Agostinho Da Silva 3

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ERRÂNCIA E ASCESE EM AGOSTINHO DA SILVA Luís Carmo

Tem este pequeno ensaio o intuito de ser uma aproximação àquilo que poderíamos caracterizar como sendo uma dinâmica, presente no pensamento e na vida de Agostinho da Silva, de contínua superação de si e realização de suas mais intimas possibilidades – inseparáveis das de todos os outros, se bem que cada um, e cito: «pela via que lhe for mais própria ao seu talento» E, segundo nos parece, nos primeiros textos ele próprio não compreendia tão bem o que estava transmitindo, como o conseguiu assumir e viver mais plenamente nos últimos. Certo é, de qualquer modo, que sempre limitado está aquilo que tento sintetizar − espero que não seja uma redução, mas um contributo actualizador e renovador do espírito que moveu Agostinho e também nos move a nós. Falamos, então, de um eixo de equilíbrio dinâmico que orienta o caminhar da vida e que tem como extremos a errância e a ascese. Inspiramo-nos em Agostinho da Silva pensando-o, e permitamos que ele pense através de nós - deixando ainda de nota que se trata aqui de um exemplo de vida, de propostas de reflexão, de pensamento sempre inventivo e espiritualizante, e não de alguma teoria fixada e de «coerência inventada» que Agostinho proponha para aplicação definitiva. Se assim parecer é falha minha, ou invenção. Muitas são as dimensões e as possibilidades de, a partir deste eixo, pensar Agostinho assim como alguns outros pensadores portugueses, tais como Antero de Quental ou Leonardo Coimbra, entre outros, mas, desde logo, seria melhor esclarecer o que se entende por errância e por ascese na sua dinâmica conjunta. A errância ascética passa pelo meio das árvores num bosque onde o canto das aves, as sombras e os brilhos nos podem desviar do caminho que conduz ao outro lado, à liberdade, mas nos chamam também ao sempre presente. As distracções e dispersões exteriores, que são intimamente interiores, são constitutiva dificuldade da errância, do viver no mundo, quando em sua mera forma de satisfação particular e repetitiva, quando insistindo em erros, dores e prazeres, não se dá uma reflexão profunda e superadora, em cada um, acerca do que está acontecendo.

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Por outra, a errância é como que uma condição de ser na multiplicidade, que nos pode perder e separar do fluir da unidade vazia que sustém essa multiplicidade, se tomarmos como verdadeiro e definitivo o que não é senão aparente e provisório, e não ousarmos deixar viver em nós esse outro lado de ser humano que é a liberdade. Liberdade, tanto de ser diverso e de ser nada como a de uma vontade de ser progressivamente mais integro e inteiro. É a ascese que ainda vivendo e experimentando a errância de ser no mundo vai, por motivação de viver autêntica e plenamente, buscar uma constante superação de si e das suas limitações, dirigindo-se sempre a mais amar e a melhor servir o bem comum, a ser sempre mais autenticamente, sem que aí se esqueça do nada de substância definida e de determinação que tudo é. A ascese reflecte a liberdade; o que no homem implica a vontade, a inteligência desperta, a disponibilidade para nada ser, nada ter e, por isso mesmo, tudo poder viver; assume ela a errância para não separar a alma, do mundo. Assim se vai sendo o que é, até que se seja verdadeiramente o que se é, que é Deus sendo. E Deus é Tudo que é Nada. Retirando a errância à ascese seria como retirar o múltiplo ao uno e o tudo ao nada, ora, se é pela ascese que o homem vive essa unidade da multiplicidade, é pela errância que se disponibiliza para tudo ser. Agostinho da Silva aconselharia a não separar o que é do que também é. Assim como a errância é possibilidade de uma contínua invenção de si, é a ascese a de se ir despindo de limitações que obscureçam a autenticidade; e é esta assunção ascética de nada ser que mais plenamente liberta para tudo ser – o que num outro plano seria comparável a deduzir que a contemplação liberta e esclarece a acção dirigindo-a para o mais essencial – desde o pão nosso de cada dia à pedagogia, da política à filosofia. Uma quadra de Agostinho:«O mundo é só o poema / em que Deus se transformou / ele existe e não existe / tal a pessoa que sou.» No caminhar para o encontro do que em si é mais autêntico depara-se o indivíduo com uma necessidade de renúncia a si, e ao que quer para si, abrindo-se simultaneamente à aceitação do que acontece como sendo o que é de seu destino – sempre em diálogo com a liberdade de ser outro – não se subtraindo de ser, por um querer ser que se distancia da vida ao particularizá-la. Como diz noutra quadra: «Talvez seja isto somente/ o de mais perfeito ensino/ ter homem a liberdade/ de se entregar ao destino.» Renunciando a mim, mais autenticamente sou o que em mim vai sendo – que é Deus. Entendido como não sendo entendível - um Tudo/Nada Uno. 2

