Algumas_reflexoes_pessoais_sobre_a_desco.pdf

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todas as  ViGrunvald, BrunoPuccin, bibiAbigail, Kadija, JotaMombaca a questão  ViGrunvald, Repep, CarueContre, RegisMikail, SabrinaDura de gênero  ViGrunvald, CarueContre, RegisMikail, bibiAbigail, JotaMombaca de resistência  ViGrunvald, Repep, BrunoPuccin, JotaMombaca construção de  ViGrunvald, BrunoPuccin, SabrinaDura, JotaMombaca a possibilidade  Repep, CarueContre, BrunoPuccin, JotaMombaca de pessoas  ViGrunvald, Repep, BrunoPuccin, JotaMombaca o discurso  ViGrunvald, Repep, CarueContre, BrunoPuccin da vida  ViGrunvald, bibiAbigail, Kadija, SabrinaDura social e  Repep, bibiAbigail, SabrinaDura, JotaMombaca de classe  ViGrunvald, Repep, CarueContre, JotaMombaca uma sociedade  ViGrunvald, CarueContre, RegisMikail, BrunoPuccin gênero e  ViGrunvald, CarueContre, RegisMikail, bibiAbigail pessoas que  ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin, bibiAbigail do corpo  ViGrunvald, bibiAbigail, SabrinaDura, JotaMombaca do movimento  ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin, bibiAbigail ela se  ViGrunvald, Kadija, SabrinaDura, JotaMombaca classe média  ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin, JotaMombaca de gênero  CarueContre, RegisMikail, bibiAbigail, JotaMombaca de trabalho  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura modelo de  ViGrunvald, Repep, SabrinaDura do poder  ViGrunvald, BrunoPuccin, JotaMombaca homens e  bibiAbigail, Kadija, SabrinaDura política e  ViGrunvald, BrunoPuccin, bibiAbigail uma espécie  BrunoPuccin, bibiAbigail, SabrinaDura a teoria  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail como parte  BrunoPuccin, bibiAbigail, JotaMombaca de produção  ViGrunvald, BrunoPuccin, SabrinaDura de outros  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura uma linguagem  ViGrunvald, BrunoPuccin, bibiAbigail corpo e  ViGrunvald, Kadija, JotaMombaca e travestis  ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin do mercado  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura da cidade  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura pessoa que  ViGrunvald, BrunoPuccin, SabrinaDura espaços de  ViGrunvald, Repep, BrunoPuccin e mulheres  CarueContre, bibiAbigail, SabrinaDura o termo  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail no brasil  CarueContre, RegisMikail, Kadija não deve  ViGrunvald, bibiAbigail, Kadija campo de  ViGrunvald, bibiAbigail, JotaMombaca de rua  BrunoPuccin, bibiAbigail, SabrinaDura um corpo  bibiAbigail, SabrinaDura, JotaMombaca um local  Repep, BrunoPuccin, bibiAbigail uma leitura  Repep, bibiAbigail, JotaMombaca movimento de  ViGrunvald, Repep, CarueContre teoria queer  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail a forma  CarueContre, BrunoPuccin, SabrinaDura do espaço  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura modo de  Repep, Kadija, SabrinaDura são paulo  Repep, CarueContre, BrunoPuccin as formas  Repep, BrunoPuccin, JotaMombaca um sujeito  ViGrunvald, bibiAbigail, JotaMombaca as necessidades  Repep, CarueContre, BrunoPuccin esse processo  ViGrunvald, bibiAbigail, Kadija da palavra  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail um homem  CarueContre, bibiAbigail, JotaMombaca por ser  Repep, bibiAbigail, SabrinaDura no contexto  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail as pessoas  CarueContre, bibiAbigail, SabrinaDura o sentido  RegisMikail, BrunoPuccin, bibiAbigail o movimento  ViGrunvald, Repep, CarueContre

cidade Queer, uma leitora

Edições Aurora / Publication Studio SP

todas as  ViGrunvald, BrunoPuccin, bibiAbigail, Kadija, JotaMombaca a questão  ViGrunvald, Repep, CarueContre, RegisMikail, SabrinaDura de gênero  ViGrunvald, CarueContre, RegisMikail, bibiAbigail, JotaMombaca de resistência  ViGrunvald, Repep, BrunoPuccin, JotaMombaca construção de  ViGrunvald, BrunoPuccin, SabrinaDura, JotaMombaca a possibilidade  Repep, CarueContre, BrunoPuccin, JotaMombaca de pessoas  ViGrunvald, Repep, BrunoPuccin, JotaMombaca o discurso  ViGrunvald, Repep, CarueContre, BrunoPuccin da vida  ViGrunvald, bibiAbigail, Kadija, SabrinaDura social e  Repep, bibiAbigail, SabrinaDura, JotaMombaca de classe  ViGrunvald, Repep, CarueContre, JotaMombaca uma sociedade  ViGrunvald, CarueContre, RegisMikail, BrunoPuccin gênero e  ViGrunvald, CarueContre, RegisMikail, bibiAbigail pessoas que  ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin, bibiAbigail do corpo  ViGrunvald, bibiAbigail, SabrinaDura, JotaMombaca do movimento  ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin, bibiAbigail ela se  ViGrunvald, Kadija, SabrinaDura, JotaMombaca classe média  ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin, JotaMombaca de gênero  CarueContre, RegisMikail, bibiAbigail, JotaMombaca de trabalho  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura modelo de  ViGrunvald, Repep, SabrinaDura do poder  ViGrunvald, BrunoPuccin, JotaMombaca homens e  bibiAbigail, Kadija, SabrinaDura política e  ViGrunvald, BrunoPuccin, bibiAbigail uma espécie  BrunoPuccin, bibiAbigail, SabrinaDura a teoria  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail como parte  BrunoPuccin, bibiAbigail, JotaMombaca de produção  ViGrunvald, BrunoPuccin, SabrinaDura de outros  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura uma linguagem  ViGrunvald, BrunoPuccin, bibiAbigail corpo e  ViGrunvald, Kadija, JotaMombaca e travestis  ViGrunvald, CarueContre, BrunoPuccin do mercado  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura da cidade  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura pessoa que  ViGrunvald, BrunoPuccin, SabrinaDura espaços de  ViGrunvald, Repep, BrunoPuccin e mulheres  CarueContre, bibiAbigail, SabrinaDura o termo  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail no brasil  CarueContre, RegisMikail, Kadija não deve  ViGrunvald, bibiAbigail, Kadija campo de  ViGrunvald, bibiAbigail, JotaMombaca de rua  BrunoPuccin, bibiAbigail, SabrinaDura um corpo  bibiAbigail, SabrinaDura, JotaMombaca um local  Repep, BrunoPuccin, bibiAbigail uma leitura  Repep, bibiAbigail, JotaMombaca movimento de  ViGrunvald, Repep, CarueContre teoria queer  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail a forma  CarueContre, BrunoPuccin, SabrinaDura do espaço  Repep, BrunoPuccin, SabrinaDura modo de  Repep, Kadija, SabrinaDura são paulo  Repep, CarueContre, BrunoPuccin as formas  Repep, BrunoPuccin, JotaMombaca um sujeito  ViGrunvald, bibiAbigail, JotaMombaca as necessidades  Repep, CarueContre, BrunoPuccin esse processo  ViGrunvald, bibiAbigail, Kadija da palavra  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail um homem  CarueContre, bibiAbigail, JotaMombaca por ser  Repep, bibiAbigail, SabrinaDura no contexto  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail as pessoas  CarueContre, bibiAbigail, SabrinaDura o sentido  RegisMikail, BrunoPuccin, bibiAbigail o movimento  ViGrunvald, Repep, CarueContre

cidade queer, uma leitora

cidade Queer, uma leitora

Edições Aurora / Publication Studio SP

sumário 8 12

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uma investigação queer  Shawn Van Sluys para cidade queer, uma leitora  Todd Lanier Lester não se nasce monstra, tampouco uma se torna  Jota Mombaça

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algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer  Vi Grunvald

34

no olho do cu(ir) – queer: centro e margens de uma palavra desgastada  bibi Abigail

44

(des)mi(s)tificar falares: pers­pectivas para uma abordagem do pajubá  Régis Mikail Abud Filho

56

chega de manhattans  Jean François-Prost

62

o gozo do pária: tecnologias para existir à margem [da margem estatal]  Sabrina Duran

70

lar, memória e resistência: reflexos e reflexões sobre mercado imobiliário, homossexualidades e o “tradicional bairro gay” da cidade de São Paulo  Bruno Pucinelli

78

o hiv no fundo do armário lgbtq  Carué Contreiras

84

ternura radical  Dani d’Emilia e Daniel B. Chávez

86

território, cultura e memória lgbt+: o patrimônio cultural como abordagem para a busca do direito à cidade  Repep

94

desmunhecando  Fabiana Faleiros

98

cidade lida  Raquel Perrine e Thiago Hersan

102

vogue no brasil: intercâmbios e apropriações  Entrevista com Félix Pimenta

114

ataque

126

explode! residency

142

que cidade você queer?

146

janta

162

laboratório gráfico desviante

173

nota sobre a edição

174

créditos

uma investigação queer

S h a w n Va n S l u y s

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As origens Era um dia úmido de julho de 2014 quando Todd Lanier Lester e eu descobrimos que vínhamos nutrindo um desejo em comum: realizar um encontro de artistas numa investigação coletiva sobre o papel que ser queer desempenha na ruptura do status quo de nossas cidades, comunidades e instituições. Estávamos num refúgio na ilha de Wasan, nos lagos de Muskoka, no Canadá, quando demos início a essa conversa – Wasan é um lugar sublime, capaz de reunir até vinte pessoas para compartilhar conhecimento sobre direitos humanos, artes e justiça social. Fazia anos que o Todd, através de sua organização baseada em Nova York, o freeDimensional, vinha convidando artistas e ativistas envolvidos em iniciativas voltadas à segurança de artistas para passar algum tempo na ilha, rejuvenescendo em meio à natureza, compartilhando suas experiências e práticas, e também encontrando novas motivações para continuar o trabalho corajoso que realizam. Todd sempre entendeu profundamente esse poder de reunir as pessoas, e com a insistência da Musagetes – comprometida em moldar sua emergente metodologia própria e emergente, reunindo combinações de pessoas diversas e improváveis – ganhou vida o projeto que viria a se tornar o Cidade Queer São Paulo. Passando de uma ilha capaz de acomodar vinte pessoas a uma cidade de cerca de 20 milhões delas, a ideia do Cidade Queer logo evoluiu para focar no entendimento e remodelagem de ambientes urbanos por meio da performatividade queer. Em vez de se recolher numa ilha nos selvagem no Canadá, o Cidade Queer se tornou um ciclo de pesquisa multifacetado, baseado no próprio local e com duração de dezoito meses, que culminou num encontro de artistas na Vila Nova York, bairro periférico de São Paulo. A investigação sobre queerness se manifestou em diversas formas que são compartilhadas neste livro em textos, fotografias, inserções artísticas e outras contribuições. Além disso, e mais profundamente, o Cidade Queer se tornou uma pesquisa interseccional que reuniu maneiras intelectuais, artísticas, emocionais e espirituais de saber, ser e se relacionar por meio do entrelaçamento da natureza queer e negra, da injustiça social, da dignidade econômica, do direito à cidade e das lutas da vida cotidiana. Os leitores poderão sentir o gosto de experimentação, crítica e subversão que foram deliciosamente salpicados ao longo de toda a experiência do Cidade Queer São Paulo. A editora do livro, Júlia Ayerbe,

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uma investigação queer

e a designer, Laura Daviña, veiculam de maneira poderosa e prazerosa os vários espíritos que deram vida a cada um dos aspectos desse ciclo. Junto com o documentário feito por Danila Bustamante, essa manifestação da investigação maior sobre o cotidiano da vida queer sobreviverá como um arquivo e guia da mesma maneira que continuamos a nos alimentar das relações estabelecidas, das histórias contadas e das memórias gravadas. O começo do Cidade Queer – depois da conversa na ilha que soltou a primeira faísca – coincidiu com a mudança de Todd para São Paulo para ser um dos cofundadores da Lanchonete.org junto com Raphael Daibert e outros envolvidos. Tocado de maneira colaborativa pela Lanchonete.org e pela Musagetes, o Cidade Queer não demorou a se expandir para incluir várias pessoas e organizações. Muitas delas são responsáveis, nas contribuições para este livro, por dar voz e forma à sua experiência no projeto. Nesse mesmo espírito, gostaria de falar diretamente sobre o posicionamento da Musagetes – organização artística filantrópica situada no Norte global – em relação às pessoas que participaram, às organizações que contribuíram e às investigações que definimos. Metodologias A Musagetes acredita que algumas das rupturas mais potentes de nossos sistemas e instituições tão falhos vêm de posições de luta, daqueles que estão nas linhas de frente e dos outros que lhes são solidários. Sempre nos preocupamos em nosso trabalho com o papel da escolha das pessoas – o processo de selecionar com quem nos envolvemos e colaboramos, e quais discursos aprofundar nesse caminho. Nos últimos dois anos, simultaneamente à linha de investigação do Cidade Queer, nosso foco emergente em sistemas de opressão, maneiras de lutar e celebrações da diferença tornaram a enfatizar, para nós, a questão de quem contribui de fato para nosso trabalho e acaba por influenciá-lo. As questões que escolhemos – as linhas de pesquisa que sustentamos – são a coluna vertebral da metodologia da Musagetes. São elas que guiam as práticas e processos artísticos que compõem nossos programas realizados em cidades, nossa plataforma on-line, o ArtsEverywhere, e nossos projetos internacionais. Aplicamos o aprendizado obtido em pesquisas como o Cidade Queer no desenvolvimento de nossas administrações, organizações, relações e protocolos. A arte tem a capacidade de causar mudanças de poder. Nesse sentido, a Musagetes se retira do centro da investigação, reunião, projeto ou luta em questão, para dar espaço àqueles que são mais diretamente atingidos a cada caso, de modo que possam determinar por conta própria a retórica, as prioridades e os caminhos a serem seguidos.

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Nossos projetos de maior impacto são aqueles em que descentralizamos a organização de maneira mais eficaz, ainda que nos mantenhamos solidários, contribuindo para a investigação e ajudando a ampliar seu alcance. A descentralização da organização não nos leva à apatia e complacência, não nos absolve de responsabilidades, tampouco diminui nossa capacidade de aprender ou aplicar nosso conhecimento. Pelo contrário, posiciona a Musagetes para ser uma guardiã desse enredamento de questionamentos, projetos e comunidades ao redor do mundo. A Musagetes adota uma perspectiva de intersecção em todo o seu trabalho. Nossos projetos, questionamentos e comunidades são entrelaçados a fim de abrir espaço aos diversos modos de ser, saber e se relacionar, ao passo que reconhece os padrões de cruzamento de raça, gênero, classe, sexualidade, idade e cor. Colocamos em primeiro plano as múltiplas dimensões das identidades construídas por nós e a necessidade de posicionar os privilégios de cada um, de nossas organizações e do campo mais amplo da filantropia.

1 Cruising Utopia: The

Then and There of Queer Futurity. Nova York, nyu Press, 2009.

Futuros Em sociedades que deparam com tantas rupturas em potencial, acreditamos que as artes são um modo pelo qual podemos manter o que é bom (expressões de resiliência) e rejeitar aquilo que mina a possibilidade de uma vida profundamente livre e socialmente justa. Precisamos de artistas queer nessa conta, encarando as urgências do momento político atual junto com economistas, cientistas, filósofos, teóricos sociais e aqueles que fazem as políticas. Por sua capacidade de crítica política e social, a pesquisa artística nos leva a uma maior abertura epistêmica – explorando e abraçando as múltiplas maneiras de saber e estar no mundo. A própria Musagetes foi transformada pelas comunidades tão generosas e diversas com que se envolveu e envolve. Convidamos você a entrar nesse trabalho, com humildade e modéstia, munido do desejo por aprendizado e crescimento contínuos. O ciclo Cidade Queer começou sua investigação sobre ser queer com as palavras de José Esteban Muñoz, e recorremos novamente a elas aqui: Ainda não somos queer. Talvez jamais consigamos tocar o que é ser queer, mas podemos sentir isso como a cálida iluminação de um horizonte imbuído de potencialidades. Nunca fomos queer, no entanto, ser queer é algo que existe para nós como uma idealidade que pode ser destilada do passado e usada para imaginar um futuro.1

para cidade queer, uma leitora

To d d L a n i e r L e s t e r

Projeção de filme, painel de discussão, caminhada, Publication Studio, Janta: comida queer, política queer, TransSarau, Queerdrilha, jardinagem, Acronymia, Explode!, Ataque, Ultra-red, trans, mexa, Comida de Papel, Musagetes, Laboratório Gráfico Queer, ballroom, saúde pública, Casarão do Belvedere, Paulo Goya, Festa Amem Brothers, O grupo inteiro, .Aurora, Repep, Lanchonete.org, ArtsEverywhere, raça e periferia, além de convidados da Colômbia, Líbano, Estados Unidos, Panamá, Alemanha, Caribe, Equador, Egito, Polônia, Senegal, Haiti, África do Sul, Reino Unido, PogoLand, rua Paim, Ocupação São João, Residência Artística Cambridge, Vila Nova York, TransAmaZonica, Cuiabá e de todo o Brasil.

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1 sheikh , Simon. Representation, Contestation and Power: the Artist as Public Intellectual. In: Drulle, Inára (org.). Artists as Producers. Transformation of Public Space. Riga: Latvian Centre for Contemporary Art. p. 39-42.

Quero começar falando sobre o que acredito ser a Lanchonete.org: uma plataforma cultural tocada por artistas e centrada na maneira como as pessoas vivem e trabalham, como compartilham e navegam pela cidade contemporânea, tendo como perspectiva o Centro de São Paulo. O nome é emprestado desses estabelecimentos onipresentes – comércios abertos, laboriosos, lugares de convivência, sempre com suas luzes fluorescentes – que povoam quase todas as esquinas da cidade. A Lanchonete.org trata das questões enfrentadas pelas grandes cidades, as diferentes formas de “poder urbano” e o direito à cidade, mas não a ponto de definir essas teorias, e sim tentando esticar essa plataforma até onde for necessário para abranger os mais diversos pontos de vista. A lista apresentada acima é um jeito de relembrar todas as diferentes vozes que participaram do programa Cidade Queer, um “processo curatorial coletivo” que durou um ano e começou em novembro de 2015 com uma programação durante o Festival Mix Brasil: sessão de filme com Carlos Motta (Colômbia) e Maya Mikdashi (Líbano); conversa com Ezio Rosa, arte-educador e autor do projeto Bicha Nagô; caminhada pelo Centro; encontro no .Aurora, e o panfleto do programa feito pelo Publication Studio São Paulo. Uso o termo plataforma para descrever as atividades em evolução e as redes em colisão que compõem a Lanchonete.org. É uma palavra oportuna, mas o que significa de fato? O objetivo do ciclo Cidade Queer era permanecer como um processo aberto durante toda sua duração, convidando ideias e projetos para essa “mistura” até culminar num único evento público, o Ataque, realizado em setembro de 2016 na praça das Artes. Talvez só seja possível descrever uma plataforma ao olhar para “o que aconteceu” lá atrás. Num ensaio de outubro de 2004,1 Simon Sheikh afirma que “o contrapúblico é um espelhamento consciente das modalidades e instituições do público normativo, mas num esforço para endereçar... outros imaginários”. Momentos assim aconteceram no Explode!, realizado na Vila Nova York, na casa de infância do Cláudio; quando Bibi montou sua mesa de livros em uma das Jantas na casa do Paulo; quando plantávamos o jardim com o pessoal do mexa no Bom Retiro; ao visitar uma aula do Cursinho Popular Transformação; entre muitos outros casos em que o Cidade Queer foi a plataforma na qual esses outros imaginários se tornaram familiares. Ou pelo menos foi assim que vivenciei isso.

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para Cidade queer, uma leitora

Em entrevista concedida em 2004 para a revista francesa Multitudes, André Gorz sugere que uma ampliação do campo da arte se faz necessária “por intervenção direta em uma multiplicidade de espaços sociais para se opor ao programa de mobilização social total do capitalismo”, completando que “um front de total resistência a esse poder se torna possível” pela produção de subjetividade em relação ao capital e que: “Isso necessariamente transborda do terreno da produção de conhecimento rumo a novas práticas para viver, consumir e se apropriar coletivamente de espaços comuns e da cultura cotidiana.”2 E mesmo que uma única plataforma – ou o projeto de um ano de duração – não dê conta de realizar tudo, acredito que um pouco dessa resistência estava presente nas discussões cumulativas das quais o Cidade Queer participou. Para mim, é importante lembrar do começo desse ciclo: o esforço conjunto do .Aurora e da Lanchonete.org para trazer o Publication Studio para São Paulo e o panfleto produzido a partir desse encontro para o Cidade Queer. Fazer as coisas acontecerem junto com integrantes do .Aurora e d’O grupo inteiro ao longo dos anos permitiu uma colaboração profunda na Explode! Residency e ofereceu as bases de pensamento crítico por meio do diálogo com outros coletivos de verve urbana, o que acabou por conectar nossos diversos projetos. Eu poderia dizer o mesmo sobre o Coletivo Coletores, que fez as projeções de videomapping durante o Ataque e agora está conduzindo nossa série de oficinas na rua Paim; ou ainda o BaixoCentro, através do qual conheci Thiago Carrapatoso. Na verdade, foi durante a caminhada com Paulo Goya no Mix Brasil 2015 que surgiu a ideia da série “Janta: comida queer, política queer”, refeições mensais realizadas na casa de Paulo Goya, o Casarão do Belvedere, ambos eventos com curadoria do Thiago para o projeto Cidade Queer. Para mim, as Jantas foram o destaque de cada mês do último ano. Adorei como esses encontros foram se ampliando num crescendo até culminar no último evento em setembro – o que traz à baila mais uma pergunta: “O que vamos fazer juntos de intensidade parecida neste ano?”. Agora que estamos olhando para frente, gostaria de dar uma dica para o futuro: confira Cuiabá, um zine distribuído pelas Edições Aurora3, para entender como nossa colega cuiabana Yanka se junta a nomes como Certeau e Baudrillard ao problematizar cidades “fundadas pelo discurso utópico e urbanístico”,3 como é o caso de Nova York, onde calhou de estar naquele fatídico 11/9. Vale a pena conferir o relato afiado que Yanka faz daquele dia terrível, ao mesmo tempo que retoma um futuro queer bem perto de você, em Cuiabá. Obrigado a George Ferraz e Pogo por essa viagem tão legal à terra natal de vocês!

2 Entrevista com André

Gorz, Multitudes – Revue Politique, Artistique, Philosophique, n. 15, 2004, p. 209.

3 disponível em <www.

cuiaba.lanchonete.org>

4 certeau , Michel de. Caminhadas pela cidade. In: A invenção do cotidiano. Petrópolis: Editora Vozes, 1998. p. 169-192.

ilustração

Dudu Quintanilha / mexa

não se nasce monstra, tampouco uma se torna

Jota Mombaça

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1 Anarcofunk é uma

coalizão anarquista do Rio de Janeiro que usa da produção de música funk como meio de proliferação de ideias radicais no que toca ao anticapitalismo, às lutas urbanas e rurais, às rupturas com padrões de higiene, sexualidade e gênero, aos antirracismos. O trabalho delxs pode ser encontrado aqui: . Acesso em: 31 jan. 2017. 2 Em certo sentido, essa

formulação do “a gente” como “agente” está inspirada pela obra de yessouroun , Amilcar L. Packer. Eis a gente: ou de como a gente vira agente. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015.

3 Essa percepção da

“guerra contra o corpo” foi elaborada com base em uma conversa com o pesquisador Vinhu Lacava, a certa altura de janeiro de 2017.

Ainda lembro com bastante nitidez a noite da virada de ano de 2014 para 2015. Eu estava atravessando a vila de Ponta Negra – a parte mais empobrecida de um bairro de classe média à beira-mar de Natal – com um bonde de pessoas desobedientes de gênero. Vínhamos todas agitadas, animadas por álcool, tesão e cocaína, rindo muito e cantando Anarcofunk1 pela rua. Sentia-me forte e feliz pelo ano-novo. Eu estava vestindo botas pretas com saia curta e camiseta e caminhava displicentemente como se fosse um direito meu vestir-me e portar-me daquela maneira. No entanto, no momento em que fiquei para trás por um motivo qualquer, ao passar por um bar, um homem (cis) gritou contra mim, sem que eu houvesse sequer me dirigido ou olhado para ele: “aberração !”. A monstra que atravessa isso aqui opera sempre como uma manada e como um estilhaço. Como um a gente2 aquém da individualidade e do nós. Como uma agência simultaneamente multitudinária e despedaçada. Como uma vidraça que quebra e estilhaça e faz cortes e sangra. Ela passa então como dor. Como um corte. Como a abertura do corpo a uma intensidade que só pode decorrer do fato afiado de um corte. Por isso ela opera sem sujeito. Porque é um sangramento. É um momento de colapso e esvaziamento do que quer que seja sujeito. Se no centro há os cortes da estrutura, que arbitrariamente marcam este corpo como de um homem negro embranquecido – ou, como a lógica do colorismo racial brasileiro gosta de dizer, “pardo” ou “mestiço” –, puxado ao pai (negro) e projetado como parte da engrenagem cis-heterocapitalista; há – ao redor e à beira – essa força despossessiva, complicadora, que bagunça os processos de sujeição socialmente normalizados a que este corpo poderia aceder. Como uma onda devastadora que começa a tomar o asfalto e a destruir a orla para devolver a terra à própria terra. A monstra que atravessa isso aqui move esse tipo de força e assombra – em suas passagens – as filas do tornar-se. Não chega a formar um eu, uma entidade internamente coerente capaz de governar a si e as cenas de alteridade em que se engaja. Muito pelo contrário, a operação da monstra que atravessa isso aqui é deformar, desfigurar e problematizar indefinidamente as condições de possibilidade de um sujeito qualquer que seja. O campo de batalha onde dançamos essa guerra é o corpo. E se trata – não tenham dúvida – de uma guerra contra o corpo3 – na medida em que o corpo (todo corpo) é sempre já corpo-colônia: terra

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não se nasce monstra, tampouco uma se torna

invadida e ocupada pelas forças da colonialidade, do capitalismo necropolítico e biopolítico distópico, do racismo antinegro e das supremacias branca e cisgênera. Esses sistemas operacionais marcadores da diferença e organizadores da alteridade que, pela força da reprodução de seu domínio sobre as formas do mundo, implicam-se com mais ou menos violência nos processos de formação de quaisquer corpos que sejam operados sob sua vigília. Estou bastante convicta de que tangenciar a presença contundente desses sistemas não significa representá-los como fenômenos totalizantes. Por isso sei também que, em alguma medida – na contradição e conflitividade deste mundo –, assim como não há totalidade, não há fora. E o grito seco que me chama “aberração !”, essa intervenção abrupta da socialidade no campo de força ontopolítico de minha deformação como sujeito, é que informa isso. Como imperativo sitiado do capitalismo-colonialidade necropolítico e biopolítico distópico; como linha de força ordenadora do campo de concentração colonial que se tornou o mundo: “você não vai poder sair para brincar (ou para andar na rua com o bonde), mas tampouco poderá continuar aqui”. Gritaram-me monstra e, com a mesma força com que fui socialmente empurrada rumo a uma leitura da masculinidade mestiça como inerente às formas do meu corpo, encarnei o fracasso desse projeto e fui apontada e (também socialmente) marcada por isso. Um corpo levado ao limite da socialidade, posto à beira, por força da fricção dos mesmos sistemas que o impedem de ir além, de encontrar um “fora” e inscrever um “pós” aos termos descritores desses sistemas de reprodução da violência contra corpos como o meu – a saber, colonialidade, racialidade, sexualidade, modernidade, humanidade e gênero. Mas neste aqui e agora, há forças e movidas que coexistem com a brutalidade desses sistemas; modos improváveis de contornar o incontornável do poder. Afinal, um corpo levado ao limite da socialidade é um corpo que não tem opção senão estudar à beira, adivinhar as passagens e elaborar uma política que simultaneamente cerca e descerca: cerca o Normal-Colonial, descercando as fronteiras que mantêm a coerência interna desse sistema. Assim é que a monstra que atravessa isso aqui corre abaixo e acerca, multiplica-se pelos lados sem com isso constituir um fora. É justo dentro, em brechas e desvãos do projeto de totalidade do sujeito e do mundo capitalista-colonial que ela se prolifera. A história dessa monstra cruza a minha justamente porque a minha história faz de mim uma criatura despossuída, aquém dos regimes de socialidade por me reconhecer negra, apesar do embranqueci-

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4 A noção de “subjetivi-

dades flexíveis” é basilar para a crítica de Rolnik quanto à apropriação do que ela chama também de “subjetividade antropofágica” – especialmente em sua variação como “antropofagia zumbi” ou “antropofagia reativa” –, pela lógica contemporânea do capitalismo mundial integrado. Ver: rolnik , Suely. Antropofagia zumbi. In: cohn , Sergio et al. (orgs.). Azougue: edição especial 2006-2008. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.

mento; bicha, apesar do heteroterrorismo; e desobediente de gênero, apesar da inscrição compulsória aos códigos da masculinidade cisgênera. São justamente esses momentos de inversão e recusa da norma que inscrevem a história dessa monstra na densidade da minha própria história. Assim, em vez de dizer que sou monstra porque sou negra, porque sou bicha e porque sou desobediente de gênero, digo que sou atravessada por uma passagem monstruosa que cria condições para que eu desvie dos investimentos embranquecedores, heteroterroristas e normativos de gênero contra a minha vida. A monstra que atravessa isso aqui mora, portanto, no “apesar de”. Ela opera na quebra e não na elaboração de figuras alternativas do sujeito. Também não estou falando de uma desconstrução. Isto é, de como certa socialidade me construiu como mestiça embranquecida, homem e (no marco das expectativas heteronormativas) hétero, para que em seguida eu fosse desconstruída por uma passagem monstruosa. O que a monstra que atravessa isso revela não é propriamente a reversibilidade dos constructos normativos, a possibilidade de desfazer o trabalho da norma para dar lugar a outras formas de ser gente e fazer o mundo, mas bem a fragilidade de toda construção de sujeito – seja o referente da norma ou o seu avesso. Em vez de falar em desconstrução – quando se trata de encontrar um dizer para tangenciar a presença da monstra nessas cartografias percebidas como minhas –, talvez devêssemos falar em sabotagem ou piquete. Nesse sentido, as abordagens tradicionalmente construcionistas não estão equipadas para cartografar a passagem dessa monstra – porque pressupõem um tornar-se que é, aqui, recusado; assim como as desconstrucionistas não dão conta de perceber sua operação – porque ela antecede e envolve a assim chamada construção social da realidade. Falo de uma força despossessiva que se precipita sobre os processos de sujeição social, bagunçando-os; uma força complexa e complexificadora que sabota o sujeito no processo de sua sujeição; uma demolição fundamental na escala das ontologias. A monstra que atravessa isso aqui não é um além, mas sim uma presença, uma materialidade, uma rebelião antissocial que se instala aquém da sujeição social e por isso a complica de baixo para cima, e nunca da maneira inversa. Não é sobre aprender a ser mais que sujeito, não é sobre se abrir ao movimento do mundo, transcender barreiras e permitir-se ser múltiplo, diverso, “multicultural e sem rótulos” – esses são, aliás, rótulos altamente valorizados no quadro das “subjetividades flexíveis” do “capitalismo antropofágico”4 contemporâneo. É, isto sim, sobre não completar os processos de sujeição, sobre um não-saber fundamental que desarticula o sujeito antes mesmo que ele se apresente;

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não se nasce monstra, tampouco uma se torna

um ruído, uma pane, um vírus que se apodera – sempre momentaneamente – de um corpo e o impede de existir como corpo; que se apodera de uma ontologia e a impede de existir como ontologia. Essa monstra é herdeira do legado desse “Outro” que foi, desde sempre, elaborado como exterior constitutivo e referente negativo do sujeito na matriz de poder antropofaloegologocêntrica;5 desse “‘Objeto” esgotado pelas práticas de tradução etnocêntricas da modernidadecolonialidade. Seu território é a “zona do não-ser”6 descrita por Fanon como mundo colonizado, onde é inviável tornar-se qualquer coisa, uma vez que a colonização opera sobre o domínio ontológico para garantir que todas as formas do ser sejam condizentes às perspectivas e aos pontos de vista do colonizador. A monstra que atravessa isso aqui é, afinal, uma não-existência que se faz existir à medida que perturba e desestabiliza todas as coisas cuja existência é indissociável do Normal-Colonial; é uma força essencialmente negativa que se infiltra e prolifera nas sendas do mundo, apesar do mundo e contra ele. Não é, de forma nenhuma, o que me fez ser quem eu sou. Mas, antes, é o que sabota os projetos de ser em que meu corpo (como colônia) é inscrito. Seria leviano, contudo, dizer que essa monstra me liberta do que quer que seja. Não vim aqui trazer esperanças ou desenhar novos ideais de resistência. O que meu texto tenta fazer é, no limite, cantar o ocaso de toda esperança, negar qualquer possibilidade de salvação, conectar-nos ao irredimível do mundo e conjurar, enfim, um estudo que precipite uma prática que permita mover aquém do sujeito, a encontrar e devir os germes da monstra que atravessa isso aqui.

5 A noção de “antropo-

faloegologocêntrica” é também uma proposta de Suely Rolnik, que visa a evidenciar a integração das dimensões antropo (humanista), falo (patriarcal, masculina) e logo (racional, moderna) como sistemas de sujeição próprios das sociedades modernas coloniais.

6 Fanon cunha, em 1952,

a noção de “zona de não-ser”. Ver: fanon , Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008.

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referências Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008.

fanon ,

rolnik ,

Suely. Antropofagia zumbi. In: COHN, Sergio et al. (orgs.). Azougue: edição especial 2006-2008. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.

yessouroun , Amilcar L. Packer. Eis a gente: ou de como a

gente vira agente. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015.

Jota Mombaça É uma bicha não binária, nascida e criada no Nordeste. Escreve, performa e faz estudos acadêmicos em torno das relações entre monstruosidade e humanidade, estudos kuir, giros descoloniais, interseccionalidade política, justiça anticolonial, redistribuição da violência, ficção visionária e tensões entre ética, estética, arte e política nas produções de conhecimentos do sul do sul globalizado.

algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

Vi Grunvald

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Digo de antemão que não quero sugerir um sentido único sobre o que a expressão queer pode ser, mas apenas indicar algumas questões que, a partir de minhas próprias idiossincrasias e do meu próprio corpo, se colocam quando penso sobre ela. Os usos políticos recentes da palavra queer nos países anglófonos buscam fazer avesso nos versos de um discurso excludente e opressor. Queer poderia ser traduzida como estranhx, esquisitx e, com o tempo, passou a ser utilizada comumente para se referir a dissidentes de gênero e sexualidade. Uma acusação: “Você é queer!”. E seus corolários: “Fique no seu lugar! Não polua! Não contamine! Desapareça!”. Quando usada com o dedo apontado na cara para “colocar alguém no seu devido lugar”, queer é uma denúncia disciplinadora que tem um duplo foco: expor a dissidência num lugar onde deveria haver norma e, a um só golpe, corrigi-la, negá-la, recalcá-la, oprimi-la. Mas quando apropriada numa prática de nomeação que não se pensa pela vergonha e pela imputação daquilo que é tido como normal, mas pelo orgulho e pela autodeterminação, aí as coisas mudam de figura. Parece que o jogo virou, né, queridinhx? Costumo dizer que, quando tiramos do opressor o poder de nos nomear, estamos tirando dele uma de suas armas mais fortes, já que negamos sua capacidade de definir nosso lugar no mundo por meio de uma nomeação. As considerações da teoria queer partem dessa ideia de que a linguagem, a maneira como colocamos o mundo em discurso, não é apenas um reflexo do mundo, mas sua produção, sua criação. É a isso que se refere a ideia de performatividade tão discutida por pensadoras como Judith Butler, Teresa de Lauretis e Eve Sedgwick. Pegar as palavras pelos chifres e fazê-las funcionar a nosso favor é subverter essa realidade que é colocada como interpelação de vergonha, como acusação, e passar a percebê-la não como negação de um lugar dentro da norma, mas como afirmação de algo fora da norma. Essa norma que é, em nossa sociedade, marcadamente cis-heteronormativa e altamente racializada. Quando a poeta afro-peruana Victoria Santa Cruz escreve o texto e realiza a videoperformance viscerais Me gritaron negra, ela invoca exatamente essa ética queer. Fala que, com apenas sete anos, lhe gritaram negra, e negra ela se sentiu – negra como seus opressores sentiam – e, então, retrocedeu, como eles queriam. Mas depois assu-

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algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

miu que sim, e negra se assumiu. “E quê?”, perguntou. Transformou o torpor em força e em ardor. O mesmo fez Gabriela Leite, figura icônica do movimento de prostitutas no Brasil, com a palavra “puta”. Em uma entrevista, conta que, certo dia, estava num botequim, conversando com um homem, e ele lhe perguntou o que ela fazia. Disse que era uma puta aposentada. Ao que seu interlocutor, retrucou: “Que isso, minha senhora? Você foi puta. Hoje em dia, a senhora é uma mulher direita!”. E reflete, com ironia: “Ele mesmo estava me defendendo de mim!”. Quando adolescente, ainda dentro do armário, fui defendido de mim várias vezes por amigos heterossexuais quando outros me acusavam de viado e bicha. Hoje, a partir do corpo e da vida que tenho, acho importante afirmar politicamente que sou esses nomes. Ainda que eles não esgotem minha existência e minhas possibilidades de vida. Ainda que eu possa fazer um monte de coisas que não são “coisas de viado”. Esse tomar as palavras pelo chifre, usá-las política e subjetivamente para definir nosso lugar no mundo e fazer avesso positivo daquilo que era injúria vexatória é uma ética de resistência que germinou na vida e nas ruas antes de ser construída cientificamente como teoria pela academia. Quando Teresa de Lauretis cunhou a expressão “teoria queer” colocou juntas, sob uma mesma alcunha, reflexões que estavam sendo produzidas de maneiras diferentes por distintas pessoas e que tinham como solo comum essa ética e política de vida. E é somente a partir dessas considerações que o termo ganha um sentido consistente. No Brasil, de forma diferente, os sentidos da queer começaram a florescer antes nos corredores das universidades do que nos espaços de luta do ativismo ou nos becos sujos e secretos onde corpos e práticas dissidentes se fazem regra e não exceção. Com isso, a palavra, já feita sinônimo da teoria que leva seu nome, chega aqui com ares de sofisticação, de um pensamento revolucionário do Norte civilizado, de gente que entende das coisas e produz teorias que devemos reproduzir – nós, pensadores tupiniquins que somos. Nesse cenário, como se dizer queer aciona a ética que ficou associada a esse nome? Ora, se a força dessa política de resistência está em afirmar positivamente para si um lugar que é socialmente subalterno e dissidente, como alcançar essa ética com a declaração de uma palavra, queer, que aqui passa a ser algo positivo, coisa de gente descolada e desconstruída, que conhece o que está sendo produzido e discutido na Europa e nos Estados Unidos, centros de emanação de tudo que é bom e digno de atenção? Daí a importância de pensar, com os estudos pós-coloniais ou decoloniais, que há uma geopolítica do conhecimento que nos faz acreditar

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1 castro , Eduardo V. de. O nativo relativo. Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 113-148, abr. 2002.

