tem pautado políticas governamentais de uso dos quadrinhos no ensino, entre elas o PNBE” (2013). Declarações como a Zoraia explicam a preferência do PNBE pela escolha das adaptações. É a ideia, que Ramos considera “equivocada”, de que o papel do quadrinho é simplesmente levar o leitor até uma obra literária “mais complexa”. Como se o próprio quadrinho não pudesse desenvolver em uma narrativa “complexa”. Para entender como isso acontece na prática, e entender as consequências dessas adaptações entre os leitores dos quadrinhos, o presente trabalho, além de apresentar essas discussões levantadas a partir da relação entre o PNBE e as HQs, analisou como
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os leitores, usuários da rede social de literatura Skoob, leram a adaptação em quadrinhos para Dom Casmurro, de Felipe Greco e Mario Cau - que foi adquirida pelo PNBE no último edital -, e comparou com a repercussão, na mesma plataforma, de Daytripper, aclamado quadrinho autoral dos irmãos Fábio Moon e Gabriel Bá. Essa comparação busca, embasada na Estética da Recepção, entender como o leitor recebeu as obras. Afinal, para a Estética da Recepção, o que importa mesmo em um texto literário não é o autor ou mesmo a obra, isso claro, são fatores importantes, mas o papel central da literatura é desempenhado pelo próprio leitor. Eagleton, em seu trabalho Teoria da literatura: uma introdução (1997), ao falar sobre a estética da recepção, afirma que os textos “não existem nas prateleiras das estantes”, segundo o autor, eles “são processos de significação que só se materializam na prática da leitura”. (p.102-103). O Skoob foi escolhido por ser a maior rede social virtual brasileira focada em literatura. Nela, usuários se cadastram e montam um acervo pessoal virtual dos livros que já leram, pretendem ler e desistiram de terminar. Além disso, o usuário também pode cadastrar notas, resenhas e opiniões sobre s livros que estão na plataforma. Caso ele não encontre o livro desejado, ele também pode, por conta própria, cadastrar a obra no site. O site é uma plataforma virtual onde o leitor tem espaço para extrapolar o ato de ler, divulgando suas leituras, opiniões, impressões e qualquer outra informação que ele queira sobre livros. É uma ferramenta que disponibiliza o espaço necessário para o leitor usuário da rede compartilhar sua leitura e a significação que ele desenvolveu nesse processo. As obras analisadas foram escolhidas por serem destaques em seus segmentos. Em 2013 a adaptação de Dom Casmurro de Felipe Grecco e Mario Cau foi selecionada pelo PNBE. O livro, segundo colocado no Prêmio Jabuti daquele ano, figurou ótimas posições em várias listas de melhores quadrinhos do ano. Daytripper ganhou os prêmios Eisner e Eagle, além de ter sido indicado ao Harvey e ao Shel Dorf Awards e ficado duas semanas na lista de coletâneas em quadrinhos mais vendidas do The New York Times. Daytripper é considerada a HQ brasileira de maior sucesso que já se viu no exterior.
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A quantidade de leitores entre as duas obras, dentro do Skoob, é claramente desproporcional, e isso, além de já representar um dado interessante, também indica que que o universo de análise pode ser limitado em alguns sentidos. De qualquer forma, vamos às informações. Ao todo, na rede social virtual Skoob, 50 pessoas declaram ter lido o a adaptação em quadrinhos de Dom Casmurro de Felipe Grecco e Mario Cau. Vale ressaltar que é importante fazer referências dos autores na obra, porque já foram feitas algumas adaptações em quadrinhos de Dom Casmurro, e entre essas, duas ou três já foram selecionadas pelo PNBE em diferentes anos. Uma quantidade, como informado anteriormente, muito menor do que os 1143 leitores de Daytripper cadastrados no Skoob. Isso sem contar as edições em inglês e francês do livro, que juntas adicionam outros 750 leitores na conta. Dos 50 usuários leitores da adaptação de Dom Casmurro, 27 não possuem mais nenhum outro livro de quadrinhos no campo “lidos” de sua biblioteca virtual. Entre a minoria que tem quadrinhos em suas listas de leituras concluídas, dois usuários só leram adaptações. Desse universo de leitores, apenas cinco leram também o Daytripper. É claro que não podemos restringir a leitura de Dom Casmurro de Felipe Grecco e Mario Cau aos usuários do Skoob, mas sendo a plataforma um percentual significante de leitores no Brasil, segundo próprio site, em seu Mídia Kit, são mais de 1,5 milhão de usuários cadastrados e 52 milhões de acessos por mês, vemos um nítido desinteresse do público de uma forma geral, e uma baixa taxa de convergência entre o público alvo da adaptação. A proporção entre os leitores das duas obras representa, entre outras coisas, isso. São 50 leitores para a mais premiada adaptação em quadrinhos da atualidade, contra mais de mil leitores do mais premiado quadrinho autoral brasileiro, que nunca foi selecionado para o PNBE. Além do baixo número de leitores e de que apenas a minoria deles sejam leitores de quadrinhos, o que mais preocupe nessa diferença, talvez seja a maioria dos leitores da adaptação que não se interessaram por outros livros do gênero, nem mesmo por seus cânones do seguimento. Ou seja, leitores que não conheciam ou não tiveram acesso a uma obra desse segmento, que mesmo após ler a adaptação de Dom Casmurro, não
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foram para outros textos do gênero. Podemos colocar nessa conta os outros dois usuários que foram, mas para outras obras apenas de adaptações. Indo além, será que o simples fato de comprar os quadrinhos é o suficiente para fomentar a leitura desse gênero no país? Ou ainda, será que fomentar a leitura de quadrinhos é um dos objetivos do programa? Os números mostram que não. Se os quadrinhos foram comprados, pelos dados e histórico, levando em consideração as polêmicas já apresentadas nesse artigo, vemos que os professores não foram preparados para incentivar a leitura desse material, nem em sala de aula, nem fora dela. E o fato de priorizar a compra de adaptações ao invés dos quadrinhos autorais, mostra também que o gênero em si talvez não seja o foco do projeto. Mas se ler quadrinhos não era o foco, qual seria? Podemos supor, pelos fatos apresentados, que o plano era seguir a linha de raciocínio divulgada por Zoraia Failla, em que o objetivo dos quadrinhos, ou de sua leitura, seja apenas levar esse leitor para outras obras mais complexas, no formato tradicional. Se o plano era esse, talvez também não tenha dado certo. Entre os 50 leitores da adaptação de Dom Casmurro de Felipe Grecco e Mario Cau, apenas 10 chegaram ao texto original, de Machado de Assis. Ou seja, 80% dos leitores da adaptação, que já não eram, em maioria, leitores de quadrinhos, não conhecem o texto original de Dom Casmurro, a obra pela qual o quadrinho deveria, seguindo a opinião de Zoraia Failla, ter servido como “porta de entrada”. O problema, claro, não está na qualidade do material. Dom Casmurro de Felipe Grecco e Mario Cau, como já exposto nesse trabalho, é uma obra elogiada, premiada pela sua qualidade. A questão talvez seja outra. Nas resenhas postadas no perfil de cada livro no Skoob, resenhas essas publicadas pelos próprios usuários da plataforma, além de mais uma vez termos um dado desproporcional entre os dois livros - são 18 resenhas de Daytripper contra apenas uma da adaptação – vemos que a qualidade da adaptação ainda é seu ponto forte. A única resenha feita para a adaptação em quadrinhos de Dom Casmurro foi publicada por Carina de Luca, uma das poucas usuárias que já leram o livro de Felipe Grecco e Mario Cau, e outros trabalhos bem conceituados do gênero, como alguns
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clássicos do segmento autorais, e outras adaptações no mesmo formato, incluindo outra versão de Dom Casmurro, que também já foi selecionada pelo PNBE. Em sua análise, intitulada Uma das melhores adaptações literárias para quadrinhos, a usuária diz: Logo no prefácio, somos apresentados a um problema no mundo editorial dos quadrinhos brasileiros - por ser uma linguagem atraente aos jovens, fazem-se HQs como adaptações literárias a torto e a direito. Muitas, apoiadas pelo Ministério da Cultura; poucas, com qualidade digna da obra em que se baseiam. Este livro - bem maior que a maioria das obras literárias quadrinizadas - é uma exceção no ramo. Muito bem pensado e planejado, revela o cuidado com que seus desenhistas leram a obra de Machado. Contudo, não se prenderam a ela; um dos charmes do livro são as epígrafes, de autores diversos, que "casam" com os variados momentos da vida de Bento Santiago. O traço é interessante, a capa é fenomenal, o desenrolar da trama se faz otimamente... e se alguma dúvida me resta, para além da (não)traição de Capitu, é decidir qual é minha adaptação favorita do clássico: este livro ou a série de Luiz Fernando Carvalho. (LUCA, 2013)
A resenha é de uma leitora de quadrinhos, alguém que conhece o gênero, seus problemas e situações. Fica nítido que, mesmo tendo consciência do atual problema das adaptações de quadrinhos brasileiras, a leitora vê com bons olhos o livro e faz um belo relato sobre a qualidade da obra. Já as resenhas de Daytripper possuem abordagens diferentes. Entre as 18 resenhas publicadas no perfil do Skoob de Daytripper, há coisas positivas, negativas, pequenos comentários e até discussões sobre o livro. Seja qual for o foco escolhido, o interessante das resenhas dos usuários é que a maioria escreve sobre uma possibilidade de leitura do livro. Por exemplo, o usuário Pacha Urnabo, o único entre os 18 críticos de Daytripper no Skoob a avaliar negativamente a obra, escreveu na sua resenha intitulada Superstimado: Não consegui encontrar nem metade do entusiasmo que incensaram sobre essa HQ durante a sua leitura. Histórias rasas, tendendo ao sentimentalismo forçado, cacoetes visuais que os gêmeos costumam usar em seus trabalhos autorais, e uma homenagem ao Chico Buarque na figura do protagonista, como se isso a tornasse mais profunda ou mais interessante, é a soma desse álbum. (URBANO, 2013)
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Mesmo em suas críticas negativas, há uma possibilidade de leitura do texto. Daytripper oferece recepções diferentes a usuários diferentes. Essa comparação entre o protagonista do Daytripper e o Chico Buarque é extremamente singular, mesmo sendo, para o autor da resenha, algo negativo. As resenhas que enaltecem a obra fazem referências diferentes, claro. Elas falam sobre o tom sentimental, sobre a morte, um elemento presente em boa parte do texto entre outras coisas. Sobre isso, Jauss, um dos maiores nomes da Estética da Recepção, disse: (1994, p.7-8) a qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam nem das condições históricas ou biográficas de seu nascimento, nem tão somente de seu posicionamento no contexto sucessório do desenvolvimento de um gênero, mas sim dos critérios da recepção, do efeito produzido pela obra e de sua fama junto à posteridade.
É isso o que um quadrinho autoral produz em seus leitores. Opiniões diferentes vindas das mais diversas leituras e sentidos. Ela provoca o leitor a uma interpretação e não apenas o conduz até um outro texto literário. E voltando ao assunto tratado alguns parágrafos antes, o problema seja mesmo que, talvez não seja o papel dos quadrinhos servirem como essa porta de entrada para outras obras. Por exemplo, e se todos os leitores da adaptação de Dom Casmurro tivessem lido também o texto original, o livro teria cumprido com seu objetivo? Mas seria esse o objetivo dos quadrinhos? O formato, por si só, não consegue se sustentar como gênero literário? E mesmo sem levantar essa possibilidade de um gênero a parte, será que pelo próprio fato da narrativa ser elaborada em um determinado formato, ela precisa ser considerada superficial? Ou mesmo apenas uma ponte para outra leitura? Acredito que não. Daytripper e sua pluralidade de leituras diz isso, as polêmicas entre as obras autorais movidas por um preconceito formado a partir do formato do texto literário reforça essa ideia e as diferentes repercussões entre as premiadas obras dentro da rede social virtual, além dos dados desproporcionais entre os dois títulos, também. São vários os teóricos que discutiram o tema, um deles foi próprio Eisner, que já foi citado nesse artigo como um dos autores que tiveram seus livros envolvidos em polêmicas após a seleção do PNBE. Eisner é o pai do termo Graphic Novel, que, entre
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outras coisas, tenta dar credibilidade para grandes narrativas contadas em formato de quadrinhos. Em 1986 Art Spiegelman lançou os primeiros capítulos da graphic novel Maus, uma autobiografia em quadrinhos que conta a história da sua família durante o holocausto. Maus, além de revolucionar o mundo dos quadrinhos e dividir toda a produção nesse segmento entre antes e depois, ganhou tudo quanto é prêmio, inclusive alguns no campo da literatura. Mas mais do que isso, Maus, e muitos outros livros, vale ressaltar aqui, possibilitou diversas leituras plurais, que são realizadas até hoje. É isso que Jauss quer dizer quando fala em “posteridade”. Para 2015 o edital do PNBE mudou. Onde antes tínhamos uma apologia às adaptações no formato de quadrinhos, hoje temos um parágrafo abrangente que diz “No caso das histórias em quadrinhos será considerada como critério preponderante a relação entre texto e imagem e as possibilidades de leitura das narrativas visuais” (2014, p.29), resta saber agora o que as editoras irão inscrever e, principalmente, o que o governo comprará. Referências Blog da Via Lectera, Dez na área um na banheira e ninguém no gol. 2013. Disponível em: http://vialettera.blogspot.com.br/2009/05/dez-na-area-um-na-banheirae-ninguem-no.html EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. 3 ed. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Edital PNBE 2013. Disponível em: http://www.fnde.gov.br/arquivos/category/109editais?download=7721:edital-pnbe-2014 Edital PNBE 2015. Disponível em: http://www.fnde.gov.br/programas/biblioteca-daescola/biblioteca-da-escola-consultas/item/5339-edital-pnbe-2015 FAILLA, Zoraya. Entrevista para Agência Brasil. Disponível em http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-09-09/quadrinhos-podem-ajudarformar-leitores-e-na-educacao-de-criancas-e-adolescentes JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.
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EM LIBERDADE: O TESTEMUNHO EM MEIO AO HISTÓRICO E O FICCIONAL EM MOMENTOS DE AUTORITARISMO Thiana Nunes Cella (UNICENTRO-GA) O antes é a semente, o germe, a raiz do depois. (BOSI, 1996, p. 21)
O passado brasileiro é marcado por dois traumas que remetem aos primeiros séculos do período moderno, são eles: a escravidão e a colonização portuguesa, essa questão é levantada por Renato Janine Ribeiro em seu texto “A dor e a injustiça” (1999): “O Brasil já o comentei em outro lugar, pode ser dito traumatizado. Ele jamais ajustou contas com duas dores terríveis, obscenas, a da colonização e a da escravatura” (p. 11). A esses momentos traumáticos pode-se acrescentar outros dois momentos conturbados que assolaram a história nacional: a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas e o regime da Ditadura Militar; o primeiro perdurou entre 1937 e 1945, já o segundo persistiu por mais de vinte anos, vigorou dos anos de 1964 a 1985. Os períodos ditatoriais deixaram marcas indeléveis na história brasileira e, assim como a escravidão e a colonização, nunca foram extirpados da memória de nossa sociedade. Ainda de acordo com Janine Ribeiro, estas marcas profundas são caracterizadas pela dor, e na maioria das vezes pela dor provocada injustamente. Esses decalques provocados pela injustiça estão inscritos no âmago de uma população que sofreu torturas, ameaças, degradação moral, repressão e censura. Nas palavras de Ricardo Martins (2011, p 206): o longo processo de formação histórica e social brasileira se desenvolve como “resultado traumático de experiências saturadas pela submissão, violência e agressão e, sobretudo, pela total ausência de senso de coletividade”. A situação vivenciada por pessoas que passaram por esse tipo de situação limite despertada indignação e revolta e, junto a elas, o desejo de resistir à situação imposta
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confrontação, no qual o passado rememorado comunga dos embates traumáticos para um revisitar histórico questionador. Entrementes, como já afirmava Benjamim, “[a]rticular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘tal como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma recordação, como ela relampeja no momento de um perigo” (2012, p. 243), em outras palavras, o conhecimento do transcorrido nunca será total, o que se tem são apenas imagens, reflexos desse passado para um despertar da esperança contra as amarras do passado (p. 244). Consoante a Malcom Silverman em seu panorama do romance pós-1964, Protesto e o novo romance brasileiro (2000), a literatura contemporânea tem se caracterizado por um efeito de reação à repressão exercida pelos anos de chumbo, que resultou em uma produção cujo valor é notoriamente mais documental que literário (p. 13). Como salienta o autor: “desde a ditadura de Vargas, o romance jamais servira tanto de veículo para disseminar a realidade nua e cruel na qual estava imerso o país, e onde buscava sua inspiração” (p. 33). Tal característica se consolidou devido ao fato de que enquanto os outros meios de comunicação convencionais, como o rádio e a televisão, estavam bloqueados, a literatura encontrava um campo mais aberto, pois seu público e, por conseguinte, sua influência era minguada e insignificante (p. 32). Dentre os muitos gêneros romanescos produzidos no período, Silverman destaca como gênero predominante o memorial, que se multiplicou largamente com o arrefecimento da repressão. Esses textos buscavam expor de modo aberto, pela primeira vez, os horrores da repressão e as dificuldades do exílio político (p. 33-34). Ao tratar especificamente do romance memorial ou autobiográfico, o qual o autor o nomeia mais apropriadamente como uma autobiografia semificcionalizada e caracteriza-o pela intrínseca relação de elementos autobiográficos a elementos ficcionais. Silverman (2000) atesta que a autobiografia é, por definição, memorialística e, através de seu carácter intimista e catártico, é favorável à constituição de imagens que refletem o coletivo por meio de metáforas, trazem a imagem individual e social de seu autor e faz com que a ênfase na memória, no retrospecto, também possa abranger o presente (p. 61). Também, as memórias possuem determinação mais delicada, pois não se pode saber exatamente quando o relato dos fatos se acaba e se inicia a ficção, bem como não é possível precisar em que contexto e em que proporção os elementos reais e
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ficcionais se articulam (p. 62-63). Tais pontos explicam a grande popularidade do gênero e de suas variações, pois por meio de sua estrutura dúplice – de verdade e criação – a literatura denuncia e desvela as mazelas da sociedade sem a completa implicação de seu autor. É nesse panorama histórico e literário em que se encontra a obra Em liberdade: uma ficção de Silviano Santiago, publicado em 1981 às vésperas da derrocada do Regime Militar brasileiro. Este romance configura-se como uma impetuosa metanarrativa em que seu autor, Silviano Santiago, dá nova vida à personagem empírica de Graciliano Ramos, em que o histórico e o ficcional andam de mãos dadas, nas palavras do próprio autor, em que “o vivido fala do trampolim da imaginação” (1994, p. 236). Graciliano é exemplar de quem sofreu o jugo de um regime repressivo por suas ideais nem sempre consoantes às do poder. A verdade é que, em 1936, durante o já referido Estado Novo, Graciliano foi preso sem saber os motivos pelo qual estava sendo detido e do mesmo modo foi solto quase um ano depois. Em seu romance, Silviano Santigo apresenta o escritor alagoense em seus primeiros momentos de liberdade, no qual o protagonista nos revela suas primeiras experiências de libertação, seus medos, seus problemas, suas frustrações e seus traumas após passar quase um ano entre a Colônia Correcional de Dois Rios (Ilha Grande) e o Pavilhão dos Primários da Casa de Detenção, no Rio de Janeiro. Este diário seria a representação daquilo que ficou faltando às Memórias do Cárcere, publicado em 1953, livro que Graciliano Ramos (autor empírico) não chegou a finalizar, pois faleceu antes de terminá-lo. Em liberdade seria o último capítulo da obra supracitada, no qual Graça, como era carinhosamente chamado, planejara escrever apenas suas primeiras impressões posteriores ao cárcere1. Nessa empreitada de reconstituição de um novo Gracialiano Ramos – novo, pois este Graciliano passa a ser uma personagem ficcional no momento em que é inserido no romance –, Santiago faz alusões e críticas irônicas aos diferentes aspectos
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Sobre o assunto ver as considerações sobre o projeto do último capítulo de Memórias do Cárcere dadas por Ricardo Ramos, filho de Graciliano, na “Explicação Final”. Cf: RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere. Rio de Janeiro: Editora Record, 1987. p 317-319.
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que caracterizaram a história da sociedade brasileira, e que a assinala como desigualitária, preconceituosa e injusta: Se carnaval é liberdade, o povo já a tem. Nada preciso fazer por ele. Se carnaval é igualdade, o esquema ditatorial que se apossa do Brasil é mais que democrático. Aliás, a própria civilização brasileira sempre o foi, pois não é este o país onde as diferenças são abolidas em favor de um espírito nacional que irmana pretos e brancos, índios e negros, pobres e ricos, senhores e escravos? Democracia racial, democracia social – não são estas as palavras usadas pelos nossos melhores intelectuais e políticos? (SANTIAGO, 1994, p. 158)
Tais observações afiançam as palavras de Bosi (1996) quando afirma que o passado é a base dos momentos presentes (e futuros); do mesmo modo como a parte submersa de um iceberg, no qual o presente representa apenas a sua ponta (p. 19), e este presente (ou a data) é um reflexo que está fundeado e intrinsecamente arrolado ao passado. Como afirma o autor: “Somos hoje a memória, viva ou entorpecida, do ontem e do anteontem e o prelúdio tateante do amanhã” (1996, p. 32). Com isso, o passado é a base para o desenvolvimento futuro; no Brasil, como assegura Silverman, essas bases foram o autoritarismo e a rapinagem, recurso capital de momentos em que a dor e a injustiça tomaram as rédeas da nação. Para corroborar, em sua campanha de mapear a historiografia brasileira, Santiago insere em seu enredo diferentes figuras históricas e literárias emblemáticas como Cláudio Manuel da Costa e Wladimir Herzog. Com isso, o autor aproxima a realidade de Graciliano a outros dois momentos históricos conturbados: a devassa da Inconfidência Mineira e os anos inflexíveis da Ditadura Militar brasileira, e almeja uma revisão da posição do intelectual brasileiro em períodos de autoritarismo, censura e repressão. Destarte, quando pensado em Em Liberdade, muito concernentes se fazem as palavras de Dante Moreira Leite em seu texto “Ficção, biografia e autobiografia” (1993, p. 37), ao realçar que “apela-se para o testemunho de alguém, quando se está em busca da verdade ou querendo fazer algo parecer como tal”, e é este o objetivo da narrativa: questionar e fazer refletir sobre a história de Graciliano Ramos e ao mesmo tempo o desenvolvimento da história política e social brasileira.
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Este revisitar ao passado de Graciliano, Cláudio Manuel da Costa e Herzog, tem o intuito de exumar estes traumas da memória coletiva nacional e de lutar contra o esquecimento e o decalque, nas palavras de Renato Franco: de “lutar contra a repetição da catástrofe por meio da rememoração do acontecido” (2003, p. 356). Ou como sugere Lizandro Celegari, “a luta para se manterem vivas as lembranças do passado é importante para a definição do presente, mas também para a garantia de um futuro não ameaçador” (p. 185). Estes momentos traumáticos devem ser lembrados e relembrados como um sinal de resistência contra o poder totalitário a fim de libertar a coletividade das persistentes amarras do passado. Para que não ocorra o que o próprio Santigo denuncia em seu romance: “terminados os regimes fortes, terminam as críticas feitas pelos blocos e pelas grandes sociedades; fica só o carnaval na praça” (SANTIAGO, 1994, p. 159). Para a realização desse mapeamento histórico e político, todo o romance é cortado por uma aguçada crítica social feita através de divagações, diálogos e constante fluxo de consciência, que demonstram, muitas vezes, melancolia e fragmentação emocional e identitária da personagem. Essa fratura é causada pelas práticas de tortura sofridas e assistidas durante a detenção, bem como pela restrição de itens básicos de sobrevivência, pelo convívio intenso com a morte, a dor e a inanição: [...] Convivo com a adversidade como convivo com o meu povo. Machucado, pisado. Dolorido. É ela que explica estas marcas que me castigam e amargam de fel minha existência. Começar a compreender essa corrente humana que mais sentido me dá, mais eu sofro para poder romper os grilhões. Nada disso. Soltar o corpo, rejeitar a adversidade. Buscar a minha identidade em mim, frente a frente, face a face, corpo a corpo. Terei coragem de levantar-me desta escrivaninha, abrir a porta do armário, buscar o espelho e enfrentar a minha imagem refletida, para poder esquecer o passado impresso no corpo e prepará-lo para o futuro? Não me levanto. Ainda não. (SANTIAGO, 1994, p. 26-7).
Essa mesma fragmentação emocional pode ser percebida na dificuldade de articular as palavras e de organizar as lembranças, o que está “passando pela sua cabeça”, ou seja, em testemunhar o acontecido. Essa característica pode ser percebida no seguinte excerto:
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As construções linguísticas não se organizam de maneira racional na cabeça; saem frases com o ímpeto de uma rajada de vento, causando mais transtorno que harmonia. Se transcrevo o que sai – mero escriba de mim mesmo –, eu compreendo. Mas quem mais? Fico pensando em como deitar no papel, não as frases que brotam como capim depois da chuva, mas o que está passando pela minha cabeça desde ontem, como um sapateiro pesponta uma sola para que o sapato possa ser usado por uma outra pessoa. (SANTIAGO, 1981, p. 23).
Aos poucos Graciliano vai colocando para fora as dores e as angústias de se escrever e pensar sobre seu passado traumático, assim como também mostra como essa confissão velada funciona como uma válvula de escape, na qual Graciliano Ramos se alivia de seus temores e pensamentos, como é percebido no trecho a seguir: A liberdade circunstancial que experimento desde ontem é muito menos importante que a liberdade que descubro escrevendo essas páginas. Não estou preso, é claro; mais importante: não sou preso. Tiro o meu corpo da prisão dos homens e tiro a minha vida da cadeia divino-humana dos poderosos. Terei forças para continuar enfrentando os homens humanos que constroem celas e os homens divinos que tecem destinos? (SANTIAGO, 1994, p. 31, grifos do autor).
Como é possível perceber no excerto acima, Santiago vai tramando sua rede ficcional com constantes críticas a sociedade capitalista e despótica brasileira, para alargar sua apreciação o autor costura relações com outros momentos históricos – já citados anteriormente. Nesse sentido, ao inserir em seu enredo Cláudio Manuel da Costa, Graciliano Ramos e Wladimir Herzog, Santiago – que ainda escreve sob o regime da ditadura militar – se embrenha em realizar uma revisão de momentos problemáticos da história política brasileira, o que, por meio de muitas alusões, faz com que elementos biográficos do próprio Silviano Santiago sejam evidenciados, tais como o fato de seu irmão Haroldo, membro do Partido Comunista, ter sido preso e torturado durante o período da Ditadura Militar (SILVERMAN, 2000, p. 110). As relações com outros momentos da história se dilatam no tempo quando em determinado momento o próprio Graciliano Ramos tem um sonho no qual ele passa a ser Claudio Manuel da Costa, que havia sido encontrado morto por suicídio em 1789, durante a Inconfidência Mineira. Cláudio, no sonho, é vítima da astúcia de seus
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companheiros revolucionários e morto pelas autoridades portuguesas. Toda a noite do suposto assassinato é reinventada, rearticulada por Graciliano Ramos, mostrando como os fatos acerca de sua morte ocorreram, aproximando-os da morte de Wladmir Herzog, em 1975, durante a Ditadura Militar, como demonstra o fragmento a seguir: [...] onde conta que Cláudio se enforcou. [...] Acrescenta que foi encontrado “pendente de uma cinta”, com os pés em cima de uma “prateleira de cedro”. E conclui com este raciocínio lapidar, pela “extravagância” da versão do suicídio: “O introdorso escuro dos degraus de pedra nua não dava para as ataduras da cinta, nem para se ter o corpo em pé, quanto mais pendurado”. (SANTIAGO, 1981, p. 237, grifos do autor).
Com esse amálgama de tempos históricos, Santiago utiliza-se das personalidades históricas para mostrar que os fatos do passado se repetem continuamente no decorrer da história, particularmente na história brasileira, e evidencia que aquele que questiona o poder e a ordem instituídos sofrem duras consequências em épocas de autoritarismo. Com isso fazem-se coerentes as palavras de Bosi (1996, p. 29) ao afirmar que: “O diálogo com o passado torna-o presente. O pretérito passa a existir, de novo. Ouvir a voz do outro é caminhar para a constituição de uma subjetividade própria”, assim, Santiago reconstrói a subjetividade e a identidade de Graciliano por meio de uma rede de relações que caracteriza a identidade fragmentada e traumatizada de todos aqueles que sofreram e sentiram o pulso forte do poder. Neste ponto, Silviano Santigo beira àquilo que Antonio Candido defende como a representação do universal através do particular, tomando para tanto “o particular por excelência, que é a narrativa da própria vida” (CANDIDO, 2011, p. 63). Para isso, Santiago se embrenha na dupla jornada de relatar as experiências pessoais e da observação crítica do mundo, de modo que, utilizando-se de termos de Candido: a biografia se converte em “heterobiografia, história simultânea dos outros e da sociedade;” (CANDIDO, 2011, p. 67), como pode ser apreciado em: Penso em pessoas que sobreviveram ao que experimentei na cadeia e tento adivinhar o que estaria passando em suas cabeças e o que estaria acontecendo em suas vidas. Perco tempo a multiplicar o número de pessoas em estado semelhante ao meu. Faço-o com o intuito de minimizar a importância que querem dar à minha vida de perseguido
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político. Essa importância é o privilégio que serviria para diferençarme dos demais intelectuais brasileiros. São os meus amigos (e agora “companheiros de luta”) que querem agigantar o meu valor com o intuito de tornar-me líder, bandeira a arregimentar pessoas insatisfeitas com a perseguição aos comunistas, orientada pelos militares fascistas desde a revolução de 35. (SANTIAGO, 1994, p. 56).
O que também aproxima Em liberdade das teorias de Halbwachs, mostrando que nossas lembranças sempre permanecem coletivas, mesmo que estejamos sozinhos em determinadas situações nossas lembranças são construídas socialmente, é Memória coletiva, pois segundo o autor “nunca estamos sós”, sempre carregamos conosco e em nós “uma quantidade de pessoas que não se confundem.” (HALBWACHS, 2004, p. 30). Assim, a memória, em especial a memória do trauma, consoante a Seligmann-Silva (2008, p. 67), “é sempre uma busca de compromisso entre o trabalho de memória individual e outro construído socialmente”. A representação da sociedade brasileira se torna ainda mais genérica e problemática quando são levados em consideração os diferentes recortes históricos aludidos no romance: a Inconfidência Mineira, o Estado Novo e a Ditadura Militar, tal como se pode perceber em: Enquanto indivíduo que passa pela engrenagem sócio-econômica do Brasil de hoje, as alternativas do mercado de trabalho para mim são poucas e duvidosas. Vejo o peso da cadeia sobre uma vida; vejo o peso autoritário e discricionário sobre uma comunidade. Percebo, de maneira concreta, o que conseguem: o silêncio do indivíduo. Pior: o silêncio de muitos indivíduos ao mesmo tempo. Trágico: uma sociedade civil silenciosa. (SANTIAGO, 1994, p. 194).
Por meio dessas ponderações, as identidades e as vozes dos personagens vão sendo amalgamadas, de modo que não é possível discernir até que ponto é a personagem Graciliano Ramos ou seu autor Silviano Santiago quem está afirmando. Da mesma forma, essa identificação se faz com a figura de Cláudio Manuel da Costa, a qual ocorre de maneira explícita: “Tem de haver uma identificação minha com Cláudio, espécie de empatia, que me possibilite escrever a sua vida como se fosse a minha, escrever a minha vida como se fosse a sua” (SANTIAGO, 1994, p. 226), característica que se implica devido ao fato de Graciliano Ramos desejar escrever um livro em que
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reescrevesse a história de Cláudio Manuel da Costa (ato que Santiago realiza com a vida de Graciliano Ramos). Para Seligmann-Silva, teórico que se debruça sobre a narrativa de testemunho e suas implicações traumáticas, a melhor definição para o que a literatura, em especial a brasileira, apresenta é o um teor testemunhal (2003, 2005), que compreende aquelas “obras nascidas de ou que têm por tema eventos-limites” (2003, p. 8) e que possuem em seu foco a problematização da representação e a denúncia social. De acordo com o autor, a ficcionalização é imprescindível para falar sobre momentos limites, especialmente aqueles relacionados a momentos repressivos e autoritários, com traumas físicos e psicológicos, pois o próprio trauma não permite que se testemunhe de maneira completamente verdadeira. Por conseguinte, a ficcionalização do testemunho é uma forma de apresentar o texto como autêntico, de forma que o leitor é mobilizado como se o texto não fosse apócrifo (SELIGMAN-SILVA, 2003, p. 380). Nesta visão, o autor deve ter a capacidade de criar imagens, comparações e, principalmente, de “evocar o que não pode ser diretamente apresentado e muito menos representado” (p. 384). Essa é uma característica da redação de Em liberdade, em raros momentos as imagens do sofrimento, das torturas e das amarguras passadas na prisão são apresentadas, sobretudo, o que acontece é que elas são evocadas, apenas mencionadas para que o leitor produza sentidos a partir desse ‘convite’, tal como percebemos em: Quero que todo o meu corpo seja – agora e hoje – apenas um emaranhado pesado, denso e consistente de frases. Elas camuflam um corpo dolorido que não quer pensar nas dores sofridas que castigam os sentidos e a memória. Escrevo para não deixar que o meu corpo doente e massacrado exista, prossiga, influa, direcione, convença-me finalmente da sua importância e da sua riqueza para mim. (SANTIAGO, 1994, p. 22-23).
Para ratificar a autenticidade do testemunho, Luiz Costa Lima recusa a existência de uma unidade ou a coincidência entre a pessoa do autor e seu nome próprio inserido no texto autobiográfico, uma vez que ao se exteriorizar o indivíduo, com toda sua complexidade psicológica, cria em torno de sua imagem uma “carapaça simbólica”, a persona, a qual se socializa (se relaciona consigo mesmo e com os outros), mas só se constitui completamente quando assume um papel (1991, p. 43). Assim, mesmo que
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Silviano Santiago pretendesse escrever uma (auto)biografia não ficcional, esta seria realizada de forma romanceada. Por consequência, pode-se tomar o papel de Graciliano Ramos como uma máscara simbólica ou um simulacro de Silviano Santiago, pois o texto memorialístico ou autobiográfico desponta com implicações diretas do enfoque da persona. Como já assinalado, Santiago escreve ainda sob a influência repressiva da Ditadura Militar e, por esse motivo, em muitos momentos pode-se perceber que a persona (autor empírico) se confunde com o papel (a personagem criada). Como podemos ver em: “Transferi o lugar das minhas desavenças para a folha de papel, assim como o político progressista no Brasil deve transferi-lo para a arena política.” (SANTIAGO, 1994, p. 76). O que mais uma vez nos faz lembrar as palavras de Dante Moreira Leite: “Ao inventar, o criador se revela, e essa revelação seria impossível se fosse tentada no domínio consciente, dentro de estreitos limites da lógica e da racionalidade, pois o criador resistiria à devassa de seu mundo interior” (1979, p. 26). Assim, ao mesmo tempo em que Silviano Santiago desvela as discórdias sociais e políticas de Graciliano Ramos, também expõe as suas próprias de modo profundo e camuflado: O desejo de ter uma voz, na presente situação, passa a ser negativo, por mais paradoxal que isso possa parecer a qualquer outro habitante do planeta Terra. [...] É preferível, então, calar-se. Encontro os meus companheiros de luta no silêncio. Em silêncio, trabalhamos; com o silêncio, ganhamos o nosso sustento; pelo silêncio, exprimimo-nos. (SANTIAGO, 1994, p. 194-195)
Como se buscou mostrar, a literatura brasileira escrita após o Golpe Militar de 1964 se configura como uma seara intensamente produtiva, na qual despontam problematizações a respeito das verdades históricas e do passado brasileiro de abuso, repressão e autoritarismo. O romance memorial, especialmente, por apresentar seu caráter de testemunho e as implicações da memória individual e coletiva, desponta como um dos gêneros mais mirados e profícuos do referido período. Através deste gênero romanesco, o presente trabalho expõe como as fronteiras entre a história oficial são emaranhadas ao relato ficcional e como a memória pessoal é constituída pelo social
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e determinada pela situação histórica, o que permite que ocorra um repensar sobre o ato de testemunhar e de escrever sobre momentos traumáticos. Por meio de uma breve análise do romance Em liberdade, do professor e escritor Silviano Santiago, mostra-se uma das muitas facetas que a literatura desta época tomou e pôde-se depreender que o romance memorial, também denominado de autobiografia semificcionalizada, se configura como um espaço privilegiado para o protesto e a revelação de momentos conturbados, no qual a memória individual se enlaça à memória coletiva em prol da denúncia, da resistência e do não esquecimento. Finalmente, em Em Liberdade, Silviano Santiago assume o papel de diferentes personagens para melhor representar o seu papel de crítico e intelectual brasileiro em momentos de censura e repressão política. Sua obra intenta o recordar crítico das incongruências do passado brasileiro – expor as cicatrizes de períodos em que os direitos humanos e democráticos foram deixados de lado e cederam espaço à repressão, à censura, ao abuso e à tortura – a fim de não permitir que o esquecimento deixe portas aberta às repetições do passado. REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. revista. São Paulo: Brasiliense, 2012 - (Obras escolhidas v. 1). BOSI, Alfredo. “O tempo e os tempos”. In: NOVAES, Adauto. Tempo e história. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. CALEGARI, Lizandro. “Trauma e memória em Batismo de sangue, de Helvético Ratton”. In: CUNHA, João M. S.; NEUMANN, Gerson R.; OURIQUE, João Luis P. (Org.). Literatura crítica comparada. Pelotas: Ed. Universitária PREC/UFPEL, 2011. p. 183 - 200. CANDIDO, Antonio. “Poesia e ficção na autobiografia”. In: ______. A educação pela noite. 6. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011. p. 61-83. HALBWACHS, Maruice. A memória coletiva. Trad. Laís Teles Benoir. São Paulo: Centauro, 2004. FRANCO, Renato. “Literatura e catástrofe no Brasil: anos 70”. In: SELIGMANNSILVA, Márcio (Org.). História, memória, literatura: o testemunho na Era das Catástrofes. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.