A dinâmica de uma vida que nada deixe de lado senão a insistência naquilo que separa de se ser inteiro por acreditar ser algo concreto, ou seja, o querer particular e a propriedade, requer tanto uma dimensão activa como contemplativa, sempre se actualizando uma à outra numa ascese superativa que o indivíduo e o colectivo vão fazendo continuamente numa criação do futuro que sempre traga mais liberdade e amor ao mundo presente. Digo uma quadra: «O que faço só importa/ se traduz o que vou sendo/ se assim não for tudo é nada/ só finjo que estou fazendo.» Mas o processo de auto-superação e de ascese tem de ser voluntário e tem de se fazer valer dessa qualidade divina de ser livre elevando-nos a nós e assim ao mundo, inseparavelmente; e então pela nossa vontade se exerce a vontade de Deus. Que toda a intervenção no mundo se abstenha de uma imposição do nosso gosto ou opinião pessoal mas se torne num servir, numa entrega ao que se dirija sempre para um sentimento de união entre o céu e a terra; ajudando, no que estiver ao nosso alcance, e mediante um esforço, uma atenção e um interesse crescentes, no desenvolver a possibilidade de em todos brotar uma inteligência que se abra ao espírito e à santidade. Um aperfeiçoamento das condições sociais, pela cultura estendida a todos e um desenvolvimento dos meios de produção, que traria como consequência uma diminuição das horas de trabalho, libertando os indivíduos de situações pouco compatíveis com uma existência autenticamente humana, possibilita prestar atenção ao que mais vale em cada um, e assim ser-se o que se é actualizando-se no espírito que tudo liga de amor. Tem, então, sentido a busca a que todo e qualquer um tenha as condições materiais, culturais, mentais, para se fazer voluntariamente a essa vida autêntica, a um caminho que é seu e que passa, em última instância, por uma renúncia a ser algo de definido. Tal tarefa é a de uma acção que se funda na meditação da unidade - que é espírito e liberdade - o que abre a possibilidade de tudo poder ser e de fundar na terra o reino do espírito, de acordo com a inseparabilidade de tudo. De que adianta uma contemplação que se não aplique para o bem comum, ou uma acção que se não eleve ao espírito e que não traga bem ao mundo, harmonizando céu e terra, uno e múltiplo? Tornemo-nos, pois, o acto e não o actor. Assim se assume o homem em Deus disponibilizando-se a que Deus seja no homem em mais clara e una intimidade – já que a separação seria apenas uma ignorância humana da sua natureza autêntica: una, múltipla e plenamente vazia – paradoxo divino.

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Neste processo de auto-superação o sofrimento e a dificuldade são tidos, por Agostinho da Silva, como sempre estimulantes ao caminho de realização, e a que se pense e se aja em acordo com esse pensamento, que em nós se pensa, ao nos debruçarmos sobre aquilo que nos vai acontecendo. Como escreve Agostinho nas “sete cartas…”: «Só há homem quando se faz o impossível.» Mas no próprio aprofundar do ir sendo se nos vai esclarecendo o sentido de ser e de ir sendo, dispensando assim uma ascese que se valesse somente de austeras disciplinas ou estudo de teorias que renegassem o mundo ou dele nos afastassem – afastando-nos de uma mais profunda unidade de ser e de ser sempre melhor, com e no mundo, tornando-o mais livre, neste nosso esforço de transpor os obstáculos que impedem uma vida humana e divina. Não se deixe de lado uma parte da vida, rejeitando a poesia da variedade para tentar viver um nada essencial sem a dimensão de manifestação que é tudo no reverso de ser nada. O dar-me à errância vai-me lembrando e actualizando a ascese de onde estou no meu processo de libertação, e de onde se habito, forçando-me à dúvida de mim e a uma ascese mais verdadeira, a de ser o ser inteiro e o mundo inteiro que é preciso assumir. Em quadra diz Agostinho:«Amor à vida no tempo/ corra bem ou corra mal/ dá a força de voar/ ao que seja intemporal.» No poder ser tudo implica-se que o outro não é outro senão para uma visão já separada da unidade, iludida, por identificação, com o espectáculo das aparências. Não sendo eu próprio nada, sou tudo, como tudo é tudo e é nada. O outro é o mesmo que eu e se o compreendo me abro ao amor que une tudo. Citando Agostinho :«Não há liberdade minha se os outros a não têm.» Ao cuidar de tudo constantemente para que melhor seja, mais plenamente seja e venha a ser, deixando ser o que cada um é, sem imposição, abro-me a um amor que, se existe, realiza na terra o que de mais belo há porque, como diz Agostinho :«todo o amor que ama o eterno é o amor de Deus amando-se a si próprio». Temos no amor e na liberdade condições e resultado da uni-multiplicidade divina. O amor é unidade entre tudo, é espírito em acção, e a liberdade é o nada e tudo ser, é, no humano, disponibilidade e vontade de ser o que se é e ir sendo nesse caminho ascendente que, aceitando a destinação do que acontece, ainda assim age numa busca de si; o que remete para um trabalhar sobre todas as dimensões existentes na vida, seja política seja filosófica, seja artística ou científica, num afastamento das especializações que impeçam, no aproveitar do mundo, qualquer tipo de alienação ou escravatura que 4