2 mignolo , Walter. Histórias locais / projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. 3 perra , h. de. Interpre-

tações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e terceiro-mundista, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados com a heteronorma. Periódicus: revista vinculada ao grupo de pesquisa cus (ufba ), Salvador, v. 1, n. 2, p. 2, 2014. Hija de Perra – e especialmente o referido texto – é referência obrigatória para pensar criticamente a absorção e a circulação da teoria queer no contexto sudaca. Nessa mesma época, no Brasil, pensadorxs como Pedro Paulo Pereira e Larissa Pelúcio começaram também a refletir sobre possíveis apropriações dessa teoria dentro da realidade brasileira. Essas reflexões são fortemente ancoradas nas discussões de pensadorxs ditxs pós-coloniais, como Walter Mignolo, Ramón Grosfoguel, Aníbal Quijano e Jota Mombaça.

na existência de centros de produção legítima de teorias, assim como de periferias ou margens que apenas as reproduzem. Ali, como nos centros, se produz representações sobre o mundo, dizem-nos. Mas apenas nos centros, não cessam de nos alertar, é que são produzidas teorias válidas sobre essas representações – uma lógica semelhante à denunciada por Eduardo Viveiros de Castro1 em relação ao discurso antropológico. A ideia de que devemos importar o modelo de desenvolvimento dos países do Norte, de que eles são o modelo de civilização que devemos desejar e buscar, de que nossos valores são arcaicos e nossos costumes bárbaros, de que nossos pensamentos são, de fato, ideias mal concebidas sobre o mundo, de que nossas questões são subjetivas e não conseguem alcançar, em discurso, a objetividade da ciência… todas essas ideias fazem parte daquilo que Walter Mignolo chama de colonização epistemológica.2 “Hoje falo situada geograficamente no Sul, mas muitas vezes parece que me valido falando a partir do Norte, como seguindo um pensamento que nos guia a matriz do dominador”,3 alfineta Hija de Perra, com uma crítica a alguns desses trabalhos por ainda se prenderem a uma visão desencarnada de conhecimento, o que, segundo argumenta, gera sérias consequências epistemológicas para as posições de sujeitos entre quem faz e sobre quem se faz teoria queer. É fundamental demarcar que, no que diz respeito à geopolítica do conhecimento nacional, o mecanismo é o mesmo, mas com os polos Norte e Sul invertidos. No Brasil, acredita-se, que o Sul e o Sudeste produzem conhecimento e constroem uma sociedade legítima, enquanto o Norte e o Nordeste devem apenas se espelhar nesses modelos e, se forem inteligentes ou capazes o suficiente, reproduzi-los. Por um lado, a colonização histórica, o movimento de conquista de territórios e a expansão das zonas de influência e exploração dos países do Sul (e, no Brasil, das regiões do Norte do país) pelas ditas potências do Norte (e pelo Sudeste brasileiro). Por outro lado, para muito além dela, a colonialidade, isto é, a lógica subjacente a esse processo de dominação que estabelece centros e margens e que, a todo momento, é reatualizada e expõe a capilaridade do pensamento colonial na construção de nossos corpos, pensamentos e subjetividades. O que poderia, então, ser algo como a descolonização da queer? Para mim, em primeiro lugar, seria reconhecer que nossos corpos, nomes e práticas dissidentes não tiveram que esperar a teoria ou a palavra queer para serem capazes de produzir suas lutas, resistências e seus territórios existenciais particulares. A cis-heteronorma que nos informa padrões coerentes de comportamentos, expressões e identidades de gênero e sexuais sempre foi ameaçada e ferida por bichas, sapatões, bolleras, maricas, travestis, viados e todxs aquelxs montrxs

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algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

que não se adequam a seus ditames. Mesmo no campo do pensamento e da fabulação sexo-política, autores como Néstor Perlongher, Osvaldo Lamborghini, Manuel Puig, Roberto Echavarren, Pedro Lemebel e muitos outros já estavam construindo o que Juan Pablo Sutherland chamou de “uma cidade marica na literatura latino-americana”.4 Em segundo lugar, trata-se de não projetar a hierarquia progressiva/ arcaica em nossas práticas de conhecimento e convivência. Inspiradas pelos ares de sabedoria cosmopolita e desconstrução cool, muitas pessoas que se identificam, se não como, pelo menos com a queer, acabam reproduzindo retóricas de exclusão que essa ética buscava suprimir e combater. Com a popularização da queer no Brasil, surgiu uma série de espaços de sociabilidade, jornais, revistas, filmes, músicas, gostos e estilos de vida que são tomadas como a materialização da última tendência, daquilo que há de mais moderno ou pós-moderno – como se queira. Um imenso “shopping queer”.5 Do dia pra noite, por conta da voga queer, as bichas velhas dos centros das cidades viraram anacronismos, pessoas cujas identidades fazem parte de um passado que essa nova sensibilidade desconstruída veio superar.6 Em uma mesa redonda sobre temporalidades queer, Jack Halberstam diz que se identifica sexualmente como stone butch (que pode ser traduzido como fancha, sapatão machuda) e se pergunta o que significa estar engajada em práticas sexuais cujo tempo é o passado. Continua argumentando que a ênfase, nas subculturas sexuais contemporâneas, em “flexibilidade”, desejos/práticas/identificações flexíveis, marca pessoas com identificações fortes como patológicas no que se refere à sua rigidez, e o binário flexível-rígido é, sem dúvida, de caráter temporal – ele atribui a mobilidade ao longo do tempo a certa noção de libertação e coloca identificações persistentes como uma maneira de ficar presx no tempo, involuídx, sem versatilidade. Estes são sintomas de homonormatividade subjacente, como Hoang sugere; eles colocam a liberação sexual como o outro de práticas sexuais presas no tempo. Muitas dessas caracterizações da homonormatividade também supõem um sujeito branco e, então, colocam o anacronismo em comunidades de cor – por exemplo, enquanto queers brancxs de classe média se adiantam com sua flexibilidade de gênero e sexual, comunidades associadas a sapatões (butch-fem), talvez latinas da classe trabalhadora ou algumas comunidades negras parecem estar detrás da curva da história.7

O que dizer de viados, sapatões e travestis das periferias de nossas cidades que têm pouco ou nenhum contato com os modismos queer sustentados por roupas, adereços e palavras de ordem? Se a ética queer que tem sido tão endeusada no cenário político e acadêmico nacional não conseguir incluí-lxs em suas reivindicações, não será

4 sutherland , Juan P. Nación marica: prácticas culturales y crítica activista. Santiago: Ripio Ediciones, 2009. p. 21. Tradução do autor.

5 perra , h . de. op. cit.,

p. 6. Tradução do autor.

6 Alocar sujeitos em temporalidades distintas sempre foi uma estratégia de poder, controle e submissão de corpos e populações. Para uma discussão sobre como a antropologia construiu seu objeto de estudo articulando noções de temporalidade e sobre as consequências desse procedimento, ver: Fabian (2002[1983]).

7 dinshaw , Carolyn et al. Theorizing Queer Temporalities: A Roundtable Discussion. glq : A Journal of Lesbian and Gay Studies, Durham, v. 13, n. 2-3, p. 190-191, 2007. Tradução do autor.

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8 mc queer , Fiscal. cd :

Mc Queer, 2016.

9 preciado , Paul B. Manifiesto contra-sexual. Madri: Opera Prima, 2002.

isso um atestado de sua falência e inaplicabilidade a nossos próprios corpos e causas? É claro que não se trata de negar ou ignorar a teoria queer de forma total ou absoluta. Podemos e devemos nos valer dela – como, aliás, faço aqui a todo momento – na medida em que sirva a nossos propósitos, a nossas questões e a nossas lutas. Mas se nossos corpos, identidades e práticas tiverem que se curvar, se ajustar e se conformar àquilo que nos dita tal teoria e não o contrário, então estaremos, mais uma vez, reproduzindo a colonialidade do pensamento, agora disfarçada de subversão libertadora. A palavra “viado” funciona para mim porque tem um nexo que eu reconheço e que é reconhecido pelas pessoas que compartilham comigo algum universo de sentido no cotidiano. Meu corpo branco, o fato de eu ser de classe média, professor universitário, tudo isso me higieniza. A cor da minha pele, minha classe, meu grau de instrução, meu lugar subjetivo e corporal no mundo é um privilégio ao qual muitxs não têm acesso. Como não reconhecer?! O ponto é que o reconhecimento desse lugar não deve se desdobrar numa aceitação da versão mais comportada e hipócrita da minha homossexualidade: aquela do viado que não se diz viado, mas gay, e por essa palavra entende alguém menos feminino e – se possível – menos preto e menos pobre. Esse lugar é um lugar político que eu não quero ocupar. Eu não preciso que me salvem de ser viado ou bicha, que me livrem de mim ou que me separem de pessoas mais pretas, pobres, femininas, velhas. “Ah, não tem problema ser viado, desde que não seja promíscuo.” De novo, a sexualidade boa contra a sexualidade ruim, como tanto nos advertiu Gayle Rubin (1984). De novo, a linha daquilo que é aceitável e normal empurrada para outro lugar, outra caixinha onde se possa colocar aquilo que é detestável e detestado socialmente e que, no claustro, não nos polua. A pragmática da normalização parece nunca ter fim. A resistência contra práticas de normalização é justamente algo que tanto a ideia de descolonialidade como a ideia de queer me sugerem. São espécies de contrapedagogias, avessos de uma pedagogia de formação de sujeitos. Por isso uma de-formação. Por que a gente tem sempre que desejar estar do lado do poder e da dominação? No ano de 2016, um artista chamado Mc Queer lançou uma música na qual se ouvia: “Me chama de viado, invertido e baitola / Bichinha, boiolinha, bambi chupa-rola / Quero muita atenção no que eu vou falar pra tu / Tem que ser macho pra caralho / Pra poder dar o próprio cu”.8 Então, eu preciso legitimar o fato de dar o cu porque isso me transforma em mais macho? Essa prática contrassexual9 de ter prazer com o orifício por onde se caga só se justifica e se confirma numa reconversão ao lugar dominante do macho? Eu quero é enviadescer,

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algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

como canta Mc Linn da Quebrada. E talvez seja por isso que eu dou o cu. Além de ser uma delícia, é claro. De fato, as duas coisas não estão separadas. Porque essa ética da qual eu estou falando é, ao mesmo tempo, uma ética de discurso, de palavra, de nome e uma ética de corpo, de gesto, de sêmen e mesmo de dor. Foi Paul Preciado quem talvez tenha colocado de maneira mais pungente, no panteão queer, a questão corporal da dissidência como algo que não pode ser negligenciado por uma excessiva ênfase na performatividade linguística. O meu contato com as práticas do bdsm 10 mostrou que podemos habitar lugares aquém da humanidade, onde as questões do humano ainda não se fazem presentes de forma tão condicionante. São uma lembrança esfumaçada, talvez mesmo trilhas de migalhas de pão para poder voltar em algum momento. Descolonizar o pensamento é também desafiar e desconfiar do humanismo e do humano, essa palavra que entra em voga num período específico do desenvolvimentismo europeu e que serviu, principalmente, para julgar quem fazia ou não parte de seus quadros, quem deveria estar na história e quem deveria, com os animais e o resto do “mundo natural”,11 estar apenas na biologia. Como disse em outro momento: Somos todos cyborgs. “O cyborg é nossa ontologia, nos outorga nossa política”.12 E se o cyborg de Haraway é expressão de fractalidade, como argumenta Strathern,13 então, enquanto tal, ele passa ao largo de todo e qualquer humanismo que, em sua definição, não pode prescindir da irredutibilidade dos polos dicotômicos (natureza-cultura, doméstico-público) contra a qual a ideia de fractalidade se constrói. Se considerarmos ainda que essas distinções estão no cerne do projeto moderno,14 então, já vem chegando a hora de dizermos que, assim como “jamais fomos modernos”, “jamais fomos humanos” (ou, pelo menos, nem sempre, nem em todas as situações e, certamente, não inteiramente).15

Não é à toa que, ao criticar o racismo e o etnocentrismo ocidental, Lévi-Strauss tenha atacado também a noção de povos sem história.16 Em relação ao humanismo, é preciso dizer que, tal como afirmou de maneira tão jocosa como precisa a tia de um amigo, “a humanidade é um projeto que não deu certo”. O problema, no entanto, se complica quando a desumanização não é um processo de autodeterminação, de autodeformação, de habitar fora dessa norma que é tão cis-heterocentrada, quanto racista e especista. Quando essa desumanização é, ao contrário, resultado de uma negação da humanidade que nada tem de voluntária, mas que é forçada, violenta e que desconsidera a humanidade de alguém apenas para colocá-lo num campo de risco que os direitos humanos, encarnação ocidental do acesso à justiça, não conseguem alcançar.17

10 bdsm é um acrôn-

imo para bondage, dominação, disciplina, sadismo, submissão e masoquismo. 11 todorov , Tzvetan. A

conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1988. 12 haraway , Donna. Ciencia, cyborgs y mujeres. La reinvención de la naturaleza. Madri: Cátedra, 1995. p. 254. Tradução do autor.

13 strathern , Marilyn. Partial Connections. Walnut Creek: Altamira Press, 2004.

14 latour , Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. 15 grunvald , Vitor. Teseu e o touro: algumas sugestões feministas para uma crítica da razão. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Museu Nacional, ufrj, Rio de Janeiro, 2009. p. 121.

16 lévi - strauss , Claude. Raça e história. In: Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976. 17 No século xx , as reivindicações de liberação e os questionamentos das normas da sexualidade passaram por um processo de codificação jurídica na noção de “direitos sexuais”. É necessário pensarmos não apenas o que se ganha, mas o que se perde com esse processo e, fundamentalmente, o que e quem fica de fora. Se, em teoria, direitos humanos deveriam ser universalmente válidos, na prática, sabemos que a própria ideia de sujeitos

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de direitos conclama que ser um sujeito é condição sine qua non para acessar o marco dos direitos jurídicos. O problema fica claro quando percebemos que, como insistem diversxs autorxs da teoria queer, a condição de sujeito é diferencialmente distribuída. Para saber mais, ver: viteri , María A.; castellanos , Santiago. Dilemas queer contemporâneos: ciudadanías sexuales, orientalismo y subjetividades liberales. Un diálogo con Letícia Sabsay. Íconos. Revista de Ciencias Sociales, Quito, n. 47, p. 103-118, 2013.

18 butler , Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. 19 Cf., por exemplo, bourcier ,

Marie-Hélène (Sam). 2014. Bildungs-Post-Porn: notas sobre a proveniência do pós-pornô, para um futuro do feminismo da desobediência sexual. Bagoas, Natal, n. 11, p. 15-37. 2014. Para um texto introdutório sobre pós-pornô ver adicionalmente: grunvald , Vitor. Teoria, carne e marcos iniciais da pós-pornografia. Flsh Mag. Disponível online, ver bibliografia. Acesso em: 26 jan. 2017; nogueira , Fernanda; costa , Pedro. Da pornochanchada ao Pós-Porno-Terrorismo no Brasil: d’As Cangaceiras Eróticas ao Coletivo Coiote. Revista Rosa, n. 5, dez. 2014. Disponível online, ver bibliografia.

Um caso recente emblemático foi o de Verônica Bolina, travesti negra brutalmente violentada pela polícia e exposta nos mais diversos meios de comunicação por meio de fotografias que figuravam um horror inominável. Qual seria o tamanho da comoção pública se fossem imagens como aquelas, mas de uma mulher branca, cis e de classe média? Nem dá pra imaginar o tamanho da confusão. Por que uns corpos merecem nosso luto e outros não? E esse luto e a violência com que se responde a ele não seriam também uma indicação de humanidade ou de sua falta, como tem argumentado Judith Butler?18 Quando é esse o efeito, quando é essa a questão, a desumanização talvez não deva ser buscada, mas combatida e chorada publicamente. Como fazem, aliás, tão obstinadamente as Mães de Maio, que tiveram suas filhas e filhos tiradas pelo terrorismo de Estado encarnado no seu braço armado – a Polícia Militar. Devemos pensar em estratégias, nos diversos ativismos de combate, mais do que em regras gerais. A pós-pornografia e o porno-terrorismo são ativismos de corpo e escracho, de desumanização e de deformação.19 Mas quando a intenção é a resistência a uma desumanização entendida como degradação e desconsideração do outro como alguém dignx de vida, as estratégias podem e devem ser outras. Publiquei no Facebook, recentemente, o Minimanual do guerrilheiro urbano, do Marighella. A minha tia imediatamente comentou: “Use ideias (aquela que começa feia depois fica bonita) e não violência. Porque violência só gera violência”. Ao que respondi: Minha querida tia, a não violência deve ser buscada onde quer que seja possível. Mas é urgente colocar que há situações nas quais ela não é uma opção. A prerrogativa da não violência é apenas de alguns. Uma pessoa branca de classe média vive uma vida que a permite colocar a questão da não violência como legítima. Mas quando se trata de pessoas negras, pobres, de periferia, que não se adequam aos modelos aceitos socialmente de comportamento de gênero etc., será mesmo que elas têm a opção de não serem violentas? Dá para responder apenas com palavras e ideias, em suma, com não violência, quando se aponta uma arma para você, quando se usa o cassetete para violentar seu corpo simplesmente por ele existir, quando se aplicam golpes a você o tempo inteiro e tanto por parte de pessoas que se acreditam justiceirxs do bem quanto por parte do próprio Estado e de sua truculenta polícia? Está na hora de pensarmos a quem serve o discurso da não violência e quem tem o privilégio de colocá-lo como possível e mesmo prioritário! Queria te emprestar meus olhos e minhas memórias para que você pudesse ver as coisas que tenho visto nas últimas manifestações! Muitas atitudes não violentas por parte dos manifestantes que ganham em troca violência gratuita por parte da polícia!

Lembrando disso, um tempo depois, recordei do que Davi Kopenawa, xamã yanomani, havia escrito no livro que assinou com

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Bruce Albert: “Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham consigo mesmos”.20 Para mim, descolonizar a queer é também, de alguma forma, não sonhar apenas consigo mesmx. Mas se essa for a prática – a de se subtrair, de se tornar menor, minoritário e não maior, dominante e majoritário –, então, as coisas que eu disse provavelmente são um arranjo muito peculiar e situado para dar sentido a esse processo. É necessário, de fato, que a própria teoria queer seja constantemente minorada, tal como busquei sugerir com a obra de Judith Butler.21 O ponto é que não existe uma fórmula que você possa oferecer a alguém: “tá aqui, você faz isso para descolonizar a queer! Você fica toda desconstruída e subversiva!”. Não se deixar capturar por essa lógica de desejar sempre o poder e a dominação só pode ser algo muito diferente para cada pessoa porque é impossível separar a resistência do processo de subjetivação que é peculiar a essa espécie de autodeterminação deformatória. Não há regra, justamente, porque colocar uma regra seria ainda apostar no sonho positivista de uma linguagem neutra, incorpórea e, tanto melhor, se for científica, se retirar toda a subjetividade e toda a singularidade para se transformar pretensamente no reflexo exato da natureza. Algo que eu me recuso a fazer. Hoje em dia, tem muita gente que se incomoda quando se toca em determinados assuntos ou se chama a atenção para pressupostos fóbicos que estão implícitos em práticas de exclusão e submissão. Chamam isso de mi-mi-mi e de implicância. Do meu ponto de vista, é implicância num sentido bem preciso: não implicar com alguém, mas implicar alguém em algo que essa alguém não é, em algo que ela não consegue considerar a partir do corpo e da pessoa que é. E mesmo se autoimplicar naquilo que você nunca vai ser e bloquear, da maneira como for possível, aspectos fascistas daquilo que você também é. Como disse, não espero, com este texto, dar alguma sugestão muito forte sobre o que é descolonização da queer. Quero, ao contrário, dar uma sugestão muito fraca, minha, do que isso pode ser. E tentar, quem sabe, oferecer esse sentido de modo que cada pessoa que leia essas palavras possa encontrar ferramentas para que ela ou ele ou ile leve adiante sua luta e sua resistência em seus próprios termos.

20 kopenawa , Davi;

Bruce. A queda do céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 412.

albert ,

21 grunvald , Victor.

Butler, a abjeção e seu esgotamento. In: díaz - benítez , María Elvira; fígari , Carlos (orgs.). Corpos, desejos, prazeres e práticas sexuais dissidentes. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

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referências bourcier ,

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Vi Grunvald É viado, nortista, doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (usp ), professor da Faculdade Cásper Líbero e integrante dos seguintes grupos de pesquisa ligados à usp: Grupo de Antropologia Visual (Gravi); Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (Napedra); e Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença (Numas).

no olho do cu(ir) – queer: centro e margens de uma palavra desgastada bibi Campos Leal

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Desvios de origem: genealogia “queer” perdida Há pelo menos vinte anos já escutamos/lemos, aqui e ali, essa estranha palavra: queer. Entretanto, a atmosfera “hypada” com que ela foi recebida e trabalhada nos contextos sudaka, sobretudo no Brasil, dificulta uma compreensão mais atenta e, portanto, uma reapropriação mais experimental e localizada do termo, por parte das dissidências sexuais e de gênero desde aká. Nesse sentido, muito do rico e explosivo contexto sexo-político que envolve “queer” – como palavra, identidade e movimento sexo-político – acaba por se perder ou se esfumaçar nessa atmosfera saturada, de modo que a palavra, drenada de todo o seu afronte lakrativo, esvazia-se num modismo estéril e ritualístico. Na tentativa, então, de recompor parte dessa atmosfera política explosiva, escolho os odores específicos de dois textos do “cânone clássico”, daquilo que se chama hoje de “teoria queer”, e que ainda assim não foram lidos com a seriedade – e a alegria – necessárias. Trata-se de Tendencies, de Eve K. Sedgwick, mais especificamente o prefácio e o capítulo Queer and Now, e Bodies That Matter, de Judith Butler, em especial o capítulo Critically Queer. No primeiro texto, a palavra queer exala uma potência sexo-epistêmica ou sexo-linguística e, no segundo, uma potência sexo-política ou ético-sexual. Comecemos pelas tendências. Sedgwick faz um movimento muito importante para as pessoas sexo e gênero-dissidentes, na direção tortuosa de compor parte de uma genealogia “queer” perdida, sobretudo quando investe numa arqueologia e desconstrução desviada da etimologia da palavra. Sedgwick recompõe o tecido esfacelado que “queer” comporia: um termo multiterritorial, transfronteiriço, inter e transnacional, disseminado, dissimulado. Mas essa recomposição monstra, essa colcha de retalhos toda cagada feita por Sedgwick não deixa de marcar, por meio de hesitações e ceticismos, que a problemática que “queer” abre é, em várias instâncias, algo inominável e que, portanto, deveria permanecer aberta. Nas suas palavras:

1 sedgwick , e . k .

Tendencies. Durham: Duke University Press, 1993. p. XII. Tradução da autora.

Queer é um momento, movimento e motivo prolongado – recorrente, redemoinhado, problemático. A palavra “queer”, em si, significa através – vem da raiz indo-europeia twerkw, que também gera o alemão quer (transversal), o latim torquere (entortar), o inglês athwart [transversal, através, contra, perverso, errado].1

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no olho do cu(ir) – queer

Por mais que “queer” esteja ligada a um território linguístico indo-europeu, como aponta Sedgwick, sua origem disseminada e transfronteiriça estaria longe de compor uma identidade coletiva coesa e soberana. Em todas as suas raízes etimológicas, apesar das especificidades que cada uma marca singularmente, “queer” seria o nome de algo que “desvia”, que “transgride” ou que “entorta”, do ponto de vista sexual e de gênero. Assim, “queer” não seria o nome de uma identidade substancial positiva com um sujeito soberano, mas uma interpelação situacional ou oposicional, marcando um lugar problemático, que desvia em relação a uma norma, ou que faz a própria norma (se) desviar. Assim, se “queer” marca um lugar de desvio ou problemático do ponto de vista sexual e de gênero, esse lugar, entretanto, é de uma multiplicidade e diferença infinitas e, assim, esses desvios ou problemas podem ter muitos nomes. Essa é uma das coisas que “queer” pode oferecer: a malha aberta de possibilidades, lacunas, sobreposições, dissonâncias e ressonâncias, lapsos e excessos de significação quando os elementos constitutivos do gênero e da sexualidade de alguém não são feitos (ou não podem ser feitos) para significar de forma monolítica. As aventuras linguísticas, epistemológicas, representacionais e políticas relacionadas com cada uma de nós, que às vezes pode ser levada a se identificar como (dentre muitas outras possibilidades) piriguetes, bichas loucas, fetichistas, drag queens, clones, leathers, mulheres de terno, mulheres feministas, homens feministas, masturbadorxs, caminhoneiras, divas, barraqueiras, butches passivonas, storytellers, transsexuais, tiazonas, simpatizantes, mulheres trans lésbicas ou lésbicas que dormem com homens ou... pessoas capazes de saborear, aprender e se identificar com isso.2

2 Ibidem, p. 8.

Butler, por sua vez, não é menos hesitante. Ela aponta para o risco que é terminar um livro com um capítulo sobre “queer”, o que daria a falsa impressão de haver um fechamento triunfal do assunto, o que, segundo ela, não só seria impossível, mas indesejável. Para a autora, “queer” não comporia também uma identidade substancial positiva, mas seria, ao contrário, uma interpelação violenta que produz efeitos identitários. “Queer” seria então uma injúria, uma ofensa, uma acusação. O termo “queer” tem operado como uma prática linguística, cujo propósito tem sido envergonhar o sujeito que nomeia, ou melhor, produzir um sujeito através dessa interpelação envergonhadora. “Queer” possui a sua força precisamente através da invocação repetida, por meio da qual se ligou à acusação, patologização e insulto”.3

Entretanto, de ofensa, o termo passa a constituir certa substancialidade positiva, torcendo e des-viando o significado e a interpelação originários. Para Butler, assim, “um termo que sinaliza a degradação

3 butler , j . Bodies

That Matter: On the Discursive Limits of “Sex”. Nova York: Routledge, 1993. p. 226. Tradução da autora.

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4 Ibidem, p. 223.

5 Ibidem, p. 228.

6 Ibidem, p. 228.

7 Ibidem, p. 229.

foi girado – ‘refuncionado’ –, para assumir um novo e afirmativo conjunto de significações”.4 Se esse giro, essa reapropriação, ou melhor, essa expropriação significante produz efeitos potentes para as pessoas “queers”, ele não deve tornar-se uma nova plataforma identitária fechada e autossuficiente. De um ponto de vista linguístico, mas também epistêmico e sexo-político, “queer” deveria sempre estar problematicamente aberto, aberto às possibilidades de desvios. Se o termo “queer” deve ser um local de contestação coletiva, o ponto de partida para um conjunto de reflexões históricas e imaginações futuras, ele terá de permanecer aquilo que é atualmente; [algo] nunca realmente possuído, mas sempre e somente reorganizado, torcido, queerizado em relação a um uso anterior e na direção de propósitos políticos urgentes e em expansão”.5

Se “queer” marca também uma aliança com gays e lésbicas, não deixa de abrir um desvio identitário, de modo que não podem ser tidos como sinônimos. Assim, “queer” marca, ao mesmo tempo, uma aliança entre desviantes de gênero/sexualidade em geral e pessoas lgbtqias, mas também marca uma ruptura com essas políticas assimilacionistas. Para Butler, “o termo seduz uma geração mais nova que quer resistir aos modelos mais institucionalizados e reformistas de política às vezes levados a cabo por ‘gays e lésbicas’”.6 Ainda nessa abertura “queer”, a autora, valendo-se das reflexões dos estudos raciais, que deslocam a noção cristalizada e naturalizante de “raça” pela mais complexa e potente “racialização”, afirma que não haveria uma substancialização de algo que seria o “queer”, mas apenas processos múltiplos e descontínuos de “queerização” [queering].7 Portanto, não existiria alguém que seria ou tornar-se-ia “queer”, mas apenas pessoas que experimentam e se inscrevem em processos de “queerização” infinita. Se, do ponto de vista “epistêmico”, a “teoria queer”, ou melhor, uma certa teorização da “queericidade”, como nos dois casos, sempre tentou se mostrar reticente em relação às possíveis cristalizações a assimilações identitárias, epistêmicas e linguísticas, o mesmo ocorre de um ponto de vista social e político. O “giro” expropriativo “queer” que Butler descreve, em que o sentido da palavra é torcido de algo negativo para algo positivo, tem início em terras estadunidenses em fins dos anos 1960, onde a Revolta de Stonewall seria um marco. Bichas pretas, drag queens e mulheres trans negras, lésbicas butches chicanas, prostitutas imigrantes, ursos cubanos, masoquistas e drogaditas, eram ali parte da fauna perversa que formaria o chamado “movimento queer” contemporâneo. Nesse sentido, “queer” seria o nome de um trans-bordamento monstruoso das margens higienizadas do movimento feminista e lgbtqia.

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no olho do cu(ir) – queer

O que se faz com isso? – maquinismo e experimentação desde aká Pois bem, agora que já recuperei alguns elementos importantes em torno da atmosfera em que circula a palavra “queer”, proponho uma leitura a respeito da sua recepção em solos latino-americanos. Esse processo é múltiplo, diferencial, situado, localizado e ainda está em curso, de modo que não existe uma explicação única nem um final para esse processo. Mas minha hipótese − se ela existisse − seria de que, em vários setores do “público” que recebeu a cultura envolta da palavra “queer”, não haveria um processo de apropriação da palavra, mas sim uma ex-propriação. Assim, o que sempre esteve envolto nessas leituras e escritas sudakas, ou mesmo tupiniquins, não é da ordem da interpretação, mas da ex-perimentação. Essa perspectiva desloca alguns pontos importantes da crítica “descolonial” da recepção “queer” na América Latina, que pinta um quadro de mera passividade e mimetismo na recepção da palavra desde aká. Longe de uma apropriação comportada e interpretativa – meramente acadêmica ou ritualística –, muitas vezes, o que se produziu aqui foram ex-propriações selvagens e experimentais. E isso não só do ponto de vista linguístico, mas também de uma materialidade sexo-política e epistêmica. Proponho uma experimentação de dois desses experimentos. Constanzx A. Castillo, no corrosivo e emocionante La cerda punk, que mistura teoria política e autobiografia, narra sua experiência sudaka com o feminismo, que se deu tanto através da academia como da cultura de rua do movimento feminista. E se Constanzx parte de experiências e teorizações euro-estadunidenses para pensar um feminismo gorde, não deixa aí de marcar as (suas) diferenças: “sinto necessidade de visibilizar outros tipos de experiências, diferentes das dos yankees”.8 Não existe a afirmação de uma pretensa “pureza” sudaka, diante das determinações da colonialidade como condição latina. É através de certa leitura, desviada e torta, da tradição feminista euro-estadunidense que pensa os atravessamentos da gordura com as questões de gênero/sexualidade, que Castillo constrói o projeto situado e situacional da porca punk. No contexto belicoso da colonialidade latina, é o corpo mesmo, hiperssexualizado e exotizado, que aparece, que se marca como campo de batalha, como linha de deserção e resistência. “Escrevo porque quero tornar público minha corpa, porque minha corpa é política. Me reconhecer a partir da minha ferida, a partir das minhas estrias que percorrem minha barriga transbordada”.9 Se a corpa gorde é reduzida à privacidade dos espaços, a escrita gorda é uma ferramenta, uma espécie de contradispositivo catártico-político que, de um só golpe,

8 castillo , c. a . La cerda punk: ensayos desde un feminismo gordo, lésbiko, antikapitalista & antiespecista. Valparaíso: Trio, 2014. p. 24. Tradução da autora.

9 Ibidem, p. 23.

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10 Ibidem, p. 24.

ameniza as cicatrizes da vida (no corpo) gorde, e transborda a experiência gorda de volta ao espaço público. Entretanto, aqui também essa identificação não gera identidades fixas e coerentes, já que, num contexto sudaka, a situacionalidade também é uma tática de guerrilha identitária. “Uso das palavras como tática, chamar-se de gorda é uma identidade estratégica, contextual, perturbadora, assim como chamar-se de lésbica, feminista ou porca punk”.10 Assim, a porca punk, apesar de conter uma materialidade situada, que se experimenta nas ruas, nas praias ou nas casas noturnas, não chega a formar uma essência. Trata-se de uma condição, inescapável, mas também de uma ferramenta, acionável. Por outro lado, os experimentos de Hija de Perra em “Interpretações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto sudaca” também funcionam a pleno vapor. Perra começa por mostrar que “marica” funciona no contexto sudaka (hispanofalante) de forma semelhante (mas não idêntica) à interpelação e injúria “queer”, mostrando assim que processos de ressignificação da abjeção heterossexual e o “giro” expropriativo também aconteciam desde aká. Além disso, se Stonewall foi marcado como parte da genealogia “queer” euro-estadunidense, Perra oferece pistas para a composição de uma genealogia marica, que deveria começar por investigar as imemoriais práticas não binárias e sexo-desviantes das comunidades ameríndias: Os conquistadores olharam os homens indígenas como seres selvagens afeminados por conta da sua ornamentação e as mulheres como fogosas por terem parte dos corpos desnudos. Nossos ancestrais foram vestidos com roupas estranhas à sua cultura original, cortaram os seus cabelos para diferenciá-los entre homens e mulheres e não permitiram, tomando-as por aberração, todas as práticas intersexuais que produziam alterações à moralista mente espanhola.11

11 perra , h . de.

Interpretações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e terceiromundista, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados com a heteronorma. Periódicus: revista vinculada ao grupo de pesquisa cus (ufba ), Salvador, v. 1, n. 2 2014. p. 2.

Para Perra, portanto, parece ser mais produtivo, no contexto sudaka, investigar essa genealogia perdida da selvageria sexual e de gênero nos povos ameríndios do que se esforçar para compreender o contexto “queer” do norte global. Por meio de uma linguagem corrosivamente poética, Perra questiona as identidades sexuais e de gênero, multiplicando-as parodicamente ao infinito: Serei uma travesti sodomita lésbica ardente metropolitanizada? Serei uma bissexual afeminada em pecado com traços contra-sexuais e delírio de transgressão de transexualidade? Serei uma tecno-mulher anormal com caprichos ninfomaníacos multissexuais carnais? Serei um monstro sexual normalizado pela academia dentro da selva de cimento?

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no olho do cu(ir) – queer

Serei uma vida castigada por Deus por invertida, torta e ambígua? Serei um homossexual ornamentadamente empetecada, feminina, pobre, com inclinação sodomita capitalista? Serei uma travesti penetradora de buracos voluptuosos dispostos a devires ardentes? Ou serei um corpo em contínuo trânsito identitário em busca de prazer sexual?12

Esses delírios sexo-identitários, demasiado sudakas, seriam uma espécie de pista, de trilhamento. Em vez de procurar uma tradução única e final para “queer”, deve-se deixar a dimensão do desvio e do entortamento “queer” multiplicar-se na infinidade situada − tal qual ela aparece, imemorialmente − das atmosferas marginais do esgoto sudaka. Nos rastros das bestas: a virada monstra desde aká Queria ainda destacar dois casos emblemáticos dessa experimentação expropriativa da “teoria queer” desde aká. Tratam-se de dois textos monstruosos. Em ambos os casos, vemos um deslocamento sudaka das questões de dissidência sexo-políticas, na medida em que os dois textos apontam que a transgeneridade, num contexto latino, não somente borra e estremece as oposições hétero/homo e cis/trans, mas também − e ainda mais sombria e profundamente − a oposição humano/animal. O primeiro é a tirinha “LobisHomem Trans”, do fanzine Quimer(d)a. A tirinha narra os desvios cotidianos de um corpo trans masculino (homem trans ou uma sapatrans), convivendo agora em ambientes cis-masculinos e sendo interpelado de várias maneiras pela cis-heteronorma. Confundido com um homem cis na academia, acaba por ser interpelado pela “brodagem” cis-hétero. Cito: “E aí, parça, olha aquela gostosa. Nossa, eu comia” – dizem os machos. O trans vai inflando de ódio, tornando-se cada vez mais peludo e monstruoso. Mas a raiva não se contém e quando os machos se deitam para fazer o supino, o trans passa, deixando uma nuvem de peido trans-testosteronado, como forma de vingança monstra. Saindo da academia, aproveita a solidão no busão, o que não dura muito. Um macho espaçoso logo se aproxima e senta, com as pernas bem esparramadas do lado do trans. Com coçadas no saco e conversas heterossexistas ao telefone, o trans fica cada vez mais monstro e furioso. Em vez de disputar o campeonato de quem abre mais as penas, o monstro encosta o braço de forma maliciosa no macho, que, com pontadas de “terror anal”, troca rapidamente de lugar. Por fim, descendo do ônibus, ele vai para um encontro feminista e eis que num dos lugares onde ele aparentemente teria um lugar, é interpelado: “– Oi. Só mina é bem-vinda. – Não. Eu... eu não sei. Eu não...”. Eis que o monstro abandona todas as suas roupas, monta nas quatro patas e foge, deserta... Fim da tirinha.

12 Ibidem, p. 4-5.

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A experiência trans aí também possibilita um espaço de desvio não somente de sexo/gênero, mas de desvio de espécie. Quimer(d)a abre a transgeneridade no conjunto das relações de abjeção cis-heterossexuais e também nas trans-formações monstruosas operadas pela testosterona e outras tecnologias de gênero, para as experiências e experimentações do não humano, da bestialidade, animalidade e da monstruosidade. E se essa experiência da transgeneridade monstra é expressada no estigma e na abjeção, como a tirinha marca em vários momentos, ela é também a abertura de uma alegria igualmente bestial, monstra. E é exatamente, mas não somente, através do humor e dos desenhos que essa experiência ambivalente se grafa. Por fim, destaco “Reivindico meu direito a ser um monstro”, brilhante poema/ensaio político da maravilhosa travesti Susy Shock. Aqui, não tanto por meio do humor, mas por um lirismo desenfreado, delirante, Shock pensa a transgeneridade sudaka, mais especificamente a travestilidade, como um deslocamento ao mesmo tempo das barreiras de gênero e também de espécie. Uma recusa brutal dos enquadramentos de gênero − e uma reinvenção performativa e material do corpo − é um marcador que abre a vida trans (travesti) para o violento e maravilhoso mundo da bestialidade não humana.

13 castillo , s . Poemario TransPirado. Buenos Aires: Nuevos Tiempos, 2011. p. 12-13. Tradução da autora.

Eu, pobre mortal, equidistante de tudo, eu, cpf : 20.598.061, eu, primeiro filho de uma mãe que depois fui, eu, velha aluna desta escola dos suplícios. Eu reivindico meu direito a ser um monstro. Nem homem nem mulher. Eu, monstro de meu desejo, carne de cada uma das minhas pinceladas, tela branca do meu corpo, pintora do meu andar. Não quero mais títulos para carregar. Só meu direito vital de ser um monstro... Meu direito a explorar-me. A reinventar-me. Fazer do meu mudar, meu nobre exercício. Veranear-me, outonar-me, invernar-me; os hormônios, as ideias, as curvas e toda a alma − amém.13

A transgeneridade, a travestilidade, como marca Shock, é uma experiência primeiramente de perda, desorientação e de deriva sexo-ontológica. Estar “equidistante” de tudo, de si mesma, do “seu” cpf, da sua linhagem familiar, da sua educação, do seu gênero... E é nessa direção torta, desviada e desorientada que a experimentação se marca como condição e como ferramenta monstra da transgeneridade, da travestilidade. É exatamente por não se saber mais onde está, quer seja por ter abandonado posições ou por nunca tê-las tido de fato, que a experimentação ganha terreno. A experimentação transmonstra são os passos tortuosos de uma trajetória que nunca acaba, que não tem fim nem ponto de chegada. Na experimentação transmonstra de Shock, o caminho, a trajetória e a estrada já são tudo que existe, tudo que importa. Abandonar “títulos” não é um luxo, mas uma necessidade, pois

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no olho do cu(ir) – queer

assim o corpo fica mais leve para viajar, experimentar a estrada da transformação. A monstruosidade é apenas um nome dessa trajetória translocada, onde o próprio corpo é a “tela branca” na qual se pincelam as cores da diferença e da singularidade monstra. A monstruosidade trans, isto é, uma certa monstransidade, não pede permissão, não exige reconhecimento, ela só (se) afirma, e (se) afirma errantemente nas experimentações infinitas do corpo como estrada, encruzilhada, desvio, retorno, beco sem saída, ponte, atalho…

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referências J. Bodies That Matter: On the Discursive Limits of “Sex”. Nova York: Routledge, 1993. castillo , C. A. La cerda punk: ensayos desde un feminismo gordo, lésbiko, antikapitalista & antiespecista. Valparaíso: Trio, 2014. perra , H. de. Interpretações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e terceiro-mundista, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados com a heteronorma. Periódicus: revista vinculada ao grupo de pesquisa cus (ufba), Salvador, v. 1, n. 2, 2014. quimer ( d ) a : quadrinhos antiespecistas. s.l., s.d. sedgwick , E. K. Tendencies. Durham: Duke University Press, 1993. shock , S. Poemario TransPirado. Buenos Aires: Nuevos Tiempos, 2011. butler ,

bibi Campos Leal Dentre muitas coisas, bibi é tradutora e editora de fanzines, já tendo traduzido e publicado, dentre outres: Paul B. Preciado, Monique Wittig, Jack Halberstam, além de textos de Tiqqun e da própria Gangue Nardini e Bashback!. Atualmente compõe a microrrede de editorial fanzinero translesbichas. Fez mestrado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (ufrj ), pesquisando a desconstrução em Derrida e as relações com a chamada teoria queer. Agora doutaranda sem bolsa, pesquisa a problemática autobiográfica na chamada filosofia pós-estruturalista.