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O TRICKSTER E A SOBREVIVÊNCIA DA CULTURA EM MAÍRA, DE DARCY RIBEIRO Tiago Oliveira (UEM) Maíra é uma das obras ficcionais do antropólogo, ensaísta, romancista e político Darcy Ribeiro. Lançado em 1976, o romance é visto como um sucesso obtido na migração da ciência para a ficção sem perder o pé em nenhuma das pátrias (BOSI, 2007, p. 387). O estudo que ora se apresenta visa identificar aspectos da figura mítica do trickster presentes neste romance. Antecipando uma das definições apresentadas, o trickster é uma figura mítica recorrente na cultura indígena, tendo também correspondentes em diversas tradições religiosas mundiais (FELDMAN, 2011, p. 48). A análise está alicerçada em produções acadêmicas que têm por objeto principal a literatura de autoria indígena norte-americana. Consideradas as devidas diferenças, a identificação das semelhanças entre as distintas mitologias forma o horizonte da pesquisa, sendo consideradas as narrativas míticas acerca das personagens Maíra e Micura como o recorte da pesquisa. Confessada a predileção por este dentre outros romances que escreveu, Darcy Ribeiro o vê como uma “reconstituição literária da etnologia indígena” (RIBEIRO, 2007, p.22), na qual é possível aprender sobre a cultura dos povos nativos do Brasil e das Américas. O romance Maíra é estruturado de forma que propicie o exercício memorial do encontro entre a tribo mairum e a civilização colonizadora. A obra é constituída por quatro partes que remetem à liturgia da missa católica: Antífona, Homilia, Canon e Corpus. Dentro de cada uma das partes há o revezamento de vozes entre um narrador heterodiegético mais ou menos onisciente, o indígena catequizado Isaías, representantes do estado, a jovem urbana e perdida, Alma, dentre outras interessantes personagens como o sincrético religioso Xisto. Em Maíra são justapostos três setores que se interpenetram: o do índio, o do branco e dos seres sobrenaturais (CANDIDO, 2007, p. 383). Portanto, os mitos indígenas são parte indissociável da economia da narrativa. A extensa vivência de Darcy Ribeiro como antropólogo o credencia a transitar neste universo e, a partir disso,
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construir um arcabouço mitológico que é mais importantes elementos formadores da obra, haja vista a afirmação que faz ao prefaciar a 21ª edição do romance: Não tive nenhum escrúpulo em misturar mitos, lendas e contos de tantos povos, Mesmo porque conheço bem meus índios. Sei que eles não têm nenhum fanatismo da verdade única. [...] Estou certo de que qualquer índio brasileiro, lendo a mitologia inscrita em Maíra, a achara perfeitamente verossímil. (RIBEIRO, 2007, p. 22)
Assim, os mitos existentes em Maíra sintetizam as ligações que o universo mítico mantém com a realidade cotidiana das comunidades nativas. O autor (idem) corrobora com a existência de tais ligações e critica: “os cientistas despedaçam, desarticulam a realidade, para apresentá-la em tópicos, como se houvesse uma mitologia, uma arte, uma religião separadas dos outros componentes da cultura”. Campbell (2004, p. 58), por sua vez, considera que toda mitologia “tem a ver com a sabedoria da vida, relacionada a uma cultura específica, numa época específica, integra o indivíduo na sociedade e a sociedade no campo da natureza”. Desta forma, é evidente que as narrativas míticas de Maíra são mais que condicionantes de belas imagens (embora os efeitos de plasticidade que emprestam à obra sejam de fundamental importância), pois existe uma ligação de interdependência entre os mitos e o modo de vida do povo mairum. A observação da cosmogonia indígena presente nos mitos do romance requer alguns cuidados. Os filtros da cultura do intérprete podem ocasionar visões distorcidas, centradas numa perspectiva de binarismos já cimentados na cultura da civilização. Em sua especificidade, o trickster possui “matizes culturais que muitas vezes podem escapar aos leitores acostumados com obras escritas pela cultura dominante” (FELDMAN, 2011, p. 48). Dada a sua recorrência, essa figura mítica cristalizou algumas características que aparecem na mitologia nativa de diversos povos. Sendo que a sua condição metafórica é um dos matizes de maior importância. The trickster is a trope, the wild figuration of shamanism, sovereignty, and survivance in many native stories. Trickster stories are the tease of creation, a ruse of manners, causes and connections in native literature (VIZENOR, 1998, p. 91)
Com frequência, o termo trickster é também livremente traduzido pela palavra “embusteiro” (SMITH, 1994). Esta figura mitológica caracteriza-se como “um deus,
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deusa, espírito, homem, mulher, ou animal antropomorfizado, [...] que prega peças, desobedece, quebra regras do universo, dos humanos e de outros deuses ou deusas” (FELDMAN, 2011, p. 48). De forma mais ou menos reconhecível, aparecendo em lendas onde figura como protagonista ou misturado a outros mitos, o trickster se revela dotado da capacidade de perpetuar-se como elemento presente em narrativas de culturas que guardam grandes diferenças entre si. The Trickster myth is found in clearly recognizable form among the simplest aboriginal and among the complex. We encounter it among the ancient Greeks, the Chinese, the Japanese and the Semitic world. Many of Trickster’s traits were perpetuated in the figure of the mediaeval jester, and have survived right up to the present day in the Punch-and-Judy plays and in the clown. Although repeatedly combined with other myths and frequently drastically reorganized and reinterpreted, its basic plot seems always to have succeeded in reasserting itself. (RADIN, 1988, p. 09)
Segundo Feldman (2011, p. 49) o trickster está “imerso em dois níveis, como os mitos: eles são a história. Mas também eles são a linguagem” (FELDMAN, 2011, p. 49). Já a definição de Gerald Vizenor (“a trope”) sustenta a dimensão do ser que existe e permanece por meio da linguagem. Segundo o novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (2009, p. 2000) a palavra “tropo” significa o “emprego de palavra ou expressão em sentido figurado”. Além de aparecerem nas figuras dos protagonistas ou coadjuvantes das narrativas, as características do trickster também “operam no nível da escrita, presentes nas fórmulas e na pluralidade de sentidos da narrativa” (FELDMAN, 2011, p. 49). As histórias de trickster têm o papel de divertir, mas também de instruir e de comunicar valores sociais: Frequently, a well-told American Indian story is not entertainment; it might be essential to a healing or other ceremony or it might be a teaching opportunity, both uses being well grounded in the American Indian belief in the power of the word. (BALLINGER, 2004, p. 10).
Muitas destas histórias são contadas em situações pré-determinadas, como parte do protocolo tribal, “porque só podem ser contadas em certas épocas do ano e sob certas condições” (CAMPBELL, 2004, p. 56). Sabe-se também que a oralidade é um dos elementos culturais que contribuem para a manutenção da cultura nas comunidades indígenas. De geração em geração, por meio das lendas já cristalizadas no imaginário coletivo da tribo, os valores, as tradições e os códigos morais são perpetuados. Os mitos nos quais figura o embusteiro permaneceram na cultura indígena por meio da oralidade,
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portanto, a este fator estão intrinsecamente ligados. Será equivocada a leitura que, em virtude de um mal ajuste das lentes de observação do intérprete, desconsidere a oralidade como um elemento fundamental das tradições indígenas. Past translations of American Indian stories often aimed to convey only literal content and cultural context without considering how the storyteller might have shaped the story artistically. This approach led not only to dreary translation but also to translations that largely ignored American Indian storytelling aesthetics. (BALLINGER, 2004, p. 11)
Dentro do recorte proposto, inicialmente, são abordadas as características que têm relação com a forma física das figuras míticas. A antropomorfização é constantemente encontrada nas histórias das divindades: “Maíra e Micura nasceram paridos como gente no meio dos mairuns [...].” (RIBEIRO, 2007, p. 150). Entretanto, diferentemente de algumas das lendas norte-americanas, onde geralmente têm uma forma fixa, por exemplo, a do coiote, os embusteiros do romance do antropólogoescritor tomam outras formas da natureza: “Muito tempo esteve Maíra gozando naquele ser esgalhado, folhento, o sentimento de ser árvore. [...] Maíra era, agora, a selva selvagem [...]. Por tempos e tempos, Maíra verdejou [...]” (ibidem, 2007, p. 147). Adicionadas as características relativas ao contexto cultural de onde emergem os mitos, os traços animais são muito comuns aos tricksters e tal conformação pode ser observada no sentido de que a ordem social humana seja vista como parte da natureza e a natureza seja parte da humanidade. (BALLINGER, 2004, p. 69). Assim, as divindades gêmeas transitam em diferentes espaços, sempre aguçando os sentidos por meio dos elementos da natureza. Ainda em relação à forma física, algumas características humanizam o ser mítico, colocando-o em diversas vezes no mesmo patamar dos homens: “Maíra-Coraci, o Sol, e seu irmão Micura-Iaci, a Lua, descem às vezes cá embaixo para brincar de gente. Mas principalmente para sentir o mundo no corpo e no espírito mairum” (ibidem, 2007, p. 209). O encontro da divindade com a forma e o comportamento humanos evidencia o trickster como ocupante de entremeios de dicotomias cimentadas na cultura ocidental dominante: corpo e espírito, terreno e divino, etc. Despite their variety they share a few significant traits that are worth preliminary discussion. Perhaps most mystifying to the rigid dichotomies of
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Modern cultures, with their inflexible distinctions between body and spirit, human and divine, what are tricksters, people or gods? (MELAND, 2002, p. 03)
Feldman (2011, p. 53) aponta que a “maioria das histórias indígenas mostra o trickster do gênero masculino, com seus motores de ação geralmente acionados por gula, luxúria, vaidade, entre outros”. Algumas vezes, tais matizes tendem sempre a salientar as diferenças entre as sociedades do branco e do índio. É caso da sexualidade: “Maíra e Micura, que também tinham suas picas, entraram na fodeção geral com muita alegria.” (RIBEIRO, 2007, p. 177). É importante notar que não se pode perceber algum moralismo remetente ao modo cristão de compreender a sexualidade. Pelo menos no tocante ao prazer sexual não há qualquer tipo de condenação. Transitando sempre no entremeio entre o humano e o divino, o certo e o errado, o trickster parece sempre agir diante da observação de um conjunto de regras próprio. Às vezes se encontravam com uma pessoa ou com um bicho que, reconhecendo-os, pediam alguma coisa. Eles davam, mas era sempre com malícia. A uns que queriam ser bonitos Maíra fez clarinhos mas muito fedorentos, são os caraíbas. A outros que quiseram tostara pele num moreno dourado, Maíra fez negros como tições (ibidem, p. 151).
O trickster, ocupante das fendas nos binarismos encontrados no horizonte da cultura dominante, é materializado no plano da forma. Isto é verificado nos capítulos onde há uma espécie de intersecção das vozes das divindades com as de outras personagens do romance, por exemplo, em “Micura: Canindejub”, no qual o deus incorpora-se por meio da personagem Alma. Neste, e em outros capítulos de semelhante processo, há uma espécie de necessidade da divindade em ganhar a forma de gente: “[...] saudade do nosso tempo de gente, entre gentes” (RIBEIRO, 2007, p. 313); e é por meio da linguagem que se materializa a busca por fazer-se gente: “[...] agora fala, fala que eu ouço, a isto vim escutar. Fala meu bem.” (ibidem, p. 14). Dessa maneira, a transitoriedade entre deus e homem é expressa pela alteração na categoria do narrador. O segundo elemento característico analisado diz respeito ao fato de que o embusteiro, na maioria das vezes, está ligado ao humor, à ironia e algumas vezes ao grotesco. No romance, as passagens bem humoradas protagonizadas por Maíra e Micura, além de estabelecerem um contraponto com a melancolia expressa nos monólogos sôfregos do protagonista Isaías, evidenciam a ligação entre o comportamento dos deuses e o modo de vida mairum. “Laughter, humour and irony
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permeate everything Trickster does. The reaction of the audience in aboriginal societies to both him and his exploits is prevailingly one of laughter tempered by awe” (RADIN, 1988, p. 10). O comportamento dos deuses gêmeos possui certo grau de ludicidade, com brincadeiras, algumas das vezes consideradas perigosas. A ironia por sua vez, encontrase por diversas vezes como uma lógica que subjaz a narração das histórias em que figuram os embusteiros. O modo de vida mairum tem no humor e na risada um dos elementos conformadores da identidade coletiva tribal. É o embusteiro que funda esta face do modo de ser mairum: “Começou, então, a rir um pouquinho, aprendeu bem e se abriu numa gargalhada gostosa”. Fora da narrativa mítica, nos monólogos de Isaías, o papel do humor e do riso na conformação cultural indígena se evidencia: “Nós os mairuns somos os que riem. Rir é nosso modo de ser, de viver. Preciso reaprender a rir. Uma cara dura, séria, entre nós, é uma espécie de ofensa a toda gente.” (ibidem, p. 71-72). Numa esfera didática, o humor possui funcionalidade social: ”Humour has been seen to provide relief from painful affect, channel antisocial drives, maintain social order, improve relationships [...]” (FERGUSON, 2002, p. 17). O trickster revela mais uma face de sua configuração como metáfora da resistência e manutenção da cultura, pois há sempre um elemento moral que tem como pressuposto a manutenção da vida coletiva. A quebra de regras por parte do embusteiro é a terceira nuance analisada na representação das divindades em Maíra no qual duas dimensões deste mesmo fato são apresentadas. A primeira faz ligação dos delitos com a conduta do indivíduo que se desajusta socialmente do grupo e por isso tem que arcar com as conseqüências, por exemplo, as perigosas brincadeiras que faziam com que os índios os vissem como um mal a ser afastado. A segunda é aquela em que a quebra de regras, mudam o jogo de forma permanente e estabelece o mundo tal qual é. O capítulo denominado “Maíra-Monan” demonstra esta ambigüidade em torno da quebra de regras na conformação da figura do trickster. Maíra, mentor intelectual da dupla, decide que é necessário saquear o povo Jurupari, os preferidos de Mairahú - o Deus Pai - e tomar à força a escuridão da noite para que os mairuns possam descansar.
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Querem também a flauta jacuí, para que possam dançar. Tudo sai como planejado até que Micura resolve tocar um dos instrumentos: Levou um safanão estremecedor, tremendo, como o raio de dez piraquês juntos, que o lançou frouxo no ar, e depois estrebuchando dentro d’água. Os juruparis, pensando que era Maíra, caíram em cima dele para estraçalhar. Foi aquela agitação de águas borbulhando sangue. O que restou de Micura ficou boiando brancoso como uma pasta molenga de mandioca puba” (ibidem, p. 192)
Por ter tomado a atitude errada no momento errado, Micura é estraçalhado pelos ferozes juruparis. Mesmo na condição de uma entidade divina, o trickster é confrontado pelas conseqüências de seus atos. “Repeatedly, a trickster confronts and crosses social boundaries whit little thought of consequences.” (BALLINGER, 2004, p. 71). Paradoxalmente, este trecho da narrativa apresenta a outra face da quebra das regras já estabelecidas. Em suas subversões, fundam o modo de vida da tribo, atentando contra o poder estabelecido pelo Deus-Pai, em benefício de seu povo querido. Neste episódio, após refazer Micura e deixar apavorados os juruparis, Maíra, na companhia de seu irmão, saqueia os domínios de seus adversários e de lá traz o que será, posteriormente, a base da alimentação dos mairuns: De lá trouxeram, para os mairuns, mudas de muita planta de fruta, de semente e de batata, as melhores para comer cruas, cozidas ou assadas. [...] Assim foi que os mairuns tiveram mudas e sementes para plantar mandioca, banana, milho e amendoim. Os velhos gostavam muito. Nós gostamos até hoje. (RIBEIRO, 2007, p. 193).
São as grandes mudanças provocadas por Maíra, com a ajuda de seu irmão gêmeo Micura, que delimitam diversos aspectos do modo de convivência dos mairuns. Faz parte de suas personalidades de embusteiro quebrar regras, ultrapassando fronteiras morais. Mas isto nem sempre desencadeia uma visão negativa do fato. O mundo visto no tempo presente dos mairuns é um resultado das ações transgressoras do trickster: “Nós gostamos até hoje” (idem). Nota-se que o uso de primeira pessoa do plural, pressupõe uma identificação coletiva sempre presente na narrativa acerca dos embusteiros, validando-as como histórias fundacionais da cultura da tribo. As quebras de regras e estabelecimento de novos limites estão aplicados na proteção e melhoria das condições de vida da comunidade protegida por seus deuses. O mundo dos mairuns surge da sua vontade de transformações: “O mundo de Mairahú, meu pai, é feio e triste. Não é um mundo bom para a gente viver. Podemos melhorá-lo” (ibidem, p. 163). Em
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outro episódio, após conseguir roubar o fogo do Urubu-Rei, a resposta dada por este: “Fiquem com o fogo vocês, mairuns [...]” (ibidem, p. 164), mostra os deuses como parte da tribo. Isto que não impede a manifestação da personalidade jocosa quando da oferta do mel aos homens: “Pôs o mel no oco do pau e no fundo do cupinzeiro e cercou tudo de abelha e marimbondo. Riu e disse: _ Quem quiser comer melzinho doce vai encontrar dificuldade vai ter que trabalhar” (idem). Portanto, reside nesse aspecto, que é ao mesmo tempo transgressor e criador de novas formas de realidade, um dos mais importantes elementos de ligação entre o mito e a cultura indígena. “To complicate matters more, as tricksters violate the limits of social law and propriety, they also commonly establish such boundaries in a positive way” (BALLINGER, 2003, p. 65). Cada peça que forma o mosaico do modo de vida dos mairuns tem sua origem nos mitos que, dentro da visão da cosmogonia nativa, desfrutam do mesmo status que a realidade. A manutenção dos costumes dá vida ao mito, fazendo com que a narrativa seja constantemente reverberada em meio aqueles que deles comungam. Por isso, os valores em torno da figura do trickster (e da mitologia como um todo) encontram-se, diferentemente do que se vê na sociedade conquistadora, em perene ressonância. “We have seems that tricksters are often transformers who alter a prexisting or recently created world so that it becomes the familiar world we live in.” (ibidem, p. 68). Esta dimensão da mitologia, organizadora da vida social da tribo, pode ser verificada dos triviais aos mais importantes estabelecimentos das regras que desenham a cultura do povo mairum: Foi naquela ocasião também que Maíra inventou o pecado: dividiu a aldeia em metades, a do nascente e a do poente, e mandou que os de uma banda se casassem com outra. Organizou as famílias e ensinou as palavras próprias para diferenciar os parentes. [...] Tudo isso para gente se comunicar sem se isolar. Cada um de nós, desde então, tem de buscar suas trepadas longe de casa. Lá é proibido. Incesto! (RIBEIRO, 2007, p. 178)
Aqui se vê o tabu do incesto, poderoso operador da organização social da maioria dos grupos humanos, tendo sua gênese entre os mairuns por meio da ação do trickster. Sua perpetuação é sinal da permanência do mito como força atuante na sociedade indígena.
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A quarta caracterização do trickster encontrada em Maíra faz menção à sua imortalidade. O embusteiro é a figura da eternidade, da sobrevivência da cultura de um povo: “The trickster is immortal” (VIZENOR, 1988, p. 10). Ele é a metáfora do desejo de se perpetuar uma cultura que, por sua vez, “supõe uma consciência grupal operosa e operante que desentranha da vida presente os planos para o futuro” (BOSI, 2001, p. 16). A imortalidade do trickster está presente no romance, como no episódio onde Micura é estraçalhado pelos juruparis e em seguida refeito por seu gêmeo criador.
Esta
capacidade de recuperar o que está desfeito permeia toda a narrativa mítica e também está em outros fios narrativos dos quais se constrói a obra. “O trickster engana a própria morte, renascendo na próxima história [...] se ele morre, seu retorno na próxima história é certo.” (FELDMAN, 2011, p. 55). Diante das lamúrias de sua gente, Maíra se vê confrontado com a possibilidade de que seu povo seja eliminado pelo avanço da fronteira civilizatória. Mas a cultura, o modo de vida do qual é metáfora, terá continuidade, diluída em outros modos de vida, em outros povos que virão a ser formar como resultado do encontro de sociedades tão diferentes entre si: “Agora é tarde. Só resta conformar e meu povo nos outros encartar. [...] Eles são minha sementes lançadas para aos mais apimentar. Por eles, grão do meu gozo de viver, eu no mundo hei de ficar” (RIBEIRO, 2007, p. 332). Assim, sobrevivência da indígena estaria na própria conformação do povo brasileiro, portador de genes nativos, culturais e biológicos. No romance, vêem-se alguns exemplos, tendo como o mais destacado deles o mestiço Juca. Já o nascimento dos gêmeos numa praia do Iparanã, mostrado pelo relatório oficial que inaugura a narrativa por meio do recurso da analepse, reverbera a mitologia dos deuses gêmeos de forma simbólica. Olhando para a arquitetura da narrativa, dentre os capítulos subseqüentes ao monólogo em que a divindade chega a se perguntar: “Que Deus sou eu? Um Deus mortal?” (idem), encontra-se o capítulo “Tuxauareté” (ibidem, p. 367), fechando o fio em que são descritos os ritos mairuns que se iniciam na morte de seu chefe Anacã. Neste capítulo, lê-se o ritual de consagração de Jaguar, como novo tuxaua, chefe guerreiro da tribo. O rito demarca o desejo de continuidade de um modo de coexistência social, a busca pela sobrevivência da cultura.
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A antropofagia antecipada pelo título Corpus, última parte da estrutura litúrgica que forma a obra, remete ao corpo e o sangue de Cristo que deverá ser comido e bebido por todos (SANTOS, 2009, p. 386). A cultura indígena, deglutida neste processo antropofágico será “encartada” em outros povos, mestiços resultantes de parte do processo histórico de formação do povo brasileiro que é modalizado na criação literária de Darcy Ribeiro. Por fim, identificar em Maíra os exemplos da recorrência do trickster entre as mitologias das sociedades nativas corrobora com as revisões que “representam interpretações novas, centrífugas, não previstas pelas normas das narrativas históricas canônicas” (SOUZA, 56, p. 51). Desta maneira, a dinâmica do embusteiro parece também operar no plano da escrita literária. Ao evocar o aparentemente esquecido, o autor constrói novos mecanismos e pressupostos de leitura. Desse modo, a narrativa frontalmente se choca com aquela que é contada pela historiografia dos colonizadores, operando a partir de outro local e a partir de outra visão de mundo. Darcy Ribeiro, perspectivado como um escritor pós-colonial é visto de maneira aproximada ao embusteiro que, na função de mediador entre a norma divina e a profana, quebra o entronamento de uma linguagem do colonizador, postulando novos modos de ver a história por meio do romance. Simultaneamente, o escritor pós-colonial é elo entre a “norma/logos da cultura colonizadora e da cultura colonizada, entre a visão triunfante e normativa da história colonial dominante e as narrativas mitológicas dos colonizados.” (ibidem, p. 48). O elemento mítico do trickster ressalta a dimensão mediadora da linguagem, permite ao leitor que enxerga sua sobrevivência nas narrativas literárias a compreensão da transitoriedade das verdades estabelecidas, abrindo sempre novos horizontes de leituras e reflexões. Sua recorrência aponta para uma intertextualidade que demonstra a imanência de valores comungados por diversas sociedades que são participantes do choque entre mundos aparentemente inconciliáveis. Referências BALLINGER, Franchot. Living Sideways: tricksters in American Indian oral tradition. Norman: University of Oklahoma Press, 2004.
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ENTRE LINHAS E RINHAS: AS CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS NO FOLHETIM PULP DE ANA PAULA MAIA
Vagna MENDES (PG –UENP/CJ)
“Dos escombros de nosso desespero construímos nosso caráter” Ralph Waldo Emerson Introdução A subjetividade e o fragmentário são algumas das características que definem a prosa literária recente. Com as rupturas e as variações de estilos que as narrativas apresentam, podemos considerar os postulados do teórico Manuel da Costa Pinto (2004) ao considerar essas mudanças como um entre-lugar que nos dá a ideia de uma ficção plurissignificativa e de uma liberdade individual do sujeito moderno, pois, para o crítico, o sujeito de hoje “[...] nasce com a cidade e se materializa em formas literárias que transitam entre os registros memorialístico, realista, metafísico, escatológico, fantástico e satírico” (PINTO, 2004, p. 84). Essas diferentes possibilidades dão lugar a um novo modelo de “imprensa”: a internet; é nela que jovens escritores encontraram um meio prático, rápido e eficaz de divulgação do texto literário, daí a era das multiplicidades ser uma das características1 marcante apontadas por Resende (2008) em relação à literatura contemporânea. O crime, a violência, a corrupção e a miséria constroem o cenário social preocupante e de degradação em solo brasileiro, oferecendo uma nova imagem à literatura brasileira recente. Assim, os escritores dessa nova geração – a partir dos anos 90 – retomam formas e temas de décadas anteriores para (re)construir a paisagem atual 1
Em Contemporâneos, Beatriz Resendefaz algumas observações acerca dos meios de divulgação que os jovens escritores encontram para que seus trabalhos sejam lidos: o uso do computador; o texto é escrito no computador e divulgado primeiro em sites e blogues.
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e real da sociedade através de frases fragmentadas e objetivas, diálogos velozes, o emprego de gírias, a presença do humor e da ironia juntos, o cotidiano banal, etc. Escritores desde a geração dos anos 90 até os dias atuais apostam nos temas que expressam de maneira radical às relações pessoais do ser humano e buscam representar sua vida pública inseridos no cenário urbano sob uma perspectiva angustiante e paradoxal do presente. Seguindo essa linha, escolhemos Ana Paula Maia e sua obra Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (2009) como objeto de estudo desse trabalho. Ana Paula Maia e sua obra A jovem escritora Ana Paula Maia nasceu em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, no ano de 1977. Escreveu os romances O habitante das falhas subterrâneas em 2003, o primeiro folhetim pulp da internet no Brasil, Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, no ano de 2006 em seu blogue e, mais tarde, em 2009, a publicação impressa pela editora Record, A guerra dos bastardos (2007), publicado também na Alemanha, em 2013, Carvão animal (2011) e De gados e homens (2013). Tem participação em diversas antologias de contos, nacionais e estrangeiras. Especificamente a obra Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (2009), é dividida em duas partes ou duas novelas, como a escritora define. A primeira novela, também intitulada com Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos, é composta de cinco capítulos. Narra a saga de dois homens, Edgar Wilson e Gerson, que trabalham como abatedores de porcos. Tem como diversão apostar em rinhas de cachorros nas noites de folga. Edgar Wilson e Gerson são dois amigos que tem em comum, além da dedicação pelo mesmo trabalho, a indiferença pelas circunstâncias miseráveis em que se enquadram na sociedade, pois, para eles tudo aquilo que sobra do que os cercam importa muito pouco ou não importa nada. A segunda novela, O Trabalho Sujo dos Outros, é organizada em sete capítulos e narra a história de homens que recolhem o lixo, quebram o asfalto e desentopem caixas d’água e esgoto. Todos esses personagens estão ligados por um círculo de amizade e/ou de parentesco. Erasmo Wagner, coletor de lixo, leva uma vida difícil e pobre. Para
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aumentar o ordenado mensal da casa, ele vende leite retirado de suas duas cabras criadas no quintal. No decorrer da história, os coletores de lixo decidem fazer uma greve geral e a cidade inicia um processo de degradação, mergulhada num cenário imundo e de podridão. Após a greve, encerra o último capítulo com a volta de Erasmo Wagner em seu emprego como catador de lixo. Diante das inúmeras possibilidades de estudo que a obra em questão nos permite, optamos, neste trabalho, por realizar reflexões e apontamentos sobre as questões da identidade dos personagens Edgar Wilson e Erasmo Wagner, considerando que tais presenças estão inseridos num espaço marginal. Antes, porém, de mergulhar especificamente na análise dos personagens dentro da obra, faremos uma breve mensão aos textos teóricos dos estudiosos Boaventura de Souza Santos (1993) e Stuart Hall (2003) porque trazem significativos posicionamentos à respeito das questões da identidade moderna e, por isso, servirão de base para a proposta desse estudo mais adiante. Edgar Wilson e Erasmo Wagner: identidades em curso Pensando primeiro nas construções culturais do indivíduo, os textos de Boaventura de Souza Santos (1993) trazem posicionamentos bastante relevantes para os estudos da identidade em questão. Para o estudioso, a identidade está ligada à subjetividade. Não muito diferente dessa perspectiva, o texto de Hall (2003) também considera a subjetividade o ponto forte para a identificação do sujeito humano. A questão de identidade do sujeito na modernidade, em ambos os textos, e o processo de identificação, fazem parte de rupturas no contexto social, cultural e político que a globalização influenciou. Não cabe aqui contextualizar todas as observações feitas pelos teóricos, visto que o objeto de pesquisa de ambos os críticos retomam valores correspondentes ao processo da história política, cultural, social e filosófica desde o iluminismo até os dias atuais. Vale ressaltar que Boaventura (1993) pautou-se nas questões relacionadas às manifestações culturais da identidade do povo português e de língua portuguesa. Faremos referência apenas a duas tensões assinaladas em comum nos textos a respeito
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da subjetividade que liga às possíveis construções identitárias do sujeito homem: a subjetividade individual e a subjetividade coletiva, assim definida para Boaventura (1993), e a subjetividade local e a subjetividade global denominadas por Hall (2003) e, com isso, situaremos o discurso diante dessas constatações. O modelo de subjetividade individual ou local é contextualizado, de modo geral, pelo “eu” no mundo globalizado e tende, a partir de sua história de vida desde o nascimento, a mudar dependendo das circunstâncias. É a partir disso que surge uma nova forma de individualidade que, por conseguinte, dá a ideia de subjetividade. Por outro lado, a subjetividade coletiva ou global, faz com que esse mesmo indivíduo seja um modelo universal, em outras palavras, o “eu” inserido em tempo e espaços não definidos, que contribuem para a construção do bem social; é, então, o indivíduo em ação para produzir mudanças no contexto em que está inserido. Dentro dessa perspectiva, podemos depreender que as personagens de Ana Paula servem como exemplos dessas representações identitárias e merecem destaque por estarem introduzidos numa esfera marginal de uma sociedade desigual e desumana. Personagens desse tipo podem ser identificadas como pessoas comuns, sozinhas, por exemplo, os personagens Edgar Wilson e Erasmo Wagner, que são inseridos num lugar – o da ficção, no caso - para exercer uma determinada função, a do trabalho braçal e brutal. Contudo, essas personagens não devem ser vistas como únicas, pois elas se comportam de maneira diferente diante de uma sociedade seletiva e ainda conservadora, pois elas matam. Todavia, devemos pensar que esses dois modelos não são únicos e nem estáveis e tampouco devem ser estudados separadamente, uma vez que os conceitos agregados em um diferenciam dos conceitos agregados do outro, porém os mesmos conceitos que se negam permitem uma descontextualização (Boaventura) ou um deslocamento (Hall) que, em contrapartida, formulam o ser paradoxal que liga a subjetividade à linguagem abstrata de hoje. Pensar então que Edgar Wilson e Erasmo Wagner são exemplos desse entrelugar, o de ser e de existir, pois são personagens/indivíduos que, num primeiro momento, são representados apenas por simples trabalhadores que executam suas tarefas sem reclamações, seja um modelo de abatedor de porcos ou um modelo de
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funcionário público que faz “o trabalho sujo dos outros”, é também pensar que ambos estão dentro de um contexto de inversão de valores; aquilo que parece ser um trabalho comum toma uma dimensão maior para descontextualizar o indivíduo inserido numa sociedade da qual não reconhece mais seus valores. Tomando como base o argumento de Ernest Laclau sobre a estrutura deslocada que hoje define o caráter da sociedade, Hall emprega em seu texto o seguinte trecho: “[...] são caracterizadas pela “diferença”; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes “posições de sujeito” – isto é, identidades -para os indivíduos” (HALL, 2009, p. 17). Esta constatação pode ser ponto de partida para algumas considerações acerca da construção identitária das personagens Edgar Wilson e Erasmo Wagner nas novelas de Ana Paula Maia. Edgar e Erasmo são dois sujeitos que desestabilizam as estruturas centrais da sociedade atual, pois seria ingênuo dizer que eles são personagens simples, que exercem suas funções de empregados como qualquer indivíduo, porque não os são, são indivíduos instáveis inseridos propositalmente num espaço em declínio. Podemos pensar que tais paisagens fragmentadas sugerem, talvez, além da crítica à sociedade que se divide entre ricos e pobres, uma sociedade hipócrita figurada num mesmo espaço caótico e degradante que, de alguma forma, cada ser humano tem sua contribuição para o declínio desta. As tensões subjetivas que caracterizam o sujeito moderno podem ser encontradas nos personagens Edgar Wilson e Erasmo Wagner. Antes de qualquer observação, devemos ter em mente que os protagonistas vão além da representação simplória de pobres empregados marginalizados como os trechos a seguir ilustram:
À espera de porcos, Edgar Wilson suspira pela oitava vez nessa sextafeira quente e abafada. Por seu olhar vago, perdido, parece que não se incomoda em esperar o tempo que for preciso, mas apesar da frieza permanente ele anseia, a seu modo. [...] Havia feito planos para sair mais cedo, ir ao bar do Critóvão, fazer algumas apostas em chacal [...] e encontrar Rosemary, sua noiva. Mas isso não era novidade, todas as sextas são iguais e de modo algum Edgar Wilson se importa com a rotina em que vive. Aqui no subúrbio, quente e abafado, esquecido e ignorado, nos fundos de um mercadinho cheirando a barata, não existe desconforto maior do que o carregamento de porcos atrasar e expectativa maior do que vê-los, todos, pendurados por ganchos no frigorífico (MAIA, 2009, p. 15-16).
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Assim como Edgar Wilson, Erasmo Wagner também executa suas tarefas do dia a dia:
O lixo está por todo lugar e é de várias espécies: atômico, espacial, especial, hospitalar, industrial, radiotivo, orgânico e inorgânico; mas Erasmo Wagner só conhece uma espécie de lixo. Aquele que é jogado pra fora de casa. A imundície, o podre, o azedo e o estragado. O que não presta pra ninguém. E serve apenas para os urubus, ratos, cães, e pra gente como ele. Costuma trabalhar no caminhão de lixo parte do dia, com escalas alternadas no turno da noite [...] (MAIA, 2009, p. 91).
O trecho, em primeira leitura, nos dá a ideia de trabalhadores que exercem suas funções como qualquer outro empregado, satisfeitos ou não, mas com o decorrer da leitura e das ações dos personagens e do meio que os cercam podemos observar que os mesmos tornaram-se fragmentados, seja pelo caráter, seja pelos diferentes e contraditórios sentimentos. O espaço, e ainda, a mudança de espaços, nos quais eles estão inseridos, contribuem muito para a construção desses seres fragmentados, já que os trechos mostraram, sobretudo na novela de Edgar, dois ambientes: o de trabalho e o de lazer, a este último, o bar, tendo como segundo plano oferecer ao personagem um momento de distração, porém, esse ambiente se mantém num contexto degradante, na medida que apresenta a violência, mesmo que dos animais, figuras alienadas e a imundície. A ideia de alienação é também um ponto a ser descatado, visto que a ideia de subjetividade está relacionada ao invidualismo e que o individualismo é característca do sujeito homem de hoje, como assinala Hall, “quanto mais organizada a natureza das instituições da modernidade tardia, maior o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito individual” (2009, p. 43). Edgar Wilson e Erasmo Wagner são personagens que mantém distância de outras pessoas, simplesmente por muitas vezes não se importarem com o próximo, e isso faz com que eles se isolem. Por outro lado, são personalidades que não se mantém fixas, pois há passagens que eles veem a necessidade do outro, ou seja, de outra pessoa, seja a vontade de se
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casar e ter uma família que por alguns minutos Edgar Wilson sente, ou ainda pela companhia do amigo Gerson, ou seja pela relação sanguínea que Erasmo Wagner tem com seu irmão. Essas indagações fazem parte dos postulados de Hall que, a partir de seus estudos, revela que o indivíduo pós-moderno torna-se fragmentado, porque diantes das mudanças no contexto social, cultural e político, ele não consegue apresentar “[...] uma identidade fixa, essencial ou permanente” (HALL, 2009, p. 12). “O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente” (HALL, 2009, p. 13). Daí um ser ambíguo que perde o sentido de si. As mesmas iniciais dos nomes, o apreço pelo trabalho, o trabalho duro, e, principalmente, o ambiente em que os personagens estão inseridos, podem representar características ambíguas desses sujeitos dentro da narrativa. É especificamente na segunda novela, a partir da página 143, que a ideia de um personagem ambíguo e complexo se materializa com precisão. Ambos tem em comum o vício pelo cigarro que, por sua vez, pode simbolizar o fogo. Quando Erasmo Wagner fica impossibilitado de cumprir sua função como gari devido à greve, vai trabalhar, fazer bico, com seu primo. Nesse emprego, ele limpa caixas d’água e o que mais lhe aparecer e, num desses trabalhos, vai até a casa de uma mulher, que cria porcos, para limpar a caixa d’água da velha casa e lá se encontra com Edgar Wilson. Os dois trocam um cigarro e algumas palavras:
Erasmo Wagner espera pelo esvaziamento completo enquanto fuma um cigarro. Atravessa o portão do quintal, e observa Tonhão do outro lado da rua, pastando solto num terreno baldio ao lado de algumas galinhas. O homem que lida com os porcos vem em sua direção e lhe pede um cigarro. Ele lhe dá um. Edgar Wilson apanha uma caixa de fósforos do bolso da calça. Os dois ficam calados por uns dois minutos, envoltos pela fumaça clara. - Gosta de trabalhar com porcos? – pergunta Erasmo Wagner. - São bons animais. Eles se acostumam com a gente – responde Edgar Wilson. A mulher reaparece e faz um sinal para Edgar Elson ir com ela. Ele agradece pelo cigarro, acerta o pagamento com a mulher, apanha seus três porcos e vai embora (MAIA, 2009, p. 143)
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Os fragmentos nos remetem ao mito da fênix, que tem como representação histórica o pássaro que ressurge das cinzas para (re)viver. E aquilo que parece fútil, e muitas vezes passa desatento para o leitor, o cigarro, hábito que os persongens têm em comum, é símbolo do fogo ou da vida. Isso pode ser pensado com relação à ambiguidade dos personagens, que a media em que os dois se cruzam,se unem para formar um único eu, e o fato de Erasmo vir depois, definido na segunda novela, pode remeter à continuação de Edgar, ou seja, a continuação da espécie humana, dotado dos mais diversos sentimentos e construído a partir da mistura de personagens/indivíduos, que perdurará. Podemos também atentar para o elemento temporal do fragmento exposto, pois o fato dos personagens se cruzarem numa mesma história demonstra a simultaneidade dos acontecimentos que, embora ocorram em lugares distintos, as histórias se entrecruzam ao mesmo tempo2. Talvez advenha disso a caracterítica do eu inserido em tempo e espaços indefinidos. As construções identitárias dos personagens podem ser, ainda, estudadas em outras esferas, como o trabalho, o sentimento de indiferença, a presença da morte, a esperança e o sonho. Tais características fazem com que, em alguns momentos, Edgar Wilson e Erasmo Wagner se aproximem de um ser único e ainda, aquilo que falta em um o outro supre. Assim, os fragmentos a seguir, mostrarão a figura de dois homens em seus mais diversos sentimentos e de suas diferentes ações que, ao serem comparados, tornam-se um único indivíduo, ambíguo, híbrido e contraditório, o ser humano. Nos trechos extraídos na primeira parte, Edgar Wilson
[...]abre o porco do focinho até o rabo e retira seus órgãos e tripas. Era mesmo uma maravilha olhar para aquele interior. Uma barriga recheada e que valeria alguns bons reais. Mas se queixa silencioso do quanto vale o trabalho de um homem. A barriga daquele porco é praticamente o seu salário, mas em seguida contenta-se, porque sua vida é mesmo boa (MAIA, 2009, p. 27). 2
A ideia do duplo e do encontro dos personagens são pontos que merecem destaque por também serem trabalhados no conto William Wilson, de Edgar Allan Poe. O protagonista se encontra com o seu (possível) outro “eu”. Além disso, a própria autora revelou em entrevistas a influência de Edgar Allan Poe em seus escritos, bem como a homenagem ao autor e seu personagem citado com o nome de Edgar Wilson.