contrarie o apuramento moral do indivíduo e do colectivo.. É como se Deus fosse em nós uma criação perpétua e numa eternidade que é tempo, pois que é mundo e é história mas tivéssemos de abrir espaço para Ele ser em nós plenamente, individual e colectivamente. E é assim no viver do tempo, na contínua e paciente construção de um reino divino e humano que a eternidade se vive na dádiva de ser para o mundo e, por isso, no sacrifício de nada ser, melhor assumindo o amor e a liberdade divinos. Sendo o indivíduo nada – pois que Deus nada é - mas continuando a sua errância ascética, pois que ainda se pensa algo, vai sempre, ao despojar-se de si, e ao elevar-se ao mais autêntico em si, elevando o colectivo e realizando Deus mais plenamente na procura de estabelecer condições de harmonia sempre mais plenas entre tudo o que existe, ainda que sejam tendências contrárias e paradoxais, e sem se retirar dos caminhos mais árduos de percorrer, nem do espectáculo do mundo. Assumindo a variedade, em si, e do mundo abre-se ao ir sendo vário no mesmo uno, sem que se conceba tal uno de forma alguma pois que nada é que se possa conceber . Uma quadra que reflecte as tendências da errância e da ascese: «Um dos pólos de viver / é para mim aventura / mas outro tão bem querido / o de claustro e clausura.» Para este processo auto-superativo do indivíduo e do mundo que re-une humano e divino, o que só para nós parece separado, há um incentivo, em Agostinho, a uma formação e um diálogo com todas as formas de saber e de experiência seja artística, científica, religiosa ou filosófico - para que todo o mundo ascenda a ser e a desenvolver a inteligência que o aproxime de Deus, de si e dos outros em amor e bondade; levando o agir a que seja consoante o pensar. O desafio de pensar as diversas tradições religiosas, os exemplos daqueles que admiramos, e os variados saberes, permitirá uma aplicação do melhor que daí se conseguir retirar, nunca

fixando nem impondo ideologia nenhuma, mas ainda

experimentando e duvidando, não deixa de reconhecer a necessidade de o presente sempre precisar de decisões que resolvam as situações concretas em que estamos envolvidos. Aí, apoiamo-nos no que seja o melhor possível, inspirando-nos num futuro mais perfeito que possamos pensar, ou que outros mais profunda e altruisticamente pensaram. Ora, para tal, é preciso pensar, ou deixar-se pensar o pensamento, sem certezas definitivas. E tal pensar ser acompanhado da aplicação do que se pensa, gerando progressivamente no mundo essas melhores condições, para que mais pessoas possam elevar-se à sua condição divina, e o próprio mundo seja reflexo harmonioso do destino e da liberdade que é Deus feito homem e mundo. 5

A intervenção no mundo é uma superação e um trabalho infindo sobre as dificuldades que surgem e as limitações que impedem que cada um, desde criança, se emancipe da necessidade de poder e de querer privado, e que possa simultaneamente ser o que é, percorrendo o seu caminho da forma que ainda assim lhe seja mais próprio . A renúncia a si é um voluntário processo individual de libertação, e de dádiva, que se dá ao destino e à liberdade mas que precisa também dessa disponibilidade de sentir com o outro, e de ser outro – o que melhor acontece se as condições básicas de existência estiverem garantidas. Esse sacrifício de si resulta em favor de um servir humildemente para o que possa ser o bem comum. Estaria pois, em questão uma pedagogia que deixasse ser o que se é em cada um, em vez de impor uma forma de estar que separa o ser dos seres e do todo, escravizando-o por melhores intenções que tenha − e, no entanto, é sempre errando e experimentando que a história humana se faz e que se vai superando e apurando . Está em questão uma política, uma economia, que sempre se pense do presente para o futuro e do futuro para o presente, em que tudo o que seja produzido seja para o bem comum e distribuído por todos, inspirados no mais perfeito que todos e cada um souber, conseguir e quiser dar; sempre assentes numa dinâmica de superação que não esqueça, como é dito nas Cinco Falas de Gente Pastoril, nem o possível nem o sonho. Escreve Agostinho num aforismo: « O paradoxo fundamental do universo (...) é ser ele pensamento que a si próprio se pensa». O despojar-se de si próprio e das suas limitações conduz à aceitação da acção como pensamento e do pensamento como acção, indistintamente divinos e humanos. Para que o Espírito seja o puro que é seria preciso que nos fossemos tornando sempre mais virgens, prontos a ser todos e nenhum; realizando-nos em amor e liberdade, em acção e contemplação, numa errância ascendente que supera os obstáculos no mundo mas que também em solidão liberte o nosso sentir e pensar de influências alheias, disponibilizando-se tanto a «tomar os rumos não tentados», como Agostinho, como a uma mais profunda compreensão e vivência de Deus, do homem e do mundo.

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