(des)mi(s) tificar falares: perspectivas para uma abordagem do pajubá

Régis Mikail Abud Filho

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M0 O Desaninhador de Monas As monas-de-equê, xoxadas e perseguidas, sofriam todo tipo de gongo dos alibãs, de quem tomavam coiós. Era o início dos tempos que conhecemos, quando ainda não tinha direito que protegesse as travestis. Pra desaquendar os alibãs, Tupã e Oxossi decidiram ajudá-las. Mandaram pras monas-de-equê o pajubá que elas escutavam no único lugar, no único templo, na única liturgia que as recebia de braços abertos: os cultos afro-brasileiros, trazidos pelos escravos, com suas palavras sonoras, bem adaptadas ao português arcaico, palavras de línguas remotas e de origem indetectável. E assim nasceu o pajubá: elas podiam falar de taba, padê e de aqué, desaquendar as equezeiras e até gongar o axó novo da fulana; dizer que cicrana deu a elza no ilê da amapô...

1 pessoa de castro ,

Iêda. Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2001. p. 54. (Coleção Topbooks)

2 marcuschi , Luiz a . Análise da conversação. São Paulo: Ática, 1986. p. 5. 3 Vagner Gonçalves da Silva cita, entre vários exemplos de cânticos no contexto paulistano, a cantiga de Obaluê do rito angola, na qual se observam termos em português que simplificariam a memorização do cântico e a comunicação do interlocutor com a divindade: “Aê seu kafunã/ Omulu que belo ojá/ Aê aê seu Kafunã”. Ver: silva , Vagner Gonçalves da. Cantar para subir: um estudo antropológico da música ritual no candomblé paulista. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2017.

Se há razão para refletir sobre o pajubá, não se trata de listar curiosidades pitorescas de um linguajar saboroso. Suas origens parecem remeter a um criptoleto construído sobre falares africanos e indígenas para que as travestis, que frequentavam terreiros de religiosidade afro-brasileira, não fossem compreendidas pela polícia. Portanto, não é de surpreender o fato de que, em sua origem, os termos do pajubá reflitam um submundo de prostituição e criminalidade. Apesar de presente em diversas ordens discursivas, a visibilidade trans encontra-se fragilizada no contexto brasileiro atual, paradoxalmente retratada sob amplas distorções midiáticas e marginalizada por políticas de austeridade de um governo ilegítimo e seus apoiadores, frequentemente mancomunados com um designado “fundamentalismo neopentecostal” que coloca o patrimônio afro-brasileiro igualmente em risco. Lembremos que, como mostra Iêda Pessoa de Castro, especialista em falares africanos no Brasil, o modelo mais antigo de religiosidade brasileira sincrética, o candomblé de caboclo, reúne elementos linguísticos do banto, de línguas indígenas e do português,1 as mesmas raízes do pajubá. Desconheço estudos sobre o pajubá como sistema linguístico. Ao que parece, são ainda mais raros do que os já escassos estudos sobre línguas indígeno-brasileiras e africanas. Ainda pouco pesquisados são os aspectos da língua falada brasileira e os processos conversacionais.2 Essa constatação é espantosa, se considerarmos que o modelo mais antigo de religiosidade brasileira, de sincretismo (e por que não dizer de idiossincrasia) nacional, o candomblé de caboclo, reúne elementos linguísticos do banto, de línguas indígenas e do português.3

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(des)mi(s)tificar falares

Estruturalmente simples e de léxico limitado, as condições de fala atuais do pajubá convidam a uma abordagem que não mais o considere como objeto linguístico estanque, mas como sujeito transformador de implicações discursivas e sociais importantes. Estendido ao contexto lgbtqia e sob perspectiva de gênero, performance e linguagem, caberá abordá-lo futuramente como sujeito de uma sociedade urbano-digital que passou, de visivelmente subversivo, a ser invisivelmente aceito. Contrariamente à literatura consultada, procurei evitar considerar quaisquer falares gays como pajubá – a distinção entre o público gay e o público trans é digna de nota; o primeiro incorporou o falar do segundo. Antes transmitido no falar, o pajubá espalhou-se como por capilaridade pela internet4 e transformou o diálogo entre os lgbtqia e outros segmentos sociais, da mesma maneira que, no período colonial, a mãe-preta e o ladino transportavam influências dos africanismos no português brasileiro, numa corrente mútua de influências e aportes.5 As mudanças do pajubá já não buscam tão somente dificultar a compreensão pelos policiais. Hoje, trata-se menos de um criptoleto do que uma afirmação identitária performativa em constante adaptação. De fato, a língua e suas variantes não se limitam a relatar a realidade. Mas, para criar subjetivamente a língua, o falante parte dessa própria realidade. Estabelece-se um pacto no qual neologismos são aceitos ou recusados de acordo com o prestígio e poder dos falantes, se nos permitirmos evocar vagamente Foucault. Esses jogos de poder em relação à língua estão presentes em âmbitos como o candomblé brasileiro e na cultura noturna do vogueing.6 A Aurélia, “a dicionária gay”,7 de Ângelo Vip e Fred Libi, satírica como o Dictionnaire d’idées reçues, de Flaubert, propõe com sucesso um inventário (frequentemente humorístico) dos falares e gírias gays amplamente em transformação (como já ocorria na mídia impressa, a exemplo da coluna “Noite Ilustrada”), não se limitando ao pajubá e seus étimos indígeno-africanos. Biografias absurdas dos autores e o prefácio de um certo “Dr. Jaccourd” revelam zombaria ao preciosismo acadêmico. Ludicamente, a Aurélia brinca com morfemas e gêneros. Classifica, por exemplo, o neologismo “sapatã”, corruptela de “sapatão”, termo feminino, aumentativo da palavra masculina “sapato”, que é artificialmente – e contraditoriamente – feminilizado para designar a lésbica que ainda não é “autêntica sapatão”.8 As pesquisas futuras deveriam investigar como o pajubá cria sua realidade a partir e através da língua, numa realidade em que se performatizam identidades. A inspiração trans-humana da linguagem

4 Ao contrário do polari, do qual falaremos posteriormente, caído em desuso desde o final dos anos 1960 devido à grande popularidade midiática, o pajubá parece ser alimentado por uma mídia que, pelo menos linguisticamente, vem se mostrando amigável a ele e aos falantes desse “gueto”. 5 castro , op. cit., p.

63 e 78.

6 No caso brasileiro, poderíamos traçar um paralelo entre a nação de candomblé (pai/mãe, irmão/irmã, filhos/filhas que estabelecem entre si traços de parentesco religioso dentro do culto de um mesmo santo e em uma mesma língua) e os clãs de grupos nova-iorquinos de travestis, drags, andróginos, transgêneros e transexuais disputando entre si em batalhas de danças e desfiles, surgidos nos anos 1990. 7 A esse respeito, podemos constatar uma característica da linguagem popular espontânea que confere desinências masculinas artificiais a termos fundamentalmente femininos: como “o coiso”, em animais como “o capivaro”, “o garço”. Isso sugere a ideia de que a língua, ao faltar com um correspondente imediato e natural ao gênero masculino, é defeituosa. Ao passo que a mudança de desinência masculina para feminina, “a morcega”, “a dicionária”, é, quando não voluntariamente cômica em um contexto intra-queer ou intragay, pejorativa, como podemos inferir em “a soldada”, “a bombeira”, para designar trabalhadores homossexuais em profissões predominantemente masculinas. Isso se constata não apenas em palavras que carecem de desinência de gênero imediata, mas em qualquer flexão ao feminino.

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8 vip , Angelo; libi , Fred.

Aurélia: A dicionária da língua afiada. São Paulo: Editora do Bispo, s. d. p. 120.

9 O polari seria menos

um criptoleto para fugir da polícia do que um falar que procurasse aceitar e afirmar a identidade destes outcasts e, posteriormente, a identidade homossexual, drag e trans, inicialmente masculina. Ver: baker , Paul. Polari: The Lost Language of Gay Men. London: Routledge, 2003. 10 Ver: livia , Anna;

hall , Kira. “É uma menina”: a volta da performatividade à linguística. In: ostermann , Ana Cristina; fontana , Beatriz (orgs.). Linguagem, gênero, sexualidade. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. p. 114. As autoras observam o aparecimento de estudos sobre o discurso de gays e lésbicas que resultaram em simples glossários excludentes e metodologicamente pouco precisos, como Gayspeak, de Hayes, de 1976, e as pesquisas etnográficas de Ponte, em 1974, sobre elementos extralinguísticos (postura, olhar) desses discursos, como o de Webblink, em 1981, e a alternância de códigos entre gays (Lumby, 1976).

11 marcuschi ,

op. cit., p. 85.

12 Ver epígrafe

deste texto.

e a teoria queer convidam a considerar a/o trans como desafio ao cartesianismo, formulando perguntas em vez de demonstrar respostas. O desejo de tal rompimento levaria em conta não apenas rusgas como “queer vs. pink”, mas investigaria fundamentalmente a interação desses grupos sociais, cuja linguagem é denominador comum. Assim como o bekimon filipino e o extinto polari britânico,9 o pajubá passa a ser inclusivo e considera meios extra-lgbtqia . Ou seriam esses meios que se apropriam dele? A absorção e propagação do pajubá e sua parcial rigidez lexical de étimos afro-indígenas, esses pouco transformados, colocam em cheque preconceitos “clássicos” externos já mencionados, bem como preconceitos “internos” que contradiriam o próprio não binarismo e ativismo político. Cientificamente, essas exclusões não levariam os estudos a uma idiotia autobiográfica ou à tautologia acadêmica?10 Tipicamente brasileiro, o pajubá só poderia condizer com uma origem macunaímica, de uso carnavalesco e pleno de contradições sociais. Talvez já esteja em fermentação uma abordagem que considere seu caráter antropofágico, interessando-se mais por maneiras de ver a questão do que propriamente sua exaustão. Surgido num contexto analógico, o pajubá vem se transformando conforme – ou em contracorrente a – uma “realidade digital” líquida. A análise do discurso num quadro da teoria queer rechaça a normativização de seu estudo, o que levaria a encarar os sistemas organizacionais da análise conversacional, em que se realiza o pajubá, não “como normas para padrões de funcionamento e sim como procedimentos analíticos”, segundo Luiz Marcuschi. Bem como a(s) identidade(s) de gênero, tais sistemas deveriam, portanto, ser vistos como “processos, e não propostas normativas para fenômenos isolados”.11 Resistente sem ser essencialmente militante, podemos atribuir ao pajubá um mito de origem, para usar uma expressão levi-straussiana. Assim, a fala (e nela a impossibilidade de resiliência de um suposto estado original do mito), bem como a oralidade e a musicalidade sobre a qual se estruturam as Mitológicas – e, no nosso caso, o pajubá –, correspondem ao tratamento humano dado a esse tipo de narrativa. Não existiria um ponto de partida do mito-pajubá. Sob risco de me repetir, tomei a liberdade de reescrever seu mito de origem no começo deste artigo,12 ciente da dupla acepção dicionarizada do termo “mito”: como narrativa que um determinado grupo étnico-social atribui à sua própria origem, ou como coisa que não se supõe real, quimera. Quando se trata da origem de um falar, a “fala” se relaciona diretamente ao conceito de “mito” (μυθεομαι = “falar desinteressadamente”) e a seu contexto de transmissão oral da mitologia africana e

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(des)mi(s)tificar falares

Nas tabelas abaixo, as colunas referem-se aos aportes das línguas africanas, ao passo que a última coluna elenca os decalques pelos quais o termo passa em português. As linhas referem-se aos contexto no qual os aportes e decalques são utilizados.

aportes*

Linguagem do povo de santo, membros e adeptos do candomblé, considerada nos contextos inter e intragrupal

decalque**

IORUBÁ

FON

BANTO

português

ebo

vo

mboozo

oferenda

ebó

ebó

bozó

despacho

Linguagem popular da Bahia

ebó

ebó

bozó

despacho

Linguagem do português do Brasil em geral







despacho

Linguagem do pajubá e de seus falantes em geral

ebó

ebó



comida ou despacho (refeição, comida de santo no candomblé ou a oferenda em si)

aportes*

Os termos “ebo”, “vo”, “mboozo”, que querem dizer “oferenda” em português, sofrerão um decalque e passarão a significar, nos diversos níveis de fala, “despacho”. O pajubá incorporará “ebó” como “despacho”, “refeição” ou “comida”; já “bozó” não foi incorporado ao pajubá.

decalque**

IORUBÁ

FON

BANTO

português

ìlé

hukpème

(u)nzo

templo

Linguagem do povo de santo, membros e adeptos do candomblé, considerada nos contextos inter e intragrupal

ilê

rondemo

unzó

terreiro

Linguagem popular da Bahia







terreiro

Linguagem do português do Brasil em geral







terreiro

Linguagem do pajubá e de seus falantes em geral

ilê





apartamento, quarto, casa, moradia

aportes*

O termo “ilê” do iorubá se mantém no pajubá não na forma original “ìlé”, mas de acordo com a mudança fonética empregada nos níveis religiosos e populares “ilê”. No caso do português, o conceito de “templo” passa a adquirir o significado de “habitação”, “apartamento”, “moradia” etc.

decalque**

IORUBÁ

FON

BANTO

português

Ajeum

Mdudu

Kudia

o-de-comer

Linguagem do povo de santo, membros e adeptos do candomblé, considerada nos contextos inter e intragrupal

Ajeum

Mdudu

Kudia

o-de-comer

Linguagem popular da Bahia







o-de-comer

Linguagem do português do Brasil em geral









Linguagem do pajubá e de seus falantes em geral

Ajeum





comida, refeição, fome

A mesma preservação do termo iorubá “ajeum” ocorre no pajubá. Além de preservar o significado original de comida e refeição (como “ebó”), pode também significar, mais raramente, “fome”.

*O aporte linguístico (do francês apport) é quando uma língua, neste caso o português, utiliza e incorpora uma unidade e traço linguístico (palavra ou som) que existia em um outro falar – neste caso, africano, nas línguas iorubá, fon e banto – até então inexistente na língua de chegada. **Decalque (do francês calque) é quando ocorre uma tradução a uma língua, neste caso, o português, de uma palavra pertencente a uma outra língua, neste caso as africanas acima citadas.

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amigue e seu plural não flexionado “as amigue” ou “azamigue”, que sofre até uma alteração de pronúncia à maneira carioca de pronunciar: “azamiguesh”. Pode ter derivado de uma fórmula escrita que se impõe como norma para o combate ao sexismo: “Carxs amigxs”. Morfologicamente, o singular sexualmente correto não seria o “o”– designador masculino, nem o “a”– designador feminino, mas um “e”. De fato, também constata-se a ocorrência “Cares amigues”.

equê que em pajubá significa “mentira”, “engano”, “truque”, passa a ganhar o aporte “equezeiro” e a ser empregada também como adjetivo.

cudiá um processo semelhante de aporte também acontece em formas verbais banto, conjugadas em português: “cudiá” = “correr” e “cudiô” = “correu”, ou ainda “cufá” = “morrer” e “cufô” = “morreu”.

aquendar o verbo-coringa “aquendar” passa a ganhar afixos do português (“desaquendar”) e flexões verbais (“aquendou”, “aquendava” etc.). Lembramos que o verbo “quendá”, provável origem de “aquendar”, significa “andar”, “partir” e “viajar”.

ni do falar do preto-velho, figura arquetípica falante de fragmentos do extinto dialeto crioulo das senzalas, de origem banto, o pajubá tem em comum, além de ideofones e muxoxos (a exemplo de nasalizações forçadas nas últimas sílabas, gritinhos e outros elementos extralinguísticos como gestos), a preposição “ni” empregada em vez do “em” normativo, que traz como ironia ou afeição uma maneira de falar considerada humilde, da mesma maneira que o apagamento do “d” ao pronunciar gerúndios, típicos dos santos incorporados.

Entretanto, a suposição de que a letra “e” designaria uma suposta neutralidade de gênero (e não o gênero gramatical de certas línguas) é problemática. A ideia de masculino está mais impregnada na língua do que se imagina. O masculino não é marcado na desinência “o”, mas na ausência dela, o que muitas vezes revela que o masculino se exprime pelo “e”. A característica do masculino seria a ausência de flexão específica, enquanto o feminino é caracterizado por “a”. Por isso, supor que o “e” apresentaria a solução para linguagem epicena, sexual e genericamente correta seria contraditório.

No pajubá encontramos nos aportes lexicais das línguas africanas não somente termos fixos, mas também decalques e locuções frasais em escala menor, por exemplo “já-começa”, que encontramos na Aurélia como “manja-rola” e “mona-ocó”, expressões essas também frequentes nos falares africanos do Brasil, como “bom-dia-jabum”, entre outras.

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(des)mi(s)tificar falares

do circuito eminentemente oral do qual se propagou. Essa oralidade se associa ao humor em léxicos fantasiosos, embora esclarecedores, que se propõem a informar por meio da forma de compêndio sem descartar o humor inerente ao pajubá. De qualquer maneira, teríamos que partir não do mito de origem, mas de um possível mito de origem. O léxico do pajubá, como seu mito de origem, viaja através de significados. Assim, remetendo ao estudo de De Castro, “ebó” (= “oferenda”) adquire o sentido de “feitiçaria”; sua variante baiana “bozó” ganha conotação pejorativa pelo cristianismo. Em pajubá, designa “comida de santo”, a oferenda em si e às vezes simplesmente “comida”. Já o vocábulo “ilê”, significando primeiramente “templo”, passa a significar “apartamento” ou “moradia” em pajubá.13 Observamos então uma divergência desses termos litúrgicos no âmbito urbano trans, que hoje é compreendido mais extensamente pelos chamados “simpatizantes”. Sua oralidade – escrita ou falada – dialoga com universos populares brasileiros, dos terreiros aos clubes, e se repropaga, transformada. O extinto blog Katylene e microblogs de figuras como Johnny Luxo são exemplos. Transformando o pajubá, agem ironicamente sobre os impasses do mundo digital e sua linguagem. Satirizam discursos propagandísticos e autopublicitários de blogueiros e celebridades mainstream, apropriando-se de seus discursos, contradizendo-os em humor escrachado, questionando gêneros e sexualidades. Denunciam com ironia a hegemonia da língua inglesa e o exagero de seu uso (e ideologia) por meio de anglicismos absurdamente grafados, como em “dya/dia” ou “rykah/rica”. Assim, a crueza sexual e o lirismo bandido do pajubá fertilizam-se numa realidade outra. Enfim, podemos sugerir que a afirmação de Peter Sloterdijk se faz ainda mais verdadeira: o ser humano é mente, a mente é língua. E língua/ser humano seriam então análogos a estruturas biológicas, ou melhor, às problematizações e à liquidez bastante novas das sociedades tecnológicas pós-consumistas da atualidade.14 Daí a necessidade de considerar uma não rigidez linguística que condiga com a mesma não rigidez de gêneros partindo, por exemplo, de um “translinguismo”.15 Que esse não se realize apenas entre as línguas, mas na língua e como língua. Se a língua portuguesa no Brasil foi africanizada,16 o pajubá é evidência autêntica desse processo. Qual será o seu papel nos falares gays para um questionamento sobre as operações de sexo e gênero – identitário e gramatical – da língua e na língua?

castro ,

13 pessoa de

op. cit., p. 109.

14 “[...] o ser humano

é mente (Geist), isto é, ele é língua, e a língua é sempre uma retirada do instinto, retirada da unidade com a circunstância biológica e necessariamente distância da primeira natureza, entre os seres humanos e evidentemente sempre um abismo maior, que é rompido através da ordem simbólica e que também através da reunificação da fantasia não pode ser equilibrado [...]” (Tradução livre de conferência dada no instituto Fronteiras do Pensamento. Disponível em: . Acesso em : 24 fev. 2017). 15 “Finding their meaning

only in this blending. Production among species. I write about what matters most to me, in a language that doesn’t belong to me”  (preciado , Beatriz. Testo Junkie: Sex, drugs, and biopolitics in the Pharmacopornographic era. Nova York: The Feminist Press, 2013). Preciado se refere, na verdade, ao conceito de “monolinguismo do outro”, cunhado por Derrida (Le Monolinguisme de l’autre, ou la prothèse de l’origine. Paris: Galilée, 1996).

16 pessoa de castro ,

op. cit., p. 119-120.

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referências Paul. Polari: The Lost Language of Gay Men. Londres: Routledge, 2003. derrida , Jacques. Le Monolinguisme de l’autre, ou la prothèse de l’origine. Paris: Galilée, 1996. kehdi , Valter. Morfemas do português. São Paulo: Ática, 1990. livia , Anna; hall , Kira. “É uma menina”: a volta da performatividade à linguística. In: ostermann , Ana Cristina; fontana , Beatriz (orgs.). Linguagem, gênero, sexualidade. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. marcuschi , Luiz A. Análise da conversação. São Paulo: Ática, 1986. pessoa de castro , Iêda. Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2001. (Coleção Topbooks) preciado , Beatriz. Testo Junkie: Sex, drugs, and biopolitics in the Pharmacopornographic era. Nova York: The Feminist Press, 2013. silva , Vagner Gonçalves da. Cantar para subir: um estudo antropológico da música ritual no candomblé paulista. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2017. sloterdijk , Peter. O que separa o ser humano da natureza. Disponível em: . Acesso em : 24 fev. 2017. vip , Angelo; libi , Fred. Aurélia: A dicionária da língua afiada. São Paulo: Editora do Bispo, s. d. baker ,

Régis Mikail Abud Filho Nasceu em São Paulo, onde viveu intensamente a noite paulistana. Daí seu interesse pelo pajubá e suas modificações. Concluiu seu mestrado em Literatura Comparada na Freie Universität Berlin e recentemente doutorou-se em Literatura Francesa pela Université Paris-Sorbonne.

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chega de manhattans Je an-F ra n ço i s P ro s t

Pensamentos, observações e explorações durante uma residência em São Paulo Ao chegar a São Paulo, somos logo atingidos pela coabitação de diferenças no centro da cidade: sem-tetos, toxicômanos, clubbers, transgêneros, vendedores ambulantes e imigrantes, entre outros que estão sempre se acotovelando, evoluindo em proximidade num mesmo espaço bastante denso.

Jean-François Prost, No more Manhattans, 2017 As citações presentes na obra são conversas com agentes imobiliários em escritórios de venda de condomínios no centro de São Paulo.

 ovos projetos imobiliários: N a cidade genérica No entanto, ao caminhar pelas ruas de São Paulo, apesar dessa pluralidade evidente, eu via constantemente grandes prédios residenciais em construção e vários escritórios de vendas desses condomínios. Conjuntos de apartamentos em copropriedade, devidamente fechados e cercados de seguranças, com nomes em inglês como Urban Resort, Downtown e Vibe. Esses projetos imobiliários promovem uma vida completamente diferente, ao mesmo tempo globalizada e genérica, desvinculada de quaisquer referências específicas a São Paulo. Oferecem a promessa de uma vida melhor, cosmopolita, confortável, moderna, privilegiada e sem incômodos, além de responder

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ao crescente desejo nutrido por alguns de fazer parte de um mundo progressista e móvel, sem pertencimento cultural e destacado do real – muitas vezes bastante duro e complicado. Fiquei muito perplexo diante das imagens de folhetos promocionais distribuídos gratuitamente nas ruas, tamanho o contraste e o afastamento da vida real das ruas da cidade. Foi logo depois dessas primeiras impressões que decidi visitar os escritórios de vendas, para me permitir fazer algumas observações que compartilho aqui. Por intermédio dessa ação furtiva, eu desejava encontrar os promotores imobiliários e ouvir seus argumentos de venda para descobrir como falam dos projetos, de determinados bairros e do Centro de São Paulo como um todo. Ao longo dessas visitas e ouvindo as apresentações deles, o que me chamou atenção foi a ausência ou total evacuação – como acontece nos folhetos publicitários – do contexto urbano bastante rico e complexo no qual estão ancorados esses projetos de novos empreendimentos. Penso naquelas regiões da Luz, Vila Buarque e República1. As referências à cidade eram unicamente associadas à sua arquitetura ou ao patrimônio construído, sem vínculo com a população residente. É desolador constatar que ainda estamos nesse ponto – na mesma casa do tabuleiro de onde saímos – após todo o debate pós-moderno acerca do urbanismo e a crítica aos grandes programas modernistas que procediam por tábula rasa. Isso não quer dizer que os 1​Ou, mais precisamente, as ruas ao redor da República que compõem o antigo reduto da vida gay de São Paulo.

vendedores não tenham opinião sobre os bairros, apenas que preferem não falar a respeito, para evitar abordar realidades contextuais e assuntos mais delicados. Era somente quando eu lhes fazia perguntas sobre o bairro – obrigando-os a se afastar da charlatanice bem trabalhada – que eles começavam a evocar algumas particularidades. Isso nos propulsava a um universo totalmente outro, mais subjetivo, que permitiu revelar as consequências inconvenientes desse tipo de empreendimento imobiliário.  rquitetura de divisões/ A proximidade e construção do comum A maioria dos novos prédios em construção em São Paulo, mesmo aqueles que dão para o Minhocão e para a praça da República, terá seus jardins privados cercados de muros vidrados. Essa “arquitetura murada” criará uma divisão entre a vida da rua e a vida protegida e exclusiva dos edifícios. Assim, os contatos espontâneos com o outro e com os não moradores serão limitados. A partir desses jardins vidrados no nível da rua, será possível simplesmente observar a vida exterior, sem participar dela de verdade. O muro de vidro, agora privilegiado na arquitetura como meio de separação, oferece diversas vantagens: cria uma barreira sonora e uma proteção contra a poeira, mas, acima de tudo, permite uma vista ininterrupta e sem obstáculos, ao mesmo tempo que oferece mais segurança do que a tradicional grade. Essa perspectiva do espaço público e sua diversidade – vista através de uma tela de vidro – leva a pensar na experiência

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“imersiva” vivida num jardim zoológico ou num aquário, quando assistimos à vida de espécies animais com as quais não temos nenhum contato físico. A maioria dos novos prédios residenciais de São Paulo oferece também varandas bem altas que permitem admirar e tirar proveito da cidade em escala macro – mas bem longe das realidades do micro e dos detalhes do real com todos seus dissabores (odores, sujeira, barulhos e excessos). Esses prédios são concebidos para proteger os moradores da experiência da cidade de São Paulo e de seus imprevistos – acasos esses que, para mim, fazem a riqueza do lugar.  iversidade perdida: o caso D de outras cidades no mundo Compartilhei minhas preocupações e observações acerca desses novos empreendimentos com várias pessoas (ativistas, artistas, arquitetos etc.). Vários deles me afirmaram que São Paulo era uma cidade diferente, tolerante e de convivência, onde as pessoas sabiam viver juntas ali apesar de suas diferenças. É verdade que eu mesmo tinha observado que São Paulo se parece um pouco com Toronto ou com outras cidades globalizadas pelo mundo. Todavia, às vezes nos esquecemos que várias cidades, como Paris, Londres, Hong Kong e principalmente Manhattan, eram muito diferentes antes, ou seja, mais inclusivas e diversificadas, menos elitistas. Em menos de trinta anos, Manhattan se transformou completamvente numa ilha do 1%, reservada quase exclusivamente a uma elite cada vez mais afortunada.2 Depois do êxodo massivo ru­ mo à periferia no final dos anos 1970,

No More Manhattans

Manhattan se tornou – ao contrário do que é hoje – um lugar poroso e acessível por sua profusão de espaços a preços módicos.3 Essa época foi bastante propícia à experimentação e à criatividade, como é o caso de São Paulo. Apesar do otimismo ou da esperança de alguns, a especificidade cultural do Centro de São Paulo vem sendo ameaçada por essa uniformização neoliberal na mesma medida que foi em Manhattan. A esperança será insuficiente para conservar a pluralidade que já está em risco. Será que os novos residentes que chegam aceitarão aqueles que já estão lá? Como podemos salvar São Paulo desse mesmo processo mundial de transformação, que asseptiza e neutraliza as cidades do mundo para transformá-las em novas Manhattans?  lgumas pistas rumo a uma A nova cidade sustentável Para reverter essa tendência de uniformização, a primeira ação – e a mais radical – seria proibir novas construções de prédios genéricos e complexos fechados e cheios de segurança, impondo uma moratória. Geralmente sou contra proibições, no entanto, não dá para ignorar que às vezes elas são necessárias e vitais. Não podemos ser sempre otimistas e acreditar que as

2 ​Em Manhattan, o preço recorde de compra é de 19 mil

dólares por metro quadrado – espaço mínimo para acomodar um corpo em posição vertical –, o que torna as habitações inacessíveis para a maioria dos cidadãos.

3 Assim como Manhattan e outras cidades das Américas, São Paulo foi seriamente atingida por um êxodo do centro rumo às periferias. Esse fenômeno de migração, comumente chamado de “efeito donut”, deu-se principalmente nos anos 1970 e 1980.

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coisas evoluirão de maneira orgânica rumo ao bom caminho. Alguns programas arquitetônicos (planejamentos, jardins e equipamentos privados) deveriam ser pura e simplesmente proibidos, pelo bem-estar coletivo. Os empreendimentos imobiliários atuais de São Paulo criarão bolsões de riqueza que, progressivamente, vão sufocar a cidade e contribuir para marginalizar ainda mais determinados grupos de cidadãos. Gradualmente, os serviços oferecidos aos citadinos serão orientados a apenas responder às necessidades dessa nova classe média, o que acabará limitando as escolhas aos demais. Pois mesmo que alguns conservem suas moradias em determinados setores gentrificados, logo ficarão isolados e em situação precária, ao passo que os comerciantes e os outros moradores partirão em debandada. Por mais que a maioria das minhas intervenções artísticas, de acordo com o ponto de vista teórico adotado, possa ser considerada construtiva ou relacional e tenha a participação e a colaboração como modus operandi, penso que a situação de São Paulo não deixa de convocar ações que operem de maneira distinta, sem propor nenhuma troca. Seriam mais como táticas ou obras críticas que revelam a atual situação

4 Essa visita inacreditável, inesquecível e muito inspiradora

me sacudiu e me deu momentaneamente vontade de abandonar meu cotidiano (meu apartamento, meus pertences) para começar uma vida nova e totalmente compartilhada com os outros, em plena solidariedade e ajuda mútua.

5 Orquestrada pela Frente de Luta por Moradia (flm ), a ocupação se apropriou desse prédio que estava abandonado havia dez anos, situado à rua Álvaro de Carvalho, no Centro da cidade.

alarmante e denunciam a hegemonia proposta por esses novos projetos imobiliários. Às vezes é preferível apenas dizer “não” a esse tipo de empreendimento, sem compromisso nem alternativas. Outra opção mais pragmática consistiria em regulamentar, enquadrar e repensar os programas arquiteturais que impedem a realização de projetos que acentuam as divisões espaciais e sociais. Por exemplo, deveríamos exigir que os prédios públicos oferecessem lugares acessíveis a todos no nível da rua, além de proibir jardins privados que competem com os espaços públicos existentes. Ações criativas e efêmeras poderiam agir de maneira complementar às leis vigentes de arquitetura e urbanismo. Na véspera da minha partida de São Paulo, Lua me levou para visitar uma ocupação4 que tinha acabado de ser constituída – menos de 24 horas antes – no prédio de um antigo hotel burguês que estava abandonado havia tempos e que fora totalmente apropriado por uma comunidade de cerca de 250 pessoas de gerações diversas e perfis variados (queer, lgbt, famílias, operários etc.).5 Nos últimos andares da ocupação, era possível observar os moradores abastados do prédio vizinho, que nadavam na piscina moderna e vidrada de mais um prédio genérico recentemente construído. O contraste entre os dois lugares era radical: inquietante e desestabilizador na mesma medida. Assim que os novos ocupantes chegaram, vários moradores do prédio vizinho tinham chamado a polícia para reclamar daquela presença inopinada. Será que preferiam a vista de um prédio abandonado ou de uma ruína, em vez de um edifício habitado e fer-

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vilhando de vida? Para evitar qualquer eventual conflito, os responsáveis pela ocupação tinham aconselhado a todos que fossem discretos e limitassem as trocas e interações com esses vizinhos. Entre esses dois espaços opostos, não havia nenhum lugar comum, nenhum espaço para o encontro,6 apenas uma calçada estreita que separava a rua do espaço privado e cheio de seguranças do “prédio murado”. Para ativar o encontro e lutar contra a desconfiança, propus espontaneamente que organizássemos uma refeição coletiva. A ideia era convidar esses vizinhos temerosos para visitar a ocupação, de modo que pudessem constatar por conta própria aquela energia que eu havia testemunhado. Ainda que a maioria deles fosse recusar o convite, alguns acabariam aceitando e compartilhando uma experiência

No More Manhattans

positiva com os moradores do prédio vizinho. O importante era criar um contato direto entre esses dois grupos de moradores tão distintos e evitar o uso de intermediários. Como mencionado por Michael Hardt em entrevista sobre divisões espaciais,7 essas situações precisam de ativadores, ações que permitam transgredir as fronteiras, pois a proximidade não cria necessariamente uma relação e não perturba necessariamente a ordem estabelecida ou a hierarquia existente. A proximida-

6 O acesso direto a essas torres, feito de carro ou até mesmo de helicóptero, contribui para limitar ainda mais o contato com a rua e o entorno imediato. Na Cidade dos Muros (um dos tantos apelidos pejorativos de São Paulo), a segregação econômica e social é tanto vertical como horizontal. Na verdade, para limitar o contato com o chão e com o outro, algumas pessoas se deslocam quase exclusivamente de helicóptero, o que lhes permite viver uma experiência bastante fragmentada da cidade. 7 Entrevista publicada no livro Heteropolis. Montreal:

Adaptive Actions, 2013.

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de física associada à diversidade não é uma solução nem uma finalidade em si, mas é essencial desde o começo para engatilhar uma troca, para elaborar táticas de aproximação e compartilhamento que permitirão a construção de um projeto político comum. A centralidade como local de multiplicidade, encontros imprevisíveis, conflitos e negociações continua sendo uma especificidade importante a se conservar tanto em São Paulo como em outras cidades no mundo na atual era de globalização.

Jean-François Prost é artista/arquiteto que pesquisa espaços negligenciados, indeterminados, e hipercontrolados, estéreis e sem especificidades aparentes. Participou da Bienal de Liverpool, do Canadian Center for Architecture, da Bienal de Arte Madrid Abierto. Em 2007, criou a plataforma Adaptative Actions [adabtativeactions.net] que resultou na publicação do livro Heteropolis, 2013, e em ações e exposições na Bienal de Arte de Montreal, no muac (Cidade do México) e no Tokyo Wonder Site. Vive e trabalha entre Montreal e Cidade do México.

Jean-François Prost, tso (Trans Sem Oportunidade), 2016, série de fotos do projeto Acronymia. O acrônimo tso foi escolhido por Lua Lucas (na foto).

o gozo do pária: tecnologias para existir à margem [da margem estatal] Sabrina Duran

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No mundo capitalista, a pessoa em situação de rua é o paradigma do pária, indivíduo entendido como descolado do sistema. No mundo capitalista, o pária é a existência dissonante. Em todos os sentidos e sempre. Está à margem de todos e de tudo. Com sua indigência, avilta a ideia de progresso. Com sua magreza, contraria o imperativo da saciedade. Com a sua pele opaca e seca, ferida pelas intempéries, pelas agressões e pela doença, explicita a impossibilidade de ter sempre à mão a cura numa cápsula. Seu caminhar lento e sem rumo − ou sua vida na horizontal pelas calçadas, soleiras e canteiros − grita que o tempo não é dinheiro, mas desperdício. O pária se refestela no gasto da vida com horas e horas improdutivas. Nada sai das suas mãos nem do seu engenho. Por isso mesmo, o pária não acumula, porque não tem o que acumular – a não ser, é claro, a culpa de malgastar o rico tempo sem produzir nada que não seja preguiça e indisciplina. O pária é a materialização da fraqueza, do fracasso social e material, da irremediável miséria que, nele, atingiu níveis profundos, sistêmicos, difíceis – ou quase impossíveis − de serem revertidos. Esse é o pária visto pelo lado de fora, pelos olhos domesticados pelo capitalismo, que distinguem, a partir dos ideais do mercado, o que é bem-estar e o que não é; o que se deseja e do que se sente repulsa; o bom e o mau no universo normativo, o dentro e o fora do sistema. O fora que é dentro Mas o pária está, sim, inserido no capitalismo, e não à margem, fora. Sua inserção é promovida pelo Estado e dentro dele, como afirmação de uma “ausência”: onde o Estado não está, é isso que acontece, é nisso que as pessoas se transformam. É justamente nessa margem que não é borda, mas centro, que o Estado se coloca; não deixando morrer, mas fazendo viver precariamente é onde se materializa sua versão dissimulada e [mais] cruel. Apresenta-se por uma espécie de ausência calculada. E isso é necessário para que o pária, enquanto tal, seja constituído como beneficiário de políticas públicas sociais precárias que o tornam dependente das fontes mínimas de recursos e provisões paliativas que o Estado lhe oferece. Essas políticas quase nunca atingem a raiz dos problemas que fazem o pária ser pária − segundo a régua capitalista −, pois é assim que ele deve ser: precarizado e dependente. Dessa forma, com parcos recursos, o pária dificilmente conseguirá se autonomizar e deixar a

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marginalidade criada pelo Estado para diferenciar quem conseguiu “chegar lá” e quem ficou pelo caminho. E assim ele é mantido, em primeiro lugar, como mão de obra barata e cativa para o mercado, pacificada e disciplinada pelo poder público. Em segundo lugar, como exemplo daquilo que homens e mulheres podem vir a ser − o horror, o horror − se não frequentarem e aplicarem à própria vida a catequese do capital. Mas essa é, ainda, a visão do pária do lado de fora de si mesmo, o pária como fraqueza necessária à reprodução do sistema capitalista. Do lado do pária, a perspectiva pode ser outra. Ali não há sistema, e ele poderia (uma possibilidade, apenas) prescindir daquilo que o subjuga. Essa potência se atualiza, precisamente, quando se rebela contra as políticas de pacificação e disciplinamento do Estado, quando se recusa a ser precarizado e capitalizado por elas. E quando o pária admite para sua vida o gozo da existência à toa, vagabunda, quando flana pela cidade desfrutando-a sem que se requeira nenhuma mediação monetária, guiado pelos desejos do ventre, do coração e da mente, desvinculado de qualquer imperativo de produção, acumulação ou aproveitamento capitalista do tempo; quando o pária existe, quando se autonomiza e não mais se submete às exigências da precariedade institucional, como pretende o Estado, então ele se torna insolente, estranho, alienígena ao sistema e, portanto, disruptivo, contra-hegemônico, anticapitalista. Torna-se uma ameaça, desde dentro, às estruturas que estão fora dele e que tentam atravessá-lo. E é aí que ele “precisa” ser retirado de circulação e isolado. O sistema prisional é seu segundo modo de vida projetado pelo Estado. Inverter as chaves de análise O objetivo deste texto é propor questionamentos capazes de subverter, de modo contínuo e crescente, as chaves de análise da cidade capitalista por meio da realidade do pária, na busca por estratégias anticapitalistas contidas nas brechas desse sistema. O primeiro questionamento é: Por que a visão do pária como um ser irremediavelmente fraco? A quem interessa essa construção de uma pessoa que precisa ser sempre, e para sempre, tutelada? Essa condição de necessidade da tutela é inata ou é uma criação política? Por que não o pária como um forte, autônomo, como alguém que pode falar? E mais: Seria possível olhar, sem estremecer, julgar ou enojar-se, para alguém cujo corpo míngua em alguma calçada da cidade e, no entanto, também goza? Quais são as tecnologias do pária não submetido às políticas de sujeição pelo trabalho precário do Estado? Como ele cria e utiliza essas tecnologias − entendidas aqui como estratégias de vida que incluem o gozo, e não apenas a sobrevida do corpo? Ele as socializa? Com quem? Em que me-

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1 foucault , Michel.

Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2005. p. 14. Disponível em: <www.nodo50.org/ insurgentes/biblioteca/A_Microfisica_do_ Poder_-_Michel_Foulcault.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2017.