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e na segunda parte, Erasmo Wagner
[...] Conhece o conteúdo de alguns sacos só pelo cheiro, formato e peso. Já teve tétano. Já teve tuberculose. Já foi mordido por rato e bicado por urubu. Conhece a peste, o espanto e o horror; por isso é ideal para sua profissão que exerce [...]. Não pensa nos miseráveis dos aterros sanitários que também poderiam lucrar com o que há de melhor no lixo. Ele realmente não se importa. Assim como quem está acima dele não se importa com ninguém. Naescala decrescente de famintos e degenerados, ele ocupa um posto pouco acima dos miseráveis [...]. Ninguém gosta muito de Erasmo Wagner. Dão meiavolta quando está trabalhando e ele prefere assim. Prefere os urubus,os ratos e a imundície, poruqe isso ele conhece. Issoo assusta. As pessoas em geral lhe dão náuseas e vontade de vomitar” (MAIA, 2009, p. 9192).
nota-se que nos fragmentos, o trabalho bruto, sujo e desprezível causa no leitor o mesmo sentimento de repulsa e inquietação. O trabalho é cumprido pelos personagens de maneira satisfatória e pontual, eles gostam daquilo que fazem, sobretudo devemos destacar que diante das ações vivenciadas no dia-a-dia de trabalho, Erasmo lida com o imundo, podre, enquanto Edgar lida diretamente com a morte. Ambos realizam uma tarefa que é repulsiva e “esquecida” pelos homens, mas que todos necessitam. Num jogo entre melhor trabalho, nenhum é ganhador. A ambiguidade também pode ser observada a partir do caráter ou instinto assassino que as duas personagens possuem e através da crença, por acreditarem em Deus. É claro que Edgar se sobressai quando a questão é matar, seja pelo seu trabalho ou pela forma de resolver as coisas e os aborrecimentos. Já Erasmo se destaca na crença, pois não teve coragem de matar o bode por acreditar que havia algo de extraordinário e inexplicável com o animal. Isso faz com que a construção dos sentimentos desses personagens sejam muito subjetivos e confusos, porque o ato de matar foge às “regras de bom cristão”, daí a ironia presente no discurso de Ana Paula Maia. A ambiguidade referente aos assassinatos pode ser observada nos seguintes
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fragmentos: num diálogo entre Edgar e Gerson, em que o protagonista revela que matou o irmão do amigo.
Em conversa com Gerson, seu amigo, Edgar Wilson assume que matou o irmão de Gerson, e Rosemary, sua própria noiva “- É justamente sobre isso ... sobre ele ficar sumido pra sempre. Ele tava tendo um caso com a Rosemery. Matei nos dois”(MAIA, 2009, p. 61).
e numa lembrança que Erasmo tem de ter matado um homem no passado ao presenciar o ataque de um cachorro para com o um velho:
Erasmo Wagner apenas olha a cena. Já foi mordido por um cão quando criança. Já tomou pauladas de um velho por ter roubado duas laranjas, quando criança. Ele estava com fome naquele dia, e ainda não tinha força nem tamanho para trabalhar ou se defender, tanto do cão quanto do velho. Para ele pouco importava quem sobreviveria. O cão rasgaria o velho. Velhos têm pele mole, ele sabe bem disso, pois já matou um. Mas isso faz tempo e o velho não prestava (MAIA, 2009, p. 96).
Repulsa e revolta podem ser sentimentos que os personagens causam no leitor, mas, apenas numa primeira impressão, pois, à medida com que o narrador descreve os fatos, ao mesmo tempo ele justifica os atos brutais e a ideia inicial de reprovação é amenizada. Edgar Wilson, por exemplo, é um sujeito que amedronta por resolver seus problemas de uma forma brutal, matando quem o aborrece, mas essa escolha de resolver seus problemas está ligada às práticas sociais que o moldaram e o formaram no decorrer de sua vida; Edgar cresceu entre a morte e a violência, suas ações não poderiam ser contrárias se pensarmos que essas práticas socias estão ligadas à construção da identidade do sujeito (HALL, 2009, p. 72). Os personagens, homens brutos, tornam-se ainda mais humanos, como podemos observar no fragmento que diz respeito a Edgar Wilson,
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Cão de rinha é um cão que não teve escolha. Ele aprendeu desde pequeno o que o seu dono ensinou. Podem ser reconhecidos pelas orelhas curtas ou amputadas e pelas cicatrizes, pontos e lacerações. Não tiveram escolhas. Exatamente como Edgar Wilson, que foi adestrado desde muito pequeno, matando coelhos e rãs. [...]. Porém a marca da violência e resistência à morte de outros animais nunca tiraram o brilho de seus olhos quando contempla um céu amplo [...] é um cão de briga criado para matar porcos, coelhos e homens(MAIA, 2009, p. 69-70).
ou nos fragmentos já expostos quando há a justificativa de que Erasmo Wagner matou porque o velho não prestava. Conclusão Neste trabalho, esboçamos alguns pontos importantes acerca do contexto histórico, social e político da literatura produzida hoje, os elementos que estruturam o novo modelo de prosa, e focamos no estudo das construções identitárias dos personagens apresentados na obra Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (2009), da escritora brasileira Ana Paula Maia. A ideia de identidade nos dias atuais faz parte de um processo subjetivo de negociação entre o eu e outro. Com as mudanças no contexto histórico e cultural que a globalização influenciou, o sujeito não é mais visto como uma figura alienada, pois ele rompe com os modelos discursivos e passa a apresentar sentimentos contraditórios. Nesse sentido, a construção identitária das personagens Edgar Wilson e Erasmo Wagner está associadada aos sentimentos contraditários, aos elementos fragmentados e aos espaços que o cercam. Tudo isso contribui para a definição, ou não definição, do sujeito moderno, de personagens que são representados de maneira marginalizada, ou que representam nossa sociadade caótica. Assim, esses personagens podem ser vistos como figuras realistas e representativas de uma sociedade marginalizada e turbulenta, mas que ao mesmo tempo ocupam posições sociais e desempenham funções caracterizadas pela degradação, que por sua vez, acaba consolidando o próprio “eu”.
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De um lado, temos a personagem Edgar Wilson, criado e inserido num espaço caótico, que desenvolve atividades brutais e degradantes, e de outro temos, à semelhança de Edgar Wilson – nota-se principalmente pelas mesmas iniciais – a personagem Erasmo Wagner, inserido no mesmo espaço social marginalizado e que também exerce um trabalho difícil. Desse modo, a identidade dessas personagens são apresentadas de maneira subjetiva e ambígua, construída à mercê do espaço que os cercam, tornando-se intercambiáveis e complementares. Referências HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2003. MAIA, Ana Paula. Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos. Rio de Janeiro: Record, 2009. PINTO, Manuel da Costa. Literatura brasileira hoje. São Paulo: Publifolha, 2004. Disponível em: < http://www.literatura.bluehosting.com.br/literaturabrasileirahoje.pdf.>. Acesso em 27 de abril de 2014. RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: expressões da literatura no século XXI. Rio de Janeiro: Casa da Palavra: Biblioteca Nacional, 2008. SANTOS, Boaventura. Modernidade, identidade e a cultura de fronteira.Tempo social. Revista de Sociologia. 5 (1-2): 31-52, 1993. São Paulo: USP. Disponível em: < http://www.fflch.usp.br/sociologia/temposocial/site/images/stories/edicoes/v0512/Mode rnidade.pdf.>. Acesso em: 27 março 2014.
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CORUJA LELÉ: OBSERVAÇÃO DE ALGUMAS IMPRESSÕES DE LEITURA Valdirene Barboza de Araújo Batista (UNESP/ASSIS) A década de 1970 é comumente apontada pela crítica especializada como o período em que ocorreu o boom da literatura infantojuvenil brasileira. É durante esse período de efervescência de criatividade sem fronteiras que a escritora Giselda Laporta Nicolelis publica seu primeiro texto para crianças em livros – “Floresta em chamas” -, mais especificamente na antologia infantil Estórias, bichos. Reunindo vários autores, essa coleção foi publicada pela Editora do Escritor, em 1972. Já o seu primeiro livro infantil foi Coruja Lelé, publicado em 1974, pela mesma editora. Nascida em 27 de outubro de 1938, em São Paulo, segundo Nelly Novaes Coelho (1984), Giselda, já na década de 1980, havia conquistado lugar bem definido “nos quadros” da literatura destinada a crianças e jovens, conquistando a garotada com os seus variados livros. Apesar dos mais de 100 títulos publicados, distribuídos entre livros infantis e juvenis, ficção, poesia e ensaio, sua produção literária ainda não foi estudada de modo sistematizado. Visando à composição de uma bibliografia completa de Giselda Laporta Nicolelis e sobre sua obra infantojuvenil é que apresentei em 2013 ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da UNESP de Assis, o projeto de pesquisa de doutorado “Um estudo da produção infantojuvenil de Giselda Laporta Nicolelis", cujo objetivo principal é analisar e compreender o lugar ocupado por essa escritora no sistema de obras produzidas para crianças, adolescentes e jovens, como também avaliar a qualidade literária de seus textos, sob a orientação do professor doutor João Luís Cardoso Tápias Ceccantini.
Nesse sentido, a produção deste texto está ligada a esse projeto de pesquisa de doutorado, como também aos estudos desenvolvidos pelos grupos de pesquisa Literatura e Ensino (UENP/Campus de Jacarezinho) e Leitura e Literatura na Escola (UNESP/Campus de Assis). O objetivo é compartilhar como se deu a recepção do primeiro livro infantil de Nicolelis por parte de três alunos do 6º ano, estudantes de uma escola estadual, localizada em Ourinhos/SP. O interesse por investigar a recepção desse livro se justifica pelo fato de ele não ter sido visto com bons olhos pela crítica especializada na época em que foi publicado. Na visão de Coelho (1984; 2006), a primeira produção literária de Giselda voltada para
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o público infantil é imatura, incipiente, bem própria de quem ainda está à procura. Ela aponta diferentes falhas em Coruja Lelé, dentre elas a linguagem demasiadamente elaborada para a compreensão dos pequeninos, a inabilidade ao compor a teia narrativa, uso de informações desnecessárias, ênfase em comportamentos negativos para as crianças e nas diferenças de classe e hierarquia entre os seres, além das falhas de reestruturação da narrativa. Enfática, essa pesquisadora afirma que esse livro “ganharia muitíssimo se fosse reescrito...” (COELHO, 1984, p. 293). Diante disso, pretendi, por meio de investigação junto a leitores reais, observar, se, de algum modo, os aspectos negativos apontados pela crítica especializada aparecem nas impressões dos leitores em formação e quais elementos são, de fato, considerados por eles no processo de recepção de Coruja Lelé. O intuito é refletir sobre como a criança recebe e reage diante de um texto, sobretudo, como forma de encontrar caminhos para trabalhar com a comunicação literária em sala de aula de modo mais fecundo. A seleção dos alunos se deu em função do gosto manifestado por eles pela leitura, informação oferecida pela professora de Língua Portuguesa dos estudantes, e também por eles terem tido disponibilidade e interesse para ler o texto e para produzir suas impressões de leitura. O trabalho foi desenvolvido com o foco no primeiro dos três níveis de recepção literária propostos por Hans Kügler (1971): a leitura primária, processo silencioso, pessoal e afetivo pelo qual passa o leitor em sua leitura individual. O livro Coruja Lelé faz parte de uma coleção infantojuvenil, volume 3, organizada e ilustrada por Eico Suzuki. A narrativa se passa na floresta brasileira e é constituída de 15 capítulos. Giselda Laporta lança mão, em seu primeiro livro, do processo de encaixe de uma narrativa na outra, isto é, a história dentro da história. Em síntese, a velha coruja Lelé, caçadora de animais roedores e bastante trabalhadora, é conhecedora de várias histórias. Por ocasião da quebra do nariz da professora anta, que fica impossibilitada de ministrar aulas aos filhotes da floresta, Lelé, a contragosto, passa a contar a eles, todos os dias, diversas histórias ouvidas de geração em geração. Ao lado de Neco, o jabuti, a coruja, ensina, por meio das histórias fabulosas,
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diversos conhecimentos científicos, práticos e valores éticos à raposinha Patrícia, ao coelho Jambo e à oncinha Biloca. Lelé, que trabalha à noite, raramente consegue dormir durante o dia, pois os filhotes, que adoram ouvir suas histórias, não deixam. Ao longo da narrativa, as personagens vivenciam algumas aventuras, entre elas o campeonato de xadrez, do qual o compadre jabuti é vencedor e o grande jogo de futebol ocorrido entre o Piranhas Futebol Clube e a Associação Atlética Macacos me Mordam. Ao final, quando a professora anta se recupera e volta a lecionar, a velha coruja sente saudades do momento de contação de histórias.
Embora isto não seja explorado de forma mais profunda neste texto, é significativo notar que Coruja Lelé estabelece intertextualidade estrutural com Fábulas, de Monteiro Lobato.
Esse livro, escrito em 1921, segundo Grasielly Lopes, que
realizou estudos sobre essa obra, nasceu do objetivo de vestir as fábulas de Esopo e de La Fontaine com uma cor local, cujo público alvo era os filhos do autor. Estes manifestavam bastante interesse pelas fábulas contadas por Purezinha, esposa de Lobato, porém não davam tanta atenção às moralidades. Em Fábulas são apresentadas mais de 70 narrativas, que são conduzidas pela voz de D. Benta, que é quem “as conhece e as reconta para seus interlocutores, sendo esses, diretamente, as personagens do Sítio – Emília, Narizinho, Pedrinho, Visconde de Sabugosa, Tia Nastácia – e, indiretamente, os leitores” (LOPES, 2006, p. 42). Grasielly Lopes salienta que em Lobato as fábulas não são concebidas como “verdades”. Por isso, o autor dá a esse gênero clássico uma nova roupagem, inserindo nelas elementos nacionais e relativizando as suas moralidades. Ele foge de toda moral convencional e revoluciona as verdades absolutas. Em Fábulas, o que se pode observar é a discussão sobre aspectos sociais, culturais, econômicos e políticos próprios da época em que Monteiro Lobato viveu. Não há nas fábulas narradas nesse livro a predominância da moral tradicional, “em favor de uma verdade possível e individual, como também em favor de uma literatura sem aspas, que, de acordo com D. Benta em Fábulas, é a literatura dos grandes livros. Portanto, o que prevalece neste universo construído por Lobato é a liberdade” (LOPES, 2006, p. 43). No caso de Coruja Lelé, em texto constante na contracapa desse livro, Giselda afirma que o entretenimento é muito importante para a criança, porém, sempre que possível, é bom oferecer a ela “um banhozinho” de cultura e conhecimento. Em sua perspectiva, a criança da
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década de 1970 já passava muito tempo à frente da televisão desaprendendo muita a língua portuguesa, conhecimentos gerais e a boa educação, entre outras coisas. Diferentemente de Dona Benta que reconta as fábulas de Esopo e de La Fontaine, Lelé narra aos filhotes mais de 10 histórias, cujas personagens são animais pertencentes à fauna brasileira, com exceção da última – “Floresta em Chamas”, que, conforme já se disse, é o primeiro texto infantil de Giselda, publicado em uma coleção infantojuvenil. autora também explora personagens folclóricas como o Saci e o Curupira e lendas, como é o caso de “A lenda do sol e da lua”. De modo geral, observa-se nessa obra a preocupação pelo resgate da cultura oral, por meio da contação de “estórias” que passam de geração em geração, sem desvalorizar o conhecimento escolar e o científico, como também determinadas posturas e valores que devem ser colocados em prática na sociedade. As histórias narradas por Lelé são discutidas e explicadas logo após a contação, e, em geral, elas trazem sempre um tipo de ensinamento e despertam sentimento de repúdio ou de solidariedade nos filhotes em relação ao comportamento das personagens das narrativas contadas pela coruja, conforme podemos observar no fragmento abaixo: - Que pilantra! – gritou Jambo, o coelho, um dos filhotes – Pra que macaco precisa de cartola? - Pois eles não gostam de imitar os homens? – perguntou Biloca, a onça gordinha. – Garanto como fez um sucesso danado. - Subdesenvolvido – murmurou Neco jabuti, que era intelectual e só falava difícil. - Pois adorei o Rodolfo – suspirou Patrícia, a raposinha eleita “miss” da floresta. – Tão inteligente, que mereceu ficar rico. O mundo é dos espertos, minha gente. - E dos imbecilóides – retrucou o jabuti, que não suportava a raposinha, bonita e burrinha. - Posso dormir, agora? – interrompeu Lelé, morta de sono. – Vocês não têm aula, hoje, meninada? (NICOLELIS, 1974, p. 16) O trecho citado acima também traz à tona às características principais de alguns personagens, deixando evidente alguns estereótipos comuns na sociedade. A raposinha, por exemplo, representa a moça bonita e burra, a coruja, o símbolo da sabedoria, e o Neco jabuti, representa a cultura letrada. Por meio do estudo, ele obteve muitos conhecimentos, o que desperta a admiração de muitas pessoas. A caracterização de algumas personagens nos permite aproximar Coruja Lelé novamente de Fábulas, uma vez que a curiosidade e o atrevimento da raposinha Patrícia lembra bastante a personagem Emília de Monteiro Lobato. Do mesmo modo,
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a erudição de Neco também nos faz lembrar de Visconde de Sabugosa. Há ainda as constantes implicâncias ocorridas entre Neco e Patricinha, que também fazem lembrar as que ocorrem com Visconde e Emília na obra de Lobato: - Quantas? – interessou-se Patrícia, muito curiosa. - Mil e quinhentas flores – disse Neco – Já imaginaram o trabalho que é isso? -Não é à toa que vivem tão pouco – comoveu-se Biloca. – Coitadinhas. - Quem me dera saber tudo isso – choramingou Patrícia – Não é uma beleza? - A senhorita pertence a uma espécie animal das mais astutas – garantiu o jabuti, - Suas primas irmãs são conhecidas pela inteligência com que escapam ao perigo. É apenas uma questão de boa vontade. - Bah – disse a raposinha – Sou muito jovem pra queimar minhas lindas pestanas nos seus livros embolorados. Quando eu ficar velha e feia, quem sabe. -Mais alguma coisa, Lelé? – perguntou Neco ajeitando os óculos sem lhe dar mais atenção. – Raposinhas bonitas! – pensou – Haja paciência! (NICOLELIS, 2006, p. 23) Quanto à elaboração e organização do discurso, percebemos em Coruja Lelé o predomínio do discurso direto, que são utilizados também nas histórias narradas por Lelé, aspecto que mais uma vez aproxima o livro em questão de Fábulas, de Lobato, que também organiza as falas desse modo. A linguagem é bastante elaborada, talvez até com um pouco de exagero, o que pode impossibilitar a compreensão do texto por parte das crianças. Vale lembrar que tal aspecto foi alvo de crítica acirrada por parte de Nelly Novaes na época em que o livro foi publicado. O nível de elaboração das falas das personagens marca as posições social e cultural às quais elas pertencem. O uso do pretérito mais que perfeito em diferentes momentos reforça a demasiada elaboração da linguagem. Convém lembrar que as falas do narrador, de Lelé, de Neco e de outros adultos tendem a ser mais elaboradas, já as das crianças tentam ser mais coloquial, embora elas ainda possam parecer artificiais em vários momentos, como se pode observar a seguir: - Lelé, Lelé – chegou gritando a arara Fofoquina, carteira da floresta. Telegrama! -Pode dizer – respondeu a coruja. - O Presidente das “Piranhas Futebol Clube” tem o prazer de convidar V.S. para o jogo disputa, Taça Florestal, contra “Associação Atlética Macacos me Mordam”, a se realizar no próximo domingo no Estádio local.
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- Obrigada, Fofoquina – agradeceu Lelé – Queira transmitir ao Presidente a seguinte resposta: - Agradecendo gentileza, convite, prometo comparecimento – Lelé, a coruja. - Iupi! – gritaram os filhotes – Vamos ganhar de goleada. - Não se apressem – interveio Neco jabuti – Em matéria de jogo, qualquer prognóstico é prematuro. - Será que não dá pra uma vez na vida falar como toda gente? Berrou Patrícia. - Ele quer dizer, não se deve esperar apenas pela vitória – esclareceu Jambo – O importante mesmo é competir. -Deixa pra lá, bicho – disse a raposinha – As Piranhas Futebol Clube estão uma brasa. Dessa vez a taça é nossa. Podemos ir com você, Lelé? (NICOLELIS, 1974, p. 67)
A preocupação em querer proporcionar aos leitores conhecimentos científicos fica bastante evidente, especialmente nas explicações dadas por Neco ao término de várias histórias: - Os insetos não têm espinha? – disse Patrícia. - Não – respondeu Lelé. – Como também araras, escorpiões. Estes, mais as baratas são dos bichos mais antigos da terra. - Quantos insetos existem? – perguntou Biloca, muito ingênua. - Não me pergunte – riu Neco – Calcular o número de insetos é quase impossível. Sei apenas que existem 750.000 espécies e mais 5.000 são descobertas todos os anos. - Barbaridade! – caçoou Patrícia. – Eles nunca ouviram falar de superpopulação! - E como ficaram sabendo de tudo isso? – estranhou Jambo. - Pelos fósseis – explicou o jabuti. – Pegadas, marcas ou formas de animais desses longínquos tempos, extintos. Através deles podemos pela ciência chamada Paleontologia, determinar a data mais provável do aparecimento do primeiro Homem sobre a terra. - E quando foi isso? – arrematou Jambo, curioso. - Há um milhão de anos atrás – disse Neco, gozando o espanto dos filhotes. – Bem velhinho, não? - A gente aprende mais com o Neco do que na escola – comentou Biloca – Não é à toa, vem gente de longe pra ouvi-lo. (NICOLELIS, 1974, p. 56) Os breves aspectos aqui apontados no projeto estético de Coruja Lelé permitem afirmar que, embora a autora tente explorar elementos mágicos em sua obra, tão necessários para o desenvolvimento da criança, há, nessa narrativa, uma forte tendência à predominância do
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pensamento racional. Nesse sentido, sua obra nasce ligada aos textos tradicionais nos quais há a ênfase, segundo Coelho (2006), de valores divulgados na literatura infantil e juvenil escrita por seus precursores, tais como: preocupação com questões morais e didáticas. No texto predomina os lugares comuns, como a disseminação de ensinamentos de variadas espécies, dualidade entre o bem o mal e ênfase na hierarquia entre os seres: os adultos ocupam posição cultural superior às crianças. Nota-se ainda a forte valorização do saber, do estudo e dos livros como meios essenciais para a realização do indivíduo. É evidente que querer despertar o interesse nos leitores pelo livro é louvável, porém, isso não pode ser feito de modo tão didático, uma vez que o papel da literatura vai muito além de educar tão pura e simplesmente. Conforme já foi dito por Antonio Candido, a literatura, ao contrário da escola, não educa de forma sistemática. Ela forma assim como a vida: com “altos e baixos” e entre “luzes e sombras”. Por isso, não “corrompe” nem “edifica”, “mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver” (CANDIDO, 1972, p. 806).
A recepção Conforme mencionado no início deste texto, a metodologia usada para investigar a recepção dos alunos foi a Leitura Primária, o primeiro dos três níveis de recepção literária propostos por Hans Kügler (1971), cujos estudos foram divulgados entre nós em texto de tradução livre elaborado por Carlos Erivany Fantinati. O primeiro nível de recepção literária, na visão desse didata alemão, é pessoal e afetivo e está constituído de três etapas, sendo a primeira a Leitura não-duplicada: silenciosa compreensão afetiva e formação da ilusão, que é uma leitura dotada de afetividade e não-crítica. Ela acontece quando o leitor completa as lacunas, os não-ditos do texto, com base apenas em sua visão particular, efetivando a transposição do real para a ficção. A segunda etapa se refere à Projeção e auto-inserção simulativa. Nela o leitor se insere no texto, experimentando os papéis propostos na história ou se projetando no estado de espírito do eu-lírico. O leitor passa a atuar e a executar padrões e comportamentos oferecidos pelo texto. A terceira etapa se caracteriza por aquilo que o texto representa para o leitor, ou seja, “o que é o texto para mim”. Para Kϋgler (1971), essa etapa é marcada pelo deslocamento e pela condensação. Quando o texto atende às expectativas e às necessidades próprias do leitor, Kϋgler dá o nome de deslocamento do texto. Já a condensação, acontece quando o leitor, a partir do que o texto lhe disse, consegue fazer uma reflexão sobre ele. Para Villibor e Martha (2007), a
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condensação se caracteriza pelo o que é texto para mim, acrescida de uma reflexão, que nada mais é que uma articulação de significado. O segundo nível é denominado Constituição Coletiva de Significado e também é compreendido de três etapas, a saber: 1. Articulação da experiência de leitura: socialização da leitura pessoal; 2. Confronto com outras propostas de significação: momento em que a leitura individual passa a ser confrontada com a leitura de outras pessoas; e 3. Elaboração de perspectiva para leitura sequente: o leitor pode perceber, diante da riqueza polissêmica do texto literário, outras possibilidades de leitura para o texto. Esse nível pode possibilitar a defesa de uma interpretação particular do texto. Contudo, a mesma deve ser comprovada com base em elementos textuais.
O último nível proposto por Hans Kügler é denominado Modos de Ler Secundários e se refere à ampliação dos horizontes de expectativas dos leitores. Nessa etapa é o momento de tentar oferecer ao leitor um conhecimento mais elaborado com vistas à elaboração de uma leitura mais crítica do texto. Esse é o momento de promover o contato entre autor-texto-leitor, acrescentando à leitura estética, a leitura tecida pela história e pela crítica literária. Conforme já se mencionou, a recepção dos alunos foi avaliada a partir da produção de impressões de leitura, nas quais deveriam conter breve resumo da história lida e a opinião pessoal sobre o livro. Também foi solicitado que os estudantes escrevessem com quais personagens eles mais se identificaram ou não, abordando o porquê da identificação ou da não identificação. Dos três (um menino e duas meninas) participantes da atividade, apenas uma estudante escreveu uma impressão de leitura satisfatória para a análise, o garoto não conseguiu escrever o resumo por falta de entendimento do texto e a outra estudante, apenas fez a transcrição de partes de cada capítulo, o que dificulta a observação de como ela compreendeu a narrativa. No entanto, ela conseguiu avaliar o livro, o que demonstra poder ter ocorrido o processo de condensação, uma vez que parece ter compreendido a narrativa. Assim ela escreve: “Eu gostei muito do livro porque tem personagens engraçadas e eu gostei da interpretação e achei muito divertido e engraçado”. Embora a aluna não tenha deixado claro, quando escreve “gostei da interpretação”, tem-se a impressão de que ela gostou dos comentários feitos ao final de cada história.
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A terceira estudante demonstrou ter passado pelo processo de condensação de forma bastante efetiva. O seu texto é claro, preciso e demonstra ter compreendido a narrativa. Em seu resumo, a aluna não fica apenas no campo da história, ela traz situações narrativas, já elaborando comentários críticos sobre as mesmas, como podemos observar no trecho adiante: “Eu gostei muito do livro, principalmente das histórias que a coruja contava, são bem legais e algumas até tem lição de moral. Os bichos são bem engraçados e todos da fauna brasileira, diferente de muitos livros que eu já li”. É bastante interessante a chamada de atenção para o fato de os animais fazerem parte da fauna brasileira, fazendo comparações com outros livros já lidos por ela. De modo geral, a avaliação do livro foi positiva. Curiosamente, até mesmo o aluno que afirmou não ter gostado da narrativa por falta de entendimento avaliou positivamente Coruja Lelé. Para ele, o texto foi de difícil compreensão, mesmo tendo animais como personagens. A linguagem bastante elaborada, apontada por Nelly Novaes Coelho, pode ter sido o fator que dificultou a compreensão do estudante. Apesar de não ter entendido a narrativa, o aluno valoriza a intenção da autora, suas boas ideias e diz que o livro foi bem escrito, demonstrando com isso generosidade ou até mesmo receio por avaliar mal o objeto livro. A ressalva feita pelo estudante pode nos levar a entender que em sua compreensão os textos que têm animais como personagens podem ser de fácil compreensão, como pode ser o caso das fábulas. No entanto, não foi isso que lhe ocorreu quando da leitura de Coruja Lelé. E mesmo não mencionando diretamente o gênero textual fábula, os alunos apontaram alguns elementos que o caracteriza, como a moral e os animais com comportamento humano. O aluno escreveu: ”[...] não entendi se eles são animais ou se são gente com cabeça de animal”. As personagens que mais chamaram a atenção foram a coruja Lelé e a raposinha. Foi com elas também que os estudantes mais se identificaram. A primeira por ser divertida, legal e interessante, e a segunda por ser extrovertida e engraçada. Um dos estudantes não se identificou com Neco, o jabuti intelectual. Para ele, essa personagem era muito malvada, travessa e falante. O pavão foi outra personagem com a qual os alunos não se identificaram, principalmente por ele ser “metido”. Essa avaliação mostra, de certa forma, um repúdio ao mau comportamento e valorização do bom. Assim um
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dos estudantes escreveu: “Eu não gostei nem um pouco do pavão que expulsou todas as aves e raposas do jogo de xadrez, mas no final quem ganhou a partida foi o jabuti”. No caso de Neco, que não está construído no livro como uma personagem má, ele pode não ter agrado aos leitores, sobretudo, por causa de suas implicâncias com a raposinha Patrícia, personagem com a qual os leitores se identificaram bastante. Há de notar, todavia, que a raposinha não é modelo de “bom comportamento” na esfera do senso comum: é atrevida, preguiçosa, desafiadora, questionadora e não gosta de estudar, e, na narrativa, tem a atenção chamada em vários momentos por seu mau comportamento. Esses aspectos, entretanto, em momento algum foram mencionados pelos alunos, já que para eles, a raposinha chama a atenção, conforme já se disse, especialmente por ser extrovertida e engraçada e também por sempre implicar com o jabuti. Os estudantes também destacaram as histórias narradas por Lelé, segundo eles, elas são legais porque trazem uma moral, aventuras (campeonato de futebol e de xadrez), personagens engraçadas e por serem divertidas. Vale lembrar que, com exceção do garoto, as duas estudantes não se confundiram com a estrutura textual (histórias dentro da história). “Floresta em chamas”, que em Coruja Lelé é a última história narrada, foi citado por uma aluna como sendo a história mais interessante. Outra questão que pode ainda ser apontada é o fato de os estudantes, em momento algum, fazer relação do texto literário lido com experiências vivenciadas por eles. No entanto, o fato de terem considerado as personagens engraçadas e as histórias legais podem demonstrar um elemento importante: a apreciação da contação de histórias, o que pode ser um caminho bastante frutuoso no processo de formação de novos leitores. Comentários finais Apesar da crítica bastante negativa recebida por Coruja Lelé no momento em que foi publicado, com exceção do apontamento do estudante que afirmou ser o texto de difícil entendimento, os demais aspectos do livro tiveram boa aceitação, conforme já demonstrado no tópico anterior. Um dos aspectos que pode ter pesado nessa avaliação
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pode ser o fato de o primeiro livro infantil de Giselda não propor nenhuma forma de rompimento dos horizontes de expectativas dos leitores. No texto predomina os lugares comuns. Talvez pela repetição do mesmo, Coruja Lelé não esteja mais em circulação. Atualmente, é possível encontrar apenas alguns exemplares na rede de sebo literário Estante Virtual, ainda com a data de sua primeira edição (1974), fator que certamente não faz desse livro um clássico. Por outro lado, mesmo que a apreciação crítica realizada por Coelho (1984) seja de profunda relevância, não podemos menosprezar a avaliação dos leitores em formação que, no caso da leitura desse livro, preocuparam-se mais com os aspectos lúdicos do texto do que com as moralidades nele veiculados. As duas alunas, aparentemente, se divertiram com suas personagens e com as histórias contadas por Lelé, o que reforça, conforme já se mencionou, o prazer de ouvir histórias. Nesse sentido, é evidente que o primeiro livro infantil escrito por Giselda Laporta não é nenhuma obra-prima, até porque, conforme também salienta Coelho (1984), nesse momento, a autora ainda se encontra na “fase da procura”. A recepção positiva dos estudantes, entretanto, mostra que a leitura de Coruja Lelé pode abrir as portas para a leitura do clássico Fábulas, de Lobato, texto com reconhecida qualidade literária, que desde a sua publicação em 1921 ainda se encontra em circulação. Vale lembrar também que, por mais importante (e necessária) que seja a apreciação crítica de um livro feita por um especialista no assunto, o mais importante mesmo é o efeito que a obra causa no leitor, em sua vida. Por isso, a observação da recepção de leitores reais é tão importante. Diante desse diagnóstico, os mediadores de leitura (os professores, especialmente) podem encontrar caminhos para colocar nas mãos dos leitores em formação textos de boa qualidade literária, que se proponham a representar o homem em toda a sua humanidade. Referências CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. In:Ciência e Cultura. São Paulo, v.24, nº 9. p. 803-809, set.1972.
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COELHO, Nelly Novaes. Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira (1882/1982). 2. ed.São Paulo: Quíron/Brasília, INL, 1984. ______. Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira. 5. ed. rev. atual. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006. KÜGLER, Hans. Níveis de Recepção Literária no Ensino. Literatur under komunikation. Stuttgart: Ernest Keett, 1971. Tradução livre de Carlos E. Fantinati. LOBATO, Monteiro. Fábulas. 31 ed. São Paulo: Brasiliense, 1982. LOPES, Grasielly. Fábulas (1921) De Monteiro Lobato: Um Percurso Fabuloso. Assis: Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho, campus de Assis. UNESP, 2006. Dissertação (Mestrado em Letras). Faculdade de Ciências e Letras de Assis. UNESP, 2006.
Disponível
em:
http://polo3.assis.unesp.br/posgraduacao/teses/letras/grazielly.pdf.
Acesso em: 10 ago. 2014.
NICOLELIS, Giselda Laporta. Coruja Lelé. São Paulo: Editora do Escritor, 1974. VILLIBOR, Roberta Fresneda; MARTHA, Alice Aurea Penteado. O Texto Literário e os Modos de Leitura.In:Celli-Colóquio de Estudos Linguísticos e Literários. 3, 2007, Maringá, Anais...Maringá, 2009, p. 848-855.
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VIRGÍLIO, O GUIA DA COMÉDIA DANTESCA Valdirene Metz (UNESPAR) Analisando a forma como Virgílio ganha destaque dentro da obra o Purgatório de Dante Alighieri, é possível observar a importância que o poeta Clássico tange sobre o poeta Medieval. Permanecendo claro que acima de tudo Virgílio é um auxilio que Dante utiliza de forma figurativa, como guia não apenas através do Além, mas como um mestre que ensina o caminho para a vida, ou seja, Dante admira Virgílio como poeta, seus escritos são inspiradores, Dante almeja atingir a mesma perfeição do escritor Clássico, com forma e beleza. Consegue uma obra completa e dotada de sentido significativo em tantas áreas acadêmicas diferentes, abarcando tanto a literatura como a teologia, além da história e da filosofia. Defendemos a importância singular de Dante na filosofia, e acima de tudo comparamos com sua importância literária, Virgílio além de guia é um mestre acima de tudo, trás consigo a representatividade de um ser figurativo que se realiza por completo doze séculos depois de firmar-se poeta nos versos da Eneida, resgatado por Dante na Divina Comédia. Apontamos por meio das palavras de Erich Auerbach a visão romana da morte relatada nos versos da Eneida, “O reino dos mortos em Virgílio, é um mero instrumento da sua arte, e como em todas as concepções antigas, as almas desencarnadas têm apenas uma vida parcial, diminuída, uma existência vaga e espectral” (AUERBACH, 1997, p. 24). Existe um valor medieval atribuído à simbologia e o quanto essa linguagem simbólica se funda e se fundamenta no período isso se torna perceptível contrapondo Dante e Virgílio, como poetas existem semelhanças de modo que para o Clássico a forma de visualizar o mundo se pauta sobre as formas gregas, seus escritos relatam a concepção histórica do mundo como ele conhecia segundo o modelo grego, relatando a viagem de Enéas segundo as profecias que lhe foram reveladas, é o modelo grego da tragédia que entra em vigor, ou seja, de certo modo Virgílio escreve um modelo de texto
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épico, com a representação do herói, uma jornada com amarrações que concretizam um relato histórico com um significado próprio que busca a exaltação de Roma. Para os Medievais a linguagem simbólica é naturalmente utilizada como forma de expressão e linguagem de mundo, que se vincula primordialmente com a visão religiosa, pois essa forma de conceber o mundo medieval tem suas bases nos escritos épicos de Virgílio, por isso mesmo que justificamos que Dante insere novas características em sua obra, mas que suas bases estão firmadas sobre pilares Clássicos. Pontuando algumas características comparativas na Divina Comédia, vemos primeiramente que Dante inova inserindo-se em uma dupla função como autor e personagem principal, invertendo os papéis históricos não se trata apenas de um relato historiográfico, mas de um relato de sua própria existência, empregando a veracidade dos fatos referentes a essa viagem pelo Além, o que ele descreve causa identidade e aproximação entre a realidade e o leitor, pois é como se o leitor pudesse se deparar com aquelas almas e sentir os seus infortúnios, assim Dante atinge a figura do leitor por meio da verossimilhança dos fatos. Lembrando que a visão religiosa no período medieval é predominante e que o homem medieval não separa sua existência dos conceitos religiosos, para esse homem a sua vida não era governada por si e sim por um Ser externo, suas decisões estão sujeitas a vontade de Deus, sendo que só é possível uma eternidade seguindo os ensinamentos que a Igreja determinava, portanto não é o homem quem traça seu destino e sim a religião cristã. Dante, portanto retira Virgílio de sua eternidade no Inferno ou mais especificamente no Limbo e o traz para o Purgatório e juntos realizam as suas purgações, onde Virgílio se purifica por ser pagão ao mesmo tempo em que guia Dante que se purifica por seus pecados e por suas más escolhas. Sendo o Purgatório um espaço de esperança onde ambos podem retomar suas qualidades perdidas por meio do tempo que por ali advêm, compreendendo nesse espaço os exemplos de ética e moral, observando nas almas uma duplicidade, sua vida terrena historicamente real, com pecados e dúvidas e uma vida eterna de permanente redenção com humildade até sua subida ao Paraíso. A escolha de ter como guia Virgílio é para Dante fundamental, pois assim não apenas o sentido literal está presente, mas toda uma carga simbólica de um ser que
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viveu nos tempos de glória romana, que exaltou em seus versos esses tempos e que deu vida a esses prestigiosos tempos por meio de seus versos a Roma. Dante em suas palavras exalta sua gloriosa Itália, ao mesmo tempo apresenta o homem corrompido, seus desejos, suas aflições, contrapondo ao homem o reconhecimento de sua situação enquanto este busca se restaurar, ética e moralmente. No pós-morte, esse homem tem uma existência, que diante da permanência do estágio de morte, ainda tem resguardado o movimento e a expressão. Auerbach cita em Mimesis no capítulo que trata de Farinata e Cavalcante: “E, em consequência das peculiares condições do autocumprimento no além, a figura humana se impõe de maneira mais forte, concreta e peculiar do que, por exemplo, na poesia antiga” (AUERBACH, 2013, p.175), portanto o humano se firma dentro de uma paisagem do Além, Dante mesmo tratando de vários assuntos e temas, e tornando-se importante para a Igreja por expressar as penas terríveis do Inferno e do Purgatório por imagens bem delineadas desses sofrimentos, vai além disso, expressando o homem como um ser histórico que preserva a sua individualidade e se auto reconhece ultrapassando o plano terrenal e superando a ordem divina. Dante, portanto com sutileza lega para a posteridade o Renascimento, notamos que não se tratam apenas de questões políticas ou religiosas que movem o poeta a escrita de tão belos versos, - deixamos de tratar aqui do amor, e de Beatriz, buscamos refletir somente sobre Virgílio e suas relações com o homem e a filosofia - notadamente o homem está no centro de todas as discussões secundarias presentes em toda a obra e especificamente no Purgatório, não podemos deixar de negar que a ética e a moral são pontos estruturantes e que a todo o momento são resgatadas e caracterizadas através dos personagens histórico-reais que compõe a Divina Comédia. Referências ALIGHIERI, D. A Divina Comédia. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1976. AUERBACH, E. Dante Poeta do Mundo Secular. Rio de Janeiro: Editora Topbooks, 1997. _____________. Mimeses. São Paulo: Editora Perspectiva, 2013. GRIMAL, P. Virgílio ou o Segundo Nascimento de Roma. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
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SILÊNCIO
E
LOUCURA
EM
JANE
EYRE
SOB
UMA
INTERPRETAÇÃO PÓS-COLONIAL Vanalucia Soares da Silveira Oliveira (IFPB) O trabalho com a palavra lança ao leitor e, especialmente, ao crítico da literatura o desafio de jogar dialeticamente com a semântica ambivalente de um mesmo significante. Um texto favorece mais de uma interpretação, por ser caracteristicamente ambíguo: ele tanto pode ser interpretado por uma lógica monológica, sendo, pois, compreendido como detentor de um significado, uma verdade, uma origem, como pode ser interpretado como um jogo de substituição de sentidos, em um sistema de diferenças. Ambas as interpretações são válidas, aquela não desfavorece esta, já que uma é o suplemento da outra, isto é, a primeira só existe por causa da segunda e viceversa. Lidar com a palavra é situar-se no entre-lugar, na zona dos interstícios, no terceiro-lugar, onde só há espaço para a indecidibilidade, a aporia (cf. DERRIDA, 2002). Pela proposta derridiana de desconstrução supramencionada, queremos dizer que o romance Jane Eyre (2008) pode ser interpretado sob dois olhares: o colonialista e o pós-colonialista. Enquanto o primeiro orienta-se pela metafísica da presença, pelo “eu”, procurando mostrar a verdade, a origem dos conflitos raciais, relacionando-a com a ideologia do centro, da metrópole, do branco, e fundamentando-se no saber da época, o segundo olhar realiza-se do lugar do outro, da periferia, do subalterno. Nosso objetivo, aqui, limita-se a refletir sobre as questões de raça no romance em estudo a partir desta última interpretação, focalizando que o silêncio de Bertha Mason sugere a imposição da autoridade colonial sobre o subalterno e que sua loucura pode ter sido consequência da opressão e repressão coloniais sofridas após o casamento, e não, causa genética, como atestaria uma leitura colonialialista (cf. FOUCAULT, 2009). Ainda pela ótica póscolonialista, interpretamos que ela pode ter sido animalizada pelo discurso europeu, e sua loucura pode estar associada ao transplante ideológico de raça, à imposição de seu embranquecimento pelo colonizador, como discorre Fanon (1983). Nesses termos, a leitura pós-colonialista visa, também, a desvendar o significado de civilização,
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revelando a possibilidade de ela carregar consigo um sentido negativo, de que, por meio do conhecimento, do Evangelho, da modernização e liberdade, ela também pode servir para escravizar o outro. Ou seja, civilizar pode ser uma alternativa ideológica para efetuar a colonização. De acordo com Moretti (2003, p. 37), a riqueza colonial é um assunto frequente nos romances sentimentais britânicos do século XIX, uma vez que
As colônias são uma presença verdadeiramente ubíqua: são mencionadas em dois romances em cada três, e as fortunas feitas no exterior chegam a um terço, senão, mais, da riqueza nesses textos.