2 Ibidem, p. 42.

dida é possível abstrair aspectos gerais dessas tecnologias particulares e introduzi-las como chaves de pensamento contra-hegemônico? Seria possível, como propõe Michel Foucault, “desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento”1 e estabelecer a tecnologia do pária como aparato de produção de verdade a respeito do capitalismo? Ou seja: definir e invalidar o capitalismo pelos parâmetros do pária, e não mais definir e (in)validar o pária pelos parâmetros do capitalismo?  ma breve retomada histórica: submeter a pobreza, U lucrar com ela Em Microfísica do poder, Foucault aponta que até a Idade Média, o sistema penal tinha uma função essencialmente fiscal: pelo procedimento das multas, das confiscações, dos sequestros de bens, das custas, das gratificações de todo tipo, fazer justiça era lucrativo; depois do desmembramento do Estado carolíngio, a justiça tornou-se, entre as mãos dos senhores, não só um instrumento de apropriação, um meio de coerção, mas diretamente uma fonte de riqueza; ela produzia mais um rendimento paralelo à renda feudal, ou melhor, que fazia parte da renda feudal. […] As justiças faziam parte da circulação das riquezas e da extração feudal.2

Depois, esse sistema transforma-se em uma estrutura complexa de justiça, polícia e prisão com o objetivo de combater as crescentes revoltas populares. Surge, então, um sistema antissedicioso. É um aparelho que tem, segundo Foucault, um triplo papel: “coagir o povo a aceitar o seu estatuto de proletário e as condições de exploração do proletariado”; isolar da sociedade, por meio da prisão, os “violentos” da plebe, aqueles que estavam mais prontos a passar à resistência armada, desde “o proprietário endividado coagido a abandonar a sua terra, o camponês que fugia do fisco, o operário banido por roubo, o vagabundo ou mendigo que recusava limpar os fossos da cidade”, entre outros; e

3 Ibidem, p. 50.

fazer com que a plebe não proletarizada aparecesse aos olhos do proletariado como marginal, perigosa, imoral, ameaçadora para a sociedade inteira, a escória do povo, o rebotalho, a “gatunagem”; trata-se, para a burguesia, de impor ao proletariado, pela via da legislação penal, da prisão, mas também dos jornais, da “literatura”, certas categorias da moral dita “universal” que servirão de barreira ideológica entre ela e a plebe não proletarizada […].3

Mais adiante, nos séculos xix e xx , uma certa figuração literária do jornalismo, da literatura, da medicina, da antropologia e da sociologia “do criminoso” vão reforçar esse terceiro papel do sistema antissedicioso.

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Foucault é incisivo ao dizer que tal sistema é criado, no fim das contas, para colocar a plebe proletária contra a não proletária. Com isso se engendram duas categorias: a do bom pobre (plebe proletária) e a do mau pobre (plebe não proletária), sendo a primeira a que se submete à sua condição de explorada, e a segunda aquela que se rebela contra essa condição. Ao mau pobre está reservado o isolamento social na prisão, “no Hospital Geral, nas galés, nas colônias”.4 Realizando um salto histórico, estratégia semelhante é apontada pelo sociólogo francês Loïc Wacquant ao falar do sistema penal estadunidense contemporâneo. Tendo como recorte o avanço neoliberal nos anos 1980/1990 nos Estados Unidos, de desregulamentação do mercado de trabalho, de eliminação de políticas sociais e de sua substituição destas por políticas de trabalho precarizado às quais as camadas mais pobres são obrigadas a se submeter como única fonte de acesso à renda, Wacquant aponta para o incremento massivo do sistema penitenciário como forma de pacificar e disciplinar os maus pobres (pobres rebeldes?) que não se submetem às políticas de gestão da pobreza por meio da precarização. Tanto Foucault como Wacquant identificam em suas pesquisas − cujos objetos estão distantes pelo menos quatro séculos − uma mesma necessidade: a da pacificação e disciplinamento, pelos aparelhos repressores do Estado, do pobre que se rebela contra seu “destino”, desenhado pelas classes dominantes, a ser precário. E por que não eliminar o pária de vez? Por que não deixá-lo morrer em vez de fazê-lo viver?

4 Ibidem, p. 50.

Óleo barato na engrenagem O pária, além de consequência, é parte da engrenagem capitalista − ou, o óleo barato dessa engrenagem. Wacquant fala da “industrialização do castigo” na esteira do neoliberalismo, do aprisionamento com fins lucrativos por meio da privatização das penitenciárias estadunidenses − apinhadas de negros pobres, a quem se destina o cárcere. A pobreza é útil à reprodução do capital, e busca-se a otimização da sua utilidade ao reforçar o encarceramento não apenas como um dispositivo de sujeição dos corpos pobres, mas também como um negócio lucrativo. Diz Wacquant: tais empresas, cotadas em bolsa de valores, propalam taxas recordes de crescimento e de lucro. A “nova economia” americana não é apenas a da internet e a das tecnologias de informação: é também a que industrializa o castigo. A título de ilustração, vale lembrar que as prisões do estado da Califórnia empregam duas vezes mais pessoas do que a Microsoft.5

Portanto, não se pode deixar o pária morrer, mas fazê-lo viver, visto que ele pode ser produtivo tanto na prisão como fora dela, por

5 Entrevista Loïc Wacquant: A criminalização da pobreza. Mais Humana. Disponível em: <www.uff.br/maishumana/loic1.htm>. Acesso em: 17 jan. 2017.

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meio de políticas de inserção que têm no trabalho precário um de seus principais vetores. A relação entre pária e Estado, nesse caso, é muito mais “sutil” no que se refere aos mecanismos de submissão dos corpos abjetos. É preciso que esses corpos existam, mas de forma controlada. Uma das maneiras de fazer isso institucionalmente é eliminando, pela via da disciplina e da pacificação, as tecnologias anticapitalistas que fazem o pária ser o que é segundo os cânones do mercado. Contra a maldição do trabalho, a salvação da preguiça Visto de forma sistêmica e inserido na estrutura do modo de produção capitalista, o pária, quando indisciplinado e não pacificado pelo Estado, não produz, não acumula e não se regula pela ficção de tempo eficaz e lucrativo criada pelo mercado. É ele, o pária, quem cria suas próprias tecnologias de fruição do tempo e do espaço tendo como critérios de utilidade dessas tecnologias suas necessidades mais elementares: comer, dormir, evacuar, descansar, passear, flertar, distrair-se, sonhar, transar, gozar e permanecer vivo. Sendo assim, o pária não apenas se descola dos pilares do sistema de produção capitalista, como também os nega com sua simples presença improdutiva. Nesse sentido, ele é uma ameaça ao Estado e ao capital, não só por não ser um produtor/consumidor, mas por ser um corpo abjeto vivo que pode servir de modelo de rebeldia e contestação a outros corpos abjetos. Nesse sentido, uma das principais vias de neutralização dessa tecnologia rebelde é, precisamente, o trabalho. Não é à toa, portanto, que grande parte dos programas estatais destinados à população em situação de rua tem como pilar do processo de reinserção social a realização de algum trabalho com remuneração mínima − praticamente simbólica e nem sempre complementada por políticas de habitação, saúde, alimentação, lazer, atenção psicossocial e outros itens básicos ao bem-estar. Atribui-se ao trabalho um papel importante, quase único, de ressocialização, segundo aquilo que se tem por modelo de pessoa inserida na sociedade capitalista: a pessoa que trabalha de maneira estável, que produz, que se mantém com seus próprios rendimentos, que socializa esses rendimentos com a família por meio da aquisição de bens e serviços, que acumula o que economiza como fonte de renda futura; aquela que volta a trabalhar, produzir e acumular e que utiliza seu tempo nessa tarefa cotidiana com o objetivo de, um dia, não precisar mais realizá-la e gozar os frutos da produção economizada e acumulada ao longo de anos e anos de sacrifício. Em relação ao pária, o trabalho, seja qual for − desde que “honesto” − é evocado toda vez que se quer demonstrar sua dignidade como pessoa mesmo apesar de sua condição de pária: “Fulano vive na

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rua, mas trabalha, não precisa pedir”. Ouve-se inclusive da boca do próprio pária a suposta virtude do trabalho como pedra de toque da sua dignidade humana: “sou pobre, moro na rua, mas trabalho”. A questão que colocamos é: sendo o trabalho, na sociedade capitalista neoliberal, um poderoso dispositivo de disciplinamento e pacificação usado pelo Estado para neutralizar as tecnologias anticapitalistas do pária (antiprodução, antiacumulação e antitempo capitalista), ele poderia ser também garantia de um bem viver para quem, como a pessoa em situação de rua, está mais vulnerável às opressões e à espoliação do mercado de trabalho? E mais: se estamos falando da força marginal do pária como potência contra-hegemônica, anticapitalista, não seria fundamental analisar tal potência onde ela se objetiva, ou seja, não no não trabalho, mas na vivência plena, consciente e ativa da preguiça? Se o pária burla as regras, contorna aparatos disciplinadores e afronta os cânones do capitalismo, não estaria ele contribuindo para a desaceleração da máquina a médio prazo e, a longo, para sua extinção? Para dar mais alcance a essa pergunta, citamos uma reflexão de Michel Foucault: a humanidade não progride lentamente, de combate em combate, até uma reciprocidade universal, em que as regras substituiriam para sempre a guerra; ela instala cada uma de suas violências em um sistema de regras, e prossegue assim de dominação em dominação. É justamente a regra que permite que seja feita violência à violência e que uma outra dominação possa dobrar aqueles que dominam. Em si mesmas, as regras são vazias, violentas, não finalizadas; elas são feitas para servir a isto ou àquilo. Elas podem ser burladas ao sabor da vontade de uns e de outros. O grande jogo da história será de quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las, utilizá-las ao inverso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto; de quem, se introduzindo no aparelho complexo o fizer funcionar de tal modo que os dominadores encontrar-se-ão dominados por suas próprias regras.6

Este texto não pretende dar respostas concretas, mas, antes, iniciar um exercício de questionamento e de um pensamento utópico, ou melhor, de um pensamento com o horizonte de uma “heterotopia”, definida por Foucault como uma “utopia situada”, de um contraespaço que questiona e afronta o espaço hegemônico. Trata-se de transformar não apenas o pensamento, mas a forma de pensar. Para melhor inverter a chave das ideias e seguir caminhando pelo revés, pode ser frutífero considerar que não é com base na fraqueza do pária que queremos enxergar suas tecnologias e encontrar seu núcleo contra-hegemônico. É, antes, com base na força ignominiosa e horrenda da sua preguiça improdutiva

6 foucault , Michel,

op. cit., p. 25.

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e destituída de qualquer horizonte de acumulação, da sua insolência em relação ao aproveitamento do tempo, do seu corpo abjeto (uma heterotopia viva e móvel?) que contorna os imperativos do mercado. Esta reflexão pelo avesso parte da força do pária que flana e goza pela cidade.

referências das , Veena; poole ,

Deborah. State and its margins: comparative ethnographies. Anthropology in the margins of the State. Santa Fe: School of American Research Press, 2004. Disponível em espanhol: <www.scielo.org. ar/pdf/cas/n27/n27a02.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2017. entrevista Loïc Wacquant: A criminalização da pobreza. Mais Humana. Disponível em: <www.uff.br/maishumana/loic1.htm>. Acesso em: 17 jan. 2017. foucault , Michel. O corpo utópico, as heterotopias. São Paulo: n-1 edições, 2013. __________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2005. p. 14. Disponível em: <www.nodo50.org/insurgentes/biblioteca/A_Microfisica_do_Poder_-_Michel_Foulcault.pdf>. Acesso em: 17 jan. 2017. __________. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. spivak , Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora ufmg , 2014. wacquant , Loïc. Os condenados da cidade: um estudo sobre a marginalidade avançada. Rio de Janeiro: Revan, 2005. ____________. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

Sabrina Duran É jornalista e dedica-se à escrita de perfis de pessoas anônimas e à cobertura das áreas de direitos humanos e urbanismo. É autora do livro Mulheres centrais e do blog eua V otam, para o site Opera Mundi. Realizou reportagens especiais a partir da Bolívia, Colômbia, Argentina, Inglaterra, França, Estados Unidos e de mais de sessenta cidades brasileiras. Em 2013, criou o projeto jornalístico Arquitetura da Gentrificação, que mapeia o processo de higienização social no centro da capital paulista.

lar, memória e resistência: reflexos e reflexões sobre mercado imobiliário, homossexualidades e o “tradicional bairro gay” da cidade de São Paulo Bruno Puccinelli

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1 Esses dados foram

levantados pela Relatoria Especial para o Direito à Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas (onu ), em 2015.

2 macrae , Edward. Em defesa do gueto. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 53-60, abr. 1983. 3 silva , José Fábio Bar-

bosa da. Homossexualismo em São Paulo: estudo de um grupo minoritário. In: green , James; trindade , Ronaldo (orgs.). Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo: Editora da Unesp, 2005. (O texto original é de 1958, mas foi publicado somente em 2005). 4 Termos êmicos que se referem à homossexualidade, sendo que “entendido” se aproxima mais da ideia de “gay” masculino, viril e “bem -resolvido”, enquanto os termos “bicha” e “viado” enfatizam a efeminação e são mais pejorativos. Curiosamente, estes últimos se mantêm no léxico das ruas, enquanto o termo “entendido” é cada vez mais raro de ser ouvido.

Estima-se que a cidade de São Paulo, considerada por vezes a primeira metrópole mundial por seu aglomerado populacional, tenha um déficit habitacional de 230 mil moradias, segundo levantamento da onu .1 Há cerca de dez anos, esse levantamento apontava quase 190 mil moradias, ao passo que o município contava com 403 mil domicílios vagos em seu tecido urbano. Apenas com esses dados, poderíamos dizer que, caso houvesse uma política direcionada à moradia social em São Paulo, esse déficit seria zerado. Em 2005, se todos os domicílios vagos tivessem sido ocupados, teríamos casa sobrando. Obviamente, numa estrutura que propicia o incremento de crédito imobiliário para aquisição de novas unidades, aliado à redução de impostos para insumos da construção civil, os dados sobre o déficit têm servido para justificar o levantamento de mais e mais torres residenciais direcionadas à classe média e à valorização de certas regiões. Dentre elas, a região central tem despontado como um espaço densamente povoado, mas cuja valorização tem trazido novos empreendimentos e moradores após trinta anos de esvaziamento, ao mesmo tempo que promove uma expulsão sistemática de contingentes populacionais de baixa renda. Esse cenário não é novo. Nesse contexto, gostaria de discutir em que termos as novas moradias disputam com as antigas ocupações o sentido de estar “gay” no centro, fenômeno geralmente arrolado à noção de gentrificação. Parto de dois recortes de pesquisa, que apontam um território de conflito, em que as ações do mercado e do poder municipal têm deslocado as possibilidades de cada ator social avançar nessa disputa.  ma certa explosão de comportamento homossexual: U Boca do Luxo, Boca do Lixo e gueto Quando o antropólogo Edward MacRae descreveu o “gueto homossexual” de São Paulo,2 em 1983, já se contavam 25 anos da primeira pesquisa3 que descrevia algumas circulações de “entendidos”, “bichas” e “viados”4 pela região central e zonas boêmias. No começo da década de 1980, São Paulo já se assemelhava a Nova York ou San Francisco no olhar de MacRae, e os arredores da praça da República e do largo do Arouche “passaram a gozar de uma liberdade sem precedentes [na virada de 1979 para 1980]. Nesses lugares, o beijo entre pessoas do mesmo sexo, o segurar nas mãos, o exibi-

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cionismo dos travestis tornaram-se rotineiros, chegando a um ponto considerado intolerável para certos setores da sociedade”.5 Região de concentração de bares, saunas, casas noturnas e da sede do primeiro grupo de defesa dos direitos gays e lésbicos – o Somos – se tornou foco de ações de repressão pela polícia da expressão pública de afeto homossexual. Encabeçadas pelo delegado José Wilson Richetti na Operação Rondão e apoiadas pela grande mídia, as táticas de repressão podem ser exemplificadas pela arbitrariedade de solicitar carteira de trabalho em mãos a quem parecesse suspeito. Nessas ações, não apenas homossexuais, travestis e prostitutas foram presos sem motivo, mas também desempregados estudantes e artistas que porventura caminhassem na região. As contradições do período de reabertura política após os anos da ditadura civil-militar demonstram o aumento da visibilidade e o conflito com uma sociedade conservadora. Data de 12 de junho de 1981 a primeira passeata contra a operação do delegado, mesmo dia em que o editorial de um jornal de circulação nacional6 indicava a ineficácia de Richetti em controlar a presença desses públicos, apenas fazendo com que circulassem. O jornal apontava parte das preocupações de certa elite residente em bairros próximos à região central com o deslocamento de pessoas que manifestassem suas homossexualidades nas vizinhanças. Mesmo tomando a ideia de “gueto homossexual” como uma forma descritiva e aproximativa à realidade estadunidense, o antropólogo Néstor Perlongher fez duas ponderações importantes: primeiro, não há na região concentração de moradias nem propriamente estabelecimentos geridos e destinados a homossexuais; segundo, há diferenças de circulação em termos de classe, raça e definições da homossexualidade masculina que traçam fronteiras entre espaços vizinhos, como a praça da República e o largo do Arouche.7 Este último, local de restaurantes franceses e italianos, cafés e edifícios residenciais, foi chamado por Perlongher de Boca do Luxo, em contraposição à Boca do Lixo, lugar de roubos, tráfico de drogas e prostituição. No Arouche, portanto, circulariam e morariam pessoas de classes mais altas. A epidemia de aids, juntamente às operações policiais, como já relatado, gerou um esvaziamento da região nos anos 1980. O centro, lugar de visibilidade homossexual crescente, passou a ser marcado também como o lugar (social) da doença. A crise econômica, o desemprego, o aumento do número de moradores de rua na região, de assaltos, de uso e tráfico de drogas, a sujeira e o perigo formaram o cenário ideal para que, nas duas décadas de 1980 e 1990, houvesse um abandono residencial pelas classes médias. O deslocamento da

5 macrae , op. cit.,

p. 55.

6 Trata-se do jornal

Folha de S. Paulo.

7 perlongher , Nestor.

O negócio do michê: a prostituição viril em São Paulo. 2. ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008.

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importância financeira da região para a avenida Paulista ajudou a operar o discurso da degradação e do abandono e, consequentemente, da necessidade de revitalização e recuperação por meio de reformas e outros usos de antigas edificações. Esse é o tom que ações voltadas para o centro darão às necessidades locais na década de 1990: a região abandonada necessita de novas atrações para novas atenções. Precisa, inclusive, alterar o perfil de moradia, alterar o perfil de compra e comércio, diversificar as circulações.

8 O salário-mínimo

vigente na época, era de R$ 880,00.

 ormitórios de luxo: 28 m² de privacidade, modernidade e D diversidade Se, por um lado, a região da República foi sendo desvalorizada e abandonada pelas classes médias ao longo dos anos 1990 (o que não significa que estivesse vazia ou sem moradores), por outro, há um processo mais geral de “retorno à cidade” que propicia um incremento populacional também acima da média da cidade ao longo dos anos 2000. Nos últimos quinze anos, por exemplo, tivemos o lançamento de cerca de trinta empreendimentos imobiliários nos arredores, algo inexistente desde a década de 1980. Esse processo, obviamente, não começou do nada. Nos anos 1990, houve a reorganização do movimento lgbt após o impacto da aids e a organização e o crescimento das Paradas do Orgulho na cidade de São Paulo. Em menos de uma década, a manifestação saltou de pouco mais de mil participantes para 600 mil no percurso que transcorre a avenida Paulista e termina na praça da República. Outros espaços de concentração de estabelecimentos direcionados a homossexuais foram criados e desfeitos, mudaram e começaram a retornar ao centro nesse período. No largo do Arouche, em 2016, sobe a pleno vapor o mais novo prédio residencial. Com unidades a partir de 28 m², o edifício se apresenta como localizado num lugar de diversidade e tolerância, oferecendo a possibilidade do encontro e da surpresa, mas visando garantir todas as necessidades do comprador no próprio empreendimento, conforme me relatou o supervisor de vendas do empreendimento, reafirmando o descrito nos materiais de divulgação. Ou seja, a diversidade e o encontro passam pelo filtro da possibilidade de compra. Com um metro quadrado a 10 mil reais, não é qualquer pessoa que pode acessar a privacidade das paredes desse edifício.8 O subtítulo deste texto, contudo, não diz respeito a esse empreendimento, apesar de parecê-lo. Trata-se de uma carta aberta da Federação Nacional de Turismo (Fenactur), com sede no Arouche, di-

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Imagens presentes nos folhetos de propaganda dos edifícios.

rigida ao então prefeito Fernando Haddad. Datada de janeiro de 2014, a federação expõe algumas preocupações sobre os frequentadores da praça, bem como solicita ações da prefeitura para coibir comportamentos considerados inapropriados: Constantemente, a sua prefeitura vem realizando benfeitorias no largo e que rapidamente são destruídas pelos “sem-teto” e tribos gls 9 [sic], que frequentam o local e o transformam em seus dormitórios, banheiros e motel a céu aberto. Recentemente foram colocados maravilhosos troncos de árvores, que logo viraram “dormitórios de luxo”. Hoje, o largo do Arouche é um lugar decadente e que deve ser evitado.

O discurso da Fenactur segue a fórmula que solidificou a imagem do centro perigoso e do Arouche como moralmente decadente. É curioso como a Federação parece desconhecer que as ações da prefeitura visam valorizar e reconhecer a presença histórica e a memória lgbt . A reforma dos canteiros, a melhoria na iluminação e a colocação de bancos desenhados a partir de troncos de árvores – os tais “dormitórios de luxo” – se destinam a quem justamente deveria ser coibido. E são essas pessoas que têm mantido o Arouche como uma das principais referências da resistência na cidade.

9 “gls ”, termo atualmente em desuso e ligado ao mercado dirigido a homossexuais, tornou-se popular nos anos 1990 e significa “gays, lésbicas e simpatizantes”.

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10 Algo entre as gangues de rua e as “famílias de escolha” pesquisadas por Kath Weston.

Um lugar chamado lar: resistência e permanência Um dos interlocutores da pesquisa, que aqui chamarei de Eliel, morador da periferia, 28 anos de idade, atualmente desempregado e que tem intenso trabalho na militância lgbt jovem e periférica, caracteriza o largo do Arouche – por eles denominado Vieira – como uma casa, um lar. E numa casa deve-se ter respeito com quem é de lá, não se pode fazer tudo ou mesmo achar que sabe mais sobre ele do que seus moradores. Eliel se tornou uma das principais lideranças da região, atuando em grandes grupos de jovens definidos como famílias lgbt ,10 que têm mudado o perfil de atuação nas ruas e nas vidas de seus membros. Ele conta, por exemplo, como as famílias lgbt se confrontavam por prestígio na Vieira a partir de diferentes disputas, que poderiam incluir agressões verbais e físicas, e como essa atuação tem mudado para formação política e debates sobre hiv . Numa conversa sobre a Vieira e como algumas ações da prefeitura no sentido de manter a presença institucional com trailers de divulgação do Centro de Cidadania lgbt , também têm ajudado a afastar esses jovens, Eliel reflete sobre a importância do espaço da cidade e dos usos que as famílias têm feito do largo. A família na qual atua, atualmente com 250 membros, tem se destacado na mídia por meio de denúncias de agressões e discriminação contra lgbt s. Não só membros das famílias, mas outros jovens gays, lésbicas, bissexuais e travestis contavam quase 1.500 presentes todos os domingos, o dia escolhido como ponto de encontro e diversão no largo. Esses jovens, portanto, figuram como parte das preocupações das pessoas e empresas circundantes, como a Fenactur. Por outro lado, a presença deles representa uma espécie de atestado da diversidade que atrairia possíveis compradores das unidades residenciais que estão sendo construídas. Há, aqui, dois movimentos em colisão, um de aproximação e outro de distanciamento com base em diferentes concepções da homossexualidade masculina.

À esquerda, um domingo comum de encontro dos jovens. À direita, um protesto contra a homofobia, ocorrido em fevereiro de 2014.

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lar, memória e resistência

A praça aparece como decadente e perigosa a partir de um olhar externo a ela; já para as famílias e outros frequentadores, trata-se de um lar, um lugar de refúgio e segurança para se estar com os seus. Não é, contudo, essa a residência que pretende ser vendida, e não interessa ao mercado que seus frequentadores façam parte dos futuros moradores. Temos então algumas fronteiras simbólicas concretas que separam um “gay” ideal dos sujeitos que circulam pelo “bairro gay tradicional”. Nos últimos cinco anos o Arouche tem sido construído como esse “bairro gay” pelos empreendimentos do mercado, se assemelhando a outros lugares do mundo, como o Castro, em San Francisco, ou a Chueca, em Madri. É isso, mas não só isso. É isso porque há uma memória da presença homossexual e da resistência contra a opressão policial ao longo dos anos. O “bairro gay”, contudo, pode também ser aproximado das tentativas de expulsão e limpeza da praça. Temos como principal exemplo as formas como o mercado imobiliário se utiliza da ideia de diversidade para se aproximar do público consumidor, mas se afasta do público presente no Arouche, formado principalmente por jovens das periferias urbanas cuja quase totalidade não teria condições de adquirir quaisquer dessas unidades. As fotos de casais heterossexuais, jovens, loiros e brancos ou a utilização de uma linguagem que maneje ideias de ser “moderno” e “cosmopolita” indicam um afastamento e uma negação de grande parte das pessoas que efetivamente circulam pela região. Relatos de corretores de imóveis que afirmam expulsar públicos indesejados como travestis e moradores de rua através de seguranças privados é a forma mais concreta desse afastamento. Além disso, nenhum desses jovens está ou será representado pelo mercado imobiliário. Com base na escritora feminista bell hooks podemos ensejar algumas interpretações sobre a forma como as famílias e outros frequentadores da periferia têm simbolizado o Arouche/Vieira como uma casa. Como descreve Eliel, é no largo que certas noções de luta política e resistência são gestadas ao lado dos encontros, paqueras e conversas. É numa relação entre jovens, que resistem às ações mais institucionalizadas, que o lar se constrói como lugar de segurança e aprendizado, ao mesmo tempo que é foco de depreciação por parte de outros grupos com outros interesses. Outro contexto é tratado por hooks, com base em seu trânsito por residências de mulheres negras, lugares de resistência, em oposição ao feminismo branco, que concebia o espaço doméstico como politicamente neutro ou opressor, e como o caminho é marcado pelos olhares reprovadores dos brancos. Ela traz pontos interessantes sobre o contexto de produção do lar no espaço público urbano a partir da presença dos jovens citados, em especial numa das primeiras passagens de seu artigo “Homeplace: a site of resistance”, de 1990:

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11 hooks , bell. Homeplace: a site of resistance. Yearning: race, gender, and cultural politics. Boston: South End Press, 1990.

Essa tarefa de compor um lar não era apenas uma questão de mulheres negras prestando serviço; era a construção de um local seguro onde pessoas negras pudessem se afirmar umas às outras e, ao fazer isso, curassem muitas das feridas infligidas pela dominação racista. [...] foi em um desses “lares”, muitas vezes criados e mantidos por mulheres negras, que tivemos a oportunidade de crescer e nos desenvolver, de nutrir nossos espíritos.11

Os jovens homossexuais frequentadores do Arouche/Vieira certamente não são os mesmos oprimidos pela polícia, como na década de 1980, tampouco estão alocados na Boca do Luxo ou são os “gays” que o mercado prefere. Não são eles que gentrificam a região, por exemplo. Eles são parte dos que fazem do largo um lar e o concebem como espaço de resistência e memória.

referências Isadora Lins. Consumindo lugares, consumindo nos lugares: homossexualidade, consumo e subjetividade na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro: Eduerj/ Clam, 2012. hubbard , Phil. Cities and Sexualities. Nova York: Routledge, 2012. johnston , Lynda; LONGHURST, Robyn. Space, Place, and Sex: Geographies of Sexualities. Nova York: Rowman & Littlefield Publishers, 2010. perlongher , Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril. São Paulo: Perseu Abramo, 2008 [1987]. sabsay , Leticia. Fronteras sexuales: espacio urbano, cuerpos y “democracia sexual”. Buenos Aires: Paidós, 2011. frança ,

Bruno Puccinelli Finalizo doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e tenho me dedicado a debater a questão urbana a partir de gênero e sexualidade com especial foco aos conflitos gerados a partir da presença homossexual no espaço público. Faço parte de uma rede de pesquisadores e pesquisadoras ativistas que também se dedicam a pensar gênero e sexualidade no Brasil e em outros países.

o hiv no fundo do armário lgbtq

Carué Co n trei ra s

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Não pertencimento, incompreensão ou exclusão ativa. Essas são as sensações que tive ao passar a frequentar os espaços políticos lgbtq após um tempo entre militantes do campo do hiv . Demorei a ter clareza sobre as razões para isso. Tenho 37 anos, sou um homem cisgênero, gay, queer, branco, de classe média e vivo com hiv há seis anos em São Paulo. Ainda não tinha completado minha libertação como gay – embora efusivo na rua, era ainda “discreto” no trabalho – quando o chão se abriu e caí em uma nova categoria de exclusão e nova crise de autoaceitação. ~Volte dez casas na sua trajetória de emancipação pessoal~ Depois de anos isolado e regredido em termos de medos e inseguranças, consegui me libertar do autoestigma, impulsionado por alguns privilégios. Então, me aproximei das lgbtq . Cheio de amor para dar. Feliz com minha superação em curso. Disposto a expandir meus limites de cis gay assimilacionista e a contribuir para o debate sobre minha vivência com hiv . As discussões eram novas e interessantes. Foi entre lgbtq que me inteirei de discursos que legitimavam e expandiam meus desejos e afetos. Mas nada se dizia sobre as mediações que o hiv traz para sexualidade, amor e amizade de todos nós. Entre lgbtq , encontrei suporte para as minhas expressões de gênero variantes. Entretanto, a informação de meu status sorológico causava desconforto ou pena. Pude exercitar a difícil superação de minha transfobia, machismo, racismo e classismo. Mas encontrei, em geral, tamanha falta de empatia, que o estigma relacionado ao corpo vivendo com hiv nem consta na lista de desconstruções esperadas dos militantes. Nem consideram a possibilidade dessa opressão quando enumeram os privilégios de um homem cisgênero branco gay – e a ignoram também no caso dos mais excluídos. Entre lgbtq , vi a questão da violência sendo enfrentada corajosamente. Mas vi ignorado o fato de que a aids é de longe o principal meio pelo qual a lgbtq fobia estrutural e social se desdobra em morte e incapacidade. A minha discussão não estava em pauta. Estranho, afinal, na minha idade, um em cada quatro gays vive com hiv . Eu estava acostumado, no movimento de hiv , a ver o assunto ser esmiuçado em

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diversos aspectos, de direitos humanos a políticas públicas, de patentes a sexualidade. Um documento emblemático e histórico desse silêncio é o relatório da última Conferência Nacional lgbt , de 2016. São somente cinco menções ao termo hiv em 126 páginas. No relatório de uma reunião que só ocorre a cada quatro anos. Nossa. Nos eventos lgbtq , quando raramente aparece, o hiv vem com um viés de renúncia de protagonismo, um lugar de mero receptor de prescrições de especialistas. Como se hiv fosse só um tema “de saúde” (lembrem-se de que as pessoas trans também eram, antigamente, somente objeto de especialistas). Isso quando não há uma ativa resistência a incluir o tema e dar protagonismo a pessoas vivendo com hiv . Por que será que isso acontece? Será a famosa “falta de informação”? Como será que lgbtq brasileiros conseguem, em 2017, conciliar esse silêncio – um elefante que está no meio da sala mas que ninguém vê – com toda a afirmatividade que é nossa ação política primordial e de que tanto nos orgulhamos? O como essa conciliação ocorre, na verdade, não é surpresa. Um complexo fenômeno psicossocial de recalcamento e negação no qual lgbtq têm expertise. Desde cedo aprendemos a ocultar aquilo que aos outros parece abjeto. E melhor o fazemos quanto mais acreditamos no que os outros acham. Durante séculos, lgbtq também recorreram a essa normalização do segredo de sua sexualidade e identidade de gênero. E assim seguiram adiante, acomodando culpa, vergonha e as necessidades de subsistência e segurança. A evolução histórica se reflete nas nossas trajetórias pessoais. Só conseguimos publicizar aquilo que nos obrigam a manter no privado quando, criticamente, percebemos que essa obrigação é injusta e sem sentido. É a tomada de consciência da lgbt fobia. Se hoje lgbtq ostentam bandeiras e tomam na marra os espaços públicos, os que vivemos com hiv continuamos nos encontrando em locais sem placa na porta e usando pseudônimos. O estigma relacionado ao hiv é tão pervasivo e consensual quanto era a homofobia décadas atrás. Tem conotações semelhantes à lgbt fobia, como a noção de perversão e descontrole, gerando desprezo e ódio. Mas os símbolos adicionais de doença, morte e contágio provocam ainda outros sentimentos: medo e pena. Entre lgbtq , normalizamos o segredo do hiv encarando o tema como “de saúde” ou “íntimo”. O porquê do silêncio de lgbtq sobre o hiv , portanto, é o fato de que o meio político lgbtq está atravessado pelo estigma relacio-

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nado ao hiv . Sendo uma condição ocultável, cuja mera menção pode acarretar um estigma, a vivência com hiv desaparece. O hiv como assunto desaparece. O silêncio é só um sintoma de um estigma tão intenso que impede o próprio reconhecimento e sua inclusão como pauta – como também ocorre com o racismo e outras opressões. O estigma silencia inibindo o protagonismo de militantes lgbtq que vivem com hiv . Calam-se, seja porque ainda são prisioneiros do duro autoestigma ou por pragmáticas considerações sobre as perdas sociais decorrentes de uma revelação pública de seu status. A verdade é que os espaços políticos lgbtq não são espaços seguros para pessoas que vivem com hiv . Quase não há espaços seguros para nós. Outro protagonismo silenciado é o do vulnerável ao hiv – os negativos que poderiam discutir criticamente e enfrentar as razões sociais dessa vulnerabilidade. Um militante de hiv encontra dificuldades para romper o silêncio, mesmo num espaço lgbtq . As discussões que tenta inserir geralmente não encontram empatia ou ressonância. Mas a forma mais agressiva de silenciamento é o esforço velado ou descarado de dissociar hiv e lgbtq . Alguns setores procuram se afastar daquilo que possa comprometer sua imagem, em busca de assimilação por uma sociedade disposta a poucas concessões. É uma postura expiatória, higienista e altamente estigmatizante, que lembra a exclusão das populações trans pelo mainstream cisgênero gay. Essa atitude se baseia em um entendimento acrítico e apolítico da epidemia do hiv – e no fenômeno psicológico individual e coletivo de negação. As consequências políticas e sociais da reprodução do estigma relacionado ao hiv por lgbtq são devastadoras. O estigma imobiliza a luta lgbtq diante de uma das principais injustiças. Quando lgbtq compram e reproduzem o estigma, compram também o discurso lgbt fóbico que o embasa: o hiv como mera questão de responsabilidade individual por comportamentos desviantes. Isso despolitiza a epidemia ao mascarar o fato de que é justamente a exclusão lgbt fóbica a principal razão de gays terem 24 vezes – e mulheres trans e travestis 49 vezes – mais chances de adquirir hiv do que a ~população geral~. Dessa forma, o movimento lgbtq abre mão de enfrentar essa relação política entre opressão e doença – cuja face mais violenta é a mortandade passada e presente. Só em 2015, mais de 3 mil homens gays ou bi morreram no Brasil em decorrência da aids. Quanto disso podemos pôr na conta da lgbt fobia? Quanto disso não poderia ser chamado de genocídio?

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Mas não é só a lgbt fobia que media a incidência de hiv e aids entre nós. O estigma é um fator independente de adoecimento e morte. Quando o reproduzimos – e quando reproduzimos transfobia, machismo e racismo –, estamos indiretamente contribuindo para a morte de lgbtq por causa da aids. O autoestigma compromete ainda a emancipação lgbtq como um todo. Reprime a tomada de consciência, regride processos de emancipação individual e coletiva, despolitiza. O autoestigma aprisiona os sujeitos em processos de culpa e vergonha. É um processo semelhante ao que, por anos, manteve lgbtq domesticados. A vivência com hiv é uma fratura dentro do movimento lgb tq , como também o gênero, a identidade de gênero, a raça, a classe social etc. Uma fratura, porém, que não se pode descrever como uma dicotomia clássica de ausência ou presença de um privilégio. Se, de um lado, é certo que pessoas vivendo com hiv sofrem uma imensa opressão, do outro, a situação tampouco é muito boa: vulneráveis atormentados que, ao estigmatizar e negar, tornam-se ainda mais vulneráveis. Quem sabe uma saída não estará na convergência das diferentes fraturas, que questionam, cada qual a seu modo, os limites da emancipação lgbtq ? No caso do hiv , esses limites são muito claros. Uma libertação lgbtq que não leve em conta a emancipação em relação ao hiv tem algo de falso. Romper a cis-heteronormatividade mantendo a vergonha do nosso vírus coletivo? Afirmar nossa sexualidade, mas “neurar” na cama? Lutar por cidadania sem mencionar o genocídio? Quando digo emancipação quanto ao hiv , não estou me referindo à resposta a epidemia, políticas de prevenção ou tratamento. Emancipar é dar ao status sorológico o mesmo peso que merecem ter a orientação sexual ou a identidade de gênero na vida social de uma pessoa. Ou seja, nenhum. É algo que não depende de técnicos do Estado, mas do nosso protagonismo como lgbtq .

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Carué Contreiras Médico sanitarista, ativista e educador comunitário na Unidade de Pesquisa do Centro de Referência e Treinamento em dst /aids de São Paulo.

ternura radical ternura radical é ser crítico e amoroso, ao mesmo tempo ternura radical é entender como utilizar a força como uma carícia ternura radical é saber acompanhar-nos entre amigos e amantes, em diferentes distâncias e velocidades ternura radical é escrever este texto, ao mesmo tempo, em dois continentes longínquos ... na mesma cama escrevendo ao acariciar ternura radical é saber dizer “não”

é carregar o peso de outro corpo como se fosse teu ...é compartilhar o suor com um desconhecido ternura radical é dançar entre corpos dissidentes em uma oficina ... é estar exaustos e manter o sorriso e a festa ternura radical é deixar-se olhar,deixar-se levar ternura radical é não colapsar frente às nossas contradições ternura radical é não permitir que os demônios existenciais se convertam em cinismos permanentes é não ser sempre as mesmas, os mesmos, xs mesmxs é encarnar In Lak’ech… porque tu és meu outro eu e vice-versa

ternura radical é não temer o medo ternura radical é viver amor efêmero é inventar outras temporalidades ternura radical é abraçar a fragilidade é enfrentar a neurose dxs outrxs com criatividade ternura radical é encarnar gestos performativos que normalmente rejeitarias ternura radical é assumir a liderança quando a tua comunidade te pede que o faças, mesmo que não saibas o que fazer, nem como fazê-lo!

u m ma n i fes to v i v o es cri to p o r Da n i d ’E mi l i a e Da n i el B . Ch á v ez

1 Ternura radical é um termo que tem sido utilizado como parte da pedagogia de La Pocha Nostra nos últimos dez anos. Como pedagogos e perfomers integrantes de La Pocha, queríamos honrar este termo e sua utilização em projetos pelo mundo através de uma tentativa de elaborar o seu significado para nós dentro e fora do coletivo. Este manifesto é uma primeira tentativa neste sentido.

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ternura radical é emprestar tuas tripas aos outrxs é vestir a boceta dx tua/teu amante como bigode é arriscar-se a amar na contramão ternura radical é acreditar na arquitetura dos afetos é encontrar-nos nos músculos mais próximos do osso é acreditar no efeito político dos movimentos internos ternura radical é não insistir em ser o centro da atenção é ter visão periférica,acreditar no que não é visível ternura radical é fazer do tremor um baile e do suspiro um mantra é dissentir com máximo respeito ... é transitar em espaços que não entendes

ternura radical é aceitar o ambíguo é não pensar só à volta do teu umbigo é romper com padrões afetivos, sem expectativas claras ternura radical é compartilhar sonhos, loucura sintonizar, não só empatizar é encontrar uma galaxia nos olhos dx outrx e não deixar de olhar é ler o corpo dx outrx como um palimpsesto

Dani d’Emilia e Daniel B. Chávez São artistas de performance, ativistas transfeministas e integrantes do núcleo duro de La Pocha Nostra. Desde que se conheceram em 2011 têm colaborado em diversos projetos transcontinentais de performance e de pedagogia, acompahando-se a partir de um espaço de afeto erótico-político que atravessa os campos da arte-vida.

ternura radical é canalizar energias irresistíveis e convertê-las em encarnações indomáveis é ativar a memória sensorial é reconhecer x outrx por seu cheiro

ternura radical é sentir a possibilidade em cada dúvida é deixar-se atravessar pelo desconhecido ternura radical é dar a um narcisista a chance de acoplar-se, ou repensar-se ternura radical é acariciar espinhxs ternura radical é conviver com a falta é encarar as coisas de frente, com o carinho de quem as quer ver é sustentar-se a partir de lugares diferentes, mesmo que nem todos sejam ‘bonitos’ ternura radical é um conceito apropriável e mutante

ternura radical é algo que não é preciso definir1

território, cultura e memória lgbt+: o patrimônio cultural como abordagem para a busca do direito à cidade

Fer n a n d a Ro ch a d e O l i v ei ra L arissa d e Ca rv a l h o Na s ci men to M ar ia n a K i mi e Ni to

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1 silva , José f. b.