A Jamaica é um exemplo dessas colônias, devido a ela enviar as riquezas para mundos distantes, como se verifica em Jane Eyre (2008), através de Bertha Mason, a personagem que atrai o olhar europeu. Nos romances, as histórias das fortunas coloniais costumam ser narradas em forma de comentários rápidos, duvidosos e míticos, como é a história contada por Rochester sobre a origem de seu casamento. O que se evidencia nesses romances é, portanto, a relação colonialismo e capitalismo, personagens de um centro industrial atravessando o Atlântico para ocupar territórios vazios e, por conseguinte, explorar suas riquezas, usando, para tal fim, o trabalho escravo. O olho do europeu preenche esses vazios com sua força, com sua ideologia, com sua cultura e torna-se dono das novas terras e de tudo o que nela existe, inclusive seu povo (cf. BONNICI, 2000, p. 69). Ao fazer isso, o colonizador age como supersujeito, ao considerar-se como centro, enquanto outremiza o nativo, criando, assim, uma relação hierárquica definida pela superioridade da raça branca sobre a não branca (cf. BHABHA, 2010, p. 173-174). Charlotte Brontë cria o personagem Edward Rochester exatamente para exercer esse papel. Ele deixa a Europa, atravessa o Atlântico e chega às Índias Ocidentais, de onde sai rico, após casar-se com Bertha Mason. A abundância de enredos descrevendo a expansão colonial e o levantamento de riquezas nas novas terras, como já foi dito, fez parte do cotidiano de Brontë, seja pelas narrativas da empregada Taby, seja pela leitura de romances narrando histórias de navegações e conquistas territoriais, como As viagens de Gulliver, mais tarde mencionado em Jane Eyre (2008), como uma das histórias prediletas de Jane Eyre. No
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romance, a narradora, também, não omite a sua preferência por aulas de geografia, outro fato que pode tê-la ajudado a narrar suas memórias, principalmente, a parte que envolve o casamento de Rochester com Bertha Mason, simbolizando a colonização inglesa no Caribe, especificamente, na Jamaica. Sob seu ponto de vista, Jane Eyre conta essa história, baseando-se no que ouviu de Rochester no dia em que seria seu casamento com o patrão, quando ele lhe informa em que circunstâncias ocorrera a sua união com a caribenha. Assim, Brontë (2008) constrói uma narrativa dentro de outra narrativa. Para a leitura que estamos fazendo, a escolha dessa estrutura textual pode remeter a uma corroboração da ideologia ocidental (cf. SPIVAK, 2010), porque isso significa dar voz dupla ao europeu, ao demonstrar a complexidade de suas narrativas, ao passo que anula a voz do colonizado, negando-lhe o direito de, também, narrar o fato de seu ponto de vista. A partir do discurso europeu, representado pela narradora Jane Eyre, pelo esposo Rochester e pelo hoteleiro de Thornfield, o qual ganha um pouco de espaço na narrativa no final do romance, contando o episódio da destruição da mansão, passaremos agora a analisar a relação colonial e racial no romance, destacando a questão da loucura e do silêncio, relacionando-a à construção da alteridade, ou à animalização de Bertha Mason. De acordo com Hardt e Negri (2000, p. 124; tradução nossa), o sujeito colonizado é construído no imaginário metropolitano como alteridade. A “Alteridade não é dada, mas produzida.”1 (HARDT; NEGRI, 2000, p. 125; tradução nossa). O outro é uma produção cultural cujo pedestal é a natureza. Quando Jane Eyre faz as primeiras descrições de Bertha Mason, a representação que ela cria sobre o sujeito colonial sugere mais o aspecto de um animal do que o de um ser humano, ao narrar o episódio do incêndio do quarto de Rochester, relatando que o som que ouvira “Era um riso demoníaco – baixo, estrangulado e profundo – gorgolejando, ao que parece, bem no buraco da fechadura do quarto.”2 (BRONTË, 2008, p. 94). Todos esses sons descritos por Jane Eyre não parecem ser de um animal domado, obediente, mas de um ser revoltado, gritando por liberdade e desafiando uma ordem. O riso demoníaco funciona como zombaria, como atitude sarcástica de uma 1
“Alterity is not given but produced.” This was a demoniac laugh – low, suppressed, and deep – uttered, as it seemed, as the very key-hole of my chamber-door. (BRONTË, 2001, p. 126)
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entidade inferior, diante da arrogância de uma entidade dita superior. Continuando a narrar a cena, Jane Eyre ainda diz que “Qualquer coisa casquinhou e gemeu” 3 (BRONTË, 2008, p. 94). “Qualquer coisa” revela menosprezo, indiferença, racismo, e não sugere a ideia de que se tratasse de gente, assim como “fantasma-gargalhante”, outra expressão que ela costumava usar para chamá-la. A outremização aqui é mais nociva, porque qualquer coisa pode até não ser um animal, mas um objeto. Na noite em que Jane Eyre entra no quarto de Bertha Mason para cuidar de Richard Mason ela fala que vinha do quarto interno, onde a louca ficava trancafiada, “um rosnado irritado, quase como o de um cão.”4 (BRONTË, 2008, p. 130). Mais uma vez, a narradora deixa subentendido que o animal não se submete à vontade do dono, pois a sua irritação quer dizer encolerizar-se, impacientar-se com uma situação que não lhe agrada. O animal aqui descrito não é aquele domesticado, que entende o seu lugar, mas aquele que perturba a autoridade. Ao descrever Bertha Mason, Jane Eyre usa os significantes “besta-fera”, “demônio”, e confidencia ao leitor sua dificuldade em afirmar o que via diante de si: “Que criatura era aquela que, disfarçada num corpo e num rosto humanos, às vezes casquinhava o riso de um demônio sarcástico, às vezes emitia o grito de uma ave de rapina em busca de presa?” 5 (BRONTË, 2008, p. 132). Ao descrever os sons como irritantes, demoníacos, gargalhantes, e, ao nomear o animal de cão ou ave de rapina, Jane Eyre constrói um texto com armadilha, ambíguo, pois, ao tempo que é construído para dizer que o outro é inferior, acaba dizendo que esse outro é superior, porque esses sons e esses tipos de animais servem para caracterizar Bertha Mason como sujeito e, não, como alteridade, ao revelar a sua capacidade revolucionária, como veremos abaixo. Quando Jane Eyre narra a cena do véu, descreve Bertha Mason como uma criatura monstruosa, aterrorizante com um “rosto horrendo, selvagem!” 6 (BRONTË, 2008, p. 177). A selvageria da jamaicana é associada aos caracteres de sua raça: cor purpúrea, “Os lábios grossos e escuros. A fronte enrugada. As sobrancelhas pretas,
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Something gurgled and moaned. (BRONTË, 2001, p. 126). a snatching sound, almost like a dog quarrelling. (BRONTË, 2001, p. 178). 5 What creature was it, that, masked in an ordinary woman’s face and shape, uttered the voice, now of a mocking demon, and anon of a carrion-seeking bird of prey? (BRONTË, 2001, p. 179). 6 ‘It was a discoloured face – it was a savage face.’ (BRONTË, 2001, p. 242). 4
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largamente arqueadas sobre os glóbulos sanguíneos.”7 (BRONTË, 2008, p. 177). Ao chamar o outro de selvagem, Jane Eyre deixa implícita a sua própria arrogância, por estabelecer como parâmetro de beleza a definição facial da raça branca. Dessa descrição, Jane Eyre conclui que Bertha Mason se parece com um vampiro, o que a coloca novamente em uma armadilha, porque, aqui, o vampirismo pode ser uma metáfora de retomada da força vital sugada por um poder patriarcal ou colonizador. Ao contar a história da aparição de Bertha Mason a Rochester, a narradora não esconde seu medo, seu pavor, sua perplexidade pelo objeto descrito. Bertha Mason é tratada como objeto, porque Jane Eyre coisifica o sujeito negro, ao reduzi-lo à condição animal. Por outro lado, o medo de Jane Eyre denuncia a sua fragilidade em oposição à força, ou resistência, de Bertha Mason. A animalização da crioula é mais intensa na parte em que é apresentada por Rochester, onde Jane Eyre associa seu modo de caminhar com o de um animal, sob a forma de saltos e gatinhamentos, bem como relaciona a sua voz com o grunhido de uma fera, embora isso sirva, também, para mostrar uma qualidade da alteridade: sua esperteza, sua capacidade de elaborar estratégia para surpreender o dominador e lutar contra ele. Outrossim, a animalização de Bertha Mason pode ser evidenciada na gradação de predicativos negativos (hiena, demônio, vampiro, fera, monstro, dissimulada, lunática, louca, dentre outros), sendo, inicialmente, construída por Jane Eyre, depois, confirmada por Grace Poole e, finalmente, chancelada pelo poder patriarcal, isto é, pelo discurso de Rochester. Contudo, o que mais se destaca nessa cena é o habitat de Bertha Mason: um quarto sem janelas, cercado por grades altas e fortes, nos fundos de outro quarto. Nele, um vulto enfurecido que vai e volta de uma extremidade a outra do local cuja imagem faz lembrar uma dança. De acordo com Bonnici (2000, p. 141), a dança é uma forma alternativa da expressão da alteridade. No que concerne à imagem geral, isto é, Bertha Mason trancafiada em um pequeno lugar, ela se assemelha a de um enorme animal feroz dentro de uma jaula, procurando libertar-se de uma prisão. Além disso, uma “Grande
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‘the lips were swelled and dark; the Brow furrowed; the Black eyebrows widely raised over te bloodshot eyes.’ (BRONTË, 2001, p. 242 ).
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massa de cabelos negros e emaranhados, incultos como uma juba.” 8 (BRONTË, 2008, p. 183), a cobrir a cabeça e face dela, faz relacionar o comportamento de Bertha Mason com o de um animal, por ela desprezar seu corpo, ao não cuidar de sua aparência física. Outra passagem que evidencia o desdém da europeia pela face da caribenha é: “Os seus olhos rutilavam negros e selvagens, e a massa dos seus cabelos esvoaçava tragicamente, como uma nuvem de tormenta dilacerada pelo raio.”9 (BRONTË, 2008, p. 80). As descrições do retiro sugerem, assim, que Bertha Mason vivia em péssimas condições ambientais; ela era tratada como um animal selvagem em um espaço regido por um forte sistema de controle social, equiparado ao das prisões do século XIX (cf. FOUCAULT, 2011). Outro detalhe acerca da personalidade da jamaicana, observado por Jane Eyre, quando ainda narra a cena de sua espetacularização10, diz respeito à sua virilidade, à sua força física, que não só pode representar a sua determinação biológica para o trabalho forçado, igualando-a a um animal selvagem (cf. CARLYLE, 2012), mas também pode significar a sua coragem para enfrentar o regime colonial. A primeira vez que vemos Rochester animalizar sua esposa verbalmente é no dia em que ela estrangula Richard Mason, ao chamá-la de lobo enquanto nomeia a empregada de ovelha e se autodefine como pastor: “Seria um mau pastor se tivesse deixado uma ovelha – a minha ovelha favorita – tão próxima da furna de um lobo e indefesa. Você estava em segurança.” 11 (BRONTË, 2008, p. 135). A comparação com um lobo também é dúbia, porque tanto serve para descrever uma imagem negativa de Bertha Mason, por defini-la como animal, como serve para enaltecer sua personalidade, pois o lobo é um ser valente e de audição muito apurada; além disso, é um animal que 8
A quantity of dark, grizzled hair, wild as a mane, hid its head and face. (BRONTË, 2001, p. 250). 9 The eyes shone dark and wild; the hair streamed shadowy, like a beamless cloud torn by storm or by electric travail. (BRONTË, 2001, p. 107). 10 Do Classicismo à Renascença, todas as formas do mal deviam ser mantidas em segredo, exceto, o louco, o qual devia ser conduzido à espetacularização, ao escândalo público. A exposição pública consistia em dar ao mal um poder de exemplo e resgate. Até o começo do século XIX, o louco continua a ser interpretado como um monstro, imediatamente relacionado com sua animalidade, que merece ser mostrado. Com a psiquiatria positiva do século XIX, as práticas de uma cultura clássica foram sendo repensadas (procurou-se evitar o escândalo com o internamento ou retiro doméstico, procedimentos que deveriam constituir segredo familiar), mas ainda habitadas pela ética do escândalo da animalidade (FOUCAULT, 2010, p. 145-159). 11 ‘I should have been a careless shepherd if I had left a lamb – my pet lamb – so near a wolf’s den, unguarded: you were safe.’ (BRONTË, 2001, p. 184).
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trabalha em grupo. Com isso, Rochester sugere que se Bertha Mason não podia falar, ela poderia recorrer a esse outro sentido para lutar contra a opressão em Thornfield, e, assim, defender, metonimicamente, o seu povo. Rochester ainda fabrica o outro quando insinua que sua esposa é uma criatura violenta, ao perguntar para Grace Poole, no momento em que se aproxima da esposa para exibi-la ao público: “Desta vez ela não tem faca?” (BRONTË, 2008, p. 183)12. Essa idéia é reforçada pelo discurso da enfermeira da louca, devido a ela dizer, repetidamente, para o patrão que tenha cuidado com a esposa. Embora separados socialmente pela classe, os dois sujeitos brancos compartilham da ideia de que Bertha Mason, o subalterno, é uma pessoa astuciosa, propensa para o crime. Por outro lado, a insinuação de Bertha Mason estar armada indica sua preocupação em defender-se do colonizador. Outro momento que marca a inferiorização do sujeito colonial em Jane Eyre (2008) é aquele em que Rochester faz o espetáculo público de Bertha Mason, articulando um discurso de homem inocente, em legítima defesa: Eis a minha esposa – disse. – Esse é o único abraço conjugal com que eu tenho conhecido, esses são os carinhos que têm consolado as minhas horas de repouso! E isto foi o que eu quis obter, [...] esta jovem que se mantém tão serena e grave na boca do inferno, olhando, senhora de si, para os arreganhos do demônio. Eu a quis justamente como um contraste com este horror. Wood e Briggs, olhem a diferença! Comparem estes claros olhos com aquelas bolas vermelhas dali. Esta face com aquela máscara. Esta forma com aquela massa. E julguem-me, padre do Evangelho e o homem da Lei, e lembrem-se de que, pelo julgamento que fizerem, serão julgados! Agora, saiam. Vou libertar a minha presa.13 (BRONTË, 2008, p.183).
A entonação que Rochester dá à “minha esposa” pode ser interpretada pelo menos de duas formas: uma, ressaltando a ideia de dono do subalterno feminino e colonizado, e outra, acentuando seu desprezo, a sua antipatia pela alteridade. Essa 12
“she has no knife now, I suppose?” (BRONTË, 2001, p. 250). ‘That is my wife,’ said he. ‘Such is the sole conjugal embrace I am ever to know – such are the endearments, which are to solace my leisure hours! And this what I wished to have’ […] ‘this young girl, who stands so grave and quiet at the mouth of hell, looking collectedly at the gambols of a demon. I wanted her just as a change after that fierce ragout. Wood and Briggs, look at the difference! Compare these clear eyes with the red balls yonder – this face with that mask – this form with that bulk; then judge me, priest of the gospel and man of the law and remember, with what judgment ye judge ye shall be judged! Off with you now. I must shut up my prize.’ (BRONTË, 2001, p. 251). 13
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segunda interpretação está mais explícita, porque o europeu contrasta claramente as duas raças, a branca e a não branca, ao comparar Bertha Mason com Jane Eyre, usando o recurso da cor dos olhos, um dos elementos que os antropólogos levam em consideração para diferenciar as raças. Rochester ainda estabelece a fronteira racial, ao atribuir uma imagem humana para a “inglesinha”, ao decifrar sua face como de gente, enquanto confere à jamaicana o aspecto de um monstro, já pressuposto pela expressão “arreganhos do demônio” usada por ele no início da comparação para caracterizá-la. Outra expressão que ressalta o sentido de posse, de domínio é “minha presa”. No texto original, o caso é pior, porque a palavra usada é “prize”, prêmio, que dá um tom sarcástico e amargo à frase, e conjuga com a lenda da phármakon, de não se poder recusar um prêmio. O que ainda chama a atenção na cena da espetacularização de Bertha Mason é a relação linguagem e colonialismo. Quem possui o poder de controlar o discurso é Rochester, apenas ele é quem tem autoridade para a “apresentação da verdade” 14, como relata Jane Eyre (BRONTË, 2008, p. 184). Contudo, o silêncio sobre a identidade do sujeito colonizado é rompido no dia em que Rochester casaria com sua “inglesinha”, quando Richard Mason testemunha a denúncia de crime de bigamia do europeu feito por seu advogado Briggs, invertendo, assim, os papéis entre civilizado e bárbaro, pois quem cometeria a bigamia, considerada pela ideologia ocidental uma prática de seres menos evoluídos (os africanos, os mulçumanos, etc.), seria um europeu. Nesse contexto, Rochester é convocado a contar a história de seu casamento, “a verdade” sobre sua esposa. A primeira informação que ele dá, ainda na igreja, é que a mulher que desposara era uma louca, filha de uma crioula que também era louca, informação que ele só conhecera após ter-se casado, já que consistia em um segredo de família. A seguir, Rochester, já na mansão, mostra a prova viva de sua realidade, ao exibir sua companheira louca, trancafiada no terceiro andar, vivendo como um animal selvagem preso em uma jaula. Mas a informação mais importante que ele conta, agora só a Jane Eyre, depois de todos terem saído de Thornfield, é que seu casamento tinha sido um negócio arranjado por seu pai e pelo pai da noiva, um rico lavrador e 14
the truth had been uttered by my master. (BRONTË, 2001, p. 252).
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comerciante nas Índias Ocidentais. Rochester diz que, de fato, como atestava o documento apresentado por Briggs, seu casamento havia sido realizado em Spanish Town. Vivera na Jamaica por quatro anos e só após decorrido esse tempo, o europeu descobriu a loucura da esposa. Quando os médicos atestaram sua doença, Bertha Mason passou a viver trancada, porém já não mais suportando a loucura da jamaicana e a vida tropical, Rochester imagina levá-la para a Europa: Lá não se conhece o nome conspurcado que tens, nem o fardo imundo que carregas. Leva a louca para a Inglaterra. Instala-a em Thornfield, com a devida solicitude e as cautelas necessárias [...] Deixa que caiam no esquecimento a sua identidade e sua ligação contigo. Cerca-a de conforto e vigilância. Envolve em segredo a sua degradação – e abandona-a [...] Trouxea, então para a Inglaterra. Fiz com o monstro uma viagem temerária. Fiquei contente quando, por fim, alcancei Thornfield e a vi seguramente confinada naquele quarto do terceiro andar, cujo compartimento há dez anos ela transformou em jaula de fera e furna de duende. Tive muito trabalho para arranjar-lhe um guarda: era preciso escolher alguém cuja fidelidade estivesse provada, porque os delírios da louca trairiam inevitavelmente o meu segredo. Além disso, a doente tinha momentos lúcidos, dias, às vezes, semanas inteiras – intervalos que me enchiam me insultando. Afinal encontrei Grace Poole, do Grimsby Retreat. Ela e o cirurgião Carter [...] são as duas únicas pessoas que admiti no meu segredo [...] A louca é, ao mesmo tempo, velhaca e malvada [...] Quando a imagino, pendendo para o leito do meu amor, a cara negra e intumescida da fera que esta manha se atirou à minha garganta, sinto o sangue gelar.15 (BRONTË, 2008, p. 192).
Essa passagem ilustra bem a política colonial em Jane Eyre (2008), a relação colonialismo e capitalismo, ao mostrar o despotismo do europeu com o outro, a estratégia usada por ele para aniquilar a identidade estrangeira, enquanto procura 15
“there it is not known what a sullied name you bear, nor what a filthy burden is bound to you. You may take the maniac with you to England; confine her with due attendance and precautions at Thornfield […] Let her identity, her connection with yourself, be buried in oblivion: you are bound to impart them to no living being. Place her in safety and comfort: shelter her degradation with secrecy, and leave her.” […] ‘To England, then, I conveyed her; a fearful voyage I had with such a monster in the vessel. Glad was I when I at last got her to Thornfield, and saw her safely lodged in that third-storey room, of whose secret inner cabinet she has now for ten years made a wild beast’s den – a goblin’s cell. I had some trouble in finding an attendant for her: as it was necessary to select one on whose fidelity dependence could be placed; for her ravings would inevitably betray my secret: besides, she had lucid intervals of days – sometimes weeks – which she filled up with abuse of me. At last I hired Grace Poole, from the Grimsby Retreat. She and the surgeon, Carter […] are the only two I have ever admitted to my confidence. […] The lunatic is both cunning and malignant; […] When I think of the thing which flew at my throat this morning hanging its black and scarlet visage over the nest of my dove my blood curdles’ (BRONTË, 2001, p. 263-264).
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resguardar a sua, segredando a história de um casamento inter-racial por interesse capitalista. Rochester toma providências para que a Inglaterra não tome conhecimento de Bertha Rochester, ao segregá-la em Thornfield durante uma década. Para isso, ele usa o dinheiro da própria esposa para pagar uma enfermeira e um médico 16 para serem seus cúmplices na manutenção da loucura da esposa. É possível que a loucura de Bertha Mason tenha sido fabricada, consequência da opressão colonial e feminina e da imposição cultural, inclusive da raça, de forma ideológica, imposta por Rochester. Isso pode justificar a doença de Bertha Mason, devido à sua loucura ter sido manifestada ou piorada só após quatro anos de relação conjugal. Essa hipótese ainda pode ser verdadeira se levarmos em consideração que o casamento do europeu com a jamaicana simbolizou uma empreitada colonialista, isto é, a exploração da colônia Jamaica pela metrópole Inglaterra. Rochester casa-se com uma crioula, mas não é qualquer crioula, é a filha de um homem com vastas posses nas Índias Ocidentais. O interesse capitalista do europeu é o que justifica a união racial do branco com a negra. O aprisionamento de Bertha Mason adquire o sentido de abandono pelo que o europeu faz depois disso: - E que fez o senhor depois de escondê-la? Para onde foi? [...] - O que fiz, Jane? Virei fogo-fátuo. Para onde fui? Percorri o continente e vagabundei por todos os seus países. Minha ideia fixa era encontrar uma mulher inteligente e boa a quem eu pudesse amar: um contraste com a megera que tinha ficado em Thornfield...17 (BRONTË, 2008, 193).
Enquanto mantinha a esposa sob controle em um espaço doméstico, Rochester gozava de liberdade plena, conhecia o mundo, buscava encontrar uma mulher inteligente e boa, o oposto de Bertha Mason, que é descrita como uma megera. Ao dizer 16
Conforme Foucault (2011, p. 178), a partir do século XVIII a medicina passa a funcionar como mais um suporte institucional de controle, ao lado da religião e da administração. O médico tem o poder de examinar, de atestar uma verdade quase perpétua sobre um doente. Assim, sua voz é um discurso incontestável. 17 ‘And what, sir, [...] did you do when you had settled her here? Where did you go?’ ‘What did I do, Jane? I transformed myself into a Will-o’-the-wisp. Where did I go? I pursued wanderings as wild as those of the March-spirit. I sought the Continent, and went devious through all its land. My fixed desire was to seek and find a good and intelligent woman whom I could love: a contrast to the fury I left at Thornfield’----- (BRONTË, 2001, p. 264).
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isso, fica pressuposta a ideia de inferioridade intelectual da raça não branca e sua imagem negativa por ser considerada má, porém não só pela pressuposição estabelecida nessa fala, mas porque antes disso Rochester chama a esposa de louca malvada, e pelos crimes que ela cometera. Por ser negra, Bertha Mason não merecia ser amada. Portanto, por causa de sua raça, a jamaicana é destinada ao abandono. Por outro lado, o discurso de Rochester corresponde a uma autoincriminação, levando-se em conta o emprego do léxico fury no texto original para referir-se a Bertha Mason, que significa fúria. Na mitologia romana, as Fúrias são personificações da vingança, ou deusas da justiça. Elas têm o poder de perseguir ou castigar mortais que cometem crimes, especialmente, contra o matrimônio. Sua aparência expressa semelhanças com a forma vampiresca, pois seus olhos são molhados por sangue 18. Nesse sentido, tanto física quanto moralmente, Bertha Mason pode encaixar-se nesse papel, com o objetivo de castigar seu esposo pelos delitos morais, inclusive financeiros cometidos contra ela. Pela leitura feita, mostrando como o projeto colonialista está implícito, e, às vezes, explicitamente demarcado no fio narrativo, sempre amarrado às questões de raça, tendo como principal representação a metáfora do casamento da jamaicana Bertha Mason com Rochester, pensamos que o silêncio da nativa e o silêncio sobre ela, bem como a sua loucura podem ter sido uma produção da ideologia do colonizador. Sua doença pode ter sido efeito da opressão e repressão impostas pelo esposo europeu, que, depois de explorá-la, simbolicamente, como colônia, e, ainda, como mulher, submete-a a um regime de escravidão, embora ela se mostre resistente a esse regime. Já sua morte pode ser interpretada como a incapacidade de o subalterno ter voz em sua sociedade controlada pelo poder colonial e patriarcal. Por outro lado, o enlace matrimonial de Jane Eyre com Rochester e sua prole podem servir para autenticar o triunfo da raça europeia sobre a não europeia. Contudo, a justificativa para esse triunfo não está relacionada com a ideologia da seletividade darwiniana, de que o europeu venceu o não europeu, porque biologicamente nasceu determinado a ser superior a ele; ela está fundada na conjugação do colonialismo com o capitalismo, no despotismo inglês.
Cf. Erínias. Disponível em: . Acesso em : 3 set. 2013. 18
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Referências BHABHA, H. K. O Local da Cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. 5.ed. Belo Horizonte: UFMG, 2010. BONNICI, T. O pós-colonialismo e a literatura: estratégias de leitura. 21. ed. Maringá: Eduem, 2000. BRONTË, C. Jane Eyre. Trad. Valdemar Rodrigues de Oliveira. Belo Horizonte: Itatiaia, 2008. ______. DUNN, R. J. (ed.). Jane Eyre. 3. ed. New York/London: W.W. Norton & Company, 2001. CARLYLE, T. Occasional Discourse on the Negro Question. In: PLUNKETT, J. et al. Victorian Literature. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2012. p. 236-238. DERRIDA, J. A Escritura e a Diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. 3. ed. São Paulo: Perspectiva S. A., 2002. Erínias. Disponível em: . Acesso em : 3 set. 2013. FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Maria Adriana da Silva Caldas. Rio de Janeiro: Fator, 1983. FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2009. ______. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 39 ed. Trad. Taquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. HARDT; M.; NEGRI, A. Empire. London: Harvard, 2001. MORETTI, F. Atlas do romance europeu: 1800-1900. São Paulo: Boitempo, 2003. SPIVAK, G. C. Pode o Subalterno Falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
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A RESISTÊNCIA FEMININA PRESENTE NO CONTO ENTRE AS FOLHAS DO VERDE O, DE MARINA COLASANTI
Vanessa Aline F. Capeloto (UEM) A literatura acompanha o caminhar da humanidade desde tempos muito remotos e, dessa forma, consiste, dentre outras coisas, em um importante mecanismo de representação do percurso trilhado pelo ser humano nos mais diversos momentos da sociedade. Esta representação, no entanto, não se encontra desvencilhada dos valores sociais, culturais, políticos, econômicos e históricos ditados pela ideologia, que os rege. Em decorrência disso, podemos perceber que os grupos que, ainda que façam parte da sociedade, encontram-se forçosamente em uma posição de submissão em relação à força dominante vigente, têm sua representação silenciada, omitida ou mesmo “deformada” na literatura, em especial na dita literatura canônica. E esse evento é facilmente exemplificado: basta voltarmos o olhar para a figura da mulher ou mesmo para a figura do negro, artisticamente representados. Dessa forma, precisamos estar atentos às situações de afirmação ou reafirmação das relações de poder perpetuadas por meio da literatura. Nesse sentido, movimentos sociais e políticos fomentados por tais grupos marginalizados ganharam força ao longo dos anos e, entre uma conquista e outra (por exemplo, o direito ao voto), ganham espaços, ainda que timidamente no ambiente literário e acadêmico. Literaturas dissonantes da canônica emergem e despertam a atenção de teóricos, os quais tentam traçar os aspectos literários característicos dessas obras. Assim, em meados do século XX, preocupações que extrapolam a análise apenas da estrutura textual ganham forças e trazem à baila discussões acerca da condição de grupos há tempos marginalizados tencionando pôr em xeque binarismos e construtos sociais opressores cristalizados pela sociedade. Nesse contexto, surgem linhas teóricas como o feminismo e o pós-colonialismo. Estas teorias, embora se distanciem segundo o objeto que analisam (a figura da mulher e a figura do indivíduo colonizado, respectivamente), paradoxalmente relacionam-se de forma visceral. Como consequência, são capazes de interagir, contribuindo na ampliação interpretativa do texto literário. Partindo dessa possibilidade relacional entre as teorias, temos o objetivo deste artigo, o qual visa analisar a resistência – elemento do pós-colonialismo – presente no fazer literário de uma mulher, a saber a escritora Marina Colasanti. Ao considerarmos o contexto de produção do conto – o ano de 1970–, poderíamos apontar uma resistência sócio-política por parte da escritora, visto que se trata de um período em que a mulher ainda é muito subjugada e está em busca de espaço, no caso de Colasanti, espaço no meio literário. Desse modo, mesmo inserida em
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um ambiente dito masculino ela não se intimida, assumindo uma postura de resistência, a fim de se estabelecer enquanto escritora. A resistência como postura parece bifurcar-se em caminhos distintos, gerando, como um de seus “braços”, uma vertente que compreende a resistência por meio de práticas violentas, a exemplo das revoluções e guerrilhas. Essa concepção é apregoada por Frantz Fanon (1925-1961), como aponta Bonnici: Frantz Fanon faz uma apologia da violência como estratégia mais eficaz contra o colonialismo [...] e, consequentemente em todos os contextos em que há a invasão, a aniquilação da cultura e em que se pretende a descolonização. ‘O homem colonizado se liberta pela violência’ (FANON, 2006, p.112) (BONNICI, 2009, p. 443)
Paradoxalmente, surge, também, como outro “braço” da resistência, a visão da resistência desassociada de violência, a qual tem em Gandhi seu principal símbolo. A respeito disso, Bonnici afirma que o Ocidente erra por meio de suas práticas de opressão ou de afirmação de soberania não-restrita sobre outros; o não-Ocidente também é culpado quando aceita a sujeição ou a soberania insuficiente sobre si mesmo. [...] Nasce, portanto, o sujeito revolucionário de autocontrole cuja liberdade da sujeição às leis injustas do governo imperial se inicia através de um programa de autocontrole (BONNICI, 2009, p. 443).
A posição defendida por Gandhi é reforçada por teóricos que apontam outros meios, não explicitamente violentos, de resistência, os quais se valem da carga cultural, religiosa e linguística do colonizado como “arma” contra o colonizador. Dessa forma, temos a resistência enquanto tentativa de subversão da força opressora (seja essa força a figura do colonizador ou mesmo a ideologia patriarcal vigente). Essa resistência se realiza a partir de aspectos artísticos – no caso da literatura, por meio da linguagem – e objetiva a mudança de postura da sociedade por meio da conscientização. Nesse sentido, a resistência na literatura se realiza a partir do modo como as personagens e as ações dessas personagens são representadas. Ao pensarmos na capoeira durante a escravidão ou mesmo logo após a abolição, por exemplo, temos uma atividade muito significativa para os negros, visto que representava um elo com a nação da qual eles foram tirados. No entanto, essa atividade era extremamente desprezada pelos senhores de escravos, logo, pela sociedade que “acolheu” esses negros após a abolição. Assim, os homens que insistiam em praticar a capoeira, assumiam uma postura de resistência frente ao opressor, de modo que, se essa atividade for representada em uma obra literária ressaltando os valores da cultura afrodescendente, temos a representação artística da resistência que age como um contra discurso em relação à representação artística, realizada normalmente pela ideologia dominante, a qual atribui caráter pejorativo à capoeira. Em se tratando da representação
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literária da mulher podemos observar a mesma problemática. Assim, a localização da resistência feminina na literatura é de extrema importância para a subversão dos valores patriarcais naturalizados ao longo dos anos. Entre as folhas da resistência Ao considerarmos o espaço e as possibilidades destinadas às mulheres, mais especificamente as brasileiras, na década de 70, podemos apontar de início a própria postura social de Marina Colasanti enquanto escritora como um ato de resistência, visto que ela se insere e se mantém no espaço literário, o qual é dominado pelo homem. Além disso, o fazer literário de Colasanti também caracteriza um modo de resistência. A escritora faz uso de estruturas textuais carregadas de valores patriarcais e subverte-as a partir de uma linguagem extremamente feminina. Desse modo, percebemos que seu propósito é a conscientização por meio da arte. Trata-se, portanto, do uso de um aspecto comumente abordado dentro da teoria do pós-colonialismo – resistência – mas que, como podemos observar, é tranquilamente cabível às discussões acerca da mulher. Assim, temos a resistência como um artifício de transformação, pois, como aponta Bonnici, o revide e a resistência, postos em suas condições concretas, são retratados não apenas pela violência, mas especialmente pela violência discursiva para a recuperação [afirmação] da identidade e da cultura e para a transformação da objetificação em subjetividade. (BONNICI, 2009, p.16).
O conto que estudaremos, Entre as folhas do verde O, faz parte de um livro de contos de Marina Colasanti intitulado Uma ideia toda azul, o qual foi publicado em 1979 e classificado como infanto-juvenil. Torna-se pertinente apontar a estrutura usada na elaboração do referido conto, visto que se trata de uma estrutura que se vale – e muito – dos elementos característicos aos contos de fadas tradicionais. Nesse sentido, não podemos nos esquecer do caráter formador atribuído a esse gênero literário, uma vez que os valores da nova classe social que emergia na época de sua voga, a burguesia, necessitavam ser solidificados. [A literatura infantil] depende também da escolarização da criança, e isso a coloca numa posição subsidiária em relação à educação. Por consequência, adota posturas às vezes nitidamente pedagógicas, a fim de, se necessário, tornar patente sua utilidade. Pragmática igualmente por este aspecto, inspira confiança à burguesia, não apenas por endossar valores desta classe, mas sobretudo por imitar seu comportamento. (LAJOLO & ZILBERMAN, 2007, p.18)
Dessa forma, o aspecto conformador parece ser inerente a esse tipo de narrativa e, logo, inerente também ao leitor mirim dessas histórias. As caracterizações e as ações
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das personagens – príncipes, princesas, fadas, entre outros – que povoam o universo maravilhoso dessas narrativas são assimilados inquestionavelmente pelas crianças. Como consequência, a ideologia que segue nas entrelinhas das histórias também é transmitida sem objeções. Podemos apontar, como exemplo desse evento, mulheres que ainda hoje insistem com a idealização de homem perfeito remetendo à ideia de “príncipe encantado”, apregoada a partir dos contos de fadas. Temos, também, nesse tipo de literatura, a cristalização de posturas femininas que não lhes são naturais, por exemplo, a ideia de fragilidade e sensibilidade extremada das mulheres, resquícios das posturas reservadas às jovens princesas. Além disso, o ideal de família cultivado pela emergente classe burguesa é produto do casamento feliz comumente representado nos desfechos dos contos de fadas. Tais fatores são exemplos que nos levam a perceber a responsabilidade dessas narrativas para a solidificação de muitos dos valores opressores em que nos encontramos inseridos. Mas, onde localizaríamos a resistência de Colasanti? Como já apontamos anteriormente, essa escritora se vale de uma estrutura textual reconhecida e impregnada pela ideologia dominante, mas a leitura atenta acerca da caracterização e das ações das personagens criadas por ela denota uma atitude de resistência, visto que parece subverter a estrutura tradicional. Um exemplo patente é o fato de que, no conto Entre as folhas do verde o, a figura do príncipe permanece na narrativa. Ele continua habitando o palácio e aparece caracterizado de acordo com os valores sociais de sua posição, ou seja, amante da caça e acostumado a ter o que deseja, como fica claro quando a autora o apresenta: “O príncipe acordou contente. Era dia de caçada. Os cachorros latiam no pátio do castelo. Vestiu o colete de couro, calçou as botas. Os cavalos batiam os cascos debaixo da janela.” (COLASANTI, 1979, p. 21). Temos, então, a figura masculina representando a virilidade cultivada pela ideologia patriarcal. Em contrapartida, a personagem feminina no conto – a mulher-corça – expressa logo de início uma postura resistente a essa força dominante. Isso porque, ao sinal da aproximação do príncipe “caçador” todos na floresta fogem, mas ela se mantem firme à espera: “Na floresta também ouviram a trompa e o alarido. Todos souberam que eles vinham. E cada um se escondeu como pôde. / Só a moça não se escondeu.” (COLASANTI, 1979, p.21). Além disso, temos a contraposição do espaço palácio – remetendo ao lugar onde se tem uma vida regida por princípios sociais, logo, onde muito do que é instintivo ao ser humano é contido em razão da organização social “necessária” para a vida em sociedade – e o espaço floresta – denotando uma vivência em liberdade ao que é natural do ser, ou seja, desprovido de amarras sociais. Além disso, a relação entre os dois espaços caracterizados na narrativa podem simbolizar a representação da relação metrópole/colonizador, e colônia/colonizado, uma vez que a invasão dos “palacianos”, reforçada pela atitude do príncipe de dominação da nativa (ele a leva obrigada para o palácio) parece ser, ao consideramos o deslocamento espacial e consequentemente a
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aculturação que lhe será imposta, uma representação simbólica da própria relação de dominação entre os colonizadores europeus e os colonizados, ou ainda, do homem dominante e da mulher submissa, como podemos observar no trecho: “Levaram a corça para o castelo. Veio o médico, trataram do ferimento. Puseram a corça num quarto de porta trancada.” (COLASANTI, 1979, p. 21). Vale ressaltar que, embora nesse conto não tenhamos as características físicas do príncipe textualmente marcadas, a figura dessas personagens historicamente construída é do sujeito com feições europeias. Lembremos também que a princesas que povoam os contos tradicionais seguem os padrões europeus, logo, nesse aspecto, equiparam-se aos seus parceiros. Colasanti, no entanto, subverte esses estereótipos ao lançar mão de uma protagonista que se distancia dos padrões de beleza esperados e a aproxima mais uma vez do sujeito colonizado por apresentar características “exóticas” em relação aos padrões europeus: “Foi assim que o príncipe a viu. Metade mulher, metade corça, bebendo no regato. A mulher tão linda. A corça tão ágil. A mulher ele queria amar, a corça ele queria matar.” Podemos observar que essa relação com a aparência é elemento marcante na narrativa, afinal, a característica que afasta a amada do “script” é abominada pelo príncipe. Essa representação aparentemente descomprometida, por um lado, reforça a relação de dominação sofrida pela protagonista – em vezes de mulher colônia – visto que ela sofre a ação do dominante por não se enquadrar nos moldes de beleza socialmente delimitados. Por outro lado, denota implicitamente um aspecto de resistência discursiva, visto que enquanto corça – vale ressaltar que esta é a característica instintiva, natural, inerente da personagem – ela é “ágil”. Assim, esse adjetivo parece atribuir à protagonista uma força que a equipara ao dominante, ou seja, a corça parece adquirir um caráter desafiador frente ao príncipe, consequentemente, representa a característica que deverá ser extirpada pelo dominante. Desse modo, poderíamos apontar o feminino socialmente delineado ao voltarmos os olhos para a metade mulher. Por outro lado, não podemos ignorar o caráter instintivo latente na metade corsa, de modo que temos uma espécie de equilíbrio entre o animal como símbolo do que é natural, e o humano, o “ser mulher”, visto que essa condição pressupõe os construtos sociais. Essa relação natural versus construto salta aos olhos na narrativa quando observamos a tentativa de sobreposição do lado mulher, e consequentemente do aspecto social, em relação à corça, ação essa forçada por parte do príncipe. Assim, temos uma denúncia sutil feita nas entrelinhas do texto por Colasanti a partir da simbologia atribuída a caracterização dessas personagens, de modo que ao estreitarmos nosso olhar para os detalhes de composição dos protagonistas e dos elementos que os rodeiam, observamos nitidamente a relação de opressão artisticamente representada.
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Essa relação opressora é reforçada pelas atitudes do príncipe que “só sabia ouvir a língua do palácio” (COLASANTI, 1979, p.21) e, logo, analisava a situação a partir de seus preceitos e agia impondo seus valores sem considerar a condição do outro: “Ele queria dizer que a amava tanto, que queria casar com ela e tê-la para sempre no castelo, que a cobriria de roupas e jóias, que chamaria o melhor feiticeiro do reino para fazê-la virar toda mulher.” (COLASANTI, 1979, p. 21-22). Dessa forma, percebemos que a tentativa de aculturação é explícita na narrativa. O dominante visa impor o seu estilo de vida de modo lógico e natural. Em contrapartida, temos mais uma vez a presença da resistência discursiva tecida pela escritora, uma vez que, nos apresenta um contraponto frente a ideologia dominante cedendo voz à própria personagem oprimida, a qual sensibiliza o leitor por declarar de maneira tão visceral e sutil o seu ponto de vista acerca da relação. Ela queria dizer que o amava tanto, que queria casar com ele e levá-lo para a floresta, que lhe ensinaria a gostar dos pássaros e das flores e que pediria à Rainha das Corças para dar- lhe quatro patas ágeis e um belo pêlo castanho. (COLASANTI, 1979, p. 22).
Seu discurso, no entanto, é ignorado pelo príncipe. Os ideais de ambas as personagens são distintos, como podemos verificar a partir da simbologia textual “a corça-mulher só falava a língua da floresta e o príncipe só sabia ouvir a língua do palácio.” (COLASANTI, 1979, p.21) Desse modo, embora, o amor fosse recíproco entre as protagonistas, o que convergiria a um ponto comum de discurso, a concretização desse sentimento vai se mostrando irrealizável no decorrer da narrativa, por conta das imposições que os oprimem. Nesse sentido, temos a mulher-corça em situação de prisioneira, trancafiada em um ambiente oposto ao de seu habitat – “puseram a corça num quarto de porta trancada” (COLASANTI, 1979, p. 21) – e tendo imposta sobre si uma condição que fere profundamente seu espírito e denota o ápice de seu estado de impotência frente aos seus desejos e ideais. Além disso, embora se trata de um episódio narrado de maneira sutil, a simbologia da cisão forçada caracteriza um ato de extrema violência por parte da força dominante, como podemos perceber no excerto abaixo: E no dia em que a primeira lágrima rolou dos olhos dela, o príncipe pensou ter entendido e mandou chamar o feiticeiro. Quando a corça acordou, já não era mais corça. Duas pernas só e compridas, um corpo branco. Tentou levantar, não conseguiu. O príncipe lhe deu a mão. Vieram as costureiras e a cobriram de roupas. Vieram os joalheiros e a cobriram de jóias. Vieram os mestres de dança para ensinar-lhe a andar. Só não tinha a palavra. E o desejo de ser mulher. (COLASANTI, 1979, p. 22).
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Comprovando a incomunicabilidade dos amantes, temos a personagem detentora do poder – o príncipe – agindo, mais uma vez, segundo os preceitos ideológicos que o envolve, a ponto de se equivocar com o sofrimento de sua amada prisioneira ao interpretá-lo como um desejo de mudança física e, por consequência, comportamental. Por conta disso, ele realiza, ainda que inconscientemente, o ato de maior crueldade da narrativa, extirpando dela a metade primordial de sua natureza. A reprovação da mulher-corça a essa nova condição – mulher – é textualmente marcada. Aliás, trata-se de um sentimento mais profundo do que reprovação, visto que remete a algo visceral: o fato de que agora ela não se sente mulher, vivenciando uma situação paradoxal, na qual sua essência não condiz com sua aparência. O príncipe, portanto, conseguiu transformá-la externamente, atribuindo-lhe características condizentes com o ideal social de mulher, mas ela manteve seu íntimo inalterado, transformando-o no motor propulsor de sua busca pela liberdade. Afinal, se por um lado essa mudança imposta reflete uma violência sofrida pela protagonista, por outro lado, também caracteriza o ato fundamental para a reação da dela, uma vez que, diante dessa situação máxima de opressão, a mulher-corça se vale da primeira oportunidade e foge, reação essa que podemos caracterizar como a postura de maior resistência da narrativa, visto que, mesmo amando o príncipe, ela não se sujeita à condição opressora imposta por esse amor: Sete dias ela levou para aprender sete passos. E na manhã do oitavo dia, quando acordou e viu a porta aberta, juntou sete passos e mais sete, atravessou o corredor, desceu a escada, cruzou o pátio e correu para a floresta à procura da sua Rainha (COLASANTI, 1979, p.41).
Essa abdicação da protagonista em relação ao príncipe denota um importante ponto de subversão na narrativa e, assim, de resistência discursiva por parte da escritora, visto que rompe com o esperado “final feliz” dos contos de fadas tradicionais e aponta uma nova possibilidade de realização pessoal que não o casamento. Afinal, a importância social do “se casar” consiste, mesmo na atualidade, em uma cobrança ferrenha à mulher. Por conta disso, não raro observamos mulheres que aceitam sua anulação pessoal em detrimento da realização desse evento e, assim, cumprem com um paradigma social, abdicando da realização pessoal. Nesse sentido, percebemos que a problemática levantada pela narrativa não diz respeito apenas ao casamento em si, mas sim às imposições socialmente construídas que essa instituição pressupõe, especialmente, no que se refere à mulher. Essa dualidade torna latente a simbologia da escolha da mulher-corça pela metade animal, uma vez que essa escolha reflete a abdicação do amor em favor da própria liberdade em relação às amarras sociais: “O sol ainda brilhava quando a corça
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saiu da floresta, só corça, não mais mulher. E se pôs a pastar sob as janelas do palácio” (COLASANTI, 1979, p.22) Essa análise nos leva a apontar as figuras do príncipe e da mulher-corsa no conto como sendo representações artísticas de sujeitos com ideais distintos. O príncipe encontra-se imbricado na ideologia patriarcal e a mulher-corça resiste ao domínio dessa ideologia a partir de uma escolha que segue na contramão do patriarcalismo. Desse modo, a resistência dessa personagem, rompe com o comportamento esperado e denuncia as imposições naturalizadas do dominante, apontando uma nova postura social. Considerações finais A análise do conto Entre as folhas do verde o, de Marina Colasanti, realizada a partir do cabedal teórico elencado pela teoria do pós-colonialismo confirmou a proximidade e a correlação entre o olhar dessa crítica e o da crítica feminista, visto que ambas põem luz à relação de poder perpetuada ao longo dos anos. Trata-se de grupos que foram historicamente marginalizados para que se mantivesse o binarismo – opressor X oprimido – desejado pelo dominante. Desse modo, essas linhas teóricas apresentam uma nova perspectiva social a partir da literatura. Nesse sentindo, observamos que Colasanti se aproxima da estratégia de resistência discursiva recorrente na escrita de escritores do pós-colonialismo, visto que, enquanto ela se vale das estruturas textuais firmadas pelo dominante, a saber: o conto de fadas – as quais consistem em uma narrativa comum de fácil compreensão e de grande aceitação por parte dos leitores, eles se valem da língua do colonizador para se manifestar artisticamente com o intuito de alcançar maior público e com isso uma abrangência maior na tentativa de conscientização da sociedade. Além disso, pudemos acompanhar a subversão de valores por meio da relação apresentada entre as personagens protagonistas do conto. Subversão esta que foi reforçada pela própria caracterização da protagonista da história: a mulher-corça consiste e representa uma postura de resistência da própria escritora em relação a ideologia dominante, visto que, enquanto “dona” da história, Colasanti elabora e eleva a personagem feminina, chegando até mesmo a ceder voz e o direito de escolha a ela dentro do universo textual. Por conseguinte, a protagonista cumpre o papel de representar essa resistência no interior da narrativa, posicionando-se constantemente contra as opressões que o sistema dominante lhe endereça. Essa resistência, no entanto, muitas vezes se concretiza sutilmente por meio de uma escrita repleta de simbologia. Desse modo, a resistência no fazer literário de Colasanti também se faz presente por meio da criação de uma linguagem própria, com vistas a abalar, ainda que sutilmente, certos valores arraigados em nosso inconsciente.
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Este é um livro de contos de fadas, com cisnes, unicórnios, princesas. E antes que alguém se espante com a temática, num mundo de avançada tecnologia espacial, acho importante esclarecer que meu interesse e minha busca se voltam para aquela coisa intemporal chamada inconsciente. Não há, para as emoções, idade ou história. Nem eu, ao tentar escrevê-las, quis me dirigir a pessoas, deste ou daquele tamanho. Preocupei-me apenas em erguer estas construções simbólicas [...] As fadas, eu sei, são por muito acusadas de alienadas e alienantes, por demais afastadas do século XX. [...] Muda a realidade externa. Mas a nossa realidade interior, feita de medos e fantasias, se mantém inalterada. E é com esta que dialogam as fadas interagindo simbolicamente, em qualquer idade, em todos os tempos. (COLASANTI, 1979, prefácio).
Assim, poderíamos relacionar mais uma vez a representação da mulher-corça enquanto porta-voz da resistência da mulher, por se colocar em confronto com a ideologia opressora defendendo sua liberdade de optar pelo que lhe é mais familiar, o que, no caso em questão, é representado pela floresta e a vida natural e instintiva que pode levar nela. Quisera que todos os contos de fadas favorecessem às jovens leitoras tal empoderamento em relação às próprias decisões e escolhas, defendendo-as do sentimento de inferioridade e insegurança que muitas das histórias infantis acabam conferindo às meninas ao transmitirem, intencionalmente ou não, a ideologia dominante. Referências BONNICI, Thomas. Epílogo: a ética da resistência. In: BONNICI, Thomas. (Org.) Resistência e intervenção nas literaturas pós-coloniais. Maringá: Eduem, 2009. BONNICI, Thomas. Prefácio. In: BONNICI, Thomas. (Org.) Resistência e intervenção nas literaturas pós-coloniais. Maringá: Eduem, 2009. BONNICI, Thomas. Problemas de representação, consolidação, avanços, ambiguidades e resistência nos estudos pós-coloniais e nas literaturas pós-coloniais. In: BONNICI, Thomas. (Org.) Resistência e intervenção nas literaturas pós-coloniais. Maringá: Eduem, 2009. COLASANTI, Marina. Uma idéia toda azul. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1979. FANON, F. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Ed. da UFJF, 2006 LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história & histórias. 6ªed. São Paulo: Ática, 2007.
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A LITERATURA JUVENIL EM DEBATE Vanessa Regina Ferreira da Silva (USC) 1. Introdução. A discussão em torno da origem e das características de uma literatura específica para a juventude trouxe uma nova frente de reflexão dentro do sistema literário infantil e juvenil nos últimos anos, pois embora se reconheça que a circulação de obras para o público jovem ocorra desde o século XIX, uma reflexão sistemática e pontual quanto à especificidade desta produção só veio à tona a partir da segunda metade do século XX. Neste caso, dada a recente inclusão da literatura juvenil dentro do gênero que a abriga, os contornos que a limita ainda estão imersos em um emaranhado de acepções deixando, consequentemente, várias sendas de indagações para aos que se dedicam a esta modalidade artística. Neste sentido, buscando compreender melhor o campo teórico no qual se inclui a pesquisa de doutorado que desenvolvo – Estudo comparado da literatura juvenil brasileira e galega: 24 anos de narrativas juvenis premiadas 1 - é que busquei realizar uma pesquisa de campo sobre trabalhos que abordassem a literatura juvenil como uma produção específica2. 2. Literatura Juvenil: de volta com a problemática do adjetivo. Sabe-se que, no âmbito literário, uma adjetivação ao lado do substantivo “literatura” leva a um debate extenso chegando, muitas vezes, ao limite de sua exclusão do campo artístico já que alguns estudiosos consideram que a “verdadeira” literatura se faz sem adjetivos. Contudo, uma produção que tenha no destinatário o cerne de sua Esta pesquisa está sendo desenvolvida na Universidade de Santiago de Compostela (USC), na Galicia (Espanha), dentro do programa de Pós-graduação “Literatura y construcción de la identidad en Galicía”, baixo a orientação da professora catedrática Blanca-Ana Roig Rechou. 1
Esta investigação foi realizada entre os anos de 2010 a 2012 em duas bibliotecas da Universidade de Compostela: a da Faculdade de Ciencias da Educación e da Faculdade de Filoloxía. 2
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existência não pode fugir deste embate. Tal problema se acentua quando sua qualificação ocasiona ambiguidades terminológicas como é o caso da nomenclatura “literatura juvenil”. No contexto europeu, em um primeiro momento, esta terminologia foi utilizada como sinônimo de literatura infantil e juvenil: A adjetivação “juvenil” referida a este tipo de literatura que, embora não isenta de objeções, parece preferível, não por uma razão de brevidade, mas porque coincide com as denominações utilizadas nas principais línguas europeias: literatura de jeunesse em francês, Jugend Literatur em alemão, juvenile literature em inglês; tal opção linguística, no entanto, implica em significados mais profundos como o conceito de narrativa dirigida ao sujeito em formação. (NOBILE, 1992, p. 46)3
Como destacado acima, com a intenção de buscar uma unificação terminológica “universal”, dentro do continente europeu, não foi levado em conta que o termo escolhido remete a uma determinada faixa etária, o jovem. Posteriormente, numa perspectiva similar, o mesmo equívoco foi feito com a nomenclatura “literatura infantil” que passou a abranger tanto a produção literária para crianças quanto, para jovens. Contudo, se levarmos em conta que estamos falando de duas faixas etárias distintas, criança e jovem, como uma delas pode englobar os dois públicos? Tal indagação fica mais patente quando se direciona esta unificação terminológica para o público jovem: A adolescência, como uma etapa de transformação profunda, agitada e projetada para o futuro, demanda outra classe de literatura, neste caso, apesar de seu uso corrente, o adjetivo infantil não é adequado. Esta qualificação não sintetiza o intento de desdobramento da infância que compreende a adolescência. Mas, a rotina e, talvez a carecia de um adjetivo que denote a condição de uma literatura para adolescentes, fez com que se mantenha esta mesma denominação [...]. Do mesmo modo, chama a atenção que não podemos aventurarmos a falar de uma literatura adolescente sem nos expor ao perigo de um adjetivo ao lado do substantivo literatura. (CERVERA, 1991, p. 255) (grifos meus)
Das palavras de Juan Cervera infere-se que não se trata de escolher um qualificativo perfeito para denominar especificamente a produção literária para o 3
As citações utilizadas neste trabalho foram traduzidas pela autora do artigo.
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público jovem, aqui, como na literatura infantil, qualquer adjetivo será problemático porque implica aceitar que uma dada produção literária é destinada a um público em particular. Neste aspecto, a primeira reflexão sobre o específico juvenil esbarra na histórica depreciação que acompanha a literatura para crianças e jovens, quer seja, uma literatura adjetivada. 3. O desenvolvimento da produção literária para a juventude: Dos preliminares ao boom. Nos estudos teóricos da literatura infantil e juvenil já é bem aceito que esta modalidade literária teve sua origem no século XVIII quando o conceito de infância 4 foi sistematizado. Neste sentido, se a polarização (ZOHAR, 1983) entre o mundo infantil e o mundo adulto (como dois sujeitos diferentes) delimitou o aparecimento desta produção literária; é coerente pensar que, de forma similar, a origem de uma literatura para adolescência tenha também como baliza a separação entre os seguintes sujeitos etários: criança, jovem e adulto. E de fato, alguns trabalhos que buscam delimitar o surgimento da literatura juvenil, a relaciona com a sistematização de seu público virtual como destaca, por exemplo, Teresa Colomer. No livro Introducción a la literatura infantil y juvenil (2007), a teórica aponta que: “a criação de um novo setor de público, a adolescência, provocou o aparecimento de um novo gênero para o outro estremo da audiência: o romance juvenil" (COLOMER, 2007, p. 79). Neste aspecto, Colomer pontua que a relação entre o aparecimento da adolescência e a origem da literatura juvenil é um condicionante considerável para os estudos desta modalidade. Contudo, será que o aparecimento do público jovem é suficiente para definir uma produção literária voltada especificamente para este público? Para grande parte dos O surgimento da literatura infantil e juvenil está condicionado por um conjunto de fatores. No entanto, naquela ocasião (século XVIII), não há dúvidas de que a conceituação de infância destaca-se como o elemento principal para sua origem. No caso da literatura juvenil esta delimitação é diferente porque se trata de outro contexto, século XX, e nesta época os estudos históricos e teóricos deste campo já estão avançados enquanto os principais elementos constituintes do sistema literário em questão. Deste modo, seria anacrônico tentar manter a mesma premissa de origem entre modalidades literárias que se originam em momentos e contextos distintos. 4
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teóricos pesquisados a resposta é não, pois somente o reconhecimento do público juvenil não explica a origem desta literatura e, além disto, deve-se considerar que, o conceito de juventude inicia-se na década de 1950, quando a delimitação de uma literatura juvenil, pensada especificamente para este público, surge na década de 1970. No material pesquisado, o primeiro autor a delimitar os fatores que levaram ao surgimento da literatura juvenil foi o italiano Enzo Petrini. Em seu livro, Avviamento critico alla letteratura giovanille5, publicado em 1958, Enzo Petrini destaca que uma produção direcionada ao público juvenil teve seu antecedente remoto no século XIX, quando a produção literária seguia os postulados estéticos do romantismo: [...] foi a geração romântica a que se debruçou pensativa sobre a adolescência, deu assas ao romance de aventuras e de costumes, os encaminhou a divulgação [...]. Jovens, tanto do sexo feminino quanto do masculino, tiveram seus livros, as pequenas bibliotecas rosas e azuis conheceram e cultivaram um clima próprio, consagraram uma tradição, eternizando alguns títulos vivos até hoje.. (PETRINI, 1981, p. 142)
Mas, embora Petrini aceite que as primeiras obras do acervo da literatura juvenil surgiram nos séculos XVIII e XIX, constituindo o período clássico desta produção6; o teórico reconhece que seu surgimento liga-se a outros fatores: […] a literatura juvenil coincide de fato “com o acentuar-se do sentido psicológico nos métodos educativos”, e a distinção entre livros para crianças e livros para adolescentes foi por uma sistematização
Cabe esclarecer que, embora o título do livro apresente somente o termo “juvenil”, trata-se de uma obra que abrange a literatura para infância e juventude, como destaca o próprio Petrini (1981: 59): “Para ser mais exatos, não utilizaremos mais o termo literatura infantil, mas sim literatura para infância ou o seu uso mais genérico, denominação comum em vários países, literatura juvenil, que pretende abarcar toda a produção para a infância e juventude." Esta questão terminológica já foi discutida neste trabalho. Na tradução da obra ao castelhano o termo juvenil se manteve, Estudio critico de la literatura juvenil, publicado em 1981 com tradução de Manuel Carrión Gútiez. Neste texto utilizamos esta edição. 5
Entre as obras que foram apropriadas pelo o público jovem destacam-se: Robson Crusóe, de Daniel Defoe (de 1719), As viagens de Guliver, de Jonathan Swif (de 1726), Paulo e Virgínia, de Bernardin de Saint-Pierre (de 1788), entre outras.
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psicológica e crítica bastante recente, por não dizer contemporânea [...]. (PETRINI, 1981, p. 142)
Como pontua o teórico italiano, a literatura juvenil tem como causa principal a evolução dos métodos educacionais que se volta, cada vez mais, para a especificidade etária de seu público. Esta baliza feita por Petrini na década de 1950, será retomada nos estudos posteriores sobre a literatura juvenil, agora contextualizada nas décadas finais do século XX, pois, a partir de 1970, coloca-se que há uma estreita relação entre o surgimento da produção em questão e o contexto educacional. No entanto, para que se entenda esta ligação, é preciso redimensioná-la para outra questão, a saber, a especificidade da literatura para adultos a partir do século XX. Sabe-se que a produção literária segue uma movimentação estética, de certa forma universal, enquanto a elaboração de seus temas e formas. Neste caso, fala-se de um zeitgeist, ou seja, um espírito de época que condiciona um denominador comum no campo artístico (ROSELFELD, 1982). Tal assunto é discutido no emblemático ensaio “Reflexões sobre o romance moderno”, de Anatol Rosenfeld. Neste texto, uma das principais reflexões do teórico refere-se à desrealização estrutural das obras literárias a partir do século XX. Este tipo de representatividade artística tem como critério capital o afastamento da “realidade” empírica motivado pelos postulados artísticos das vanguardas europeias e, consequentemente, a retratação de uma ficção metalinguística. Pois bem, agora, voltando à discussão central deste texto: em que o surgimento da Literatura Juvenil se relaciona com a representatividade estética moderna do âmbito literário? De acordo com os debates teóricos tudo indica que este fator é fundamental. No livro de Colomer de 2007, já citado acima, ao aprofundar a discussão sobre a o impulso da literatura juvenil, a teórica o enquadra como um fenômeno da década de 1970, relacionando-o com a especificidade estrutural da arte literária e com a pouca habilidade leitora do público jovem neste período: Desde o ponto de vista educativo, o romance juvenil apareceu como uma aposta experimental para resolver uma dúvida generalizada nos meios educativos frente a constatação do fracasso leitor: Seria o leitor adolescente, inclusive aquele leitor ávido de livros infantis, capaz de pular para a moderna ficção para adultos? Era preciso recordar que
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por primeira vez se estava falando de todas as camadas da população em uma época em que os distintos países estavam prolongando a etapa escolar e, além disto, as obras consideradas “boas literaturas” caracterizavam-se por uma exploração vanguardista do texto. Neste contexto, os educadores franceses se preguntaram se seus alunos seriam capazes de ler algum dia as obras do Nouveau Roman e os ingleses suspiraram por uma época a que parecia uma progressão natural passar de Alicia no país das maravilhas a Dickens, Bronte ou Austen. (COLOMER, 2007, p. 149)
Este questionamento entre a habilidade leitora dos jovens 7 para com a literatura adulta vem à tona na segunda metade do século XX quando se deflagra uma crise de leitura neste público escolar, pois perceber-se que a maior permanência no âmbito escolar, não garante uma formação leitora estável e que a arquitetura metalinguística de grande parte das obras literárias atuais exigem leitores iniciados. Neste contexto de especialização literária e de crise na formação educacional vem à tona o seguinte questionamento: qual literatura oferecer para o público jovem? Certamente, os adolescentes podiam alimentar-se de best-sellers para adultos ou ler as coleções produzidas diretamente a eles, em alguns países, nos últimos anos da formação escolar obrigatória. No entanto, percebe-se que, nos inícios dos anos 70, a novela de qualidade centrada no protagonismo juvenil parecia ter desaparecido. Frente a enorme atração do público juvenil por algumas obras como O apanhador no campo do centeio, de Salinger, e O senhor das moscas, de Golding, ambas publicadas para adultos, começou a acreditar que era preciso abrir um espaço atraente no mercado editorial da literatura infantil e juvenil para a inclusão de livros de qualidade com uma forte temática adolescente. (COLOMER, 2007, p. 149)
Deste modo, unido a um problema de formação leitora do público juvenil e de uma própria problemática literária, surge, a partir da década de 1970, a Literatura Em um trabalho posterior, Lecturas adolescentes (2009), coordenado por Teresa Colomer, a teórica aprofunda algumas particularidades da leitura juvenil. Segundo ela este universo está marcado por dois fatores principais: “Em primeiro lugar, é importante destacar que a leitura efetivada pelos adolescentes está inserida numa rede complexa de tensões, estas motivadas pelas rápidas transformações, que compreendem um espaço de fronteira comum de corpus, funções, âmbitos e formas de procedimento. Em segundo lugar, para assinalar que a leitura nesta etapa de idade está em uma zona de transição entre a leitura infantil, socialmente propiciada, e a leitura adulta, destacada por muitos âmbitos como deficitária em grande parte da população atual." (COLOMER, 2009: 9)
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Juvenil homologada, ou seja, uma literatura projetada especificamente para a adolescência. Para finalizar, como era de se esperar, a abertura de um mercado em expansão, a adolescência, repercutiu na vinculação da literatura juvenil ao ramo mercadológico, trazendo, consequentemente uma crítica a esta produção: Sem dúvidas, o novo produto literário encontrou um adequado suporte teórico na ideia da adolescência como etapa de interesse e necessidades próprias. No entanto, uma erupção literária de tamanha especialidade, assemelha-se mais a uma marcada estratégia comercial. Delgado Gómez (1996: 22) apontava, neste sentido, que o reduzido número de leitores jovens alertou ao mercado editorial dos anos sessenta e setenta e o impulsionou a arquitetar novas estratégias para atrair o público jovem, caso característico da chamada literatura juvenil homologada. Neste sentido, deve-se insistir que, não é por causalidade, que tais estratégias foram dirigidas à faixa etária de adolescentes e jovens, público que cresceu acostumado com a televisão e, em consequência disto, mais dependentes da cultura audiovisual. (DUEÑAS LORENTE, 2006, p. 91-92)
Acredito, como Teresa Colomer, que tanto o contexto literário quanto o contexto de formação educacional do público juvenil contribuíram para a erupção de uma produção literária para a juventude. E claro, sendo a literatura infantil e juvenil uma modalidade literária em que a própria configuração do sistema artístico mobiliza várias instâncias: leitor específico, formação de leitores, ambiente escolar, entre outros; a ação mercadológica neste produto não estaria ausente, como não estão em outros âmbitos artísticos de um modo geral. 4. Considerações finais. Depois de discutido os fatores que levaram a configuração de uma Literatura Juvenil pode-se sistematizar que esta modalidade literária está constituída por dois estágios: a literatura juvenil clássica e a literatura juvenil homologada. Na primeira categoria englobam as obras que foram escritas, nos séculos XVIII e XIX, sobretudo neste último período, em que não se pensavam na especificidade etária
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do público jovem. Tanto é assim que grande parte deste acervo não fora escrito especificamente para esta faixa etária, e sim para o público adulto como é o caso de obras como Robinson Crusoé (1719), As viagens de Gulliver (1726), A ilha do tesouro (1883), entre outras. Quanto às características deste acervo, destaca-se que grande parte destes livros está constituída por obras do gênero aventura como mostrou o estudo de Vicenç Pagés Jordà: O clássico juvenil, frequentemente, é identificado com o romance de aventuras, ou seja, com aquela narração de peripécias mais ou menos arriscadas, situadas em paisagens exóticas, com o predomínio de um romance marítimo. A trama poderia ser a seguinte: um herói, geralmente jovem, inicia uma viagem, uma procura pelo desconhecido que se converterá em uma prova física ou moral – com múltiplos perigos -, neste contexto o protagonista é levado a tomar decisões transcendes e a experimentar uma transformação. Nestes romances predominam os fatos, não as ideias, a vontade, não a análise ou a contemplação -. (PAGÉS JORDÁ, 2009, p. 32)
Já a literatura juvenil denominada de homologada, por sua vez, trata-se de uma produção recente, produzida a partir de 1970, e seu surgimento vincula-se ao surgimento do público jovem, à alta especificidade da arte contemporânea e a problemática da formação leitora do público escolar. Deste modo, trata-se de um acervo que tem um leitor modelo (ECO, 1979) bem delimitado, o público jovem.
Referências CERVERA, Juan. Teoria de la literatura infantil. Bilbao: Ediciones Mensajero, 1991. COLOMER, Teresa. Introducción a la literatura infantil y juvenil. Madrid: Editorial Síntesis, 2007. ________. (Coord.). Lecturas adolescentes. Barcelona: Editoral GRAÓ, 2009. ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1968. NOBILE, A. Literatura infantil y juvenil. Tradução de Inés Marichalar. Madrid: Ediciones Morata, 1992.
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PAGÈS JORDÀ, Vicenç. De Robison Crusoe a Peter Pan. Un canon de literatura juvenil. Trad. Felip Tobar. Barcelona: Editorial Ariel, 2009. PETRINI, Enzo. Estudio critico de la literatura juvenil. Tradução de Manuel Carrión Gútiez, Madrid, Ediciones RIALP, 1963. ROSENFELD, Anatol. “Reflexões sobre o romance moderno”. In.______. Texto/ contexto I. 5ª. ed. São Paulo: Perspectiva, p. 75-99. TABERNERO SALA, Rosa; DUEÑAS LORENTE, José D.; JIMÉNEZ CEREZO, José Luis (coord.). Contar en Aragón. Palabra e imagen en el discurso literario infantil y juvenil. Zaragoza: Prenas Universitarias de Zaragoza, 2006. ZOHAR, Shavit. Poética da literatura para crianças. Tradução de Ana Fonseca. Lisboa: Caminho, 2003.
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INVERNO E VERÃO: ANÁLISE DA PAISAGEM DUALÍSTICA EM O LEÃO, A FEITICEIRA E O GUARDA-ROUPA, DE C. S. LEWIS Vanessa Soeiro Carneiro (UFMA) Sophia Gaspar Leite (UFMA) Estudos acerca do universo geográfico assumem, a partir do século XX, uma nova perspectiva advinda da sua interlocução com a Fenomenologia. A relação Homem e Terra deixa de ser puramente material e passa a assumir um prisma de dimensões empíricas e pessoais. O ambiente vivido torna-se cúmplice do desenvolvimento humano e de sua história. Ou seja, "O espaço terrestre aparece como a condição de realização de toda realidade histórica, que lhe dá corpo e assinala a cada existente o seu lugar." (DARDEL, 2011, p. 43). A Geografia Humanista-Cultural (GHC) surge, então, com o objetivo de buscar compreender o ser humano através do seu comportamento, sentimentos e relações com a paisagem que o cerca. Pauta-se nas experiências e percepções como fator determinante na forma que um indivíduo vê o mundo e insere-se nele, mais do que um simples elemento geográfico, a paisagem passa a moldar as próprias relações sociais, embrenhando-se profundamente no cerne antropológico do homem. Tuan (2012) aborda a paisagem como um arranjo de aspectos humanos e naturais, sendo estes últimos organizados de acordo com a necessidade e atividade humana. “A paisagem não é um círculo fechado, mas um desdobramento. Ela não é verdadeiramente geográfica a não ser pelo fundo, real ou imaginário, que o espaço abre além do olhar.” (DARDEL, 2011, p.31). Ou seja, sua noção depende da existência e olhar humano. Esta relação, portanto, pode criar sentimentos positivos ou negativos. A palavra “topofilia”, neologismo, refere-se a um sentimento de amor por determinado lugar. É “[....] o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico.” (TUAN, 2012, p.19), carregando consigo um forte caráter intimista e nostálgico. Este sentimento, no entanto, pode ser negativo e intimidador, causando a “topofobia”.
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O objetivo desse trabalho é, tendo como base a GHC, analisar os contrastes estético-paisagísticos entre a Nárnia amaldiçoada da Feiticeira Branca e a Nárnia liberta de Aslam e a forma como ambas as paisagens são percebidas no decorrer da crônica. Em um primeiro momento da obra, quando Lúcia Penvensie chega em Nárnia através do guarda-roupa, depara-se com um bosque desconhecido e frio. Nota "que havia neve sob os seus pés, enquanto outros flocos tombavam do ar." (LEWIS, 1997, p.15). Tuan afirma que "[...] habitantes das terras árticas frequentemente sentem-se pressionados, ansiosos e dominados pelo medo." (2005 p.79). Logo, Nárnia encontra-se desolada e sobre constante estado de temor - como visto nas atitudes do fauno Sr.Tumnus e nos Sr. e Sra. Castor. Não há uma relação de apego, mas sim de medo, gerando um persistente sentimento de topofobia entre a terra e seus moradores. A neve, presente nas árvores e chão, não só demonstra a submissão e a dormência dos moradores perante a ditadura da feiticeira, mas também a própria personalidade maldosa e fria que sua falsa rainha porta. Lembrando que "a existência de uma relação sinestésica entre certas formas físicas e sentimentos humanos está implícita nos verbos que usamos para descrevê-las [...]" (TUAN, 2012, p.51), ressaltamos a passagem em que Edmundo, ao ver o bosque e, em seguida, a feiticeira, atribui a ambos as mesmas características: Mas, em vez de dar na sala vazia, ficou espantado ao passar da sombra de umas árvores grossas para uma clareira no meio de um bosque. Sentia sob os pés a neve dura, e havia também nos ramos. O céu era azul-pálido, céu de uma bela manhã de inverno. (LEWIS, 1997, p.35 – grifo nosso) [...] Seu rosto era branco (não apenas claro), branco como a neve, como papel, como açúcar. A boca se destacava, vermelhíssima. Era, apesar de tudo, um belo rosto, mas orgulhoso, frio, duro... (LEWIS, 1997, p.37,38 – grifo nosso)
A influência da feiticeira sobre Edmundo assume então um aspecto profano, fazendo-o sentir fome, mal-humor e o volta contra seus irmãos. Lembrando que "[...] o meio ambiente é o veículo de acontecimentos emocionalmente fortes ou é percebido como símbolo." (TUAN, 2012, p.136) a paisagem igualmente se transmuta, tornando-se arisca e perigosa para acompanhar o declínio do irmão Pevensie para o lado do mal.
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Escurecia depressa e a neve dançava em flocos em torno dele. Não via um palmo adiante do nariz.[...] Afundava-se a todo instante em enormes fendas abertas na neve, patinhava em charcos gelados, tropeçava em troncos caídos, escorrendo por encostas íngremes, esfolando as pernas nas pedras, até que ficou encharcado até os ossos, morto de frio e cheio de arranhões. Tinha medo do silêncio e da solidão." ( LEWIS, 1997, p.90-91)
A lua, elemento feminino, guia o leitor pelo mundo de gelo da rainha. Ela constantemente presencia as ações da feiticeira, sendo um de seus símbolos que permeiam a narrativa: "[...] as torres brilhavam ao luar, alongando sombras sinistras sobre a neve." (LEWIS, 1997, p.93). Outro elemento é o silêncio, que traz consigo tristeza e escassez de vida. A aproximação de Aslam, no entanto, desencadeia mudanças: Os tapetes relvados iam aumentando e as extensões nevadas diminuíam. De minuto a minuto, outras árvores decidiam sacudir os mantos alvos de neve. Não tardou para que onde quer que se olhasse, em vez de vultos brancos, surgissem o verde-escuro dos abetos e os ramos negros espinhosos, das faias, dos olmos passou a dourado, até desaparecer por completo. Deliciosos raios de sol projetavam-se sobre a floresta, enquanto lá no alto, o céu azul olhava entre as copas das árvores. (LEWIS, 1997, p. 119)
A chegada de Aslam traz consigo o verão, o que ocasiona, entre outras coisas, o derretimento da neve. Com o degelo, a paisagem começa ser marcada pela presença e melodia da água corrente. Segundo Chevalier e Gheerbrant (2012), a água corrente simboliza fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência e para Dardel (2011), ela significa movimento e alegria. Á agua corrente se torna, dessa forma, um prenúncio do que viria ser Nárnia reinado de Aslam. Um país dominado pela alegria e purificado da maldade da feiticeira. Isso pode ser comprovado quando percebemos, na obra, que quase sempre há festa na presença do Leão, além disso, ele é capaz de – com apenas um sopro – trazer de volta à vida os animais que foram transformados em estátua pela feiticeira. Outro elemento que se destaca durante as descrições da Nárnia governada por Aslam é sol. O sol, para Chevalier e Gheerbrant (2012), simboliza a imortalidade, a
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divindade. Ele é capaz de saciar a fome. Ou seja, o sol – em O leão, a feiticeira e o guarda-roupa – representa a imortalidade e a divindade do próprio Aslam que ressuscita no exato momento do nascer do sol. Além disso, ele representa o calor e o aconchego que não existiam na Nárnia amaldiçoada pela feiticeira, assim como a abundância, fertilidade e fartura que predominariam durante o novo governo. Percebemos então que Aslam acaba influenciando diretamente na configuração da paisagem ao seu redor, sendo que muitas de suas características são transpostas para esta. Durante a crônica, percebemos também que Aslam se mostra imponente e assustador a princípio, mas se revela acolhedor, amigável e misericordioso para aqueles que são bons ou estão arrependidos de sua maldade. A simples menção do seu nome é capaz de evocar diferentes sensações naqueles que o escutam. Para os seguidores da feiticeira, essa sensação é associada ao medo, mas para os demais ela é associada a coisas boas e bonitas. Essas mesmas sensações podem ser aplicadas no que diz respeito a relação dos narnianos (e dos irmãos Pevensie) com a Nárnia de Aslam. Os poucos que seguem a feiticeira vivem sob o medo e o perigo e desenvolvem um sentimento topofóbico com o espaço ao derredor. Já os seguidores de Aslam passam a encontrar segurança e acolhimento nesse espaço, desenvolvendo uma forte topofilia por Nárnia. Referências DARDEL, Eric. O homem e a terra: natureza da realidade geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2011. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alan. Dicionário de Símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Rio de Janeiro, José Olympio, 1995. TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. Londrina: Eduel, 2013. ____. Paisagens do Medo. São Paulo: Editora UNESP, 2005. ____. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. Londrina: Eduel, 2013.