Aspectos sociológicos do homossexualismo em São Paulo. Sociologia, v. 21, n. 4, 1959.

2 Ver: <www.change.org/

Arouche>.

3 Ver: < http://g1.glo-

bo.com/globo-news/ estudio-i/videos/t/ todos-os-videos/v/ projeto-oferece-oficinassobre-o-universo-dragqueen-no-sesc-de-sao -paulo/5125901/?utm_ source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=gnews#>. Acesso em: 28 jun. 2016.

4 Ver:
depesquisaeformacao. sescsp.org.br/atividade/ memoria-lgbt-no-centronovo-de-sao-paulo>. Acesso em 01 set. 2016.

5 Ver: < http://www.cida-

dequeer.lanchonete.org/>.

6 O Minhocão é uma via

elevada inaugurada em 1971. Seu objetivo na época era ser uma solução viária: fornecer um trânsito rápido na região central ligando as zonas oeste e leste. Os 2,8 km do elevado estão assentados em vias já existentes margeada por edifícios.

As cidades são compostas de diferentes tipos de territórios, organizados espontaneamente (como o agrupamento de pessoas de acordo com seus gostos e temperamentos1) ou não (como nos casos de processos de embelezamento e renovação urbanas – também chamados de “limpeza” urbana –, que impõem novas formas de uso dos espaços). Ambos os tipos de organização são passíveis de mudanças ao longo do tempo, gerando novas reterritorializações. Em São Paulo, pode-se dizer que as sociabilidades atreladas aos modos de vida lgbt + geraram, há décadas, demarcações espaciais de territórios, sobretudo nas regiões do Arouche e República, e da Paulista e Frei Caneca (silva , 2013, p. 23). Embora tenha havido, no período da ditadura militar brasileira, tentativas de expulsão dessas comunidades, elas conseguiram resistir nesses espaços, atrelando a eles suas relações identitárias. Atualmente, grupos lgbt + que mantêm ou herdaram uma ligação do seu modo de vida com o território têm se apropriado de discursos e mecanismos para lutar pelo direito à cidade. A região do Largo do Arouche, por exemplo, tem ganhado crescente notoriedade dentro das políticas públicas municipais por ser um dos territórios com maior representatividade lgbt + em São Paulo. Diversas atividades têm ocorrido em prol de uma sensibilização quanto à memória de grupos ali atuantes, tais como: as mobilizações para permanência e aumento da quantidade de bandeiras que simbolizam o movimento lgbt +;2 a realização de oficinas sobre o universo drag queen3; oferta de curso para percorrer espaços de sociabilidade e resistência lgbt +;4 e a proposição de debates diversos sobre o Direito à Cidade a partir da possibilidade de vivência urbana fora de uma lógica normativa.5 No entanto, apesar dessa ocupação combativa e propositiva, as práticas socioculturais lgbt +, e de outros grupos sociais também vulneráveis, acabam sendo invisibilizadas nas políticas urbanas. Isso ocorre, por exemplo, no caso do Minhocão (Elevado Presidente João Goulart),6 vizinho ao Largo do Arouche. Embora a via elevada tenha sido objeto de discussões desde sua implantação devido aos inúmeros conflitos urbanos e sociais que gerou (desvalorização do mercado imobiliário, barulho, poluição do ar, etc.), o movimento de baixa dos aluguéis na sua faixa lindeira resultou em uma ocupação popular da região e, em alguns casos, aproximou os moradores do

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território, cultura e memória lgbt+

seu lugar de trabalho.7 Por conseguinte, o próprio comércio da região muda de perfil e se torna mais popular. Logo, a construção do Minhocão estruturou uma série de outros usos e apropriações (de caráter social, econômico e artístico) que ressignificaram esse espaço e demarcaram novas territorialidades. Apesar disso, as propostas que têm sido elaboradas, visando a minimizar os impactos urbanos negativos desse empreendimento, ignoram as territorialidades vulneráveis surgidas a partir de sua implantação. A vulnerabilidade pode ser atribuída, em grande medida, a dois fatores principais: os rumos da política urbana municipal e o processo de especulação imobiliária. No primeiro caso tem-se, como principal fato deflagrador, o artigo 375 do Plano Diretor de São Paulo de 2014 que, consolidando o Minhocão como “fracasso” urbanístico,8 dá um prazo para que o tráfego de veículos seja nele desativado e aponta, dentre as propostas para a sua destinação futura, a sua demolição ou transformação em parque público. O segundo fator de vulnerabilidade tem relação com o primeiro, já que a possibilidade de desativação ou de transformação do elevado em parque está causando interesse imobiliário, fazendo surgir, em sua faixa lindeira, novos empreendimentos que vendem a perspectiva de transformação local. O problema dessa aposta imobiliária reside na alteração do valor do metro quadrado, conforme Carrapatoso (2015):

7 Graças às análises das uit s (Unidades de Informações Territorializadas), constatou-se o crescimento de grupos com menor renda (até 3 s.m.), de 2000 a 2010 nos entornos do Minhocão. Em alguns bairros, esse crescimento foi responsável por uma mudança do perfil socioeconômico, já que os grupos mais pobres constituem a maioria dos domicílios (República, 45% e Campos Elíseos, 51%). Ver: . 8 O Minhocão está inserido em um amplo projeto de “revitalização” do centro de São Paulo que ocorre desde 1990, com a participação do setor imobiliário e do poder público.

Os aluguéis que, antes, abarcavam um público de classe média-baixa (grande parte dos moradores da área central), hoje miram na classe média-alta, se não classe alta. Vários lançamentos imobiliários mesmo próximos ao Minhocão também estão com a linguagem de que agora é um ótimo momento para “investir” em imóveis na região. “Investir!”. Não é morar, viver, ou o que for, mas sim “investir”.

Esse tipo de discurso gera questionamentos sobre qual modelo de cidade se quer construir. A mudança que está em pauta tem gerado uma valorização imobiliária que afasta a população de baixa renda, cujas relações sociais estão ali historicamente demarcadas, construindo um processo de gentrificação9 na região. É preciso questionar quais grupos estão sendo atendidos pelas transformações urbanas pretendidas, pois o processo de gentrificação ignora a pluralidade cultural que surgiu ao longo do Elevado, a exemplo dos inúmeros grupos sociais que ali atuam: a comunidade lgbt + no Largo do Arouche, as rodas de samba no Largo Santa Cecília, os coletivos de atuação artística etc. Se o direito à existência passa pelas espacialidades conquistadas, estas ocupações são, sobretudo, políticas e devem ser consideradas nas discussões sobre a região.

9 O conceito de gentrificação utilizado diz respeito à diferenciação do espaço geográfico a partir de um ideal de vida imposto que desconsidera o que já existe no local. Ver conceito de “fronteira” em smith , Neil. Gentrificação, a Fronteira e a Reestruturação do Espaço Urbano. geousp – Espaço e Tempo, São Paulo, n. 21, 2007, p. 15-31..

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10 O grupo é formado pelo Movimento Baixo Centro (coletivo que, até 2014, usou o Minhocão para a realização de atividades culturais autofinanciadas) e por profissionais vinculados à Repep (rede que atua na interface entre educação e cultura e que, desde 2011, compartilha experiências práticas e reflexões conceituais no campo da educação patrimonial). Ver: e

11 Ver: . 12 Ver:
gov.br/portal/images/stories/PDFs/politicas_sociais/referencia_2.pdf>.

Frente a essa problemática, o Grupo de Trabalho Baixo Centro da Rede Paulista de Educação Patrimonial (Repep)10 vem trabalhando no Inventário Participativo Minhocão Contra a Gentrificação, cuja preocupação central é com a permanência dos grupos sociais mais vulneráveis na região, pois com a valorização do local e o consequente aumento do custo de vista, a expectativa é de que eles sejam os primeiros a serem expulsos. O Inventário tem por finalidade o reconhecimento da diversidade de referências culturais existentes na região, de modo a subsidiar a construção de um conjunto de argumentos e informações que sejam base para se contrapor aos processos de gentrificação. Desse modo, é compreendido tanto como uma ferramenta política (pois trata-se de uma estratégia de mobilização social), quanto como um instrumento educativo (pois vem sendo pensado como forma de construção mútua de aprendizado). A elaboração do Inventário está fundamentada em uma metodologia desenvolvida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).11 Faz uso do conceito de referência cultural,12 que diz respeito à não universalidade do patrimônio cultural, e também à sua multiplicidade simbólica, na possibilidade de sua ressemantização e nas diferentes formas de sua apropriação. Sendo o Inventário criado pelas comunidades, a elas caberá decidir como interpretar e proteger suas referências e manifestações culturais. A partir da demarcação e do estudo de um território, a aplicação do Inventário tem por premissa a identificação dos bens e práticas culturais, assim como dos sujeitos sociais que com ele se identificam. Com isso, para o estudo da região do Minhocão, primeiramente foi feita uma leitura do território, a partir dela foram identificados

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território, cultura e memória lgbt+

cinco diferentes grupos13 mais vulneráveis aos efeitos da gentrificação, dentre os quais está a comunidade lgbt +. Considerando a diversidade das relações sociais e de referências culturais da comunidade lgbt + enraizada nesse território, foram considerados como componentes desse grupo social: moradores locais; frequentadores habituais que têm forte identificação cultural com a centralidade da região Arouche-República (muitos deles, moradores da periferia da cidade); trabalhadores do sexo (prostitutas, michês e dançarinas de boates); trabalhadores das atividades complementares do comércio do sexo (das boates, bares, saunas, sex-shops, casas de show, hotéis); turistas que não se enquadram no uso habitual, mas que encontram na região um ponto tradicional de visitação. Embora a pesquisa esteja em andamento, foram identificadas algumas referências culturais, que serão reavaliadas e construídas com os diferentes grupos sociais. Seguem abaixo algumas referências que exemplificam as possibilidades de ligação da comunidade lgbt + com o território, organizadas em cinco categorias: 1.  lugares – espaços onde se concentram ou se reproduzem práticas culturais coletivas. Podem ser importantes por serem parte do cotidiano, das crenças e do trabalho dos grupos sociais; Templos do Prazer14 Rede de estabelecimentos ligados à promoção e ao fomento de atividades associadas à expressão livre do estilo de vida lgbt +. São casas noturnas (ex: Danger Club, Rego Freitas 355), cinemas (ex: Cine Arouche), saunas (ex: Chilli Pepper), sex-shops e outros; Largo do Arouche Frequentado desde 1950 pela comunidade lgbt +, é considerado um local de resistência devido às perseguições a grupos de travestis e transexuais. Hoje, o Arouche ainda abriga encontros de pessoas que queiram explorar sua identidade cultural e sexual; 2.  celebrações – festas e rituais feitos para marcar vivências e datas relativas a trabalho, entretenimento, religião ou outras práticas sociai; Parada Gay Organizada desde 1997 por um grupo de ativistas lgbt + de São Paulo, surgiu similar a um pequeno bloco de carnaval. Com o passar dos anos, essa manifestação cultural e artística cresceu e, de acordo com os seus organizadores, já chegou a ter mais de 5 milhões de participantes;

13 Os cinco grupos são: trabalhadores/moradores mais pobres do centro, imigrantes, comunidade lgbt +, trabalhadores da cultura e moradores em situação de rua.

14 A terminologia “Templos do Prazer” foi adotada considerando que esses lugares intrinsecamente ligados à cultura lgbt + possuem significados para além de locais de festa, mas de congregação, que devem ser respeitados. Ver: .

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3.  expressões – são as formas como cada grupo comunica e expressa a sua cultura, podendo ter sentido religioso e/ou de protesto social; Pajubá Vocabulário próprio lgbt + para designar diferentes ações e situações comuns em sua vivência. Possibilita a comunicação interna dos grupos de modo secreto e favorece a identidade cultural. Tem raízes diversas, sendo uma mistura entre o português e expressões vindas do vocabulário africano; 4.  saberes – modos de fazer e conhecimentos sobre técnicas ou materiais, ofícios tradicionais e aqueles enraizados no cotidiano dos grupos sociais; Montagem das drags A montagem envolve penteado, figurino, maquiagem e habilidades de performance. Porém, essa prática não se restringe apenas à apresentação como alguém do sexo oposto, mas também requer o aprendizado de técnicas de dublagem e de criação de um personagem com sua própria identidade e personalidade. Em muitos casos, esse processo é transmitido entre as drags de diferentes gerações; 5.  edificações – construções relevantes para além de seu aspecto físico-arquitetônico, mas associadas a representações e narrativas sociais, a móveis integrados e a relevantes usos que nelas podem ser desenvolvidas; Banheirão da República Com frequentadores prioritariamente de classe baixa e com a atuação de michês na Praça da República, o antigo banheiro público da área era usado como ponto de encontro na década de 1960. O banheiro se localiza no subsolo da praça, no entanto, atualmente está fechado para uso. Mesmo que os resultados ainda sejam parciais, a identificação das referências culturais lgbt + no território do Minhocão já traz uma amostra de elementos que necessitam ser visibilizados e considerados diante das possíveis transformações do espaço. Seja demolição, conversão em parque ou qualquer outra intervenção que possa ali ocorrer, é necessário inserir essas referências culturais na discussão sobre o destino da estrutura. Considerando que a cidade nunca foi um território neutro, o modo desigual de (re)produção citadina é um dado a ser explorado nas reflexões sobre a melhor forma de intervir no espaço urbano. Com isso, defende-se que o uso do Inventário contribuirá para construção

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da cidade de forma democrática a partir das referências culturais, porque busca garantir a representação dos diferentes grupos sociais existentes em um dado território. Ressaltando a importância de se pensar as preexistências como projeto de futuro, muitas possibilidades de ações podem decorrer do Inventário do Minhocão, tais como a salvaguarda da cultura imaterial e a proteção do território (que podem ser utilizadas para conter a valorização do metro quadrado na região). Outras políticas públicas podem se somar a essas como forma de manter no território os grupos sociais, a exemplo das Zonas Especiais de Interesse Social, de Habitações de Interesse Social e de Aluguéis Sociais. Por fim, cabe ressaltar que, embora o discurso do patrimônio cultural tenha servido historicamente de álibi, em diversas experiências, para a geração de processos de enobrecimento urbano, essa é a questão que o Inventário Participativo Minhocão Contra Gentrificação problematiza. Em vez de focar as necessidades de intervenção urbana pelo viés da valorização dos objetos culturais, a defesa de uma lógica do patrimônio a partir da compreensão das apropriações sociais tangencia a discussão do direito à cidade, já que busca garantir a permanência dos grupos existentes nos territórios. Assim, é preciso reconhecer as diferenças de oportunidade no usufruto do espaço e das relações urbanas, e utilizar-se das políticas públicas como meio de promoção da equidade e da diversidade.

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referências carrapatoso , Thiago. A verdadeira

disputa entre direita e esquerda. Paisagem Fabricada [Internet], 31 maio 2015. Disponível em: . Acesso em: 02 set. 2016. silva , José f. b. Aspectos sociológicos do homossexualismo em São Paulo. Sociologia, v. 21, n. 4, 1959. silva , Marcos a . A cidade de São Paulo e os territórios do desejo: uma etnografia do Festival Mix Brasil de Cinema e Vídeo da Diversidade Sexual. Comunicação, narrativas e territorialidades, v. 16, n. 3, p. 19-43, set./dez. 2013. smith , Neil. Gentrificação, a Fronteira e a Reestruturação do Espaço Urbano. GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, n. 21, 2007, p. 15-31.

Fernanda Rocha de Oliveira Arquiteta e urbanista pela Universidade Federal da Paraíba (ufpb ) e mestre em preservação do patrimônio cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Membro da Rede Paulista de Educação Patrimonial (Repep) desde 2016.

Larissa de Carvalho Nascimento Graduanda em história na Universidade de São Paulo (usp ). Membro da Repep desde 2016.

Mariana Kimie Nito Arquiteta e urbanista pela Escola da Cidade. Possui mestrado interdisciplinar em preservação do patrimônio cultural pelo Iphan. Membro da Repep desde 2014.

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A primeira mulher negra numa capa da Vogue foi a modelo estadunidense Donyale Luna (Peggy Ann Freeman), que aparece tapando o rosto com a mão na edição britânica de 1966. A ex-primeira dama do Estados Unidos, Michelle Obama, desmunheca na sua primeira capa da Vogue eua de março de 2008. A atriz Lupita Nyong’o, nascida no México e criada no Quênia, vencendora do Oscar, não desmunheca na capa da Vogue eua em outubro de 2016. A primeira modelo negra brasileira a aparecer na capa da Vogue foi a supermodelo Emanuela de Paula (a modelo Naomi Campbell e a atriz Camila Pitanga já haviam aparecido sozinhas e outras modelos negras, acompanhadas de modelos brancas), em janeiro de 2011, em edição especial onde aparecem somente modelos negras. A revista existe no Brasil desde 1975. Na capa de janeiro de 2017, a modelo Lais Ribeiro é a primeira mulher negra a desmunhecar na edição nacional da revista. Surgida como um folhetim de moda, em Nova York no fim do século xix, a Vogue se disseminou pelo Ocidente no início do xx, como um império editorial internacional, destinado a mulheres da alta sociedade. Inclinar o pulso pra baixo – desmunhecar em português – é um gesto nobre que foi decodificado pela burguesia como feminino, frágil, a boneca como a ficção da categoria de mulher universal. Como pode-se ver tanto nas ilustrações das primeiras edições da Vogue como nas fotos, as mulheres sempre

aparecem desmunhecando, disseminando esse gesto na indústria cultural. No fim do século xix , quando Charcot inventou o corpo histérico, produziu-se a iconografia do hospital da Salpêtrière, na qual se vê, como característica da “patologia”, um desmunhecar contorcido. Na cartografia desse corpo, o gesto se repete. Como impedimento à masturbação, a histeria aparta a mão do corpo, contorcendo-a. Na capa da Vogue Paris de maio de 1967, a supermodelo, atriz e cantora britânica Twiggy (Lesley Lawson) não desmunheca no contexto da revolução sexual. Na época, a revista ganha status de “Bíblia da Moda”, quando Diana Vreeland tornou-se sua editora-chefe.

Fabiana Faleiros é poeta, performer e doutoranda em Processos Artísticos Contemporâneos na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (ufrj ).

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“Aí é que entram as mãos. O diamante chegou, engastado num anel, rodeado de guardas. Fui ao estúdio com David Bailey para tentar fotografá-lo – embora, como regra, eu jamais ia ao estúdio na época em que trabalhava na Vogue. Colocamos o diamante na melhor mão de Paris – uma belíssima garota sueca – mas era chato demais, terrível demais... vulgar demais. Estávamos em 1970. Na época não dava para mostrar a marquesa em uma mão de pele branca. O que seria preciso fazer? Devo confessar que a solução foi minha. [...] Então me ocorreu que em parte nenhuma do mundo há um veio de qualquer pedra preciosa que não tenha a ver com negros. [...] Não há nenhum veio de pedras preciosas nos locais de origens dos brancos. Não é assim? Então tive uma ideia: não a de usar uma mão negra, mas de pintar a mão branca que tínhamos – algo totalmente artificial.”1 1 Texto e imagem retirado de Glamour, de Diana Vreeland. Cosac Naify, 2011. p. 165-168

cidade lida

Thiago Hersan Raquel Parrine

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O fora é uma ficção, porque na verdade não existe o dentro, não existe uma origem à qual remontamos todas as coisas – somos produtos híbridos de elementos cuja matriz se perdeu há muito tempo, se é que um dia existiu. Somos todos exilados de cidades cujos tijolos já se desfizeram há muito tempo. De certa forma, somos todos alienígenas. Diariamente nos encontramos diante de símbolos que representam essa desterritorialidade. Eles encontram sua manifestação mais óbvia na língua, tradicional sistema de representação de diferentes matrizes, pontos de vista e dinâmicas de poder. A língua é o instrumento de imperialismo dos colonos e o de resistência dos nativos. É a língua que prova, segundo o filósofo peruano Antonio Cornejo Polar, que essa hibridização que nos constitui, na verdade, é uma heterogeneidade não dialética, ou seja, a relação entre as culturas que nos formam não é harmônica, mas representa uma disputa simbólica cujo campo de batalha é a língua. Podemos pensar a cidade como uma simbologia que se assemelha a esses aspectos complexos da linguagem de uma cultura. Segundo o escritor e filósofo inglês G. K. Chesterton, “A cidade é um caos de forças conscientes. Não há uma pedra na rua, nem um tijolo na parede que não seja uma mensagem. Como um telegrama ou um cartão-postal, cada tijolo é em si um hieróglifo...”. A cidade é um simulacro que se comunica por morfemas físicos, concretos, formando uma linguagem que é, ao mesmo tempo, incompreensível e familiar. Da cidade despertam mensagens transmitidas por meio de poemas dinâmicos; caminhos traçados formando constelações significativas em busca de outros Outros que possam distinguir os valores morfológicos dessa linguagem. Comparada com outras cidades que apresentam um planejamento urbano intencional, as linhas formadas pelas ruas de São Paulo traduzem a história da cidade, no que diz respeito às suas antagônicas políticas urbanas. Essa disputa idiossincrática se traduz cotidianamente nos caminhos involuntários, nos desvios, nas deambulações que as linhas da cidade nos obrigam a fazer. Nesses excessos de vida, localizados às margens das lógicas de produtividade, o corpo produz uma linguagem íntima com a cidade. Uma língua não intencional, secreta até, invisível, inconveniente – humana.  A relação com a cidade se dá não no entendimento desses glifos, mas em sua estética. Essa estética é a nossa energia trocada com a cidade, um pulso.

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Cidade Lida

Xidxdx Lxdx Xidxdx Lxdx é um sistema/ritual para representar e visualizar essa linguagem pós-humana construída pelas interações entre pessoas, prédios, ruas, caminhos e outros agentes de nosso ambiente urbano. É um tipo de continuação das discussões que começaram durante o Laboratório Gráfico Desviante [p. 162]: a desnormatização do design (tipo)gráfico, o colonialismo da palavra queer e as limitações de idiomas com gênero. Começamos o ritual marcando pontos afetivos em um mapa – locais relacionados ao que estamos tentando ler/compreender/representar. Os pontos podem representar uma palavra, uma frase, uma série de acontecimentos, uma rotina, pessoas ou algum outro conceito que se manifeste nas intra-ações entre humanos, cidade e linguagem. Depois, um software artesanal, criado especificamente para esse projeto, analisa os pontos e revela um glifo. Resultado de cálculos matemáticos e místicos, não estamos sugerindo que esses glifos passem a ser usados para substituir palavras, mas que possam servir como uma ferramenta que possibilite leituras alternativas de nossas relações pessoais, sociais…

Pontos que marcam lugares de importância afetiva para nós.

Glifo gerado com base nesses pontos.

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Acima pontos que representam pessoas importantes para nós; ao lado glifo gerado com base nesses pontos.

Acima pontos que representam acontecimentos importantes para nós; ao lado glifo gerado com base nesses pontos.

Raquel Parrine É doutoranda em Línguas Românicas e Literaturas na Universidade de Michigan, onde estuda filosofia e ética na literatura hispano-americana contemporânea. É ativista feminista e coeditora da Revista Raimundo, que publica novos autores lusófonos.Foi professora de literatura hispano-americana na Universidade de Brasília e tradutora de livros e filmes.

Thiago Hersan Fez graduação e mestrado em Engenharia Elétrica e da Computação na Carnegie Mellon University em Pittsburgh. Pesquisa tecnologias de fabricação de semicondutores e circuitos integrados,e trabalha com educação, arte, cultura digital e jornalismo. É integrante do coletivo Astrovandalistas, que explora o uso de tecnologia, arte, ativismo e design para ampliar as possibilidades de comunicação afetiva, e criar experiências públicas compartilhadas.

vogue no brasil: intercâmbios e apropriações

entre v i s ta co m F él i x P i men ta p or E x p l o d e! Res i d en cy

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Explode! Residency1: Félix, são muitos anos de diferença entre o surgimento do vogue nos Estados Unidos e o aparecimento dessa cena no Brasil. Como se deu essa chegada do vogue no nosso país? Como as pessoas aqui entraram em contato com o vogue pela primeira vez? Félix Pimenta: Aqui no Brasil, a dança vogue começou a chegar por intermédio de outras danças urbanas e por profissionais que tinham acesso às informações; que começaram a ir principalmente para Nova York e trazer essas referências. Então, ao mesmo tempo que muitas danças urbanas foram descobertas no começo dos anos 2000, veio essa referência do vogue e a descoberta de que aquela dança que existia no clipe da Madonna era uma dança urbana, que tinha toda uma história por trás. Ela veio com outras, principalmente o waacking, que é do início junto com o vogue, unificado. Tinha certa confusão entre os dois estilos, o que depois se resolveu e eles começaram a ser estudados separadamente. Antes, contudo, existia a referência dos vídeos e algumas pessoas que tinham acesso às informações, mas que não repassavam… algumas pessoas que são clubbers ou eram clubbers e que tinham acesso. Repassar e expandir um pouco mais sobre o vogue foi realmente com a entrada das danças urbanas, o que possibilitou que ele se espalhasse e que viessem profissionais.

E!R: A cena aconteceu primeiro em alguma cidade específica? Como essa cena se espalhou pelo Brasil? FP: A primeira pessoa com referência do vogue mesmo, brasileiro, foi o André Rockmaster.1 E a Tati Sanchis2 também, porque eles faziam esse intercâmbio com Nova York. Mas foi o André, que é daqui de São Paulo, que trouxe essa referência. O primeiro professor de vogue que veio ao Brasil foi o Archie Burnett,3 para o Festival Internacional de Dança Hip Hop de Curitiba4 em 2008 e dirigiu o primeiro curso específico de vogue. De lá, começou a se espalhar e a galera foi atrás de informações. Esse festival promove, assim como outros, um encontro entre dançarinos de vários estados que começaram a estudar a dança. Tem também a Paulinha Zaidan,5 que em 2008 (se não me engano) morou nos Estados Unidos

1 André Rockmaster é professor e coreógrafo de danças

urbanas, graduado em educação física e pós-graduado em fisiologia do esporte. Fundador da Rockmaster Party, Cia. Vertente Única e Desonestas Crew.

2 Tati Sanchis é coreógrafa e professora de dança. Formada

em educação física e dona da rede de escolas Casa da Dança Tati Sanchis.

3 Archie Burnett é avô da House of Ninja, escolhido pessoal-

mente por Willi Ninja para integrar a house. É dançarino de House e professor de vogue, waacking e Hustle.

4 O festival, que acontece desde 2002, já reuniu mais de 20

mil bailarinos e mais de uma centena de atrações internacionais. Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2017.

5 Paula Zaidan é coreógrafa, professora de vogue e stiletto e

especialista em danças urbanas desde 2004. É integrante do grupo de dança Lipstick.

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e deu continuidade ao trabalho com o vogue em Belo Horizonte, quando retornou. Então tem Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e o Sul também, porém mais fraco, mas não tenho como dizer com certeza se em alguns outros lugares ou outras cidades a galera já treinava ou não. Tem isso, de treinar vogue, estudar vogue, repassar os conhecimentos e criar uma cena. E!R: Aproveitando um pouco essa questão da cena nacional e dessas pessoas que fizeram intercâmbio, gostaria de saber um pouco sobre os artistas estrangeiros que vieram para cá, que são convidados hoje porque existe uma cena. Como ela se mobiliza em relação a isso? FP: A cena acontece porque consegue reunir essa galera que vem de vários lugares, e nós aqui [em São Paulo] tínhamos essa referência e possibilidade de conseguir trazer alguns professores de fora [do Brasil]. E a galera aproveitava essas chances de poder esclarecer um pouquinho mais as informações. Como o Meeting Hip Hop,6 que acontece no interior de São Paulo e que também foi um dos eventos que teve (e tem) a possibilidade de trazer professores para cá. No cenário das danças urbanas funciona assim: nesses intercâmbios, você aproveita os workshops, consegue levar um pouquinho de informação e reunir os grupos e também organizar outro evento e chamar outros professores. E os professores que já conseguem ir para fora fazer esses intercâmbios também viajam dentro do Brasil para disseminar um pouco mais a cultura, o vogue e outras danças

vogue no brasil

urbanas, como waacking, hip-hop. E assim o movimento vai se espalhando. E!R: Nessa expansão que o vogue teve pelo país, você acha que a cultura envolvida nessa modalidade de dança urbana se modificou ou permanece fiel às origens daquele referencial dos anos 2000, quando o estilo se iniciava no país? Se existem essas adaptações, como você avalia isso? FP: Há um detalhe muito importante para analisar, que é como as danças urbanas se tornaram populares e como começaram a ficar em evidência. O mainstream, o meio comercial, tem muito poder sobre isso. O vogue ficou mais conhecido no final dos anos 1980, começo dos anos 1990 e depois continuou no underground e se espalhou um pouco até que voltou nos anos 2000, principalmente por causa dos programas de tv e dos artistas. O America’s Best Dance Crew7 é um exemplo disso: depois que o Vogue Evolution começou a participar, a galera que até então não sabia o que estava rolando na cena drag ball e com o voguing voltou a olhar para a cena. O Vogue Evolution veio mostrando outra forma, totalmente diferente para aqueles que tiveram acesso

6 Meeting Hip Hop School Festival é um festival itinerante de

danças urbanas que acontece no interior de São Paulo há 12 anos e reúne artistas nacionais e internacionais.

7 America’s Best Dance Crew é uma série de dança que conta

com a participação de grupos (crews) de dançarinos de rua. É apresentado por Randy Jackson, jurado do American Idol. Um dos destaques do programa foi o grupo Vogue Evolution, primeiro grupo de dança da tv americana em que todos os integrantes são lgbtqs assumidos, tendo como destaques Pony Zion e Leyomi Maldonado.

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ao Paris is Burning,8 ou ao vogue que a Madonna colocou no clipe e na sua turnê. A partir disso, nós começamos a ir atrás dessas informações, e a popularização do YouTube também ajudou muito, porque chegavam vídeos relacionados: ao pesquisar o clipe Vogue, da Madonna, apareciam sugestões como Paris is Burning, que eu assisti naquela época, além de outros vídeos que deram mais acesso. Foi principalmente o YouTube, os programas de tv, o acesso maior às redes que ajudaram nessa popularização. Fora isso, tinha os intercâmbios, que modificaram a forma como a dança era realizada, que modificaram qualquer outra dança urbana e a própria cultura hip-hop, que surgiu com a questão do acesso, do privilégio à informação. Então, as pessoas que tinham poder aquisitivo maior tinham mais acesso e podiam ir aos Estados Unidos para se reciclar, ter aulas, ou mesmo só fazer alguns cursos e voltar. Muitas outras, porém, não tinham essas mesmas ferramentas. No caso do vogue, principalmente, que é uma cultura que se manteve e evoluiu no meio underground, na cena drag ball, pela minoria, foi descoberto pela galera que tem acesso, que

8 Paris is Burning é um documentário norte-americano

dirigido por Jennie Livingstone. O filme retrata a cena da ball culture de Nova York e as comunidades lgbtq negras e latinas que a formavam, em meados dos anos 1980.

9 O ball é o principal evento da cultura ballroom. Nele se reúnem representantes das houses e dançarinos de vogue que batalham por suas houses e por suas histórias. É um momento de catarse, no qual vida e morte são apresentadas por meio de dança, performance, atitude e figurino. Em geral as balls premiam seus participantes e servem como local de visibilidade e apresentação para aqueles que ainda não estão inseridos nas houses.

não é das minorias, e que foi quem levou de lá para outros lugares. Então, já não começou nas minorias, essa galera não tinha nem acesso a essas informações. Muitas pessoas ainda não sabem o que é vogue, mas têm uma vida muito parecida, têm um comportamento, uma vivência e o corpo muito parecidos com os de lá. Só que quem trouxe a dança para cá tinha outra estrutura, então a vivência já é de outra forma, essa relação já é muito diferente. Se a gente coloca uma das questões importantes do vogue, que é a questão lgbt , que é a questão principalmente das mulheres trans, das drags. Não foi esse público que trouxe, foi o público heterossexual mesmo, é importante analisar por esse recorte, porque ele já chegou pelo meio de aulas em academias ou workshops, e não pela vivência, pelos clubes, nem por uma cena drag ball ou mesmo pelas balls9 que eram feitas (as competições direcionadas para o vogue) e que agora começam a ser entendidas e realizadas aqui no Brasil. E!R: Você me disse que o vogue começou a surgir no Brasil no início dos anos 2000 e que em 2008 vieram os primeiros professores internacionais, como o Archie Burnett. Quando começaram as primeiras balls e batalhas no Brasil, e como estão se desenvolvendo? Elas estão transformando de alguma forma essa cena que se iniciou num contexto branco, heterossexual e com alto poder aquisitivo? FP: A gente já tem essa referência de como o vogue [no Brasil] foi formado. Esse caminho de a dança chegar até as

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minorias está ocorrendo agora, e está se discutindo sobre isso, estamos analisando essas questões, e começando a circular em outros espaços. A partir do momento em que a galera se desprendeu desse lugar de fazer aulas, buscou como realizar uma ball, ver vídeos e ter mais contato com a galera de fora e que realmente faz parte dessa cultura, é que começou a se formar mesmo essa cena, que não é só batalha, não é só aula. Então desde que se começou a treinar e a compartilhar informação, a entender o que são as categorias, as diferenças entre cada categoria ou os gêneros de vogue, é que iniciou um movimento maior de batalhas. Mesmo que fosse somente “brincar de batalhas”, fora das estruturas de balls. E começou também o movimento de festas com esse tema. Surgiu aí um pouco mais de espaço para o vogue, que não veio do hip-hop porque ele não conseguiu atender a essa demanda – o movimento não entendeu também e não deu espaço. Quem começou no vogue conheceu a galera dos clubes, que também queria fazer essas festas, que estava começando a discutir questões de gênero, sabia o que era Paris is Burning e o que era mais o menos o vogue numa visão teórica. E foi uma junção perfeita, a dos clubes com as festas, que se iniciaram com as performances, depois as batalhas e atualmente, nos últimos dois anos, as balls direcionadas ao vogue. Aqui a gente tentou, com a Extravaganza,10 mostrar de uma maneira diferente; e as meninas de Belo Horizonte com a Dengue,11 que é uma festa com batalhas e duelos de vogue em todas as edições; elas também realizam o bh Vogue Fe-

vogue no brasil

ver,12 e aí veio a ball do Rio, de Brasília, de São Paulo... E nesse momento a galera começou a entender mesmo e a ter coragem e estrutura para organizar as balls. É uma junção de tudo, desde ter mais informações, ter estrutura, ter discurso e ter um público-alvo que mantenha tudo isso. Começou a ter uma diferença entre a parte das academias, com aulas, workshops e cursos regulares e quem faz e participa realmente da cena vogue, desde o treinamento até a organização de miniballs, batalhas ou uma grande ball internacional e que consegue trazer outras pessoas. Essa relação do acesso aos artistas de fora se manifesta nessas relações, já que ela acontece principalmente nas academias, onde esse acesso é mais fácil; quem pertence às minorias não tem esse mesmo privilégio ainda, mesmo nas balls. Ainda é necessário que se tenha dinheiro, um investimento para poder organizar, alugar um espaço, para trazer alguém de fora. É necessário fazer parcerias, não [adianta] só vontade de organizar. A gente pode organizar umas balls de maneira simples, mas também quero fazer uma internacional, tenho

10 Extravaganza é uma festa itinerante entre São Paulo e Berlim, que realizou em 2016 algumas performances com seu coletivo Vogue Extravaganza Voguing Crew, do qual fazia parte Félix Pimenta. 11 Dengue A Festa! é um evento em Belo Horizonte criado por Guilherme Morais, fundador da plataforma cultural This Is Not, que realiza batalhas de vogue em cada uma de suas edições. 12 bh Vogue Fever é um encontro internacional de dançarinos de vogue que acontece em Belo Horizonte. São realizados workshops e aulas com convidados internacionais e uma ball com batalhas de vogue. É organizado pela House of Afrodite (Trio Lipstick + bh is Voguing).

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que trazer essas referências, as pessoas que fazem parte dessa cultura de lá. Mas isso não é tão simples assim. E!R: Entre as danças urbanas, poucas são tão importantes e vitais quanto o vogue para a comunidade lgbtq negra, principalmente, e latina (quando você fala da realidade estadunidense). E o waacking também entra nessa categoria. Como você enxerga essa questão? Acredita que agora, com essa nova mobilização, essa nova vivência e com esses corpos (que como você mesmo afirmou são parecidos com os da cena original), as pessoas podem se empoderar nas questões lgbtq e também da população negra? FP: Sim, tanto que existe esse reconhecimento principalmente no que está relacionado à cultura hip-hop e às danças urbanas, que tem a ver com o discurso e o lugar, como as pessoas vivem. Existe um reconhecimento nesse discurso, na imagem, no corpo – quando se vê aquele corpo muito parecido, a forma como esse corpo se movimenta –, da

13 As houses, também chamadas de famílias, são grupos

lgbt q s reunidos sob a orienteação de uma house mother ou um house father. Na comunidade ballroom, as houses se organizam por estruturas de parentesco, configuradas socialmente (e não biologicamente), nas quais mães e pais aparecem como figuras de autoridade, orientação e cuidado, além de manterem a reputação das houses. Seus membros assumem como sobrenome o nome de suas houses (Ninja, Xtravaganza, LaBeija, Garcon, Balenciaga, Mugler etc.).

14 House of Xtravaganza é uma das mais conhecidas e difundidas houses de Nova York. Fundada em 1982, é conhecida pela atuação na cena ballroom e pela influência em áreas como dança, música, artes visuais, vida noturna, moda e ativismo comunitário. Seu fundador é Hector Valle. Disponível em: <www.facebook.com/HouseOfXtravaganza/?fref=ts>. Acesso em: 21 fev. 2017.

expressão, da vivência. Tudo isso ajuda as pessoas a se reconhecerem nessa forma de expressão. Mesmo no hip-hop, e se nós pegarmos outras culturas fora do hip-hop de diversos lugares do mundo, a galera vai se identificar, esse público vai se reconhecer. Trazendo para o vogue, ele tem essa ligação grande com as questões de gênero, o que ajudou muito na expansão e no estudo sobre o vogue. A galera vivendo de uma forma bem diferente por aqui enxerga semelhança com a forma como essa galera lgbt de lá vive, como as drags, os gays, os trans, os negros e os latinos vivem lá. Tem todo esse reconhecimento, não acontece só no Brasil. Tem todos esses outros movimentos da galera latina, existe essa importância de se reconhecer latino. O fato de uma das principais e mais antigas houses,13 a Xtravaganza,14 ser formada por latinos tem total importância para toda essa comunidade se reconhecer como latina. Tem um discurso forte aí, tem esse reconhecimento. Além disso, tem a questão da movimentação. Muitas pessoas não usam isso, mas eu gosto de usar essa referência do movimento afrodiaspórico. Sem querer, sem que as pessoas saibam o que é exatamente a diáspora africana, o que significa afrodiaspórico, elas estão fazendo uma coisa bem parecida. É se reconhecer, executar o movimento de um corpo idêntico ou bem parecido sem ter tido contato anterior; e conseguir executar e se reconhecer muito bem nisso. Para mim é muito relevante esse fator do movimento afrodiaspórico, que está no vogue, que vem do hip-hop, e que também está

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nas outras danças urbanas norte-americanas e que são reconhecidas aqui no Brasil e em outros lugares. O movimento afrodiaspórico e as questões de gênero são fatores muito fortes a meu ver, e fazem com que as pessoas se reconheçam. Mas obviamente haverá mudanças, porque cada país vive de uma forma diferente e tem experiências diferentes. Então, mesmo que minha religião seja igual à de lá, ou que seja a mesma, a minha representação e a forma de falar, por exemplo, são diferentes; a minha forma de me movimentar e de me expressar são diferentes das de lá. Essa modificação é automática quando ela chega no meu corpo. E tem uma coisa da qual eles [os estadunidenses da cena vogue] gostam também e que faz toda a diferença. Não deixa igual e não fica tudo quadrado: como cada povo se utiliza também dessa cultura ou se fortalece de alguma forma e consegue acrescentar também a sua maneira. E!R: As houses têm papel fundamental como criadoras e fomentadoras dessa dança urbana, além de seu papel social nas comunidades lgbtq nos Estados Unidos. Quando vieram ao Brasil, o Legendary Icon Pony Zion convidou você e Eduard Kon para formarem e serem pai e mãe, respectivamente, da House of Zion, dando continuidade ao que as houses norte-americanas fazem em seu país de origem. Além disso, já existem outras houses pelo país, com características específicas conforme as necessidades locais. Como você vê o papel das houses no Brasil e como imagina o funcionamento da House of Zion?

vogue no brasil

FP: Sobre a questão das houses, a gente faz essa ligação com o começo da cena ball aqui no Brasil, que tem a ver com o reconhecimento dessa galera. Acontece de uma maneira diferente, mas tem relação com a ideia de crew15 no break, no hip-hop e nos outros grupos, que é essa vivência muito próxima. É se reconhecer, se reconhecer como família porque você se reconhece no outro, está passando pelas mesmas coisas, vivem praticamente juntos e têm ideias bem parecidas. Essa referência no hip-hop e no vogue é muito parecida. O que no vogue é muito diferente e remete ao começo das houses de lá é exatamente a forma como as pessoas viviam, em lugares de total exclusão; as pessoas se juntaram sem ter nada e se fortaleceram a partir dessa união. Aqui também, mas numa estrutura totalmente diferente, ainda que com certas dificuldades, inclusive em relação às questões históricas do mundo de hoje e do que acontecia na década de 1960. Uma galera acaba se juntando por causa do intercâmbio entre os estados, em eventos que as pessoas se matam para ir. Ali criam conexão e ficam um tempo trocando. Existe esse reconhecimento, essa conexão, que muitas vezes não é com a galera próxima, da mesma cidade, mas sim com a de outros estados. Por outro lado, é muito diferente de uma galera

15 Crew é um termo comumente utilizado em grupos de dançarinos de danças urbanas. Originário do inglês significa grupo de pessoas que trabalham ou atuam em uma área comum, estruturados em uma organização hierárquica.

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do Rio, onde tem a House of Kínisi16 e a House of CaZul,17 que são formadas pela galera da mesma cidade. Eles têm um contato muito mais fácil para se reunir, dormir junto, ir para os eventos todos juntos, do que outras formações que vieram agora de fora, como deve acontecer com a House of Zion. Como se reunir, criar os pontos com uma galera que está no Sul, com uma galera que está em São Paulo, com uma galera de Belo Horizonte? É um pouco diferente. Algumas meninas de bh têm uma vivência muito mais forte, elas se veem com mais frequência, é mais fácil a conexão. Existe outra forma de as houses acontecerem aqui, que é se reunindo esporadicamente, em algum evento, tentando se comunicar da melhor maneira possível e pensando em organizar ações, expandir e passar informações, cada um à sua maneira. A questão hoje é que o Brasil está

16 House of Kínisi é um coletivo cujo intuito é difundir a cultura das drag balls, através da dança vogue, no Brasil. Disponível em: <www.facebook.com/houseofkinisi>. Acesso em: 21 fev. 2017. 17 House of CaZul é um grupo de arte voltado à dança vogue. Em suas concepções coreográficas usa diversas outras danças, linguagens e estudos. Disponível em: <www.facebook.com/ houseofcazul>. Acesso em: 21 fev. 2017. 18 Kiki Houses são houses menores, com público mais jovem e, no contexto norte-americano, fortemente ligadas a divulgação, prevenção e orientação sobre o hiv nas comunidades latinas e negras. Atualmente, só nos Estados Unidos existem houses oficiais, com exceção da House of Ninja em Paris, representada por Lasseindra Ninja – todas as outras houses internacionais são consideradas Kiki houses. As Kiki houses organizam as Kiki Balls, onde podem competir e dançar o vogue; porém, quando um de seus membros participa de uma batalha oficial, ele entra como 007 (somente os membros das houses oficiais podem participar com o sobrenome de suas houses.). A cena das Kiki houses norte-americanas pode ser vista no documentário Kiki <www.kikimovie.com>. 19 007 é o dançarino de vogue que não pertence a nenhuma casa

e participa das balls à espera de ser convidado para uma delas.

sendo bem visado por algumas pessoas de fora: já que estamos fazendo o que eles fazem lá, eles vêm pra cá, ensinam como fazer, falam como respeitar essa cultura e também como se formar essas houses oficialmente conhecidas e as não oficiais, ou quick houses,18 como criar esse comportamento em balls oficiais, se você é 007,19 se você representa a house oficial ou uma quick house etc. Tem toda essa demanda que a gente está tentando entender, e a galera precisa tomar cuidado também para não ser guiado só por nomes; para que, quando uma house de renome vier escolher alguns nomes para sua house, não se exclua quem poderia fazer parte disso e opte só por nomes que são reconhecidos; para que não se façam formações nem criem nichos e se separe mais a galera, e que se impossibilite o acesso de quem precisa dessa informação. O momento agora é de não segurar essa informação e permitir que o maior número de pessoas tenha acesso a ela. Tentar ao máximo popularizar o vogue. O mínimo que tento fazer é popularizar o vogue, e esse é o conceito que vou tentar levar para a Zion. Eu e o Kon conversamos um pouco sobre algumas pessoas que têm a ver com o discurso, que podem ser consideradas da House of Zion. Foi assim também, a House of Zion estava tecnicamente parada e o Pony não a movimentava. Ele veio para cá [Explode! Residency], se emocionou com o evento, com as balls da Explode! Residency e do Ataque Queer! e decidiu, depois de toda essa vivência aqui, colocar a gente na linha de frente para direcionar e colocar em atividade

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a Zion aqui no Brasil. E eu tenho essa ideia mesmo, de popularizar e chamar as pessoas que tenham um discurso legal e bem próximo e que tenham ideias parecidas, para que seja uma house com pé no chão. E!R: Gostaria de falar algo mais sobre o vogue na cena brasileira, algo que considera importante ser lembrado? FP: É importante retomar a questão dos intercâmbios e das apropriações. Para qual público o vogue está chegando? O vogue está se apropriando de quem? Isso tem a ver também com o vogue estar sendo estudado, virar referência em tcc s, monografias e afins. É necessário tomar cuidado, não só no Brasil, mas no mundo todo: para quem o vogue está sendo direcionado e compartilhado, e para quem não está? Porque, até então, vejo o vogue chegando em alguns lugares apenas para um público que é muito privilegiado. E a parte do público que não tem esses privilégios? Tem que se pensar em formas de popularizar mesmo, de facilitar o acesso e as informações, de dar poder para que algumas pessoas possam ter acesso a tudo isso, para que possam se empoderar dessa dança. Como a gente faz para empoderar as pessoas com todos esses instrumentos? É muito fácil para uma galera das academias ter todo esse reconhecimento e acesso a essas informações, e isso ficar só nesse segmento. Estudar vogue porque agora é o que está sendo reconhecido, porque está na moda. Um problema da moda é esse. Escutei esses dias a frase: “O vogue é bem 2016”.

vogue no brasil

Não é só isso, não é só uma moda, vai muito além disso. Ele só existe até hoje porque a galera foi resistente e foi bem dura também. Houve brigas. Foram várias formas de manter essa cultura viva até hoje. Independentemente de estar na moda ou não, essa cultura vai continuar. Agora, como as pessoas vão trabalhar todas essas informações e como essas informações vão até quem realmente importa? A galera comercial vai explorar essa cultura até dizer “Chega, vamos parar, qual é a próxima?”. Eu já vi isso acontecer: leva-se para o estúdio, passa um ano e esquece, não dá continuidade. Tem que ser levado para mais pessoas e para quem realmente vai dar continuidade à cena – menos para o lado comercial e mais para o underground. E ter cuidado, também, para não embranquecer o vogue, que é uma das questões mais tensas, a da apropriação cultural. Ela acontece de maneira muito sutil: primeiro pela estrutura capitalista, que dá prioridade apenas para algumas pessoas e faz com que a apropriação aconteça de maneira suave, e quando isso é questionado, o teor da questão é visto como agressão. É um problema que precisa sempre ser debatido, além da inclusão do vogue. Como tornar o vogue acessível a um número maior de pessoas? É a questão que deixo para todo mundo, e é importante sempre pensar nisso.

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Félix Pimenta 27 anos, dançarino performer, pesquisador, professor e coreógrafo de danças urbanas. Especializado nas danças waacking e voguing, é membro da House of Zion – Chapter Brasil e da ihow (Imperial House of Waacking) – Chapter Brasil, Coletivo Ritmos de Rua, Cia. Crioulos e Afronte coletivo de performance. Ministra workshops, aulas e faz júri por todo o Brasil. Performer da noite paulistana, é participante de batalhas em diversos eventos.

Explode! Residency ver página 126

Programas atividades realizadas durante 2016 São Paulo - SP

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ataque! 10 de setembro, 2016 Praça das Artes Centro, SP

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ataque! idealização Cláudio Bueno, João Simões,  Júlia Ayerbe, Laura Daviña, Paulo Scharlach,  Raphael Daibert, Thiago Carrapatoso, Todd Lanier Lester, Shawn Van Sluys concepção artística Aretha Sadick, Cláudio Bueno, Félix Pimenta, João Simões, Júlia Ayerbe, Laura Daviña, Paulo Scharlach, Raphael Daibert, Thiago Carrapatoso, Todd Lanier Lester, Shawn Van Sluys produção Dalva Santos, Paulo Scharlach, Thiago Carrapatoso parcerias Praça das Artes, Centro de Cidadania LGBT Arouche, O grupo inteiro apoio ArtsEverywhere / Musagetes, Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Fundação Theatro Municipal de São Paulo participantes Ariel Nobre, Ajamu Ikwe-Tyehimba, Aretha Sadick, Beatriz Matos, Bibi Abigail, Bruno Puccinelli, Cadu Oliveira, Claudia CisneyLips, Danna Lisboa, Dani d’Emilia, Darlita Double-Lock, Eduard Kon Rodrigues, Fernanda Rocha, Flip Couto, Félix Pimenta, Jackeline Romio, Júlia Ayerbe, Laura Daviña, Lucas Matteus, Mavi Veloso, Michael Roberson, Marcos Ribeiro, Monstra Errátika (Jota Mombaça), Paulo Henrique Rodrigues, Pato Hebert, Pony Zion, Rodrigo Vianna, T. Angel (frrrkguys), coletivo coletores , Vi Grunvald

programação oficinas Interiores – Claudia CisneyLips; A Ternura Radical em um Corpo Político – Dani d’Emilia; Fúria Kuir – Monstra Errátika (Jota Mombaça); A Cultura do Ball Norte-Americana – Michael Roberson e Pony Zion. conversas Descolonização do Queer – Monstra Errátika (Jota Mombaça), Bibi Abigail, Vi Grunvald; O Corpo e o Direito à Cidade – T. Angel (frrrkguys), Jackeline Romio, Ariel Nobre (Revolta da Lâmpada); Território e Memória – Fernanda Rocha (Repep), Bruno Puccinelli; Aids hiv – Flip Couto, Cadu Oliveira (Revolta da Lâmpada). batalha de vogue júri: Mavi Veloso, Michael Roberson, Paulo Henrique Rodrigues comentador: Eduardo Kon Rodrigues participação especial: Aretha Sadick projeção: coletivo coletores discotecagem: Tiago Guiness intervenções Laboratório Gráfico Desviante popup studio com Ajamu Ikwe-Tyehimba coletivo coletores

fotos Ajamu Ikwe-Tyehimba, Danila Bustamante, Leandro Moraes, Pato Hebert

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Pony Zion em A Cultura do Ball Norte-Americano

A Ternura Radical em um Corpo Político Oficina com foco no corpo como lugar contraditório de noções de identidade, diferenças e desejos, trazendo a imaginação política, alianças afetivas e conhecimento para o centro da discussão/ação corporal, como expressão de ternura radical [p. 84].

Fúria Kuir Monstra Errátika em seu processo de descolonização do corpo, de gênero e da própria sexualidade por meio de leituras, exercícios e vídeos.

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Fotografias de Ajamu Ikwe-Tyehimba para sua intervenção popup studio. Abaixo, cartazes do Laboratório Gráfico Desviante.

Interiores Claudia CineyLips, rodeada por esmaltes, propõe fazer as unhas do público ao mesmo tempo que troca experiências de vida com os participantes.

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por Thiago Carrapatoso No início do planejamento e das pesquisas sobre o que seria uma Cidade Queer – ou uma cidade vista por uma perspectiva não hegemônica e muito mais emergente –, surgiram diversas temáticas, mas nenhuma nos garantiu que o caminho traçado durante todo o ciclo chegaria a uma conclusão. Ou que oferecesse algum viés de resposta. Como imaginar a estrutura de uma cidade como São Paulo de forma mais orgânica, se há pelo menos um século, com mais ou menos horizonte a se ver, prevalece a concepção rígida? E como poderíamos demonstrá-la por meio de um ciclo de atividades, convidando agentes para atuar e para considerar algo que nem nós mesmos sabíamos o que queríamos atingir? A trajetória, que vocês podem conferir até neste livro, nos mostrou diferentes perspectivas – não necessariamente sobre uma cidade, mas sobre modos de agir nessa estrutura urbana saturada e caótica. Nesses modos de agir, de viver, veem-se pequenas faíscas, desdobramentos, reinvenções que apontam para outro lugar, outra concepção de organização de uma sociedade. Uma cidade – digo e repito – é uma abstração: fruto de um imaginário para lidar com fluxos constantes de capital e comunicação – fluxos esses que, por si só, nem existem, são apenas virtuais. E nesse tráfego todo existe a gente. E como a gente é subordinada a esses fluxos, tem que estar perto, dentro do nó, para que assim os fluxos não se quebrem e a vida (qual? e de quem?) possa continuar tranquilamente. Talvez por isso – por estarmos dentro desses fluxos que foram criados e violentamente aplicados em nós – seja tão difícil imaginar uma estrutura de cidade que seja completamente diferente (ou seja, não estruturada, mas sim estruturante) da que estamos acostumados a ver neste um pouco mais de século. As faíscas, então, que encontramos durante os meses de atividades mostraram que há diversas temáticas que precisam ser exploradas mais a fundo, publicamente, junto com os que ainda não puderam

ver outro meio de fazer esse lugar onde vivemos. A questão, porém, é que em uma estrutura sisuda, mostrar outros meios de existir se tornaria uma função ingrata. Teríamos que agarrar de supetão os temas que nos são caros, como um Ataque! ao que, então, nos mostraram como “normal”. O último evento do Cidade Queer seria esse Ataque! à cidade. Para isso, escolhemos um lugar que, além de abrigar a escola municipal de dança da cidade, também é a representação moderna do que arquitetonicamente temos hoje: a praça das Artes, com sua estrutura rústica, dura, bruta. Tendo como ponto de partida a experiência da residência Explode!, pensamos em uma programação que, no período da tarde, abrisse um espaço discursivo e prático para o que estávamos propondo e, à noite, se tornasse uma batalha: de corpos, vestimentas, passos. Enquanto nos andares de cima da praça ainda se tenta preservar o clássico – ou, como alguns chamam, o “erudito” –, em seu vão organizamos uma batalha de voguing, com concepção de Félix Pimenta, para encerrar todo nosso ciclo.

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Da esquerda para a direita, Monstra Errátika (Jota Mombaça), Bibi Abigail e Vi Grunvald em Descolonização do Queer

Descolonização do queer Durante o Cidade Queer, nos deparamos constantemente com o questionamento sobre a terminologia e o uso de uma palavra anglo-saxã para montar uma programação que pretende explorar a realidade local. Tentamos explicar as diferentes concepções que se pode dar ao termo, porém nunca conseguimos achar uma resposta definitiva e que fizesse sentido para todxs. Então, para nos ajudar nessa empreitada sobre o que é ser queer nos trópicos, convidamos: Monstra Errátika (Jota Mombaça) [p. 16] Bibi Abigail [p. 34] Vitor Grunvald [p. 22]

T. Angel, Ariel Nobre e Jackeline Romio em O Corpo e o Direito à Cidade.

O corpo e o direito à cidade Se queremos pensar em uma nova estrutura para viver, é preciso considerar os diferentes corpos que habitam, que se cruzam, que se mostram nos espaços públicos de uma cidade. A cidade, por mais plural que seja, não é um espaço democrático de atuação. Para levantar essas questões, contamos com: T. Angel (frrrkguys), artista da performance com graduação em história. Está no cenário brasileiro da modificação corporal desde 1997, inicialmente como entusiasta e posteriormente atuando no campo da pesquisa. Parte de seu trabalho está no livro A modificação corporal no Brasil: 1980-1990 e no site frrrkguys.com.br. Ariel Nobre (A Revolta da Lâmpada), homem trans, escreve na coluna #transvivo para Os Entendidos, da Revista Fórum. Além disso, é consultor em comunicação para projetos de meio ambiente e inclusão de lgbts no mercado de trabalho. Samba na cara da sociedade e luta pelo corpo livre com o coletivo A Revolta da Lâmpada, desde 2015. Jackeline Romio é doutoranda e mestre em demografia pela Universidade Estadual de Campinas (ifch-Unicamp, 2009). Atualmente desenvolve pesquisa sobre feminicídios no Brasil. Em 2015, fez estágio de doutorado no Centre d’Enseignement, de Documentation et de Recherches pour

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les Études Féministes (Cedref), da Université Paris Diderot – Paris 7. Estudou no Departamento de Sociologia da Howard University (2006) e iniciou seus estudos de gênero e feminismo no Núcleo de Estudos da Mulher e Gênero da usp (Nemge). Paralelamente, desenvolve trabalhos com literatura feminista negra e com artes plásticas.

Território e memória Ao estudar os processos de gentrificação das grandes cidades, o que mais me assombra é que o primeiro grupo a ser expulso de um bairro sejam os gays, os trans, as lésbicas, os travestis. Não estou falando dos gays de elite que o sr. Richard Florida gosta de culpar pelo aumento do preço do metro quadrado. Estou falando de outro grupo, mais orgânico, menos digerido pela sociedade, que usa o espaço público a... va… ler. Para entender esses meandros, convidamos: Rede Paulista de Educação Patrimonial (Repep) [p. 86] Bruno Puccinelli [p. 70]

Aids hiv Bem no início das pesquisas para o ciclo do Cidade Queer, surgiu a seguinte questão: Por que as discussões locais sobre o vírus na década de 1980 não ganharam tanta repercussão quanto o que ficou conhecido como A Crise da Aids novaiorquina? Essa mesa foi organizada com o título aids (que está riscado acima) justamente para tentar entender esses processos. A discussão, além de abordar isso, também abriu nossos olhos para o uso errôneo que fazemos das terminologias sem nem nos dar conta. É por isso que, neste livro, adoto o hiv . E aproveito para agradecer aos grandes que nos abriram os olhos: Flip Couto tem formação artística construída dentro da cultura hip-hop. Desde 2003 integra a Cia. Discípulos do Ritmo, sob a direção de Frank Ejara, que em 1999 teve a iniciativa de convidar dançarinos de danças urbanas com o intuito de levar essas linguagens aos

Flip Couto e Cadu Oliveira em Aids

hiv

palcos dos teatros. Entre 2010 e 2013 residiu em Düsseldorf (Alemanha) e em Paris (França), onde realizou trabalhos em parceira com companhias e coletivos de dança como E-motion Crew, Notik Dance Company e Time Room Lockers. Atuou também como preparador corporal no Teatro de Oberhousen (Alemanha). Cadu Oliveira é envolvido com ações de voluntariado desde 1996. Hoje é militante nos coletivos A Revolta da Lâmpada e Cume. Também fez parte da produção da Conferência [ssex bbox ]. Participou de mesas na unip Jundiaí, fesp , Casper Líbero e usp .

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Ataqueridas por Pato Hebert Ataque foi uma convergência bem no coração sangrento e pulsante da cidade de São Paulo, e o baile, um teatro do desejo em pleno funcionamento. Aprendi a me mover em espaços assim, com corpos polissexuais nas pistas de house negras e pardas de boates como a Pan Dulce e a Lift, a Anthem e a Corazón. A gente pavoneava pelos bairros de Mission e South of Market em San Francisco, nos Estados Unidos, na década de 1990, pouco antes da explosão das empresas de tecnologia e da aniquilação neoliberal. Aprendi a fotografar também nesse ambiente, fazendo uma longa série de imagens em meio aos vinis que giravam suaves e sem fim, emitindo aqueles sons eletrônicos tão ricos. Assim, vinte e poucos anos depois, o Ataque me pareceu maravilhosamente familiar, como se estivesse visitando a casa de um primo mais novo de segundo grau e me dando conta da profunda afeição que sentimos um pelo outro. Estava repleto de pessoas adoráveis e cuidadosamente escolhidas, que juntas se tornaram as Ataqueridas, numa explosão de poses que se organizavam por si só, provocando uma verdadeira devastação com seus ângulos em alternância e belezas ondulatórias, sem nunca deixar de intimar infinitas ecologias emocionais. As pessoas assumiam papéis distintos ao longo da noite, indo de performer a juiz, de concorrente mais fervido a fã fervoroso, de público abismado a compañera mais próxima. Eu queria fotografar o movimento por dentro e de cima, convidar essas imagens que pulsavam com a inventividade, a irreverência, a intimidade, a intensidade e a delicadeza daquele baile. Em meio às sombras e holofotes, o sensor digital percebia peles indígenas, sintetizadoras e oriundas de diásporas, infundidas por conta própria num espírito de independência, paz, respeito e igualdade. Incorporações negras de Iemanjá em vários tons, irrompendo nas águas e dando à luz

Xangô e Eleguá, com as queridas todas na estica com seus penduricalhos e piruetas, derrubando eventuais dúvidas e provando que o Bash Back Queer não deixa barato. Foi uma noite histórica, com as Ataqueridas consagrando a Casa Brasileira de Zion e vestindo a camisa da afirmação de gêneros que não se deixam comunicar nem conter em algumas poucas vogais. A coletividade dinâmica dessa dança presenciada em meio à urgência e às contestações do núcleo de São Paulo foi um momento explosivo de reconfiguração, com a cidade que condiciona, mas também acabou sendo condicionada, por um creative commons de cor primorosamente queer. Um momento para desfilar, fazer suas poses, entrar na batalha e simplesmente ser, tudo isso embalado numa mistura mágica..

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Pato Hebert É artista, educador e gestor. Seu trabalho explora a estética, a ética e a poética da interconexão. É professor de artes na Tisch School of the Arts, New York University. Também trabalha com iniciativas comunitárias de hiv / aids com o Global Forum on msm & hiv (msmgf).

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Batalha Independência ou Lacre! Batalha de vogue organizada em três categorias: Geração Tombamento, inspirada na atual geração jovem, negra e de periferias brasileiras, convida ao tombamento através de um visual representativo e empoderado; Bizarre Down the High Society: apresentação do lado mais excêntrico da high society (a crise está virando zooonaaa. Cada um por si e todo mundo na lona...); Runaway Lacração em high Fashion: apresentou o nível mais alto da moda na passarela – a lacração! A batalha contou com R$1.500 distribuídos entre os vencedores. Teve um júri composto por nada menos que Michael Roberson, o Legendary Icon Pony Zion (ambos de Nova York) e Paulo Henrique Rodrigues, de Brasília. O comentador foi Eduard Kon, nomeado por Pony Zion como “mother” da House of Zion no Brasil. A abertura da noite contou ainda com a performance Freedom, de Aretha Sadick.

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explode! residency agosto-setembro 2016 Vila Nova York, Zona Leste, SP

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idealização Cláudio Bueno & João Simões realização  Cláudio Bueno, João Simões, Paulo Scharlach, Raquel Blaque, Raphael Daibert, Todd Lanier Lester parcerias A Revolta da Lâmpada, Centro de Cidadania lgbt Laura Vermont, Cieja Campo Limpo, Cursinho Popular Transformação, Família Stronger, Free Home University, Intervalo-Escola, O grupo inteiro, Ultra-red apoio e agradecimento especial ArtsEverywhere / Musagetes, Família Bueno, Ligia Nobre residentes  Aretha Sadick, Cadu Oliveira, Cláudio Bueno, Daniela Mattos, Danila Bustamante, Ezio Rosa, Félix Pimenta, Jô Gada Away, João Simões, Jota Mombaça, Lee Ann Norman, Mavi Veloso, Michael Roberson, Nube Abe, Paulo Scharlach, Pony Zion, Raphael Daibert, Raquel “Nega” Blaque, Robert Sember, Shawn Van Sluys, Tiago Guiness, Todd Lanier Lester, Yeti Agnew. participantes Aline Scátola, Armênia “Bolinho” Gomes, Beatriz Matos, Bruno Black, Bruno Mendonça, Caio André, Camila Furchi, Dácio Pinheiro, Daniel Lühmann, Daniel Lima, Dalva Santos, Diane Lima, Eduard Kon Rodrigues, Élida Lima, Élvis Stronger, Filipe “Flip” Couto, Flávio Franzosi, Jean Pierre-Michel, Ju Whacking, Juliana dos Santos, Júlia Ayerbe, Katia Pires Chagas, Laura Daviña, Lucas Matteus, Marcos Ribeiro, Paulo Henrique Rodrigues, Renata Martins, Rodrigo Vianna, Tainá Azeredo, Thiago Carrapatoso, Thiago Hersan, Toni William (Coletivo coletores) e todos os dançarinos, colaboradores e visitantes da casa.

programação* filme Meu amigo Cláudia, de Dácio Pinheiro. 23/8  Conversa com Aretha Sadick e Duda Babaloo. 25/8 Corpos e Periferias – projeções e falas com Renata Martins, Ezio Rosa e Jota Mombaça. 26/8 gravação de video-performance + conversa com a artista Juliana Santos e sua vó Dita. 27/8 janta #7; mostra Explode! kuir rap; Semana da Visibilidade Lésbica – fala de Camila Furchi; introdução à cultura ball nos eua com Michael Roberson + workshop de waack, vogue e stiletto com Legendary Pony Zion, Félix Pimenta, Danna Lisboa, projeto Diana e convidados. 28/8 Batalha Explode! com Pony Zion, Félix Pimenta, Danna Lisboa, projeto Diana e convidados. 29/8 Trânsito – conversa com Pierre-Michel, Jean; Não vamos obedecer – com Daniel Lima; Afrotranscendence – com Diane Lima. 30/8 Políticas kuir – debate com Cadu Oliveira (Revolta da Lâmpada), Elvis Stronger (Família Stronger), Camila Furchi e Salete Campari (Centro de Cidadania lgbt de São Miguel Paulista), e Elida Lima (Cursinho Popular Transformação e #partidA); exibição de São Paulo em Hi-Fi, do diretor Lufe Stefen. 31/8 Apresentação dos processos de vestircorponú = explosão, com Aretha Sadick e convidados. 1/10 Conversa com Tainá Azeredo (Intervalo-Escola), Michael Roberson (Ultra-red), Eda Luiz (Cieja Campo Limpo), Shawn Van Sluys (Free Home University).

fotos Carol Godefroid, Danila Bustamante, Leandro Moraes Na foto ao lado: Vida/Life, intervenção artística de Laura Daviña e Thiago Hersan no muro da residência. Da esquerda para a direita: João Simões, Cláudio Bueno, Félix Pimenta e Jo Gada.

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*Detalhes em: <www.cidadequeer.lanchonete.org/2016/08/05/explode-residency-programacao-publica/>

explode! residency

Explode! Residency: de um espaço de segurança a um espaço de coragem por Cláudio Bueno e João Simões com residentes da Explode! Residency: Aretha Sadick, Aline Scátola, Cadu Oliveira, Daniela Mattos, Danila Bustamante, Ezio Rosa, Félix Pimenta, Jo Gada, Lee Ann Norman, Mavi Veloso, Michael Roberson, Nega (Raquel Blaque), Nube Abe, Paulo Scharlach, Pony Zion, Raphael Daibert, Robert Sember, Shawn Van Sluys, Tiago Guimarães, Todd Lester, Yeti Agnew. Não ter sido oficialmente convidada para a residência, mas ter acompanhado um amigo convidado [Ezio Rosa] num lugar que também era novo pra ele, se apresenta para mim como os nossos corpos ainda precisam ocupar alguns espaços. Como ainda para nossos corpos pretos, pobres, afeminados temos que estar num movimento de nos inserir em lugares que hegemonicamente são brancos, causando e sendo um desconforto. Pode-

mos tentar pensar sobre isso a partir das questões de comunicação que tivemos na residência, em que havia a necessidade de tradução porque nem todos tínhamos o domínio do inglês. Eu ouvi muito mais do que falei na residência. Por conta da necessidade de tradução ouvi duas vezes, uma em inglês e depois em português, e esse exercício de escuta duplicada foi extremamente cansativo e interessante. Foi como se estivessem ratificando o dito, ou também como numa leitura difícil a gente precisa ler mais de uma vez pra conseguir entender. Ouvir mais de uma vez e depois falar pausadamente para ser compreendida não é um hábito do sujeito contemporâneo. A pergunta que me faço é: Como resistir às imposições de uma língua colonizadora? Como não se permitir dominar pelas ferramentas dos dominadores sem se excluir dos lugares dominados por eles? — Jo Gada

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Explode! Residency foi uma imersão-residência de onze dias (entre 23 de agosto e 2 de setembro de 2016), em uma casa na Zona Leste de São Paulo, localizada na Vila Nova York, onde Cláudio Bueno morou até os 22 anos e seus pais até 4 anos atrás. Nesse local, a 20 km do centro da cidade, esteve reunida uma comunidade de artistas visuais, performers, dançarinxs, agentes culturais, militantes e pesquisadorxs, engajadxs em pensar e apresentar, a partir dessa zona autônoma temporária, as potências desses corpos periféricos urbanos, dispostos a assumir, com suas ideias, saberes, lutas e presenças, o protagonismo e a transformação do mundo atual, especialmente no contexto brasileiro, tomado por retrocessos, conservadorismos e violência. Além dos encontros públicos que atravessaram a residência, com diferentes falas sobre corpos, periferias, gênero, sexualidade, migração, dança, colonialidade e aprendizagem, estiveram conosco, compartilhando sua metodologia de escuta, os integrantes do grupo norte-americano Ultra-red. Com uma pesquisa baseada no som e no mapeamento de espaços acústicos como

enunciativos de histórias e relações sociais, eles nos trouxeram a intensificação da perspectiva política dos sons. Esse grupo de artistas-ativistas militam por questões raciais, de migração, desenvolvimento participativo de comunidades e criação de políticas de hiv /aids. Entre os sons noturnos do bairro – do possível ladrão de galinhas no telhado ou do tiro seco do trêsoitão –, dançamos diferentes estilos musicais de contestação, de resistência e de luta. Músicas que potencializam corpos negros, feministas, não binários, transgêneros, gays, pobres, latinos etc. – como o vogue (enfatizado nesse período pela presença do legendary icon Pony

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Zion e do brasileiro Félix Pimenta), – além do funk carioca, do hip-hop, do samba e outros. Caminhamos pelo entorno da casa, nos colocamos no bairro, dançamos na rua e partilhamos uma longa conversa e escuta. Acreditamos nesse processo imersivo e num modo de aprendizagem baseado na escuta como intensificadores de uma longa conversa e debate, capazes de desencadear as questões mais profundas e urgentes a nós. Vislumbramos, na escuta, a possibilidade de produzir um saber que passa pelo corpo, que não repete (ou repetiria em menor grau) o que já é sabido de antemão. Dessa forma, talvez seja possível, em alguma medida, pensar na descolonização dos

conhecimentos e imaginar mundos, corpos e vivências outras. Se a noção de casa remete idealmente a um local físico de acolhimento e pertencimento, buscamos instaurar bases para um espaço de segurança e intimidade que guarde a potência e a braveza de também acontecer no mundo, local mais suscetível aos conflitos e aos embates diante das diferenças, uma casa-mundo, sem paredes. As ideias compartilhadas nesse espaço fechado podem agora contaminar outras pessoas e potencializar novos encontros, corpos, afetos, sensibilidades, políticas e ativações para fora dessa situação e localização temporária e específica. Traduzir aqui algo vivido na intensidade de uma experiência direta do corpo e dos diálogos mais íntimos entre um grupo de pessoas somente poderia ocorrer na pluralidade de visões-escutas-falas-escritas-vozes de cada um dos participantes. Para tanto, perguntamos a todxs, como nos perguntaram os membros do Ultra-red, Michael Roberson e Robert Sember, ao longo de toda a residência, sempre após uma caminhada ou compartilhar conteúdos na sala de casa: What did you hear? O que vocês escutaram?

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Aretha Sadick

Meu nome de registro é Robson Rozza, mas pode me chamar de Aretha. Tenho 27 anos, sou ator, atriz, performer e designer de moda. Eu vim para cá [Explode! Residency] pela minha pesquisa dessa imagem, dessa identidade negra, dessa performatividade do trânsito do masculino para o feminino; pelo meu engajamento e pela consciência de que eu estou criando algo que não é estável. E também por causa dessa experiência com a residência, dessa oportunidade de passar um tempo junto. Um recorte que é maravilhoso e ao mesmo tempo muito bruto, de sair do nosso cotidiano e estar com outras pessoas, dormir e acordar com elas, beber, comer etc. Onde mora a força? Eu brinco com as pessoas quando me perguntam: “Você está bem?”, e hoje em dia eu respondo: “Eu estou viva”. E é isso. É se manter viva num lugar assim, neste mundo. Viva em todos os aspectos, não só fisicamente, mas emocional, intelectual e esteticamente. Então, atualmente, eu entendo a força como esse lugar de estar viva. Pessoas como eu têm que pensar duas ou três vezes antes de ir a determinados lugares. A força está no lugar dessa vida (escolha) aonde dizem que eu não devo ir, mas eu vou e como vou. E eu vou para manter minha presença viva nesse lugar. É um esforço, é preciso muito trabalho, físico, emocional e mental. Mas acho que a força mora nisso e também nesse lugar que eu vejo: de pessoas como eu, que vieram do mesmo lugar que eu. De conseguir trabalhar todos os dias para

continuar enxergando esse lugar que pessoas como eu não podem transitar de maneira mais livre. Aqui [na Explode! Residency] eu reforcei essas percepções. Tem horas que a gente fica se indagando: “Eu estou meio louca, né? Fico acreditando em coisas que várias pessoas não acreditam, que não fazem sentido”. Então é bom encontrar os pares, encontrar os comuns, as pessoas que também acreditam nisso. E você olha para pessoas como você e pensa: “Ai que bom. Eu não estou só nessa caminhada. Não é loucura minha”. Porque é isso, a gente começa a questionar tudo, todas as coisas, como elas estão organizadas. Estar aqui foi reforçar esses pensamentos e ver que eu não estou vislum­brando esse lugar para pessoas como eu, que não estou sozinha, existem outras como eu querendo construir esse lugar. Não só vislumbrando, mas construindo; gente construindo junto. E foi isso, intenso. Para mim as palavras são intensidade e cura. Porque, como falei em outro momento, essas dores e esse peso que senti e levei na oportunidade que tive ao sair da casa e voltar, e ver isso curado – foi posto para fora, foi discutido com outras pessoas, foi compartilhado. Uma cura intensa. Não tem cura sem dor. Não tem como curar sem doer. A dor e a cura estão interligadas.

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Aline Scátola

Vi resistência, força e criatividade. Ouvi expressividades que celebram origens, ultrapassam linguagens e transbordam territórios. Senti o acolhimento de dores e delícias, a potência das agências, a força dos quereres, a grandeza das existências. Todo corpo é político, herético e divino.

Cadu Oliveira

A primeira coisa que me impressionou em minha experiência na Explode! Residency foi o número de pessoas negras e a diversidade existente dentro desse grupo, não só de nacionalidades, mas de vivências e de gênero. Infelizmente, é raro estarmos juntos em número significativo em ambientes produtores de arte e conhecimento que não sejam exclusivamente de discussão étnica. Conhecer a cultura vogue, aproximar-me dela e descobrir no ballroom um “templo”, foram imagens emocionantes sobre o sentimento de pertencimento e de celebração das identidades, e que me remetem diretamente ao “fervo também é luta” e ao “corpo livre” que temos como diretrizes na Revolta da Lâmpada. É evidente a influência que existe em fazer parte de um povo marginalizado e excluído. E isso criou em mim uma empatia tamanha que, muitas

vezes, ouvir Michael, Lee Ann ou Ponny trazia uma sintonia muito próxima à dos papos com Aretha, Jo Gada, Ezio ou Félix. Existia para além da língua um elo tão forte que, na aula de vogue, Ponny propôs o DropDead, e eu o fiz sem pensar duas vezes, embora fosse uma realização inimaginável para mim antes disso. Estávamos em um ambiente seguro de aprendizado e experimentações onde as possibilidades eram infinitas. Isso nos colocou em contato com assuntos importantes, como a infecção da população preta pelo hiv , questões de gênero e sexualidade, a situação dos refugiados e, até mesmo, de enxergar nosso país por meio do olhar dos companheiros de outros países com toda sua beleza, sons e particularidades. A produção artística era efervescente em nossos corpos, performances, registros, festas e na comida da Nega. Eu venho trilhando um caminho de autoconhecimento intenso e profundo com a Comunicação Não Violenta, círculos de convivência e as performances de gênero, por isso minha gratidão é imensa a todos os presentes e realizadores por me possibilitar colocar essa residência entre essas práticas transformadoras. A imersão na Explode! Residency foi muito potente, porque trouxe trocas genuínas e marcantes com pessoas admiráveis que se tornaram um círculo generoso de convívio. Embora o Brasil tenha em sua população uma expressiva maioria de pretos e pardos, é muito difícil num espaço de arte e conhecimento estarmos, nós negros, tão amplamente representados. Representatividade importa, transforma e fortalece.

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Ezio Rosa

Daniela Mattos

O afeto se destacou entre as coisas leves e pesadas que compartilhamos, desfizemos binarismos, empatizamos entre nós... De fato, convivemos.

Danila Bustamante

Em meio à intensidade das cores, à potência de cada diferente, ao drama coletivo e a um condensado de histórias muito mais que reais: eu vi, eu me vi e me viram. Essa conexão explosiva fez brilhar ainda mais as minhas questões sobre qual é a imagem feminina que passamos adiante, qual existência e visibilidade é real em um corpo em movimento.

Pela primeira vez na história deste país (risos) tive a minha arte reconhecida em um desses espaços que sempre se mostrou tão distante da minha realidade periférica. Eu era uma das poucas pessoas que precisavam de tradução e, após muitos apontamentos, críticas e acordos, juntos conseguimos identificar e resolver esse ponto que é o processo de descolonização dos saberes. Durante a residência, eu e a minha mana Jogada Away ocupamos um cômodo da casa que era semelhante a um aquário e como partimos de um lugar de fala parecido, performamos juntos por cerca de seis ou sete horas. O trabalho se chama Cuida do Black! e nessa performance eu trançava o black de Jô enquanto escrevíamos nos vidros da sala sobre o processo, e nesse momento me caiu a ficha de qual arte é essa. Essa é uma arte periférica e que, embora invisibilizada o tempo todo nos espaços das belas-artes, grita a plenos pulmões pelo seu direito de existir. A residência me trouxe muitas reflexões profundas, mas de fato o que ficou é a força para lutar e criar minha própria narrativa, com essa arte que se cansou de pedir licença para ser e estar. Eu existo, nós existimos.

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Lee Ann Norman

Félix Pimenta

Sobre a vivência no Explode! Residency, foi muito importante sentir a necessidade de escuta. Escutar e vivenciar todas as histórias, principalmente saber que eu não estou sozinho, que as histórias são muito parecidas, criando assim muitas conexões – e, com essa experiência, poder criar muitas outras coisas juntxs. E nós estamos criando!

Jo Gada

A residência foi toda preenchida por uma arte de resistência queer, o banheiro virou um estúdio fotográfico de closes monstruosos, da cozinha saíram obras de arte que nos alimentaram com o que normalmente iria pro lixo e, no aquário de vidro que tinha no quarto, trançamos afetos, desenhamos um mural de emoções, rabiscamos nossas contradições e queimamos nossa consciência colonizada.

Um começo… um esforço sincero de mover-se para além da superfície de coisas como números, índices e representação, e começar a repensar como as pessoas estabelecem o espaço com as outras. O difícil trabalho de encarar intersecções, expressar empatia por posições que, para você, talvez sejam estrangeiras ou difíceis de entender... um verdadeiro mergulho em vulnerabilidades dificultosas.

Mavi Veloso

Acolhida respeito conflito guerrilha raiva revolta busca de força energizar-se no colo do semelhante diferente cada um com sua bruta cada um tem sua luta interna com os semelhantes com os diferentes causas absurdamente ainda injustiçadas pela dificuldade e pela diferença afetividade generosa intimidade rainhas compartilham tronos todas queens batem cabelos e tranças ainda há reviravoltas, tem gente querendo puxar nosso tapete mas isso não vai acontecer.