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LITERATURA JUVENIL NA DÉCADA DE 1980: UM NOVO OLHAR Vânia Lúcia Bettazza (UNESP) Literatura e mercado a partir da década de 1970 No final da década de 1970 e início de 1980, a literatura infantojuvenil traz temas que em períodos anteriores não eram permitidos explorar como separação conjugal, extermínio dos índios, repressão social, condição da mulher, destruição ambiental, discriminação racial. Vivina de Assis Viana faz parte destas novas temáticas apresentadas. Estão nesse grupo Sérgio Caparelli, Ana Maria Machado, dentre outros. Na década de 1980, a produção de livros destinados ao público infantil e juvenil cresce devido à consolidação da indústria editorial. O crescimento se dá não só em termos de quantidade, mas também na qualidade estética e gráfica, ou seja, o mercado editorial passa a especializar-se para o público consumidor jovem. O barateamento, pelo advento da tecnologia, colabora para o avanço do mercado. Mudanças sociais, culturais e econômicas foram responsáveis para que houvesse tais mudanças. O jovem passa a ser reconhecido como um consumidor em potencial e as escolas buscam apresentar aos jovens opções de leitura, que nem sempre agradam, na tentativa de torná-los leitores. Segue-se um caminho natural, ou seja, a encomenda de obras juvenis pelas editoras para suprir tal necessidade. Problemas reconhecíveis por esse leitor em formação em uma linguagem acessível são inseridos nas obras. Há, também, a introdução de manifestações culturais diversas, seja o cinema, a música, a História e a própria literatura. O pragmatismo anterior, a idéia de uma literatura pedagógica e o didatismo moralizante são substituídos pelas novas abordagens o que gera mais liberdade aos escritores e, como resultado, muitos jovens entram na aventura da leitura literária. Desse modo, a literatura juvenil passa pela criação, produção, venda. Após isso é lida, relida e estudada.
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A exposição às mudanças em todas as áreas e principalmente nas práticas de comunicação e cultura, bem como o avanço do mercado editorial, gera novas reflexões e novas estratégias interdisciplinares; não apenas como desafio ou para superar os limites ou as dificuldades, mas especialmente para “dar conta de forma mais efetiva da contribuição do conhecimento ante a pluralidade e velocidade das mudanças que caracterizam a sociedade atual” (Sousa, 1995, p.13). Esta pluralidade abre caminhos, rompendo fronteiras e redefinindo certos padrões e novas formas de ler, ver e escutar. Temos aí a arte envolvida com o lucro certo e rápido. Contradições que tomam novas formas e não se ajustam às previsões feitas pelos frankfurtianos. Martín-Barbero (1994) aborda o problema sob uma ótica positiva. Afirma que “o lucro, além de provir da descrição sociológica do processo produtivo, tem o mérito de desfazer um dos malentendidos mais tenazes do pensamento de Horkheimer e Adorno: o de que algo não poderia ser arte se já era indústria” (1994, p.23). Uma revisão na concepção inflexível quanto à obtenção do lucro no momento em que se focaliza arte e cultura também sofreu alteração. Os engodos e os perigos, como adverte Lobo (1999, p.38), “são próprios da vida humana e da trajetória histórica. Cabe-nos escolher as rotas e escapar das ciladas da técnica e da ideologia” pois, não há normas eficazes para que se obtenha uma sociedade crítica, consciente. Marisa Lajolo e Regina Zilberman no capítulo “Indústria cultural e renovação literária”, da obra Literatura infantil na escola, história e histórias (2002), traz um estudo sobre a expansão da literatura infantojuvenil e apresenta as características das obras do início da década de 1980, época em que começa a expandir a produção dirigida aos jovens “com a denúncia de uma organização social que tem, nas concentrações urbanas, um de seus sintomas mais visíveis” (Lajolo e Zilberman, 2002, p. 140). As narrativas também passam a apresentar, além do que já foi apresentado, a metalinguagem, a intertextualidade, marcas da oralidade e a ruptura com a poética tradicional. Sobre Vivina de Assis Viana Vivina de Assis Viana é mineira de Morro do Ferro. Nasceu no dia 4 de junho de 1940. Escritora de literatura infantojuvenil, formada em Letras pela UFMG. O primeiro
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livro da autora foi O dia de ver meu pai (1977) que fez parte da Coleção do Pinto, com obras, também, de Wander Piroli, Henry Correia de Araújo, dentre outros. Mas em 1973, Viana já dá início em suas escrituras com a publicação do conto “Internato”, em Contos Jovens (Ed. Brasiliense) e a “A coisa melhor do mundo”, no livro Os contos da mulher brasileira. A primeira leitura da autora na infância foi o Almanaque de Jeca Tatuzinho que, após tomar biotônico, muda de vida. Depois passou aos jornais, Correio da Manhã, Jornal do Brasil, O Jornal, algumas revistas – O Cruzeiro, A Cigarra, Alterosa, Careta, Vida Doméstica. Quanto aos livros, leu Monterio Lobato e na pré-adolescência e adolescência a Coleção do escritor alemão Karl May, que narrava histórias de tribos de índios do oeste norte-americano e de tribos nômades da Ásia e do Oriente. Edgard Rice Burroughs, criador da série de Tarzan, também acompanhou a autora, juntamente com O tesouro da juventude. Suando frio (1986) Publicada em 1986, com uma tiragem de 3.000 exemplares, chegou até a 8ª edição (1998) com o mesmo número de tiragens por edição, segundo e-mail recebido da Editora Lê, em 13 de dezembro de 2012. Após a oitava edição o livro saiu do catálogo e o contrato rescindido. Segundo a editora, a obra não foi mais lançada por outra editora e não houve alterações no projeto gráfico do livro durante as edições. A novela, gênero definido por Elias José que assina a orelha do livro, é a história de um adolescente de 16 anos que se apaixona pela professora de francês de 23. Amor proibido, impossível e platônico em um cenário repressor e ditatorial de 1964. Vivina de Assis Viana na Conferência: “Literatura infanto-juvenil: depoimentos de uma escritora”, publicada na Revista Itinerários, de 1992, da Unesp de Araraquara, declara: “desde que comecei a escrever, no início dos anos setenta, pensava que, um dia, chegaria a vez de 64” (1992, p.71). Mas Suando frio só foi verdadeiramente planejada vinte anos depois, em 1984. Segundo Hernandes (2009, p. 72), a propulsão para o livro foi o reencontro de Viana com um aluno de suas aulas de francês do colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFMG, em 1964.
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A narrativa, com 61 páginas, traz as incertezas e desajustes próprios de todo adolescente permeada com intertextos que passam pela música (Nara Leão, Carlos Lyra, Caetano Veloso, Antônio Maia); pela arte cinematográfica (Jules et Jim, Hiroshima, Mon Amour); pela literatura (Drummond, Camus, Monteiro Lobato, Pedro Nava, Walt Whitman) e pela História (Castelo Branco, presos políticos, Dops, Centro Popular de Cultura, UNE). Este interrelacionamento, integração e interdependência entre as várias linguagens são um desafio próprio do contexto atual que exige informação, pesquisa e reflexividade. Estas movimentações geram possibilidades de mudanças que podem ir além do uso da linguagem como instrumento de interação com o social e com as práticas do cotidiano, elas podem transformar o indivíduo e impulsioná-lo a um repensar constante. Os personagens mais significativos são a professora, os amigos de escola (Regina, Loló, Tonho, Dudu, Sérgio, Juca, Consuelo, Walter), a avó e a mãe que apenas observa o comportamento do jovem e afirma ser somente uma paixão de adolescente. O cenário perpassa a escola, a casa do narrador e as ruas de Belo Horizonte: “passamos perto do Minas Tênis, do colégio Estadual. Obra do Niemeyer, dos tempos que o Juscelino era prefeito da cidade ou governador do Estado” (Viana, 1986, p.38), a narrativa caminha sempre condicionada aos olhos do narrador-protagonista. Hernandes (2009) faz uma descoberta muito interessante. Em contato, por email, com Vivina de Assis Viana, pergunta à autora de Suando frio, em 8 de outubro de 2004, sobre o processo de criação das personagens. A resposta obtida por Hernandes foi a seguinte: Personagens de Suando Frio? Todas reais. Um deles, o Marco Antônio Guimarães, o Tonho, queria ser músico.Sérgio, que queria ser jornalista virou meu afilhado de casamento e, hoje, dirige a Agência Estado, do jornal Estado de São Paulo. Loló conheceu meu cunhado no dia do meu casamento, acabaram namorando, se casaram, nossos filhos são primos. Consuelo, que sonhava ser psicóloga, há muitos anos é psicóloga. Walter dava cheque-mates durante as aulas, estudou Química, trabalha em Campinas, com fibra ótica. Um dos alunos, o nome não apareceu no livro, foi sorteado para meu padrinho. (Hernandes, 2009, p. 81)
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Ao final, diferentemente das narrativas tradicionais, o amor não é revelado e o protagonista é sorteado para acompanhar a professora até o altar, na posição de padrinho, no dia do casamento. Suando Frio: um tempo de dor, reflexão e descobertas Suando frio (1986) é a história de um garoto que se apaixona pela sua professora de francês. O amor platônico percorre toda a narrativa, pois, como declara o protagonista: “possui trilhos e desvios que me são proibidos, (Viana, 1986, p.24) Construída em primeira pessoa, temos um narrador-protagonista, portanto, autodiegético. Os acontecimentos são dirigidos por ele que vai apresentando suas dificuldades pessoais, incertezas, dores, dúvidas e questionamentos diante das experiências vividas. O cenário é o regime ditatorial do presidente Castelo Branco - ano da revolução e estabelecimento da ditadura militar. Os momentos de sonho e da estonteante paixão desse jovem pela professora, revelada através de uma linguagem densa de poesia, acabam se misturando com um contexto histórico também caótico, repressivo, repleto de medo e insegurança. São quatro capítulos com períodos e parágrafos extremamente curtos cuja impressão, em virtude da linguagem poética e da estrutura, é de estar diante de um texto em verso. Outras vezes, pelos cortes na linearidade das ações narradas, se observa o entrelaçar do imaginário com o real, denso de conteúdo emotivo. Mas o passeio pelo mundo imaginário e fantasioso não se prolonga, logo é chamado de volta à realidade, seja pela professora, pela mãe ou pelos amigos de escola: “minha professora cortou meus anseios de descrevê-la” (Viana, 1986, 13); “minha mãe me surpreendeu olhando o teto” (Viana, 1986, p.29). Um anjo gauche: é assim que esse adolescente se sente aos 16 anos, “desengonçado, magro, comprido, meio gauche” (Viana, 1986, p.7). A primeira página do livro já é responsável por criar, pelo viés intimista, uma identificação entre o narrador-personagem e os possíveis leitores que enfrentam os problemas relativos à adolescência. O personagem justifica sua conflitante situação e aparência devido à
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visita do anjo torto, “desses que vivem na sombra” (Viana, 1986, p.8). Esse anjo drummondiano, como denomina, é o oposto da imagem que recebeu durante o catecismo: “seres perfeitos. Limpos, bonitos. Olhos azuis. Sempre de banho tomado” (Viana, 1986, p.8). para ele, sobraram apenas os olhos azuis. Canções, compositores, intérpretes e locais reais são utilizados para retratar o período ditatorial, o que imprime veracidade à narrativa e dialoga com os sentimentos do narrador-protagonista: “Mil novecentos e sessenta e quatro. Escrito assim, por extenso, fica bonito, solene. Mas assim – 1964 – não. Fica do jeito que é. Uma data triste” (Viana, 1986, p.26). Observa-se nesta citação uma metalinguagem, ou seja, o narrador discute o próprio modo de narrar com o objetivo de encontrar uma maneira que expresse melhor o desgosto instaurado no período da ditadura militar brasileira. Período que tolheu o direito de ir e vir do cidadão e destituiu a palavra liberdade de seu significado: “pensando bem, nem sei se alguém tem liberdade, ou se liberdade é coisa pra se ter. Vai ver nem existe. Vai ver, liberdade é a mentira do tempo das bruxas.” (Viana, 1986, p.28-29). A tristeza e a falta de liberdade são características marcantes do momento histórico e da vida do narrador adolescente que se sente constantemente privado, confuso e infeliz. No entanto, suar frio é uma reação que se estabelece no momento em que experimenta algumas emoções, como no curto diálogo entre o narrador e a professora após uma sessão cinematográfica: “Suando frio, tive vontade de gritar: eu não estou preparado para ouvir um diálogo desses” (Viana, 1986, p.47). A canção Marcha da Quarta-Feira de Cinzas, de 1964, de Carlos Lyra, interpretada por Nara Leão, é uma espécie de protesto contra a ditadura militar. Os versos “pelas ruas o que se vê /é uma gente que nem se vê” (Viana, 1986, p.18) foram ouvidos pelo protagonista em um de seus sonhos. Gente que nem se vê, ou se vê como um anjo torto, sem possibilidades de realizar os sonhos, trancada “por dentro” (Viana, 1986, p.23), apenas com desejos: “posso não ser ninguém, mas que eu queria, queria”, ou ainda, “agora, no tempo das bruxas, não adianta querer essas coisas” (Viana,1986, p.25). Temos aí, novamente um entrelaçar do acontecimento real com os sentimentos de confusão e exclusão do protagonista.
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O Processo de caça às bruxas foi desencadeado para prender, censurar e intimidar. Por meio de um sonho, o protagonista tem contato com soldado, exército e militares. Nesse momento faz um grande percurso pela história do país através de compositores, cantores, escritores, copas do mundo parando apenas de 1984, com o suicídio de Pedro Nava. Divagação, sonho e fantasia são substantivos apropriados para Suando Frio, o que proporciona ao leitor estar a par da complexidade e dos anseios vivido pelo narrador e, ao mesmo tempo, entrar em contato com um período que ainda permanece na lembrança de quem presenciou e de quem se estarreceu lendo nos livros e assistindo aos filmes. O isolamento a que se submete em seu quarto, olhando o teto de cor vazia, serve para não pensar em nada e para não levá-lo a lugar nenhum. Mas isso requer estratégia como afirma o protagonista “seguro minha cabeça com as duas mãos – não posso me arriscar a perdê-la definitivamente” (Viana, 1986, p.24). Os pensamentos são muitos e, sendo assim, possui dificuldades em apenas analisar o teto e não ir a lugar nenhum por meio da imaginação. É evidente que literatura é responsável por ligar o mundo exterior ao mundo interior e por expandir a capacidade de percepção do leitor. Essa relação, que se estabelece a todo instante, proporciona um diálogo entre leitor e personagem, já que ambos estão em fase de mudanças e decisões, por conseguinte, inconstantes e amedrontados. Eco (2002) declara que o mundo real do leitor se conecta ao mundo ficcional, o encurtamento das distâncias é responsável por ligar os elementos ficcionais com a realidade concreta do leitor, assim, “passa a acreditar na existência real de personagens e acontecimentos ficcionais” (ECO, 2002, p. 131). Completando a assertiva, a obra de Viana estreita ainda mais a relação entre a ficção e o real visto que os fatos, os personagens, os lugares, as referências culturais e as angústias são reconhecíveis no mundo real do leitor, proporcionando um enlaçar permanente entre o individual (leitor/personagem) e o coletivo (adolescentes). Considerar o receptor na construção de um texto é uma característica pensada no século XX, mas especificamente na Alemanha no final da década de 1960, por Hans Roberto Jauss (1994) que apresentou a Estética da Recepção definindo-a como uma pesquisa sobre a recepção da leitura. A teoria apresentada por Jauss afirma que a vida
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histórica da obra literária não pode ser concebida sem a participação ativa de seu destinatário, ou seja, está centrada no modo como o leitor recebe o texto literário – os efeitos provocados no leitor. Isto proporciona uma função dialética: a arte pode ter função formadora e, ao mesmo tempo, modificadora da percepção. Para isto, o autor estabelece com o texto uma correlação entre o passado e o presente, atualizando constantemente o que está sendo lido. Zilberman (1990, p.19), divulgadora desta teoria no Brasil, afirma que a literatura deve provocar no leitor um efeito duplo, ou seja, despertar a fantasia e provocar um posicionamento intelectual através do que lê. Isto faz com que o leitor reflita sobre sua rotina e incorpore novas experiências. Compartilhando com Zilbermam, Bordini e Aguiar (1988), afirmam que através da leitura literária há uma construção na aprendizagem e os sentidos não se estancam no plano conceitual. A leitura de uma obra literária constrói “imagens que se interligam e se completam e também se modificam apoiado nas pistas verbais fornecidas pelo escritor e nos conteúdos de sua consciência, não só intelectuais, mas também emocionais e volitivos, que sua experiência vital determinou (1988, p.16-17). Um questionamento importante apresentado na obra e por muitos jovens é a dificuldade em compreender um texto, em especial no interior das salas de aula. O personagem se apresenta como a maioria dos jovens diante de textos que lhes são apresentados. Mesmo fazendo “o maior esforço pra ter sentimentos de leitor” (Viana, 1986, p.9), não consegue entender o que Carlos Drummond de Andrade queria dizer no poema “Sete faces”, embora se identifique com o lado gauche. O sentimento de solidão se faz presente em toda a narrativa. Esse sentimento é responsável por construir, em todo o discurso, um mundo de sonhos, desejos e, no interior dos sonhos diários, a realizações dos seus anseios: “na boate do meu sonho ela surgiu com um vestido lilás bem curto e cinto largo, lilás também” (Viana, 1986, p17). No mundo da fantasia tudo é passível de realização e a imaginação toma proporções inimagináveis. Assim, em um sonho, é possível encontrar a professora de francês em uma boate sensualmente vestida e com saltos altíssimos, com jeito de cantora americana e voz de Nara Leão – cantora preferida da professora. No entanto, se sente “importante
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e ridículo, tudo misturado” (Viana, 1986, p.20), mas, de repente, tudo termina e afirma: “meu anjo foi chegando aos poucos, me deixando gauche” (Viana, 1986, p.20). Mesmo nos sonhos, as novas experiências geram sensações de inferioridade, de insegurança e são responsáveis pelo sentimento de impotência já que, como declara o protagonista “não estava preparado pra uma emoção dessas!” (Viana, 1986, p.21). A sala de aula é um espaço muito explorado na narrativa, é lá onde o amor platônico e o contato com a linguagem poética tiveram início. Por isso, é densa nesse ambiente – perdendo apenas para os sonhos. Diante do grande amor “que ocupa o espaço inteiro, invade, atravessa meus olhos [...] flutuando. Como se fosse um anjo” (Viana, 1986, p.11), o narrador, por meio da introspecção psicológica, sofre de devaneios constantes. Isto provoca no leitor uma cumplicidade e o transporta para o universo de imagens poéticas, paixão e delírios do protagonista. As Impressões sensoriais são abundantes. Carvalho (2012) afirma que a impressão sensorial se da à “técnica de apresentação do fluxo de consciência quando este ocorre de forma passiva, com registro apenas das expressões verbais correspondentes à impressões psíquicas trazidas pelo sentido” (2012, p.65). Há inúmeros exemplos na narrativa de Viana: “seguia a fumaça do cigarro com os olhos (Viana, 1986, p.20) “meu teto tem uma cor vazia que meu professor de artes classificaria na hora: neutra” (Viana, 1986, p.24). Leonardo da Vinci afirmou que os olhos são a janela da alma e o espelho do mundo. Os olhos e os olhares são os recursos sensoriais mais utilizados pelo protagonista para expressar o amor, chamar a atenção para si, transmitir desejos, decifrar posições dos colegas. Há, pelos olhos, uma tentativa de descrição psicológica dos personagens pelo narrador. Em alguns momentos chega a convencer-se de que, através do olhar, é correspondido “vivia me olhando” (Viana, 1986, p.9). Em outras situações, os olhos refletem o medo: “sumiu dos meus olhos transparentes atrás de uma estante de livros de poesia” (Viana, 1986, p14), a solidão: “olho para o teto” (Viana, 1986, 24), os segredos: “meus olhares são de um jeito só: azuis e apaixonados (Viana, 1986, p.22), a timidez e a ousadia “os olhos dela – verdes indagadores, tranquilos – buscavam os meus – azuis, curiosos, escorregadios” (Viana, 1986, p.37), “olhos verdes também sabiam ser insistentes” (Viana, 1986, p.38), a personalidade; “olhei para Loló nos olhos castanhos, sonhadores, inteligentes” (Viana,
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1986, p.40), a crítica “ela me fuzila com os olhos” (Viana, 1986, p56), a tristeza “os olhos úmidos” (55). Mesmo diante das várias descrições dos olhares pelo narrador, ao referi-se aos próprios olhos, estes são sempre de dúvidas, angústias e críticas, por isso vê a necessidade de que sejam escorregadios, não se sente pronto para tomar nenhuma posição. O protagonista compreende e sabe, olhando nos olhos castanhos, sonhadores e inteligentes de Loló “o que é ser coletivo. E único” (Viana, 1986, p.40). Essa declaração atrai mais ainda o leitor jovem, que busca a todo instante encaixar-se em um grupo, para tentar mostra-se único. Caminhando para o final da narrativa, há a presença de um capítulo destinado ao cinema. Aos domingos, oito da noite, no CEC – Centro de Estudos Cinematográficos – os jovens se reuniam para assistir a novos filmes, ou rever aos que voltavam à tela. O interesse maior do protagonista é ver a professora de francês, ainda que envolvida pelos braços do noivo. É noite de Jules et Jim. O romance trata da história de Jules, Jim e Catherina, Paris, no início do século XX, o cenário político mundial é a iminência da primeira Guerra mundial. No entanto, os três estão decididos a viver intensamente. Passam pela Guerra e vivem grandes emoções em um complicado triângulo amoroso. O romance na tela e o escuro do cinema proporcionam ao jovem narrador “um jogo com o futuro, feito um sonho” (Viana, 1986, 43) “olhos pregados no amor da tela e no da platéia” (44) e, mais uma vez, por meio da fantasia e do sonho se estabelece a correspondência amorosa. Mas se faz necessário acordar e “sentir a cadeira dura do Cec” (Viana, 1986, p.47). Final de ano, o sorteio e o prêmio: levar a professora de francês ao altar. Mais um dia triste ao protagonista sorteado. Nesse momento, a narrativa nos surpreende, pois ficamos durante 61 páginas vivendo um flashback, também chamado de analepsis, característica do romance de fluxo de consciência, ou seja, “nós nos reportamos a algo que aconteceu antes do tempo da narrativa” (Carvalho, 2012, p.71). Apenas no epílogo da narrativa é que o círculo se fecha e o leitor é levado a reler a primeira página e, assim, estabelecer o desfecho da narrativa. O último capítulo traz a seguinte afirmação do protagonista: “preciso tomar banho, vestir terno e gravata” (Viana, 1986, p.56), já a primeira página: “Chegou a hora: vou tomar banho, vestir terno e gravata. (Viana, 1986,
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p.7). O romance se fecha exatamente onde se deu o início: o protagonista arrumando-se para levar a professora de francês ao altar. O leitor é acometido por uma sensação de estranhamento, é o que Aguiar e Silva (1990, p.727) define como romance aberto. Nesse caso, não se elucida sobre o destino dos personagens ou o epílogo da diegese. O leitor experimenta um vazio no final da narrativa “pois sente a falta [...] do capítulo conclusivo” (Aguiar e Silva, 1990, p.728). Diferentemente do romance fechado que propõe um enigma inicial que vai se desenrolando até o esclarecimento, saciando a curiosidade do leitor. Viana, ao apresentar o epílogo da narrativa, tem o propósito de instigar o leitor a uma reflexão que estabeleça novas formas de pensar e agir a partir do diálogo que este fez com o texto durante o ato da leitura. Utilizando palavras da própria autora “a leitura de uma obra literária não deve exigir regras rígidas ou normas irredutíveis. Muito mais rico literariamente, um final capaz de gerar polêmicas deve sempre ser preferido a um outro, definido e definitivo e, talvez por isso mesmo, passivo” (Viana, 1992, p.73). Considerações finais Concluir a análise de uma obra de Vivina de Assis Viana representa um grande desafio e a convicção de que há muito mais a dizer e a descobrir. Compreender a literatura requer um conhecimento sobre arte e cultura e suas transformações através do tempo, transformações estas que lhe concederam a liberdade de miscigenar estilos e tendências e romper fronteiras, permitindo ao leitor fazer múltiplas leituras. Independentemente do modo como o texto literário chega ao leitor, este poderá compreender, refletir e questionar as transformações socioculturais, cujas ramificações são amplas e multidisciplinares. Pelo texto literário, abre-se um caminho muito promissor que é aquele que alerta para o fato de que a verdade é uma construção discursiva e merece interpretações. Nesse momento a presença do leitor é imprescindível, não apenas para interagir com o social, mas para preencher os vazios com sua fantasia e seu modo particular de ver o mundo e, consequentemente, compreender o homem e compreender-se como ser social.
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Referências BORDINI, Maria da Glória e AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura: a formação
do
leitor – alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto: 1988 CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo e fluxo de consciência, São Paulo: Editora Unesp, 2012. ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção.São Paulo: Companhia das Letras, 2002. HERNANDES, Andréia Nogueira. As intenções da escritura: criação literária e aspectos literários em Vivina de Assis Viana. 2009. 217f. 2009. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2009 JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994. LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história e histórias. São Paulo: Ática, 2002 LOBO, Luiza.
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Literatura. Discursos transculturais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. MARTÍN-BARBERO, JESÚS. Industrias Culturais: Modernidade e identidade. In: BORELLI, Silvia Helena Simões (org). Gêneros ficcionais, produção e cotidiano na cultura popular de massa. São Paulo: Intercom. 1994. SOUSA, Mauro Wilton de. Recepção e comunicação: a busca do sujeito. In SOUZA, Mauro Wilton (org). Sujeito: o lado oculto do receptor. São Paulo: Brasiliense, 1995. SUSSEKIND, Flora. Ficção 80 – dobradiças e vitrines. In Papéis colados. UFRJ, Rio de Janeiro, 1993. VIANA, Vivina de Assis. Falando de livros, 11 de julho de 2012. Entrevista concedida à Rádioonline da UFMG. Endereço eletrônico: /www.ufmg.br/online/radio/arquivos. Acesso em 10 de dezembro de 2012. ________. Suando frio. 1ª edição. Belo Horizonte: Editora Lê, 1986. ________. Literatura infantojuvenil: depoimento de uma escritora. In Revista Itinerários, nº4, UNESP Araraquara, 1992. ZILBERMAN. Regina. “Sim, a literatura educa”. In ZILBERMAN, Regina e SILVA, Ezequiel Theodoro da. Literatura e pedagogia: ponto & contraponto. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990.
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DO LIVRO PARA AS TELAS DO CINEMA: A LITERATURA E A ANIMAÇÃO EM HOWL’S MOVING CASTLE E HAURU NO UGOKU SHIRO Verônica Braga Birello (UEM) 1. Considerações iniciais Este trabalho tem como objeto de estudo a animação e a literatura. O material de análise é constituído pela animação Hauru no Ugoku Shiro, filme de 2004 concorreu ao Oscar de melhor animação em 2006. A animação em questão foi produzida pelo Estúdio Ghibli que tem como peça chave Hayao Miyazaki, o diretor de animação mais reconhecido do Japão. Nosso trabalho toma por base ainda o texto que deu origem a animação, Howl’s Moving Castle de Diana Wynne Jones, publicado em 1986. A partir da seleção do material de análise percebemos que seria possível pensá-lo articulando questões centrais para os estudos da tradução e do discurso, como a autoria e a interpretação, uma vez que, ao ver o filme e ler o livro, percebemos que efeitos de sentido diferentes são materializados e deslocados em vários momentos. Para tanto foi preciso estudar sobre a animação, como tinha sido desenvolvida, como eram produzidas e outros aspectos que diziam respeito a sua circulação. Além disso, buscamos estudar a literatura dentro de uma perspectiva discursiva fundamentada nos estudos do filósofo francês Foucault. Acreditamos ser importante o fato de que, no início do séc. XXI, narrativas relacionadas ao gênero maravilhoso e fantástico foram publicadas e reeditadas, alcançando um grande poder de circulação, como a série Harry Potter de J. K. Rolling, O Senhor dos Anéis de J. R. R. Tolkien, e As Crônicas de Nárnia de C. S. Lewis. Tais obras de sucesso têm um lugar de origem comum, o Reino Unido, lugar de origem também de Howl’s moving castle, lugar de origem de Diana W. Jones, aluna de C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien em Oxbrige. Com a produção cinematográfica de sucesso de muitos clássicos, Miyazaki, em 2004, vai também à fonte inglesa do gênero em busca
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de uma história que pudesse ser traduzida para as telas do cinema em formato de animação e encontra Howl’s moving castle. Diante disso, vemos que a literatura possibilita uma interdisciplinaridade que nos permite articular teorias e conceitos em busca da compreensão de fenômenos presentes no cotidiano. 2. A literatura em discurso Pelo fato de nosso trabalho possuir como objeto de estudo um texto literário, julgamos relevante compreender e refletir sobre como Foucault abordou a literatura em seus estudos. A fim de delimitar e definir, de maneira objetiva, a visão de texto e de literatura utilizada neste trabalho, discutimos, nesta seção, a relação do filósofo francês com os estudos e textos literários. Para tanto, contamos com o embasamento teórico do próprio Foucault (2000) e de Machado (2000). As referências exaustivas a apenas esses dois autores se justificam pelo distanciamento de Foucault da literatura, fato que fez com que o autor mudasse seu foco de estudos, deixando poucos escritos específicos sobre a literatura. Além disso, buscamos fazer uma ponte entre os estudos que já versaram sobre o conto maravilhoso dentro dos estudos literários e o pensamento de Foucault sobre a literatura. O livro que compõe nosso corpus faz parte do gênero conto maravilhoso. Por isso,acreditamos que seja importante articularas teorias do discurso sem desprezar o que já foi dito nos estudos literários. Para tanto, embasamo-nos, principalmente, nos estudos de Propp (1983) e Sperber (2011) para apresentar uma definição de conto maravilhoso e suas particularidades, que são relevantes para o desenvolvimento de nossa pesquisa. Propp (1983) propõe uma caracterização formal e estrutural de narrativas que possuam as características listadas por ele como conto maravilhoso, ou contos místicos. Ele faz uma pesquisa exaustiva, sem perceber que, por mais detalhista que fosse, ele não seria capaz de dar conta de todas as narrativas. Assim, muitas vezes, ele propõe que outros estudiosos pesquisem sobre outros textos, dando origem a outros gêneros, não sendo capaz de ser menos rígido e abarcar em seus esquemas classificatórios essas
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exceções. Para ele, baseando-se nas propriedades estruturais, seria possível classificar com “uma precisão e objectividade absoluta” (PROPP,1983, p. 155).
Como exemplo de aplicação de sua teoria levantamos as funções que foram listadas por ele e que se encontram presentes em nosso corpus de trabalho: parte preparatória: α: situação inicial; e β²: morte dos pais; A¹¹ : feitiço de transformação (malfeitoria); B: mediação; C: inicio da oposição do agressor;
: partida do herói, D²
saudações, perguntas; E: reação do herói; F o herói encontra um objeto mágico posto a sua disposição; G: viagem até o local desejado; H: combate contra o mal; I : marca imposta ao herói; J: vitória; K: reparação da malfeitoria, e quebra do feitiço; N cumprimento da tarefa; T: transfiguração; T¹: novo aspecto corporal; U: punição do agressor e W casamento (promessa). Dessa forma, ao nos aprofundarmos no modelo descritivo de Propp (1983) e em suas conclusões e exemplos, vemos que ele não é tão rígido, e que o modo como ele propõe a análise dos contos lhe proporciona classificar diversos contos que, em um primeiro contato, não estariam de acordo com sua proposta. Segundo este autor, Podemos chamar de conto maravilhoso, do ponto de vista morfológico, a qualquer desenrolar de acção que parte de uma malfeitoria ou de uma falta (a), e que passa por funções intermediárias para ir acabar em casamento (W) ou em outras funções como desfecho (PROPP, 1983, p. 144).
Assim como Sperber (2011) diz que os contos de fada versam sobre três mundos, ou fases: uma anterior à provação ou,nos termos de Propp (1983), a situação inicial; uma segunda fase seria durante a provação; e, por fim, um mundo posterior à provação. Embora Foucault tenha se distanciado da literatura com o tempo, é perfeitamente possível olhar para um corpus literário e pensá-lo de acordo com as concepções de tal autor, afinal, o pensamento dele não se limita a áreas especificas, suas reflexões podem ser expandidas nas mais diversas direções e áreas. Machado (2000) explica que, principalmente a partir da década de 70, Michel Foucault muda seu foco de estudo. Em sua coleção de Ditos & Escritos, o filosofo francês recorre a diversas obras e realiza
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várias analises, todavia, a partir da década de 70, sua preocupação reflete mudanças sociais que ele não enxerga ser possível por meio da escrita literária. Um pouco depois, por volta de 1980, ele chega à conclusão de que o nascimento da literatura é um efeito de poder que disciplina, obrigando a se falar do cotidiano, do banal, do íntimo e da intimidade. Embasando-se em Foucault, Machado (2000) afirma que a literatura na modernidade passa por uma transformação: o que era movido pelo prazer de contar e ouvir histórias centradas em narrativas heroicas e maravilhosas, passa a buscar a verdade de uma confissão inacessível. A literatura, diferentemente da época clássica, passa a funcionar como intensificadora ou mantenedora de mecanismos de controle do que age como resistência. Entretanto, a literatura não é uma aliada em sua empreitada para desvelar as relações de poder, visto que, não existe discurso contra ou a favor do poder exercido e sim discursos que foram campos estratégicos que podem intensificar ou resistir à força exercida. Mesmo atentos a essa perda de interesse pela literatura, é importante ter em mente o fato de que Foucault não se interessa pelas mesmas coisas da mesma forma sempre; o que interessa para ele é o exercício mental da reflexão. Assim, não pretendemos chegar a uma verdade absoluta na conclusão desse trabalho, mas conduzir um estudo literário pertinente ao pensamento foucaultiano. Dito isto passaremos para o tópico que versa especificamente sobre a animação uma vez que muitas delas são traduções de produções literárias. 3. Hauru no Ugoku Shiro e Howl’s Moving Castle: entendendo contextos e histórias 3.1 HOWL’S MOVING CASTLE & HAURU NO UGOKU SHIRO O livro Howl’s Moving Castle, de Diane Wynne Jones foi lançado em 1986, pela editora Greenwillow nos E.U.A e pela HarperCollins no Reino Unido, tendo como principal público-alvo adolescentes e jovens adultos. Por ocasião de sua publicação o
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livro foi indicado para o prêmio Boston Globe-Horn Book Award e foi indicado ainda no prêmio ALA1 Notable Books for Children. O livro ganhou o prêmio Phoenix Award da Children’s Literature Association 20 anos depois, em 2006, por ser reconhecido como o melhor livro infantil publicado 20 anos antes. Esse prêmio foi concedido ao livro provavelmente pelo seu reaparecimento das cinzas em 2004 por conta de sua adaptação para o cinema. Portanto, vemos o filme dando visibilidade ao texto. Hayao Miyazaki, do Estúdio Ghibli, que vencera o Oscar em 2001 com Viagem de Chihiro, fruto de um de seus roteiros originais, foi indicado novamente com Hauru no Ugoku Shiro concorrendo ao Prêmio Máximo da Academia, o Oscar, em sua 78ª edição no ano de 2006, na categoria “Melhor animação”. O filme foi lançado no Japão no ano de 2004 e nos Estados Unidos em 2005, tendo sua distribuição realizada pelos estúdios Disney. Nessa edição do Oscar o filme japonês concorreu com A Noiva Cadáver de Tim Burton e A batalha dos vegetais de Nick Park e Steve Box, película vencedora do prêmio. Em se tratando de Hauru no Ugoku Shiro, Miyazaki fora o responsável por adaptar o livro de Diana Wynne Jones de 1986 para as telas. Além de roteirista foi diretor e conquistou diversos prêmios com o filme como Melhor Filme de 2004 pelo Mainichi Film Awards2, e o Osella Awards 3por melhor técnica no 61º Festival de filmes de Veneza, nesse mesmo ano. O livro nos conta a história de uma jovem chamada Sophie Hatter e de como sua vida se torna uma aventura. Tudo acontece na terra de Ingary, onde bruxas, feitiços, botas de sete-léguas4, capas de invisibilidade realmente existem e onde ser o filho mais velho é a pior coisa que pode acontecer na vida de alguém. A protagonista é a mais 1
ALA: American Library Association.
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Prêmio anual promovido pelo maior jornal japonês, o Mainichi Shinbun.
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Nome do prêmio concedido aos vencedores do Festival de filmes de Veneza.
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Botas de sete-léguas são elementos comuns em muitos contos de fada, embora não existam comprovadamente na realidade em que vivemos. Quem possuir um par desse tipo de calçado será extremamente veloz, pois é possível percorrer a distância de sete léguas (2 a 7 kms) a cada passo dado com elas.