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Michael Roberson

É uma teologia interessante a que envolve a destruição de homens gays negros. Fico me perguntando quando vamos entender a mensagem de amor-próprio e autoaceitação. As lacunas e os espaços que colocamos entre nós parecem devorar nossas almas. Minha crença é que estamos buscando conexão com outras almas para comungar num plano mais significativo, além da mera superfície. Parece haver tantas coisas jogando contra nós. Fomos ensinados que a nossa própria existência não é preciosa, que não vale nada e que o ser supremo e divino a quem servimos nos encara como uma abominação. Fomos teologicamente situados do lado de fora da Imagem de DEUS, a Imago Dei, a Doutrina, e nos disseram que o ato de fazer amor consigo e com os outros é depravado. Então, como poderíamos nos perceber como detentores de valor, seres importantes e significativos cujas vidas vão além do mero físico, que nosso eu espiritual conectado a este universo está nos pedindo e implorando para ser alimentado e que isso só pode vir, principalmente, de nós mesmos, curados por um amor que já existia e era inato dentro de nós? Venho procurando encontrar esse outro há tanto tempo − parece que faz uma eternidade − aqueles muitos que sentem e sangram os mesmos sentimentos, cujas jornadas são preenchidas, e não porque nossas vidas não acabam aos 20 ou 21 ou 30 anos. E assim podemos nos ver vivendo e respirando e explorando e explodindo de maneiras amorosas e que nutrem. Nosso passado não mora no fortuito, e sim no que é destinado, assim como o dia em que João batizou o Cristo, a quem chamam de Jesus. Venho buscando uma limpeza que só pode vir do Espírito Santo, mas não do jeito como fomos cristianizados, e sim pela minha comunhão com deus , limpo de um passado que me assombra mesmo depois de 49 anos nesse contínuo. Parece haver uma ausência de homens que continuaram na luta, que não abandonaram o processo quando as coisas ficaram difíceis e pareciam duras, que têm ocupações políticas, divinas e eróticas que repousam

O homossexual negro é duramente pressionado para conquistar público entre seus irmãos heterossexuais. Mesmo se ele for mais talentoso, acaba inibido pelo silêncio ou pelo consentimento. Foi disso que a raça dependeu ao ser capaz de apagar a homossexualidade da história registrada. A história “escolhida”. Mas as construções sagradas de silêncio são exercícios fúteis de negação. Nós não vamos sumir daqui com nossas questões de sexualidade. Estamos indo para casa. Não basta nos dizer que alguém foi um poeta brilhante, cientista, educador ou rebelde. A quem ele amava? Isso faz diferença. Eu não posso me tornar um homem por inteiro simplesmente com o que me dão de comer: versões diluídas da vida do negro na América. Eu preciso que a verdade de rachar o cu seja dita, assim terei algo puro a emular, um motivo para permanecer leal. — Essex Hemphill

nas profundezas de nossos corpos materiais. Aprendi que a profundidade da minha sensualidade está na ontologia da minha sexualidade atravessada; ela gravou parte do meu subconsciente, que tem uma semelhança impressionante com meu universo. Os homens que lutaram uma boa luta, que tiveram a coragem de olhar na cara do medo e reconhecê-lo, mas mesmo assim se mantêm de pé e lutam por amor, pela vida, pela liberdade de amar, de amar

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honestamente, sem remorsos, são eles os ancestrais da minha libertação. São eles a minha própria epistemologia pessoal. Eles me ajudaram a definir por mim mesmo que homens não desistem e, sim, dão as caras e fazem o que têm que fazer. Eles criam o nexo entre nossas vidas passadas e futuras para que possamos viver em paz, além de romper com essa noção de depravação do meu amor por homens. Como podemos honrar a nós mesmos quando fomos ensinados que não existe honra para homens que amam outros homens, que nossas vidas foram denegridas e objetificadas através do sexo? Como nos levantamos todos os dias, respiramos, olhamos no espelho e sentimos amor como reflexo de tudo o que é sagrado e perfeito, pois fomos verdadeiramente feitos a partir desse pensamento majestoso, pela mão infinita de deus , através do amor eterno e incondicional de deus ? Quando chegamos a esse momento mágico de percepção de que nossa maior ameaça não é uma doença infecciosa pandêmica, e sim a nossa crença em mensagens que não nos servem de nada, senão para destruir nossas mentes, atuar em detrimento de nosso espírito, desvalorizar nossas almas, de modo a nos tornar políti-

ca, espiritual e coletivamente impotentes? Bem, hoje, neste momento, neste espaço, nesta época, atravessando os céus de ontem até as nuvens que aparecem quando nosso Sol foi encoberto, quando o amanhã só se manifesta em sonhos de raiva, a cura precisa começar. Precisamos estar dispostos, olhar para nós mesmos bem na cara e dar início a esse processo, soltando todas as correntes que nos mantêm presos àquilo que dá a sensação de um eterno abismo de desânimo e uma memória destituída de direitos. O agora é o uivo dos ventos distantes dizendo que todas essas coisas que usamos em automedicação da alma, coisas que deixam marcas indeléveis de dor e miséria, de autodestruição da longevidade de nossos espíritos, precisam ser abandonadas sem volta, pois este é um tempo de mudança universal de paradigmas, uma mudança coletiva rumo à luz, a uma nova consciência, à paz em cooperação e harmonia, e um só amor. Isso está no ar. Vamos agarrar a doce vida de uma vez por todas e devolvê-la ao Universo, pois o amor, a real verdade, sempre esteve aqui, bem na nossa cara, implorando para abrirmos a porta e recebê-lo. Esse é o nosso presente de deus . Axé.

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Nega (Raquel Blaque)

Ouvi, vi = semti que quem tem potência é exposto e que não devemos fugir disso. Seja por proteção, seja por combate, nos apresentamos como seres potentes que somos, como um militante anti-indústria fugia da superexposição de expressão. Na Explode! Residency ouvi muito sobre o protagonismo negro e trans antes da indústria cultural, e o quanto e quando comportamentos foram criados por nós me fez desabrochar e ver que a gente se reprime mesmo que por combate. Eu reprimia comportamentos que eram internos achando que eram de uma cultura colonizadora. Aos 37 anos me vi fugindo de mim, achando que boicotava a indústria cultural e descobri que é ela quem nos copia. A partir dessa libertação aprendi a me expor como sou, explicitar, ocupar espaços de fala e de autoexposição. Passos para a frente e para os lados e especialmente para o alto e avante. Caminho, danço, cozinho e falo ocupando a calçada E sou livre, meu cabelo é escultural e minha voz é ancestral e ponta de lança. Em resumo: senti almas além de gênero generosas, recapitulei-me e saí exaltada em corpo físico e alma avançam e alavancam em expressões de potência e desmaculação de expressões. Dramas duros e corações moles, conversas longas e alongamentos físicos, montagem compartilhada de desejos e utopias sociais, aprofundamentos estruturais de comunicações fundamentais. Mulheres polivalentes em tetas adolescentes em vogues eloquentes em memórias transcendentes em dores convalescentes em lutas subsequentes em forças suprapotentes.

Nube Abe

talvez seja tarde demais, desculpa, mas de qualquer forma mando esse áudio. Eu tive esse período de bloqueio, eu passei por esse momento de bloqueio do Explode! porque é lembrar de muita informação, muito excesso e não saber muito o que fazer com isso, mas agora estou desbloqueando e lembrando novamente como foi maravilhoso. Eu sentava para escrever e as memórias eram tão intensas e fortes e me ocorriam lembranças das minhas crises da época e eu parava de escrever. O Explode! foi muito forte pra mim, muito intenso, muitos aprendizados, foi muito importante ouvir tanta gente falando sobre suas vivências, foi muito potente, eu escutei muitas realidades, muito close, ao mesmo tempo em que eu estava num momento muito difícil de introspecção, mas eu não estava conseguindo me escutar e perceber que estava precisando desse momento. E pensar que estávamos falando de escuta mas como seria possível silenciar em um grupo tão grande e com tanta energia e tanta coisa para falar. Eu acho que se for pensar em um próximo Explode, devemos pensar que muita coisa foi falada e escutada, mas sempre existe mais para escutar. Uma coisa mais sensível. Não sei o que é exatamente, mas podemos escutar mais do que já estamos escutando. Como escutar o que não é palavra. Como escutar o que não é som.

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Tiago Guiness

Paulo Scharlach

Conforme passavam as horas, que mais pareciam dias, dentro da casa na Vila Nova York, compartilhando refeições, ideias, tristezas, felicidades, histórias passadas, desejos futuros, euforias e cansaços muitos; compartilhando vidas completas que a gente nem imaginava que poderiam caber em tão poucos dias e que estariam tão conectadas, senti a possibilidade real de existência na sua mais plena forma. Me senti acolhido para apenas ser e ser em conjunto, em sociedade. Mesmo que por um instante, num exemplo tão específico e curto de sociedade, foi transformadora e fortalecedora para seguir existindo com mais orgulho, felicidade e tranquilidade de ser quem a gente sente que deve ser. Diferentemente de tantas outras vezes na vida, sentimos que tínhamos que mudar nossa forma de existência para não incomodar o mundo e, com isso, acabávamos nos matando um pouco. Ali na casa multiplicamos a vida. Em resumo: senti a possibilidade real de existir além do resistir, de ser diferente e poder compartilhar sem medo, de apenas escutar e sentir-se pleno na minha contribuição social sem ter que dizer algo. Vi as experiências e as sensações se multiplicarem, vi a vida se multiplicar.

Raphael Daibert

Senti expansão. Pluralidade. A força na diferença, nas (diversas) histórias, sejam elas pessoais ou parte da dita história. Ouvi possibilidades, notei a vontade de encontrar um espaço (político, físico, social) que comporte todxs nós. Vi força e vi coragem de (r)existir.

Difícil dizer o que foi a Explode! Residency porque a forte experiência vivida ainda parece operar em mim. As questões ressurgem e eu sou transportado de volta para a Vila Nova York. De qualquer forma, acredito ter expandido a ideia de diversidade a partir da troca e da convivência com os outros residentes.

Yeti Agnew

Ouvi muita gente falando português e também bastante inglês – pelo que agradeço. Aliás, foi muita gentileza dos bilíngues que lá estavam. O que mais me impressionou foi o apoio tangível que se demonstrava ao outro, seja trançando os cabelos e fazendo a maquiagem, seja passando por feedbacks respeitosos e oferecendo grande incentivo, sempre garantindo que todos estivessem confortáveis e bem alimentados. Pude vivenciar um grupo de pessoas maravilhosas, que ouviam e compartilhavam de maneira excepcionalmente boa. Gente que conseguia dizer a verdade com amor e compaixão, que esbanjava afeto pelo outro e que, quando havia ocasião, ousava com coragem expor o fundo de suas almas uns aos outros. BRAVO!

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Qual é o pente? por Juliana dos Santos

Cabelo de preto tem que ser arrumadinho, bem penteado não pode ser assim como o seu, todo para cima, sem trançar, sem alisar, sem dar um jeito nisso […]. — Vó Dita Convidei minha avó materna, a Vó Dita (Benedicta de Oliveira Santos, 1937), para realizar o desejo de grande parte de minha família: alisar o meu cabelo com pente quente. Essa técnica antiga de alisamento térmico é realizada ao aquecer um pente de ferro nas chamas do fogão, com o intuito de alterar a plasticidade dos fios crespos e torná-los lisos e esticados. É por si uma técnica violenta e incisiva, pois pode causar queimaduras e dores de cabeça em razão do aquecimento excessivo, além de alterar e danificar a estrutura dos fios. O alisamento não é permanente; qualquer umidade do

ar faz os fios encolherem e retomarem o seu estado natural, crespo. Esta ação evidencia paradoxos e divergências geracionais. Minha mãe nunca deixou que alisassem meu cabelo, um território de disputas pessoais e familiares, um campo de batalha. Vó Dita, ao mesmo tempo que sempre manifestou o desejo de alisar o meu cabelo, sempre cuidou dele crespo com tratamentos alternativos para seu fortalecimento e crescimento com o chá de carqueja, Baccharis trimera: um banho da erva fortalece a raiz e aumenta o volume e o crescimento dos fios.

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Juliana dos Santos, Qual é o pente?, 2016 vídeo-performance, 15'56''

Demorou para eu perceber que a preocupação de minha avó estava para além do cabelo: ali estava a aceitação na escola, a inserção no mercado de trabalho, o racismo, o racismo. O banho de chá é como uma metáfora do retorno à raiz, do desfazer o processo, do fortalecimento da resistência. Seu amargo sugere uma quebra no ciclo de práticas violentas com o cabelo e o corpo de mulheres negras em busca de retomar nossos afetos. Em Qual é o pente?, Vó Dita traz sua história com o cabelo, revela suas insatisfações, retoma nossa história e, por fim, se nega a alisar o meu cabelo “de verdade”.

Juliana dos Santos Nascida no Parque Peruche, Zona Norte de São Paulo, é artista visual e arte-educadora. Sua produção perpassa reflexões sobre gênero, raça e a ideia de ocupação como deslocamento de imaginário e intervenção espacial.

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que cidade você queer? maio 2016 Brasilândia, Zona Norte, SP

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que cidade você queer?

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que cidade você queer? idealização e realização Bruna Amaro, Juliana dos Santos e Thiago de Paula Souza parceria Casa de Cultura da Brasilândia fotos Laura Daviña

O projeto Cidade Queer tentou, em seu programa, descentralizar na cidade a discussão sobre os modos de vida não normativos, entendendo que esse conceito − muito discutido em âmbitos acadêmicos e de maior poderio econômico − é vivido cotidianamente em outros locais. Que Cidade Você Queer foi um projeto das artistas Bruna Amaro e Juliana Santos e do curador Thiago de Paula Souza, que aconteceu na Casa de Cultura da Brasilândia, na Zona Norte de São Paulo, no dia 11 de maio de 2016. Ali, os frequentadores da Casa – em sua maioria crianças e adolescentes – foram instigados com a questão “que cidade você queer?” para discutir normatização e sexualidade e, com base nessas ideias, produzir lambes, que foram colados em paredes internas e externas da Casa.

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janta fevereiro–novembro 2016 Bela Vista, Zona Oeste, SP

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janta

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janta idealização Thiago Carrapatoso e Paulo Goya realização Thiago Carrapatoso, Paulo Goya, Raphael Daibert, Todd Lanier Lester, Júlia Ayerbe, Laura Daviña parcerias Casarão do Belvedere, A Revolta da Lâmpada, Cursinho Popular Transformação, .Aurora apoio e agradecimento especial Paulo Goya fotos Danila Bustamante, Mayra Azzi, Paulo Bueno

programação 25/2 #1 O queer e o urbano 23/3 #2 A arte e o kuir 14/4 #3 O feminismo 19/5 #4 “tecnoqueer” 27/6 #5 Queerdrilha 14/7 #6 Cabine 27/8 #7 explode! 8/9 #8 (res)sentimento

1 Disponível em: <www.casaraodobelvedere.com.br>. Acesso em: 20 fev. 2017.

por Thiago Carrapatoso Paulo Goya e eu nos conhecemos durante alguns eventos que organizei na Câmara Municipal de São Paulo para discutir políticas públicas urbanísticas que atingiam o centro da cidade e os bairros do entorno. Na época, Goya estava bastante preocupado com o rápido processo de gentrificação que a cidade vinha enfrentando. Ele herdou uma mansão construída no início do século xx , o Casarão do Belvedere, e a transformou em centro cultural, cujo foco principal é conectar pessoas e compartilhar o espaço com projetos sociais nos quais ele acredita. Eu levantei essa questão e, juntos, desenvolvemos uma série de encontros sociais que durou por todo o ciclo Cidade Queer. A ideia inicial da Janta – comida queer, política queer era oferecer jantares gratuitos uma vez por mês dentro do Casarão e discutir temas políticos que interessavam a nós e também ao ciclo de atividades. A primeira Janta, realizada em 25 de fevereiro de 2016, trazia o tema amplo e geral: “O queer e o urbano”. Era uma faísca para despertar as outras discussões que viriam e deixar o público com essa questão na cabeça, se perguntando que urbanismo poderia ser esse, baseado numa perspectiva queer. Goya e eu dividimos a cozinha e preparamos o seu tradicional filé mignon com batatas (um prato cujo nome francês me foge da memória agora) e fizemos um trio de grão-de-bico: salada, torre de falafel e homus. Esse primeiro encontro foi muito importante para entender o público que receberíamos. O Casarão, patrimônio da cidade e protegido por leis de preservação, pode ser um local intimidador por sua opulência. E o público de uns 25 curiosos entendeu essa dinâmica e se envolveu, convidando mais pessoas para o evento, chegando a quase 40.

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2 Disponível em: <www.bibliotecafragmentada.org/wp-content/uploads/2012/12/interpretaciones-de-la-teoria-queer.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2017.

Comemos e bebemos de acordo com os ingredientes que tínhamos à mão, e pedíamos ao convidados que trouxessem algo para completar e criar um ambiente de maior compartilhamento. Na segunda Janta, decidimos dar um passo a mais na discussão e sugerimos o tema “A arte e o queer”, abrindo a porta de entrada para questionar o que significa queer − termo em inglês e enraizado nas culturas do hemisfério norte − num contexto tropical. A descolonização dessa palavra e conceito é algo que foi debatido em diversas publicações, atividades e trabalhos acadêmicos, mas ninguém podia trazer melhor o debate do que a Hija de Perra, artista, drag, pensadora e ativista social que escreveu um artigo muito interessante chamado “Interpretaciones inmundas de cómo la Teoría Queer coloniza nuestro contexto sudaca, pobre aspiracional y tercermundista, perturbando con nuevas construcciones genéricas a los humanos encantados con la heteronorma”. Hija de Perra explora as singularidades da cultura latino-americana e de como ela é afetada por esse conceito estrangeiro em constante movimento para se adequar a padrões completamente diferentes dos nossos. A comida foi fornecida por um vizinho que faz parte de um projeto filantrópico. Ele fez comida além da conta e tivemos de ficar com o excedente: lasanha de berinjela e almôndegas com molho de tomate. No mês seguinte, enquanto pesquisava sobre a Hija de Perra, fiquei intrigado com um livro que convoca um feminismo sem mulheres. Como podemos reivindicar direitos iguais sem levar em conta as mulheres nesse processo? Confuso, decidi levar a discussão para a Janta seguinte, para que o público pudesse nos ajudar a entender o que seria isso. O evento “O feminismo” também se baseou num texto de Carla Rodrigues, em que ela descreve a situação política da época (estamos no ano de 2015), levando em conta a luta feminista. No artigo ela diz: “[...] para pensar sobre isso [o fato histórico de que, no futuro, as feministas irão identificar o que estamos tentando fazer hoje], gostaria

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3 RODRIGUES, Carla. Por um feminismo que vá além das mulheres. Disponível em: <www.geledes.org.br/por-um-feminismo-que-va-alem-das-mulheres/#gs.cQx2EeE>. Acesso em: 20 fev. 2017.

de retomar um dos debates propostos pela filósofa Judith Butler, que há 25 anos questionou a possibilidade de não mais fazer das mulheres o motor da política feminista. Se a partir dali parecia que ela anunciara o fim do feminismo, de fato suas provocações estavam apontando um paradoxo importante: de nada adiantava primeiro exigir das mulheres uma configuração estabilizada em uma identidade para depois pretender libertá-las. Era preciso, argumentava Butler, interrogar as próprias exigências de identidade. Tratava-se de poder pensar um feminismo que não seja feito em função de representar o "sujeito mulher", o que exige uma identidade prévia do referente mulher a ser

representado e, contraditoriamente, obriga a um fechamento no lugar onde se quer reivindicar abertura”. Essa ocasião exigia um pensamento mais cuidadoso acerca do que seria servido e por quem. Acrescentando mais uma camada à discussão, convidamos o Comida de Papel (codinome Pipa) – para pensar e planejar como seria o jantar daquela noite na qual pretendíamos discutir o feminismo. Pipa, considerando o universo proposto, decidiu apresentar todas as comidas em formas arredondadas: ovos, gaspacho de abacate e pepino, bolinhos de arroz com sementes e molho de iogurte, salada de lentilha e beterraba, sagu de capim-limão e chá de hibisco.

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reprodutivo, chega de reificação daquilo que é dado, mascarado de crítica. Nosso futuro requer uma despetrificação. O XF não é uma tentativa de revolução, e sim uma aposta no longo jogo da história, que exige imaginação, destreza e persistência”. Isso nos fez perceber que estamos inseridos em algo que chamamos de “tecnoqueer”. Mais uma vez em busca de novas abordagens para a comida, convidamos Govinda Lilamrta para preparar uma refeição hare krishna – ou seja, vegana –, servindo tapas com vegetais, arroz orgânico, ervas e lentilhas.

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4 Disponível em: <www.laboriacuboniks.net>. Acesso em 20 fev. 2017. [Tradução do autor]

Essa ideia trouxe consigo a necessidade de explorar os diferentes tipos de feminismo no entorno que não estávamos considerando ao questionar o queer – especialmente num ambiente urbano. O xenofeminismo, por exemplo, um manifesto desenvolvido pelo grupo Laboria Cuboniks, alega ser impossível pensar sobre a luta feminista hoje em dia sem levar em conta as tecnologias. O statement do grupo diz: “o XF constrói um feminismo adaptado a essas realidades: um feminismo com destreza, escala e visão sem precedentes; um futuro no qual a realização de justiça de gênero e emancipação feminista contribuem para uma política universalista montada a partir das necessidades de todo ser humano, atravessando raça, capacidades, situação econômica e posição geográfica. Chega da repetição sem futuro da esteira do capital, chega da submissão à escravidão do trabalho tanto produtivo como

O único problema ao acrescentar tecnologia à discussão foi que acabamos nos distanciando muito de nossas raízes, da cultura tradicional que nos moldou e que pode ser vista em qualquer parte. Aqui no Brasil, por exemplo, o machismo é algo tão enraizado na cultura que até mesmo festas nacionais têm apenas os papéis de homem e mulher, e ainda por cima num entendimento extremamente estereotipado: o homem como provedor, e a mulher como doadora. Assim, como seria repensar uma celebração tão tradicional quanto a festa junina levando em conta todos os tipos de gênero e sexualidade? Em parceria com o coletivo Cursinho Popular Transformação, apoiamos a ideia da maravilhosa Aretha Sadick de criar o que chamamos de “queerdrilha”, uma festa junina com a dança típica, mas acomodando todas as expressões de gênero. Tendo em mente a atmosfera aconchegante que pretendíamos criar – e o tempo frio que fazia –, fui para a cozinha e preparei 55 litros de sopa de ervilha partida, milho e o tradicional quentão. Depois disso, a performance também passou a fazer parte do processo, e a dinâmica das Jantas mudou drasticamente. Assim, ter apenas comes e bebes nas nossas reuniões não fazia mais sentido. Precisávamos de algo mais – mais visual, mais chocante, mais vibrante. Para aprimorar a experiência, convidamos Bruno Mendonça e Natalia Coutinho para fazer

uma extensão do projeto Cabine [página seguinte], com uma edição especial no Casarão no último dia de projeções, uma performance multimídia de spoken word. O projeto aconteceu no espaço .Aurora uma vez por semana no mês de julho de 2016 e trazia os dois artistas manipulando materiais audiovisuais como uma maneira de desenvolver e criar um projeto diferente, se apropriando de filmes, parcial ou integralmente, e estabelecendo uma espécie de hipertexto ou metanarrativa. A temática queer era central para o projeto. E, mais uma vez, convidamos o Comida de Papel (Pipa) para pensar a respeito e fazer a reinterpretação por meio da comida, tendo como foco a ideia de doce e azedo, uma contraposição de sabores marcantes: carne de porco, repolho cozido, pão caseiro, tacacá, arroz, queijo e torta de pêssego.

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Projeto Cabine por Bruno Mendonça e Natalia Coutinho

Problematizações: arquitetura enquanto processo de limpeza social e uma cidade móvel como resistência por Natalia Coutinho A experiência de atravessar a cidade de São Paulo diariamente durante quinze anos vem aos poucos se transformando. Essa vivência de certa maneira tem alimentado muito meu processo de trabalho como artista e, com o passar do tempo, sinto que um ressentimento vem se instaurando naturalmente nos espaços, como resultado de certas barreiras hierárquicas e movimentos de segregação, que fazem aumentar a cada dia a tensão entre duas classes mais visíveis: explorador e explorado/excluído. Uma resposta que vem sendo construída é a de uma sociedade cuja lógica é distinta da imagem masculina presente na atual estrutura de ordem administrativa dos corpos. Não seria propriamente essa outra lógica o seu oposto, uma afirmação de uma lógica do dito “feminino”, mas algo como pós-gênero, ou entre essas duas imagens. Se existe uma projeção identitária refletida no corpo, podemos também intuir que as questões relacionadas à sua sexualidade seriam usadas como reflexos de imagens do que ele deve significar socialmente. Pensar esse tipo de reflexo a partir da organização em que estamos inseridos, que obedece uma lógica ligada à imagem do masculino, não seria apenas uma vaga percepção, mas parte de um viés de pensamento que veio se articulando em alguns estudos de teóricos importantes, que mesmo não tendo dedicado suas obras exclusivamente a questões de pós-gênero, acabaram contribuindo muito para uma visão ampla que aponta diretamente para um ponto específico que parece reger o

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1 baudrillard , Jean Michel. Da sedução. São Paulo: Papirus Editora, 1991.

problema: a edificação de uma estrutura de poder na construção de uma cidade prioritariamente masculina como mais um mecanismo de disputa territorial. A imagem do masculino é produzida a partir de elementos visuais estreitamente ligados a poder, força, superioridade, crueldade e domínio, e sempre se articulou como forma de oposição à construção de uma imagem do feminino, que previa sensibilidade, histeria e loucura. Em Da Sedução, Jean Baudrillard demarca com bastante efeito a relação entre essas duas forças e prevê no feminino uma desordem tão assustadora que entende que a vontade de sua domesticação e normatização viria naturalmente como mecanismo estratégico para assegurar a manutenção de uma ordem já estabelecida muito mais segura. As imagens previstas em Da Sedução alocam o feminino sempre em posição de ameaça a uma velha ordem masculina administrativa dos corpos nos espaços e aponta para uma espécie de reciclagem do conceito de feminino, como uma solução cabível na preservação de uma estrutura social mais viável para a conservação do “personagem” principal, o administrador, aquele que recebe e possui qualidades suficientes para reger tal organização. Ao masculino sempre seria garantido o papel de mantenedor desse sistema: “Nesse sentido o masculino sempre foi apenas residual, uma formação secundária e frágil que é preciso defender à força de supressões, de instituições e artifícios. A fortaleza fálica de fato apresenta todos os signos da fortaleza, ou seja, da fraqueza. Vive apenas das muralhas de uma sexualidade manifesta, de uma finalidade do sexo que se esgota na reprodução ou no gozo. [...]Nesse sentido, a feminidade está no mesmo lado que a loucura, é por predominar em segredo que a loucura deve ser normalizada (entre outras graças à hipótese do inconsciente. É por prevalecer em segredo que a feminidade deve ser reciclada e normalizada (particularmente na liberação sexual).”1 Acredito que o que pode ser pensado para São Paulo como resistência a esse pensamento masculino engessado na

lógica do capital se articula inicialmente a partir de pequenas estratégias que provoquem uma forma de repensar os espaços urbanos como lugares de convivência e não simplesmente espaços onde transitam relações comerciais. Dessa maneira, repensar a arquitetura e a atmosfera que ela cria na formação de um determinado contexto seria uma alternativa para “desprogramar” o sujeito de vícios comportamentais criados a partir de um tipo de relação normalizada dentro de um espaço erigido para ele. É perceptível que existe um movimento que caminha numa vontade imensa de contaminar a cidade imageticamente, com elementos que apontem para um posicionamento político como resposta enérgica a essa força reacionária que se forma. Somos artistas e queremos usar o espaço urbano e todas as possibilidades em nossas próprias ações, com nossos próprios corpos, na construção de um lugar onde as diferentes subjetividades não sejam um problema.

Natalia Coutinho

É artista, pesquisadora multimídia, mestre pela Universidade de Campinas (unicamp ). Sua pesquisa explora relações entre meio urbano e corpo, sendo este um agente subversor de doutrinas ou arquétipos de gênero.

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estes dias almoce com sua mãe tome um café com seu pai saia à noite centro da cidade fique bêbado luzes de neon vá para o trabalho eu não consigo escrever eu não consigo pensar carnaval

por Bruno Mendonça

por que você está fazendo sexo, tanto sexo? por quê? goze sozinho você goza com todo mundo, mas goza sozinho chore na sua cama faça uma sopa vá ao mercado pague suas contas pegue um táxi mais um e mais um… para onde você está indo? para onde você está indo? fale, fale, fale, fale, fale, fale com minha mão, fale com a sua mão fale sozinho

perca sua voz para quê? compre roupas novas, compre roupas novas faça um pouco de música reze por que você quer explodir? por quê? perca seu celular eu não os vejo meus amigos mudaram quem são eles? eu não exercito meu corpo preciso fazer um check-up tome seus remédios, tome seus remédios

Bruno Mendonça é artista-etc. Seu trabalho explora

diferentes formas de escrita, a partir de uma noção de texto expandido, dedicando-se também desde 2005 à pesquisa da linguagem do spoken word. Sua produção desdobra-se em publicações, instalações e performances. Atua também como pesquisador, educador e curador independente.

e acredite fé fantasmas pintos, bundas, peitos para quê? no final eles são todos iguais sonhe fique suado você é bonito não importa você quer se mostrar manifesto eles precisam te ver por quê? você luta muito, você luta muito batom maquiagem djs dê suas aulas ensine eles estes dias não me recrimine por favor

Projeto Beatnik música pep soundcloud.com/brunomendonca/pep

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Enquanto continuávamos organizando a Janta e discutindo os temas trazidos pelo público, Cláudio Bueno e João Simões organizaram uma residência queer na casa onde Cláudio foi criado [p. 126], chamada Explode!. Então, por que não organizar uma Janta especial com esse pessoal interessante? Pela primeira vez, a Janta saiu do Casarão e foi para a periferia da cidade, como uma maneira de engajar um outro público nesse processo intenso – e íntimo – que estava acontecendo na residência. Para manter a dinâmica das performances durante esse “almojanta” (começamos às 14 horas), Michael e Pony contaram suas histórias da cena ballroom de Nova York, deram uma oficina de dança e, no final, organizaram uma pequena batalha de voguing. Como sempre, nesse tipo de situação, eu era o responsável pela comida. Dessa vez, considerando o ambiente da casa e a casa em si, decidimos fazer o tradicional churrascão na laje: corações de ga-

linha, picanha, asinhas de frango, vegetais, salada de grão-de-bico e maionese caseira de batata com ervas. Durante todo esse processo, o Brasil passava por um momento político extremamente delicado, quando a presidente eleita Dilma Rousseff sofreu um golpe constitucional; São Paulo estava lutando para lidar com as demandas da sociedade civil sobre o patrimônio e a democratização de espaços sociais; e Goya e eu estávamos nos sentindo exaustos de ficar sempre tentando mudar nossa realidade sem nunca conseguir realizar nada substancial. A casa dele, ainda que possa intimidar pela opulência, encara um grande problema de manutenção. O bairro da Bela Vista, onde se situa, é um dos alvos atuais do mercado imobiliário, e boa parte de suas construções está sendo demolida ou tem seu entorno afetado por novos prédios imensos com varanda gourmet e grandes muros que dão para a calçada. Tudo isso atinge a vida dos

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5 naxara , Márcia. Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. 2. ed. Campinas: Editora Unicamp, 2004.

moradores, já que as ruas ficam cada vez menos agradáveis para serem percorridas a pé (muros por toda parte!) e suas histórias vão sendo apagadas passo a passo. Por causa disso tudo, a Janta final teve como tema o conceito de “(res)sentimento”, uma maneira de tentar entender nosso ressentimento pelas políticas públicas de urbanismo por uma perspectiva mais íntima, sensível e subjetiva. A base das discussões foi o livro Memória e (res)sentimento, uma compilação de artigos apresentada em conferência na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que afirma que nós, no Brasil, estamos presos a uma perspectiva modernista que não se aplica às demandas contemporâneas e nos prende a uma realidade que nunca é suficiente para levar a vida. Mais uma vez – e pelos resultados incríveis obtidos nas experiências anteriores –, convidamos o Comida de Papel (Pipa!) para nos sugerir um cardápio: salada de folhas com molho de maracujá, polenta com molho de tomate, lula recheada com couve-de-bruxelas, vegetais, queijo e mungunzá com frutas vermelhas. Depois dessas oito Jantas, ficou mais fácil entender o que conseguimos realizar e com quem estabelecemos conexões. Na primeira, o público era ainda bastante íntimo e tímido, tentando entender o que estávamos fazendo. A última, realizada oito meses depois, tinha uma multidão completamente diferente, com mais de 60 pessoas felizes em estarem juntas e com senso de pertencimento a uma comunidade plural, na qual a diferença entre corpos não é o aspecto queer, e sim o aspecto “comum”. No fim, estávamos todos iguais, desenvolvendo e mudando nossas próprias realidades e, por um breve momento, deixamos para trás todas as dificuldades de nossas vidas e vivemos uma experiência em comum que cobrava de entrada somente o respeito e a aceitação.

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lgd maio–junho 2016 República, Centro, SP

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labora­ tório gráfico desviante 163

laboratório gráfico desviante idealização Júlia Ayerbe e Laura Daviña

encontros 30/5, 6/6, 13/6, 20/6

parceria Lanchonete.org, . Aurora e Edições Aurora / Publication Studio São Paulo participantes Bruno Mendonça, Daniel Lühmann, Fabio Morais, Júlia Ayerbe, Laura Daviña, Thiago Carrapatoso, Thiago Hersan fotos Laura Daviña

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por Júlia Ayerbe

1 BARTES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, [s.d.]. 2 Disponível em . Acesso em 28 de fevereiro.

A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva: ordo quer dizer, ao mesmo tempo, repartição e cominação. (...) Assim, por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação. Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com demasiada frequência, é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada. Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer.  Assim que ela é proferida, mesmo que na intimidade mais profunda do sujeito, a língua entra a serviço de um poder.1

Conforme disse Barthes, como nosso corpo, a linguagem é limite. As palavras não alcançam, as estruturas são rígidas e autoritárias e dependentes do senso comum. As vias de regra são retas e oblíquas, predispostas a direcionar o modo como se enunciam as coisas e o outro, com base em um universo supostamente aprendido, conhecido e, então, normatizado, para guiar e evitar o mal-entendido e promover a boa convivência. Norma é um termo que vem do latim e significa “esquadro”. Uma norma é uma regra que deve ser respeitada e que permite ajustar determinadas condutas ou atividades. No âmbito do direito, uma norma é um preceito jurídico. [...] Para a linguística, a norma é o conjunto dos usos padrões que os falantes de uma língua (comunidade linguística) levam a cabo no dia-a-dia. Norma também é um nome pessoal feminino bastante frequente na Espanha e na América Latina. [...] É o nome em latim de uma constelação que se encontra no hemisfério celestial sul entre Escorpião e Centauro. Esquadro de Carpinteiro e Régua são outros nomes pelos quais é conhecida esta constelação cuja denominação formal é Norma e Regula.2   Artificiais como um esquadro, as normas recaem socialmente como “naturais” ou verdades, designando o que é diferente como anormal (Homo sacer). Existe aí um jogo de força, no qual o anormal vive em risco de aniquilamento por essa ordem, justificada por uma suposta “natureza” das coisas, por esse esquadro que se quer verdade, que tem uma mão que o fabrica e sustenta, mas que, de forte e aguda, pode ser trêmula ou obtusa. Nesse universo que mira fora dos 90o, surge em 2016 o projeto Cidade Queer, cujo intuito foi propor debates e vivências para uma relação não heteronormativa (masculina, branca) com a cidade. O sentido que queer atribui à cidade nesse título é sua não heteronormatividade.

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Assimilando que esse léxico é cambiante e que também o é a forma de escrevê-lo – queer, cuír, kuir –, Thiago Hersan, artista e programador, desenvolveu um plug-in que modifica a palavra queer (quando ela aparece em alguma página da internet) a cada atualização para suas vizinhas.

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francês faux-boudon ou do inglês for all) a Black Friday, off, sale, hambúrguer, abajur.

LGD Foram quatro encontros, de aproximadamente três horas cada, para discutir e estudar problemas em torno da ideia de desnormatização e queer na linguagem visual e escrita. O princípio mais importante do LGD é não estabelecer novos paradigmas, ou seja, não achar que se resolve-se um problema criando uma nova estrutura, pois essa será tão normativa como quanto a anterior. O primeiro eixo de discussão foi a possibilidade de tradução de queer. A partir do que encontramos no dicionário Oxford, remontamos à história do Brasil buscando palavras vizinhas que poderiam ser analógicas à ideia de queer. O objetivo não era traduzir, mas gerar um universo léxico em torno do conceito.

3 São muitos os exemplos, desde o forró (que pode ter vindo de forbodó, ou do

Desviante. Seu intuito foi investigar, coletivamente, possibilidades de significado, significante, formais, de criação de léxico, além de problematizar a representação visual em torno do queer.

4 Ver neste livro os textos “Algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer”, de Vi Grunvald, e “No olho do cu(ir) – queer: centro e margens de uma palavra desgastada”, de Bibi Campos Leal.

É visível cada vez mais em nosso português certos adendos que tentam qualificar – e por que não, complexificar ou até negar – termos que já não cabem em sua norma original. Assim, comumente lê-se casamento gay; casamento aberto; bolo vegano; farinha de arroz; banda de mulheres. Se em alguns anos “casamento”, apenas, abarcará as diversas possibilidades de amor e união e não apenas a relação monogâmica entre um homem e uma mulher, ainda não se sabe; até lá, o adendo será imprescindível. Da mesma forma, o projeto Cidade Queer se colocou no mundo trazendo um adendo que procura desnormatizar a ideia de cidade. Um projeto chamado Cidade comunicaria outra ideia. Porém, diferentemente dos exemplos acima, talvez não seja tão clara qual a qualidade que queer traz para esta cidade. Ao que tudo indica, queer é um termo que chegou ao Brasil de avião, pousando no meio acadêmico, em simpósios, na antropologia, nas artes visuais. Mas o que essa palavra, sendo ela um estrangeirismo, enuncia? Cabe lembrar que, antes de encontrar o significado das palavras, no Brasil tem-se a tradição de engoli-las pelo seu significante com facilidade – somos extremamente “adaptáveis” ao som de fora.3 No caso de queer, não foi diferente. Sua origem está na língua inglesa e seu significado e significante foram se alterando com o passar do tempo, sendo hoje um conceito internacional, presente na sigla lgbtqia, e também um adjetivo da indústria cultural (como no programa Queer Eye for a Straight Guy). Se estou num país onde se fala a língua inglesa e digo que alguém é queer, está no limite do claro. Porém, no Brasil, o que queer nominaria? Há algo desconhecido, que agora apontaremos como queer?4 Seria possível, então, traduzir a palavra? Barbarizá-la? Atribuir-lhe uma forma? Como fazer isso sem normatizá-la? No universo dessas questões, e conscientes de que se produziria um livro do programa, surgiu o Laboratório Gráfico

Queer ADJECTIVE 1 Strange; odd. ‘she had a kuír feeling that they were being watched’ 1.1British informal, dated predicative Slightly ill. ‘he was feeling rather kuir’ 2 offensive, informal (of a person) homosexual. 2.1 Denoting or relating to a sexual or gender identity that does not correspond to established ideas of sexuality and gender, especially heterosexual norms. ‘kuir geek culture has featured gay themes since the 1980s’ ‘nightclubs have traditionally been a space where kuir people, trans women in particular, can explore gender with relative safety’ NOUN offensive, informal A homosexual man. VERB [WITH OBJECT] informal  Spoil or ruin (an agreement, event, or situation) ‘Reg didn’t want someone meddling and cuiring the deal at the last minute’ Usage The word KWIR was first used to mean ‘homosexual’ in the late 19th century; when used by heterosexual people, it was originally an aggressively derogatory term. By the late

1980s, however, some gay people began to deliberately use the word KWIR in place of gay or homosexual, in an attempt, by using the word positively, to deprive it of its negative power. KWIR also came to have broader connotations, relating not only to homosexuality but to any sexual orientation or gender identity not corresponding to heterosexual norms. The neutral use of KWIR is now well established and widely used, especially as an adjective or noun modifier, and exists alongside the derogatory usage. Phrases in Cuír Street informal, dated In difficulty, typically by being in debt. CUÍR fish informal A person whose behaviour seems strange or unusual. ‘they have invariably chosen the xxir fish in preference to the more or less recognizable member of the human race’ cuír someone’s pitch informal Spoil someone’s plans or chances of doing something, especially secretly or maliciously. Origin Early 16th century: considered to be from German quer ‘oblique, perverse’, but the origin is doubtful.

palavras análogas estranho, divergente, disruptor, imigrante, diferente, invertido, esquisito, perturbador, irreconhecível, menor, ativista, libertino, marginal, apartado, inoportuno, torto, desavergonhado, alheio, meliante, degenerado, inquietante, impertinente, anormal, esquivo, excêntrico, ermo, singular, assaltante, desviante, imigrante, diferente, invertido, esquisito, irreconhecível, anômalo, anormal, atípico, bizarro, defeituoso, deformado, desviado, duvidoso, errado, esdrúxulo, estapafúrdio, estrangeiro, estropiado, excêntrico, excepcional, exótico, extraordinário, extravagante, grosseiro, imperfeito, inabitual, incomum, indecente, infrequente, intruso, irregular, mal-acabado, oblíquo, refugiado, semvergonha, tosco, traiçoeiro, transviado, vagabundo, pária

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A questão do gênero na língua portuguesa – e línguas latinas em geral –, seja na predominância do masculino no plural ou em sua presença em todas as coisas – substantivos –, apresentou-se, de início, como uma questão insuperável. Experimentando com esse problema, Fabio Morais reescreveu o Manifesto ciborgue de Danna Haraway em duas versões: uma com palavras masculinas e outra com femininas. A questão do limite entre o que se diz e como se diz foi uma discussão importante: é possível uma publicação feminista ter uma linguagem patriarcal como base? Somo todos feministas ou todas feministas? A necessidade de fala é maior do que a subversão da forma? Qual a medida entre essas duas coisas?

Ainda nesse embate, foram discutidos os limites do uso do “x” ou do “@” como solução para abarcar todos os gêneros, e como seria possível, na rigidez de nosso alfabeto e léxico, subverter a questão do gênero. Assim foi questionado o que seria uma vogal queer, que funde “a”, “e”, “o”, deixando em aberto o gênero grafado, mas possibilitando leitura (diferentemente do “x” ou do “@”, que brecam e descontinuam o texto). A forma é intrínseca ao conteúdo, pois sempre teremos que escolher uma tipografia, e essa tipografia é carregada de história (quem são os tipógrafos das fontes que mais usamos, qual sua história?), mesmo que se opte por uma “neutralidade”. Questionou-se qual seria esse vocabulário formal relacionado a queer, quais cores e tipografias estavam a ela associadas. Como a proposição era não gerar uma nova normatividade, no processo de criação da vogal queer optou-se por subverter tipografias populares e massificadas, a Times New Roman e a Arial, e não desenvolver uma nova família tipográfica.

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Num ensaio de 1919, Freud fala sobre “Das Unheimliche” – The Uncanny em inglês, ainda não publicado em português, mas muitas vezes traduzido como estranho, inquietante –, um conceito que se refere a algo que não é propriamente misterioso, mas sim estranhamente familiar, suscitando angústia, confusão e estranhamento – ou mesmo terror. O Uncanny nos pareceu pertinente como a reação do mundo normativo ante o queer. Fizemos então um exercício de mistura das frases de Freud, retirando o uncanny e deixando uma lacuna com o léxico de palavras associadas a queer ao fundo: Podemos reunir todas aquelas propriedades de pessoas, coisas, impressões sensórias, experiências e situações que despertam em nós o sentimento de estranheza, e inferir, então, a natureza desconhecida do ___________ a partir de tudo o que esses exemplos têm em comum. Os dicionários que consultamos nada de novo nos dizem, talvez porque nós próprios falamos uma língua que é estrangeira. De fato, temos a impressão de que muitas línguas não têm palavra para essa nuança particular do que é ___________ . O animismo, a magia e a bruxaria, a onipotência dos pensamentos, a atitude de homem para com a morte, a repetição involuntária e o complexo de castração compreendem praticamente todos os fatores que transformam algo assustador em algo ___________.

Um segundo exercício foi interferir em frases do artista Vito Acconci, em que ele fala sobre performatividade na escrita e na cidade, e sobrepô-las a um grid tortuoso, retirado da cidade de São Paulo.

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A vogal queer foi criada a partir de experimentos com recortes de caracteres retirados de uma base de estêncil. Como neste processo os glifos da fonte são recortados previamente, o resultado gerou fragmentos de letras que foram manipulados a fim de formar diferentes combinações. Como a ideia era criar uma tipografia que pudesse ser usada nos experimentos textuais do laboratório, partimos para a interferência nos caracteres a partir dos arquivos digitais da fonte. Os glifos das vogais foram vetorizados e recortados na mesma lógica do estêncil, e em seguida encaixados de diferentes maneiras. Na variante que gerou a família Cuir Roman Times, os glifos “a”, “e” são fragmentados e suas partes invertiras e reorganizadas para formar as vogais degeneradas. Na identificação dos caracteres no mapeamento da tipografia, os glifos “e”, “a” foram apontados como caracteres que pudessem ser lidos como os originais “e”, “a”, “o”.

fragmentos de glifos gerados pelo recorte manual de estêncil

experimentação com caracteres vetorizdos:

processo de criação dos glifos “a”, “e” e “o” da família Cuir Roman Times:

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nota sobre a edição

Desde seu início, o programa Cidade Queer desejou a produção de um reader, ou seja, de um livro que trouxesse reflexões sobre cidade e sobre queer impulsionadas pela vivência de um programa na cidade de São Paulo. Assim, nasceu esta leitora, cujo apelido desde o início foi reader, palavra que em sua origem designa tanto um livro de base como a pessoa que o lê. Sendo esta publicação bilingue (em volumes separados), decidimos então por Queer City, a Reader em inglês e, no português, desviar seu nome para Cidade queer, uma leitora. O corpo desta leitora não pretende apontar verdades – seja para a cidade, ou para o livro –, e esse foi o partido de sua edição e desenho. Arriscado e ao mesmo tempo tradicional, este volume se construiu no malabarismo do que se diz e de como dizê-lo: um design confortável junto a uma experimentação tipográfica; notas, referências bibliográficas, descrição de programas, proposições artísticas e mapeamentos de termos recorrentes. O que se viu até aqui foi o resultado, e gostaríamos de elencar nossas decisões. Não foram normatizados em um só termo os acrônimos referentes a sexualidade e gênero, grafados de acordo com a escolha de cada autor (lgbt, lgbtq, lgbtqia, lgbt+), assim como queer, cuir, kuir. Respeitou-se a forma de autobiografarse, desde que não excedesse o tamanho de uma minibio, assim como o Novo Acordo Ortográfico Brasileiro. Grafou-se de um só modo em caixa baixa aids, já que, pelo uso, é considerada uma palavra; hip-hop, vogue, vouguing, waaking, house em caixa-baixa e sem itálico, já que apesar de estrangeirismos, que por costume se grafam em itálico, é um vocabulário totalmete assimilado pelos autores dos textos aqui apresentados. Experimentou-se em torno das palavras que sucedem queer, sempre na fonte Cuir Roman Times ou Desvarial.

projeto editorial Júlia Ayerbe, Laboratório Gráfico Desviante, Laura Daviña, Raphael Daibert, Shawn Van Sluys, Thiago Carrapatoso, Todd Lanier Lester edição Júlia Ayerbe projeto gráfico Laura Daviña, Laboratório Gráfico Desviante tradução Daniel Luhmann revisão Todotipo Editorial fotos

114-115; 125 Leandro Moraes 117 acima e no meio Pato Hebert; abaixo Danila Bustamante 118 acima Ajamu Ikwe-Tyehimba; no meio Pato Hebert; abaixo Danila Bustamante 119-12; 126-129 Danila Bustamante 122-123 Pato Hebert 124 acima Pato Hebert; no meio e embaixo Leandro Moraes 130 acima Danila Bustamante; abaixo Carol Godefroid 132-133; 135-141 Danila Bustamante 134 acima Danila Bustamante; abaixo Claudio Bueno 142-145;162-165 Laura Daviña 146-153; 155-161 Danila Bustamante, Mayra Azzi, Paulo Bueno

Edições Aurora / Publication Studio SP www.edicoesaurora.com

realização:

agradecimentos A todos os autores .Aurora Adalberto Viviani Ajamu Ikwe-Tyehimba Aretha Sadick Ariel Nobre Ayrson Heráclito Beatriz Matos Benedita de Oliveira Santos Biel Lima Bojan Jovanovic Buyani Duma Cakes da Killa Carlos Eduardo Oliveira Carmen Garcia Carol Godefroid Carolina Munis Chico Tchelo Claudia Cisneylips Coletivo Ocupeacidade Comida de Papel Coumba Toure & baby Cursinho Popular Transformação Dalva Santos Dani d’Emilia Danna Lisboa Diane Lima Dimas Reis Gonçalves Dudu Quintanilha Eda Luiz Eduard Kon Rodrigues Eduardo Carrera Élida Lima Érica Teruel Guerra Esther Leblanc Ezio Rosa Fabian Alonso Fabio Morais Félix Pimenta Flip Couto Free Home University frrrkguys

Govinda Lilamrta Jackeline Romio Jair Bueno João Marcos de Almeida Karen Cunha Kholoud Bidak Lee Ann Norman Lígia Nobre Marilia Jahnel Mavi Veloso mc Xuxu mexa

Michael Roberson Michelle Matiuzzi Musagetes Odaymara Pasa Kruda Olívia Kruda Prendes Paulo Goya Paulo Henrique Rodrigues Pedro Avila Pony Zion praça das Artes Raisa Martins Rede Paulista de Educação Patrimonial (repep) Revolta da Lâmpada Rico Dalasam Rita Quadros Rogerio Migliorini Ruan Levy Reis Sandra Bueno Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo Steph Yates T. Angel Thato Ramaisa Tiago Guiness Umlilo Wilssa Esser

Este livro foi impresso na gráfica Expressão e Arte em março de 2017, sobre papel jornal 58 g/m2 e composto em Times New Roman, Arial e suas respectivas variantes Cuír Roman Times e Desvarial, deselvolvidas pelo Laboratório Gráfico Desviante. As fontes estão disponíveis para download e em: lgdesviante.org/fontes/

o movimento  ViGrunvald, Repep, CarueContre um território  Repep, BrunoPuccin, bibiAbigail do mundo  ViGrunvald, BrunoPuccin, JotaMombaca e resistência  Repep, BrunoPuccin, bibiAbigail lugar de  CarueContre, BrunoPuccin, bibiAbigail é preciso  ViGrunvald, Repep, SabrinaDura de gênero e  ViGrunvald, CarueContre, RegisMikail, bibiAbigail a armação de  ViGrunvald, RegisMikail, bibiAbigail, SabrinaDura o que não  BrunoPuccin, bibiAbigail, SabrinaDura um processo de  ViGrunvald, Repep, bibiAbigail não se pode  CarueContre, BrunoPuccin, SabrinaDura de classe média  ViGrunvald, CarueContre, JotaMombaca de uma linguagem  ViGrunvald, BrunoPuccin, bibiAbigail tratase de uma  Repep, BrunoPuccin, bibiAbigail uma série de  ViGrunvald, Repep em são paulo  Repep, CarueContre a pleno vapor  BrunoPuccin, bibiAbigail de pessoas que  ViGrunvald, BrunoPuccin diz respeito à  ViGrunvald, Repep e mulheres trans  CarueContre, bibiAbigail de são paulo  Repep, BrunoPuccin mas sim uma  bibiAbigail, JotaMombaca entre homens e  bibiAbigail, Kadija a questão da  ViGrunvald, CarueContre as condições de  SabrinaDura, JotaMombaca a materialização da  ViGrunvald, SabrinaDura largo do arouche  Repep, BrunoPuccin as necessidades de  Repep, CarueContre a importância de  ViGrunvald, Repep em busca de  CarueContre, bibiAbigail outras formas de  Kadija, JotaMombaca hija de perra  ViGrunvald, bibiAbigail um lado, a  ViGrunvald, BrunoPuccin na praça da  Repep, BrunoPuccin a possibilidade de  Repep, JotaMombaca parte da engrenagem  SabrinaDura, JotaMombaca é o corpo  bibiAbigail, JotaMombaca é justamente a  CarueContre, SabrinaDura classe média e  CarueContre, BrunoPuccin o discurso da  ViGrunvald, BrunoPuccin nos estados unidos  ViGrunvald, SabrinaDura do meu corpo  bibiAbigail, JotaMombaca de gentrificação  Repep, BrunoPuccin a palavra queer  ViGrunvald, bibiAbigail tentativas de expulsão  Repep, BrunoPuccin o racismo e  ViGrunvald, CarueContre ponto de encontro  Repep, BrunoPuccin um homem cis  bibiAbigail, JotaMombaca de um pensamento  ViGrunvald, SabrinaDura de janeiro de  BrunoPuccw in, JotaMombaca que não existe  ViGrunvald, bibiAbigail passou a ser  ViGrunvald, BrunoPuccin que a cidade  Repep, BrunoPuccin um só golpe  ViGrunvald, bibiAbigail homens e mulheres  bibiAbigail, SabrinaDura é um processo  ViGrunvald, CarueContre de um corpo  bibiAbigail, JotaMombaca de vida que  ViGrunvald, SabrinaDura de outros grupos  Repep, BrunoPuccin modo de vida  Repep, SabrinaDura situação de rua  Repep, SabrinaDura de exclusão e  ViGrunvald, CarueContre

sumário 8 12

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uma investigação queer  Shawn Van Sluys para cidade queer, uma leitora  Todd Lanier Lester não se nasce monstra, tampouco uma se torna  Jota Mombaça

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algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer  Vi Grunvald

34

no olho do cu(ir) – queer: centro e margens de uma palavra desgastada  bibi Abigail

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(des)mi(s)tificar falares: pers­pectivas para uma abordagem do pajubá  Régis Mikail Abud Filho

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chega de manhattans  Jean François-Prost

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o gozo do pária: tecnologias para existir à margem [da margem estatal]  Sabrina Duran

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lar, memória e resistência: reflexos e reflexões sobre mercado imobiliário, homossexualidades e o “tradicional bairro gay” da cidade de São Paulo  Bruno Pucinelli

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o hiv no fundo do armário lgbtq  Carué Contreiras

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ternura radical  Dani d’Emilia e Daniel B. Chávez

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território, cultura e memória lgbt+: o patrimônio cultural como abordagem para a busca do direito à cidade  Repep

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desmunhecando  Fabiana Faleiros

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cidade lida  Raquel Perrine e Thiago Hersan

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vogue no brasil: intercâmbios e apropriações  Entrevista com Félix Pimenta

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ataque

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explode! residency

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que cidade você queer?

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janta

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laboratório gráfico desviante

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nota sobre a edição

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créditos

algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

Vi Grunvald

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Digo de antemão que não quero sugerir um sentido único sobre o que a expressão queer pode ser, mas apenas indicar algumas questões que, a partir de minhas próprias idiossincrasias e do meu próprio corpo, se colocam quando penso sobre ela. Os usos políticos recentes da palavra queer nos países anglófonos buscam fazer avesso nos versos de um discurso excludente e opressor. Queer poderia ser traduzida como estranhx, esquisitx e, com o tempo, passou a ser utilizada comumente para se referir a dissidentes de gênero e sexualidade. Uma acusação: “Você é queer!”. E seus corolários: “Fique no seu lugar! Não polua! Não contamine! Desapareça!”. Quando usada com o dedo apontado na cara para “colocar alguém no seu devido lugar”, queer é uma denúncia disciplinadora que tem um duplo foco: expor a dissidência num lugar onde deveria haver norma e, a um só golpe, corrigi-la, negá-la, recalcá-la, oprimi-la. Mas quando apropriada numa prática de nomeação que não se pensa pela vergonha e pela imputação daquilo que é tido como normal, mas pelo orgulho e pela autodeterminação, aí as coisas mudam de figura. Parece que o jogo virou, né, queridinhx? Costumo dizer que, quando tiramos do opressor o poder de nos nomear, estamos tirando dele uma de suas armas mais fortes, já que negamos sua capacidade de definir nosso lugar no mundo por meio de uma nomeação. As considerações da teoria queer partem dessa ideia de que a linguagem, a maneira como colocamos o mundo em discurso, não é apenas um reflexo do mundo, mas sua produção, sua criação. É a isso que se refere a ideia de performatividade tão discutida por pensadoras como Judith Butler, Teresa de Lauretis e Eve Sedgwick. Pegar as palavras pelos chifres e fazê-las funcionar a nosso favor é subverter essa realidade que é colocada como interpelação de vergonha, como acusação, e passar a percebê-la não como negação de um lugar dentro da norma, mas como afirmação de algo fora da norma. Essa norma que é, em nossa sociedade, marcadamente cis-heteronormativa e altamente racializada. Quando a poeta afro-peruana Victoria Santa Cruz escreve o texto e realiza a videoperformance viscerais Me gritaron negra, ela invoca exatamente essa ética queer. Fala que, com apenas sete anos, lhe gritaram negra, e negra ela se sentiu – negra como seus opressores sentiam – e, então, retrocedeu, como eles queriam. Mas depois assu-

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algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

miu que sim, e negra se assumiu. “E quê?”, perguntou. Transformou o torpor em força e em ardor. O mesmo fez Gabriela Leite, figura icônica do movimento de prostitutas no Brasil, com a palavra “puta”. Em uma entrevista, conta que, certo dia, estava num botequim, conversando com um homem, e ele lhe perguntou o que ela fazia. Disse que era uma puta aposentada. Ao que seu interlocutor, retrucou: “Que isso, minha senhora? Você foi puta. Hoje em dia, a senhora é uma mulher direita!”. E reflete, com ironia: “Ele mesmo estava me defendendo de mim!”. Quando adolescente, ainda dentro do armário, fui defendido de mim várias vezes por amigos heterossexuais quando outros me acusavam de viado e bicha. Hoje, a partir do corpo e da vida que tenho, acho importante afirmar politicamente que sou esses nomes. Ainda que eles não esgotem minha existência e minhas possibilidades de vida. Ainda que eu possa fazer um monte de coisas que não são “coisas de viado”. Esse tomar as palavras pelo chifre, usá-las política e subjetivamente para definir nosso lugar no mundo e fazer avesso positivo daquilo que era injúria vexatória é uma ética de resistência que germinou na vida e nas ruas antes de ser construída cientificamente como teoria pela academia. Quando Teresa de Lauretis cunhou a expressão “teoria queer” colocou juntas, sob uma mesma alcunha, reflexões que estavam sendo produzidas de maneiras diferentes por distintas pessoas e que tinham como solo comum essa ética e política de vida. E é somente a partir dessas considerações que o termo ganha um sentido consistente. No Brasil, de forma diferente, os sentidos da queer começaram a florescer antes nos corredores das universidades do que nos espaços de luta do ativismo ou nos becos sujos e secretos onde corpos e práticas dissidentes se fazem regra e não exceção. Com isso, a palavra, já feita sinônimo da teoria que leva seu nome, chega aqui com ares de sofisticação, de um pensamento revolucionário do Norte civilizado, de gente que entende das coisas e produz teorias que devemos reproduzir – nós, pensadores tupiniquins que somos. Nesse cenário, como se dizer queer aciona a ética que ficou associada a esse nome? Ora, se a força dessa política de resistência está em afirmar positivamente para si um lugar que é socialmente subalterno e dissidente, como alcançar essa ética com a declaração de uma palavra, queer, que aqui passa a ser algo positivo, coisa de gente descolada e desconstruída, que conhece o que está sendo produzido e discutido na Europa e nos Estados Unidos, centros de emanação de tudo que é bom e digno de atenção? Daí a importância de pensar, com os estudos pós-coloniais ou decoloniais, que há uma geopolítica do conhecimento que nos faz acreditar

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1 castro , Eduardo V. de. O nativo relativo. Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 113-148, abr. 2002.

2 mignolo , Walter. Histórias locais / projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. 3 perra , h. de. Interpre-

tações imundas de como a Teoria Queer coloniza nosso contexto sudaca, pobre de aspirações e terceiro-mundista, perturbando com novas construções de gênero aos humanos encantados com a heteronorma. Periódicus: revista vinculada ao grupo de pesquisa cus (ufba ), Salvador, v. 1, n. 2, p. 2, 2014. Hija de Perra – e especialmente o referido texto – é referência obrigatória para pensar criticamente a absorção e a circulação da teoria queer no contexto sudaca. Nessa mesma época, no Brasil, pensadorxs como Pedro Paulo Pereira e Larissa Pelúcio começaram também a refletir sobre possíveis apropriações dessa teoria dentro da realidade brasileira. Essas reflexões são fortemente ancoradas nas discussões de pensadorxs ditxs pós-coloniais, como Walter Mignolo, Ramón Grosfoguel, Aníbal Quijano e Jota Mombaça.

na existência de centros de produção legítima de teorias, assim como de periferias ou margens que apenas as reproduzem. Ali, como nos centros, se produz representações sobre o mundo, dizem-nos. Mas apenas nos centros, não cessam de nos alertar, é que são produzidas teorias válidas sobre essas representações – uma lógica semelhante à denunciada por Eduardo Viveiros de Castro1 em relação ao discurso antropológico. A ideia de que devemos importar o modelo de desenvolvimento dos países do Norte, de que eles são o modelo de civilização que devemos desejar e buscar, de que nossos valores são arcaicos e nossos costumes bárbaros, de que nossos pensamentos são, de fato, ideias mal concebidas sobre o mundo, de que nossas questões são subjetivas e não conseguem alcançar, em discurso, a objetividade da ciência… todas essas ideias fazem parte daquilo que Walter Mignolo chama de colonização epistemológica.2 “Hoje falo situada geograficamente no Sul, mas muitas vezes parece que me valido falando a partir do Norte, como seguindo um pensamento que nos guia a matriz do dominador”,3 alfineta Hija de Perra, com uma crítica a alguns desses trabalhos por ainda se prenderem a uma visão desencarnada de conhecimento, o que, segundo argumenta, gera sérias consequências epistemológicas para as posições de sujeitos entre quem faz e sobre quem se faz teoria queer. É fundamental demarcar que, no que diz respeito à geopolítica do conhecimento nacional, o mecanismo é o mesmo, mas com os polos Norte e Sul invertidos. No Brasil, acredita-se, que o Sul e o Sudeste produzem conhecimento e constroem uma sociedade legítima, enquanto o Norte e o Nordeste devem apenas se espelhar nesses modelos e, se forem inteligentes ou capazes o suficiente, reproduzi-los. Por um lado, a colonização histórica, o movimento de conquista de territórios e a expansão das zonas de influência e exploração dos países do Sul (e, no Brasil, das regiões do Norte do país) pelas ditas potências do Norte (e pelo Sudeste brasileiro). Por outro lado, para muito além dela, a colonialidade, isto é, a lógica subjacente a esse processo de dominação que estabelece centros e margens e que, a todo momento, é reatualizada e expõe a capilaridade do pensamento colonial na construção de nossos corpos, pensamentos e subjetividades. O que poderia, então, ser algo como a descolonização da queer? Para mim, em primeiro lugar, seria reconhecer que nossos corpos, nomes e práticas dissidentes não tiveram que esperar a teoria ou a palavra queer para serem capazes de produzir suas lutas, resistências e seus territórios existenciais particulares. A cis-heteronorma que nos informa padrões coerentes de comportamentos, expressões e identidades de gênero e sexuais sempre foi ameaçada e ferida por bichas, sapatões, bolleras, maricas, travestis, viados e todxs aquelxs montrxs

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algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

que não se adequam a seus ditames. Mesmo no campo do pensamento e da fabulação sexo-política, autores como Néstor Perlongher, Osvaldo Lamborghini, Manuel Puig, Roberto Echavarren, Pedro Lemebel e muitos outros já estavam construindo o que Juan Pablo Sutherland chamou de “uma cidade marica na literatura latino-americana”.4 Em segundo lugar, trata-se de não projetar a hierarquia progressiva/ arcaica em nossas práticas de conhecimento e convivência. Inspiradas pelos ares de sabedoria cosmopolita e desconstrução cool, muitas pessoas que se identificam, se não como, pelo menos com a queer, acabam reproduzindo retóricas de exclusão que essa ética buscava suprimir e combater. Com a popularização da queer no Brasil, surgiu uma série de espaços de sociabilidade, jornais, revistas, filmes, músicas, gostos e estilos de vida que são tomadas como a materialização da última tendência, daquilo que há de mais moderno ou pós-moderno – como se queira. Um imenso “shopping queer”.5 Do dia pra noite, por conta da voga queer, as bichas velhas dos centros das cidades viraram anacronismos, pessoas cujas identidades fazem parte de um passado que essa nova sensibilidade desconstruída veio superar.6 Em uma mesa redonda sobre temporalidades queer, Jack Halberstam diz que se identifica sexualmente como stone butch (que pode ser traduzido como fancha, sapatão machuda) e se pergunta o que significa estar engajada em práticas sexuais cujo tempo é o passado. Continua argumentando que a ênfase, nas subculturas sexuais contemporâneas, em “flexibilidade”, desejos/práticas/identificações flexíveis, marca pessoas com identificações fortes como patológicas no que se refere à sua rigidez, e o binário flexível-rígido é, sem dúvida, de caráter temporal – ele atribui a mobilidade ao longo do tempo a certa noção de libertação e coloca identificações persistentes como uma maneira de ficar presx no tempo, involuídx, sem versatilidade. Estes são sintomas de homonormatividade subjacente, como Hoang sugere; eles colocam a liberação sexual como o outro de práticas sexuais presas no tempo. Muitas dessas caracterizações da homonormatividade também supõem um sujeito branco e, então, colocam o anacronismo em comunidades de cor – por exemplo, enquanto queers brancxs de classe média se adiantam com sua flexibilidade de gênero e sexual, comunidades associadas a sapatões (butch-fem), talvez latinas da classe trabalhadora ou algumas comunidades negras parecem estar detrás da curva da história.7

O que dizer de viados, sapatões e travestis das periferias de nossas cidades que têm pouco ou nenhum contato com os modismos queer sustentados por roupas, adereços e palavras de ordem? Se a ética queer que tem sido tão endeusada no cenário político e acadêmico nacional não conseguir incluí-lxs em suas reivindicações, não será

4 sutherland , Juan P. Nación marica: prácticas culturales y crítica activista. Santiago: Ripio Ediciones, 2009. p. 21. Tradução do autor.

5 perra , h . de. op. cit.,

p. 6. Tradução do autor.

6 Alocar sujeitos em temporalidades distintas sempre foi uma estratégia de poder, controle e submissão de corpos e populações. Para uma discussão sobre como a antropologia construiu seu objeto de estudo articulando noções de temporalidade e sobre as consequências desse procedimento, ver: Fabian (2002[1983]).

7 dinshaw , Carolyn et al. Theorizing Queer Temporalities: A Roundtable Discussion. glq : A Journal of Lesbian and Gay Studies, Durham, v. 13, n. 2-3, p. 190-191, 2007. Tradução do autor.

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8 mc queer , Fiscal. cd :

Mc Queer, 2016.

9 preciado , Paul B. Manifiesto contra-sexual. Madri: Opera Prima, 2002.

isso um atestado de sua falência e inaplicabilidade a nossos próprios corpos e causas? É claro que não se trata de negar ou ignorar a teoria queer de forma total ou absoluta. Podemos e devemos nos valer dela – como, aliás, faço aqui a todo momento – na medida em que sirva a nossos propósitos, a nossas questões e a nossas lutas. Mas se nossos corpos, identidades e práticas tiverem que se curvar, se ajustar e se conformar àquilo que nos dita tal teoria e não o contrário, então estaremos, mais uma vez, reproduzindo a colonialidade do pensamento, agora disfarçada de subversão libertadora. A palavra “viado” funciona para mim porque tem um nexo que eu reconheço e que é reconhecido pelas pessoas que compartilham comigo algum universo de sentido no cotidiano. Meu corpo branco, o fato de eu ser de classe média, professor universitário, tudo isso me higieniza. A cor da minha pele, minha classe, meu grau de instrução, meu lugar subjetivo e corporal no mundo é um privilégio ao qual muitxs não têm acesso. Como não reconhecer?! O ponto é que o reconhecimento desse lugar não deve se desdobrar numa aceitação da versão mais comportada e hipócrita da minha homossexualidade: aquela do viado que não se diz viado, mas gay, e por essa palavra entende alguém menos feminino e – se possível – menos preto e menos pobre. Esse lugar é um lugar político que eu não quero ocupar. Eu não preciso que me salvem de ser viado ou bicha, que me livrem de mim ou que me separem de pessoas mais pretas, pobres, femininas, velhas. “Ah, não tem problema ser viado, desde que não seja promíscuo.” De novo, a sexualidade boa contra a sexualidade ruim, como tanto nos advertiu Gayle Rubin (1984). De novo, a linha daquilo que é aceitável e normal empurrada para outro lugar, outra caixinha onde se possa colocar aquilo que é detestável e detestado socialmente e que, no claustro, não nos polua. A pragmática da normalização parece nunca ter fim. A resistência contra práticas de normalização é justamente algo que tanto a ideia de descolonialidade como a ideia de queer me sugerem. São espécies de contrapedagogias, avessos de uma pedagogia de formação de sujeitos. Por isso uma de-formação. Por que a gente tem sempre que desejar estar do lado do poder e da dominação? No ano de 2016, um artista chamado Mc Queer lançou uma música na qual se ouvia: “Me chama de viado, invertido e baitola / Bichinha, boiolinha, bambi chupa-rola / Quero muita atenção no que eu vou falar pra tu / Tem que ser macho pra caralho / Pra poder dar o próprio cu”.8 Então, eu preciso legitimar o fato de dar o cu porque isso me transforma em mais macho? Essa prática contrassexual9 de ter prazer com o orifício por onde se caga só se justifica e se confirma numa reconversão ao lugar dominante do macho? Eu quero é enviadescer,

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algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

como canta Mc Linn da Quebrada. E talvez seja por isso que eu dou o cu. Além de ser uma delícia, é claro. De fato, as duas coisas não estão separadas. Porque essa ética da qual eu estou falando é, ao mesmo tempo, uma ética de discurso, de palavra, de nome e uma ética de corpo, de gesto, de sêmen e mesmo de dor. Foi Paul Preciado quem talvez tenha colocado de maneira mais pungente, no panteão queer, a questão corporal da dissidência como algo que não pode ser negligenciado por uma excessiva ênfase na performatividade linguística. O meu contato com as práticas do bdsm 10 mostrou que podemos habitar lugares aquém da humanidade, onde as questões do humano ainda não se fazem presentes de forma tão condicionante. São uma lembrança esfumaçada, talvez mesmo trilhas de migalhas de pão para poder voltar em algum momento. Descolonizar o pensamento é também desafiar e desconfiar do humanismo e do humano, essa palavra que entra em voga num período específico do desenvolvimentismo europeu e que serviu, principalmente, para julgar quem fazia ou não parte de seus quadros, quem deveria estar na história e quem deveria, com os animais e o resto do “mundo natural”,11 estar apenas na biologia. Como disse em outro momento: Somos todos cyborgs. “O cyborg é nossa ontologia, nos outorga nossa política”.12 E se o cyborg de Haraway é expressão de fractalidade, como argumenta Strathern,13 então, enquanto tal, ele passa ao largo de todo e qualquer humanismo que, em sua definição, não pode prescindir da irredutibilidade dos polos dicotômicos (natureza-cultura, doméstico-público) contra a qual a ideia de fractalidade se constrói. Se considerarmos ainda que essas distinções estão no cerne do projeto moderno,14 então, já vem chegando a hora de dizermos que, assim como “jamais fomos modernos”, “jamais fomos humanos” (ou, pelo menos, nem sempre, nem em todas as situações e, certamente, não inteiramente).15

Não é à toa que, ao criticar o racismo e o etnocentrismo ocidental, Lévi-Strauss tenha atacado também a noção de povos sem história.16 Em relação ao humanismo, é preciso dizer que, tal como afirmou de maneira tão jocosa como precisa a tia de um amigo, “a humanidade é um projeto que não deu certo”. O problema, no entanto, se complica quando a desumanização não é um processo de autodeterminação, de autodeformação, de habitar fora dessa norma que é tão cis-heterocentrada, quanto racista e especista. Quando essa desumanização é, ao contrário, resultado de uma negação da humanidade que nada tem de voluntária, mas que é forçada, violenta e que desconsidera a humanidade de alguém apenas para colocá-lo num campo de risco que os direitos humanos, encarnação ocidental do acesso à justiça, não conseguem alcançar.17

10 bdsm é um acrôn-

imo para bondage, dominação, disciplina, sadismo, submissão e masoquismo. 11 todorov , Tzvetan. A

conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1988. 12 haraway , Donna. Ciencia, cyborgs y mujeres. La reinvención de la naturaleza. Madri: Cátedra, 1995. p. 254. Tradução do autor.

13 strathern , Marilyn. Partial Connections. Walnut Creek: Altamira Press, 2004.

14 latour , Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. 15 grunvald , Vitor. Teseu e o touro: algumas sugestões feministas para uma crítica da razão. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Museu Nacional, ufrj, Rio de Janeiro, 2009. p. 121.

16 lévi - strauss , Claude. Raça e história. In: Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976. 17 No século xx , as reivindicações de liberação e os questionamentos das normas da sexualidade passaram por um processo de codificação jurídica na noção de “direitos sexuais”. É necessário pensarmos não apenas o que se ganha, mas o que se perde com esse processo e, fundamentalmente, o que e quem fica de fora. Se, em teoria, direitos humanos deveriam ser universalmente válidos, na prática, sabemos que a própria ideia de sujeitos

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de direitos conclama que ser um sujeito é condição sine qua non para acessar o marco dos direitos jurídicos. O problema fica claro quando percebemos que, como insistem diversxs autorxs da teoria queer, a condição de sujeito é diferencialmente distribuída. Para saber mais, ver: viteri , María A.; castellanos , Santiago. Dilemas queer contemporâneos: ciudadanías sexuales, orientalismo y subjetividades liberales. Un diálogo con Letícia Sabsay. Íconos. Revista de Ciencias Sociales, Quito, n. 47, p. 103-118, 2013.

18 butler , Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. 19 Cf., por exemplo, bourcier ,

Marie-Hélène (Sam). 2014. Bildungs-Post-Porn: notas sobre a proveniência do pós-pornô, para um futuro do feminismo da desobediência sexual. Bagoas, Natal, n. 11, p. 15-37. 2014. Para um texto introdutório sobre pós-pornô ver adicionalmente: grunvald , Vitor. Teoria, carne e marcos iniciais da pós-pornografia. Flsh Mag. Disponível online, ver bibliografia. Acesso em: 26 jan. 2017; nogueira , Fernanda; costa , Pedro. Da pornochanchada ao Pós-Porno-Terrorismo no Brasil: d’As Cangaceiras Eróticas ao Coletivo Coiote. Revista Rosa, n. 5, dez. 2014. Disponível online, ver bibliografia.

Um caso recente emblemático foi o de Verônica Bolina, travesti negra brutalmente violentada pela polícia e exposta nos mais diversos meios de comunicação por meio de fotografias que figuravam um horror inominável. Qual seria o tamanho da comoção pública se fossem imagens como aquelas, mas de uma mulher branca, cis e de classe média? Nem dá pra imaginar o tamanho da confusão. Por que uns corpos merecem nosso luto e outros não? E esse luto e a violência com que se responde a ele não seriam também uma indicação de humanidade ou de sua falta, como tem argumentado Judith Butler?18 Quando é esse o efeito, quando é essa a questão, a desumanização talvez não deva ser buscada, mas combatida e chorada publicamente. Como fazem, aliás, tão obstinadamente as Mães de Maio, que tiveram suas filhas e filhos tiradas pelo terrorismo de Estado encarnado no seu braço armado – a Polícia Militar. Devemos pensar em estratégias, nos diversos ativismos de combate, mais do que em regras gerais. A pós-pornografia e o porno-terrorismo são ativismos de corpo e escracho, de desumanização e de deformação.19 Mas quando a intenção é a resistência a uma desumanização entendida como degradação e desconsideração do outro como alguém dignx de vida, as estratégias podem e devem ser outras. Publiquei no Facebook, recentemente, o Minimanual do guerrilheiro urbano, do Marighella. A minha tia imediatamente comentou: “Use ideias (aquela que começa feia depois fica bonita) e não violência. Porque violência só gera violência”. Ao que respondi: Minha querida tia, a não violência deve ser buscada onde quer que seja possível. Mas é urgente colocar que há situações nas quais ela não é uma opção. A prerrogativa da não violência é apenas de alguns. Uma pessoa branca de classe média vive uma vida que a permite colocar a questão da não violência como legítima. Mas quando se trata de pessoas negras, pobres, de periferia, que não se adequam aos modelos aceitos socialmente de comportamento de gênero etc., será mesmo que elas têm a opção de não serem violentas? Dá para responder apenas com palavras e ideias, em suma, com não violência, quando se aponta uma arma para você, quando se usa o cassetete para violentar seu corpo simplesmente por ele existir, quando se aplicam golpes a você o tempo inteiro e tanto por parte de pessoas que se acreditam justiceirxs do bem quanto por parte do próprio Estado e de sua truculenta polícia? Está na hora de pensarmos a quem serve o discurso da não violência e quem tem o privilégio de colocá-lo como possível e mesmo prioritário! Queria te emprestar meus olhos e minhas memórias para que você pudesse ver as coisas que tenho visto nas últimas manifestações! Muitas atitudes não violentas por parte dos manifestantes que ganham em troca violência gratuita por parte da polícia!

Lembrando disso, um tempo depois, recordei do que Davi Kopenawa, xamã yanomani, havia escrito no livro que assinou com

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algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

Bruce Albert: “Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham consigo mesmos”.20 Para mim, descolonizar a queer é também, de alguma forma, não sonhar apenas consigo mesmx. Mas se essa for a prática – a de se subtrair, de se tornar menor, minoritário e não maior, dominante e majoritário –, então, as coisas que eu disse provavelmente são um arranjo muito peculiar e situado para dar sentido a esse processo. É necessário, de fato, que a própria teoria queer seja constantemente minorada, tal como busquei sugerir com a obra de Judith Butler.21 O ponto é que não existe uma fórmula que você possa oferecer a alguém: “tá aqui, você faz isso para descolonizar a queer! Você fica toda desconstruída e subversiva!”. Não se deixar capturar por essa lógica de desejar sempre o poder e a dominação só pode ser algo muito diferente para cada pessoa porque é impossível separar a resistência do processo de subjetivação que é peculiar a essa espécie de autodeterminação deformatória. Não há regra, justamente, porque colocar uma regra seria ainda apostar no sonho positivista de uma linguagem neutra, incorpórea e, tanto melhor, se for científica, se retirar toda a subjetividade e toda a singularidade para se transformar pretensamente no reflexo exato da natureza. Algo que eu me recuso a fazer. Hoje em dia, tem muita gente que se incomoda quando se toca em determinados assuntos ou se chama a atenção para pressupostos fóbicos que estão implícitos em práticas de exclusão e submissão. Chamam isso de mi-mi-mi e de implicância. Do meu ponto de vista, é implicância num sentido bem preciso: não implicar com alguém, mas implicar alguém em algo que essa alguém não é, em algo que ela não consegue considerar a partir do corpo e da pessoa que é. E mesmo se autoimplicar naquilo que você nunca vai ser e bloquear, da maneira como for possível, aspectos fascistas daquilo que você também é. Como disse, não espero, com este texto, dar alguma sugestão muito forte sobre o que é descolonização da queer. Quero, ao contrário, dar uma sugestão muito fraca, minha, do que isso pode ser. E tentar, quem sabe, oferecer esse sentido de modo que cada pessoa que leia essas palavras possa encontrar ferramentas para que ela ou ele ou ile leve adiante sua luta e sua resistência em seus próprios termos.

20 kopenawa , Davi;

Bruce. A queda do céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 412.

albert ,

21 grunvald , Victor.

Butler, a abjeção e seu esgotamento. In: díaz - benítez , María Elvira; fígari , Carlos (orgs.). Corpos, desejos, prazeres e práticas sexuais dissidentes. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

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referências bourcier ,

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algumas reflexões pessoais sobre a descolonização da queer

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Vi Grunvald É viado, nortista, doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (usp ), professor da Faculdade Cásper Líbero e integrante dos seguintes grupos de pesquisa ligados à usp: Grupo de Antropologia Visual (Gravi); Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (Napedra); e Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença (Numas).

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