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velha de três irmãs, logo, está fadada ao fracasso. Contudo, apenas ela dá importância a esse tipo de história, tem baixa autoestima, se considera feia, desajeitada e sem talento, não sendo capaz de perceber o dote mágico que possui. Sophie se sentia esgotada, desgostosa da vida e até explorada, mas não tinha coragem de sair em busca de algo que a motivasse. Um dia, porém, é surpreendida por uma senhora, que se revela como sendo a terrível Bruxa das Terras Desoladas. A Bruxa pretendia enfeitiçar outra pessoa. O feitiço lançado pela bruxa fez com que Sophie se transformasse em uma velha de 90 anos. Além disso, ela não conseguiria contar a ninguém sobre o ocorrido. Esse feitiço faz com que Sophie saia de casa com o objetivo de desfazer o feitiço. Ela encontra o castelo do bruxo Howl e fica por ali na esperança de conseguir desfazer a maldição. Ao ser transformada fisicamente em velha, ela perde um pouco do pessimismo que tinha; ela sente como se, nessa forma, seu corpo correspondesse a sua verdadeira idade. Após muitas aventuras o feitiço é desfeito e ela se casa com o mago Howl. No filme Hauru no Ugoku Shiro temos três situações: a primeira, em que parte do romance é de fato narrada no filme; a segunda, na qual partes foram modificadas; e, por fim, o que foi inserido pelo diretor. O fio narrativo se mantêm, pois conta a história da jovem Sophie e de sua jornada em busca de desfazer o feitiço da Bruxa. Todavia, o filme acontece em meio a uma guerra. O rei quer que Hauru, o bruxo, o ajude a defender o reino utilizando seus feitiços. Sempre acontecem bombardeios, aviões e navios de guerra aparecem o tempo todo. Existe também um clima de medo e destruição. 3.2 A animação cinematográfica A animação é uma forma de se fazer cinema, contudo a criação da animação antecede o surgimento do cinema criado pelos irmãos Lumiére em 1895. Segundo Fossati (2009), mecanismos para a animação começam a ser desenvolvidos em 1645 com Athanasius Kircher e sua “lanterna mágica”, que consistia em uma caixa com luzes, espelhos e imagens pintadas em lâminas de vidro. A partir de então os estudos
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continuaram até a publicação detalhada sobre o funcionamento do olho humano de Peter Mark Roget que escreve um artigo explicando que imagens sequenciais são percebidas pelo olho como um único movimento. Após essa descoberta, foram criadas uma série de invenções que foram muito populares em apresentações itinerantes e que tinham como princípio a animação. Morisson (1994) aponta outra criação de destaque: o flipbook de 1968, objeto que continua a ser considerado pelos animadores como grande inspirador das narrativas animadas. Em livros do tipo flipbook um desenho é feito e copiado com pequenas modificações nas páginas seguintes, quando as páginas são viradas rapidamente produzem a ilusão de ação fílmica. Com o surgimento do cinema no final do século XIX, ficou claro que este tinha tudo o que era preciso para recontar os mais diversos textos escritos de forma diferente daquela que um livro poderia contar. Em 1908, Emile Cohl apresenta a primeira animação para o cinema Fantasmagorie, seguida por Little Nemo em 1914 de Winsor McCay. Nesta época, de acordo com Fossatti (2009), surgem personagens como o Gato Félix, Mickey, Bety Boop, além de inúmeras técnicas que acabavam por inovar e modernizar o mundo do cinema animado. Dentre essas técnicas, cita-se a rotoscopia, que cria a possibilidade de separação entre cenários e personagens ou objetos, dessa forma temos um cenário desenhado de forma completa e repetível, permitindo que posteriormente objetos possam ser inseridos nas mesmas cenas, sem que o animador tenha de construir quadro a quadro do plano de fundo novamente. Além da rotoscopia, outro avanço foi o desenho sobre celuloide transparente que permitia maior precisão de movimento das personagens e a ampliação de cenário em cada tomada. Pouco tempo depois, em 1921, surge a animação elástica, que tirava o limite humano das personagens. Dessa forma os braços poderiam se esticar magicamente para alcançar algo e é claro pessoas e animais voltariam em plena forma após serem esmagados por pianos que teimam em cair de prédios, ou bigornas que surgem de repente. Nessa mesma época surge o estereoscópio, criado por Normam McLaren que permitia a exibição de filmes em 3D, por meio da gravação simultânea com câmeras posicionadas em diferentes ângulos.
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4. Breves considerações Embora o texto aqui proposto tenha extensão reduzida esperamos poder mostrar um caminho que pode ser configurado como um breve guia os estudos discursivos que utilizem como corpus de trabalho a animação cinematográfica enquanto tradução literária. Consideramos ainda sobre o cinema de animação o que Rodrigues (2010, p. 1) explica: Nesta modalidade de cinema, aliada às diferentes técnicas está a inventividade das histórias: é o universo mágico da construção narrativa responsável pelo encantamento, fator que promove a interação imediata com o público.
Dessa forma, é possível dizer que nesse gênero cinematográfico, tudo pode ser criado, transformado, o que faz com que o mágico do conto se reduplique no mágico do filme. Independentemente do lugar do mundo em que fora produzida, a animação pode representar absolutamente qualquer coisa sem causar estranhamento, o que aqui se considera como uma analogia ao gênero maravilhoso da literatura, pois nele, segundo Todorov (2010), tudo pode acontecer e nada causa espanto ou estranhamento. Dessa forma, a animação caminha ao lado do maravilhoso, nada que aconteça numa animação ou numa história maravilhosa causa espanto às personagens ou ao público, pois se assume que tudo é possível. 5. Referências FOSSATTI, C. L. CINEMA DE ANIMAÇÃO: Uma trajetória marcada por inovações In: 7º Encontro Nacional de História da Mídia: mídia alternativa e alternativas mídiaticas, 2009, Fortaleza, CE. Anais (on-line). Disponível em. Acesso em 22 jun 2013.
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COMPORTAMENTO PROSÓDICO DAS COMPARATIVAS DESGARRADAS Violeta Virginia Rodrigues (UFRJ) Aline Ponciano dos Santos Silvestre (PG – UFRJ) Apresentação Neste artigo, comparamos o comportamento entoacional de cláusulas hipotáticas adverbiais desgarradas com o das não desgarradas, a fim de identificar que marcas entoacionais, presentes nas desgarradas, nos permitem não só fazer inferências dos conteúdos semânticos por elas veiculados como também entendê-las. Para tal, serão utilizados os pressupostos teóricos do Funcionalismo como base para análise e classificação das estruturas, pressupostos estes encontrados em trabalhos como os de Chafe (1980), Mann e Thompson (1988) e Decat (2001; 2010). Utilizaremos, ainda, princípios fonológicos, encontrados em Pierrehumbert e Hischberg (1990). A análise instrumental será realizada no programa computacional PRAAT, visando a observar o comportamento da F0 nos sintagmas entoacionais dos quais as cláusulas fazem parte. O desgarramento: breves considerações O termo desgarramento foi postulado por Decat (1993) para retratar o comportamento de cláusulas que se comportam como unidades de informação à parte e que não funcionam como constituintes de outras. Associando o fenômeno descrito pela autora à tradição gramatical, há uma tendência de estas estruturas serem interpretadas por alguns estudiosos como subordinadas que aparecem sem as suas orações principais, o que é um equívoco, segundo ela. Baseando-se em uma abordagem funcional-discursiva, em que se considera a língua em uso e a função comunicativo-interacional da linguagem, levando em conta fatores pragmáticos e não só estruturais, a autora aponta a distinção entre dois grupos de subordinadas: as encaixadas - cláusulas dependentes que são constituintes de um item lexical, grupo no qual se inserem as tradicionalmente chamadas substantivas e adjetivas restritivas e as hipotáticas - cláusulas dependentes, mas que não estabelecem relação de constituência com outro item lexical e que representam opções organizacionais para os falantes utilizarem seu discurso. Neste grupo, se inserem as tradicionalmente denominadas adjetivas explicativas e adverbiais.
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Segundo Decat (2010), na hipotaxe, exatamente porque as cláusulas são menos dependentes, é que, portanto, podem formar uma unidade de informação à parte, estando, assim, mais propensas ao desgarramento, ou seja, com mais possibilidade de ocorrerem, sintaticamente, independentes na língua: (...) a noção de “unidade de informação” está correlacionada com a ocorrência isolada de cláusulas subordinadas. Caracterizando-se como opções do discurso, servindo a objetivos comunicativo-interacionais, tais cláusulas “desgarram-se” porque constituem unidades de informação à parte, o que as reveste de um menor grau de dependência, tanto formal quanto semântica, chegando mesmo a se identificarem como cláusulas tidas como independentes, à maneira de alguns tipos de coordenadas. A dependência que se estabelece, nesses casos, será pragmático-discursiva. (DECAT, 1999, p.17)
Assim, com base nas breves considerações anteriormente retomadas sobre hipotaxe e desgarramento, pretendemos, neste trabalho, analisar a entoação de cláusulas hipotáticas adverbiais desgarradas e não desgarradas, a fim de descrever que marcas entoacionais permitem contrastá-las, ainda que no âmbito tradicional, as cláusulas desgarradas não possam existir sem a cláusula núcleo. Para alcançarmos os objetivos antes propostos, discutiremos, na próxima seção, conceitos específicos e relevantes para a análise prosódica das cláusulas hipotáticas adverbiais.
Em seguida, abordaremos a interface sintaxe-prosódia, revisitando
brevemente alguns trabalhos que a utilizaram com vistas à descrição das adverbiais. Sobre a análise prosódica de cláusulas hipotáticas: as noções de unidade de informação, sintagma entoacional e desgarramento Decat (1999) considera a noção de unidade de informação um aspecto importante para o estudo e análise do status de independência atribuída às cláusulas. De acordo com ela, poder ou não constituir, por si só, uma unidade de informação é uma distinção fundamental entre estruturas de encaixamento e estruturas de hipotaxe. Postulada por Chafe (1980), a idea unit (unidade de informação ou unidade informacional) é ainda entendida como um “jato de linguagem” por Kato (1995), já que possui toda a informação que pode ser „manipulada‟ pelo falante em um único “estado de consciência”, conforme Decat (2010). Decat (1999, p. 6) afirma “que há um limite quanto à quantidade de informação que a atenção do falante pode focalizar de uma única vez, ou seja, a unidade de informação expressa o que está na „memória de curto termo” e, sendo assim, tais
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unidades possuem, segundo Chafe (1980), cerca de sete palavras e “podem ser identificadas pela entonação (contorno entonacional de final de cláusula) e pela pausa (ou hesitação), ainda que breve, que as separa de outra unidade” (cf. DECAT: 1999, p. 6). Acrescente-se ainda que “as unidades informacionais tendem a se caracterizar como constituindo uma única cláusula”, mas “é a entonação (contorno entonacional) o sinal mais consistente para tal identificação, ao passo que a estruturação sintática é o critério menos necessário” (DECAT: 1999, p. 6). Pensando em termos prosódicos, podemos dizer que uma unidade de informação constitui um sintagma entoacional (I) e que esse constituinte prosódico pode ser percebido pela entoação, pausa ou hesitação. Assim asseveram Nespor e Vogel (1986, p. 218), ao afirmar que a formulação da regra de formação de I está baseada nas noções de que ele é o âmbito de um contorno entoacional e que os finais de I coincidem com as posições em que se podem introduzir pausas em uma oração. Serra (2009), em seus estudos sobre fronteiras prosódicas no PB, afirma que a pausa de fato é o principal indicador de fronteira I, apesar de o alongamento silábico e a variação de F0 também se mostrarem relevantes. Com seus testes de percepção, a autora acrescenta ainda que o tamanho dos constituintes foi fator importante para a percepção de fronteiras, tendo, normalmente, um I percebido mais do que 10 sílabas ou mais do que 4 palavras prosódicas, o que vai ao encontro da afirmação funcionalista anterior sobre a unidade de informação possuir cerca de sete palavras e ser identificável pela entoação, pela pausa ou hesitação. As noções de proposição relacional e entoação no discurso Podemos definir as proposições relacionais como sendo as sugestões implícitas que surgem das relações estabelecidas entre porções do texto. De acordo com Mann & Thompson (1983), são tipos de inferências que servem para relacionar duas cláusulas e que emergem da contiguidade entre elas, podendo, no entanto, existir entre duas porções maiores de texto. Sobre a configuração dessas inferências, Decat (1993) afirma que nem sempre as proposições relacionais são explicitadas por uma conjunção que mostre o tipo de relação inferida da combinação ou articulação de cláusulas, podendo existir independentemente de uma marca lexical que as identifique, pois o que importa é o tipo de relação que
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emerge da articulação dessas cláusulas e não a marca lexical dessa relação. A autora aponta ainda que o estudo da hipotaxe a partir das proposições relacionais permitirá explicar a gramaticalização1 dessas estruturas, “ora pela presença de um conectivo, ora pela entonação [grifos nossos], ora pela pausa, ora pela própria posição da oração num contexto discursivo” (cf. DECAT: 1993, p. 120) Pensando em termos prosódicos, podemos dizer que as proposições relacionais, definidas por Mann e Thompson (1983) e utilizadas por Decat (1993) na explicação da possibilidade de existência de cláusulas desgarradas, têm relação com a descrição do significado de contornos entoacionais na interpretação do discurso feita no trabalho de Pierrehumbert e Hischberg (1990), uma vez que essas autoras afirmam que a atitude do falante pode ser inferida pela escolha de um tom particular, sugerindo que a atitude é melhor entendida como derivada de um significado tonal interpretado do contexto do que como representativa do significado em si. A proposta é que os falantes utilizam o tom para especificar uma relação particular entre o conteúdo proposicional percebido no sintagma entoacional (sobre o qual o tom está empregado) e as crenças/opiniões dos participantes no discurso. Considerando o exposto, a importância da observação do postulado tanto pela teoria funcionalista quanto pela teoria fonológica revela-se, por um lado, pelo fato de conceitos funcionalistas como unidade de informação e relação proposicional proporcionarem a definição de cláusulas desgarradas como diferenciadas pela entoação e pelas inferências que suscitam e, por outro, pelo fato de estudos fonológicos sobre a entoação, como o de Pierrumbert e Hischberg (1990), atestarem a contribuição da escolha do contorno entoacional para a interpretação do discurso, asseverando, em particular, que o falante escolhe um determinado tom para transmitir uma determinada relação entre sentenças, sendo o sintagma entoacional a unidade primária para a análise do significado. Os conceitos, portanto, ainda que de bases teóricas totalmente diferentes, complementam-se e têm, no discurso e na entoação, os preceitos aqui necessários para a descrição das desgarradas. 1
O termo gramaticalização, usado por Mathissesem e Thompson (1988), refere-se à realização, à codificação sintática da cláusula, com diz Decat (1993, p. 120).
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Cláusulas hipotáticas: a interface sintaxe-prosódia Muitos estudos têm se utilizado da interface sintaxe-prosódia, o que enriquece a descrição das estruturas linguísticas do Português. O trabalho de Freitas (1995) foi um dos primeiros no Brasil a utilizar esse mecanismo de investigação, analisando o papel do nível suprassegmental na estruturação sintática das cláusulas. Nele, a autora reconheceu que “(a) nem todos os contrastes sintático-estruturais são traduzíveis pela estrutura prosódica e (b) todos os níveis hierárquicos de organização prosódica podem ser caracterizados independentemente da sintaxe”, ou seja, embora a prosódia seja, por vezes, redundante em termos de estruturação sintática, ela mantém sua independência. No que tange ao comportamento prosódico de cláusulas hipotáticas, os trabalhos de Stein (2008), sobre a possibilidade de haver, nas orações principais, indicação prosódica das nove subcategorias adverbiais elencadas pela Gramática Tradicional, e o de Santos (2009), de base funcionalista, sobre o comportamento prosódico das cláusulas adjetivas não restritivas, são importantes referências de estudo. Silvestre (2011), em trabalho apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da UFRJ, realizou breve estudo sobre o comportamento das desgarradas com base na aferição dos parâmetros prosódicos F0, duração e intensidade. Seus resultados mostraram que frequência fundamental foi o parâmetro prosódico mais relevante para a caracterização de tais cláusulas, as quais evidenciaram um movimento ascendente como representativo do desgarramento em contraposição ao movimento descendente observado nas cláusulas não desgarradas. A autora também observou que a duração pode ser um índice importante de diferenciação entre as cláusulas, já que muitas das estruturas desgarradas tiveram maior tempo de produção nas sílabas póstônicas finais do que nas pré-tônicas, fato não verificado nas cláusulas não desgarradas, que, em sua maioria, apresentaram, ao contrário, maior duração das sílabas pré-tônicas do que das pós-tônicas finais. Procedimentos metodológicos: o corpus O corpus utilizado neste artigo provém de cláusulas comparativas introduzidas por que nem e como encontradas no corpus Roteiros de Cinema, cujos dados de escrita foram previamente recolhidos por Rodrigues (2013).
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Em um primeiro passo para a delimitação dos dados, por meio da análise desse corpus, encontramos em 10 roteiros, 21 dados de cláusulas hipotáticas comparativas desgarradas introduzidas por que nem e 26 dados introduzidos por como. Para que a comparação se desse de forma igualitária, selecionamos, dos mesmos filmes em que o desgarramento foi observado, número igual de cláusulas não desgarradas introduzidas pelos articuladores que nem e como. O passo seguinte consistiu em ouvir a produção dos dados selecionados nas falas dos personagens mencionados nos roteiros e, nessa etapa, alguns empecilhos fizeram com que o número de cláusulas desgarradas a serem analisadas diminuísse, pois não encontramos o áudio de alguns filmes e número considerável das cláusulas selecionadas foi produzido de forma diferente ou não produzido nas gravações. Desta forma, o número de cláusulas hipotáticas comparativas desgarradas introduzidas por que nem foi drasticamente reduzido de 21 para 4 e, as cláusulas desgarradas introduzidas por como foram reduzidas de 26 para 5, fazendo com que seja 18 o número total de sintagmas entoacionais aqui analisados prosodicamente. As cláusulas estudadas foram: Cláusulas não desgarradas introduzidas por que nem: 1) Tem que tratar elas que nem vagabunda mesmo. (As melhores coisas do mundo) 2) Amigo que nem tu é meu. (Cidade dos Homens) 3) Se tu morrer, teu filho vai ser que nem a gente. (Cidade dos Homens) 4) Amolece que nem músculo de boi em bife borguinhone. (Estômago) Cláusulas desgarradas introduzidas por que nem: 1) Como se reza para o chupa-cabra? Que nem se reza pra Deus. (Antes que o mundo acabe) 2) Guardar dentadura no copo, que nem você brinca. (As melhores coisas do mundo) 3) SEPARAÇÃO. Que nem a gente vê na novela. (Bar Esperança) 4) Formiga. Que nem essas que tem por aí. (Estômago) Cláusulas não desgarradas introduzidas por como: 1) Lá e Ele pulsa ritmado como sexo. (As melhores coisas do mundo) 2) Eu não seria torturado como aqui. (Batismo de Sangue) 3) Assim na terra como no céu. (Batismo de sangue) 4) Vai funcionar como um espécie de conselheira. (Como fazer um filme de amor). 5) Ajudar gente como você. (O homem que virou suco). Cláusulas desgarradas introduzidas por como: 1) Haverá igual partilha de comida e bebida, como aqui. (Batismo de sangue)
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2) Eu ganhava um salário miserável, como hoje. (Como fazer um filme de amor). 3) Espera a hora...como um samurai. (Jogo subterrâneo) 4) Apolítico, como eu. (Pra frente, Brasil) 5) Ou pior, como um poste. (Como fazer um filme de amor).
O processo de análise dos dados do corpus As cláusulas que compõem o corpus deste artigo foram gravadas no programa SOUND FORGE 7.0, no formato wav. Após a recolha, os dados foram, um a um, analisados no programa PRAAT, por meio do qual foram aferidos os valores da frequência fundamental das sílabas que compõem os sintagmas entoacionais / cláusulas analisados. Nossa análise prosódica objetiva descrever os movimentos melódicos internos ao sintagma entoacional (I), traduzindo-os em altos (H) e baixos (L), conforme a teoria Autossegmental e Métrica (AM) da Fonologia Entoacional, postulada por de Pierrehumbert (1980), a fim de perceber se há diferenças entre a melodia de cláusulas não desgarradas e de cláusulas desgarradas, ou se há outros parâmetros que podem influenciar na diferenciação. Vale lembrar que, nos dados de desgarramento e não desgarramento aqui analisados, a cláusula núcleo, separada das hipotáticas pela pontuação dos roteiros, compõe um sintagma entoacional separado da hipotática, sendo, portanto, os dados de cláusulas não desgarradas compostos por um único I ao passo que os dados de cláusulas não desgarradas apresentam dois Is: o da cláusula núcleo e o da cláusula hipotática. Análise dos dados: a entoação Quanto à F0, as cláusulas desgarradas e não desgarradas tiveram comportamento entoacional semelhante, apresentando, no fim dos Is, tom H L* L, o que configura o padrão mais comum da asserção neutra no Brasil (CUNHA: 2000, MORAES: 2008, SILVESTRE: 2012), corroborando, de certa forma, a afirmação de Decat (2011) sobre o fato de as cláusulas desgarradas possuírem contorno final. Contudo, pudemos diferençar o desgarramento pelo comportamento característico do material que o precedeu.
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Nos Is de que fazem parte as cláusulas não desgarradas, a comparativa foi antecedida por um tom H no fim da suposta cláusula núcleo, o que era esperado, pois configura a informação de que há algo há mais a ser dito, de que há dependência da informação posterior. Pierrehumbert e Hischberg (1990) mencionam a utilização desse tom na fronteira final, afirmando que por ele é trazida a sensação de que a sentença será completada por outra. Vemos, portanto, na fronteira da cláusula núcleo que é acompanhada pela comparativa não desgarrada, o que Ford (1988) chamou de contorno continuativo (bound) e que Cunha (2000), em sua descrição prosódica do PB, assim também nomeia. Os Is desgarrados, por sua vez, foram antecedidos pelo tom H L* L do sintagma entoacional / suposta cláusula núcleo anterior, o que configura, como mencionado anteriormente, o padrão mais comum da asserção neutra no Brasil e que exemplifica o que Ford (1988) chamou de entoação final (separated). As figuras a seguir, das cláusulas “Amolece que nem músculo de bife borguinhone” e “Formiga. Que nem essas que tem por aí”, demonstram as diferenças observadas:
Fig. 3: Sintagma Entoacional “Amolece que nem músculo de bife borguinhone”, produzido pelo personagem Nonato do filme Estômago.
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Fig. 4: Sintagma Entoacional / Cláusula matriz “Formiga” e Sintagma Entoacional / Cláusula comparativa desgarrada “Que nem essas que tem por aí”, produzidas pelo personagem Magrão do filme Estômago.
Análise dos dados: pausa / pontuação Além da diferença em relação ao tom que antecede as cláusulas desgarradas, verificamos ser categórica, em nossos dados, a existência de pausa entre a cláusula núcleo e a cláusula desgarrada, fato não observado nos Is em que não há desgarramento. Uma vez que a cláusula desgarrada constitui um I à parte, essa verificação comprova o que Serra (2009) afirma sobre a delimitação dos sintagmas entoacionais no PB, os quais são majoritariamente percebidos quando delimitados por pausa. Além disso, corrobora a afirmação de Decat (1993), em referência a Chafe (1980), sobre o fato de as cláusulas desgarradas formarem uma unidade de informação e serem identificáveis pela entoação ou pela pausa, ainda que breve, que as separa de outra unidade. As figuras a seguir, das cláusulas “Vai funcionar como uma espécie de conselheira”
e “Espera a hora...Como um samurai.”,
exemplificam as diferenças
verificadas:
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Fig. 5: Sintagma Entoacional / “Vai funcionar como uma espécie de conselheira” produzido pelo narrador do filme Como fazer um filme de Amor.
Fig. 6: Sintagma Entoacional / “Espera a hora...Como um samurai.”, produzido pelo personagem Ana do filme Jogo subterrâneo.
No que tange à pausa, outra observação pode ser feita: a duração da pausa verificada nas cláusulas separadas por ponto nos roteiros foi, pelo menos, quatro vezes maior do que a observada nas cláusulas separadas por vírgula, como exemplificam as figuras 4 e 6, o que se relaciona à afirmação de Ford (1988) sobre pontos serem melhores sinais de separação do que vírgulas. À guisa de conclusão Após as análises, detectamos que, nesses dados, não foi encontrado um padrão melódico específico para as desgarradas. Apesar de a F0 não ter sido totalmente determinante para a diferenciação entre cláusulas hipotáticas não desgarradas e desgarradas, uma vez que o mesmo contorno melódico foi encontrado em ambas as estruturas, o comportamento entoacional da cláusula que precedia a comparação foi determinante, o que confirma, em certa medida, o postulado de Decat (1993) para essas cláusulas. Ademais, comparando os resultados da análise da fala com o texto escrito,
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podemos mais uma vez nos alinhar às considerações de Ford (1988) e postular que, de fato, parece haver uma associação entre o tipo de conexão adverbial sendo feita (no nosso caso, desgarrada ou não) e a probabilidade de a cláusula hipotática ser ou não separada entoacionalmente de sua cláusula núcleo. Acreditamos que o comportamento diferenciado da F0 só tenha se dado na conexão núcleo-hipotática e não nas cláusulas adverbiais em si pelo caráter nãoinferencial que as cláusulas aqui analisadas possuíam, pois o desgarramento se deu, de forma primária, por uma pontuação não canônica que se traduziu em pausa na fala, contudo, a cláusula núcleo, ainda que separada, estava presente em todos os dados. Esta análise do comportamento entoacional de cláusulas hipotáticas adverbiais comparativas introduzidas por que nem e como em estruturas não desgarradas e em estruturas desgarradas permitiu-nos apontar algumas tendências quanto à influência da F0 e da pausa na diferenciação dessas estruturas. Todavia, ainda que discretos avanços tenham sido feitos, este trabalho é parte ainda inicial dos estudos sobre a prosódia de cláusulas desgarradas. O corpus reduzido aqui utilizado aponta uma tendência de como o desgarramento observado na escrita se implementa na fala, mas ainda é pouco. É preciso que esses achados sejam mais bem investigados, por meio de um corpus ampliado, em que sejam comparados tipos de desgarramento e que também sejam feitos testes de percepção para que o conhecimento do ouvinte possa ou não confirmar o que a análise mostra ser relevante para a diferenciação das cláusulas em foco. Referências bibliográficas CHAFE, Wallace L. The deployment of consciousness in the production of a narrative. In: CHAFE, W.L. (Ed.) The Pear Stories: cognitive, cultural, and linguistic aspects of narrative production. Norwood: Ablex, 1980. CUNHA, C. S. Entoação regional no português do Brasil. Tese de doutoramento em língua portuguesa. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, UFRJ, 2000. DECAT, Maria Beatriz N. Estruturas Desgarradas em Língua Portuguesa. Campinas: Pontes Editora, 2011. ______. Estrutura retórica e articulação de orações em gêneros textuais diversos: uma abordagem funcionalista. In: MARINHO, Janice Chaves et alii (org.). Estudos da língua em uso: da gramática ao texto. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2010. p. 231-262. ______. A articulação hipotática adverbial no português em uso. In: DECAT, Maria Beatriz N. et al. Aspectos da gramática do português. Campinas: Mercado de Letras, 2001.
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A CORRESPONDÊNCIA ENTRE OCTAVIO PAZ E HAROLDO DE CAMPOS NO PROCESSO DE TRANSCRIAÇÃO DE BLANCO Volmar Pereira Camargo Junior1 (FURG) Este trabalho tem por objetivo abordar a correspondência, ocorrida entre os anos de 1968 e 1986, entre dois poetas e ensaístas, o mexicano Octavio Paz (1914-1998), e o brasileiro Haroldo de Campos (1929-2003), e que culminou no processo de “transcriação” efetivado por Haroldo de Campos, do poema de Paz, “Blanco”, para o português. Tal contato resultou na obra Transblanco (1ª edição de 1986; reeditada em 1994) e nela consta o poema “Blanco”, seu equivalente em português, “Branco”, uma boa parcela da correspondência entre os dois escritores e um extenso material teórico. A relevância dessa investigação motiva minha pesquisa de mestrado que será apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande, sob a orientação do Prof. Dr. Antonio Mouquer, e que terá como foco o livro referido para dele fazer uma abordagem do fenômeno da tradução/transcriação enquanto parte fundamental do estabelecimento de uma “tradição” (na acepção de T. S. Eliot), sobretudo na que Octavio inicia através de seus ensaios El arco y la lira (1956), Signos em Rotación (1965) e Los hijos del limo (1974). Em 7 de maio de 1985, no Anfiteatro de Convenções da Universidade de São Paulo, aconteceu o primeiro encontro oficial entre dois eminentes poetas, críticos e teóricos: o mexicano Octavio Paz e o brasileiro Haroldo de Campos. O motivo do encontro foi a publicação da tradução criativa feita por Campos de um dos mais famosos poemas de Paz, “Blanco”. Na ocasião, foi realizada uma leitura pública do poema em que se alternaram as versões original e transcriada, parte a parte, nas vozes dos próprios criadores. O poema original em espanhol, sua versão em português, um extenso material explicativo sobre o processo de tradução feito pelo brasileiro foram publicados no ano seguinte sob o título Transblanco. Acompanhava este volume a 1 Aluno do curso de Mestrado em História da Literatura, do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande (FURG-RS), bolsista da CAPES.
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correspondência mantida pelos poetas, iniciada vinte e sete anos antes do encontro na USP. Em São Paulo, Haroldo de Campos escreve a primeira carta a Octavio Paz, então embaixador do México na Índia, em 24 de fevereiro de 1968 (PAZ & CAMPOS, 1994, p. 96-97). Além da carta, enviou ao poeta mexicano, por sugestão de Celso Lafer (intelectual brasileiro, ex-aluno e amigo de Paz) os livros Teoria da poesia concreta, (1965) e Antologia Noigrandes (1962). Campos estava fascinado pela leitura da tradução francesa do ensaio do famoso ensaio de Octavio Paz, El arco y la lira (1966, na França), em especial, por seu epílogo. O poeta brasileiro percebe haver entre ele e Octavio Paz profundas afinidades teóricas e críticas sobre criação poética, tradução, tradição, e nesta, o destaque para Un coup de dés, de Mallarmé (1897). Interessado pela futura produção poética de Paz em relação à teoria manifesta no “epílogo” de El arco y la lira, o brasileiro identifica, em Libertad bajo palabra (1960) duas “correntes” em sua poesia: a metafórica e lógico-discursiva, que notadamente compõe o maior volume na tradição espanhola e hispano-americana (a queos concretistas veementemente se opunham); e a crítico-metapoética, presente em seus poemas breves, herdeiros do haicai japonês, ricos de certa “sintaxe mallarmeana”, linhagem a que o concretismo se vincula. A resposta de Octavio Paz vem rapidamente, numa longa carta datada de 14 de março de 1968 (PAZ & CAMPOS, 1994, p. 98-103). Primeiramente, Paz o corrige: o texto do epílogo de seu ensaio fora escrito em 1964, publicado como “um livrinho” em 1965, na Argentina, sem muita repercussão na época. Chamava-se, na verdade, “Los signos em rotación”. No início da década de 1960, Octavio Paz estava profundamente influenciado tanto pelo existencialismo heideggeriano quanto pelo estruturalismo – na antropologia de Lévi-Strauss e na lingüística de Roman Jakobson. Isso o levou a reelaborar sua noção de analogia, bem como várias questões referentes à escrita poética como “ato de leitura e tradução”. (MACIEL, 1995, p. 85). Imbuído de um espírito de auto-crítica, no intervalo de mais de dez anos entre as duas edições mexicanas de El arco y la lira (1956 e 1967) ocorre a escrita de “Los signos em rotación”, espécie de “crítica em
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palimpsesto”, um passar a limpo de um texto sobre as rasuras do anterior (SOUZA, 1992 apud MACIEL, 1995, p. 52). Na carta em resposta a Haroldo de Campos, Octavio esclarece – concordando com seu interlocutor – que, de fato, já tinha interesse pela teoria e a prática da poesia concreta, e agradece contentíssimo ao brasileiro por seu envio de material: “Infelizmente, conheço de uma maneira imperfeita o movimento brasileiro” diz ele (PAZ & CAMPOS, 1994, p. 98). Confirmando a observação de Haroldo de Campos, Paz diz que o cerne de “Los signos em rotación” é mesmo sua vinculação à poesia moderna, a uma “tradição da ruptura” com as estéticas vigentes, iniciada com Mallarmé. Por conta disso, afirma que “muito poucas obras de poesia, nos últimos anos, me deram a alegria e as surpresas que encontrei nos poemas seus, de Augusto de Campos, Decio Pignatari e de seus demais amigos”. (PAZ & CAMPOS, 1994, p. 99). Entretanto, nem todo o discurso de Octavio Paz foi em conformidade com a proposição de Campos: “Discordo de sua caracterização da poesia hispano-americana como 'de tradição metaforica e retórico-discursiva'. Não porque não seja exata a definição, mas por seu tom desdenhoso”. (PAZ & CAMPOS, 1994, p. 99). Sobre esse ponto, Haroldo de Campos dirá, em 1993, numa entrevista a Maria Esther Maciel: É quando eu digo que há duas linhas na sua poesia que me interessam: a linha Hai Kai, a linha enxuta, sintética, e a linha da poesia metalinguística; mas que havia alguma outra coisa na poesia dele que respondia a um tom mais comum da poesia latino americana, que era a metáfora genitiva. Aí ele fica um pouco “queimado”, “provocado”, com as colocações que fiz. As minhas relações com o Paz não foram estabelecidas em torno de amenidades, mas em torno de um questionamento estético. Como diz Ezra Pound, “uma pessoa civilizada é aquela que responde de uma maneira séria uma questão séria”. Eu coloquei uma questão séria para o Paz e ele, que é um homem extremamente civilizado, me respondeu de maneira séria. (MACIEL, 1999, p. 51).
Octavio Paz, a partir de então, “de maneira séria” mas sempre imbuído de cortesia e generosidade com seu correspondente, desfia uma extensa defesa da tradição “metafórico-discursiva” (que não é hispano-americana, mas ocidental), do renascimento do poema longo entre os modernos (Eliot, Pound, Pessoa, Maiakovski). No entender do poeta mexicano, a metáfora existe enquanto condição da linguagem. Argumenta que mesmo Mallarmé não renuncia ao discurso: “fragmenta-o e, ao confrontar um fragmento com outro, põe em movimento o conjunto. É o que ele chama constelação:
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'signos em rotação'”. (PAZ & CAMPOS, 1994, p. 101). Logo, mesmo a poesia concreta e seus “ascendentes” pertencem a uma poética incontornavelmente metafórica e discursiva. Sobre sua poesia em Libertad bajo palabra, a que Campos referiu, Paz alega “renegar” as fases anteriores à compreendida entre 1945 e 1957, sua preferida, que corresponde ao período de contato com os André Breton e os surrealistas, em Paris. Para ele, sua produção posterior a 1958 encontrava-se mais de acordo com “sintaxe de montagem” (Homenaje y Profanaciones, 1960; e Salamandra, 1958-1961). Encerrando a carta (com menos formalidade que Campos), e alimentando o que viria a ser um intenso intercâmbio bibliográfico, Octavio remete-lhe os dois livros de poesia mencionados, seus ensaios mais recentes (Claude Lévi-Strauss o El novo festín de Esopo e Corriente alterna, ambos de 1968), o poema “Viento entero” e a primeira edição, de 1967, de Blanco. “Estes dois poemas me interessam muito e gostaria que os lesse”. (PAZ & CAMPOS, 1994, p. 102). A carta seguinte também é do autor de “Blanco”, datada menos de uma semana depois da anterior, 20 de março. Entusiasmado com as diretrizes teóricas e os modelos nos livros recebidos do correspondente brasileiro, Octavio Paz “projeta” seis exemplares de poemas concretistas. Chamou-os “topoemas”. Junto à carta, enviou-os ao seu novo “mestre de poesia”, pondo-o, com os poetas de Noigrandes e Invenção, na mesma relação de e. e. cummings, Apollinaire, Juan José Tablada e Matsuo Bashô (MEYER-MINNEMANN, 1992). Ciente da história literária a que considera como Haroldo poética sincrônica, afirma: “creio que com estes poemas a poesia concreta faz sua aparição na América Hispânica”. (PAZ & CAMPOS, 1994, p. 104-105). Em setembro de 1968, Haroldo de Campos esteve envolvido no ciclo de conferências realizado na USP por Roman Jakobson (PAZ & CAMPOS, 1994, p. 133; BLIKSTEIN, 2010), com quem se correspondia já desde 1966. Sabendo dos interesses teóricos mútuos, Campos intermediou o contato entre Jakobson e Paz, com o qual teria um encontro memorável alguns anos mais tarde. No ano de 1968 a situação política e o clima entre os movimentos estudantis e o governo mexicano, como em todo o ocidente, estava bastante tenso desde os eventos de maio de 1968 na França. Naquele mesmo ano, a Cidade do México sediaria a décima
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nona edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna. Entre os eventos culturais alusivos às Olimpíadas, haveria o Encontro Mundial de Poetas, para o qual Octavio Paz, obviamente, fora convidado. A dez dias da abertura oficial dos jogos, na noite de 2 de outubro de 1968, um protesto de estudantes na Plaza de Tlatelolco é duramente rechaçado pela ação militar. Embora ainda hoje não haja certeza, estima-se que mais de trezentos manifestantes foram mortos. Este evento ficou conhecido como “O massacre de Tlatelolco” ou, a partir da obra de Elena Poniatowska, La noche de Tlatelolco (1971). Em 9 de outubro de 1968, Octavio Paz torna a escrever a Haroldo de Campos. Com evidente consideração, o poeta mexicano relata ao amigo brasileiro sobre sua decisão, já cumprida, de renunciar ao seu cargo de diplomático e mudar-se provisoriamente para a França, por conta do “regresso dos deuses sanguinários e de seus sacerdotes” em seu país natal (PAZ & CAMPOS, 1994, p. 106). Acompanha o envelope destinado a Campos, a cópia da carta escrita à comissão organizadora do Encontro de Poetas, junto do poema-protesto em que diz “Os funcionários / Da limpeza lavam o sangue / Na Praça dos Sacrifícios”. (PAZ & CAMPOS, 1994, p. 135). Essa atitude de repúdio, um dos fatos mais conhecidos da biografia de Octavio Paz, foi acompanhada e mesmo a antecipada por outros artistas e intelectuais mexicanos, como o reitor da UNAM da época, Javier Barros Sierra, que também abdicou de sua função (PONIATOWSKA, 1971?). Numa carta não datada, anterior a março de 1969, o autor brasileiro, renovado de admiração, congratula o amigo mexicano pelo “belo gesto de altivez e da mais profunda coerência”. (PAZ & CAMPOS, 1994, p. 109). Dando continuidade a seu repositório bibliográfico, agradece pelos livros que Paz lhe remetera (incluindo os Topoemas e uma tradução e ensaio acerca do “Soneto em ix” de Mallarmé), retribuindo com os trabalhos do núcleo do grupo Noigrandes sobre os poetas-críticos brasileiros Sousândrade e Oswald de Andrade. Além desses, apresenta-lhe pela primeira vez suas “Galáxias”, cuja escrita e publicação iniciara na revista Invenção, em 1964, ainda “uma work in progress”. Nessa oportunidade, Haroldo de Campos retoma a contenda teórico-ideológica, valendo-se da semelhança entre suas “Galáxias” e o “Blanco” de Paz: “Não sou contra a metáfora, em
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tese, colocação que seria absurda (…); sou contra o discurso linear, a retórica exterior, os rituais da metáfora genitiva que há em muita poesia francesa e espanhola”, e encerra: “aspiro, se possível, a uma concreção do metafórico”. (PAZ & CAMPOS, 1994, p. 109110). A troca de cartas tem um longo intervalo, entre 1970 e 1978. Contudo, nesse período houve pelo menos duas ocasiões muito importantes em que os poetas encontraram-se pessoalmente. A primeira vez ocorreu em 1969, em Paris, no Hôtel Saint-Simon, entre os dias 30 de março e 3 de abril (aniversário de 55 anos de Paz, a propósito). É um momento curioso: o poeta mexicano estava reunido com outros três poetas: o italiano Edoardo Sanguinetti, o francês Jacques Roubaud e o britânico Charles Tomlinson. Durante esses cinco dias, os quatro poetas produziram, pela primeira vez no ocidente, uma renga, uma experiência poética praticada no Japão, em que se utiliza uma forma fixa tradicional, a tanka. Na versão de Paz e seus companheiros, utilizou-se o soneto, a mais tradicional das formas ocidentais. Haroldo de Campos não participou, mas, ao que parece, encontrou-se com os poetas nos intervalos. Em 1972 ocorre um segundo e memorável encontro, à época em que Haroldo e Octavio lecionavam ambos nos Estados Unidos como professores visitantes: Campos em Austin, na Universidade do Texas, e Paz, em Harvard. Estiveram na companhia de Roman Jakobson, também radicado naquele país, lecionando no MIT. O motivo que oportunizou a reunião é contada numa carta de Paz a Celso Lafer, pouco tempo depois, em 10 de maio daquele ano: Passei quase toda a quarta-feira passada com Haroldo de Campos. Na manhã fomos à Biblioteca Houghton (em Harvard) e vimos as provas da edição original de Un coup de dés – aquela edição que Mallarmé concebeu com tanto cuidado e que nunca foi publicada. Vimos as palavras corrigidas pelas mãos de Mallarmé e as admiráveis ilustrações de Odilon Redon (pintor simbolista francês). Foi muito emocionante. À noite, para coroar este dia inesquecível, jantamos na casa de Roman Jakobson. Libamos imensas quantidades de vodka – aos 70 anos, Jakobson bebe como um verdadeiro futurista russo – e ouvimos discos: poemas de Maiakovski, ditos por ele mesmo, e a leitura de uma carta de Tolstoi aos seus netos, lida – ainda que pareça mentira – por Tolstoi um ano antes de morrer. (PAZ & CAMPOS, 1994, p. 307).
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Esse período norte-americano de menor contato entre eles foi, contudo, uma década que renderia uma importante produção teórica, bem como pelo crescente vínculo dos poetas com o meio acadêmico: foi a época em que Paz e Campos tornam-se proefessores. Paz, publicou seu terceiro ensaio mais célebre, Los hijos del limo em 1974, fruto justamente dos cursos de literatura ministrados nas universidades americanas desde meados dos anos 1960, tendo por assunto a tradição poética da modernidade, a que denomina “a tradição da ruptura”: a linhagem dos poetas-críticos. Haroldo de Campos, que doutorou-se em Letras pela USP em 1972, lecionou na PUCSP de 1973 até 1989. Entre 1971 e 1981, também como professor convidado nas universidades de Yale e do Texas, na cidade de Austin, a que ele chamou “A Austinéia Desvairada”, nome a uma série de poemas de seu A educação dos cinco sentidos, de 1985 (PERRONE, 2013, p. 43). Além das classes sobre literatura brasileira, nas atividades paralelas e extra-classe, Campos propunha a seus alunos densas tarefas de tradução (inclusive de seus próprios poemas, como suas “Galáxias”, para o inglês). A concepção de Haroldo de Campos de “tradição” é entendida pela noção de poética sincrônica: um “passado presente” (CAMPOS, 1977, p. 205-212). Ao assumir uma postura seletiva quanto ao que “merece” ser transcriado/revitalizado, Haroldo de Campos torna-se tributário de dois importantes conceitos: (a) a paideuma, defendida pelo poeta norte-americano Ezra Pound, que a define como “'separações drásticas' de um elenco de autores culturalmente atuantes no momento histórico” (CAMPOS, 2011, p. 10); e (b) a culturmorfologia, do etnógrafo alemão Leo Frobenius: “A ordenação do conhecimento para que o próximo homem ou (geração) possa, o mais rapidamente possível encontrar-lhe a parte viva e perder o mínimo de tempo com itens obsoletos”. (CAMPOS, 2011, p. 10-11). Assim, a operação tradutória do texto, ou transcriação, seria uma forma de o poeta/leitor aceder a essa tradição, revitalizando-a criativamente. A transcriação, que já fazia parte do programa dos jovens poetas reunidos em torno das revistas Noigrandes e Invenção entre as décadas de 1950 e 1960, foi um propósito assumido por Haroldo de Campos como um compromisso pedagógico. Desse modo, teoria, método e prática translatícias – e, consequentemente, os cortes “paidêumicos”, a ordenação “culturmorfológica” – passa a ser transmitida a sucessivas gerações de estudantes e,
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naturalmente, de jovens poetas: “Que disso tudo nasça uma pedagogia, não morta e obsoleta, em pose de contrição e defunção, mas fecunda e estimulante, em ação, é uma de suas mais importantes consequências”. (CAMPOS, 2011, p. 43). Essas mesmas preocupações quanto à tradição/tradução e à sua pedagogia estão presentes no pensamento de Octavio Paz. Em o Los signos em rotación, texto considerado o eixo de ligação entre seus principais ensaios sobre poética, El arco y la lira e Los hijos del limo, uma das primeiras problematizações feitas pelo autor é que a crise dos significados gerada pela instauração da técnica como paradigma da linguagem de nossa época, o primeiro período histórico que chama a si mesmo de moderno, acarreta, nos termos de Paz, numa “perda da imagem do mundo”. Assim, Octavio Paz se questiona: onde fica a imaginação na era da técnica? Qual é a perspectiva para os poetas vindouros? (PAZ, 2012, p. 259-266). A postura de Octavio Paz frente a essa preocupação com a imagem do mundo não é um “pessimismo” passadista, em que se acredita no fim da história ou no desencanto absoluto com a modernidade. A possibilidade desta poética moderna, não mais como imitação do mundo, assume o compromisso de sua tradução, como continuidade e como diálogo: Nuestro siglo es el siglo de las traducciones. No sólo de textos sino de costumbres, religiones, danzas, artes eróticas y culinarias, modas y en fin, de toda suerte de usos y prácticas (…). Es verdad que otras épocas y otros pueblos también han traducido y con la misma pasión y esmero que nosotros (ejemplo: la traducción de los libros budistas por chinos, japoneses y tibetanos), pero ninguno de esos pueblos tuvo conciencia de que, al traducir, cambiamos aquello que traducimos, y, sobre todo, nos cambiamos a nosotros mismos. Para nosotros traducción es transmutación, metáfora: una forma del cambio y la ruptura; por tanto, una manera de asegurar la continuidad de nuestro pasado al transformarlo en diálogo con otras civilizaciones. Continuidad y diálogos ilusorios: traducción: transmutación: solipsismo. (PAZ, 2014, p. 685).
De acordo com Maria Esther Maciel (1995), “Blanco” não é apenas o poema mais famoso do poeta mexicano, é também o poema que melhor representa esse seu esforço por traduzir a tradição poética do ocidente, a cultura de seu país e o sentimento de outridade – sentimento que o faz criar uma “erótica poética” que une o amor pela linguagem à filosofia tantra indiana: o fazer poético como prática amorosa. Ocidente e oriente, filosofia e poesia, escritura e leitura tornam-se centro de interesse. Poema ao
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mesmo tempo lírico e visual, cujo projeto original previa que se dispusesse como um rolo de pergaminho, apresenta-se não como um, mas como seis poemas, que podem ser lidos em conjunto ou isoladamente. Em colunas dispostas lado a lado, o princípio masculino, impresso em tinta preta, dialoga e une-se ao feminino, representado por tipos de cor vermelha. O poeta e a linguagem produzem o sentido no ato mesmo dessa união. me vejo no que vejo como entrar por meus olhos em um olho mais límpido me olha o que eu olho
é minha criação isto que vejo perceber é conceber água de pensamentos sou a criatura do que vejo (PAZ & CAMPOS, 1994, p. 68)
A transcriação de Blanco acontece para Haroldo de Campos num processo que ele inicia chamando de “diamantização”, iniciado em 1968, e concluído num momento de epifania, em seu último ano em Austin, em fevereiro de 1981. Entre os dias 10 de janeiro e 8 de fevereiro, esteve como que “inebriado” pela tarefa e, na madrugada para o dia 9, conforme o poema escrito para celebrar o momento, enviado na carta escrita naquele mesmo dia para o amigo mexicano, Campos diz “Tomei a mescalina de mim mesmo, e traduzi Blanco de Octavio Paz”. (PAZ & CAMPOS, 1994, p. 120; PERRONE, 2013, p. 52). Pode-se, para concluir, recordar o incontornável, mas não inquestionável, ensaio do poeta-crítico T.S. Eliot, Tradição e talento individual, de 1919, em que diz que, longe de ser simplesmente uma continuidade a ser aceita sem crítica, ou rechaçada como algo a ser superado, “a tradição é de significado muito mais amplo. Não pode ser herdada, e se a quisermos, tem de ser obtida com árduo labor. Envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico”. (ELIOT, 1997, p. 23). Essa a tradição, enquanto é a literatura, em sua totalidade, existe na condição de uma presença do passado: a “poética sincrônica” de que falam Paz e Campos. Esse “passado presente” é, nas palavras de Borges (1999), o ato em que o poeta “cria seus precursores”. Essa linhagem de poetas e poemas, unidos por uma paixão crítica, levou “a poesia não apenas a se rebelar contra as certezas seculares, crenças tradicionais, como também se voltar sobre si mesma, a se desconstruir e traçar seus próprios limites”. (MACIEL, 1995, p. 22). A busca de Haroldo de Campos numa abordagem sobre um tema estético junto a Octavio Paz foi uma busca para ter contato em termos de respeitosa reverência mas de
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interesse, mais que poético, por “traduzi-lo”, na condição de herdeiro de uma linhagem. Paz, com “Blanco”, que não pode nem deve ser considerado uma síntese de sua obra, mas, sim, como seu poema-crítico mais emblemático é, definitiva e decididamente, ligado a uma importante linhagem de poetas-críticos “descendentes” de Mallarmé e seu Un coup de dés: os norte-americanos T. S. Eliot, com “Terra Desolada” e Ezra Pound, com “Os cantos”; o chileno Vicente Huidobro, com “Altazor”; o peruano Cesar Vallejo, com “Trilce”; o chileno Pablo Neruda (em sua primeira fase), com “Residencia em la Tierra”. De modo menos específico, o argentino Jorge Luis Borges, o cubano José Lezama Lima e o brasileiro João Cabral de Melo Neto. (MACIEL, 1995; MILÁN, 1994). A essa linhagem uniu-se Haroldo de Campos com suas “Galáxias”. Por outro lado, a partir da transcriação de “Blanco”, Campos colocou Octavio Paz no mesmo rol de grandes poéticas de ruptura, a que dedicou sua longeva prática translatícia: Homero, Dante, Joyce, Maiakovski, Pound, Ungaretti... Um “árduo labor” conduzido por mais de meio século, mas que se estende e abarca, nesse passado presente da poesia, mais de dois mil e quinhentos anos. Referências BLIKSTEINS, Izidoro. Entrevista. In: RELATOS. v. 6. Campinas: UNICAMP, 1995. (Acerca da vinda de Roman Jakobson ao Brasil, em setembro de 1968. Entrevistadores. Diana Luz Pessoa de Barros, Eduardo Guimarães, Eni P. Orlandi e José Luiz Fiorin). BORGES, Jorge Luís. Kafka e seus precursores (1952). In: Obras Completas. v. II (1952 – 1972). São Paulo: Globo, 1999. (Este ensaio integra o livro “Outras inquisições”, de 1952). CAMPOS, Haroldo. A arte no horizonte do provável. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1977. ________. Da transcriação. Poética e semiótica da operação tradutora. Organização, Sônia Queiroz. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011. 168 p.
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ELIOT, T. S. Tradição e talento individual. In: Ensaios de doutrina e crítica. Tradução, Fernando de Mello Moser. Lisboa, Guimarães, 1997. p. 21 – 35. ERLIJ, David. Octavio Paz: un encuentro en Cambridge. Letras Libres. México, D.F.: Editorial Vuelta, Junio, 2003. Disponível em , acesso em 25 ago 2014. MACIEL, Maria Esther. As vertigens da lucidez: poesia e crítica em Octavio Paz. São Paulo: Experimento, 1998. 255 p. _______ (org.). A palavra inquieta. Homenagem a Octavio Paz. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. 246 p. MEYER-MINNEMANN, Klaus. Octavio Paz: Topoemas. Elementos para una lectura. In: Nueva Revista de Filologia Hispánica, 40. México, D.F.: COLMEX, 1992. p. 1113-1134. Disponível em , acesso em 25 ago. 2014. MILÁN, Eduardo. Tensão do dizer em Blanco de Octavio Paz (1990). In: PAZ, O.; CAMPOS, H. Transblanco. 2ª ed. São Paulo: Siciliano, 1994. p. 159 – 172. PAZ, Octavio. Obra poética (1935-1998). 3ª ed. Barcelona: Galaxia Gutenberg / Círculo de Lectores, 2014. 844 p. __________. O arco e a lira. O poema. A revelação poética. Poesia e história. Tradução, Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012. 350 p. (Título original: El arco y la lira. Esta tradução foi feita a partir da versão definitiva, revisada e ampliada pelo autor em 1967).
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___________. Os filhos do barro. Do romantismo à vanguarda. Tradução, Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naivy, 2013. 190 p. (Título original: Los hijos del limo. 1ª edição: 1974). ___________. Signos em rotação. Tradução, Sebastião Uchoa Leite. Organização e revisão, Haroldo de Campos e Celso Lafer. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1976. PAZ, Octavio; CAMPOS, Haroldo. Transblanco. 2ª ed. São Paulo: Siciliano, 1994. (1ª edição: 1986). PERRONE, Charles A. Laudas, lances, lendas e lembranças: Haroldo de Campos na Austineia Desvairada. In: Transiluminura: revista de estética e literatura. Nº 1. São Paulo: Centro de Referência Haroldo de Campos – Casa das Rosas, 2013. p. 41 – 65. Disponível em . Acesso em 31 ago. 2014. PONIATOWSKA, Elena. La noche de Tlatelolco. (1ª edição de 1971). Disponível em , acesso em 25 ago. 2014. A edição mais recente em espanhol é de 1993. A digitalização não informa a data. SOUZA, Eneida Maria de. Luiz Costa Lima: crítica em palimpsesto. Cadernos de Pesquisa. Belo Horizonte: NAPq-UFMG, 1992.
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O GÊNERO POLICIAL SOB INQUÉRITO: BALADA DA PRAIA DOS CÃES Wellington R. Fioruci (UTFPR/UFRGS) A Balada em duas sinfonias A montagem ou encaixe de relatos, micropeças discursivas que estruturam o macrotexto que vem a ser o romance, é sem dúvida o eixo central da obra, núcleo de força ao redor do qual gravitam de forma centrífuga os demais elementos narrativos e estilísticos como a construção das personagens, a variação de registros (fonte de investigação para o detetive Elias Santana), as metáforas que ampliam os sentidos da narrativa. Cardoso Pires envereda pelo passado português não como um retorno e sim apostando ousadamente em um novo trajeto, e para tanto lança mão de uma perspectiva múltipla, jogo de luzes e sombras neobarroco que se traduz na complexa trama de relatos aparentemente encaixados para o leitor. A aparência do encaixe se explica pelo fato de que os narradores também variam, como uma sinfonia de vozes e ecos sobrepondo-se. A leitura do romance é conduzida por um narrador heterodiegético, supostamente o autor empírico da obra, José Cardoso Pires, quem assina a “Nota Final” JCP, datada de setembro de 1982, ano da primeira edição da obra. Este divide a maior parte do ato narrativo com Elias, o responsável pela investigação, a cujo pensamento temos (livre?) acesso. Além deles ainda participa com maior relevância Mena, a principal testemunha, e em diluídas doses os coadjuvantes Otero e Roque, respectivamente inspetor e agente da Polícia Judiciária. Com efeito, some-se a esta entrançada tessitura os vários arquivos de que se serve o narrador (autor?), como relatórios oficiais, tal qual o da autópsia, ouverture do romance, autos de declaração, folhas corridas policiais, notícias de jornais, trechos de depoimentos, dentre outros. Essa trama de nós cabe ao leitor desemaranhar, considerando-se também que a investigação se constrói com constantes analepses, ambientadas na Casa da Vereda, antes da derradeira reconstituição do crime, e, se não bastasse, ainda se projetam nas
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frestas do texto sonhos, delírios e a imaginação reconstitutiva-dedutiva de Elias. As elipses temporais e os inúmeros recortes discursivos são a colcha de retalhos que entrega José Cardoso Pires ao leitor, um verdadeiro “baú de sobrantes”, ele mesmo uma metáfora autorreferencial que alude à própria trama policial projetada para o leitor: Baú dos sobrantes: Diversos Aqui é ela antes e fora do cárcere. Mena repensada de longe e em silêncio numa sala de lagarto e janela alta, através dos restos dos interrogatórios. Sobrantes. Baú de sobrantes chama Elias a esse envelope para onde vai carreando à formiga certos avulsos do processo que servem ao bom polícia para tomar o peso aos figurantes. Cópias de arquivo, fotografias, recordações pessoais, notas à margem, há de tudo no envelope. Passa aqueles papéis com mão nocturna e sagaz: parece que se iluminam e sai deles gente. (PIRES, 2012, p.71, grifo do original)
Elias detetive, Elias leitor, eis a imagem dupla que caracteriza o personagem. O dito baú é uma metonímia inserida no universo do romance, a simbolizar o que sobra depois de tantas leituras, investigações, experiências. Desses relatos emana o passado e o presente a que temos acesso. Desta posição distanciada “De longe” repensamos com Elias os fatos, buscando iluminá-los. Mas tal qual o barroquismo da linguagem neopolicial do romance, acompanhar Elias e o desvendamento dos fatos é complexo, pois com sua “mão nocturna”, embora “sagaz”, coloca a si, isto é, a sua própria visão, no geral pessimista, em tudo o que toca e vê: “O protagonista [...] reconstrói o ambiente a partir de dados reais e conjecturas.” (PETROV, 2000, p.82). Essa postura de Elias, alimentada pela constante mudança do foco narrativo, pode ser vista como a propensão da narrativa pós-moderna em aliar a “sistematização intelectual” ao potencial da “reconstrução imaginativa”, com vistas a problematizar o reconhecimento do passado. (HUTCHEON, 1991, p.126). Ao leitor ficam os restos, sobrantes desse baú que é a mente de Elias, que é o romance. O narrador participa desse jogo instável entre o relato objetivo e subjetivo, à maneira do estilo paradoxal pós-moderno, responsável por romances que “[...] são intensamente autorreflexivos, e mesmo assim, de maneira paradoxal, também se apropriam de acontecimentos e personagens históricos.” (HUTCHEON, 1991, p.21). Entre provas e interpretações, ele tem a seguinte opinião sobre o personagem detetive pós-moderno:
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Hoje, 1982, vemos claramente Elias Santana como o investigador que, uma vez senhor de toda a verdade, se entretém a deambular pelas margens à procura doutras luzes e doutras reverberações. [...] Até ao momento de fechar o processo (data da captura do cabo e do arquitecto, depreende-se pelos autos) o chefe de brigada não parou de sondar por conta própria e de arrecadar, arrecadar. Baú dos sobrantes, o cadinho das miudezas que fazem o tempero do crime. (PIRES, 2012, p.92)
Antes de tudo, é preciso atentar ao estratagema narrativo da presentificação do relato, o advérbio de tempo, a data e o uso do presente do indicativo na sua forma majestática, notadamente impresso no sugestivo verbo “ver”, que vem reforçado pelo significativo advérbio “claramente”. Novamente entra em cena, a exemplo da “Nota final” e diversas notas de rodapé, o artifício do narrador-autor, a mostrar seu rosto como o responsável por reunir os dados e costurar a obra. Cardoso Pires insinua-se como sendo o narrador, aquele que recolhe os vestígios do passado e nos entrega um produto verossímil, embora saibamos que a instância narradora já é parte do jogo ficcional. Salta aos olhos a percepção que ele tem do chefe de brigada, um sujeito que “deambula pelas margens à procura doutras luzes e doutras reverberações”. Margens do texto, da história, diga-se de passagem. Elias vem a ser o incansável detetive, leitor contumaz que prefere “por conta própria” continuar a “arrecadar, arrecadar”, de forma que a interpretação do texto, pari passu à sua construção, segue ao infinito, em aberto, mesmo sendo sua estrutura aparentemente fechada, dado que se soluciona o crime. A visão que o inspetor Otero tem da metodologia de seu subordinado é elucidativa: “Nunca conheceremos o material que Elias Santana tinha em seu poder.” (PIRES, 2012, p.92). O detetive-leitor enxerga muito além do crime, e leva seu olhar e sua investigação a outro diapasão, de caráter social: À medida que a investigação avança [...] detecta-se que o crime serve mais uma vez de pretexto para o esboço de um outro tema, circunscrito à ordem social de então. É que o material recolhido ultrapassa largamente a problemática da morte, esboçando o quadro das circunstâncias em que decorrem os acontecimentos. Em consequência, o registo dos meandros da actuação policial fornece a imagem de uma sociedade dominada por um regime opressivo, em aparente estado de estagnação e impotência, na qual todas as acções
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dos indivíduos são resultado directo da instituição do terror e do medo. (PETROV, 2000, p.82)
O gênero policial com Cardoso Pires mantém sua ligação com o estrato social, constatada na relação de contaminação entre sociedade e indivíduos no crime da Casa da Vereda, cujo ambiente e personagens estão densamente mergulhados na atmosfera ditatorial do salazarismo, já que se trata de um esconderijo de desertores, párias políticos para o regime. De fato, os personagens “[...] no microcosmos da Casa da Vereda, especulam os conflitos do Portugal ditatorial que eles próprios combatiam.” (ARNAUT, 2002, p.205). Assim, embora tenham sido os assassinos do major Dantas Castro o arquiteto e o cabo, pesa sobre eles a sombra do contexto histórico-político. A presença constante de imagens do ditador fascista português “o retrato de Salazar no infinito da parede” (PIRES, 2012, p.137) assevera tal proposição, como se o mesmo fosse onipresente, imagem que se sustenta infinitamente. Esse clima de tensão experimentado na Casa da Vereda é reflexo da própria Lisboa: Mas atenção, aviso. Lisboa, esse vulto constelado de luzes frias do outro lado do rio é um animal sedentário que se estende a todo o país. É cinzento e finge paz. Atenção, achtung. Mesmo abatido pela chuva, atenção porque circulam dentro dele mil filamentos vorazes, teias de brigadas de trânsito, esquadras da polícia, tocas de legionários, postos da GNR, e em cada estação dessas, caserna ou guichet, está a imagem oficial de Salazar e bem à vista também há filas de retratos de políticos que andam a monte. O perímetro da capital está todo minado por estes terminais, Lisboa é uma cidade contornada por um sibilar de antenas e por uma auréola de fotografias de malditos com o Mestre da Pátria a presidir. (PIRES, 2012, p.47)
A aparente paz de Lisboa, transformada em uma pálida sombra de si, é temível, pede atenção, segundo nos alerta o narrador. A expressão em alemão conota uma terrível lembrança do período de um estado militarizado, do nazifascismo de Hitler, que invade a paisagem desta cidade (e país) que se assemelha a um “animal sedentário”, uma sociedade estagnada e silenciada, sinônimo de morte. Daí advém a sensação de impotência, solidão e miserabilidade que permeia a obra, franqueada pela presidência do Mestre da Pátria, assim denominado com ironia ácida pelo narrador. O romance de Cardoso Pires insere-se na vertente pós-moderna, cujo discurso ficcional, próprio da
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metaficção historiográfica, é ao mesmo tempo representação da sociedade e autorreflexão, de forma que: One would think these qualities might disrupt each other, yet the constant tension between them works instead to keep the reader’s critical attention permanently engaged in an evaluation of the historical material presented. In Balad, this material is inseparable from the setting of the novel. If we accept this premise it follows that, in order to recreate a society, it must also be re-staged. In Balad, the recreation of Salazar-era society is achieved through reproducing a portion of its historical time-space: the city of Lisbon in the early 1960s. (CASTRO, 2011, p.09)
Elias está organicamente ligado a essa sociedade, e sua persona em parte incorpora o clima sociopolítico do país, a despeito de sua postura crítica digna de um outsider, que o leva a buscar incessantemente a verdade, independentemente de quem seja a culpa, inclusive no que toca ao poder político da PIDE, instância repressora dentro do governo português que a exemplo de outros regimes totalitários mantinha olhos, ouvidos e braços bem armados no controle da nação. A PIDE, substituta da então PVDE, constituiu uma “medida de cosmética” do regime salazarista com o fim de “reverter a negatividade resultante das acções repressivas daquela e dos estreitos acordos de cooperação estabelecidos com as polícias políticas fascista, nazi e franquista.” (MATOS, 2010, p.30, grifos do original).
A PIDE ronda toda a narrativa, afinal, interessava ao poder político salazarista, cujos cães de guarda eram os agentes da polícia política, associar o crime à violência dos conspiradores. Todavia, apesar de sabermos ter sido o crime praticado de fato pelos próprios conspiradores contra seu líder, pesa sobre o ato criminoso a repressão do Estado, a violência simbólica que emana do clima paranoico que afeta a todos e que a Casa da Vereda bem representa em sua claustrofobia agonizante. Com efeito, a morte parece estar em toda parte e a cidade se torna um grande cemitério, onde o bairro do Chiado “era uma calçada de cemitério rico em romagem permanente.” (PIRES, 2012, p.139) e até os jornais são “cemitérios impressos” (PIRES, 2012, p.95). Esses elementos até aqui elencados, fundamentais na construção do romance, são em parte transpostos para a tela de cinema por Fonseca e Costa e uma dupla de roteiristas experientes , em outra medida são reinventados ou adaptados para a semiose
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fílmica: “Produzir linguagem em função estética significa, antes de mais nada, uma reflexão sobre as suas próprias qualidades.” (PLAZA, 2013, p.23). Em se tratando de um processo intersemiótico, é coerente que na tradução de um código para outro haja mudanças em diferentes níveis e procedimentos, as quais podem ser escolhas em maior ou menor grau significativas, em especial no que tange aos efeitos gerados na recepção da obra: “Fazer tradução toca no que há de mais profundo na criação. Traduzir é pôr a nu o traduzido, tornar visível o concreto do original, virá-lo pelo avesso. [...] tradução e invenção se retroalimentam.” (PLAZA, 2013, p.39). O realizador Fonseca e Costa imprime à película uma paleta dessaturada, com ausência de luz em geral, havendo o predomínio de cores como o marrom, o cinza e o preto. Essa descoloração envolve a narrativa de forma absoluta, impregnando a tela de uma morbidez e uma apatia que se associam diretamente à ambientação do romance de Cardoso Pires, a qual emula, como já apontado, a situação política repressiva de Portugal e a consequência dessa hostilidade na vida dos personagens. É sintomático dessa textura pálida e sombria a tomada de abertura, a primeira imersão no filme, na qual, após créditos iniciais, há um travelling que leva o espectador até o cadáver encontrado pelos cães, cuja investigação deflagrará a ação narrativa. No romance, a abertura se dá via um texto bastante científico, o laudo médico, de caráter forense, sobre o cadáver do Major, mas no filme é o travelling, imerso em uma atmosfera mergulhada em um lusco-fusco, vespertino ou matutino, depois um corte e, então, uma semiluz algo fantasmagórica que apresenta o cadáver parcialmente coberto de areia, cujos trapos são dilacerados pelos cães. Participam, portanto, a câmera e a fotografia dessa primeira cena. Some-se a esse cenário um texto (não consta no romance) que, após os créditos, introduz verbalmente o clima retratado pela câmera: Em janeiro de 1960, um punhado de patriotas, entre os quais se contavam alguns militares, opunha-se, sem êxito, a um regime político que sobrevivia apoiado no terror de uma Polícia Política feroz e omnipresente a P.I.D.E. ...O desencanto e o desespero eram o pão nosso de cada dia...Vivia-se a medo... (0:01:43)
No texto literário, pouco se comenta sobre a indumentária dos personagens, focando-se mais na descrição dos espaços fechados, como a Casa da Vereda e o apartamento do detetive Elias Santana, ou dos abertos, neste caso diversas partes da
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cidade de Lisboa que formam um mapa obscuro em seu conjunto. Mesmo no caso da personagem de Mena, representativa da autenticidade feminina e seu poder de sedução, é mais comum que a vejamos trajada de cores sóbrias, já que a encontramos com frequência nos interrogatórios da Polícia Judiciária, com exceção para algumas cenas no refúgio dos conspiradores, em que cores mais quentes reforçam o sex appeal da personagem. Como se sabe, é fundamental nesse cenário tal reforço, haja vista que emana principalmente dela o conflito entre o Major Castro, seu amante, e o arquiteto Fontenova, motivado pelos ciúmes do amante frente ao possível rival. Essa tensão constante na Casa da Vereda se agrava pela paranoia típica do isolamento e culminará com o assassinato de Castro, líder dos insurretos . O cinema, nestes casos, lança mão de outros recursos, inerentes à sua estrutura, que constituem o sincretismo audiovisual da linguagem cinematográfica e que se aliam à luminosidade da tela e à escolha de figurino. São eles o aporte sonoro e a mise-enscène por parte dos atores. A orquestração desses diferentes sintagmas, verbal, auditivo e visual: Fazem parte de um todo orgânico em que os sistemas interagem, reforçam uns aos outros, criam novos sentidos a partir de sua tensão interior. O significado integral de uma representação literária provém do impacto total dessas estruturas complexas de significados interrelacionados. Assim, juntos, todos os signos mostrados têm seu papel para o conjunto dos significados de um único momento. (DINIZ, 2013, p.66)
A inter-relação desses diferentes recursos compõe uma obra coesa, como é o caso da fotografia e dos cenários cujos sentidos são potencializados por outros níveis de significação como a música e a empatia do público com os atores. No caso da música, há duas diferentes construções que devem ser levadas em conta. Há a música relativa a uma sonoridade mais de fundo, que diegeticamente funciona como um acompanhamento das ações dos personagens. Não se trata, neste caso, do aproveitamento de uma trilha sonora conhecida, mas sim um arranjo instrumental especialmente idealizado para criar um efeito paralelo à ação narrativa. Para tanto, Fonseca e Costa emprega as composições do espanhol Alberto Iglesias e obtém uma música dramática e melancólica, cujas notas pesadas são acentuadas pelo
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piano nas cenas de mais alta tensão, como é o caso da cena do crime, com a presença do lamento imposto pelo violino em cenas de silêncio reflexivo, em que se afiguram os personagens Mena e Elias, par central da narrativa. Ainda quanto ao trabalho sonoro, na casa de Elias o som do relógio é um recurso bem destacado para marcar o compasso do silêncio que alimenta as horas de solidão do detetive. Ou ainda o som do apito de um navio ao longe, o qual, a exemplo do relógio, funde-se à melancolia do apartamento do detetive. Essas camadas sonoras substituem a presença humana na reclusão autoinfligida pelo personagem. Em outro nível sonoro, emprega-se a conhecida música “Quizás, quizás, quizás”, de Osvaldo Farres, em duas cenas diferentes, porém apontando de igual maneira para a construção sedutora da personagem Mena. Na primeira situação (0:41:26), temos uma cena de fundamental importância para entendermos a essência da investigação que permeia a narrativa, já que temos a presença erótica de Mena no sonho de Elias, indício do quão poderosa é a influência dela sobre ele e, ao mesmo tempo, uma mostra de que a investigação, a exemplo do romance, não se limita a documentos e lógica, mas também a percepções sensoriais, interpretações que escapam do nível racional e invadem o inconsciente. Justifica-se essa abordagem pois sabemos, lendo o livro e vendo o filme, que Elias tem esse sonho motivado pelas fotos de Mena que ele guarda consigo, as quais lhe servem de pistas para entender o crime, mas também de substrato pessoal para suas fantasias com a sedutora amante do major Castro. Na cena em questão, Mena e o major dançam em um salão construído pelo inconsciente de Elias, embalados pela versão apenas instrumental da referida música, um bolero que dá o tom erótico à mise-en-scène do casal. Em seguida, ambos tomam um elevador, anteriormente descrito por Mena, durante interrogatório conduzido por Elias, como um dos vários espaços onde o casal praticara sexo sem pudores. Nesse elevador, dá-se a transição do clima erótico regido pelo bolero para a música pesada e angustiante já referida, marcada pelo dueto piano e violino. Essa transição vem junto com a aparição de Elias no elevador, ao modo de um voyeur fantasmático, que observa com horror o sexo entre o casal desfechar-se em morte. Este pesadelo de Elias, é claro, anuncia narrativamente as consequências dos atos trágicos que envolverão o mesmo casal na Casa da Vereda.
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Com efeito, a mesma música retorna ao final, na cena em que, concluída a investigação (1:24:15), embora a contragosto de Elias, Mena é levada de carro pela mãe, uma despedida que encerra o filme. Esse desfecho aponta para a ligação profunda que Elias havia estabelecido com a acusada e revela ademais sua dubiedade para com ela, pois não sabemos se sua reação negativa à conclusão anunciada pelo seu chefe, Inspetor Otero, deve-se ao rumo que tomara a investigação, na qual Mena é absolvida, sendo condenados o cabo e o arquiteto, ou traz à luz um sentimento de afeição ou mesmo de um desejo clandestino. Aqui o bolero vem interpretado pela bela voz de Maysa Matarazzo e nos conecta diretamente, em primeiro plano, num close, ao olhar ambíguo de Mena. De soslaio, posto que vemos apenas seu perfil, já que seu rosto se volta para olhar Elias que fica para trás, desenha-se sutilmente um sorriso malicioso em seus lábios e ouvimos a sugestiva letra “Siempre que te pregunto si algún amor escondes, tú siempre me respondes quizás, quizás, quizás”, como se evocasse o diálogo incessante e inacabado entre os olhos de Elias e Mena. O que fica claro ao espectador é que estão em jogo elementos bastante subjetivos e psicológicos, sutilezas que possivelmente escapem ao próprio investigador, ele mesmo enredado na trama em que mergulhou visceralmente. Cabe aqui salientar a performance do trio de intérpretes representado por Serna, Solnado e Bauchau. Os três atores dão vida e peso dramático às atuações e são por tal motivo de vital importância para criar a dimensão humana problemática dos personagens envolvidos na trama de amor e crime. Assumpta Serna dá à Mena cinematográfica uma caracterização que contrasta a leveza de seus traços femininos com a força de seu caráter e o poder sedutor que ela sabe provocar por meio de seu corpo atraente. Ela responde a uma pergunta feita por Elias assertiva e categoricamente “Eu não fui sua amante, fiz dele meu amante” (0:29:08) assumindo com essa postura seu protagonismo na relação com o major. Raul Solnado, por sua vez, reveste-se da melancolia que emana de Elias Santana e com sua experiência dá ao detetive a firmeza da sua orientação profissional sem diminuir a fragilidade do solipsismo que o mantém enclausurado, minado aos poucos pela concupiscência de seu olhar, vítima da onipresença arrebatadora de Mena. Para fechar esta tríade de relevo, o francês Patrick Bauchau, ator de longa carreira no cinema, incluindo Hollywood, encarna com
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propriedade o virulento e passional major Dantas Castro. As cenas protagonizadas por ele revelam um personagem atormentado pelo clima de repressão e claustrofobia, e aos poucos a reclusão em que se veem forçados a permanecer dá lugar a um perigoso militar, tanto quanto mais a paranoia da traição o impele a se defender de seus próprios comandados. À guisa de finalização, vale ainda destacar outro recurso do qual se vale Fonseca e Costa para dar à película o caráter interventivo de Elias Santana. De modo similar à cena do sonho do detetive que ocorre no elevador, sua presença também se dá fora do campo onírico, em momentos relativos à sua interpretação dos fatos narrados pelos acusados. Se no romance a narração nos dá essa dimensão interpretativa de forma verbal e por meio de constantes variações de vozes e fragmentações do relato, na tela é o reflexo de Elias em um objeto translúcido como o vidro de uma janela (01:10:36), que permitem essa presença do detetive na cena do crime de forma virtual. Mais à frente (01:11:12) sua figura surge como uma aparição vinda das sombras de um cômodo da Casa da Vereda, evocando sua posição de testemunha não ocular, dado sua ausência no presente do crime, mas sim de intérprete da cena, via depoimentos dos partícipes do ato criminoso. Elias, como ocorre no romance, tem que colocar em ação sua percepção, sua leitura e análise das situações a quem tem acesso por meio de documentos, depoimentos, ou ainda gestos e reações dos implicados no crime da Casa da Vereda. Não basta ao detetive recolher provas, colher testemunhos, cruzar dados e indícios. Ele precisa montar as peças que formam a intriga, apesar de saber não dispor de todas elas. A ambiguidade de Mena, o clima de terror e repressão do Estado salazarista, o complexo relacionamento de subordinação e insubordinação que envolve o major, o cabo e o arquiteto, além das próprias motivações do detetive mesclam-se à incapacidade de qualquer discurso de ter acesso plena e absolutamente a todas as nuances de um crime ou qualquer conhecimento. Descobrimos com o policial de Cardoso Pires e Fonseca e Costa que as verdades são sempre parciais e nem sempre condenáveis. Descobrimos, além disso, com Elias Santana que as motivações de um crime são muitas vezes sombras de sombras, reflexos fugazes de ações e sentimentos que escapam às próprias mãos que os executam.
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Conclusões in process Pires foi leitor voraz de Poe e certamente absorveu à sua maneira o mestre norteamericano, a ponto de criar uma obra que projeta múltiplas sombras sobre a superfície instável do texto. O leitor de A balada da praia dos cães depara-se página a página com uma linguagem que revela e oculta, jogo ambíguo em que nem toda entrada é uma saída deste labirinto narrativo composto por finas camadas de ficção e história. “Entretanto, é essa mesma divisão entre o literário e o histórico que ... complexa.” (HUTCHEON, 1991, p. 141). Desses discursos o autor extrai um sumo melancólico, amargo, e ainda desafiador se o objetivo da leitura for, como o de Elias Santana, não apenas entender a lógica do crime, senão algo mais profundo, que leve à essência das motivações humanas, ao funcionamento oculto dos mecanismos sociais. O leitor precisa ajustar suas lentes para decodificar a transnarratividade do relato, colcha de retalhos à espera de costura, baú de sobrantes cuja chave é o olhar do intérprete. O filme de Fonseca e Costa está embebido dessas páginas abertas e sombrias, e requer um espectador que se entregue à força do relato e, para a efetiva catarse pela tela, reconheça naqueles personagens a pulsão de vida e morte que os condena a serem vítimas de seu tempo, tempo humano e histórico, tempo individual e coletivo a uma só vez. A espacialização do tempo que é próprio da semiose fílmica exige uma entrega intensa, mais visceral e menos cerebral, mais sinestésica ou intuitiva quando comparada à temporalização do espaço praticado pela escrita literária. De qualquer modo, os meios expressam na idiossincrasia de seus recursos um movimento que retorna ao âmago do gênero policial, esculpido por Poe ainda no século XIX, na medida em que coloca à prova os limites da representação da existência humana, ou em outras palavras, como por meio de palavras e imagens um relato consegue reconstituir o drama da violência e das paixões humanas e, dessa forma, restituir ao homem a dimensão da responsabilidade pelos seus atos, suas escolhas, ambos condicionados pela sua insustentável liberdade. O romance e o filme, embora obras diversas, mantêm um diálogo vivo com o gênero e assumem sua porção de existencialismo e crítica social.
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